BARROS

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TEMPOS E LUGARES DA MEMÓRIA

– Uma relação com a História


JOSÉ D‟ASSUNÇÃO BARROS

RESUMO
Busca-se examinar a relação entre Memória e História,
particularmente atentando para os aspectos conceituais, teóricos e
metodológicos envolvidos nesta interação, O objetivo é traçar uma
visão panorâmica das discussões historiográficas em torno desta
questão, refletindo sobre o conceito de Memória, desde os primórdios
desta reflexão nas ciências sociais e na historiografia contemporânea,
e abordando questionamentos que têm sido mais recentemente
propostos por filósofos, cientistas sociais e historiadores. Uma
discussão importante é dedicada aos “lugares da memória”.

PALAVRAS-CHAVE: Memória; Lugares de Memória; Tempo.

ABSTRACT
This article aims to examine the relation between Memory and History,
attempting in particular to the conceptual, theory and methodological
aspects involved in its. The aims is to develop a panoramic view of
this historiographyc discussions around this question, reflecting about
the concept of Memory, since the first moments of this reflection in the
social sciences and in the contemporary historiography, finally
approaching to questions that have been proposed more recently by
philosophers, social scientists and historians. An important discussion
is dedicated to the memory pace‟s.

KEYWORDS: Memory, Memory Places; Time.

MEMÓRIA E HISTÓRIA: DELINEAMENTOS CONCEITUAIS

Existe uma relação milenar entre Memória e História. A


historiografia – a História entendida como campo disciplinar – vale-
se da Memória como objeto, fonte, meio para perpetuação da


Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor da
Universidade Federal da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e Professor-
Colaborador do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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própria história, além de com ela entretecer relações diversas e
complexas. Além disto, no último século começou a se formar
também um novo campo disciplinar, denominado Memória Coletiva,
o qual também oportuniza suas próprias relações com a História. Os
chamados “lugares de memória”, por exemplo, constituem objeto de
interesse seja para os estudiosos da Memória Coletiva, seja para os
historiadores de todos os tipos. Nosso objetivo, neste artigo, será
discutir as relações entre História e Memória relativamente a alguns
âmbitos específicos que tem interessado aos historiadores nos
últimos tempos. Antes de tudo, será oportuno discutir o próprio
conceito de “memória”.
Como conceito de especial relevância para os recentes
desenvolvimentos das ciências humanas, a noção de Memória tem
sofrido ressignificações importantes. Para entendê-las, partiremos
de algumas considerações ainda sobre a Memória Individual,
buscando perceber como certos modos de conceber a memória do
indivíduo contaminaram, em algum momento, os modos de perceber
a Memória Coletiva, que aqui será nosso principal foco de
interesses. Mais adiante, depois de pontuar estas relações,
retornaremos aos momentos de fundação deste conceito, evocando
reflexões pioneiras como a de Maurice Halbwachs (1968).
Memória, na sua designação mais habitual, vulgar e cotidiana,
corresponde muito habitualmente a um processo parcial e limitado
de lembrar fatos passados, ou aquilo que um indivíduo representa
como passado. Considera-se ainda – e sempre é bom frisar que
logo estaremos submetendo estas significações de Memória a uma
crítica e a uma problematização – que de um ponto de vista
biológico a memória humana, seja a “memória recente” ou a
chamada “memória permanente” que se localiza no hipocampo,
corresponderia a um processo que não permite precisão, uma vez
que envolve esquecimentos, distorções, reconstruções, omissões,
parcialidades, hesitações. Há ainda uma significação vulgar que
remete a Memória a uma categoria estática relacionada à imagem
de depósito de dados. A Memória surge então como mera
atualização mecânica de vestígios.
Vejamos estes elementos, por partes, de modo a
problematizá-los. A Memória, um tanto ambiguamente, seria ao
mesmo tempo estática e imprecisa, parcial e distorcida, passiva e
não-criadora. Significações vulgares como estas, normalmente
aplicadas à Memória Individual, cedo contaminaram a idéia de
Memória Coletiva. Também esta teria parecido a alguns dos
profissionais que lidam com os registros humanos como uma

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expressão que deveria ser oposta à noção de História (no sentido de
Historiografia). De fato, se a Memória Coletiva era encarada como
um “depósito de informações”, de dados, de lembranças passivas,
não problematizadas, era até certo modo natural que, diante de uma
significação como esta, a noção de Memória fosse contraposta
assimetricamente à idéia de História, esta entendida como um
campo de conhecimento necessariamente problematizador. A
Memória era o “lado pobre”, por assim dizer, e quando muito poderia
ser utilizada pela Historiografia como um canteiro de fontes
historiográficas.
Tal concepção de Memória, como o depósito de dados ou a
atualização dos vestígios, por vezes imprecisos, já não mais resiste
nos dias de hoje à operacionalização no seio das ciências humanas.
Isto por vários motivos. Nem mencionaremos já o fato de que há
mesmo um campo de estudos, disciplinarmente aceito, e que se
intitula “Memória Social”, um campo que deve suas reflexões
pioneiras ao ensaio Memórias Coletivas publicado por Maurice
Halbwachs em 1950, mas que só se institucionalizou
academicamente nas últimas décadas. À parte isto, vamos nos
concentrar nos aspectos pertinentes aos processos de Memória que
desautorizam a depreciação do âmbito da Memória como um
universo estático, passivo, e ao mesmo tempo impreciso, pouco útil
para a História, a não ser como fontes a serem tratadas com
extremo cuidado.
Para começar, devemos lembrar que mesmo a concepção de
psicólogos, biólogos e neurologistas sobre o que consistiria a
Memória mudou muito nos últimos anos. E também estas mudanças
no conceito de Memória Individual (já pontuaremos algumas)
contribuiriam para o enriquecimento do conceito de Memória
Coletiva. De igual maneira, Jacques Le Goff, verbete “Memória”
produzido para a Enciclopédia Einaudi, menciona também a
importância trazida pelas novas noções de “memória computacional”
e de “memória hereditária”, neste último aspecto retomando certas
considerações desenvolvidas por Jacob em seu ensaio La logique
du vivent. Une histoire de l’herditée (1970).
Entrementes, a pedra de toque das pesquisas e reflexões
mais recentes sobre a Memória Individual, talvez um tanto
paradoxalmente, foi a compreensão de que até mesmo esta
Memória Individual sempre envolve importantes dimensões
coletivas. Se a memória envolve um comportamento narrativo, e a
“narratividade” é necessariamente um processo mediado pela
Linguagem – esta que em última instância é produto da Sociedade –

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tem-se aqui maior clareza de como a dimensão coletiva também
interfere na Memória individual. Para além disto, com a
consubstanciação da Memória através da linguagem – falada ou
escrita – a Memória abandona o campo da experiência perceptiva
individual e adquire a possibilidade de ser comunicada, isto é,
socializada.
Foi assim que tanto a dimensão da Memória Coletiva
contribuiu para permitir uma abordagem mais complexa da Memória
Individual, como as crescentes descobertas científicas sobre a
Memória Individual também produziram motivações importantes
para uma ressignificação da noção de Memória Coletiva. É assim
que, nos dias de hoje, a reflexão sobre a Memória Coletiva tem sido
recebida na maior parte dos setores historiográficos de uma nova
maneira. Esta se refere não apenas a este processo de registro de
acontecimentos pela experiência humana, como também à
construção de referenciais sobre o passado e sobre o presente de
diferentes grupos sociais, ancorados nas tradições e intimamente
associados a mudanças culturais. A memória, enfim, implica em vida
e no dinamismo próprio à vida, tal como nos mostra Pierre Nora:

“A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse


sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da
lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações
sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível
de longas latências e de repentinas revitalizações” (NORA, 1984:
XIX).

A questão da Memória, desde que aberta a uma dialética que


envolve lembranças e esquecimentos, deixa aqui de ser limitação
para a historiografia, e passa a ser fator de enriquecimento de
perspectivas. Essa virada na compreensão da Memória apresenta
vários desdobramentos para a História: desde uma possibilidade
para que a própria Historiografia possa repensar seus pressupostos
fundamentais, até as possibilidades de uso da Memória – coletiva ou
individual – como fonte histórica. Antes de discutir estes pontos,
contudo, retornemos aos primórdios, em busca da formação de um
conceito.

A CONSTITUIÇÃO DE UM CONCEITO

O pioneiro na reflexão mais sistemática sobre a memória


coletiva é certamente Maurice Halbwachs, com seu ensaio de 1925

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sobre Os Contextos Sociais da Memória – texto no qual ainda
aparecia como um autêntico durkheimiano – e, posteriormente, com
seu ensaio A Memória Coletiva (1968). Há, claro, autores anteriores
que já tangenciam a questão, como o Bergson de “Matéria e
Memória”, publicado ainda em 1896 e instigador de todo um ciclo
literário subseqüente que pode ser exemplificado pela produção
literária do Marcel Proust de Em Busca do Tempo Perdido (1913-
1927). Mas é mesmo com Maurice Halbwachs que começa a se
constituir um novo campo de estudos, prenúncio de uma futura
disciplina relacionada à Memória Social, e pronto a situar
interdisciplinarmente áreas do saber como a História, a
Antropologia, a Psicologia, o Folclorismo, a Crítica Literária. Todo
este campo de interconexões disciplinares – somente possível a
partir da afirmação mais efetiva das ciências sociais na primeira
metade do século XX em novos espaços como as revistas
interdisciplinares e um novo espírito de diálogo acadêmico entre
pesquisadores de esferas diferenciadas – seria imprescindível para
que a Memória Coletiva pudesse ser captada não mais apenas na
palavra escrita, mas no gesto, na imagem, nas festas, ritos,
comemorações.
Para iniciar uma sistemática caminhada das ciências
humanas na construção de um novo conceito de Memória Coletiva,
Maurice Halbwachs propunha ultrapassar o estranhamento original
gerado a partir da idéia, bem presente no senso comum, de que
uma faculdade como a Memória só poderia “existir e permanecer na
medida em que estivesse ligada a um corpo ou a um cérebro
individual” (HALBWACHS, 2006: 71). Sua idéia era a de que as
lembranças poderiam ser organizadas de duas maneiras: agrupadas
em torno do ponto de vista de uma só pessoa, ou se distribuindo no
interior de uma determinada sociedade. Os indivíduos, desse modo,
poderiam participar destes dois tipos de memória, e no caso da
Memória Coletiva seriam capazes de se comportar como membros
de um grupo de modo a evocar lembranças interpessoais.
Halbwachs já refletia nesta época tanto sobre o contraste
entre os dois tipos de memória, como sobre a interação e mútua
interpenetração de ambas em certas ocasiões, fazendo notar que
mesmo a memória individual podia reforçar algumas de suas
lembranças, ou mesmo preencher lacunas, apoiando-se na Memória
coletiva (2006: 71). De igual maneira, a Memória Coletiva conteria
as memórias individuais, mas não se confundiria com elas, ou
sequer com o seu somatório, pois evoluiria segundo suas próprias
leis, para utilizar uma expressão do próprio Maurice Halbwachs

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(2006: 72). A contribuição ímpar do sociólogo francês, em um de
seus níveis, estava em perceber que – longe de ser processo que
apenas se dá no cérebro humano a partir da atualização de
vestígios que foram guardados neurologicamente pelos indivíduos,
havia uma dimensão social tanto na Memória Individual como na
Memória Coletiva. Isto porque mesmo o indivíduo que se empenha
em reconstituir e reorganizar suas lembranças irá inevitavelmente
recorrer às lembranças de outros, e não apenas olhar para dentro
de si mesmo em conexão com um processo meramente fisiológico
de reviver mentalmente fatos já vivenciados. Isso sem considerar o
que é ainda mais importante: a memória individual requer como
instrumental palavras e idéias, e ambas são produzidas no ambiente
social. Dito de outra forma, se no caso da Memória Individual são os
indivíduos que, em última instância, realizam o ato de lembrar,
seriam os grupos sociais que determinariam o que será lembrado, e
como será lembrado. Halbwachs também chamava atenção para um
aspecto que nos interessará particularmente: a Memória (e tanto a
individual como a coletiva) está sempre limitada no espaço e no
tempo.
As reflexões sistemáticas de Halbwachs sobre a Memória
Coletiva, enfim, tendem a criar algumas tensões com relação à
Historiografia, em especial com vistas a um conceito ainda limitado
de História que iria se superado nas últimas décadas do século XX.
Entre os traços que distinguiriam essencialmente „Memória‟ de
„História‟ (e, portanto, dificultariam a possibilidade de se falar em
uma “memória histórica”) estaria a “continuidade”, característica de
toda Memória (no sentido de que a memória se associa a uma
corrente de pensamento contínuo), por oposição à
“descontinuidade” envolvida na operação historiográfica (2006:
1
102) . Há aqui uma visão da História que já é de certo modo
estrutural, o que é certamente fruto dos diálogos de Halbwachs com
Marc Bloch e Lucien Febvre, com os quais convivera na
Universidade de Estraburgo, e as estruturas parecem se situar em
relação de descontinuidade umas em relação às outras, o que
contrasta com a sensação de continuidade da qual vive a Memória.
Desnecessário dizer que os anos 1970 trariam outras histórias, para
1
“Em história tem-se a impressão de que tudo se renova de um período a outro –
interesses em jogo, direção dos espíritos, modos de apreciação dos homens e dos
acontecimentos, as tradições também, as perspectivas do futuro – e que se os
mesmos grupos reaparecem, é porque subsistem as divisões exteriores, que resultam
dos lugares, dos nomes e também da natureza geral das sociedades” (HALBWACHS,
2006: 102).

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além do padrão estrutural que a escola dos Annales difundiu com
tanta eficiência entre as décadas de 1930 e os primeiros anos de
1970.
No contexto de uma compreensão da História como sucessão
de estruturas, o papel da Memória Coletiva adquire extrema
relevância, exatamente porque pode cumprir uma função social de
religar tradições e re-estabelecer continuidades que a historiografia
não oferece e que a História-Efetiva pode contestar através de
circunstâncias acontecimentais. Halbwachs dá o exemplo de
momentos em que são fortemente abalados os alicerces de uma
época anterior e uma nova a sucede (podia estar pensando,
inclusive, em períodos revolucionários como o da Revolução
Francesa). Em um mundo que se renovou, e que produziu uma
humanidade associada à nova era e um setor de humanidade
retardatário e ligado a um mundo que já não existe mais, afora as
mediações possíveis, a sociedade precisa criar os recursos para
seguir adiante, incluindo todos. A Memória Coletiva, recriando os
seus valores e restabelecendo pontes, renovando suas lembranças
e reclassificando os seus esquecimentos, introduzindo também o
novo no velho e o velho no novo, criando uma necessária ilusão de
continuidade, enfim, ofereceria um chão e um céu de continuidades
aos homens de períodos críticos em que uma estrutura parece
passar a outra.
A Memória Coletiva, é o que nos diz Halbwachs mais adiante,
é na verdade feita também de descontinuidades, mas só que
descontinuidades discretas facilmente disfarçáveis em continuidade.
Deste modo, ela assegura a sensação humana e social de unidade,
e permite que se atravesse mesmo os períodos históricos mais
transformadores. A Memória Coletiva, enfim, faz-se através dos
seres humanos que a carregam, vive mesmo dos grupos sociais que
são os seus portadores, e Halbwachs ressalta que quando ela
“esquece uma quantidade tão grande de fatos e personalidades
antigas, é porque os grupos que guardavam sua lembrança
desapareceram” (2006: 105).
O segundo traço de distinção entre os campos da Memória e
da História remetem ao fato de que, a princípio, só existiria uma
única História (um único fluxo histórico, uma única totalidade
histórica, por assim dizer) mas de fato existiriam muitas Memórias
Coletivas. Claro, Halbwachs trabalha aqui com uma certa concepção
de História, que é a mesma dos Annales e das historiografias
marxistas de sua época, e ainda não pode sequer considerar as
historiografias plurais (voltadas para e abordando grupos específicos

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como o movimento negro, o movimento feminista, os ecologistas, as
etnias, e assim por diante). A eclosão das histórias plurais ainda
estava longe, e ocorreriam concomitantemente ao movimento da
pós-modernidade historiográfica. Por outro lado, também não parece
ser considerada por Halbwachs a perspectiva historicista mais
relativista que já existiam no período de seus escritos sobre
Memória. A perspectiva de Halbwachs sobre a Historiografia tende
ao positivismo, à idéia de uma história universal que remonta ao
iluminismo. O universalismo positivista, durkheimiano em
Halbwachs, aparece aqui. Mas não é incompatível com a nova
tendência que então surgia na historiografia francesa, a da Escola
dos Annales. De todo modo, quando Halbwachs fala em uma
“história única” para sustentar a distinção entre História e Memória,
não é tanto na Historiografia que ele pensa, e sim na História-
Efetiva. Ao lado da História única, e fluindo nesta através de
múltiplas direções, existiriam muitas memórias coletivas, e não uma
única Memória Coletiva.
Em contrapartida ao universalismo possível de ser pensado
para a História, o sociólogo francês ressalta que seria impensável a
idéia de uma “memória universal”, uma vez que “toda memória
coletiva tem como suporte um grupo limitado no tempo e no espaço”
(HALBWACHS, 2006: 106). Assim, a realidade social nos oferece
um número indefinido de grupos, cada qual com a sua memória
coletiva, entrelaçando-se em uma rede social extremamente
complexa. Grupos se opõem uns aos outros, incluem-se e excluem-
se mutuamente, segmentam-se uns a partir de outro, avançam
paralelamente ou entrelaçadamente no tempo, convivem no mesmo
espaço social. Cada indivíduo participa na verdade de muitos
grupos, cada qual com a sua memória: a vizinhança, o trabalho, o
grupo ao que pertenceu na fase escolar, e ao mesmo tempo grupos
maiores que também trazem a sua memória coletiva: a religião, a
nação, a carreira profissional. A Memória Coletiva não é de fato
única, e somente se pode falar esta expressão no singular como
recurso discursivo para a identificação e delineamento de um
campo, porque há na verdade inúmeras memórias coletivas. Eis,
segundo Halbwachs, o segundo traço que diferencia radicalmente a
História da Memória Coletiva.
É interessante confrontar a idéia expressa por Halbwachs de
que, ao examinar seu passado, o grupo percebe que tem continuado
o mesmo e, desta forma, adquire “consciência de sua identidade
através do tempo” (HALBWACHS, 2006: 109). A memória coletiva
produzida por um grupo, em casos como este, não estaria muito

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distinta das histórias plurais da historiografia do período pós-
moderno, na qual surgem as histórias nas quais um movimento,
uma etnia ou qualquer outro tipo de grupo produz uma história de si
para si: a história do movimento negro, do movimento gay, do
feminismo, a história de seitas religiosas, de etnias específicas, de
famílias, de categorias profissionais, de partidos políticos, e tantas
outras histórias imagináveis. Estaríamos aqui diante de histórias ou
de memórias coletivas? De qualquer maneira, não mais se impõe
aqui o contraste, a incompatibilidade entre uma História de
tendência universalista e uma Memória Coletiva que é na verdade
plural.
A oposição entre a Historiografia e a Memória Coletiva
produzida em cada grupo é também uma posição entre ênfase na
mudança e ênfase na continuidade. Para utilizar uma expressão de
Halbwachs, a história seria um “painel de mudanças” (2006: 109),
mas enquanto isto a Memória Coletiva (as memórias coletivas)
tende a se constituir em “painel de semelhanças”, a enfatizar as
permanências, o que traz identidade ao grupo. Se a mudança
ocorrida no tempo de existência do grupo, ou em virtude de algum
acontecimento emblemático, tornar-se por demais radical, ocorre
uma ruptura: podem neste caso seguir os mesmos atores sociais,
mas formar-se-á um novo grupo, com uma nova memória coletiva a
ser reconstruída que incorporará traços da outra, mas será
radicalmente nova, no sentido de um novo recomeço.
Distinção também colocada para situar o contraste entre
História e Memória é que esta examina os grupos de dentro,
enquanto a História os examina de fora, Desta maneira, pode a
História unificar as histórias particulares, por assim dizer, em uma
história mais ampla. A Memória Coletiva, ao contrário, é produzida a
partir de uma visão de dentro do grupo. Será oportuno mais uma vez
discutir o fato de que, com as novas possibilidades historiográficas
surgidas nas últimas décadas do século XX, este contraste se
atenua muito, porque não apenas porque surgiram historiadores
para cada grupo (no caso das histórias plurais) como também
porque surgiram práticas historiográficas polifônicas, destinadas a
encaminhar vozes sociais distintas em uma mesma narrativa. Torna-
se possível, então, também escrever histórias de dentro dos grupos.
Estes elementos viabilizam um diálogo ainda mais intenso na
História com a Memória Coletiva, utilizada agora não mais apenas
como fonte, mas também como meio de expressão, como conjunto
de vozes sociais a serem retomadas.
A perspectiva de Halbwachs também tem merecido outras

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críticas e reconsiderações. Michel Pollak (1989) procura avaliar os
desdobramentos de sua tendência a enquadrar as memórias
individuais em memórias coletivas, chegando à afirmação de que
todas as memórias são coletivas e mesmo à eliminação da
possibilidade de uma autonomia do sujeito em relação à estrutura
social. Halbwachs ampara-se em uma perspectiva funcionalista e ao
mesmo tempo sintonizada com a perspectiva dos Annales de que o
passado só se torna compreensivo a partir de sua reconstrução e
práticas vividas no presente. Ao defender esta estrutura funcional da
memória, Halbwachs mostra como o delineamento do que seria
comum ao grupo produz em contrapartida as diferenças em relação
aos outros e estabelece fronteiras sócio-culturais. No limite, a
memória nacional constituiria a forma mais bem acabada e completa
de memória coletiva. Para Pollak, contudo, há também aí um risco
de uniformização e opressão envolvido, pois o processo de
construção da nação através da memória coletiva também pode
proceder à exclusão de etnias, grupos e outras formas de
identidades (POLLAK, 1989: 4).

LUGARES DE MEMÓRIA

Para além da própria constituição de um conceito de Memória


Coletiva, que remonta aos primeiros trabalhos de Halbwachs, o novo
campo de estudos foi encontrar um novo momento conceitual
importante com o desenvolvimento da idéia dos “lugares de
memória”. Esta nova entrada conceitual surgiu da necessidade de
aprofundar algumas questões. Através de que ambientes, de que
recursos, de que práticas e representações, de que suportes
materiais se produz e se difunde a memória coletiva? A noção de
„lugares de memória‟ abre uma nova perspectiva em termos de
organização e percepção da Memória Coletiva.
O primeiro grande empreendimento teórico e prático nesta
direção deve ser atribuído a Pierre Nora e a um grande número de
historiadores, sociólogos, antropólogos e memorialistas franceses
que se integraram ao projeto coletivo relacionado aos “Lugares de
Memória”, que resultaram em sete volumes de textos dedicados à
Memória Social na França. Depois do empreendimento pioneiro de
Pierre Nora, projetos similares surgiram em outros países europeus,
como a Alemanha e a Itália. Através desta prática, resultante em
livros e grandes circuitos de palestras e eventos, o conceito de
“lugar de memória” foi encontrando sua definitiva estabilização.
Será oportuno lembrar que, ao lado deste grande movimento

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de reflexão e preservação dos “lugares de memória”, a nova
aproximação do fenômeno da Memória Coletiva liderada por Pierre
Nora permitiu um novo delineamento conceitual. De acordo com
uma passagem de Pierre Nora retomada por Jacques Le Goff em
seu verbete sobre a “Memória”, a Memória Coletiva seria doravante
concebida como “o que fica do passado no vivido dos grupos ou o
que os grupos fazem do passado” (LE GOFF, 1990: 472). Com este
novo delineamento de um conceito – atento não apenas ao que se
preserva da experiência humana, mas também ao que os grupos
sociais fazem desta experiência humana preservada – Pierre Nora
irá retomar as antigas oposições entre Memória e História que já
haviam sido objeto de reflexão de Maurice Halbwachs.
Quais são, antes de mais nada, os propalados lugares da
Memória. Jacques Le Goff os resume, a partir de uma passagem de
Pierre Nora, em seu verbete “Memória” (1990: 473):

“[há] os lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas e os


museus; lugares monumentais como os cemitérios e arquiteturas;
lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os
aniversários ou os emblemas; lugares funcionais, como os manuais,
as autobiografias ou as associações”

Trata-se, naturalmente, apenas de uma pequena lista


exemplificativa. Na célebre coleção francesa de sete volumes
publicada sob a direção de Pierre Nora, uma consulta aos sumários
de cada volume revela de imediato a complexidade e extensão
envolvida pelos lugares de memória. Símbolos, Monumentos, a
Pedagogia com suas enciclopédias e dicionários, as Heranças como
os santuários régios e as relíquias monásticas, as Paisagens, o
Patrimônio, o Território e mesmo a própria Língua, que realiza
memória em si mesma ao trazer consigo traços de grupos
específicos e da humanidade como um todo ... eis aqui um vasto
universo de “lugares de memória” que inclui a própria historiografia,
seja esta científica ou cronística. Onde existe o humano, pode-se
dizer que a Memória estabelece-se, gerando os seus lugares. Desde
as células familiares, que organizam sua memória através de
recursos os mais diversos como as genealogias e os álbuns de
fotografias, até as grandes Nações que erguem museus e arquivos
para dar visibilidade à sua própria identidade, a Memória apresenta
definitivamente muitos “lugares”.
Mas há, por fim, aquilo que poderíamos chamar de „lugares
por trás dos lugares‟, aqueles nos quais iremos encontrar não a

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produção ou elaboração da memória coletiva, mas os seus criadores
maiores, as forças que impõem a memória coletiva de modos
diversos, gerando os lugares de memória mais específicos. São
estes „lugares por trás dos lugares‟ “os Estados, os meios sociais e
políticos, as comunidades de experiências históricas ou de
gerações, levadas a constituir os seus arquivos em função dos usos
diferentes que fazem da memória” (LE GOFF, 1990: 473).
Entre os grandes lugares, pólos importantes de investimento
para estas forças maiores que determinam a memória, estão
aqueles espaços sócio-culturais que Leroi-Gourhan denominou
“Instituições-Memória” (1964: 67-8). Começaremos pelos grandes
arquivos nacionais. Sabe-se de arquivos reais desde as antigas
civilizações, dos quais nos dão exemplos os arquivos reais do
palácio de Ougarit, na antiga Síria, ou as numerosas tabuletas
ordenadas encontradas no palácio de Mari, entre tantos casos
examinados por Leroi-Gourhan. Mas é com um novo sentido que o
século XVIII já começa a instituir, ainda timidamente, os seus
depósitos centrais de arquivos, e mais como desdobramentos da
erudição régia do que por necessidades voltadas para a construção
da identidade nacional, o que acontecerá decididamente na França
a partir da Revolução Francesa e, nos demais países da Europa,
logo após o período da Restauração. Um desenvolvimento
inteiramente análogo é o que instituirá os Museus. Também
discretamente instaurados a partir de meados do século XVIII, é
também a partir da Revolução Francesa que se inicia a era dos
museus nacionais (LE GOFF, 1990: 464).
Entre os lugares da memória “simbólicos”, destacam-se estes
grandes e por vezes ruidosos empreendimentos voltados para a
memória coletiva que são as comemorações, tal como a
comemoração anual da tomada da bastilha em 14 de julho, e
particularmente a grande comemoração que ocorreu em 1989,
assinalando os duzentos anos da Revolução Francesa. Na verdade,
a tradição firma-se já a partir dos próprios tempos da Revolução
Francesa, tal como nos mostram as pesquisas de Mona Ozouf
(1976) e de Rosemonde Sanson (1976), e a história das festas
revolucionárias revelará uma interessante dialética de lembranças e
esquecimentos nos quais, no decurso dos vários períodos, alguns
episódios emergem em detrimento de outros e depois recaem
novamente no esquecimento, para atender aos interesses políticos
de um novo momento (OZOUF, 1976). A própria comemoração da
Revolução Francesa, como um todo, desaparece sob Napoleão e
reaparece em 1880, tal como assinala Rosemonde Sanson sua

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pesquisa sobre A Festa e a Consciência Nacional (1976). A
comemoração, deste modo, é desde já um importante “lugar de
memória”, um momento em que se atualiza o grande evento, de
importância para a formação e preservação da Identidade da
população que o tornou emblemático, ou em vista de projetos
políticos que buscam direcionar a opinião pública para suas próprias
finalidades, do que nos dão fartos exemplos as festas na Alemanha
Nazista e na Itália Fascista.
Se a comemoração é lugar de memória, curiosamente a
“descomemoração” também pode sê-lo. Ian McBride, em History
and Memory in Modern Ireland (2001) chama atenção para a Guerra
de memórias que se instaura entre protestantes e católicos
irlandeses, estabelecendo-se entre estes a tradição da
“descomemoração explosiva”, que consiste em destruir através do
vandalismo espontâneo ou do terrorismo bem planejado os
monumentos ou estátuas erguidos pelos católicos. Surge aqui a
noção de uma “contramemória”, ela mesma um lugar a mais,
também discutido na coletânea dirigida por Pierre Nora.
As chamadas „memórias históricas‟ também constituem
capítulo importante para o grande universo da Memória Coletiva, e
levam a repensar mais uma vez o seu papel na sociedade. Quando
surge este vivo interesse em recuperar certas “memórias históricas”,
senão no contexto de um tempo acelerado em que as identidades
se vêem ameaçadas? A história e a memória entrelaçam-se nas
“memórias históricas” para preencher uma função importante:
quando a memória viva de determinados processos e
acontecimentos começa a se dissolver através do desaparecimento
natural das gerações que os vivenciaram, começa a se tornar ainda
mais necessário um movimento de registro destas memórias. Foi
assim, por exemplo, que se intensificou o interesse pela produção
das “memórias do holocausto”. Assegurar o registro destes
acontecimentos tão trágicos é também uma forma de adquirir
controle sobre eles, de impedir que um dia se repitam, que caiam no
esquecimento e que deixem de ser analisados criticamente.
Entre os objetos materiais e textuais da memória, os
Dicionários e Enciclopédias ocupam um lugar de destaque, e podem
ser descritos como vastos registros de memória parcelada
ordenados alfabeticamente. Conforme os estudos de Leroi-Gourhan,
os dicionários e enciclopédias invadem o cenário dos lugares de
memória já no século XVIII, (1965-65: 70-71). No princípio, os
dicionários dirigem-se não apenas aos eruditos, mas também aos
artesãos e às fábricas, e a Grande Enciclopédia de 1751 é descrita

Historiæ, Rio Grande, 8 (1): 9-30, 2017 21


por Leroi-Gourhan como “uma série de pequenos manuais reunidos
no dicionário”, ou como “uma memória alfabética parcelar na qual
cada engrenagem isolada contém uma parte animada da memória
total” (1964-65: 70-71). Le Goff lança uma instigante questão: não
terá sido a Enciclopédia o grande detonador da Revolução? (LE
GOFF, 1990: 461).
A emergência dos Dicionários e Enciclopédias ao primeiro
plano dos lugares de memória no século XVIII lança luz obre uma
questão importante para os historiadores da memória, que é
precisamente a da dinâmica da dialética de lembranças e
esquecimentos que se atualiza na Memória Coletiva, fazendo
surgirem novos lugares de memória em detrimento de outros, e
deslocando certos lugares de memória do centro para a periferia, e
vice-versa. Assim, ao mesmo tempo em que no século XVIII entram
em ascensão os Dicionários e Enciclopédias – estes pólos para a
acumulação de uma memória parcelada que se dirige aos “vivos” –
já neste mesmo período entre em franco declínio a comemoração
dos mortos, e os túmulos, mesmo os dos reis, tornam-se muito
simples no decurso de um processo que se inicia no século XVII e
se conclui no final do século XVIII (LE GOFF, 1990: 461). Vovelle
intui que, no período das Luzes, manifesta-se de alguma maneira
uma intenção de “eliminar a morte”; mas imediatamente depois da
Revolução Francesa assiste-se ao retorno da memória dos mortos,
e reinicia-se uma era de cemitérios, monumentalização de túmulos,
profusão de inscrições literárias e proliferação de práticas de culto
aos mortos através de visitas aos cemitérios (VOVELLE, 1974: 42).
O Romantismo, por fim, irá acentuar ainda mais esta tendência. Este
exemplo é particularmente interessante. Mostra-nos um pouco da
dialética de lembranças e esquecimentos da Memória Coletiva,
reatualizando nos seus vários momentos o que se torna importante
e o que se torna secundário em termos de objetos de “memoração”,
de “rememoração”, de “comemoração” e de práticas de memória.
Ainda entre os pequenos objetos de memória, um verdadeiro
arsenal se estabelece em função das práticas comemorativas: selos,
moedas, medalhas, bandeiras, placas e inscrições comemorativas.
Todos estes objetos de memória, obviamente, podem vir a se tornar
fontes privilegiadas para os historiadores. Exemplificam a imposição
da Memória dos estados e das nações através dos pequenos
objetos. Mas, passando do plano “macro” à “escala micro”, também
a Família, no recesso e na intimidade do Lar, desenvolve seus
próprios recursos. Vale-se, por exemplo, da fotografia, conforme
revelam os sistemáticos estudos de Pierre Bourdieu sobre os álbuns

22 Historiæ, Rio Grande, 8 (1): 9-30, 2017


de família (1965). Mas, eis-nos de volta ao “macro” através desta
mesma Fotografia, uma vez que os estados e os grupamentos
sociais mais amplos também a utilizam. Há até mesmo uma
sofisticada engenharia da memória que se torna possível através da
deformação da fotografia, como bem nos mostrou o stalinismo
algumas vezes ao incluir e excluir certas figuras políticas de um
mesmo retrato em momentos históricos e políticos diversificados. Na
Literatura, o tema foi habilmente desenvolvido por George Orwell no
romance 1984, uma crítica a todas as formas de totalitarismos, mas
também uma imaginação acerca das possibilidades de reconstrução
da memória.
A noção dos “lugares de memória” apresenta, portanto,
desenvolvimentos praticamente infinitos, e poderíamos ainda
lembrar que os avanços dos estudos da Genética permitiram um
controle extremamente preciso sobre a “memória da
hereditariedade”. É possível, hoje, reconstituir através de pesquisas
sobre o DNA a história biológica e populacional dos diversificados
grupos humanos, permitindo atingir a aventura humana no período
que habitualmente é classificado como pré-história. A “memória
genética” da espécie humana, desta maneira, torna-se uma
instância a mais que pode ser acompanhada pelos historiadores. As
potencialidades da combinação de estudos de Memória Coletiva e
da análise da memória hereditária são instigadores: pode-se
imaginar o quanto o rastreamento das descendências e interações
entre grupos populacionais, hoje bastante exeqüível através da
análise das contribuições genéticas presentes no DNA de grupos
humanos, pode proporcionar uma melhor compreensão das
narrativas míticas e outros produtos da Memória Coletiva.
Sobre os lugares de memória – desde que começaram na
década de 1980 a surgirem os primeiros grandes empreendimentos
teóricos sobre esta questão, logo após a experiência francesa da
coleção dirigida por Pierre Nora – pode-se dizer que se tem
verificado também a multiplicação destes lugares nas práticas
sociais. François Hartog, ao mesmo tempo em que discute o
“presentismo” de nossa época em seu ensaio Regimes de
Historicidade (2003), aborda a obstinada memorialização dos
diversos lugares sociais que parece se afirmar como um traço
marcante dos últimos tempos.

A MEMÓRIA NOS TEMPOS RECENTES

A Memória tem se redesenhado no quadro das preocupações

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contemporâneas como uma de suas principais temáticas. Ela
aparece tematizada tanto na ensaística como na literatura, ou
mesmo no Cinema, em filmes como Blade Runner ou Dark City. As
preocupações constantes com as questões da Memória são
sintomas do fenômeno que Andreas Huyssen (m.1942) chamou de
“inflação da memória” na coletânea de ensaios intitulados Seduzidos
pela Memória: Arquitetura, Monumentos, Mídia (2000). De acordo
com Huyssen, vivemos uma época em que se inverteu o grande
paradigma que havia vigorado do Renascimento ao Modernismo, no
qual as expectativas voltavam-se para o futuro, e agora o passado-
presente de um mundo sem expectativas do futuro expressa-se,
entre outros fatores, por uma compulsão pelo arquivo, pela
monumentalização do Passado e pela busca incessante de registro
da Memória (HUYSSEN, 2000: 9). Particularmente após a queda do
muro de Berlim, marco de um novo período mundial, teria começado
a ocorrer uma expansão global de uma cultura e política da
Memória. Aspectos análogos também são discutidos por François
Hartog em seu recente ensaio intitulado Regimes de Historicidade –
Presentismo e Experiência do Tempo (2005).
A inflação da memória, discutida por Huyssen, também é
afetada por uma desigualdade na produção da memória no que se
refere aos objetos rememorados, tal como atesta Paul Ricoeur.
Inspirando-se em um sistema conceitual que traz também
referências da psicanálise freudiana, Ricoeur demonstra que esta
desigualdade na produção da memória coletiva é muitas vezes
afetada pelos “traumatismos da memória” em relação a
determinados acontecimentos históricos, de modo que o historiador
da Memória deve estar pronto a lidar com os recalques e retornos
de recalques. O recalque pode se expressar através do silêncio
relativo a um acontecimento vergonhoso ou traumático da memória
nacional, mas o retorno do recalque pode, em contrapartida,
produzir um excesso de memória. Este excesso pode se expressar
também através da historiografia, com a publicação desproporcional
de determinados temas, e Ricoeur dá o exemplo de alguns destes
sintomas editoriais que revelam as dificuldades do povo francês
processar a lembrança histórica do período de ocupação nazista.
Mas poderia ser citado o outro lado, o retorno incessante da
chamada “querela dos historiadores” na Alemanha, que através de
pelo menos quatro vagas de polêmicas desde os fins da Segunda
Guerra Mundial tem mostrado o mal-estar da historiografia alemã
perante o problema do holocausto e também do envolvimento de

24 Historiæ, Rio Grande, 8 (1): 9-30, 2017


2
grandes empresas alemãs com os empreendimentos nazistas . É
sintomático em relação a esta complexa questão da Memória
Coletiva, aliás, o título atribuído pelo historiador Ernst Nolte a um de
seus artigos mais polêmicos – “O Passado que não quer passar” –
no qual pretende justificar e superar a sensação de culpa dos
alemães em relação ao desenvolvimento do Nazismo.
Questão contemporânea interessante na relação entre
Memória e História refere-se às assimetrias que também existem
relativamente à produção de testemunhos individuais sobre
determinado período, o que afeta diretamente a História do Tempo
Presente. Alguns períodos também assistem, por vezes, a uma
determinada inflação de depoimentos, e outros ao rompimento de
silêncios que já perduravam há algum tempo com relação a um
ponto traumatizado de memória Michel Pollak recoloca também esta
questão em termos de uma dialética entre Memória e Esquecimento,
com a consequente apropriação da mesma pela historiografia do
tempo presente. Referindo-se também à Memória do Holocausto,
ele observa uma onda recente de depoimentos que pedem para ser
registrados, e que rompem todo um silêncio que já perdurava há
algumas décadas:

“quarenta anos depois convergem razões políticas e familiares que


concorrem para romper esse silêncio: no momento em que as
testemunhas oculares sabem que vão desaparecer em breve, elas
querem inscrever suas lembranças contra o esquecimento... Por
conseguinte, existem nas lembranças de uns e de outros, zonas de
sombra, silêncios, „não ditos' As fronteiras desses silêncios e „não
ditos' com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não
são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento.”
(1989: 1).

Outros problemas que afetam a Memória também têm sido


bem tematizados. A Contaminação da Memória pela História ou por

2
Na chamada “disputa dos historiadores” (historikerstreit), os debates sobre o
Nazismo começaram com a publicação em 1986 de um artigo de Ernst Nolte (n.1923)
intitulado “O passado que não quer passar”, que propunha ultrapassar a sensação
alemã de culpa pelo Holocausto e justificar a “solução final” em um quadro de
movimentos políticos que devia levar em conta o que Nolte chamava de “ameaça
bolchevista” e também a posição da comunidade judaica alemã alinhada com os
adversários políticos e bélicos do Nazismo (NOLTE, 1993: 18–23). A primeira réplica
foi elaborada por Jürgen Habermas, em um artigo publicado no Die Zeit em 11 de
junho de 1986. A querela, na sua totalidade e complexidade, foi estudada por Alfred
Low (1995: 183-216).

Historiæ, Rio Grande, 8 (1): 9-30, 2017 25


materiais cronísticos previamente conhecidos, por exemplo, constitui
uma importante questão a ser considerada com relação aos
processos de elaboração da memória coletiva. Peter Burke, em seu
livro O que é História Cultural? (2004) cita alguns exemplos, entre
eles o caso das memórias de soldados que estiveram nas
trincheiras britânicas da Primeira Guerra Mundial, e que
reconstruíram seus relatos contaminados por um livro muito
difundido na época (O Peregrino, de John Bunyam), ou ainda o caso
da memória coletiva das comunidades protestantes no que se refere
ao aspecto da perseguição católica – uma memória que se acha
claramente contaminada pelos exemplos bíblicos de perseguição ao
povo judeu. Estes aspectos foram examinados em maior detalhe
pelo historiador Philippe Joutard em seu ensaio de 1977 intitulado
3
La Legende des Camisards . Os exemplos mostram como o texto
escrito – dos clássicos às escrituras, passando pelos romances
modernos – pode contaminar o registro oral das memórias, e depois
o novo texto escrito que sobre estas se estabelece, se for o caso.
Por outro lado, Jacques Le Goff em seu texto sobre “Memória”
(1990: 473) faz notar que o contrário – a contaminação da História
pelas Memórias Coletivas – também acontece, e cada vez mais à
medida que adentramos a nova era dos desenvolvimentos
midiáticos e da globalização:

“[...] toda a evolução do mundo contemporâneo, sob a pressão da


história imediata em grande parte fabricada ao acaso pelo media,
caminha em direção a um mundo acrescido de memórias coletivas e
a história estaria, muito mais que antes ou recentemente, sob
pressão dessas memórias coletivas” (LE GOFF, 1990: 473).

A História (historiografia) sofre mais do que nunca pressões


pelas bordas, advindas das várias memórias coletivas. Como
historiar, sem sofrer indeléveis ou explícitas pressões dos
movimentos negros, a Escravidão, a Abolição da Escravatura, os
movimentos de resistência contra a Escravidão e os progressos
contra o preconceito racial – ou mesmo rediscutir o próprio conceito
de “Raça”, hoje desautorizado tanto pela biologia como pela

3
Sobre a obra de Joutard, diz-nos Le Goff: “reencontra no próprio seio de uma
comunidade histórica, através dos documentos escritos do passado, e depois através
dos testemunhos orais do presente, como ela viveu e vive o seu passado, como
constituiu a sua memória coletiva, e como essa memória lhe permite fazer face a
acontecimentos muito diferentes daqueles que fundam a sua memória numa mesma
linha e encontrar ainda hoje a sua identidade” (LE GOFF, 1990: 475).

26 Historiæ, Rio Grande, 8 (1): 9-30, 2017


antropologia, e, no entanto, tão sociologicamente fortalecido pelos
movimentos negros? Como historiar o próprio movimento negro sem
se esbater contra a memória coletiva do movimento negro, de um
jeito ou de outro, e como elaborar análises históricas sobre o
homossexualismo sem sentir à espreita a memória coletiva do
movimento gay, controlando com um olho atento o que será dito?
Da mesma forma a História (agora a História-Efetiva, e não
mais a historiografia) é também cada vez mais reconstruída nas
versões que circularão pela mídia, e de tal modo contaminada ou
mesmo manipulada pelas memórias coletivas, que a própria
historiografia já constituiu a partir daí um campo novo: a “história da
história”, tal como o nomeia Jacques Le Goff (1990: 474), e que
freqüentemente assumirá por tarefa analisar criticamente a
manipulação de fenômenos históricos específicos pela memória
coletiva. Os fenômenos históricos que um dia haviam sido
estudados quase que exclusivamente pelos historiadores, começam
a ser examinados de direções várias, a partir de olhares vindos dos
vários lugares de memória, e cumpre então aos historiadores
analisar a contaminação, a manipulação presente neste processo.
Merece estudo atento, no Brasil, não mais apenas os
movimentos quilombolas, mas a história da história dos quilombolas,
interferida pela memória coletiva dos movimentos negros e dos
grupos locais que foram classificados como continuidades históricas
de grupamentos quilombolas originais. As políticas de tombamento e
de apoio a comunidades de resistência anti-escravista
historicamente localizadas, e a classificação de determinadas
comunidades como quilombos, gera certamente a fabricação de
uma memória nova, relacionada ao novo grupo que se estabelece
sob o peso e o apoio desta nova ressignificação. E este grupo,
criador de sua memória coletiva, irá devolver também o seu
pequeno quinhão para a reconstrução da história do movimento
quilombola como um todo. O olhar crítico do historiador, deste
modo, é conclamado a estar atento contra as eventuais
manipulações, distorções, contaminações da memória coletiva sobre
a história. Essas mesmas manipulações e distorções, elas mesmas,
tornam-se objetos interessantes para a própria história.
As “histórias de histórias” mais antigas, certamente, são
aquelas que se referem aos grandes mitos políticos, construídos e
reconstruídos inúmeras vezes. Na França, ressalta Le Goff, os
historiadores mostram-se nas décadas recentes particularmente
atentos para a reconstrução, através da memória coletiva, de
grandes personagens como Carlos Magno (FOLZ, 1950) ou

Historiæ, Rio Grande, 8 (1): 9-30, 2017 27


Napoleão (TULLARD, 1971); mas há também os acontecimentos,
como “A Batalha de Bouvines”, passíveis de serem acompanhados
através da série de comemorações nos quais se inscrevem, e cujos
traços são perseguidos pelo historiador através de um “conjunto
móvel de representações mentais” (DUBY, 1973).
No Brasil, homens como Tiradentes e Duque de Caxias,
mulheres como as princesas Isabel, Leopoldina, ou Carlota
Joaquina, são reconvocados sucessivamente para a República, para
o Ufanismo da Ditadura Militar, para as crônicas feministas. Isabel
ora se torna patrona do movimento anti-escravista, ora perde este
patronato e vê sua mão sendo sutilmente empurrada por um
movimento maior que conduz o seu pulso. Tiradentes ganha ares de
Cristo; Duque de Caxias oscila do herói da pátria ao general
sanguinário. Os heróis, certamente, estão entre os pontos de
atração que mais se destacam para as constantes reelaborações
das memórias coletivas, e também das historiografias que não são
mais do que disfarçados exercícios de memórias coletivas que
pretendem recompor os seus mitos com vistas a interesses grupais
específicos. Zumbi agiganta-se diante de Ganga Zumba. Torna-se
fundador de um movimento que irá redefinir, retroativamente, a sua
própria história.
Memória e História, enfim, interagem de forma complexa.
Outros aspectos, certamente, também merecem uma aprofundada
discussão que não poderá ser empreendida nos limites deste artigo.
A Memória Individual, por exemplo, também tem se afirmado nos
últimos tempos como fonte historiográfica importante a partir de uma
modalidade da história que ficou conhecida como História Oral, o
que requer técnicas aprimoradas de entrevista aos historiadores que
a este campo se dedicam, além de envolver questões éticas que
tem sido objeto de normatização por instituições específicas. As
relações entre Memória e História através do campo da História Oral
abre, portanto, muitas outras vias para discussão.

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Recebido em 27/05/2013
Aprovado em 17/08/2017

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