TeseDoutorado ALMEIDA 2016

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Mônica Andréa Oliveira Almeida

Ação afirmativa na educação básica em uma


escola de excelência: a experiência do
Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues
da Silveira – CAp/UERJ

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Educação da PUC-Rio como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutora em Ciências Humanas -
Educação.

Orientador: Prof. Marcelo Gustavo Andrade de Souza


Coorientadora: Profa. Claudia Miranda

Rio de Janeiro
Abril de 2016
Mônica Andréa Oliveira Almeida

Ação afirmativa na educação básica em uma


escola de excelência: a experiência do
Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues
da Silveira – CAp/UERJ

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção


do grau de Doutora pelo Programa de Pós-graduação
em Educação do Departamento de Educação do Centro
de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada
pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Marcelo Gustavo Andrade de Souza


Orientador
Departamento de Educação – PUC-Rio

Profa. Claudia Miranda


Coorientadora
Escola de Educação – UNIRIO

Profa. Angela Maria de Randolpho Paiva


Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio

Profa. Daniela Frida Drelich Valentim


Faculdade de Educação – UERJ

Prof. José Roberto da Silva Rodrigues


Colégio de Aplicação – UERJ

Profa. Vera Maria Candau


Departamento de Educação – PUC-Rio

Profª. Denise Berruezo Portinari


Coordenadora Setorial do Centro de
Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 03 de maio de 2016


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem a autorização da universidade, do autor e
do orientador.

Mônica Andréa Oliveira Almeida

Possui graduação em Pedagogia (2000) pela PUC-Rio e Mestrado


(2003) pela mesma instituição. É professora assistente da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, do Instituto de
Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – CAp/UERJ, atuando
no 1º segmento do ensino fundamental. Tem experiência na área de
educação atuando principalmente nos seguintes temas: ensino
fundamental, alfabetização, cotidiano escolar, escola e diferença.
Desenvolve pesquisa na área de educação e formação de
professores. Integra como pesquisadora o GPFORMADI – Grupo
de Pesquisa Formação em Diálogo: narrativas de professores,
currículos e culturas do Departamento de Ensino Fundamental do
CAp/UERJ.

Ficha Catalográfica

Almeida, Mônica Andréa Oliveira

Ação afirmativa na educação básica em uma escola de


excelência: a experiência do Instituto de Aplicação Fernando
Rodrigues da Silveira – CAp/UERJ / Mônica Andréa Oliveira
Almeida ; orientador: Marcelo Gustavo Andrade de Souza ;
coorientadora: Claudia Miranda. – 2016.
275 f. ; 30 cm

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio


de Janeiro, Departamento de Educação, 2016.
Inclui bibliografia.

1. Educação – Teses. 2. Ações afirmativas. 3. Educação


básica. 4. CAp/UERJ. 5. Negros. 6. Cotas raciais. I. Souza,
Marcelo Gustavo Andrade de. II. Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro. Departamento de Educação. III. Título

CDD: 370
Agradecimentos

Ao meu orientador Marcelo Andrade e minha coorientadora, Claudia Miranda, não


apenas pelo apoio e confiança, mas também pelo incentivo ao longo desses quatro
anos.

À CAPES e à PUC-Rio, pelo apoio concedido, sem os quais este trabalho não
poderia ter sido realizado.

A todos/as os/as colegas da turma de doutorado 2012 da PUC-Rio.

Em especial aos amigos e amigas do GECEC que compartilharam comigo tantos


momentos de aprendizagem nesse privilegiado espaço de reflexões e discussões.
Não vou nomeá-los por que poderia esquecer alguém.

Às minhas queridas amigas Alessandra Nascimento, Bonnie Axer, Carolina Succo,


Cláudia Barreiros, Crizan Sasson, Jonê Baião, Margarida dos Santos e Roberta
Sales, que além das palavras de incentivo me auxiliariam a localizar dados e
informações importantes para a elaboração deste trabalho.

Às companheiras do Departamento de Ensino Fundamental do CAp/UERJ pelo


apoio concedido e pela aprovação do meu afastamento das reuniões de colegiado.

Aos funcionários e funcionárias da Secretaria e do Núcleo Pedagógico do


CAp/UERJ pela disponibilidade e ajuda no momento da coleta de dados sobre a
estrutura do colégio.

Aos professores e professoras, funcionárias técnico administrativas e ao diretor do


colégio que, gentilmente, concederam-me as entrevistas.
À minha família pelo apoio e carinho em todos os momentos e por compreender
minhas ausências, especialmente, meus filhos, meu neto, minha irmã e meu irmão.

Meu agradecimento mais que especial ao Mário, meu marido, e ao meu caçula,
Mateus, pelo amor, carinho, apoio e, principalmente, pela paciência e compreensão
nos momentos de conclusão deste relatório. Mateus terminei o trabalho!
Resumo

Almeida, Mônica Andréa Oliveira; Andrade, Marcelo Gustavo (orientador);


Miranda, Claudia (coorientadora). Ação Afirmativa na Educação Básica
em uma escola de excelência: a experiência do Instituto de Aplicação
Fernando Rodrigues da Silveira – CAp/UERJ. Rio de Janeiro, 2016. 275p.
Tese de Doutorado – Departamento de Educação, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.

A pesquisa trata da adoção de ações afirmativas de corte racial na educação


básica, especificamente, no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira
– CAp/UERJ. O objetivo geral da pesquisa foi compreender como se deu o processo
de implementação da Legislação Estadual 6434/13 que determinou a implantação
das ações afirmativas na modalidade de cotas raciais, sociais e para pessoas com
deficiência no CAp/UERJ. O foco específico da pesquisa diz respeito às cotas
raciais no 6º ano de escolaridade do segundo segmento do ensino fundamental.
Assim, analisam-se as representações que alguns sujeitos da comunidade escolar,
técnico-administrativos, diretor e, em especial, professores e professoras têm sobre
as políticas de ação afirmativa. Pretendeu, ainda, investigar como a escola
operacionalizou essa lei no tocante ao processo de acesso e matrícula, bem como
os possíveis impactos no currículo e nas práticas pedagógicas. Para isso, foram
realizadas entrevistas semiestruturadas com dez docentes, cinco professoras
pertencentes ao quadro efetivo e outros/as cinco contratados/as; três funcionárias
técnico-administrativas e o diretor do colégio. O estudo foi desenvolvido numa
perspectiva de abordagem qualitativa, considerando-o como um estudo de caso. As
principais conclusões com o trabalho foram: (i) o pioneirismo da adoção de políticas
de ação afirmativa de corte racial no primeiro e segundo segmentos do ensino
fundamental; (ii) a permanência desses/as estudantes no colégio através de medidas
socioeconômicas; (iii) as questões relativas às formas de avaliação, conteúdos
selecionados e às práticas docentes que demonstraram a necessidade de que sejam
discutidos processos de formação continuada de professores/as na perspectiva da
diversidade étnico-racial e cultural que possam orientar as práticas pedagógicas.
Palavras-chave
Ações afirmativas; Educação básica; CAp/UERJ; Negros; Cotas raciais.
Abstract

Almeida, Mônica Andréa Oliveira; Andrade, Marcelo Gustavo (Advisor);


Miranda, Claudia (co-adviser). Affirmative actions regarding race in
primary education at a school of excellence: the experience at Instituto de
Aplicação Fernando Rodrigues da SIlveira – CAp/UERJ. Rio de Janeiro,
2016. 275p. Doctorate Dissertation. Departamento de Educação, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This research relates to the adoption of affirmative actions in regards to race


in primary education, specifically in Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da
Silveira – CAp/UERJ. The general aim of this research was to comprehend how the
process of implementation of the State Law 6434/13 took place. This law
determined the implementation of affirmative actions for racial and social reasons
and for disabled individuals at CAp/UERJ. The specific focus of this research is
related to racial quotas in the 6th year of elementary school. This way, the research
analyzes the representations that some individuals from the school community,
administrative technicians, directors and especially teachers have about this racial
policy. This work also intended to investigate how the school dealt with this policy
in its everyday operation in which referred to the process of access and enrollment
as well as the possible impact in curriculum and pedagogical practice. In order to
achieve those goals, we performed semi-structured interviews with ten elementary
school teachers; five of these were admitted through contests and the other five by
temporary contracts; with three administrative technicians and with the school
director. This study was developed as a qualitative research, considering it a case
study. The main conclusions were: i) the adoption of the system of affirmative racial
actions in elementary school was pioneer; ii) the student’s attendance through
social-economic arrangements; iii) the questions related to ways of assessment;
selected content and teacher’s practice showed that we need to discuss the continued
formation for teachers concerning diversity, cultural and racial–ethnic perspective
in order to guide their pedagogical practice.
Keywords
Affirmative actions; Primary education; CAp/UERJ; Blacks; Racial quota
Sumário

1 Introdução 17
1.1 Ações afirmativas: recortando um campo de pesquisa 18
1.2 Alguns conceitos centrais para a discussão etnicorracial 22
1.3 Justificativas: por que ações afirmativas na educação básica? 29
1.4 Hipóteses e apostas para um novo campo de pesquisa 31
1.5 Questões e objetivos de pesquisa 33
1.6 Procedimentos metodológicos 34
1.7 Revisão de literatura: com quem conversamos? 41

2 Negr@s e a luta por educação 45


2.1 Os movimentos negros e as demandas por cidadania 45
2.2 As políticas de ação afirmativa: algumas considerações 50
2.3 Ações afirmativas: diferentes conceituações 59
2.4 Políticas de ação afirmativa para negros/as no Brasil 63
2.5 Alguns indicadores raciais e sociais: a realidade estatística 67
2.6 Educação antirracista e a Lei 10.639/03 77
2.7 A perspectiva multi/intercultural em educação 88

3 As ações afirmativas no CAp/UERJ 99


3.1 A Lei 6.434/13 e a reserva de vagas para o CAp/UERJ 104
3.2 CAp/UERJ: uma escola de excelência 113
3.3 Estrutura e números 119
3.4 Os sujeitos de pesquisa 126
3.5 Experiência profissional no CAp/UERJ 130

4 O colégio por seus sujeitos 135


4.1 O perfil dos/as estudantes do CAp e a relação entre eles/as 135
4.2 A relação entre os/as professores/as e os/as estudantes do
CAp 152
4.3 O trabalho docente: planejamento, didática, currículo e
avaliação 157

5 As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais


de educação do CAp/UERJ 171
5.1 Sobre as ações afirmativas 171
5.2 Sobre a implementação das ações afirmativas na educação
básica 197
5.3 Ação afirmativa no CAp: a discussão entre a comunidade
escolar 208
5.4 Riquezas e dificuldades na adoção das ações afirmativas 217

6 Considerações finais 235

7 Referências bibliográficas 244

Apêndices 252

Anexos 255
Lista de ilustrações, imagens e figuras

Figura 1. Mapa conceitual (CANDAU, 2012c, p. 250). 98


Figura 2. Organograma de coordenadoria e departamentos. 124
Lista de tabelas e quadros

Tabela 1. 1º ano – sorteio para o ano letivo de 2014 107


Tabela 2. Candidatos inscritos no concurso para o 1º ano 107
Tabela 3. 6º ano – sorteio para o ano letivo de 2014 107
Tabela 4. Candidatos inscritos no concurso para o 6º ano. 108
Tabela 5. 5º ano – Ensino Fundamental – 1º segmento. 117
Tabela 6. 9º ano – Ensino Fundamental – 2º segmento. 117
Tabela 7. Professores/as entrevistados/as. 128
Lista de abreviaturas e siglas

ABPN Associação Brasileira de Pesquisadores Negros


ALERJ Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
ANPEd Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
ASDUERJ Associação Docente da UERJ
CA Classe de Alfabetização
CAp/UERJ Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira
Capes Coordenadoria da Capacitação de Pessoal no Ensino Superior
CEH Centro de Educação e Humanidades
CNE Conselho Nacional de Educação
Consed Conselho Nacional de Secretários de Educação
Consun Conselho Universitário
COPENE Congresso Nacional de Pesquisadores Negros
CSEPE Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão
DCHF Departamento de Ciências Humanas e Filosofia
DCN Departamento de Ciências da Natureza
DEF Departamento de Ensino Fundamental
DEFA Departamento de Educação Física e Artística
DIJUR Diretoria Jurídica da UERJ
DLL Departamento de Línguas e Literatura;
DMD Departamento de Matemática e Desenho;
DSEA Departamento de Seleção Acadêmica
Educafro Educação e Cidadania de Afrodescendentes Carentes
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
EUA Estados Unidos da América
Faetec Fundação de Apoio à Escola Técnica
FFP/UERJ Faculdade de Formação de Professores UERJ
FIPE Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas
FNB Frente Negra Brasileira
Fundeb Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e
de Valorização dos Profissionais da Educação
GECEC Grupo de Estudos sobre Educação, Cotidiano Escolar e Culturas
Geledés Instituto da Mulher Negra
GTI Grupo de Trabalho Interministerial
HUPE Hospital Universitário Pedro Ernesto
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDEB Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação
LPP Laboratório de Políticas Públicas
MEC Ministério da Educação
MNU Movimento Negro Unificado
NAPE Núcleo Acadêmico Pedagógico
NEAB Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros
NEPE Núcleo de Extensão, Pesquisa e Editoração
OCDE Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
ONU Organização das Nações Unidas
PBAP Programa de Bolsa-Auxílio à Permanência para discentes da
Educação Básica
PCN Parâmetros Curriculares Nacionais
PDE Plano de Desenvolvimento da Educação
Planfor Plano Nacional de Educação Profissional
PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNE Plano Nacional de Educação
PNLD Programa Nacional do Livro Didático
PNPIR Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PPGEB Programa de Pós-Graduação de Ensino em Educação Básica
Proiniciar Programa de Iniciação Acadêmica
PUC-Rio Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
PVNC Pré-Vestibular para Negros e Carentes
SEPPIR Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
SIDES Sistema de Desembolso Descentralizado
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
TEN Teatro Experimental do Negro
UDF Universidade do Distrito Federal
UEG Universidade do Estado da Guanabara
UEMS Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
UENF Universidade Estadual do Norte Fluminense
UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFSCAr Universidade Federal de São Carlos
UHC União dos Homens de Cor
UnB Universidade de Brasília
Undime União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação
UNEB Universidade do Estado da Bahia
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura
URJ Universidade do Rio de Janeiro
1
Introdução

Os questionamentos sobre o tema desta pesquisa partiram de minha inserção


no GECEC1. Entre 1999 e 2000, participando como bolsista de Iniciação Científica
de um projeto de pesquisa sobre um movimento social que desenvolvia um trabalho
de conscientização e de combate ao racismo e favorecia o acesso da juventude de
baixa renda à universidade, comecei a me interessar pelo tema das ações afirmativas
de corte racial.
Ao ingressar no mestrado em Educação, em 2001, optei por estudar o
trabalho que a PUC-Rio vinha desenvolvendo, em parceria com pré-vestibulares
comunitários, de concessão de bolsas integrais de estudo aos/as estudantes de
camadas populares e negros/as aprovados no vestibular. Entre os cursos oferecidos
pela universidade, os egressos desses pré-vestibulares eram mais numerosos nos
cursos de Ciências Sociais e Humanas. O curso de Serviço Social foi o foco de
minha dissertação, por contar, em 2002, com 98% de alunos bolsistas de ação social
e oriundos/as de pré-vestibulares comunitários.
Em junho de 2003, defendi a dissertação intitulada Políticas de ação
afirmativa e ensino superior: a experiência do curso de graduação em Serviço
Social da PUC-Rio, orientada por Vera Maria Candau. O objetivo da pesquisa foi
compreender como se configurava a experiência desse curso dentro da PUC-Rio,
suas características, dificuldades, conquistas e desafios, a partir do ponto de vista
das professoras e alunos/as. Foram realizadas entrevistas com professoras e
estudantes do curso de Serviço Social. As conclusões que pude chegar, a partir da
análise das entrevistas, foram: (i) o caráter pioneiro da iniciativa da direção e de um
grupo de professoras do Departamento de Serviço Social que, no início da década
de noventa, apresentou à reitoria uma proposta que favorecesse o ingresso no curso
de graduação de pessoas oriundas de camadas populares e negras; (ii) as
possibilidades que a pluralidade sociocultural adentrasse o campus universitário,

1
Grupo de Estudos sobre Educação, Cotidiano Escolar e Culturas, Departamento de Educação,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Capítulo 1. Introdução 18

frequentado majoritariamente pelas camadas sociais de maior poder aquisitivo; (iii)


a permanência desses/as estudantes através de medidas socioeconômicas que foram
implementadas pela universidade; (iv) as questões internas do curso no que tange
aos conteúdos selecionados, as formas de avaliação, as práticas docentes, uma vez
que as professoras entrevistadas, em sua maioria, evidenciaram a dificuldade de
lidar com um corpo discente ‘diferenciado’.
Em 2007, passei a lecionar na educação básica, especificamente, nos anos
iniciais do ensino fundamental. As preocupações com as questões relativas à
discriminação racial continuaram a me interessar, porém, não contava mais com as
sistematizações que haviam sido empreendidas no GECEC. As reflexões sobre a
temática precisavam ganhar consistência, aprofundamento e, com esse propósito,
ingressei no Doutorado em Educação da PUC-Rio, em 2012, dessa vez sob a
orientação de Marcelo Andrade.
À época do mestrado, a discussão sobre a necessidade ou não de políticas
de ação afirmativa no Brasil era incipiente. É verdade que não mais estava
circunscrita ao âmbito das organizações do movimento negro e dos poucos espaços
acadêmicos; tinha alcançado o espaço governamental no qual algumas discussões e
iniciativas começaram a acontecer, o espaço midiático – em especial a imprensa
falada, escrita, televisada – e a sociedade em geral. Essa crescente ampliação
possibilitou a divulgação de inúmeras opiniões, favoráveis e contrárias, sobre sua
aplicação, permitindo que a sociedade brasileira começasse a discutir essas políticas
de maneira acalorada. No entanto, a temática permanecia – e ainda permanece –
envolta de polêmicas por se tratar de políticas que questionam os privilégios da
população branca e visam à reparação da igualdade social dos/as negros, buscando
a promoção de sua equidade com a redistribuição de recursos e bens sociais.

1.1
Ações afirmativas: recortando um campo de pesquisa

Nos anos noventa e início dos anos dois mil, o foco central das reflexões
sobre as ações afirmativas no Brasil ainda estava restrito à necessidade ou não de
sua existência e também de sua legalidade. No entanto, no campo das Ciências
Sociais, apontava-se para a discussão sobre os mecanismos que atuam na
construção social de nossas desigualdades, destacando-se a questão racial.
Capítulo 1. Introdução 19

Durante muitos anos, a imagem de paraíso racial com a qual a sociedade


brasileira costumava representar-se esteve inscrita no imaginário social, apesar de
todas as críticas recebidas. Ouso afirmar que a ideia de que somos um povo mestiço,
misturado, aberto aos contatos interraciais e pluriétnicos povoa o imaginário da
maioria dos/as brasileiros/as ainda hoje.
Carlos Hasenbalg (1979, p. 18-19) afirmava que diversos estudiosos
enfatizavam o caráter único e harmonioso das relações raciais no Brasil quando o
país era comparado com outras sociedades multirraciais:
O Brasil ofereceria ao resto do mundo o exemplo de uma democracia racial já
realizada, onde negros e mulatos, usufruindo de igualdade de oportunidades, são
integrados na cultura e comunidade nacionais. Esta visão otimista da singularidade
da situação racial brasileira contém uma meia verdade. Quando são feitas
comparações internacionais, o Brasil distingue-se pela ausência de formas
extremas e virulentas de racismo. Não obstante, em termos de dominação do branco
e subordinação do negro, o Brasil trilhou caminhos não muito diferentes dos de
outras sociedades multirraciais, ainda que sem o recurso a altos níveis de coerção.
A democracia racial é um poderoso mito. Sua função, como instrumento ideológico
de controle social, é legitimar a estrutura vigente de desigualdades raciais e impedir
que a situação real se transforme numa questão pública.

Além de ser um instrumento ideológico de controle social, para Luiz Alberto


Gonçalves e Petronilha Silva (2000, p. 74), o propalado “mito da democracia racial”
criou uma situação no mínimo paradoxal:
Ao mesmo tempo em que o orgulho nacional não abre mão dessa pluralidade tão
decantada, a produção cultural brasileira orientava-se integralmente por valores
euro-ocidentais. Ao mesmo tempo em que nossa miscigenação e pluralidade étnica
se transformam em magníficas metáforas e alegorias literárias, negros, índios e
mestiços vivem a mais brutal discriminação em todos os lugares em que vivem,
seja no campo ou nos centros urbanos. Estranho jogo esse em que os diferentes são,
a um só tempo, objeto de exaltação e exclusão.

Fica evidenciado, então, que o contexto era (e ainda é) de exaltação e de


negação. Por um lado, os aspectos culturais eram (e são) valorizados e, por outro,
os direitos sociais, econômicos, políticos e culturais eram (e permanecem)
secundarizados. Foi nesse cenário que negros e mestiços começaram a organizar
movimentos de protesto já na primeira metade do século XX, em cidades como
Porto Alegre, São Paulo, Santos, entre outras. Promoveram discussões sobre a
inserção dos/as negros/as nas sociedades secularizadas e as representações acerca
da cultura transformaram-se em objeto de embate político. Enquanto o Estado
brasileiro procurava criar uma imagem de harmonia, diversos setores populares e,
em particular, “as organizações negras, reagiam contrariamente ao projeto oficial
Capítulo 1. Introdução 20

por meio de protestos que buscavam desenvolver uma ação coletiva para se opor
aos imperativos da suposta identidade nacional. Contra essa, introduziram, no
debate político, o tema da pluralidade étnica” (GONÇALVES & SILVA, 2000,
p.83-84).
Segundo Gonçalves e Silva (2000), os/as militantes negros/as chamaram a
atenção para as representações de raça que estavam em jogo no interior da
sociedade brasileira e criaram entidades que tinham como objetivo a conquista
efetiva da cidadania. Este trabalho não foi desenvolvido apenas por intelectuais;
contou com o engajamento e a participação de organizações que conservavam as
tradições africanas, tanto religiosas quanto artísticas. Essa interseção fez com que
o movimento negro adquirisse uma perspectiva transformadora uma vez que não
ficaram circunscritos ao âmbito acadêmico. Essa movimentação das organizações
negras teve desdobramentos em diversas áreas do conhecimento e estiveram
presentes nas artes, na produção acadêmica e, especialmente, nas Ciências Sociais.
Alguns frutos desse trabalho foram, na década de 1930, a Frente Negra Brasileira
(FNB) considerada a sucessora do Centro Cívico Palmares. De acordo com Petrônio
Domingues (2007, p. 106):
Estas foram as primeiras organizações negras com reivindicações políticas mais
deliberadas. Na primeira metade do século XX, a FNB foi a mais importante
entidade negra do país. Essa entidade desenvolveu um grande nível de organização
mantendo escola, grupo musical e teatral, time de futebol, departamento jurídico,
além de oferecer serviço médico e odontológico, cursos de formação política, de
artes e ofícios, assim como publicar um jornal, A Voz da Raça.

Na década de 40 o destaque foi a criação do Teatro Experimental do Negro


(TEN), que tinha Abdias do Nascimento como sua principal liderança. Sua proposta
era formar um grupo teatral constituído apenas por atores negros, mas, aos poucos,
foi adquirindo um caráter mais amplo de atuação. O TEN criou publicações,
ofereceu cursos de alfabetização e profissionalizantes, organizcongressos,
concursos de artes plásticas, de beleza negra, e fundou o Instituto Nacional do
Negro e o Museu do Negro. O TEN defendia os direitos civis dos/as negros/as e a
criação de uma legislação antidiscriminatória para o país.
Segundo Domingues (2007), com o golpe militar de 1964, o TEN e outros
movimentos sociais foram proibidos de exercer suas atividades. Em 1968, o TEN
foi praticamente extinto e Abdias do Nascimento partiu para o autoexílio nos
Estados Unidos. A ditadura militar representou uma derrota, ainda que temporária,
Capítulo 1. Introdução 21

para várias lutas sociais e, entre elas, a luta política dos/as negros/as, pois
desarticulou entidades e estigmatizou militantes, acusados de criar um problema
que supostamente não existia, o racismo no Brasil. Nesse contexto, as lideranças
negras caíram numa espécie de semiclandestinidade, a discussão pública da questão
racial foi praticamente banida.
Para Domingues (2007, p. 115), o nascimento do Movimento Negro
Unificado significou um marco na história do protesto negro do país porque, entre
outras razões, desenvolveu-se a proposta de unificar nacionalmente a luta de todos
os grupos e organizações antirracistas e tinha como objetivo fortalecer o poder
político do movimento negro:
Nesta nova fase, a estratégia que prevaleceu no movimento foi a de combinar a luta
do negro com a de todos os oprimidos da sociedade. A tônica era contestar a ordem
social vigente e, simultaneamente, desferir a denúncia pública do problema do
racismo. Pela primeira vez na história, o movimento negro apregoava como uma
de suas palavras de ordem a consigna: ‘negro no poder!’

Já para Verena Alberti e Amilcar Pereira (2005, p. 1-2), o maior desafio para
o movimento negro brasileiro foi enfrentar o ‘mito da democracia racial’:
Segundo esse mito, as relações de raça no Brasil seriam harmoniosas e a
miscigenação seria a contribuição brasileira à civilização do planeta. Seguindo essa
linha de pensamento, como não haveria preconceito de raça no Brasil, o atraso
social do negro dever-se-ia exclusivamente à escravidão (e não ao racismo).
Completa esse argumento o fato de as Constituições brasileiras elaboradas a partir
da abolição da escravidão nunca terem diferenciado os cidadãos por raça ou cor,
ao contrário do que acontecia nos EUA e na África do Sul. Como lutar contra o
racismo se o racismo “não existia”? Esse era um dos principais problemas que se
apresentavam aos militantes do movimento negro na década de 1970.

As contribuições do movimento negro para que as desigualdades raciais


fossem enfrentadas pelo Estado brasileiro e também pela sociedade são
inequívocas. As questões relativas, principalmente, ao acesso dos/das negros/as à
educação, ao mercado de trabalho, à moradia, à saúde pública, à participação
política, enfim, ao exercício pleno da cidadania, eram pautadas por seus/as
participantes desde a gênese do movimento negro organizado.
De acordo com Nilma Gomes (2012), até os anos oitenta, a luta do
movimento negro no tocante ao acesso à educação da população negra possuía um
discurso mais universalista. Porém, ao constatar que as políticas públicas de caráter
universal não atendiam a grande massa dos/as negros/as, “o seu discurso e suas
reivindicações começaram a mudar. Foi nesse momento que as ações afirmativas,
Capítulo 1. Introdução 22

que já não eram uma discussão estranha no interior da militância, emergiram como
uma possibilidade e passaram a ser uma demanda real e radical, principalmente a
sua modalidade de cotas” (GOMES, 2012, p.738).

1.2
Alguns conceitos centrais para a discussão etnicorracial

Considero importante trazer, nesse primeiro momento de apresentação do


tema de pesquisa, a conceituação do termo raça, pois ele traz, em si, muita
controvérsia. No imaginário social, muitas vezes, o termo refere-se apenas a uma
tendência de classificação, ou seja, o fato de distinguirmos os indivíduos segundo
sua idade, cor, sexo, entre outros aspectos. Para Edson Borges, Carlos Alberto
Medeiros e Jacques d’Adesky (2002):
Comparar e classificar os seres humanos não é, em si, errado. Conhecer é, em certo
sentido, comparar e classificar as coisas que existem. Porém, a ideia de
superioridade contraposta a uma de inferioridade vem definindo, historicamente,
os lugares sociais ocupados por negros e brancos. O problema que surge nesse
exercício classificatório é que são atribuídos juízos de valor às diversas categorias
criadas e isso pode ganhar uma conotação racista quando: “Além de classificar os
indivíduos, também hierarquizamos os grupos humanos de acordo com juízos de
valor que tomam a raça como fator causal. Configura-se então um processo
chamado de racialização, que implica a ideia de superioridade de um grupo em
relação a outro, com base em preconceitos referentes a características físicas ou
culturais (BORGES ET AL, 2002, p.44).

Segundo Aníbal Quijano (2005, p. 227), a construção da ideia de raça está


imbricada com as questões históricas, sociais, políticas e econômicas do período
colonial americano e, especialmente, latino-americano.
Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da
população mundial de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que
expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as
dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade
específica, o eurocentrismo.

Quijano (2005, p. 227-228) nos ajuda a compreender melhor a


operacionalidade da raça na configuração dos padrões de dominação e de poder que
foram postulados no processo de colonização e reconfigurados no período de
globalização capitalista:
A ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da
América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre
conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi
Capítulo 1. Introdução 23

construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses


grupos. A formação de relações sociais fundadas nessa ideia produziu na
América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços,
e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde
europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de
origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma
conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam
configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas
às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, como constitutivas
delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em
outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como
instrumentos de classificação social básica da população2.

O conceito de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações


de dominação impostas pelos conquistadores aos conquistados. Ao analisar as
formulações de Quijano (2005), Gomes (2012, p. 730) afirma que esta
problematização “contribui para o adensamento teórico da análise sobre a
construção social da ideia de raça, no Brasil”.
Tomando, então, o ponto de vista sociológico, as raças são uma construção
social e política. Como afirma Stuart Hall (2003, p. 69), trata-se de uma “categoria
discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de
exploração e exclusão – ou seja – o racismo”.
O conceito de raça, portanto, é aqui entendido como discurso e construção
social, podendo ser ressignificado. E foi isso que o movimento negro brasileiro fez
nos anos noventa quando ganhou mais visibilidade. Nesse momento histórico, o
conceito de raça ganhou centralidade tanto na sociedade brasileira quanto nas
políticas de Estado. Para Gomes (2012, p. 731), ao ressignificar a raça, o movimento
negro indaga a própria história do Brasil e da população negra em nosso país, pois:
Constrói novos enunciados e instrumentos teóricos, ideológicos, políticos e
analíticos para explicar como o racismo brasileiro opera não somente na estrutura
do Estado, mas também na vida cotidiana das suas próprias vítimas. Além disso,
dá outra visibilidade à questão étnico-racial, interpretando-a como trunfo e não
como empecilho para a construção de uma sociedade mais democrática, onde
todos, reconhecidos na sua diferença, sejam tratados igualmente como sujeitos de
direitos.

Ressignificar e politizar a ideia de raça pelo movimento negro revela que a


sua construção (e reconstrução) se dá num contexto de relações de poder, ou seja,
as visões socialmente construídas sobre os negros de uma suposta inferioridade,

2
Grifos do autor
Capítulo 1. Introdução 24

tanto de sua história, cultura, conhecimentos e práticas, são colocadas em xeque. É


dado a esse termo um trato emancipatório e não inferiorizante (GOMES, 2012).
A definição adotada nesse trabalho é aquela que entende a raça do ponto de
vista sociológico como uma construção social, política, que se produz num contexto
de relações de poder e que rechaça qualquer ideia de inferioridade entre negros/as
e brancos/as.
De acordo com Kabengele Munanga (2006, p.53), o Brasil criou seu racismo
com base na negação da existência do mesmo:
Os racismos contemporâneos não precisam mais do conceito de raça. As propostas
de combate ao racismo não estão mais no abandono ou na erradicação da raça, que
é apenas um conceito e não uma realidade, nem no dos léxicos cômodos como os
de “etnia”, de “identidade” ou de “diversidade cultural”, pois o racismo é uma
ideologia capaz de parasitar em todos os conceitos.

Em outras palavras, mesmo com o abandono do conceito biológico de raça


e a assunção de que o conteúdo da raça é social e político, os/as negros/as
continuaram (e continuam) a serem vítimas de práticas racistas discriminatórias3.
Borges et al., (2002) afirmam que o mesmo não desapareceu e se expressa de duas
formas: individualmente e institucionalmente. As práticas racistas, no primeiro
caso, manifestam-se por meio de atos discriminatórios perpetrados por indivíduos
contra indivíduos e podem atingir níveis extremos de violência. Já no segundo,
implica práticas discriminatórias sistemáticas fomentadas pelo Estado ou com seu
apoio implícito e podem se manifestar:
Sob a forma de segregação no espaço urbano, particularmente na escola e no
mercado de trabalho. Manifestam-se também em manuais escolares, livros, filmes
e novelas de televisão que retratam de maneira inadequada as minorias étnicas ou
os grupos raciais menosprezados. Sem dúvida, os mais terríveis atos de racismo
institucionalizado são a perseguição sistemática e o extermínio físico, genocídio,
‘limpeza étnica’ e tortura (BORGES et al, 2002, p. 49).

Tratando do racismo institucional, Mário Theodoro (2014) ressalta a


ausência ou pouca existência de negros/as em posições de comando em grandes
empresas, em postos de destaque no Estado ou na Igreja e considera que estas são
marcas indeléveis do preconceito em sua dimensão maior. Segundo Theodoro
(2014, p.215), “o racismo institucional pode ser identificado como a forma mais

3
De acordo com Mário Theodoro (2014), a discriminação é tipificada no Brasil, desde a década de
1950, como ilícito penal. Primeiramente como contravenção, com a Lei Afonso Arinos de 1951;
nos anos 1980 como crime imprescritível e inafiançável (Lei Caó, de 1989).
Capítulo 1. Introdução 25

sofisticada do preconceito, envolvendo o aparato jurídico-institucional. Atuando no


plano macro, o racismo institucional é o principal responsável pela reprodução
ampliada da desigualdade no Brasil”. Assim, as políticas de ação afirmativa fazem
parte de um conjunto de ações governamentais que pressupõem o enfrentamento do
racismo. Esse seria o gesto concreto de vontade política em relação a essa
problemática, porém, considera que para além do reconhecimento é necessária a
alocação de recursos para a viabilização dessas políticas através do estabelecimento
de um sólido sistema de financiamento dos programas e ações.
Outro conceito que precisa ser explicitado é o de negro4. Na definição de
D’Adesky (2001, p.34), negro é:
Todo indivíduo de origem ou ascendência africana suscetível de ser discriminado
por não corresponder, total ou parcialmente, aos cânones estéticos ocidentais, e
cuja projeção de uma imagem inferior ou depreciada, representa uma negação de
reconhecimento igualitário, bem como a denegação de valor de uma identidade de
grupo e de uma herança cultural e uma herança histórica que geram exclusão e
opressão.

Domingues (2007, p.115) relata a decisão política do Movimento Negro


Unificado sobre o uso do termo:
Para incentivar o negro a assumir sua condição racial, o MNU resolveu não só
despojar o termo “negro” de sua conotação pejorativa, mas o adotou oficialmente
para designar todos os descendentes de africanos escravizados no país. Assim, ele
deixou de ser considerado ofensivo e passou a ser usado com orgulho pelos
ativistas, o que não acontecia tempos atrás. O termo “homem de cor”, por sua vez,
foi praticamente proscrito.

Tomando essas definições, ser negro, portanto, ultrapassa os aspectos


fenotípicos, abrange também os políticos, históricos e culturais. Porém, apesar da
importância simbólica que esse deslocamento conceitual apresenta, D’Adesky
(2001, p. 37) lembra que essa mudança “não pode resolver os problemas da
desigualdade racial”.
Ainda nessa introdução, é preciso mencionar que o movimento negro é
diverso, possui grupos com estratégias e posições políticas e ideológicas
heterogêneas, mas guarda como característica comum às lutas pelas melhorias das
condições de vida da população negra, a demanda por educação e a denúncia da

4
Estou consciente que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) utiliza em seu sistema
classificatório as categorias branco, amarelo, pardo, preto e indígena. Os negros, em geral, são
considerados como a associação das categorias de pretos e partos do IBGE. No entanto, alguns
autores e autoras do campo dos estudos sobre relações raciais utilizam os termos afro-brasileiros
ou afrodescendentes, como Gonçalves e Silva (2000), Siss (2003), entre outros/as.
Capítulo 1. Introdução 26

discriminação racial. Nesse sentido, o movimento negro apresentou causas de


natureza política, cultural, religiosa e aquelas específicas às questões educacionais
indagando as políticas públicas e seu compromisso com a superação das
desigualdades raciais. Ou seja, a luta histórica e as atividades empreendidas por
esse movimento solidificaram as conquistas que atualmente podem ser observadas
para a população negra.
Uma atuação importante do movimento negro foi sua participação na
Constituinte de 1987-1988. De acordo com Thula Pires (2013, p. 108):
Um dos pontos de destaque da Constituinte que deu origem a atual Constituição
brasileira é a efetiva participação popular no seu processo de elaboração. Não
apenas a ampla maioria dos membros que a compuseram foi diretamente eleita em
1986, como também através de diversas instituições e movimentos sociais, as
diferentes vozes constitutivas da sociedade tiveram possibilidade de levar
demandas e participar das audiências públicas ocorridas no âmbito do Congresso
Nacional.

No tocante à questão racial, Pires (2013) afirma que o número de


representantes eleitos negros/as para a Constituinte foi ínfimo5. Assim, a atuação
dos movimentos sociais, especialmente do MNU e de outras organizações
representativas foi fundamental para que as demandas dessa parcela da população
brasileira pudessem ser efetivamente negociadas.
Pires (2013) elenca algumas medidas6 apresentadas pelo movimento negro,
após a realização da Convenção Nacional do Negro (1986), sob o tema O Negro e
a Constituinte, o que representou a possibilidade de retirar da invisibilidade atores
sociais historicamente marginalizados.
Após as lutas por redemocratização que culminaram com a Constituição de 1988,
a bancada sintonizada com a militância negra, no ano do Centenário da Abolição,
constituída pelos deputados Benedita da Silva, Carlos Alberto de Oliveira Caó e
Paulo Paim, conseguiu aprovar na nova Constituição Federal o art. 215, parágrafo
1º, que garante a proteção às manifestações culturais dos “grupos participantes do
processo civilizatório nacional”, o art. 5º inciso XLII, que estabeleceu o racismo
como crime inafiançável e imprescritível e o art. 68 das Disposições Transitórias,

5
Pires (2013, p.108) enfatiza que “naquele momento os negros (pretos e pardos) representavam
aproximadamente 46% do contingente populacional pátrio”, mas que “foram eleitos apenas onze
representantes negros do total de 559 membros, ou seja, 2% dos constituintes”.
6
No âmbito desse trabalho não será possível elencar todas essas medidas. Apresentarei algumas: (1)
a obrigatoriedade do ensino de história das populações negras na construção de um modelo
educacional contra o racismo e a discriminação; (2) a garantia do título de propriedade das terras
ocupadas por comunidades quilombolas; (3) a criminalização do racismo; (4) a previsão de ações
compensatórias relativas à alimentação, transporte, vestuário, acesso ao mercado de trabalho, à
educação, à saúde e aos demais direitos sociais; (5) liberdade religiosa; 6) a proibição de que o
Brasil mantivesse relações com os países que praticassem discriminação e que violassem as
Declarações de Direitos Humanos já assinadas e ratificadas pelo país.
Capítulo 1. Introdução 27

que determina a demarcação das terras dos remanescentes de quilombos


(VALENTIM, 2012, p. 61).

Nesse contexto histórico, Daniela Valentim (2012) destaca três momentos


importantes das lutas do movimento negro: (i) a Marcha Zumbi dos Palmares contra
o Racismo, pela Cidadania e a Vida, realizada em 1995; (ii) a III Conferência
Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas
Correlatas de Intolerância, ocorrida em 2001, na África do Sul; (iii) o ingresso dos
primeiros estudantes beneficiados por políticas públicas de ações afirmativas nas
universidades estaduais do Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) e Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), na
modalidade de cotas raciais.
É preciso mencionar que o governo federal manifestou interesse em
promover políticas em relação à questão das desigualdades raciais em julho de 1996
quando o Ministério da Justiça reuniu em Brasília pesquisadores/as brasileiros/as e
americanos/as, bem como um grande número de lideranças negras do país para um
seminário internacional intitulado Multiculturalismo e racismo: papel da ação
afirmativa nos estados democráticos contemporâneos. É possível perceber que as
décadas de 1990 e 2000 foram decisivas para que as reivindicações pautadas pelo
movimento negro organizado fossem materializadas.
Além desses marcos históricos, o movimento negro intensificou ainda mais
o processo iniciado na década de noventa “de politização de ressignificação da raça,
levando a mudanças internas na estrutura do Estado como, por exemplo, a criação
da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003”
(GOMES, 2012, p. 739).
Além das ações empreendidas pelo movimento negro, pesquisas realizadas
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE)7, no início dos anos dois mil, ao desagregarem os
dados relativos à raça, revelaram as desigualdades raciais existentes no país,
demonstrando que a desigualdade tem cor. Esses dados corroboraram as denúncias
que os movimentos negros vinham realizando8.

7
Censo Demográfico 2000: características da população e dos domicílios – resultados do universo,
pesquisa realizada pelo IBGE e Relatório IPEA – Desigualdade racial no Brasil: evolução das
condições de vida na década de 90, de julho de 2001.
8
No Capítulo 2, apresentarei alguns dados dessas e de outras pesquisas, especialmente, aqueles que
estão relacionados às questões educacionais.
Capítulo 1. Introdução 28

Entre as demandas pautadas pelo movimento negro estão aquelas relativas


ao acesso à educação superior pela população negra que ganhou forma por meio
das políticas de ações afirmativas trazendo consigo discordâncias e dissensos entre
setores políticos e intelectuais sobre sua implementação.
Dentro desse contexto de conquistas e mudanças, no início dos anos dois
mil, a imprensa brasileira dedicou grande espaço em seus noticiários sobre a
implementação da reserva de vagas para estudantes negros/as no vestibular de
universidades públicas.
A adoção de ações afirmativas nas duas universidades do Estado do Rio de Janeiro,
UERJ e UENF, e na Estadual de Mato Grosso do Sul, por ordem dos executivos
estaduais, foi emblemática na discussão daquele momento. No entanto, as próprias
universidades federais também começaram a questionar a cor de seu alunado e seu
papel na sociedade enquanto instituição pública. As federais da Bahia, de Alagoas
e de Brasília saíram na frente com formatos diferenciados de políticas de ação
afirmativa (PAIVA, 2012, p. 49).

De acordo com Angela Paiva (2012), para muitos brasileiros/as, inaugurava-


se naquele momento, um debate complexo que havia se intensificado na década
anterior: a promoção da igualdade racial no Brasil. Os dados trazidos a público
revelavam a desigualdade educacional entre negros e brancos e o reconhecimento
do racismo pelo Estado brasileiro.
O processo histórico de adoção das políticas de ação afirmativa no Brasil
contou com diferentes atores sociais e também dependeu de fatores que no âmbito
desse trabalho não poderão ser tratados de maneira mais aprofundada. Destaquei
apenas alguns aspectos que considero relevantes e que podem ser tomados como
fundantes no debate.
A década de 2000 representou o momento de maturidade para o processo de se
pensar em novas políticas públicas que tornassem mais democrático o acesso ao
ensino superior, com um governo mais poroso às reivindicações dos movimentos
sociais. São inúmeras as ações, especialmente a criação da Secretaria Especial para
a Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), que vai tornar a questão da raça um
assunto a ser pensado no Brasil nos vários segmentos, desde o executivo até os
centros acadêmicos, tornando-se pauta para o fomento de novas políticas públicas
e práticas de pesquisa (PAIVA, 2012, p. 50).
Capítulo 1. Introdução 29

1.3
Justificativas: por que ações afirmativas na educação básica?

Diante do exposto, o interesse e o envolvimento com o tema me levaram a


desenvolver esta pesquisa, que articula tanto minha trajetória acadêmica no GECEC
quanto minha inserção profissional como professora da educação básica e minhas
inquietações por entender os processos de desigualdades educacionais, com o corte
de raça, e as possibilidades de superá-las.
Considerado esse aspecto, é importante fazer um exercício de justificativa
da relevância desta pesquisa. Entendo que as políticas de ação afirmativa podem ser
uma forma de enfrentarmos as desigualdades raciais no Brasil, já que tais medidas
visam, nem que seja por um período provisório, a criação de incentivos aos grupos
marginalizados que estão sub-representados nas instituições e nas posições de
maior prestígio e poder na sociedade.
Neste trabalho, utilizarei a definição apresentada por Joaquim Barbosa
Gomes (2002) de que as políticas afirmativas visam consolidar a noção de igualdade
material ou substancial, ou seja, vão além da concepção estática de igualdade
meramente formal do Estado liberal.
As políticas afirmativas já foram implementadas no ensino superior
brasileiro há mais de uma década e, agora, chegam à educação básica através da Lei
12711/12 em âmbito federal9 e das Leis estaduais 6433/13 e 6434/1310. No caso do
Rio de Janeiro, na forma de cotas, as leis criam reservas de vagas voltadas aos/às
estudantes provenientes das escolas públicas, aos/as negros/as e também as pessoas
com deficiência física. As ações afirmativas geraram, como afirma Valentim (2012,

9
A Lei 12.711/12 dispõe sobre as cotas sociais e raciais para ingresso nas universidades federais e
nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e reserva no mínimo 50% das matrículas
por curso e turno, através de concurso seletivo, para alunos/as oriundos/as integralmente do ensino
médio público em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos, inclusive em cursos de
educação profissional técnica. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.
10
A Lei 6.433/13 cria cotas nas unidades da Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC) onde
serão reservadas 20% das vagas para estudantes egressos de escolas públicas que cursaram
integralmente os dois ciclos do Ensino Fundamental, 20% para o preenchimento a partir de
critérios raciais e 5% para pessoas com algum tipo de deficiência. Já a Lei 6434/13 instituiu a
reserva de vagas para o Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – CAp/UERJ, para
o 1º e 6º anos do Ensino Fundamental assim distribuídas: 20% para estudantes carentes que
cursaram integralmente o 1º segmento do ensino fundamental na rede pública, 20% para estudantes
negros, pardos e índios, sendo adotado o critério da autodeclaração, 5% para deficientes físicos,
25% para filhos de servidores da UERJ, sendo 12,5% para filhos de professores e 12,5% para
filhos de funcionários, 30% das vagas restantes são de ampla concorrência. Os projetos de lei
foram sancionados em 2013 e, a partir de 2014, essas instituições deveriam adotar políticas de
ação afirmativa em seus processo de ingresso.
Capítulo 1. Introdução 30

p. 23), uma nova categoria de alunos: os cotistas. Apesar de estar tratando em sua
pesquisa dos/as estudantes que ingressaram no ensino superior, utilizarei nesse
trabalho sua definição:
Os cotistas são os “novos” sujeitos que passam a vivenciar a experiência
universitária, com suas diferentes especificidades: cotistas de baixa renda, negros,
indígenas, quilombolas, oriundos de escolas públicas, portadores de necessidades
especiais, professores em exercício, entre outras. (...) alunos considerados
“malditos” por tantos, dentro e fora da comunidade universitária; eu diria alunos
estigmatizados, sem voz, ou melhor, emudecidos, visto que raramente são ouvidos.

Nesse sentido, procurei compreender como se deu o processo de


implementação da Legislação Estadual 6434/13 que determinou a adoção das ações
afirmativas na modalidade de cotas raciais, sociais e para pessoas com deficiência,
no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp/UERJ). É
importante ressaltar que meu interesse específico diz respeito às cotas raciais.
Trabalho aqui com a definição de representação proposta por Hall (1997):
Representação é o processo pelo qual membros de uma cultura usam a língua
(amplamente definida como qualquer sistema que empregue signos, qualquer
sistema significante) para produzirem significados. Esta definição carrega a
importante premissa de que as coisas – objetos, pessoas, eventos no mundo – não
têm sem si qualquer significado estabelecido, final ou verdadeiro. Somos nós – na
sociedade, nas culturas humanas – que fazemos as coisas significarem, que
significamos. Os significados, consequentemente, mudam sempre de uma cultura
para outra (HALL, 1997, p. 61).

Utilizando essa acepção, busquei levantar as representações que alguns/mas


sujeitos da comunidade escolar, em especial os/as professores/as, funcionárias
técnico administrativas e o diretor da instituição, têm sobre as políticas de ação
afirmativa e investiguei como a escola operacionalizou essa lei no que diz respeito
ao processo de acesso e matrícula, bem como os possíveis impactos no currículo e
nas práticas pedagógicas. Dessa forma, acredito que a realização desta pesquisa
poderá oferecer elementos para refletirmos sobre a necessidade de adoção das
políticas afirmativas na educação básica, na forma de cotas raciais, nos institutos
federais de ensino técnico de nível médio, na FAETEC e no CAp/UERJ, objeto de
estudo dessa pesquisa, uma vez que o acesso a esse nível de ensino está
universalizado e é garantido pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 205.
Como afirma PAIVA (2012, p. 47), foi na década de 1990 que se obteve a
universalização do acesso ao ensino fundamental, porém, para que essa conquista
Capítulo 1. Introdução 31

fosse consolidada, um longo caminho foi percorrido envolvendo grande


movimentação na esfera pública no que se refere à ideia do direito à educação:
Foi ainda nesse momento de redemocratização, quando a real fruição de direitos se
torna uma questão, que ficou visível a queda da qualidade do ensino básico, hoje
considerada um grande desafio para os gestores públicos. Paradoxalmente, a
entrada em massa no sistema escolar público desde os anos 1970 fez com que a
educação pública passasse a ser para os pobres, como analisam Tania Dauster
(1992) e Vanilda Paiva (1998), o movimento da migração das classes médias para
a escola particular. No que concerne à população negra, os dados produzidos pelos
órgãos governamentais nesse período mostram duas questões: se é baixa a
escolaridade do jovem brasileiro em geral, visto que em torno de 50% não
conseguem chegar sequer ao ensino médio, o jovem negro, especialmente o de sexo
masculino, está fortemente concentrado no grupo que desiste, deixando evidentes
suas chances desiguais de acesso ao ensino superior.

Vale dizer que o CAp/UERJ é considerado um colégio de excelência na


cidade do Rio de Janeiro e se destaca pelo ensino inovador, por estimular a pesquisa
de novas práticas pedagógicas, por desenvolver projetos de pesquisa e extensão, por
promover o estágio e a formação de professores/as. O reconhecimento público do
trabalho que essa instituição vem realizando pode ser verificado através do bom
desempenho apresentado nas diferentes políticas de avaliações externas, como o
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (IDEB). Tratarei de maneira mais detalhada do campo de pesquisa
no Capítulo 3.

1.4
Hipóteses e apostas para um novo campo

Esta pesquisa se propõe apresentar e refletir sobre o processo de


implementação da Lei 6434/13 no CAp/UERJ que determinou a adoção das ações
afirmativas na modalidade de cotas raciais, sociais e para pessoas com deficiência.
O CAp/UERJ é uma escola pública estadual de educação básica que
historicamente atende uma população diversificada no que diz respeito à origem
cultural, étnica e socioeconômica. O acesso dessa população se dá, no caso do 1º
ano do ensino fundamental, por meio do sorteio de vagas, e no 6º ano através de
prova de seleção de conteúdos. Com a adoção da legislação em questão (Anexo 1)
o que mudou foi a distribuição de vagas para o ingresso desses/as estudantes em
seus cursos, introduzindo a reserva de cotas raciais para negros, pardos e índios,
Capítulo 1. Introdução 32

para deficientes físicos e para estudantes economicamente carentes que cursaram


integralmente o 1º segmento do ensino fundamental na rede pública, no caso
daqueles/as que concorrem a vagas para o 6º ano do ensino fundamental. É
importante salientar que no artigo 1º da Lei 6434/13 a condição sine qua non para
que os/as estudantes concorram a essas vagas é a comprovação da carência
econômica. Com a adoção da legislação, o processo seletivo continua o mesmo,
sorteio para o 1º ano e prova para o 6º ano, mas agora acrescida de cotas raciais,
sociais e para deficientes físicos.
De acordo com Elielma Machado e Fernando Pinheiro da Silva (2010),
existem diferentes nomenclaturas para definir as políticas de ação afirmativa.
Machado e Silva (2010) identificam três categorias: cotas, acréscimo de vagas e
acréscimo de notas. No caso da lei que prevê a adoção de políticas afirmativas no
CAp/UERJ, o texto legal utiliza o termo ‘cotas’. As cotas têm como característica
principal a possível redistribuição nas vagas totais destinadas à livre concorrência,
por meio de reservas a grupos específicos. “Cotas são vagas reservadas, que podem
ou não ser preenchidas. Frequentemente apresentam os seguintes formatos:
porcentagens e quantidades fixas” (MACHADO & SILVA, 2010, p. 36).
Considerando estas definições, as hipóteses levantadas para esse estudo
estão centradas em três eixos:
1. A adoção das ações afirmativas na modalidade de cotas raciais no
CAp/UERJ poderia ampliar as possibilidades de acesso de
estudantes negros/as a uma instituição de ensino pública considerada
de excelência.
2. A adoção das ações afirmativas na modalidade de cotas raciais no
CAp/UERJ favoreceria uma reflexão mais clara sobre a existência
de uma cota interna, o que poderia propiciar a possibilidade de ser
uma instituição mais plural e ainda mais aberta a toda comunidade o
que democratizaria o acesso.
3. A adoção das ações afirmativas na modalidade de cotas raciais no
CAp/UERJ levaria a uma nova dinâmica escolar, envolvendo
professores/as e corpo técnico-pedagógico numa reflexão sobre o
papel social da escola e das cotas raciais em educação nesse nível de
ensino.
Capítulo 1. Introdução 33

1.5
Questões e objetivos de pesquisa

A proposição desta pesquisa teve como principal problemática buscar


compreender como se deu o processo de implementação da legislação estadual que
determinou, nomeadamente, a adoção das ações afirmativas na forma de cotas
raciais no CAp/UERJ. Mais especificamente, procurei levantar as representações
que alguns sujeitos da comunidade escolar têm sobre as políticas afirmativas e
investigar como a escola operacionalizou essa lei no que diz respeito ao processo
de acesso e matrícula, bem como os possíveis impactos no currículo e nas práticas
pedagógicas.
Desse modo, algumas questões orientaram este trabalho de pesquisa:
1. Como se deu o processo de elaboração da Lei Estadual 6434/13? Foi
uma iniciativa de sujeitos da comunidade interna à UERJ? Teve
participação de algum movimento social específico? Foi proposta
por agentes políticos ligados ao movimento negro organizado?
2. A adoção das ações afirmativas na modalidade de cotas raciais no
CAp/UERJ dialoga e/ou tem referências com a legislação sobre
cotas raciais que foi implementada na universidade para acesso e
matrícula no ensino superior? Quais são as semelhanças e distinções
entre o processo de implementação da política de cotas raciais na
UERJ e no CAp/UERJ?
3. A adoção das ações afirmativas na modalidade de cotas raciais no
CAp/UERJ foi discutida pelos sujeitos da comunidade escolar? Se
sim, como se deu o processo? Quais sujeitos tiveram acesso a esse
debate? Quais órgãos ou instâncias da universidade e do CAp/UERJ
puderam discutir e intervir na implementação dessa legislação?
4. Quais as representações que os diferentes sujeitos escolares têm da
iniciativa e da inserção de estudantes por meio da reserva de vagas
por origem social, deficiência física e pertencimento racial no
CAp/UERJ, conforme assegura a Lei 6434/13?
Capítulo 1. Introdução 34

5. Existem iniciativas ou projetos que visam dinamizar o currículo11 e


as práticas pedagógicas da escola, tendo em vista a nova realidade
imposta pela Lei 6434/13? Como o corpo docente e a equipe técnico-
pedagógica estão operacionalizando a lei no cotidiano escolar?
Essas indagações tentaram ser respondidas através dos seguintes objetivos:
1. Identificar as principais forças políticas e sociais – sujeitos,
militantes e movimentos sociais – que estiveram diretamente
envolvidos na formulação e implementação da Lei 6434/13.
2. Compreender o processo de implementação da Lei 6434/13 no
CAp/UERJ, bem como os sujeitos escolares, órgãos e instâncias
internas direta e indiretamente envolvidos.
3. Analisar as representações dos/as professores/as, da gestão e da
equipe técnico-pedagógica sobre a Lei 6434/13, bem como suas
concepções sobre a função social da escola e das cotas raciais na
educação.
4. Mapear possíveis iniciativas de dinamização do currículo e das
práticas pedagógicas, considerando o novo processo de acesso ao
CAp/UERJ implementado pela Lei 6434/13.

1.6
Procedimentos metodológicos

A escolha da metodologia a ser utilizada em uma investigação, deve ter


como referência o próprio objeto de pesquisa, ou seja, “é em função de uma certa
construção do objeto que tal método de amostragem, tal técnica de recolha ou de
análise de dados, etc, se impõe” (BOURDIEU, 2005, p. 26). Desse modo, a
investigação que me propus realizar se deu na articulação entre estudos de

11
Currículo é entendido aqui a partir da tradição crítica, conforme definição de Moreira e Silva
(2000, p. 08): “O currículo é considerado um artefato social e cultural. Isso significa que ele é
colocado na moldura mais ampla de suas determinações sociais, de sua história, de sua produção
contextual. O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do
conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões
sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares.
O currículo não é um elemento transcendente e atemporal – ele tem uma história, vinculada a
formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação”.
Capítulo 1. Introdução 35

diferentes campos, levando em consideração a complexidade do problema


enfrentado. Para tanto, algumas estratégias de pesquisa foram privilegiadas.
Concordando com Pierre Bourdieu (2005), para quem o “monoteísmo
metodológico” limita as possibilidades de interpretação e compreensão dos
fenômenos sociais, procurei articular três estratégias de pesquisa: (i) a revisão de
literatura, a fim de identificar as principais questões discutidas no campo das ações
afirmativas de corte racial; (ii) a entrevista semi-estruturada, a fim captar as
representações dos sujeitos envolvidos com a implementação da Lei 6434/13 no
CAp-UERJ e (iii) a análise documental, a fim de entender o CAp-UERJ como
campo de pesquisa e a legislação que está no centro desta pesquisa.
A revisão de literatura foi realizada através da busca e sistematização da
bibliografia referente à temática em questão, bem como a escolha de conceitos
chave. A análise documental centrou-se na investigação sobre a legislação
específica (Lei 6434/13), bem como documentos sobre o colégio como um campo
de pesquisa. A realização de entrevistas semi-estruturadas com professoras do
quadro efetivo e professores/as contratados/as, o diretor do colégio e algumas
profissionais técnico administrativas da escola.
Cabe ressaltar que, inicialmente, pretendia fazer observações do cotidiano
escolar do CAp/UERJ, especificamente de estudantes do 6º ano de escolaridade do
2º segmento do ensino fundamental12, mas esse procedimento foi abandonado
devido às demandas de tempo para a realização das mesmas e também por avaliar
que, por se tratar da primeira turma desse ano de escolaridade a ingressar na
instituição a partir da implementação da Lei 6434/13, seria prematuro efetivar tal
empreitada.
A metodologia, portanto, como afirma Maria Cecília Minayo (1994), inclui
tanto as concepções teóricas e as escolhas procedimentais de levantamento de
dados. Assim, a teoria e a metodologia caminham juntas, ou seja, um conjunto de
técnicas, que deve dispor de um instrumental claro e coerente. De acordo com
Minayo (1994), a pesquisa é a atividade básica da Ciência na sua indagação e
construção da realidade, e a pesquisa pode ainda alimentar a atividade de ensino,
atualizá-la frente à realidade do mundo. Embora seja uma prática teórica, a pesquisa
vincula pensamento e ação. Ou seja, “nada pode ser intelectualmente um problema,

12
Sou professora da instituição, atuo no 1º segmento do ensino fundamental e, por essa razão, optei
por realizar minha investigação no 2º segmento.
Capítulo 1. Introdução 36

se não tiver sido, em primeiro lugar, um problema da vida prática. As questões da


investigação estão, portanto, relacionadas a interesses e circunstâncias socialmente
condicionadas. São frutos de determinada inserção no real, nele encontrando suas
razões e objetivos” (MINAYO, 1994, p. 17).
Nesse sentido e devido à natureza das questões propostas, optamos pelo
desenvolvimento do estudo numa perspectiva de abordagem qualitativa para o
encaminhamento da pesquisa de campo. Segundo Minayo (1994, p. 21), a pesquisa
qualitativa responde a questões particulares e específicas, além de se preocupar com
um nível de realidade que, dificilmente, poderia ser quantificado porque trabalha
com o universo de significados a partir da perspectiva de participantes específicos
de uma determinada realidade.
Para Bernadete Gatti e Marli André (2011, p.30), a abordagem qualitativa
defende uma visão integrada dos fenômenos sociais. Parte do fundamento de que
existe uma relação entre o mundo do sujeito e os significados que ele atribui às suas
experiências cotidianas e interações sociais. É essa interdependência que possibilita
compreender e interpretar a realidade.
[A pesquisa qualitativa] rompe o círculo protetor que separa pesquisador e
pesquisado, separação que era garantida por um método rígido e pela clara
definição de um objeto, condição em que o pesquisador assume a posição de
“cientista”, daquele que sabe, e os pesquisados se tornam dados – por seus
comportamentos, suas respostas, falas, discursos, narrativas, etc. traduzidas em
classificações rígidas ou números – numa posição de impessoalidade. Passa-se a
advogar, nessa perspectiva, a não neutralidade, a integração contextual e a
compreensão de significados nas dinâmicas histórico-relacionais (GATTI &
ANDRÉ, 2011, p. 30-31).

A abordagem qualitativa, em sua formulação mais efetiva, valoriza o


universo cultural que deve ser estudado pelo pesquisador. Tomando essa afirmação
como um princípio, optei por realizar um estudo de caso, ou seja, compreender a
singularidade do objeto que foi eleito para a pesquisa. Para André (2005), o estudo
de caso deve ser escolhido quando o pesquisador quer entender um caso particular
levando em conta seu contexto e sua complexidade. A autora elenca algumas
características do estudo de caso: (i) possibilita fornecer uma visão profunda e ao
mesmo tempo ampla e integrada de uma unidade social complexa que é composta
de múltiplas variáveis; (ii) retrata situações da vida real sem prejuízo de sua
complexidade e de sua dinâmica natural; (iii) esclarece o fenômeno estudado,
permitindo que o leitor possa descobrir novos sentidos, expandir suas experiências
Capítulo 1. Introdução 37

ou confirmar o que já sabia; (iv) revela pistas para aprofundamento ou para futuros
estudos; (v) tem uma preocupação especial com o leitor, dando-lhe elementos para
que use sua experiência, ampliando ou confirmando sua compreensão do fenômeno
estudado.
Segundo André (2005), no estudo de caso, o pesquisador não parte de um
esquema teórico fechado que limite suas interpretações e impeça a descoberta de
novas relações, mas favorece que descubra e acrescente aspectos novos à
problemática estudada. Também possui potencial de contribuição aos problemas da
prática educacional porque ao focalizar uma instância em particular e iluminar suas
múltiplas dimensões assim como seu movimento natural, podem fornecer
informações valiosas para medidas de natureza prática e para decisões políticas.
Como método de pesquisa, o estudo de caso é usado em muitas situações, para
contribuir ao nosso conhecimento dos fenômenos individuais, grupais,
organizacionais, sociais, políticos e relacionados. Seja qual for o campo de
interesse, a necessidade diferenciada da pesquisa de estudo de caso surge do desejo
de entender fenômenos sociais complexos. Em resumo, um estudo de caso permite
que os investigadores foquem um “caso” e retenham uma perspectiva holística e
do mundo real (YIN, 2015, p. 4).

Robert Yin (2005) ressalta que o estudo de caso pode privilegiar duas fontes
de evidência: observação direta dos eventos que estão sendo estudados e/ou a
realização de entrevistas com as pessoas envolvidas nesses eventos. Assim, um
aspecto comum entre as considerações feitas por Yin (2015) e André (2005) é que
o caso se destaca por se constituir numa unidade dentro de um sistema mais amplo,
ou seja, o interesse incide naquilo que ele tem de único, de particular.
Outro aspecto que considero importante da abordagem qualitativa é ouvir
em profundidade os atores envolvidos na investigação. Segundo Mirian Goldenberg
(1998, p.14), “na pesquisa qualitativa a preocupação do pesquisador não é com a
representatividade numérica do grupo pesquisado, mas com o aprofundamento da
compreensão de um grupo social, de uma organização, de uma instituição, de uma
trajetória”.
Optei ainda pela estratégia de entrevistas semiestruturadas que, segundo
Menga Lüdke e Marli André (1986, p.34), “se desenvolvem a partir de um esquema
básico, porém não aplicado rigidamente, permitindo que o entrevistador faça as
necessárias adaptações. (...) uma entrevista mais longa, mais cuidada, feita com
base em um roteiro, mas com grande flexibilidade”.
Capítulo 1. Introdução 38

De acordo com Rosália Duarte (2004), as entrevistas permitem ao


pesquisador fazer:
Uma espécie de mergulho em profundidade, coletando indícios dos modos como
cada um daqueles sujeitos percebe e significa sua realidade e levantando
informações consistentes que lhe permitam descrever e compreender a lógica que
preside as relações que se estabelecem no interior daquele grupo, o que, em geral,
é mais difícil obter com outros instrumentos de coleta de dados. (DUARTE, 2004,
p. 215)

Por outro lado, Duarte (2004, p. 216) nos adverte que ao construir as
categorias de análise das entrevistas devemos estar muito atentos/as à “interferência
de nossa subjetividade, ter consciência dela e assumi-la como parte do processo de
investigação”, de modo que não encontremos apenas elementos que confirmem
nossas hipóteses de trabalho e/ou os pressupostos das teorias que orientaram o
estudo. Observa ainda que o relato detalhado dos procedimentos adotados, a
explicitação dos pressupostos teóricos e das regras que orientaram o trabalho pode
contribuir para uma maior confiabilidade em relação ao uso das entrevistas em
pesquisas qualitativas (DUARTE, 2004, p. 219).
Outro aspecto que precisa ser considerado quando as entrevistas são
utilizadas na coleta de dados é o que Bourdieu (2008) nomeia como dissimetria
entre os papeis do entrevistador/a e do/a entrevistado/a. O desafio que se impõe é
de que o primeiro possa compreender o modo como o segundo percebe a finalidade
da pesquisa bem como suas motivações para participar desta troca. Esta clareza
oferece a possibilidade de “reduzir as distorções que dela resultam ou, pelo menos,
de compreender o que pode ser dito e o que não pode as censuras que o impedem
de dizer certas coisas e as incitações que o encorajam a acentuar outras”
(BOURDIEU, 2008, p. 695). Mais uma vez, o caráter subjetivo dos depoimentos
colhidos deve ser considerado e tomado como pontos de vista particulares que
devem ser respeitados, mas, no momento das análises, precisam ser comparados
com outros na tentativa de estabelecer uma melhor compreensão do objeto
estudado.
Assim, as entrevistas se constituíram no principal caminho metodológico
para alguns objetivos da pesquisa e mostrou ser o procedimento apropriado para a
coleta de dados, em função da pretensão deste estudo de caso em compreender as
representações que professores/as, o gestor e funcionárias técnico administrativas
Capítulo 1. Introdução 39

têm sobre as políticas de ação afirmativa, especialmente as de corte racial, e como


o colégio operacionalizou a lei estadual 6434/13.
O roteiro de entrevista (Apêndice 2) foi organizado a partir dos objetivos
traçados para essa investigação e dividido em quatro blocos temáticos de perguntas.
De acordo com Eduardo Manzini (2003), “um bom roteiro deveria garantir ao
pesquisador, pelo menos parcialmente e intencionalmente, coletar todas as
informações desejadas. [...] o roteiro deveria garantir, por meio das perguntas a
serem feitas na entrevista, a abrangência total dos conceitos a serem estudados”
(MANZINI, 2003, p. 13). Manzini (2003) enumera alguns aspectos que devem ser
considerados ao elaborar o roteiro de entrevista: (i) é necessário prudência e cautela
com a linguagem; as perguntas devem ser redigidas de forma simples e direta; (ii)
é preciso ter cuidado com a forma das perguntas evitando-se palavras e frases não
específicas ou vagas e também perguntas demasiadamente longas; (iii) é preciso ter
cuidado com a sequência das perguntas de modo que a primeira possa gerar uma
situação em que o entrevistado se sinta à vontade para responder e na sequência que
as perguntas obedeçam uma ordem e dificuldade de respostas das mais fáceis para
as mais difíceis sendo conveniente a elaboração de blocos temáticos de perguntas
que objetivam o mesmo assunto.
Cabe ressaltar que as entrevistas seguiram uma sequência de perguntas que
procuraram atender os aspectos citados por Manzini (2003), mas, ao longo das
mesmas, foram incluídas algumas questões que considerei pertinentes. Realizei
entrevistas com o diretor do colégio, com dez professores/as que atuaram com
estudantes das turmas do 6º ano de escolaridade e três funcionárias técnico
administrativas, sendo uma a coordenadora do Núcleo Acadêmico Pedagógico
(NAPE) à época da implementação da lei; a outra pedagoga que fez o
acompanhamento pedagógico dos/as estudantes do 6º ano e com a secretaria geral
da escola responsável pelo processo de matrícula. No total, foram 14
entrevistados/as.
As entrevistas ocorreram em diversos locais, mas a maioria foi realizada nas
dependências do CAp/UERJ em horário previamente agendado com os/as
depoentes e tiveram duração média de sessenta minutos. No início de cada
entrevista, apresentei os objetivos da pesquisa e esclareci o caráter de
confidencialidade das informações e opiniões que seriam colhidas. Nesse momento
inicial, os/as entrevistados/as leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre
Capítulo 1. Introdução 40

e Esclarecido (TCLE) (Apêndice 1) e preencheram uma ficha com dados pessoais


e profissionais (Apêndice 3).
Todas as entrevistas foram gravadas em áudio, com o consentimento dos/as
entrevistados/as, transcritas e revisadas posteriormente, buscando manter a maior
fidelidade possível ao discurso dos/as depoentes. A principal dificuldade na
realização das mesmas foi a conciliação dos horários dos/as entrevistados/as e os
da pesquisadora. Superado esse problema, todas as entrevistas transcorreram com
tranquilidade.
Além das entrevistas, examinei a legislação estadual específica para a
adoção das políticas de ação afirmativa na modalidade de cotas no CAp/UERJ, o
Manual do Candidato para o Processo Seletivo 2014/6º ano do ensino fundamental
(Anexo 2) e o Plano de Intervenção do Serviço Social no CAp/UERJ 2015. Entendo
que, desse modo, realizei uma pesquisa que procurou contemplar tanto os aspectos
da legislação quanto “os olhares” dos sujeitos pesquisados em relação ao contexto
estudado.
Para a análise dos dados coletados, inicialmente, realizei o agrupamento das
respostas por questões e sua inserção no software ATLAS.ti. Com o auxílio desse
software fiz a leitura inicial do material bruto buscando recorrências que ajudassem
a construir categorias de análise. Seguindo o procedimento de pesquisa da ‘Análise
de Conteúdo’ proposta por Maria Laura Franco (2008), construí as categorias de
análise por grupos temáticos a partir das recorrências encontradas nos depoimentos,
levando em consideração os objetivos da pesquisa.
Segundo Franco (2008, p. 12), o ponto de partida da análise de conteúdo:
É a mensagem seja ela verbal (oral ou escrita), gestual, silenciosa, figurativa,
documental ou diretamente provocada. As mensagens expressam as representações
sociais na qualidade de elaborações mentais construídas socialmente, a partir da
dinâmica que se estabelece entre a atividade psíquica do sujeito e o objeto do
conhecimento. Relação que se dá na prática social e histórica da humanidade e que
se generaliza via linguagem.

Além disso, Franco (2008) considera que a emissão das mensagens está
necessariamente vinculada às condições contextuais, econômicas e socioculturais
de seus produtores sem abrir mão dos requisitos de qualidade e de sistematização
dos dados. Tendo em mente essa abordagem, foram elaboradas inferências13 sobre

13
Franco (2008, p.29-30) afirma que “se a descrição é a primeira etapa necessária e se a interpretação
é a última fase, a inferência é o procedimento intermediário que vai permitir a passagem, explícita
Capítulo 1. Introdução 41

como os sujeitos pesquisados entendem o processo de implementação da lei que


determinou a adoção de cotas no CAp/UERJ. Busquei, assim, construir um diálogo,
sempre que possível, entre os aportes teóricos e os depoimentos dos/as
entrevistados/as na tentativa de aprofundar a compreensão de suas representações.

1.7
Revisão de literatura: com quem conversamos?

A revisão da literatura educacional sobre a temática em questão, num corte


temporal de onze anos (2002 a 2013), foi realizada em bases de dados que
organizam a produção acadêmica mais significativa. Este trabalho foi fundamental
para situar meu interesse de pesquisa, bem como construir uma argumentação a
partir do conhecimento acadêmico produzido e compartilhado na área.
Visando acercar-me das produções mais recentes, realizei uma busca (i) nas
revistas brasileiras da área de educação14; (ii) no Grupo de Trabalho de Educação e
Relações Étnico-Raciais (GT 21) da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (ANPEd); (iii) na Revista da Associação Brasileira de
Pesquisadores Negros (ABPN); (iv) no Banco de Teses e Dissertações da
Coordenadoria da Capacitação de Pessoal do Ensino Superior (CAPES).
Foram examinadas dezenove revistas do campo da educação tendo,
inicialmente presentes as seguintes palavras-chave, que funcionaram como
descritores de busca por artigos que tratassem do tema da pesquisa que realizei: (i)
questões étnicas e educação; (ii) negro e educação; (iii) raça e educação; (iv)
relações raciais e educação; (v) diversidade racial e educação; (vi) raça e ensino
fundamental; (vii) preconceito racial.

e controlada, da descrição à interpretação. Produzir inferências é, pois, la raison d’etre da análise


de conteúdo. É ela que confere a esse procedimento relevância teórica, uma vez que implica pelo
menos uma comparação, já que a informação puramente descritiva, sobre conteúdo, é de pequeno
valor. Um dado sobre o conteúdo de uma mensagem é sem sentido até que seja relacionado a
outros dados. O vínculo entre eles é representado por alguma forma de teoria. Assim, toda análise
de conteúdo implica comparações”.
14
Foram examinadas as revistas dos extratos A1 e A2 pela CAPES. Essas revistas, em geral,
apresentam regularidade na produção, são quadrimestrais, contam com um comitê editorial
composto de pesquisadores reconhecidos nacional e internacionalmente, realizam avaliação com
pareceristas ad hoc, todos com nível de doutorado, no sistema duplo cego. São estas características,
entre outras, que fazem estas revistas receberem a mais alta avaliação da CAPES.
Capítulo 1. Introdução 42

Com esses descritores, não foi possível encontrar artigos, porém, ao


examinar, detalhadamente, cada volume das revistas, identifiquei alguns textos que
se relacionam com a temática pesquisada. Do total do número (volumes) das
revistas consultadas, encontrei 44 artigos que tratavam de questões como
desigualdade, diferença, combate ao racismo, identidade negra e preconceito. Os
trabalhos encontrados sobre as políticas de ação afirmativa tratavam dessa temática
no ensino superior, ou seja, não encontrei nenhum trabalho sobre ação afirmativa
com corte racial na educação básica. Neste sentido, o levantamento realizado
confirmou a necessidade de trabalhos que apontem nesta direção e também
assinalou para a originalidade desta pesquisa.
Outro levantamento foi em relação à produção do GT 21 da ANPEd,
também no período de 2002 a 2013. Ao examinar as reuniões realizadas foi possível
perceber que houve um aumento do número de artigos enviados para o GT 21. A
criação do GT 21 trouxe um espaço específico para pensar/discutir as questões
étnico-raciais como categoria de análise no campo educacional. No período
examinado, foram apresentados 170 trabalhos e 50 pôsteres que versavam sobre
diversos enfoques ao abordar a temática etnicorracial como: relações raciais e
educação; desigualdades raciais e educação; educação e ações afirmativas;
desigualdades raciais e ensino superior; educação e religiões de matriz africana;
racismo e mídia; educação quilombola. Posso afirmar que a temática etnicorracial
tem indagado e problematizado o campo educacional e acadêmico, visto que os
trabalhos apresentados, em sua maioria, são fruto de pesquisas desenvolvidas no
âmbito do mestrado e doutorado.
Também foi consultada a Revista da ABPN, editada quadrimestralmente.
Esta publicação foi selecionada como uma busca a parte, devido a sua importância
para a temática e por estar diretamente relacionada a uma associação de pesquisa
que tem como foco a questão racial. Optei por não inserir a Revista da ABPN na
análise das demais revistas, visto que ela é um periódico multidisciplinar, que obtém
avaliações entre os extratos B2 e C, segundo os critérios da CAPES. Avaliada em
16 áreas do conhecimento, a Revista da ABPN obtém o seu mais alto conceito (B2)
em duas áreas: educação e interdisciplinar. Considerei adequado não incluí-la no
escopo do primeiro grupo de revistas, por considerar que estaria comparando
periódicos distintos, segundo os critérios de avaliação da comunidade acadêmica.
No entanto, não seria adequado deixá-la de fora, tendo em vista a importância da
Capítulo 1. Introdução 43

mesma para a temática da pesquisa. O primeiro número data do ano de 2010, sendo,
portanto, uma publicação recente. Essa associação é responsável pela realização do
Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros (COPENE).
A ABPN surgiu para congregar pesquisadores negros e não negros que estudam as
relações raciais e demais temas de interesse da população negra, produzir
conhecimento científico sobre a temática racial e construir academicamente um
lugar de reconhecimento das experiências sociais do movimento negro como
conhecimentos válidos (GOMES, 2012, p.739).

Nos 12 números consultados, foi possível perceber a grande variedade de


temáticas abordadas, e mais uma vez, inferi que essa diversidade se deve ao fato
das questões etnicorraciais estarem mais consolidadas tanto no campo da educação
como na sociedade em geral.
Já no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, utilizando os descritores
(i) questões étnicas e educação; (ii) relações raciais e educação; (iii) diversidade
racial e educação; (iv) preconceito racial e educação; (v) raça e ensino fundamental,
localizei 19 trabalhos.
Vale registrar que ao utilizar o descritor “ações afirmativas e educação”
localizei 25 dissertações e 8 teses, no período 2011/2012. No entanto, todos os
trabalhos tratam dessas políticas no ensino superior revelando que as ações
afirmativas de corte racial na educação básica são incipientes, ainda que mais
consolidadas no ensino superior.
Com esse levantamento foi possível concluir que há um pequeno número de
dissertações e teses que tratam da temática etnicorracial com foco nas políticas de
ação afirmativa, com concentração no ensino superior. O levantamento também
revelou que essas reflexões são mais substantivas em fóruns específicos, que
reúnem pesquisadores/as, em sua maioria, negros/as, tais como o GT 21 da ANPED
e a Revista da ABPN. Assim, posso afirmar, com alguma certeza, que o tema das
ações afirmativas de corte racial, ainda que no campo acadêmico, tem sido
majoritariamente pauta da agenda de pesquisadores/as que se identificam como
intelectuais e militantes do movimento negro, bem como os parceiros/as destas
lutas. Outra conclusão possível foi de que o tema das ações afirmativas para o
acesso à educação básica é incipiente.
Capítulo 1. Introdução 44

No momento final de elaboração desse relatório, tive acesso à dissertação


de mestrado15 de Verônica de Souza Silva (2015), orientada pela professora Dra.
Miriam Soares Leite no Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ. A
autora realizou sua investigação no Colégio Pedro II instituição federal que adotou
as ações afirmativas no ensino médio após a aprovação da Lei 12711/12 e procurou
discutir os possíveis impactos que a política de cotas de recorte racial poderia ter
causado no colégio a partir das significações que professores/as e gestores/as
atribuíam a esta medida e como identificavam os/as estudantes negros/as na
instituição. Suas principais conclusões foram: (i) a maioria dos/a entrevistados/as
manifestou posicionamento favorável às cotas raciais, mas apontou os limites
dessas políticas especialmente os problemas relacionados à autodeclaração e ao
desafio da permanência dos/as estudantes; (ii) a implementação das cotas raciais
parece não ter causado grandes impactos na instituição por se tratar de uma política
recente; (iii) os/as entrevistados/as consideraram que as questões raciais trazidas
pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) deram mais visibilidade à
temática racial no colégio (Silva, 2015, p. 133). Outro dado importante diz respeito
ao levantamento bibliográfico realizado. Silva (2015) afirma que ao tratar
especificamente da modalidade de cotas não localizou nenhum trabalho que
considerasse a necessidade dessa medida na educação básica. Porém, destaca que
encontrou, na área de educação, dois trabalhos que faziam referência à Lei 12711/12
no ensino superior. Esse dado confirma a escassez de estudos sobre essa temática
e, a hipótese que levanto é a de que a temática é recente uma vez que tanto a
legislação federal quanto as leis estaduais, anteriormente mencionadas, que foram
sancionadas e determinam a adoção das políticas afirmativas para esse nível de
ensino datam de pouco tempo. Neste sentido, a presente pesquisa ora apresentada
cumpre um papel inovador e original.

15
Para mais detalhes, consultar a dissertação intitulada “Jovens negros no Colégio Pedro II: ações
afirmativas e identificação racial”.
2
Negr@s e a luta por educação

Considerando as hipóteses, as questões e os objetivos de pesquisa, pretendo


neste capítulo apresentar os principais referenciais teóricos. Tendo em vista as
questões envolvidas na pesquisa, organizei o capítulo em sete subitens que podem
ser identificados em dois grupos temáticos principais: (i) os movimentos negros e
as políticas de ação afirmativa como forma de enfrentarmos as desigualdades raciais
no Brasil; (ii) os estudos sobre educação antirracista na perspectiva da Lei
10.639/03 e da educação multi/intercultural. Assim, estes grupos temáticos
funcionarão como pressupostos teóricos para compreensão do problema de
pesquisa, bem como para a análise dos dados.

2.1
Os movimentos negros e as demandas por cidadania

A discussão sobre a necessidade ou não da aplicação de políticas de ação


afirmativa no Brasil, passa, necessariamente, pela história dos movimentos
negros16. Não tenho a pretensão de fazer nesse item um histórico minucioso das
ações empreendidas por esses movimentos, mas apontar alguns aspectos
importantes que redundaram nas conquistas alcançadas. O foco dos movimentos
negros tem sido principalmente, o desenvolvimento de estratégias de luta pela
inclusão social do/a negro/a e a superação do racismo na sociedade brasileira. No
caso específico desta pesquisa, será dada prioridade para aquelas relacionadas à
educação.
A educação ocupa um lugar histórico e fundamental nos processos de construção e
de implementação de cidadania plena dos diferentes grupos raciais ou étnicos
brasileiros. Em períodos anteriores e ainda hoje, a ela tem sido atribuídos lugares
de relevância quando a questão educacional se vincula aos processos de conquista,
promoção e manutenção de emprego, bem como de diferenciação de renda e de
cidadania plena (SISS, 2003, p. 13).

16
Utilizarei o termo no plural por entender que existem diversos movimentos negros em nosso país.
Cada um deles trabalha a temática a partir de abordagens distintas. Manterei no singular quando
estiver citando os/as autores/as que fundamentam esse capítulo.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 46

Ahyas Siss (2003, p.13) afirma que os resultados das pesquisas


desenvolvidas nas áreas de relações raciais, quando tratam do binômio educação e
cidadania, identificam a educação como “um dos principais e mais poderosos
mecanismos de estratificação social, exercendo papel fundamental nos processos
de mobilidade vertical ascendente”.
Tratando das estratégias de luta do movimento negro organizado, Petrônio
Domingues (2007) apresenta a trajetória desse movimento durante a República
(1889-2000), com suas etapas, atores e propostas e tem como principais
interlocutores as lideranças negras de José Correia Leite, Francisco Lucrécio,
Abdias do Nascimento, Hamilton Cardoso, Lélia Gonzalez, dentre outras, por meio
de depoimentos, memórias e textos ensaísticos. O objetivo é demonstrar que
durante todo o período republicano o movimento negro empreendeu diversas
estratégias de luta a favor da população negra.
Movimento negro é a luta dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na
sociedade abrangente, em particular provenientes dos preconceitos e das
discriminações raciais, que os marginalizam no mercado de trabalho, no sistema
educacional, político, social e cultural. Para o movimento negro, a “raça” e, por
conseguinte, a identidade racial, é utilizada não só como elemento de mobilização,
mas também de mediação das reivindicações políticas. Em outras palavras, para o
movimento negro, a “raça” é o fator determinante de organização dos negros em
torno de um projeto comum de ação (DOMINGUES, 2007, p. 101-102).

Por sua vez, Joel Rufino dos Santos (1994) compreende o movimento negro
como um conjunto de ações de mobilização política, de protesto antirracista, que
envolveria movimentos artísticos, literários, religiosos, de qualquer tempo,
fundadas e promovidas pelos negros no Brasil como forma de libertação e de
enfrentamento do racismo. Essa definição apresenta uma concepção mais alargada
do que seria o movimento negro. Nesse sentido, diverge da defendida por
Domingues (2007), que considera que existe nessa definição um alargamento
conceitual e temporal que apresenta um problema, sobretudo, para a abordagem
historiográfica. Domingues (2007, p. 102) tratará, então, do movimento negro como
“movimento político de mobilização racial (negra) mesmo que assuma em muitos
momentos uma face fundamentalmente cultural”. Utilizarei nesse trabalho a
definição proposta por Domingues (2007), que engloba nas lutas empreendidas pelo
movimento negro, tanto as que se referem ao preconceito e a discriminação raciais,
quanto aos aspectos identitários que medeiam às reivindicações políticas.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 47

Para Domingues (2007), a proclamação da República, ocorrida um ano após


a abolição da escravatura, foi um sistema político que não assegurou ganhos
materiais ou simbólicos para a população negra, ao contrário, foi marginalizada em
face às doutrinas do racismo científico que eram veiculadas à época e da teoria do
branqueamento. Além desses aspectos, economicamente, a população negra foi
alijada devido às preferências de emprego em favor dos imigrantes europeus.
Com o objetivo de reverter esse quadro de marginalização “no alvorecer da
República, os libertos, ex-escravos e seus descendentes instituíram os movimentos
de mobilização racial negra no Brasil, criando inicialmente dezenas de grupos em
alguns estados da nação” (DOMINGUES, 2007, p.103). Esses grupos possuíam um
cunho eminentemente assistencialista, recreativo e/ou cultural e conseguiam
agregar um número considerável de participantes, os chamados, à época, de
“homens de cor”. Alguns desses grupos tiveram em sua base de formação
trabalhadores negros como portuários, ferroviários, ensacadores, constituindo uma
espécie de entidade sindical.
Em um movimento simultâneo, apareceu o que se denomina imprensa
negra, jornais que eram publicados por negros para tratar de suas questões. A
imprensa negra conseguia reunir um grupo representativo de pessoas para
empreender a batalha contra o preconceito de cor, como se dizia naquela época.
Esses jornais enfocavam as mais diversas mazelas que afetavam a população negra
no âmbito do trabalho, da habitação, da educação e da saúde, tornando-se uma
tribuna privilegiada para se pensar em soluções concretas para o problema do
racismo na sociedade brasileira. Além disso, as páginas desses periódicos
constituíram veículos de denúncia do regime de “segregação racial” que incidia em
várias cidades do país, impedindo o negro de ingressar ou frequentar determinados
hotéis, clubes, cinemas, teatros, restaurantes, orfanatos, estabelecimentos
comerciais e religiosos, além de algumas escolas, ruas e praças públicas
(DOMINGUES, 2007, p.105).

Nesta fase, o movimento negro organizado era desprovido de caráter


explicitamente político, com um programa definido e/ou projeto ideológico mais
amplo. Foi na década de 1930, que o movimento negro ganhou esta dimensão com
a fundação da Frente Negra Brasileira (FNB), na cidade de São Paulo, que em 1936,
transformou-se em partido político e pretendia participar do pleito eleitoral com o
objetivo de capitalizar o voto da chamada “população de cor”. Porém, a conjuntura
nacional e internacional defendia um programa político ideológico autoritário e
ultranacionalista. Domingues (2007) afirma que a FNB se alinhava com esse
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 48

pensamento e que as entidades negras da época tinham um cunho integracionista,


mas com a instauração do Estado Novo, em 1937, a Frente Negra Brasileira e outras
organizações políticas foram extintas.
No período de vigência do Estado Novo (1937-1945), o contexto de
repressão política inviabilizou qualquer movimento contestatório, mas, com a
queda da ditadura Vargas, o movimento negro organizado ressurgiu e ampliou suas
ações, contudo, não teria o mesmo poder de aglutinação da fase anterior. Os dois
principais grupos dessa época foram o Teatro Experimental do Negro (TEN), criado
por Abdias do Nascimento e a União dos Homens de Cor (UHC) fundada por João
Cabral Alves, em Porto Alegre, em 1943. Em linhas gerais, esses grupos
publicavam jornais próprios, ofereciam aulas de alfabetização e procuravam tornar
seus integrantes aptos a ingressar na vida social e administrativa do país.
Apenas em 1978, com a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU),
tem-se a volta à cena política brasileira os movimentos negros organizados. O
surgimento do MNU significou um marco histórico do protesto negro do país na
luta antirracista em escala nacional. O MNU adquiriu visibilidade pública, a data
de celebração do movimento passou a ser o 20 de novembro, eleita como Dia
Nacional de Consciência Negra, o que incentivou o negro a assumir sua condição
racial despojando o termo “negro” de sua conotação pejorativa, deixando de ser
considerado ofensivo, adotando-o para designar todos os descendentes de africanos
escravizados do país.
Foi nesse período que os movimentos negros passaram a intervir com
frequência no campo educacional, fazendo proposições sobre a revisão dos
conteúdos preconceituosos dos livros didáticos; a capacitação dos professores para
desenvolver uma pedagogia interétnica; a reavaliação do papel do negro na história
do Brasil, e levantou a bandeira da inclusão do ensino da história da África nos
currículos escolares, conquista que só aconteceu no início do século XXI. O MNU
reivindicava também a emergência de uma literatura negra como alternativa à
hegemonia da literatura de base eurocêntrica.
Nas palavras de Domingues (2007, p.116), o movimento negro organizado
“africanizou-se” e, a partir daquele momento, a luta contra o racismo tinha como
premissa:
A promoção de uma identidade étnica específica do negro. O discurso tanto da
negritude quanto do resgate das raízes ancestrais norteou o comportamento da
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 49

militância. Houve a incorporação do padrão de beleza, da indumentária e da


culinária africana. (...) até no terreno religioso houve um processo revisionista. Se
nas etapas anteriores o movimento negro era notadamente cristão, impôs-se a
cobrança moral para que a nova geração de ativistas assumisse as religiões de
matriz africana, particularmente, o candomblé, tomado como principal guardião da
fé ancestral.

Nessa terceira fase, do início do processo de redemocratização à República


Nova, os movimentos negros também desenvolveram uma campanha política
contra a mestiçagem, considerada como uma armadilha ideológica alienadora, visto
que, a mestiçagem teria diluído a identidade do negro no Brasil. O conceito de
mestiço seria um entrave para a mobilização política da população negra, pois,
historicamente, esteve a serviço do branqueamento, por isso, o movimento negro
condenava o discurso oficial pró-mestiçagem. Os dois aspectos que distinguem essa
fase das anteriores, segundo Domingues (2007, p.117) foram à introdução no
ideário político da sociedade brasileira de reivindicações antirracistas e a crescente
consolidação de uma nova identidade racial e cultural para o negro no país.
Na quarta e última fase, já no início dos anos dois mil, Domingues (2007)
destaca o hip-hop como um movimento cultural e popular inovador que busca
resgatar a autoestima do negro com a difusão do estilo musical rap, cujas letras de
protesto combinam denúncia racial e social, o protagonismo negro em aliança com
outros setores marginalizados da sociedade. Para se diferenciar do movimento
negro tradicional, os adeptos dessa fase estão, cada vez mais, substituindo o uso do
termo negro pelo preto17.
Domingues (2007) argumenta que os movimentos negros vêm dialogando
não apenas com o Estado, mas com a sociedade brasileira através de diversas ações,
protestos e mobilizações a favor da integração do negro e a erradicação do racismo.
Ressalta que, estes construíram um nível de organização da população negra desde
o período pós-abolição e lamenta que essas ações sejam suprimidas pela
historiografia quando tratam dos movimentos sociais no período republicano.
Considerei importante apresentar, em linhas gerais, os apontamentos
históricos feitos por Domingues (2007) para, além de contextualizar as ações
realizadas pelos movimentos negros, exaltar as diferentes estratégias de luta pela

17
O termo preto, difundido pelos adeptos do hip-hop, é a adoção traduzida do black, palavra utilizada
por décadas pelo movimento negro estadunidense. Já a rejeição que eles fazem do negro deve-se
ao fato de que nos Estados Unidos esta palavra origina-se de niger, termo que lá tem um sentido
pejorativo (DOMINGUES, 2007, p.120).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 50

inclusão social do/a negro/a, especialmente, no que diz respeito ao acesso à


educação demonstrando que desde o período republicano essa preocupação se fazia
presente entre os/as militantes. Muitas conquistas alcançadas a partir do início do
terceiro milênio foram propugnadas desde a gênese desse movimento.

2.2
As políticas de ação afirmativa: algumas considerações

Como vimos no item anterior, a discussão sobre a subalternização do/a


negro/a no sistema educacional, político, social, cultural e no mercado de trabalho
não é recente. De acordo com Siss (2003, p. 14), “no início do século XXI, se a
exclusão dos afro-brasileiros do nosso sistema educacional não é legalmente
expressa, ela se atualiza através da inserção subordinada e precarizada dos membros
desse grupo racial ao sistema de ensino, o que equivale a mantê-los subalternizados
frente ao grupo racial branco”. Através das várias organizações dos movimentos
negros, desde o início do século passado, o Estado brasileiro foi sendo pressionado
a estabelecer políticas sociais que defendessem o direito à educação da população
negra. Algumas demandas por educação desse grupo racial foram atendidas, depois
de uma longa e persistente luta, com a adoção das políticas de ação afirmativa, entre
outras medidas, em nosso país no início dos anos dois mil.
A discussão sobre a necessidade ou não da aplicação de políticas de ação
afirmativa no Brasil que contemplasse a população negra teve início nos anos
noventa e esteve quase sempre restrita ao âmbito das organizações dos movimentos
negros e de alguns poucos espaços acadêmicos. Do início dos anos dois mil para
cá, muitas foram as conquistas alcançadas por esses movimentos, especialmente,
no que diz respeito ao acesso de estudantes negros/as à educação superior. Essa
discussão foi também influenciada pelo modelo implementado nos Estados Unidos
da América (EUA), país onde tais políticas tiveram ampla difusão. Não se trata de
fazermos uma simples transposição de modelos entre realidades tão diversas como
EUA e Brasil, visto que as condições socioeconômicas, culturais e o contexto
histórico são distintos, como também as manifestações do racismo são específicas
de cada país.
De acordo com Ahyas Siss (2002) e Antonio Sérgio Guimarães (1999), a
primeira referência histórica à ação afirmativa entendida como promoção de
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 51

oportunidades ou outros benefícios para pessoas, com base, entre outras coisas, em
sua pertença a um ou mais grupos específicos aparece na legislação trabalhista
estadunidense de 1935 (The 1935 National Labor Relations Act), que previa que o
empregador que discriminasse seus empregados teria que parar de discriminar e, ao
mesmo tempo, tomar ações afirmativas para colocar as vítimas nas posições onde
elas estariam se não tivessem sido discriminadas.
Na década de 60, a partir de uma significativa pressão dos movimentos
negros contra as marcantes políticas de segregação fundamentadas em lei, foi
aprovada, pelo congresso americano, a Lei dos Direitos Civis, que bania a
discriminação nas acomodações públicas, nos programas de governo, no emprego,
dando novos poderes ao governo federal para implementar a dessegregação.
Segundo Siss (2003), a expressão Affirmative Action foi usada pela primeira
vez, em 1961, pelo então presidente John Kennedy, que estabeleceu um comitê
presidencial sobre oportunidades iguais no emprego. Porém, na administração de
Lyndon Johnson é que foram criados mecanismos e estratégias importantes de
combate e de superação das desigualdades raciais e de gênero, principalmente. Esse
conjunto de medidas procurava coibir a segregação e a discriminação raciais e
visava criar as condições de igualdade de oportunidades educacionais, de vida e de
trabalho entre todos/as.
Não se pode deixar de ressaltar que as políticas de ação afirmativa não
gozam de consenso na sociedade estadunidense. Como em qualquer debate político,
a discussão sobre o tema dividiu (e ainda divide) opiniões, promoveu (e promove)
intensos debates entre intelectuais, acadêmicos, governantes e a sociedade como
um todo, mesmo sendo uma experiência duradoura que apresentou efeitos práticos
através dos programas que possibilitaram a promoção de direitos sociais,
econômicos, educacionais e culturais não apenas para os/as negros/as, mas também
para mulheres, indígenas, latino-americanos e outros grupos minoritários.
Medeiros (2002, p.69) enumera exemplos de políticas afirmativas adotadas
em outros países e afirma que, “mesmo se tratando de sociedades muito diferentes,
com graus de desenvolvimento distintos, formas de estruturação social, regimes
políticos e econômicos próprios, o objetivo de tais medidas é de sempre beneficiar
grupos discriminados por motivos raciais, étnicos, de classe ou de gênero”.
Na Índia, por exemplo, vigora a milenar tradição religiosa, o hinduísmo,
cujo sistema de castas estabelece a divisão da sociedade em quatro grupos:
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 52

brâmanes (sacerdotes e eruditos), xátrias (senhores e guerreiros), voixiás


(comerciantes, artesãos e fazendeiros) e os sudras (trabalhadores rurais e
domésticos) a que se pertence desde o nascimento. Os dalits (intocáveis) são
considerados impuros pelo hinduísmo e excluídos do sistema de castas e não têm
acesso à terra, à educação ou a bons empregos. A fim de garantir maior participação
dos dalits na vida econômica e política do país, a Constituição Indiana de 1948
reservou assentos para membros desse grupo no parlamento e assegurou, mediante
a atribuição de cotas, seu acesso a empregos públicos e à universidade
(MEDEIROS, 2002, p. 69).
Outro exemplo vem da Malásia, onde a maioria da população pertence à
etnia bumiputra – os malaios propriamente ditos – que controlam a política, mas
estão sub-representados na arena econômica que é dominada por indianos e
chineses. Com o objetivo de corrigir essa situação, foram criados instrumentos que
incrementaram a participação dos bumiputra na economia de seu país.
Além dos casos indiano e malaio, poderia seguir com outros exemplos. Vale
destacar que, na antiga União Soviética, havia uma cota de 4% na Universidade de
Moscou para habitantes da Sibéria. Em Israel, adotam-se medidas especiais para
acolher os falashas, judeus de origem etíope. Na Alemanha e na Nigéria, existem
políticas de ações afirmativas para mulheres; na Colômbia para os/as indígenas; no
Canadá para indígenas, mulheres e negros/as (SILVA, 2002, p. 110). Em Portugal,
são reservadas vagas em universidades para estudantes provenientes das antigas
colônias portuguesas da África. Na Itália, esforços – semelhantes às políticas de
ação afirmativa – são efetivados para a conservação dos dialetos de fronteiras. Na
África do Sul, a Constituição de 1996 prevê expressamente a utilização das políticas
de ação afirmativa para garantia de acesso às diversas instâncias para negros vítimas
do regime do apartheid.
Esses exemplos mostram que as políticas de ação afirmativa enquadram-se
em diversas situações e em diferentes contextos. A discussão sobre políticas de ação
afirmativa no Brasil continua na ordem do dia e a aplicação dessas medidas ainda
é alvo de críticas. Uma delas refere-se ao fato de que somos um país cultural e
racialmente integrado que não necessita da implementação de políticas que
beneficiem grupos específicos.
Para Munanga (2006), o debate sobre as políticas afirmativas no Brasil deve
acompanhar a dinâmica da sociedade através das reivindicações de seus segmentos
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 53

e não aquele que se refugia na ideia de mistura racial que inviabilizou o debate sobre
a diversidade cultural no Brasil. Muitos questionamentos são feitos sobre a adoção
das ações afirmativas em nosso país: “alguns indagam se as políticas de
reconhecimento das identidades ‘raciais’, em especial da identidade negra, não
ameaçariam a unidade ou a identidade nacional, por um lado, e se não reforçariam
a exaltação da consciência racial por outro. Ou seja, se não teriam um efeito
‘bumerangue’, criando conflitos raciais que, segundo eles, não existem na
sociedade brasileira” (MUNANGA, 2006, p. 52).
O argumento da ‘mistura racial’ parece desconsiderar as desigualdades
historicamente acumuladas que contribuíram para criar condições de vida
desfavoráveis para os/as negros/as. Numa breve retrospectiva é possível lembrar
que: (i) o Brasil foi o último país do mundo a abolir o trabalho escravo de pessoas
de origem africana, em 1888; embora nenhuma forma de segregação tenha sido
imposta após a abolição, os ex-escravos tornaram-se totalmente marginalizados em
relação ao sistema econômico vigente; (ii) a partir da segunda metade do século
XIX, o governo brasileiro estimulou a imigração europeia numa tentativa explícita
de “branquear” a população nacional; (iii) a força de trabalho dos imigrantes foi
preferencialmente contratada, tanto na agricultura quanto na indústria. Assim, a
mão de obra negra que havia sido escravizada e participado fortemente da
construção deste país foi preterida no período pós-abolição (Heringer, 1999).
Nos anos 30, o conceito de “democracia racial” propagou a ideia de que a
maioria negra e mestiça deveria ser motivo de orgulho, porque era um sinal, de
nossa tolerância e integração racial já que não possuíamos uma segregação legal
como nos Estados Unidos e na África do Sul. Prevalecia a ideia de um país
integrado onde práticas de preconceito e/ou discriminação racial eram mascaradas
pelo mito da democracia racial, que foi sendo consolidado no imaginário social
brasileiro ao longo do tempo.
As desigualdades a que estão sujeitos os negros e os mestiços, na atualidade
brasileira, são entendidas como desigualdades sociais e não raciais, pois, as raças
que comporiam o ‘mosaico étnico’ nacional se estenderam, porque se misturaram
e, ao se misturarem, eliminaram a possibilidade da existência de uma discriminação
com a variável raça. Este é o dogma central do mito da democracia racial (SISS,
2003, p. 48-49).

Ainda que constantemente denunciado, o mito da democracia racial


sobrevive no imaginário social de uma parcela significativa da sociedade brasileira
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 54

e, como afirma Siss (2003, p. 81), “há, entre nós, uma verdadeira apologia de uma
pseudo-harmonia racial que leva a um aprofundamento das práticas
discriminatórias.”
Durante os anos 60 e 70, a ditadura militar coibiu a atividade política e
intelectual e inibiu as discussões sobre desigualdades raciais. No final dos anos 70,
vários movimentos sociais começaram a se reorganizar, entre eles, os movimentos
negros, que estimularam a retomada das discussões sobre desigualdades raciais no
país; alertaram a sociedade e o Estado para o fato de que “a desigualdade que atinge
a população negra brasileira não é somente herança de um passado escravista, mas,
sim, um fenômeno mais complexo e multicausal, um produto de uma trama
complexa entre o plano econômico, político e cultural” (GOMES, 2012, p.734).
Nos anos 90, os movimentos negros obtiveram crescente visibilidade; militantes
denunciaram as desigualdades raciais e a complexa imbricação entre essas e as
desigualdades sociais:
A partir da segunda metade dos anos de 1990, a raça ganha outra centralidade na
sociedade brasileira e nas políticas de Estado. A sua releitura e ressignificação
emancipatória construída pelo movimento negro extrapola os fóruns da militância
política e o conjunto de pesquisadores interessados no tema. Dentre as diversas
ações do movimento negro nesse período, destaca-se, em 1995, a realização da
“Marcha Nacional Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a
Vida”, em Brasília, no dia 20 de novembro. Como resultado, foi entregue ao
presidente da República da época o “Programa para Superação do Racismo e da
Desigualdade Étnico-Racial”. Neste, a demanda por ações afirmativas já se fazia
presente como proposição para a educação superior e o mercado de trabalho
(GOMES, 2012, p. 739).

O governo federal manifestou intenção de promover políticas em relação a


essa problemática após a realização de um seminário internacional em Brasília, em
1996, que discutiu políticas específicas voltadas para a ascensão dos negros no
Brasil. Essa ação foi tomada cento e oito anos depois da abolição dos/as escravos/as.
Depois desse encontro, no âmbito federal, foi formado o Grupo de Trabalho
Interministerial (GTI), integrado por representantes dos movimentos negros
nacionais e também do Estado, com a principal incumbência de discutir, elaborar e
implementar projetos políticos voltados para a valorização e elevação dos padrões
de vida de negros e negras.
Outras iniciativas, que articulavam demandas dos movimentos negros e
ações governamentais, do final dos anos noventa e início dos anos dois mil, de
acordo com Sueli Carneiro (2011), foram as seguintes:
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 55

 O Plano Nacional de Educação Profissional (Planfor) do Programa Nacional


de Direitos Humanos, que tinha como principal objetivo combater todas as
formas de discriminação, especialmente as de gênero, geração, raça e cor;
 O Projeto de Lei 4370/98 do deputado federal Paulo Paim que previa que os
afrodescendentes deveriam compor, pelo menos, 25% do total de atores e
figurantes em filmes e programas veiculados pelas emissoras de televisão,
e um mínimo de 40% nas peças publicitárias para TV e cinema;
 A criação de cotas de 20% para negros, 20% para mulheres e 5% para
portadores de deficiência em cargos de confiança do Ministério da Justiça,
em empresas terceirizadas e em entidades conveniadas.

Segundo Carneiro (2011), em agosto de 2002, o presidente Fernando


Henrique Cardoso adotou a Medida Provisória 63, com força de lei, que instituiu a
criação do Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da
Educação, com a finalidade de implementar e avaliar estratégias para a promoção
do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente
desfavorecidos, especialmente os afrodescendentes e os indígenas brasileiros. Em
março de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva adotou a Medida Provisória
111, com força de lei, e instituiu a criação da Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) como órgão de assessoramento imediato
do Presidente da República que, entre outras finalidades, auxiliaria na formulação,
coordenação e articulação de políticas e diretrizes para a promoção da igualdade
racial, com ênfase na população negra.
Além das iniciativas governamentais, o Projeto Geração XXI, desenvolvido
pela Fundação BankBoston, no final dos anos noventa, em parceria com a Fundação
Palmares e o Instituto da Mulher Negra (Geledés) promoveu atividades educativas
com adolescentes negros/as integrantes de famílias com renda per capita entre um
e dois salários mínimos, residentes na cidade de São Paulo.
Com relação às iniciativas de acesso ao conhecimento, destaco o Programa
Internacional de Bolsas de Pós-Graduação (IFP)18, parceria entre a Fundação Ford

18
Fúlvia Rosemberg (2010, p. 15-16) esclarece que o programa IFP, teve início em 2001 e foi
implantado gradativamente em 22 países e territórios da Ásia, África, América Latina e na Rússia.
Na América Latina, sendo implementado no Chile, Guatemala, México, Peru e no Brasil. Seu
pressuposto é o de que a educação, em nível pós-graduado, constitui uma das ferramentas para
incentivar a consolidação de lideranças comprometidas com novas opções de desenvolvimento
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 56

e a Fundação Carlos Chagas, lançado no Brasil no final de 2001. De acordo com


Fúlvia Rosemberg (2010, p. 16) a parceria com a Fundação Carlos Chagas foi
“indicada em decorrência de sua reconhecida respeitabilidade tanto no que diz
respeito à realização de concursos públicos, formação de recursos humanos, bem
como sua experiência nas áreas da pesquisa sobre desigualdades no sistema
educacional brasileiro e no fomento à investigação sobre temas emergentes”. O
programa não foi dirigido, especificamente, a candidatos/as negros/as, mas de
acordo com Maria Aparecida da Silva (2002, p. 119), “o número de pedidos de
cartas de indicação recebido pelas organizações negras permite afirmar que parte
significativa foi de pessoas negras que vislumbravam a possibilidade de iniciar ou
prosseguir sua qualificação acadêmica”.
Outra proposta de ação afirmativa na universidade, lançada nesse mesmo
ano, foi o Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira do Laboratório de
Políticas Públicas (LPP/UERJ), em parceria com a Fundação Ford. O concurso
nacional “Cor no Ensino Superior”, por exemplo, estava destinado a apoiar e
promover projetos que visassem aumentar a presença das populações sub-
representadas no ensino superior, especialmente, os/as negros/as de baixa renda.
No Rio de Janeiro, a Lei Estadual 3708/01 instituiu cota de até 40% para
pretos e pardos no acesso à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e à
Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Outra lei aprovada em
setembro de 2003 (Lei 4151/03), destinou 45% das vagas dessas universidades a
estudantes carentes. As duas legislações foram aplicadas em conjunto. No âmbito
do município do Rio de Janeiro, a Lei Municipal 2325, de autoria dos vereadores
Jurema Batista e Antônio Pitanga, obrigava as agências de publicidade e produtores
independentes, quando contratados pela Prefeitura do Rio de Janeiro, a incluir, no
mínimo, 40% de artistas e modelos negros/as na idealização e realização de
comerciais e anúncios. No âmbito dos movimentos sociais, destaco o trabalho
realizado pelos pré-vestibulares comunitários espalhados pelo país, e no Rio de
Janeiro, o Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) e o Educação e Cidadania
de Afrodescendentes e Carentes (EDUCAFRO) que tinham como principal objetivo
potencializar a presença de estudantes carentes e negros/as também nas

em prol da justiça e igualdade social. Alguns fatores impedem o acesso, permanência e sucesso
na pós-graduação: situação econômica, gênero, etnia, raça, casta, religião, idioma, isolamento
geográfico, instabilidade política, deficiência física.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 57

universidades particulares com bolsas de estudos, ampliando, assim, as


possibilidades de acesso, para os mais necessitados, a um curso superior. Um
exemplo é a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), que
desde 1994, vem desenvolvendo um programa com o objetivo de favorecer o acesso
de estudantes de camadas populares e afrodescendentes aos seus cursos de
graduação. Após a aprovação nos exames vestibulares, esses/as estudantes recebem
uma bolsa que garante a gratuidade na universidade, uma vez que a instituição conta
com um amplo programa de bolsas de estudos.
É importante ressaltar que os direitos conquistados, no que tange às ações
governamentais, como afirma Carneiro (2011, p.32), tiveram “a agenda social das
Nações Unidas, cumprida durante a década de 1990, a qual se concluiu com a III
Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e
Formas Correlatas de Intolerância, realizada em Durban, em setembro de 2001,
como palco privilegiado”.
O Brasil, como país-membro das Nações Unidas, assumiu o compromisso de
avançar em uma agenda de promoção da igualdade racial. O Plano de Ação da
Conferência de Durban insta aos Estados que elaborem programas direcionados
aos negros e destinem verbas para as áreas de educação, saúde, habitação,
saneamento básico e proteção ao meio ambiente. Sugere-se ainda que os governos
promovam o acesso igualitário ao emprego e invistam em políticas de ações
afirmativas (CARNEIRO, 2011, p.32).

Foi, portanto, no governo de Fernando Henrique Cardoso que as primeiras


políticas de inclusão racial foram gestadas e implementadas, tendo no governo de
Luiz Inácio Lula da Silva sua linha de continuidade, acrescido das propostas
organizadas no documento “Brasil Sem Racismo”, em que o compromisso com a
erradicação das desigualdades raciais era a tônica principal.
Para Carneiro (2011, p.19), o primeiro mandato do presidente Lula
“caracterizou-se por gestos simbólicos de grande envergadura na implementação
das medidas concretas de promoção da igualdade racial”19. Contudo, no que diz

19
Entre os gestos simbólicos, destacam-se a presença de Matilde Ribeiro na equipe de transição de
governo e de Paulo Paim na primeira vice-presidência do Senado Federal, as nomeações de
Benedita da Silva para a pasta de Assistência Social, de Gilberto Gil para a de Cultura e de Marina
Silva para a de Meio Ambiente, além da criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial
com status de Ministério sob a liderança de Matilde Ribeiro, a presença de Muniz Sodré e de
representantes da Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras no Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e a indicação de ministro a Joaquim Benedito
Barbosa Gomes para o STF. Inegavelmente, em nenhum outro governo houve esse número de
pessoas negras ocupando postos de primeiro escalão em franca sinalização para a sociedade de
uma política de reconhecimento e inclusão dos negros em instâncias de poder. Se as ações de
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 58

respeito à implementação das políticas públicas, a autora entende que há avanços,


fracassos e recuos. Para ela, dentre os principais avanços está a promulgação da Lei
10.639/0320 que alterou a Lei 9.394/96 ao estabelecer as diretrizes e bases da
educação nacional e instituir no currículo oficial a obrigatoriedade do ensino de
História da África e dos Africanos, a Luta dos Negros no Brasil e da Cultura
Brasileira na Educação Básica (ensino fundamental e ensino médio).
Com relação ao que considera como fracasso, Carneiro (2011, p.26) destaca
o programa governamental “Primeiro Emprego” e aqueles voltados à segurança
pública, uma vez que os jovens, sobretudo os negros, “encontram-se expostos a uma
matança, semelhante ao genocídio, quando há absoluta inação por parte do
governo”.
Desse modo, o início do século XXI foi marcado pelo “dilema brasileiro”,
conforme as palavras de Silvério (2002, p. 97):
Como incluir sem preterir e integrar, reconhecendo as especificidades da população
afrodescendente, tanto aquelas vinculadas ao processo histórico-social singular
brasileiro, quanto àquelas que conferem uma identidade particular ao referido
grupo. Assim, a compreensão de novos sentidos e possibilidades de uma
construção democrática, que tenha por base o reconhecimento de nossas diferenças
étnico-raciais de inserção no mercado de trabalho e no sistema educacional,
aparentemente impõe a necessidade de políticas de discriminação positiva.

A Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 5º, enuncia os direitos


individuais e coletivos e, de acordo com Carolina Melo (1999, p. 91), prevê
expressamente tanto a igualdade formal quanto a material como princípios
constitucionais: “ao tratar a igualdade, a Constituição, por um lado impede o
tratamento desigual e, por outro, impõe ao Estado uma atuação positiva no sentido
de criar condições de igualdade, o que frequentemente implica em tratamento
desigual entre os indivíduos”. Desse modo, políticas que têm como objetivo a
integração de grupos desfavorecidos, como é o caso da ação afirmativa, encontram
abrigo no texto constitucional.
Segundo Melo (1999), o primeiro passo para a materialização da igualdade
está diretamente ligado à intervenção estatal. Porém, a sociedade brasileira tem
grande relevância na ratificação (ou não) de medidas que se encaminhem à

governo historicamente são sempre consideradas demasiadamente tímidas perante as expectativas


dos movimentos sociais, há nesse caso, decisões importantes sobre o tema que avançam em
relação ao que foi realizado anteriormente (CARNEIRO, 2011, p. 20).
20
Em 10/03/08 foi sancionada a Lei 11.465/08 que substitui a Lei 10.639/03 e acrescenta a inclusão
do ensino de história e cultura dos povos indígenas.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 59

concretização da igualdade material, no sentido de mobilização através da


imprensa, sindicatos, associações e outros órgãos de classe. Para a autora, a
implementação de políticas de ação afirmativa se tornará possível apenas neste
contexto de compromisso. Analisada nessa perspectiva, “a ação afirmativa é
entendida como uma questão de justiça distributiva, ou seja, institui ao indivíduo
ou grupo as vantagens e benefícios que estes seriam contemplados em condições
não-racistas, levando-se em conta a correta proporção” (MELO, 1999, p.97).

2.3
Ações afirmativas: diferentes conceituações

O termo ação afirmativa apresenta uma pluralidade de sentidos e suas


definições caracterizam as disputas políticas e teóricas entre seus defensores e
críticos. Nos Estados Unidos, são chamadas de affirmative action. Na Europa, são
nomeadas de discriminação positiva. Ainda que adotadas em sociedades distintas,
com formas de estruturação social, regimes políticos e econômicos próprios, o
objetivo de tais medidas é sempre beneficiar grupos socialmente discriminados seja
por questões raciais, culturais, de capacidades ou de gênero.
Na definição apresentada por Joaquim Barbosa Gomes (2002, p.128-129),
as políticas sociais visam consolidar a noção de igualdade material ou substancial,
ou seja, vão além da concepção estática de igualdade meramente formal do Estado
liberal:
As ações afirmativas definem-se como políticas públicas (e privadas), voltadas à
concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização
dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de
compleição física. Na sua compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um
princípio jurídico a ser respeitado por todos e passa a ser um objetivo constitucional
a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. Impostas ou sugeridas pelo Estado,
por seus entes vinculados e até mesmo por entidades privadas, elas visam combater
não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a
discriminação de fato, de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade.

Em Gomes (2002), podemos identificar princípios, não apenas da igualdade


material, mas também da necessidade de eliminar ou reduzir as desigualdades
sociais e raciais. O autor aprofunda sua definição ao enfatizar o papel crucial da
diversidade, considerando esses aspectos como fundamentais para o convívio
humano. Segundo Gomes (2002), as ações afirmativas possuem um cunho
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 60

pedagógico, de exemplaridade, ao viabilizar a transformação cultural da sociedade


em direção à paz social e ao desenvolvimento do país, uma vez que se destina a
alavancar um grupo social que, ainda, se encontra à margem, tanto do acesso à
educação quanto ao mercado de trabalho.
Para Gomes (2002, p.130), as ações afirmativas seriam, portanto, um
remédio eficaz para combater esses males, porém, assevera que é “indispensável
uma ampla conscientização sobre o fato de que a marginalização socioeconômica a
que são relegadas as minorias, especialmente as raciais, resulta de um único
fenômeno: a discriminação”.
Discriminar nada mais é do que uma tentativa de se reduzir as perspectivas de uns
em benefício de outros. Quanto mais intensa a discriminação e mais poderosos os
mecanismos inerciais que impedem o seu combate, mais ampla se mostra a
clivagem entre discriminador e discriminado. Daí resulta, inevitavelmente, que aos
esforços de uns em prol da concretização da igualdade se contraponham os
interesses de outros na manutenção do status quo (GOMES, 2002, p.130).

João Feres Júnior (2007; 2008) identifica três pilares de argumentos


presentes nas justificativas das políticas de ação afirmativa, em um dado momento
histórico, isoladamente ou em conjunto: reparação, justiça distributiva/social e
diversidade. Para a compreensão desses pilares, Feres Júnior (2008, p.53-54)
exemplifica com os argumentos de reparação ou justiça social presentes nas
políticas voltadas à inclusão social da população negra nos Estados Unidos. Nos
discursos políticos, o argumento da reparação traz a lógica da recompensação dos
negros pelo mal histórico cometido contra eles; já, nos textos formais das ordens
presidenciais e da lei, a linguagem predominante é a da justiça social, ou seja, “da
promoção de oportunidades iguais; de promoção de violações tópicas e regionais
do princípio de igual proteção para promover grupos desfavorecidos de pessoas”.
Feres Júnior (2007; 2008) esclarece que o argumento da diversidade
começou a se tornar uma justificativa a partir dos anos setenta, tomando a
centralidade dos debates sobre a legalidade das ações afirmativas até os dias atuais,
consubstanciado na ideia de que “a utilização de múltiplos critérios, inclusive
raciais, contribui para a diversidade da sala de aula e essa, por seu turno, contribui
para melhorar a qualidade da educação” (FERES JÚNIOR, 2008, p.54),
promovendo o bem comum. Contudo, é importante ressaltar a diferença entre os
argumentos apresentados.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 61

Enquanto a reparação e a justiça social têm por fim beneficiar os desprivilegiados,


o argumento da diversidade se justifica pelo benefício de todos, da educação em
geral. É claro que podemos argumentar que tanto a reparação como a justiça social
só se justificam em última instância pela promoção do bem comum. Contudo, a
ordem das coisas é inversa. Enquanto nelas o bem dos que estão em pior posição
vem primeiro, no caso da diversidade, esse bem é mais um efeito colateral da
finalidade última que é a melhoria da qualidade da educação, que pode ser muito
bem entendida como uma melhoria para aqueles que dela já desfrutam, os
privilegiados. Em outras palavras, tal justificativa se assenta no ganho imediato
que o arranjo institucional pode proporcionar àqueles que estão em melhor posição
(FERES JÚNIOR, 2008, p.54).

Historicamente, no Brasil, a reparação tem sido empregada como


justificativa das políticas afirmativas, para corrigir os erros cometidos contra os/as
negros/as ou afro-brasileiros/as ao longo da história. Contudo, observa-se que a
justiça social tem sido um valor essencial ao longo do processo de democratização
do país, como pode ser constatado pelo seu peso normativo, presente na
Constituição de 1988 (MÔNICA ALMEIDA & MÔNICA QUEIROZ, 2015).
As ações afirmativas também podem ser entendidas como parte das
chamadas políticas de reconhecimento da diferença. Nancy Fraser (2002) nos ajuda
a compreender esse conceito ao afirmar que a luta pelo reconhecimento passou a
ocupar lugar central na agenda mundial no fim do século XX e as principais
demandas estão voltadas para questões como nacionalidade, etnicidade, raça,
gênero e sexualidade. Há, segundo Fraser (2002, p.245), a substituição de interesses
de classe por temáticas identitárias grupais: “a demanda cultural suplanta a
exploração como injustiça fundamental. E reconhecimento cultural desloca a
redistribuição socioeconomica como o remédio para injustiças e objetivo da luta
política”. Tais disputas ocorrem em contextos de desigualdade material exacerbada
no que diz respeito à renda, acesso a bens, serviços, trabalho, educação, saúde, etc.
Desse modo, Fraser (2002) entende que neste cenário há também a necessidade da
redistribuição socioeconômica para a superação da desigualdade social.
Temos aqui, portanto, a tensão entre igualdade e diferença. Nesse sentido, é
importante enfatizar como estou entendendo as questões relativas a esse binômio.
Como propõe Vera Candau (2005, p. 18): “não se deve contrapor igualdade e
diferença. De fato, a igualdade não está oposta à diferença, e sim à desigualdade, e
diferença não se opõe a igualdade, e sim à padronização, à produção em série, à
uniformidade, a sempre o ‘mesmo’, à ‘mesmice’”. Candau (2005) destaca que
devemos negar a padronização e ao mesmo tempo lutar contra todas as formas de
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 62

desigualdade e discriminação presentes na nossa sociedade, especialmente, com


relação aos grupos historicamente marginalizados.
Para Fraser (2002), as demandas por valorização das diferenças e a
repartição dos bens são eixos que se articulam e propõe o desenvolvimento de uma
teoria crítica do reconhecimento que esteja sustentada em políticas da diferença que
possam ser combinadas com políticas sociais de igualdade, já que justiça requer, na
atualidade, tanto reconhecimento quanto redistribuição.
O dilema de reconhecimento-redistribuição é enfrentado pelas classes
exploradas, as sexualidades menosprezadas e coletividades ambivalentes, grupos
que foram historicamente marginalizados, silenciados em seus direitos. Nessa
perspectiva, a categoria raça é entendida como uma coletividade ambivalente e
precisa tanto da redistribuição (direitos de igualdade) quanto do reconhecimento
(direitos à diferença), uma vez que engloba as dimensões política, econômica e
cultural: “Ambas se mesclam para se reforçarem mutuamente de forma dialética,
ainda mais porque normas culturais racistas e eurocêntricas são institucionalizadas
pelo Estado e pela economia, e a desvantagem econômica sofrida por pessoas de
cor restringe suas “vozes”. Reparar injustiça racial, então, requer mudanças tanto
na economia política quanto na cultura” (FRASER, 2002, p. 264).
As diferentes definições elencadas auxiliam na compreensão de que as ações
afirmativas estão relacionadas aos contextos em que foram implantadas, porém,
apesar dos diversos sentidos que possuem, têm como pontos comuns a superação
das desigualdades sociais e raciais, bem como a promoção de oportunidades iguais
para grupos que estão sub-representados socialmente.
Nesta pesquisa, utilizarei a definição apresentada por Gomes (2002, p.128),
em que tais políticas deixam de ser apenas um princípio jurídico, são entendidas
como “políticas públicas e privadas que terão como finalidade a concretização do
princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da
discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição
física”.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 63

2.4
Políticas de ação afirmativa para negros/as no Brasil

A discussão sobre as políticas de ação afirmativa para a população negra no


Brasil ganhou visibilidade e se deu de maneira mais intensa no início dos anos dois
mil, ou seja, já completou mais de uma década, mas continua sendo alvo de
objeções. Segundo Valter Silvério (2002), Ahyas Siss (2002), Carlos Alberto
Medeiros (2002) e Antonio Sérgio Guimarães (1999), entre outros/as estudiosos/as,
os argumentos mais utilizados por aqueles/as que se contrapõem às propostas de
ação afirmativa são: (i) no Brasil nunca houve, após a abolição da escravidão, leis
de caráter segregacionista e racista; (ii) as ações afirmativas significam o
reconhecimento das diferenças raciais entre os brasileiros, o que contraria a ideia
nacional de que somos um só povo, uma só raça; (iii) contrariamente aos Estados
Unidos e à África do Sul, onde o preconceito tem por base a origem do indivíduo,
no Brasil o preconceito é de marca; (iv) nos contextos que as políticas de ação
afirmativa foram implementadas elas apenas criariam uma “elite de negros”, pois
não beneficiariam a parcela majoritária dos negros; (v) as ações afirmativas seriam
um rechaço ao princípio universalista e individualista do mérito.
Um dos argumentos contrários é o de que não haveria preconceito racial no
Brasil. De acordo com Oracy Nogueira (2006, p. 290), os Estados Unidos e o Brasil
são exemplos de dois tipos de situações raciais distintos: “um em que o preconceito
racial é manifesto e insofismável e outro em que o próprio reconhecimento do
preconceito tem dado margem a uma controvérsia difícil de superar”.
[...] Embora tanto nos Estados Unidos como no Brasil não se possa negar a
existência de preconceito racial, as diferenças que ocorrem, nas respectivas
manifestações, são tais que se impõe o reconhecimento de uma diversidade quanto
à natureza. O preconceito tal como se apresenta no Brasil foi designado por
preconceito de marca, reservando-se para a modalidade em que aparece nos
Estados Unidos a designação de preconceito de origem. Quando o preconceito de
raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas
manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque,
diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de
certo grupo étnico para que sofra as consequências do preconceito, diz-se que é de
origem (NOGUEIRA, 2006, p. 291-292).

Nogueira (2006) diferencia o preconceito racial de marca e o de origem.


Afirma que onde o preconceito é de marca, como no Brasil, o que serve de critério
definidor é o fenótipo ou aparência racial. Nesse sentido, se há em nosso país
alguma dificuldade de reconhecimento da existência do preconceito racial, os/as
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 64

negros/as brasileiros/as discriminados/as cotidianamente colocam em xeque essa


“impressão”.
As objeções apresentadas tornam-se mais contundentes quando se referem
às políticas que envolvem o acesso ao ensino superior. Neste caso, os opositores
apresentam dois argumentos: a solução para o problema das pessoas negras serem
representadas por pequeno número no corpo discente das universidades públicas e
privadas é o investimento no ensino público. O segundo diz respeito ao possível
comprometimento da excelência acadêmica devido ao baixo desempenho dos
candidatos beneficiados por tais políticas. Para os críticos das ações afirmativas, o
acesso de pessoas negras à universidade, via políticas de cotas, comprometeria o
nível acadêmico das instituições.
De acordo com Guimarães (1999), as políticas de ação afirmativa devem
estar ancoradas em políticas de universalização e de melhoria do ensino público,
tanto o ensino fundamental quanto o ensino médio. Contudo, não se trata apenas de
fazer uma opção entre políticas de cunho universalista ou de cunho diferencialista:
O que está em jogo é uma outra coisa. Devem as populações negras, no Brasil,
satisfazer-se em esperar uma ‘revolução do alto’, ou devem elas reclamar, de
imediato e pari-passu, medidas mais urgentes, mais rápidas, ainda que limitadas,
que facilitem seu ingresso nas universidades públicas e privadas, que ampliem e
fortaleçam os seus negócios, de modo que se acelere e amplie a constituição de
uma ‘classe média’ negra? (GUIMARÃES, 1999, p.173).

Silvério (2002, p.99), por sua vez, afirma que “a situação de inclusão
subalterna ou exclusão social da população afrodescendente não pode ser revertida
pelas leis de mercado e por políticas de caráter universalista”. Ou seja, as políticas
de cunho universalista apresentam uma abrangência insuficiente, porém, precisam
ser redefinidas para que no médio e longo prazo tenhamos um ensino público de
qualidade para todos/as.
Nos anos dois mil, algumas universidades brasileiras começaram a
implementar as políticas de cotas. De acordo com Machado (2013, p. 25), “a
importância da UERJ, UNEB e UnB como referência para as universidades
estaduais e federais que adotaram as políticas de ação afirmativa foi positiva no que
se refere ao pioneirismo da implantação das leis de políticas de ações afirmativas”.
Temos, portanto, uma experiência de pouco mais de uma década que ainda
demanda estudos detalhados, ou como afirmam Verônica Daflon, João Feres Júnior
e Luiz Augusto Campos (2013, p. 304), um balanço sistemático das medidas
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 65

afirmativas no Brasil, pois com a aprovação da Lei 12711/12 que criou uma política
de reserva de vagas para todo o sistema de educação superior e ensino médio
federal, “a realidade das políticas de ação afirmativa no país tende a se alterar
significativamente. Isso torna ainda mais premente a tarefa de compreender o que
foi feito até agora”.
A tarefa de sumarizar para o público os aspectos procedimentais dessas políticas
tem sido deixada para a grande mídia. Esta, com seus critérios próprios de
noticiabilidade, produz representações fortemente enviesadas da realidade. Os
intelectuais públicos, por sua vez, com frequência se baseiam nessas
representações ao formularem crítica ou defesa das políticas de ação afirmativa.
Como resultado, boa parte do debate em torno dessas medidas no Brasil se trava
hoje em torno de problemas equívocos ou mesmo falsos. (DAFLON ET AL, 2013,
p.304).

Outra dificuldade apontada diz respeito ao caráter fragmentado das políticas


que vigoraram na educação superior brasileira. Até a aprovação da lei federal
12711/12, “a ação afirmativa se disseminou no país de forma heterogênea, a partir
de iniciativas locais, como leis estaduais e deliberações de conselhos universitários”
(DAFLON ET AL, 2013, p. 305).
Apesar da escassez desses estudos e das diferentes características das ações
afirmativas que estavam em vigor até a aprovação da lei federal mencionada, muitas
instituições de ensino superior no país adotaram as medidas afirmativas e a
relevância de tais políticas públicas já pode ser afirmada:
Essas políticas têm se revelado um significativo instrumento de democratização da
educação, particularmente das universidades brasileiras, instituições configuradas
por uma forte tradição elitista e monocultural. Os riscos de radicalismo, fortes
conflitos e diminuição da qualidade da formação universitária, explicitados pelos
principais críticos e opositores dessas políticas, não têm sido evidenciados. Pelo
contrário, o desempenho dos alunos cotistas tem se mostrado equivalente e, em
muitos casos, superior ao dos não-cotistas. As questões de discriminação e
preconceito não foram criadas por essas políticas. Elas colaboraram positivamente
para desvelar sua invisibilização e não reconhecimento, tanto no contexto do ensino
superior quanto da sociedade em geral. Essas políticas questionam o chamado
“mito da democracia racial”, ainda tão presente na sociedade brasileira (CANDAU,
2012a, p. 9).

Apesar dos dissensos que as políticas de ação afirmativa provocam, é


importante destacar que o Supremo Tribunal Federal aprovou o princípio
constitucional da ação afirmativa no dia 26 de abril de 2012. A presidenta Dilma
Rousseff sancionou a Lei 12711, de 29 de agosto de 2012, a chamada Lei das Cotas,
que dispõe sobre cotas sociais e raciais para ingresso nas universidades federais e
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 66

nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. De acordo com essa lei,
as instituições reservarão no mínimo 50% das matrículas por curso e turno, através
de concurso seletivo, nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de
educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio
público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos, inclusive em
cursos de educação profissional técnica. Os demais 50% das vagas permanecem
para ampla concorrência. O critério da raça será autodeclaratório e cada instituição
deverá preencher as cotas com autodeclarados pretos, pardos e indígenas na mesma
proporção em que esses segmentos são encontrados na unidade da federação em
que se localiza a instituição de acordo com o último censo do IBGE. A nova
legislação cria uma única política de ação afirmativa, já que, até o momento em que
a lei foi sancionada, as instituições de ensino usavam diferentes modelos para
garantir o acesso de grupos da população ao ensino superior:
A Lei Federal 12711/12 foi concebida para regular a implantação de políticas de
ação afirmativa nas universidades federais, que têm até 2015 para pensar políticas
de inclusão de egressos de escola pública e da população de diversidade étnica de
cada estado. Pode-se assim dizer que o acesso ao ensino superior brasileiro entra
em nova fase, com mudanças e desafios provenientes de uma política pública que
veio para intervir na estrutura atual, sempre para poucos e para jovens selecionados
majoritariamente nas melhores escolas particulares do país. É o momento, portanto,
de se pensar na combinação complexa da manutenção do mérito no acesso à
universidade, mas agora com a preocupação de uma universidade pública mais
democrática e mais inclusiva (PAIVA, 2013, p.41-42).

Em 2012, a Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Estado do


Rio de Janeiro (ALERJ) discutiu e votou dois projetos de lei que tratavam da reserva
de vagas nas unidades da Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC)21 e no
Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp/UERJ). Esses projetos
de lei foram sancionados pelo governador Sérgio Cabral, em 2013 e, a partir de
2014, essas instituições deveriam adotar políticas de ação afirmativa em seus
processos seletivos de ingresso a seus cursos. É importante esclarecer que a

21
Vinculada à Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, a FAETEC deu seus primeiros passos
em 10 de junho de 1997. Atualmente, a rede atende cerca de trezentos mil alunos por ano em mais
de cento e trinta unidades de ensino, que somam a oferta no Ensino Técnico de Nível Médio, na
Formação Inicial e Continuada/Qualificação Profissional e no Ensino Superior. Ao todo cinquenta
e uma cidades do estado contam com a presença da Fundação através da oportunidade em diversos
segmentos de ensino. A FAETEC é uma das mais importantes redes de Educação Pública e
Profissionalizante do Brasil. A Lei n. 6433/13 cria cotas nas escolas técnicas do Estado do Rio de
Janeiro. Serão 20% para estudantes egressos de escolas públicas que cursaram integralmente os
dois ciclos do Ensino Fundamental, 20% para preenchimento a partir de critérios raciais e 5%
para pessoas com algum tipo de deficiência, o que expande uma política do Estado.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 67

FAETEC é uma instituição que atende o ensino médio, enquanto o CAp/UERJ


oferece o ensino fundamental, primeiro e segundo segmentos, e o ensino médio. A
reserva de vagas para o colégio prevista na lei deveria contemplar os/as estudantes
ingressantes no 1º e no 6º anos do ensino fundamental. Tratarei no próximo capítulo
da Lei 6434/13 que instituiu o sistema de cotas na instituição pesquisada.

2.5
Alguns indicadores raciais e sociais: a realidade estatística

Nesse item apresentarei alguns dados de pesquisas governamentais


realizadas em nosso país – IPEA (2001), IBGE (2008, 2010, 2014) – sobre os
indicadores educacionais da população negra. Optei por trazer informações do
relatório “Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década
de 90”, realizado pelo (IPEA) no que se refere aos indicadores educacionais da
população negra por considerar que tal pesquisa tomou como referência uma década
de estudos sobre as condições de vida dos/as brasileiros/as. O relatório explicitou,
de maneira impactante, as desigualdades educacionais entre negros/as e brancos/as
no Brasil. É bem verdade que a escolaridade média da população adulta com mais
de vinte e cinco anos no final do século XX era de cerca de seis anos de estudo,
revelando um cenário desanimador. Porém, quando estes dados se referem aos/às
negros/as, em todos os níveis de ensino, são ainda mais alarmantes.
A escolaridade média de um jovem negro com 25 anos de idade gira em torno de
6,1 anos de estudo; um jovem branco da mesma idade tem cerca de 8,4 anos de
estudo. O diferencial é de 2,3 anos de estudo. A intensidade dessa discriminação
racial, expressa em termos da escolaridade formal dos jovens adultos brasileiros, é
extremamente alta, sobretudo, se lembrarmos que trata-se de 2,3 anos de diferença
em uma sociedade cuja escolaridade média dos adultos gira em torno de 6 anos. As
maiores diferenças absolutas em favor dos brancos encontra-se nos segmentos mais
avançados do ensino formal. Por exemplo, entre os jovens brancos de 18 a 23 anos,
63% não completaram o ensino secundário. Embora elevado, esse valor não se
compara aos 84% de jovens negros da mesma idade que ainda não concluíram o
ensino secundário. A realidade do ensino superior, apesar da pequena diferença
absoluta entre raças, é desoladora. Em 1999, 89% dos jovens brancos entre 18 e 25
anos não haviam ingressado na universidade. Os jovens negros nessa faixa de
idade, por sua vez, praticamente não dispõem do direito de acesso ao ensino
superior, na medida em que 98% deles não ingressaram na universidade
(HENRIQUES, 2001, p.27-31).

Para Ricardo Henriques (2001), o componente mais incômodo é a


intensidade e a durabilidade da discriminação entre brancos/as e negros/as no
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 68

tocante à educação: “Sabemos que a escolaridade média dos brancos e dos negros
tem aumentado de forma contínua ao longo do século XX. Contudo, um jovem
branco de 25 anos tem, em média, mais 2,3 anos de estudo que um jovem negro da
mesma idade, e essa intensidade da discriminação racial é a mesma vivida pelos
pais desses jovens; a mesma observada entre seus avós” (HENRIQUES, 2001,
p.27).
Como afirma Maria Aparecida da Silva (2002, p.118), os dados do IPEA
corroboram todo o saber empírico que os movimentos negros e os movimentos de
mulheres negras já produziram e comprovam que, “caso a educação brasileira
continue progredindo no mesmo ritmo de hoje, em treze anos pessoas brancas
devem alcançar a média de oito anos de estudos, mas as negras só atingirão a mesma
meta daqui a trinta e dois anos. Serão três gerações perdidas até que hipoteticamente
as condições de igualdade sejam construídas”.
Quanto ao baixo desempenho acadêmico dos/as candidatos/as negros/as à
universidade por meio de reserva de vagas, Silva (2002, p.118) argumenta que
afirmar que o nível acadêmico estaria comprometido por conta do acesso de pessoas
negras à universidade equivale “a sacralizar a infalibilidade do vestibular como
método de seleção. Entretanto, é corriqueira a reclamação docente de que o nível
de conhecimentos e a capacidade interpretativa dos/as alunos/as caem a cada ano.
Qual é, enfim, a qualidade acadêmica que a juventude, majoritariamente branca e
bem preparada para obter aprovação no vestibular, tem assegurado?”
Outros estudos também evidenciam a persistente desigualdade entre
brancos/as e negros/as no Brasil em diversos indicadores como: renda, educação,
saúde, trabalho, habitação, expectativa de vida, mortalidade infantil, entre outros.
Apresentarei alguns dados de três pesquisas realizadas pelo IBGE, focalizando mais
especificamente aqueles relacionados aos indicadores educacionais da população
brasileira e desagregados por cor ou raça. A opção pelos estudos de 2008, 2010 e
2014, se deve, respectivamente, ao fato de que o primeiro traz dados dos últimos
anos do século XX; o segundo revela informações da primeira década dos anos dois
mil após a adoção de diversas medidas governamentais que visavam à melhoria da
qualidade da educação no país, incluindo a implementação das políticas afirmativas
no ensino superior; o terceiro por ser o mais atualizado no momento em que esse
relatório de pesquisa estava sendo elaborado.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 69

A Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da


população brasileira 2008 realizada pelo IBGE destaca que nos últimos anos do
século XX o país apresentou melhorias nos indicadores educacionais no que se
refere ao acesso às redes de ensino proporcionando um aumento do fluxo de
crianças e jovens à escola22. Apesar disso, as avaliações internacionais indicam que
o nível médio do desempenho escolar de estudantes brasileiros está próximo ao de
vários países latino-americanos, mas abaixo dos níveis educacionais observados
para os países desenvolvidos.
A frequência à escola para crianças e adolescentes cresceu bastante entre
1997 a 2007, principalmente no período entre 2002 a 2007. No grupo de 0 a 6 anos
de idade, em 1997, o percentual dos que frequentavam escola era de 29,2%,
passando em 2002 para 36,5% e, em 2007, para 44,5%. Esse aumento pode
expressar as mudanças na duração do ensino fundamental de oito para nove anos,
desde a aprovação da Lei 11.274/2006, que estabelece a responsabilidade legal dos
pais e do Estado para fazer com que as crianças entre 6 e 14 anos frequentem o
ensino fundamental23. A implementação se deu a partir de 2007 e o período para
plena efetivação era até o final de 2010. Do conjunto de crianças de 7 a 14 anos de
idade que frequentam escola, 87% o fazem em estabelecimentos da rede pública de
ensino.
Outro dado que merece ser considerado, diz respeito à média de anos de
estudo da população de 10 a 17 anos de idade entre 1997 e 2007, que aumentou em
todas as idades. Porém, não atingiu o nível de quatro anos de estudos completos
para as crianças de 11 anos de idade que, de acordo com o sistema educacional,
deveriam ter, no mínimo, esta escolaridade. O mesmo ocorre com as crianças de 14
anos de idade que apresentaram apenas 5,8 anos de estudo, quando deveriam ter,
no mínimo, sete anos de estudo. Essa síntese de indicadores chama a atenção
também para a proporção de crianças entre 7 a 14 anos de idade que não sabem ler

22
A universalização da educação primária é uma meta a ser atingida até 2015 pelos países signatários
do acordo dos Objetivos do Milênio, incluindo o Brasil (IBGE, 2008, p. 44).
23
A PNAD 2007 levantou a informação sobre as pessoas que frequentam o curso de nove anos. Do
total de estudantes do ensino fundamental (32,8 milhões), aproximadamente 28,2% frequentavam
o curso com duração de nove anos. (IBGE, 2008, p. 48).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 70

e escrever e revela que, em 2007, o país contava com 8,4% das crianças nessa
condição24.
No conjunto da população brasileira de quinze anos ou mais de idade, a
escolaridade média, em 2007, ainda não havia alcançado um nível satisfatório, era
apenas de 7,3 anos de estudo. A pesquisa revela que houve um aumento nesta média
de 1,5 anos de estudo em relação a 1997, quando o valor encontrado era de 5,8 anos,
mas afirma que os ganhos na escolaridade média da população têm sido
indiscutivelmente lentos25.
Apesar dos avanços apontados pela pesquisa, o capítulo intitulado Cor ou
raça enfatiza que,
No ano de 2008, a data de 13 de maio permitiu lembrar os 120 anos transcorridos
desde a aprovação da Lei Áurea, como é conhecido o decreto que determinou o fim
da escravidão no Brasil. Mas apesar desse relativamente longo período, a
desigualdade material e simbólica da população composta pelos grupos étnico-
raciais subalternizados se manteve e a desvantagem em relação aos brancos no
usufruto de recursos e benefícios continua a afetar severamente metade da
população brasileira (IBGE, 2008, p.209).

Mais adiante, nesse mesmo capítulo podemos ler:


As análises incluídas na presente publicação contribuem para exibir o caráter
estrutural das desigualdades raciais no País, revelando a duplicidade da
configuração social brasileira nas suas clivagens social e racial26. Os grupos
raciais subalternizados, que na expressão das informações censitárias e de
pesquisas domiciliares cristalizaram-se nas categorias de cor ou raça preta, parda e
indígena, padecem de uma precária inserção social ao longo dos 120 anos. Esta
precária inserção social não é explicada pelo ponto de partida, mas pelas
oportunidades diferenciadas a eles oferecidas. Alguns indicadores analisados a
seguir não só apontam para a manutenção destas desigualdades como ainda
evidenciam o agravamento de algumas delas: tal é o caso da participação no ensino
superior, tanto na frequência como na conclusão deste nível de estudo (IBGE,
2008, p.210).

Os dados revelados continuam demonstrando diferenças significativas entre


brancos e pretos e pardos no que se refere aos índices educacionais: taxas de
analfabetismo funcional e frequência escolar, média de anos de estudo, taxas de
frequência a curso universitário, nível superior completo27. A taxa de frequência

24
Considerando as cinco regiões do país, a maior desigualdade estava presente nas regiões Norte
(12,1%) e Nordeste (15,3%). As demais regiões apresentam índices bem menores: Centro Oeste
(5,3%), Sudeste (4,2%) e Sul (3,6%) (IBGE, 2008, p. 49).
25
Pessoas de quinze anos ou mais de idade, analfabetas, de acordo com a distribuição percentual,
2007, por cor ou raça: branca – 31,2%, preta ou parda – 68,8%.
26
Grifos meus.
27
No item taxas de frequência a curso universitário, o estudo afirma que na comparação dos dados
para estudantes entre 18 e 25 anos de idade, os estudantes pretos e pardos não conseguiram
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 71

escolar das pessoas de 5 a 6 anos de idade por cor ou raça é a seguinte: branca –
87,8%; preta e parda – 84,5%. Essa mesma taxa para as pessoas de 7 a 14 anos de
idade é de 98,2% para brancos e de 97,1% para pretos e pardos.
As taxas de analfabetismo funcional e frequência escolar também revelam
diferenças significativas entre os níveis apresentados pela população branca e os da
população preta e parda que permanecem, persistentemente, menos favorecidos. Os
números absolutos de 2007 demonstram que dos mais de 14 milhões de analfabetos
brasileiros quase 9 milhões são pretos e pardos; evidenciando que para este setor da
população a diferença continua grave. Os números relativos também corroboram
esses dados: a taxa de analfabetismo da população branca é igual a 6,1% para as
pessoas de quinze anos ou mais de idade e de 14% para pretos e pardos, ou seja,
mais que o dobro que a de brancos.
A distribuição por cor ou raça da população que frequenta escola com idade
entre 15 e 24 anos é outro indicador que revela essas diferenças. Entre os estudantes
nessa faixa etária, cerca de 85,2% dos brancos estavam estudando, sendo que 58,7%
destes frequentavam o nível médio, adequado a esta faixa de idade. Já entre os
pretos e pardos, 79,8% frequentavam a escola, porém, apenas 39,4% estavam no
nível médio, representando uma taxa muito aquém da desejada. O indicador médio
de anos de estudo da população de 15 anos ou mais de idade continua “a apresentar
uma vantagem em torno de dois anos para brancos, com 8,1 anos de estudo, em
relação a pretos e pardos, com 6,3 anos de estudo, diferença que vem se mantendo
constante ao longo dos anos se comparada com as informações das anteriores
pesquisas” (IBGE, 2008, p.212).
A Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da
população brasileira de 2010, no que diz respeito à educação, em termos gerais,
afirma que o país alcançou nas últimas décadas um crescimento substantivo quanto

alcançar as taxas de frequência que os brancos apresentavam dez anos antes. Os números
mostram, ainda, que a diferença em favor dos brancos, em vez de diminuir, aumentou nesse
período: em 1997 era de 9,6 pontos percentuais aos 21 anos de idade, enquanto em 2007 esta
diferença salta para 15,8 pontos percentuais. O item nível superior completo também apresenta
diferenças entre a população branca e negra. Em 1997, 9,6% dos brancos havia concluído o ensino
superior, enquanto 2,2% dos pretos e pardos. Já em 2007, os números são 13,4% para brancos,
4,0% para pretos e pardos, demonstrando o gap entre esses grupos. O hiato entre os dois grupos
que era de 7,4 pontos percentuais em 1997, passa para 9,4 pontos percentuais em 2007, mostrando
que após uma década a composição racial das pessoas que completaram o nível superior
permanece inalterada, ou até mais inadequada, em termos de representação dos pretos e pardos,
continuando a se constituir como um obstáculo para a ascensão social destes (IBGE, 2008, p.211).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 72

o acesso à escola, especialmente em relação à educação infantil28. Dados da


Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2009) mostram que o grupo
de crianças de 0 a 5 anos de idade apresentava uma taxa de escolarização de 38,1%,
enquanto em 1999 essa proporção era de apenas 23,3%29. De acordo com essa
pesquisa, um importante aliado para o cumprimento das metas de universalização
das matrículas escolares na educação infantil e no ensino fundamental foi a
implementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica
e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), institucionalizado em
2007, que além de estimular o acesso das crianças à escola desde cedo, repassa
verbas para os municípios investirem nos segmentos do ensino fundamental, tendo
como prioridade imediata o crescimento do número de estabelecimentos e a
qualidade do ensino para atender a primeira infância.
Outro dado importante é que “na faixa etária de 6 a 14 anos, é possível dizer
que, desde meados da década de 1990, praticamente todas as crianças brasileiras já
estavam frequentando escola” (IBGE, 2010, p. 46). Essa afirmação permite afirmar
que o acesso à educação escolar no país, para essa faixa etária, encontra-se
universalizado. Vale ressaltar que foi somente a partir de 2007 que as crianças de 6
anos foram incorporadas ao ensino obrigatório, que anteriormente compreendia a
faixa dos 7 aos 14 anos de idade.
No que diz respeito à escolarização dos/as adolescentes de 15 a 17 anos no
nível médio esta não estava universalizada, mas havia apresentado melhora em
relação à década anterior, mas apenas cerca de metade deles/as estava no nível
adequado, em 2009, para sua faixa etária. Mudanças também puderam ser
comprovadas no que diz respeito ao decréscimo na frequência nos ensinos
fundamental e médio e no aumento na frequência do ensino superior. A taxa de
analfabetismo também diminuiu considerando o período entre 1999 e 2009,
passando de 13,3%, para 9,7% para o total da população, o que representa ainda um
contingente de 14,1 milhões de analfabetos. Apesar desses avanços, tanto a

28
O sistema brasileiro de ensino regular compreende a educação básica formada pela educação
infantil, pelos ensinos fundamental e médio, e pela educação superior. É de competência de o
governo federal atuar no ensino superior e prestar assistências técnica e financeira às esferas
estadual e municipal. Aos estados e Distrito Federal, cabem às responsabilidades da oferta dos
ensinos fundamental e médio, e, aos municípios, a oferta do ensino fundamental e a educação
infantil (IBGE, 2010, p. 45).
29
É importante observar que nas áreas rurais onde a oferta de estabelecimentos para este segmento
populacional é mais reduzida, o crescimento foi também bastante significativo, passando de
15,2% para 28,4%. (IBGE, 2010, p. 46)
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 73

população de cor preta quanto a de cor parda ainda têm o dobro da incidência de
analfabetismo observado na população branca: 13,3% dos pretos; 13,4% dos
pardos, contra 5,9% dos brancos. Outro indicador é o analfabetismo funcional: a
taxa diminuiu consideravelmente nos últimos dez anos, passando de 29,4%, em
1999, para 20,3% em 2009, porém, o analfabetismo funcional concerne mais
fortemente aos pretos (25,4%) e aos pardos (25,7%) do que aos brancos (15,0%)
(IBGE, 2010, p. 227).
Por outro lado, essa pesquisa assevera que no debate nacional sobre a
escolaridade da população brasileira, a questão da qualidade do conhecimento
adquirido nos últimos anos pela população infanto-juvenil, faixa correspondente à
educação básica, continua sendo uma constante. De acordo com essa síntese de
indicadores sociais, as evidências estatísticas revelam uma média muito baixa de
anos de estudo concluídos, especialmente se comparada a outros países dos mesmos
níveis de desenvolvimento econômico e social30.
Esse estudo ressalta que, “no Brasil da primeira década do século XXI,
destaca-se a mudança na distribuição da população, segmentada por cor ou raça, o
que confirma uma tendência já detectada”, pelos dados apresentados pela PNAD
2009, que “mostram um crescimento da proporção da população que se declara
preta ou parda nos últimos dez anos: respectivamente, 5,4% e 40,0% em 1999; e
6,9% e 44,2% em 2009”, e a hipótese aventada para explicar esse fenômeno seria
“uma recuperação da identidade racial, já comentada por diversos estudiosos do
tema” (IBGE, 2010, p. 226).
Apesar desse aspecto positivo, quando os indicadores desse estudo filtram
os dados relativos à cor ou raça, é possível perceber que, apesar dos avanços, as
diferenças entre brancos/as e negros/as permanecem e alertam:
Independentemente desse possível resgate da identidade racial por parte da
população de cor preta, parda ou de indígenas, a situação de desigualdade que
sofrem os grupos historicamente desfavorecidos subsiste. Uma série de indicadores
revelam essas diferenças, dentre os quais: analfabetismo; analfabetismo funcional;
acesso à educação; aspectos relacionados aos rendimentos; posição na ocupação; e
arranjos familiares com maior risco de vulnerabilidade. Em relação à equidade, o
hiato nos rendimentos e a apropriação de uma menor parcela do rendimento total
concernem particularmente às populações de cor preta ou parda (IBGE, 2010,
p.227).

30
Em 2009, o brasileiro de 15 anos ou mais de idade tinha, em média, 7,5 anos de estudo, ou seja,
não conseguiu concluir o ciclo fundamental obrigatório, direito adquirido constitucionalmente.
(IBGE, 2010, p. 48)
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 74

A média de anos de estudo, é outra forma de se avaliar o acesso à educação


e as consequentes oportunidades de mobilidade social, continua apontando que a
população branca, em 2009, tinha 8,4 anos de estudo, enquanto o grupo de pretos e
pardos 6,7 anos. A diferença saiu da casa dos dois anos, mas ainda está muito
próxima desse número: “Em 2009, os patamares são superiores aos de 1999 para
todos os grupos, mas o nível atingido tanto pela população de cor preta quanto pela
de cor parda, com relação aos anos de estudo, é atualmente inferior àquele
alcançado pelos brancos em 1999, que era, em média, 7,0 anos de estudos” (IBGE,
2010, p.227).
Esse estudo revela ainda que, além das diferenças educacionais, há também
fortes distinções nos rendimentos entre brancos, pretos e pardos:
Vê-se que as disparidades concernem a todos os níveis de idade. Faixa a faixa, os
rendimentos-hora de pretos e pardos são, pelo menos, 20% inferiores aos de
brancos e, no total, cerca de 40% menores. Comparando com a situação de dez
anos atrás, houve melhora concentrada na população com até quatro anos de
estudo, pois, em 1999, os rendimentos-hora de pretos e pardos com esse nível de
escolaridade representavam, respectivamente, 47,0% e 49,6% do rendimento-hora
de brancos, passando a 57,4% para os dois grupos em 2009 (IBGE, 2010, p. 229).

Fica evidenciado, portanto, que os indicadores educacionais estão


diretamente relacionados às oportunidades de emprego e ocupação no mercado de
trabalho31, bem como de mobilidade social, para as populações negra e branca.
A Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da
população brasileira 2014, na sua introdução, afirma que as políticas educacionais
adotadas no Brasil, na última década, tiveram continuidade e foram aprofundadas.
O estudo cita as melhorias observadas com a criação do FUNDEB; a
obrigatoriedade e ampliação do ensino fundamental de 8 para 9 anos; o Plano de
Desenvolvimento da Educação (PDE), do Ministério da Educação, que deu ênfase
ao ensino fundamental e definiu metas para a melhoria da qualidade a partir do
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB)32; a lei que tornou

31
A desigualdade entre brancos, pretos e pardos também se revela quando relacionado ao número
de pessoas que ocupam posições privilegiadas: “na categoria de empregadores, estão 6,1% dos
brancos, 1,7% dos pretos e 2,8% dos pardos. Ao mesmo tempo, pretos e pardos são, em maior
proporção, empregados sem carteira e representam a maioria dos empregados domésticos”.
(IBGE, 2010, p. 230)
32
A obrigatoriedade e ampliação do ensino fundamental ocorreu em 2006; o PDE, em 2007, e o
IDEB data de 2009. Este estudo também destaca a Emenda Constitucional 59, de 2009, que
ampliou progressivamente, a obrigatoriedade da educação básica para a faixa de 4 a 17 anos de
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 75

obrigatória a educação básica para a faixa de 4 a 17 anos de idade. Todas essas


medidas governamentais ou chamadas de universais tiveram como principal
objetivo a melhoria da qualidade da educação em nosso país.
O estudo afirma ainda que houve um crescimento substantivo do acesso à
educação infantil33; a taxa de frequência escolar bruta das pessoas de 6 a 14 anos
de idade permaneceu próxima da universalização. A proporção de pessoas de 4 e 5
anos de idade que frequentam estabelecimento de ensino revela que 83,9% da
população branca frequentava esse nível de ensino, enquanto 79,4% da população
preta ou parda o fazia. Essa mesma proporção em 2004 era de 63,9% para a
população branca; 59,1% para a população preta ou parda. Apesar dos avanços
apontados, muitos são os desafios que precisam ser enfrentados entre eles: a
proporção de jovens de 15 a 17 anos de idade que frequentava escola cresceu
somente 2,5 pontos percentuais, passando de 81,8% em 2004 para 84,3% em 2013;
é necessário universalizar o atendimento escolar dos alunos com deficiência,
transtornos de desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação,
preferencialmente na rede regular de ensino34.
Outro aspecto que poderia garantir a universalização da educação básica
refere-se ao aumento da frequência escolar no ensino médio. De acordo com o
estudo, a elevada frequência escolar bruta dos/as jovens entre 15 a 17 anos de idade
(84,3%) não significa que eles/as estavam frequentando o nível adequado à sua
faixa etária.
Os dados indicam que o atraso escolar no ensino médio reflete o nível de
permanência e sucesso dos/as estudantes na etapa de escolaridade anterior, ou seja,
no ensino fundamental. A média de anos de estudo do segmento etário de 10 a 14

idade até 2016. A Lei 12.796/13 oficializou essa mudança alterando o texto original da LDB de
1996. A educação básica passou a ser obrigatória para essa faixa etária e organizada em três
etapas: pré-escola (nível obrigatório da educação infantil), ensino fundamental e ensino médio. A
ampliação da educação básica para 4 anos de idade representa uma medida importante, porém, há
significativas desigualdades regionais de acesso a esse nível de ensino (IBGE, 2014, p. 101-102).
33
De 2004 a 2013, as taxas de escolarização das crianças de 0 a 3 anos e de 4 e 5 anos de idade
subiram de 13,4% e 61,5% para 23,2% e 81,4% respectivamente. (IBGE, 2014, p. 101)
34
Uma das deficiências que mais impacta o acesso à escola é a deficiência motora severa, isto é,
crianças com grande dificuldade ou que não conseguiam de modo algum andar ou subir degraus.
Observa-se melhorias regionais nesse aspecto no período 2000-2010, porém, os avanços não
foram suficientes para a universalização do atendimento escolar desse grupo. Adequação da
infraestrutura escolar às crianças com deficiência motora é essencial para viabilizar o acesso e
manutenção dessas crianças na escola. A partir do Censo Demográfico 2010 é possível observar
mudanças significativas no acesso à escola das crianças de 6 a 14 anos com deficiência motora
severa entre 2000 e 2010. Enquanto mais da metade dessas crianças estava fora da escola em
2000, cerca de um terço das mesmas não frequentava escola em 2010 (IBGE, 2014, p. 103).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 76

anos manteve-se a mesma em 2004 e 2013, na casa dos 2,5 anos, quando deveriam
ter, no mínimo, quatro anos de estudo35. Esse atraso vai se intensificando na medida
em que a idade aumenta. Entre 2004 e 2013 ocorreu um lento avanço na média de
anos de estudo na faixa etária de 12 a 14 anos de idade, momento em que esse
público estaria frequentando o segundo segmento do ensino fundamental36.
Ao investigar o perfil do grupo com distorção idade-série dos/as estudantes
que frequentavam o ensino fundamental regular com idade dois anos ou mais acima
da adequada para a série/ano que frequentam, observou-se que essa distorção
“atingia quase metade dos estudantes de 13 a 16 anos de idade em 2004 (47,1%) e
41,4% deles em 2013, totalizando cerca de 3,7 milhões de estudantes. A proporção
desses estudantes com atraso no ensino fundamental era mais elevada entre
estudantes da rede de ensino pública, homens, residentes em área rural e de cor
preta ou parda” (IBGE, 2014, p. 105). Levando em consideração a cor ou raça, esse
índice apresenta os seguintes números: brancos 34,5% em 2004, 30,9% em 2013;
entre pretos e pardos 56,8% em 2004, e 47,7% em 2013, o que mais uma vez
comprova a estreita relação entre desigualdades educacionais e raciais no contexto
brasileiro, mostrando, inclusive, que a população preta e parda não atinge,
atualmente, os índices da população branca de uma década atrás.
O Brasil vem alcançando as metas estabelecidas em todas as etapas do ensino
básico – anos iniciais e finais do ensino fundamental e médio. Entretanto, os
resultados de 2013 indicam que, apesar das melhoras no fluxo escolar, o
desempenho no ensino médio não melhorou conforme planejado em nenhuma das
dependências administrativas – estabelecimentos da rede pública de ensino
estadual e municipal e aqueles pertencentes à rede particular. (IBGE, 2014, p. 107)

A realidade educacional brasileira apresenta também outro indicador


importante, a evolução da taxa de analfabetismo entre as pessoas de 15 anos ou
mais. De acordo com a pesquisa, houve uma queda de 3,0 pontos percentuais nessa
taxa nos nove anos analisados, reduzindo a proporção de pessoas que não sabiam
ler nem escrever de 11,5% em 2004, para 8,5% em 2013. A maior taxa de incidência
de analfabetismo37 ocorre entre homens (8,8%), entre os de cor preta ou parda
(11,5%), e entre aqueles com idade acima dos 65 anos (27,7%).

35
A variável anos de estudo está adaptada ao ensino fundamental de 8 anos. (IBGE, 2014, p. 105)
36
Em 2004 as pessoas com 12 anos de idade apresentavam média de atraso escolar de 4,1 anos,
passando para 4,2 em 2013; as de 13 anos 4,9 para 5,0 e as de 14 anos de 5,7 para 6,0
respectivamente. (IBGE, 2014, p. 105)
37
Taxa de analfabetismo das pessoas de 15anos ou mais de idade (2013): branca 7,2%, em 2004,
5,2%, em 2013; preta ou parda 16,3%, em 2004, e 11,5%, em 2013 (IBGE, 2014, p. 123).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 77

As pesquisas aqui mencionadas apontam os problemas estruturais de ordem


socioeconômica de nossa sociedade, mas também revelam que as desigualdades
raciais, especialmente aquelas relativas ao sistema educacional, possuem um
distanciamento ainda mais intenso. Tomando a pesquisa realizada pelo IPEA que
apresentava dados da década de noventa e as três desenvolvidas pelo IBGE, sendo
a de 2014 um levantamento da primeira década dos anos dois mil, posso afirmar
que as diferenças entre as populações branca e negra (pretos e pardos) no que diz
respeito aos anos de estudo permanecem, praticamente, inalteradas. Se, em 2001,
essa diferença era de 2,3 anos, nas pesquisas de 2008 e 2010 o número caiu para
1,7 anos dando a impressão de uma queda significativa porque não ultrapassava a
casa dos dois anos. Porém, os dados de 2014 registram que essa diferença é de 1,8
anos demonstrando, desse modo, aquilo que Henriques (2001, p.27) afirmava no
início dos anos dois mil: “o componente mais incômodo é a intensidade e a
durabilidade da discriminação entre brancos e negros no tocante à educação”. As
situações vivenciadas pela população negra denotam circunstâncias de
discriminação racial, visto que, em nosso país a origem social e o pertencimento
racial são fatores interdependentes que continuam impedindo a mobilidade social
dos negros e negras. Portanto, esses resultados explicitam, segundo a argumentação
aqui assumida, a necessidade da adoção de políticas de ação afirmativa para a
população negra uma vez que as oportunidades educacionais não são equânimes.

2.6
Educação antirracista e a Lei 10.639/03

Os estudos sobre educação e relações etnicorraciais alcançaram mais


visibilidade a partir dos anos dois mil e os impactos podem ser percebidos na
produção acadêmica. No entanto, essa não é uma questão recente no campo
educacional, como ressalta Eliane Cavalleiro (2012, p. 9): “A discussão das
relações étnicas em território brasileiro é uma questão antiga, complexa e,
sobretudo, polêmica. Porém, trata-se de uma discussão necessária para a promoção
de uma educação igualitária e compromissada com o desenvolvimento do futuro
cidadão”.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 78

Mesmo a lei abolicionista que libertou os escravos africanos não possibilitou


a cidadania para a massa de antigos escravos e de seus descendentes. Essa
população foi segregada social e economicamente no período pós-abolição. A
ideologia da democracia racial continua sendo um elemento complicador da
situação do/a negro/a:
Essa ideologia, embora se tenha fundamentado nos primórdios da colonização e
tenha servido para proporcionar a toda sociedade brasileira o orgulho de ser vista
no mundo inteiro como sociedade pacífica, persiste fortemente na atualidade,
mantendo os conflitos étnicos fora do palco das discussões. Embora ainda exerça
muita influência na sociedade, pouco contribui para melhorar concretamente a
situação dos negros (CAVALLEIRO, 2012, p.29).

No que diz respeito à educação, a situação também se mostra desvantajosa


para a população negra, como ficou evidenciado no item anterior. A temática das
relações raciais adquiriu maior visibilidade no campo educacional desde as décadas
de 80 e 90 com a atuação de diversos movimentos negros que reivindicavam
reconhecimento e valorização efetivos das suas respectivas identidades culturais,
suas particularidades e contribuições específicas à construção do tecido social
brasileiro. De lá para cá, questões relativas à diferença, reconhecimento de
diferentes grupos culturais, construção de identidades raciais, pertencimento racial,
preconceito e discriminação têm ocupado uma posição central nos debates
educacionais.
Juarez Dayrell (1996) enfatiza o caráter polissêmico da escola ao afirmar
que não podemos considerá-la como um dado universal, com um sentido único.
Aponta para os significados dados por estudantes e professores/as para o tempo, o
espaço e as relações, dependendo da cultura a que os diferentes grupos pertenciam.
Propõe uma análise da escola como espaço sociocultural constituído por sujeitos
que pertencem a grupos socioculturais, de gênero, étnicos, diferenciados, que dão a
esta instituição um caráter heterogêneo, plural.
A escola cumpre a sua função social e política não somente na escolha da
metodologia eficaz para a transmissão dos conhecimentos historicamente
acumulados ou no preparo das novas gerações para serem inseridos no mercado de
trabalho e/ou serem aprovados no vestibular. (...) a escola possui a vantagem de ser
uma das instituições sociais em que é possível o encontro das diferentes presenças.
Ela é também um espaço sociocultural marcado por símbolos, rituais, crenças,
culturas e valores diversos. Essas possibilidades do espaço educativo escolar
precisam ser vistas na sua riqueza, no seu fascínio (GOMES, 1999, p.2-3).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 79

Seguindo essa perspectiva, a diretriz curricular proposta pelos Parâmetros


Curriculares Nacionais (PCN) em 1997, com o tema transversal “Pluralidade
Cultural” elucidava questões relativas à diversidade cultural e étnica e a importância
do tema no âmbito escolar. Outra ação do governo federal se deu no início dos anos
dois mil, quando foi estabelecida a obrigatoriedade do ensino de História da África
e dos Africanos, da Luta dos Negros no Brasil e da Cultura Brasileira no Ensino
Básico ao sancionar a Lei 10.639/0338.
De acordo com Carlos Serrano e Maurício Waldman (2008, p.17), essa lei
cita “explicitamente as disciplinas de História, Educação Artística e Literatura
como vetores dos conteúdos a serem ministrados. Também determina o
entendimento do dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra no
calendário escolar”. Apontam que os/as educadores/as desconhecem o fato de que
essa legislação está vinculada a uma segunda lei, bem mais detalhada, o Decreto
4.886/03 que estabelece a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial
(PNPIR)39. Ressaltam ainda que, nesses dois instrumentos jurídicos, a questão do
destaque efetivo da pluralidade racial brasileira no processo educativo está
explicitamente referendada enquanto prioridade centrada especialmente na
população negra do Brasil (SERRANO & WALDMAN, 2008, p.17).
Essas leis, assim como a elaboração dos PCN, no final dos anos 90
provocaram reações de diversos tipos, angariando manifestações de apoio e também
protestos no meio educacional contrários à sua aplicação. Segundo Serrano e
Waldman (2008, p.18), uma das objeções considerava a Lei 10.639/03
desnecessária e de “índole autoritária”, uma vez que a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação aprovada em 1996 já afirmava que “o ensino no Brasil deveria levar em

38
Sobre a implementação da Lei 10639/03, Claudia Miranda, Mônica Lins e Ricardo Cesar da Costa
(2012), observam que: “O longo caminho de reafirmação de reivindicações dos movimentos
negros deu origem à Lei 10.639/2003, um projeto de lei apresentado em 11 de março de 1999
pelos deputados federais Ester Grossi (educadora) e por Ben-Hur Ferreira (oriundo do movimento
negro), ambos do PT. A lei, de início, trouxe consigo uma intensa polêmica: para alguns,
significava uma imposição de conteúdos, para outros, uma concessão. Porém, com a realização
de diversos fóruns estaduais e nacionais promovidos pelo MEC e o empenho de diversos
educadores e dos movimentos negros, os debates sobre o ensino da História da África e dos negros
no Brasil nos currículos escolares vêm conquistando espaços significativos como parte da luta
antirracista na sociedade brasileira” (MIRANDA ET AL, 2012, p. 13).
39
Em 20 de novembro de 2003, o então presidente Lula, instituiu a Política Nacional de Promoção
da Igualdade Racial, com o principal objetivo de promover a redução das desigualdades raciais
no Brasil, com ênfase na população negra, mediante a realização de ações exequíveis a longo,
médio e curto prazos, com reconhecimento das demandas mais imediatas, bem como das áreas de
atuação prioritária. – www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/D4886.htm -
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 80

conta as contribuições das diferentes etnias quanto à formação do povo brasileiro,


suas matrizes indígena, africana e europeia”.
Outros argumentos contrários afirmavam que a legislação seria até mesmo
racista por, supostamente,
privilegiar um setor específico do mosaico étnico brasileiro em detrimento dos
demais. Implicitamente, essa lei estaria reapresentando o surrado conceito de
“raças humanas”, que não possui base científica pelo simples motivo de que existe
apenas uma única raça: humana. Nesse sentido, a lei poderia ensejar reações de
outros grupos, constrangidos por estarem pouco representados nos currículos
(SERRANO & WALDMAN, 2008, p.18).

Em defesa dessa legislação, os autores recorrem ao argumento da professora


Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, conselheira do Conselho Nacional de
Educação (CNE) e primeira negra a ocupar um cargo nesse órgão, que contra-
argumentou dizendo que:
A lei é fundamental por contribuir para melhorar o conhecimento a respeito da
história dos negros. Isso tanto por parte dos alunos quanto dos próprios professores.
A lei auxiliaria a tratar os negros positivamente, até porque são comuns livros e
escolas que abordam a história do negro de forma simplificada ou até ridicularizada
(SERRANO & WALDMAN, 2008, p.19).

Outro argumento favorável e enumerado lembra que embora a LDB tenha


explicitado a inclusão da historicidade afro-brasileira como conteúdo pedagógico
isso não aconteceu, segundo esses autores. A Lei 10639/03 estaria dando mais
substância a um parecer pedagógico já existente (SERRANO & WALDMAN,
2008, p.19).
A ideia de que uma determinada etnia estaria sendo privilegiada também
não se sustenta, uma vez que os/as negros/as constituem maioria demográfica, mas
estão sub-representados na maior parte das esferas da vida social brasileira. “Essa
ausência de representatividade obviamente repercute no sistema de ensino, que
desqualifica ou simplesmente se cala a respeito da história e da cultura negro-
africana” (SERRANO & WALDMAN, 2008, p.19).
Em síntese, a lei 10.639/03 colocou aos/às profissionais de educação e às
instituições de ensino das redes pública e privada o desafio de redimensionar suas
propostas educativas e aplicar essa legislação.
De acordo com Gomes (2011), os educadores e educadoras das escolas
públicas e privadas brasileiras deveriam ter mais conhecimento do percurso de
normatização decorrente da aprovação da lei porque esse momento:
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 81

Se insere em um processo de luta pela superação do racismo na sociedade brasileira


e tem como protagonista o Movimento Negro e os demais grupos e organizações
partícipes da luta antirracista. Revela também uma inflexão na postura do Estado,
ao pôr em prática iniciativas e práticas de ações afirmativas na educação básica
brasileira, entendida como uma forma de correção de desigualdades históricas que
incidem sobre a população negra em nosso país. (GOMES, 2011, p. 1)

A produção do conhecimento teve e ainda tem grande interferência na


construção de representações sobre o/a negro/a brasileiro/a no que diz respeito às
relações de poder existentes na sociedade, portanto, ao sancionar essa legislação o
governo estaria favorecendo “uma mudança, não só nas práticas e nas políticas, mas
também no imaginário pedagógico e na sua relação com o diverso, aqui, neste caso,
representado pelo segmento negro da população” (GOMES, 2011, p. 1).
Por essa razão e nesse contexto, Gomes (2011, p.1) considera a referida lei
como uma medida de ação afirmativa:
As ações afirmativas são políticas, projetos e práticas públicas e privadas que visam
à superação de desigualdades que atingem historicamente determinados grupos
sociais, a saber: negros, mulheres, homossexuais, indígenas, pessoas com
deficiência, entre outros. É importante desmistificar a ideia de que tais políticas só
podem ser implementadas por meio da política de cotas e que, na educação,
somente o ensino superior é passível de ações afirmativas. Tais políticas possuem
caráter mais amplo, denso e profundo. Ao considerar essa dimensão, a Lei
10639/03 pode ser interpretada como uma medida de ação afirmativa, uma vez que
tem como objetivo afirmar o direito à diversidade étnico-racial na educação
escolar, romper com o silenciamento sobre a realidade africana e afro-brasileira
nos currículos e práticas escolares e afirmar a história, a memória e a identidade de
crianças, adolescentes, jovens e adultos negros na educação básica e de seus
familiares. Ao introduzir a discussão sistemática das relações étnico-raciais e da
história e cultura africanas e afro-brasileiras, essa legislação impulsiona mudanças
significativas na escola básica brasileira articulando o respeito e o reconhecimento
à diversidade étnico-racial com a qualidade social da educação. Ela altera uma lei
nacional e universal, a Lei 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDB – incluindo e explicitando nesta que o cumprimento da educação
enquanto direito social passa necessariamente pelo atendimento democrático da
diversidade étnico-racial e por um posicionamento político de superação do
racismo e das desigualdades raciais.

Concordando com a autora, assumo a polêmica existente para alguns autores


e autoras de que a lei 10639/03 não poderia ser considerada uma medida de ação
afirmativa e a compreendo como a principal iniciativa afirmativa para a educação
básica por se tratar, como ainda ressalta Gomes (2011, p. 1), de uma “importante
alteração da LDB, por isso, o seu cumprimento é obrigatório para todas as escolas
e sistemas de ensino. Estamos falando, portanto, não de uma lei específica, mas,
sim, de legislação que rege toda a educação nacional”, ou seja, não está direcionada
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 82

somente aos negros e negras, mas a toda sociedade brasileira apesar de recair sobre
um segmento populacional e etnicorracial específico que foi historicamente
marginalizado e ainda enfrenta, como apresentado nas pesquisas aqui mencionadas,
desigualdades educacionais com relação à população branca. É importante ressaltar
que, essa lei foi regulamentada pelo Parecer do Conselho Nacional de Educação
(CNE) Conselho Pleno (CP 03/2004) e pela Resolução CNE/CP 01/2004, sendo
novamente alterada pela lei 11645/08 com a inclusão da temática indígena (Gomes,
2012).
Valter Silvério e Cristina Trinidad (2012), também avaliam que a alteração
da LDB pela lei 10639/03, pode ser considerada um novo marco na história da
educação do país porque além da obrigatoriedade do ensino de história e cultura
afro-brasileira e africana em toda a educação básica, a legislação abre “novas
possibilidades de interpretação das contribuições das culturas africanas na
constituição de nossa brasilidade para além do trabalho escravo e da invisibilidade
proporcionada pelo mito da democracia racial. Não se trata de negar a hibridação
cultural, mas de reconhecê-la a partir de suas diversas matrizes presentes nas
narrativas de construção da nação” (SILVÉRIO & TRINIDAD, 2012, p. 893).
Nesta perspectiva, Ana Lúcia Valente (2005) narrou e analisou uma
proposta metodológica de combate ao racismo na educação básica, especificamente
na educação infantil, considerada pela autora uma ação afirmativa, desenvolvida
com resultados positivos em escolas de Campo Grande (MS) e Belo Horizonte
(MG), a partir do que considera um desafio lançado pela implementação da lei
10639/03. Não se trata de uma medida afirmativa de acesso, mas de uma proposta
curricular de enfrentamento do preconceito e da discriminação raciais. De acordo
com essa autora, as crianças negras enfrentam dificuldades no sistema escolar,
portanto, é necessário que sejam “encontrados mecanismos de combate ao
preconceito e discriminação raciais ao nível da socialização primária e secundária,
ou seja, na família e na escola” (VALENTE, 2005, p.62).
Valente (2005, p. 63-64) ressalta a importância da legislação, porém,
considera que propostas metodológicas possam interferir no processo de
desenvolvimento de crianças brancas e negras:
Embora a coibição de manifestações de racismo seja imprescindível no plano legal,
conquistas e avanços alcançados nessa direção não bastam para transformar as
concepções arraigadas no imaginário da população brasileira. Em razão disso,
muitos estudiosos das relações interétnicas e militantes de grupos negros
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 83

organizados no país têm apontado para a necessidade de se dar maior atenção ao


processo educativo que se desenvolve em várias instâncias da convivência humana.
É no transcorrer desse processo que se cristalizam concepções falsas sobre os
negros – também internalizadas pelo grupo étnico, dificultando a construção de
uma identidade positiva, capaz de contrapor-se às concepções negativas elaboradas
historicamente pelos grupos brancos dominantes.

Outros aspectos enfatizados por Valente (2005) foram: refletir sobre as


políticas governamentais de caráter universal e as de cunho específico nos
diferentes níveis de ensino; argumentar que a maior ou menor eficácia de políticas
de ação afirmativa para os negros está inversamente relacionada ao nível de ensino,
isto é, quanto antes o racismo, a discriminação e o preconceito forem enfrentados,
melhores serão o resultados educacionais.
Elenquei os argumentos de Valente (2005) por acreditar que, o “trato
pedagógico da diversidade”, como enfatiza Gomes (1999, p.3), é um desafio que
está posto para professores e professoras que se preocupam com um fazer cotidiano
que leve em conta às diferenças presentes na sala de aula desde a educação básica
para que as ações afirmativas possam ser exitosas, perspectiva que continuarei a
tratar no próximo item.
Consciente de que a Lei 10639/03 é um instrumento legal que orienta as
instituições educacionais, mas que sua adoção não havia se universalizado nos
sistemas de ensino, o Ministério da Educação (MEC) em parceria com a
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO),
o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), a União Nacional dos
Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), intelectuais, movimentos sociais e
organizações da sociedade civil lançou, em 2008, o Plano Nacional de
Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
Africana, com “objetivo central de colaborar para que todo o sistema de ensino e as
instituições educacionais cumpram as determinações legais com vistas a enfrentar
todas as formas de preconceito, racismo e discriminação para garantir o direito de
aprender e a equidade educacional a fim de promover uma sociedade mais justa e
solidária” (MEC, 2008, p. 27).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 84

O Plano Nacional tem como base estruturante os seis Eixos Estratégicos40


propostos no documento “Contribuições para a Implementação da Lei 10639/03”,
a saber: (i) fortalecimento do marco legal; (ii) política de formação para gestores e
profissionais de educação; (iii) política de material didático e paradidático; (iv)
gestão democrática e mecanismos de participação social; (v) avaliação e
monitoramento e (vi) condições institucionais. O documento enfatiza que seja dada
especial atenção à formação de professores e a produção de material didático, entre
outras ações, que possam prover as escolas de condições adequadas à educação para
as relações etnicorraciais. Nesse sentido, o Plano Nacional é entendido como uma
“proposta estruturante para a implementação da temática” (MEC, 2008, p.33), as
ações propostas devem abranger, os entes federativos (municípios, estados, União
e Distrito Federal), os sistemas educacionais e instituições envolvidas41.
Caberia levantar alguns questionamentos: porque a adoção da Lei 10639/03
não foi universalizada nos sistemas de ensino e nas Secretarias de Educação do
país? Haveria alguma resistência para tratar da temática etnicorracial nas escolas?
Refletindo sobre o Plano Nacional, mas, tratando, especificamente, da
formação dos/as profissionais da educação prevista em um dos eixos estratégicos
desse documento, Iolanda de Oliveira (2009) afirma que:
Vários fatores contribuem para manter a situação de desigualdade racial constatada
no interior do sistema escolar, mas sabe-se também que a atuação profissional
docente na relação professor/aluno é se não o mais importante, o fator mais
decisivo na desconstrução de uma educação racializada. Uma educação para a
diversidade racial brasileira não pode, sem dúvida, prescindir do respaldo legal,
mas a legislação só se concretiza no espaço escolar em uma dinâmica curricular e
de sala de aula que privilegie uma educação antirracista com conteúdo antirracista
(OLIVEIRA, 2009, p. 204).

40
O Plano Nacional foi construído a partir da consulta e contribuição popular em 06 (seis) agendas
de trabalho conhecidas como Diálogos Regionais sobre a Implementação da Lei 10.639/03,
realizados nas 5 (cinco) Regiões do Brasil, sendo duas no Nordeste. As cidades que sediaram os
Diálogos foram: Belém/PA; Cuiabá/MT; Vitória/ES; Curitiba/PR; São Luís/MA e Aracaju/SE. O
resultado consubstanciou-se no documento Contribuições para a Implementação da Lei
10.639/2003: Proposta de Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais da Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana – Lei 10.639/2003, entregue ao Ministro da Educação por representantes do
GTI, em 20 de novembro de 2008. O documento das Contribuições é basilar na construção desse
plano, pois norteou os eixos temáticos que orientaram todas as discussões dos Diálogos Regionais,
e aqui estão também orientando ações e metas (MEC, 2008, p.25).
41
O documento apresenta uma lista de atribuições e ações para os sistemas de ensino brasileiros,
públicos e privados, municípios, estados, União, Distrito Federal, em todos os níveis: educação
infantil, ensino fundamental e médio, educação superior, educação de jovens e adultos, educação
tecnológica e formação profissional. Essas atribuições e ações se estendem aos Conselhos de
Educação, Coordenações Pedagógicas, Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (NEABs) e Grupos
Correlatos, além da educação em áreas remanescentes de quilombos.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 85

As discussões sobre o processo de implementação do Plano Nacional foi o


tema de um debate realizado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAr) em
parceria com outras instituições42 em março de 2010, contou com a participação de
53 profissionais entre professores/as, pesquisadores/as, ativistas e integrantes de
grupos governamentais e não governamentais, que trabalham pela superação da
discriminação racial na educação e na sociedade.
Por meio da aprovação da Lei 13005 de 25 de junho de 2014, foi instituído
o Plano Nacional de Educação (PNE), com previsão de vigência de uma década.
Luiz Fernandes de Oliveira e Fabiana Ferreira de Lima (2015) discutem as
intersecções entre as diretrizes, metas e estratégias estabelecidas no PNE43 e a Lei
10639/03. As diretrizes analisadas têm como foco as discussões relativas à
educação das relações etnicorraciais. Oliveira e Lima (2015) consideram que a
implementação do Plano Nacional de Educação pode ser um instrumento
fortalecedor de bases legais, especialmente da Lei 10639/03, na luta por uma
educação antirracista e apresentam dados que apontam para a necessidade de
mudança das grades curriculares de cursos de formação inicial dos/as docentes para
a educação básica para que esta lei possa ser universalizada nos sistemas de ensino
como determina o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-brasileira e Africana.
A interlocução entre educação e “raça” a qual se relaciona com a busca de uma
educação mais equitativa, que tem como pressuposto a extinção das desigualdades
educacionais proporcionadas pela articulação de má distribuição da riqueza
econômica e não reconhecimento adequado de grupos sociais partícipes de nossa
formação social; a mudança na forma de atuação do Estado pressionado pela ação
política do movimento negro brasileiro que, desde seu ressurgimento em 1978,

42
Esse encontro foi organizado por um coletivo de instituições que participaram da elaboração do
Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (Plano
Nacional da Lei 10639/03) e que valorizam e apoiam a participação da sociedade civil nos
processos de planejamento, execução, avaliação e controle social das políticas públicas de
educação. O encontro contou com a participação da UFSCAr/NEAB, Ação Educativa, UNESCO,
Ceert e Ceafro, sendo apoiado pelo Instituto C&A e Save the Children UK. Cf. Relatório
Executivo – O papel da sociedade civil na implementação do Plano Nacional da Lei n. 10639 –
rumo a uma agenda de ação política articulada, São Carlos, 17 e 18 de março de 2010, p. 3.
43
Fernandes e Lima (2015) analisam o Artigo 2º do PNE considerando três itens: no III “aponta-se
como uma das diretrizes do PNE a superação das desigualdades educacionais com ênfase na
promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação; no IV aponta como
diretriz também a promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do país; no X a
promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade
socioambiental” (FERNANDES & LIMA, 2015, p. 2).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 86

denunciava a discriminação racial e o racismo e, ao mesmo tempo, clamava por


educação pública de qualidade (SILVÉRIO & TRINIDAD, 2012, p. 893).

Silvério e Trinidad (2012, p. 893-894) destacam duas dimensões no debate


educacional contemporâneo: a primeira traz no núcleo dos debates, nas últimas
décadas, a questão dos conteúdos curriculares, a formação de professores/as e as
condições estruturais da educação básica pública no Brasil. Já a segunda, desde a
última década do século anterior, ressalta a centralidade que a educação escolar
adquire para o desenvolvimento nacional, “transformando essa política pública no
principal instrumento de inclusão social tanto na perspectiva de vários movimentos
sociais, quanto no discurso das autoridades estatais em seus diferentes níveis”.
O debate sobre a questão dos conteúdos curriculares conquistou, depois de
um longo processo histórico e político, outro lugar na cena pública após a alteração
feita na LDB por meio da Lei 10639/0344 e muitas propostas pedagógicas foram
desenvolvidas a partir da aprovação dessa lei. Essa legislação propôs novas
abordagens interpretativas sobre a identidade nacional e recomendou a ampliação
do foco dos currículos.
Deve-se deixar claro de que não se trata da substituição de um ‘foco eurocêntrico’
por um ‘afrocêntrico’. Na verdade, essa nova abordagem associa a ideia de nação
democrática com o reconhecimento da diferença racial e tenta estabelecer uma
perspectiva de relações interculturais nos processos educacionais, na medida em
que declara que a educação das relações etnicorraciais impõe aprendizagens entre
brancos e negros como trocas de conhecimentos para a construção de uma
sociedade justa, igual e equânime. Os sujeitos para esta tarefa, segundo a legislação
e os agentes do Estado, são os docentes. Estes devem incorporar uma perspectiva
de reconhecimento das diferenças e das desigualdades raciais presentes na história
brasileira, adotando práticas de valorização da luta antirracista e desconstruindo o
mito da ‘democracia racial’ (MIRANDA ET AL., 2012, p. 14).

44
Na coletânea organizada por Miranda, Lins e Costa (2012), algumas propostas pedagógicas foram
apresentadas. São elas: o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Rio de Janeiro
(IFRJ), desde 2008, tem se destacado como uma das instituições que tem promovido experiências
exitosas em termos de práticas pedagógicas sobre as relações etnicorraciais. O campus São
Gonçalo do IFRJ organizou, em 2009, o Curso de Extensão “Brasil e África em Sala de Aula”,
voltado principalmente para a qualificação e a atualização de professores/as da educação básica,
mas aberto também à participação de estudantes de licenciatura e de militantes de movimentos
sociais e da comunidade em geral. Como desdobramento desse curso teve início em fevereiro de
2011 a primeira turma da Pós-Graduação Lato Sensu “Especialização em Ensino de Histórias e
Culturas Africanas e Afro-Brasileira. No campus São Gonçalo do IFRJ também foi organizado o
Grupo de Pesquisa em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-Brasileira e criado,
também no início de 2011, o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros. Outra experiência a ser
destacada é a da Fundação de Apoio às Escolas Técnicas do Estado do Rio de Janeiro (FAETEC)
que em agosto de 2007 instituiu na sua rede de ensino o Núcleo de Estudos Étnico-Raciais e Ações
Afirmativas (Neera). Outras experiências citadas são aquelas vivenciadas no Instituto de
Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp/UERJ), especialmente as atuações de docentes
dos anos iniciais (1º ao 5º) do ensino fundamental.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 87

Nesse sentido, para Claudia Miranda, Mônica Lins e Ricardo Costa (2012,
p.15), um dos aspectos mais relevantes dessa abordagem diz respeito “à necessidade
de se incorporar uma nova perspectiva historiográfica que considere os africanos e
seus descendentes no Brasil como sujeitos históricos, em oposição ao estabelecido
por longos anos de formação histórica e historiográfica”.
Um dos desafios teóricos para a implementação da Lei 10639/03 diz respeito
ao que Claudia Miranda e Rogério de Souza (2012, p.29) ressaltam:
Nesta primeira década do século XXI, viradas conceituais se tornam indispensáveis
aos temas de currículo e das propostas de pedagogias alternativas para transmissão
cultural. Em tempos de implementação de políticas diferencialistas, de debates
intensos sobre pedagogias ‘outras’ e de proposições voltadas para a valorização da
diversidade cultural, é urgente o retorno ao questionamento sobre a missão da
escola como instância formadora apoiada na perspectiva político-pedagógica.

Problematizam a transmissão dos currículos de história e defendem a


ampliação “não apenas das referências aos acontecimentos históricos e a presença
dos grupos que compõem a Diáspora Africana no Brasil” e afirmam que os espaços
de transmissão cultural precisam ser reinventados. Nesse sentido, entendem que os
espaços de formação podem ser ampliados, “que a cidade pode ser o ponto de
partida para outras pedagogias dando suporte às instituições escolares”
(MIRANDA & SOUZA, 2012, p. 31-32).
A ideia de expansão dos espaços educativos assumida por Miranda e Souza
(2012, p. 35) tem como pressuposto a maior participação dos segmentos
historicamente deixados à margem, sobretudo, da educação escolarizada.
Refletindo sobre o papel do conhecimento selecionado como referência para uma
dada sociedade faz o seguinte questionamento: “considerando a colonização como
um fato social total, podemos arriscar afirmar o quanto faz sentido a luta por
garantir espaço para narrativas historicamente excluídas as propostas oficiais de
currículo. Qual seria a história do Brasil silenciada no processo de invenção do
currículo desta disciplina [História] escolar?”
Assumem a perspectiva da Pedagogia Decolonial45 como uma possibilidade
de enfrentamento do racismo, da desigualdade, da injustiça social, do preconceito,

45
Miranda e Souza (2012) compreendem a Pedagogia Decolonial a partir da proposta de Catherine
Walsh (2008): “entendemos a Pedagogia Decolonial como uma possibilidade de por em cena o
racismo, a desigualdade e a injustiça racializada bem como a oportunidade de vislumbrarmos
práticas voltadas à transformação. Apostar em uma Pedagogia Decolonial pode ser, por exemplo,
abrir mão de currículos eurodirigidos criando alternativas para enfrentarmos as múltiplas
identidades que nos constituem” (MIRANDA & SOUZA, 2012, p. 35).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 88

da discriminação e do deslocamento do lugar dos/as negros/as na história da


formação do país: “os desafios da descolonização dos referenciais historicamente
selecionados na abordagem sobre as identidades brasileiras nos alertam para a
urgência de criação de subsídios que auxiliem outras práticas pedagógicas no
processo ensino-aprendizagem de História” (MIRANDA & SOUZA, 2012, p. 36).
Em outras palavras, o que propõem, e está em consonância com a Lei 10639/03, é
a problematização da orientação eurocêntrica dos currículos oficiais que ignoram
os processos de subalternização da população negra.
Os estudos desenvolvidos por pesquisadores/as, professores/as e as ações
governamentais voltadas à educação e as relações etnicorraciais enfatizam a
importância do reconhecimento da questão do combate ao racismo, ao preconceito
e à discriminação na perspectiva de redução das desigualdades, especialmente,
aquelas que afligem historicamente os negros e negras em nosso país.

2.7
A perspectiva multi/intercultural em educação

A complexidade das relações entre educação e cultura(s), assim como a


afirmação das diferenças, sejam étnicas, de gênero, orientação sexual, religiosas,
entre outras, ganhou força nos debates educacionais nos últimos vinte anos e
intensificou a produção científica sobre o tema. Além do incremento da produção
acadêmica, os movimentos sociais deram mais visibilidade a essas questões e
denunciaram injustiças, desigualdades e discriminações reivindicando igualdade de
acesso a bens e serviços, além do reconhecimento político e cultural. Como afirma
Fraser (2002), o dilema de reconhecimento-redistribuição é enfrentado pelas classes
exploradas, as sexualidades menosprezadas e coletividades ambivalentes, grupos
que foram historicamente marginalizados, silenciados em seus direitos.
Nesse sentido, um dos desafios que estão postos para as escolas e os
profissionais de educação é como as instituições de ensino formal, em seus diversos
graus, irão redimensionar suas propostas educativas procurando questionar o
trabalho que, comumente, vêm realizando de homogeneização de ritmos e
estratégias, independentemente da origem social, cultural, étnica, ou da idade e das
experiências vividas por seus alunos e alunas. A perspectiva homogeneizadora não
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 89

contempla, na maior parte das vezes, a diversidade e questões como diferença,


preconceito, discriminação, raça, gênero, exclusão, entre outras, são silenciadas.
Torna-se, portanto, necessário que as instituições de ensino valorizem a
diferença e desenvolvam práticas pedagógicas que evidenciem a presença de
diferentes “vozes” e manifestações culturais nesses espaços.
A igualdade não está oposta à diferença, e sim à desigualdade, e a diferença se opõe
à padronização, à produção em série, a tudo o mesmo. O que estamos querendo
trabalhar refere-se a negar a padronização e, ao mesmo tempo, lutar contra todas
as desigualdades dentro da sociedade, nem padronização nem desigualdade, mas
sim igualdade e diferença. A igualdade que queremos construir assume o
reconhecimento de direitos básicos para todos. Mas, esses ‘todos’ não são
padronizados, não são os mesmos. Têm que ter as suas diferenças reconhecidas
como elemento de construção da igualdade (CANDAU, 2001, p.08).

Na perspectiva de contribuir para uma melhor compreensão da problemática


entre educação, cultura(s) e diferença(s), a abordagem multi/intercultural em
educação vem desempenhando papel fundamental, e diversos autores, tanto no
Brasil quanto no exterior, se debruçaram sobre essa temática defendendo distintas
abordagens.
É importante ressaltar que o termo multiculturalismo é polissêmico e suas
definições variam de acordo com o ponto de vista e o contexto sociohistórico no
qual emergem. Também é preciso esclarecer que essa perspectiva não teve sua
origem nos sistemas educacionais. Suas “raízes” podem ser encontradas nos
movimentos sociais, mais especificamente nos movimentos étnicos, como ocorreu
nos Estados Unidos durante a efervescente década de 60 quando estudantes e líderes
religiosos negros resolveram levar adiante a luta por igualdade de exercício dos
direitos civis. Foi a partir desse movimento de luta que se originou a perspectiva
multicultural e esta serviu como campo de aprendizagem para outros segmentos
sociais, também alijados da vida social, como foi o caso de outros grupos étnicos,
de feministas, de homossexuais, etc. A atuação propositiva desses grupos, as
reivindicações de professores e estudantes que questionavam a estrutura social
injusta, bem como o monopólio do saber e do sistema educacional como um todo
pelos grupos social e culturalmente hegemônicos, contribuíram para a solidificação
dessa perspectiva. O multiculturalismo nasce, portanto, imbricado nas lutas sociais
e vai, paulatinamente, constituindo-se em proposta pedagógica, campo de
conhecimento e área de pesquisa.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 90

No contexto estadunidense, destaco as contribuições de dois autores


pioneiros. Em primeiro lugar, Peter McLaren (1997, p.96) e o enfoque que
denomina “multiculturalismo crítico”. Essa perspectiva possui um caráter
eminentemente político e social, uma vez que visa “interrogar a institucionalização
da igualdade formal baseada nos imperativos do mundo anglo, masculino e branco,
favorecendo a transformação dessas instituições que produzem relações
assimétricas de poder e privilégios”. Outro autor é James Banks (1999, p. 2) que
também propõe que a educação multicultural deve realizar profundas mudanças no
sistema educacional, sendo um referente para o dia a dia das salas de aula,
favorecendo que “todos os estudantes desenvolvam habilidades, atitudes e
conhecimentos necessários para atuar no contexto da sua própria cultura étnica, no
da cultura dominante, assim como para interagir com outras culturas e situar-se em
contextos diferentes de sua própria origem”.
No contexto nacional, destaco as contribuições de Luiz Alberto Gonçalves
e Petronilha Silva (2000), Vera Candau (2000, 2002, 2012b), Vera Candau e Kelly
Russo (2011) e Marcelo Andrade (2009). Para Gonçalves e Silva (2000, p. 14), o
multiculturalismo pode ser entendido como um movimento de ideias que deve se
opor a toda forma de etnocentrismos, ou seja, “seu ponto de partida é a pluralidade
de experiências culturais que moldam as interações sociais por inteiro”.
Os primeiros estudos sobre as relações raciais realizados na cidade de São
Paulo, no início do século XX, liderados por organizações negras podem ser
considerados como “o embrião do multiculturalismo no Brasil em sua versão afro-
brasileira” (GONÇALVES & SILVA, 2000, p. 75). Os trabalhos desenvolvidos
nesse período defendiam uma perspectiva integracionista e reivindicavam para os
negros e mestiços oportunidades iguais de se integrarem na sociedade. Na década
de 1930, o mito da democracia racial começava a ser problematizado; os negros
brasileiros começavam a participar de forma mais significativa daquilo que os
pesquisadores chamavam de políticas de significados (GONÇALVES & SILVA,
2000).
Um dos fatores exógenos que contribuiu para isso foi que, a partir do final
dos anos 40, os movimentos negros brasileiros estreitaram contatos com os grupos
estadunidenses e aproximaram-se dos movimentos de libertação dos povos negros
de outros países, especialmente africanos. Esta aproximação favoreceu um
engajamento mais efetivo dos militantes negros brasileiros e, possibilitou uma
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 91

“tomada de consciência” do papel que os afro-brasileiros deveriam desempenhar


nos congressos pan-africanistas e de que o Brasil era a maior diáspora africana do
mundo. Em termos ideológicos, a aproximação com as ideias vindas do exterior
permitiu que os militantes negros brasileiros entrassem em contato com a Teoria da
Negritude. Esta teoria influenciou a produção de uma literatura engajada que
exprimia um protesto de cunho popular e inspirou a corrente culturalista encabeçada
por Abdias do Nascimento e Guerreiro Ramos. Essa perspectiva enfatizava a
valorização da cultura negra sem perder de vista a questão da desigualdade
econômica a qual os negros estavam submetidos (GONÇALVES & SILVA, 2000).
Outro fator exógeno destacado foi a criação da Organização das Nações
Unidas (ONU) – e da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e
Cultura (UNESCO). Segundo Gonçalves e Silva (2000, p. 79), com o fim da
Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional criou organismos com o
objetivo de impedir a propagação do racismo e esta medida impulsionou várias
nações a “elaborar garantias jurídico-institucionais visando proteger a vida de
grupos culturalmente dominados”. Pesquisas financiadas pela UNESCO, no final
dos anos 40, revelaram a dura realidade dos afro-brasileiros. Foi nesse contexto que
o suposto paraíso racial brasileiro – o mito da democracia racial – passou a ser
questionado.
No que tange aos fatores endógenos, destacam a conjuntura socioeconômica
e política brasileira no período que vai de 1940 a 1960. O modelo de
desenvolvimento e modernização à época tinha o Estado como principal
protagonista. O projeto de construção nacional elaborado pelo Estado brasileiro
pretendia construir: (i) um sentido de nação, a brasilidade; (ii) uma identidade
nacional, a mestiçagem, que tinha como base os pressupostos político-ideológicos
privilegiados pelo Estado Novo; (iii) a unidade linguística em torno do português;
(iii) a hegemonia do catolicismo como religião hegemônica e (iv) a submissão de
diversidade e das desigualdades raciais a um modelo cultural dominante.
Segundo Gonçalves e Silva (2000), os fatores exógenos e endógenos
concorreram para desmistificar a imagem idílica de paraíso racial com a qual a
sociedade brasileira costumava representar-se e evidenciaram que as organizações
negras exerceram um papel fundamental na construção de um “multiculturalismo à
brasileira”, com fortes raízes afrodescendentes.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 92

O que caracteriza as lutas multiculturais é a situação de exclusão social de grupos


considerados minorias do ponto de vista da distribuição do poder e do
reconhecimento social. No entanto, não é uma exclusão motivada apenas por
questões de classe social, ou seja, por questões econômicas. As pessoas, em geral,
não são excluídas simplesmente porque são pobres, ainda que a pobreza seja um
fator determinante de marginalização. Aqueles que são vistos como diferentes
acabam excluídos porque possuem uma marca identitária considerada socialmente
como algo inferior, seja esta marca o sexo e o gênero, a cor da pele, a etnia, a
orientação sexual, a idade, as capacidades físicas e mentais (ANDRADE, 2009, p.
24).

Nesta perspectiva, o multiculturalismo em educação tem como principal


objetivo ser uma estratégia política que favoreça o reconhecimento da pluralidade
humana, que construa uma educação democrática que dê conta da multiplicidade
de universos culturais de seus alunos e alunas, que possa intervir, criticamente, nas
relações de poder que organizam as diferenças, além de construir um corpo teórico
de conhecimentos que possam auxiliar na compreensão da realidade cultural
contemporânea.
Andrade (2009, p. 30) enfatiza ainda que o multiculturalismo não é apenas
um desafio político ou educacional; “ele traz um desafio conceitual, isto é, pensar,
entender e refletir a partir do conceito de diferença nos convida a uma nova postura
epistemológica. O multiculturalismo, então, reforça uma maneira de entender o
conhecimento muito diferente da que trabalhamos tradicionalmente”. Ainda de
acordo com Andrade (2009), a questão principal diz respeito à passagem de uma
epistemologia monocultural para uma epistemologia multicultural, ou seja, um
modo de entender o processo pelo qual um conhecimento é considerado válido,
como se estabelece socialmente, uma vez que a perspectiva monocultural
“privilegia apenas um padrão cultural como certo e supostamente científico”
(ANDRADE, 2009, p. 32). A epistemologia monocultural baseia-se em quatro
aspectos: (i) a realidade é um dado objetivo, (ii) a realidade não é condicionada pela
linguagem, (iii) a verdade é absoluta, (iv) o conhecimento é objetivo. A
epistemologia multicultural questiona esses aspectos e fundamenta-se em quatro
pilares que se opõem aos princípios monoculturais, ao padrão cultural e
supostamente científico estabelecido historicamente durante a modernidade: (i) a
realidade é uma construção, (ii) as interpretações da realidade são subjetivas, (iii) a
verdade é relativa, (iv) o conhecimento é um ato político.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 93

Segundo Andrade (2009, p.33), esses dois modos de entender o


conhecimento estão em disputa, pois, enquanto um enfatiza a razão universalista o
outro dá ênfase ao relativismo:
Nessa disputa, não é difícil perceber que os multiculturalistas possuem uma enorme
desvantagem de argumentação aos olhos da opinião pública, do senso comum, pois
eles questionam “a natureza das coisas”, “o bom senso”, “o fato das coisas serem
como elas sempre foram”. O multiculturalismo é algo perturbador, que tira a
segurança, que questiona ideias e concepções que oferecem garantia e sustentação
para muitos aspectos da vida social. A teoria multicultural sobre o conhecimento
traz à tona as contradições da nossa sociedade que se professa universalista e
igualitária, mas, diante dos questionamentos multiculturais, descobre-se
monocultural e profundamente marcada pela desigualdade.

Já a perspectiva intercultural preconizada e defendida por Candau (2002),


pressupõe “a deliberada inter-relação entre diferentes grupos culturais”. Nesse
sentido, a interculturalidade:
Se situa em confronto com todas as visões diferencialistas que favorecem processos
radicais de afirmação de identidades culturais específicas. Rompe com uma visão
essencialista das culturas e das identidades culturais. Parte da afirmação de que nas
sociedades em que vivemos os processos de hibridização cultural são intensos e
mobilizadores da construção de identidades abertas, em construção permanente. É
consciente dos mecanismos de poder que permeiam as relações culturais. Não
desvincula as questões da diferença e da desigualdade presentes na nossa realidade
(CANDAU, 2002, p. 6).

Para Candau (2000, p. 58), a promoção de processos educativos que


contemplem essa perspectiva deve apresentar alguns critérios básicos: (i) deve ser
vista como uma prática social, (ii) não deve ser reduzida a determinadas áreas
curriculares, atividades ou situações, nem tampouco deve restringir-se a
determinados grupos sociais, (iii) deve questionar o etnocentrismo, bem como os
conteúdos selecionados, (iv) deve articular ao nível das políticas educacionais e das
práticas pedagógicas o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural com
relação às diferentes identidades, (v) deve afetar não apenas o currículo explícito,
mas também o currículo oculto e as relações entre os diferentes agentes do processo
educativo.
Candau e Russo (2011) afirmam que o termo interculturalidade surgiu na
América Latina no contexto educacional, mais precisamente com referência à
educação escolar indígena46. As pesquisadoras identificam algumas etapas no

46
Ao resgatarem a trajetória da educação escolar indígena no continente latino-americano, Candau
e Russo (2011, p.61) ressaltam que: “não pretendemos negar a grande diversidade de situações e
os diferentes contextos onde se dá o seu desenvolvimento. Também não propomos a existência
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 94

desenvolvimento da educação escolar indígena que vão da eliminação do outro no


período colonial, passando pela assimilação até a assunção do bilinguismo com a
produção de materiais didáticos alternativos e programas de educação bilíngue que
deixava de ser vista “apenas como instrumento civilizatório para ser considerada de
importância fundamental para a continuidade dos próprios grupos minoritários”
(CANDAU & RUSSO, 2011, p. 63).
Ainda de acordo com Candau e Russo (2011), as culturas de matriz africana
também não encontraram espaço na educação escolar do continente e a situação dos
grupos negros varia de acordo com a realidade de cada país47. Apesar dessa
diferenciação de contextos, esses grupos foram, em geral, relegados a uma posição
de não cidadania, especialmente, porque o regime escravocrata persistiu em muitos
países até o final do século XIX.
A situação dos afrodescendentes na maior parte do continente tem sido configurada
por processos de violência e exclusão física, social e simbólica. No entanto, em
diferentes nações, foram muitas as lutas de grupos afrodescendentes por condições
de vida dignas e combate à discriminação e o racismo. Estes grupos têm se
caracterizado pela resistência e por suas lutas contra o racismo em suas diferentes
manifestações, assim como pela afirmação de direitos e plenitude de cidadania, o
que supõe reconhecimento de suas identidades culturais (CANDAU & RUSSO,
2011, p. 65).

Mesmo sendo temas atuais nas discussões sobre educação e


interculturalidade no continente, enfatizam que “foi difícil encontrar na produção
bibliográfica latino-americana sobre educação intercultural, referências às
contribuições dos grupos e movimentos negros” (CANDAU & RUSSO, 2011, p.
65). Porém, destacam algumas contribuições desses movimentos que atuam de
maneira significativa: (i) a denúncia das diferentes manifestações da discriminação
racial presentes nas sociedades latino-americanas, (ii) o desvelamento e a
desconstrução dos estereótipos raciais e a visão do “racismo cordial”, (iii)
promoção de leituras alternativas do processo histórico vivido e do papel do negro
na formação dos vários países latino-americanos, (iv) valorização das identidades

de uma linha única e progressiva da história da educação escolar indígena na América Latina,
visto que o início de uma nova fase não significa o término da anterior, pois em muitos momentos
elas ocorrem sobrepostas umas às outras”.
47
“Se em alguns casos foi praticamente eliminada, como na Argentina, em outros constitui a grande
maioria da população, como em Cuba ou Haiti. Há situações em que estão circunscritos a algumas
regiões e/ou núcleos rurais, como no Equador ou Bolívia, em outras estão presentes nas principais
zonas urbanas do respectivo país, como é o caso do Brasil ou Colômbia. Sua presença permeia de
variadas formas as sociedades nacionais em diferentes âmbitos, e diversas proporções”
(CANDAU & RUSSO, 2011, p. 64-65).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 95

culturais negras através da incorporação nos currículos escolares e nos materiais


didáticos de componentes próprios das culturas negras, (v) as políticas de ação
afirmativa dirigidas aos afrodescendentes em diferentes âmbitos da sociedade, do
mercado de trabalho e ao ensino superior.
Todas essas propostas questionam as práticas homogeneizadoras e
monoculturais dos processos educacionais e sociais porque buscam desvelar “o
racismo e as práticas discriminatórias que perpassam o cotidiano das nossas
sociedades e instituições educativas e promovem o reconhecimento e valorização
das diferenças culturais, componentes fundamentais para a promoção de uma
educação intercultural” (CANDAU & RUSSO, 2011, p. 67).
Candau (2012c) ressalta ainda que a afirmação das diferenças sejam étnicas,
de gênero, de orientação sexual, religiosa, entre outras, manifestam-se de modos
plurais e têm sido visibilizadas pelos diversos movimentos sociais. Do mesmo
modo, de acordo com a autora, as diferentes manifestações de preconceito,
discriminação, intolerância religiosa, homofobia, vêm crescendo,
assustadoramente, na sociedade e também no cotidiano das escolas.
Os dados da pesquisa “Projeto de Estudo sobre ações discriminatórias no
âmbito escolar, organizadas de acordo com áreas temáticas, a saber, étnico-racial,
gênero, geracional, territorial, necessidades especiais, socioeconômica e orientação
sexual”, de maio de 2009, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas
Econômicas (FIPE), Ministério da Educação (MEC) e Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais (INEP)48, que teve por objetivo “analisar de maneira
global e coerente a incidência de preconceito e discriminação nas escolas públicas,
de forma a descrever um quadro consolidado que sirva de linha de base para a

48
Foi utilizado o método de pesquisa survey e os questionários foram aplicados em quinhentas e
uma escolas de redes públicas estaduais e municipais, urbanas e rurais, de todas as unidades
federativas e teve como público alvo diretores de escola, professores de matemática e português,
funcionários de escola, alunos da penúltima série (7ª e 8ª) do EFR, da última série (3ª e 4ª) do
EMR, 2º ciclo do EF ou médio do EJA, pais e responsáveis por alunos. Face à natureza da pesquisa
– mensuração de crenças, atitudes e valores que expressam preconceito – foram construídos cinco
instrumentos de coleta de dados que foram respondidos pela técnica de auto-preenchimento, sob
a coordenação de pesquisador qualificado junto às unidades de observação (respondentes)
associadas às unidades amostrais (escolas de redes públicas estaduais e municipais, urbanas e
rurais, de todas as unidades federativas). Os questionários foram desenvolvidos considerando-se
os seguintes blocos de assuntos: questões sobre exposição à mídia por parte dos respondentes;
sobre hábitos de lazer; sobre escala de distância social; sobre crenças e atitudes; sobre o
conhecimento de práticas discriminatórias (bullying); sociodemográficas e escolares (FIPE, 2009,
p.13-15).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 96

avaliação de ações globais no sentido de transformar as escolas em um ambiente


essencial ao estímulo à diversidade e à mitigação do preconceito e da
discriminação” (FIPE, 2009, p. 13), revelam que no que se refere ao preconceito e
a discriminação, os resultados indicam que, de maneira geral, “o preconceito é um
elemento efetivamente presente no ambiente das escolas públicas do país; é
importante notar que entre os públicos pesquisados, funcionários, pais e mães,
principalmente, os alunos, são os que apresentam os maiores níveis de preconceito”
(FIPE, 2009, p. 69). Posso afirmar, considerando esses resultados, que todos os
atores escolares investigados apresentam altos índices de discriminação e
preconceito, principalmente o de corte racial.
Outra conclusão apresentada por essa pesquisa relaciona os níveis de
preconceito e práticas discriminatórias das escolas com as médias da Prova Brasil
2007. De acordo com o relatório, nas escolas em que foram observadas atitudes
mais preconceituosas os alunos obtiveram notas mais baixas nas avaliações de
matemática e português. Entretanto, nas escolas onde os alunos apresentam
predisposição em manter contatos de maior proximidade com os grupos sociais
pesquisados, tendem a apresentar melhores médias na Prova Brasil (FIPE, 2009).
Sendo uma pesquisa de abrangência nacional, seus resultados49 revelam
uma situação inquietante no que diz respeito às temáticas de diversidade estudadas,
principalmente a que trata do preconceito e da discriminação:
Mais preocupante é o fato que o preconceito e a discriminação não raramente
resultam em situações em que pessoas são humilhadas, agredidas e acusadas
injustamente simplesmente pelo fato de fazerem parte de algum grupo social
específico. Nota-se que estas práticas discriminatórias tem como principais vítimas
os alunos, especialmente negros, pobres e homossexuais. Apesar do fato de que os
alunos são as maiores vítimas, as práticas discriminatórias na escola também
vitimam professores e funcionários com preocupante incidência. Entre os
professores vitimados, os que mais sofrem os efeitos de práticas discriminatórias,
de acordo com o conhecimento dos respondentes, são os professores mais velhos,
os homossexuais e as mulheres, entre os funcionários, as maiores vítimas são os
pobres, idosos e negros (FIPE, 2009, p. 352)

Mais uma conclusão que inspira cuidados e atenção diz respeito ao fato de
que “os alunos das escolas públicas não apenas têm atitudes e comportamentos

49
A área temática que apresentou maiores valores para o índice ponderado percentual de
concordância com as atitudes discriminatórias foi a que exprime a discriminação em relação a
gênero (38,2%), seguida pelas áreas referentes à discriminação geracional (37,9%), em relação à
deficiência (32,4%), à identidade de gênero (26,1%), à socioeconômica (25,1%), à étnico-racial
(22,9%) e à territorial (20,6%) (FIPE, 2009, p. 06).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 97

preconceituosos e discriminatórios, como sofrem os efeitos de comportamentos


similares de outros atores do ambiente escolar, como diretores, professores,
funcionários e do conselho escolar” (FIPE, 2009, p. 354).
Finalizando, o relatório sugere que a mudança desse ambiente
discriminatório seja iniciada e potencializada por meio de um processo “de ações
corajosas, envolvendo disseminação de informações (condição necessária, mas não
suficiente para a promoção de mudanças), realização de ações específicas e
pontuais, implementação de planos, que visem à mudança de comportamento e,
principalmente, no longo prazo, ações que promovam a mudança de valores dos
agentes escolares em relação à questão discriminatória” (FIPE, 2009, p. 355).
Utilizando os dados desse relatório, ao tratar da mudança no ambiente
escolar mencionada pela pesquisa, Candau (2012c, p.237) enfatiza:
Se quisermos potencializar os processos de aprendizagem escolar na perspectiva
da garantia a todos/as do direito a educação, teremos de afirmar à urgência de se
trabalhar as questões relativas ao reconhecimento e a valorização das diferenças
culturais nos contextos escolares. Esta proposta supõe, na linha de pesquisa que
venho desenvolvendo, incorporar a perspectiva intercultural nos diferentes âmbitos
educativos. Esta preocupação não é algo secundário ou que se justapõe as
finalidades básicas da escola, mas é inerente a elas.

Candau (2012c, p.244) reafirma sua opção pela perspectiva intercultural em


educação que denomina de interculturalidade crítica e ressalta que “a
interculturalidade aponta à construção de sociedades que assumam as diferenças
como constitutivas da democracia e sejam capazes de construir relações novas,
verdadeiramente igualitárias entre os diferentes grupos socioculturais, o que supõe
empoderar aqueles que foram historicamente inferiorizados”. Tendo essa
perspectiva como referência, Candau (2012c) construiu coletivamente, no âmbito
de seu grupo de pesquisa50, um mapa conceitual da expressão “educação
intercultural” que possui as seguintes categorias: (i) sujeitos e atores, (ii) saberes e
conhecimentos, (iii) práticas socioeducativas e (iv) políticas públicas. Também
foram elaboradas subcategorias e palavras de ligação entre elas (CANDAU, 2012c,
p. 246).
Ao propor esse mapa conceitual, Candau (2012c) aposta na promoção de
uma educação que possa afetar todos os atores, as dimensões do processo educativo,

50
Grupo de Estudos sobre Educação, Cotidiano Escolar e Cultura(s) – GECEC – do Departamento
de Educação da PUC-Rio.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 98

os diferentes âmbitos em que ele se desenvolve, ou seja, desconstruir e reconstruir


o caráter monocultural da cultura escolar.

Figura 1: Mapa conceitual (CANDAU, 2012c, p. 250).

É possível perceber que para Gonçalves e Silva (2002), Andrade (2009) e


Candau (2012c), a diversidade de culturas está no centro das preocupações das
propostas multi/interculturais, assim como todos/as enfatizam as questões de poder
que estão imbricadas na construção das diferenças. Desse modo, considero que a
perspectiva multi/intercultural surge como um questionamento, como uma proposta
de desconstrução, como crítica a um tipo de conhecimento que foi construído e
estruturado em cima de uma base monocultural, um padrão de cultura considerado
como certo, como modelo a ser seguido. Portanto, não basta à escola ou aos
professores/as somente se mostrar sensível às diferenças. É necessário que a
instituição escolar incorpore “um projeto educativo emancipatório, sobretudo a
escola pública, que deverá inserir a questão racial em seu projeto político-
pedagógico, tomá-la como eixo de suas práticas pedagógicas e articulá-las nas
discussões que permeiam o currículo escolar” (GOMES, 2007, p.102).
3
As ações afirmativas no CAp/UERJ

Em 1º de abril de 1957, foi criado o Ginásio de Aplicação da Faculdade de


Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Distrito Federal (UDF). A mudança
de denominações da atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
acompanhou as transformações geopolíticas ocorridas à época. Com a mudança da
capital para Brasília, em 1960, seu nome foi alterado para Universidade do Rio de
Janeiro (URJ). Em 1961, a cidade passou a denominar-se Guanabara, constituindo
o único caso de uma cidade-estado. A URJ passou a se chamar Universidade do
Estado da Guanabara (UEG). Com a fusão dos estados do Rio de Janeiro e da
Guanabara, a instituição ganhou, em 1975, seu nome definitivo: Universidade do
Estado do Rio de Janeiro51. O Ginásio de Aplicação foi instituído como campo de
estágio e de experimentação metodológica atendendo as exigências previstas na Lei
9053/46, que determinava a criação de instituições para a prática docente dos/as
estudantes matriculados/as no curso de Didática e Licenciaturas.
De acordo com Isis Santos (2006), o Ginásio de Aplicação da UERJ, assim
como os demais colégios de aplicação de outras universidades, foi pensado e
idealizado na perspectiva escolanovista. Essa concepção opunha-se a chamada
escola ou pedagogia tradicional que se fez presente de modo hegemônico na
educação brasileira até o fim do século XIX. A Escola Nova tinha uma proposta de
inovação: os conteúdos deixariam de ser exercícios de memorização e fixação
passando a ter significação; o professor se tornaria facilitador da aprendizagem e o
aluno passaria a ser o centro do processo de ensino. A Escola Nova52 surgiu no
Brasil vinculada à necessidade de expandir o ensino elementar e de superar a escola
tradicional diante das exigências do mundo moderno. Uma das bandeiras
defendidas por esse movimento e seus idealizadores “foi a formação integral do

51
Dados retirados da página oficial da UERJ (www.uerj.br).
52
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, publicado em 1932, representou um dos mais
significativos e propositivos movimentos nacionais em prol da implantação do sistema de
educação pública. O Manifesto contou com vinte e seis signatários entre eles Anísio Teixeira,
Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Paschoal Lemme, Cecília Meireles, entre outros (Ana
Paula da Silva, 2012, p. 2-4)
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 100

aluno através de uma escola pública de qualidade onde a criança seria o centro de
todo o processo educacional, sendo respeitada em seus interesses e em sua evolução
intelectual, podendo experimentar os resultados a serem alcançados e não recebê-
los prontos” (SANTOS, 2006, p. 26-27).
Desse modo, o principal objetivo era ser um espaço de experimentação onde
se “aprende a fazer fazendo”, abordagem que emergia no bojo do grande otimismo
pedagógico presente na época. Segundo Jorge Nagle, (2001, p. 134) o otimismo
pedagógico consiste na “crença de que, pela multiplicação das instituições
escolares, da disseminação da educação escolar, será possível incorporar grandes
camadas da população na senda do progresso nacional e colocar o Brasil no
caminho das grandes nações do mundo e que (...) determinadas formulações
doutrinárias sobre a escolarização indicam o caminho para a verdadeira formação
do novo homem brasileiro (escolanovismo)”.
Ainda de acordo com Santos (2006), o professor Fernando Rodrigues da
Silveira idealizou e fundou o colégio de aplicação: [O professor Fernando
Rodrigues da Silveira] “teve um contato bastante estreito com aquele grupo de
Anísio Teixeira. Então ele circulava nessa roda de grandes educadores que
pensavam uma educação de vanguarda, de qualidade, uma educação pública séria,
então ele trabalhava sempre com os preceitos desse grupo do Anísio Teixeira”
(SANTOS, 2006, p. 27).
O Ginásio de Aplicação nasce, portanto, assumindo a perspectiva
escolanovista como fundamentação teórica e também atendendo as exigências
estabelecidas na legislação educacional por meio da Lei 9053/46. Segundo Santos
(2006), [O professor Fernando Rodrigues da Silveira] “tinha um amor pelo colégio,
isso daí todas as pessoas que participaram da criação, com quem eu tenho contato,
falam muito do extremo carinho, o colégio para ele foi um filho mesmo, que ele foi
gestando, que ele tinha uma atenção toda especial. (...) Ele tinha uma projeção
dentro da discussão toda de educação no município do Rio de Janeiro” (SANTOS,
2006, p. 29).
O professor Fernando Rodrigues da Silveira além de fundador foi o primeiro
diretor, mas somente mais tarde, em sua homenagem e após a implantação dos
cursos científico e clássico, o Ginásio passou a se denominar Colégio de Aplicação
Fernando Rodrigues da Silveira. No momento de seu surgimento, o Ginásio de
Aplicação funcionava no mesmo prédio da Faculdade de Educação que ficava
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 101

localizada à Rua Hadock Lobo, no bairro da Tijuca, onde funcionava a Faculdade


de Filosofia, Ciências e Letras. Dez anos depois de sua fundação, o Colégio foi
desvinculado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras através da Lei 5540/68.
Porém, essa relativa autonomia não modificou os objetivos que deram origem ao
Colégio. O rompimento dos laços foi apenas administrativo e respondeu às
injunções e necessidades institucionais. Ao contrário, a responsabilidade da unidade
na integração acadêmica e metodológica entre os ensino fundamental, médio e
superior tendeu, com o tempo, a se aprofundar. Em 1967, o Colégio passou a
funcionar em um prédio emprestado onde era a antiga Faculdade de Enfermagem
que se localizava no Morro do Turano, à Rua Barão de Itapagipe, também na região
da Grande Tijuca. Ao ser transferido para esse endereço, o Colégio buscava espaço
para suas atividades de caráter escolar, separado do espaço físico dos cursos
universitários, garantindo maior flexibilidade de horário e autonomia de
funcionamento. Ampliaram-se as relações com a Faculdade de Educação e outros
institutos da Universidade, o que aumentou a procura pelo Colégio como campo de
estágio e pesquisa para licenciandos/as e diversos outros profissionais.
A partir do início da década de setenta, a instituição passou a formar
profissionais aptos à formação de docentes para os cursos clássico e científico53. A
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) 5692/71, tornou obrigatório o período
de oito anos de escolaridade para o ensino primário e ginasial; estabeleceu a fusão
desses dois segmentos, denominados, atualmente, de Ensino Fundamental. A mais
importante reivindicação institucional foi a criação do primeiro segmento do então
1º Grau, ampliando os objetivos da unidade e seu campo de atuação para todo o
ensino fundamental. A ideia foi referendada pela Universidade em 1977.
De acordo com Santos (2006), em 1977, por força da LDB, o colégio criou
o ensino fundamental, de 1ª a 4ª série, e esse segmento funcionava na Rua Hadock
Lobo enquanto o segundo segmento, 5ª a 8ª série, desenvolvia suas atividades na
Rua Barão de Itapagipe. Em 1987, foi criada a Classe de Alfabetização (CA). Com
a criação da CA, o ingresso deixou de ser feito por prova (inclusive na 1ª série) e

53
A divisão do Ensino Médio em clássico e científico perdurou até 1971, sendo alterada pela Lei de
Diretrizes e Bases da Educação n. 5692/71. O Ensino Médio clássico voltava-se aos alunos que
pretendiam seguir carreira na área das Ciências Humanas como Letras, Direito, Sociologia e afins.
Enquanto o científico voltava-se para estudantes que pretendiam seguir carreira na área das
Ciências Exatas e Biológicas como Engenharia, Medicina, Física, Biologia, entre outras.
(www.uerj.br)
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 102

passou a ser realizado por sorteio. O ingresso para a 5ª série, atual 6º ano, era feito
por prova e o processo seletivo para esse ano de escolaridade continua acontecendo
dessa forma até hoje.
Ainda segundo Santos (2006), o preenchimento das vagas tanto para a 1ª
quanto para a 5ª série previa que 50% das vagas deveriam ser destinadas aos
funcionários da UERJ. Essa reserva era feita quando os/as funcionários/as eram
celetistas e foi realizada para atender acordos coletivos de trabalho. Com o Regime
Estatutário a partir de 1988, o percentual de vagas manteve-se o mesmo sendo
dividido da seguinte maneira: dez vagas para professores/as, dez para servidores/as
técnico administrativos/as, dez para funcionários/as do Hospital Universitário
Pedro Ernesto (HUPE). Esse percentual sofreu alteração com a publicação da Lei
6434/13; essa mudança será tratada neste capítulo.
Em 1997, a partir do documento “Refazendo o Ensino de Graduação”,
elaborado pela Sub-Reitoria de Graduação da UERJ, o CAp propôs sua
transformação de Colégio de Aplicação em Instituto de Aplicação. Em 1998, foi
inaugurada sua sede definitiva na Rua Santa Alexandrina, no bairro do Rio
Comprido, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. A conquista de um novo espaço
físico garantiu que todos os segmentos do colégio funcionassem no mesmo local.
Desde a sua fundação, a instituição apresenta marcada tendência humanista.
Isto até hoje se expressa através de múltiplos espaços de criação, a exemplo do
Clube de Leitura54 nos anos iniciais do primeiro segmento do ensino fundamental
e da diversidade de disciplinas artísticas, a saber: Teatro, Artes Plásticas, Música,
Design, Fotografia, História da Arte, trabalhadas desde as primeiras séries do
ensino fundamental ao ensino médio.
A transformação de Colégio de Aplicação para Instituto de Aplicação só se
efetivou em 2001. Assim, o Instituto de Aplicação passou a ser mais uma Unidade
Acadêmica da UERJ55 e atenderia três níveis de ensino: o fundamental, o médio e

54
O Clube de Leitura Paula Saldanha foi criado em maio de 1982 pela professora Leila Medeiros
de Menezes com o objetivo de formar leitores/as e escritores/as desde os anos iniciais do ensino
fundamental.
55
A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) possui Centros Setoriais, Unidades
Acadêmicas: Centro Biomédico (CBI), Centro de Ciências Sociais (CCS), Centro de Educação e
Humanidades (CEH), Centro de Tecnologia e Ciências (CTC). As unidades acadêmicas são:
Campus da Baixada Fluminense – Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, Campus de
São Gonçalo – Faculdade de Formação de Professores, Campus de Resende – Faculdade de
Tecnologia, Campus de Friburgo – Instituto Politécnico do Rio de Janeiro, Campus da Ilha Grande
– Centro de Estudos Ambientais e Desenvolvimento Sustentado, Instituto de Aplicação Fernando
Rodrigues da Silveira – CAp/UERJ. Há também núcleos especializados: Núcleo de Estudos e
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 103

o superior, havendo grande ampliação de suas funções tendo como bases principais
o aprendizado da docência, da formação inicial e continuada da mesma. Em 2007,
o CAp passou a atuar conjuntamente com outras unidades acadêmicas da UERJ e a
compor de forma efetiva a formação inicial dos/as estudantes das licenciaturas.
Na primeira década dos anos dois mil, houve a expansão das atividades
acadêmicas, a crescente capacitação de seu corpo técnico e docente e a consolidação
das atividades do Ensino Superior com a criação de disciplinas de caráter
obrigatório, eletivo e universal, oferecidas aos cursos de licenciatura da
universidade.
Desde março de 2014, o CAp/UERJ conta com o Programa de Pós-
Graduação de Ensino em Educação Básica (PPGEB) - Curso de Mestrado
Profissional - proposto na área de concentração voltada ao “Cotidiano e Currículo
no Ensino Fundamental”. No primeiro processo seletivo para o ano de 2014 contou
com 166 inscritos para concorrência ampla de 20 vagas. Já o processo para o
ingresso no ano de 2015 contou com 163 inscritos para esse mesmo número de
vagas56.
A admissão de docentes se dá por concurso público regido por edital ou
através de processo seletivo para prestação de serviço por contrato. O CAp/UERJ
também conta com servidores/as técnico-administrativos/as que atuam em
diferentes áreas da instituição também na condição de efetivos/as e contratados/as.
O ingresso de estudantes no CAp/UERJ é realizado apenas no 1º e no 6º ano
do ensino fundamental. Para o 1º ano, a entrada é feita por meio de sorteio, enquanto
que para o 6º ano é aplicada uma prova de seleção com conteúdos de matemática,
língua portuguesa, além de redação. Os/as candidatos/as aprovados/as e
classificados/as para o 6º ano são inseridos/as em turmas com os/as estudantes que
cursaram o primeiro segmento do ensino fundamental no colégio. Na seleção
realizada em 2013, foram destinadas 60 vagas para o 1º ano (30 para a comunidade
externa e 30 para a interna), sessenta para o 6º ano (30 para a comunidade externa

Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas, Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade


Aberta da Terceira Idade, Núcleo de Estudo da Saúde do Adolescente, Núcleo de Informação e
Estudos de Conjuntura. Órgãos relativamente autônomos: Centro de Produção da UERJ, Hospital
Universitário Pedro Ernesto, Policlínica Piquet Carneiro (www.uerj.br).
56
Em 2014 o número de alunos/as regulares matriculados/as no PPGEB era de 20 estudantes;
inscritos/as como aluno/a especial em disciplina isolada eram 39, totalizando 59 estudantes. Já
em 2015, os/as regulares eram 39 e aluno/a especial contava com 21, num total de 60 inscritos/as.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 104

e 30 para a interna). O Departamento de Seleção Acadêmica (DSEA) da


universidade é o responsável pelo cogerenciamento da seleção.
No que tange à educação básica, a instituição sempre se caracterizou pela
diversidade de seu corpo discente. O CAp-UERJ concede uma ajuda de custo a
estudantes carentes que é repassada pela universidade via Sistema de Desembolso
Descentralizado (Sides). Essa diversidade que hoje se expressa pelas questões
socioeconômicas, culturais, de aprendizagem e de necessidades educativas
específicas, continua a se constituir no grande desafio da instituição na consecução
de seus objetivos, seja na sensibilização e qualificação dos/as licenciandos/as frente
a atual complexidade socioeducativa, seja na promoção de ensino e educação de
qualidade a todos, como princípio de cidadania.
Diante dessas informações, posso assegurar, assim, que o Instituto de
Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – CAp/UERJ é uma instituição histórica,
de ensino público que tem por finalidade a formação docente inicial e continuada,
em parceria com outras unidades acadêmicas da UERJ e a promoção de educação
básica de qualidade, de atividades de pesquisa em ensino e educação, da extensão
universitária e da cultura na cidade e no estado do Rio de Janeiro.

3.1
A Lei 6.434/13 e a reserva de vagas para o CAp/UERJ

Em 15 de abril de 2013, o então governador do estado do Rio de Janeiro,


Sérgio Cabral, sancionou a Lei 6434, cuja iniciativa foi do Poder Executivo, que
dispôs sobre os critérios de seleção e admissão de estudantes carentes e instituiu o
sistema de cotas no CAp/UERJ. A lei foi aprovada por unanimidade pela Comissão
de Educação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ).
Em seu artigo 1º, a lei determina que, “com vistas à redução das
desigualdades étnicas, sociais e econômicas, deverá a Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ), em relação ao Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues
da Silveira (CAp/UERJ), estabelecer cotas para o ingresso em seus cursos aos
seguintes estudantes carentes57: que cursaram integralmente o ensino fundamental
na rede pública de ensino; negros, pardos e índios e pessoas com deficiência física”.

57
Grifos meus.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 105

A legislação estabelece que sejam reservadas 40% das vagas para esses/as
estudantes. Para ter direito a concorrer a uma vaga pelo regime de cotas, a renda
familiar mensal per capita deverá corresponder, no máximo, a um salário mínimo
estadual e meio. Ao estabelecer a renda familiar mensal à lei deixa claro que a
condição primordial a ser atendida diz respeito à carência socioeconômica58, sendo
elencados, posteriormente, os grupos étnicos e as pessoas com deficiência como
pode ser comprovado no artigo 1º da Lei 6434/13 e também no edital (Anexo 1 e
Anexo 2) para o processo seletivo às vagas reservadas. Nesse sentido, há
semelhança com a lei que regulamenta a reserva de vagas para os cursos de
graduação oferecidos pela universidade no que se referem à condição primordial de
carência socioeconômica dos/as candidatos/as.
Com a lei, as vagas para o processo seletivo do CAp passaram a ser
distribuídas da seguinte forma:
 20% para estudantes carentes que cursaram integralmente o 1º
segmento do ensino fundamental na rede pública59;
 20% para estudantes negros, pardos e índios, sendo adotado o
critério da autodeclaração;
 5% para deficientes físicos;
 25% para filhos de servidores da UERJ, sendo 12,5% para filhos de
professores e 12,5% para filhos de funcionários;
 30% de vagas restantes serão de ampla concorrência.

Desse modo, efetivamente, a lei determinou uma redução no quantitativo de


vagas destinadas a filhos/as de servidores/as da universidade, que até o processo

58
O Edital do Processo Seletivo 2014 no Manual do Candidato, em seu anexo 2, item 1, “Das
informações gerais”, esclarece: 1.1: Para concorrer às vagas reservadas pelo sistema de cotas, o
responsável pelo candidato deverá: a) preencher os requisitos indicados no item 1.5 do Edital para
um dos grupos de cotas; b) atender à condição de carência socioeconômica definida como renda
per capita mensal bruta igual ou inferior a R$ 1.017,00 (mil e dezessete reais) das pessoas
relacionadas no Formulário de Informações Socioeconômicas (FIS); 1.2: A renda per capita
mensal bruta será calculada pelo total dos valores da renda mensal bruta, ou seja, sem descontos,
de todas as pessoas do grupo familiar, dividindo-se pelo número de pessoas relacionadas no
Formulário de Informações Socioeconômicas, inclusive as crianças. A comprovação da condição
de carência socioeconômica e dos requisitos necessários para ingressar por um dos grupos de
cotas passou pela análise dos documentos exigidos e ficou a cargo das comissões técnicas,
respectivamente denominadas Comissão de Análise Socioeconômica e Comissão de Análise de
Opção de Cota.
59
Esse percentual diz respeito apenas às vagas para o 6º ano de escolaridade. Os demais percentuais
previstos na lei para a reserva de vagas contemplam os/as candidatos/as ao 1º e 6º anos de
escolaridade.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 106

seletivo de 2013 era de 50%. A seleção e o sorteio para ingresso no Instituto de


Aplicação, realizados em 2014, já atendeu as determinações previstas em lei.
O edital de convocação para o processo seletivo CAp/UERJ 2014 em
cumprimento à Lei 6434/13 esclarece que para o preenchimento das vagas
reservadas, entende-se por:
a) Estudante oriundo da rede pública de ensino – aquele que tenha cursado,
integralmente, do 1º ao 5º ano do ensino fundamental na rede pública de
ensino;
b) Negro, pardo e índio – aquele declarado por seu responsável como
negro, pardo e índio60;
c) Pessoa com deficiência – aquela que atender às determinações
estabelecidas pela Lei Federal 7853/89 e pelos Decretos 3298/99 e
5296/04;
d) Filhos de servidores da UERJ – filho ou menor sob tutela ou guarda de
servidores que pertençam ao quadro efetivo de servidores ativos e
inativos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
De acordo com o edital do 1º ano do ensino fundamental, para o processo
seletivo de 2014, através de sorteio público, as vagas foram assim distribuídas: 40%
para estudantes negros, pardos ou índios61; 5% para pessoas portadoras de
deficiência; 12,5% para filhos de professores; 12,5% para filhos de funcionários,
que ficaram distribuídos conforme a tabela apresentada a seguir.

60
Sobre a identificação como índio, vale registrar que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) emite
o Registro Administrativo de Nascimento e Óbito de Indígenas (RANI), previsto no artigo 13 do
Estatuto do Índio, Lei 6001/73 e regulamentado pela FUNAI através da Portaria n. 003/PRES de
14 de janeiro de 2002. O RANI é um documento administrativo e não substitui a Certidão de
Nascimento Civil e os demais documentos básicos, como Carteira de Identidade, Cadastro de
Pessoa Física e Carteira de Trabalho. O Registro Civil de Nascimento (RCN) feito nos cartórios
de Registro Civil de Pessoas Naturais é previsto e regulamentado pela Lei 6015/73. O registro
fica no cartório. O registro civil de nascimento é feito uma única vez em livro específico do
cartório. Na certidão de nascimento poderá constar a declaração do registrando como indígena e
o respectivo povo/etnia. Da mesma forma, a aldeia poderá constar como local de nascimento,
juntamente com o município. Além disso, o povo/etnia pode ser lançado como sobrenome.
(www.funai.gov.br)
61
Como a lei não prevê que os/as candidatos/as às vagas do 1º ano do ensino fundamental que
cursaram a educação infantil em instituição da rede pública de ensino tenham um percentual
específico, no edital para o processo seletivo para esse ano de escolaridade houve o agrupamento
de 20% + 20%, totalizando 40% de vagas reservadas para estudantes negros, pardos ou índios.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 107

Tipo de vaga Número de vagas

Não reservada (ampla concorrência) 17

Estudantes negros, pardos e índios 24

Pessoas portadoras de deficiência 3

Filhos de professores da UERJ 8

Filhos de funcionários da UERJ 8

TOTAL 60

Tabela 1: 1º ano – sorteio para o ano letivo de 2014.

De acordo com o levantamento realizado pela Secretaria Geral do CAp, o


primeiro processo seletivo para o 1º ano que atendeu as exigências da Lei 6.434/13
contou com o seguinte número de inscritos/as:

Comunidade Cota Quantitativo

Externo Candidato negro, pardo ou índio 118

Externo Candidato com deficiência auditiva 1

Externo Candidato com deficiência física 1

Externo Não cotista 1287

Interno Servidores da UERJ 58

TOTAL 1465

Tabela 2: Candidatos inscritos no concurso para o 1º ano.

Para o 6º ano do ensino fundamental, também de acordo com o edital, a


distribuição de vagas foi a seguinte: 20% para estudantes oriundos da rede pública
de ensino; 20% para estudantes negros, pardos e índios; 5% para pessoas portadoras
de deficiência; 12,5% para filhos de professores; 12,5% para filhos de funcionários,
distribuídos conforme a tabela apresentada a seguir

Tipo de vaga Número de vagas

Não reservada (ampla concorrência) 17

Estudantes da rede pública de ensino 12

Estudantes negros, pardos e índios 12

Pessoas portadoras de deficiência 3

Filhos de professores da UERJ 8

Filhos de funcionários da UERJ 8

TOTAL 60

Tabela 3: 6º ano – sorteio para o ano letivo de 2014.


Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 108

Atendendo as exigências da Lei 6434/13 para a concorrência às vagas para


o processo seletivo ao 6º ano de escolaridade o número foi o seguinte:

Comunidade Cota Quantitativo

Externo Candidato da rede pública 24

Externo Candidato negro, pardo ou índio 26

Externo Candidato com deficiência auditiva 1

Externo Não cotista 388

Interno Servidores da UERJ 30

TOTAL 469

Tabela 4: Candidatos inscritos no concurso para o 6º ano.

De acordo com o Plano de Intervenção do Serviço Social no CAp/UERJ


2015, em 2014 o colégio recebeu “quarenta novos estudantes cotistas, de idades
entre 05 e 07 anos, no primeiro ano de escolaridade e entre 10 e 12 anos no sexto
ano de escolaridade. Já em 2015, ingressaram 48 novos alunos cotistas no primeiro
e sexto ano de escolaridade nessas mesmas faixas etárias” (p. 18).
Importa ressaltar que, de acordo com entrevista realizada com o diretor da
instituição, o mesmo alegou que o processo de elaboração e discussão da Lei
6434/13 não contou com a participação da comunidade escolar. Em seu depoimento
afirmou que aconteceram dois encontros com “um grupo de afrodescendentes que
estaria ligado ao grupo do Frei David, a EDUCAFRO62”, antes da aprovação da lei
em que as reivindicações desse movimento social foram ouvidas pela direção do
colégio. Outra ação narrada pelo diretor, diz respeito ao fato dele ter ido procurar o
presidente da Comissão de Educação da ALERJ para solicitar a participação da
comunidade escolar em uma audiência pública que trataria da aprovação da lei.
Eu já tinha um contato anterior com a Comissão de Educação da ALERJ pelo fato
de eu ter sido do Conselho Estadual de Educação, então eu fui procurar a Comissão
de Educação da ALERJ e tentei colocar a questão: nós gostaríamos de em havendo
um debate de sermos chamados para participar desse debate porque nós sabemos
que é uma audiência pública e todos podem participar da audiência pública, mas a
gente sabe que existem assentos especiais na audiência pública e eu gostaria que a

62
A Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (EDUCAFRO) é uma rede de cursinhos
pré-vestibulares comunitários mantida pelo Serviço Franciscano de Solidariedade, uma
associação da sociedade civil sem fins lucrativos. A organização luta para que a população pobre
e negra, em especial, possa ser incluída nas universidades públicas e privadas – com bolsa de
estudos integral. A ONG atua com a ajuda de voluntários que têm como objetivo incluir essa
população em estatísticas onde ainda são ignorados: a de integrantes de instituições de nível
superior www.educafro.org.br. Frei David e a EDUCAFRO tiveram participação de destaque nas
discussões sobre a adoção das ações afirmativas nas universidades públicas do estado do Rio de
Janeiro.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 109

direção do CAp, o grêmio, os servidores pudessem vir aqui participar desse debate
mais ativamente e fazer essa discussão como convidados da audiência pública e
isso foi feito. Na época já era o Comte Bittencourt o presidente da Comissão de
Educação e ele nos convidou. (Diretor)

Nessa audiência pública não foi feita, inicialmente, segundo o diretor, uma
defesa da política de cotas: “de início, não defendemos a política, nós nos sentimos
atravessados pela política. Não havia um consenso dentro da unidade”. O grupo que
participou dessa audiência foi composto por representação docente (Associação
Docente da UERJ – ASDUERJ), discente (Grêmio Estudantil), pais e responsáveis.
O ponto principal de discussão dizia respeito a alguns equívocos percebidos no
texto legal e que não estavam em consonância com o que era a unidade escolar:
O que fomos foi discutir como o instrumento da política que é a lei estava
absolutamente equivocado em relação ao que era a unidade. O perfil da lei não
dizia, não estava dizendo o que era o CAp, ele não considerava o que era o CAp. E
era um perfil de lei distorcido em função, porque ele foi feito como cópia do perfil
da FAETEC, na realidade de escolas técnicas. Um profundo desconhecimento. E
aquilo para mim mostrava um desrespeito com a instituição. Tanto que a lei sai
deixando de fora estudante de escola pública no 1º ano de escolaridade. Ela sai com
essa distorção (Diretor).

A ponderação feita pelo diretor sobre a ausência de estudantes da escola


pública para o sorteio de vagas no 1º ano de escolaridade pode ser observada no
Artigo 1º, Inciso 2º:
§2º - Por aluno que cursou integralmente o ensino fundamental na rede pública de
ensino entende-se como sendo aquele que tenha cursado integralmente todas as
séries do 1º e 2º ciclos do ensino fundamental em escolas públicas de todo território
nacional e prioritariamente aqueles oriundos da rede pública das regiões do Estado
do Rio de Janeiro.

Outro aspecto tratado pelo diretor de que a lei teria um “perfil distorcido,
feito como cópia do perfil da FAETEC”, uma escola técnica de ensino médio, pode
ser lido no Artigo 2º, Parágrafo I:
–“adoção do sistema de cotas em todos os cursos e turnos oferecidos”.
O CAp é uma instituição que oferece a educação básica desde os anos
iniciais do ensino fundamental até o ensino médio, não há, portanto, o oferecimento
de cursos; o funcionamento do colégio se dá em dois turnos porque a instituição
proporciona a seus/as estudantes aulas regulares no período matutino e aulas de
recuperação paralela, entre outras atividades, no horário vespertino.
Em sua narrativa sobre a participação dos/as representantes da comunidade
escolar na audiência pública mencionada, o diretor ainda afirmou que “nós já
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 110

tínhamos a dimensão de que a lei seria aprovada, era uma coisa politicamente
definida desde o encontro que tivemos com o Comte Bittencourt”. A tentativa seria
de fazer alguma modificação na forma como o texto havia sido redigido, mas isso
não foi possível porque “foi uma mensagem do governador e isso foi passado a
rodo”. O diálogo realizado nesse momento com a Comissão de Educação não
alterou a lei, nem foram apresentadas emendas, apenas “uma mudança textual não
muito significativa porque o erro era tão crasso que eles tinham que mudar e foi
isso”. Concluiu sua resposta dizendo que “a grande questão é que eu quero entender
como é que nós vamos conseguir dar conta dessa situação depois que os meninos e
meninas estiverem aqui” e afirmou que após a aprovação da lei nenhum
representante da EDUCAFRO voltou ao colégio para saber como havia sido feita a
implementação da lei.
Outro tema tratado pelo diretor foi o relativo à criação de um grupo de
acompanhamento e avaliação na UERJ e que está previsto na lei em seu Artigo 3º,
nos parágrafos II e III:
Art. 3º - Deverá à UERJ, em relação à CAp/UERJ, destinatária desta lei constituir
Comissão Permanente de Avaliação com a finalidade de:
II – avaliar os resultados decorrentes da aplicação do sistema de cotas na respectiva
instituição, e
III – elaborar relatório anual sobre suas atividades, encaminhando-se ao Secretário
de Estado de Ciência e Tecnologia, ao Secretário de Estado de Educação e à
Comissão Permanente de Educação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio
de Janeiro.

Em seu depoimento o diretor afirmou que: “na lei há previsão da criação de


um grupo de acompanhamento; grupo este que depois do magnífico reitor ter dito
claramente que era a favor nunca constituiu. Tanto que vivo dizendo e quem faz a
leitura da lei vai ver isso claramente, que a política de cotas é para a UERJ
direcionada ao CAp. E aí a UERJ tinha que criar o grupo de trabalho, lógico,
contemplando pessoas do CAp, não tenho dúvidas disso, mas esse grupo nunca foi
criado”. É importante lembrar que a presente lei tem vigência, inicial, de cinco anos,
portanto, sua implementação precisa ser avaliada.
Além da criação da Comissão Permanente de Avaliação, o diretor também
mencionou a questão dos recursos financeiros previstos na lei:
Art. 4º - O Estado proverá os recursos financeiros necessários à implementação
imediata, para vagas novas, pelo CAp/UERJ, de programa de apoio visando obter
resultados satisfatórios nas atividades acadêmicas de graduação dos estudantes
beneficiados por esta Lei, bem como sua permanência na instituição.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 111

Parágrafo único – O programa de apoio de que trata o caput deste artigo deverá
vigorar durante todo o curso técnico do estudante cotista, devendo ser avaliado
anualmente.

De acordo com o Plano de Intervenção do Serviço Social no CAp/UERJ


2015, “em 2013 a escola apresentou proposta de Ato Executivo do Reitor
encaminhado ao Conselho Universitário para apreciação e providências em 2013.
Até a presente data, não obtivemos respostas a respeito”.
A proposta de Ato Executivo do Reitor institui o Programa de Bolsa-Auxílio
à Permanência para discentes da Educação Básica (PBAP) que estejam em situação
de vulnerabilidade e fragilidade econômica e social, regularmente matriculados no
Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp/UERJ). O programa
visa proporcionar condições de ordem socioeconômica favoráveis ao desempenho
das atividades acadêmicas garantindo direito de acesso e permanência na educação
básica pública e de qualidade.
O artigo 3º apresenta os objetivos específicos do PBAP (CAp/UERJ):
(a) Garantir a qualidade da permanência no ambiente escolar.
(b) Proporcionar a aquisição e o acesso à alimentação no ambiente escolar, ao
uniforme e ao material didático, bem como às condições de participação nas
atividades formativas, tais como expedições e visitas guiadas promovidas pela
instituição de ensino.
(c) Identificar, prevenir e enfrentar os processos de evasão, motivados por questões
sociais adversas.
(d) Promover a diversidade no convívio escolar.
(e) Intensificar a participação na vida escolar por meio da inserção em atividades
acadêmicas e culturais internas, externas regulares e extracurriculares.

O artigo 4º elenca os critérios de acesso e permanência no programa e


também define que a equipe do Serviço Social do CAp fará avaliações anuais que
comprovem a situação de vulnerabilidade social. Os critérios serão os seguintes:
(a) Entendem-se as situações de vulnerabilidade social e de fragilidade econômica,
como sendo aquelas em que ocorrem situações de privação material que impactam
diretamente, ainda que temporariamente, no acesso às condições de permanência
diária de qualidade no ambiente escolar.
(b) O acesso, a permanência e a saída do estudante no PBAP poderão ocorrer em
qualquer tempo, uma vez respeitados os perfis e as condições estabelecidas nos
levantamentos realizados pela Coordenação do Programa por meio de edital.
(c) A permanência na condição de bolsista não estará condicionada ao rendimento
escolar dos estudantes.
(d) Não será admitida qualquer discriminação ou publicação vexatória dos
estudantes bolsistas beneficiados pelo PBAP.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 112

O documento define ainda que o quantitativo inicial será de 15% de bolsistas


sobre o total de alunos matriculados e que este percentual deverá ser reavaliado ao
final do terceiro ano de implantação deste PBAP.
A proposta esclarece que caberá ao Núcleo Acadêmico Pedagógico (NAPE)
coordenar, executar e realizar os procedimentos anuais necessários ao
acompanhamento e avaliação do programa e ao diretor da instituição, ouvido o
Conselho Departamental da Unidade, nomear a Coordenação do Programa de
Bolsa-Auxílio Permanência. Tal acompanhamento ocorrerá ao longo do ano letivo
a partir de: (i) entrevistas com as famílias; (ii) acompanhamento sócio-pedagógico
dos estudantes; (iii) reuniões com os pais ou responsáveis e estudantes; (iv)
levantamento e acompanhamento de informações socioeconômicas dos bolsistas e
dos impactos de sua integração no ambiente escolar. No tocante à avaliação, serão
produzidos relatórios anuais com levantamentos e análises relativas aos êxitos e
limitações da proposta visando à melhoria no nível de qualidade e na consecução
dos objetivos traçados. O CAp encaminhará ao Conselho Universitário, com a
aprovação de seu Conselho Departamental, a cada triênio, relatórios qualitativos e
quantitativos referentes ao presente programa.
É necessário esclarecer que o CAp conta com um Programa de Bolsa
Auxílio Permanência desde 2008 como consta no Plano de Intervenção do Serviço
Social no CAp/UERJ 2015 para atender os/as estudantes que apresentavam
fragilidades socioeconômicas:
O CAp/UERJ iniciou proposta informal de atenção aos discentes que viviam
dificuldades de permanência de qualidade na escola, em função de fragilidades de
ordem socioeconômica há alguns anos, através do apoio solidário de uma
associação de pais. A partir de 2008 a iniciativa de apoio e de acompanhamento
destes estudantes foi assumida pela Universidade. Foi organizada, então,
assistência estudantil no formato de Programa de Bolsa Auxílio Permanência, a
partir do aporte de recursos públicos (Plano de Intervenção do Serviço Social no
CAp/UERJ, 2015, p. 15).

Desse modo, é possível perceber que existe um programa de auxílio


permanência para os/as alunos/as bolsistas, inicialmente atendidos/as pela
Associação de Pais e Professores do CAp. No entanto, o programa de auxílio
permanência que ainda precisa ser implementado na instituição é o que trata da
inclusão dos/as estudantes cotistas que ingressaram no colégio pela reserva de
vagas. O aporte financeiro está previsto na Lei 6434/13 e até o momento de
elaboração do documento acima citado não havia chegado à unidade escolar
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 113

recursos financeiros voltados especificamente para esse público. A instituição tem


atendido as demandas dos/as cotistas com os recursos financeiros recebidos através
do Sistema de Desembolso Descentralizado (Sides) destinados à manutenção da
unidade.
Tendo em vista que os estudantes cotistas do CAp não foram equiparados aos
cotistas da Universidade que recebem uma bolsa auxílio no valor de R$ 400,00, o
CAp incorporou ao Programa Bolsa Auxilio Permanência [de 2008] todos os
cotistas ingressantes em 2014 e 2015, considerando o mesmo perfil social e
critérios socioeconômicos. A chegada destes estudantes potencializa o debate e
solicita veementemente respostas sobre a criação de infraestrutura para sua
permanência de qualidade. Detalhando as demandas dos cotistas trazidas por seus
familiares nas entrevistas iniciais e em atendimentos com o Serviço Social,
observamos que estas são bem semelhantes àquelas já apresentadas pelos bolsistas,
dizendo respeito aos custos com a alimentação na escola e o transporte já que a
gratuidade viabilizada para estudantes no município do Rio de Janeiro, não atinge
aos responsáveis que precisam acompanhar seus filhos pequenos e tão pouco se
estende àqueles residentes em outros municípios. Neste sentido, o debate sobre o
transporte escolar se coloca como tema essencial para estas famílias. Outra
demanda, consiste nos gastos com atividades curriculares realizadas fora do espaço
escolar — como expedições e visitas — que integram o calendário letivo da
instituição e o acesso ao uniforme. (Plano de Intervenção do Serviço Social no
CAp/UERJ, 2015, p. 18-19)

As assistentes sociais finalizam a apresentação do item sobre os recursos


financeiros afirmando que: “em uma instituição universitária que pratica e defende
uma política de cotas cujo primeiro critério de acesso é relativo à renda, surpreende
o fato de que estudantes do Ensino Básico não recebam apoio específico, no
ambiente escolar. Trata-se de uma inadequação e de uma dívida social que demanda
respostas” (Plano de Intervenção do Serviço Social no CAp/UERJ 2015, p. 19) .
Os posicionamentos dos/as demais entrevistados/as nessa pesquisa sobre a
implementação da Lei 6434/13 no CAp/UERJ serão apresentados de modo mais
detalhado no Capítulo 5 desse relatório.

3.2
CAp/UERJ: uma escola de excelência

O CAp/UERJ é considerado uma escola de excelência na cidade do Rio de


Janeiro. A instituição se destaca pelo ensino inovador, por estimular a pesquisa de
novas práticas pedagógicas, por desenvolver projetos de pesquisa e extensão, por
promover o estágio e a formação de professores. De acordo com Crizan Oliveira
(2014, p. 49), a história de construção dos Colégios de Aplicação, acabou por
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 114

“elitizar esses espaços; ora acontecia pela seleção de alunos, ora pela exigência de
vínculo com servidores das universidades ou por provas intelectuais que produziam
cenários de exclusão e excelência”. O CAp realizou a mudança no ingresso de
estudantes para o 1º ano do Ensino Fundamental ao abolir a prova de seleção que
passou a ser realizado através de sorteio público63. Para Oliveira (2014), essa
mudança rompeu paradigmas institucionais, favoreceu o questionamento de
mecanismos da instituição e deu novos significados a estes.
Ao longo de seus 59 anos de existência, o CAp-UERJ foi ganhando notório
prestígio social e reconhecimento público por adotar metodologias de ensino
inovadoras desde a alfabetização nos anos iniciais do Ensino Fundamental até o
Ensino Médio quando os/as estudantes desse nível de ensino participam de
pesquisas institucionais como bolsistas de iniciação científica. As bolsas são
oferecidas pela UERJ para esses/as estudantes através do Programa de Iniciação
Científica Júnior. Além da integração da educação básica com o ensino superior, o
CAp mantém o princípio original de sua criação, qual seja, a responsabilidade com
a formação dos futuros professores que atuarão nas redes públicas e particulares de
nossa cidade, estado e, porque não dizer, até mesmo de nosso país. Mais
recentemente, reforçou esse compromisso com a criação do curso de Mestrado
Profissional em Ensino da Educação Básica, voltado para profissionais que atuam
no ensino fundamental e médio. Assim, ao longo dos anos, o CAp obteve “ascensão
inegável de uma imagem pública de excelência transformando-se em um espaço de
certificação almejada pelos estudantes e seus familiares” (OLIVEIRA, 2014, p. 49).

63
O ingresso de estudantes ao Colégio Pedro II, instituição pública federal, também considerada de
excelência, se dá da seguinte forma: por meio de sorteio público de vagas ou processo de seleção
e classificação de candidatos conforme o nível de ensino e exclusivamente para os campi nos
quais são disponibilizadas vagas: Educação Infantil – sorteio público de vagas para turmas de 4
ou 5 anos; Anos Iniciais do Ensino Fundamental – sorteio público de vagas para o 1º ano.
Eventualmente, são oferecidas vagas para o 2º ano também por sorteio público. Não são oferecidas
vagas para as demais séries desse segmento; Anos Finais do Ensino Fundamental – processo de
seleção de candidatos através de provas de Matemática, Português e Redação para o 6º ano;
Ensino Médio (1ª série do Ensino Regular), processo de seleção de candidatos através de provas
de Matemática, Português e Redação nos turnos diurno e noturno (www.cp2.g12.br). Outra
instituição federal considerada de excelência na cidade do Rio de Janeiro é o Colégio da Aplicação
da UFRJ. O ingresso de estudantes acontece no 1º ano do Ensino Fundamental através de sorteio
público e na 1ª série do Ensino Médio pelo processo de seleção de candidatos por meio de um
teste de nivelamento com provas de Matemática e Português. Os candidatos que atingirem um
mínimo de 50% de rendimento em cada uma das avaliações de nivelamento participarão do sorteio
público para preenchimento das vagas oferecidas (www.cap.ufrj.br). Optei por apresentar essas
duas instituições por que são as mencionadas pela mídia, quando os resultados do Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM) são divulgados, como comparativas ao desempenho do CAp/UERJ.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 115

Na dissertação de mestrado intitulada “Se você não quer, faça matrícula no


pagou-passou da esquina. Concepções de currículo e avaliação: diálogos sobre um
colégio de excelência”, Oliveira (2014) procurou investigar as concepções e
sentidos de currículo, conhecimento, avaliação e qualidade que circulam entre os/as
professores/as do CAp/UERJ e que sustentam a legitimidade dessa instituição
considerada de excelência pelos resultados obtidos por seus/as alunos/as. De acordo
com a pesquisa realizada, a autora percebeu, através da análise dos discursos, que
existem compreensões distintas de currículo escolar no CAp que vão desde a
perspectiva crítica a uma ideia instrumental do currículo, mas, para a maioria dos
seus entrevistados/as, o currículo é entendido como um corpo estabelecido de
conteúdos e disciplinas consensuais a serem ensinados e aprendidos; o
conhecimento compreendido como saber legitimado a ser ensinado a todos.
Segundo Oliveira (2014, p. 63), “para parte dos entrevistados é o rigor na cobrança
dos conteúdos definidos no currículo que garantem ao CAp/UERJ o título de escola
de excelência”.
Não é minha intenção, nesta pesquisa, fazer uma reflexão sobre o
entendimento da concepção curricular dos/as professores/as entrevistados/as. Fiz
uso dos dados da pesquisa de Oliveira (2014), a fim de elencar alguns aspectos,
além dos que já foram listados, que possam sustentar a percepção de escola de
excelência e de ensino diferenciado que é atribuído ao CAp/UERJ.
O reconhecimento público do trabalho que vem sendo realizado pela
instituição pode ser verificado através do bom desempenho apresentado nas
diferentes políticas de avaliações externas, como o Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM)64 e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB)65.

64
O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) foi criado em 1998 com o objetivo de avaliar o
desempenho do estudante ao fim da educação básica, buscando contribuir para a melhoria da
qualidade desse nível de escolaridade. A partir de 2009 passou a ser utilizado também como
mecanismo de seleção para o ingresso no ensino superior. São realizadas quatro provas objetivas
(ciências da natureza, ciências humanas, linguagens e matemática) e redação. Os dados
divulgados trazem a média dos alunos de cada escola nessas provas. (www.inep.gov.br)
65
O IDEB foi criado em 2007 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (INEP). O IDEB tem o objetivo de medir a qualidade do aprendizado nacional e
estabelecer metas para a melhoria do ensino no país. O indicador é divulgado a cada dois anos e
é calculado a partir de dois componentes: aprovação e média de desempenho dos estudantes em
língua portuguesa e matemática. As metas do IDEB para escolas, municípios e Unidades da
Federação foram estabelecidas considerando cada estágio de desenvolvimento educacional dessas
unidades de referência e, também, a diminuição das desigualdades entre elas. O Plano de
Desenvolvimento da Educação estabeleceu como metas que, até 2022, o IDEB do Brasil para os
anos iniciais seja 6,0 e para os anos finais 5,5 – média que corresponde a um sistema educacional
de qualidade comparável a dos países desenvolvidos. (www.inep.gov.br)
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 116

Também não pretendo discutir aqui o significado das avaliações em larga escala,
padronizadas e suas metodologias que vêm sendo adotadas pelo Ministério da
Educação e Cultura (MEC) para verificar o desempenho dos/as estudantes em nosso
país, mas, lançar mão desses dados que, atualmente, diferenciam e condicionam a
escolha de alguns pais no momento em que decidem onde matricularão seus/as
filhos/as, levando em consideração a qualidade do ensino ofertada pelas escolas
tendo como balizadores os resultados desses exames.
No ENEM de 2009, o CAp/UERJ ficou em 1º lugar entre as instituições
públicas de ensino do Rio de Janeiro; foi a 2ª melhor média entre as instituições
públicas de todo Brasil e 17º lugar no ranking nacional geral considerando escolas
públicas e privadas. No ano seguinte, ficou em 11º lugar no ranking do estado do
Rio de Janeiro e em 3º lugar entre as escolas públicas no ranking nacional. Já em
2011, voltou a ficar em 1º lugar entre as escolas públicas do estado do Rio de
Janeiro, e no geral nacional, o colégio foi o 15º mais bem colocado. Em 2012, o 1º
lugar no ranking das escolas públicas do estado ficou pelo segundo ano seguido
com o CAp/UERJ. No ano de 2013, o colégio voltou a ocupar o 1º lugar entre as
escolas públicas do estado e garantiu o 6º lugar entre as dez melhores escolas
públicas do país. O resultado de 2014 apresenta o colégio na 2ª posição entre as
públicas do estado tendo na 1ª colocação o Colégio Pedro II. No ranking nacional,
o CAp-UERJ caiu do 99º lugar para o 182º; na comparação entre todas as escolas
do Rio de Janeiro, considerando privadas e públicas, a instituição saiu da 23ª
posição para a 40ª. No ranking dos dez melhores colégios em 2014 do Rio de
Janeiro publicado pelo Educational Rating Brazil, considerando o desempenho
médio do ENEM dos últimos três anos, o CAp/UERJ aparece em 8º lugar.
Consultando o site do INEP, do CAp/UERJ, de diversos jornais on-line, foi possível
perceber que o ranking do ENEM no país é dominado pelas escolas da rede privada.
O mesmo acontece no ranking fluminense. Os resultados desse exame têm
demonstrado a disparidade entre os ensinos privado e público, e como uma estrutura
sólida de ensino e a valorização dos/as professores/as fazem a diferença no
resultado dos/as estudantes.
Em entrevista concedida ao portal de notícias G1, em novembro de 2012,
ao comentar o resultado do ENEM 2011, a vice-diretora do CAp/UERJ, Maria
Beatriz Dias da Silva, elencou alguns aspectos que diferenciam a instituição e que
influenciam nos resultados: (i) a carga horária dos/as estudantes do 3º ano do Ensino
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 117

Médio é de 1360 horas, sendo Português a disciplina com mais tempos de aula por
semana totalizando 204 horas semanais; (ii) os/as estudantes do Ensino Médio
estudam em horário integral, das 7 às 17h10; (iii) a iniciação científica que, segundo
a vice-diretora, também é realizada no Colégio Pedro II e no CAp/UFRJ, mas no
CAp/UERJ os/as estudantes recebem bolsa concedida pela universidade através do
programa de Iniciação Científica Júnior; (iv) por ser uma unidade acadêmica da
universidade os professores não têm apenas atividades dentro da sala de aula, mas
também atividades de ensino, pesquisa e extensão; (v) os/as professores/as
estimulam o Grêmio Estudantil que ajuda a manter o diálogo entre todos; (vi) a
titulação exigida para participação em concursos públicos é o doutorado; (vii) o
regime de trabalho de dedicação exclusiva de grande número de professores/as.
Todos esses aspectos sustentariam o título de escola de excelência e de ensino
diferenciado que é atribuído ao CAp/UERJ.
Outra pesquisa que corrobora o reconhecimento público do trabalho
realizado pela instituição são os resultados obtidos no IDEB.

2007 2009 2011 2013

IDEB observado 7,2 7,5 7,6

Metas projetadas 6,8 7,0 7,2 7,4

Brasil 4,2 4,6 5,0 5,2

Estado do Rio de Janeiro (rede) 3,8 4,0 4,3 4,7

Município do Rio de Janeiro (rede) 4,5 5,1 5,4 5,3

Tabela 5: 5º ano – Ensino Fundamental – 1º segmento

2007 2009 2011 2013

IDEB observado 6,7 6,6 6,9

Metas projetadas 7,1 7,1 7,3 7,5

Brasil 3,8 4,0 4,1 4,2

Estado do Rio de Janeiro (rede) 2,9 3,1 3,2 3,6

Município do Rio de Janeiro (rede) 4,3 3,6 4,4 4,4

Tabela 6: 9º ano – Ensino Fundamental – 2º segmento

De acordo com as informações colhidas no site do INEP é possível perceber


que para os anos iniciais (5º ano) a instituição apresentou resultados acima das
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 118

metas projetadas, com exceção do ano de 2009, para esse ano de escolaridade. O
desempenho do CAp comparado aos resultados para o Brasil, bem como as redes
estadual e municipal do Rio de Janeiro também estão acima dos índices
apresentados. Já para os anos finais (9º ano) os resultados não correspondem
àqueles estabelecidos como metas para a instituição. Apesar disso, o colégio
continua apresentando índices superiores em relação ao desempenho do país e
também das redes do município e do estado do Rio de Janeiro. O site do INEP não
apresenta os dados do CAp para o ano de 2011 porque a instituição, segundo a
coordenadora do NAPE, não participou da Prova Brasil, uma das avaliações que
compõe o índice do IDEB.
Segundo o site do INEP, o IDEB de 2013 mostra que o país ultrapassou as
metas previstas para os anos iniciais (1º ao 5º ano) do ensino fundamental em 0,3
pontos. O IDEB nacional nessa etapa ficou em 5,2, enquanto em 2011 havia sido
de 5,0. O INEP espera que o Brasil alcance a média de 6,0 em 2021. A definição de
um IDEB nacional igual a 6,0 serve como referência dos sistemas em países da
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), composta
por 34 países do qual o Brasil faz parte. O CAp apresenta média superior a 6,0 desde
o ano de 2007, portanto, esses dados indicam o bom desempenho que o colégio tem
tido nas diferentes políticas de avaliações externas. Desse modo, fica evidenciado
que a formação ali ofertada para o corpo discente atende o que se espera de uma
instituição escolar e tem grande reconhecimento social, elevando a busca por
matrículas a números muito superiores às vagas ofertadas, razão pela qual se
justifica a necessidade da reserva de vagas para estudantes carentes e negros.
Além desses aspectos, há o conjunto de ações desenvolvidas pelo colégio –
ensino, pesquisa e extensão – que fazem com que a instituição seja procurada e
desejada por diversas famílias de diferentes regiões da cidade do Rio de Janeiro e
também de municípios vizinhos. Segundo Oliveira (2014), muitas vezes, as famílias
migram de seus bairros de origem para outros mais próximos da escola quando seus
filhos e filhas conseguem uma vaga na instituição.
O ensino diferenciado dos colégios de aplicação foi destaque na matéria
publicada na Revista Nova Escola, em março de 2012. De acordo com a revista, há
no Brasil 17 colégios de aplicação66 (16 federais e apenas 1 estadual) e a vinculação

66
Os colégios de aplicação mencionados na matéria pertencem as seguintes universidades:
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 119

deles com as universidades tem garantido condições para a melhoria do processo


de ensino-aprendizagem. O CAp/UERJ não está listado nessa relação porque não é
um colégio de aplicação, mas um Instituto de Aplicação porque atende três níveis
de ensino: o fundamental, o médio e o superior. A revista elenca alguns aspectos
que fazem dessas instituições “ilhas de excelência”, a saber: aprimorar o ensino;
estimular a pesquisa de novas práticas pedagógicas; o estágio; a formação de
professores; salários acima da média; regime de dedicação exclusiva; jornada de 40
horas semanais que permite que seja desenvolvida uma trajetória acadêmica. A
matéria também destaca o desempenho dessas instituições no IDEB e que as
mesmas apresentam notas que estão sempre acima da média de seus municípios.
Ainda segundo a revista, o problema é que a excelência fica restrita aos muros
dessas escolas, que são muito distintas da maioria das demais escolas públicas.
Poucas são as iniciativas que levam as metodologias desenvolvidas nos colégios de
aplicação para fora das instituições, ou seja, para as escolas públicas do entorno.
Concordando com esta argumentação, posso dizer que, nada mais justo do que
ampliar o acesso de estudantes carentes e negros/as a essas instituições de
reconhecida qualidade de ensino, ainda que seja desejável que outras iniciativas
sejam tomadas.

3.3
Estrutura e números

O CAp/UERJ funciona em prédio próprio, porém, as instalações não foram


construídas para esse fim. No local funcionava um hospital que estava desativado,
e não foi feita nenhuma obra que modificasse profundamente sua estrutura, apenas
algumas adaptações para que passasse a abrigar uma instituição escolar. Sua
estrutura física é constituída de dois blocos, A e B, com 8 andares no bloco A, e 6
andares no bloco B. O bloco A possui 26 salas de aula, 7 salas de convivência

Universidade Federal de Sergipe (UFS), Universidade Federal de Uberlândia (UFU),


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal de Roraima (UFRR),
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade
Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade
Federal do Acre (UFAC), Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Universidade Federal de
Viçosa (UFV), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade de São
Paulo (USP).
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 120

(Música I, Música II, Fotografia, Artes I, Artes II, Teatro e Design), 3 laboratórios
(Francês, Espanhol e Informática), 4 departamentos (DCN – Departamento de
Ciências da Natureza; DMD – Departamento de Matemática e Desenho; DLL –
Departamento de Línguas e Literatura; DCHF – Departamento de Ciências
Humanas e Filosofia) e dependências administrativas - Direção, Secretaria de
Departamentos, Secretaria Geral, Núcleo Acadêmico Pedagógico (NAPE). Possui
ainda um restaurante e uma cantina terceirizados67, um auditório com 108 lugares,
sala do grêmio estudantil, uma sala de professores/estágio, uma sala de
mecanografia e 15 banheiros. O bloco B possui 15 salas de aula, 8 laboratórios
(Química, Biologia, Física, Ciências, Desenho, Informática, Geografia,
Matemática), sala multimídia, 2 salas de professores (Departamento de Ciências da
Natureza - DCN e Departamento de Ensino Fundamental - DEF), 15 banheiros
sendo dez exclusivos para alunos/as, sala de curativos, 2 bibliotecas, almoxarifado,
sala de depósito, sala onde funciona o Núcleo de Extensão, Pesquisa e Editoração
(NEPE), além do parquinho utilizado pelas crianças do 1º ano do ensino
fundamental. Existe também nesse bloco um prédio anexo que abriga: sala de
musculação, sala de ginástica olímpica, sala de professores (Departamento de
Educação Física e Artística - DEFA), 2 banheiros, 2 vestiários, quadra poliesportiva
e pátio, espaços que são compartilhados por todos/as os/as estudantes. Como
podemos perceber pela descrição de sua estrutura física, trata-se de uma escola de
grande porte.
O espaço da escola, de maneira geral, é organizado e limpo, apesar de todas
as dificuldades administrativas que o CAp/UERJ enfrentou, em 2015, no que se
refere à suspensão do pagamento dos/as funcionários/as terceirizados/as que

67
Em entrevista com o diretor do colégio ele informou que nunca houve alimentação escolar gratuita
no CAp por que a maior parte do público podia arcar com essa despesa e a lei que determinava a
destinação de alimentação escolar ainda não existia. Além disso, esclareceu a situação da
instituição dentro do sistema estadual de ensino afirmando que: “a unidade não estava ligada ao
sistema, quer dizer, ela é do sistema (estadual), mas não estava ligada a rede e é pela rede que
você pede a verba do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Nem a rede FAETEC, nem a
rede da Secretaria de Ciência e Tecnologia, nem a rede da Secretaria Estadual de Educação são
as nossas redes, somos uma escola separada. Nesse sentido, o CAp não se aproximou desses
programas a partir das redes por que nas redes isso é automático, vou usar essa expressão. No
CAp, não. O professor Miguel (antigo diretor) tentou fazer isso só que teve um obstáculo muito
grande: na falta de espaço físico para preparação de merendas, preparação da alimentação escolar,
ele acabou pedindo dinheiro da alimentação escolar e ao fim e ao cabo ele não teve como gastar
por que ele não tinha como preparar o alimento e o dinheiro foi devolvido. Então, nós, nessa
última gestão, também não tivemos essa opção. O que fizemos? Fizemos a luta pela construção
do restaurante que é o que está rolando lá na construção”. Há uma previsão de que o refeitório do
CAp fique pronto em meados de 2016 e assim o colégio terá alimentação escolar gratuita.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 121

cuidam da limpeza. Vale ressaltar que em função dessa situação a manutenção dos
banheiros, salas de aula e demais dependências da escola nem sempre são realizadas
a contento. Uma reclamação frequente dos/as estudantes refere-se à limpeza dos
banheiros.
A crise financeira do Estado e os cortes orçamentários cada vez maiores
levaram a UERJ a uma situação de colapso no final de 2015. O descaso com a
universidade é antigo e sistemático, mas se agudizou. Alegando situação de
insalubridade, o reitor Ricardo Vieiralves anunciou por meio de uma nota o
fechamento da universidade no período de 24/11/15 a 01/12/15. O reitor informou
que as unidades acadêmicas teriam autonomia para definir as atividades
imprescindíveis que não seriam interrompidas. O atraso nos pagamentos dos
terceirizados que prestam serviços de segurança e limpeza em todas as suas
unidades acadêmicas, da alimentação, no caso do Restaurante Universitário do
campus Maracanã, dos/as docentes e servidores/as técnico-administrativos
contratados/as, dos/as bolsistas, dos/as residentes de Medicina que trabalham no
Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), foi amplamente noticiado pela
imprensa. No dia 30/11/15, estudantes ocuparam o campus Maracanã,
posteriormente, outras unidades acadêmicas foram ocupadas, e o movimento
Ocupa UERJ só terminou no dia 18/12/15. Além do atraso nos pagamentos dos/as
terceirizados/as, os/as docentes e servidores/as efetivos/as tiveram o salário de
novembro 2015 parcelado em duas vezes, e o 13º salário, direito garantido aos/às
trabalhadores/as será pago em cinco parcelas até abril de 2016. A instituição fica
à mercê das decisões da reitoria e também do governo do estado.
O pátio é um espaço que os/as estudantes ocupam nos momentos de entrada,
saída, recreio ou quando são liberados das aulas. Os inspetores e inspetoras são os
responsáveis pela vigilância e acompanhamento dos/as estudantes no horário do
recreio. Nesse período de intervalo os/as docentes costumam permanecer nas salas
de professores/as.
A instituição está organizada em dois turnos sendo que no período matutino
realizam-se as aulas das disciplinas regulares de todos os anos de escolaridade desde
a educação básica ao ensino médio. No período vespertino, os estudantes de todos
os segmentos da educação básica assistem às aulas da Recuperação Paralela68,

68
A partir da deliberação do Conselho Departamental do CAp/UERJ e do Pleno do Conselho
Superior de Ensino e Pesquisa (CSEPE) as normatizações sobre a Recuperação Paralela, a partir
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 122

acontecem também aulas do Clube de Leitura para os/as alunos/as do 4º e 5º ano do


1º segmento do ensino fundamental, aulas de Música, Teatro, Artes e Educação
Física para os estudantes desse mesmo segmento ao longo da semana e de acordo
com o ano de escolaridade. Os/as estudantes do 2º segmento do ensino fundamental
tem uma carga semanal de 29 horas/aula nos turnos matutino e vespertino; os/as do
ensino médio têm uma carga horária semanal de 37 horas/aula também em dois
turnos e isso faz com que permaneçam nas dependências da escola por 9 horas
diárias, sendo 5 horas pela manhã e 4 horas à tarde não estando incluídas nesse
cálculo as horas de permanência na Recuperação Paralela.
De acordo com o Anuário Estatístico DataUERJ69 2014, Base de Dados
2013, neste ano o CAp contava com um total de 1095 estudantes distribuídos da
seguinte forma: 1º e 2º segmentos do ensino fundamental – 804, ensino médio –
291. As turmas do 6º ano de escolaridade contavam com um total de 161 estudantes
matriculados/as, tendo aproximadamente 32 alunos/as por turma. Desse total, 121
foram aprovados, 9 ficaram reprovados/as, 3 foram transferidos/as, 1 foi
jubilado/a70. O CAp contava com 215 docentes, sendo 118 do quadro efetivo e 97
substitutos/as. O corpo docente efetivo estava distribuído na carreira de acordo com
cinco categorias: 16 auxiliares, 53 assistentes, 45 adjuntos, 4 associados. Não havia
nenhum/a docente na categoria de titular. Quanto à titulação do corpo docente
efetivo o panorama era: 12 possuíam graduação, 5 especialização, 51 mestrado e 50

do ano letivo de 2010, são: a recuperação (aulas e avaliação) implicará na possibilidade de


alteração das médias referentes aos períodos letivos. Os alunos ainda poderão se submeter às
provas finais, conforme as normas vigentes. Conforme o horário de recuperação, sempre
divulgado no início do ano, há tempos destinados para as aulas de recuperação. Essas aulas são
ministradas por professores, mesmo que contêm com o apoio de bolsistas ou estagiários. Todos
os alunos, segundo a nova deliberação, com média igual ou inferior a 5,0 (cinco) são indicados
para a recuperação. Tal atividade prevê reavaliação de desempenho, que pode redundar em
alteração de nota, da seguinte forma: - soma-se a média do período letivo anterior (que indicou o
aluno) com a média alcançada na recuperação; - divide-se por dois gerando uma média retificada;
- se o resultado (média retificada) for maior que a média original do trimestre esta será alterada; -
se for igual ou menor ficará como estava. A frequência é exigida, proporcionalmente às aulas
dadas, como requisito para a realização da avaliação (presença mínima de 75% das aulas
previstas). (www.cap.uerj.br)
69
O anuário estatístico DataUERJ é uma publicação produzida pelo Núcleo de Informação e Estudos
de Conjuntura (NIESC-VR), órgão vinculado à administração central da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro - UERJ, que reúne as principais informações institucionais da Universidade. Os
indicadores apresentam-se no DataUERJ sob a forma de quadros evolutivos com registros
referentes às duas últimas décadas. Cada grupo de indicadores vem acompanhado de uma breve
análise, formulada pela equipe de coordenadores do NIESC-VR, que busca correlacionar os
gradientes de variação dos dados ao contexto geral às políticas institucionais adotadas em cada
momento. (www2.datauerj.br)
70
Dois estudantes do 1º ano do ensino médio também foram jubilados/as em 2013.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 123

doutorado. A carga horária contratual dos/as docentes efetivos/as estava assim


distribuída: 26 docentes com vinte horas semanais, 89 com quarenta horas, 3 com
quarenta horas no regime de dedicação exclusiva. O corpo de servidores/as técnico-
administrativos efetivos em 2013 era de 43 funcionários/as71.
O Anuário Estatístico DataUERJ 2015, Base de Dados 2014, apresenta os
seguintes números: o total de estudantes era de 1101, sendo 813 matriculados/as
nos dois segmentos do ensino fundamental e 288 no ensino médio72. As turmas do
6º ano de escolaridade contavam com um total de 128 estudantes matriculados/as,
tendo 32 alunos/as por turma. O número de reprovações foi menor tendo apenas 1
estudante retido/a, 1 foi transferido/a e não houve jubilação nesse ano de
escolaridade73. O quadro docente sofreu uma pequena alteração; o número de
efetivos/as era de 111 e de substitutos 95, perfazendo um total de 206
professores/as. A carreira docente do quadro efetivo estava distribuída por categoria
da seguinte forma: 14 auxiliares, 45 assistentes, 45 adjuntos e 7 associados. Não
havia nenhum/a docente na categoria de titular. A titulação desses/as profissionais
também apresentou poucas mudanças: 10 possuíam graduação, 5 especialização, 44
mestrado e 52 doutorado74. A carga horária contratual dos/as docentes efetivos/as é
semelhante àquela informada no ano anterior: 23 docentes com vinte horas
semanais, 86 com quarenta horas, 2 com quarenta horas no regime de dedicação
exclusiva. Já o quadro de servidores/as técnico-administrativos sofreu uma
mudança mais significativa passando para 76 funcionários/as, sendo 40 do sexo
masculino e 36 do sexo feminino. Em 2014, houve o ingresso de 24 profissionais

71
O DataUERJ não apresenta dados relativos à formação dos/as servidores/as técnico-
administrativos efetivos/as. Há informações sobre o número de funcionários/as distribuídos/as por
sexo, 23 masculinos e 20 femininos. A idade desses/as profissionais é bastante variada sendo a
maior concentração no ano em questão de 16 funcionários/as entre 50-59 anos de idade. Houve
no ano de 2013 o ingresso de 17 profissionais na carreira de servidores técnico administrativos no
CAp/UERJ.
72
Além desses/as o CAp passou a contar com mais 20 alunos/as inscritos/as na primeira turma do
Programa de Mestrado Profissional que teve início no ano de 2014. Desse modo, o total de
alunos/as agrupando a educação básica e a pós-graduação é de 1121 estudantes.
73
Em 2014 o número de estudantes jubilados/as aumentou consideravelmente segundo o DataUERJ:
quatorze estudantes deixaram a instituição sendo: três no 7º ano, dois no 8º ano, cinco no 9º ano
e quatro na 1ª série do ensino médio. O DataUERJ não apresenta dados sobre a evasão de
estudantes na instituição. Segundo entrevista com a atual coordenadora do NAPE, a evasão no
CAp é pequena em todos os anos de escolaridade.
74
No item afastamento definitivo docente, os dados do DataUERJ informam que houve, em 2014,
no CAp, duas aposentadorias e quatro exonerações.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 124

nessa categoria profissional75. A direção do CAp é composta por um diretor e uma


vice-diretora76.
Observando o organograma do Instituto, podemos compreender sua
complexidade. As instâncias superiores são a Direção e o Conselho Departamental;
todos os departamentos são consultados, mas é nos Conselhos Departamentais que
as votações ocorrem e as decisões sobre a unidade são tomadas e encaminhadas
para a Universidade. O CAp-UERJ possui 5 coordenadorias e 6 departamentos:
Departamento de Ciências Humanas e Filosofia (DCHF), Departamento de
Ciências da Natureza (DCN), Departamento de Ensino Fundamental (DEF),
Departamento de Educação Física e Artes (DEFA), Departamento de Línguas e
Literatura (DLL) e Departamento de Matemática e Desenho (DMD).
O CAp/UERJ conta com o seguinte organograma de coordenadorias e
departamentos77:

Figura 2: Organograma de coordenadoria e departamentos.

75
Com a chegada desses/as profissionais, a idade está concentrada nas seguintes faixas etárias: de
20-29 anos temos dezenove servidores/as, de 30-39 anos outros dezenove. A faixa de 50-59 anos
manteve-se inalterada (16 profissionais). (www2.datauerj.br)
76
No mês de outubro/2015 foram realizadas as eleições para reitor, vice-reitor, diretores de centro
e diretores de unidade da UERJ, incluindo o CAp. Os/as eleitos/as para esses cargos
desempenharão essas funções no período de 2016-2019, portanto, o CAp contará com uma nova
direção que tomou posse em 01/03/16.
77
Organograma retirado do site do CAp/UERJ (www.cap.uerj.br) em 16/09/15. Nesse quadro ainda
não aparece a Coordenadoria da Pós-Graduação – Mestrado em Ensino.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 125

Quanto aos locais de moradia de seus estudantes, o CAp atende a


moradores/as de diversos bairros cariocas e também de municípios vizinhos. De
acordo com o relatório Perfil dos Alunos Ingressantes no Ano de 2014 produzido
pelas assistentes sociais do colégio, a condição de moradia entre o grupo dos alunos
não cotistas que possui imóvel próprio é de 41% e de 15% daqueles que moram de
aluguel. Entre os alunos cotistas, 21% possuem moradia própria e 46% alugada.
Ainda foi identificado que 25% das famílias dos alunos cotistas vivem em imóvel
cedido.
Quanto à localidade, 69% dos alunos não cotistas residem na zona norte,
onde 39% vivem em bairros do entorno escolar. Ainda nesse grupo, 27% das
famílias entrevistadas residem na zona sul. Quanto às famílias dos alunos cotistas,
66% residem na zona norte, sendo 25% no entorno escolar. Neste mesmo grupo,
foram identificadas que 13% das famílias entrevistadas moram na região
metropolitana. Por ser uma região mais afastada, o deslocamento se torna mais
desgastante, principalmente quando se trata de alunos/as do 1º ano do ensino
fundamental. Outros/as estudantes residem na zona oeste, 9%, seguidos de 8% que
vivem na Leopoldina. Apenas 4% das famílias pertencentes a esse grupo residem
na zona sul.
O mesmo relatório para o ano letivo de 2015 apresenta os seguintes dados:
quanto à condição de moradia entre o grupo de alunos cotistas, 37% possui imóvel
próprio, 18% moram de aluguel e 27% vivem em imóvel cedido. Entre os alunos
não cotistas, 33% possuem moradia própria, 30% vivem em imóvel alugado e em
18% dos casos não foi informada a condição de moradia.
No que se refere ao local de moradia, 57% dos alunos cotistas residem na
zona norte fora do entorno escolar, 29% residem em bairros do entorno escolar, 9%
residem na zona oeste e 5% vivem na região metropolitana. Quanto às famílias
dos/as alunos/as não cotistas, 44% residem na zona norte em bairros do entorno
escolar, 26% residem na zona norte fora do entorno escolar, 15% residem na zona
sul, 11% na zona oeste e 4% residem na região metropolitana. Pode-se perceber que
a maior parte das famílias dos alunos cotistas mora em locais distantes da escola, o
que é bem desgastante quando se trata de crianças pequenas.
Os dados apresentados até aqui tem como objetivo traçar um panorama do
CAp-UERJ, do seu corpo docente e realizar uma primeira aproximação à Lei
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 126

6434/13, que implementou a reserva de vagas com cotas raciais no colégio. A


seguir, proponho-me a apresentar os sujeitos da pesquisa.

3.4
Os sujeitos da pesquisa

Foram realizadas 14 entrevistas, sendo 10 com professores/as efetivos/as e


contratados/as que atuaram nas turmas do 6º ano do ensino fundamental com
estudantes/as que ingressaram em 2014 após a implementação da lei que previa a
reserva de vagas para esse ano de escolaridade e 4 entrevistas com pessoas ligadas
à administração da escola: o diretor da unidade; a coordenadora do NAPE à época
da implementação da lei; uma pedagoga do referido ano de escolaridade que
acompanhou as turmas do 6º ano em 2014 e a secretária da escola. Vale ressaltar
que a listagem dos professores e professoras que atuaram com essas turmas foi
obtida na secretaria da escola e contava com 25 nomes. Desse total, apenas 5 eram
professoras do quadro efetivo, os/as demais eram docentes contratados/as que não
tiveram seus contratos renovados para o ano letivo de 2015. Dentro dos/as 10
professores/as entrevistados/as estão às professoras efetivas que atuavam nas
seguintes disciplinas: três eram de Língua Estrangeira (duas de Inglês e uma de
Francês) e as outras duas eram professoras que não tiveram turmas regulares do 6º
ano em 2014, atuaram na Recuperação Paralela com um grupo reduzido de
estudantes nas disciplinas de Ciências e Desenho. Disciplinas como Matemática,
Português, História, Geografia e Ciências ficaram a cargo dos/as professores/as
contratados/as. A decisão por entrevistar 10 professores/as foi tomada junto com
meu orientador acadêmico por considerarmos que esse número seria significativo
dentro do universo dos 25, garantindo que as 5 efetivas estivessem nesse grupo.
Os/as outros/as 5 professores/as foram escolhidos/as na tentativa de contemplar as
diferentes áreas do conhecimento78.
O primeiro contato com esses/as professores/as foi feito através de
mensagem por correio eletrônico e, inicialmente, obtive apenas a resposta de uma
professora efetiva. Diante desse fato, retornei à secretaria do colégio, verifiquei os

78
Neste grupo, o tempo de trabalho no CAp variava bastante: o professor Mateus e a professora
Fernanda trabalharam na instituição apenas um ano; a professora Flávia lecionou por dois; a
professora Monique por três e o professor Cauã por oito anos.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 127

endereços dos e-mails, enviei nova mensagem e como não obtive outras respostas
solicitei os números de telefones celulares das professoras efetivas. Através desse
contato telefônico consegui marcar as entrevistas com essas docentes. Desse modo,
iniciei as entrevistas com as professoras efetivas e a secretária da escola. As
entrevistas com o diretor, a coordenadora pedagógica e a pedagoga foram realizadas
posteriormente e de acordo com a disponibilidade de cada um/a. O principal desafio
nesse momento inicial foi contactar os professores e professoras contratados/as uma
vez que nenhum deles respondeu minha mensagem eletrônica.
A localização desses sujeitos só foi possível quando comecei a utilizar a
técnica de snowball ou estratégia da “bola de neve” (George Goodman, 1961), para
conseguir encontrar meus/minhas informantes. Essa metodologia de pesquisa prevê
a indicação de informantes e é amplamente empregada em pesquisas de diferentes
campos do conhecimento, especialmente quando os indivíduos que pretendemos
acessar são difíceis de encontrar ou pertencem a um grupo muito específico. Assim,
o contato com mais sujeitos permite, através dos primeiros, estabelecer contato com
os demais. Tal estratégia se mostrou bastante efetiva no caso desta pesquisa. Assim,
as professoras efetivas fizeram contato com os/as contratados/as explicando que
receberiam uma mensagem eletrônica sobre a participação em uma pesquisa de
doutoramento e, só então, as respostas começaram a chegar ao meu e-mail.
As entrevistas foram realizadas num período de 4 meses e ocorreram em
locais distintos: 9 nas dependências do CAp, 2 no campus da UERJ Maracanã, 1 na
PUC-Rio, 1 no local de trabalho da depoente após o término das aulas, 1 na casa da
depoente. Antes das entrevistas, os/as participantes preencheram uma ficha com
informações sobre sua formação acadêmica, tempo de atual profissional, local de
trabalho, disciplinas e anos de escolaridade que lecionam e que lecionaram quando
estavam no colégio. Além disso, todos os/as entrevistados/as assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Foram entrevistados/as professores/as de Desenho (1), Língua Estrangeira
(3) (Inglês e Francês), Ciências (2), Matemática (1), Português (1), Geografia (1) e
História (1). É importante esclarecer, mais uma vez, que das cinco professoras
efetivas três eram de Língua Estrangeira e duas atuaram com alunos/as apenas na
Recuperação Paralela.
O tempo de trabalho no magistério, entre as professoras efetivas, varia entre
17 a 34 anos. Dentre elas, três trabalham atualmente apenas no CAp, uma leciona
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 128

em mais duas escolas sendo uma federal e a outra da rede privada, uma é professora
do ensino superior na Faculdade de Formação de Professores/FFP/UERJ, no
Departamento de Letras. Já entre os/as professores/as contratados/as o tempo de
trabalho no magistério é de 4 a 10 anos. Nesse grupo, todos/as lecionavam em mais
de uma instituição enquanto foram professores/as do CAp.
As idades variaram bastante, entre 25 e 56 anos, compreendendo os dois
grupos de entrevistados/as. No grupo das professoras efetivas, quatro estão na faixa
etária dos 50 anos e a mais nova com 42. Entre os/as contratados/as, as idades estão
entre 25 e 33 anos, revelando que esse conjunto de sujeitos é, como esperado, mais
jovem e menos experiente.
No que diz respeito à formação, todos/as os/as professores/as
entrevistados/as possuem pós-graduação. Entre as professoras efetivas, três
possuem mestrado e duas têm doutorado. No grupo dos/as contratados/as, três já
concluíram o mestrado, uma está cursando mestrado em ciência, tecnologia e
educação, e um está cursando o doutorado em geografia. Esses dados indicam um
bom grau de comprometimento e preocupação dos/as entrevistados/as com sua
formação continuada.

Tempo de Número de
Codinome Sexo Idade Disciplina
magistério escolas que atua
Rita F 56 Inglês 34 anos 1

Rose F 50 Ciências 31 anos 1

Jussara F 52 Desenho 26 anos 3

Isabel F 42 Inglês 20 anos 2

Miriam F 56 Francês 17 anos 1

Flávia F 25 Ciências 4 anos 2

Fernanda F 25 Matemática 4 anos 2

Mateus M 27 Geografia 4 anos 1

Monique F 30 Português 6 anos 3

Cauã M 33 História 10 anos 3

Tabela 7: Professores/as entrevistados/as79

79
As professoras Rita, Rose, Jussara, Isabel e Miriam pertencem ao quadro de docentes efetivas,
enquanto Flávia, Fernanda, Mateus, Monique e Cauã compõem o grupo dos/as professores/as
contratados/as.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 129

No grupo de profissionais ligados/as à administração do CAp, foram


entrevistadas/o três mulheres e um homem com idades que variam entre 30 e 66
anos. Todos/as são servidores/as efetivos, três trabalham apenas nessa instituição e
uma atua também na rede pública estadual do município de Duque de Caxias. Três
possuem experiência no magistério e o tempo de atuação varia de 14 a 47 anos; um
atua na educação básica e também no Curso de Mestrado Profissional na área de
concentração voltada ao “Cotidiano e Currículo no Ensino Fundamental”.
No que diz respeito à formação, um possui doutorado em educação, uma
mestrado em educação, uma é graduada em Serviço Social, uma está cursando o
Mestrado Profissional em Ensino no CAp/UERJ. Percebemos também nesse grupo
que os/as profissionais têm uma formação sólida.
No que se refere às características etnicorraciais, captadas pela ficha de
identificação do/a entrevistado/a (Apêndice 3) que os/as entrevistados/as
preencheram previamente na qual foi perguntada a cor da pele80, dos/as quatorze
entrevistados/as, a maioria, dez se declarou branca, uma parda e três negros/a.
Ressalto que, segundo minhas observações, outros/as entrevistados/as poderiam ser
classificados/as como pardos/as o que pode indicar que a autodeclaração das
características étnico-raciais carrega muita subjetividade.
Outra pergunta que constava na ficha de identificação, dizia respeito à
inserção em outros espaços de participação, apenas três dos/as entrevistados/as
indicaram que participam de algum grupo ou organização, sendo citados nos casos
respondidos os grupos de pesquisa institucionais que fazem parte, dois no próprio
CAp/UERJ e outros dois ligados a grupos de pesquisa que estão diretamente
relacionados com o doutoramento de um dos professores entrevistados.
Considerando essa descrição preliminar do campo de pesquisa e o perfil
dos/as entrevistados/as, os itens seguintes, com base nas entrevistas com
professores/as e profissionais ligados/as à administração do CAp, estarão
organizados em quatro grandes temas:
1. experiência profissional no CAp/UERJ;
2. representação sobre as políticas de ação afirmativa no Brasil e no CAp;

80
A ficha preenchida pelos/as entrevistados/as foi produzida no GECEC e está dividida em três
blocos: identificação, formação e atuação profissional. No primeiro bloco, o item cor aparece
conforme está estabelecido nas pesquisas realizadas pelo IBGE em que são definidas cinco
categorias: branco, pardo, preto, amarelo e indígena.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 130

3. descrição do perfil dos/as estudantes;


4. posicionamentos em relação à experiência de implementação de cotas
raciais no CAp.

Apresentarei a seguir, os dados do primeiro tema abordado nas entrevistas


pelos sujeitos pesquisados/as. Os demais temas serão relatados no capítulo
reservado à análise das representações, pontos de vista e pensamentos dos/as
depoentes em diálogo, sempre que possível, com a literatura que fundamenta
teoricamente esta investigação.

3.5
Experiência profissional no CAp/UERJ

Os/as profissionais entrevistados/as, tanto professores/as quanto aquele/as


ligado/as à administração do colégio, foram questionados/as sobre o que
consideravam mais positivo na vida acadêmica no CAp/UERJ e apontaram os
seguintes aspectos: os momentos de troca, de trabalho em parceria entre
profissionais antigos e novos de diversos setores da instituição; trabalho em equipes
de disciplinas; a convivência com pessoas de diferentes formações; a diversidade
do corpo discente no que diz respeito aos aspectos socioeconômicos, culturais e
étnicos; a metodologia de ensino diferenciada; a qualidade e excelência do ensino;
o pequeno número de estudantes na sala de aula (em média 32); a possibilidade de
contribuir com a formação dos/as estudantes; a oportunidade de atuar em diferentes
níveis de ensino, desde a educação básica até a pós-graduação e de desenvolver
projetos de pesquisa e extensão.
O depoimento do diretor ressalta o que significa ser uma instituição que
trabalha com diferentes níveis de ensino.
A possibilidade de estar experimentando diferentes lugares aqui, convivendo com
diferentes pessoas, de alguma forma aprendendo com cada uma delas; isso para
mim é muito rico. Uma pluralidade de ideias em constante convívio, às vezes, em
disputas, às vezes, em acordo. Acho que o CAp tem essa riqueza e, como professor
a gente sente essa diferença comparativamente a outros espaços escolares onde
atuei. Não quer dizer que eles fossem pobres, não é isso, mas aqui é diferente,
parece que as coisas rolam de uma forma mais intensa o tempo todo. Eu acho que
é da própria natureza da unidade porque, o fato de ter um foco direcionado às
diferentes formações, acho que já traz isso, parece que nada aqui se perde. Você
tem que atender diferentes formações e atuar em diferentes formações, então você
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 131

vive com uma miríade de profissionais, não só com essas formações diferentes,
mas com tempos diferentes de formação, alguns mais experientes outros menos
experientes e você vai ao longo do tempo percebendo que você vai fazer parte dessa
engrenagem, você já foi menos experiente e passa a ser um dos mais experientes e
vai ajudar a formar muitos daqueles que serão os futuros experientes, que vão lidar
com um público que também é diferente daquele público que você trabalhou alguns
anos atrás, eu agora tenho colegas que foram meus alunos. Então, é isso, o CAp
proporciona isso para a gente. Lógico que é muito difícil, muito trabalho porque,
diferente daquelas escolas convencionais, não existe muito aquele padrão, existe
uma coisa que está em construção. (Diretor)

Vale ressaltar, que para 8 dos/as 10 professores/as entrevistados/as, o


aspecto positivo mais destacado foi a autonomia que esses/as profissionais têm para
trabalhar os conteúdos em sala de aula; para organizar os planejamentos.
Uma característica que me agrada muito no CAp também é a liberdade que o
professor tem em sala de aula. Apesar de ter o Núcleo Pedagógico atuante, apesar
de ter uma série de vínculos com a UERJ, o professor é livre pra fazer o que ele
quer em sala de aula. Experiências, dinâmicas, atividades de campo, isso é uma
questão importante também que sempre me estimulou muito a trabalhar no CAp
porque eu sempre tive liberdade pra fazer o que eu queria em sala de aula, coisa
que eu nunca tive nas escolas particulares. (Professor Cauã)

O CAp me trouxe uma experiência de liberdade profissional, uma autonomia


dentro de sala de aula que eu não tenho, por exemplo, nas escolas particulares e
dentro do outro programa que eu tinha um cronograma muito mais rígido a ser
cumprido. No CAp eu tinha uma liberdade de fazer as programações e os
planejamentos a minha maneira e isso era muito bom porque você consegue ditar
o seu ritmo e consegue aproveitar melhor o que a turma te oferece de acordo com
o que você vai pescando ali e vai entendendo do andamento do processo.
(Professora Flávia)

Ainda nas perguntas iniciais da entrevista, os/as profissionais foram


interpelados/as sobre o que consideravam como aspectos negativos ou menos
gratificantes no CAp. As respostas não foram tão semelhantes como as do item
anterior, mas alguns pontos comuns foram ressaltados pela maioria dos/as
entrevistados/as. Entre esses pontos estão: a infraestrutura do colégio,
especialmente no que diz respeito à precariedade das instalações, como por
exemplo, do laboratório de ciências que, apesar de novo, não contava com ar
condicionado para o bom andamento das aulas; falta de material audiovisual, de
projetor multimídia, de computadores com acesso à internet, de salas de aula com
acústica adequada para as aulas de língua estrangeira, de materiais usados no
cotidiano da sala de aula como pilot para quadro branco que, foram comprados,
conforme o relato de um professor, com recursos próprios.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 132

Outro ponto não gratificante comum diz respeito às questões disciplinares


dos/as estudantes. De acordo com 5 professoras, esses problemas precisam ser
enfrentados pela coordenação pedagógica de maneira mais efetiva. Uma delas
sugere que haja no colégio um/a psicólogo/a que possa orientar os/as estudantes e
também os/as docentes que atuam com esses/as alunos e alunas. Ainda dentro desse
item relativo aos/as estudantes, 3 professoras consideram que a existência de
atendimento educacional especializado poderia minimizar “problemas” com
alunos/as que apresentam algum diagnóstico – necessidades educativas especiais –
com a presença de mediadores/as nas salas de aula. Comum também é a queixa com
relação à remuneração dos professores e professoras contratados/as, a ausência de
leis trabalhistas que garantam os direitos desses/as profissionais o que favorece
frequentes ausências e, consequentemente, a rescisão de muitos contratos. O relato
do professor Cauã é bastante contundente:
Em termos pessoais e profissionais é a questão da falta de leis trabalhistas, não é?
A gente não tem direito a 13º, a gente não tem direito a férias e isso é muito
desgastante. A diferença salarial entre efetivos e contratados é brutal, chega a ser
irrisório. É surreal a diferença. (...) isso é um problema, a grande diferenciação
entre contratados e efetivos, que é uma coisa, assim, em níveis, assim... muito
grandes.

A questão salarial também foi apontada pela professora Rose que pertence
ao quadro de efetivas. Para ela, os/as profissionais do CAp precisam ser mais
valorizados/as, o lugar que o colégio ocupa dentro da UERJ precisa ser reconhecido
pela universidade e também pelo Governo do Estado. Essa professora e também a
professora Flávia acreditam que as baixas remunerações, tanto para efetivos/as
quanto para contratados/as, se deve às questões políticas existentes entre o colégio
e a universidade.
Além desses pontos comuns, a professora Monique destaca que muitos
alunos e alunas do Ensino Médio vêm fazendo o ENEM, desde o 1º ano, e deixam
o colégio para ingressarem na universidade. Para ela, esse seria um aspecto negativo
porque a instituição vem perdendo seus/as estudantes. Já os professores Cauã e
Mateus perceberam como uma dificuldade a falta de acompanhamento dos
familiares de alunos/as que pertencem a classes sociais mais baixas no momento de
realização das tarefas escolares, como deveres de casa ou mesmo rotina de estudos
para as avaliações trimestrais. Outra dificuldade apontada pelo professor Cauã foi
a realização de trabalhos de campo, especialmente, viagens para outros municípios.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 133

Para a professora Miriam, falta uma filosofia na escola que seja compartilhada por
todos/as que possa contribuir para a formação integral dos alunos e alunas.
Considero importante destacar o depoimento da secretaria da escola que
considera um aspecto negativo a falta de rigidez das direções do colégio. Segundo
ela, a autonomia concedida a setores da instituição interfere no bom andamento das
ações escolares:
Eu ainda não vi nenhuma direção, com a palavra direção mesmo que ela cobre que
ela seja uma direção mais rígida. Eu acho o colégio muito solto. Mesmo
trabalhando nas direções, as direções começam de uma forma que vai dar certo,
mas quando você vê a coisa fica solta. Porque eu acho também que os diretores,
eles deveriam ter uns assessores muito bem treinados pra isso, pras coisas não
chegar a eles, aquele assessor ele iria cuidar de alguns casos que o diretor realmente
não tem muita condição por falta de tempo. (...) A coisa tomou um rumo de tanta
autonomia dos setores, que quem trabalha no geral, que sou eu, que fecha todos os
setores, eu não tenho mais controle sobre isso. Isso me entristece muito, por que eu
vejo desigualdade, e eu não gosto disso, entendeu? Eu acho que se o contratado
falta, ele é igual a mim que falta eu não tenho essa diferença, entendeu?

As ponderações feitas pelo diretor da unidade no que diz respeito aos


aspectos negativos também merece destaque. Para ele, há no país uma conjuntura
desfavorável à educação brasileira ao considerar que as políticas públicas para os
setores educacionais, de saúde, de emprego e de segurança “não vêm no tempo
necessário, não vêm com a velocidade necessária para o atendimento às demandas
que já estão acontecendo e que já vinham se fazendo”. Falando do CAp,
especificamente, ressalta que:
Em uma unidade como o CAp, por exemplo, diria isso para todas as outras escolas,
você não ter os insumos, passando seja pela condição da infraestrutura, porque a
unidade cresce, as pessoas que vêm para cá almejam coisas, querem construir
coletivamente algumas, individualmente outras, mas querem construir, e aí você
perceber que a estrutura, o fomento não acompanha esses projetos, não só desejos
mas projetos, isso te deixa um pouco baqueado, mas, ao mesmo tempo, como a
gente costuma trabalhar nas brechas a gente acaba superando essas situações,
propondo saídas, para não perder a qualidade, não deixar a peteca cair, para não
perder inclusive a tradição, porque acho que a tradição, nesse sentido, é uma
tradição calcada em uma qualidade, mesmo que a gente possa questionar que tipo
de qualidade é essa, mas demonstrar que a escola pública é possível, acho que ainda
existe esse desejo, existe ainda esse projeto. (...) os problemas não deixam de estar
postos, de infraestrutura, falta de pessoal, de condições que bloqueiam o
crescimento da unidade, a unidade vive represada em muitos dos seus aspectos,
mas mesmo assim ela consegue produzir.

Encerrando o bloco inicial de perguntas, pedi aos/às entrevistados/as que


apontassem como os aspectos negativos listados poderiam ser superados. As
sugestões vão desde a integração entre os departamentos, coordenações e direção
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 134

do CAp, a necessidade de que o trabalho seja desenvolvido coletivamente, que o


diálogo seja a tônica entre todos os setores do colégio, que as famílias tenham
participação cada vez maior na vida escolar dos/as estudantes, que o repasse de
insumos pela universidade para a unidade seja feito adequadamente. A
coordenadora pedagógica do NAPE foi taxativa em seu posicionamento: “A
universidade tinha que melhorar as nossas condições físicas de trabalho. Não vejo
outra alternativa. Acho que internamente a gente não tem como fazer isso”.
Diante desse conjunto de propostas, ouso afirmar que o CAp enfrenta
dificuldades comuns a outras instituições públicas de ensino, porém, a integração
com a universidade, como sugere a professora Rose, a valorização dos/as
profissionais do colégio e o reconhecimento do CAp como uma unidade acadêmica
da UERJ pela própria universidade, bem como seu reconhecimento como uma
escola de excelência, seria o início de um processo para a superação dos problemas
apontados pelos/as entrevistados/as. Mesmo diante dos problemas citados, o
CAp/UERJ é uma instituição de reconhecido prestígio social, almejada por muitas
famílias que anseiam por uma formação de qualidade, o que justifica o aumento na
procura de inscrições para seus processos seletivos. Neste contexto, é que se
inserem as políticas de reserva de vagas para o CAp-UERJ, tema central desta
pesquisa.
4
O colégio por seus sujeitos

No capítulo anterior, procurei traçar um panorama sobre o Instituto de


Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp/UERJ), bem como as justificativas
para a implementação de políticas de ação afirmativa de corte racial numa escola
de educação básica de excelência. Neste capítulo, a fim de aprofundar algumas
reflexões sobre o campo, apresento as representações dos/as professores/as, das
funcionárias técnico administrativas e do diretor sobre: (i) o perfil dos/as
estudantes; (ii) as relações entre professores/as e estudantes e (iii) alguns aspectos
das práticas pedagógicas dos/as docentes. Acredito que as questões apresentadas e
refletidas aqui nos ajudarão a entender melhor como os/as entrevistados/as se
relacionaram com as políticas da ação afirmativa em suas práticas cotidianas.

4.1
O perfil dos/as estudantes do CAp e a relação entre eles/as

Foi solicitado aos/às entrevistados/as que fizessem a descrição do perfil


dos/as estudantes do CAp. No grupo de profissionais ligados à administração e
gestão do colégio as respostas foram bem variadas indo desde a questão da mudança
etnicorracial e socioeconômica, à composição das famílias, até mesmo no que diz
respeito a sua formação escolar.
Segundo a pedagoga, o perfil dos/as alunos/as teve uma mudança com
relação à etnia:
A gente percebe que em sua maioria eram alunos brancos. Mas brancos aí a gente
já vai por questões também econômicas por que geralmente branco já tem uma
condição socioeconômica razoável que pode investir na educação do seu filho e
preparar esse aluno de certa forma para ingressar no CAp. Então, isso que eu fui
percebendo. A gente observava no pátio uma clientela branca. Antes já havia
alguns alunos [negros] também, mas era bem menor [o número]. No caso 2014,
também não teve um número tão expressivo por que teve aquele problema no
edital, não ficou aberto por muito tempo, foi àquela correria, mas esse ano [2015]
a gente já percebe um número de inscrições bem mais elevado.
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 136

Por ter feito parte da comissão que avaliou as inscrições para o processo
seletivo do 6º ano de escolaridade, a pedagoga relatou que percebeu também uma
mudança no perfil dos pais desses/as estudantes:
A gente percebe também o perfil dos pais desses alunos. Um dos itens do edital é
para se declarar, tem aquele termo, só que os pais não estavam entendendo que
tinham que colocar assim, sinalizar se [o/a candidato/a] era pardo, negro ou índio.
Não entendiam que era ‘ou’ e então colocavam os três, pardo, negro e índio. Então
a gente percebe a dificuldade mesmo em entender o edital. Eles pensavam que
tinham que seguir aquele modelinho. Não, o modelinho era só um exemplo. Eles
poderiam redigir da melhor forma possível. E a gente percebeu que esse ano teve
algumas pessoas que tiveram orientação de tia, de madrinha para fazer a inscrição.
Então, quando eles escrevem até a carta lá do questionário socioeconômico, as
questões do serviço social, eles sinalizam isso: ‘Ah, eu fulana de tal estou
inscrevendo’... Então, eles falam do perfil da família, é muito interessante, é muito
rico.

Esse depoimento revelou, no meu modo de entender, duas questões


importantes: primeiro que o perfil de formação escolar dos/as responsáveis pelos/as
estudantes cotistas parece não ser o que o colégio recebia anteriormente, e segundo,
que outros familiares além dos pais e mães estavam inscrevendo os/as candidatos/as
para o processo seletivo, talvez porque estes tivessem mais condições de
compreender as exigências dos editais para o sorteio no 1º ano e o processo seletivo
no 6º ano de escolaridade.
De acordo com o relatório Perfil dos Alunos Ingressantes no Ano de 2014,
entre o grupo de alunos/as cotistas, a maior incidência da escolaridade materna se
encontra no ensino médio, com 50%, seguidos de 30% com o ensino fundamental.
Ainda nesse grupo, foi identificado 10% dos casos cujas mães possuem a pós
graduação; não foi identificado nenhum caso com nível superior. Com relação à
escolaridade paterna, em 70% dos casos entrevistados não há qualquer informação
sobre a figura paterna (que são os casos identificados de pais separados); 10%
possuem o ensino médio e outros 10% possuem o ensino fundamental.
Entre as famílias de alunos/as não cotistas, 55% das mães possuem o nível
superior, 34% a pós-graduação e 10% o ensino médio. Quanto aos pais, em 38%
dos casos não há nenhuma informação sobre a figura paterna (casos de pais
separados); 34% possuem o ensino superior e 10% o ensino médio81.

81
O relatório Perfil dos Alunos Ingressantes no Ano de 2015 sobre a escolaridade paterna e materna
apresenta algumas mudanças: no que se refere às famílias dos/as alunos/as cotistas, a maior
incidência da escolaridade materna se encontra no ensino superior, com 36%, seguidos de 32%
com ensino médio e 14% com ensino fundamental e 4% possuem pós-graduação. Quanto à
escolaridade paterna, em 36% dos casos entrevistados não há informações sobre esse dado (pais
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 137

O diretor também considerou que houve uma mudança no perfil


etnicorracial, mas destacou a questão do planejamento de algumas atividades
pedagógicas:
Acho que há mudança sim, não tem como dizer que as mudanças não existem,
desde os anos iniciais. Quando a gente abre a porta nos anos iniciais, hoje a
coloração é outra, isso é visível, mas não é só isso, acho que tem outra questão, e
aí acho que entra sim essa questão do pedagógico, de como ele vai se construindo,
às vezes, não é nem de uma forma tão sistematizada, mas como ele vai se
construindo, como professores e professoras começam a pensar isso, pensar no uso
do material didático. Eu vejo alguns colegas já com essa preocupação, chegando a
pensar num trabalho de campo, numa saída a campo e dizer assim: ‘Ih, tem seis,
sete que não conseguem acompanhar esse negócio. Como a gente vai fazer?’.
Então, nesses operacionais do dia a dia, a gente percebe essas mudanças.

Apesar de o diretor citar o trabalho de campo como uma preocupação de


alguns/mas professores/as que precisariam fazer modificações em determinadas
atividades, não detalhou o que seriam essas mudanças, mas deixou claro que são
ações praticadas por alguns/mas docentes, “não é nem de forma tão sistematizada”,
segundo suas próprias palavras. Continuou desenvolvendo sua resposta e chamou a
atenção para o que considerou uma alteração do universo cultural das famílias
desses/as estudantes e na aposta que fazem na instituição: “Não sei se aí entra uma
questão de esforço das famílias, essas famílias colocam os seus filhos aqui, embora
os referenciais, os universos culturais, muitas vezes, sejam outros, na conversa que
já tive com algumas famílias, já percebi uma questão que é de ‘aqui eu tenho uma
aposta, eu tenho que acreditar nesse investimento’”.
Outro aspecto trazido pelo diretor sobre o perfil das famílias, dizia respeito
ao momento de crise vivenciado pelo colégio no início do ano letivo de 2015 com
a impossibilidade de renovação dos contratos dos/as professores/as substitutos/as e
a consequente demora em começar as aulas:
Acho interessante agora nessa situação de crise de professor que a gente está
vivendo, como muitas vezes é mais fácil falar para uma família proveniente de uma
dessas cotas, eu tenho, mais ou menos, uma ideia do por que e quero ver se essas
coisas se confirmam também nas pesquisas que a gente está levando. Na verdade,
muitas vezes, eram grupos que estavam acostumados com essa ausência de
professor. Talvez, não tivessem acostumados que uma escola reagisse tanto a uma

separados); 27% dos pais possuem ensino médio; 14% possuem o ensino superior; 18% o ensino
fundamental e não foram identificados casos de pais com pós-graduação. Com relação às famílias
de alunos não cotistas, 39% das mães possuem o nível superior, 31% possuem o ensino médio;
13% a pós-graduação; 9% mestrado; 4% doutorado e 4% o ensino fundamental. Quanto aos pais,
48% possuem o ensino superior; 31% o ensino médio; 4% o mestrado; 4% o doutorado; 4% o
ensino fundamental incompleto e em 9% dos casos não há nenhuma informação sobre a figura
paterna (casos de separação) (p. 22-23).
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 138

ausência de professor como a gente reage. Então, essas pessoas acreditam na


instituição. É interessante como elas vêm te dizer: ‘nós acreditamos, nós confiamos
nisso aqui’. De uma forma mais fácil, mais tranquila de dizer, embora tensa no
sentido de preocupada, do que você escutar isso de alguém que era de outra base
social: ‘será que vai ter?’; ‘nossa, tiro o meu filho ou não tiro o meu filho?’. Eu
ainda não escutei nenhuma dessas pessoas que tivesse vindo [das cotas] tirar o seu
filho por falta de professor, pode ser que exista, mas ainda não escutei. Isso eu acho
que é uma diferença, porque talvez exista uma aposta maior aí: ‘pera aí, tá passando
crise, mas é interessante como eles lidam como esse negócio’, ‘mas essa escola tem
qualidade sim, tem uma coisa aqui que é diferente das outras experiências’. E aí eu
acho que existe toda uma questão de como se traz isso para o pensamento e para a
ação.

Posso afirmar, a partir dos depoimentos do diretor, que os/as responsáveis


entendem que seus filhos e filhas estão tendo a oportunidade de ingressar em uma
instituição de reconhecido prestígio social e, por isso, ”acreditam” que as
dificuldades enfrentadas pelo colégio serão superadas. As políticas afirmativas no
país têm sido potentes ao oportunizar o acesso a instituições de renome a um grupo
da população que talvez não tivesse essa oportunidade caso essas ações não
estivessem em curso (Valentim, 2012).
Para a secretária do colégio, a mudança socioeconômica foi o aspecto mais
significativo no perfil dos estudantes:
Antigamente o perfil do aluno do CAp era um perfil diferente. Ele tinha classe
média e classe média alta. A gente ainda brinca, ainda fala pelos carrões que param
na frente da escola, a gente nota o poder aquisitivo muito grande. Então, você vê
muito isso. Eu acho que daqui há uns 5, 6 anos, essa clientela que entrou vai ser o
perfil do CAp. Eu acho que vai acabar com a classe média e a classe média alta
porque a própria classe média alta não aceita muito as misturas, você nota isso. Em
várias situações aqui você nota que não tem mistura. Então, eu acho que vai acabar.

Perguntei se ela tinha conhecimento de alguma situação em que “a mistura”


de classes sociais tenha causado constrangimento ou discriminação. A resposta foi
negativa, porém, relatou que entre os/as profissionais que fazem o transporte escolar
circulou o comentário de que estariam “sendo muito prejudicados esse ano... entrou
tanto aluno que não tem condição financeira”. Além desse comentário, também
mencionou uma diferenciação, na sua maneira de perceber, no que diz respeito ao
momento em que os/as alunos/as cotistas vão se alimentar:
Você nota na cantina ali de manhã, o cotista ele tem um ticket para tomar o café da
manhã. Os que não têm não admitem que eles fiquem na frente, por que eles vão
correndo para tomar o café da manhã, mas você não sabe como é que foi a noite
dele, se ele jantou? As crianças aqui não têm isso, então, eles já vão entrando e
empurrando. Porque os cotistas têm direito, então eles ficam naquele cantinho,
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 139

meio que isolados, bem encostadinhos na parede e fica uma pessoa atendendo só
eles. Ali eu já vejo a diferença.

No seu ponto de vista, essa situação, por si mesma, seria uma exposição
desses/as estudantes com relação aos demais alunos/as do colégio, porém, segundo
o depoimento, tal situação não gera nenhum caso de discriminação. Trata-se de sua
compreensão sobre a condição dos/as cotistas no momento em que estão se
alimentando na cantina. É importante esclarecer que no horário do almoço nos dias
de aulas no contra turno, os/as estudantes cotistas, alimentam-se no restaurante do
colégio e assinam uma folha com nome e turma já que não pagam pela refeição.
Considerando esse depoimento, esse seria também um momento em que esses/as
alunos e alunas estariam “revelando” sua condição de cotista. Os cotistas são os
“novos” sujeitos que passam a vivenciar a experiência escolar com suas diferentes
especificidades: pessoas com necessidades especiais, negros/as, oriundos/as de
escolas públicas, dentre outras. Como ressalta Valentim (2012, p. 255), “os alunos
cotistas não são reconhecidos como pertencentes à categoria social alunos
[universitários] normais. Todos parecem padecer de uma marca, de um defeito, de
um estigma”. Nos depoimentos da secretária, a questão socioeconômica foi a que
apareceu como a marca mais evidenciada. A coordenadora do NAPE fez uma
descrição do perfil dos/as estudantes a partir de seu pertencimento familiar:
Olha, isso é cruel [risos]. O perfil dos nossos estudantes é assim: você tem o aluno
que tem uma família [dá ênfase] que é uma família que chega e é apenas uma
família. E você tem o aluno que é, vem de uma família assim... uerjiana onde os
pais, o pai ou alguém é da UERJ. E é muito engraçado a gente observar como as
pessoas se fazem diferentes; aí independente de qualquer coisa, de qualquer política
e como as crianças trazem esse discurso para dentro da escola. Isso é uma coisa
muito interessante de se observar. Acho que a gente... não acredito nesse discurso
que essa escola não é uma escola para A, B ou C, nunca acreditei nisso, acho que
todos os nossos alunos têm perfil para estar aqui sim porque só entrar aqui já
garante a ele esse direito. E ele está mostrando que ele é capaz de enfrentar os
desafios que existem aqui. Até o pequenininho porque quando ele vem por sorteio
que ele não se enquadra num perfil, nas características desse espaço, dessa escola
que a gente vive, ele não fica, ele vai embora. Às vezes, a mãe vem aqui e olha:
‘Ah, meu filho não vai estudar aqui não’. Quantas e quantas mães a gente atende
que chegam aqui para conhecer a escola e desistem.

Perguntei se a desistência das famílias se dava apenas no 1º ano do ensino


fundamental ou se haveria casos também no 6º ano. Ela informou que a desistência
acontece nesses dois anos de escolaridade que se constituem como entrada no
colégio. Finalizou a descrição que estava fazendo do perfil dos/as estudantes
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 140

dizendo que: “acho que o perfil dos alunos nesse aspecto não é muito diferente não.
Eu acho que [é] cruel para o aluno, pra gente não, para o adulto que trabalha aqui,
que vive aqui, isso não faz diferença porque você procura colocar as pessoas, cada
uma, nos seus devidos lugares, mas para as crianças essa diferença, meu pai é da
UERJ, meu pai não é da UERJ, minha mãe, isso é muito cruel”. De acordo com
esse depoimento, essa diferenciação acontece entre os/as próprios/as estudantes.
Penso que essa questão deveria ser trabalhada com os/as estudantes desde os anos
iniciais uma vez que aqueles/as que são filhos/as de docentes ou funcionários/as
técnico administrativos da universidade e do hospital universitário e ingressam na
instituição também foram contemplados/as porque há um número de vagas
reservado a esses/as profissionais. Neste sentido, tanto uns quanto outros/as são
cotistas, mas são cotistas com perfis e status muito diferentes dentro do colégio.
Assim, posso afirmar que há uma hierarquização entre as cotas. Cotistas que obtém
a vaga pelo critério racial estão numa situação subalterna em relação aos/às cotistas
que obtém a vaga pelo critério de filho/a de professores/as ou funcionários/as.
Então, o problema não é a reserva de vagas, mas quem tem o direito de usufruir esta
reserva. Quando a reserva envolve crianças negras e pobres, as cotas são
atravessadas pelas desigualdades sociais e raciais. E são essas desigualdades que
adentram e, talvez, persistam na escola. Devemos acrescentar que até a
implementação da lei 6434/13, o percentual de vagas para essas categorias
(filhos/as de professores/as e funcionários/as), no total, era de cinquenta por cento
e com a lei esse número sofreu modificações. Assim, os/as que ingressam pelo
critério racial, o fazem com uma identidade socialmente subalternizada (negro/a e
pobre) e, ainda, ocupando um lugar que, até então, era privilégio de outro tipo de
cota, com estudantes com outro perfil, branco de classe média. Esta combinação de
fatores pode ser uma das fontes de tensão da temática pesquisada.
Entre os/as professores/as contratados/as82 e as professoras efetivas, o perfil
dos/as estudantes foi descrito de maneira bastante diversificada, revelando a
heterogeneidade das turmas do 6º ano, indo desde os aspectos socioeconômicos até
os etnicorraciais que, segundo o professor Cauã, “favorece o relacionamento entre

82
É importante lembrar que os/as professores/as contratados/as permanecem por um período menor
de tempo na instituição. Nesse grupo, apenas o professor Cauã trabalhou no colégio por um
período mais longo, 8 anos. Por essa razão, podem não perceber as mudanças no perfil dos/as
estudantes como as professoras e funcionárias técnico administrativas efetivas.
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 141

classes sociais diferentes e é muito enriquecedor para o cotidiano escolar do CAp”,


passando pela questão da maturidade dos/as alunos/as, até o tema da autonomia que
demonstravam para solucionar assuntos dentro da instituição ou mesmo para a
realização das tarefas escolares. Alguns termos apareceram com frequência nos
depoimentos: heterogêneo, eclético, questionador, politizado, crítico, dinâmico,
desafiador, curioso, inteligente, colaborativo, multifacetado, esforçado, agitado,
imaturo, desorganizado. No que diz respeito à imaturidade e à desorganização, os
aspectos listados para esse comportamento foram atribuídos a pouca idade dos/as
alunos/as.
Em seu depoimento, o professor Mateus mencionou o que considerava mais
preocupante: a presença das famílias. Para ele, os/as estudantes do 6º ano precisam
ter um acompanhamento permanente dos/as responsáveis:
Tem uma coisa, os pais estimularem ao estudo de forma diferente. Alguns alunos
você via que tinham um cuidado... O 6º ano ainda tem muito isso, a presença do
pai. O pai queria saber se ele estava fazendo trabalho, o pai ajudava no trabalho, o
pai estimulava a fazer as tarefas e outros alunos eu percebia completamente
abandonados, completamente assim, eram por eles mesmos e eles não tinham o
menor estímulo, estudavam sozinhos e tinham mais dificuldades.

A professora Fernanda destacou a questão da maturidade no que diz respeito


ao ritmo de estudos dos/as alunos/as do 6º ano tanto do CAp quanto da escola
particular que trabalhava à época da entrevista:
Eu acho o 6º ano muito perdido, mas eu acho que isso também tem a ver com a
idade deles porque aqui nessa escola [e na escola] ... particular eu dou aula também
para o 6º ano e eles já são perdidos por natureza [risos]. O 6º ano, eu acho que eles
não vêm do CApinho ou das outras escolas com esse ritmo intenso de estudo; eu
não vejo um ritmo, não via em matemática no 6º ano um ritmo de estudo como era
o esperado para a disciplina. Mas depois, no 7º e no 8º, você percebe que eles já
estão mais com um ritmo de estudos, já entenderam como é que o CAp funciona.
O 6º ano é muita novidade para eles, não é?

Por outro lado, essa mesma professora avalia que os/as estudantes que
fizeram o primeiro segmento no CAp são mais autônomos do que aqueles/as que
ingressaram no 6º ano pelo processo de seleção e considerou esse aspecto positivo.
Narrou um episódio vivenciado em uma das turmas:
Ao mesmo tempo têm autonomia, a galera que vem do CApinho, não é? Eu lembro
logo no início que eu virei pra eles e disse: “Poxa, gente, hoje eu queria fazer um
trabalho com cartaz, mas não vai ter como ter a cartolina. Então, na próxima aula
vocês trazem a cartolina que a gente faz.” Aí eles: “Não, não. Dez centavos, vinte
centavos”. Juntaram tudo, desceram, foram na APP compraram cartolina e
subiram. Eu fiquei olhando para o 6º ano, uma coisa é uma turma de 6º, juntou
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 142

centavos de todo mundo, comprou cartolina para todos, dividiu. Ninguém se


preocupou se um deu cinquenta e o outro deu dez, o que importa era comprar para
todo mundo, sabe? Teve outras atividades assim, que a gente teve que fazer de
necessidade no CAp, como por exemplo, batia muito sol: “Não, não, não, vamos
comprar papel pardo.” Dividiram, compraram papel pardo, a gente colou na janela.
Eles têm muito mais autonomia do que os alunos das escolas particulares [que]
vivem tão dentro de regras, e acho que o fato de o CAp ser um pouco solto faz com
que o aluno tenha que ser independente.

O depoimento da professora Monique também evidenciou esse aspecto.


Além disso, considera que os estudantes são reflexivos, críticos e relatou uma
situação vivida na sala de aula em que precisou mudar seu planejamento para
atender uma demanda dos/as alunos/as:
O perfil do aluno do CAp é de um aluno reflexivo, crítico e as pessoas que entram
por concurso, elas são muito capazes, mas elas são dentro da caixinha. E então, elas
dão de cara com uma escola fora da caixinha, de gente que vai parar a aula porque
teve um problema, uma intervenção, de um projeto da UERJ sobre cultura negra.
Eles pegaram, colocaram umas algemas, se prenderam às grades da escola e tal, e
assim foi uma revolução aquilo, eu entrei em sala de aula logo depois. Foi logo
depois do recreio e tinha acabado de acontecer essa intervenção. Aí tinha gente
berrando: ‘Ah, negro merece mesmo sofrer isso e não sei o quê’. ‘Que isso!’ Eu
pensei: ‘Cara, não dá para eu parar e dar aula sobre outra coisa’. Era aula sobre
mitologia e eu comecei a falar inicialmente sobre o que tinha acontecido e eu
comecei a apresentar a mitologia da matriz africana. Aí eles ficaram todos assim:
‘Sério professora? E eles também são politeístas? Eles também acreditam?’ Eu
falei: ‘Sim, não são só os gregos que acreditam nisso’. Eu ia começar mitologia
grega, eu parei tudo e falei ‘não dá’. Então, no CAp, dá para você fazer isso. Dá
para você parar, ter isso e você, sei lá, dar aula de sujeito, sei lá, de classificação
do sujeito a partir disso, por exemplo. Isso pode ser um produto, não é? E aí esses
alunos que vêm do concurso, não pensando nas cotas, eles, os que estão dentro da
caixinha, eles começam meio que a serem sacudidos, assim. Tipo, vamos pensar
com a sua própria cabeça, o que você acha sobre isso?

A professora Monique mencionou ainda em sua resposta, que a entrada de


estudantes negros/as pela reserva de vagas é muito pequena, que o número de vagas
é pequeno e que essa inserção não apresentou impacto para o colégio: “Eu acho que
não tem ainda o impacto. Talvez tenha o impacto daqui a alguns anos, não é? Com
a inserção dessas pessoas o impacto vai acontecer”.
A professora Rose salientou em seu depoimento que tem percebido que a
questão da motivação é antiga e ela considera que isso possa estar vinculado às
novas tecnologias. Por outro lado, destacou que “ainda tem muita gente, muito
aluno que é muito fácil de trabalhar, e gostoso”, as discussões em sala de aula são
prazerosas, “não é tati-bi-tati, nem é mecânico” e considera que os/as estudantes
que cursaram o primeiro segmento no colégio “têm uma oralidade, uma
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 143

comunicação mais desenvolvida” quando comparados àqueles que ingressaram


pelo processo seletivo. Neste momento, a professora não se refere ao processo
seletivo por cota, mas diferencia aqueles/as que estudaram ou não no primeiro
segmento do CAp. Para ela, os/as estudantes que vêm de colégios considerados
tradicionais têm “todo o protocolo pensado para responder uma pergunta, ficam
amarrados ao que está no livro didático”, enquanto aqueles/as que já estavam no
colégio têm outra postura: “Muito dessa oralidade eu vejo nos meninos que foram
do 1º segmento aqui, essa parte da construção, muitas vezes, até têm problema na
hora do escrever, mas o papo acho que os 100% me ganham. Às vezes, eu tenho
que me policiar porque eles têm um poder de argumentação quinhentas vezes
melhor do que o meu em várias coisas, inclusive na matéria, é impressionante como
eles são comunicativos”.
As práticas pedagógicas desenvolvidas pelo Departamento de Ensino
Fundamental (DEF) com os/as estudantes do 1º segmento vêm sendo pautadas em
uma perspectiva sócio-interacionista embasada em autores como Piaget e
Vygotsky. De acordo com Santos (2006, p. 83), as práticas alfabetizadoras
realizadas no DEF são objeto de reflexão e análise contínuas e estão calcadas na
construção do conhecimento com atividades instigadoras que abrem possibilidades
para que os/as alunos/as possam pensar sobre a linguagem e a escrita, produzir
linguagem escrita, desde os anos iniciais, a partir de propostas em que as crianças
se apropriem das questões da própria língua, da escrita, mas que percebam a
importância do ler e escrever e qual a função social da leitura e da escrita. Essa
perspectiva de trabalho perpassa todos os anos de escolaridade do primeiro
segmento do ensino fundamental.
Nesse momento de sua argumentação, fez referência ao que considera um
aspecto positivo, o que chama de formação ampla, multifacetada do/a estudante do
CAp:
O aluno do CAp é multifacetado, diferente de um monte de lugares que se dizem
muito bons, o de várias faces é o aluno do CAp, para mim isso é uma grande
riqueza. É aquele rapaz que chega ao ensino médio, e ele pode ser versadíssimo na
matemática, mas ele tem um olhar na parte histórica, na parte geográfica que não é
igual a outros lugares, entendeu? O que eu acho mais legal aqui do colégio todo?
É essa formação grandona, das várias faces, muito mais do que essa centralização
nas ciências exatas, matemática, física, mas porque ele trabalha a comunicação, a
discussão, a questão de se colocar, de se pensar. Então, o aluno do CAp, em
essência, é multifacetado, e isso para mim é o tesouro que a gente tem. Esse aluno
que talvez as pessoas percebam, lá na frente, a gente nem sabe por que a gente não
tem esse feedback, mas talvez elas percebam que esse aluno é assim. A matéria
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 144

prima [os/as estudantes/ é ótima. Para mim o grande lance do CAp são os alunos e
deles terem desenvolvido várias facetas da formação deles, não só uma coisa ligada
à matemática, à física, ao próprio português que seja, mas não, eles têm um social
muito elaborado, a questão da comunicação, de se colocar, acho que isso é o nosso
tesouro.

Ao mencionar a história da criação do CAp, Oliveira (2014) afirma que,


desde a sua fundação, a instituição apresenta marcada tendência humanista. Além
disso, destacou a atitude flexível, o respeito ao pensamento divergente, o trabalho
em pesquisa e extensão, a formação do ‘licenciando investigador,’ o diálogo entre
a escola e o contexto no qual ela está inserida.
A professora Isabel também enfatizou o aspecto da oralidade, da
comunicação e afirmou que são alunos/as inteligentes, dinâmicos/as, reflexivos/as,
críticos/as e também desafiadores/as:
[São desafiadores] No sentido de que te exigem um preparo, não é? Você não pode
entrar de qualquer maneira na sala de aula, você tem que ter um objetivo. Eles
traçam isso para você, eles exigem isso de você. Você tem que ter objetivo, tem
que ter planejamento e isso fica muito claro para eles. (...) É, embora sejam muito
jovens, eles identificam. Eles são alunos muito cientes do que estão fazendo aqui.
Eles vieram para uma escola de excelência, então eles exigem isso de nós.

Destacou ainda que os/as estudantes são receptivos/as à presença dos/as


estagiários/as83 e bolsistas de graduação na sala de aula e considerou que esta seja
percebida como algo “muito natural, por que eles já vivenciam isso desde o 1oº
ano”, mas não detalhou como os/as alunos/as que ingressaram pelo processo
seletivo entendem essa questão. Posso inferir que esses/as estudantes acabam
compreendendo que os/as alunos/as da graduação estão ali para auxiliar o/a
professor/a regente como declarou Isabel: “Eu sempre digo para eles: ‘Olha,
aproveita, se eu estou ocupada com um, pode perguntar ao fulano que ele pode
ajudar também’”.
Já a professora Miriam, além de afirmar que são alunos/as curiosos/as e
inteligentes tocou em um assunto que as demais professoras não mencionaram.
Segundo ela, prefere trabalhar com os anos iniciais do segundo segmento do que
com os anos finais e o ensino médio porque considera que são mais carinhosos/as

83
Além de promover a educação básica, o CAp co-promove a formação de professores em parceria
com os institutos básicos da universidade. As atividades de ensino desdobram-se e articulam-se
em dois níveis: a educação básica e o ensino superior, mediados e integrados pelas atividades de
pesquisa, extensão e cultura. Estas procuram articular as teorias referenciadas no campo da
pedagogia e áreas afins que contribuam para a realização do trabalho pedagógico e de formação
inicial e continuada de professores. (www.uerj.br)
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 145

e gentis. Para ela, aqueles/as que conseguem ‘sobreviver’ no colégio, especialmente


os/as que finalizam o ensino médio, tornam-se pessoas arrogantes:
Eu volto a essa questão que a gente tem uma escola de bons alunos. O ensino
médio, para mim, eu não gosto de trabalhar no ensino médio, porque eu acho que
esses meninos, como eles são bons alunos, os ruins vão sendo eliminados no
caminho, acho que eles são muito arrogantes, aí que eu acho que vem essa coisa da
formação, sabe? O que a gente quer nessa escola, formar gente arrogante? ‘Eu
estudo no CAP, eu sou muito bom, sobrevivi’, sabe? ‘Eu sou o máximo’. E aí eu
acho que tem alguma coisa errada aí, porque eu acho que o perfil do aluno do ensino
médio do CAp é um perfil de aluno inteligente, de um aluno arrogante, de um aluno
que se acha, um aluno bom, que sobreviveu. Eu acho que o aluno do CAp, no
ensino médio, é completamente diferente daquele menino, ele é um sobrevivente,
ele é arrogante, é inteligente, mas prefiro os pequenos, que são meninos, até os
adolescênticos, que são insuportáveis, mas que ainda estão correndo atrás do
prejuízo, são meninos. Eu não vejo muita diferença desse menino lá de fora não.

Apesar desse tom crítico e duro com relação a esses/as estudantes, a


professora Miriam enfatizou que “tem uma coisa bacana aqui na escola, para todos,
eu acho que são meninos mais politizados, que têm opinião, não são meninos
calados que não se colocam. Isso eu acho legal, desde os pequenininhos até os
grandes, isso eu acho que a gente faz direitinho”. Mais uma vez apareceu a questão
da formação humana recebida pelos/as estudantes e essa tem sido uma marca do
colégio.
Tendo em vista esse conjunto de respostas, posso dizer que para os/as
professores/as entrevistados/as o perfil dos/as alunos/as do CAp possui as seguintes
características: (i) as turmas são heterogêneas no que diz respeito aos aspectos
étnico raciais e socioeconômicos, (ii) são estudantes críticos, reflexivos,
questionadores, politizados, dinâmicos, inteligentes e (iii) os/as do 6º ano de
escolaridade, especificamente, foram considerados/as imaturos/as pelos professores
e professoras.
Dando continuidade ao tema da descrição do perfil dos/as estudantes do
CAp, foi perguntado aos/às entrevistados/as como percebiam a relação entre os/as
alunos/as que ingressaram em 2014 tanto pela reserva de vagas de corte racial
quanto com os/as que entraram pela ampla concorrência com o perfil descrito
anteriormente, levando também em consideração como esses/as se relacionavam
com aqueles/as que tinham feito o 1º segmento do ensino fundamental no colégio.
As respostas do grupo de profissionais da administração, coordenação
pedagógica e do diretor enfatizaram que a relação entre os/as estudantes não sofreu
mudanças, que os/as alunos/as do primeiro segmento sempre receberam bem
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 146

aqueles/as que ingressavam no colégio, que são muito acolhedores/as. A pedagoga


do 6º ano afirmou que costuma acontecer de um/a estudante não se identificar com
outro/a por questões pessoais, mas que não percebeu “diferença no sentido de
discriminar, de se afastar. Eu percebi que os alunos que entraram conseguiram se
relacionar muito bem com os alunos do CAp ou da ampla concorrência”.
A coordenadora pedagógica do NAPE construiu uma resposta semelhante e
afirmou que os/as estudantes continuaram recebendo os/as colegas do mesmo modo
que faziam antes da reserva de vagas: “Por enquanto eu não observo nada de
diferente não. A gente consegue perceber que eles têm uma preocupação muito
grande de inserir quem está chegando novo dentro do contexto da escola. Então, é
muito comum você ver o colega que vem de lá dos anos iniciais se preocupar com
aquele colega que está chegando”.
Relatou, brevemente, uma situação vivida por um aluno que ingressou no 6º
ano em 2014 que, inicialmente, não queria ficar no colégio para ilustrar a questão
do acolhimento, mas não soube dizer se havia entrado pela reserva de vagas ou pela
ampla concorrência.
Ele tinha arranjado um amigo, era até uma menina, dos anos iniciais, que ela deve
ter percebido dentro da sensibilidade dela que ele estava com dificuldade até de se
deslocar aqui dentro nessa escola que é tão esquisita, dois blocos, uma hora estou
aqui, outra estou lá, outra estou não sei aonde. Acho que ela adotou-o de tal forma
que ele não parecia àquela criança que há dois dias tinha dado um chilique que não
queria mais ficar aqui. Então, eu acho que eles acolhem os colegas novos muito
melhor que nós adultos. Porque eles percebem, até porque são semelhantes à
fragilidade de cada um, e eles se sentem assim muito importantes mesmo de estar
colocando aquela pessoa nova dentro dessa escola porque eles já conhecem a
escola. Então, isso é uma coisa muito interessante de se observar. Eu já havia
observado isso mesmo antes das cotas nas turmas de 6º ano de uma forma gritante.
A gente fazia um trabalho de sensibilização e eles faziam a adoção do colega que
estava chegando. E a gente começa a observar, quando a gente vem de outros
lugares, que eles não têm problema nesta integração, nessa mudança de realidade,
normalmente as crianças vinham de escolas muito pequenas. Como os que chegam
agora eles vêm de realidade completamente diferente dessa escola e eles, enquanto
crianças se juntam de tal forma e são tão solidários que eles acabam inserindo o
outro dentro do contexto e as coisas fluem.

Para o diretor, a questão da relação entre os/as estudantes é tranquila,


solidária e atribuiu isso ao fato do colégio já contar com uma diversidade
socioeconômica e étnica de alunos/as em razão do sorteio nos anos iniciais:
Do ponto de vista da relação entre os meninos, quero dizer que essa questão no
CAp já estava relativamente bem resolvida, no meu entendimento. Não quer dizer
que no CAp não tenha bullying, não tenha preconceito, não quer dizer isso. Quer
dizer que essas relações interraciais, entre grupos diferentes, já vinha bem
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 147

construída, ao ponto inclusive dos meninos [do grêmio] na época da discussão da


política de cotas dizerem assim: ‘Nós já temos os negros aqui, meus principais
colegas são [negros]’.

Entre os/as cinco professores/as contratados/as, as respostas seguiram uma


linha de raciocínio semelhante a do grupo anterior. Todos/as consideraram que a
relação entre os/as estudantes é boa, tranquila e que a questão da afinidade entre
eles/as seria o principal aspecto no momento da constituição de grupos ou mesmo
de amizades. A professora Monique afirmou que os/as alunos/as relacionavam-se
bem, mas destacou que em conversas com aqueles/as que ingressaram pela ampla
concorrência e vieram de escolas particulares ou cursos preparatórios a queixa era
“lidar com muita diferença socioeconômica”, porém, a principal reclamação estava
relacionada à ausência de professor/a em algumas disciplinas: “o primordial nem
são as diferenças, são aquelas questões que eu elenquei inicialmente do tipo: ‘Ah,
estou há dois meses sem ter aula de inglês’. Por quê? ‘Porque não tem professor’.
E então, assim, peca-se por isso. Isso é meio ruim”. Esse depoimento revelou a
precariedade enfrentada pelo CAp e também pela universidade no que diz respeito
ao quadro docente que era formado até 2014 por cinquenta por cento de
professores/as contratados/as. Em 2015, essa situação modificou-se porque muitos
concursos foram realizados, mas, ainda existem lacunas em várias disciplinas.
Destacarei os depoimentos de três entrevistados/as desse conjunto de
professores/as que resumem os argumentos básicos apresentados pelos/as demais
entrevistados/as sobre a relação entre os/as estudantes. Para Cauã há, inicialmente,
uma apreensão, uma separação entre os grupos porque ainda não se conhecem, mas,
gradativamente, vai sendo superada:
Acho que, de certa forma, os primeiros três, quatro meses tem um pouco daquela
apreensão, não conhece muito os amiguinhos do colégio, está entrando agora,
outros estão vindo do CApinho, mas acho que a partir do quarto, quinto mês a
turma já se fecha como um grupo um pouco maior. Eles são crianças, crianças
novas, faixa etária de 11, 12 anos, então rapidamente fazem amizades, rapidamente
criam grupos sociais mais fixos, mais concretos. Nos primeiros meses, um pouco
mais segregados e depois, com as dinâmicas, com as viagens, com a educação
física, com jogos de futebol isso já começa, enfim, já começa de certa forma a se
entrosar um pouco mais. Não vejo que continue com a patotinha do CApinho e só
quem entrou de fora, não vejo dessa forma. Eu acho que tem uma mistura muito
grande. E aí por questões também pessoais, não é? Um aluno que se identifica com
aquele grupo, vai para aquele grupo mais rápido e vice- versa também, de acordo
com os alunos que estão entrando no colégio. A questão de afinidades é muito forte
nessa faixa etária também, não é?
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 148

A professora Fernanda relatou que os/as estudantes que participaram do


processo seletivo para ingresso em 2014, chegaram quinze dias após o início das
aulas, mas não soube dizer por que isso ocorreu. De acordo com seu depoimento,
os/as alunos que haviam feito o primeiro segmento no CAp, pediram para organizar
uma festa para receber esses/as colegas: “Eles organizaram uma festa para receber
os quinze novos alunos, decoraram a sala e tal, achei aquilo uma atitude muito legal.
Eles estavam ali de braços abertos, as duas turmas que eu trabalhei, de braços
abertos para receber os novos alunos. Sempre tem desavença, mas tem desavença
entre eles mesmos, entre o outro grupo. Os que vêm não se conhecem, não é?”
Para o professor Mateus, a chegada dos/as novos/as estudantes no 6º ano,
seja pela reserva de vagas raciais ou pela ampla concorrência “é propositadamente
naturalizado” o que favoreceria a interação entre esses grupos. Considera que “por
um lado isso é positivo, do ponto de vista do convívio e por outro lado isso esconde
as discussões necessárias”, ou seja, em sua opinião, ao “naturalizar” a chegada
dos/as estudantes que ingressaram pelas cotas raciais, “por um lado você não cria
constrangimentos, por outro lado você não cria a discussão, debates que são
relevantes, que são importantes. Então, o convívio, não foi afetado por essa
informação da cota. Por essa informação o convívio não foi afetado.” Os debates
que destacou como relevantes são aqueles que deveriam tratar da questão das
diferenças socioeconômicas e étnicas existentes entre os grupos de estudantes que
compõem as turmas do 6º ano. Acrescentou, ainda, que os/as alunos/as têm uma
boa convivência “porque eles se misturam entre as turmas então isso cria uma
necessidade de o tempo todo estar fazendo novas relações, conhecendo outros
alunos. (...) já tinham o hábito de estudar juntos e tudo, ficam na biblioteca lá
estudando, não é? Então, assim, a questão da unidade da turma contribuiu para essa
relação”.
No grupo das professoras efetivas, quatro entre cinco consideraram que a
relação entre os/as estudantes é boa, que não perceberam mudanças com a entrada
de alunos/as pela reserva de vagas raciais ou ampla concorrência. Apenas a
professora Isabel respondeu essa pergunta dizendo que trabalhar com a turma de 6º
ano que teve em 2014 foi um desafio. De acordo com seu depoimento, não foi
possível dizer que a dificuldade de relacionamento entre os/as estudantes estivesse
ligada a entrada de alunos/as pela política de cotas, mas como não tinha
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 149

conhecimento da implementação da lei considerou, ao formular sua resposta, que


esse poderia ter sido um aspecto:
A turma que eu tive ano passado foi um desafio, acho que foi a mais difícil de
trabalhar nesse sentido. Talvez... aí eu não sei associar isso à política das cotas,
mas, talvez tenha esse... É porque a gente não fica com eles o dia todo. A gente
pega 50 minutos e vai embora, mas, nos meus 50 minutos, o que eu via era essa
formação de grupos, para mim, sinalizava que entre eles, eles fizeram a diferença.
Eles fizeram a seleção: “Bom, esses daqui andam comigo, esses aqui são chatos,
são isso, são aquilo.” Aí, eu acho que existe um encontro de coisas que poderiam
dar muito certo. Por exemplo, esse perfil colaborativo [que havia destacado
anteriormente], muitas vezes, eu não vi acontecer no ano passado. Inúmeras vezes,
eu tive que forçar uma barra para que acontecesse. “Não, vamos trocar. Esse grupo
hoje vai sentar com esse aqui e vai trabalhar com esse aqui.” Mas, assim obrigar a
fazer. O que não é muito a minha praia, não faço muito isso não, mas tive que fazer
porque senti muito difícil o relacionamento entre eles, estava muito difícil. Eu
associei mais assim: “Ah, são os de fora com os dentro”. Mas, talvez não. Talvez
tenha acontecido porque com essa menina não foi, ela era de fora e nem com os de
fora ela se adequou. Então, talvez tenha sido mais por conta da entrada mesmo.

A professora Rose mencionou a preocupação que tem com a questão da


diferença de entrada dos/as alunos do 6º ano, sem se referir especificamente aos/às
cotistas, de que esses/as estudantes participam de um processo seletivo concorrido,
disputado e isso os diferencia daqueles/as que vieram do primeiro segmento do CAp
o que pode tornar, em sua opinião, essa relação difícil:
Olha, eu vou ser bem franca para você. Sétimo ano que eu pegava eu percebia, é
difícil. Se você tem na escola um método de entrada diferente no ensino
fundamental primeiro segmento, que é por sorteio, e depois você tem outro que é
por concurso, um concurso que, logo no início eu fui até fiscal de prova, eu vi os
meninos lá e tenho essa ideia. É um concurso bastante hard, o negócio é punk, nem
questiono as questões, estou falando do fenômeno em si, daquele momento. Essas
duas populações se encontram, não digo todos, mas dá para sentir diferenças. A
forma de acesso é diferente, isso é nítido e reflete na população que frequenta o 6º
ano porque aí mistura, tem uma misturada de quem vêm [do 1º segmento] e dos
que estão entrando em um corte danado, que não é fácil que é o concurso.

Na sua maneira de entender, considera que os/as alunos/as que cursaram o


primeiro segmento no colégio sabem que podem repetir uma vez o mesmo ano de
escolaridade84 enquanto aqueles/as que estão chegando são “enquadrados, passaram
no concurso; fizeram cursinho manhã, tarde, noite, sábado, domingo, parece um

84
A questão do jubilamento no CAp foi discutida entre a direção os/as docentes e funcionários/as
técnico administrativos em uma reunião de Conselho Departamental ampliada no segundo
semestre de 2015 e ficou decidido que a instituição não mais jubilará seus/as estudantes. Porém,
até o momento de elaboração desse relatório de pesquisa não havia sido elaborada nenhuma
modificação na portaria de avaliação do colégio para que fosse encaminhada à universidade. Ou
seja, oficialmente, o jubilamento continua existindo, porém, há uma espécie de acordo interno e
essa prática não foi adotada no final do ano letivo de 2015.
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 150

vestibulando, está lá, aquele enquadradão, às vezes, até surtam. Aí vem aquele que
sabe que no segundo ano ele vai passar”. Esse aspecto dificultaria a relação entre
os dois grupos de estudantes.
Para a professora Jussara, os/as alunos/as que ingressam no 6º ano são
novos, por isso, considerou que se relacionam bem. Porém, afirmou que se as cotas
fossem para o ensino médio seria diferente:
Acho que se isso fosse, se a entrada fosse no ensino médio, eu acho que ia ser pior.
Porque, assim, as crianças são bem racistas também, mas eu acho que... eu não sei
se é pureza... no 6º ano, no inicial é tudo muito igual, eu acho que eles não percebem
muito essas diferenças de classe. Eu acho que se fosse no ensino médio ia ser bem
pior. Ou não, tomara que não, mas eu acho que seria sim. (risos). Porque no ensino
médio o pessoal já tem mais aquela coisa do... Do interior, do você mora na favela,
essa coisa já é mais, muito mais presente, eles já estão mais adultos, não é? No 6º
ano eu acho que a coisa ainda está muito assim... criança. Eles se mesclam mais,
posso estar enganada, mas eu também não trabalho com eles, assim, direto.

No entanto, relatou uma situação vivenciada em sua turma quando foi


entregar os materiais para os/as alunos/as cotistas. Segundo Jussara, um dos alunos
reagiu mal quando foi chamado para receber o material:
Hoje eu entreguei o material de desenho para alguns alunos da turma 64, só uma
que não veio todos os outros eu entreguei. Um ficou muito revoltado e falou:
‘Professora eu não devia nem estar aceitando isso porque a outra professora ficou
falando...’ Me disse que constrangeu. Acho que ele entendeu errado, mas não sei
também o que aconteceu. Aí eu virei e falei assim: ‘Mas você tem direito, a escola
está te dando. Aceita. Acabou.’ ‘Ah, mas eu...’ ‘Aceita, guarda lá. O dia que
quebrar alguma coisa aqui, você vai pega e repõe. Usa a pastinha, tal, tal e tal’. Não
dei muita... [atenção] Mas ele estava assim, não sei o que aconteceu, também não
dei muita... por que ali não era o momento de falar isso. Mas, assim, quando eu
entreguei o material, aí uns ficaram assim, brincando: ‘Ah, eu quero também, não
sei o quê’, aquela história. Aí eu virei e falei assim: ‘Mas falaram para eu entregar
para eles, está aqui o nome endereçado a eles e nós vamos respeitar. Eles precisam,
acabou’.

Esse relato demonstrou que nesses momentos os/as alunos/as cotistas são
identificados/as na turma pelos/as demais colegas. A professora afirmou que o
aluno se sentiu constrangido, mas não conversou com ele sobre a situação nem
tampouco com a turma quando alguns/mas disseram que também queriam ganhar
o material da escola. Ao contrário, afirmou que “ali não era o momento de falar
isso” e respondeu para os/as estudantes que “eles precisam” [os cotistas] dando a
conversa por encerrada. Poderia, no meu modo de entender, ter promovido o
diálogo sobre essa necessidade e também sobre o que significa ser cotista no
colégio. Se a sala de aula não é o lugar onde esse tema deva ser tratado já que ele
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 151

foi levantado pelos/as alunos/as, qual seria o local adequado para que essa discussão
fosse feita com os estudantes? Quanto os estudantes podem discutir e entender,
mediada pedagogicamente, as desigualdades sociais que atravessam suas realidades
pessoais?
É importante ressaltar que as professoras Rose e Jussara não tiveram turmas
regulares do 6º ano em 2014. Elas trabalharam com os/as estudantes que tinham
média menor que cinco e frequentavam a recuperação paralela das disciplinas de
Ciências e Desenho com uma média de dez a doze alunos/as nessas turmas.
A professora Miriam avaliou que os/as estudantes se relacionam bem, mas
ressaltou que por ser uma experiência que estava se iniciando considerava “muito
cedo para fazer uma afirmativa. Não sei mais tarde, não é?”, referindo-a a uma
questão de tempo, à medida que forem cursando outros anos de escolaridade
juntos/as, para que pudesse avaliar de maneira mais adequada essa relação.
No entendimento da professora Rita, não houve mudança e considerou que
o convívio entre grupos diferentes em termos sociais e econômicos seja positivo:
Por enquanto eu não senti mudanças não. Eu acho bom para eles no sentido de que
eles devem ter como o professor também tem que todos nós temos que ter acesso
a todas as camadas. Não pode ter muita essa separação, não é? Eu acho que a gente
tem que ter o contato com todas as camadas sociais, isso é uma coisa que me
incomoda nas campanhas políticas. Que tem muito a tendência de tentar jogar o
mais pobre contra o mais rico, contra a classe média e por aí, e eu acho que isso
também precisa mudar na política, não é? Por que na verdade todos precisamos de
todos, não é? Porque veja bem, os próprios políticos tentam jogar. Dizer que nós
somos o partido do povo, aquele é o partido dos ricos e não pode ser assim. Não
pode jogar povo contra povo. Não pode dizer que rico ou classe média não é povo
porque também produzem. O rico dá o emprego, a classe média paga imposto, paga
as políticas públicas. Então, o pobre não pode ver a gente como inimigo e a gente
não pode ver o pobre também como inimigo. Eu acho que tudo tem que mudar. Eu
acho que no Brasil, pelo menos no Brasil que é onde eu vivo, tudo precisa mudar
isso. Então, acho que seria muito bom se tivesse... Se fosse uma sociedade mais
justa. A gente sabe que é muito difícil ainda mais num país tão grande como o
nosso, mas tudo começa com a educação, é dentro de casa, é nas campanhas
políticas, nas campanhas sociais, tudo tem que passar pela educação, não tem jeito.
A mudança da mentalidade tem que passar pela educação.

Em seu depoimento, a professora Rita mencionou as diferenças existentes


entre classes sociais dizendo que há um discurso político que contrapõem pobres e
ricos e que essa visão precisa ser superada para que a sociedade brasileira seja mais
justa, mas considerou que a convivência entre estudantes de camadas sociais
desiguais no colégio seria um aspecto positivo. Por outro lado, fez uma afirmação
questionável quando disse que “a classe média paga imposto, pagas as políticas
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 152

públicas”. No meu modo de entender, as camadas populares também pagam


impostos, desse modo, também pagam as políticas públicas e não apenas usufruem
dos benefícios que essas possam trazer. Finalizou sua resposta dizendo que a
educação é o caminho para a superação dessa problemática revelando uma ideia de
que a educação seria salvadora.
É importante frisar que nenhum/a dos/as professores/as entrevistados/as foi
informado antes do início do ano letivo quem eram os/as cotistas. As professoras
Jussara e Miriam afirmaram que só souberam quais eram os/as estudantes
contemplados/as pelas cotas quando foram entregar os materiais de desenho e o
material didático da disciplina de Francês, respectivamente, e não saberiam
diferenciar quem era da cota social ou da racial. Os/as demais professores/as
entrevistados/as declararam que não identificavam os/as cotistas na sala de aula e
alguns disseram que foram ao NAPE procurar informações sobre alunos/as porque
estes/as apresentavam dificuldades de aprendizagem e, em alguns casos, esses/as
estudantes eram cotistas.

4.2
A relação entre os/as professores/as e os/as estudantes do CAp

Também foi solicitado aos/as docentes que descrevessem como era a


relação entre eles/as e os/as estudantes do 6º ano de escolaridade. É importante
ressaltar que a análise será feita a partir das ponderações dos/as entrevistados/as
posto que os/as estudantes não foram ouvidos/as e também não fiz nenhuma
observação nas turmas desses/as professores/as, uma vez que a opção metodológica
foi levantar as representações dos/as docentes. Estou ciente dessa limitação e
tentarei ponderá-la sempre que for necessário para não assumir apenas o ponto de
vista dos/as entrevistados/as.
Ao tratar da participação e do interesse que a disciplina de Desenho desperta
nos/as estudantes, a professora Jussara mencionou o fato dos/as estudantes não
terem sido ouvidos/as:
Comigo eu acho que é tranquilo. Acho, não, é! Também não sei do lado deles
[risos]. Tem que ouvir o lado deles. O que eu acho é assim, às vezes, eu acho que
é uma falta de vontade deles de tentar se dedicar mais àquilo, ou porque não
gostam, ou por que... Tem uns que eu percebo que tem muita dificuldade, aí você
consegue perceber. E tem uns que você percebe ou... Não sei se é uma impressão
errônea, às vezes, eu fico assim: ‘Será que você está pensando errado? Que ele não
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 153

se dedica por que ele não está a fim ou por que aquilo ou a disciplina não encantou
ou ele acha que não tem nada a ver, entendeu?’

Considero que nessa fala a professora possa estar questionando, avaliando


o trabalho que ela desenvolve na recuperação paralela com a disciplina de Desenho
e se o desinteresse dos/as alunos/as não estaria ligado ao método adotado nas aulas.
Os/as professores/as afirmaram que a relação entre eles/as e os/as estudantes
era boa, tranquila, mencionaram a questão disciplinar, a agitação e isso foi atribuído
a pouca idade. Disseram ainda, que todos/as recebiam tratamento igual. A
professora Fernanda afirmou que mantinha boa relação com os/as estudantes, mas
mencionou os problemas disciplinares, a necessidade do estabelecimento de regras
para que conseguisse dar aula e que, muitas vezes, teve que apelar para o uso de
advertências e encaminhar os/as alunos/as para o Núcleo Pedagógico. No entanto,
ressaltou que não sabia informar qual era o rumo dado a essas advertências porque,
em sua opinião, “o CAp não tinha ações que puniam esses alunos nas questões
disciplinares”.
Eles eram muito bagunceiros, às vezes, era impossível dar aula. Eu tinha os
estagiários que eles respeitavam pouco. Inclusive um aluno até xingou um dos
meus estagiários, e aí como sempre o problema disciplinar no CAp e tudo mais,
mas a minha relação individual com eles era muito boa. O problema era quando
todos se juntavam. Sabe o Taz Mania que gira assim? Eram todos eles girando em
sala [risos]. Então, às vezes, era muito cansativo. Eu saía como se fosse de uma
guerra. Na segunda[-feira], então, que era só 6º; quarta[-feira] que era só 6º [ano],
eu saía de uma guerra. Era muito cansativo. Eu poderia me estressar menos, eu sei,
assim, no sentido de, ‘Ah, tá fazendo? Se mata ali’, mas eu não quero. Eu quero
que ele preste atenção, eu quero que ele abra o caderno, eu quero que o outro pare,
eu quero que o outro não suba na mesa, eu quero que o outro não rabisque a mesa.

A questão da indisciplina escolar vem sendo discutida por diversos


autores/as e não há consenso sobre quais seriam as ‘causas’ desse fenômeno. No
artigo “Indisciplina escolar: reflexões”, Graziela de Jesus e Graziela Maia (2010)
afirmam que ao analisarem a literatura sobre o tema constataram que a indisciplina
escolar “é fortemente influenciada pela concepção de educação escolar dos
integrantes da escola. Um dos aspectos evidenciados com o estudo é que os
problemas de indisciplina escolar, apesar de serem estudados sobre diversas
perspectivas teóricas, não apresentam respostas concretas que possibilitem
conceitua-los e/ou identificar suas causas diretas” (JESUS & MAIA, 2010, p. 1).
Ou seja, o conceito de disciplina escolar vai variar de acordo com as concepções
sobre disciplina e indisciplina. Em uma abordagem teórico-metodológica mais
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 154

‘tradicional’ o aluno deve manter-se calado, quieto, atento, obediente. Na


perspectiva ‘escolanovista’, a disciplina ocorrerá no ambiente escolar democrático
que permita e propicie a construção de autonomia das crianças.
A construção da autonomia é essencial, pois é ela que contribui com o processo de
ensino-aprendizagem, oferece a oportunidade para que os alunos se disciplinem
sem imposições e oferece a oportunidade para que os professores e alunos
construam suas relações sem conflitos no interior das salas de aula. Nessa
abordagem, as sanções e a intervenção do adulto não são anuladas, mas a criança
submete-se as regras mais facilmente porque contribui com o processo de
formulação, reformulação das regras e sanções (JESUS & MAIA, 2010, p. 3-4).

A professora Fernanda considerou a indisciplina um problema que pode


comprometer o processo de ensino-aprendizagem e as relações interpessoais na
escola. Jesus e Maia (2010) afirmam que as escolas procuram combater a
indisciplina com o intuito de melhorar a relação professor-aluno e propiciar um
ambiente adequado à aprendizagem, mas que a ação da escola deveria ser de
prevenção e não de combate ou controle. Nesse sentido, o estabelecimento de regras
e normas da escola precisa estar claro para os/as estudantes e os/as professores/as
possam elaborar combinados com a turma que contribuam, favoreçam um ambiente
escolar, nesse caso a sala de aula, mais harmônico.
O professor Cauã disse que os/as alunos/as do 6º ano de escolaridade estão
em uma faixa etária que “ninguém, praticamente, queria porque são mais agitados,
bagunceiros”, e que isso é comum em outras escolas: “Acho que normalmente nos
colégios como um todo, as turmas que têm menos preferência são o 6º e o 7º ano e
é uma faixa etária que eu gosto muito, eu gosto muito de crianças”, que nessa fase
o professor ainda é visto como “tio”.
O professor Mateus também mencionou a questão disciplinar, mas destacou
a necessidade de manter um relacionamento afetivo com os/as estudantes para que
o trabalho pudesse acontecer de maneira adequada. Informou que, inicialmente, por
estar chegando ao colégio, tinha uma postura que chamou de mais pragmática,
técnica nas turmas, mas, com o passar do tempo percebeu que precisaria mudar sua
forma de trabalhar:
Minha relação com eles foi muito boa. Geralmente o 6º ano é muito traumático,
não é? Fiquei muitos dias sem voz por causa deles... [risos] Foi cansativo, mas foi
extremamente positivo. A minha relação com eles foi uma relação que extrapolou
o pragmatismo da prática docente, que não precisa ser pragmático, não é? Mas eu
entrei no CAp numa perspectiva de demonstrar trabalho e fazer ali uma rede de
relações profissionais. Então, no popular, eu precisava mandar bem, eu entrei com
essa perspectiva no CAp. “Olha é uma oportunidade muito boa, é um colégio que,
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 155

apesar de toda a crise, tem uma projeção muito grande, e eu sei que fazendo um
trabalho bom aqui eu crio uma rede de relações profissionais que vai me projetar,
vai me promover”. Então, eu entrei com essa visão bem egoísta mesmo, mas
quando eu peguei o 6º ano eu falei: “Olha o 6º ano é muito difícil de trabalhar” e
aí eu quis fazer uma relação assim “trabalho bem técnico, bem assim, não posso
dar nenhum mole”. Só que, na verdade, não dá para trabalhar com o 6º, não dá para
trabalhar com nenhum ano, na verdade, sem você desenvolver relações afetivas.
Quando eu percebi que eu chegando ao colégio, dando um abraço neles a aula
melhorava aí eu comecei a desbloquear para outras coisas. A minha relação com
eles foi extremamente afetiva no sentido de que este afeto não atrapalhou o
profissionalismo da prática que eu deveria ter, por outro lado, só auxiliou. Comecei
muito assim, mas depois que eu percebi que os momentos que eu me livrava dessa
capa, por que eu não sou assim, eu não sou sério, que eu me livrava dessa capa e
relaxava, eles também, por outro lado, relaxavam e queriam entender mais. Então,
eu consegui criar um ambiente de dúvidas, um ambiente de querer gostar de
estudar, querer aprender como é que o tal do vulcão entra em erupção, por exemplo,
de querer descer e fazer uma aula na quadra e não na sala de aula. Eu comecei a
criar esse tipo de relação com eles e foi extremamente positivo, me facilitou muito
porque todos os professores reclamavam do 6º ano, todos os professores
reclamavam das minhas turmas e eu não tinha absolutamente o que reclamar deles,
a não ser o que a gente reclama sempre de uma turma do 6º ano, que você deve
saber muito bem, que é o barulho, que é a gritaria.

O professor Mateus relatou que ao modificar sua postura diante dos/as


estudantes e ao se aproximar mais deles/as o relacionamento tornou-se melhor. Ele
parecia estar vivendo o dilema entre a razão e a emoção. Não pretendo discorrer
sobre o tema da afetividade na relação entre professor/a e aluno/a, mas seu
depoimento remete às reflexões feitas por Candau (2001a) ao tratar da
multidimensionalidade do processo de ensino-aprendizagem. Para ser
adequadamente compreendido, tal processo precisa ser analisado de modo que
articule as dimensões humana, técnica e político-social.
Ensino-aprendizagem é um processo em que está sempre presente, de forma direta
ou indireta, no relacionamento humano. Para a abordagem humanista é a relação
interpessoal o centro do processo. Esta abordagem leva a uma perspectiva
eminentemente subjetiva, individualista e afetiva do processo de ensino-
aprendizagem. Para esta perspectiva, mais do que um problema de técnica, a
didática deve se centrar no processo de aquisição de atitudes tais como: calor,
empatia, consideração positiva incondicional. A didática é então “privatizada”. O
crescimento pessoal, interpessoal e intragrupal é desvinculado das condições
socioeconômicas e políticas em que se dá; sua dimensão estrutural é, pelo menos,
colocada entre parênteses. [...] certamente o componente afetivo está presente no
processo de ensino-aprendizagem. Ele perpassa e impregna toda sua dinâmica e
não pode ser ignorado (CANDAU, 2001a, p. 14-15).

Candau (2001a) não abre mão das dimensões técnica e político-social,


porém, assevera que a primeira deve estar voltada para a organização das condições
que melhor propiciem a aprendizagem não estando resumida apenas aos aspectos
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 156

instrucionais. Já a segunda, é inerente ao processo de ensino-aprendizagem, ou seja,


o mesmo acontece sempre numa cultura específica e trata com pessoas concretas
com seus contextos sociais, econômicos e culturais definidos (p. 15-16). Sua
proposta é a de que a articulação dessas três dimensões seja o centro configurador
do processo de ensino-aprendizagem.
Diante do exposto, parece que o professor Mateus conseguiu estabelecer
uma boa relação entre ele e seus/as alunos/as ao afirmar que “todos os professores
reclamavam de suas turmas” enquanto ele não tinha nada do que reclamar. Talvez,
ele também crie expectativas menores quanto ao comportamento disciplinar dos/as
estudantes, o que talvez o leve a “não ter nada que reclamar”. Considerando seu
depoimento, o relacionamento entre o discente e os/as discentes contribuiu de forma
positiva para o processo de ensino-aprendizagem, além de colaborar com as
vivências pessoais que poderão se constituir na base da identidade pessoal dos/as
alunos/as.
Para a professora Rita, o relacionamento foi considerado bom, tranquilo,
porém, destacou que quem conduz o processo de ensino aprendizagem é o/a
professor/a, que os/as alunos têm voz nas suas aulas, mas que a liderança é do/a
professor/a, que esse trabalho de orientação está ausente nas escolas de uma
maneira geral:
Bom, eu tive muito bom relacionamento com eles. Eles costumam dizer que eu sei
a hora de brincar e sei a hora de dar um puxão de orelha. Eles falam isso: ‘Você
sabe fazer a coisa’. Eu converso com eles, eu brinco com eles, eu os deixo falar.
Eu acho assim que muito do que eles; quando acontece de ter uma diferença, eu
não sentia muito isso na turma não, acho que eles eram até bem cooperativos. Eu
acho que isso vai muito de como o professor conduz as coisas. Eu acho que cabe
muito a gente também isso, cabe à família, cabe também à escola conduzir isso.
Eles colaboravam bastante. Porque eu acho que a gente tem que explicar porque
está trabalhando daquela forma, porque vou separar você do fulano, porque você
tem que conhecer outros colegas. ‘Você tem facilidade? Ah, você pode sentar com
o outro que tem mais dificuldade, senta aqui e ajuda ele’. Então, eu acho que a
forma como a gente conduz ajuda muito. Acho que como eles são mais jovens e
somos mais velhos a gente está num trabalho de liderança, não é? Quer queira quer
não o professor tem a liderança dentro de sala de aula, isso não quer dizer que o
aluno não vá ter voz, que você não vai negociar as coisas. Eu acho que o próprio
aluno espera que você conduza o trabalho, que você de alguma forma oriente o
trabalho da equipe. Porque aquilo é uma equipe. Acho que é esse trabalho de
condução, de orientação que está faltando tanto. Tanto dentro da escola quanto
dentro de casa, das famílias. Eu acho que quando você orienta e explica o porquê
das coisas que você está fazendo isso ajuda muito até a minar determinados
problemas que possam surgir, ou de repente nem surgem, nem deixa se criar. Eles
têm muito mais capacidade de discernimento do que a gente pensa, do que a gente
acha que eles têm.
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 157

Em seu depoimento, a professora Rita explicitou que ouve seus/as alunos,


que dá voz a eles/as, que negocia coisas, mas que ela é a liderança dentro da sala de
aula.
A relação entre professores e estudantes não ocorre entre iguais. Há uma diferença
de poder e hierarquia, pois como adulto e profissional responsável por planejar,
executar e avaliar o processo de ensino e aprendizagem, o professor possui
objetivos e responsabilidades distintas dos estudantes. Neste sentido, podemos
compreender que suas ações e interações são estratégicas, posto que visem
objetivos outros que o entendimento ou a busca de consenso, mesmo que possamos
julgar que, em última instância, seja a aprendizagem e o desenvolvimento dos
educandos o objetivo último dessas interações. No que diz respeito às relações
interpessoais e à convivência no espaço escolar, os professores podem cumprir o
papel de mediação e promoção de condições para que os diferentes interesses e
opiniões possam se expressar e buscar um consenso possível (CÂMARA, 2015, p.
84-85).

Concordando com Câmara (2015), entendo que há, de fato, diferença de


poder e hierarquia entre professores/as e estudantes, mas mesmo sendo uma relação
assimétrica os/as docentes podem estabelecer com eles/as relações interpessoais
pautadas no diálogo e na cooperação que promovam caminhos para a resolução de
questões e/ou conflitos na sala de aula.

4.3
O trabalho docente: planejamento, didática, currículo e avaliação

Aos/às professores/as entrevistados/as foi perguntado se a entrada de


estudantes por reserva de cotas raciais havia demandado alguma modificação no
seu trabalho docente, no planejamento das aulas, na metodologia adotada, na
seleção de conteúdos, nos critérios de avaliação. No grupo de professores/as, tanto
contratados/as quanto de efetivas, de um total de dez, nove afirmaram que não
ocorreu nenhuma mudança no trabalho docente que desenvolveram com esses/as
estudantes. Apenas um professor, assegurou que fez mudanças e que estas
aconteceram desde a metodologia usada em suas aulas até a seleção dos conteúdos,
passando pela avaliação.
Ao refletir sobre os elementos constitutivos do trabalho docente e sua
complexidade, Maurice Tardif (2007) afirma que a questão do saber dos/as
professores/as não pode ser separada das outras dimensões do ensino. Na sua
abordagem, não se pode falar do saber sem relacioná-lo com os condicionantes e
com o contexto do trabalho:
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 158

O saber é sempre de alguém que trabalha alguma coisa no intuito de realizar um


objetivo qualquer. Além disso, o saber não é uma coisa que flutua no espaço: o
saber dos professores é o saber deles85 e está relacionado com a pessoa e a
identidade deles, com a sua experiência de vida e com a sua história profissional,
com as suas relações com os alunos na sala de aula e com os outros atores escolares
na escola (TARDIF, 2007, p. 11).

Para o autor, o saber dos/as docentes é ao mesmo tempo social e individual.


Social porque é partilhado por todo um grupo de professores/as que possuem uma
formação comum, que trabalham numa mesma organização e estão “sujeitos, por
causa da estrutura coletiva de trabalho cotidiano, a condicionamentos e recursos
comparáveis, entre os quais programas, matérias a serem ensinadas, regras do
estabelecimento, etc” (TARDIF, 2007, p. 12). E individual porque sua existência
depende dos/as professores/as enquanto atores empenhados numa prática.
O saber dos professores depende, por um lado, das condições concretas nas quais
o trabalho deles se realiza e, por outro, da personalidade e da experiência
profissional dos próprios professores. Nessa perspectiva, o saber dos professores
parece estar assentado em transações constantes entre o que eles são (incluindo as
emoções, a cognição, as expectativas, a história pessoal deles, etc) e o que fazem.
O ser e o agir, ou melhor, o que Eu sou e o que Eu faço86 ao ensinar, devem ser
vistos aqui não como dois pólos separados, mas como resultados dinâmicos das
próprias transações inseridas no processo de trabalho escolar (TARDIF, 2007, p.
16).

Considerando a complexidade do trabalho docente, apresentarei,


inicialmente, os depoimentos dos/as professores/as contratados/as porque, mesmo
afirmando que não houve mudanças, esses/as docentes formularam respostas
detalhadas sobre os aspectos contemplados nas perguntas.
A professora Monique foi taxativa em sua resposta ao dizer que não houve
mudanças no seu trabalho docente e mencionou o dia em que fez uma alteração no
planejamento de sua aula porque os/as alunos/as trouxeram para a sala uma situação
que haviam vivenciado:
Não vou mentir. Nenhuma, nenhuma, nenhuma, continuou o mesmo planejamento,
as mesmas tipologias textuais, a mesma perspectiva de apresentação. Só houve
quando rolou a intervenção e foi antes da reserva de vagas. Foi porque tinha
acontecido e era por conta, isso foi em 2013, era para inserção das cotas essa
intervenção no CAp, era para inserção das cotas no concurso do CAp/UERJ. Era
por isso que eles estavam fazendo aquilo. Estavam distribuindo folhetinho e tal. E
por isso que eu parei para falar com eles sobre isso. Eu não saí do meu tema, mas
eu também não saí da temática que eles estavam falando. Então, a gente inseriu
uma coisa dentro da outra. Mas, por exemplo, eu não olhei para as professoras e

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Grifos do autor
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Grifos do autor
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 159

falei: ‘Vamos inserir isso? Vamos começar?’ O que seria até uma forma, não é?
Poderia ter feito, não fiz.

Ao dizer que não propôs às outras professoras mudanças e que poderia ter
feito isso, mas não fez, Monique demonstrou que essa seria uma atitude individual,
que deveria ter partido dela e não uma proposta feita pela coordenação pedagógica
do colégio ou pela chefia de seu departamento. Quando questionada sobre os
critérios de avaliação também afirmou que não aconteceram mudanças, apenas para
os/as estudantes com necessidades educativas especiais87 que realizavam suas
provas em outro ambiente e com mais tempo para responder as questões.
Flávia também afirmou que não realizou mudanças no planejamento de
aula, na seleção de conteúdos, metodologia e critérios de avaliação, mas relatou que
de 2013 para 2014 fez uma adaptação na avaliação, “a gente fez só em relação a dar
mais ponto aqui, menos ponto ali, por achar que os pontos ficariam mais bem
distribuídos, assim, só tiramos dois pontos de um teste e colocamos para outro, para
avaliar o teste mais pesado depois, outro mais leve no início, só isso”. De acordo
com seu depoimento, essa mudança não foi realizada pensando nos/as estudantes
que ingressaram pelas cotas raciais, mas por uma percepção da turma, uma prática
já desenvolvida por ela:
A gente sempre faz uma percepção da turma e aí a gente percebe a turma como
uma turma, a gente não para pra pensar se tem cotista ou se não tem cotista. A gente
para pra pensar no nível de aprendizagem dos alunos em como eles entendem ou
não a matéria, se precisa voltar, se vai mais devagar, se vai mais rápido. Isso para
mim independe de cota ou não porque nas outras escolas eu faço do mesmo jeito,
entendeu? É uma percepção inicial que eu sempre faço. E é uma percepção inicial
e continuada. O ano inteiro você vai fazendo.

87
Desde 2011 acontece no CAp o Atendimento Educacional Especializado (AEE) , proposta voltada
aos/as estudantes com necessidades educativas especiais. Esse atendimento iniciou-se como
projeto de Iniciação à Docência e em abril de 2014, a universidade, através do Conselho Superior
de Ensino Pesquisa e Extensão (CSEPE) promulgou e deliberou a criação do Atendimento
Educacional Especializado (AEE) como oferta integrada às classes comuns do ensino regular da
Educação Básica do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – CAp/UERJ
atendendo as disposições do Decreto 7611/11, a Resolução CNE/CEB n. 4 de 2 de outubro de
2008 e a Resolução n. 4 de 13 de julho de 2010 que preceituam que os sistemas de ensino devem
matricular os estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades/superdotação nas classes comuns do ensino regular. A Deliberação 12/2014 autorizou
a regência docente especializada integrada às classes comuns do CAp. Atualmente a equipe do
AEE conta com doze professores/as entre contratados e efetivos/as, dez alunos/as dos anos iniciais
do ensino fundamental são atendidos/as e no segundo segmento do ensino fundamental e do
ensino médio há a indicação de atendimento para nove alunos/as.
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 160

Finalizou sua resposta fazendo uma queixa com relação ao fato de todos/as
os/as professores/as do 6º ano em 2014 eram contratados/as:
Um dos problemas que a gente tinha no 6º ano de ciências, especificamente, é que
não tinha um professor concursado. Todos os professores que davam aula eram
contratados. Qual é o problema disso? É que a gente não tem a experiência anterior
dos professores que já trabalhavam no CAp, a gente ia por conta própria. Então, a
gente não tem como... Eu e a outra professora acreditamos que também não, a gente
não tem como fazer uma comparação de como era o trabalho antes e como era o
trabalho depois porque a gente começou o nosso trabalho do nosso jeito e indo do
nosso jeito.

Relatou que ao ingressar no CAp, em 2013, havia uma professora


concursada que auxiliou na orientação do trabalho, “a gente herdou muito dessa
questão da avaliação, do cronograma, do planejamento dela, a gente fez algumas
alterações para 2014, mas nada em função da cota. Foi em função de achar que
ficaria um pouco melhor, realmente”. Mais uma vez aparece o tema da ausência de
orientação pedagógica para o encaminhamento do trabalho docente com os/as
estudantes que ingressaram no 6º ano de escolaridade independentemente da adoção
da reserva de vagas.
O professor Cauã também afirmou que não houve nenhuma mudança em
seu planejamento, mas destacou que o programa do 6º ano de escolaridade apresenta
uma linguagem complexa e que a matéria inicial é abstrata para os/as estudantes.
Não. Planejamento eu já tinha dos anos anteriores. É claro, uma turma anda mais
do que a outra, uma turma tem mais facilidade de pegar conteúdo que as outras,
você vai adaptando, de repente, vai criando mecanismos de andar com a matéria.
Na verdade, eu acho que a grande dificuldade do 6º ano é o programa porque
começa a trabalhar muito com teoria da história. O que é história, o que é um
historiador, as fontes históricas, a linha do tempo e isso é um pouco confuso pra
eles. Então, não pelos cotistas ou pelos alunos que vêm de fora, que não são do
CApinho. Eu acho que a maior dificuldade do 6º ano, a princípio, é você ter uma
linguagem que consiga explicar esse primeiro momento da história para os alunos.
Quando você entra em Egito aí já começa a facilitar muito porque é o que eles
adoram, pirâmides, Roma, escravidão, luta. É uma matéria, claro que é necessária,
mas é um pouco abstrata demais para os alunos e isso dificulta um pouco esse
começo do 6º ano.

Assim como Monique, o professor Cauã também mencionou a questão do


nível de aprendizagem e do ritmo dos/as estudantes. As estratégias utilizadas por
esses docentes e explicitadas em seus depoimentos “é andar mais devagar ou mais
rápido com a matéria” de acordo com a turma. Assim, parecem considerar que
outras diferenças existentes no grupo de alunos/as não demandam mudanças no
planejamento. Os docentes não citaram em seus depoimentos uma reflexão sobre a
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 161

possibilidade de fazer mudanças nas suas práticas pedagógicas, apesar de Cauã ter
afirmado que a matéria é muito abstrata.
Esse professor complementou sua resposta relatando uma atividade que
propõe no início do ano letivo para atenuar a questão da abstração da matéria e
também tratar das diferenças existentes entre os/as alunos/as:
Nada também que não possa ser superado com dinâmicas, enfim, com atividades
quando eles trazem fontes de pesquisa de casa. Eu sempre tento mostrar que a casa
deles é um lugar de pesquisa, todo mundo tem história, todo mundo tem um nome
de família que é importante, tem sangue. Então, eu sempre tentei nos primeiros
momentos do 6º ano, do programa, fazer com que eles percebessem que eles vivem
a história diariamente. Dentro de casa com o sobrenome deles. Por exemplo, a
primeira pesquisa, a primeira atividade do ano era uma atividade que eles
pesquisavam brasão de família, aí cada um pesquisava o brasão da família, aí tinha
que trazer uma história legal da família e trazer um objeto de casa, um objeto
histórico. Então, assim, super legal. Às vezes, de objetos históricos vinham fotos
do avô na guerra, vinham notas de dólar que o avô trouxe do Dia D, máscaras de
gás nazistas, enfim. Acaba que são formas de tentar tirar as diferenças entre eles,
num momento em que todos percebem que têm a sua história, que toda família tem
história interessante pra contar, da mais pobre a mais rica. Então, eu acho que são
pequenos mecanismos em sala de aula que a gente tenta um pouco nivelar todos
eles, quem é pobre, quem não é, quem é branco, quem não é, quem vem do
CApinho, quem não é. Eu acho que tem algumas formas de trabalho que ajudam
muito nisso, mas não tive como perceber, assim, diferenças grandes de quem veio
do CApinho ou não, quem entrou por sorteio ou não, como eu falei anteriormente,
eu acho que é uma coisa muito particular de cada caso. Tanto do CApinho, quanto
de sorteio, ótimos alunos como alunos com dificuldade de aprendizado, no caso.

Esse depoimento suscita algumas reflexões: quando o professor afirma que


“são formas de tentar tirar as diferenças entre eles” e “a gente tenta um pouco
nivelar todos eles”; questiono: a escola sabe lidar com as diferenças? Os professores
e professoras, demais atores escolares, propostas curriculares, estão voltados para
o enfrentamento das questões relativas às diferenças? Esses são questionamentos
que não possuem respostas prontas. Porém, alguns autores e autoras nos auxiliam
dando pistas de um fazer cotidiano pautado em outras bases, onde as diferenças
possam ser entendidas como riqueza e não como problema.
O trato pedagógico da diversidade é algo complexo. Ele exige de nós o
reconhecimento da diferença e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de padrões de
respeito, de ética e a garantia dos direitos sociais. Avançar na construção de
práticas educativas que contemplem o uno e o múltiplo significa romper com a
ideia de homogeneidade e de uniformização que ainda impera no campo
educacional (GOMES, 1999, p. 3-4).

O depoimento do professor Cauã revelou, no meu modo de entender, uma


prática docente que mais exclui do que inclui ao pedir que os alunos e alunas
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 162

pesquisem os brasões de suas famílias. Também dividiu os/as alunos/as entre os/as
que são ótimos/as e os/as que têm mais dificuldade como se estive distinguindo-os
a partir desses dois critérios desconsiderando diferenças socioeconômicas, culturais
e contextuais que poderiam existir dentro das turmas. Finalizou sua resposta
afirmando que não fez nenhuma mudança nas avaliações propostas:
De acordo com o ritmo da turma você aumenta um pouquinho o nível da prova ou
diminui um pouquinho. Num primeiro momento eu faço um método de avaliação
um pouco mais brando para não ficar todo mundo preocupado com nota vermelha,
pelo contrário, no primeiro semestre eu dou uma boa afrouxada, em termos de nota
para que eles possam gostar também da matéria e não ficar com medo de ser
reprovado e ao longo do ano vou puxando um pouquinho mais. Esses anos todos
sempre tive uma base, mais ou menos, semelhante. Você vai aprimorando essa
base. Aquela questão não deu certo, ninguém acertou, aquela questão ficou boa,
eles gostaram você vai, ao longo dos anos, por erros e acertos, mantendo um
método de trabalho, uma forma de trabalho que se adapta a você também e que
tenta ser, de certa forma, melhor para os alunos. Não tive nenhuma mudança
especial por conta dessa nova lei não.

O depoimento da professora Fernanda seguiu a mesma linha de raciocínio e


afirmou que não fez nenhuma mudança no planejamento, na seleção dos conteúdos,
metodologia e avaliação, mas garantiu que deveria haver mudanças, porém, não
apresentou sugestões, apenas relatou que para uma aluna que apresentava uma
dificuldade específica que também não detalhou qual era elaborou “várias listas
extras, mas não influenciava no meu planejamento não. Era algo que eu achava que
era necessário para ela. Se tivesse outro aluno eu faria para ver se ajudava. Agora,
eu sei que o quê eu fazia era insuficiente, mas, pelo menos, eu tinha a consciência
tranquila de que eu estava tentando fazer algo, sabe?”
Tratando ainda da questão de uma possível mudança nas práticas
pedagógicas essa mesma professora fez uma proposta para os/as ingressantes no 6º
ano de escolaridade, uma espécie de teste de nivelamento independentemente da
forma de ingresso desses/as estudantes:
Uma ideia: a gente podia fazer uma média da nota do concurso no CAp. Os alunos
que tiraram menos que aquela média deveriam estar automaticamente em aulas de
apoio, você entende? E isso não tem nada a ver com cota, porque o cara pode estar
em cota com uma nota boa, não é? Para gente tentar trabalhar, ou de repente, para
todos os alunos que não são do CAp. O primeiro trimestre todos em aula de apoio,
para ver se a gente conseguia nivelar aqueles alunos, entendeu?

Sua preocupação não dizia respeito somente ao rendimento que esses/as


estudantes apresentavam quando ingressavam no colégio. De acordo com seu ponto
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 163

de vista, os/as alunos/as ingressantes precisavam contar com um apoio da escola


para que suas trajetórias pudessem ser exitosas:
Olha, acho uma crueldade, um aluno que chega, que já tem tantas dificuldades na
vida, que se propõe a ir para o CAp que é muito longe. Tem pais que saíam de
Santa Cruz, o aluno sai quatro e pouca da manhã de casa para estudar e que a mãe
ficava na porta do CAp esperando o aluno acabar a aula cinco e pouca [da tarde]
para poder voltar e gastar uma condução só. A gente [vê] um esforço tão grande e
eu acho uma crueldade ‘botar’ esse aluno simplesmente no CAp e achar que ele
tem que se virar. E aí se ele não conseguir é porque ele não foi bom o suficiente
para isso, não é? É quase meritocracia. Você está colocando cota para dizer, para
ser justo, para propor igualdade e dentro da própria instituição vai rolar o quê?
Porque se você não conseguir: ‘Poxa, que pena, mas você foi insuficiente’. Não,
não é assim. Tinha que ter um olhar, um suporte maior para esses alunos. Porque
os alunos que foram aprovados em Conselho no 5º ano, eles estão em apoio no
primeiro trimestre, automático. Então tinha que ter alguma coisa também para
quem veio de concurso.

Para a professora Fernanda, a instituição precisa definir qual apoio


pedagógico será dado aos/as estudantes que ingressam no 6º ano de escolaridade,
sejam eles/as cotistas ou não. No seu ponto de vista, a escola precisa garantir
orientação pedagógica e não apenas financeira para aqueles/as que chegam ao
colégio.
O professor Mateus foi o único que afirmou ter feito mudanças no seu
planejamento, na seleção de conteúdos e na avaliação. Segundo ele, “a aula foi o
primeiro indicador” de que algo precisava ser modificado e relatou que fez
exercícios diferenciados que pudessem atender os diversos tipos de conhecimento
e ritmos de aprendizagem dos/as alunos/as que compunham as turmas.
Eu não conseguia sair de uma aula com a clareza de que todo mundo tinha
entendido tudo. Quando ia fazer uma revisão ou então ia acompanhar o trabalho de
casa eu percebia ‘caramba, esse aluno não entendeu nada e o outro aluno entendeu
até demais, chegou em casa e ainda fez uma pesquisa, complementou’. E aí isso
me fez mudar e aí também o que me fez mudar bastante foi a possibilidade de
trabalhar exercícios diferenciados, não é? Então, eu colocava assim ‘exercícios’,
fazia umas folhinhas e tal; algumas eram muito difíceis, algumas eram mais fáceis.
Então, eu passava graduações de trabalho, passava o mais fácil, depois o mais
difícil e depois o mais difícil ainda. E aí na prova tinham questões mais tranquilas,
tinham questões mais difíceis, naturalmente. Então, a forma que eu tive de lidar
com essa heterogeneidade de alunos, de tipos de conhecimento foi a forma de
trabalhar questões diferentes.

No que diz respeito à seleção de conteúdos, informou que conversou com


um professor efetivo que trabalha há muitos anos no colégio, que já tinha sido
coordenador de disciplina e que já tinha ministrado aulas para o 6º ano durante um
longo período de tempo, mas que em 2014 não estava trabalhando com turmas desse
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 164

ano de escolaridade. Nesse diálogo, compartilhou suas inquietações e a partir dessa


conversa fez mudanças ao trocar o conteúdo de tipos de rochas por “sociedade do
consumo e a degradação ambiental que é uma coisa que eles já vivem”. De acordo
com Mateus, essa proposta surgiu porque a turma era muito heterogênea em termos
socioeconômicos e não com a intenção de atender os/as estudantes que ingressaram
pela reserva de vagas raciais. Ele afirmou no início da entrevista que não tinha
conhecimento da implementação da lei: “Uma turma que um vem do Leblon, o
outro que vem do Chapéu Mangueira, discutir tipos de rochas é completamente
diferente do que discutir a sociedade do consumo e a degradação ambiental, porque
eles têm padrões diferenciados de consumo, de alteração no espaço geográfico,
alteração no meio ambiente. Foi um tema super positivo e entrou no planejamento
do 6º ano que não tinha e saiu os tipos de rochas”.
Finalizando sua resposta, citou que fez também mudanças nas suas
avaliações que eram “prova, teste e, às vezes, um trabalho para casa”. Ao perceber
que alguns/mas alunos/as estavam entendendo a matéria, mas “apresentavam uma
dificuldade imensa de escrever” optou por realizar uma prova oral:
A avaliação oral seria a melhor forma de avaliar esses alunos. Fiz uma avaliação
oral, que era uma conversa, uma conversa estruturada com algumas questões, mas
seriam questões que eu daria numa prova. Então, a avaliação oral me deu a
compreensão exatamente disso, da hipótese que eu tinha: “Esse aluno está
entendendo, mas ele não consegue se expressar. Ele tem uma dificuldade
gigantesca de escrever, de escrever mesmo certo e tampouco de tirar da cabeça e
passar para o papel. Então vamos ver, vamos conversar com ele por que na aula ele
sabe”. Na aula o menino participava, escrevia no caderno, tudo, mas na prova não.
Então do ponto de vista da avaliação, a avaliação oral foi positiva.

Posso dizer que o professor Mateus mostrou-se mais sensível ao trato da


diversidade de seus/as alunos/as, mesmo não tendo feito menção direta àqueles/as
que ingressaram pela reserva de vagas raciais. Ao narrar à mudança de conteúdo
que realizou, demonstrou, mais uma vez, sua preocupação com a desigualdade
socioeconômica que constatou entre os alunos. Em seu entendimento, esta
desigualdade poderia ter dado mais ou menos possibilidades de desenvolver a
capacidade da escrita, por exemplo. No entanto, aqueles que ainda não a tinha
completamente sabiam expressar oralmente o conteúdo trabalhado em suas aulas; e
isso foi levado em consideração. A modificação feita no que diz respeito à avaliação
também revelou que esse professor estava atento às diferenças e às desigualdades
que compunham suas turmas.
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 165

As cinco professoras efetivas afirmaram que não fizeram nenhuma mudança


no planejamento, na seleção dos conteúdos, metodologia de trabalho e critérios de
avaliação. É importante lembrar que, nesse grupo, três professoras eram de língua
estrangeira e tinham, em média, um tempo semanal de cinquenta minutos com as
turmas e duas eram professoras da recuperação paralela que também estavam com
esses/as estudantes pelo mesmo período de tempo. Mesmo assegurando que não
fizeram nenhuma modificação nas suas práticas docentes, quatro delas
apresentaram respostas que merecem ser apreciadas. Jussara e Rita disseram que
trabalhavam com os/as alunos/as de maneira igual, não tratavam os grupos de modo
diferenciado e que suas práticas visavam coloca-los “para frente”, “para cima”.
Não porque eu, assim, eu não parei para pensar nisso [na reserva de vagas]. Eu não
estava dando aula para o 6º ano, não é? Esse ano [2015] que eu peguei 7º [ano] de
novo. Mas, assim, o que eu procuro fazer independente de ser cota é verificar o que
posso fazer para ele visualizar melhor ou entender melhor aquele conceito. Então,
busco outras formar de tentar melhorar o entendimento do conceito, independente
dele ser de uma classe ou de outra, ou de outra, eu faço isso com meus alunos de
uma maneira geral. Eu não vejo aluno, assim, eu não olho para o aluno e falo assim:
‘você é de classe tal e você merece mais atenção que o outro que não é’. Ao
contrário, eu puxo a galera para frente. Eu busco sempre fazer isso, independente
de classe, não tenho esse olhar categorizado assim. Então, eu não tenho essa coisa:
‘fulano é’. Na minha cabeça não existe isso, são todos alunos, não tem essa coisa
de cota. Vou até refletir sobre o que você está falando, mas eu não tenho.
(Professora Jussara)

Bom, como eu não considero muito isso [a reserva de vagas] nem tomei
conhecimento, se tomasse conhecimento também... Vou trabalhar do mesmo jeito
que eu sempre trabalho. Como? Eu quero fazê-los aprender. Então eu vou muito...
Eu acho que a coisa da didática, da metodologia a gente tem que ter de qualquer
forma não importa se eles vêm de políticas públicas ou não. Seja quem for a gente
tem que fazer aquele trabalho pensando na faixa etária, pensando em tudo. A
questão é que a gente trabalha com um grupo, então você não pode trabalhar com...
Assim, fica muito difícil ainda mais para gente que não fica a manhã inteira com
eles, só alguns tempos. Na verdade, em inglês a gente fica um tempo. Grandes
mudanças eu não faço não porque eu acho que tenho que puxá-los para cima.
(Professora Rita)

A professora Jussara acrescentou que só realiza mudanças no planejamento


quando a maioria da turma apresenta alguma dificuldade, mas que, na maioria das
vezes, o “problema” não é cognitivo e sim comportamental:
Quando eu percebo, tenho um planejamento, quando vejo que não vai, ele não vai
de jeito nenhum porque a maioria da turma, mas é a maioria, não está caminhando
como deveria caminhar, na maioria das vezes não é problema cognitivo, é um
problema comportamental. E aí não anda por causa da agitação deles; que eles
também estão muito agitados. Quando um ou outro tem problema cognitivo e que
não é, assim, uma constante, a gente percebe ou o NAPE fala para gente e procuro
buscar outras estratégias, mas, assim, de uma forma geral.
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 166

Posso afirmar que essas professoras não consideraram as diferenças


socioeconômicas e de ritmos de aprendizagem existentes entre seus/as alunos/as
apesar do tema da diversidade fazer parte das ações governamentais voltadas para
a educação desde a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais publicados
no final dos anos noventa. Se há dificuldades para identificar ritmos de
aprendizagens e as desigualdades sociais, creio queo étnico racial fica, ainda mais,
secundarizado. Como ressalta Nilma Gomes e Anete Abramowicz (2010):
A base teórica sob a qual a escola foi construída se apoia na ideia de uma
indiferença às diferenças, ou seja, a escola se pensa como única e universal para
todos. Ou seja, se a escola deve ser indiferente aos territórios, às origens, à cultura
das famílias é o princípio da indiferença ao outro que está na raiz dessa instituição.
O único e o universal são construções teóricas e políticas que sobrepõem valores
de uns sobre os outros, de acordo com as relações de forças postas nos contextos
sociais. Os discursos e as práticas que primam ou pelo universal ou pelo diferente
são mais do que posturas políticas ou entendimentos teóricos sobre o “Outro”. São
campos de tensões, construídos em contextos desiguais e em relações de poder.
Portanto, são territórios de conflitos e de lutas (GOMES & ABRAMOWICZ, 2010,
p. 8).

Isabel também afirmou que não fez mudanças e que no ano de 2014 o
colégio adotou o livro do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). No seu
ponto de vista, essa já foi uma grande modificação porque anteriormente usavam
um livro da Oxford que os/as alunos/as compravam.
O livro do PNLD de inglês, que é o livro desse ano é um livro até difícil, um pouco
difícil, a gente teve que dar uma ajuda, ajudar um pouco a interpretar os
enunciados, então, a dificuldade foi geral, acho que para todo mundo. Nós, como
professores, tentando se adaptar a um material novo, e eles chegando de outra
realidade; por que é um material que lida com gêneros discursivos, então é um
pouco mais complexo que os outros que eles estavam acostumados a usar. Assim,
não é nada estrutural de só fazer exercícios repetitivos, esse material é diferente.
Então, eu achei que essa foi a dificuldade, mas não eu ter que adequar o meu
material para esses alunos, especificamente, não.

Quanto aos critérios de avaliação, informou que não fez alterações e que não
recebeu nenhuma orientação da coordenação pedagógica para operacionalizar
quaisquer mudanças:
Nem participei de uma discussão sobre a política de cotas, que você perguntou
anteriormente, e também não participei de nenhuma reunião em que isso fosse
levado em conta: ‘Olha, os alunos são esses, as questões são essas’. Só aqueles que
tinham alguma dificuldade cognitiva, esses eram apontados porque tinham
diagnóstico, tinham um laudo, alguma coisa assim, mas os outros, não. Então, a
gente veio sabendo conforme o tempo foi passando e as oportunidades e as
circunstâncias apresentaram. Então, eu não tive nenhuma orientação de adequação
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 167

de conteúdos, de metodologia, nada disso. A gente foi tocando o ano e as coisas


iam surgindo. No Conselho de Classe, três meses depois, a gente começou a falar:
‘Estou identificando isso e isso, tem dificuldades’. Aí, algumas histórias vêm, mas,
não houve orientação para isso, achei que não precisasse mudar nada.

Esse depoimento revelou que a dificuldade mais identificada pela escola


refere-se à questão cognitiva. A psicologia foi inicialmente introduzida nos estudos
educacionais e na formação dos/as professores/as como uma abordagem que
auxiliaria no entendimento das dificuldades de aprendizagem, as características
individuais, os ritmos e os estilos cognitivos. No bojo desses estudos, a teoria da
privação cultural considerava que as crianças fracassavam na escola porque em seus
ambientes familiares ou grupos de origem não haviam recebido a preparação
adequada para frequentar com eficiência a escola. Essa perspectiva encontra seu
limite ao desconsiderar a importância da diversidade cultural no processo de
construção do conhecimento e o caráter monocultural das instituições escolares
(CANDAU, 2002a). Em outras palavras, a escola precisa explorar a riqueza que
vem da pluralidade de contextos culturais de modo a favorecer o êxito escolar de
todos/as os/as estudantes.
A professora Miriam afirmou que não promoveu modificações no seu
trabalho docente, que sua disciplina não tem preocupação com conteúdo e
mencionou também a adoção do livro didático como uma mudança recente.
Segundo ela, anteriormente, o material usado pelos/as alunos/as era elaborado
pelos/as professores/as, mas com a saída de muitos/as profissionais entenderam que
o melhor a fazer seria adotar um livro. Em seu depoimento, revelou sua
preocupação com a aquisição desse material pelos/as estudantes que ingressaram
pela reserva de vagas que seria comprado pelo colégio.
A minha disciplina é uma disciplina que não tem essa preocupação de conteúdo.
Sempre que tem essas reuniões de pais de 6º ano, acho que é por isso que eles não
me levam a sério, mas é verdade, a gente quer seduzir esses meninos para outra
língua estrangeira, que, por acaso, é o francês, mas podia ser o alemão, árabe,
mandarim, é o francês. A gente queria mostrar para esses meninos que não existe
só a cultura anglofônica, a gente quer mostrar para eles que existem outros, existem
pessoas diferentes, que vivem de maneira diferente. (...) A única dificuldade que a
gente teve foi realmente com o livro. Ano passado nem foi tão difícil, foi chato,
enjoado, esse ano está mais difícil [adquirir]. Como esses meninos vão trabalhar
sem livro? Não sei.

Finalizou sua resposta tratando da questão da avaliação e da atribuição de


notas:
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 168

A gente já brigou e não adiantou, a gente não queria. Então, o que é menos
importante para nós é essa prova. O que vale dentro da equipe, que é cada um no
seu quadrado, dentro da minha equipe, o menos importante para a gente é essa
semana de prova, porque a gente avalia o processo. Já que tem a prova, que é um
instrumento, ninguém está desmerecendo esse instrumento, mas já que essa prova
é um instrumento válido, ele é tão válido quanto o processo todo. Então, a gente
nota o processo e, às vezes, o processo tem um peso maior do que a prova. Então,
não dá para mudar nada, é um menino igual o outro que está chegando, que vai
fazer a mesma coisa.

Como foi possível perceber a partir dos depoimentos, nove entre dez
professores/as utilizavam trabalhos, testes e provas escritas para avaliar seus/as
alunos. O professor Mateus também usava esses instrumentos, mas ao perceber a
diferença de domínio de determinadas competências entre os/as estudantes optou
por realizar uma prova oral a fim de atender esses/as alunos/as. A professora Miriam
considerou a prova um instrumento válido, mas revelou que gostaria que fosse
retirada em sua disciplina, o Francês, porque avalia mais o processo de
aprendizagem dos/as alunos do que o rendimento e/ou a nota da prova. Com
exceção do professor Mateus, não foi possível perceber uma sensibilidade mais
explícita com relação ao trato da diversidade no sentido de os/as professores/as
pensarem e discutirem estratégias e alternativas às suas práticas e métodos a fim de
lidar com a nova realidade plural que o colégio passou a enfrentar. Os/as
professores/as demonstraram que são muito ciosos/as pela permanência de suas
práticas pedagógicas e avaliativas e parecem acreditar que essas são as únicas
capazes de gerar sucesso e aprendizagem além de garantir a manutenção da
qualidade acadêmica, a excelência de que tanto se orgulham, cabendo aos/as
alunos/as realizar esforços pessoais a fim de obterem êxito.
Outro aspecto que me chamou atenção nesse conjunto de respostas foi o fato
de nenhum dos/as entrevistados/as ter feito menção à Lei 10639/0388 que tornou
obrigatório o ensino de história da África e das culturas afro-brasileiras e indígenas
nas escolas públicas e privadas da educação básica. Essa lei trouxe para os sistemas
de ensino e para os/as educadores/as brasileiros/as um novo desafio e propôs uma
alteração curricular importante. Não mencionar a lei pode denotar a prevalência da
opção por manter um currículo de caráter monocultural, principalmente para os/as

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Essa lei foi alterada em 2008 e passou a incluir a história e cultura indígena e sua numeração foi
alterada para Lei 11.645/08. Porém, a numeração original ficou mais conhecida, possui um caráter
étnico-cultural e tem sido utilizada com mais frequência.
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 169

professores/as que trabalham com história e linguagens. Como já explicitado no


capítulo introdutório, o entendimento de currículo adotado nesse trabalho é aquele
partilhado pela tradição crítica e sociológica do currículo que entende que ele não
é um elemento neutro, mas que está implicado em relações de poder.
Alice Lopes e Elizabeth Macedo (2011, p. 41-42) definem o currículo como
uma prática discursiva:
O currículo é ele mesmo, uma prática discursiva. Isso significa que ele é uma
prática de poder, mas também uma prática de significação, de atribuição de
sentidos. Ele constrói a realidade, nos governa, constrange nosso comportamento,
projeta nossa identidade, tudo isso produzindo sentidos. Trata-se, portanto, de um
discurso produzido na interseção entre diferentes discursos sociais e culturais que,
ao mesmo tempo, reitera sentidos postos por tais discursos e os recria. O
entendimento de currículo como prática de significação, como criação ou
enunciação de sentidos, torna inóqua distinções como currículo formal, vivido,
oculto. Qualquer manifestação do currículo, qualquer episódio curricular, é a
mesma coisa: a produção de sentidos. Seja escrito, falado, velado, o currículo é um
texto que tenta direcionar o “leitor”, mas que o faz apenas parcialmente.

Entendendo o currículo, portanto, como uma prática de significação, posso


dizer que a lei 10639/03 procurou dar outro sentido, outro significado para a história
e a cultura dos/as negros/as ao propor a inserção dessa temática nas diretrizes
curriculares nacionais. Além disso, a promulgação dessa lei é o resultado de um
longo processo histórico e político e da luta antirracista empreendida pelos
movimentos negros. No entanto, é preciso registrar que tal disputa discursiva sobre
o que ensinar na escola não aparece na fala dos/as entrevistados/as.
Oliveira (2014) realizou uma investigação sobre as concepções de
conhecimento, currículo e avaliação que articulam a produção de sentidos de um
ensino de qualidade entre os/as professores/as do CAp/UERJ. Para tanto, ouviu oito
profissionais do quadro efetivo que estivessem na instituição há, no mínimo, dez
anos, abrangendo todos os seus segmentos escolares, ensino fundamental (1º e 2º
segmentos) e ensino médio. De acordo com a maioria de seus/a entrevistados/as, o
conhecimento [universal] ganha centralidade no currículo e nessa defesa parecem
não levar em conta o caráter de seleção e de construção social desse conhecimento.
De acordo com Oliveira (2014, p. 63), para parte dos/as depoentes é o rigor na
cobrança dos conteúdos definidos no currículo que garantem ao colégio o título de
“escola de excelência”, estando a excelência associada à ideia de êxito escolar. O
conhecimento é considerado a “linha mestra” da instituição, contudo, isso não
acontece sem tensões ou de maneira uniforme, porém, os/as professores/as tendem
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 170

a explica-las sem questionar a centralidade que atribuem ao conhecimento no


currículo. Afirma ainda que foi possível perceber uma articulação de produção
curricular na qual circulam diferentes sentidos, mas que se correlacionam
diretamente a qualidade da escola e aos resultados de desempenhos que dela são
esperados.
Acredito que seja necessário a ressignificação dos currículos que vêm sendo
adotados pela instituição de modo que as diferentes presenças e manifestação
culturais possam se fazer presentes. Considero também oportuno colocar em
questão o caráter em geral, homogeneizador, padronizador e monocultural da
educação. Candau (2009a) ressalta que a escola sempre teve dificuldade em lidar
com a pluralidade e a diferença, que, em geral, sente-se mais confortável com a
homogeneização e a padronização. Porém, afirma que, no momento atual, a
consciência do caráter monocultural da escola é cada vez mais crescente, bem como
a necessidade de romper com esse paradigma e construir práticas pedagógicas que
estejam abertas às diferenças e à diversidade cultural: “O que parece consensual é
a necessidade de se reinventar a educação escolar, para que esta possa adquirir
maior relevância para os contextos sociopolíticos e culturais atuais e as inquietações
das crianças e jovens” (CANDAU, 2009a, p. 47).
A abordagem intercultural em educação proposta por Candau (2009a) pode
ser muito adequada e enriquecedora no meu modo de entender, e poderia ser
incorporada ao projeto político pedagógico da instituição a fim de lidar com a nova
realidade plural que o colégio passou a enfrentar, uma vez que essa perspectiva quer
promover: “O reconhecimento do “outro”, o diálogo entre os diferentes grupos
sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os
conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos
socioculturais nas nossas sociedades, e é capaz de favorecer a construção de um
projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente integradas”.
5
As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as
profissionais da educação do CAp/UERJ?

Considerando que o objetivo central desta pesquisa é compreender o que


os/as profissionais entrevistados/as pensam sobre o processo de implementação da
Legislação Estadual 6434/13 que determinou a adoção das ações afirmativas na
modalidade de cotas raciais, sociais e para pessoas com deficiência no Instituto de
Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – CAp/UERJ, este capítulo visa
apresentar as concepções dos/as professores/as, das funcionárias técnico
administrativas e do diretor da instituição sobre o papel social da escola, sobre a
função que exercem e sobre as possibilidades e limites das ações afirmativas de
corte racial na educação básica.
Assim, as entrevistas semiestruturadas foram realizadas considerando
quatro blocos temáticos, a saber: (i) experiência profissional no CAp/UERJ; (ii)
políticas de ação afirmativa no Brasil e no CAp; (iii) perfil dos/as estudantes; (iv)
implementação de cotas raciais no CAp.

5.1
Sobre as ações afirmativas

Assim, meu principal objetivo com as entrevistas foi captar as


representações (HALL, 1997) dos/as entrevistados/as sobre as políticas de ação
afirmativa. Primeiramente, perguntei a eles/as como se posicionavam sobre essas
políticas de uma maneira geral. É importante ressaltar que, para a maioria dos/as
entrevistados/as, políticas de ação afirmativa são sinônimas de cotas. A dificuldade
em diferenciar ação afirmativa de cotas me leva a inferir que o tema ainda está
envolto de dúvidas mesmo se tratando de uma prática adotada no país há mais de
uma década; e mesmo sendo a UERJ uma das primeiras instituições de ensino
superior do Brasil a adotar as políticas de ação afirmativa em seus processos
seletivos para o vestibular. É importante lembrar que o CAp é uma das unidades
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 172

acadêmicas da universidade, portanto, tal discussão poderia ser familiar para os/as
entrevistados/as.
Ação afirmativa não é sinônima de cotas, estas apenas constituem um
instrumento de aplicação daquela. Como afirma Silva (2002, p. 108), “cotas
numéricas são, comumente confundidas com ação afirmativa, o que é um equívoco.
As cotas são um aspecto ou possibilidade da ação afirmativa que, em muitos casos,
tem um efeito pedagógico importante, posto que forçam o reconhecimento do
problema da desigualdade e a implementação de uma ação concreta que garanta os
direitos às pessoas em situação de inferioridade social”.
Mesmo diante da dificuldade de diferenciar ação afirmativa de cotas, em
geral, os/as professores/as entrevistados/as se posicionaram mais favoráveis às
cotas sociais do que as cotas raciais. Quando favoráveis às cotas, o principal
argumento apresentado pela maioria deles/as dizia respeito à questão da
conformação histórica brasileira, uma vez que a adoção de cotas raciais seria uma
reparação aos danos causados à população negra no tocante as oportunidades
educacionais e de emprego. Nesta perspectiva, o professor Cauã fez o seguinte
depoimento:
Olha, como professor de História, a minha posição não é a posição dominante. Eu
não concordo muito com a política de cota, assim, pessoalmente. Eu sei que,
historicamente, é uma necessidade, não é? Dentro da educação brasileira,
realmente se a gente for parar para ver em termos de quantitativos e porcentagens,
a população negra acaba sendo, de certa forma, tendo algumas dificuldades a mais.
Mas como professor de História, eu não acredito que o problema brasileiro seja
unicamente étnico. Eu acho que ele é muito mais social do que étnico. Eu acredito
que deveria ter alguma outra forma. Enfim, [de] facilitar o acesso de etnias
minoritárias... Não minoritárias, mas com maiores dificuldades socioeconômicas a
ter sucesso tanto educativo, quanto social e profissional. Mas eu particularmente
não vejo com bons olhos. Não acredito 100% na política de cotas. Desde a UERJ
eu já percebia isso: muitos alunos cotistas do curso de História, da graduação,
acabaram abandonando a faculdade, quase 50%. Então, a faculdade deixa de
cumprir certo perfil de formação. Eu acredito que, no Brasil, a questão é muito
mais social do que racial.

Ao afirmar que não acredita que “o problema brasileiro seja unicamente


étnico”, e ao mesmo tempo citar as pesquisas macro como dados que revelam
“dificuldades a mais” para a população negra, a resposta do professor Cauã revela
algumas contradições. Parece reconhecer que existe um fator impeditivo para o
sucesso dos/as negros/as enquanto um grupo específico, mas este fator estaria
relacionado aos aspectos socioeconômicos e não a questões raciais. Esse
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 173

posicionamento articula-se ao que Sales Augusto dos Santos (2005) argumenta


sobre:
A profunda desigualdade racial entre negros e brancos em praticamente todas as
esferas sociais brasileiras é fruto de mais de quinhentos anos de opressão e/ou
discriminação racial contra os negros, algo que não somente os conservadores
brasileiros, mas uma parte significativa dos progressistas recusa-se a admitir. A
discriminação racial e seus efeitos nefastos construíram dois tipos de cidadania
neste país, a negra e a branca (SANTOS, 2005, p.15).

Sales Augusto dos Santos (2007) baseia-se nos dados da pesquisa


“Desenvolvimento Humano e Desigualdades Étnicas no Brasil: um retrato de final
de século”, realizada por Marcelo Paixão, então professor do Departamento de
Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para justificar a
afirmação da existência de duas cidadanias em nosso país. De acordo com esse
estudo, no ano de 2000, o Brasil ocupava o 74º lugar no ranking da ONU no que
tange ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que é medido a partir de três
indicadores: expectativa de vida, educação e renda. Ao analisar separadamente as
informações de pretos, pardos e brancos para indicadores como renda, educação e
esperança de vida ao nascer, o IDH nacional da população negra despencaria para
a 108ª posição, figurando entre aqueles dos países mais pobres do mundo, enquanto
o dos brancos subiria para a 48ª posição. Esses dados revelam que “há dois países
no Brasil quando desagregamos por cor/raça a população brasileira. O Brasil
branco, não discriminado racialmente, e o Brasil negro, discriminado racialmente,
que acumula desvantagens em praticamente todas as esferas sociais, especialmente
na educação e no mercado de trabalho, em função do racismo” (SANTOS, 2007, p.
15).
Em 2010, o Brasil ocupava a 73ª posição entre 169 países, ou seja, ao longo
de dez anos o país se manteve, praticamente, na mesma posição. Já em 2014, o
Brasil registrou melhora no IDH de acordo com os dados divulgados pelo Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Apesar desse aumento, o país
caiu uma posição no ranking mundial de desenvolvimento humano e passou a
ocupar a 75ª posição entre 188 países ficando atrás de vários latino-americanos. O
Relatório de Desenvolvimento Humano Nacional de 2014 mostrou que as políticas
públicas brasileiras têm responsabilidade direta sobre os avanços alcançados e os
programas de proteção social e de transferência de renda são reconhecidos como
importantes para essas melhorias.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 174

Santos (2007) afirma que a maioria da população brasileira não nega que
haja racismo no Brasil, porém, é difícil encontrar pessoas que admitam que elas
mesmas discriminam os/as negros/as. Estamos diante do chamado racismo “sem
racista auto-identificado, auto-reconhecido, ou seja, sem aquele que se reconhece
como discriminador. Discrimina-se os negros, mas há resistência entre os
brasileiros em reconhecer a discriminação racial que se pratica contra esse grupo
racial. Ou seja, os brasileiros praticam a discriminação racial, mas só reconhecem
essa prática nos outros” (SANTOS, 2007, p. 16).
Estes dados indicam que as desigualdades entre negros/as e brancos/as não
estão circunscritas, apenas, aos problemas estruturais de ordem socioeconômica
como argumenta o professor Cauã. Essas desigualdades revelam que a população
negra enfrenta, indiscutivelmente, também situações de preconceito e
discriminação raciais no chamado “racismo à brasileira”.
Outro aspecto da resposta do professor Cauã que merece reflexão diz
respeito aos alunos e alunas cotistas da UERJ que pode ser confrontado pela
pesquisa realizada por Valentim (2012), que investigou as trajetórias universitárias
de sucesso de ex-alunos-negros-cotistas dessa universidade que ingressaram na
instituição por meio do sistema de cotas, entre os anos de 2003 e 2005, e concluíram
seus cursos no período de 2006 a 2010. Valentim (2012) revelou que esses/as
estudantes não estavam concentrados/as apenas nas áreas de ciências humanas e
sociais. Partindo da hipótese de que esses/as alunos/as eram vistos como “fora da
normatividade da identidade universitária, marcados pelo estigma de cotistas e com
indícios de fracasso” (VALENTIM, 2012, p. 136), procurou compreender como
esses sujeitos construíram o caminho do sucesso acadêmico e como superaram as
adversidades vivenciadas e narradas por eles/as até a conclusão dos cursos. Ao final
do estudo, foram identificadas três estratégias que parecem ter se conjugado para o
alcance do sucesso acadêmico: (i) a assistência estudantil voltada à permanência e
conclusão dos cursos, (ii) a condição de estudante trabalhador/a, (iii) o
pertencimento a diferentes redes de solidariedade.
Para o enfrentamento das questões étnico-raciais, Valentim (2012)
identificou que os/as ex-alunos/as tiveram de lidar com suas identidades
subalternizadas de classe e de raça, somadas ao estigma de serem cotistas. A
maioria era oriunda de classes populares e os/as primeiros/as a cursarem o ensino
superior em suas famílias. Outro aspecto destacado foram as vicissitudes
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 175

enfrentadas na universidade no que se refere ao forte caráter monocultural dos


currículos. Legitimado e naturalizado nas instituições, o currículo tende “a gerar
tensões nas classes com alunos mais ‘afrocentrados’, que pretendam um processo
de integração não subordinado tanto à cultura universitária quanto à sociedade
brasileira” (VALENTIM, 2012, p. 259).
Paiva (2013, p. 62) ressalta o sucesso desses/as estudantes/as na
universidade apesar das dificuldades enfrentadas: “houve a queda de vários mitos,
especialmente o temor de que os alunos beneficiários das ações afirmativas não
teriam condições de acompanhar as exigências acadêmicas. Muito pelo contrário,
não só a evasão é semelhante àquela dos alunos que entraram pelo vestibular
tradicional [é conhecida a enorme evasão nas universidades brasileiras] como seu
rendimento tem sido semelhante aos desses alunos”.
Como descrevem os gestores, os alunos de ações afirmativas, quando superaram as
dificuldades iniciais da defasagem trazida do ensino médio precário, conseguem
resultados até melhores do que os outros alunos. E como se empenham muito,
passaram a ser requisitados pelos professores que ofereciam bolsas de iniciação
científica, transformando a política de permanência em uma experiência
acadêmica. (PAIVA, 2013, p. 62-63)

A professora Monique também construiu seus argumentos seguindo uma


linha de raciocínio semelhante a do professor Cauã no que diz respeito à formação
histórica do Brasil, mas afirmou que é a favor da adoção das cotas raciais desde que
estejam atreladas às questões socioeconômicas:
Eu acho que tem que ser analisado por que, assim, existe um problema histórico
sim, precisa se pagar essa dívida sim, mas a gente não pode colocar as coisas de
um... Como é que se diz? Só por um prisma. Eu acho que o corte racial tem que
estar junto com a questão social. Acho que é válida sim a inclusão dessas pessoas.
Agora, porque é só negro e aí ele tem condições financeiras para isso, eu acho que
hoje em dia eu já vejo por outro prisma. É porque assim, inclusive, eu converso
com algumas pessoas, eu tenho algumas pessoas que são do movimento, tem o
Enegrecer, tem vários movimentos e eles falam, existe uma questão, sim, histórica
a ser paga, mas se a pessoa, [se] ela tem condições sociais de dar conta, eu acho
que aí acaba sendo o jeitinho brasileiro, não é? A minha questão das cotas é que as
cotas são um paliativo. Em paralelo às cotas é necessário que a gente comece a
colocar em pé de igualdade essas pessoas e você não precise mais que ela se
coloque por que isso é uma bengala, que ela se coloque nessa bengala por que ela
é muito mais do que isso.

A resposta da professora Monique apresenta dois aspectos que merecem ser


discutidos e que estão interligados. Primeiro, as políticas de ação afirmativa
apresentam, desde sua gênese, um caráter temporário e não permanente, ou seja, as
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 176

políticas afirmativas visam, nem que seja por um período provisório, a criação de
incentivos a grupos que estão sub-representados em instituições ou posições de
prestígio e poder na sociedade. O segundo aspecto diz respeito ao que Guimarães
(1999) já mencionava desde o final dos anos noventa, ou seja, que não se trata de
fazer uma opção entre políticas de cunho universalista ou de cunho diferencialista.
Para o autor, as políticas de ação afirmativa devem estar ancoradas em políticas de
universalização e de melhoria do ensino público, tanto o ensino fundamental quanto
o médio. De acordo com Guimarães (1999), trata-se de privilegiar os grupos
subalternizados nos âmbitos em que encontram obstáculos comprovados a seu
acesso. Mesmo estando consciente da necessidade da melhoria do ensino público
brasileiro, Guimarães (1999, p. 173) apresenta um questionamento problematizador
e instigante que poderia ser apresentado às afirmações de alguns/mas
entrevistados/as nesta pesquisa: “devem as populações negras no Brasil, satisfazer-
se em esperar uma ‘revolução do alto’, ou devem elas reclamar, de imediato e pari-
passu, medidas mais urgentes, mais rápidas, ainda que limitadas, que facilitem seu
ingresso nas universidades públicas e privadas?” Acrescento a sua questão se essas
populações não devem reclamar também por medidas que facilitem o acesso a
instituições de educação básica consideradas socialmente privilegiadas, como é o
caso do CAp/UERJ.
No que diz respeito à questão da reparação histórica mencionada nas
respostas de Cauã e Monique, é importante destacar, como afirma Gomes (2012,
p.734), que as desigualdades que atingem a população negra no Brasil não são
“somente herança de um passado escravista, mas, sim, um fenômeno mais
complexo e multicausal, um produto de uma trama complexa entre o plano
econômico, político e cultural”. Se as desigualdades não são “somente herança de
um passado escravista”, por outro lado, como afirma Siss (2003, p.13-14), a
população negra foi excluída histórica e sistematicamente do processo escolarizado
desde o período da escravidão:
Quanto aos afro-brasileiros, sua exclusão do processo educacional escolarizado é
histórica. Durante a vigência do regime escravocrata no Brasil, poucos defenderam
propostas de instrução escolarizada, ainda que primária, aos escravizados, aos
libertos e aos ingênuos. As propostas nesse sentido de notáveis abolicionistas como
Luiz Gama, Nabuco e Rebouças, foram relegadas ao esquecimento ou sequer foram
seriamente discutidas, muito pelo contrário: se na Constituição imperial outorgada
de 1824, no seu artigo 179, parágrafo 32, a instrução primária aparece como
gratuita a todos os cidadãos e, se pelo artigo 10, parágrafo 2º do Ato Adicional de
1834 a garantia dessa educação torna-se dever das províncias, três anos mais tarde,
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 177

o Presidente da Província do Rio de Janeiro, que abrigava a capital do Império, ao


decidir sobre o acesso às escolas públicas dessa Província, sanciona a Lei n. 1, de
4 de janeiro de 1837 que, no seu artigo 3º rezava o seguinte: Art. 3º - São proibidos
de frequentar as escolas públicas: 1º Todas as pessoas que padecem de moléstias
contagiosas; 2º Os escravos, e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou
libertos.

Fica explicitado que a exclusão dos negros e negras do sistema educacional


escolarizado era legalmente expressa no século XIX. De acordo com Siss (2003,
p.14), “o movimento social negro, vêm, desde o início do século passado,
pressionando o Estado brasileiro no sentido de se estabelecer políticas sociais que
defendam seu direito à educação”. Portanto, depois de quase 128 anos após a
abolição, é mais do que legítimo que essa população reivindique, lute e exija que as
desigualdades educacionais entre negros/as e brancos/as possam ser atenuadas.
Cavalleiro (2012) também comunga de pensamento semelhante e chama a
atenção para a complexidade da situação dos/as negros/as em nosso país. Segundo
ela, no período pós-abolição, essa população foi segregada social e
economicamente; também considera que a situação de inferioridade dos/as
negros/as está residualmente relacionada à sua condição de liberto. Cavalleiro
(2012) entende que o mito da democracia racial é considerado um elemento
complicador da situação dos negros/as porque ao ser entendida como uma
sociedade pacífica, sem conflitos raciais explícitos como nos Estados Unidos e
África do Sul, a discussão sobre as condições de vida da população negra no Brasil
fica relegada a segundo plano.
É importante registrar que ao analisar as relações raciais no Brasil,
Guimarães (2012, p.36) afirma que no Brasil há uma especificidade da classificação
de cor em comparação ao modo como é feita nos Estados Unidos. Enquanto para
os estadunidenses a regra seria a dos filhos herdarem “o status racial do progenitor
de menos prestígio, isto é, filhos de casamentos mistos eram classificados segundo
o status do cônjuge de posição racial inferior”, no Brasil, “a cor dos filhos era
definida socialmente de modo individual e independente dos pais, podendo um pai
preto, por exemplo, gerar um filho branco ou moreno, caso este apresentasse
fenótipos brancos. Ou seja, no Brasil, eram a aparência física, as marcas
fisionômicas e socioculturais que contavam na classificação de cor, e não a origem
ou a descendência”.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 178

Haveria, portanto, uma ideologia racial que particulariza o Brasil, qual seja,
como a nação foi formada por um amálgama de descendentes de colonizadores,
“cuja origem étnica e racial foi ‘esquecida’ pela nacionalidade brasileira; a nação
permitiu que uma penumbra cúmplice encobrisse ancestralidades desconfortáveis”
(GUIMARÃES, 1999, p. 45). Houve por parte do Estado brasileiro uma explícita
intenção de branquear a população. Com o fim da escravatura e a adoção de uma
ordem hierárquica, a cor passou a ser uma marca, um diferencial, especialmente,
quando relacionada à classe social, visto que, a condição de pobreza de negros e
mestiços no período pós-abolição era tomada como marca de inferioridade. Ao
discutir a formação histórica nacional, também ressalta como foi construída a noção
do “branco” brasileiro. De acordo com o autor, no Brasil, o branco não se formou
pela exclusiva mistura étnica de povos europeus como aconteceu nos Estados
Unidos com seu “caldeirão étnico”. Entendo, segundo a definição de Guimarães
(1999, p. 47-48), como “branco aqueles mestiços e mulatos claros que podem exibir
os símbolos dominantes da europeidade: formação cristã e domínio das letras. Por
extensão, as regras de pertença minimizaram o pólo negro da dicotomia, separando,
assim, mestiços de pretos. O significado da palavra negro, portanto, cristalizou a
diferença absoluta, o não-europeu”. Essa hierarquização marca até hoje as relações
raciais em nosso país e continua colocando a população negra em condições de
inferioridade, especialmente, no que diz respeito às questões educacionais.
Além desses argumentos, as diversas pesquisas de abrangência nacional, já
mencionadas nesse trabalho, revelam dados inquestionáveis sobre as desigualdades
existentes entre negros/as e brancos/as no Brasil em diversos indicadores sociais
como renda, saúde, trabalho, mortalidade infantil, expectativa de vida, habitação,
educação, entre outros. No tocante à educação, o aspecto mais intrigante
demonstrado pelas pesquisas diz respeito à diferença de anos de estudos entre
brancos/as e negros/as que sofreu mudanças, quase imperceptíveis, ao longo de
mais de duas décadas, passando de 2,3 anos no início dos anos dois mil, para 1,8
anos em 2014, evidenciando que a durabilidade da desigualdade entre esses grupos
raciais para esse indicador se mantém e sofreu poucas variações. Diante disso, posso
afirmar que o quadro de desigualdades entre brancos/as e negros/as apresenta um
caráter estrutural de ordem socioeconômica, porém, a explicação para essas
desigualdades não está circunscrita apenas às variáveis estruturais. Os negros e
negras enfrentam cotidianamente situações de discriminação raciais. Essas
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 179

situações acontecem, comumente, no ambiente social e também no escolar. Nas


instituições de ensino envolvem alunos/as, professores/as e funcionários/as como
ficou evidenciado nos dados da pesquisa FIPE (2009) e podem, inclusive, interferir
no desempenho dos/as estudantes.
A professora Rita afirmou ser contrária às políticas de cotas, inclusive as
raciais, e valorizou o esforço pessoal que deve ser feito para se obter sucesso
escolar:
Olha, eu não sou muito a favor de cota não porque eu acho que não é pele que
define isso. Acho que é questão de produção, questão acadêmica, isso é... não é
uma questão de pele. Acho que vem do meio em que se vive das oportunidades que
se teve, eu continuo achando que não é uma questão de cor de pele. É... a gente
sabe que tem um histórico aí, não é?! Uma história mesmo do país e tal, na história
do mundo, mas eu acredito muito... na questão... não é só o grupo, acho que tem
muito do esforço pessoal. Acho que quem quer quem é determinado não chega
aonde não quiser. O meu receio é que, muitas vezes, as pessoas façam uso de certas
políticas, das políticas públicas para se beneficiar de alguma forma mesmo sem ter
aquela necessidade.

É possível perceber nas falas de Cauã, Monique e Rita, mesmo sendo esta
última contrária, que haveria uma necessidade histórica que justificaria a adoção de
políticas de ação afirmativa em nosso país. Porém, para ele/elas, não se trata de uma
questão racial, mas de cunho social. Além disso, a professora Rita mencionou a
questão do esforço pessoal ao afirmar que “quem é determinado alcança aquilo que
quiser” trazendo para o debate, ainda que de maneira difusa e velada, a ideia de
mérito. Seu ponto de vista ignora as desigualdades educacionais, sociais e raciais
existentes entre negros/as e brancos/as tão divulgadas socialmente por meio das
mais diversas pesquisas, e relaciona as conquistas a uma questão pessoal, alcançada
por merecimento, por capacidades ou aptidões específicas.
A questão do mérito, na perspectiva liberal, põe sobre os indivíduos a
responsabilidade exclusiva pelos resultados de suas vidas, ignorando quaisquer
outras variáveis, de modo que, o sucesso ou o fracasso dos indivíduos são
diretamente proporcionais aos talentos, às habilidades e ao esforço de cada um,
independentemente do contexto histórico, social, econômico e cultural desses
próprios indivíduos. As ações afirmativas não dispensam a utilização do critério
meritório, ao contrário, o mérito tem sido vitimado pelas desigualdades raciais que
podem ser corrigidas através das ações afirmativas posto que, possibilitam a
‘desracialização’, ‘desetnização’ ou ‘dessexualização’ das oportunidades de acesso
e permanência no ensino superior de qualidade. (VALENTIM, 2005, p. 59-60)
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 180

Em outras palavras, as ações afirmativas utilizam os critérios meritocráticos,


mas procuram impedir que estes favoreçam sempre os mesmos indivíduos
pertencentes a um determinado grupo étnico-racial.
Já a professora Rose, que vem da área da Biologia, dividiu sua resposta em
dois momentos: primeiramente expressou seu ponto de vista afirmando que as
políticas afirmativas não deveriam ser necessárias, ou seja, não se posicionou de
maneira contrária, mas deixou claro que não aprova a adoção dessas medidas e
narrou sua experiência em uma escola da rede estadual, valorizando também a
questão do esforço pessoal:
Eu gostaria muito que, de alguma forma, a gente nem precisasse disso para colocar
toda e qualquer pessoa onde ela quer estar, e ela querer estar naquele lugar e se
sentir capaz de. Então, por exemplo, eu nunca senti tanto orgulho de trabalhar em
uma escola estadual e, no início do outro ano, ver alguns alunos meus dizendo:
‘Professora, passei na UERJ!’ Aí você acha aquilo tão legal, será que eu fiz
diferença? Não sei... E não era cota, não era nada, na época, não era absolutamente
nada a não ser ‘focou’, foi atrás, usou todas as possibilidades, mas eram poucos
alunos, realmente.

Nas respostas das professoras Rita e Rose aparecem à questão do “esforço”


que os/as alunos/as cotistas, individualmente, devem realizar para que consigam
acompanhar de maneira adequada o ano de escolaridade. Na pesquisa realizada por
Valentim (2005) esse tema também apareceu nos depoimentos dos/as
professores/as entrevistados/as apesar de o público alvo ter sido alunos/as cotistas
que ingressaram no curso de Direito da UERJ. A diferença existente no caso da
presente pesquisa diz respeito ao nível de ensino, a educação básica, mas há
semelhança com os pontos de vista dos sujeitos pesquisados. Valentim (2005,
p.102) afirma que, para os/as docentes “parece haver recorrência nas falas dos
professores numa crença de que o esforço pessoal [...] é capaz de fazer os alunos
negros, carentes, oriundos de escolas públicas, ultrapassar barreiras que
historicamente fazem parte da sua trajetória escolar. Trata-se de uma acepção
individualista, centrada no mérito individual, que desconsidera as condições de vida
dos alunos provenientes de grupos sociais marginalizados”.
Na segunda parte de sua resposta, Rose reconheceu o sistema de cotas como
uma solução provisória, mas construiu sua argumentação pautada numa definição
biológica de raça e afirmou que é muito difícil determinar quem é ou não é negro/a
em nosso país:
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 181

Mas eu acho que esse sistema de cotas, como não tem uma solução de entrada, ele
vem como uma solução, mas eu gostaria muito que ele fosse paliativo, agora é um
medicamento, mas ele não deve ser considerado o tratamento para a entrada na
universidade, de alguns segmentos, até porque, biologicamente falando, a gente
não tem raça, e é muito difícil para a gente, biólogo, reconhecer a raça, a gente não
consegue muito reconhecer, talvez por ter estudado, a gente fala: ‘É tudo igual, lá
dentro é tudo igual, no DNA, não tem marcador’, pode ter até um conjuntinho de
alguns genes mais específicos, caucasianos, mas não tem diferença, é muito
complicado. E, para nós, eu vejo a miscigenação como algo, biologicamente
falando, é a panaceia do mundo, cruzar entre si sem nenhum tipo de marcação é a
melhor coisa do mundo para qualquer população, para qualquer espécie, você não
tem aquele grupo específico que vai se cruzando e faz um mal danado
geneticamente falando. E a gente tem uma mistura tão grande de cores e sabores
que, como é que determina isso? Então quem se coloca como negro é negro até que
ponto? Eu também sou, entende? É uma confusão. Então, é difícil de eu marcar,
dizer exatamente quem é o negro, a questão da pobreza, essa questão de dividir, eu
não sei como eles fazem isso, não entendo muito, mas deve ser muito difícil você
identificar exatamente onde é que está o corte, é muito difícil, e aquele que está
ali? Foi cortado, ele não está entrando ali. Como eles determinam isso? É muito
difícil. Então tudo isso é muito penoso. Então a questão de cotas, de você tentar
trabalhar para dar uma oportunidade maior para determinados grupos, onde é que
tá o corte? Como é feito para descobrir quem faz parte desse grupo? É muito difícil.
Agora, não fazer nada também é.

A professora Rose não reconhece em sua fala o conceito de raça como


categoria social. Quijano (2005) e Gomes (2012) entendem que a ideia de raça
possui uma representação social, uma forma de classificação imbricada nas relações
sociais de poder. De acordo com essa perspectiva, o conceito de raça é uma
construção social e política, portanto, pode ser desconstruído ou ressignificado
como tem sido proposto pelo movimento negro desde a década de noventa e
reafirmado desde o início dos anos dois mil, quando as questões raciais passaram a
fazer parte da agenda política do estado brasileiro.
Nesta perspectiva da raça como categoria social, o professor Mateus fez uma
análise sociológica da questão etnicorracial para construir sua resposta:
Tem uma antropóloga da USP, a Lilia Schwarcz, ela é conhecida e tem um trabalho
atual que ela discute a questão da cor e da raça no Brasil, na formação do... uma
possível... uma espécie de democracia racial no Brasil, que na verdade nunca
existiu. E ela tem uma tese que ela reforça que a gente não discutiu; a gente não
discute em uma esfera, não criou uma esfera pública no Brasil para discutir
claramente questões de cor e de raça. A gente, evidentemente, se apoia em uma
ideia de que o Brasil é um país miscigenado, que se ancora em três raças básicas:
do indígena, da branca e da negra, mas que a gente não discute, efetivamente, que
essas três raças, essas três cores que se desdobram em outros milhões de cores, elas
não são tratadas efetivamente da mesma maneira. Então, portanto, raça é uma
categoria que precisa ser discutida. Que ela diz pouco respeito, no sentido da
diferença genética, estrutural das pessoas, mas que ela diz muito respeito a partir
do momento em que existem situações do cotidiano que são diferenciadas para
negros, para índios e para brancos. E eu acredito que isso seja uma discussão
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 182

importante para a gente entender os descaminhos da política racial, das políticas


afirmativas raciais no Brasil.

Mateus, além de desconstruir o argumento da raça como uma categoria


exclusivamente biológica, reconheceu os avanços das políticas de ação afirmativa
no contexto do ensino superior, no Rio de Janeiro, na última década:
Por isso que eu não ouso dizer se eu sou, realmente, a favor ou se eu sou contra.
Mas, por outro lado, não posso negar, dando aula como substituto lá na UFRJ de
perceber que a universidade está mais diversa de cores. Eu como aluno da PUC em
2006, até a PUC mesmo, como aluno da PUC em 2006, eu via muito menos negros
do que eu vejo hoje em 2015 na PUC. Na UFRJ a mesma coisa. Na UERJ a mesma
coisa. E isso eu não posso deixar de considerar como positivo. Talvez exista
alguma coisa no meio do caminho que eu não entenda, mas eu consigo ver isso
hoje, eu vejo isso hoje como positivo. Pessoas negras tendo maior acesso à
universidade. Mas eu não sei se é só uma questão, realmente, da cor, ou se é uma
questão que seja mais ligada à questão social, da renda que também é outra questão
que não está se discutindo muito no Brasil. Parece que todos nós temos o mesmo
nível de renda. E aí eu acredito que a cota social faça mais sentido do que a racial,
embora a gente possa ver talvez, se fizer um estudo mais apurado, aprofundado,
que se a gente pegar a maioria dos negros, a maioria dos pobres no Brasil é negra.
Então quase correspondem a um mesmo tipo de cota, mas com justificativas
diferentes.

É possível perceber que, mais uma vez, a questão social prepondera nas
respostas, apesar do professor afirmar que nas situações cotidianas existe uma
diferenciação entre negros/as, índios/as e brancos/as.
A professora Flávia construiu uma argumentação interessante ao afirmar
que não é contra ou a favor das ações afirmativas sejam elas raciais ou sociais.
Considera que o modo como são implementadas não é correto, uma vez que, para
ela, as instituições são obrigadas a adotar esse procedimento sem ter as condições
necessárias para garantir a permanência desses/as estudantes. Ela fez referência à
questão da permanência dos/as estudantes e também colocou em xeque o processo
de ensino aprendizagem que não sofre, em sua opinião, mudanças para atender o
novo perfil de alunos/as.
Eu acho que elas têm o seu lado benéfico, mas elas não são implementadas da
forma correta. Eu acho que na maioria das situações em que eu vejo isso
acontecendo, seja na universidade, seja no CAp, em qualquer lugar, eu vejo isso
como um processo que deveria estar sendo um dos passos para se alcançar um
determinado objetivo. Só que, na maioria das vezes, isso é lançado na instituição.
A instituição, então, é obrigada a cumprir aquelas ações, na maioria das vezes, não
está preparada para isso e o processo de aprendizagem continua o mesmo. Os
professores continuam dando aula do mesmo jeito, os processos internos
continuam da mesma maneira. Então simplesmente se obriga a instituição a
cumprir determinada ação, determinada medida e não é feito todo o trabalho por
trás que deveria para embasar aquilo ali. Concomitantemente a isso, deveriam ser
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 183

feitos processos para diminuir essa vulnerabilidade que está por trás disso, por trás
desse processo. E não é feito. E se é feito não é feito da maneira ou na intensidade
a qual deveria. Então acaba que essas medidas que deveriam ser apenas um passo
temporário para resolver uma determinada solução [problema], para chegar a uma
possível igualdade social, se é que essa palavra é possível, porque não é possível
você obter uma igualdade homogênea, se é que isso existe, entre aspas. Isso que
deveria ser um passo acaba se tornando uma medida que eles tratam como uma
medida paliativa, como se fosse uma solução para o problema, entendeu? Eu acho
que, no geral, acaba tendo essa situação, esse quadro, assim, em todas as
instituições.

Quando questionada sobre a adoção de ações afirmativas raciais, Flávia


também mencionou a questão histórica, o período da escravidão, a questão
socioeconômica, a precariedade da escola pública, especificamente da educação
básica:
Eu acho que política de ação racial não resolve o problema racial no Brasil. É
simples. Eu acho que existem negros que são muito mais capacitados do que eu,
que tem muito mais dinheiro do que eu e vice e versa. Agora você colocar
simplesmente a pessoa por ser negra dentro da faculdade, dentro da escola não
resolve problema nenhum, nem de preconceito, nem de acesso. Não acho que isso
seja funcional, mas ainda entendo. Mas não entendo cota simplesmente pela pessoa
ser negra. Isso eu não acho que resolva nada. [...] As pessoas devem poder ter
acesso àquilo que elas querem. Como? Tendo uma escola pública de qualidade,
tendo uma educação básica de qualidade que permita a ela andar com as próprias
pernas. É claro que nada é tão simples e tão básico quando a gente fala, mas se
pudesse simplificar pra uma resposta seria essa.

A professora Miriam afirmou que não tem opinião formada sobre as


políticas afirmativas, mas também reconheceu que há uma necessidade histórica
para a adoção dessas medidas e declarou que se preocupa com a questão da
permanência dos/as estudantes beneficiados/as para que possam concluir seus
cursos. Apesar desses argumentos considerou que “marcar a diferença” seja um
problema: “quando você marca a diferença eu acho que piora, com toda franqueza,
não estou correndo da raia, penso muito nisso, mas eu acho que na hora que você
marca; eu acho que é pior. Eu acho que todo mundo tem que ter direito igual”.
Nesse sentido, Valentim (2005, p. 151) afirma que a Constituição Federal
garante o direito à igualdade para todos, mas não impede a desigualdade de acesso
às oportunidades de participação efetiva no contexto da cidadania plena para vasta
parcela da população brasileira: “Vivemos numa sociedade onde a cor e/ou a raça
e/ou a etnia constituem-se como poderosos mecanismos de estratificação social, em
que os afrodescendentes são segregados no acesso aos bens de toda ordem, tendo
limitados os seus direitos de cidadania”.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 184

Diante da insuficiência do direito à igualdade, esse conceito vem sendo


ressignificado, como aponta o jurista Gomes (2002, p.126-127):
Em lugar da concepção estática de igualdade, extraída das revoluções francesa e
americana, cuida-se nos dias atuais, de se consolidar a noção de igualdade material
ou substancial, que, longe de se apegar ao formalismo e à abstração da concepção
igualitária do pensamento liberal oitocentista, recomenda inversamente uma noção
dinâmica, militante, de igualdade. Nesta, necessariamente são pesadas e avaliadas
as desigualdades concretas existentes na sociedade, de sorte que as situações
desiguais sejam tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se assim o
aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas pela própria
sociedade. Produto do Estado Social de Direito, a igualdade substancial ou material
propugna redobrada atenção por parte do legislador e dos aplicadores do Direito à
variedade de situações individuais e de grupo, de modo a impedir que o dogma
liberal da igualdade formal impeça ou dificulte a proteção e a defesa dos interesses
das pessoas socialmente fragilizadas e desfavorecidas.

De acordo com esse entendimento, há uma mudança no sistema jurídico


brasileiro que ultrapassa a noção de igualdade estática ou formal para o novo
conceito de igualdade substancial, de onde surge “a ideia de igualdade de
oportunidades, noção justificadora de diversos experimentos constitucionais
pautados na necessidade de extinguir ou de mitigar o peso das desigualdades
econômicas e sociais e, consequentemente, de promover a justiça social” (GOMES,
2002, p. 127).
Quando perguntada sobre as ações afirmativas raciais, a professora Miriam
foi bastante enfática, afirmou que é contrária a essas medidas e mencionou o fato
de todos os brasileiros e brasileiras serem mestiços/as: “Sou absolutamente contra.
Aí eu volto na marca. Acho que quando você marca gay, negro, gordo, magro, você
não está incluindo, não é a mesma coisa. Negro todos nós somos. Você não tem?
Eu também tenho, minha avó era negra, meu bisavô era índio com negro”.
Considera que houve mudanças com relação às oportunidades educacionais para
os/as negros/as, mas não soube dizer exatamente como isso ocorreu: “tudo bem,
tem umas campanhas, eu acho que está muito melhor do que já foi, acho que está
melhorando, mas não acho que é por causa de cota não, eu não sei exatamente o
que é; o mundo está mudando, mas eu acho que tem que ser também na educação”.
A professora Miriam apresentou alguns argumentos contraditórios: entende
a questão da diferença como falta e não como potência, trata da igualdade legal e
não material e traz o discurso da mestiçagem para justificar sua posição contrária
às políticas afirmativas raciais. Ao tratar da questão da diversidade, Gomes (1999,
p.3) afirma que é no dia a dia, no fazer escolar cotidiano, que temos o maior desafio,
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 185

pois “o trato pedagógico da diversidade é algo complexo. Ele exige de nós o


reconhecimento da diferença e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de padrões de
respeito, de ética e a garantia dos direitos sociais”.
Outro aspecto do depoimento dessa professora que precisa ser analisado diz
respeito ao que Rita Fazzi (2006, p. 17) argumenta sobre as duas interpretações
opostas que pautaram as discussões relativas às relações raciais e sempre
tensionaram os debates: “uma que afirma e valoriza a convivência harmoniosa entre
brancos e não-brancos, expressa na ausência de conflito racial violento, e outra que
demonstra a existência do preconceito racial”. A primeira posição enfatiza a
ausência de segregação racial, transmitindo (e construindo) a ideia de que somos
um povo mestiço, misturado, aberto aos contatos inter-raciais, pluriétnico, não
conflitivo. Já na segunda, fica evidenciada a desigualdade racial da sociedade
brasileira uma vez que dados quantitativos e situações cotidianas sugerem ações e
comportamentos discriminatórios, porém, sutis. Para Fazzi (2006, p.18), “a
existência de um sistema de classificação múltiplo, com a criação de várias
categorias raciais intermediárias, em especial, a categoria morena, passa a ser
evidenciada como expressão do racismo brasileiro. Recurso, aliás, denunciado
enquanto mecanismo de desmobilização política racial por ter provocado uma
fragmentação da identidade negra no Brasil”.
A professora Isabel afirmou ser a favor das políticas afirmativas. Ela revelou
que não compreende bem tais políticas, mas ressaltou seus aspectos positivos.
Eu não sei muito, mas sei que desde que as cotas também foram implementadas na
universidade, sempre fui a favor disso. Acho que é um caminho, é um caminho de
entrada. Então é permitir, é democratizar um pouco. [...] Olha, há visões de que
isso seria também discriminatório, você permitir que o negro tenha um acesso mais
fácil para ele entrar... E, então, é por que ele não tem capacidade? Eu não acho, não
quero pensar muito por esse lado. Eu acho que historicamente a gente sabe que é
sim mais difícil que o negro, aquele que é classificado como negro, que se classifica
como negro, tem mais dificuldades de acesso. E acho que a gente precisa
oportunizar. Aí, entra também uma questão ética eu acho, porque ele próprio, de
repente, se ele não se enquadra, na questão de cotas por raça, ele pode, então, se
ele acha que ele está apto a concorrer com os outros pela questão acadêmica, eu
acho que ele pode optar por não entrar no sistema de cotas. Aí, é uma questão mais
complexa, daí você dizer: ‘não, eu não quero, eu abro mão da minha cota para outra
pessoa’, é mais difícil acontecer. Mas, acho certo, acho que tem que continuar. Isso
é histórico, a gente percebe a quantidade de pessoas negras inseridas numa
universidade pública ou numa escola como o CAp que é, digamos, que seria
equivalente a universidade pública, pela entrada ser selecionada. Então, eu acho
que eles precisam ter oportunidade. Porque a gente percebe, o que acontece é a
quantidade de negros que têm acesso é menor, porque, em geral, eles têm um poder
aquisitivo menor para poder pagar um curso preparatório para entrada no CAp ou
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 186

nas universidades. Então, tem que se abrir esse espaço. E aí, uma vez dentro da
universidade ou da escola, aí estamos todos iguais novamente, vamos lutar pela
formação. Vamos ser inseridos na formação. Eu acho que é isso.

Isabel declarou ser favorável à implementação das ações afirmativas, porém,


a afirmação “você permitir que o negro tenha um acesso mais fácil para ele entrar”,
merece esclarecimento, ainda que breve, de que os/as estudantes que ingressaram
pela reserva de vagas no CAp, foram submetidos/as a um processo seletivo como
os/as demais concorrentes, portanto, não houve ‘facilitação’ na entrada89.
Fernanda também afirmou que é a favor das políticas afirmativas, mas
mencionou sua preocupação com a precariedade da educação pública.
Eu sou a favor. A entrada do negro, por exemplo, nas escolas e nas universidades
era em caráter mínimo. O CAp da UFRJ, que não é nem da UERJ, uma vez foi feita
uma pesquisa há seis anos em que todo mundo, basicamente, tinha uma renda muito
alta e eram brancos e moradores da zona sul. E o CAp era um colégio exclusivo de
sorteio. Então, como isso acontecia? Então, eu acho que o processo da cota, ele é
necessário como uma medida, quase como emergencial. A gente precisa introduzir,
até por que a abolição da escravidão tem 100 anos e aí negar que exista racismo é
uma tolice. Então, a gente precisa integrar esse pessoal em todas as camadas. Tanto
os alunos da escola pública por conta do nosso ensino que é patético, precisam
também ser introduzidos. Agora eu vejo que isso é uma ação que não é para ser
feita em longo prazo, você entende? É uma coisa do momento. Eu concordo com
elas.

Outra professora que afirmou ser favorável às cotas foi Jussara, porém,
argumentou que se preocupa com a possibilidade de alguns/mas candidatos/as
enganarem o sistema de seleção declarando-se negros/as sem que apresentem as
características fenotípicas necessárias para usufruir desse benefício.
O conjunto de respostas dos/as professores/as revelou que há uma variedade
de argumentos eposicionamentos sobre as políticas de ação afirmativa. Três
professoras afirmaram ser favoráveis à adoção dessas medidas; outros/as três se
declararam contrários/as e quatro disseram não ser favoráveis ou contrários/as.
Ficou evidenciado também que a modalidade de cotas mais acolhida por esses/as
profissionais é a social. As percepções dos/as entrevistados/as são semelhantes às
dos/as professores/as do curso de pedagogia da Universidade Estadual do Mato

89
No que se refere ao processo seletivo para o 6º ano de escolaridade do CAp, a prova tem o valor
total de 100 pontos e é constituída de três partes: questões discursivas de Língua Portuguesa (40
pontos); questões discursivas de Matemática (40 pontos); redação (20 pontos). A nota final será
o somatório dos pontos obtidos nas três partes que compõem a prova. A classificação obedecerá
à ordem decrescente do total de pontos e considerará a opção do tipo de vaga (não reservada e
reservada) e, em se tratando de vaga reservada pelo sistema de cotas, a opção do grupo de cotas
(Manual do Candidato – 6º ano/2014 – em anexo).
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 187

Grosso do Sul, unidade de Dourados, quando perguntados/as sobre a


implementação da política de cotas na universidade. De acordo com os dados da
pesquisa de Daisy Emerich (2011), as respostas de seus/as sujeitos também
variavam entre posições favoráveis e contrárias com argumentos muito parecidos
com os que encontrei. Esse grupo de professores/as revelou que é mais favorável às
cotas sociais do que as raciais por que aquelas garantiriam maior acesso à educação
para toda a população vulnerabilizada. Neste argumento, os negros e negras já
estariam contemplados/as. Um dos entrevistados afirma que seria mais fácil aceitar
as cotas sociais “do que aceitar as cotas específicas para negros” (EMERICH, 2011,
p. 52).
Apresentarei a partir de agora os dados coletados junto às funcionárias
técnico administrativas – a coordenadora do NAPE à época da implementação da
lei, a pedagoga do 6º ano que acompanhou as turmas em 2014, a secretária da escola
– e ao diretor do CAp, relativos às perguntas que compunham o segundo bloco
temático das entrevistas semiestruturadas, qual seja, quais as concepções que
esse/as profissional(is) têm sobre as políticas de ação afirmativa no Brasil.
As representações desse/as quatro profissional(is) não divergiram ou são
muito distintas do conjunto daquelas apresentadas pelos/as professores/as. Quando
perguntadas/o sobre a adoção das políticas de ação afirmativa, as respostas
apresentadas por esse grupo de sujeitos pesquisados foram favoráveis à
implementação e o principal argumento listado dizia respeito à necessidade de
existência dessas políticas por haver uma situação de desfavorecimento de um
grupo de pessoas com relação a outros.
A pedagoga construiu sua resposta afirmando que é favorável a política de
cotas, mas que os/as alunos/as que foram beneficiados/as precisam ter um
acompanhamento após a entrada: “eu sou a favor que desenvolva também uma
prática posterior porque não adianta receber, no nosso caso, o aluno, e não ter tanta
assistência, não ter um trabalho diferenciado caso necessite, um trabalho de oficina,
um trabalho que pudesse auxiliar e contribuir para a parte pedagógica do aluno”.
Como ex-aluna da UERJ, citou o trabalho realizado pelo PROINICIAR90 -

90
Programa criado para apoiar o estudante de modo a garantir-lhe a permanência na UERJ, com
aproveitamento até a conclusão do curso, viabilizando o cumprimento da Lei 5346/08, que
regulamenta o sistema de cotas como efetivo mecanismo da redução das desigualdades sociais.
As atividades oferecidas visam contribuir para o desenvolvimento acadêmico e a integração dos
estudantes. São elas: Instrumentais – objetivam o desenvolvimento de conceitos e conteúdos
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 188

Programa de Iniciação Acadêmica - quando a universidade adotou a política de


cotas. Afirmou que o CAp deveria ter desenvolvido uma ação semelhante para
atender os/as estudantes que ingressaram no 6º ano, mas que isso não aconteceu:
Por ser algo um tanto novo, mas a gente percebe também devido à grade de
horários, que não permite tantas atividades extras para o aluno, mas tem alguns
alunos que necessitavam realmente de um apoio a mais porque os pais não têm
condições de pagar um explicador, porque até o explicador do CAp é diferenciado,
ele cobra um valor diferenciado. Os pais que pagam algum professor particular,
que o professor particular que ensina para aluno do CAp, devido à metodologia do
CAp. e então, o valor é até diferenciado também.

Em sua resposta há aspectos que precisam ser considerados: uma visão


antecipada de que os/as alunos/as que entraram pela política de cotas necessitarão
de um trabalho que possa contribuir para suprir as lacunas pedagógicas trazidas das
séries iniciais do ensino fundamental como se estivessem fadados/as ao fracasso
escolar. Ponderou que a política afirmativa no CAp é “algo um tanto novo”, mas
citou uma ação realizada pela UERJ junto aos/às estudantes universitários/as
demonstrando ter conhecimento do assunto, porém, não esboçou proposta ou ação
que pudesse atender os/as alunos/as que ingressaram na instituição caso
apresentassem alguma dificuldade. Mencionou que alguns responsáveis precisam
contratar um/a profissional que possa ajudar os/as filhos/as quando percebem que
estão com dificuldades deixando claro, no meu modo de entender, que a
metodologia diferenciada de ensino da instituição seria um entrave para todos/as
os/as estudantes e não apenas para aqueles/as que ingressaram pela política de cotas.
Portanto, as exigências do colégio, a metodologia de trabalho, acabam por afetar
todos os/as estudantes, independentemente, de qual tenha sido sua forma de
ingresso na instituição. A diferença explicitada nesse depoimento é de que
alguns/mas responsáveis podem arcar com essa despesa, enquanto outros não
podem, ficando a cargo do colégio criar estratégias que venham auxiliar esses/as
alunos/as.

necessários ao bom aproveitamento acadêmico. As de maiores demandas são: língua portuguesa,


língua estrangeira instrumental, informática instrumental; Oficinas – oferecem ao aluno uma
formação mais abrangente, ampliando sua vivência acadêmica e sua visão de mundo; Culturais –
visam complementar a formação do aluno ampliando o conhecimento da diversidade cultural,
apresentando atividades inovadoras e criativas, democratizando os espaços e os saberes; Inserção
em práticas acadêmicas – oportuniza a todos os estudantes desde o primeiro período sua inclusão
em projetos de ensino, pesquisa e extensão. Proporcionando desta forma convívio acadêmico com
colegas de períodos mais avançados, bolsistas e professores, gerando possibilidades de
desenvolvimento de novas habilidades e competências em diferentes áreas de conhecimento.
(www.caiac.uerj.br – acesso em 28/02/16)
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 189

A coordenadora do NAPE também afirmou que é favorável à adoção das


políticas de ação afirmativa, mas fez uma ressalva ao dizer que “a gente tem que
transformar isso numa realidade dentro, não só no CAp, de qualquer escola porque
a gente tem muita coisa regulamentada e a gente vê muito pouca coisa efetivamente
mais na prática”. Assim como nas respostas de alguns/mas professores/as apareceu
a questão da ampliação dessas políticas para outras instituições de ensino, no
entanto, não desenvolveu seus argumentos de modo que explicitasse quais seriam
os motivos para que isso acontecesse. Apenas complementou sua resposta dizendo
que por ser uma escola de formação de professores/as o CAp deveria repassar essa
experiência para outras instituições.
O ponto de vista da secretária da escola também é favorável, porém,
argumentou que o colégio “não está preparado para as cotas”. Pedi que explicasse
porque a instituição não estaria preparada e ela respondeu dizendo: “Em primeiro
lugar, a estrutura do CAp, não acho que ele está preparado. Em segundo lugar, a
gente mesmo que trabalha com isso não tem uma preparação para lidar com isso,
entendeu? Não tenho essa preparação. Acho que a gente tinha que ter uma
preparação melhor, estou falando de todos os técnicos, não estou nem tirando os
inspetores também não, a gente tem que ter”. Além da ausência de estrutura física
adequada91, mencionou a falta de preparação dos/as funcionários/as técnico
administrativos para que possam atuar junto a esses/as estudantes, mas não
apresentou uma proposta ou sugestão para que essa questão pudesse ser
solucionada.
Eu trabalho na fase da matrícula e esse ano, para mim, eu me choquei porque os
pais preenchendo o formulário da matrícula a gente teve que ajudar. Então, eu sinto
que a gente vai ter problema em relação a isso. Eles não têm acesso à informática,
então a gente vai ter que voltar um pouco em algumas coisas. Foi uma dificuldade
muito grande para eles entenderem como é que é o mecanismo da escola, de
RIOCARD92, a carteira de vacinação, o atestado médico para eles. A maioria não
entregou porque eles vão para UPA [Unidade de Pronto Atendimento], eles vão
para qualquer outro hospital público para conseguir uma consulta marcada, então
a maioria não entregou. Você pedir seis fotos para eles é caro (Secretaria Escolar).

91
O colégio não possui rampas de acesso para estudantes com dificuldades locomotoras e há um
elevador, que está em manutenção, em apenas um dos blocos de sala de aula.
92
O RIOCARD conforme previsto em lei, institui cartões de gratuidade para estudantes do ensino
fundamental e médio, através de cadastro enviado pela Secretaria de Educação Estadual, Federal
e Municipal. O RIOCARD é um sistema de bilhetagem eletrônica utilizado na maioria das cidades
do Estado do Rio de Janeiro.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 190

Esse depoimento explicitou uma grande preocupação com a questão


socioeconômica dos/as alunos/as ingressantes, revelou as dificuldades de acesso
encontradas pelos/as responsáveis aos serviços públicos de saúde, a demora em
conseguir o atendimento médico e também a dificuldade de acesso à informática
bem como de compreensão das informações exigidas no ato da matrícula.
Além desses aspectos, a secretária mencionou uma dificuldade que seria
colocada para o diretor da instituição no que diz respeito à entrada e saída dos/as
estudantes do espaço escolar: “Nós estamos com um problema maior. O 6º ano do
CAp não pode sair sozinho da escola para almoçar nem para ir embora sozinho. Só
que essa clientela que entrou toda ela, os pais autorizaram a saída, porque são
pessoas que estão ausentes de casa. Eles estão acostumados a andar de ônibus.
Vamos levar isso para o diretor porque vai ter que mudar. Eles não têm dinheiro
para pagar um transporte, eles confiam nos filhos”.
A Minuta de Resolução 30/13 que instituiu o programa de bolsa auxílio à
permanência desses/as estudantes não prevê o pagamento de transporte escolar,
trata da questão da alimentação, do uniforme e do material escolar. Em entrevista
com o diretor, o mesmo afirmou que a instituição estava arcando com as despesas
de transporte escolar utilizando os recursos recebidos via Sistema de Desembolso
Descentralizado (SIDES), verba que é repassada para o colégio para manutenção
da unidade, mas não informou qual o número de alunos/as contemplados/as com
esse benefício.
Não tenho uma rubrica que atenda especificamente cotistas-bolsistas, vou usar essa
expressão, nenhum deles é bolsistas, alunos com carência socioeconômica ou em
condição de desfavorecimento socioeconômico, nenhum deles é atendido,
objetivamente, por um crédito, por uma rubrica CAp. Os [bolsistas] da
universidade até o são, os nossos não. Então, a universidade repassa através do
SIDES essa verba. Se não vier o SIDES nós... Como é que a gente tem feito? Nós
fazemos dívida. (Diretor)

Ficou explicitado nesse relato que os recursos recebidos pela instituição são
destinados a sua manutenção, não havendo, até o momento, um repasse de verba
específico para atender os/as cotistas apesar da existência de uma minuta de
resolução que instituiu o programa de bolsa auxílio à permanência desses/as
estudantes93.

93
De acordo com o Plano de Intervenção do Serviço Social no CAp/UERJ “a maior demanda de
trabalho para o Serviço Social (e a mais desafiadora visto que supõe planejamento, execução e
avaliação de proposta, sem o aporte de recursos para tanto) é a consolidação de um Programa de
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 191

O diretor do colégio também se posicionou favorável à implementação das


políticas de ação afirmativa e desenvolveu sua resposta apresentando vários
argumentos que justificam essa necessidade:
Para mim, elas se fazem necessárias sempre que há bases injustas que deixam uns
em relação de desfavorecimento a outros. Elas são relacionais, acho que tem uma
primeira questão. Essas políticas são relacionais, por que elas são feitas sempre
para um sujeito em torno de um objeto, e esse objeto está ligado à questão da justiça
social, do acesso a determinados bens, a determinados direitos e, em um país
desigual, como o nosso, acho que não tem nem que perder muito tempo para
justificá-las, mas é lógico que a gente tem que fazer essas justificativas. Então, você
promover uma positivação, viabilizar a positivação de grupos que lutam por essa
positivação não é uma benesse, na verdade é uma necessidade. Eu diria que é uma
necessidade civilizacional, eu preciso que todos avancem e não só alguns, eu não
posso me acostumar que só alguns avancem. Então, é necessário que todos
avancem, embora pareça um discurso idealizado também. Então, nesse sentido, as
políticas afirmativas têm essas faces, ao mesmo tempo em que, no meu
entendimento, elas tentam se estabelecer em cima do que não há, elas também
apresentam certo caráter idealizado de resolver situações que talvez não se
resolvam somente por elas, que vão se resolver somente por transformações que
são muito mais profundas. Mas a gente vive de renovadas utopias. e então, essa
idealização vai fazer com que alguns tenham mais oportunidade de promover essa
mudança ou de lutar por essa mudança. E aí a gente não fica também naquela
paranoia geracional de que nunca se deu a oportunidade, de que nunca houve
chance da sociedade mudar, acho que há aí, não é um iluminismo, mas acho que
há uma possibilidade de futuro e de escolhas que se abre para uma parcela da
população que antes não tinha possibilidade de escolha nenhuma.

Alguns aspectos citados nessa resposta merecem destaque: a questão da


justiça social; da desigualdade de acesso a bens e serviços; de que essas políticas
não seriam uma benesse, mas um direito garantido para uma parcela significativa
da população; a positivação de grupos sociais considerados à margem. Porém, o
diretor chamou a atenção para o caráter idealizado dessas ações o que, no meu modo
de entender, apontaria para um posicionamento que vislumbra para políticas
públicas de educação universalistas. É sempre bom lembrar, como argumenta
Guimarães (1999), que as políticas afirmativas devem estar ancoradas em políticas
de universalização e de melhoria do ensino público para a educação básica, porém,
não se trata de fazer uma opção entre uma ou outra, mas de considerar a relevância
das políticas diferencialistas para que a médio e longo prazo a educação brasileira
possa oferecer a todos/as ensino público de qualidade.

Bolsa Auxílio Permanência através de um Ato Executivo do Reitor - normatização legal usual da
universidade, capaz de transformar o programa em ação permanente dotada de orçamento,
efetivamente integrada à estrutura docente e assistencial da instituição – para estudantes com
demandas de ordem socioeconômica”. . Plano de Intervenção do Serviço Social no CAp/UERJ
2015.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 192

Quando questionadas/o sobre as políticas afirmativas raciais não houve a


mesma semelhança de opiniões como nas respostas dos/as professores/as, três
depoentes se posicionaram de maneira favorável enquanto uma afirmou ser
contrária à adoção de cotas raciais. A pedagoga afirmou que é favorável, mas
porque estas estão agregadas aos aspectos socioeconômicos: “não é só o corte racial
não, têm vários outros critérios, mas, acho que poderia ser pensado de outra forma,
mas num primeiro momento sou a favor desde que o aluno também tenha uma
determinada assistência”. Sua resposta é semelhante a que foi dada para a pergunta
anterior, ou seja, é favorável desde que os/as ingressantes possam contar com o
auxílio de um trabalho pedagógico que possa ajudá-los a superar as dificuldades
supostamente trazidas.
A coordenadora do NAPE também se revelou favorável às cotas raciais,
afirmou que “a gente tem que trabalhar com isso porque eu acho que a questão da
raça é uma questão que a gente vê posta também, mas não é a mais importante hoje.
A gente tem outras questões dentro dessas políticas que a gente precisa estar
trabalhando que são bem mais sérias”. Para ela, as questões de diferença de gênero
são mais preocupantes do que as étnico-raciais. Exemplificou mencionando o
trabalho que realizou no colégio com outra funcionária técnico administrativa que
escreveu uma tese sobre a temática de gênero:
Acho que a gente vive uma questão que temos um discurso que não funciona muito
bem na prática. Eu tive a oportunidade de fazer um trabalho com a Rosa94 e a gente
percebe pelos encontros, pelas oportunidades de seminários, de grupos que a gente
participou, que nas escolas, a teoria todo mundo conhece, agora a grande
dificuldade de você trabalhar na prática dentro das salas de aula, dentro das escolas
com essas questões. Para mim, essa hoje ainda é uma questão bem mais séria em
termos de dificuldade do que a racial.

Considero que não seja possível classificar qual diferença, etnicorracial ou


de gênero, seja a mais preocupante ou que demande mais atenção, todas são
igualmente importantes e a emergência dessas temáticas na sociedade brasileira e
nos espaços escolares tem se intensificado nas últimas décadas. Além das
diferenças citadas, temos também aquelas relativas às questões religiosas, de
orientação sexual, entre outras. Os movimentos sociais referidos a essas identidades
vêm dando visibilidade aos processos de preconceito e discriminação em relação a
esses grupos sociais que são considerados diferentes.

94
Nome fictício para preservar a identidade da funcionária citada.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 193

Como construir uma sociedade em que os direitos humanos, o respeito às


diferenças, a valorização das diversas culturas e o reconhecimento das distintas
identidades penetrem todos os âmbitos da vida social e se transformem em
compromissos assumidos por todos os cidadãos e cidadãs? Certamente este é um
dos grandes desafios das sociedades contemporâneas. (CANDAU, 2009b, p. 7)

Candau (2009b, p.7-8) afirma que na perspectiva de reconhecimento das


distintas identidades a educação tem papel fundamental e que esta problemática
“está se tornando cada vez mais explícita nas nossas escolas e questiona as práticas
pedagógicas marcadas pela homogeneização e pelo caráter monocultural”.
O diretor também afirmou ser favorável à implementação das cotas raciais
e sua resposta para essa pergunta foi construída utilizando os argumentos de que se
trata de uma questão histórica, econômica, social e cultural. Porém, ressaltou que
não “concorda com tudo e com as formas das políticas na sua globalidade, na sua
inteireza. Eu vejo algumas coisas que em alguns momentos me soam como
contraditórias e isso é polêmico”. No seu ponto de vista, a contradição estaria na
criação de uma cota exclusivamente social.
A questão da criação de uma cota exclusivamente racial foi e tem sido objeto
de discussão de diversos autores e autoras desde a adoção das políticas afirmativas
no início dos anos dois mil. Feres Júnior (2012) trata dos critérios de seleção
adotados pelas políticas de inclusão e considera que as variáveis classe e raça sejam
utilizadas nessas políticas uma vez que ambas têm grande relevância na reprodução
das desigualdades no país. Porém, ressalta que “não podemos nos esquecer de que
da análise sociológica de dados populacionais ao desenho das políticas públicas a
distância é grande e não pode ser percorrida sem mediações: identificação de
públicos, adoção de categorias, criação de regras, estabelecimento de objetivos,
avaliação de resultados, etc” (FERES JÚNIOR, 2012, p. 1). Ao abordar os critérios
de seleção, ressalta que o debate midiático sobre as políticas afirmativas teve (e
tem) como foco principal a questão etnicorracial. No entanto, a modalidade mais
frequente de ação afirmativa adotada pelas universidades públicas brasileiras, de
acordo com Feres Júnior (2012), tem como beneficiários alunos/as oriundos/as de
escola pública: 61 de um total de 98 instituições, enquanto apenas 40 têm políticas
para negros ou pretos e pardos.
Mas não é só isso: o processo de criação dessas políticas de inclusão no ensino
superior brasileiro – hoje 72% das universidades públicas brasileiras têm algum
tipo de ação afirmativa – não pode ser narrado sem falarmos do protagonismo do
Movimento Negro e de seus simpatizantes ao articular a demanda por inclusão
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 194

frente às universidades por todo o Brasil. Ao serem pressionadas por esses setores
da sociedade civil organizada, as universidades reagiram cada uma a seu modo,
pouquíssimas vezes criando cotas somente para negros (4 casos), muitas vezes
criando cotas para negros e alunos de escola pública (31), e majoritariamente
criando cotas para alunos de escola pública. Não houve, por outro lado, nenhum
movimento independente para a inclusão de alunos pobres no ensino superior. Em
suma, se não fosse pela demanda por inclusão para negros, o debate sobre o papel
da universidade no Brasil democrático certamente estaria bem mais atrasado.
(FERES JÚNIOR, 2012, p. 1)

Feres Júnior (2012, p. 2) considera que ambas as variáveis, classe e raça,


devam ser objeto das políticas de inclusão. No entanto, afirma que não há um plano
ideal para aplicá-las: “será que deveriam ser separadas (cotas para negros e cotas
para escola pública) ou combinadas (cotas que somente aceitem candidatos com as
duas qualificações)? Fato é que pouquíssimas universidades adotam a primeira
opção, enquanto 36 das 40 universidades públicas com ação afirmativa para negros
têm algum critério de classe combinado, seja ele escola pública ou renda”.
O que isso significou na prática? A maioria das universidades, trinta das
quarenta, utiliza o critério “escola pública” para se auferir a classe social do/a
aluno/a ingressante. Porém, seis universidades, entre elas as estaduais do Rio de
Janeiro, adotam o critério de renda: “no caso das universidades fluminenses, os
programas que começaram em 2003 tinham cotas para escola pública separadas de
cotas para ‘negros e pardos’, mas em 2005 a lei foi alterada passando a sobrepor
um limite de renda à cota racial” (FERES JÚNIOR, 2012, p. 2). Essa mudança de
critérios trouxe uma consequência: o número de estudantes negros/as que
ingressaram nas universidades fluminenses antes da alteração da lei foi maior do
que os/as ingressantes após a sobreposição desses critérios95. Ou seja, a luta travada
pelo movimento negro para que esses/as estudantes adentrassem o espaço
universitário ficou subsumida com as mudanças realizadas.
O depoimento da secretária contrário à política de cotas raciais no CAp tem
relação direta com as ponderações anteriores. Para ela, essas cotas não deveriam
existir porque não há necessidade de separar negros e brancos. Por outro lado, é

95
De acordo com Feres Júnior (2012, p. 2), “os dados da Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro (UENF) mostram que nos anos em que vigorou o sistema antigo, 2003 e 2004,
entraram respectivamente 40 e 60 alunos não-brancos – aproximadamente 11% do total de
ingressantes. A sobreposição de critérios que passou a operar no ano seguinte derrubou esse
número para 19. A média de alunos não-brancos que ingressaram sob o novo regime de 2005 a
2009 é ainda menor – 13 – o que representa parcos 3% do total de ingressantes”.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 195

favorável às políticas que tenham como critério o corte social e também às


inclusivas para pessoas com deficiência.
Eu sou contra isso, eu acho que a gente não pode discriminar. O racial eu sou
contra. A cor da pele eu sou contra. Eu acho que tanto o branco, vamos dizer, tem
branco que não tem capacidade de entrar numa faculdade, como também o negro.
Eu não sou a favor disso. Eu não gosto de política de cota racial. Bom, eu acho
absurdo você separar por negro e branco, não estou colocando nem o pardo e o
índio, eu acho isso um absurdo. Tantos negros aí muito melhores que eu,
culturalmente, no estudo... Parei na faculdade, não fiz mestrado, nem doutorado e
tem tantos negros aí com doutorado! Ele é melhor que eu. Então, por que ele vai
ter uma cota, uma exclusividade para entrar? Você tem que se declarar negro. Olha
que coisa horrorosa. Você não se declara branco quando você vai fazer uma
inscrição para alguma coisa. O negro tem que se declarar. Se você não se declara,
um branco entra na vaga do negro. Então, é uma política meio... não gosto. Sou
contra, totalmente.

Para a secretária, ao separarmos negros e brancos estaríamos discriminando


os primeiros em relação aos segundos, ou seja, ‘criando’ um processo de
racialização, forte argumento utilizado pelos opositores das políticas afirmativas
raciais. Mais uma vez, é possível perceber como a ideia de um país racialmente
integrado está presente no imaginário social. A fim de justificar que essa separação
não fosse feita utilizou a ideia da capacidade dos/as candidatos/as de ingressar na
universidade sem considerar as desigualdades educacionais experimentadas por
esses dois grupos étnicos. Ao afirmar que o negro precisa declarar seu
pertencimento racial e o branco não, evidenciou um ponto de vista que não
considera que a branquitude está posta e é entendida como o padrão, não necessita
de declaração.
Apesar de mencionar a questão da autodeclaração, a secretária não
desenvolveu esse argumento. No entanto, Munanga (2012) tematiza a questão da
negritude e afirma que a perspectiva mais viável para compreender a complexidade
do tema talvez seja coloca-la dentro do movimento histórico. Considera que além
do fator histórico, há também os fatores linguístico e psicológico na construção de
uma identidade que precisam ser considerados, mas ressalta que “a identidade
cultural perfeita corresponderia à presença simultânea desses três componentes no
grupo ou no indivíduo” (MUNANGA, 2012, p. 12). O autor afirma que isso seria
um caso ideal e que esses fatores interagem de modos distintos, específicos, não
sendo possível que tenham a mesma intensidade. Por outro lado, considera
necessário que a discussão sobre as identidades negras seja publicizada,
especialmente, no atual debate sobre cotas raciais e afirma: “o conceito de
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 196

identidade recobre uma realidade muito mais complexa do que se pensa,


englobando fatores históricos, psicológicos, linguísticos, culturais, político-
ideológicos e raciais” (MUNANGA, 2012, p. 14).
Se alguns entendem a negritude e a identidade como um movimento político-
ideológico, outros se perguntam se não seria uma forma de racismo do negro contra
o branco, um racismo ao avesso. Nesse sentido, se a negritude é um movimento
negro, não seria legítimo que se falasse também da “branquitude” como movimento
de brancos e da “amarelitude” como movimento dos amarelos? “Negritude”,
“branquitude” e “amarelitude” nos levariam ao conceito maior das raças negra,
branca e amarela, conceitos biologicamente inoperantes, mas política e
sociologicamente muito significativos. Há quem se pergunte se no Brasil seria
possível a existência de uma identidade dos negros diferentes da dos demais
cidadãos. Outros chegam até a indagar se as ditas negritude e identidade negra não
poderiam ser vistas como uma divisão da luta de todos os oprimidos. Essas
perguntas, essas dúvidas e essas preocupações merecem um esclarecimento, ou
melhor, uma discussão. Poderíamos agrupar e alinhas as melhores definições sobre
esses conceitos. Mas isso ajudaria pouco para desvendar seus conteúdos. No
entanto, uma perspectiva mais viável seria situar e colocar a questão da negritude
e da identidade dentro do movimento histórico, apontando seus lugares de
emergência e seus contextos de desenvolvimento. Se historicamente a negritude é,
sem dúvida, uma reação racial negra a uma agressão racial branca, não poderíamos
entendê-la e cerca-la sem aproximá-la do racismo do qual é consequência e
resultado (MUNANGA, 2012, p. 14-15).

Ao afirmar que os conceitos biológicos de raças são inoperantes, Munanga


(2012) destaca que política e sociologicamente são significativos e, nesse sentido,
é a população negra que vem sendo discriminada racialmente porque há ainda a
ideia de raças hierarquizadas dentro da espécie humana para justificar a prática do
racismo. Desse modo, afirmar-se negro/a tem, no meu modo de entender, uma
simbologia importante porque auxilia no empoderamento desse grupo étnico-racial.
Foi possível perceber que para esse grupo de profissionais, assim como para
o de professores/as, há o reconhecimento da importância das políticas afirmativas,
mas as/o depoentes apontaram uma série de ponderações sobre suas formas de
aplicação. O principal questionamento apresentado pelos/as entrevistados/as se
refere às políticas raciais o que denota, no meu modo de entender, a dificuldade
para que a questão do racismo, da discriminação racial, das desigualdades raciais e
educacionais que afligem os/as negros/as seja discutida de maneira mais
aprofundada. Algumas razões podem ser apontadas para essa ausência: a temática
não faz parte do universo de ponderações dos/as entrevistados/as e a pouca
familiaridade com o assunto seria decorrente de uma limitação de suas formações
profissionais. Devo considerar, ainda, que talvez o instrumento de coleta de dados
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 197

não tenha sido capaz de captar as concepções que os sujeitos pesquisados têm sobre
a adoção de políticas afirmativas nos sistemas educacionais, mas reconheço que
todo esforço foi feito para cercar a temática com diferentes perguntas e em distintos
momentos da entrevista.

5.2
Sobre a implementação das ações afirmativas na educação básica

Quando perguntados/as sobre a implementação das políticas de ação


afirmativa na educação básica, especificamente no CAp/UERJ, as respostas dos/as
professores/as podem ser categorizadas em três blocos de argumentação: (i) a
questão da qualidade do ensino; (ii) a ampliação dessas políticas para todas as
escolas da rede estadual de ensino; (iii) as questões históricas e socioeconômicas.
A professora Rita, por exemplo, expressou sua preocupação com a
qualidade do ensino:
Eu me preocupo por que eu fico pensando assim: ao invés de nivelar por cima a
gente vai acabar nivelando por baixo. Aí eu fico com medo por que eu digo: é um
processo de municipalização do CAp. Como se o CAp tivesse que se transformar
numa escola do município, de rede, que foi o que eu vi, o que eu vivenciei 25 anos.
E eu vejo, muitas vezes, as opiniões das pessoas aqui dentro quando eu vou
conversar com as pessoas, eu pergunto assim: ‘Você trabalhou no Município ou no
Estado?’ E as pessoas dizem: ‘Não’. Então, você não sabe o que é. Eu acho que é
uma escola para o professor. Eu acho que o professor tem que passar por essas
redes, sim. Mas é... todos eles. Inclusive quem foi estagiário nosso e inclusive está
nessas redes, eles, muitas vezes, dizem para mim assim: ‘Você se aposentou. Eu
não me vejo trabalhando esses anos todos e me aposentando nessas redes; eu não
vou aguentar.’ E eu acho que o CAp é uma escola diferente. Eu acho que todas
deveriam ser como o CAp, infelizmente não são. Acho que todas deveriam ser
escolas de excelência como o CAp. E eu não acho que é baixando o nível, nivelando
por baixo que vai resolver a questão da educação no país. O que resolve a questão
da educação no país também não é botar todo mundo na universidade. É,
principalmente, melhorando o ensino básico. O que eu vejo é que não havendo... É
que não há essa preocupação com a educação básica. É preocupação com o
Pronatec, tem a preocupação de colocar todo mundo na universidade sem preparo.
Por que não tem a preocupação de melhorar o ensino fundamental? Isso eu não
vejo.

Ao ser informada que a política de cotas no CAp também estava sendo


implementada no 1º ano do primeiro segmento do ensino fundamental, a professora
Rita fez a seguinte afirmação: “Para quem vai começar desde o 1º ano, acho até que
vai ser muito bom porque já vai começar bem, vai começar numa escola que segue
um projeto político pedagógico, mesmo que não esteja no papel, mas que a gente
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 198

tem, não é verdade? Vai começar bem. No 6º ano acho que já vai ser mais
preocupante porque ele vai vir das redes, tanto rede pública, quanto privada e nem
sempre vai conseguir dar conta”. A professora Rita enfatizou a todo o momento a
questão da excelência de ensino do CAp em comparação às escolas da rede pública
e também privada demonstrando o quanto esse aspecto é relevante para ela.
A professora Rose, também argumentou sobre a qualidade e acrescentou
que as políticas afirmativas deveriam ser ampliadas para todas as escolas da rede
estadual de ensino, não apenas para o CAp.
Eu acho que o que está acontecendo é que você vai colocando mais para baixo, o
funil já está apertando para baixo, entende? Por que toda e qualquer escola não é
desejável para toda e qualquer pessoa? Por que tem que ter mais cotas? Por que
todo colégio municipal, CAp, as universidades, não são iguais para todos
quererem? Muitos querem o CAp? Qual o motivo? Tem motivo? Explica para mim
o motivo. Esse modelo é tão caro assim que não possa ser colocado em outros
lugares? Será que é mesmo? Ou é melhor fazer a política [de cotas]? Essas mesmas
pessoas que ficaram contentes, por exemplo, que teriam mais chances nesse
determinado colégio, por que não foi ao contrário? Por que não se usou o modelo
desse colégio para outros e abriram-se várias vagas em vários lugares para o negro,
para o branco, para o que quisesse entrar, e que gostasse e acreditasse naquele
ensino daquele jeito. (...) Eu fico com muita preocupação aqui no CAp sim, tá? Eu
gostaria que fosse diferente, que tivesse em outros lugares. Já que colocaram aqui
no CAp, qual foi a explicação? É por que é um bom ensino? Por que tem uma
procura muito grande? Por que, então, não foi em todas, e todos adotarem, mais ou
menos o sistema CAp? Sei lá, não sei. Se for esse o modelo, as pessoas estão
preferindo esse modelo, então vamos reproduzir em outras escolas, todos vão
querer. Questão de cota, então, faz em todos, que todas as escolas tenham
representação do grupo que pleiteia aquelas vagas, do grupo inteiro, eu até
concordo. Ou então você abre as inscrições, mapeia essa população e bota as vagas
de acordo com a população, em todas as escolas e não só no CAp/UERJ.

Assim como Rita, a professora Rose também revelou sua preocupação com
a manutenção da qualidade e excelência do ensino no CAp. Considerando o que
disseram em seus depoimentos, manifestaram o mesmo que Valentim (2005)
observou em sua pesquisa de mestrado com professores/as do curso de Direito da
UERJ: “a fim de manter a excelência acadêmica da qual tanto se orgulham e estão
preocupados em preservar, os professores veem seus alunos cotistas como
apresentando, em geral, dificuldades que ocorrem em razão de uma insuficiente
formação dos alunos” (VALENTIM, 2005, p. 104). Em outras palavras, os/as
alunos/as seriam intelectualmente inferiores, ou seja, não possuiriam um capital
cultural, não tiveram acesso a bens ou conhecimentos culturais em teatro, música,
cinema ou ainda manejo da norma culta da língua que estariam de acordo com as
exigências culturais do colégio. Os/as estudantes oriundos/as das classes
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 199

desfavorecidas não teriam ‘familiaridade’ com o saber erudito e, por não


dominarem os códigos socialmente valorizados ‘condenariam’ as instituições de
ensino a uma ‘queda de nível’ de qualidade do ensino oferecido: “é um processo de
municipalização do CAp”.
Sobre esta questão, talvez fosse mais pertinente ultrapassar “uma concepção
reducionista de cultura tomada no sentido estrito de acumulação de saberes ou
referida exclusivamente à chamada ‘cultura culta’ para uma concepção mais
abrangente em que a cultura diz respeito aos modos de vida e de pensamento de um
dado grupo social, assim como à produção de símbolos e significados”. (CANDAU,
1998, p. 239)
Nesse sentido, a contribuição da perspectiva multi/intercultural em
educação pode ser muito adequada e enriquecedora, uma vez que pretende instituir
nos sistemas de ensino o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural e
étnica, sem deixar de trabalhar os aspectos relacionados com habilidades exigidas
para o domínio da lógica configuradora da cultura escolar.
Outro aspecto que merece destaque no depoimento da professora Rose é
quando afirma que as políticas afirmativas deveriam ser ampliadas para toda rede
estadual de ensino. O direito à educação está expresso na Constituição Federal de
1988 em seu artigo 208: o dever do Estado com a educação será efetivado mediante
a garantia de ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele
não tiveram acesso na idade própria. O acesso à educação básica está universalizado
em nosso país, portanto, não há necessidade de que as ações afirmativas sejam
estendidas às escolas das redes. O que precisa ser expandido para a rede estadual
de ensino, no meu modo de entender, são melhores condições de trabalho e de
salário de seus/as docentes, escolas que tenham infraestrutura física adequada para
atender seus/as estudantes, ou seja, que a educação básica com qualidade seja uma
prioridade para as políticas educacionais.
Os professores Cauã e Mateus apresentaram um terceiro argumento nesta
categorização, ou seja, a questão socioeconômica como principal critério para a
adoção das políticas afirmativas na educação básica. No ponto de vista de Cauã:
Acho que pelo histórico da educação brasileira é uma política que tem uma
explicação social importante, de tentar equilibrar um pouco mais, de tornar o país,
um país educativamente menos preconceituoso, menos segregacionista, de certa
forma. Eu se tivesse que aplicar isso em uma escola que eu fosse diretor, eu
aplicaria a cota social e a cota para educação especial. A cota racial, eu não sei se
aplicaria, assim, na educação básica, mas acredito que tem, devido a pesquisas
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 200

superiores, de quantitativo, de porcentagem, que mostram que de fato a população


negra tem muito menos acesso à educação... Então, como eu disse antes, assim não
é uma opinião própria, mas eu acredito que seja importante para que a educação
básica se torne, pelo menos mais democrática.

Por outro lado, esse mesmo professor afirmou que o CAp sempre teve “uma
mistura etnicorracial grande”, o que permite inferir que a adoção da política
afirmativa racial não seria necessária.
Uma coisa que eu sempre percebi no CAp é que é um colégio que tem uma mistura
étnico racial muito grande e isso para mim é um ponto muito favorável do CAp.
Por exemplo, já dei aula na UFRJ também, no CAp da UFRJ, e não havia a mesma
quantidade, a mesma porcentagem, talvez a palavra está errada, de negros, mulatos,
mestiços. Eu acho que o CAp [da UERJ], hoje no Rio de Janeiro é, talvez, um dos
colégios onde haja uma maior, maior diversidade, maior democracia racial. Isso eu
considero um ponto fundamental e, de certa forma, isso acontece por que também
as cotas, o sorteio tem nele previsto as cotas. (Cauã)

É importante ressaltar que o processo seletivo para o CAp/UERJ tem sido


realizado através do sorteio para o 1º ano do ensino fundamental desde a criação da
Classe de Alfabetização, em 1987, ou seja, até o ano anterior o processo seletivo
para o 1º ano também era feito através de prova. Para o 6º ano do segundo segmento
do ensino fundamental, objeto dessa pesquisa, a seleção sempre foi feita por provas
de conteúdo de matemática, português e redação. O sorteio, como destacou o
professor Cauã, prevendo a reserva de vagas só aconteceu a partir do ano de 2014
após a aprovação da Lei 6434/13, ou seja, os/as negros/as que adentravam esse
espaço escolar tinham que contar com a ‘sorte’ ou serem aprovados/as na seleção
por desempenho. Com a adoção da lei, essa população passou a contar com um
instrumento que garantiria outra possibilidade de acesso à instituição.
O professor Mateus confirmou o argumento de que a cota racial não seria
necessária, expressando sua opinião da seguinte forma:
Na educação básica não existe ainda a ideia de um vestibular, embora... a minha
sobrinha, por exemplo, fez o concurso para o 6º ano [do CAp] e ela, aluna de
colégio público, não entendeu nada da prova. Enquanto ela saía da prova, outros
alunos ficavam: ‘Ah, tá muito fácil essa prova. Essa prova aí nem se compara com
as provas que eu faço lá no Santo Agostinho. Nem se compara com as provas que
eu faço lá no São Bento.’ Então, evidentemente, o sistema parece diferente, mas
não é tão diferente assim não. Porque o aluno no 6º ano já aprendeu conteúdos bem
relevantes para formação dele ou não aprendeu, dependendo do colégio. Então, eu
penso que a cota... ela tem muito mais, talvez até mais sentido de... até no 6º ano
também, de ser pela renda do que talvez pela cor. Eu continuo com esse
pensamento sim. Eu estou pensando agora, eu nunca pensei nisso. [...] As pessoas
que vão entrar pela cota da renda, serão essencialmente negras. Eu não sei se faz
sentido ter uma cota racial hoje no Brasil. Em um país como o Brasil, com a história
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 201

que a gente tem e tudo, mas eu estou ensaiando esse pensamento aqui [risos]. Meu
argumento hoje é esse.

Em sua resposta o professor Mateus admitiu que existem desigualdades


entre as redes pública e privada de ensino ao mencionar as dificuldades de sua
sobrinha quando participou do processo seletivo para o 6º ano do CAp, o que
favoreceria que a entrada dos/as candidatos/as continuasse sendo daqueles/as
estudantes que puderam se preparar para realizar essas provas. Por outro lado,
continuou argumentando que a cota social contemplaria a população negra por
considerar que esta pertenceria, majoritariamente, a classe social mais
desfavorecida. De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das
condições de vida da população brasileira 2014, as condições de vida da população
brasileira apresentaram melhoras. Mas, apesar das melhorias das condições de vida
da população o país permanece com grau elevado de desigualdade quando
comparado com países no mundo e mesmo na América Latina. Com relação a
população negra, os dados do IBGE confirmam o depoimento do professor Mateus
ao apontarem que:
Em 2013, nos 10% mais pobres, 75% eram pretos ou pardos e 23,9%, brancos. Em
2004, eram 72,8% de pretos ou pardos e 26,9% de brancos nesse grupo. Já no outro
extremo da distribuição, quer dizer, no 1% com maiores rendimentos da população
em 2013, 14,5% eram pretos ou pardos, contra 83,6% de brancos. Em 2004, esse
1% era composto por ainda menos pretos ou pardos (12,5%). Ambas as
distribuições destoam da proporção de pretos ou pardos no total da população, pois
52,9% foram classificados como tal em 2013 (IBGE, 2014, p. 155).

Ao apresentar esses dados pretendo enfatizar que a população negra


continua sendo mais desfavorecida em termos de distribuição de renda e,
exatamente, por isso, necessita que políticas públicas voltadas para educação e
emprego sejam adotadas e que possam garantir ou, pelo menos, atenuar essas
disparidades. No entanto, a associação entre negro e pobreza não pode ser feita de
maneira passiva, naturalizada, como algo que não será superado. Cabe um
questionamento: a superação das desigualdades raciais, educacionais e econômicas
que afligem essa população não deveria ser a meta a ser alcançada pelas políticas
governamentais?
A professora Isabel afirmou que a implementação dessas políticas
afirmativas na educação básica fundamenta-se nos mesmos pressupostos que
defendeu para a adoção no ensino superior. Como o professor Cauã, entende que o
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 202

CAp possui um alunado diverso em decorrência do sorteio de vagas para o 1º ano


do ensino fundamental e narrou como vê o processo seletivo para o 6º ano do CAp,
destacando que a experiência de inserção da reserva de vagas está em seu momento
inicial.
Embora a gente aqui, na educação básica se a gente considerar o 1º ano que é
sorteio, a gente já tem uma entrada democrática, não é? Então, eu não sei avaliar.
[...] Nunca pensei sobre isso. Agora no caso do 6º ano, que tem que fazer prova e
as provas são difíceis e são três mil candidatos para trinta vagas, sessenta vagas,
não sei direito, então... aí eu acho que a gente entra no mesmo critério de seleção
da universidade. Se existe uma prova, uma prova difícil, a concorrência é muito
alta, em geral, o perfil que a gente vê, são alunos que vêm de um... Esses alunos
que fazem a seleção por prova, eles vêm de um cursinho preparatório, de um
Martinzinho, de um PH, eles se preparam, são cursos caros, geralmente vêm de
escolas particulares e, mais uma vez, o que a gente percebe é que os negros, em
geral, são minoria nessa questão. Eles [os negros] não têm, em geral, acesso a esse
tipo de reforço para entrar numa seleção em patamar de igualdade com os outros.

As professoras Monique e Fernanda também consideraram importante a


implementação das ações afirmativas na educação básica. Fernanda utilizou os
mesmos argumentos de sua resposta sobre a adoção dessas políticas no ensino
superior, mas tratou de modo mais explícito sobre as diferenças entre negros e
brancos:
Eu acho que deve acontecer por que, bem... é como eu falei, acho que se não estava
acontecendo dentro de todas as estatísticas da inserção do negro na sociedade,
passados 100 anos da abolição então de alguma forma ele tem que ser inserido. E
por que será que ele não consegue ter acesso na mesma proporção que os brancos
têm? Tem alguma coisa que tem que ser investigada aí. Não é só pegar e colocar
ele na escola. Tem que investigar. Por que o branco tem mais acesso? É óbvio que
existe um problema aí e isso tem que ser investigado. Mas enquanto não se resolve,
eu sou a favor mesmo e acho que tem que ter. E acho que o convívio do negro com
o branco, com os pardos, amarelos, enfim, em todas as classes, em todas as idades,
vai diminuir o preconceito. É uma coisa ideal que a gente veja o negro em mesmas
proporções que o branco, que o índio em todas as esferas da educação. Concordo
com isso plenamente. (Fernanda)

Em seu depoimento, a professora Fernanda questionou, insistentemente, que


a diferença de oportunidades e de acesso à educação entre brancos/as e negros/as
precisaria ser pesquisada para que pudesse ser compreendida e favorecesse a
redução das desigualdades, demonstrando desconhecimento sobre as diferentes
pesquisas realizadas no país que mencionam essa problemática. Como já
apresentado no capítulo 2, diversas pesquisas, especialmente aquelas desenvolvidas
por órgãos governamentais como o IBGE e o IPEA sobre as desigualdades raciais
no país, vêm demonstrando a persistente manutenção do gap não só educacional,
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 203

mas também de renda e emprego, entre esses dois grupos raciais, portanto, o que
não falta são dados que comprovam esse fato. E são justamente as pesquisas
governamentais, segundo Carneiro (2011, p. 54):
A principal alavanca para o reconhecimento dos negros brasileiros como segmento
com características específicas e desvantajosas em termos de inserção social no
país. Elas cada vez mais desautorizam as ideias consagradas em nossa sociedade
sobre a inexistência de um problema racial. Questionam a simplificação de que o
problema do Brasil é social, e não racial. Recusam os eufemismos como o do
apartheid social e, sobretudo, indicam que as políticas universalistas,
historicamente implementadas, não têm sido capazes de alterar o padrão de
desigualdades entre negros e brancos na sociedade.

Outro aspecto de sua resposta que merece reflexão trata da convivência entre
negros/as, brancos/as, amarelos/as, para que o preconceito possa ser diminuído com
a presença de negros/as e índios/as na mesma proporção que os brancos nas esferas
educacionais. Não creio que apenas a convivência entre diferentes grupos raciais
possa favorecer a diminuição do preconceito, uma vez que a sociedade brasileira se
reconhece como plural e, ao mesmo tempo, é discriminatória e preconceituosa. É
necessário, como assevera Carneiro (2011, p. 55), que “a urgência de
implementação de políticas públicas de promoção da igualdade racial no Brasil
decorra de um imperativo ético e moral que reconheça a indivisibilidade humana e,
por conseguinte, condene toda forma de discriminação”.
Já a professora Flávia afirmou que não sabia da implementação da lei no
CAp. Construiu seus argumentos no momento da entrevista. Afirmou que
considerava uma iniciativa importante, mas argumentou que é insuficiente:
Acho que ainda assim é insuficiente. Por que? O CAp é um Colégio de Aplicação
da UERJ. Nível de ensino do CAp é um nível de ensino X. A criança que entra com
determinada deficiência não necessariamente consegue alcançar esse nível X.
Existem alguns processos dentro do CAp para tentar minimizar essa diferença. Só
que esses processos pedagogicamente, inclusive, não são eficientes. Só por que a
criança tem uma determinada dificuldade de aprendizagem, ela fazia a mesma
prova em um local diferente ou com mais tempo, não resolve o problema dela. E
esse é o método mais encontrado pelo CAp. É claro que tem todo um arcabouço
por trás. Eu trabalhei com pedagogos do CAp que realmente tentavam procurar a
família, davam um suporte, tentavam fazer o que conseguiam dentro da estrutura
que o CAp permitia. Mas ainda assim eu acho que são necessárias mudanças de
metodologia, mudanças de cronograma, mudanças de planejamento na aula. São
tantas mudanças que deveriam estar por trás que não funcionam, sabe? [...] E a
maioria das vezes quando as crianças entram por cota no CAp, elas entram por cota
e vêm junto com essas dificuldades. Seja por que eles entram por cota e ao mesmo
tempo também têm carências na sua educação familiar, seja por n razões outras que
possam acontecer, mas eles acabam ficando atrelados a essas dificuldades de
aprendizagem. Os alunos que não entram por cota, normalmente, [...] não
encontram dificuldades no CAp por que eles já foram selecionados, eles já são a
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 204

nata dos outros colégios. E aí você coloca esses alunos na mesma sala em que os
alunos que passaram por cotas e, normalmente, estão associados a dificuldades de
aprendizagem.

Mais uma vez aparece a questão da insuficiência da formação escolar dos/as


alunos/as que ingressaram no colégio pela reserva de vagas em contraposição a uma
representação de aluno/a padrão. Esse ponto de vista coloca apenas nesses/as
estudantes a marca das ‘dificuldades de aprendizagem’, como se aqueles/as que
entravam anteriormente não apresentassem ‘problemas’ nesse aspecto. De acordo
com os dados do relatório DataUERJ 2015, em 2014, houve uma reprovação e uma
transferência no 6º ano. Já os dados do DataUERJ 2014, informam que no ano de
2013, foram nove reprovados, três transferidos e um jubilado nesse ano de
escolaridade, portanto, no ano anterior a implementação da lei o número de
reprovados/as foi superior ao da entrada desses/as estudantes. Esses documentos
apresentam dados estatísticos da instituição, porém, considero que seria interessante
a realização de uma pesquisa sobre o 6º ano de escolaridade para acompanhar o
desempenho dos/as estudantes cotistas, mas que também pudesse compreender
quais os motivos para a diminuição do número de reprovados/as de um ano para o
outro e também aqueles que levam os/as alunos/as a pedirem transferência do
colégio uma vez que o mesmo oferece ensino de qualidade.
A professora Jussara considerou uma iniciativa importante, mas afirmou que
não tinha pensado nessa possibilidade para a educação básica. Mencionou de
maneira breve a adoção das cotas na UERJ e, no seu modo de entender, se o colégio
faz parte da universidade essa seria uma experiência válida: “Realmente o CAp faz
parte da Universidade do Estado Rio de Janeiro. Porque, se é uma seleção pública,
por que não ter, não é? Nunca tinha pensado a respeito antes, mas acho que é válido
sim”.
A professora Miriam, assim como na pergunta anterior, afirmou que não tem
uma opinião formada sobre a implementação das ações afirmativas na educação
básica, que também estava pensando nessa questão no momento da entrevista.
Insistiu no argumento de não querer marcar as diferenças e afirmou que não
considera que a adoção dessas políticas contribua de maneira efetiva para a
formação do público atendido. Finalizou sua resposta fazendo um questionamento
sobre a implementação: “Não sei por que isso é aqui, não é? Porque qualquer
criança tem acesso à escola pública. É por que aqui a escola é bonitinha, de
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 205

excelência, de referência? Porque tem uma coisa, que eu nem falei, que é tão fácil
dar aula para aluno bom. Escola boa para mim é a escola que segura o ruim, não a
que só tem bom. Muito fácil dar aula para um monte de gente boa, quero ver dar
para ruim. Não sei, desculpa, nunca pensei que pudesse ser, vou pensar”.
A resposta que poderia dar ao questionamento da professora é a de que
acredito que o CAp tenha sido ‘escolhido’ para adotar as políticas afirmativas
exatamente por ser uma escola de excelência, de referência que pudesse oportunizar
para a população que se encontra a margem o acesso a uma instituição de ensino de
qualidade. Sim, toda criança tem acesso à escola pública, é um direito garantido
pela Constituição, mas o sucateamento do ensino público vem se aprofundando
sistematicamente e, nada mais justo que uma escola de reconhecido prestígio social
e pública possa receber estudantes de todos os extratos sociais e grupos étnico
raciais. Assim, como no depoimento de Flávia, a professora Miriam fez uma divisão
entre ‘aluno bom’ e ‘aluno ruim’ dando a entender que o alunado do colégio seria
‘bom’ e que com a adoção da política de cotas passaria a ser ‘ruim’. Mais uma vez
aparece a questão da insuficiência da formação, da inferioridade intelectual, do
despreparo, colocando, individualmente, nesses/as estudantes a responsabilidade
por seu sucesso ou fracasso escolar.
É importante ressaltar que três depoentes afirmaram que não haviam
pensado sobre a questão da implementação das políticas de ação afirmativa na
educação básica, que estavam construindo suas respostas e argumentos no momento
das entrevistas. Posso inferir, então, que haveria espaço para a discussão desse tema
no CAp/UERJ. Por que essa discussão não foi realizada? Em outro item desse
capítulo tratarei da participação dos/as docentes e funcionárias técnico
administrativas nas discussões sobre a implementação da política de ação
afirmativa na instituição. Talvez nesse conjunto de respostas seja possível
compreender os motivos que levaram os/as professores/as a afirmarem que não
haviam pensado sobre tais políticas antes da realização das entrevistas.
Mais uma vez há semelhanças com os dados de Emerich (2011). Um aspecto
recorrente nas respostas de seus/as entrevistados/as foi sobre a necessidade da
realização de discussões constantes sobre a temática das políticas de cotas que, para
muitos, ainda era conhecida apenas superficialmente. Outra percepção similar diz
respeito ao fato de que a política, na UEMS, foi implementada por lei sem que a
categoria dos/as professores/as pudesse discutir amplamente o tema. Talvez seja a
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 206

falta de tempo/espaço para a discussão no CAp/UERJ que justifique as opiniões


contrárias. Alguns/mas depoentes de Emerich (2011, p. 50) revelaram que
“inicialmente eram contrários/as às cotas, mas após as discussões promovidas pela
universidade perceberam a importância destas”.
Dando continuidade a essa temática, foi perguntado para as funcionárias
técnico administrativas e o diretor da instituição o que significava a adoção de
políticas afirmativas na educação básica, especificamente no CAp. A pedagoga se
declarou favorável à adoção dessas políticas e mencionou a mudança de perfil
dos/as estudantes da instituição:
Eu acho importante... Pelo que a gente percebe, o público do CAp antes era outro,
tinha outro perfil. Então, eles estão tendo contato com outras realidades também.
Pode ser um crescimento para os alunos que já são daqui e uma oportunidade para
aqueles outros que estão ingressando. Porque eu não percebo assim, eu não vejo
diferença na forma de ensinar para os alunos que são cotistas e os alunos que não
são. Então, eles estão tendo as mesmas possibilidades [...] de troca, de se conhecer.

Para a coordenadora do NAPE, a adoção das ações afirmativas no CAp foi


uma decisão que “chegou oficialmente, de cima para baixo” sem a possibilidade de
que houvesse discussão interna sobre a implementação da lei.
A gente tem aqui no CAp, por hábito, discutir tudo, a gente não teve muitas
oportunidades para não dizer nenhuma de discutir isso. A coisa era posta nas nossas
reuniões, eu lembro que em alguns colegiados: “Olha, temos que pensar, as cotas
vão chegar.” Mas ninguém discutia nada sobre cotas. Aí, de repente, a gente
recebeu de cima para baixo. [...] Na minha cabeça e no meu trabalho aqui vejo a
escola assim: acho que nós como uma escola de formação de professores temos
que ter uma educação básica top se não a gente não vai mostrar para ninguém a
realidade que se enfrenta no dia a dia dentro da sala de aula e dentro das escolas de
modo geral. Acho que o quê falta para gente é acreditar que a nossa realidade
mudou. [...] Por que eu entendo, enquanto técnica na escola, enquanto pedagoga,
que compete a nossa escola enquanto uma escola que prepara o professor também
preparar para isso, para a nova realidade que não é a realidade do CAp, é a realidade
da sociedade, está posta.

Esse depoimento revelou que por ser recente a política afirmativa na


instituição ainda precisa de muitas ações para que não fique restrita aos apoios
financeiros, que são, indiscutivelmente, necessários para garantir a permanência
dos/as estudantes, mas que medidas de caráter pedagógico também se façam
presentes. Para Candau (2002b, p. 14), os alunos e alunas cotistas serão capazes “de
alcançar níveis de aprendizagem de qualidade acadêmica” e se tornarão “agentes
sociais multiplicadores quando as medidas socioeconômicas estiverem articuladas
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 207

às medidas de caráter acadêmico com a finalidade de empoderar este grupo de


estudantes tanto pessoal quanto coletivamente”.
A resposta da secretária da escola também seguiu uma linha semelhante a
da coordenadora do NAPE no que dizia respeito à implementação da lei: (i) não
houve discussão interna e (ii) a mudança mais significativa foi aquela relacionada
ao perfil dos/as estudantes.
Para o diretor da instituição, a política de ação afirmativa chegou ao CAp
através da atuação dos movimentos sociais, das pressões sociais. Nesse sentido,
considerou que foi um momento análogo ao processo vivenciado pela universidade:
As pressões sociais vão chegando como ramificações, elas vão penetrando os
espaços vão fustigando os espaços até que elas entram. As minorias ativas, como
diria o Moscovici, vão atuando assim, em determinados momentos elas aproveitam
dos entes políticos, em determinados momentos, elas são aproveitadas pelos entes
políticos e ali tinha muito isso, na questão da UERJ, assim como teve aqui na
questão do CAp.

Além desses aspectos, afirmou que o colégio demorou muito para discutir
como seu processo de seleção para o 6º ano:
O CAp demorou muito tempo a sair da zona de conforto e promover uma discussão
sobre o que era o seu processo de seleção. Por que durante muito tempo também,
o tempo que estou aqui, acho que existia uma questão velada, uma questão pautada
no medo, de que, “será que o quê fazemos antes da política de cotas, é legal? É
ilegal? Será que existir uma separação de vagas para filhos de servidores é legal?
É ilegal? Não vamos mexer nisso, se mexermos vamos perder direitos, como mexer
nisso?” E na verdade a universidade já tinha adotado a política de cotas, e as cotas
já eram uma realidade não para a educação básica, por que eu acho também que
não é só o CAp nessa história, a educação básica ela também está em uma zona,
entre aspas, de conforto desconfortável, e aí no que se mexe, de fato, nessa
estrutura, nesse processo, nesse acesso, nessa permanência, nessas formas. Então
o que acontece, nós demoramos a fazer essa discussão como autores dessa
discussão, e alguém iria fazer.

Nesse momento, relatou que havia acontecido, em 2005 ou 2006, não soube
precisar o ano, na Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Rio de
Janeiro discussões encabeçadas por um grupo de deputados para que fossem
instauradas políticas de cotas para filhos de militares, de oficiais dos bombeiros e
de policiais militares mortos em serviço no CAp como foi acrescentado a lei de
cotas da UERJ em 200796. De acordo com seu depoimento, nessa ocasião um

96
Com a publicação da Lei 5074/07, nos processos seletivos para a UERJ, foram incluídos ao
percentual de 5% para pessoas com deficiência e integrantes de minorias étnicas neste tipo de
cota: filhos de policiais civis, militares, bombeiros militares e de inspetores de segurança e
administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço. (www.uerj.br)
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 208

projeto de lei seria votado na Assembleia Legislativa e englobaria todas as escolas


estaduais incluindo o CAp. Essa inclusão não aconteceu porque o reitor e o diretor
à época, participando das discussões com os deputados, alertaram os mesmos de
que a regulação do processo seletivo se dava por concurso, através de edital
elaborado pela universidade e que, portanto, essa mudança deveria passar pelas
instâncias superiores da UERJ. Outro argumento utilizado foi o de que o CAp não
pertencia à rede estadual embora pertencesse ao sistema.
Posso afirmar com base nos depoimentos apresentados, que os/as quatorze
entrevistados/as são favoráveis à implementação das políticas afirmativas na
educação básica, mas a reserva de vagas mais acolhida por esse grupo de
profissionais foi a cota social seguida daquela que prevê reserva para estudantes
com necessidades educativas especiais. Além disso, esse conjunto de respostas
demonstrou que a formulação da lei não contou com a participação da comunidade
escolar e que as principais inquietações desses/as profissionais giram em torno das
questões relativas à manutenção da qualidade do ensino, às ‘dificuldades de
aprendizagem’ que os/as cotistas poderão apresentar e à permanência desses/as na
instituição, especialmente, no que tange aos aspectos pedagógicos e financeiros.

5.3
Ação afirmativa no CAp: a discussão entre a comunidade escolar

Uma das perguntas feita aos/as entrevistados/as, tanto aos/às professores/as,


quanto às funcionárias e ao diretor do colégio, dizia respeito à participação destes/as
nas discussões sobre a implementação da política de ação afirmativa no CAp.
Dos/as quatorze entrevistados/as, a maioria, treze profissionais, afirmou que não
participou de reuniões em que essa questão tivesse sido discutida pela comunidade
escolar.
No conjunto de professores/as, tanto contratados/as quanto as cinco efetivas,
nenhum/a deles/as participou de reuniões ou mesmo discussões em seus respectivos
departamentos em que a implementação da lei 6434/13 tivesse sido tratada. A
professora Jussara, que pertence ao quadro das efetivas, assegurou que algumas
discussões aconteceram no seu departamento, mas que ela não participou:
Eu estava no olho do furacão, no meio de um monte de coisa, inclusive fechamento
de dissertação e não participei mesmo. Eu lembro que teve [discussões] eu que não
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 209

participei. Não sei como foi conduzido. As coisas eram colocadas no departamento,
nos colegiados. Muitas vezes a gente podia participar do Conselho Departamental
que era coletivo e a chefe levava para essa instância as discussões feitas no
departamento. Então, de uma forma ou de outra foi publicizado, foi divulgado. Eu
que não participei e não posso te dar muitas informações por que realmente eu
estive ausente.

Já a professora Rose, que também pertence ao quadro das professoras


efetivas afirmou que não soube da realização de nenhuma discussão no seu
departamento, mas não tinha certeza:
Será que teve essa discussão no colégio? Eu não participei, mas talvez por que eu
estivesse muito mais envolvida na graduação e só com as turmas de recuperação
que eu focava na questão da formação de hábitos por uma questão minha mesmo.
Pode até ter tido, eu não sei, em nível de coordenadores ou de algumas pessoas que
se interessaram, por que não é obrigado a ir. Eu não me preocupei, larguei para lá,
não soube de nada, e ficou. Mas eu não sei se teve ou se não teve, eu não participei,
por minha iniciativa mesmo.

Por outro lado, asseverou que viu notícias veiculadas na imprensa e


procurou saber o que estava acontecendo.
Eu só vi as notícias veiculadas, pela minha aversão à política, porque já que eu não
entendo eu fujo, [pensei] mas ‘porque eles estão colocando aqui?’ A primeira coisa
que fiz foi procurar saber, na época, se tinha em outros lugares, quem estava sendo
citado para que acontecesse isso e eu não vi muitos lugares. Então por que o CAp?
Por que o CAp tem um ensino bom, é isso?

A professora Rose continuou construindo suas respostas, como nas


perguntas anteriores, tendo como argumento principal a questão de que o “modelo
CAp” fosse implementado em outras escolas da rede estadual e não que o colégio
adotasse as ações afirmativas. Dessa vez foi mais explícita e afirmou que a escolha
do CAp seria por ter “um ensino bom”. Essa é exatamente a questão. O Instituto de
Aplicação é uma escola estadual, pública, considerada de excelência e que
precisava oferecer oportunidade para que um público mais diversificado pudesse
ingressar na instituição. Apesar de contar com o sorteio de vagas no 1º ano do
ensino fundamental e, por essa razão, muitas pessoas considerarem que desse modo
todos os grupos socioeconômicos e étnicos poderiam ser contemplados, o ingresso
de estudantes para o 6º ano só acontece por meio de provas de conteúdo e é sabido
que aqueles/as que se candidatam a essas vagas, geralmente, cursaram o primeiro
segmento do ensino fundamental em instituições particulares ou se prepararam em
cursos específicos para essa seleção. Parece também desconsiderar que a UERJ foi
pioneira numa política que beneficiou um grupo de pessoas que, historicamente, se
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 210

encontrava apartado do acesso ao ensino superior e que, após mais de uma década
da adoção das ações afirmativas, pesquisas de mestrado e doutorado, relatórios
feitos pela universidade comprovam que o desempenho dos/as cotistas não
confirmou o temor de seus/as opositores/as.
As professoras Miriam, Rita e Isabel disseram que não participaram de
nenhuma reunião convocada pela chefia do departamento para discutir a adoção das
políticas afirmativas. Miriam afirmou que não participou de discussão alguma e
também não foi informada sobre o assunto, considerava-se: “Se houve, sou
absolutamente ignorante no assunto”. Em seu depoimento, Rita garantiu que não
teve participação em reunião sobre essa pauta: “Não tive, só ouvi falar. Não
participei de nenhuma reunião nesse sentido”. Porém, a professora Isabel afirmou
que foi “informada de que isso haveria; isso aconteceria; agora nós teremos cota
também para entrada dos alunos no CAp”. No entanto, não deu outros detalhes de
como essa informação foi obtida.
Entre os/as professores/as contratados/as, as respostas seguiram a mesma
tendência, ou seja, todos/as afirmaram que não participaram de discussões em seus
respectivos departamentos sobre a adoção da lei. O professor Mateus fez a seguinte
ponderação:
Não participei de nenhuma discussão, não chegou nenhuma informação mesmo.
Aliás, a falta de informação é comum no CAp. Não tive essa informação, se você
não me falasse eu ia ter passado o ano letivo inteiro com eles, tendo dado aula para
eles, acabado de dar aula para eles e não ia saber disso. Então, eu não sei se é uma
coisa que eu não deveria mesmo saber, que até facilitou meu trabalho, ou se eu
deveria saber. Mas eu soube de outra forma. Não soube que era cota, mas soube
assim: ‘Olha, há alunos com dificuldades’. Então, mas ninguém falou: ‘Olha, tem
alunos com cota que entraram dessa forma’. Ninguém me falou isso, entendeu? Em
nenhum momento teve nenhuma discussão, nenhuma reunião, nenhum debate a
não ser aqueles que a gente travasse dentro da sala de aula mesmo.

Ele apontou que a falta de informação é comum no colégio e chamou a


atenção para o fato de ter sido alertado de que alguns alunos tinham ‘dificuldade’.
Essa questão aparece mais uma vez indicando, no meu modo de entender, que
esses/as estudantes estariam sendo rotulados pelo fracasso escolar. Quanto às
discussões travadas na sala de aula com os/as alunos/as, narrou um episódio em que
um grupo de estudantes perguntou se a expressão favelado/a era um xingamento e
afirmou que essa discussão “durou semanas”. De acordo com seu depoimento,
aproveitou esse momento para refletir com os/as alunos/as sobre conceitos que são
trabalhados no 6º ano de escolaridade, como por exemplo, o conceito de lugar:
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 211

Essa discussão aconteceu dentro da sala de aula e foi muito bom até porque eu
ajudei... Acredito que eu tenha ajudado aquelas crianças que moravam na favela
pela primeira vez a perceber aquilo como uma identidade e não como um
xingamento. Eu falei: ‘Olha, eu sou suburbano. Eu não moro na favela, mas eu
moro em Irajá. Então, eu sou irajaense suburbano e isso não é nenhum xingamento.
Mas se eu morasse na favela, eu poderia dizer que eu moro no bairro da Mangueira,
o bairro é Mangueira, mas eu poderia dizer também que eu moro na favela da
Mangueira e isso não é nenhum problema’. E daí eles começaram a entender que
aquilo era... Dizia respeito a um lugar, às relações que se desenvolvem na porção
mais próxima do nosso convívio, do espaço do nosso convívio e eles conseguiram
criar lá as suas identificações com o lugar em que eles moravam sem criar situações
pejorativas.

Esse professor revelou, no meu modo de entender, estar aberto ao trato de


questões étnico raciais, culturais e socioeconômicas de seus/as estudantes a partir
de uma demanda trazida pela turma, mas trata-se de uma ação individual, não de
uma discussão pedagógica feita pela escola.
A professora Monique também afirmou que não participou de nenhuma
discussão as cotas no CAp, mas que foi informada pela pedagoga do 6º ano e pela
coordenadora do NAPE: “falaram para os professores do 6º ano que isso ia
acontecer, mas, assim: ‘Olha, isso vai acontecer. A gente vai ter que abarcar e
ponto’. Não foi: ‘Ah, vamos ter uma conversa’”.
Já a professora Fernanda informou que entrou no colégio em março de 2014
e que o processo seletivo já havia acontecido, portanto, não soube dizer se houve
alguma discussão anterior, mas após sua entrada não participou de nenhuma reunião
em que esse assunto fosse abordado de maneira oficial. Porém, relatou que ouviu
alguns comentários: “sempre tem as pessoas que concordam que é necessária essa
inserção e tem sempre o grupo dos que não concordam porque acredita que vá
diminuir a qualidade, do ensino não, a qualidade do alunado, não é?” Apesar de
fazer essa afirmação, a professora disse que esses comentários eram feitos na hora
do intervalo e que nenhum professor ou professora se colocou de maneira contrária
a implementação da lei. A questão da qualidade, seja do ensino ou do alunado,
voltou a ser mencionada como em respostas anteriores demonstrando ser essa uma
das preocupações recorrentes quanto à adoção das políticas de cotas.
No grupo dos/as contratados/as, o professor Cauã foi o que mais tempo
trabalhou no colégio e ao responder essa pergunta alegou que esteve fora da
instituição em 2013 porque seu contrato havia terminado, momento em que
considera que as reflexões foram feitas. Ao retornar em 2014, após a implementação
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 212

da lei, relatou que não aconteceram discussões no interior do departamento que


pertencia e acredita “que houve mais um debate entre os chefes de departamentos
com a diretoria. Era um debate mais... como é que eu posso falar? Mais exclusivo
para os coordenadores e para a equipe efetiva do que, realmente, um debate mais
aberto com toda a comunidade escolar”. Também considerou que os debates foram
feitos nos intervalos:
As posições individuais, posições políticas e partidárias individuais [eram
colocadas], mas não, assim, uma assembleia para mostrar o que tinha mudado ou
não. Eu acho que o CAp, como eu falei antes, dá muita liberdade ao professor e por
ser um colégio com certos problemas estruturais de contratos, de mudanças de
professor, eu acho que não houve nem tempo para que a diretoria, o Núcleo
Pedagógico, a secretaria fizessem um debate como esse. O colégio estava sempre
tentando apagar fogueiras: chama contrato, faz concurso, não tem aula, vai entrar
em greve, então foi assim, o ano foi bem complicado...

Cauã enfatizou que os/as profissionais possuem “muita liberdade” para


expressar suas opiniões, pontos de vista, mas, ao mesmo tempo, justificou a
ausência de debates sobre a adoção da lei alegando que as dificuldades estruturais
do colégio ocupariam de maneira demasiada as ações desempenhadas pela gestão
da instituição. Considero que as dificuldades mencionadas complexificam ainda
mais o bom andamento do colégio, porém, por se tratar de uma temática que traria
novos desafios para docentes, discentes, inspetores/as, profissionais técnico
administrativos/as deveria ter sido priorizada e amplamente discutida entre e com a
comunidade escolar.
A professora Flávia também afirmou que não sabia da implementação da
lei, que estava sendo informada sobre isso no momento da nossa entrevista e que
talvez possa ter recebido alguma mensagem eletrônica sobre esse assunto: “pode
ser que isso tenha sido uma falha minha. Não vou dizer que isso foi porque o CAp
não informou não, porque o CAp zilhões de emails e nem todos você consegue ler
e acompanhar”. Porém, assim como os/as professores/as anteriores assegurou que
não houve uma discussão chamada pela direção ou mesmo dentro de seu
departamento sobre essa temática, apenas conversas informais entre os/as docentes:
“a gente discutia informalmente entre a gente, mas não especificamente sobre essa
política aí que você está me dizendo. A gente discutia sobre alunos específicos que
a gente sabia que estavam ali por cota ou até que a gente sabia que tinha alguma
deficiência”.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 213

Como é possível perceber pelos depoimentos, tanto das professoras efetivas


quanto dos/as contratados/as, a temática da implementação da lei 6434/13 não foi
debatida de maneira aprofundada. Vários aspectos foram elencados para justificar
a ausência desse debate, mas o que ficou evidenciado foi que a instituição não
promoveu uma discussão oficial.
A mesma pergunta foi feita para as funcionárias técnico administrativas e as
respostas são semelhantes às apresentadas pelos/as professores/as. A pedagoga do
6º ano informou que chegou ao colégio em meados de 2013, portanto, não soube
dizer se aconteceu alguma discussão no primeiro semestre desse ano. Relatou que
participou de algumas conversas internas no NAPE feitas entre os/as pedagogos/as
e as assistentes sociais da instituição à época. Mais uma vez apareceu a afirmação
de que as discussões foram internas, que ficaram restritas a determinados setores e
profissionais da instituição não havendo um debate amplo sobre a adoção de tal
política. A pedagoga mencionou quais eram as inquietações das assistentes sociais,
mas não detalhou quais as questões pedagógicas foram discutidas entre os/as
pedagogos/as que atuariam com esses/as estudantes nos anos de escolaridade que
previam o ingresso pela reserva de vagas.
A resposta da coordenadora do NAPE, à época, foi semelhante. Para ela, a
lei “chegou à instituição de cima para baixo”. Afirmou que não participou de
nenhuma discussão que “envolvesse a comunidade escolar como um todo”. No
entanto, citou a realização de “discussões que eram postas, poucas reuniões de
colegiado em que éramos alertados para a chegada das cotas que já eram uma
realidade na universidade, mas enquanto equipe de trabalho a gente nunca sentou
para discutir isso, que seria bom, que não seria bom, como deveria ser como não
deveria ser; eu nunca participei dessas discussões”. Complementando sua resposta
informou que “houve um grupo de pessoas da escola que foi sim à ALERJ, na época
da aprovação [da lei], mas uma comissão que fosse feita e sentasse para discutir
isso eu não participei”. De acordo com seu depoimento, esse grupo não deliberou
sobre a lei, mas esteve presente no momento de sua votação: “houve uma
representação da direção da escola, uma representação de alunos, eu acho que
professores também estiveram lá, mas eu, na época, não participei”.
A secretária do colégio também informou que não participou de nenhuma
discussão mais ampla: “Não, por isso, que eu te disse da falta de informação da
gente”. E acrescentou que se aconteceram reuniões essas ficaram restritas a um
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 214

grupo específico: “Não sei se isso aconteceu. Juro que eu não sei. Se aconteceu foi
um grupo que não, aí já vem a discriminação, que não colocou o técnico junto,
vamos dizer assim. Ficou entre docentes mesmo, pedagógico, mas técnico do baixo
escalão [risos], vou dizer assim, não foi envolvido na história”. Também considerou
que a lei chegou de cima para baixo na instituição e relatou, nesse momento, que
sempre fez parte da banca administrativa dos processos seletivos para o CAp, mas
que nos anos de 2014 e 2015 não teve a mesma atuação: “A gente sempre está junto,
mas esse... e geralmente, a gente fazia os editais. Esses dois últimos editais a gente
não participou dessa parte, entendeu? A divisão das vagas, por que tem a lei, tantos
por cento para isso, tantos por cento... até por que esse [de 2014] tem uns
pormenores, então foi feito pela direção da unidade mesmo, entendeu?” Informou
ainda que os editais são elaborados pela direção do colégio e encaminhados para o
Sistema de Administração de Concursos (DSEA) da universidade e também para a
Diretoria Jurídica da UERJ (DIJUR) que fazem a análise jurídica do documento e,
caso seja necessário, apontam as modificações que deverão ser feitas até que o edital
possa ser publicado.
Apenas o diretor da instituição soube dar detalhes de como se deu o processo
de elaboração da lei, quais foram os grupos que participaram dessa discussão, mas
deixou claro que o colégio só se aproximou mais da temática depois que o texto da
lei já estava pronto, portanto, a participação da comunidade escolar aconteceu de
modo tímido:
Na verdade a unidade foi chamada para discutir sobre o leite derramado,
objetivamente, discutir sobre uma lei muito mal feita, muito mal esboçada, muito
mal costurada, que nem era, talvez, para ser uma lei que incluísse a unidade, mas
alguém deve ter se lembrado do CAp, das escolas de excelência e colocou as
FAETEC, fez um texto para as FAETEC e, de repente, bolou um arremedo de
projeto de lei para o CAp que seria votado com enormes problemas de texto, com
enormes descaracterizações da unidade. A gente teve um espaço somente de entrar
para o debate sobre essas descaracterizações, e não sobre a essência da política
afirmativa que estava sendo proposta, essa é uma grande questão que hoje eu reflito
muito melhor sobre ela do que naquele momento.

O depoimento do diretor confirmou o que outros/as profissionais haviam


revelado que a lei chegou à instituição de cima para baixo, não foi uma construção
que contou com a participação da comunidade escolar. Apesar dessa afirmação, já
havia declarado que o movimento negro atuou diretamente nas discussões que
antecederam a elaboração da lei, no entanto, afirmou que “o projeto de lei veio com
mensagem do governador. É lógico que as lideranças do governo na época
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 215

compraram o projeto, a própria Comissão de Educação da ALERJ não teve como


se posicionar contrária, foi uma votação, se não me engano, unânime da comissão
de educação. Embora de forma bem dialogada, mas foi uma votação unânime”.
Entretanto, afirmou também que o reitor foi chamado em diversos
momentos para participar de discussões na Comissão de Educação sobre esse
projeto de lei e que em uma dessas vezes manifestou-se favorável a adoção da
política afirmativa no CAp:
Sem ter consultado a unidade, o Conselho Superior de Ensino Pesquisa e Extensão
(CSEPE), o Conselho Universitário (CONSUN), ele se apresentou como reitor e
falou como professor. Uma fala inclusive interessante do ponto de vista histórico,
no meu entendimento, , alguém que se apresenta depois de ser convocado para
várias outras discussões temáticas, como reitor e nunca foi e se apresenta como
reitor, mas fala como não sendo reitor, numa discussão como essa sobre uma
política, fala: ‘a minha opinião, no meu entendimento’, descola a figura
institucional, o poder institucional da sua função.

Para o diretor, ao fazer esse posicionamento pessoal o reitor teria dado a


entender que o colégio era contrário à aprovação da política, mas continuou
argumentando que “a contrariedade da unidade estava relacionada à forma como se
materializou, que era muito mal feita, que geraria problemas exatamente para
aqueles que seriam os beneficiários da própria política, como gerou e como, de
alguma forma, ainda gera”.
Ao ser questionado sobre a participação dos/as docentes nas discussões
internas sobre a adoção da lei no CAp, o diretor respondeu:
Olha, foi uma participação muito esparsa. Eu vou lhe dizer que ainda hoje existe
um receio em emitir determinados posicionamentos sobre essa questão, no meu
entendimento. Receio de coletivos, mesmo de individualidades fortes, acho que
existe um receio em se posicionar com argumentos sobre essa questão. E naquele
momento não ficou muito diferente disso não, ‘devemos ser contra?’; ‘devemos ser
a favor?’; ‘como nos posicionar?’. Então havia uma situação difusa em relação à
questão. Então quando a gente leva o questionamento, a gente leva um
questionamento muito mais de forma que de conteúdo.

Ele afirmou ainda que a escola promoveu debates sobre a implementação da


lei na instituição:
A escola sempre organizou alguns momentos de debate, alguns colegiados, eu me
lembro, na época, discussões de Conselho Departamental, análise sobre os
documentos legais, documentos que a gente emitiu como resposta à ALERJ, ao
governo do Estado, alguns pais se posicionando na imprensa contra e a favor,
sempre em uma discussão muito dual, muito dicotômica, dos contra e dos a favor.
Mas, eu posso lhe dizer... [pausa] eu entendo que a unidade não estava preparada
para fazer essa discussão, por que ela não queria fazer essa discussão. A unidade,
no meu entendimento, não queria fazer essa discussão. E aí eu acho que ela de
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 216

novo, mais uma vez, abriu mão de um protagonismo que deveria ter exercido antes,
e a gente vinha conversando, a gente já vinha conversando isso em 2012, de mudar
o processo de acesso ao CAp, de mexer no processo de acesso ao CAp.

Ao afirmar que “a escola sempre organizou alguns momentos de debate” o


gestor colocou em xeque os depoimentos dos/as demais entrevistados/as para essa
pesquisa que revelaram não ter sido convocados/as para discussões oficiais
promovidas pela instituição. Em outro momento da entrevista, admitiu que a
direção apresentou as questões para a comunidade escolar, mas, nem sempre,
obteve o retorno ou mesmo a garantia da continuidade das discussões: “Na verdade,
o que eu vou falar aqui não é nada simpático, mas a direção da unidade traz as
questões, ela mostra, às vezes, o tamanho daquilo e, supostamente, ela delega às
chefias de departamento para que elas promovam aquelas discussões internamente.
Seja por excesso de trabalho, seja por falta de interesse, vou usar essa expressão,
muitas das discussões não são travadas”.
Com relação a modificar o processo de acesso ao CAp, o diretor estava se
referindo ao 6º ano de escolaridade e relatou o que poderia ter sido uma
possibilidade de mudança que se anteciparia a chegada da lei:
A gente queria mexer um pouquinho nesse processo de acesso, talvez até quebrar
com a lógica das provas, do chamado vestibulinho ou dessas provas de acesso e
criar uma espécie de exame balizador e a partir daquele exame balizador ter uma
proposta de sorteio, como acontecia se não me engano, na UFRJ, fazer algo
parecido a isso, com a nossa cara. Mas nós fomos atropelados, nitidamente
atropelados. Primeiro demoramos a fazer essa discussão, e aí surgem as situações
de ‘por que fazer assim?’; ‘fazer assim como?’; ‘vai cair a qualidade?’; ‘não vai
cair a qualidade?’, ‘como será a qualidade?’; ‘quem estará entrando?’. Eu me
lembro de que muitas das vezes tive que me posicionar dizendo assim: ‘Eu não
estou entendendo qual é a qualidade a qual a gente está preso, porque daqui a pouco
virão coisas que podem passar pela gente e exigir o fim desse processo seletivo
como a gente tem para outra fórmula absolutamente diferente’.

Mais uma vez, as questões da qualidade e do mérito aparecem nas


discussões sobre o acesso de estudantes a instituição como preocupação central. Por
outro lado, o diretor lembrou que a lei não elimina a meritocracia:
Mais interessante é que a política de cotas não propõe isso [o fim da meritocracia],
ela mantém o processo seletivo baseado no mérito, relativiza o mérito, é verdade,
mas mantém o processo baseado no mérito e, portanto, aquela outra face que podia
estar sendo posta, que era uma universalização através do sorteio, desde que as
pessoas cumprissem um mínimo de desempenho que os tornasse, entre aspas, aptos
a participarem do processo, ela é abandonada. Na verdade, não é mais discutida
hoje, não está sendo mais discutida, talvez precise ser discutida, talvez seja um dos
próximos pontos que a gente tenha que discutir na política de acesso real à
instituição.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 217

Como ressalta Guimarães (1997, p. 238): “ela [a ação afirmativa] é, em certo


sentido, uma defesa da legitimidade do mérito e uma tentativa de livrá-lo da
contaminação de acidentes raciais, étnicos ou sexuais; sua virtude está em procurar
evitar que mecanismos meritocráticos acabem por concentrar no topo indivíduos de
uma mesma raça, etnia ou sexo”. O que temos visto, historicamente, em nosso país
é a concentração de indivíduos da população branca e de maior poder aquisitivo no
topo dos processos seletivos para os vestibulares e outras instituições consideradas
de prestígio social preenchendo as vagas desses estabelecimentos. As políticas de
ação afirmativa vêm, desde o início dos anos dois mil, procurando atenuar essa
condição e todos/as os/as candidatos/as que ingressam ou já ingressaram pela
política de cotas são submetidos/as a um processo seletivo concorrido para que
possam conquistar essas vagas. Não há, portanto, nenhuma benesse do estado ao
adotar as ações afirmativas, mas a possibilidade de distribuição mais equitativa das
oportunidades.
Ficou evidenciado pelas respostas dadas pelo diretor que a gestão da
instituição esteve mais envolvida com a temática e que os demais grupos da escola,
desde os/as docentes, contratados/as ou mesmo efetivos/as, até os/as responsáveis
pelos/as estudantes tiveram participação esparsa nas discussões promovidas sobre
a adoção das políticas afirmativas no CAp. No entanto, a necessidade de promoção
desse debate continua sendo premente, uma vez que, a comunidade escolar não foi
envolvida nesse processo.

5.4
Riquezas e dificuldades na adoção das ações afirmativas

Finalizando as entrevistas, pedi aos/às professores/as, funcionárias e ao


diretor que me dissessem quais eram os elementos enriquecedores e as dificuldades
da adoção das políticas de ação afirmativa no CAp. Nesse item, apresentarei,
primeiramente, o que consideraram como enriquecedor e, em seguida, os aspectos
que foram elencados como dificuldades e algumas possibilidades de superá-las.
Com relação aos elementos enriquecedores, as respostas foram variadas, mas foi
possível identificar, através dos depoimentos, que para todos/as eles/as esta
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 218

experiência trouxe contribuições para o colégio, para docentes, discentes e os


demais atores da comunidade escolar.
No que se referem às contribuições trazidas, as três funcionárias técnico
administrativas citaram: (i) os ganhos que os alunos e alunas que já estudavam no
colégio e aqueles/as que estavam chegando terão a partir dessa convivência; (ii) a
possibilidade de o colégio se inserir dentro da realidade social vivida; (iii) a
oportunidade que a política afirmativa dá às pessoas de igualdade de acesso a uma
escola de qualidade; (iv) a humanização dos profissionais da instituição.
Para a pedagoga do 6º ano o principal elemento enriquecedor diz respeito à
possibilidade de troca entre os/as estudantes e também entre eles/as e os/as
professores/as: “Uma boa oportunidade é essa troca entre os alunos do CAp e os
alunos que estão entrando, a oportunidade que os alunos estão tendo e aproveitando
também e o que eles estão passando para os professores. Os professores também
estão tendo contato com alunos com outra realidade de vida, com outra experiência
de vida e isso para mim não tem preço”.
Continuou desenvolvendo sua resposta e enfatizou que a vivência desses
momentos por parte dos/as professores/as dependeria de cada um individualmente
e também da situação apresentada pelo/a aluno/a:
Dependendo do professor também e da situação. Porque, às vezes, a realidade de
vida do aluno acaba repercutindo em algumas atitudes do aluno em sala de aula e
acaba prejudicando também, entendeu? Então isso já é um aspecto negativo, mas
isso sendo aluno cotista ou não, mas a gente percebe que o aluno cotista não só por
esse corte racial, mas pela condição socioeconômica, está tudo atrelado, então ele
já vem de outra realidade. Só para passar uma situação: uma aluna nossa, ela tem
um comportamento muito alterado, alterado não, agitado e tudo, alguém fala uma
coisa ela já quer fazer escândalo e tudo, no início era assim. Aí depois que a gente
foi conversar, conversei com a mãe dela, aí a mãe dela me passou que ela estava
muito agitada naquele período, naquele dia, que foi quando elas tinham chegado a
casa e tinham invadido a casa delas, que elas moravam numa comunidade. Então,
a gente vai vendo isso com outro olhar. E quando a gente conversa com o professor
que viu essa alteração e conversa com ele, pontua essas situações ele já para e:
‘Nossa, aconteceu isso?’ Por que não é comum acontecer algo desse tipo com o
aluno CAp. Então, assim, é outra realidade que está vindo para a escola.
Provavelmente, em alguns momentos, eu acredito que daqui pra frente o professor
vai ter que rever também a sua forma de ensinar em alguns momentos, isso vai ser
necessário, mas não pelo aluno ser incapaz, não conseguir, mas a vida dele foi
construída de uma determinada forma e não tem como colocar ele dentro de uma
caixinha. Então, acho que é enriquecedor por que vai exigir do professor do CAp
uma outra postura daqui pra frente.

Esse depoimento valorizou a convivência entre pessoas, tanto alunos/as


quanto professores/as, de extratos sociais diferenciados, mas no exemplo citado,
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 219

fica evidente que o tratamento da ocorrência fica a cargo de cada docente, da


tomada de decisão sobre como vai administrar as situações com os/as estudantes.
Outro aspecto mencionado diz respeito à necessidade de mudanças na forma de
ensinar, no fazer docente, mas não foi citada nenhuma proposta de como os/as
professores/as poderiam promovê-las e tampouco como o Núcleo Pedagógico
poderia atuar nesse sentido.
A coordenadora do NAPE também mencionou em seu depoimento a
questão da realidade social dos/as estudantes que ingressaram após a adoção das
políticas afirmativas.
A grande vantagem que eu vejo é que a gente se insere dentro da realidade social
que a gente vive. A gente hoje não pode dizer que este aluno, como a gente ouvia
a alguns anos, que esse aluno não tem perfil para o CAp, porque a escola está aberta
para todos. Tanto está que está posto aí, você não tem como escolher se você vai
receber o fulaninho porque ele tem uma paralisia, se você vai receber porque ele
mora não sei onde, estamos inseridos dentro do contexto que a gente vive na nossa
sociedade. Acho que isso é uma coisa extremamente positiva.

Citou também a possibilidade do colégio cumprir seu papel social:


Outra coisa que para gente vai ser muito positiva é que a gente vai poder, pelo
menos, trabalhar para cumprir o nosso papel. Por que qualidade com clientela
elitizada é muito bom. Qualidade com uma escola aberta para todos é difícil pra
caramba. Então, para mim, isso é o que vai existir de mais positivo. O dia que a
gente puder ter certeza de chegar num auditório, num seminário, numa
apresentação de trabalho e dizer: “Olha, a gente trabalha com essa política de fato”.

Nesse depoimento as questões do atendimento a uma “clientela elitizada” e


à manutenção da qualidade de ensino reaparecem. Sobre esse último aspecto,
pesquisas realizadas por Paiva (2013, 2010) e Valentim (2005, 2012), que tratam
da implementação das ações afirmativas no ensino superior demonstram que a
entrada de grupos socialmente marginalizados em seus cursos não interferiu na
qualidade do ensino ofertada por essas instituições.
Para a secretária do colégio o aspecto mais positivo dessa experiência diz
respeito à oportunidade que as ações afirmativas dão às pessoas de igualdade de
acesso a uma escola de qualidade, considerada de excelência. De acordo com seu
ponto de vista, além disso, os/as profissionais do colégio ficarão mais
humanizados/as:
Vantagem é a oportunidade que você dá às pessoas de igualdade. Isso eu acho, a
igualdade para todo mundo. Acho também que vai enriquecer todo mundo porque
a gente nunca trabalhou com esse público. Eu acho que pra gente que está saindo,
eu que estou quase me aposentando, está me ajudando, mas acho que para quem
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 220

está entrando, os novos, isso vai enriquecer muito. Eles [novos professores] estão
vindo com outra cabeça, entendeu? Uma cabeça mais humana, um pessoal mais
novo, mais politizado, coisa que a gente também não era. A gente está aprendendo
com eles, vamos dizer. Vai mudar a cultura do CAp, vai mudar o perfil da pessoa.
O ser humano aqui dentro eu acho que vai melhorar um pouco. Ele não vai ser tão
elitizado como é.

Em seu depoimento, o diretor também citou a questão da mudança do perfil


da escola, foi bastante sucinto em sua resposta e afirmou que a principal
contribuição seria “a quebra de uma mística de que isso aqui era uma escola de elite
para elite. Acho que essa quebra da mística era necessária para o CAp. No meu
entendimento, muitas pessoas vão discordar disso”.
Nesses depoimentos, duas questões são ressaltadas: a igualdade e a cultura
da escola. No que se refere à igualdade recorro à definição de Gomes (2002) que
enfatiza que o papel principal das políticas afirmativas é o de consolidar a noção de
igualdade material de modo que possa garantir a neutralização dos efeitos da
discriminação racial, de gênero, de idade, entre outras, indo além da concepção
estática de igualdade formal preconizada pelo estado liberal. Quanto à cultura da
escola, é importante lembrar que esta instituição deve ser reconhecida como um
espaço sociocultural, que tem e desenvolve sua própria cultura e esta se relaciona
com aquelas trazidas pelos/as alunos/as. Desse modo, a escola precisa
“desnaturalizar certas ideias e concepções bastante enraizadas e ainda
predominantes acerca das normas, das práticas e dos saberes que dão forma à vida
escolar” (Candau, 2002a, p. 27), procurando trabalhar as diferenças culturais de seu
alunado.
O aspecto comum entre os quatro depoimentos foi a questão da diferença
socioeconômica e cultural que os/as cotistas ‘trouxeram’ para o colégio. Porém, em
muitas declarações apresentadas anteriormente, alguns/mas entrevistados/as
afirmaram que o CAp não precisaria de cotas por já contemplar através do sorteio
de vagas no 1º ano de escolaridade uma população diversificada, mas, nos relatos
apresentados nesse momento das entrevistas ficou patente que o público da
instituição era considerado como elitizado.
Para os/as professores/as entrevistados/as, tanto contratados/as quanto as
efetivas, as respostas também foram variadas e podem ser agrupadas de acordo com
alguns aspectos principais e que se assemelham ao grupo anterior: (i) as questões
relativas à diversidade e heterogeneidade social, racial e econômica dos grupos que
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 221

foram beneficiados pela política afirmativa; (ii) a oportunidade que o Estado está
proporcionando às pessoas de terem acesso a uma escola de qualidade; (iii) a
promoção da interação entre estudantes de universos sociais distintos; (iv) a política
afirmativa adotada no CAp, ainda que de maneira parcial, poderá favorecer a
discussão sobre cor e raça.
Sete entre os/as dez professores/as entrevistados/as, construíram suas
respostas tratando das questões relativas à heterogeneidade e diversidade do grupo
de estudantes que ingressou pela reserva de vagas raciais:
Enriquecedor é o aumento ainda maior da diversidade dos alunos. Aumenta de
certa forma para os alunos que não são cotistas, a importância disso, a importância
de você ter, entrar em uma sala de aula que tenha brancos, mulatos, negros, índios,
especiais. Eu acho que isso vai gerar, ainda mais no CAp, uma percepção para os
alunos de que a diversidade é importante. E isso para mim, talvez, seja o principal
ponto em questão, não como você entrou, de onde você veio se foi por cota ou não.
Eu acho que quando começa o ano letivo isso é um pouco esquecido e eu acho que,
no caso, o grande benefício é a valorização da diversidade cultural, sociocultural,
no caso, disparadamente. (Professor Cauã)

Acho que tem um crescimento social aí por trás disso que não tem como você
negar. As pessoas aprenderem a conviver com uma realidade diferente, entenderem
que existem realidades e contextos diferentes, pessoas com históricos diferentes e
qualidade de educação familiar, e etc, diferentes. Então, isso eu acho que é
enriquecedor. Essa heterogeneidade é enriquecedora, mas eu acho que ela precisa
ser orientada, ela precisa ser trabalhada, esse é o ponto. Mas como é um processo
que está começando agora é um processo que ainda está em aprendizagem, um
processo que ainda demanda muitas mudanças, ainda demanda muitos ajustes.
(Professora Flávia)

De vantagem, a inserção dessas pessoas em um ensino público de qualidade, que é


algo que é raro. Outra vantagem que eu vejo é que as turmas, em questões raciais,
sociais... É legal por que as turmas não ficam homogêneas, nesse sentido. Você
entra em um cursinho mais caro e você vê todo mundo branco com boa situação
financeira. A turma, em geral, é homogênea. Então, a cota ela possibilita isso, essa
coisa de ser heterogêneo. E eu acho que isso é positivo para a formação dessas
crianças que vão crescer com esse mundo heterogêneo e vão achar isso normal.
Que é o nosso problema, a gente vê um monte de adulto que acha anormal, não é?
Então, isso é positivo. (Professora Fernanda)

A professora Rose afirmou que “a parte boa é que sempre que você traz
diversidade, coisas diferentes, para qualquer grupo, isso é enriquecedor. Então,
mesmo que a gente tivesse o mesmo sistema de entrada, que fosse concurso até lá
no 1º ano, o vestibulinho, que tivesse o mesmo sistema, que entrasse essa elite e
viesse essa cota, a questão da diversidade acho importante”.
A professora Rita também utilizou o argumento da diversidade, a
possibilidade de convívio entre os/as estudantes ingressantes e os/as alunos/as que
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 222

já estavam no colégio e a oportunidade que esses/as estão tendo de adentrar uma


escola de qualidade. Mais uma vez mencionou que o trabalho realizado pelo CAp
deveria ser expandido para todas as escolas das rede estadual e municipal:
Vejo duas coisas. Primeiro, mesclar as classes sociais, elas interagirem mais, eles
terem desde cedo contato uns com os outros. E também uma oportunidade de se
oferecer uma educação de qualidade. Pena que é só um CAp. Da mesma forma que
a gente está trazendo os cotistas para cá e dando uma oportunidade para eles de
terem uma educação de excelência, de qualidade, porque não se leva um projeto
político pedagógico como o do CAp para as redes? Isso que me incomoda. Por que
isso não vai, por que não se faz isso para as redes? E não era isso que eu via quando
eu trabalhava no município. Isso é que me incomodava. Então, eu acho que o bom
é isso. É deixar de segregar o povo. Eu acho que é por aí, não segregar tanto,
diminuir a segregação. Nós temos que conviver uns com os outros, e não temos
que ter um contra o outro. Achar que aquele que tem mais condição é seu inimigo,
não pode ser assim. Então, acho que é por aí. Acho que são duas coisas importantes:
a convivência, a interação entre eles, diferentes camadas sociais e diferentes
histórias de vida, e poder oferecer uma educação de melhor qualidade. Só que eu
acho que não pode ser só num Colégio de Aplicação, acho que tinha que ser em
nível de Brasil, nível de rede. Acho que é por aí.

No depoimento da professora Isabel a diversidade voltou a aparecer como


argumento recorrente, porém, mencionou a necessidade de o colégio não ficar
apenas utilizando a retórica da importância da diversidade, da diferença, mas que
essas pudessem ser vivenciadas no cotidiano escolar:
Acho que a gente está vivendo hoje um momento social de diversidade, de
aceitação daquele que é diferente de nós, seja pela orientação sexual, religião, raça
ou questões econômicas. Isso tem sido muito discutido e tem sido muito
apresentado, na mídia, nas novelas, no Big Brother, em tudo. Então, acho que a
escola precisa refletir essa diversidade. Não tem sentido a gente ter uma escola
pública, uma boa escola, com profissionais excelentes, se a gente só quer manter
esse nível de excelência com os excelentes. Acho que uma escola de excelência
precisa também trabalhar com quem não é tido como excelente. Então, eles
precisam entrar. A gente precisa mostrar que a gente também pode trabalhar com
diversidade aqui. Porque falar sobre a diversidade, ler sobre a diversidade é uma
coisa e vivenciar isso é outra coisa. Então, é preciso que a gente tenha acesso a isso.
E, nós, professores, também aprendemos muito com isso, que é trabalhar com
aquele que não é... Que a gente não espera muito dele e que ele pode chegar lá.
Então, trabalhar com aquele que já sabe, é muito mais cômodo, é mais fácil, mas
trabalhar com aquele que apresenta dificuldades, que tem uma vida difícil, que tem
um histórico de vida complicado é desafiador, e acho que é o nosso papel, é nossa
obrigação social também.

Todos esses depoimentos ressaltaram a importância da diversidade


sociocultural no colégio, o convívio, a interação entre grupos sociais distintos. Há
o reconhecimento dessas diferenças, mas só isso não é suficiente. Candau (2012b,
p. 92-93) afirma que nos estudos realizados pelo GECEC, as evidências empíricas
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 223

da dificuldade de se lidar nas práticas educativas com as diversas manifestações da


diferença, de gênero, étnicas, de orientação sexual, entre outras, são recorrentes.
Por outro lado, esses mesmos estudos “têm identificado progressivamente uma
maior sensibilidade para a temática da diferença, porém, traduzi-la nas práticas
cotidianas continua sendo um grande desafio”.
Candau (2012b, p. 102) apresenta dados de quatro pesquisas realizadas pelo
GECEC e conclui que:
Foi possível detectar germens de práticas educativas mais sensíveis às diferenças
que emergem com cada vez maior força e visibilidade no cotidiano escolar. No
entanto, convém ter presente que ainda é recorrente uma visão da diferença
relacionada com a questão do déficit de aprendizagem, com forte ancoragem em
aspectos psicológicos, assim como articulada ao nível socioeconômico dos alunos
e alunas. Consequentemente, a diferença é vista como um problema a ser superado.
A lógica homogeneizadora, por sua vez, é identificada como predominante na
cultura escolar e reforça esta perspectiva. Cabe à escola viabilizar a superação das
diferenças e garantir o padrão comum estabelecido para todos e todas. No entanto,
este padrão não é, em geral, posto em questão, problematizado, desconstruído e
reconstruído no sentido de incorporar em sua própria concepção o reconhecimento
das diferenças.

Para a professora Jussara, o principal elemento enriquecedor dessa


experiência diz respeito ao fato de “o Estado através de uma de suas instituições
estar tentando dar chance para essas pessoas, tentar resolver questões que não foram
resolvidas lá atrás com essas novas gerações agora, é válido sim.” Porém,
manifestou uma preocupação com o que qualificou de “tudo que é muito de graça,
às vezes, as pessoas não dão muito valor, não é?” Relatou que no dia em que
realizamos a entrevista havia entregado o material de desenho para os/as estudantes
bolsistas e cotistas, que a escola estava provendo essa necessidade, mas que as
famílias precisavam ser conscientizadas do que significava a oportunidade de estar
no colégio: “Está aqui, aproveita essa chance que está sendo dada. Faz tudo o que
você puder. Mas também não sei se isso é um pensamento meu, não é? Porque
muitas oportunidades dadas, eu sempre fui muito atrás das minhas coisas e todas as
vezes que as chances apareceram eu falei: ‘Não, vamos aproveitar, vamos
aproveitar’. Mas isso acho também que tem a ver com educação”.
Jussara acrescentou que o CAp, direta ou indiretamente, sempre contemplou
a entrada de estudantes de contextos socioeconômicos diversos através do sorteio
para o 1º ano do ensino fundamental. E concluiu afirmando que “a cota não tem que
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 224

ser só uma política afirmativa, a cota tem que estar dentro da gente, atitude de
acolher e de tentar ajudar de alguma forma”.
Em seu depoimento, o professor Mateus afirmou que o elemento
enriquecedor seria o favorecimento da discussão sobre raça e cor no colégio, mas,
ao mesmo tempo, revelou sua preocupação com a possibilidade de que a adoção
das ações afirmativas no CAp possa ficar restrita à questão retórica porque, no seu
ponto de vista, a principal discussão que precisa ser feita no colégio não está
acontecendo, vem sendo escamoteada.
Eu vejo uma política quase retórica por que ela está cumprindo uma ideia de uma
ação afirmativa e tudo, mas as discussões, as discussões certas não estão sendo
feitas, efetivamente, que é essa discussão por que ninguém quer tocar nesse ponto.
Por que ninguém quer tocar que os alunos negros não estão passando do primeiro
ano do ensino médio. Tudo bem, a gente vai começar a ver isso daqui talvez seis
anos por que se começou ano passado daqui seis anos nós teremos um
distanciamento maior para acompanhar os resultados. Mas eu não tenho uma visão
muito otimista em relação a essa política de cotas no sentido de: ‘Ah, então tá.
Então daqui a seis anos nós teremos mais de um aluno negro no terceiro ano do
ensino médio com condições de estudar e entrar na universidade’. Não, enquanto
não forem feitas discussões dessa natureza eu não sei se a coisa vai evoluir
efetivamente. Porque o racismo no Brasil, ele é muito estranho e a gente tem um
tipo muito particular de racismo que é o racismo do outro. As pessoas negras não
estão vendo, na sua maioria, que estão sofrendo preconceito e as pessoas racistas
não estão vendo que estão sendo racistas. Então, é sempre o outro. E aí desse tipo
de racismo se desenvolveu uma ideia que a gente não discute a questão por que ‘o
racismo não é meu, é do outro’; então essa questão não é muito debatida
efetivamente. Como ‘olha, vamos encarar que existe um racismo no Brasil. Vamos
encarar que só tem uma aluna negra no 3° ano do ensino médio do CAp em 2015?
E tem um montão no 6° ano? E tem um montão preso no caminho aí que não passa
um ano e é jubilado, aí reprova três anos seguidos’. É uma pesquisa que é muito
fácil de você identificar quem são os alunos que estão sendo jubilados do
CAp/UERJ. Ou quem são os alunos que são reprovados, que estão ficando
reprovados dois três anos. Eles são negros, eles são negros em sua grande maioria.
E aí se não discutir isso... eu passei um ano inteiro lá dando aula e não teve
nenhuma discussão sobre isso. E eu vivi o CAp, eu posso dizer que ano passado eu
fiquei no CAp três dias e, às vezes, eu ainda ia outro dia extra. Eu ficava lá o dia
inteiro. Não teve o risco de essa discussão ter acontecido e eu não saber, de não ter
sabido.

O depoimento desse professor toca em aspectos importantes na discussão


sobre as relações raciais e ressalta o que Santos (2007) nomeia como racismo sem
auto-identificação ou auto-reconhecimento, ou seja, discrimina-se os/as negros/as,
mas essa prática é reconhecida nos outros.
A indiferença moral em relação ao destino social dos negros é tão generalizada não
ficamos constrangidos com a constatação das desigualdades raciais brasileiras.
Elas não nos tocam, não nos incomodam, nem enquanto cidadãos que exigem e
esperam o cumprimento integral da Constituição Brasileira. É como se os negros
não existissem, não fizessem parte nem participassem ativamente da sociedade
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 225

brasileira. A “invisibilidade” do processo de discriminação racial reaviva o mito da


democracia racial brasileira impedindo uma discussão séria, franca e profunda
sobre as relações raciais brasileiras. [...] Aliás, a negação da existência dos negros
ou, se se quiser, a sua desumanização, é da essência do racismo. E é essa negação
dos negros enquanto seres humanos que tem nos “anestesiado” quanto às
desigualdades raciais (SANTOS, 2007, p. 16)

Para Mateus, essa discussão precisa ser pautada pelo colégio: “a presença
de alunos cotistas negros dentro da UERJ, dentro do CAp/UERJ é um ponto que
estimula esse debate, mas o debate não vai surgir sozinho, o próprio colégio tem
que criar instâncias para que essa discussão aconteça”.
No que diz respeito às dificuldades relativas à adoção das cotas raciais no
CAp, as respostas dos/as entrevistados/as, tanto dos/as professores/as,
contratados/as e efetivas, quanto das funcionárias técnico administrativas e do
diretor da instituição referem-se a: (i) a continuidade da política no tocante às
dificuldades pedagógicas que os/as estudantes possam apresentar para que tenham
êxito em sua trajetória escolar, (ii) os problemas estruturais e de recursos humanos
da universidade, (iii) a permanência desses/as estudantes no colégio, (iv) a
diversidade do grupo, (v) a naturalização da política de cotas, (vi) à adequação dos
conteúdos.
Para a pedagoga deveria haver uma oficina que auxiliasse os/as estudantes
que apresentassem dificuldades pedagógicas para que esses/as não fossem
indicados/as para a recuperação paralela. Ressaltou que esse trabalho não seria
destinado, exclusivamente, para os/as cotistas:
Não adianta ter só a política [de acesso] e não ter a continuidade desse
acompanhamento. Teria que ter outra atividade. Pode ter alunos que tenham
dificuldades na redação, mas teria que ter uma oficina para ajudar na elaboração de
textos, tinha que ter uma atividade. Ah, tem alunos que têm dificuldades em
matemática. Teria que ter uma oficina, algo para ajudá-los como se fosse aula de
reforço. Se o professor identificasse alguma dificuldade isso não seria só para os
alunos cotistas não, seria para todos os alunos, porque não pode especificar assim
senão vai constranger o aluno. E o aluno também vai se recusar a participar, mas o
ideal seria que tivesse atividades extracurriculares, não é de reforço, mas de uma
complementação, de uma orientação do aluno. Ela já foi implementada [a lei], foi
algo imposto, foi de fora para dentro e o CAp teve que assumir isso. Não vejo assim
como uma dificuldade, mas é um desafio, acompanhar esses alunos e evitar o
insucesso escolar, entendeu? Porque no ano passado a gente recebeu um público
que não tinha tantas dificuldades pedagógicas, mas daqui pra frente não sabemos.
E então, o CAp vai ter que mudar enquanto instituição. Eu percebo como um
desafio, não como dificuldade.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 226

Tratando também das questões pedagógicas, as professoras Fernanda e


Flávia disseram que o colégio precisa criar condições para que os/as estudantes
superem esse problema. A primeira afirmou que “a maioria deles vêm com gaps,
com dificuldades por que não foram treinados para isso e aí não têm nenhum suporte
dentro da instituição para ajudar esses alunos”. Perguntei qual seria esse suporte e
ela respondeu que não tinha uma proposta, uma solução, mas sugeriu que precisaria
ser realizada “uma pesquisa, vários professores, prática de todo mundo para ter uma
ideia do que de fato pode ser efetivo ali para ajudar esses alunos a acompanharem
o nível do CAp”. Insisti se esse acompanhamento pedagógico seria proposto apenas
para os/as estudantes cotistas e Fernanda finalizou sua resposta dizendo: “não
somente dos alunos cotistas, estou falando por que é o foco aí, mas de todos os
alunos, é que todos os alunos já tem as aulas de apoio, não é? E os alunos em geral
que não passam pela cota e que tem a nota inferior, vieram treinados de um
cursinho, vai ter dificuldades, mas são coisas mais sutis. Eu acho que as dificuldades
se agravam mesmo com quem é cotista”.
A professora Flávia afirmou que a dificuldade é o que considerou como
elemento enriquecedor [a heterogeneidade do grupo] e construiu sua resposta
relacionando-a com as questões de aprendizagem que poderão ser apresentadas
pelos/as estudantes cotistas:
A heterogeneidade também pode dificultar o aprendizado daqueles que já estavam
lá e daqueles que têm um... Eu não gosto de falar nível de aprendizagem, eu estou
usando esse termo por que eu não estou encontrando um melhor, mas eu acho que
nível de aprendizagem não é o termo, mas, enfim, acho que dá para entender um
pouco do que eu quero falar; aqueles alunos que conseguem acompanhar ou mais
rápido ou de forma mais fácil o aprendizado acabam ficando, muitas vezes,
desestimulados por que você tem que voltar muitas vezes no assunto.

Para ela, o “voltar muitas vezes no assunto” acaba por desestimular


aqueles/as que já compreenderam a matéria com mais ‘facilidade ou rapidez’. Nesse
momento, relatou qual a tática utilizava na sala de aula para minimizar essa questão:
“uma estratégia que eu tinha, por exemplo, em sala de aula, era pedir que os alunos
que já tinham entendido explicassem para os outros. Então, eles ficavam mais
estimulados por que tinha o desafio novo de explicar e aí eles não perdiam o
interesse na aula. E os outros estavam escutando, de novo, a mesma coisa só que de
outra maneira”. Apesar de mencionar essa estratégia, finalizou sua resposta dizendo
que: “era uma estratégia que eu usava, mas outras estratégias precisam ser pensadas
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 227

para esse problema, não é? O problema do desestímulo, da falta de interesse mesmo


que os alunos podem ter em virtude dessa possível facilidade maior que venha a ser
causada pela entrada de alunos que tenham mais dificuldade”.
A temática das dificuldades foi mencionada pelas professoras Rose e Rita
e, para elas, a principal questão estava relacionada à necessidade de apoio
pedagógico para que os/as estudantes possam acompanhar as atividades propostas.
Além dessa preocupação, Rose afirmou que considera como um aspecto negativo o
fato de o colégio receber esses/as alunos/as e que poderia não conseguir trabalhar
com esse público. Outra inquietação é a de que a instituição possa acreditar que a
reserva de vagas seja uma solução para um grupo da população que não consegue
ingressar em escolas de qualidade, de que o Estado estaria promovendo o acesso,
mas não garantia o suporte pedagógico necessário. O receio que ela tem é de que
esses/as estudantes não consigam acompanhar o ritmo de trabalho do colégio e, ao
final do ano letivo, sejam aprovados/as sem condições de cursar a série posterior.
Retomou o argumento que apresentou em respostas anteriores de que o trabalho
feito no CAp deveria ser expandido para outras escolas das redes.
Na opinião da professora Rita, “talvez a dificuldade deles seja de conseguir
acompanhar”. Continuou dizendo que não percebeu nada de novo na turma que teve
em 2014, ano de adoção da lei: “Não senti isso ainda, pode ser que esse ano [2015]
eu já sinta”. E acrescentou outra questão, a da pouca idade que os/as estudantes
estão chegando ao 6º ano: “Eu sei que esse ano a gente vai receber alunos no 6º ano
com 10 anos de idade, por que eles entraram com cinco anos no 1º ano97. Então,
isso eu ainda não sei como é que vai ser. Mas, o meu receio é mais essa dificuldade
deles, entendeu?”
Continuou desenvolvendo seus argumentos e revelou que: “talvez quando
eles apresentarem dificuldade ao invés deles tentarem lutar para superar os
obstáculos eles se fecharem. Eu acho muito essa questão psicológica, mesmo”. E
acrescentou:
Não é uma questão de rendimento por que poder eles podem, eles não têm diferença
nenhuma, eles têm capacidade, capacidade independe disso. A questão são eles se
fecharem, meu receio é que eles se fechem, achem que ‘eu não sou igual’. Isso que
é o perigo, que aí eles se bloqueiam. E a gente vai ter que vencer isso, eles vão ter
que vencer isso e a gente vai ter que ajuda-los a vencer isso, por que se eles não

97
Desde 2010 a universidade alterou a data de corte de nascimento para a inscrição de crianças ao
sorteio de vagas para o 1º ano do ensino fundamental e a instituição passou a receber nesse ano
de escolaridade crianças com 5 anos de idade.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 228

vencerem esse bloqueio psicológico aí que vai ser difícil. Por que eu acho que tudo
começa aqui na minha cabeça.

Essa professora continuou utilizando o argumento do esforço pessoal para


embasar suas respostas mesmo afirmando que os/as professores/as precisarão
auxiliar os/as estudantes a vencer um suposto “bloqueio psicológico” que poderão
apresentar caso não tenham rendimento equivalente aos/às demais alunos/as.
As professoras trataram do nível de aprendizagem, do ritmo dos/as
alunos/as, mas não quiseram relacioná-los aos/às cotistas afirmando que algumas
estratégias precisam ser pensadas para todos/as e acabaram construindo, em minha
opinião, respostas contraditórias, ou seja, os/as cotistas são os/as primeiros/as a
serem lembrados/as quando se fala de dificuldade de aprendizagens, enquanto os/as
demais são lembrados/as num segundo momento de suas falas. Assim, parece que
as dificuldades são, de fato, de uns (cotistas) e, hipoteticamente, de outros/as (não
cotistas).
A diversidade do grupo foi uma dificuldade apontada por Monique e Cauã
uma vez que as referências culturais, os locais de moradia, os contextos
socioeconômicos são muito distintos e se o colégio não promover ações que
favoreçam a integração entre os/as estudantes as diferenças não serão
compreendidas como riqueza, potência. Segundo Monique, a escola precisa “saber
lidar com a grande possibilidade de referências culturais. Não é uma escola feita de
grandes diferenças que tem uma grande parcela de minoria, não. É uma escola feita
de diferenças sim, mas com uma parcela pequena ainda. Então você pode muito
bem deixar essa galera e ela ficar de lado e acabou. E aí o que você vai fazer?”
O professor Cauã afirmou que não viu “nenhuma dificuldade explícita”, mas
mencionou que recebeu uma recomendação, desde que entrou para o CAp, portanto,
antes da implementação da lei, de não propor muitos trabalhos em grupo por que
os/as estudantes moravam em bairros muito distantes uns dos outros: “a grande
dificuldade que eu percebi em sala de aula foi essa [...] Basicamente foi essa
dificuldade de trabalhos em grupo para casa”. Apesar de afirmar que recebeu essa
recomendação desde que chegou ao colégio, alegou que “talvez a dificuldade maior
que o CAp tenha hoje, devido as cotas, a grande diversidade, seja o
desenvolvimento de trabalho coletivo em casa por morarem muito longe uns dos
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 229

outros, às vezes, por um ser cotista e morar na Nova Holanda e o outro ser do
Leblon, os próprios pais, às vezes, criam dificuldades em relação a isso”.
Os depoimentos listados evidenciaram não apenas a homogeneização de
ritmos que as escolas, comumente, vêm utilizando em suas propostas educativas
sem considerar a origem social, cultural, da idade e das experiências vividas por
seus alunos e alunas, mas também as questões socioeconômicas dos/as estudantes
que trouxeram para o CAp uma realidade mais plural.
Candau (2012b, p. 102) afirma que a escola tem um papel relevante na
superação da perspectiva homogeneizadora ao reconhecer, valorizar e empoderar
sujeitos socioculturais subalternizados e negados. Nesse sentido, a tarefa principal
seria realizar “processos de diálogo entre diferentes conhecimentos e saberes, a
utilização de pluralidade de linguagens, estratégias pedagógicas e recursos
didáticos, a promoção de dispositivos de diferenciação pedagógica e o combate de
toda forma de preconceito e discriminação no contexto escolar”.
A coordenadora do NAPE afirmou que não via nenhuma dificuldade com a
entrada de estudantes pela reserva de vagas. No seu entendimento, as questões que
se apresentam são estruturais, referem-se ao espaço físico e à falta de recursos
humanos:
Eu só acho que as nossas dificuldades todas elas vão esbarrar na estrutura da
própria universidade. Porque se a gente precisa de um acompanhamento desses
alunos, porque é óbvio que precisa se é um processo novo a gente tem que
acompanhar, a gente tem que estar gerenciando algumas questões de uma forma
diferente, a gente tem que ter uma estrutura para isso e a gente não tem estrutura
nenhuma. Você não tem um ambiente físico onde você possa sentar e acolher esses
pais. Você não tem um ambiente físico que você possa conversar com as crianças.
[...] Acho que o nosso grande problema é que nós não cabemos mais nesse espaço
físico. Nós precisamos de outro espaço que a gente tenha condições de acolher
essas pessoas na medida do que necessitam para inseri-las dentro do contexto da
escola. Por que a gente vive fazendo o quê? Adequações. Não sei se a gente vai ter
pernas para fazer todas as adequações que vão de ano para ano crescendo. E
também acho que a estrutura de pessoal. Uma escola desse tamanho, com cota, com
todas as questões que ela tem funcionar quando tem uma psicóloga, funcionar com
uma assistente social, acho que isso no futuro vai ficar muito complicado.

A professora Jussara também afirmou que não via nenhuma dificuldade na


implementação da política de cotas quando foi inquirida a responder essa pergunta.
Declarou que “até pouco tempo achava um absurdo, não é?”, mas que “não tem
problema nenhum”. Mesmo instada a continuar respondendo deu por encerrado o
assunto com essa afirmação sucinta.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 230

O diretor afirmou que o colégio precisará discutir o projeto pedagógico da


instituição, mas que o papel da universidade nesse processo é fundamental:
A universidade ainda não comprou a ideia de que aqui nós temos uma política de
cotas. Ela precisa comprar essa ideia, e a melhor forma dela comprar essa ideia é
não atrapalhar, e a melhor forma de não atrapalhar é deixar a gente desenvolver o
projeto pedagógico que a gente tem na mão. As reformulações do projeto
pedagógico que a gente vai ter que fazer... Essa é a dificuldade, a dificuldade não
está, por incrível que pareça, no meu entendimento, apesar das disputas, das
discussões, das possíveis desavenças que hajam aqui, de confrontos que hajam para
promover essa mudança, vai ser superado, essa será superada, é desafio, não é
dificuldade. Dificuldade vai ser a UERJ entender que nesse momento em que
vários ajustes estão acontecendo ela precisa fomentar essa unidade, que daqui a um
tempo ela não vai precisar fomentar da mesma forma, aí que está à dificuldade.

O fomento a que se refere o diretor diz respeito ao repasse de verbas que a


universidade faz para o colégio:
Ainda falta despertar para uma cobrança mais institucional, mais política sobre os
auxílios a essas pessoas, isso ainda está muito plasmado. Precisa-se buscar aquilo
que a própria lei diz: que o Estado tem que garantir recursos para a permanência
dessas pessoas. E hoje essa garantia é absolutamente insegura, não é constante,
depende de a unidade receber dinheiro ou não para se financiar. E aí eu já tinha
naquela época [antes da lei] mais de cinquenta pessoas que não eram cotistas que
já eram mantidas assim, e agora eu tenho sempre mais de quarenta cotistas
entrando, que se somam àqueles que já existiam que passam por situações de
desfavorecimento social e econômico das mais variadas formas possíveis. Então,
quando a gente junta esses dois grupos, essa é a realidade CApiana hoje, diferente
de quando a gente tinha que ter um grupo de controle que era de cinquenta e sete,
sessenta, setenta, oitenta.

Ao longo de sua entrevista, o diretor afirmou que o pagamento de todas as


despesas assumidas pelo colégio para atender os/as cotistas, além dos/as bolsistas
que já existiam na instituição, foi feito com os recursos repassados pelo SIDES e
que essa verba é destinada para manutenção da unidade. Mesmo existindo, desde
2013, uma minuta da universidade que institui o Programa de Bolsa Auxílio à
Permanência para discentes da Educação Básica, até o momento da conclusão desse
texto, nenhum repasse específico para esses/as estudantes havia chegado à
instituição.
O professor Mateus considerou como dificuldade o que chamou de
“naturalização das cotas”. Como afirmou em seu depoimento anterior sobre os
elementos enriquecedores, para ele, a ausência de discussão sobre a implementação
da política de cotas no CAp daria a impressão de que esta foi absorvida pela
comunidade escolar, mas, esse silenciamento estaria ocultando o debate que ele
avalia como o principal aspecto a ser trabalhado pelo colégio:
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 231

A discussão está naturalizada, a cota está naturalizada assim: “Olha, tem cota”,
“esses alunos são da cota” ou nem se quer falar isso. Do meu ponto de vista é
negativo por que isso não está acrescentando nessa discussão. Tem um filósofo
ganês Appiah, esqueci o primeiro nome dele, ele vai dizer o seguinte, que não
existe diferença de raça, nós somos etnias diferentes e tudo mais, então a cor não
diz respeito a nada. Por outro lado, no Brasil e em outros países também, claro, a
cor diz bastante, não é? A cor de uma pessoa pode dizer muita coisa, inclusive
formas de acesso diferente a lugares, não só a escola, mas, a cor das pessoas,
infelizmente, aqui no nosso país define níveis de acesso, acessibilidade, mobilidade
em lugares diferenciados e isso precisa ser discutido. Então, esse é um aspecto
também necessário da discussão que não é feita no CAp, porque está sendo
naturalizado. Então, eu não posso dizer nem que eu sou contra as cotas raciais, mas
o que eu sou contra, e isso claramente eu sou contra, é a falta de debate sobre as
cotas raciais em um lugar que já tem. Então, a cota veio sem um debate prévio e
sem um debate posterior. É preciso criar instâncias no CAp que se discuta isso.

Para a professora Miriam a única dificuldade diz respeito à permanência


dos/as estudantes no colégio:
A única que eu vejo, o desespero é essa dificuldade de realmente segurar esses
meninos economicamente, vamos dizer assim, porque eu preciso que ele tenha
uniforme, eu preciso que ele tenha condução, que ele coma, e a escola fica com
uma parte de responsabilidade de coisas que significam grana, dinheiro, que a
escola precisa ter dinheiro para pagar o uniforme dele. É esse tipo de dificuldade
que eu estou vendo, se outras dificuldades estão ocorrendo eu, sinceramente, não
sei. Na minha seara, no meu cotidiano, no meu fazer, no meu trabalho, não estou
vendo mesmo.

Nesse momento final da entrevista, Miriam retomou a questão de ser


favorável ou contrária à adoção das políticas de ação afirmativa no colégio e
afirmou que:
Agora estou pensando com você aqui, eu oferecer a cota para esse menino que está
fazendo esse vestibulinho quer dizer que eu não estou dando para todo mundo as
mesmas condições dele poder fazer essa prova. Essa prova é um horror, mas vamos
imaginar que não fosse um horror essa prova, mas dele ter condição, que é igual
como o vestibular lá [na UERJ], se eu estou fazendo isso aqui é por que eu continuo
não dando uma escola de qualidade para todos [enfatiza], para que todos cheguem
ao mesmo nível, com competência para fazer uma prova nesse nível, como
acontece lá [na universidade]. Não quero não, pode voltar naquela questão e botar
que sou contra [a adoção das cotas].

O depoimento da professora demonstrou que ela foi pensando e construindo


ao longo da entrevista seus argumentos sobre a implementação das políticas de ação
afirmativa no CAp. Ou seja, esse momento favoreceu a Miriam a oportunidade de
refletir sobre o tema tratado, de ir fazendo ponderações, o que remete à discussão
da prática reflexiva e dos saberes docentes estudadas por diversos/as autores/as
como Marli André (2006), Maurice Tardif (2002), Menga Ludke (2001) e Selma
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 232

Pimenta (1997). Além disso, enfatizou que uma escola de qualidade deve ser
oferecida para todos/as os/as estudantes o que denota um posicionamento que
defende as políticas públicas de caráter universal e não as políticas diferencialistas.
Já a professora Isabel considerou que uma dificuldade seria a adequação dos
conteúdos para que todos/as pudessem ser contemplados/as, ou seja, constituiria
uma mudança a ser feita não apenas individualmente, mas pelo corpo docente:
Por conta da minha falta, talvez, de adequação ano passado, de conteúdos, eu nem
sei se consegui atingir todos eles, se eu consegui cumprir com o meu objetivo para
todos eles. Talvez, isso seja uma questão que a gente precisa aprender, e seja uma
dificuldade a ser enfrentada que é: ‘Como trabalhar com alunos que você não... que
você não esperava trabalhar ou...’ Isso não pela questão de... mas pela questão de
acesso a informação, de acesso a materiais, a escola, conhecimentos,
especialmente, a língua estrangeira, que exige também... ele só vai ter acesso a
língua estrangeira se ele tiver oportunidade de fazer um curso de inglês fora e tal,
por que a escola só vai apresentar isso no 6º ano. Então, é trabalhar com aquele que
ainda não teve oportunidade. Acho que a dificuldade é essa, a gente precisa
aprender e adequar. Também não pode ser uma ação individual, não acredito... [...]
Os alunos entraram e a gente precisa, então, se reunir se comunicar e dizer: ‘Olha,
vamos discutir propostas e possibilidades’. Eu sei que existe esse trabalho aqui,
mas em relação àqueles que têm atendimento especial, mas, aos cotistas eu não vi
ainda um movimento adequado a eles, voltado para eles, talvez.

Considero que nessa resposta há dois aspectos que precisam ser ponderados:
a professora citou a necessidade de adequação dos conteúdos de língua estrangeira,
no caso o inglês, para um grupo socioeconômico que, a priori, só teria acesso a essa
disciplina quando ingressasse no 6º ano de escolaridade, enquanto o “chamado
aluno/a do CAp” já estaria fazendo cursos de inglês. Penso que sua ponderação é
legítima, mas ela desconsiderou os saberes que esses/as jovens podem apresentar
sobre a língua inglesa uma vez que têm contato com esse idioma das mais diversas
maneiras. Além disso, parte do pressuposto de que esse público tem dificuldades de
acesso a bens culturais e/ou materiais. O segundo aspecto diz respeito, mais uma
vez, a necessidade de que seja desenvolvida uma ação coletiva dentro da escola para
que o trabalho com os/as estudantes possa ser realizado de maneira satisfatória
garantindo o sucesso escolar dos/as ingressantes. Isabel concluiu sua resposta
asseverando que esse movimento:
Passaria por uma questão da escola, acho que é movimento do grupo de
professores, de profissionais da escola. Professores, Núcleo Pedagógico,
Administração, enfim, a gente precisa estar ciente do movimento que está
acontecendo e não fingir que eles não estão entrando. Porque na verdade o que
acontece é: a gente está recebendo alunos, mais de sessenta alunos e ponto. Na
verdade a gente está recebendo sessenta alunos, mas entre esses tem as diferenças
entre eles. Eu acho que seria legal a gente conhecer. Eu não sei se existe uma crença
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 233

de que a gente sabendo quem são, se isso influenciaria na nossa maneira de olhar
os alunos, talvez possa existir esse pensamento. Mas, eu acho que seria bom a
gente, não só conhecer: ‘Olha, é fulano, é sicrano’, mas debater sobre isso,
conversar, por que a atitude tem que ser geral. Eu sinto falta até de reuniões de série
que, antigamente, a gente tinha. Reunião do 6º ano e vamos conversar sobre o 6º
ano, porque é um ano de escolaridade muito especial, é muita troca, é muita
novidade, para eles, para nós, eles são muito pequenininhos ainda. Então, eu acho
que vale levar também em consideração; 6º ano é entrada, são novos, e ainda tem
as questões específicas dos que estão entrando por cotas, para gente estar ciente do
terreno onde a gente está pisando. E trabalhar bem com isso, adequar a nossa
prática e nossa formação para isso.

A resposta de Isabel vai ao encontro do que disse o professor Mateus sobre


a necessidade de diálogo, de discussão com relação à entrada desses/as estudantes
no CAp. Além disso, ela lembra que o 6º ano de escolaridade é um momento de
transição para os/as estudantes, sejam eles/as beneficiados/as pela política de cotas
ou não.
Ao se referir a um “movimento do grupo de professores, de profissionais
da escola”, Isabel chama a atenção para o papel dessa instituição. Gomes (2003, p.
171) afirma que “a escola ocupa um lugar específico de formação que vai além das
disciplinas escolares, dos currículos, das normas e regimentos, ou seja, é
compreendida em sentido mais amplo”.
Andrade (2009) também ressalta o papel social da escola ao afirmar que ela
pode dar acesso a importantes instrumentos de redistribuição de poder, domínio dos
conhecimentos produzidos socialmente, mas que também, por outro lado, como
instrumento de sociabilidade pode:
Ajudar a construir o prestígio social dos grupos socialmente marginalizados,
valorizando as diferentes identidades, reconhecendo valores e riquezas em todos
os grupos culturais, desconstruindo preconceitos, favorecendo a coexistência
pacífica entre todos e reforçando uma convivência mais dialógica entre os
diferentes (ANDRADE, 2009, p. 29).

Sobre a questão da formação continuada de professores/as, Nilma Gomes,


Fernanda Oliveira e Kelly Souza (2010, p. 57) revelam que existem muitas
discussões sobre os processos de formação continuada, mas que “pouco se reflete
sobre os processos formativos que tenham como objetivo a diversidade étnico
racial”. Essas autoras apresentam algumas indagações importantes: “Quais são as
experiências existentes e que têm sido indagadas do ponto de vista da investigação
científica? As experiências de formação continuada existentes e que caminham na
perspectiva da diversidade têm conseguido alterar as práticas pedagógicas? E quem
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 234

são os docentes que participam desses processos formadores voltados para a


diversidade étnico racial?” (GOMES ET AL, 2010, p. 57).
Essas inquietações são relevantes e entendo que o CAp deveria pautar a
questão da formação continuada de seus/as professores/as voltada para a
diversidade étnico racial para que esses/as profissionais possam ter o preparo
necessário para lidar com o desafio da problemática da convivência com a
diversidade, a realidade plural discente trazida para a instituição. Como afirmam
Gomes et al, (2010, p.62), essa falta de preparo compromete, sem dúvida, o trabalho
de formação humana pelo qual os/as educadores/as são responsáveis: “A presença
e a representação positiva das diferenças nos diversos espaços e setores sociais
ainda são um direito a ser efetivado no Brasil, apesar de esse ter como característica
principal o fato de ser uma sociedade pluriétnica e multirracial”.
Desse conjunto de respostas, alguns aspectos podem ser destacados.
Tratando dos elementos enriquecedores, o primeiro deles diz respeito à importância
atribuída pelos/as entrevistados/as a oportunidade que o Estado está
proporcionando às pessoas de terem acesso a uma escola de qualidade. O segundo
refere-se à questão da convivência entre estudantes de diferentes contextos
socioeconômicos e étnico raciais o que favoreceria conforme as palavras de uma
das entrevistadas “a possibilidade do colégio se inserir dentro da realidade social
vivida”. Mesmo com algumas divergências, posso dizer que para todos/as os/as
entrevistados/as a experiência de adoção das políticas afirmativas no CAp/UERJ
foi considerada positiva.
No que diz respeito às dificuldades elencadas, as mais recorrentes são
aquelas voltadas para a continuidade da política no tocante às questões pedagógicas
que os/as estudantes cotistas poderão apresentar para que tenham sucesso em suas
trajetórias escolares e a preocupação com relação à permanência dos/as que
necessitam de aportes financeiros. Também foram mencionadas a necessidade de
discussão do projeto pedagógico e a adequação dos conteúdos, assim como a
questão do diálogo entre os/as profissionais do colégio sobre a adoção da política
de cotas e a formação continuada dos/as professores/as.
6
Considerações finais

Esta pesquisa teve como objetivo principal compreender o que os/as


profissionais entrevistados/as pensam sobre o processo de implementação da
Legislação Estadual 6434/13 que determinou a adoção das ações afirmativas na
forma de cotas raciais, sociais e para pessoas com deficiência no Instituto de
Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira - CAp/UERJ, no 6º ano de escolaridade
do segundo segmento do ensino fundamental. Mais especificamente, procurei
levantar as representações que professores/as, funcionárias técnico administrativas
e o diretor da instituição têm sobre o papel social da escola, sobre a função que
exercem e sobre as possibilidades e limites das ações afirmativas de corte racial na
educação básica, além de investigar como a escola operacionalizou essa lei no que
diz respeito ao processo de acesso e matrícula, bem como os possíveis impactos no
currículo e nas práticas pedagógicas.
O trabalho realizado esteve marcado pela complexidade das questões acerca
da educação antirracista e das ações afirmativas na educação básica, temática
emergente no campo educacional, visto que a Lei Estadual 6434/13 e a Lei Federal
12711/12 são recentes e, muitas vezes, o debate sobre as políticas públicas
diferencialistas em nosso país esteve circunscrito às polêmicas causadas em relação
ao acesso ao ensino superior.
As medidas governamentais chamadas de políticas universais,
implementadas no Brasil na educação básica, favoreceram que na década de 1990
o país conseguisse a universalização do acesso ao ensino fundamental, momento
histórico em que a ideia de educação como direito foi alvo de amplas discussões na
esfera pública. O acesso à escola, especialmente em relação à educação infantil,
também merece destaque, e a universalização das matrículas escolares nesse nível
de ensino contou com um aliado importante que foi a criação do FUNDEB no ano
de 2007. Já a escolarização dos/as adolescentes no nível médio não está
universalizada, mas apresentou melhora na primeira década dos anos dois mil em
relação à década anterior, de acordo com as pesquisas realizadas pelo IBGE em
Capítulo 6. Considerações finais 236

2010 e 2014. Essas pesquisas revelaram que o país obteve melhorias nos
indicadores educacionais no que se refere ao acesso às redes de ensino,
proporcionando um aumento do fluxo de crianças e jovens à escola. Porém,
avaliações externas, nacionais e internacionais, indicam que o nível médio do
desempenho escolar de estudantes brasileiros/as está bem próximo ao de vários
países latino-americanos, mas bem abaixo dos níveis educacionais observados para
os países desenvolvidos. A legitimidade de tais avaliações é bastante contestada,
mas talvez elas possam nos indicar, ao menos, que estamos avançando no acesso à
escola e, talvez, estejamos com grandes dificuldades de garantir a aprendizagem de
muitos jovens e crianças que frequentam as escolas públicas brasileiras.
Por outro lado, quando os indicadores educacionais da população brasileira
são desagregados por cor ou raça nas pesquisas citadas nesse trabalho, ficou
evidenciado que para a população negra (pretos e pardos) a desigualdade continua
a afetar de modo significativo esse grupo no que diz respeito às taxas de
analfabetismo funcional, frequência escolar, média de anos de estudo, atraso escolar
no ensino médio, distorção idade-série, taxas de acesso e frequência a curso
universitário, nível superior completo. Também é bastante consensual nas pesquisas
e nas políticas públicas que as desigualdades educacionais influenciam diretamente
nas oportunidades de emprego, ocupação no mercado de trabalho e,
consequentemente, na distinção dos rendimentos entre brancos/as e negros/as,
comprometendo também a mobilidade social. Os dados apresentados pelas
pesquisas do IBGE de 2010 e 2014 revelaram, portanto, que as políticas
universalistas, ofertadas igualmente a todos, apesar dos avanços alcançados, não
conseguiram garantir oportunidades educacionais equânimes para a população
negra e, muito menos, diminuir as históricas desigualdades entre brancos/as e
negros/as.
Nesse sentido, as pesquisas governamentais favoreceram o desvelamento
das desigualdades raciais no país, especialmente aquelas voltadas à educação e ao
mercado de trabalho. O processo de visibilização e desnaturalização desse quadro
ganhou força e densidade desde os anos noventa com a participação, cada vez mais
ativa, do movimento negro nacional. Importante lembrar, nesta perspectiva, que a
discussão sobre a implementação de ações afirmativas de corte racial solidificou-se
depois da participação do Brasil na III Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, em 2001,
Capítulo 6. Considerações finais 237

em Durban, África do Sul. O governo brasileiro assumiu, no plano internacional,


compromissos que emergiram dessa conferência e um deles era o de avançar em
uma agenda de promoção da igualdade racial. O Plano de Ação da Conferência de
Durban instava os Estados signatários a elaborar programas direcionados à
população negra, destinando verbas para as áreas de educação, saúde, habitação,
saneamento básico e proteção ao meio ambiente. Também sugeria que os governos
promovessem o acesso igualitário ao emprego e investissem em políticas de ações
afirmativas (Carneiro, 2011). Desse modo, o Estado brasileiro passou a elaborar
propostas de políticas específicas voltadas para a população negra em que a tônica
principal era a erradicação das desigualdades raciais.
É imperioso lembrar e afirmar que comungo dos argumentos propostos por
Guimarães (1999), de que as políticas afirmativas devem estar ancoradas em
políticas de universalização e de melhoria do ensino público para a educação básica,
porém, não se trata de fazer uma opção entre uma ou outra, mas de considerar a
relevância das políticas diferencialistas para que a médio e longo prazo a educação
brasileira possa oferecer a todos/as ensino público de qualidade.
As ações afirmativas são adotadas em sociedades distintas, com formas de
estruturação social, regimes políticos e econômicos próprios, mas têm como
objetivo comum beneficiar grupos socialmente discriminados seja por motivos
raciais, étnicos, culturais, de classe ou de gênero (Medeiros, 2002). Em outras
palavras, trata-se de um conjunto de medidas seja legislativa ou administrativa, de
caráter temporário, que visam à concretização da igualdade material e também a
eliminação ou redução das desigualdades sociais e raciais historicamente enraizadas
na nossa sociedade. As ações afirmativas seriam, portanto, um remédio eficaz para
combater esses males (Gomes, 2002).
A política de ação afirmativa estudada neste trabalho e implementada no
CAp/UERJ constitui uma experiência em construção. O ingresso de estudantes
cotistas na instituição ocorreu nos três últimos processos seletivos, 2014, 2015 e
2016, para o 1º e o 6º anos de escolaridade do ensino fundamental sendo, portanto,
prematuro avaliar o desempenho desses/as alunos/as uma vez que ainda estão
cursando esses segmentos escolares. Os/as estudantes que ingressaram em 2014,
ano de adoção da Lei 6434/13, concluirão seus estudos nos segmentos, no caso do
1º ano de escolaridade, em 2018, e os/as do 6º ano em 2017, desde que não
experimentem nenhuma reprovação nesse percurso. Seria, portanto, importante
Capítulo 6. Considerações finais 238

que, desde já, fosse feito um acompanhamento das trajetórias escolares desses/as
alunos/as. Também me parece importante que novas pesquisas sejam realizadas
com as primeiras gerações de egressos do CAp/UERJ beneficiadas por esta política.
Como ficou evidenciado nos depoimentos dos/as entrevistados/as, a
comunidade Capiana ainda está se adaptando a nova realidade estabelecida pela lei
no sentido de democratizar o acesso ao 6º ano de escolaridade a essa instituição
pública de ensino. Considerando esse aspecto, é importante destacar que as
ponderações aqui realizadas estão sujeitas a modificações por entender que os
impactos acadêmicos e sociais da reserva de vagas raciais exigem mais tempo de
avaliação e vigência para que possam ser analisados com maior profundidade. Esse
pode ser considerado um dos limites desse trabalho, porém, entendo que ouvir as
funcionárias técnico administrativas, o diretor e os/as docentes que atuaram nas
turmas de estudantes cotistas que ingressaram no primeiro processo seletivo após a
aprovação da legislação revelaram os desafios e tensões que foram vivenciados por
esse grupo de profissionais sobre a iniciativa de inserção desses/as alunos/as.
Foi possível perceber que a Lei 6434/13 chegou ao CAp por iniciativa dos
poderes executivo e legislativo do Estado do Rio de Janeiro, tendo contado,
segundo a narrativa do diretor, com a participação de um movimento social
representado pela EDUCAFRO. Nenhuma outra liderança social foi citada pelos/as
entrevistados/as. A elaboração da lei não foi uma iniciativa da comunidade interna
do colégio nem tampouco da universidade que implementou a reserva de vagas em
seus vestibulares desde 2001, também por força de leis estaduais. Mesmo diante
dessa constatação, é necessário ressaltar o caráter pioneiro da adoção de políticas
de ação afirmativa de corte racial no primeiro e segundo segmentos do ensino
fundamental uma vez que a lei federal determina que a reserva de vagas seja
implementada nas instituições de ensino médio e superior.
As legislações adotadas na UERJ e em seu instituto de aplicação guardam
algumas semelhanças: a elaboração das leis contou com a mobilização de setores
sociais, no caso da universidade de modo mais contundente e no que diz respeito
ao colégio de maneira mais “tímida”. Essas iniciativas, no entanto, fizeram com que
os poderes executivo e legislativo respondessem as demandas solicitadas em forma
de leis. Outra semelhança a ser considerada se refere à condição sine qua non de
que os/as beneficiários/as de tais políticas comprovem a carência econômica para
que possam concorrer a essas vagas. Assim, como a universidade, o colégio se viu
Capítulo 6. Considerações finais 239

compelido a promover mudanças institucionais, especialmente àquelas voltadas


para a permanência dos/as estudantes cotistas. As medidas socioeconômicas
adotadas pelo CAp para garantir a permanência desse grupo de estudantes estão
voltadas para as questões de alimentação nas dependências do colégio e também
quando esses/as alunos/as participam de atividades externas promovidas pela
escola; o fornecimento do uniforme e do material escolar, sendo utilizados os
recursos recebidos via Sistema de Desembolso Descentralizado (SIDES), verba que
é repassada para manutenção da unidade. A Minuta de Resolução 30/13 que
instituiu o programa de bolsa auxílio à permanência desses/as estudantes não havia
sido implementada até o momento de elaboração desse relatório de pesquisa. Ou
seja, a instituição ainda não contava com o repasse de verba específico, a dotação
de orçamento para atender os/as estudantes cotistas. Importa ressaltar que o artigo
4º da Lei 6434/13 determina que o Estado proveja os recursos financeiros
necessários através de programa de apoio com o objetivo de garantir a permanência
dos/as beneficiados/as pela lei na instituição bem como para a obtenção de
resultados satisfatórios nas atividades acadêmicas.
As ações afirmativas trouxeram ao CAp, como demonstraram os
depoimentos dos/as sujeitos entrevistados/as, uma sensação de “estranhamento”, de
“desconhecimento” não só do processo de elaboração da lei, mas de sua discussão
interna e também da sua implementação. Os/as depoentes revelaram, em sua
maioria, que são favoráveis à implementação de políticas afirmativas por
considerarem que a existência dessas medidas seja necessária por haver uma
situação de desfavorecimento de um grupo de pessoas com relação a outros, neste
caso as desigualdades raciais que prejudicam os/as negros/as. Ou seja, seriam uma
questão de justiça social, de reparação aos danos causados à população negra no
tocante as oportunidades educacionais. Porém, os/as entrevistados/as afirmaram
que são mais favoráveis às cotas sociais do que a reserva de vagas de corte racial
por considerarem que os/as negros/as já estariam contemplados/as pelas primeiras
por pertencerem, majoritariamente, às classes socioeconômicas mais
desprivilegiadas.
Os/as entrevistados/as reconheceram também a existência de um fator
impeditivo para o sucesso dos/as negros/as enquanto um grupo específico, mas este
fator estaria relacionado aos aspectos socioeconômicos e não a questões raciais.
Assim, a pobreza parece ser um problema mais identificável que o racismo e sem
Capítulo 6. Considerações finais 240

maiores correlações. Esse posicionamento articula-se ao que Santos (2005)


argumenta de que a maioria da população brasileira não nega que haja racismo no
Brasil, porém, é difícil encontrar pessoas que admitam que elas mesmas
discriminam os/as negros/as, as ações são praticadas pelos “outros”. A ausência de
formas de segregação racial como a ocorrida no regime do apartheid sul-africano,
é um dos pilares do mito da democracia racial, da nossa suposta integração racial e
favorece a diluição das desigualdades etnicorraciais existentes no país. Apesar dos
avanços nas discussões sobre as desigualdades raciais propostas pelas lideranças
negras e, mais recentemente, com a participação do Estado brasileiro na promoção
de projetos e políticas de valorização e elevação dos padrões de vida dos/as
negros/as, a reversão do quadro de subordinação econômica, política, cultural e
educacional desse grupo ainda persiste. Faz-se necessário, portanto, que o
enfrentamento da ideologia da democracia racial se torne uma questão pública para
que a intensidade e a durabilidade da discriminação entre negros/as e brancos/as no
tocante à educação, como afirma Henriques (2001), não continue progredindo.
Outro aspecto destacado nessa pesquisa diz respeito à mudança do perfil
dos/as alunos/as considerado “homogêneo” para outro entendido como mais
“heterogêneo”, especialmente, no que se refere às questões socioeconômicas e
acadêmicas, o que revelou uma preocupação dos/as docentes com a manutenção da
qualidade e excelência do ensino no CAp e também com o desempenho escolar
desses/as estudantes. A fim de manter a excelência acadêmica os/as professores/as
acabam vendo seus alunos/as cotistas como aqueles/as que apresentam, em geral,
dificuldades porque teriam uma formação escolar insuficiente em contraposição a
uma representação de aluno/a padrão. Dito de outro modo, os/as alunos/as seriam
menos preparados/as desde o ponto de vista do domínio dos códigos escolares, ou
seja, não possuiriam um capital cultural, não tiveram acesso a bens, conhecimentos
culturais, manejo da norma culta da língua que estariam de acordo com as
exigências culturais do colégio. Os/as estudantes oriundos/as das classes
desfavorecidas não teriam “familiaridade” com o saber erudito e, por não
dominarem os códigos socialmente valorizados, “condenariam” as instituições de
ensino a uma “queda de nível” de qualidade do ensino oferecido.
Sobre esta temática, a contribuição da perspectiva multi/intercultural em
educação pode ser muito adequada e enriquecedora, uma vez que pretende instituir
nos sistemas de ensino o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural e
Capítulo 6. Considerações finais 241

étnica, sem deixar de trabalhar os aspectos relacionados com habilidades exigidas


para o domínio da lógica configuradora da cultura escolar. Tampouco deseja negar
as relações desiguais de poder existentes entre os diferentes grupos étnicos que
configuram a sociedade brasileira. Se, por um lado, a diferença é vista como uma
riqueza, por outro, as desigualdades injustamente construídas a partir das diferenças
não são negadas, mas, sim, assumidas para serem mais bem compreendidas e
enfrentadas.
Quanto às questões relativas às formas de avaliação, conteúdos selecionados
e às práticas docentes, apenas um dos/as dez professores/as entrevistados/as
afirmou ter feito mudanças nas suas práticas pedagógicas a fim de contemplar os/as
estudantes cotistas. Esse professor assegurou que fez modificações e que estas
aconteceram desde a metodologia usada em suas aulas até a seleção dos conteúdos,
passando pela avaliação, mostrando-se mais sensível ao trato da diversidade, como
ressalta Gomes (1999), de seus/as alunos/as mesmo não tendo feito menção direta
àqueles/as que ingressaram pela reserva de vagas raciais. Nos depoimentos dos
demais professores/as, não foi possível perceber uma sensibilidade mais explícita
com relação à diversidade étnico cultural discente no sentido de pensarem e
discutirem estratégias e/ou alternativas às suas ações e métodos a fim de lidar com
a nova realidade plural que o colégio passou a enfrentar. Esses/as professores/as
demonstraram que são muito ciosos/as pela permanência de suas práticas
pedagógicas e avaliativas, não vendo, portanto, razões para modificarem o trabalho
docente que realizavam. Parecem acreditar que as ações desenvolvidas por eles/as
são capazes de gerar sucesso e aprendizagem, independente do perfil de seus alunos,
além de garantir a manutenção da qualidade acadêmica, a excelência de que tanto
se orgulham, cabendo aos/as alunos/as realizar esforços pessoais a fim de obterem
êxito.
Esse bloco de perguntas revelou, além dos aspectos citados, três temáticas
que considero importantes destacar. Em primeio lugar, as dificuldades que os/as
estudantes poderão apresentar para acompanhar de maneira adequada o ano de
escolaridade serão superadas pelo esforço pessoal que deverão empreender. Trata-
se, como afirma Valentim (2005) de uma concepção individualista, centrada no
mérito individual e que desconsidera as condições socioeconômicas e culturais
dos/as estudantes provenientes de grupos sociais marginalizados. Em segundo
lugar, refere-se à necessidade de que sejam discutidos no CAp processos de
Capítulo 6. Considerações finais 242

formação continuada na perspectiva da diversidade etnicorracial e cultural que


possam orientar as práticas pedagógicas dos/as docentes. Gomes e Abramowicz
(2010) consideram que a diversidade tornou-se palavra chave de muitas propostas
pedagógicas e também das políticas públicas em educação ao procurar incorporar a
presença negra na história brasileira. Porém, acreditam que essa perspectiva só será
amplamente alcançada quando a escola construir uma base teórica pautada nas
diferenças culturais, sociais, de origem, familiares, entre outras, uma vez que a
instituição escolar foi criada tendo como um de seus pilares a “ideia de uma
indiferença às diferenças, ou seja, a escola se pensa como única e universal para
todos; é o princípio da indiferença ao outro que está na raiz dessa instituição”
(GOMES & ABRAMOWICZ, 2010, p. 8). A terceira temática está diretamente
relacionada a segunda e diz respeito ao caráter monocultural dos currículos
escolares legitimados e naturalizados nas instituições. A Lei 10639/03 tornou
obrigatório o ensino de História da África e das Culturas Afro-Brasileiras e
Indígenas nas escolas públicas e privadas da educação básica. Essa lei trouxe para
os sistemas de ensino e para os/as educadores/as brasileiros/as um novo desafio e
propôs uma alteração curricular importante, qual seja a de ressignificar a história
dos/as negros/as na construção do país, além de ser o resultado de um longo
processo histórico, político e da luta antirracista empreendida pelos movimentos
negros. Não se trata de substituir um currículo de foco eurocêntrico por outro
afrocêntrico, como afirmam Miranda, Lins e Costa (2012), mas de promover o
reconhecimento da diferença racial na perspectiva de relações interculturais nos
processos educacionais.
Entendo que esses temas precisam ser incorporados às discussões político
pedagógicas do CAp para que possam nortear as ações e práticas cotidianas da
instituição, uma vez que a chegada de alunos/as carentes economicamente,
negros/as e oriundos/as das escolas públicas da rede municipal de ensino poderão
causar impactos nas relações entre as diferentes culturas em convívio nesse espaço
escolar.
Por fim, considero importante ressaltar que os/as entrevistados/as elencaram
os aspectos enriquecedores e as dificuldades da adoção das políticas de ação
afirmativa no CAp. Mesmo com algumas divergências, posso dizer que para
todos/as os/as entrevistados/as a experiência de adoção das políticas afirmativas no
colégio foi considerada positiva. Para eles/as, os principais ganhos dizem respeito
Capítulo 6. Considerações finais 243

às questões relativas à diversidade e heterogeneidade social, racial e econômica dos


grupos que foram beneficiados pela política afirmativa; a possibilidade que os/as
alunos/as que já estudavam no colégio terão de conhecer e interagir com estudantes
oriundos/as de universos sociais distintos; a humanização dos/as profissionais da
instituição; a oportunidade que o Estado está proporcionando às pessoas de terem
acesso a uma escola de qualidade; a adoção das ações afirmativas poderá favorecer
a discussão sobre cor e raça na instituição. As dificuldades apontadas referem-se,
principalmente, aos problemas estruturais e de recursos humanos da universidade;
às medidas socioeconômicas que garantam a permanência desses/as estudantes no
colégio; a continuidade da política no tocante às dificuldades pedagógicas que os/as
estudantes poderão apresentar para que tenham êxito em suas trajetórias escolares.
Quanto aos dois últimos aspectos citados, considero importante ressaltar que a
política de ação afirmativa adotada no CAp é recente, está em construção e,
portanto, ainda precisa que muitas propostas sejam elaboradas e implementadas
para que não fiquem restritas aos apoios financeiros que são, indiscutivelmente,
necessários para garantir a permanência desses/as estudantes.
A pesquisa demonstrou que os profissionais da educação (professores/as,
técnicas e o gestor) estão mais sensíveis às vantagens sociais que tais políticas
oferecerem e identificam menos a necessidade de mudanças pedagógicas no interior
das escolas. Assim, permanece a ideia que o trabalho pedagógico realizado não é
ou não deve ser afetado pelas políticas diferencialistas.
Tais ações devem estar acompanhadas de medidas de caráter pedagógico
que necessitam ser formuladas e debatidas entre os/as profissionais do Núcleo
Acadêmico Pedagógico, os/as docentes e os/as gestores/as do colégio para que os/as
alunos/as cotistas sejam capazes de alcançar níveis de aprendizagem de qualidade
acadêmica. Desse modo, o CAp poderá se aproximar da articulação entre as
medidas socioeconômicas e as de caráter acadêmico propostas por Candau (2002b)
que tem como finalidade empoderar o grupo de estudantes cotistas tanto pessoal
quanto coletivamente.
O que posso concluir é que o tema do acesso de grupos racial, social e
culturalmente discriminados a instituições educacionais reconhecidas socialmente
como sendo de qualidade e excelência de ensino, trouxe para o campo da educação
um conjunto de novas e instigantes questões que não poderão mais ser
desconsideradas pelos/as docentes, funcionários/as e gestores/as da escola básica.
7
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www.faetec.rj.gov.br

gov-rj.jusbrasil.com.br
252

Apêndices

Apêndice 1
Termo de consentimento livre e esclarecido
253

Apêndice 2
Roteiro de entrevista
254

Apêndice 3
Ficha de identificação do/a entrevistado/a
255

Anexos

Anexo 1
Lei 6.434/2013
256

Anexo 1
Continuação
257

Anexo 2
Processo Seletivo CAp-UERJ 2014 – 6º ano do Ensino Fundamental
258

Anexo 2
Continuação
259

Anexo 2
Continuação
260

Anexo 2
Continuação
261

Anexo 2
Continuação
262

Anexo 2
Continuação
263

Anexo 2
Continuação
264

Anexo 2
Continuação
265

Anexo 2
Continuação
266

Anexo 2
Continuação
267

Anexo 2
Continuação
268

Anexo 2
Continuação
269

Anexo 2
Continuação
270

Anexo 2
Continuação
271

Anexo 2
Continuação
272

Anexo 2
Continuação
273

Anexo 2
Continuação
274

Anexo 2
Continuação
275

Anexo 2
Continuação

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