TeseDoutorado ALMEIDA 2016
TeseDoutorado ALMEIDA 2016
TeseDoutorado ALMEIDA 2016
Tese de Doutorado
Rio de Janeiro
Abril de 2016
Mônica Andréa Oliveira Almeida
Ficha Catalográfica
CDD: 370
Agradecimentos
À CAPES e à PUC-Rio, pelo apoio concedido, sem os quais este trabalho não
poderia ter sido realizado.
Meu agradecimento mais que especial ao Mário, meu marido, e ao meu caçula,
Mateus, pelo amor, carinho, apoio e, principalmente, pela paciência e compreensão
nos momentos de conclusão deste relatório. Mateus terminei o trabalho!
Resumo
1 Introdução 17
1.1 Ações afirmativas: recortando um campo de pesquisa 18
1.2 Alguns conceitos centrais para a discussão etnicorracial 22
1.3 Justificativas: por que ações afirmativas na educação básica? 29
1.4 Hipóteses e apostas para um novo campo de pesquisa 31
1.5 Questões e objetivos de pesquisa 33
1.6 Procedimentos metodológicos 34
1.7 Revisão de literatura: com quem conversamos? 41
Apêndices 252
Anexos 255
Lista de ilustrações, imagens e figuras
1
Grupo de Estudos sobre Educação, Cotidiano Escolar e Culturas, Departamento de Educação,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Capítulo 1. Introdução 18
1.1
Ações afirmativas: recortando um campo de pesquisa
Nos anos noventa e início dos anos dois mil, o foco central das reflexões
sobre as ações afirmativas no Brasil ainda estava restrito à necessidade ou não de
sua existência e também de sua legalidade. No entanto, no campo das Ciências
Sociais, apontava-se para a discussão sobre os mecanismos que atuam na
construção social de nossas desigualdades, destacando-se a questão racial.
Capítulo 1. Introdução 19
por meio de protestos que buscavam desenvolver uma ação coletiva para se opor
aos imperativos da suposta identidade nacional. Contra essa, introduziram, no
debate político, o tema da pluralidade étnica” (GONÇALVES & SILVA, 2000,
p.83-84).
Segundo Gonçalves e Silva (2000), os/as militantes negros/as chamaram a
atenção para as representações de raça que estavam em jogo no interior da
sociedade brasileira e criaram entidades que tinham como objetivo a conquista
efetiva da cidadania. Este trabalho não foi desenvolvido apenas por intelectuais;
contou com o engajamento e a participação de organizações que conservavam as
tradições africanas, tanto religiosas quanto artísticas. Essa interseção fez com que
o movimento negro adquirisse uma perspectiva transformadora uma vez que não
ficaram circunscritos ao âmbito acadêmico. Essa movimentação das organizações
negras teve desdobramentos em diversas áreas do conhecimento e estiveram
presentes nas artes, na produção acadêmica e, especialmente, nas Ciências Sociais.
Alguns frutos desse trabalho foram, na década de 1930, a Frente Negra Brasileira
(FNB) considerada a sucessora do Centro Cívico Palmares. De acordo com Petrônio
Domingues (2007, p. 106):
Estas foram as primeiras organizações negras com reivindicações políticas mais
deliberadas. Na primeira metade do século XX, a FNB foi a mais importante
entidade negra do país. Essa entidade desenvolveu um grande nível de organização
mantendo escola, grupo musical e teatral, time de futebol, departamento jurídico,
além de oferecer serviço médico e odontológico, cursos de formação política, de
artes e ofícios, assim como publicar um jornal, A Voz da Raça.
para várias lutas sociais e, entre elas, a luta política dos/as negros/as, pois
desarticulou entidades e estigmatizou militantes, acusados de criar um problema
que supostamente não existia, o racismo no Brasil. Nesse contexto, as lideranças
negras caíram numa espécie de semiclandestinidade, a discussão pública da questão
racial foi praticamente banida.
Para Domingues (2007, p. 115), o nascimento do Movimento Negro
Unificado significou um marco na história do protesto negro do país porque, entre
outras razões, desenvolveu-se a proposta de unificar nacionalmente a luta de todos
os grupos e organizações antirracistas e tinha como objetivo fortalecer o poder
político do movimento negro:
Nesta nova fase, a estratégia que prevaleceu no movimento foi a de combinar a luta
do negro com a de todos os oprimidos da sociedade. A tônica era contestar a ordem
social vigente e, simultaneamente, desferir a denúncia pública do problema do
racismo. Pela primeira vez na história, o movimento negro apregoava como uma
de suas palavras de ordem a consigna: ‘negro no poder!’
Já para Verena Alberti e Amilcar Pereira (2005, p. 1-2), o maior desafio para
o movimento negro brasileiro foi enfrentar o ‘mito da democracia racial’:
Segundo esse mito, as relações de raça no Brasil seriam harmoniosas e a
miscigenação seria a contribuição brasileira à civilização do planeta. Seguindo essa
linha de pensamento, como não haveria preconceito de raça no Brasil, o atraso
social do negro dever-se-ia exclusivamente à escravidão (e não ao racismo).
Completa esse argumento o fato de as Constituições brasileiras elaboradas a partir
da abolição da escravidão nunca terem diferenciado os cidadãos por raça ou cor,
ao contrário do que acontecia nos EUA e na África do Sul. Como lutar contra o
racismo se o racismo “não existia”? Esse era um dos principais problemas que se
apresentavam aos militantes do movimento negro na década de 1970.
que já não eram uma discussão estranha no interior da militância, emergiram como
uma possibilidade e passaram a ser uma demanda real e radical, principalmente a
sua modalidade de cotas” (GOMES, 2012, p.738).
1.2
Alguns conceitos centrais para a discussão etnicorracial
2
Grifos do autor
Capítulo 1. Introdução 24
3
De acordo com Mário Theodoro (2014), a discriminação é tipificada no Brasil, desde a década de
1950, como ilícito penal. Primeiramente como contravenção, com a Lei Afonso Arinos de 1951;
nos anos 1980 como crime imprescritível e inafiançável (Lei Caó, de 1989).
Capítulo 1. Introdução 25
4
Estou consciente que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) utiliza em seu sistema
classificatório as categorias branco, amarelo, pardo, preto e indígena. Os negros, em geral, são
considerados como a associação das categorias de pretos e partos do IBGE. No entanto, alguns
autores e autoras do campo dos estudos sobre relações raciais utilizam os termos afro-brasileiros
ou afrodescendentes, como Gonçalves e Silva (2000), Siss (2003), entre outros/as.
Capítulo 1. Introdução 26
5
Pires (2013, p.108) enfatiza que “naquele momento os negros (pretos e pardos) representavam
aproximadamente 46% do contingente populacional pátrio”, mas que “foram eleitos apenas onze
representantes negros do total de 559 membros, ou seja, 2% dos constituintes”.
6
No âmbito desse trabalho não será possível elencar todas essas medidas. Apresentarei algumas: (1)
a obrigatoriedade do ensino de história das populações negras na construção de um modelo
educacional contra o racismo e a discriminação; (2) a garantia do título de propriedade das terras
ocupadas por comunidades quilombolas; (3) a criminalização do racismo; (4) a previsão de ações
compensatórias relativas à alimentação, transporte, vestuário, acesso ao mercado de trabalho, à
educação, à saúde e aos demais direitos sociais; (5) liberdade religiosa; 6) a proibição de que o
Brasil mantivesse relações com os países que praticassem discriminação e que violassem as
Declarações de Direitos Humanos já assinadas e ratificadas pelo país.
Capítulo 1. Introdução 27
7
Censo Demográfico 2000: características da população e dos domicílios – resultados do universo,
pesquisa realizada pelo IBGE e Relatório IPEA – Desigualdade racial no Brasil: evolução das
condições de vida na década de 90, de julho de 2001.
8
No Capítulo 2, apresentarei alguns dados dessas e de outras pesquisas, especialmente, aqueles que
estão relacionados às questões educacionais.
Capítulo 1. Introdução 28
1.3
Justificativas: por que ações afirmativas na educação básica?
9
A Lei 12.711/12 dispõe sobre as cotas sociais e raciais para ingresso nas universidades federais e
nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e reserva no mínimo 50% das matrículas
por curso e turno, através de concurso seletivo, para alunos/as oriundos/as integralmente do ensino
médio público em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos, inclusive em cursos de
educação profissional técnica. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.
10
A Lei 6.433/13 cria cotas nas unidades da Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC) onde
serão reservadas 20% das vagas para estudantes egressos de escolas públicas que cursaram
integralmente os dois ciclos do Ensino Fundamental, 20% para o preenchimento a partir de
critérios raciais e 5% para pessoas com algum tipo de deficiência. Já a Lei 6434/13 instituiu a
reserva de vagas para o Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – CAp/UERJ, para
o 1º e 6º anos do Ensino Fundamental assim distribuídas: 20% para estudantes carentes que
cursaram integralmente o 1º segmento do ensino fundamental na rede pública, 20% para estudantes
negros, pardos e índios, sendo adotado o critério da autodeclaração, 5% para deficientes físicos,
25% para filhos de servidores da UERJ, sendo 12,5% para filhos de professores e 12,5% para
filhos de funcionários, 30% das vagas restantes são de ampla concorrência. Os projetos de lei
foram sancionados em 2013 e, a partir de 2014, essas instituições deveriam adotar políticas de
ação afirmativa em seus processo de ingresso.
Capítulo 1. Introdução 30
p. 23), uma nova categoria de alunos: os cotistas. Apesar de estar tratando em sua
pesquisa dos/as estudantes que ingressaram no ensino superior, utilizarei nesse
trabalho sua definição:
Os cotistas são os “novos” sujeitos que passam a vivenciar a experiência
universitária, com suas diferentes especificidades: cotistas de baixa renda, negros,
indígenas, quilombolas, oriundos de escolas públicas, portadores de necessidades
especiais, professores em exercício, entre outras. (...) alunos considerados
“malditos” por tantos, dentro e fora da comunidade universitária; eu diria alunos
estigmatizados, sem voz, ou melhor, emudecidos, visto que raramente são ouvidos.
1.4
Hipóteses e apostas para um novo campo
1.5
Questões e objetivos de pesquisa
1.6
Procedimentos metodológicos
11
Currículo é entendido aqui a partir da tradição crítica, conforme definição de Moreira e Silva
(2000, p. 08): “O currículo é considerado um artefato social e cultural. Isso significa que ele é
colocado na moldura mais ampla de suas determinações sociais, de sua história, de sua produção
contextual. O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do
conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões
sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares.
O currículo não é um elemento transcendente e atemporal – ele tem uma história, vinculada a
formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação”.
Capítulo 1. Introdução 35
12
Sou professora da instituição, atuo no 1º segmento do ensino fundamental e, por essa razão, optei
por realizar minha investigação no 2º segmento.
Capítulo 1. Introdução 36
ou confirmar o que já sabia; (iv) revela pistas para aprofundamento ou para futuros
estudos; (v) tem uma preocupação especial com o leitor, dando-lhe elementos para
que use sua experiência, ampliando ou confirmando sua compreensão do fenômeno
estudado.
Segundo André (2005), no estudo de caso, o pesquisador não parte de um
esquema teórico fechado que limite suas interpretações e impeça a descoberta de
novas relações, mas favorece que descubra e acrescente aspectos novos à
problemática estudada. Também possui potencial de contribuição aos problemas da
prática educacional porque ao focalizar uma instância em particular e iluminar suas
múltiplas dimensões assim como seu movimento natural, podem fornecer
informações valiosas para medidas de natureza prática e para decisões políticas.
Como método de pesquisa, o estudo de caso é usado em muitas situações, para
contribuir ao nosso conhecimento dos fenômenos individuais, grupais,
organizacionais, sociais, políticos e relacionados. Seja qual for o campo de
interesse, a necessidade diferenciada da pesquisa de estudo de caso surge do desejo
de entender fenômenos sociais complexos. Em resumo, um estudo de caso permite
que os investigadores foquem um “caso” e retenham uma perspectiva holística e
do mundo real (YIN, 2015, p. 4).
Robert Yin (2005) ressalta que o estudo de caso pode privilegiar duas fontes
de evidência: observação direta dos eventos que estão sendo estudados e/ou a
realização de entrevistas com as pessoas envolvidas nesses eventos. Assim, um
aspecto comum entre as considerações feitas por Yin (2015) e André (2005) é que
o caso se destaca por se constituir numa unidade dentro de um sistema mais amplo,
ou seja, o interesse incide naquilo que ele tem de único, de particular.
Outro aspecto que considero importante da abordagem qualitativa é ouvir
em profundidade os atores envolvidos na investigação. Segundo Mirian Goldenberg
(1998, p.14), “na pesquisa qualitativa a preocupação do pesquisador não é com a
representatividade numérica do grupo pesquisado, mas com o aprofundamento da
compreensão de um grupo social, de uma organização, de uma instituição, de uma
trajetória”.
Optei ainda pela estratégia de entrevistas semiestruturadas que, segundo
Menga Lüdke e Marli André (1986, p.34), “se desenvolvem a partir de um esquema
básico, porém não aplicado rigidamente, permitindo que o entrevistador faça as
necessárias adaptações. (...) uma entrevista mais longa, mais cuidada, feita com
base em um roteiro, mas com grande flexibilidade”.
Capítulo 1. Introdução 38
Por outro lado, Duarte (2004, p. 216) nos adverte que ao construir as
categorias de análise das entrevistas devemos estar muito atentos/as à “interferência
de nossa subjetividade, ter consciência dela e assumi-la como parte do processo de
investigação”, de modo que não encontremos apenas elementos que confirmem
nossas hipóteses de trabalho e/ou os pressupostos das teorias que orientaram o
estudo. Observa ainda que o relato detalhado dos procedimentos adotados, a
explicitação dos pressupostos teóricos e das regras que orientaram o trabalho pode
contribuir para uma maior confiabilidade em relação ao uso das entrevistas em
pesquisas qualitativas (DUARTE, 2004, p. 219).
Outro aspecto que precisa ser considerado quando as entrevistas são
utilizadas na coleta de dados é o que Bourdieu (2008) nomeia como dissimetria
entre os papeis do entrevistador/a e do/a entrevistado/a. O desafio que se impõe é
de que o primeiro possa compreender o modo como o segundo percebe a finalidade
da pesquisa bem como suas motivações para participar desta troca. Esta clareza
oferece a possibilidade de “reduzir as distorções que dela resultam ou, pelo menos,
de compreender o que pode ser dito e o que não pode as censuras que o impedem
de dizer certas coisas e as incitações que o encorajam a acentuar outras”
(BOURDIEU, 2008, p. 695). Mais uma vez, o caráter subjetivo dos depoimentos
colhidos deve ser considerado e tomado como pontos de vista particulares que
devem ser respeitados, mas, no momento das análises, precisam ser comparados
com outros na tentativa de estabelecer uma melhor compreensão do objeto
estudado.
Assim, as entrevistas se constituíram no principal caminho metodológico
para alguns objetivos da pesquisa e mostrou ser o procedimento apropriado para a
coleta de dados, em função da pretensão deste estudo de caso em compreender as
representações que professores/as, o gestor e funcionárias técnico administrativas
Capítulo 1. Introdução 39
Além disso, Franco (2008) considera que a emissão das mensagens está
necessariamente vinculada às condições contextuais, econômicas e socioculturais
de seus produtores sem abrir mão dos requisitos de qualidade e de sistematização
dos dados. Tendo em mente essa abordagem, foram elaboradas inferências13 sobre
13
Franco (2008, p.29-30) afirma que “se a descrição é a primeira etapa necessária e se a interpretação
é a última fase, a inferência é o procedimento intermediário que vai permitir a passagem, explícita
Capítulo 1. Introdução 41
1.7
Revisão de literatura: com quem conversamos?
mesma para a temática da pesquisa. O primeiro número data do ano de 2010, sendo,
portanto, uma publicação recente. Essa associação é responsável pela realização do
Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros (COPENE).
A ABPN surgiu para congregar pesquisadores negros e não negros que estudam as
relações raciais e demais temas de interesse da população negra, produzir
conhecimento científico sobre a temática racial e construir academicamente um
lugar de reconhecimento das experiências sociais do movimento negro como
conhecimentos válidos (GOMES, 2012, p.739).
15
Para mais detalhes, consultar a dissertação intitulada “Jovens negros no Colégio Pedro II: ações
afirmativas e identificação racial”.
2
Negr@s e a luta por educação
2.1
Os movimentos negros e as demandas por cidadania
16
Utilizarei o termo no plural por entender que existem diversos movimentos negros em nosso país.
Cada um deles trabalha a temática a partir de abordagens distintas. Manterei no singular quando
estiver citando os/as autores/as que fundamentam esse capítulo.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 46
Por sua vez, Joel Rufino dos Santos (1994) compreende o movimento negro
como um conjunto de ações de mobilização política, de protesto antirracista, que
envolveria movimentos artísticos, literários, religiosos, de qualquer tempo,
fundadas e promovidas pelos negros no Brasil como forma de libertação e de
enfrentamento do racismo. Essa definição apresenta uma concepção mais alargada
do que seria o movimento negro. Nesse sentido, diverge da defendida por
Domingues (2007), que considera que existe nessa definição um alargamento
conceitual e temporal que apresenta um problema, sobretudo, para a abordagem
historiográfica. Domingues (2007, p. 102) tratará, então, do movimento negro como
“movimento político de mobilização racial (negra) mesmo que assuma em muitos
momentos uma face fundamentalmente cultural”. Utilizarei nesse trabalho a
definição proposta por Domingues (2007), que engloba nas lutas empreendidas pelo
movimento negro, tanto as que se referem ao preconceito e a discriminação raciais,
quanto aos aspectos identitários que medeiam às reivindicações políticas.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 47
17
O termo preto, difundido pelos adeptos do hip-hop, é a adoção traduzida do black, palavra utilizada
por décadas pelo movimento negro estadunidense. Já a rejeição que eles fazem do negro deve-se
ao fato de que nos Estados Unidos esta palavra origina-se de niger, termo que lá tem um sentido
pejorativo (DOMINGUES, 2007, p.120).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 50
2.2
As políticas de ação afirmativa: algumas considerações
oportunidades ou outros benefícios para pessoas, com base, entre outras coisas, em
sua pertença a um ou mais grupos específicos aparece na legislação trabalhista
estadunidense de 1935 (The 1935 National Labor Relations Act), que previa que o
empregador que discriminasse seus empregados teria que parar de discriminar e, ao
mesmo tempo, tomar ações afirmativas para colocar as vítimas nas posições onde
elas estariam se não tivessem sido discriminadas.
Na década de 60, a partir de uma significativa pressão dos movimentos
negros contra as marcantes políticas de segregação fundamentadas em lei, foi
aprovada, pelo congresso americano, a Lei dos Direitos Civis, que bania a
discriminação nas acomodações públicas, nos programas de governo, no emprego,
dando novos poderes ao governo federal para implementar a dessegregação.
Segundo Siss (2003), a expressão Affirmative Action foi usada pela primeira
vez, em 1961, pelo então presidente John Kennedy, que estabeleceu um comitê
presidencial sobre oportunidades iguais no emprego. Porém, na administração de
Lyndon Johnson é que foram criados mecanismos e estratégias importantes de
combate e de superação das desigualdades raciais e de gênero, principalmente. Esse
conjunto de medidas procurava coibir a segregação e a discriminação raciais e
visava criar as condições de igualdade de oportunidades educacionais, de vida e de
trabalho entre todos/as.
Não se pode deixar de ressaltar que as políticas de ação afirmativa não
gozam de consenso na sociedade estadunidense. Como em qualquer debate político,
a discussão sobre o tema dividiu (e ainda divide) opiniões, promoveu (e promove)
intensos debates entre intelectuais, acadêmicos, governantes e a sociedade como
um todo, mesmo sendo uma experiência duradoura que apresentou efeitos práticos
através dos programas que possibilitaram a promoção de direitos sociais,
econômicos, educacionais e culturais não apenas para os/as negros/as, mas também
para mulheres, indígenas, latino-americanos e outros grupos minoritários.
Medeiros (2002, p.69) enumera exemplos de políticas afirmativas adotadas
em outros países e afirma que, “mesmo se tratando de sociedades muito diferentes,
com graus de desenvolvimento distintos, formas de estruturação social, regimes
políticos e econômicos próprios, o objetivo de tais medidas é de sempre beneficiar
grupos discriminados por motivos raciais, étnicos, de classe ou de gênero”.
Na Índia, por exemplo, vigora a milenar tradição religiosa, o hinduísmo,
cujo sistema de castas estabelece a divisão da sociedade em quatro grupos:
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 52
e não aquele que se refugia na ideia de mistura racial que inviabilizou o debate sobre
a diversidade cultural no Brasil. Muitos questionamentos são feitos sobre a adoção
das ações afirmativas em nosso país: “alguns indagam se as políticas de
reconhecimento das identidades ‘raciais’, em especial da identidade negra, não
ameaçariam a unidade ou a identidade nacional, por um lado, e se não reforçariam
a exaltação da consciência racial por outro. Ou seja, se não teriam um efeito
‘bumerangue’, criando conflitos raciais que, segundo eles, não existem na
sociedade brasileira” (MUNANGA, 2006, p. 52).
O argumento da ‘mistura racial’ parece desconsiderar as desigualdades
historicamente acumuladas que contribuíram para criar condições de vida
desfavoráveis para os/as negros/as. Numa breve retrospectiva é possível lembrar
que: (i) o Brasil foi o último país do mundo a abolir o trabalho escravo de pessoas
de origem africana, em 1888; embora nenhuma forma de segregação tenha sido
imposta após a abolição, os ex-escravos tornaram-se totalmente marginalizados em
relação ao sistema econômico vigente; (ii) a partir da segunda metade do século
XIX, o governo brasileiro estimulou a imigração europeia numa tentativa explícita
de “branquear” a população nacional; (iii) a força de trabalho dos imigrantes foi
preferencialmente contratada, tanto na agricultura quanto na indústria. Assim, a
mão de obra negra que havia sido escravizada e participado fortemente da
construção deste país foi preterida no período pós-abolição (Heringer, 1999).
Nos anos 30, o conceito de “democracia racial” propagou a ideia de que a
maioria negra e mestiça deveria ser motivo de orgulho, porque era um sinal, de
nossa tolerância e integração racial já que não possuíamos uma segregação legal
como nos Estados Unidos e na África do Sul. Prevalecia a ideia de um país
integrado onde práticas de preconceito e/ou discriminação racial eram mascaradas
pelo mito da democracia racial, que foi sendo consolidado no imaginário social
brasileiro ao longo do tempo.
As desigualdades a que estão sujeitos os negros e os mestiços, na atualidade
brasileira, são entendidas como desigualdades sociais e não raciais, pois, as raças
que comporiam o ‘mosaico étnico’ nacional se estenderam, porque se misturaram
e, ao se misturarem, eliminaram a possibilidade da existência de uma discriminação
com a variável raça. Este é o dogma central do mito da democracia racial (SISS,
2003, p. 48-49).
e, como afirma Siss (2003, p. 81), “há, entre nós, uma verdadeira apologia de uma
pseudo-harmonia racial que leva a um aprofundamento das práticas
discriminatórias.”
Durante os anos 60 e 70, a ditadura militar coibiu a atividade política e
intelectual e inibiu as discussões sobre desigualdades raciais. No final dos anos 70,
vários movimentos sociais começaram a se reorganizar, entre eles, os movimentos
negros, que estimularam a retomada das discussões sobre desigualdades raciais no
país; alertaram a sociedade e o Estado para o fato de que “a desigualdade que atinge
a população negra brasileira não é somente herança de um passado escravista, mas,
sim, um fenômeno mais complexo e multicausal, um produto de uma trama
complexa entre o plano econômico, político e cultural” (GOMES, 2012, p.734).
Nos anos 90, os movimentos negros obtiveram crescente visibilidade; militantes
denunciaram as desigualdades raciais e a complexa imbricação entre essas e as
desigualdades sociais:
A partir da segunda metade dos anos de 1990, a raça ganha outra centralidade na
sociedade brasileira e nas políticas de Estado. A sua releitura e ressignificação
emancipatória construída pelo movimento negro extrapola os fóruns da militância
política e o conjunto de pesquisadores interessados no tema. Dentre as diversas
ações do movimento negro nesse período, destaca-se, em 1995, a realização da
“Marcha Nacional Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a
Vida”, em Brasília, no dia 20 de novembro. Como resultado, foi entregue ao
presidente da República da época o “Programa para Superação do Racismo e da
Desigualdade Étnico-Racial”. Neste, a demanda por ações afirmativas já se fazia
presente como proposição para a educação superior e o mercado de trabalho
(GOMES, 2012, p. 739).
18
Fúlvia Rosemberg (2010, p. 15-16) esclarece que o programa IFP, teve início em 2001 e foi
implantado gradativamente em 22 países e territórios da Ásia, África, América Latina e na Rússia.
Na América Latina, sendo implementado no Chile, Guatemala, México, Peru e no Brasil. Seu
pressuposto é o de que a educação, em nível pós-graduado, constitui uma das ferramentas para
incentivar a consolidação de lideranças comprometidas com novas opções de desenvolvimento
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 56
em prol da justiça e igualdade social. Alguns fatores impedem o acesso, permanência e sucesso
na pós-graduação: situação econômica, gênero, etnia, raça, casta, religião, idioma, isolamento
geográfico, instabilidade política, deficiência física.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 57
19
Entre os gestos simbólicos, destacam-se a presença de Matilde Ribeiro na equipe de transição de
governo e de Paulo Paim na primeira vice-presidência do Senado Federal, as nomeações de
Benedita da Silva para a pasta de Assistência Social, de Gilberto Gil para a de Cultura e de Marina
Silva para a de Meio Ambiente, além da criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial
com status de Ministério sob a liderança de Matilde Ribeiro, a presença de Muniz Sodré e de
representantes da Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras no Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e a indicação de ministro a Joaquim Benedito
Barbosa Gomes para o STF. Inegavelmente, em nenhum outro governo houve esse número de
pessoas negras ocupando postos de primeiro escalão em franca sinalização para a sociedade de
uma política de reconhecimento e inclusão dos negros em instâncias de poder. Se as ações de
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 58
2.3
Ações afirmativas: diferentes conceituações
2.4
Políticas de ação afirmativa para negros/as no Brasil
Silvério (2002, p.99), por sua vez, afirma que “a situação de inclusão
subalterna ou exclusão social da população afrodescendente não pode ser revertida
pelas leis de mercado e por políticas de caráter universalista”. Ou seja, as políticas
de cunho universalista apresentam uma abrangência insuficiente, porém, precisam
ser redefinidas para que no médio e longo prazo tenhamos um ensino público de
qualidade para todos/as.
Nos anos dois mil, algumas universidades brasileiras começaram a
implementar as políticas de cotas. De acordo com Machado (2013, p. 25), “a
importância da UERJ, UNEB e UnB como referência para as universidades
estaduais e federais que adotaram as políticas de ação afirmativa foi positiva no que
se refere ao pioneirismo da implantação das leis de políticas de ações afirmativas”.
Temos, portanto, uma experiência de pouco mais de uma década que ainda
demanda estudos detalhados, ou como afirmam Verônica Daflon, João Feres Júnior
e Luiz Augusto Campos (2013, p. 304), um balanço sistemático das medidas
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 65
afirmativas no Brasil, pois com a aprovação da Lei 12711/12 que criou uma política
de reserva de vagas para todo o sistema de educação superior e ensino médio
federal, “a realidade das políticas de ação afirmativa no país tende a se alterar
significativamente. Isso torna ainda mais premente a tarefa de compreender o que
foi feito até agora”.
A tarefa de sumarizar para o público os aspectos procedimentais dessas políticas
tem sido deixada para a grande mídia. Esta, com seus critérios próprios de
noticiabilidade, produz representações fortemente enviesadas da realidade. Os
intelectuais públicos, por sua vez, com frequência se baseiam nessas
representações ao formularem crítica ou defesa das políticas de ação afirmativa.
Como resultado, boa parte do debate em torno dessas medidas no Brasil se trava
hoje em torno de problemas equívocos ou mesmo falsos. (DAFLON ET AL, 2013,
p.304).
nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. De acordo com essa lei,
as instituições reservarão no mínimo 50% das matrículas por curso e turno, através
de concurso seletivo, nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de
educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio
público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos, inclusive em
cursos de educação profissional técnica. Os demais 50% das vagas permanecem
para ampla concorrência. O critério da raça será autodeclaratório e cada instituição
deverá preencher as cotas com autodeclarados pretos, pardos e indígenas na mesma
proporção em que esses segmentos são encontrados na unidade da federação em
que se localiza a instituição de acordo com o último censo do IBGE. A nova
legislação cria uma única política de ação afirmativa, já que, até o momento em que
a lei foi sancionada, as instituições de ensino usavam diferentes modelos para
garantir o acesso de grupos da população ao ensino superior:
A Lei Federal 12711/12 foi concebida para regular a implantação de políticas de
ação afirmativa nas universidades federais, que têm até 2015 para pensar políticas
de inclusão de egressos de escola pública e da população de diversidade étnica de
cada estado. Pode-se assim dizer que o acesso ao ensino superior brasileiro entra
em nova fase, com mudanças e desafios provenientes de uma política pública que
veio para intervir na estrutura atual, sempre para poucos e para jovens selecionados
majoritariamente nas melhores escolas particulares do país. É o momento, portanto,
de se pensar na combinação complexa da manutenção do mérito no acesso à
universidade, mas agora com a preocupação de uma universidade pública mais
democrática e mais inclusiva (PAIVA, 2013, p.41-42).
21
Vinculada à Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, a FAETEC deu seus primeiros passos
em 10 de junho de 1997. Atualmente, a rede atende cerca de trezentos mil alunos por ano em mais
de cento e trinta unidades de ensino, que somam a oferta no Ensino Técnico de Nível Médio, na
Formação Inicial e Continuada/Qualificação Profissional e no Ensino Superior. Ao todo cinquenta
e uma cidades do estado contam com a presença da Fundação através da oportunidade em diversos
segmentos de ensino. A FAETEC é uma das mais importantes redes de Educação Pública e
Profissionalizante do Brasil. A Lei n. 6433/13 cria cotas nas escolas técnicas do Estado do Rio de
Janeiro. Serão 20% para estudantes egressos de escolas públicas que cursaram integralmente os
dois ciclos do Ensino Fundamental, 20% para preenchimento a partir de critérios raciais e 5%
para pessoas com algum tipo de deficiência, o que expande uma política do Estado.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 67
2.5
Alguns indicadores raciais e sociais: a realidade estatística
tocante à educação: “Sabemos que a escolaridade média dos brancos e dos negros
tem aumentado de forma contínua ao longo do século XX. Contudo, um jovem
branco de 25 anos tem, em média, mais 2,3 anos de estudo que um jovem negro da
mesma idade, e essa intensidade da discriminação racial é a mesma vivida pelos
pais desses jovens; a mesma observada entre seus avós” (HENRIQUES, 2001,
p.27).
Como afirma Maria Aparecida da Silva (2002, p.118), os dados do IPEA
corroboram todo o saber empírico que os movimentos negros e os movimentos de
mulheres negras já produziram e comprovam que, “caso a educação brasileira
continue progredindo no mesmo ritmo de hoje, em treze anos pessoas brancas
devem alcançar a média de oito anos de estudos, mas as negras só atingirão a mesma
meta daqui a trinta e dois anos. Serão três gerações perdidas até que hipoteticamente
as condições de igualdade sejam construídas”.
Quanto ao baixo desempenho acadêmico dos/as candidatos/as negros/as à
universidade por meio de reserva de vagas, Silva (2002, p.118) argumenta que
afirmar que o nível acadêmico estaria comprometido por conta do acesso de pessoas
negras à universidade equivale “a sacralizar a infalibilidade do vestibular como
método de seleção. Entretanto, é corriqueira a reclamação docente de que o nível
de conhecimentos e a capacidade interpretativa dos/as alunos/as caem a cada ano.
Qual é, enfim, a qualidade acadêmica que a juventude, majoritariamente branca e
bem preparada para obter aprovação no vestibular, tem assegurado?”
Outros estudos também evidenciam a persistente desigualdade entre
brancos/as e negros/as no Brasil em diversos indicadores como: renda, educação,
saúde, trabalho, habitação, expectativa de vida, mortalidade infantil, entre outros.
Apresentarei alguns dados de três pesquisas realizadas pelo IBGE, focalizando mais
especificamente aqueles relacionados aos indicadores educacionais da população
brasileira e desagregados por cor ou raça. A opção pelos estudos de 2008, 2010 e
2014, se deve, respectivamente, ao fato de que o primeiro traz dados dos últimos
anos do século XX; o segundo revela informações da primeira década dos anos dois
mil após a adoção de diversas medidas governamentais que visavam à melhoria da
qualidade da educação no país, incluindo a implementação das políticas afirmativas
no ensino superior; o terceiro por ser o mais atualizado no momento em que esse
relatório de pesquisa estava sendo elaborado.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 69
22
A universalização da educação primária é uma meta a ser atingida até 2015 pelos países signatários
do acordo dos Objetivos do Milênio, incluindo o Brasil (IBGE, 2008, p. 44).
23
A PNAD 2007 levantou a informação sobre as pessoas que frequentam o curso de nove anos. Do
total de estudantes do ensino fundamental (32,8 milhões), aproximadamente 28,2% frequentavam
o curso com duração de nove anos. (IBGE, 2008, p. 48).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 70
e escrever e revela que, em 2007, o país contava com 8,4% das crianças nessa
condição24.
No conjunto da população brasileira de quinze anos ou mais de idade, a
escolaridade média, em 2007, ainda não havia alcançado um nível satisfatório, era
apenas de 7,3 anos de estudo. A pesquisa revela que houve um aumento nesta média
de 1,5 anos de estudo em relação a 1997, quando o valor encontrado era de 5,8 anos,
mas afirma que os ganhos na escolaridade média da população têm sido
indiscutivelmente lentos25.
Apesar dos avanços apontados pela pesquisa, o capítulo intitulado Cor ou
raça enfatiza que,
No ano de 2008, a data de 13 de maio permitiu lembrar os 120 anos transcorridos
desde a aprovação da Lei Áurea, como é conhecido o decreto que determinou o fim
da escravidão no Brasil. Mas apesar desse relativamente longo período, a
desigualdade material e simbólica da população composta pelos grupos étnico-
raciais subalternizados se manteve e a desvantagem em relação aos brancos no
usufruto de recursos e benefícios continua a afetar severamente metade da
população brasileira (IBGE, 2008, p.209).
24
Considerando as cinco regiões do país, a maior desigualdade estava presente nas regiões Norte
(12,1%) e Nordeste (15,3%). As demais regiões apresentam índices bem menores: Centro Oeste
(5,3%), Sudeste (4,2%) e Sul (3,6%) (IBGE, 2008, p. 49).
25
Pessoas de quinze anos ou mais de idade, analfabetas, de acordo com a distribuição percentual,
2007, por cor ou raça: branca – 31,2%, preta ou parda – 68,8%.
26
Grifos meus.
27
No item taxas de frequência a curso universitário, o estudo afirma que na comparação dos dados
para estudantes entre 18 e 25 anos de idade, os estudantes pretos e pardos não conseguiram
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 71
escolar das pessoas de 5 a 6 anos de idade por cor ou raça é a seguinte: branca –
87,8%; preta e parda – 84,5%. Essa mesma taxa para as pessoas de 7 a 14 anos de
idade é de 98,2% para brancos e de 97,1% para pretos e pardos.
As taxas de analfabetismo funcional e frequência escolar também revelam
diferenças significativas entre os níveis apresentados pela população branca e os da
população preta e parda que permanecem, persistentemente, menos favorecidos. Os
números absolutos de 2007 demonstram que dos mais de 14 milhões de analfabetos
brasileiros quase 9 milhões são pretos e pardos; evidenciando que para este setor da
população a diferença continua grave. Os números relativos também corroboram
esses dados: a taxa de analfabetismo da população branca é igual a 6,1% para as
pessoas de quinze anos ou mais de idade e de 14% para pretos e pardos, ou seja,
mais que o dobro que a de brancos.
A distribuição por cor ou raça da população que frequenta escola com idade
entre 15 e 24 anos é outro indicador que revela essas diferenças. Entre os estudantes
nessa faixa etária, cerca de 85,2% dos brancos estavam estudando, sendo que 58,7%
destes frequentavam o nível médio, adequado a esta faixa de idade. Já entre os
pretos e pardos, 79,8% frequentavam a escola, porém, apenas 39,4% estavam no
nível médio, representando uma taxa muito aquém da desejada. O indicador médio
de anos de estudo da população de 15 anos ou mais de idade continua “a apresentar
uma vantagem em torno de dois anos para brancos, com 8,1 anos de estudo, em
relação a pretos e pardos, com 6,3 anos de estudo, diferença que vem se mantendo
constante ao longo dos anos se comparada com as informações das anteriores
pesquisas” (IBGE, 2008, p.212).
A Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da
população brasileira de 2010, no que diz respeito à educação, em termos gerais,
afirma que o país alcançou nas últimas décadas um crescimento substantivo quanto
alcançar as taxas de frequência que os brancos apresentavam dez anos antes. Os números
mostram, ainda, que a diferença em favor dos brancos, em vez de diminuir, aumentou nesse
período: em 1997 era de 9,6 pontos percentuais aos 21 anos de idade, enquanto em 2007 esta
diferença salta para 15,8 pontos percentuais. O item nível superior completo também apresenta
diferenças entre a população branca e negra. Em 1997, 9,6% dos brancos havia concluído o ensino
superior, enquanto 2,2% dos pretos e pardos. Já em 2007, os números são 13,4% para brancos,
4,0% para pretos e pardos, demonstrando o gap entre esses grupos. O hiato entre os dois grupos
que era de 7,4 pontos percentuais em 1997, passa para 9,4 pontos percentuais em 2007, mostrando
que após uma década a composição racial das pessoas que completaram o nível superior
permanece inalterada, ou até mais inadequada, em termos de representação dos pretos e pardos,
continuando a se constituir como um obstáculo para a ascensão social destes (IBGE, 2008, p.211).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 72
28
O sistema brasileiro de ensino regular compreende a educação básica formada pela educação
infantil, pelos ensinos fundamental e médio, e pela educação superior. É de competência de o
governo federal atuar no ensino superior e prestar assistências técnica e financeira às esferas
estadual e municipal. Aos estados e Distrito Federal, cabem às responsabilidades da oferta dos
ensinos fundamental e médio, e, aos municípios, a oferta do ensino fundamental e a educação
infantil (IBGE, 2010, p. 45).
29
É importante observar que nas áreas rurais onde a oferta de estabelecimentos para este segmento
populacional é mais reduzida, o crescimento foi também bastante significativo, passando de
15,2% para 28,4%. (IBGE, 2010, p. 46)
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 73
população de cor preta quanto a de cor parda ainda têm o dobro da incidência de
analfabetismo observado na população branca: 13,3% dos pretos; 13,4% dos
pardos, contra 5,9% dos brancos. Outro indicador é o analfabetismo funcional: a
taxa diminuiu consideravelmente nos últimos dez anos, passando de 29,4%, em
1999, para 20,3% em 2009, porém, o analfabetismo funcional concerne mais
fortemente aos pretos (25,4%) e aos pardos (25,7%) do que aos brancos (15,0%)
(IBGE, 2010, p. 227).
Por outro lado, essa pesquisa assevera que no debate nacional sobre a
escolaridade da população brasileira, a questão da qualidade do conhecimento
adquirido nos últimos anos pela população infanto-juvenil, faixa correspondente à
educação básica, continua sendo uma constante. De acordo com essa síntese de
indicadores sociais, as evidências estatísticas revelam uma média muito baixa de
anos de estudo concluídos, especialmente se comparada a outros países dos mesmos
níveis de desenvolvimento econômico e social30.
Esse estudo ressalta que, “no Brasil da primeira década do século XXI,
destaca-se a mudança na distribuição da população, segmentada por cor ou raça, o
que confirma uma tendência já detectada”, pelos dados apresentados pela PNAD
2009, que “mostram um crescimento da proporção da população que se declara
preta ou parda nos últimos dez anos: respectivamente, 5,4% e 40,0% em 1999; e
6,9% e 44,2% em 2009”, e a hipótese aventada para explicar esse fenômeno seria
“uma recuperação da identidade racial, já comentada por diversos estudiosos do
tema” (IBGE, 2010, p. 226).
Apesar desse aspecto positivo, quando os indicadores desse estudo filtram
os dados relativos à cor ou raça, é possível perceber que, apesar dos avanços, as
diferenças entre brancos/as e negros/as permanecem e alertam:
Independentemente desse possível resgate da identidade racial por parte da
população de cor preta, parda ou de indígenas, a situação de desigualdade que
sofrem os grupos historicamente desfavorecidos subsiste. Uma série de indicadores
revelam essas diferenças, dentre os quais: analfabetismo; analfabetismo funcional;
acesso à educação; aspectos relacionados aos rendimentos; posição na ocupação; e
arranjos familiares com maior risco de vulnerabilidade. Em relação à equidade, o
hiato nos rendimentos e a apropriação de uma menor parcela do rendimento total
concernem particularmente às populações de cor preta ou parda (IBGE, 2010,
p.227).
30
Em 2009, o brasileiro de 15 anos ou mais de idade tinha, em média, 7,5 anos de estudo, ou seja,
não conseguiu concluir o ciclo fundamental obrigatório, direito adquirido constitucionalmente.
(IBGE, 2010, p. 48)
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 74
31
A desigualdade entre brancos, pretos e pardos também se revela quando relacionado ao número
de pessoas que ocupam posições privilegiadas: “na categoria de empregadores, estão 6,1% dos
brancos, 1,7% dos pretos e 2,8% dos pardos. Ao mesmo tempo, pretos e pardos são, em maior
proporção, empregados sem carteira e representam a maioria dos empregados domésticos”.
(IBGE, 2010, p. 230)
32
A obrigatoriedade e ampliação do ensino fundamental ocorreu em 2006; o PDE, em 2007, e o
IDEB data de 2009. Este estudo também destaca a Emenda Constitucional 59, de 2009, que
ampliou progressivamente, a obrigatoriedade da educação básica para a faixa de 4 a 17 anos de
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 75
idade até 2016. A Lei 12.796/13 oficializou essa mudança alterando o texto original da LDB de
1996. A educação básica passou a ser obrigatória para essa faixa etária e organizada em três
etapas: pré-escola (nível obrigatório da educação infantil), ensino fundamental e ensino médio. A
ampliação da educação básica para 4 anos de idade representa uma medida importante, porém, há
significativas desigualdades regionais de acesso a esse nível de ensino (IBGE, 2014, p. 101-102).
33
De 2004 a 2013, as taxas de escolarização das crianças de 0 a 3 anos e de 4 e 5 anos de idade
subiram de 13,4% e 61,5% para 23,2% e 81,4% respectivamente. (IBGE, 2014, p. 101)
34
Uma das deficiências que mais impacta o acesso à escola é a deficiência motora severa, isto é,
crianças com grande dificuldade ou que não conseguiam de modo algum andar ou subir degraus.
Observa-se melhorias regionais nesse aspecto no período 2000-2010, porém, os avanços não
foram suficientes para a universalização do atendimento escolar desse grupo. Adequação da
infraestrutura escolar às crianças com deficiência motora é essencial para viabilizar o acesso e
manutenção dessas crianças na escola. A partir do Censo Demográfico 2010 é possível observar
mudanças significativas no acesso à escola das crianças de 6 a 14 anos com deficiência motora
severa entre 2000 e 2010. Enquanto mais da metade dessas crianças estava fora da escola em
2000, cerca de um terço das mesmas não frequentava escola em 2010 (IBGE, 2014, p. 103).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 76
anos manteve-se a mesma em 2004 e 2013, na casa dos 2,5 anos, quando deveriam
ter, no mínimo, quatro anos de estudo35. Esse atraso vai se intensificando na medida
em que a idade aumenta. Entre 2004 e 2013 ocorreu um lento avanço na média de
anos de estudo na faixa etária de 12 a 14 anos de idade, momento em que esse
público estaria frequentando o segundo segmento do ensino fundamental36.
Ao investigar o perfil do grupo com distorção idade-série dos/as estudantes
que frequentavam o ensino fundamental regular com idade dois anos ou mais acima
da adequada para a série/ano que frequentam, observou-se que essa distorção
“atingia quase metade dos estudantes de 13 a 16 anos de idade em 2004 (47,1%) e
41,4% deles em 2013, totalizando cerca de 3,7 milhões de estudantes. A proporção
desses estudantes com atraso no ensino fundamental era mais elevada entre
estudantes da rede de ensino pública, homens, residentes em área rural e de cor
preta ou parda” (IBGE, 2014, p. 105). Levando em consideração a cor ou raça, esse
índice apresenta os seguintes números: brancos 34,5% em 2004, 30,9% em 2013;
entre pretos e pardos 56,8% em 2004, e 47,7% em 2013, o que mais uma vez
comprova a estreita relação entre desigualdades educacionais e raciais no contexto
brasileiro, mostrando, inclusive, que a população preta e parda não atinge,
atualmente, os índices da população branca de uma década atrás.
O Brasil vem alcançando as metas estabelecidas em todas as etapas do ensino
básico – anos iniciais e finais do ensino fundamental e médio. Entretanto, os
resultados de 2013 indicam que, apesar das melhoras no fluxo escolar, o
desempenho no ensino médio não melhorou conforme planejado em nenhuma das
dependências administrativas – estabelecimentos da rede pública de ensino
estadual e municipal e aqueles pertencentes à rede particular. (IBGE, 2014, p. 107)
35
A variável anos de estudo está adaptada ao ensino fundamental de 8 anos. (IBGE, 2014, p. 105)
36
Em 2004 as pessoas com 12 anos de idade apresentavam média de atraso escolar de 4,1 anos,
passando para 4,2 em 2013; as de 13 anos 4,9 para 5,0 e as de 14 anos de 5,7 para 6,0
respectivamente. (IBGE, 2014, p. 105)
37
Taxa de analfabetismo das pessoas de 15anos ou mais de idade (2013): branca 7,2%, em 2004,
5,2%, em 2013; preta ou parda 16,3%, em 2004, e 11,5%, em 2013 (IBGE, 2014, p. 123).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 77
2.6
Educação antirracista e a Lei 10.639/03
38
Sobre a implementação da Lei 10639/03, Claudia Miranda, Mônica Lins e Ricardo Cesar da Costa
(2012), observam que: “O longo caminho de reafirmação de reivindicações dos movimentos
negros deu origem à Lei 10.639/2003, um projeto de lei apresentado em 11 de março de 1999
pelos deputados federais Ester Grossi (educadora) e por Ben-Hur Ferreira (oriundo do movimento
negro), ambos do PT. A lei, de início, trouxe consigo uma intensa polêmica: para alguns,
significava uma imposição de conteúdos, para outros, uma concessão. Porém, com a realização
de diversos fóruns estaduais e nacionais promovidos pelo MEC e o empenho de diversos
educadores e dos movimentos negros, os debates sobre o ensino da História da África e dos negros
no Brasil nos currículos escolares vêm conquistando espaços significativos como parte da luta
antirracista na sociedade brasileira” (MIRANDA ET AL, 2012, p. 13).
39
Em 20 de novembro de 2003, o então presidente Lula, instituiu a Política Nacional de Promoção
da Igualdade Racial, com o principal objetivo de promover a redução das desigualdades raciais
no Brasil, com ênfase na população negra, mediante a realização de ações exequíveis a longo,
médio e curto prazos, com reconhecimento das demandas mais imediatas, bem como das áreas de
atuação prioritária. – www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/D4886.htm -
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 80
somente aos negros e negras, mas a toda sociedade brasileira apesar de recair sobre
um segmento populacional e etnicorracial específico que foi historicamente
marginalizado e ainda enfrenta, como apresentado nas pesquisas aqui mencionadas,
desigualdades educacionais com relação à população branca. É importante ressaltar
que, essa lei foi regulamentada pelo Parecer do Conselho Nacional de Educação
(CNE) Conselho Pleno (CP 03/2004) e pela Resolução CNE/CP 01/2004, sendo
novamente alterada pela lei 11645/08 com a inclusão da temática indígena (Gomes,
2012).
Valter Silvério e Cristina Trinidad (2012), também avaliam que a alteração
da LDB pela lei 10639/03, pode ser considerada um novo marco na história da
educação do país porque além da obrigatoriedade do ensino de história e cultura
afro-brasileira e africana em toda a educação básica, a legislação abre “novas
possibilidades de interpretação das contribuições das culturas africanas na
constituição de nossa brasilidade para além do trabalho escravo e da invisibilidade
proporcionada pelo mito da democracia racial. Não se trata de negar a hibridação
cultural, mas de reconhecê-la a partir de suas diversas matrizes presentes nas
narrativas de construção da nação” (SILVÉRIO & TRINIDAD, 2012, p. 893).
Nesta perspectiva, Ana Lúcia Valente (2005) narrou e analisou uma
proposta metodológica de combate ao racismo na educação básica, especificamente
na educação infantil, considerada pela autora uma ação afirmativa, desenvolvida
com resultados positivos em escolas de Campo Grande (MS) e Belo Horizonte
(MG), a partir do que considera um desafio lançado pela implementação da lei
10639/03. Não se trata de uma medida afirmativa de acesso, mas de uma proposta
curricular de enfrentamento do preconceito e da discriminação raciais. De acordo
com essa autora, as crianças negras enfrentam dificuldades no sistema escolar,
portanto, é necessário que sejam “encontrados mecanismos de combate ao
preconceito e discriminação raciais ao nível da socialização primária e secundária,
ou seja, na família e na escola” (VALENTE, 2005, p.62).
Valente (2005, p. 63-64) ressalta a importância da legislação, porém,
considera que propostas metodológicas possam interferir no processo de
desenvolvimento de crianças brancas e negras:
Embora a coibição de manifestações de racismo seja imprescindível no plano legal,
conquistas e avanços alcançados nessa direção não bastam para transformar as
concepções arraigadas no imaginário da população brasileira. Em razão disso,
muitos estudiosos das relações interétnicas e militantes de grupos negros
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 83
40
O Plano Nacional foi construído a partir da consulta e contribuição popular em 06 (seis) agendas
de trabalho conhecidas como Diálogos Regionais sobre a Implementação da Lei 10.639/03,
realizados nas 5 (cinco) Regiões do Brasil, sendo duas no Nordeste. As cidades que sediaram os
Diálogos foram: Belém/PA; Cuiabá/MT; Vitória/ES; Curitiba/PR; São Luís/MA e Aracaju/SE. O
resultado consubstanciou-se no documento Contribuições para a Implementação da Lei
10.639/2003: Proposta de Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais da Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana – Lei 10.639/2003, entregue ao Ministro da Educação por representantes do
GTI, em 20 de novembro de 2008. O documento das Contribuições é basilar na construção desse
plano, pois norteou os eixos temáticos que orientaram todas as discussões dos Diálogos Regionais,
e aqui estão também orientando ações e metas (MEC, 2008, p.25).
41
O documento apresenta uma lista de atribuições e ações para os sistemas de ensino brasileiros,
públicos e privados, municípios, estados, União, Distrito Federal, em todos os níveis: educação
infantil, ensino fundamental e médio, educação superior, educação de jovens e adultos, educação
tecnológica e formação profissional. Essas atribuições e ações se estendem aos Conselhos de
Educação, Coordenações Pedagógicas, Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (NEABs) e Grupos
Correlatos, além da educação em áreas remanescentes de quilombos.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 85
42
Esse encontro foi organizado por um coletivo de instituições que participaram da elaboração do
Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (Plano
Nacional da Lei 10639/03) e que valorizam e apoiam a participação da sociedade civil nos
processos de planejamento, execução, avaliação e controle social das políticas públicas de
educação. O encontro contou com a participação da UFSCAr/NEAB, Ação Educativa, UNESCO,
Ceert e Ceafro, sendo apoiado pelo Instituto C&A e Save the Children UK. Cf. Relatório
Executivo – O papel da sociedade civil na implementação do Plano Nacional da Lei n. 10639 –
rumo a uma agenda de ação política articulada, São Carlos, 17 e 18 de março de 2010, p. 3.
43
Fernandes e Lima (2015) analisam o Artigo 2º do PNE considerando três itens: no III “aponta-se
como uma das diretrizes do PNE a superação das desigualdades educacionais com ênfase na
promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação; no IV aponta como
diretriz também a promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do país; no X a
promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade
socioambiental” (FERNANDES & LIMA, 2015, p. 2).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 86
44
Na coletânea organizada por Miranda, Lins e Costa (2012), algumas propostas pedagógicas foram
apresentadas. São elas: o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Rio de Janeiro
(IFRJ), desde 2008, tem se destacado como uma das instituições que tem promovido experiências
exitosas em termos de práticas pedagógicas sobre as relações etnicorraciais. O campus São
Gonçalo do IFRJ organizou, em 2009, o Curso de Extensão “Brasil e África em Sala de Aula”,
voltado principalmente para a qualificação e a atualização de professores/as da educação básica,
mas aberto também à participação de estudantes de licenciatura e de militantes de movimentos
sociais e da comunidade em geral. Como desdobramento desse curso teve início em fevereiro de
2011 a primeira turma da Pós-Graduação Lato Sensu “Especialização em Ensino de Histórias e
Culturas Africanas e Afro-Brasileira. No campus São Gonçalo do IFRJ também foi organizado o
Grupo de Pesquisa em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-Brasileira e criado,
também no início de 2011, o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros. Outra experiência a ser
destacada é a da Fundação de Apoio às Escolas Técnicas do Estado do Rio de Janeiro (FAETEC)
que em agosto de 2007 instituiu na sua rede de ensino o Núcleo de Estudos Étnico-Raciais e Ações
Afirmativas (Neera). Outras experiências citadas são aquelas vivenciadas no Instituto de
Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp/UERJ), especialmente as atuações de docentes
dos anos iniciais (1º ao 5º) do ensino fundamental.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 87
Nesse sentido, para Claudia Miranda, Mônica Lins e Ricardo Costa (2012,
p.15), um dos aspectos mais relevantes dessa abordagem diz respeito “à necessidade
de se incorporar uma nova perspectiva historiográfica que considere os africanos e
seus descendentes no Brasil como sujeitos históricos, em oposição ao estabelecido
por longos anos de formação histórica e historiográfica”.
Um dos desafios teóricos para a implementação da Lei 10639/03 diz respeito
ao que Claudia Miranda e Rogério de Souza (2012, p.29) ressaltam:
Nesta primeira década do século XXI, viradas conceituais se tornam indispensáveis
aos temas de currículo e das propostas de pedagogias alternativas para transmissão
cultural. Em tempos de implementação de políticas diferencialistas, de debates
intensos sobre pedagogias ‘outras’ e de proposições voltadas para a valorização da
diversidade cultural, é urgente o retorno ao questionamento sobre a missão da
escola como instância formadora apoiada na perspectiva político-pedagógica.
45
Miranda e Souza (2012) compreendem a Pedagogia Decolonial a partir da proposta de Catherine
Walsh (2008): “entendemos a Pedagogia Decolonial como uma possibilidade de por em cena o
racismo, a desigualdade e a injustiça racializada bem como a oportunidade de vislumbrarmos
práticas voltadas à transformação. Apostar em uma Pedagogia Decolonial pode ser, por exemplo,
abrir mão de currículos eurodirigidos criando alternativas para enfrentarmos as múltiplas
identidades que nos constituem” (MIRANDA & SOUZA, 2012, p. 35).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 88
2.7
A perspectiva multi/intercultural em educação
46
Ao resgatarem a trajetória da educação escolar indígena no continente latino-americano, Candau
e Russo (2011, p.61) ressaltam que: “não pretendemos negar a grande diversidade de situações e
os diferentes contextos onde se dá o seu desenvolvimento. Também não propomos a existência
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 94
de uma linha única e progressiva da história da educação escolar indígena na América Latina,
visto que o início de uma nova fase não significa o término da anterior, pois em muitos momentos
elas ocorrem sobrepostas umas às outras”.
47
“Se em alguns casos foi praticamente eliminada, como na Argentina, em outros constitui a grande
maioria da população, como em Cuba ou Haiti. Há situações em que estão circunscritos a algumas
regiões e/ou núcleos rurais, como no Equador ou Bolívia, em outras estão presentes nas principais
zonas urbanas do respectivo país, como é o caso do Brasil ou Colômbia. Sua presença permeia de
variadas formas as sociedades nacionais em diferentes âmbitos, e diversas proporções”
(CANDAU & RUSSO, 2011, p. 64-65).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 95
48
Foi utilizado o método de pesquisa survey e os questionários foram aplicados em quinhentas e
uma escolas de redes públicas estaduais e municipais, urbanas e rurais, de todas as unidades
federativas e teve como público alvo diretores de escola, professores de matemática e português,
funcionários de escola, alunos da penúltima série (7ª e 8ª) do EFR, da última série (3ª e 4ª) do
EMR, 2º ciclo do EF ou médio do EJA, pais e responsáveis por alunos. Face à natureza da pesquisa
– mensuração de crenças, atitudes e valores que expressam preconceito – foram construídos cinco
instrumentos de coleta de dados que foram respondidos pela técnica de auto-preenchimento, sob
a coordenação de pesquisador qualificado junto às unidades de observação (respondentes)
associadas às unidades amostrais (escolas de redes públicas estaduais e municipais, urbanas e
rurais, de todas as unidades federativas). Os questionários foram desenvolvidos considerando-se
os seguintes blocos de assuntos: questões sobre exposição à mídia por parte dos respondentes;
sobre hábitos de lazer; sobre escala de distância social; sobre crenças e atitudes; sobre o
conhecimento de práticas discriminatórias (bullying); sociodemográficas e escolares (FIPE, 2009,
p.13-15).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 96
Mais uma conclusão que inspira cuidados e atenção diz respeito ao fato de
que “os alunos das escolas públicas não apenas têm atitudes e comportamentos
49
A área temática que apresentou maiores valores para o índice ponderado percentual de
concordância com as atitudes discriminatórias foi a que exprime a discriminação em relação a
gênero (38,2%), seguida pelas áreas referentes à discriminação geracional (37,9%), em relação à
deficiência (32,4%), à identidade de gênero (26,1%), à socioeconômica (25,1%), à étnico-racial
(22,9%) e à territorial (20,6%) (FIPE, 2009, p. 06).
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 97
50
Grupo de Estudos sobre Educação, Cotidiano Escolar e Cultura(s) – GECEC – do Departamento
de Educação da PUC-Rio.
Capítulo 2. Negr@s e a luta por educação 98
51
Dados retirados da página oficial da UERJ (www.uerj.br).
52
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, publicado em 1932, representou um dos mais
significativos e propositivos movimentos nacionais em prol da implantação do sistema de
educação pública. O Manifesto contou com vinte e seis signatários entre eles Anísio Teixeira,
Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Paschoal Lemme, Cecília Meireles, entre outros (Ana
Paula da Silva, 2012, p. 2-4)
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 100
aluno através de uma escola pública de qualidade onde a criança seria o centro de
todo o processo educacional, sendo respeitada em seus interesses e em sua evolução
intelectual, podendo experimentar os resultados a serem alcançados e não recebê-
los prontos” (SANTOS, 2006, p. 26-27).
Desse modo, o principal objetivo era ser um espaço de experimentação onde
se “aprende a fazer fazendo”, abordagem que emergia no bojo do grande otimismo
pedagógico presente na época. Segundo Jorge Nagle, (2001, p. 134) o otimismo
pedagógico consiste na “crença de que, pela multiplicação das instituições
escolares, da disseminação da educação escolar, será possível incorporar grandes
camadas da população na senda do progresso nacional e colocar o Brasil no
caminho das grandes nações do mundo e que (...) determinadas formulações
doutrinárias sobre a escolarização indicam o caminho para a verdadeira formação
do novo homem brasileiro (escolanovismo)”.
Ainda de acordo com Santos (2006), o professor Fernando Rodrigues da
Silveira idealizou e fundou o colégio de aplicação: [O professor Fernando
Rodrigues da Silveira] “teve um contato bastante estreito com aquele grupo de
Anísio Teixeira. Então ele circulava nessa roda de grandes educadores que
pensavam uma educação de vanguarda, de qualidade, uma educação pública séria,
então ele trabalhava sempre com os preceitos desse grupo do Anísio Teixeira”
(SANTOS, 2006, p. 27).
O Ginásio de Aplicação nasce, portanto, assumindo a perspectiva
escolanovista como fundamentação teórica e também atendendo as exigências
estabelecidas na legislação educacional por meio da Lei 9053/46. Segundo Santos
(2006), [O professor Fernando Rodrigues da Silveira] “tinha um amor pelo colégio,
isso daí todas as pessoas que participaram da criação, com quem eu tenho contato,
falam muito do extremo carinho, o colégio para ele foi um filho mesmo, que ele foi
gestando, que ele tinha uma atenção toda especial. (...) Ele tinha uma projeção
dentro da discussão toda de educação no município do Rio de Janeiro” (SANTOS,
2006, p. 29).
O professor Fernando Rodrigues da Silveira além de fundador foi o primeiro
diretor, mas somente mais tarde, em sua homenagem e após a implantação dos
cursos científico e clássico, o Ginásio passou a se denominar Colégio de Aplicação
Fernando Rodrigues da Silveira. No momento de seu surgimento, o Ginásio de
Aplicação funcionava no mesmo prédio da Faculdade de Educação que ficava
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 101
53
A divisão do Ensino Médio em clássico e científico perdurou até 1971, sendo alterada pela Lei de
Diretrizes e Bases da Educação n. 5692/71. O Ensino Médio clássico voltava-se aos alunos que
pretendiam seguir carreira na área das Ciências Humanas como Letras, Direito, Sociologia e afins.
Enquanto o científico voltava-se para estudantes que pretendiam seguir carreira na área das
Ciências Exatas e Biológicas como Engenharia, Medicina, Física, Biologia, entre outras.
(www.uerj.br)
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 102
passou a ser realizado por sorteio. O ingresso para a 5ª série, atual 6º ano, era feito
por prova e o processo seletivo para esse ano de escolaridade continua acontecendo
dessa forma até hoje.
Ainda segundo Santos (2006), o preenchimento das vagas tanto para a 1ª
quanto para a 5ª série previa que 50% das vagas deveriam ser destinadas aos
funcionários da UERJ. Essa reserva era feita quando os/as funcionários/as eram
celetistas e foi realizada para atender acordos coletivos de trabalho. Com o Regime
Estatutário a partir de 1988, o percentual de vagas manteve-se o mesmo sendo
dividido da seguinte maneira: dez vagas para professores/as, dez para servidores/as
técnico administrativos/as, dez para funcionários/as do Hospital Universitário
Pedro Ernesto (HUPE). Esse percentual sofreu alteração com a publicação da Lei
6434/13; essa mudança será tratada neste capítulo.
Em 1997, a partir do documento “Refazendo o Ensino de Graduação”,
elaborado pela Sub-Reitoria de Graduação da UERJ, o CAp propôs sua
transformação de Colégio de Aplicação em Instituto de Aplicação. Em 1998, foi
inaugurada sua sede definitiva na Rua Santa Alexandrina, no bairro do Rio
Comprido, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. A conquista de um novo espaço
físico garantiu que todos os segmentos do colégio funcionassem no mesmo local.
Desde a sua fundação, a instituição apresenta marcada tendência humanista.
Isto até hoje se expressa através de múltiplos espaços de criação, a exemplo do
Clube de Leitura54 nos anos iniciais do primeiro segmento do ensino fundamental
e da diversidade de disciplinas artísticas, a saber: Teatro, Artes Plásticas, Música,
Design, Fotografia, História da Arte, trabalhadas desde as primeiras séries do
ensino fundamental ao ensino médio.
A transformação de Colégio de Aplicação para Instituto de Aplicação só se
efetivou em 2001. Assim, o Instituto de Aplicação passou a ser mais uma Unidade
Acadêmica da UERJ55 e atenderia três níveis de ensino: o fundamental, o médio e
54
O Clube de Leitura Paula Saldanha foi criado em maio de 1982 pela professora Leila Medeiros
de Menezes com o objetivo de formar leitores/as e escritores/as desde os anos iniciais do ensino
fundamental.
55
A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) possui Centros Setoriais, Unidades
Acadêmicas: Centro Biomédico (CBI), Centro de Ciências Sociais (CCS), Centro de Educação e
Humanidades (CEH), Centro de Tecnologia e Ciências (CTC). As unidades acadêmicas são:
Campus da Baixada Fluminense – Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, Campus de
São Gonçalo – Faculdade de Formação de Professores, Campus de Resende – Faculdade de
Tecnologia, Campus de Friburgo – Instituto Politécnico do Rio de Janeiro, Campus da Ilha Grande
– Centro de Estudos Ambientais e Desenvolvimento Sustentado, Instituto de Aplicação Fernando
Rodrigues da Silveira – CAp/UERJ. Há também núcleos especializados: Núcleo de Estudos e
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 103
o superior, havendo grande ampliação de suas funções tendo como bases principais
o aprendizado da docência, da formação inicial e continuada da mesma. Em 2007,
o CAp passou a atuar conjuntamente com outras unidades acadêmicas da UERJ e a
compor de forma efetiva a formação inicial dos/as estudantes das licenciaturas.
Na primeira década dos anos dois mil, houve a expansão das atividades
acadêmicas, a crescente capacitação de seu corpo técnico e docente e a consolidação
das atividades do Ensino Superior com a criação de disciplinas de caráter
obrigatório, eletivo e universal, oferecidas aos cursos de licenciatura da
universidade.
Desde março de 2014, o CAp/UERJ conta com o Programa de Pós-
Graduação de Ensino em Educação Básica (PPGEB) - Curso de Mestrado
Profissional - proposto na área de concentração voltada ao “Cotidiano e Currículo
no Ensino Fundamental”. No primeiro processo seletivo para o ano de 2014 contou
com 166 inscritos para concorrência ampla de 20 vagas. Já o processo para o
ingresso no ano de 2015 contou com 163 inscritos para esse mesmo número de
vagas56.
A admissão de docentes se dá por concurso público regido por edital ou
através de processo seletivo para prestação de serviço por contrato. O CAp/UERJ
também conta com servidores/as técnico-administrativos/as que atuam em
diferentes áreas da instituição também na condição de efetivos/as e contratados/as.
O ingresso de estudantes no CAp/UERJ é realizado apenas no 1º e no 6º ano
do ensino fundamental. Para o 1º ano, a entrada é feita por meio de sorteio, enquanto
que para o 6º ano é aplicada uma prova de seleção com conteúdos de matemática,
língua portuguesa, além de redação. Os/as candidatos/as aprovados/as e
classificados/as para o 6º ano são inseridos/as em turmas com os/as estudantes que
cursaram o primeiro segmento do ensino fundamental no colégio. Na seleção
realizada em 2013, foram destinadas 60 vagas para o 1º ano (30 para a comunidade
externa e 30 para a interna), sessenta para o 6º ano (30 para a comunidade externa
3.1
A Lei 6.434/13 e a reserva de vagas para o CAp/UERJ
57
Grifos meus.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 105
A legislação estabelece que sejam reservadas 40% das vagas para esses/as
estudantes. Para ter direito a concorrer a uma vaga pelo regime de cotas, a renda
familiar mensal per capita deverá corresponder, no máximo, a um salário mínimo
estadual e meio. Ao estabelecer a renda familiar mensal à lei deixa claro que a
condição primordial a ser atendida diz respeito à carência socioeconômica58, sendo
elencados, posteriormente, os grupos étnicos e as pessoas com deficiência como
pode ser comprovado no artigo 1º da Lei 6434/13 e também no edital (Anexo 1 e
Anexo 2) para o processo seletivo às vagas reservadas. Nesse sentido, há
semelhança com a lei que regulamenta a reserva de vagas para os cursos de
graduação oferecidos pela universidade no que se referem à condição primordial de
carência socioeconômica dos/as candidatos/as.
Com a lei, as vagas para o processo seletivo do CAp passaram a ser
distribuídas da seguinte forma:
20% para estudantes carentes que cursaram integralmente o 1º
segmento do ensino fundamental na rede pública59;
20% para estudantes negros, pardos e índios, sendo adotado o
critério da autodeclaração;
5% para deficientes físicos;
25% para filhos de servidores da UERJ, sendo 12,5% para filhos de
professores e 12,5% para filhos de funcionários;
30% de vagas restantes serão de ampla concorrência.
58
O Edital do Processo Seletivo 2014 no Manual do Candidato, em seu anexo 2, item 1, “Das
informações gerais”, esclarece: 1.1: Para concorrer às vagas reservadas pelo sistema de cotas, o
responsável pelo candidato deverá: a) preencher os requisitos indicados no item 1.5 do Edital para
um dos grupos de cotas; b) atender à condição de carência socioeconômica definida como renda
per capita mensal bruta igual ou inferior a R$ 1.017,00 (mil e dezessete reais) das pessoas
relacionadas no Formulário de Informações Socioeconômicas (FIS); 1.2: A renda per capita
mensal bruta será calculada pelo total dos valores da renda mensal bruta, ou seja, sem descontos,
de todas as pessoas do grupo familiar, dividindo-se pelo número de pessoas relacionadas no
Formulário de Informações Socioeconômicas, inclusive as crianças. A comprovação da condição
de carência socioeconômica e dos requisitos necessários para ingressar por um dos grupos de
cotas passou pela análise dos documentos exigidos e ficou a cargo das comissões técnicas,
respectivamente denominadas Comissão de Análise Socioeconômica e Comissão de Análise de
Opção de Cota.
59
Esse percentual diz respeito apenas às vagas para o 6º ano de escolaridade. Os demais percentuais
previstos na lei para a reserva de vagas contemplam os/as candidatos/as ao 1º e 6º anos de
escolaridade.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 106
60
Sobre a identificação como índio, vale registrar que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) emite
o Registro Administrativo de Nascimento e Óbito de Indígenas (RANI), previsto no artigo 13 do
Estatuto do Índio, Lei 6001/73 e regulamentado pela FUNAI através da Portaria n. 003/PRES de
14 de janeiro de 2002. O RANI é um documento administrativo e não substitui a Certidão de
Nascimento Civil e os demais documentos básicos, como Carteira de Identidade, Cadastro de
Pessoa Física e Carteira de Trabalho. O Registro Civil de Nascimento (RCN) feito nos cartórios
de Registro Civil de Pessoas Naturais é previsto e regulamentado pela Lei 6015/73. O registro
fica no cartório. O registro civil de nascimento é feito uma única vez em livro específico do
cartório. Na certidão de nascimento poderá constar a declaração do registrando como indígena e
o respectivo povo/etnia. Da mesma forma, a aldeia poderá constar como local de nascimento,
juntamente com o município. Além disso, o povo/etnia pode ser lançado como sobrenome.
(www.funai.gov.br)
61
Como a lei não prevê que os/as candidatos/as às vagas do 1º ano do ensino fundamental que
cursaram a educação infantil em instituição da rede pública de ensino tenham um percentual
específico, no edital para o processo seletivo para esse ano de escolaridade houve o agrupamento
de 20% + 20%, totalizando 40% de vagas reservadas para estudantes negros, pardos ou índios.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 107
TOTAL 60
TOTAL 1465
TOTAL 60
TOTAL 469
62
A Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (EDUCAFRO) é uma rede de cursinhos
pré-vestibulares comunitários mantida pelo Serviço Franciscano de Solidariedade, uma
associação da sociedade civil sem fins lucrativos. A organização luta para que a população pobre
e negra, em especial, possa ser incluída nas universidades públicas e privadas – com bolsa de
estudos integral. A ONG atua com a ajuda de voluntários que têm como objetivo incluir essa
população em estatísticas onde ainda são ignorados: a de integrantes de instituições de nível
superior www.educafro.org.br. Frei David e a EDUCAFRO tiveram participação de destaque nas
discussões sobre a adoção das ações afirmativas nas universidades públicas do estado do Rio de
Janeiro.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 109
direção do CAp, o grêmio, os servidores pudessem vir aqui participar desse debate
mais ativamente e fazer essa discussão como convidados da audiência pública e
isso foi feito. Na época já era o Comte Bittencourt o presidente da Comissão de
Educação e ele nos convidou. (Diretor)
Nessa audiência pública não foi feita, inicialmente, segundo o diretor, uma
defesa da política de cotas: “de início, não defendemos a política, nós nos sentimos
atravessados pela política. Não havia um consenso dentro da unidade”. O grupo que
participou dessa audiência foi composto por representação docente (Associação
Docente da UERJ – ASDUERJ), discente (Grêmio Estudantil), pais e responsáveis.
O ponto principal de discussão dizia respeito a alguns equívocos percebidos no
texto legal e que não estavam em consonância com o que era a unidade escolar:
O que fomos foi discutir como o instrumento da política que é a lei estava
absolutamente equivocado em relação ao que era a unidade. O perfil da lei não
dizia, não estava dizendo o que era o CAp, ele não considerava o que era o CAp. E
era um perfil de lei distorcido em função, porque ele foi feito como cópia do perfil
da FAETEC, na realidade de escolas técnicas. Um profundo desconhecimento. E
aquilo para mim mostrava um desrespeito com a instituição. Tanto que a lei sai
deixando de fora estudante de escola pública no 1º ano de escolaridade. Ela sai com
essa distorção (Diretor).
Outro aspecto tratado pelo diretor de que a lei teria um “perfil distorcido,
feito como cópia do perfil da FAETEC”, uma escola técnica de ensino médio, pode
ser lido no Artigo 2º, Parágrafo I:
–“adoção do sistema de cotas em todos os cursos e turnos oferecidos”.
O CAp é uma instituição que oferece a educação básica desde os anos
iniciais do ensino fundamental até o ensino médio, não há, portanto, o oferecimento
de cursos; o funcionamento do colégio se dá em dois turnos porque a instituição
proporciona a seus/as estudantes aulas regulares no período matutino e aulas de
recuperação paralela, entre outras atividades, no horário vespertino.
Em sua narrativa sobre a participação dos/as representantes da comunidade
escolar na audiência pública mencionada, o diretor ainda afirmou que “nós já
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 110
tínhamos a dimensão de que a lei seria aprovada, era uma coisa politicamente
definida desde o encontro que tivemos com o Comte Bittencourt”. A tentativa seria
de fazer alguma modificação na forma como o texto havia sido redigido, mas isso
não foi possível porque “foi uma mensagem do governador e isso foi passado a
rodo”. O diálogo realizado nesse momento com a Comissão de Educação não
alterou a lei, nem foram apresentadas emendas, apenas “uma mudança textual não
muito significativa porque o erro era tão crasso que eles tinham que mudar e foi
isso”. Concluiu sua resposta dizendo que “a grande questão é que eu quero entender
como é que nós vamos conseguir dar conta dessa situação depois que os meninos e
meninas estiverem aqui” e afirmou que após a aprovação da lei nenhum
representante da EDUCAFRO voltou ao colégio para saber como havia sido feita a
implementação da lei.
Outro tema tratado pelo diretor foi o relativo à criação de um grupo de
acompanhamento e avaliação na UERJ e que está previsto na lei em seu Artigo 3º,
nos parágrafos II e III:
Art. 3º - Deverá à UERJ, em relação à CAp/UERJ, destinatária desta lei constituir
Comissão Permanente de Avaliação com a finalidade de:
II – avaliar os resultados decorrentes da aplicação do sistema de cotas na respectiva
instituição, e
III – elaborar relatório anual sobre suas atividades, encaminhando-se ao Secretário
de Estado de Ciência e Tecnologia, ao Secretário de Estado de Educação e à
Comissão Permanente de Educação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio
de Janeiro.
Parágrafo único – O programa de apoio de que trata o caput deste artigo deverá
vigorar durante todo o curso técnico do estudante cotista, devendo ser avaliado
anualmente.
3.2
CAp/UERJ: uma escola de excelência
“elitizar esses espaços; ora acontecia pela seleção de alunos, ora pela exigência de
vínculo com servidores das universidades ou por provas intelectuais que produziam
cenários de exclusão e excelência”. O CAp realizou a mudança no ingresso de
estudantes para o 1º ano do Ensino Fundamental ao abolir a prova de seleção que
passou a ser realizado através de sorteio público63. Para Oliveira (2014), essa
mudança rompeu paradigmas institucionais, favoreceu o questionamento de
mecanismos da instituição e deu novos significados a estes.
Ao longo de seus 59 anos de existência, o CAp-UERJ foi ganhando notório
prestígio social e reconhecimento público por adotar metodologias de ensino
inovadoras desde a alfabetização nos anos iniciais do Ensino Fundamental até o
Ensino Médio quando os/as estudantes desse nível de ensino participam de
pesquisas institucionais como bolsistas de iniciação científica. As bolsas são
oferecidas pela UERJ para esses/as estudantes através do Programa de Iniciação
Científica Júnior. Além da integração da educação básica com o ensino superior, o
CAp mantém o princípio original de sua criação, qual seja, a responsabilidade com
a formação dos futuros professores que atuarão nas redes públicas e particulares de
nossa cidade, estado e, porque não dizer, até mesmo de nosso país. Mais
recentemente, reforçou esse compromisso com a criação do curso de Mestrado
Profissional em Ensino da Educação Básica, voltado para profissionais que atuam
no ensino fundamental e médio. Assim, ao longo dos anos, o CAp obteve “ascensão
inegável de uma imagem pública de excelência transformando-se em um espaço de
certificação almejada pelos estudantes e seus familiares” (OLIVEIRA, 2014, p. 49).
63
O ingresso de estudantes ao Colégio Pedro II, instituição pública federal, também considerada de
excelência, se dá da seguinte forma: por meio de sorteio público de vagas ou processo de seleção
e classificação de candidatos conforme o nível de ensino e exclusivamente para os campi nos
quais são disponibilizadas vagas: Educação Infantil – sorteio público de vagas para turmas de 4
ou 5 anos; Anos Iniciais do Ensino Fundamental – sorteio público de vagas para o 1º ano.
Eventualmente, são oferecidas vagas para o 2º ano também por sorteio público. Não são oferecidas
vagas para as demais séries desse segmento; Anos Finais do Ensino Fundamental – processo de
seleção de candidatos através de provas de Matemática, Português e Redação para o 6º ano;
Ensino Médio (1ª série do Ensino Regular), processo de seleção de candidatos através de provas
de Matemática, Português e Redação nos turnos diurno e noturno (www.cp2.g12.br). Outra
instituição federal considerada de excelência na cidade do Rio de Janeiro é o Colégio da Aplicação
da UFRJ. O ingresso de estudantes acontece no 1º ano do Ensino Fundamental através de sorteio
público e na 1ª série do Ensino Médio pelo processo de seleção de candidatos por meio de um
teste de nivelamento com provas de Matemática e Português. Os candidatos que atingirem um
mínimo de 50% de rendimento em cada uma das avaliações de nivelamento participarão do sorteio
público para preenchimento das vagas oferecidas (www.cap.ufrj.br). Optei por apresentar essas
duas instituições por que são as mencionadas pela mídia, quando os resultados do Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM) são divulgados, como comparativas ao desempenho do CAp/UERJ.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 115
64
O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) foi criado em 1998 com o objetivo de avaliar o
desempenho do estudante ao fim da educação básica, buscando contribuir para a melhoria da
qualidade desse nível de escolaridade. A partir de 2009 passou a ser utilizado também como
mecanismo de seleção para o ingresso no ensino superior. São realizadas quatro provas objetivas
(ciências da natureza, ciências humanas, linguagens e matemática) e redação. Os dados
divulgados trazem a média dos alunos de cada escola nessas provas. (www.inep.gov.br)
65
O IDEB foi criado em 2007 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (INEP). O IDEB tem o objetivo de medir a qualidade do aprendizado nacional e
estabelecer metas para a melhoria do ensino no país. O indicador é divulgado a cada dois anos e
é calculado a partir de dois componentes: aprovação e média de desempenho dos estudantes em
língua portuguesa e matemática. As metas do IDEB para escolas, municípios e Unidades da
Federação foram estabelecidas considerando cada estágio de desenvolvimento educacional dessas
unidades de referência e, também, a diminuição das desigualdades entre elas. O Plano de
Desenvolvimento da Educação estabeleceu como metas que, até 2022, o IDEB do Brasil para os
anos iniciais seja 6,0 e para os anos finais 5,5 – média que corresponde a um sistema educacional
de qualidade comparável a dos países desenvolvidos. (www.inep.gov.br)
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 116
Também não pretendo discutir aqui o significado das avaliações em larga escala,
padronizadas e suas metodologias que vêm sendo adotadas pelo Ministério da
Educação e Cultura (MEC) para verificar o desempenho dos/as estudantes em nosso
país, mas, lançar mão desses dados que, atualmente, diferenciam e condicionam a
escolha de alguns pais no momento em que decidem onde matricularão seus/as
filhos/as, levando em consideração a qualidade do ensino ofertada pelas escolas
tendo como balizadores os resultados desses exames.
No ENEM de 2009, o CAp/UERJ ficou em 1º lugar entre as instituições
públicas de ensino do Rio de Janeiro; foi a 2ª melhor média entre as instituições
públicas de todo Brasil e 17º lugar no ranking nacional geral considerando escolas
públicas e privadas. No ano seguinte, ficou em 11º lugar no ranking do estado do
Rio de Janeiro e em 3º lugar entre as escolas públicas no ranking nacional. Já em
2011, voltou a ficar em 1º lugar entre as escolas públicas do estado do Rio de
Janeiro, e no geral nacional, o colégio foi o 15º mais bem colocado. Em 2012, o 1º
lugar no ranking das escolas públicas do estado ficou pelo segundo ano seguido
com o CAp/UERJ. No ano de 2013, o colégio voltou a ocupar o 1º lugar entre as
escolas públicas do estado e garantiu o 6º lugar entre as dez melhores escolas
públicas do país. O resultado de 2014 apresenta o colégio na 2ª posição entre as
públicas do estado tendo na 1ª colocação o Colégio Pedro II. No ranking nacional,
o CAp-UERJ caiu do 99º lugar para o 182º; na comparação entre todas as escolas
do Rio de Janeiro, considerando privadas e públicas, a instituição saiu da 23ª
posição para a 40ª. No ranking dos dez melhores colégios em 2014 do Rio de
Janeiro publicado pelo Educational Rating Brazil, considerando o desempenho
médio do ENEM dos últimos três anos, o CAp/UERJ aparece em 8º lugar.
Consultando o site do INEP, do CAp/UERJ, de diversos jornais on-line, foi possível
perceber que o ranking do ENEM no país é dominado pelas escolas da rede privada.
O mesmo acontece no ranking fluminense. Os resultados desse exame têm
demonstrado a disparidade entre os ensinos privado e público, e como uma estrutura
sólida de ensino e a valorização dos/as professores/as fazem a diferença no
resultado dos/as estudantes.
Em entrevista concedida ao portal de notícias G1, em novembro de 2012,
ao comentar o resultado do ENEM 2011, a vice-diretora do CAp/UERJ, Maria
Beatriz Dias da Silva, elencou alguns aspectos que diferenciam a instituição e que
influenciam nos resultados: (i) a carga horária dos/as estudantes do 3º ano do Ensino
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 117
Médio é de 1360 horas, sendo Português a disciplina com mais tempos de aula por
semana totalizando 204 horas semanais; (ii) os/as estudantes do Ensino Médio
estudam em horário integral, das 7 às 17h10; (iii) a iniciação científica que, segundo
a vice-diretora, também é realizada no Colégio Pedro II e no CAp/UFRJ, mas no
CAp/UERJ os/as estudantes recebem bolsa concedida pela universidade através do
programa de Iniciação Científica Júnior; (iv) por ser uma unidade acadêmica da
universidade os professores não têm apenas atividades dentro da sala de aula, mas
também atividades de ensino, pesquisa e extensão; (v) os/as professores/as
estimulam o Grêmio Estudantil que ajuda a manter o diálogo entre todos; (vi) a
titulação exigida para participação em concursos públicos é o doutorado; (vii) o
regime de trabalho de dedicação exclusiva de grande número de professores/as.
Todos esses aspectos sustentariam o título de escola de excelência e de ensino
diferenciado que é atribuído ao CAp/UERJ.
Outra pesquisa que corrobora o reconhecimento público do trabalho
realizado pela instituição são os resultados obtidos no IDEB.
metas projetadas, com exceção do ano de 2009, para esse ano de escolaridade. O
desempenho do CAp comparado aos resultados para o Brasil, bem como as redes
estadual e municipal do Rio de Janeiro também estão acima dos índices
apresentados. Já para os anos finais (9º ano) os resultados não correspondem
àqueles estabelecidos como metas para a instituição. Apesar disso, o colégio
continua apresentando índices superiores em relação ao desempenho do país e
também das redes do município e do estado do Rio de Janeiro. O site do INEP não
apresenta os dados do CAp para o ano de 2011 porque a instituição, segundo a
coordenadora do NAPE, não participou da Prova Brasil, uma das avaliações que
compõe o índice do IDEB.
Segundo o site do INEP, o IDEB de 2013 mostra que o país ultrapassou as
metas previstas para os anos iniciais (1º ao 5º ano) do ensino fundamental em 0,3
pontos. O IDEB nacional nessa etapa ficou em 5,2, enquanto em 2011 havia sido
de 5,0. O INEP espera que o Brasil alcance a média de 6,0 em 2021. A definição de
um IDEB nacional igual a 6,0 serve como referência dos sistemas em países da
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), composta
por 34 países do qual o Brasil faz parte. O CAp apresenta média superior a 6,0 desde
o ano de 2007, portanto, esses dados indicam o bom desempenho que o colégio tem
tido nas diferentes políticas de avaliações externas. Desse modo, fica evidenciado
que a formação ali ofertada para o corpo discente atende o que se espera de uma
instituição escolar e tem grande reconhecimento social, elevando a busca por
matrículas a números muito superiores às vagas ofertadas, razão pela qual se
justifica a necessidade da reserva de vagas para estudantes carentes e negros.
Além desses aspectos, há o conjunto de ações desenvolvidas pelo colégio –
ensino, pesquisa e extensão – que fazem com que a instituição seja procurada e
desejada por diversas famílias de diferentes regiões da cidade do Rio de Janeiro e
também de municípios vizinhos. Segundo Oliveira (2014), muitas vezes, as famílias
migram de seus bairros de origem para outros mais próximos da escola quando seus
filhos e filhas conseguem uma vaga na instituição.
O ensino diferenciado dos colégios de aplicação foi destaque na matéria
publicada na Revista Nova Escola, em março de 2012. De acordo com a revista, há
no Brasil 17 colégios de aplicação66 (16 federais e apenas 1 estadual) e a vinculação
66
Os colégios de aplicação mencionados na matéria pertencem as seguintes universidades:
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 119
3.3
Estrutura e números
(Música I, Música II, Fotografia, Artes I, Artes II, Teatro e Design), 3 laboratórios
(Francês, Espanhol e Informática), 4 departamentos (DCN – Departamento de
Ciências da Natureza; DMD – Departamento de Matemática e Desenho; DLL –
Departamento de Línguas e Literatura; DCHF – Departamento de Ciências
Humanas e Filosofia) e dependências administrativas - Direção, Secretaria de
Departamentos, Secretaria Geral, Núcleo Acadêmico Pedagógico (NAPE). Possui
ainda um restaurante e uma cantina terceirizados67, um auditório com 108 lugares,
sala do grêmio estudantil, uma sala de professores/estágio, uma sala de
mecanografia e 15 banheiros. O bloco B possui 15 salas de aula, 8 laboratórios
(Química, Biologia, Física, Ciências, Desenho, Informática, Geografia,
Matemática), sala multimídia, 2 salas de professores (Departamento de Ciências da
Natureza - DCN e Departamento de Ensino Fundamental - DEF), 15 banheiros
sendo dez exclusivos para alunos/as, sala de curativos, 2 bibliotecas, almoxarifado,
sala de depósito, sala onde funciona o Núcleo de Extensão, Pesquisa e Editoração
(NEPE), além do parquinho utilizado pelas crianças do 1º ano do ensino
fundamental. Existe também nesse bloco um prédio anexo que abriga: sala de
musculação, sala de ginástica olímpica, sala de professores (Departamento de
Educação Física e Artística - DEFA), 2 banheiros, 2 vestiários, quadra poliesportiva
e pátio, espaços que são compartilhados por todos/as os/as estudantes. Como
podemos perceber pela descrição de sua estrutura física, trata-se de uma escola de
grande porte.
O espaço da escola, de maneira geral, é organizado e limpo, apesar de todas
as dificuldades administrativas que o CAp/UERJ enfrentou, em 2015, no que se
refere à suspensão do pagamento dos/as funcionários/as terceirizados/as que
67
Em entrevista com o diretor do colégio ele informou que nunca houve alimentação escolar gratuita
no CAp por que a maior parte do público podia arcar com essa despesa e a lei que determinava a
destinação de alimentação escolar ainda não existia. Além disso, esclareceu a situação da
instituição dentro do sistema estadual de ensino afirmando que: “a unidade não estava ligada ao
sistema, quer dizer, ela é do sistema (estadual), mas não estava ligada a rede e é pela rede que
você pede a verba do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Nem a rede FAETEC, nem a
rede da Secretaria de Ciência e Tecnologia, nem a rede da Secretaria Estadual de Educação são
as nossas redes, somos uma escola separada. Nesse sentido, o CAp não se aproximou desses
programas a partir das redes por que nas redes isso é automático, vou usar essa expressão. No
CAp, não. O professor Miguel (antigo diretor) tentou fazer isso só que teve um obstáculo muito
grande: na falta de espaço físico para preparação de merendas, preparação da alimentação escolar,
ele acabou pedindo dinheiro da alimentação escolar e ao fim e ao cabo ele não teve como gastar
por que ele não tinha como preparar o alimento e o dinheiro foi devolvido. Então, nós, nessa
última gestão, também não tivemos essa opção. O que fizemos? Fizemos a luta pela construção
do restaurante que é o que está rolando lá na construção”. Há uma previsão de que o refeitório do
CAp fique pronto em meados de 2016 e assim o colégio terá alimentação escolar gratuita.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 121
cuidam da limpeza. Vale ressaltar que em função dessa situação a manutenção dos
banheiros, salas de aula e demais dependências da escola nem sempre são realizadas
a contento. Uma reclamação frequente dos/as estudantes refere-se à limpeza dos
banheiros.
A crise financeira do Estado e os cortes orçamentários cada vez maiores
levaram a UERJ a uma situação de colapso no final de 2015. O descaso com a
universidade é antigo e sistemático, mas se agudizou. Alegando situação de
insalubridade, o reitor Ricardo Vieiralves anunciou por meio de uma nota o
fechamento da universidade no período de 24/11/15 a 01/12/15. O reitor informou
que as unidades acadêmicas teriam autonomia para definir as atividades
imprescindíveis que não seriam interrompidas. O atraso nos pagamentos dos
terceirizados que prestam serviços de segurança e limpeza em todas as suas
unidades acadêmicas, da alimentação, no caso do Restaurante Universitário do
campus Maracanã, dos/as docentes e servidores/as técnico-administrativos
contratados/as, dos/as bolsistas, dos/as residentes de Medicina que trabalham no
Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), foi amplamente noticiado pela
imprensa. No dia 30/11/15, estudantes ocuparam o campus Maracanã,
posteriormente, outras unidades acadêmicas foram ocupadas, e o movimento
Ocupa UERJ só terminou no dia 18/12/15. Além do atraso nos pagamentos dos/as
terceirizados/as, os/as docentes e servidores/as efetivos/as tiveram o salário de
novembro 2015 parcelado em duas vezes, e o 13º salário, direito garantido aos/às
trabalhadores/as será pago em cinco parcelas até abril de 2016. A instituição fica
à mercê das decisões da reitoria e também do governo do estado.
O pátio é um espaço que os/as estudantes ocupam nos momentos de entrada,
saída, recreio ou quando são liberados das aulas. Os inspetores e inspetoras são os
responsáveis pela vigilância e acompanhamento dos/as estudantes no horário do
recreio. Nesse período de intervalo os/as docentes costumam permanecer nas salas
de professores/as.
A instituição está organizada em dois turnos sendo que no período matutino
realizam-se as aulas das disciplinas regulares de todos os anos de escolaridade desde
a educação básica ao ensino médio. No período vespertino, os estudantes de todos
os segmentos da educação básica assistem às aulas da Recuperação Paralela68,
68
A partir da deliberação do Conselho Departamental do CAp/UERJ e do Pleno do Conselho
Superior de Ensino e Pesquisa (CSEPE) as normatizações sobre a Recuperação Paralela, a partir
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 122
71
O DataUERJ não apresenta dados relativos à formação dos/as servidores/as técnico-
administrativos efetivos/as. Há informações sobre o número de funcionários/as distribuídos/as por
sexo, 23 masculinos e 20 femininos. A idade desses/as profissionais é bastante variada sendo a
maior concentração no ano em questão de 16 funcionários/as entre 50-59 anos de idade. Houve
no ano de 2013 o ingresso de 17 profissionais na carreira de servidores técnico administrativos no
CAp/UERJ.
72
Além desses/as o CAp passou a contar com mais 20 alunos/as inscritos/as na primeira turma do
Programa de Mestrado Profissional que teve início no ano de 2014. Desse modo, o total de
alunos/as agrupando a educação básica e a pós-graduação é de 1121 estudantes.
73
Em 2014 o número de estudantes jubilados/as aumentou consideravelmente segundo o DataUERJ:
quatorze estudantes deixaram a instituição sendo: três no 7º ano, dois no 8º ano, cinco no 9º ano
e quatro na 1ª série do ensino médio. O DataUERJ não apresenta dados sobre a evasão de
estudantes na instituição. Segundo entrevista com a atual coordenadora do NAPE, a evasão no
CAp é pequena em todos os anos de escolaridade.
74
No item afastamento definitivo docente, os dados do DataUERJ informam que houve, em 2014,
no CAp, duas aposentadorias e quatro exonerações.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 124
75
Com a chegada desses/as profissionais, a idade está concentrada nas seguintes faixas etárias: de
20-29 anos temos dezenove servidores/as, de 30-39 anos outros dezenove. A faixa de 50-59 anos
manteve-se inalterada (16 profissionais). (www2.datauerj.br)
76
No mês de outubro/2015 foram realizadas as eleições para reitor, vice-reitor, diretores de centro
e diretores de unidade da UERJ, incluindo o CAp. Os/as eleitos/as para esses cargos
desempenharão essas funções no período de 2016-2019, portanto, o CAp contará com uma nova
direção que tomou posse em 01/03/16.
77
Organograma retirado do site do CAp/UERJ (www.cap.uerj.br) em 16/09/15. Nesse quadro ainda
não aparece a Coordenadoria da Pós-Graduação – Mestrado em Ensino.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 125
3.4
Os sujeitos da pesquisa
78
Neste grupo, o tempo de trabalho no CAp variava bastante: o professor Mateus e a professora
Fernanda trabalharam na instituição apenas um ano; a professora Flávia lecionou por dois; a
professora Monique por três e o professor Cauã por oito anos.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 127
endereços dos e-mails, enviei nova mensagem e como não obtive outras respostas
solicitei os números de telefones celulares das professoras efetivas. Através desse
contato telefônico consegui marcar as entrevistas com essas docentes. Desse modo,
iniciei as entrevistas com as professoras efetivas e a secretária da escola. As
entrevistas com o diretor, a coordenadora pedagógica e a pedagoga foram realizadas
posteriormente e de acordo com a disponibilidade de cada um/a. O principal desafio
nesse momento inicial foi contactar os professores e professoras contratados/as uma
vez que nenhum deles respondeu minha mensagem eletrônica.
A localização desses sujeitos só foi possível quando comecei a utilizar a
técnica de snowball ou estratégia da “bola de neve” (George Goodman, 1961), para
conseguir encontrar meus/minhas informantes. Essa metodologia de pesquisa prevê
a indicação de informantes e é amplamente empregada em pesquisas de diferentes
campos do conhecimento, especialmente quando os indivíduos que pretendemos
acessar são difíceis de encontrar ou pertencem a um grupo muito específico. Assim,
o contato com mais sujeitos permite, através dos primeiros, estabelecer contato com
os demais. Tal estratégia se mostrou bastante efetiva no caso desta pesquisa. Assim,
as professoras efetivas fizeram contato com os/as contratados/as explicando que
receberiam uma mensagem eletrônica sobre a participação em uma pesquisa de
doutoramento e, só então, as respostas começaram a chegar ao meu e-mail.
As entrevistas foram realizadas num período de 4 meses e ocorreram em
locais distintos: 9 nas dependências do CAp, 2 no campus da UERJ Maracanã, 1 na
PUC-Rio, 1 no local de trabalho da depoente após o término das aulas, 1 na casa da
depoente. Antes das entrevistas, os/as participantes preencheram uma ficha com
informações sobre sua formação acadêmica, tempo de atual profissional, local de
trabalho, disciplinas e anos de escolaridade que lecionam e que lecionaram quando
estavam no colégio. Além disso, todos os/as entrevistados/as assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Foram entrevistados/as professores/as de Desenho (1), Língua Estrangeira
(3) (Inglês e Francês), Ciências (2), Matemática (1), Português (1), Geografia (1) e
História (1). É importante esclarecer, mais uma vez, que das cinco professoras
efetivas três eram de Língua Estrangeira e duas atuaram com alunos/as apenas na
Recuperação Paralela.
O tempo de trabalho no magistério, entre as professoras efetivas, varia entre
17 a 34 anos. Dentre elas, três trabalham atualmente apenas no CAp, uma leciona
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 128
em mais duas escolas sendo uma federal e a outra da rede privada, uma é professora
do ensino superior na Faculdade de Formação de Professores/FFP/UERJ, no
Departamento de Letras. Já entre os/as professores/as contratados/as o tempo de
trabalho no magistério é de 4 a 10 anos. Nesse grupo, todos/as lecionavam em mais
de uma instituição enquanto foram professores/as do CAp.
As idades variaram bastante, entre 25 e 56 anos, compreendendo os dois
grupos de entrevistados/as. No grupo das professoras efetivas, quatro estão na faixa
etária dos 50 anos e a mais nova com 42. Entre os/as contratados/as, as idades estão
entre 25 e 33 anos, revelando que esse conjunto de sujeitos é, como esperado, mais
jovem e menos experiente.
No que diz respeito à formação, todos/as os/as professores/as
entrevistados/as possuem pós-graduação. Entre as professoras efetivas, três
possuem mestrado e duas têm doutorado. No grupo dos/as contratados/as, três já
concluíram o mestrado, uma está cursando mestrado em ciência, tecnologia e
educação, e um está cursando o doutorado em geografia. Esses dados indicam um
bom grau de comprometimento e preocupação dos/as entrevistados/as com sua
formação continuada.
Tempo de Número de
Codinome Sexo Idade Disciplina
magistério escolas que atua
Rita F 56 Inglês 34 anos 1
79
As professoras Rita, Rose, Jussara, Isabel e Miriam pertencem ao quadro de docentes efetivas,
enquanto Flávia, Fernanda, Mateus, Monique e Cauã compõem o grupo dos/as professores/as
contratados/as.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 129
80
A ficha preenchida pelos/as entrevistados/as foi produzida no GECEC e está dividida em três
blocos: identificação, formação e atuação profissional. No primeiro bloco, o item cor aparece
conforme está estabelecido nas pesquisas realizadas pelo IBGE em que são definidas cinco
categorias: branco, pardo, preto, amarelo e indígena.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 130
3.5
Experiência profissional no CAp/UERJ
vive com uma miríade de profissionais, não só com essas formações diferentes,
mas com tempos diferentes de formação, alguns mais experientes outros menos
experientes e você vai ao longo do tempo percebendo que você vai fazer parte dessa
engrenagem, você já foi menos experiente e passa a ser um dos mais experientes e
vai ajudar a formar muitos daqueles que serão os futuros experientes, que vão lidar
com um público que também é diferente daquele público que você trabalhou alguns
anos atrás, eu agora tenho colegas que foram meus alunos. Então, é isso, o CAp
proporciona isso para a gente. Lógico que é muito difícil, muito trabalho porque,
diferente daquelas escolas convencionais, não existe muito aquele padrão, existe
uma coisa que está em construção. (Diretor)
A questão salarial também foi apontada pela professora Rose que pertence
ao quadro de efetivas. Para ela, os/as profissionais do CAp precisam ser mais
valorizados/as, o lugar que o colégio ocupa dentro da UERJ precisa ser reconhecido
pela universidade e também pelo Governo do Estado. Essa professora e também a
professora Flávia acreditam que as baixas remunerações, tanto para efetivos/as
quanto para contratados/as, se deve às questões políticas existentes entre o colégio
e a universidade.
Além desses pontos comuns, a professora Monique destaca que muitos
alunos e alunas do Ensino Médio vêm fazendo o ENEM, desde o 1º ano, e deixam
o colégio para ingressarem na universidade. Para ela, esse seria um aspecto negativo
porque a instituição vem perdendo seus/as estudantes. Já os professores Cauã e
Mateus perceberam como uma dificuldade a falta de acompanhamento dos
familiares de alunos/as que pertencem a classes sociais mais baixas no momento de
realização das tarefas escolares, como deveres de casa ou mesmo rotina de estudos
para as avaliações trimestrais. Outra dificuldade apontada pelo professor Cauã foi
a realização de trabalhos de campo, especialmente, viagens para outros municípios.
Capítulo 3. As ações afirmativas no CAp/UERJ 133
Para a professora Miriam, falta uma filosofia na escola que seja compartilhada por
todos/as que possa contribuir para a formação integral dos alunos e alunas.
Considero importante destacar o depoimento da secretaria da escola que
considera um aspecto negativo a falta de rigidez das direções do colégio. Segundo
ela, a autonomia concedida a setores da instituição interfere no bom andamento das
ações escolares:
Eu ainda não vi nenhuma direção, com a palavra direção mesmo que ela cobre que
ela seja uma direção mais rígida. Eu acho o colégio muito solto. Mesmo
trabalhando nas direções, as direções começam de uma forma que vai dar certo,
mas quando você vê a coisa fica solta. Porque eu acho também que os diretores,
eles deveriam ter uns assessores muito bem treinados pra isso, pras coisas não
chegar a eles, aquele assessor ele iria cuidar de alguns casos que o diretor realmente
não tem muita condição por falta de tempo. (...) A coisa tomou um rumo de tanta
autonomia dos setores, que quem trabalha no geral, que sou eu, que fecha todos os
setores, eu não tenho mais controle sobre isso. Isso me entristece muito, por que eu
vejo desigualdade, e eu não gosto disso, entendeu? Eu acho que se o contratado
falta, ele é igual a mim que falta eu não tenho essa diferença, entendeu?
4.1
O perfil dos/as estudantes do CAp e a relação entre eles/as
Por ter feito parte da comissão que avaliou as inscrições para o processo
seletivo do 6º ano de escolaridade, a pedagoga relatou que percebeu também uma
mudança no perfil dos pais desses/as estudantes:
A gente percebe também o perfil dos pais desses alunos. Um dos itens do edital é
para se declarar, tem aquele termo, só que os pais não estavam entendendo que
tinham que colocar assim, sinalizar se [o/a candidato/a] era pardo, negro ou índio.
Não entendiam que era ‘ou’ e então colocavam os três, pardo, negro e índio. Então
a gente percebe a dificuldade mesmo em entender o edital. Eles pensavam que
tinham que seguir aquele modelinho. Não, o modelinho era só um exemplo. Eles
poderiam redigir da melhor forma possível. E a gente percebeu que esse ano teve
algumas pessoas que tiveram orientação de tia, de madrinha para fazer a inscrição.
Então, quando eles escrevem até a carta lá do questionário socioeconômico, as
questões do serviço social, eles sinalizam isso: ‘Ah, eu fulana de tal estou
inscrevendo’... Então, eles falam do perfil da família, é muito interessante, é muito
rico.
81
O relatório Perfil dos Alunos Ingressantes no Ano de 2015 sobre a escolaridade paterna e materna
apresenta algumas mudanças: no que se refere às famílias dos/as alunos/as cotistas, a maior
incidência da escolaridade materna se encontra no ensino superior, com 36%, seguidos de 32%
com ensino médio e 14% com ensino fundamental e 4% possuem pós-graduação. Quanto à
escolaridade paterna, em 36% dos casos entrevistados não há informações sobre esse dado (pais
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 137
separados); 27% dos pais possuem ensino médio; 14% possuem o ensino superior; 18% o ensino
fundamental e não foram identificados casos de pais com pós-graduação. Com relação às famílias
de alunos não cotistas, 39% das mães possuem o nível superior, 31% possuem o ensino médio;
13% a pós-graduação; 9% mestrado; 4% doutorado e 4% o ensino fundamental. Quanto aos pais,
48% possuem o ensino superior; 31% o ensino médio; 4% o mestrado; 4% o doutorado; 4% o
ensino fundamental incompleto e em 9% dos casos não há nenhuma informação sobre a figura
paterna (casos de separação) (p. 22-23).
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 138
meio que isolados, bem encostadinhos na parede e fica uma pessoa atendendo só
eles. Ali eu já vejo a diferença.
No seu ponto de vista, essa situação, por si mesma, seria uma exposição
desses/as estudantes com relação aos demais alunos/as do colégio, porém, segundo
o depoimento, tal situação não gera nenhum caso de discriminação. Trata-se de sua
compreensão sobre a condição dos/as cotistas no momento em que estão se
alimentando na cantina. É importante esclarecer que no horário do almoço nos dias
de aulas no contra turno, os/as estudantes cotistas, alimentam-se no restaurante do
colégio e assinam uma folha com nome e turma já que não pagam pela refeição.
Considerando esse depoimento, esse seria também um momento em que esses/as
alunos e alunas estariam “revelando” sua condição de cotista. Os cotistas são os
“novos” sujeitos que passam a vivenciar a experiência escolar com suas diferentes
especificidades: pessoas com necessidades especiais, negros/as, oriundos/as de
escolas públicas, dentre outras. Como ressalta Valentim (2012, p. 255), “os alunos
cotistas não são reconhecidos como pertencentes à categoria social alunos
[universitários] normais. Todos parecem padecer de uma marca, de um defeito, de
um estigma”. Nos depoimentos da secretária, a questão socioeconômica foi a que
apareceu como a marca mais evidenciada. A coordenadora do NAPE fez uma
descrição do perfil dos/as estudantes a partir de seu pertencimento familiar:
Olha, isso é cruel [risos]. O perfil dos nossos estudantes é assim: você tem o aluno
que tem uma família [dá ênfase] que é uma família que chega e é apenas uma
família. E você tem o aluno que é, vem de uma família assim... uerjiana onde os
pais, o pai ou alguém é da UERJ. E é muito engraçado a gente observar como as
pessoas se fazem diferentes; aí independente de qualquer coisa, de qualquer política
e como as crianças trazem esse discurso para dentro da escola. Isso é uma coisa
muito interessante de se observar. Acho que a gente... não acredito nesse discurso
que essa escola não é uma escola para A, B ou C, nunca acreditei nisso, acho que
todos os nossos alunos têm perfil para estar aqui sim porque só entrar aqui já
garante a ele esse direito. E ele está mostrando que ele é capaz de enfrentar os
desafios que existem aqui. Até o pequenininho porque quando ele vem por sorteio
que ele não se enquadra num perfil, nas características desse espaço, dessa escola
que a gente vive, ele não fica, ele vai embora. Às vezes, a mãe vem aqui e olha:
‘Ah, meu filho não vai estudar aqui não’. Quantas e quantas mães a gente atende
que chegam aqui para conhecer a escola e desistem.
dizendo que: “acho que o perfil dos alunos nesse aspecto não é muito diferente não.
Eu acho que [é] cruel para o aluno, pra gente não, para o adulto que trabalha aqui,
que vive aqui, isso não faz diferença porque você procura colocar as pessoas, cada
uma, nos seus devidos lugares, mas para as crianças essa diferença, meu pai é da
UERJ, meu pai não é da UERJ, minha mãe, isso é muito cruel”. De acordo com
esse depoimento, essa diferenciação acontece entre os/as próprios/as estudantes.
Penso que essa questão deveria ser trabalhada com os/as estudantes desde os anos
iniciais uma vez que aqueles/as que são filhos/as de docentes ou funcionários/as
técnico administrativos da universidade e do hospital universitário e ingressam na
instituição também foram contemplados/as porque há um número de vagas
reservado a esses/as profissionais. Neste sentido, tanto uns quanto outros/as são
cotistas, mas são cotistas com perfis e status muito diferentes dentro do colégio.
Assim, posso afirmar que há uma hierarquização entre as cotas. Cotistas que obtém
a vaga pelo critério racial estão numa situação subalterna em relação aos/às cotistas
que obtém a vaga pelo critério de filho/a de professores/as ou funcionários/as.
Então, o problema não é a reserva de vagas, mas quem tem o direito de usufruir esta
reserva. Quando a reserva envolve crianças negras e pobres, as cotas são
atravessadas pelas desigualdades sociais e raciais. E são essas desigualdades que
adentram e, talvez, persistam na escola. Devemos acrescentar que até a
implementação da lei 6434/13, o percentual de vagas para essas categorias
(filhos/as de professores/as e funcionários/as), no total, era de cinquenta por cento
e com a lei esse número sofreu modificações. Assim, os/as que ingressam pelo
critério racial, o fazem com uma identidade socialmente subalternizada (negro/a e
pobre) e, ainda, ocupando um lugar que, até então, era privilégio de outro tipo de
cota, com estudantes com outro perfil, branco de classe média. Esta combinação de
fatores pode ser uma das fontes de tensão da temática pesquisada.
Entre os/as professores/as contratados/as82 e as professoras efetivas, o perfil
dos/as estudantes foi descrito de maneira bastante diversificada, revelando a
heterogeneidade das turmas do 6º ano, indo desde os aspectos socioeconômicos até
os etnicorraciais que, segundo o professor Cauã, “favorece o relacionamento entre
82
É importante lembrar que os/as professores/as contratados/as permanecem por um período menor
de tempo na instituição. Nesse grupo, apenas o professor Cauã trabalhou no colégio por um
período mais longo, 8 anos. Por essa razão, podem não perceber as mudanças no perfil dos/as
estudantes como as professoras e funcionárias técnico administrativas efetivas.
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 141
Por outro lado, essa mesma professora avalia que os/as estudantes que
fizeram o primeiro segmento no CAp são mais autônomos do que aqueles/as que
ingressaram no 6º ano pelo processo de seleção e considerou esse aspecto positivo.
Narrou um episódio vivenciado em uma das turmas:
Ao mesmo tempo têm autonomia, a galera que vem do CApinho, não é? Eu lembro
logo no início que eu virei pra eles e disse: “Poxa, gente, hoje eu queria fazer um
trabalho com cartaz, mas não vai ter como ter a cartolina. Então, na próxima aula
vocês trazem a cartolina que a gente faz.” Aí eles: “Não, não. Dez centavos, vinte
centavos”. Juntaram tudo, desceram, foram na APP compraram cartolina e
subiram. Eu fiquei olhando para o 6º ano, uma coisa é uma turma de 6º, juntou
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 142
prima [os/as estudantes/ é ótima. Para mim o grande lance do CAp são os alunos e
deles terem desenvolvido várias facetas da formação deles, não só uma coisa ligada
à matemática, à física, ao próprio português que seja, mas não, eles têm um social
muito elaborado, a questão da comunicação, de se colocar, acho que isso é o nosso
tesouro.
83
Além de promover a educação básica, o CAp co-promove a formação de professores em parceria
com os institutos básicos da universidade. As atividades de ensino desdobram-se e articulam-se
em dois níveis: a educação básica e o ensino superior, mediados e integrados pelas atividades de
pesquisa, extensão e cultura. Estas procuram articular as teorias referenciadas no campo da
pedagogia e áreas afins que contribuam para a realização do trabalho pedagógico e de formação
inicial e continuada de professores. (www.uerj.br)
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 145
84
A questão do jubilamento no CAp foi discutida entre a direção os/as docentes e funcionários/as
técnico administrativos em uma reunião de Conselho Departamental ampliada no segundo
semestre de 2015 e ficou decidido que a instituição não mais jubilará seus/as estudantes. Porém,
até o momento de elaboração desse relatório de pesquisa não havia sido elaborada nenhuma
modificação na portaria de avaliação do colégio para que fosse encaminhada à universidade. Ou
seja, oficialmente, o jubilamento continua existindo, porém, há uma espécie de acordo interno e
essa prática não foi adotada no final do ano letivo de 2015.
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 150
vestibulando, está lá, aquele enquadradão, às vezes, até surtam. Aí vem aquele que
sabe que no segundo ano ele vai passar”. Esse aspecto dificultaria a relação entre
os dois grupos de estudantes.
Para a professora Jussara, os/as alunos/as que ingressam no 6º ano são
novos, por isso, considerou que se relacionam bem. Porém, afirmou que se as cotas
fossem para o ensino médio seria diferente:
Acho que se isso fosse, se a entrada fosse no ensino médio, eu acho que ia ser pior.
Porque, assim, as crianças são bem racistas também, mas eu acho que... eu não sei
se é pureza... no 6º ano, no inicial é tudo muito igual, eu acho que eles não percebem
muito essas diferenças de classe. Eu acho que se fosse no ensino médio ia ser bem
pior. Ou não, tomara que não, mas eu acho que seria sim. (risos). Porque no ensino
médio o pessoal já tem mais aquela coisa do... Do interior, do você mora na favela,
essa coisa já é mais, muito mais presente, eles já estão mais adultos, não é? No 6º
ano eu acho que a coisa ainda está muito assim... criança. Eles se mesclam mais,
posso estar enganada, mas eu também não trabalho com eles, assim, direto.
Esse relato demonstrou que nesses momentos os/as alunos/as cotistas são
identificados/as na turma pelos/as demais colegas. A professora afirmou que o
aluno se sentiu constrangido, mas não conversou com ele sobre a situação nem
tampouco com a turma quando alguns/mas disseram que também queriam ganhar
o material da escola. Ao contrário, afirmou que “ali não era o momento de falar
isso” e respondeu para os/as estudantes que “eles precisam” [os cotistas] dando a
conversa por encerrada. Poderia, no meu modo de entender, ter promovido o
diálogo sobre essa necessidade e também sobre o que significa ser cotista no
colégio. Se a sala de aula não é o lugar onde esse tema deva ser tratado já que ele
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 151
foi levantado pelos/as alunos/as, qual seria o local adequado para que essa discussão
fosse feita com os estudantes? Quanto os estudantes podem discutir e entender,
mediada pedagogicamente, as desigualdades sociais que atravessam suas realidades
pessoais?
É importante ressaltar que as professoras Rose e Jussara não tiveram turmas
regulares do 6º ano em 2014. Elas trabalharam com os/as estudantes que tinham
média menor que cinco e frequentavam a recuperação paralela das disciplinas de
Ciências e Desenho com uma média de dez a doze alunos/as nessas turmas.
A professora Miriam avaliou que os/as estudantes se relacionam bem, mas
ressaltou que por ser uma experiência que estava se iniciando considerava “muito
cedo para fazer uma afirmativa. Não sei mais tarde, não é?”, referindo-a a uma
questão de tempo, à medida que forem cursando outros anos de escolaridade
juntos/as, para que pudesse avaliar de maneira mais adequada essa relação.
No entendimento da professora Rita, não houve mudança e considerou que
o convívio entre grupos diferentes em termos sociais e econômicos seja positivo:
Por enquanto eu não senti mudanças não. Eu acho bom para eles no sentido de que
eles devem ter como o professor também tem que todos nós temos que ter acesso
a todas as camadas. Não pode ter muita essa separação, não é? Eu acho que a gente
tem que ter o contato com todas as camadas sociais, isso é uma coisa que me
incomoda nas campanhas políticas. Que tem muito a tendência de tentar jogar o
mais pobre contra o mais rico, contra a classe média e por aí, e eu acho que isso
também precisa mudar na política, não é? Por que na verdade todos precisamos de
todos, não é? Porque veja bem, os próprios políticos tentam jogar. Dizer que nós
somos o partido do povo, aquele é o partido dos ricos e não pode ser assim. Não
pode jogar povo contra povo. Não pode dizer que rico ou classe média não é povo
porque também produzem. O rico dá o emprego, a classe média paga imposto, paga
as políticas públicas. Então, o pobre não pode ver a gente como inimigo e a gente
não pode ver o pobre também como inimigo. Eu acho que tudo tem que mudar. Eu
acho que no Brasil, pelo menos no Brasil que é onde eu vivo, tudo precisa mudar
isso. Então, acho que seria muito bom se tivesse... Se fosse uma sociedade mais
justa. A gente sabe que é muito difícil ainda mais num país tão grande como o
nosso, mas tudo começa com a educação, é dentro de casa, é nas campanhas
políticas, nas campanhas sociais, tudo tem que passar pela educação, não tem jeito.
A mudança da mentalidade tem que passar pela educação.
4.2
A relação entre os/as professores/as e os/as estudantes do CAp
se dedica por que ele não está a fim ou por que aquilo ou a disciplina não encantou
ou ele acha que não tem nada a ver, entendeu?’
apesar de toda a crise, tem uma projeção muito grande, e eu sei que fazendo um
trabalho bom aqui eu crio uma rede de relações profissionais que vai me projetar,
vai me promover”. Então, eu entrei com essa visão bem egoísta mesmo, mas
quando eu peguei o 6º ano eu falei: “Olha o 6º ano é muito difícil de trabalhar” e
aí eu quis fazer uma relação assim “trabalho bem técnico, bem assim, não posso
dar nenhum mole”. Só que, na verdade, não dá para trabalhar com o 6º, não dá para
trabalhar com nenhum ano, na verdade, sem você desenvolver relações afetivas.
Quando eu percebi que eu chegando ao colégio, dando um abraço neles a aula
melhorava aí eu comecei a desbloquear para outras coisas. A minha relação com
eles foi extremamente afetiva no sentido de que este afeto não atrapalhou o
profissionalismo da prática que eu deveria ter, por outro lado, só auxiliou. Comecei
muito assim, mas depois que eu percebi que os momentos que eu me livrava dessa
capa, por que eu não sou assim, eu não sou sério, que eu me livrava dessa capa e
relaxava, eles também, por outro lado, relaxavam e queriam entender mais. Então,
eu consegui criar um ambiente de dúvidas, um ambiente de querer gostar de
estudar, querer aprender como é que o tal do vulcão entra em erupção, por exemplo,
de querer descer e fazer uma aula na quadra e não na sala de aula. Eu comecei a
criar esse tipo de relação com eles e foi extremamente positivo, me facilitou muito
porque todos os professores reclamavam do 6º ano, todos os professores
reclamavam das minhas turmas e eu não tinha absolutamente o que reclamar deles,
a não ser o que a gente reclama sempre de uma turma do 6º ano, que você deve
saber muito bem, que é o barulho, que é a gritaria.
4.3
O trabalho docente: planejamento, didática, currículo e avaliação
85
Grifos do autor
86
Grifos do autor
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 159
falei: ‘Vamos inserir isso? Vamos começar?’ O que seria até uma forma, não é?
Poderia ter feito, não fiz.
Ao dizer que não propôs às outras professoras mudanças e que poderia ter
feito isso, mas não fez, Monique demonstrou que essa seria uma atitude individual,
que deveria ter partido dela e não uma proposta feita pela coordenação pedagógica
do colégio ou pela chefia de seu departamento. Quando questionada sobre os
critérios de avaliação também afirmou que não aconteceram mudanças, apenas para
os/as estudantes com necessidades educativas especiais87 que realizavam suas
provas em outro ambiente e com mais tempo para responder as questões.
Flávia também afirmou que não realizou mudanças no planejamento de
aula, na seleção de conteúdos, metodologia e critérios de avaliação, mas relatou que
de 2013 para 2014 fez uma adaptação na avaliação, “a gente fez só em relação a dar
mais ponto aqui, menos ponto ali, por achar que os pontos ficariam mais bem
distribuídos, assim, só tiramos dois pontos de um teste e colocamos para outro, para
avaliar o teste mais pesado depois, outro mais leve no início, só isso”. De acordo
com seu depoimento, essa mudança não foi realizada pensando nos/as estudantes
que ingressaram pelas cotas raciais, mas por uma percepção da turma, uma prática
já desenvolvida por ela:
A gente sempre faz uma percepção da turma e aí a gente percebe a turma como
uma turma, a gente não para pra pensar se tem cotista ou se não tem cotista. A gente
para pra pensar no nível de aprendizagem dos alunos em como eles entendem ou
não a matéria, se precisa voltar, se vai mais devagar, se vai mais rápido. Isso para
mim independe de cota ou não porque nas outras escolas eu faço do mesmo jeito,
entendeu? É uma percepção inicial que eu sempre faço. E é uma percepção inicial
e continuada. O ano inteiro você vai fazendo.
87
Desde 2011 acontece no CAp o Atendimento Educacional Especializado (AEE) , proposta voltada
aos/as estudantes com necessidades educativas especiais. Esse atendimento iniciou-se como
projeto de Iniciação à Docência e em abril de 2014, a universidade, através do Conselho Superior
de Ensino Pesquisa e Extensão (CSEPE) promulgou e deliberou a criação do Atendimento
Educacional Especializado (AEE) como oferta integrada às classes comuns do ensino regular da
Educação Básica do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – CAp/UERJ
atendendo as disposições do Decreto 7611/11, a Resolução CNE/CEB n. 4 de 2 de outubro de
2008 e a Resolução n. 4 de 13 de julho de 2010 que preceituam que os sistemas de ensino devem
matricular os estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades/superdotação nas classes comuns do ensino regular. A Deliberação 12/2014 autorizou
a regência docente especializada integrada às classes comuns do CAp. Atualmente a equipe do
AEE conta com doze professores/as entre contratados e efetivos/as, dez alunos/as dos anos iniciais
do ensino fundamental são atendidos/as e no segundo segmento do ensino fundamental e do
ensino médio há a indicação de atendimento para nove alunos/as.
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 160
Finalizou sua resposta fazendo uma queixa com relação ao fato de todos/as
os/as professores/as do 6º ano em 2014 eram contratados/as:
Um dos problemas que a gente tinha no 6º ano de ciências, especificamente, é que
não tinha um professor concursado. Todos os professores que davam aula eram
contratados. Qual é o problema disso? É que a gente não tem a experiência anterior
dos professores que já trabalhavam no CAp, a gente ia por conta própria. Então, a
gente não tem como... Eu e a outra professora acreditamos que também não, a gente
não tem como fazer uma comparação de como era o trabalho antes e como era o
trabalho depois porque a gente começou o nosso trabalho do nosso jeito e indo do
nosso jeito.
possibilidade de fazer mudanças nas suas práticas pedagógicas, apesar de Cauã ter
afirmado que a matéria é muito abstrata.
Esse professor complementou sua resposta relatando uma atividade que
propõe no início do ano letivo para atenuar a questão da abstração da matéria e
também tratar das diferenças existentes entre os/as alunos/as:
Nada também que não possa ser superado com dinâmicas, enfim, com atividades
quando eles trazem fontes de pesquisa de casa. Eu sempre tento mostrar que a casa
deles é um lugar de pesquisa, todo mundo tem história, todo mundo tem um nome
de família que é importante, tem sangue. Então, eu sempre tentei nos primeiros
momentos do 6º ano, do programa, fazer com que eles percebessem que eles vivem
a história diariamente. Dentro de casa com o sobrenome deles. Por exemplo, a
primeira pesquisa, a primeira atividade do ano era uma atividade que eles
pesquisavam brasão de família, aí cada um pesquisava o brasão da família, aí tinha
que trazer uma história legal da família e trazer um objeto de casa, um objeto
histórico. Então, assim, super legal. Às vezes, de objetos históricos vinham fotos
do avô na guerra, vinham notas de dólar que o avô trouxe do Dia D, máscaras de
gás nazistas, enfim. Acaba que são formas de tentar tirar as diferenças entre eles,
num momento em que todos percebem que têm a sua história, que toda família tem
história interessante pra contar, da mais pobre a mais rica. Então, eu acho que são
pequenos mecanismos em sala de aula que a gente tenta um pouco nivelar todos
eles, quem é pobre, quem não é, quem é branco, quem não é, quem vem do
CApinho, quem não é. Eu acho que tem algumas formas de trabalho que ajudam
muito nisso, mas não tive como perceber, assim, diferenças grandes de quem veio
do CApinho ou não, quem entrou por sorteio ou não, como eu falei anteriormente,
eu acho que é uma coisa muito particular de cada caso. Tanto do CApinho, quanto
de sorteio, ótimos alunos como alunos com dificuldade de aprendizado, no caso.
pesquisem os brasões de suas famílias. Também dividiu os/as alunos/as entre os/as
que são ótimos/as e os/as que têm mais dificuldade como se estive distinguindo-os
a partir desses dois critérios desconsiderando diferenças socioeconômicas, culturais
e contextuais que poderiam existir dentro das turmas. Finalizou sua resposta
afirmando que não fez nenhuma mudança nas avaliações propostas:
De acordo com o ritmo da turma você aumenta um pouquinho o nível da prova ou
diminui um pouquinho. Num primeiro momento eu faço um método de avaliação
um pouco mais brando para não ficar todo mundo preocupado com nota vermelha,
pelo contrário, no primeiro semestre eu dou uma boa afrouxada, em termos de nota
para que eles possam gostar também da matéria e não ficar com medo de ser
reprovado e ao longo do ano vou puxando um pouquinho mais. Esses anos todos
sempre tive uma base, mais ou menos, semelhante. Você vai aprimorando essa
base. Aquela questão não deu certo, ninguém acertou, aquela questão ficou boa,
eles gostaram você vai, ao longo dos anos, por erros e acertos, mantendo um
método de trabalho, uma forma de trabalho que se adapta a você também e que
tenta ser, de certa forma, melhor para os alunos. Não tive nenhuma mudança
especial por conta dessa nova lei não.
Bom, como eu não considero muito isso [a reserva de vagas] nem tomei
conhecimento, se tomasse conhecimento também... Vou trabalhar do mesmo jeito
que eu sempre trabalho. Como? Eu quero fazê-los aprender. Então eu vou muito...
Eu acho que a coisa da didática, da metodologia a gente tem que ter de qualquer
forma não importa se eles vêm de políticas públicas ou não. Seja quem for a gente
tem que fazer aquele trabalho pensando na faixa etária, pensando em tudo. A
questão é que a gente trabalha com um grupo, então você não pode trabalhar com...
Assim, fica muito difícil ainda mais para gente que não fica a manhã inteira com
eles, só alguns tempos. Na verdade, em inglês a gente fica um tempo. Grandes
mudanças eu não faço não porque eu acho que tenho que puxá-los para cima.
(Professora Rita)
Isabel também afirmou que não fez mudanças e que no ano de 2014 o
colégio adotou o livro do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). No seu
ponto de vista, essa já foi uma grande modificação porque anteriormente usavam
um livro da Oxford que os/as alunos/as compravam.
O livro do PNLD de inglês, que é o livro desse ano é um livro até difícil, um pouco
difícil, a gente teve que dar uma ajuda, ajudar um pouco a interpretar os
enunciados, então, a dificuldade foi geral, acho que para todo mundo. Nós, como
professores, tentando se adaptar a um material novo, e eles chegando de outra
realidade; por que é um material que lida com gêneros discursivos, então é um
pouco mais complexo que os outros que eles estavam acostumados a usar. Assim,
não é nada estrutural de só fazer exercícios repetitivos, esse material é diferente.
Então, eu achei que essa foi a dificuldade, mas não eu ter que adequar o meu
material para esses alunos, especificamente, não.
Quanto aos critérios de avaliação, informou que não fez alterações e que não
recebeu nenhuma orientação da coordenação pedagógica para operacionalizar
quaisquer mudanças:
Nem participei de uma discussão sobre a política de cotas, que você perguntou
anteriormente, e também não participei de nenhuma reunião em que isso fosse
levado em conta: ‘Olha, os alunos são esses, as questões são essas’. Só aqueles que
tinham alguma dificuldade cognitiva, esses eram apontados porque tinham
diagnóstico, tinham um laudo, alguma coisa assim, mas os outros, não. Então, a
gente veio sabendo conforme o tempo foi passando e as oportunidades e as
circunstâncias apresentaram. Então, eu não tive nenhuma orientação de adequação
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 167
A gente já brigou e não adiantou, a gente não queria. Então, o que é menos
importante para nós é essa prova. O que vale dentro da equipe, que é cada um no
seu quadrado, dentro da minha equipe, o menos importante para a gente é essa
semana de prova, porque a gente avalia o processo. Já que tem a prova, que é um
instrumento, ninguém está desmerecendo esse instrumento, mas já que essa prova
é um instrumento válido, ele é tão válido quanto o processo todo. Então, a gente
nota o processo e, às vezes, o processo tem um peso maior do que a prova. Então,
não dá para mudar nada, é um menino igual o outro que está chegando, que vai
fazer a mesma coisa.
Como foi possível perceber a partir dos depoimentos, nove entre dez
professores/as utilizavam trabalhos, testes e provas escritas para avaliar seus/as
alunos. O professor Mateus também usava esses instrumentos, mas ao perceber a
diferença de domínio de determinadas competências entre os/as estudantes optou
por realizar uma prova oral a fim de atender esses/as alunos/as. A professora Miriam
considerou a prova um instrumento válido, mas revelou que gostaria que fosse
retirada em sua disciplina, o Francês, porque avalia mais o processo de
aprendizagem dos/as alunos do que o rendimento e/ou a nota da prova. Com
exceção do professor Mateus, não foi possível perceber uma sensibilidade mais
explícita com relação ao trato da diversidade no sentido de os/as professores/as
pensarem e discutirem estratégias e alternativas às suas práticas e métodos a fim de
lidar com a nova realidade plural que o colégio passou a enfrentar. Os/as
professores/as demonstraram que são muito ciosos/as pela permanência de suas
práticas pedagógicas e avaliativas e parecem acreditar que essas são as únicas
capazes de gerar sucesso e aprendizagem além de garantir a manutenção da
qualidade acadêmica, a excelência de que tanto se orgulham, cabendo aos/as
alunos/as realizar esforços pessoais a fim de obterem êxito.
Outro aspecto que me chamou atenção nesse conjunto de respostas foi o fato
de nenhum dos/as entrevistados/as ter feito menção à Lei 10639/0388 que tornou
obrigatório o ensino de história da África e das culturas afro-brasileiras e indígenas
nas escolas públicas e privadas da educação básica. Essa lei trouxe para os sistemas
de ensino e para os/as educadores/as brasileiros/as um novo desafio e propôs uma
alteração curricular importante. Não mencionar a lei pode denotar a prevalência da
opção por manter um currículo de caráter monocultural, principalmente para os/as
88
Essa lei foi alterada em 2008 e passou a incluir a história e cultura indígena e sua numeração foi
alterada para Lei 11.645/08. Porém, a numeração original ficou mais conhecida, possui um caráter
étnico-cultural e tem sido utilizada com mais frequência.
Capítulo 4. O colégio por seus sujeitos 169
5.1
Sobre as ações afirmativas
acadêmicas da universidade, portanto, tal discussão poderia ser familiar para os/as
entrevistados/as.
Ação afirmativa não é sinônima de cotas, estas apenas constituem um
instrumento de aplicação daquela. Como afirma Silva (2002, p. 108), “cotas
numéricas são, comumente confundidas com ação afirmativa, o que é um equívoco.
As cotas são um aspecto ou possibilidade da ação afirmativa que, em muitos casos,
tem um efeito pedagógico importante, posto que forçam o reconhecimento do
problema da desigualdade e a implementação de uma ação concreta que garanta os
direitos às pessoas em situação de inferioridade social”.
Mesmo diante da dificuldade de diferenciar ação afirmativa de cotas, em
geral, os/as professores/as entrevistados/as se posicionaram mais favoráveis às
cotas sociais do que as cotas raciais. Quando favoráveis às cotas, o principal
argumento apresentado pela maioria deles/as dizia respeito à questão da
conformação histórica brasileira, uma vez que a adoção de cotas raciais seria uma
reparação aos danos causados à população negra no tocante as oportunidades
educacionais e de emprego. Nesta perspectiva, o professor Cauã fez o seguinte
depoimento:
Olha, como professor de História, a minha posição não é a posição dominante. Eu
não concordo muito com a política de cota, assim, pessoalmente. Eu sei que,
historicamente, é uma necessidade, não é? Dentro da educação brasileira,
realmente se a gente for parar para ver em termos de quantitativos e porcentagens,
a população negra acaba sendo, de certa forma, tendo algumas dificuldades a mais.
Mas como professor de História, eu não acredito que o problema brasileiro seja
unicamente étnico. Eu acho que ele é muito mais social do que étnico. Eu acredito
que deveria ter alguma outra forma. Enfim, [de] facilitar o acesso de etnias
minoritárias... Não minoritárias, mas com maiores dificuldades socioeconômicas a
ter sucesso tanto educativo, quanto social e profissional. Mas eu particularmente
não vejo com bons olhos. Não acredito 100% na política de cotas. Desde a UERJ
eu já percebia isso: muitos alunos cotistas do curso de História, da graduação,
acabaram abandonando a faculdade, quase 50%. Então, a faculdade deixa de
cumprir certo perfil de formação. Eu acredito que, no Brasil, a questão é muito
mais social do que racial.
Santos (2007) afirma que a maioria da população brasileira não nega que
haja racismo no Brasil, porém, é difícil encontrar pessoas que admitam que elas
mesmas discriminam os/as negros/as. Estamos diante do chamado racismo “sem
racista auto-identificado, auto-reconhecido, ou seja, sem aquele que se reconhece
como discriminador. Discrimina-se os negros, mas há resistência entre os
brasileiros em reconhecer a discriminação racial que se pratica contra esse grupo
racial. Ou seja, os brasileiros praticam a discriminação racial, mas só reconhecem
essa prática nos outros” (SANTOS, 2007, p. 16).
Estes dados indicam que as desigualdades entre negros/as e brancos/as não
estão circunscritas, apenas, aos problemas estruturais de ordem socioeconômica
como argumenta o professor Cauã. Essas desigualdades revelam que a população
negra enfrenta, indiscutivelmente, também situações de preconceito e
discriminação raciais no chamado “racismo à brasileira”.
Outro aspecto da resposta do professor Cauã que merece reflexão diz
respeito aos alunos e alunas cotistas da UERJ que pode ser confrontado pela
pesquisa realizada por Valentim (2012), que investigou as trajetórias universitárias
de sucesso de ex-alunos-negros-cotistas dessa universidade que ingressaram na
instituição por meio do sistema de cotas, entre os anos de 2003 e 2005, e concluíram
seus cursos no período de 2006 a 2010. Valentim (2012) revelou que esses/as
estudantes não estavam concentrados/as apenas nas áreas de ciências humanas e
sociais. Partindo da hipótese de que esses/as alunos/as eram vistos como “fora da
normatividade da identidade universitária, marcados pelo estigma de cotistas e com
indícios de fracasso” (VALENTIM, 2012, p. 136), procurou compreender como
esses sujeitos construíram o caminho do sucesso acadêmico e como superaram as
adversidades vivenciadas e narradas por eles/as até a conclusão dos cursos. Ao final
do estudo, foram identificadas três estratégias que parecem ter se conjugado para o
alcance do sucesso acadêmico: (i) a assistência estudantil voltada à permanência e
conclusão dos cursos, (ii) a condição de estudante trabalhador/a, (iii) o
pertencimento a diferentes redes de solidariedade.
Para o enfrentamento das questões étnico-raciais, Valentim (2012)
identificou que os/as ex-alunos/as tiveram de lidar com suas identidades
subalternizadas de classe e de raça, somadas ao estigma de serem cotistas. A
maioria era oriunda de classes populares e os/as primeiros/as a cursarem o ensino
superior em suas famílias. Outro aspecto destacado foram as vicissitudes
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 175
políticas afirmativas visam, nem que seja por um período provisório, a criação de
incentivos a grupos que estão sub-representados em instituições ou posições de
prestígio e poder na sociedade. O segundo aspecto diz respeito ao que Guimarães
(1999) já mencionava desde o final dos anos noventa, ou seja, que não se trata de
fazer uma opção entre políticas de cunho universalista ou de cunho diferencialista.
Para o autor, as políticas de ação afirmativa devem estar ancoradas em políticas de
universalização e de melhoria do ensino público, tanto o ensino fundamental quanto
o médio. De acordo com Guimarães (1999), trata-se de privilegiar os grupos
subalternizados nos âmbitos em que encontram obstáculos comprovados a seu
acesso. Mesmo estando consciente da necessidade da melhoria do ensino público
brasileiro, Guimarães (1999, p. 173) apresenta um questionamento problematizador
e instigante que poderia ser apresentado às afirmações de alguns/mas
entrevistados/as nesta pesquisa: “devem as populações negras no Brasil, satisfazer-
se em esperar uma ‘revolução do alto’, ou devem elas reclamar, de imediato e pari-
passu, medidas mais urgentes, mais rápidas, ainda que limitadas, que facilitem seu
ingresso nas universidades públicas e privadas?” Acrescento a sua questão se essas
populações não devem reclamar também por medidas que facilitem o acesso a
instituições de educação básica consideradas socialmente privilegiadas, como é o
caso do CAp/UERJ.
No que diz respeito à questão da reparação histórica mencionada nas
respostas de Cauã e Monique, é importante destacar, como afirma Gomes (2012,
p.734), que as desigualdades que atingem a população negra no Brasil não são
“somente herança de um passado escravista, mas, sim, um fenômeno mais
complexo e multicausal, um produto de uma trama complexa entre o plano
econômico, político e cultural”. Se as desigualdades não são “somente herança de
um passado escravista”, por outro lado, como afirma Siss (2003, p.13-14), a
população negra foi excluída histórica e sistematicamente do processo escolarizado
desde o período da escravidão:
Quanto aos afro-brasileiros, sua exclusão do processo educacional escolarizado é
histórica. Durante a vigência do regime escravocrata no Brasil, poucos defenderam
propostas de instrução escolarizada, ainda que primária, aos escravizados, aos
libertos e aos ingênuos. As propostas nesse sentido de notáveis abolicionistas como
Luiz Gama, Nabuco e Rebouças, foram relegadas ao esquecimento ou sequer foram
seriamente discutidas, muito pelo contrário: se na Constituição imperial outorgada
de 1824, no seu artigo 179, parágrafo 32, a instrução primária aparece como
gratuita a todos os cidadãos e, se pelo artigo 10, parágrafo 2º do Ato Adicional de
1834 a garantia dessa educação torna-se dever das províncias, três anos mais tarde,
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 177
Haveria, portanto, uma ideologia racial que particulariza o Brasil, qual seja,
como a nação foi formada por um amálgama de descendentes de colonizadores,
“cuja origem étnica e racial foi ‘esquecida’ pela nacionalidade brasileira; a nação
permitiu que uma penumbra cúmplice encobrisse ancestralidades desconfortáveis”
(GUIMARÃES, 1999, p. 45). Houve por parte do Estado brasileiro uma explícita
intenção de branquear a população. Com o fim da escravatura e a adoção de uma
ordem hierárquica, a cor passou a ser uma marca, um diferencial, especialmente,
quando relacionada à classe social, visto que, a condição de pobreza de negros e
mestiços no período pós-abolição era tomada como marca de inferioridade. Ao
discutir a formação histórica nacional, também ressalta como foi construída a noção
do “branco” brasileiro. De acordo com o autor, no Brasil, o branco não se formou
pela exclusiva mistura étnica de povos europeus como aconteceu nos Estados
Unidos com seu “caldeirão étnico”. Entendo, segundo a definição de Guimarães
(1999, p. 47-48), como “branco aqueles mestiços e mulatos claros que podem exibir
os símbolos dominantes da europeidade: formação cristã e domínio das letras. Por
extensão, as regras de pertença minimizaram o pólo negro da dicotomia, separando,
assim, mestiços de pretos. O significado da palavra negro, portanto, cristalizou a
diferença absoluta, o não-europeu”. Essa hierarquização marca até hoje as relações
raciais em nosso país e continua colocando a população negra em condições de
inferioridade, especialmente, no que diz respeito às questões educacionais.
Além desses argumentos, as diversas pesquisas de abrangência nacional, já
mencionadas nesse trabalho, revelam dados inquestionáveis sobre as desigualdades
existentes entre negros/as e brancos/as no Brasil em diversos indicadores sociais
como renda, saúde, trabalho, mortalidade infantil, expectativa de vida, habitação,
educação, entre outros. No tocante à educação, o aspecto mais intrigante
demonstrado pelas pesquisas diz respeito à diferença de anos de estudos entre
brancos/as e negros/as que sofreu mudanças, quase imperceptíveis, ao longo de
mais de duas décadas, passando de 2,3 anos no início dos anos dois mil, para 1,8
anos em 2014, evidenciando que a durabilidade da desigualdade entre esses grupos
raciais para esse indicador se mantém e sofreu poucas variações. Diante disso, posso
afirmar que o quadro de desigualdades entre brancos/as e negros/as apresenta um
caráter estrutural de ordem socioeconômica, porém, a explicação para essas
desigualdades não está circunscrita apenas às variáveis estruturais. Os negros e
negras enfrentam cotidianamente situações de discriminação raciais. Essas
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 179
É possível perceber nas falas de Cauã, Monique e Rita, mesmo sendo esta
última contrária, que haveria uma necessidade histórica que justificaria a adoção de
políticas de ação afirmativa em nosso país. Porém, para ele/elas, não se trata de uma
questão racial, mas de cunho social. Além disso, a professora Rita mencionou a
questão do esforço pessoal ao afirmar que “quem é determinado alcança aquilo que
quiser” trazendo para o debate, ainda que de maneira difusa e velada, a ideia de
mérito. Seu ponto de vista ignora as desigualdades educacionais, sociais e raciais
existentes entre negros/as e brancos/as tão divulgadas socialmente por meio das
mais diversas pesquisas, e relaciona as conquistas a uma questão pessoal, alcançada
por merecimento, por capacidades ou aptidões específicas.
A questão do mérito, na perspectiva liberal, põe sobre os indivíduos a
responsabilidade exclusiva pelos resultados de suas vidas, ignorando quaisquer
outras variáveis, de modo que, o sucesso ou o fracasso dos indivíduos são
diretamente proporcionais aos talentos, às habilidades e ao esforço de cada um,
independentemente do contexto histórico, social, econômico e cultural desses
próprios indivíduos. As ações afirmativas não dispensam a utilização do critério
meritório, ao contrário, o mérito tem sido vitimado pelas desigualdades raciais que
podem ser corrigidas através das ações afirmativas posto que, possibilitam a
‘desracialização’, ‘desetnização’ ou ‘dessexualização’ das oportunidades de acesso
e permanência no ensino superior de qualidade. (VALENTIM, 2005, p. 59-60)
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 180
Mas eu acho que esse sistema de cotas, como não tem uma solução de entrada, ele
vem como uma solução, mas eu gostaria muito que ele fosse paliativo, agora é um
medicamento, mas ele não deve ser considerado o tratamento para a entrada na
universidade, de alguns segmentos, até porque, biologicamente falando, a gente
não tem raça, e é muito difícil para a gente, biólogo, reconhecer a raça, a gente não
consegue muito reconhecer, talvez por ter estudado, a gente fala: ‘É tudo igual, lá
dentro é tudo igual, no DNA, não tem marcador’, pode ter até um conjuntinho de
alguns genes mais específicos, caucasianos, mas não tem diferença, é muito
complicado. E, para nós, eu vejo a miscigenação como algo, biologicamente
falando, é a panaceia do mundo, cruzar entre si sem nenhum tipo de marcação é a
melhor coisa do mundo para qualquer população, para qualquer espécie, você não
tem aquele grupo específico que vai se cruzando e faz um mal danado
geneticamente falando. E a gente tem uma mistura tão grande de cores e sabores
que, como é que determina isso? Então quem se coloca como negro é negro até que
ponto? Eu também sou, entende? É uma confusão. Então, é difícil de eu marcar,
dizer exatamente quem é o negro, a questão da pobreza, essa questão de dividir, eu
não sei como eles fazem isso, não entendo muito, mas deve ser muito difícil você
identificar exatamente onde é que está o corte, é muito difícil, e aquele que está
ali? Foi cortado, ele não está entrando ali. Como eles determinam isso? É muito
difícil. Então tudo isso é muito penoso. Então a questão de cotas, de você tentar
trabalhar para dar uma oportunidade maior para determinados grupos, onde é que
tá o corte? Como é feito para descobrir quem faz parte desse grupo? É muito difícil.
Agora, não fazer nada também é.
É possível perceber que, mais uma vez, a questão social prepondera nas
respostas, apesar do professor afirmar que nas situações cotidianas existe uma
diferenciação entre negros/as, índios/as e brancos/as.
A professora Flávia construiu uma argumentação interessante ao afirmar
que não é contra ou a favor das ações afirmativas sejam elas raciais ou sociais.
Considera que o modo como são implementadas não é correto, uma vez que, para
ela, as instituições são obrigadas a adotar esse procedimento sem ter as condições
necessárias para garantir a permanência desses/as estudantes. Ela fez referência à
questão da permanência dos/as estudantes e também colocou em xeque o processo
de ensino aprendizagem que não sofre, em sua opinião, mudanças para atender o
novo perfil de alunos/as.
Eu acho que elas têm o seu lado benéfico, mas elas não são implementadas da
forma correta. Eu acho que na maioria das situações em que eu vejo isso
acontecendo, seja na universidade, seja no CAp, em qualquer lugar, eu vejo isso
como um processo que deveria estar sendo um dos passos para se alcançar um
determinado objetivo. Só que, na maioria das vezes, isso é lançado na instituição.
A instituição, então, é obrigada a cumprir aquelas ações, na maioria das vezes, não
está preparada para isso e o processo de aprendizagem continua o mesmo. Os
professores continuam dando aula do mesmo jeito, os processos internos
continuam da mesma maneira. Então simplesmente se obriga a instituição a
cumprir determinada ação, determinada medida e não é feito todo o trabalho por
trás que deveria para embasar aquilo ali. Concomitantemente a isso, deveriam ser
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 183
feitos processos para diminuir essa vulnerabilidade que está por trás disso, por trás
desse processo. E não é feito. E se é feito não é feito da maneira ou na intensidade
a qual deveria. Então acaba que essas medidas que deveriam ser apenas um passo
temporário para resolver uma determinada solução [problema], para chegar a uma
possível igualdade social, se é que essa palavra é possível, porque não é possível
você obter uma igualdade homogênea, se é que isso existe, entre aspas. Isso que
deveria ser um passo acaba se tornando uma medida que eles tratam como uma
medida paliativa, como se fosse uma solução para o problema, entendeu? Eu acho
que, no geral, acaba tendo essa situação, esse quadro, assim, em todas as
instituições.
nas universidades. Então, tem que se abrir esse espaço. E aí, uma vez dentro da
universidade ou da escola, aí estamos todos iguais novamente, vamos lutar pela
formação. Vamos ser inseridos na formação. Eu acho que é isso.
Outra professora que afirmou ser favorável às cotas foi Jussara, porém,
argumentou que se preocupa com a possibilidade de alguns/mas candidatos/as
enganarem o sistema de seleção declarando-se negros/as sem que apresentem as
características fenotípicas necessárias para usufruir desse benefício.
O conjunto de respostas dos/as professores/as revelou que há uma variedade
de argumentos eposicionamentos sobre as políticas de ação afirmativa. Três
professoras afirmaram ser favoráveis à adoção dessas medidas; outros/as três se
declararam contrários/as e quatro disseram não ser favoráveis ou contrários/as.
Ficou evidenciado também que a modalidade de cotas mais acolhida por esses/as
profissionais é a social. As percepções dos/as entrevistados/as são semelhantes às
dos/as professores/as do curso de pedagogia da Universidade Estadual do Mato
89
No que se refere ao processo seletivo para o 6º ano de escolaridade do CAp, a prova tem o valor
total de 100 pontos e é constituída de três partes: questões discursivas de Língua Portuguesa (40
pontos); questões discursivas de Matemática (40 pontos); redação (20 pontos). A nota final será
o somatório dos pontos obtidos nas três partes que compõem a prova. A classificação obedecerá
à ordem decrescente do total de pontos e considerará a opção do tipo de vaga (não reservada e
reservada) e, em se tratando de vaga reservada pelo sistema de cotas, a opção do grupo de cotas
(Manual do Candidato – 6º ano/2014 – em anexo).
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 187
90
Programa criado para apoiar o estudante de modo a garantir-lhe a permanência na UERJ, com
aproveitamento até a conclusão do curso, viabilizando o cumprimento da Lei 5346/08, que
regulamenta o sistema de cotas como efetivo mecanismo da redução das desigualdades sociais.
As atividades oferecidas visam contribuir para o desenvolvimento acadêmico e a integração dos
estudantes. São elas: Instrumentais – objetivam o desenvolvimento de conceitos e conteúdos
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 188
91
O colégio não possui rampas de acesso para estudantes com dificuldades locomotoras e há um
elevador, que está em manutenção, em apenas um dos blocos de sala de aula.
92
O RIOCARD conforme previsto em lei, institui cartões de gratuidade para estudantes do ensino
fundamental e médio, através de cadastro enviado pela Secretaria de Educação Estadual, Federal
e Municipal. O RIOCARD é um sistema de bilhetagem eletrônica utilizado na maioria das cidades
do Estado do Rio de Janeiro.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 190
Ficou explicitado nesse relato que os recursos recebidos pela instituição são
destinados a sua manutenção, não havendo, até o momento, um repasse de verba
específico para atender os/as cotistas apesar da existência de uma minuta de
resolução que instituiu o programa de bolsa auxílio à permanência desses/as
estudantes93.
93
De acordo com o Plano de Intervenção do Serviço Social no CAp/UERJ “a maior demanda de
trabalho para o Serviço Social (e a mais desafiadora visto que supõe planejamento, execução e
avaliação de proposta, sem o aporte de recursos para tanto) é a consolidação de um Programa de
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 191
Bolsa Auxílio Permanência através de um Ato Executivo do Reitor - normatização legal usual da
universidade, capaz de transformar o programa em ação permanente dotada de orçamento,
efetivamente integrada à estrutura docente e assistencial da instituição – para estudantes com
demandas de ordem socioeconômica”. . Plano de Intervenção do Serviço Social no CAp/UERJ
2015.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 192
94
Nome fictício para preservar a identidade da funcionária citada.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 193
frente às universidades por todo o Brasil. Ao serem pressionadas por esses setores
da sociedade civil organizada, as universidades reagiram cada uma a seu modo,
pouquíssimas vezes criando cotas somente para negros (4 casos), muitas vezes
criando cotas para negros e alunos de escola pública (31), e majoritariamente
criando cotas para alunos de escola pública. Não houve, por outro lado, nenhum
movimento independente para a inclusão de alunos pobres no ensino superior. Em
suma, se não fosse pela demanda por inclusão para negros, o debate sobre o papel
da universidade no Brasil democrático certamente estaria bem mais atrasado.
(FERES JÚNIOR, 2012, p. 1)
95
De acordo com Feres Júnior (2012, p. 2), “os dados da Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro (UENF) mostram que nos anos em que vigorou o sistema antigo, 2003 e 2004,
entraram respectivamente 40 e 60 alunos não-brancos – aproximadamente 11% do total de
ingressantes. A sobreposição de critérios que passou a operar no ano seguinte derrubou esse
número para 19. A média de alunos não-brancos que ingressaram sob o novo regime de 2005 a
2009 é ainda menor – 13 – o que representa parcos 3% do total de ingressantes”.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 195
não tenha sido capaz de captar as concepções que os sujeitos pesquisados têm sobre
a adoção de políticas afirmativas nos sistemas educacionais, mas reconheço que
todo esforço foi feito para cercar a temática com diferentes perguntas e em distintos
momentos da entrevista.
5.2
Sobre a implementação das ações afirmativas na educação básica
tem, não é verdade? Vai começar bem. No 6º ano acho que já vai ser mais
preocupante porque ele vai vir das redes, tanto rede pública, quanto privada e nem
sempre vai conseguir dar conta”. A professora Rita enfatizou a todo o momento a
questão da excelência de ensino do CAp em comparação às escolas da rede pública
e também privada demonstrando o quanto esse aspecto é relevante para ela.
A professora Rose, também argumentou sobre a qualidade e acrescentou
que as políticas afirmativas deveriam ser ampliadas para todas as escolas da rede
estadual de ensino, não apenas para o CAp.
Eu acho que o que está acontecendo é que você vai colocando mais para baixo, o
funil já está apertando para baixo, entende? Por que toda e qualquer escola não é
desejável para toda e qualquer pessoa? Por que tem que ter mais cotas? Por que
todo colégio municipal, CAp, as universidades, não são iguais para todos
quererem? Muitos querem o CAp? Qual o motivo? Tem motivo? Explica para mim
o motivo. Esse modelo é tão caro assim que não possa ser colocado em outros
lugares? Será que é mesmo? Ou é melhor fazer a política [de cotas]? Essas mesmas
pessoas que ficaram contentes, por exemplo, que teriam mais chances nesse
determinado colégio, por que não foi ao contrário? Por que não se usou o modelo
desse colégio para outros e abriram-se várias vagas em vários lugares para o negro,
para o branco, para o que quisesse entrar, e que gostasse e acreditasse naquele
ensino daquele jeito. (...) Eu fico com muita preocupação aqui no CAp sim, tá? Eu
gostaria que fosse diferente, que tivesse em outros lugares. Já que colocaram aqui
no CAp, qual foi a explicação? É por que é um bom ensino? Por que tem uma
procura muito grande? Por que, então, não foi em todas, e todos adotarem, mais ou
menos o sistema CAp? Sei lá, não sei. Se for esse o modelo, as pessoas estão
preferindo esse modelo, então vamos reproduzir em outras escolas, todos vão
querer. Questão de cota, então, faz em todos, que todas as escolas tenham
representação do grupo que pleiteia aquelas vagas, do grupo inteiro, eu até
concordo. Ou então você abre as inscrições, mapeia essa população e bota as vagas
de acordo com a população, em todas as escolas e não só no CAp/UERJ.
Assim como Rita, a professora Rose também revelou sua preocupação com
a manutenção da qualidade e excelência do ensino no CAp. Considerando o que
disseram em seus depoimentos, manifestaram o mesmo que Valentim (2005)
observou em sua pesquisa de mestrado com professores/as do curso de Direito da
UERJ: “a fim de manter a excelência acadêmica da qual tanto se orgulham e estão
preocupados em preservar, os professores veem seus alunos cotistas como
apresentando, em geral, dificuldades que ocorrem em razão de uma insuficiente
formação dos alunos” (VALENTIM, 2005, p. 104). Em outras palavras, os/as
alunos/as seriam intelectualmente inferiores, ou seja, não possuiriam um capital
cultural, não tiveram acesso a bens ou conhecimentos culturais em teatro, música,
cinema ou ainda manejo da norma culta da língua que estariam de acordo com as
exigências culturais do colégio. Os/as estudantes oriundos/as das classes
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 199
Por outro lado, esse mesmo professor afirmou que o CAp sempre teve “uma
mistura etnicorracial grande”, o que permite inferir que a adoção da política
afirmativa racial não seria necessária.
Uma coisa que eu sempre percebi no CAp é que é um colégio que tem uma mistura
étnico racial muito grande e isso para mim é um ponto muito favorável do CAp.
Por exemplo, já dei aula na UFRJ também, no CAp da UFRJ, e não havia a mesma
quantidade, a mesma porcentagem, talvez a palavra está errada, de negros, mulatos,
mestiços. Eu acho que o CAp [da UERJ], hoje no Rio de Janeiro é, talvez, um dos
colégios onde haja uma maior, maior diversidade, maior democracia racial. Isso eu
considero um ponto fundamental e, de certa forma, isso acontece por que também
as cotas, o sorteio tem nele previsto as cotas. (Cauã)
que a gente tem e tudo, mas eu estou ensaiando esse pensamento aqui [risos]. Meu
argumento hoje é esse.
mas também de renda e emprego, entre esses dois grupos raciais, portanto, o que
não falta são dados que comprovam esse fato. E são justamente as pesquisas
governamentais, segundo Carneiro (2011, p. 54):
A principal alavanca para o reconhecimento dos negros brasileiros como segmento
com características específicas e desvantajosas em termos de inserção social no
país. Elas cada vez mais desautorizam as ideias consagradas em nossa sociedade
sobre a inexistência de um problema racial. Questionam a simplificação de que o
problema do Brasil é social, e não racial. Recusam os eufemismos como o do
apartheid social e, sobretudo, indicam que as políticas universalistas,
historicamente implementadas, não têm sido capazes de alterar o padrão de
desigualdades entre negros e brancos na sociedade.
Outro aspecto de sua resposta que merece reflexão trata da convivência entre
negros/as, brancos/as, amarelos/as, para que o preconceito possa ser diminuído com
a presença de negros/as e índios/as na mesma proporção que os brancos nas esferas
educacionais. Não creio que apenas a convivência entre diferentes grupos raciais
possa favorecer a diminuição do preconceito, uma vez que a sociedade brasileira se
reconhece como plural e, ao mesmo tempo, é discriminatória e preconceituosa. É
necessário, como assevera Carneiro (2011, p. 55), que “a urgência de
implementação de políticas públicas de promoção da igualdade racial no Brasil
decorra de um imperativo ético e moral que reconheça a indivisibilidade humana e,
por conseguinte, condene toda forma de discriminação”.
Já a professora Flávia afirmou que não sabia da implementação da lei no
CAp. Construiu seus argumentos no momento da entrevista. Afirmou que
considerava uma iniciativa importante, mas argumentou que é insuficiente:
Acho que ainda assim é insuficiente. Por que? O CAp é um Colégio de Aplicação
da UERJ. Nível de ensino do CAp é um nível de ensino X. A criança que entra com
determinada deficiência não necessariamente consegue alcançar esse nível X.
Existem alguns processos dentro do CAp para tentar minimizar essa diferença. Só
que esses processos pedagogicamente, inclusive, não são eficientes. Só por que a
criança tem uma determinada dificuldade de aprendizagem, ela fazia a mesma
prova em um local diferente ou com mais tempo, não resolve o problema dela. E
esse é o método mais encontrado pelo CAp. É claro que tem todo um arcabouço
por trás. Eu trabalhei com pedagogos do CAp que realmente tentavam procurar a
família, davam um suporte, tentavam fazer o que conseguiam dentro da estrutura
que o CAp permitia. Mas ainda assim eu acho que são necessárias mudanças de
metodologia, mudanças de cronograma, mudanças de planejamento na aula. São
tantas mudanças que deveriam estar por trás que não funcionam, sabe? [...] E a
maioria das vezes quando as crianças entram por cota no CAp, elas entram por cota
e vêm junto com essas dificuldades. Seja por que eles entram por cota e ao mesmo
tempo também têm carências na sua educação familiar, seja por n razões outras que
possam acontecer, mas eles acabam ficando atrelados a essas dificuldades de
aprendizagem. Os alunos que não entram por cota, normalmente, [...] não
encontram dificuldades no CAp por que eles já foram selecionados, eles já são a
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 204
nata dos outros colégios. E aí você coloca esses alunos na mesma sala em que os
alunos que passaram por cotas e, normalmente, estão associados a dificuldades de
aprendizagem.
excelência, de referência? Porque tem uma coisa, que eu nem falei, que é tão fácil
dar aula para aluno bom. Escola boa para mim é a escola que segura o ruim, não a
que só tem bom. Muito fácil dar aula para um monte de gente boa, quero ver dar
para ruim. Não sei, desculpa, nunca pensei que pudesse ser, vou pensar”.
A resposta que poderia dar ao questionamento da professora é a de que
acredito que o CAp tenha sido ‘escolhido’ para adotar as políticas afirmativas
exatamente por ser uma escola de excelência, de referência que pudesse oportunizar
para a população que se encontra a margem o acesso a uma instituição de ensino de
qualidade. Sim, toda criança tem acesso à escola pública, é um direito garantido
pela Constituição, mas o sucateamento do ensino público vem se aprofundando
sistematicamente e, nada mais justo que uma escola de reconhecido prestígio social
e pública possa receber estudantes de todos os extratos sociais e grupos étnico
raciais. Assim, como no depoimento de Flávia, a professora Miriam fez uma divisão
entre ‘aluno bom’ e ‘aluno ruim’ dando a entender que o alunado do colégio seria
‘bom’ e que com a adoção da política de cotas passaria a ser ‘ruim’. Mais uma vez
aparece a questão da insuficiência da formação, da inferioridade intelectual, do
despreparo, colocando, individualmente, nesses/as estudantes a responsabilidade
por seu sucesso ou fracasso escolar.
É importante ressaltar que três depoentes afirmaram que não haviam
pensado sobre a questão da implementação das políticas de ação afirmativa na
educação básica, que estavam construindo suas respostas e argumentos no momento
das entrevistas. Posso inferir, então, que haveria espaço para a discussão desse tema
no CAp/UERJ. Por que essa discussão não foi realizada? Em outro item desse
capítulo tratarei da participação dos/as docentes e funcionárias técnico
administrativas nas discussões sobre a implementação da política de ação
afirmativa na instituição. Talvez nesse conjunto de respostas seja possível
compreender os motivos que levaram os/as professores/as a afirmarem que não
haviam pensado sobre tais políticas antes da realização das entrevistas.
Mais uma vez há semelhanças com os dados de Emerich (2011). Um aspecto
recorrente nas respostas de seus/as entrevistados/as foi sobre a necessidade da
realização de discussões constantes sobre a temática das políticas de cotas que, para
muitos, ainda era conhecida apenas superficialmente. Outra percepção similar diz
respeito ao fato de que a política, na UEMS, foi implementada por lei sem que a
categoria dos/as professores/as pudesse discutir amplamente o tema. Talvez seja a
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 206
Além desses aspectos, afirmou que o colégio demorou muito para discutir
como seu processo de seleção para o 6º ano:
O CAp demorou muito tempo a sair da zona de conforto e promover uma discussão
sobre o que era o seu processo de seleção. Por que durante muito tempo também,
o tempo que estou aqui, acho que existia uma questão velada, uma questão pautada
no medo, de que, “será que o quê fazemos antes da política de cotas, é legal? É
ilegal? Será que existir uma separação de vagas para filhos de servidores é legal?
É ilegal? Não vamos mexer nisso, se mexermos vamos perder direitos, como mexer
nisso?” E na verdade a universidade já tinha adotado a política de cotas, e as cotas
já eram uma realidade não para a educação básica, por que eu acho também que
não é só o CAp nessa história, a educação básica ela também está em uma zona,
entre aspas, de conforto desconfortável, e aí no que se mexe, de fato, nessa
estrutura, nesse processo, nesse acesso, nessa permanência, nessas formas. Então
o que acontece, nós demoramos a fazer essa discussão como autores dessa
discussão, e alguém iria fazer.
Nesse momento, relatou que havia acontecido, em 2005 ou 2006, não soube
precisar o ano, na Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Rio de
Janeiro discussões encabeçadas por um grupo de deputados para que fossem
instauradas políticas de cotas para filhos de militares, de oficiais dos bombeiros e
de policiais militares mortos em serviço no CAp como foi acrescentado a lei de
cotas da UERJ em 200796. De acordo com seu depoimento, nessa ocasião um
96
Com a publicação da Lei 5074/07, nos processos seletivos para a UERJ, foram incluídos ao
percentual de 5% para pessoas com deficiência e integrantes de minorias étnicas neste tipo de
cota: filhos de policiais civis, militares, bombeiros militares e de inspetores de segurança e
administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço. (www.uerj.br)
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 208
5.3
Ação afirmativa no CAp: a discussão entre a comunidade escolar
participei. Não sei como foi conduzido. As coisas eram colocadas no departamento,
nos colegiados. Muitas vezes a gente podia participar do Conselho Departamental
que era coletivo e a chefe levava para essa instância as discussões feitas no
departamento. Então, de uma forma ou de outra foi publicizado, foi divulgado. Eu
que não participei e não posso te dar muitas informações por que realmente eu
estive ausente.
encontrava apartado do acesso ao ensino superior e que, após mais de uma década
da adoção das ações afirmativas, pesquisas de mestrado e doutorado, relatórios
feitos pela universidade comprovam que o desempenho dos/as cotistas não
confirmou o temor de seus/as opositores/as.
As professoras Miriam, Rita e Isabel disseram que não participaram de
nenhuma reunião convocada pela chefia do departamento para discutir a adoção das
políticas afirmativas. Miriam afirmou que não participou de discussão alguma e
também não foi informada sobre o assunto, considerava-se: “Se houve, sou
absolutamente ignorante no assunto”. Em seu depoimento, Rita garantiu que não
teve participação em reunião sobre essa pauta: “Não tive, só ouvi falar. Não
participei de nenhuma reunião nesse sentido”. Porém, a professora Isabel afirmou
que foi “informada de que isso haveria; isso aconteceria; agora nós teremos cota
também para entrada dos alunos no CAp”. No entanto, não deu outros detalhes de
como essa informação foi obtida.
Entre os/as professores/as contratados/as, as respostas seguiram a mesma
tendência, ou seja, todos/as afirmaram que não participaram de discussões em seus
respectivos departamentos sobre a adoção da lei. O professor Mateus fez a seguinte
ponderação:
Não participei de nenhuma discussão, não chegou nenhuma informação mesmo.
Aliás, a falta de informação é comum no CAp. Não tive essa informação, se você
não me falasse eu ia ter passado o ano letivo inteiro com eles, tendo dado aula para
eles, acabado de dar aula para eles e não ia saber disso. Então, eu não sei se é uma
coisa que eu não deveria mesmo saber, que até facilitou meu trabalho, ou se eu
deveria saber. Mas eu soube de outra forma. Não soube que era cota, mas soube
assim: ‘Olha, há alunos com dificuldades’. Então, mas ninguém falou: ‘Olha, tem
alunos com cota que entraram dessa forma’. Ninguém me falou isso, entendeu? Em
nenhum momento teve nenhuma discussão, nenhuma reunião, nenhum debate a
não ser aqueles que a gente travasse dentro da sala de aula mesmo.
Essa discussão aconteceu dentro da sala de aula e foi muito bom até porque eu
ajudei... Acredito que eu tenha ajudado aquelas crianças que moravam na favela
pela primeira vez a perceber aquilo como uma identidade e não como um
xingamento. Eu falei: ‘Olha, eu sou suburbano. Eu não moro na favela, mas eu
moro em Irajá. Então, eu sou irajaense suburbano e isso não é nenhum xingamento.
Mas se eu morasse na favela, eu poderia dizer que eu moro no bairro da Mangueira,
o bairro é Mangueira, mas eu poderia dizer também que eu moro na favela da
Mangueira e isso não é nenhum problema’. E daí eles começaram a entender que
aquilo era... Dizia respeito a um lugar, às relações que se desenvolvem na porção
mais próxima do nosso convívio, do espaço do nosso convívio e eles conseguiram
criar lá as suas identificações com o lugar em que eles moravam sem criar situações
pejorativas.
grupo específico: “Não sei se isso aconteceu. Juro que eu não sei. Se aconteceu foi
um grupo que não, aí já vem a discriminação, que não colocou o técnico junto,
vamos dizer assim. Ficou entre docentes mesmo, pedagógico, mas técnico do baixo
escalão [risos], vou dizer assim, não foi envolvido na história”. Também considerou
que a lei chegou de cima para baixo na instituição e relatou, nesse momento, que
sempre fez parte da banca administrativa dos processos seletivos para o CAp, mas
que nos anos de 2014 e 2015 não teve a mesma atuação: “A gente sempre está junto,
mas esse... e geralmente, a gente fazia os editais. Esses dois últimos editais a gente
não participou dessa parte, entendeu? A divisão das vagas, por que tem a lei, tantos
por cento para isso, tantos por cento... até por que esse [de 2014] tem uns
pormenores, então foi feito pela direção da unidade mesmo, entendeu?” Informou
ainda que os editais são elaborados pela direção do colégio e encaminhados para o
Sistema de Administração de Concursos (DSEA) da universidade e também para a
Diretoria Jurídica da UERJ (DIJUR) que fazem a análise jurídica do documento e,
caso seja necessário, apontam as modificações que deverão ser feitas até que o edital
possa ser publicado.
Apenas o diretor da instituição soube dar detalhes de como se deu o processo
de elaboração da lei, quais foram os grupos que participaram dessa discussão, mas
deixou claro que o colégio só se aproximou mais da temática depois que o texto da
lei já estava pronto, portanto, a participação da comunidade escolar aconteceu de
modo tímido:
Na verdade a unidade foi chamada para discutir sobre o leite derramado,
objetivamente, discutir sobre uma lei muito mal feita, muito mal esboçada, muito
mal costurada, que nem era, talvez, para ser uma lei que incluísse a unidade, mas
alguém deve ter se lembrado do CAp, das escolas de excelência e colocou as
FAETEC, fez um texto para as FAETEC e, de repente, bolou um arremedo de
projeto de lei para o CAp que seria votado com enormes problemas de texto, com
enormes descaracterizações da unidade. A gente teve um espaço somente de entrar
para o debate sobre essas descaracterizações, e não sobre a essência da política
afirmativa que estava sendo proposta, essa é uma grande questão que hoje eu reflito
muito melhor sobre ela do que naquele momento.
novo, mais uma vez, abriu mão de um protagonismo que deveria ter exercido antes,
e a gente vinha conversando, a gente já vinha conversando isso em 2012, de mudar
o processo de acesso ao CAp, de mexer no processo de acesso ao CAp.
5.4
Riquezas e dificuldades na adoção das ações afirmativas
está entrando, os novos, isso vai enriquecer muito. Eles [novos professores] estão
vindo com outra cabeça, entendeu? Uma cabeça mais humana, um pessoal mais
novo, mais politizado, coisa que a gente também não era. A gente está aprendendo
com eles, vamos dizer. Vai mudar a cultura do CAp, vai mudar o perfil da pessoa.
O ser humano aqui dentro eu acho que vai melhorar um pouco. Ele não vai ser tão
elitizado como é.
foram beneficiados pela política afirmativa; (ii) a oportunidade que o Estado está
proporcionando às pessoas de terem acesso a uma escola de qualidade; (iii) a
promoção da interação entre estudantes de universos sociais distintos; (iv) a política
afirmativa adotada no CAp, ainda que de maneira parcial, poderá favorecer a
discussão sobre cor e raça.
Sete entre os/as dez professores/as entrevistados/as, construíram suas
respostas tratando das questões relativas à heterogeneidade e diversidade do grupo
de estudantes que ingressou pela reserva de vagas raciais:
Enriquecedor é o aumento ainda maior da diversidade dos alunos. Aumenta de
certa forma para os alunos que não são cotistas, a importância disso, a importância
de você ter, entrar em uma sala de aula que tenha brancos, mulatos, negros, índios,
especiais. Eu acho que isso vai gerar, ainda mais no CAp, uma percepção para os
alunos de que a diversidade é importante. E isso para mim, talvez, seja o principal
ponto em questão, não como você entrou, de onde você veio se foi por cota ou não.
Eu acho que quando começa o ano letivo isso é um pouco esquecido e eu acho que,
no caso, o grande benefício é a valorização da diversidade cultural, sociocultural,
no caso, disparadamente. (Professor Cauã)
Acho que tem um crescimento social aí por trás disso que não tem como você
negar. As pessoas aprenderem a conviver com uma realidade diferente, entenderem
que existem realidades e contextos diferentes, pessoas com históricos diferentes e
qualidade de educação familiar, e etc, diferentes. Então, isso eu acho que é
enriquecedor. Essa heterogeneidade é enriquecedora, mas eu acho que ela precisa
ser orientada, ela precisa ser trabalhada, esse é o ponto. Mas como é um processo
que está começando agora é um processo que ainda está em aprendizagem, um
processo que ainda demanda muitas mudanças, ainda demanda muitos ajustes.
(Professora Flávia)
A professora Rose afirmou que “a parte boa é que sempre que você traz
diversidade, coisas diferentes, para qualquer grupo, isso é enriquecedor. Então,
mesmo que a gente tivesse o mesmo sistema de entrada, que fosse concurso até lá
no 1º ano, o vestibulinho, que tivesse o mesmo sistema, que entrasse essa elite e
viesse essa cota, a questão da diversidade acho importante”.
A professora Rita também utilizou o argumento da diversidade, a
possibilidade de convívio entre os/as estudantes ingressantes e os/as alunos/as que
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 222
ser só uma política afirmativa, a cota tem que estar dentro da gente, atitude de
acolher e de tentar ajudar de alguma forma”.
Em seu depoimento, o professor Mateus afirmou que o elemento
enriquecedor seria o favorecimento da discussão sobre raça e cor no colégio, mas,
ao mesmo tempo, revelou sua preocupação com a possibilidade de que a adoção
das ações afirmativas no CAp possa ficar restrita à questão retórica porque, no seu
ponto de vista, a principal discussão que precisa ser feita no colégio não está
acontecendo, vem sendo escamoteada.
Eu vejo uma política quase retórica por que ela está cumprindo uma ideia de uma
ação afirmativa e tudo, mas as discussões, as discussões certas não estão sendo
feitas, efetivamente, que é essa discussão por que ninguém quer tocar nesse ponto.
Por que ninguém quer tocar que os alunos negros não estão passando do primeiro
ano do ensino médio. Tudo bem, a gente vai começar a ver isso daqui talvez seis
anos por que se começou ano passado daqui seis anos nós teremos um
distanciamento maior para acompanhar os resultados. Mas eu não tenho uma visão
muito otimista em relação a essa política de cotas no sentido de: ‘Ah, então tá.
Então daqui a seis anos nós teremos mais de um aluno negro no terceiro ano do
ensino médio com condições de estudar e entrar na universidade’. Não, enquanto
não forem feitas discussões dessa natureza eu não sei se a coisa vai evoluir
efetivamente. Porque o racismo no Brasil, ele é muito estranho e a gente tem um
tipo muito particular de racismo que é o racismo do outro. As pessoas negras não
estão vendo, na sua maioria, que estão sofrendo preconceito e as pessoas racistas
não estão vendo que estão sendo racistas. Então, é sempre o outro. E aí desse tipo
de racismo se desenvolveu uma ideia que a gente não discute a questão por que ‘o
racismo não é meu, é do outro’; então essa questão não é muito debatida
efetivamente. Como ‘olha, vamos encarar que existe um racismo no Brasil. Vamos
encarar que só tem uma aluna negra no 3° ano do ensino médio do CAp em 2015?
E tem um montão no 6° ano? E tem um montão preso no caminho aí que não passa
um ano e é jubilado, aí reprova três anos seguidos’. É uma pesquisa que é muito
fácil de você identificar quem são os alunos que estão sendo jubilados do
CAp/UERJ. Ou quem são os alunos que são reprovados, que estão ficando
reprovados dois três anos. Eles são negros, eles são negros em sua grande maioria.
E aí se não discutir isso... eu passei um ano inteiro lá dando aula e não teve
nenhuma discussão sobre isso. E eu vivi o CAp, eu posso dizer que ano passado eu
fiquei no CAp três dias e, às vezes, eu ainda ia outro dia extra. Eu ficava lá o dia
inteiro. Não teve o risco de essa discussão ter acontecido e eu não saber, de não ter
sabido.
Para Mateus, essa discussão precisa ser pautada pelo colégio: “a presença
de alunos cotistas negros dentro da UERJ, dentro do CAp/UERJ é um ponto que
estimula esse debate, mas o debate não vai surgir sozinho, o próprio colégio tem
que criar instâncias para que essa discussão aconteça”.
No que diz respeito às dificuldades relativas à adoção das cotas raciais no
CAp, as respostas dos/as entrevistados/as, tanto dos/as professores/as,
contratados/as e efetivas, quanto das funcionárias técnico administrativas e do
diretor da instituição referem-se a: (i) a continuidade da política no tocante às
dificuldades pedagógicas que os/as estudantes possam apresentar para que tenham
êxito em sua trajetória escolar, (ii) os problemas estruturais e de recursos humanos
da universidade, (iii) a permanência desses/as estudantes no colégio, (iv) a
diversidade do grupo, (v) a naturalização da política de cotas, (vi) à adequação dos
conteúdos.
Para a pedagoga deveria haver uma oficina que auxiliasse os/as estudantes
que apresentassem dificuldades pedagógicas para que esses/as não fossem
indicados/as para a recuperação paralela. Ressaltou que esse trabalho não seria
destinado, exclusivamente, para os/as cotistas:
Não adianta ter só a política [de acesso] e não ter a continuidade desse
acompanhamento. Teria que ter outra atividade. Pode ter alunos que tenham
dificuldades na redação, mas teria que ter uma oficina para ajudar na elaboração de
textos, tinha que ter uma atividade. Ah, tem alunos que têm dificuldades em
matemática. Teria que ter uma oficina, algo para ajudá-los como se fosse aula de
reforço. Se o professor identificasse alguma dificuldade isso não seria só para os
alunos cotistas não, seria para todos os alunos, porque não pode especificar assim
senão vai constranger o aluno. E o aluno também vai se recusar a participar, mas o
ideal seria que tivesse atividades extracurriculares, não é de reforço, mas de uma
complementação, de uma orientação do aluno. Ela já foi implementada [a lei], foi
algo imposto, foi de fora para dentro e o CAp teve que assumir isso. Não vejo assim
como uma dificuldade, mas é um desafio, acompanhar esses alunos e evitar o
insucesso escolar, entendeu? Porque no ano passado a gente recebeu um público
que não tinha tantas dificuldades pedagógicas, mas daqui pra frente não sabemos.
E então, o CAp vai ter que mudar enquanto instituição. Eu percebo como um
desafio, não como dificuldade.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 226
97
Desde 2010 a universidade alterou a data de corte de nascimento para a inscrição de crianças ao
sorteio de vagas para o 1º ano do ensino fundamental e a instituição passou a receber nesse ano
de escolaridade crianças com 5 anos de idade.
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 228
vencerem esse bloqueio psicológico aí que vai ser difícil. Por que eu acho que tudo
começa aqui na minha cabeça.
outros, às vezes, por um ser cotista e morar na Nova Holanda e o outro ser do
Leblon, os próprios pais, às vezes, criam dificuldades em relação a isso”.
Os depoimentos listados evidenciaram não apenas a homogeneização de
ritmos que as escolas, comumente, vêm utilizando em suas propostas educativas
sem considerar a origem social, cultural, da idade e das experiências vividas por
seus alunos e alunas, mas também as questões socioeconômicas dos/as estudantes
que trouxeram para o CAp uma realidade mais plural.
Candau (2012b, p. 102) afirma que a escola tem um papel relevante na
superação da perspectiva homogeneizadora ao reconhecer, valorizar e empoderar
sujeitos socioculturais subalternizados e negados. Nesse sentido, a tarefa principal
seria realizar “processos de diálogo entre diferentes conhecimentos e saberes, a
utilização de pluralidade de linguagens, estratégias pedagógicas e recursos
didáticos, a promoção de dispositivos de diferenciação pedagógica e o combate de
toda forma de preconceito e discriminação no contexto escolar”.
A coordenadora do NAPE afirmou que não via nenhuma dificuldade com a
entrada de estudantes pela reserva de vagas. No seu entendimento, as questões que
se apresentam são estruturais, referem-se ao espaço físico e à falta de recursos
humanos:
Eu só acho que as nossas dificuldades todas elas vão esbarrar na estrutura da
própria universidade. Porque se a gente precisa de um acompanhamento desses
alunos, porque é óbvio que precisa se é um processo novo a gente tem que
acompanhar, a gente tem que estar gerenciando algumas questões de uma forma
diferente, a gente tem que ter uma estrutura para isso e a gente não tem estrutura
nenhuma. Você não tem um ambiente físico onde você possa sentar e acolher esses
pais. Você não tem um ambiente físico que você possa conversar com as crianças.
[...] Acho que o nosso grande problema é que nós não cabemos mais nesse espaço
físico. Nós precisamos de outro espaço que a gente tenha condições de acolher
essas pessoas na medida do que necessitam para inseri-las dentro do contexto da
escola. Por que a gente vive fazendo o quê? Adequações. Não sei se a gente vai ter
pernas para fazer todas as adequações que vão de ano para ano crescendo. E
também acho que a estrutura de pessoal. Uma escola desse tamanho, com cota, com
todas as questões que ela tem funcionar quando tem uma psicóloga, funcionar com
uma assistente social, acho que isso no futuro vai ficar muito complicado.
A discussão está naturalizada, a cota está naturalizada assim: “Olha, tem cota”,
“esses alunos são da cota” ou nem se quer falar isso. Do meu ponto de vista é
negativo por que isso não está acrescentando nessa discussão. Tem um filósofo
ganês Appiah, esqueci o primeiro nome dele, ele vai dizer o seguinte, que não
existe diferença de raça, nós somos etnias diferentes e tudo mais, então a cor não
diz respeito a nada. Por outro lado, no Brasil e em outros países também, claro, a
cor diz bastante, não é? A cor de uma pessoa pode dizer muita coisa, inclusive
formas de acesso diferente a lugares, não só a escola, mas, a cor das pessoas,
infelizmente, aqui no nosso país define níveis de acesso, acessibilidade, mobilidade
em lugares diferenciados e isso precisa ser discutido. Então, esse é um aspecto
também necessário da discussão que não é feita no CAp, porque está sendo
naturalizado. Então, eu não posso dizer nem que eu sou contra as cotas raciais, mas
o que eu sou contra, e isso claramente eu sou contra, é a falta de debate sobre as
cotas raciais em um lugar que já tem. Então, a cota veio sem um debate prévio e
sem um debate posterior. É preciso criar instâncias no CAp que se discuta isso.
Pimenta (1997). Além disso, enfatizou que uma escola de qualidade deve ser
oferecida para todos/as os/as estudantes o que denota um posicionamento que
defende as políticas públicas de caráter universal e não as políticas diferencialistas.
Já a professora Isabel considerou que uma dificuldade seria a adequação dos
conteúdos para que todos/as pudessem ser contemplados/as, ou seja, constituiria
uma mudança a ser feita não apenas individualmente, mas pelo corpo docente:
Por conta da minha falta, talvez, de adequação ano passado, de conteúdos, eu nem
sei se consegui atingir todos eles, se eu consegui cumprir com o meu objetivo para
todos eles. Talvez, isso seja uma questão que a gente precisa aprender, e seja uma
dificuldade a ser enfrentada que é: ‘Como trabalhar com alunos que você não... que
você não esperava trabalhar ou...’ Isso não pela questão de... mas pela questão de
acesso a informação, de acesso a materiais, a escola, conhecimentos,
especialmente, a língua estrangeira, que exige também... ele só vai ter acesso a
língua estrangeira se ele tiver oportunidade de fazer um curso de inglês fora e tal,
por que a escola só vai apresentar isso no 6º ano. Então, é trabalhar com aquele que
ainda não teve oportunidade. Acho que a dificuldade é essa, a gente precisa
aprender e adequar. Também não pode ser uma ação individual, não acredito... [...]
Os alunos entraram e a gente precisa, então, se reunir se comunicar e dizer: ‘Olha,
vamos discutir propostas e possibilidades’. Eu sei que existe esse trabalho aqui,
mas em relação àqueles que têm atendimento especial, mas, aos cotistas eu não vi
ainda um movimento adequado a eles, voltado para eles, talvez.
Considero que nessa resposta há dois aspectos que precisam ser ponderados:
a professora citou a necessidade de adequação dos conteúdos de língua estrangeira,
no caso o inglês, para um grupo socioeconômico que, a priori, só teria acesso a essa
disciplina quando ingressasse no 6º ano de escolaridade, enquanto o “chamado
aluno/a do CAp” já estaria fazendo cursos de inglês. Penso que sua ponderação é
legítima, mas ela desconsiderou os saberes que esses/as jovens podem apresentar
sobre a língua inglesa uma vez que têm contato com esse idioma das mais diversas
maneiras. Além disso, parte do pressuposto de que esse público tem dificuldades de
acesso a bens culturais e/ou materiais. O segundo aspecto diz respeito, mais uma
vez, a necessidade de que seja desenvolvida uma ação coletiva dentro da escola para
que o trabalho com os/as estudantes possa ser realizado de maneira satisfatória
garantindo o sucesso escolar dos/as ingressantes. Isabel concluiu sua resposta
asseverando que esse movimento:
Passaria por uma questão da escola, acho que é movimento do grupo de
professores, de profissionais da escola. Professores, Núcleo Pedagógico,
Administração, enfim, a gente precisa estar ciente do movimento que está
acontecendo e não fingir que eles não estão entrando. Porque na verdade o que
acontece é: a gente está recebendo alunos, mais de sessenta alunos e ponto. Na
verdade a gente está recebendo sessenta alunos, mas entre esses tem as diferenças
entre eles. Eu acho que seria legal a gente conhecer. Eu não sei se existe uma crença
Capítulo 5. As políticas de ação afirmativa: o que pensam os/as profissionais... 233
de que a gente sabendo quem são, se isso influenciaria na nossa maneira de olhar
os alunos, talvez possa existir esse pensamento. Mas, eu acho que seria bom a
gente, não só conhecer: ‘Olha, é fulano, é sicrano’, mas debater sobre isso,
conversar, por que a atitude tem que ser geral. Eu sinto falta até de reuniões de série
que, antigamente, a gente tinha. Reunião do 6º ano e vamos conversar sobre o 6º
ano, porque é um ano de escolaridade muito especial, é muita troca, é muita
novidade, para eles, para nós, eles são muito pequenininhos ainda. Então, eu acho
que vale levar também em consideração; 6º ano é entrada, são novos, e ainda tem
as questões específicas dos que estão entrando por cotas, para gente estar ciente do
terreno onde a gente está pisando. E trabalhar bem com isso, adequar a nossa
prática e nossa formação para isso.
2010 e 2014. Essas pesquisas revelaram que o país obteve melhorias nos
indicadores educacionais no que se refere ao acesso às redes de ensino,
proporcionando um aumento do fluxo de crianças e jovens à escola. Porém,
avaliações externas, nacionais e internacionais, indicam que o nível médio do
desempenho escolar de estudantes brasileiros/as está bem próximo ao de vários
países latino-americanos, mas bem abaixo dos níveis educacionais observados para
os países desenvolvidos. A legitimidade de tais avaliações é bastante contestada,
mas talvez elas possam nos indicar, ao menos, que estamos avançando no acesso à
escola e, talvez, estejamos com grandes dificuldades de garantir a aprendizagem de
muitos jovens e crianças que frequentam as escolas públicas brasileiras.
Por outro lado, quando os indicadores educacionais da população brasileira
são desagregados por cor ou raça nas pesquisas citadas nesse trabalho, ficou
evidenciado que para a população negra (pretos e pardos) a desigualdade continua
a afetar de modo significativo esse grupo no que diz respeito às taxas de
analfabetismo funcional, frequência escolar, média de anos de estudo, atraso escolar
no ensino médio, distorção idade-série, taxas de acesso e frequência a curso
universitário, nível superior completo. Também é bastante consensual nas pesquisas
e nas políticas públicas que as desigualdades educacionais influenciam diretamente
nas oportunidades de emprego, ocupação no mercado de trabalho e,
consequentemente, na distinção dos rendimentos entre brancos/as e negros/as,
comprometendo também a mobilidade social. Os dados apresentados pelas
pesquisas do IBGE de 2010 e 2014 revelaram, portanto, que as políticas
universalistas, ofertadas igualmente a todos, apesar dos avanços alcançados, não
conseguiram garantir oportunidades educacionais equânimes para a população
negra e, muito menos, diminuir as históricas desigualdades entre brancos/as e
negros/as.
Nesse sentido, as pesquisas governamentais favoreceram o desvelamento
das desigualdades raciais no país, especialmente aquelas voltadas à educação e ao
mercado de trabalho. O processo de visibilização e desnaturalização desse quadro
ganhou força e densidade desde os anos noventa com a participação, cada vez mais
ativa, do movimento negro nacional. Importante lembrar, nesta perspectiva, que a
discussão sobre a implementação de ações afirmativas de corte racial solidificou-se
depois da participação do Brasil na III Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, em 2001,
Capítulo 6. Considerações finais 237
que, desde já, fosse feito um acompanhamento das trajetórias escolares desses/as
alunos/as. Também me parece importante que novas pesquisas sejam realizadas
com as primeiras gerações de egressos do CAp/UERJ beneficiadas por esta política.
Como ficou evidenciado nos depoimentos dos/as entrevistados/as, a
comunidade Capiana ainda está se adaptando a nova realidade estabelecida pela lei
no sentido de democratizar o acesso ao 6º ano de escolaridade a essa instituição
pública de ensino. Considerando esse aspecto, é importante destacar que as
ponderações aqui realizadas estão sujeitas a modificações por entender que os
impactos acadêmicos e sociais da reserva de vagas raciais exigem mais tempo de
avaliação e vigência para que possam ser analisados com maior profundidade. Esse
pode ser considerado um dos limites desse trabalho, porém, entendo que ouvir as
funcionárias técnico administrativas, o diretor e os/as docentes que atuaram nas
turmas de estudantes cotistas que ingressaram no primeiro processo seletivo após a
aprovação da legislação revelaram os desafios e tensões que foram vivenciados por
esse grupo de profissionais sobre a iniciativa de inserção desses/as alunos/as.
Foi possível perceber que a Lei 6434/13 chegou ao CAp por iniciativa dos
poderes executivo e legislativo do Estado do Rio de Janeiro, tendo contado,
segundo a narrativa do diretor, com a participação de um movimento social
representado pela EDUCAFRO. Nenhuma outra liderança social foi citada pelos/as
entrevistados/as. A elaboração da lei não foi uma iniciativa da comunidade interna
do colégio nem tampouco da universidade que implementou a reserva de vagas em
seus vestibulares desde 2001, também por força de leis estaduais. Mesmo diante
dessa constatação, é necessário ressaltar o caráter pioneiro da adoção de políticas
de ação afirmativa de corte racial no primeiro e segundo segmentos do ensino
fundamental uma vez que a lei federal determina que a reserva de vagas seja
implementada nas instituições de ensino médio e superior.
As legislações adotadas na UERJ e em seu instituto de aplicação guardam
algumas semelhanças: a elaboração das leis contou com a mobilização de setores
sociais, no caso da universidade de modo mais contundente e no que diz respeito
ao colégio de maneira mais “tímida”. Essas iniciativas, no entanto, fizeram com que
os poderes executivo e legislativo respondessem as demandas solicitadas em forma
de leis. Outra semelhança a ser considerada se refere à condição sine qua non de
que os/as beneficiários/as de tais políticas comprovem a carência econômica para
que possam concorrer a essas vagas. Assim, como a universidade, o colégio se viu
Capítulo 6. Considerações finais 239
______. Preconceito racial: modos, temas e tempos. 2. ed. São Paulo: Cortez,
2012.
Sites consultados:
www.uerj.br
www.cap.ufrj.br
www.cap.uerj.br
www.cp2.g12.br
www.inep.gov.br
www.anped.org.br
www.alerj.rj.gov.br
www.faetec.rj.gov.br
gov-rj.jusbrasil.com.br
252
Apêndices
Apêndice 1
Termo de consentimento livre e esclarecido
253
Apêndice 2
Roteiro de entrevista
254
Apêndice 3
Ficha de identificação do/a entrevistado/a
255
Anexos
Anexo 1
Lei 6.434/2013
256
Anexo 1
Continuação
257
Anexo 2
Processo Seletivo CAp-UERJ 2014 – 6º ano do Ensino Fundamental
258
Anexo 2
Continuação
259
Anexo 2
Continuação
260
Anexo 2
Continuação
261
Anexo 2
Continuação
262
Anexo 2
Continuação
263
Anexo 2
Continuação
264
Anexo 2
Continuação
265
Anexo 2
Continuação
266
Anexo 2
Continuação
267
Anexo 2
Continuação
268
Anexo 2
Continuação
269
Anexo 2
Continuação
270
Anexo 2
Continuação
271
Anexo 2
Continuação
272
Anexo 2
Continuação
273
Anexo 2
Continuação
274
Anexo 2
Continuação
275
Anexo 2
Continuação