Auto Da Barca Do Inferno BL PDF
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TexTos inTegrais
Cotejados com edições avulsas, com
base nos trabalhos de I. S. Révah e Paulo
Quintela, confrontados com os textos
da Compilação de 1562, publicada pelos
editores Luís e Paula Vicente.
imagem da capa Azulejaria de cozinha com caças variadas, 1995, obra de Adriana Varejão
V681a
7.ed.
ISBN 978-85-08-14566-9
Auto da barca do inferno
A sociedade portuguesa desfila ante os olhos do diabo 17
Auto da barca do inferno 21
Farsa de Inês Pereira
Uma visão vanguardista da condição da mulher 59
Farsa de Inês Pereira 63
Auto da Índia
Radiografia da infidelidade conjugal 109
Auto da Índia 113
Y porque la reprehensión
a todos es enojosa,
me vi en grande pasión,
y me echaron en prisión,
en cárcel muy tenebrosa…*
* Encenada em 1536 para o rei dom João III, esta peça — que se acredita ser sua derradeira — apresenta
um filósofo que, por dizer a verdade, é castigado, devendo ser amarrado a um parvo pelos pés. Deste
modo, o filósofo nunca consegue entabular um pensamento, já que o parvo sempre o interrompe
com perguntas tolas. Neste trecho — a peça mistura português e espanhol — o filósofo se queixa de
tamanha tortura. (N.E.)
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2008: Polícia Federal prende, na Operação Satiagraha, o banqueiro Daniel
Dantas, o investidor Naji Nahas e o ex-prefeito paulistano Celso Pitta, acu-
sados de corrupção, desvio de verbas públicas e lavagem de dinheiro.*
Essa percepção da atualidade de Gil Vicente, que só ocorre com aqueles
artistas cuja obra alcança caráter universal, permitiu a Carlos Drummond de
Andrade a adaptação contemporânea de uma passagem do Auto da Lusitânia.
Nela, entram as figuras do Diabo, seu auxiliar Dinato, Todo Mundo e
Ninguém**, nomes que, atribuídos às personagens que dialogam, propi-
ciam a comicidade mediante o jogo de palavras.
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Há quase meio milênio, Gil Vicente acusava Todo Mundo de buscar sem-
pre, e por qualquer meio, a riqueza, o poder, a glória, o prestígio fruto da
vaidade e as honrarias cabotinas: a louvação bajulatória e todos os prazeres
mundanos, da mesma forma que “Ninguém busca virtude”. Quinhentos
anos depois, continuamos a ler nos jornais notícias sobre Todo Mundo e
Ninguém.
Gil Vicente foi pródigo na caracterização de tipos, nos quais estão acentuados
os atributos específicos de uma classe, distinguindo-se pela linguagem, pelo
calão profissional (o Corregedor do Auto da barca do inferno) ou pela maneira
estereotipada de reagir (o Castelhano fanfarrão do Auto da Índia). Em suas peças
estão caracterizados o frade devasso, o fidalgo decaído, a moça romântica,
o preguiçoso, a jovem imprevidente, o caloteiro, o judeu explorador, o mé-
dico charlatão, os quais constituem apenas uma parte de uma vasta galeria:
o Escudeiro, o Fidalgo, o Clérigo, o Parvo, o Pastor, o Almocreve, o Judeu, o
Negro, o Ermitão, a Alcoviteira, o Onzeneiro...
Alguns desses tipos são herança do teatro francês e espanhol, como o
Clérigo, o Parvo, o Pastor, o Judeu, a Alcoviteira. Poucas vezes algum desses
tipos ganha contornos de indivíduo, como no caso de Inês Pereira, tipo de
moça romântica e sonhadora, mas que por sua força como personagem, tor-
na-se a inconfundível Inês Pereira.
A alegoria origina-se das representações religiosas e profanas pré-vicen-
tinas, sobretudo das moralidades, nas quais as personagens representavam
abstrações personificadas de vícios e virtudes (a Avareza, a Esperança, a
Humildade, por exemplo), e dos momos, com seus vistosos desfiles de per-
sonagens simbólicas (como a Tentação, os Profetas, a Redenção). O teatro
de Gil Vicente, seguindo a tradição medieval, é rico em elementos alegó-
ricos: a Morte aparece em forma de esqueleto vestido de negro, o Inverno
coberto de agasalhos, o Verão tremendo de febres, a Preguiça na pessoa de
um preguiçoso que dorme e ronca sobre o palco. Quase sempre, alegoria
e símbolo coincidem, atribuindo-se um valor simbólico à alegoria. Como
assinalou Antônio José Saraiva, que melhor estudou a alegoria e o símbolo
no teatro medieval, “em Gil Vicente os tipos graduam-se numa escala abaixo
da qual está a alegoria e acima o caráter individual”*.
* SArAivA, Antônio José. Gil Vicente e o fim do teatro medieval, 3a. ed. Lisboa: Europa América, 1970, p. 121.
O exagero das situações é próprio da comédia, e Gil Vicente fazia rir a corte
e o povo satirizando comportamentos e mentalidades de todas as classes so-
ciais, valendo-se de três processos cômicos principais:
1. A comicidade de caráter é resultante das características psicológicas da
personagem-tipo, as quais induzem a reações e comportamentos inusita-
dos em relação a determinada(s) pessoa(s), objeto(s), situações. Na Farsa de
Inês Pereira, por exemplo, Pero Marques revela sua ignorância diante de uma
cadeira, sentando-se incorretamente. Em outra passagem, sua timidez não
lhe permite aproveitar-se da ausência da mãe de Inês. Ao perceber a saída
dela, fala em retirar-se antes que alguém fale mal deles, o que provoca a
ironia de Inês Pereira.
2. A comicidade de situação é evidenciada pelos atos das personagens-tipos
ou pelos acontecimentos em que elas se inserem. Na Farsa de Inês Pereira, Pero
Marques não encontra as peras que havia colhido para Inês. No Auto da Índia,
a chegada do Castelhano, quando Lemos ainda está na casa de Inês, tam-
bém exemplifica a comicidade de situação.
3. A comicidade de linguagem em Gil Vicente dá-se sobretudo por meio de:
a) ironia na escolha dos nomes das personagens, como a alcunha de
Constança (fidelidade) dado à ama infiel do Auto da Índia;
b) utilização irônica da rima, graças a seu conteúdo contrastante ou
ambíguo, como no trecho da Farsa de Inês Pereira no qual Lianor Vaz relata o
assédio sexual de um clérigo;
c) uso de lugares-comuns e fórmulas tradicionais, como rezas,
provérbios;
d) jogos de palavras, como na Farsa de Inês Pereira, em que Pero Marques
diz que ficou com “mor gado” (verso 300**) (“com o maior gado”) e a
mãe entende que ele é proprietário de um “morgado”, isto é, de uma pro-
priedade vinculada ou conjunto de bens vinculados que não podiam ser
alienados nem divididos. Ou ainda, na mesma farsa, quando Pero Marques
diz ter trazido para Inês Pereira “peras da minha pereira” (316) (“peras”,
de Pero Marques e “pereira”, de Inês Pereira);
e) repetições, como na fala do marido, no Auto da Índia: “saltou tanto su-
doeste, / sudoeste e oes-sudoeste, / que nunca tal tormenta vi” (450-452);
* Recomenda-se a leitura de BergSon, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico, 2a. ed. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1983. Neste livro é estudada de maneira excepcional a comicidade de situa-
ções, palavras, caráter e linguagem.
** Os números entre parênteses indicam o verso do auto.
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f) emprego do latim macarrônico, como em várias passagens do Auto da
barca do inferno;
g) gírias e uso de termos baixos e grosseiros, como os empregados pelo
Parvo do Auto da barca do inferno.
O leitor ou intérprete das peças de Gil Vicente deve considerar outros
elementos cômicos, como as ações, os gestos, as atitudes, o vestuário, já
que o texto é apenas um dos componentes do espetáculo teatral.
* reckert, Stephen. Gil Vicente: espíritu y letra. Madri: Gredos, 1977, p. 75.
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da glória é a confissão e a comunhão que fizera antes de morrer e as
missas que ouvira. Contudo, segundo o Diabo, ele morrera mesmo ex-
comungado, e, depois de ouvir missas, roubava o povo por meio de
seu ofício. Sua hipocrisia acaba por torná-lo antipático. Aceita o fato de
ir para o inferno, convencido de que também ali saberá adaptar-se às
circunstâncias.
O Frade, apenas com o hábito, é um símbolo vivo do pecado, reforçado
por Florença, a amante, que o acompanha e também embarca, já que é sua
cúmplice. Florença, assim como o Pajem que acompanha o Fidalgo, não
fala, tendo função puramente teatral. O Frade, pelo contrário, é cheio de
vida e movimento. Sua linguagem é exuberante, e ele parece não se dar
conta do que faz. Baila, esgrime, revela-se um cortesão e acaba por subir à
barca do inferno, não sem antes ser ironizado pelo Parvo.
Brísida Vaz carrega consigo os apetrechos de seu prostíbulo, provas de
seus serviços. Suas palavras revelam desde o início total falta de princípios
morais. Em sua defesa, relata os próprios sofrimentos, entremeados com
exemplos de suas ações pecaminosas, que só contribuem para não deixar
dúvidas quanto a seu destino. Tendo inteira consciência do que diz, acaba
por irritar o próprio Anjo: “Ora vai lá embarcar, / não me estês importu-
nando.” (562-563).
O Judeu leva um bode nas costas, o que revela sua adesão a Moisés e não
a Cristo. Além disso, enquanto na iconografia cristã Jesus está associado ao
cordeiro, o bode (ou a cabra) está associado ao Diabo. As falas do Judeu
revelam total falta de compreensão. Não entende nada, como nunca enten-
dera. Não se aproxima da barca da glória, já que ali havia um crucifixo e, na
proa, a imagem de Nossa Senhora. Nem o Diabo, a quem oferece dinheiro,
quer levá-lo embarcado. A este, o Judeu acaba por dirigir uma maldição,
enquanto é acusado e escarnecido pelo Parvo.
Para Stephen Reckert, há um simbolismo claro na cena: a incredulidade
do Judeu, a cegueira voluntária, que não o deixa compreender a realidade
de sua situação, não o salva do fogo infernal, mas o faz incapaz de aprender.
Daí não poder embarcar; quando muito, ser rebocado.
O Corregedor e o Procurador levam processos e livros, os quais, se não
facilitassem seus roubos, significariam apenas autoridade e erudição. Com
um latim macarrônico, são meros figurões sem individualidade. Nesse
ponto, restabelece-se o ritmo de ida e volta entre uma barca e outra e apa-
rece, pela última vez, o Parvo.
Duas breves cenas finais rompem definitivamente com o ritmo de idas e
voltas: a do Enforcado e a da passagem dos Quatro Cavaleiros.
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auto da barca do inferno
a figura: imagina.
b scilicet: contração de scire licet, que significa “a saber”.
c O texto de apresentação é o da edição avulsa de 1517-1518(?).
d Texto da Compilação de 1562.
* A vaidade e a ostentação do Fidalgo estão simbolizadas pelo comprimento da cauda de seu manto
e pela cadeira de espaldar; rabo: manto muito comprido; espalda: espaldar, as costas da cadeira.
2 gentil: boa.
3 caro: carro, peça que cruza num mastro ou que se prende por um dos extremos em um mastro.
Vira-se o carro à ré para adaptar a vela à direção do vento.
4 feito, feito!: na Compilação, este verso não vem destacado como sendo uma réplica do companheiro
do Diabo. A edição avulsa indica o contrário.
6 muitieramá: em muito má hora.
7 atesa aquele palanco: estica aquele cabo.
11 asinha: depressa.
13 berzebu: Belzebu, príncipe dos demônios.
14 sus: interjeição, “vamos!”.
15 leito: área compreendida entre o mastro grande e a popa. O Diabo pretende ter mais espaço para
alojar os pecadores.
17 abaixa maora esse cu!: trabalha com cuidado!; maora: má hora.
18 poja: cabo que prende o carro; lesta: rápida.
19 alija: lança ao mar, alivia a carga; driça: adriça, cabo utilizado para içar bandeiras, flâmulas, determi-
nadas vergas e velas.
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20 Companheiro Ô, caça! Ô, iça! iça!
Diabo Oh, que caravela esta!
Põe bandeiras, que é festa.
Verga alta! Âncora a pique!
Ó poderoso dom Anrique,
25 cá vindes vós? Que cousa é esta?
20 Ô, caça! Ô, iça! iça!: apanha (a vela), levanta! levanta! (a verga, para esticar a vela). Na Compilação
de 1562 está: “Ó caça, ó ciça”.
23 âncora a pique: âncora recolhida.
24 anrique: forma arcaica de Henrique.
27 apercebida: aparelhada, enfeitada, ornada.
28 ilha perdida: eufemismo de inferno.
29 logo ess’ora: imediatamente.
30 senhora: o Fidalgo refere-se à embarcação ou confunde o Diabo com uma mulher. No verso seguinte,
o Diabo parece retificar o Fidalgo: “Senhor, a vosso serviço”.
40 em feição: em bom aspecto, a gosto. O Diabo vê no Fidalgo um bom candidato ao inferno.
43 guarida: refúgio, salvação.
Embarca!, ou embarcai!,
que haveis de ir à derradeira.
Mandai meter a cadeira,
que assi passou vosso pai.
55 Fidalgo Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?
Diabo Vai ou vem, embarcai prestes!
Segundo lá escolhestes,
assi cá vos contentai.
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