Marçon & Andrade - O Diagnóstico Psiquiátrico e Desafios para Outra Biopolítica Da Infância
Marçon & Andrade - O Diagnóstico Psiquiátrico e Desafios para Outra Biopolítica Da Infância
Marçon & Andrade - O Diagnóstico Psiquiátrico e Desafios para Outra Biopolítica Da Infância
Luana MARÇON1
Henrique Sater de ANDRADE2
RESUMEN: A partir de las "órdenes" que llegan a los servicios de asistencia a niños y
adolescentes, problematizamos el diagnóstico psiquiátrico y los desafíos contemporáneos para
otra biopolítica infantil. Reflexionamos críticamente sobre el sistema de clasificación de los
diagnósticos de salud mental y sus usos específicos en la infancia. Discutimos cómo el saber
psiquiátrico hegemónico ha transformado la infancia en un lugar privilegiado de gobierno de
la conducta y de intervención sobre el riesgo y el rendimiento. Por último, formulamos
preguntas para producir tanto la acogida de los niños con trastornos mentales como las
prácticas de atención menos normativas y disciplinarias.
1
Universidade Estadual de Campinas, Campinas – SP – Brasil. Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de
Ciências Médicas. Terapeuta ocupacional e doutoranda em Saúde Coletiva. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-
1299-2679. E-mail: [email protected]
2
Universidade Estadual de Campinas, Campinas – SP – Brasil. Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de
Ciências Médicas. Médico e doutor em Saúde Coletiva. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9847-3663. E-mail:
[email protected]
Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 27, n. esp. 2, e022024, 2022. e-ISSN: 1982-4718
DOI: https://doi.org/10.52780/res.v27iesp.2.16823 1
Luana MARÇON e Henrique Sater de ANDRADE
ABSTRACT: From “orders” that arrive at services for the care of children and adolescents,
we question the psychiatric diagnosis and contemporary challenges for another childhood
biopolitics. We critically reflect on the classification system of diagnoses in mental health and
its specific uses in childhood. We discuss how the hegemonic psychiatric knowledge has
transformed childhood into a privileged locus for governing conduct and intervention on risk
and performance. Finally, we ask questions to produce, at the same time, care for children with
mental suffering and less normative and disciplinary care practices.
Introdução
“Vô, o que é um adulto?
É uma criança morta”
Ademir Assunção
O Teo tem 5 anos. Ainda não fala completamente e fica desatento durante as
brincadeiras. Escolhe sempre os mesmos brinquedos e brinca de forma
repetida com eles, enquanto repete as mesmas palavras. Esse comportamento
também foi percebido na escola. Depois de várias buscas na internet,
identificamos que pode ser tanto TDAH como autismo. Trouxemos nosso
filho no posto de saúde pois queremos saber como conseguir um
encaminhamento para descobrir o que a criança tem e qual o tratamento.
A partir destas e de outras “encomendas” que chegam aos serviços públicos de saúde de
acolhimento clínico de crianças e adolescentes, buscamos no presente artigo refletir sobre o
diagnóstico psiquiátrico e alguns desafios contemporâneos para outra biopolítica na infância.
Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 27, n. esp. 2, e022024, 2022. e-ISSN: 1982-4718
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O diagnóstico psiquiátrico e desafios para outra biopolítica da infância
Relacionados com a Saúde, publicado regularmente pela OMS), produzida em diálogo com as
atualizações do DSM.
Este sistema interligado e hegemônico de classificação médica das doenças mentais
passou nas últimas décadas por mudanças abruptas a cada versão. Polêmicas internas
(FRANCES, 2010; MCCARTHY, 2013) e externas (CAPONI, 2014; ROSE, 2019) ao campo
profissional da psiquiatria seguem animando o projeto de catalogar diagnósticos de transtornos
mentais. Com variadas ênfases e posições, tais críticas buscam demonstrar a fragilidade do
projeto da Associação Americana de Psiquiatria de almejar um guia “ateórico” e “puramente
descritivo” no campo da saúde mental, evitando o compromisso com qualquer teoria particular
de causalidade. O que está em jogo nessa busca de confiabilidade é a imagem ideal de um
diagnóstico psiquiátrico representada por uma entidade singular com substrato biológico
subjacente específico para cada condição única, isto é, uma espécie de “ponto de passagem
obrigatório” para seu surgimento (ROSE, 2019).
Tal noção de “lesão subjacente” possui relação com o conceito de “história natural da
doença”, da identificação de um estado embrionário de lesão que naturalmente desenvolveria
seu curso quando não obstruída por alguma intervenção. Vale destacar, no entanto, que apesar
de a busca por marcadores teciduais, bioquímicos, genéticos dos transtornos mentais ter
recebido vultosos investimentos nas últimas décadas, não há qualquer consenso ou
comprovação definitiva da existência de um sofrimento e transtorno psíquico como derivado
de uma patologia especificamente cerebral ou genética (ROSENBERG, 2006).
Como mostram diferentes investigações (CASTEL, 1978; FOUCAULT, 2006), a
psiquiatria jamais foi apenas uma prática que se preocupou com o diagnóstico e o tratamento
de pessoas com transtornos mentais. Ela sempre se envolveu em questões sociais e políticas.
Por exemplo, na Alemanha nazista, as primeiras pessoas que foram para as câmaras de gás eram
pacientes de hospitais psiquiátricos; depois, o movimento da “Higiene Mental” preconizou a
limpeza mental nas fábricas, escolas, famílias e comunidades como caminho de redução de
desajustes e doenças sociais; e hoje, com campanhas por todo o mundo de prevenção do
suicídio, no Brasil representado pelo “Setembro Amarelo”, alertando para a importância de
prevenir, identificar e intervir sobre o suicídio.
O saber psiquiátrico nunca se limitou à identificação e tratamento de transtornos
mentais, mas também criou suas definições e fronteiras de normalidade e prescreveu formas
adequadas de administrar nossa saúde mental e prevenir o risco de doenças. Hoje diferentes
saberes “psi” ajudam a moldar as formas com que as pessoas compreendem a si mesmas e
avaliam e idealizam projetos para seus estados mentais (CARVALHO et al., 2020).
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Luana MARÇON e Henrique Sater de ANDRADE
diagnósticos, tanto pela burocracia dos serviços de saúde quanto pela disseminação
generalizada de uma compreensão da subjetividade reduzida ao comportamento e ao cérebro.
A realidade do diagnóstico psiquiátrico ganha contornos específicos no contexto da
infância. Nas últimas décadas, há um aumento significativo de crianças e adolescentes
diagnosticadas com transtornos mentais. Revisões sistemáticas na literatura médica (PATEL et
al., 2007) estimam que pelo menos uma a cada quatro a cinco crianças e adolescentes da
população mundial sofrerá de pelo menos um transtorno mental durante o período de um ano.
No Brasil, calcula-se uma prevalência de 13% de habitantes entre 7 e 14 anos com algum
transtorno mental, o que totalizaria pelo menos um total de 3 milhões de diagnosticados nessa
faixa etária. Tal expansão é acompanhada da proliferação de discursos e tecnologias acerca da
identificação e intervenção sobre os “comportamentos desviantes”, cujo risco psíquico
ameaçaria o desenvolvimento infantil saudável.
Como Michel Foucault (2006) apontou em um de seus cursos, o poder psiquiátrico
escapa do manicômio e passa a modular as relações sociais, principalmente no interior da
família (incluindo suas novas funções), preparando as crianças para o futuro e seus destinos, a
prevenção de desvios e a produção de determinadas subjetividades. Durante especialmente o
século XIX, a psiquiatria interagiu de forma heterogênea com as classes mais abastadas e
paulatinamente com as famílias pobres, adentrando o regime familiar e produzindo modos
específicos de disciplinarização pautados no controle da postura, dos gestos, da maneira de se
comportar. Foucault (2006) interroga como as próprias técnicas de controle e coerção da
psiquiatria manicomial passam a figurar no interior da própria família – amarrar as mãos;
levantar a cabeça; manter-se ereto: instrumentos disciplinares estabelecidos no interior do
hospício fazem com que a sexualidade da criança passe a ser objeto de saber e intervenção.
Com isso, a criança torna-se alvo central da atuação psiquiátrica, uma vez que a
[...] a psiquiatria diz: deixem vir a mim as criancinhas loucas. Ou: não se é
jamais demasiado jovem para ser louco. Ou ainda: não esperem ficar maiores
ou adultos para serem loucos. E isso tudo se traduz por essas instituições ao
mesmo tempo de vigilância, de detecção, de enquadramento, de terapêuticas
infantis, que vocês veem desenvolver-se no fim do século XIX (FOUCAULT,
2006, p. 155).
enlouquecia eram apenas os adultos (ou, no máximo, adolescentes); a criança anormal emerge
centralmente da figura do “idiota”, considerado um “monstro completo”, e a noção de
desenvolvimento e de instinto são centrais para categorizar e consertar os desvios de
aprendizagem e comportamento.
Donzelot (2012) aponta que a psiquiatria busca na ideia de “vagabundo” uma síntese
final entre o louco e o anormal, na qual sua “natureza infantil” tem papel central, pela
sugestibilidade, emotividade e excessiva imaginação. Essas “fraquezas” das crianças, causada
pela “fragilidade” e “desorganização” de seus cérebros, precisariam ser corrigidas e
enquadradas a tempo. O autor provoca que a psiquiatria infantil nasce não especificamente em
torno de uma patologia da infância, mas na figura do “vagabundo” para o saber médico; e da
necessidade de criar um objeto de intervenção não apenas dos internados em hospícios, mas de
presidir a inclusão e a correção social, tomando forma “no vazio produzido pela procura de uma
convergência entre os apetites profiláticos dos psiquiatras e as exigências disciplinares dos
aparelhos sociais” (DONZELOT, 2012, p. 105).
Essa variedade de saberes “especializados” acerca de crianças e adolescentes, com
destaque para os saberes psiquiátricos e/ou psiquiatrizantes, não está circunscrita ao encontro
de crianças com médicos em seus consultórios, mas vem ajudando a desenhar as formas de
relação das crianças com o mundo. Em nome da “saúde” e da “normalidade”, convoca-se não
apenas “profissionais”, mas toda a sociedade a interagir com a infância sob um olhar que
privilegia a detecção de riscos e de intervenção profissional e institucional.
Diferentemente do atendimento com adultos, a criança sempre chega aos serviços de
saúde sob a mediação de um acompanhante – seja um familiar, um trabalhador da escola ou um
assistente social de alguma instituição. A enunciação sintomática ou dos comportamentos
desviantes da criança é obrigatoriamente intermediada por sua relação com os responsáveis que
precisam decodificar as demandas e sintomas ao qual buscam nomeação e intervenção. Nesse
sentido, o diagnóstico não faz sentido a priori para a criança e as nomenclaturas do campo psi
podem interditar as possibilidades de elaboração sobre si mesma e sobre o mundo através da
fantasia, dos jogos e das brincadeiras. Além disso, vários aspectos em curso da constituição
dessas crianças dão lugar a técnicas terapêuticas consideradas eficazes em relação a
diagnósticos já estabelecidos.
Ocorre aqui um duplo deslocamento: a intervenção se dá sempre sobre uma demanda
posicionada no e pelo mundo dos adultos e regida por sistemas classificatórios e terapêuticos
historicamente ligados ao sofrimento e à doença mental dos adultos. Isto é, os adultos desenham
e destinam encomendas a “experts” da infância, treinados mais a identificar e prevenir o
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O diagnóstico psiquiátrico e desafios para outra biopolítica da infância
cujo diagnóstico não pode ser feito antes do 6 e depois dos 18 anos de idade e comum por
apresentar “explosões de raiva recorrentes e graves manifestadas pela linguagem”
desproporcionais para a situação vivida, em média três ou mais vezes por semana nos últimos
12 meses.
Não se trata aqui de reduzir de forma caricatural os manuais classificatórios a citações
específicas de trechos que descrevem situações que vivemos tanto em serviços de saúde como
em qualquer local de circulação de crianças e adolescentes. Mas de, seguindo importantes
debates aqui já mencionados em torno do DSM e da psiquiatria hegemônica no contemporâneo,
problematizar o uso (e abuso) dessas categorias diagnósticas e seus efeitos sobre as formas que
temos atuado sobre a infância.
Em nome de uma sala de aula “tranquila”, de um serviço de acolhimento “sem
violência”, de um boletim escolar “sem notas vermelhas”, de mais profissionais especializados
em serviços de educação e assistência social, inúmeras crianças têm sido inseridas em serviços
de atendimento especializado, com um volume já alto de crianças com quadros clínicos de
sofrimento psíquico grave. Muitas acabam passando por avaliação médica e recebendo um
diagnóstico e uma terapia medicamentosa e conviverão uma parte (ou o resto) de suas vidas
com o nome de doenças e transtornos em constante reformulação e permanente crítica.
Várias dessas encomendas aos serviços de saúde já aparecem “diagnosticadas” a partir
de nomenclaturas psiquiátricas e sem qualquer tipo de contextualização da experiência vivida
pelas crianças. Este uso indiscriminado da classificação patológica da saúde mental vai aos
poucos modulando e reduzindo os projetos e planos de vida desses sujeitos ao universo
biomédico, ligado a um padrão normal de comportamento esperado para a fase de
desenvolvimento e, no limite, para o que se idealiza como uma criança saudável.
Sob a justificativa de realizar um diagnóstico preciso e verdadeiro de indivíduos após
uma avaliação médica padronizável, a clínica dá lugar à descoberta do nome de uma doença,
capaz de sintetizar e localizar um substrato biológico, neuroquímico e comportamental
previamente validados pela ciência atualizada. O diagnóstico transforma-se, assim, no fio
condutor dos procedimentos clínicos e terapêuticos recomendados à cada uma das crianças
portadoras de um transtorno mental.
Na transição do século XIX para o XX, a sociedade médica ficou escandalizada com a
noção de que crianças possuem sexualidade. Parece-nos que no início do século XXI, o
escândalo seria ligado à ideia de que elas não podem ser resumidas e restringidas a um espaço
de detecção e intervenção sobre o risco e o aprimoramento de desempenho. Tal questão não é
apenas filosófica, ela é síntese da forma como a ludicidade das crianças vem sendo apreendida,
vigiada e esquadrinhada junto aos modos de subjetivação da racionalidade neoliberal.
Se o lúdico vem sendo compreendido como o espaço privilegiado para a constituição
do sujeito infantil vinculado a produção de desejo, a elaboração das regras, a capacidade de se
inserir em jogos, de elaborar a própria realidade e lidar com os conflitos inerentes a produção
de desejo e liberdade, quais são as consequências de a vida lúdica ser inserida em um
treinamento para uma vida adulta mais produtiva e engajada? Aqui, inclusive, a própria noção
de ludicidade entra em choque com a moral neoliberal, já que a noção de “brincar por brincar”
passa a ser destituída de sentido para os adultos, que passam a converter o espaço lúdico a um
investimento da criança sobre si mesma, com vista a ganhos específicos para o “eu” infantil.
A subjetivação neoliberal não necessariamente interdita o lúdico e a brincadeira, mas
opera na modulação que esse espaço, necessário ao sujeito infantil, seja ora convertido em
investimento, ora em espaço permanente de detecção e mensuração de anomalias e riscos e
formatação de problemas passíveis de intervenção especializada. Mesmo que de forma
involuntária, a expansão da racionalidade diagnóstica hegemônica tem corroborado na
produção de sujeitos “individualizados” e “atomizados”, e também com possibilidades de
futuro encadeadas em sistemas cada vez mais rígidos.
Paradoxalmente, tal fenômeno produz ao mesmo tempo a proliferação de crianças
diagnosticadas e a manutenção e até agravamento da não garantia de acesso a tratamento de
crianças com sofrimento psíquico grave. Além disso, ainda que essa investida da subjetividade
neoliberal atinja a infância de forma global, ela se configura de forma heterogênea de acordo
com raça, classe e gênero, com a possibilidade de famílias com mães e crianças pobres e negras
estarem mais sujeitas a ser-lhes oferecidas um diagnóstico e, simultaneamente, negadas
diversos direitos sociais.
Nesse ensejo, a criação de outros modos de interação com a infância passa tanto pela
crítica às modulações do “eu” desenhadas como normais, saudáveis e esperadas, pelo
reconhecimento de um empobrecimento da capacidade imaginativa dos adultos e, por fim, pela
REFERÊNCIAS
FRANCES, A. Opening Pandora’s box: the 19 worst suggestions for DSM5. Psychiatric
Times, v. 27, n. 3, 1 mar. 2010.
MCCARTHY, M. Director of top research organization for mental health criticizes DSM for
lack of validity. BMJ, 2013. DOI: 10.1136/bmj.f2954.
PATEL, V. et al. Mental health of young people: a global public-health challenge. The
Lancet, v. 369, n. 9569, p.1302–1313, abr. 2007.
ROSE, N. S. Our psychiatric future: the politics of mental health. Cambridge ; Medford,
MA: Polity, 2019.