Educação, História e Historiografia - Alan Ricardo Duarte Pereira
Educação, História e Historiografia - Alan Ricardo Duarte Pereira
Educação, História e Historiografia - Alan Ricardo Duarte Pereira
EDUCAÇÃO, HISTÓRIA E
HISTORIOGRAFIA
ISBN 978-65-5917-680-9
DOI 10.22350/9786559176809
Disponível em: http://www.editorafi.org
PREFÁCIO 9
1 18
A GENEALOGIA NA CONSTITUIÇÃO DA TRADIÇÃO NOBILIÁRQUICA EM PORTUGAL:
UM SABER VITAL
UMA SABER VITAL: A GENEALOGIA EM PORTUGAL .................................................................................... 21
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................................................... 34
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................................... 35
2 37
EDUCAÇÃO E CULTURA ESCRITA NA CAPITANIA DE GOIÁS NO SÉCULO XVIII:
REFLEXÕES A PARTIR DO ESTUDO DE CARTAS
ATOS ILÍCITOS E QUESTÕES JURISDICIONAIS: A ESCRITA DE CARTA E A GOVERNANÇA NA
CAPITANIA DE GOIÁS ........................................................................................................................................... 42
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................................... 50
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO .............................................................................................................. 50
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................................................... 50
3 53
A CARTA DE UM LETRADO: O JUIZ ORDINÁRIO ANTÓNIO JOSÉ DE ARTIAGA
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................................... 73
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO (AHU) ................................................................................................. 73
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................................................... 73
4 75
A CARTA DO VIGÁRIO DE VILA BOA JOÃO ANTUNES DE NORONHA
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................................... 80
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO (AHU) ................................................................................................. 80
5 81
A CARTA DE LUÍS HENRIQUE DA SILVA
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................................... 96
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO (AHU) ................................................................................................. 96
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................................................... 96
6 98
UMA ÚLTIMA VOZ NA CAPITANIA: A CARTA DOS MEMBROS DA CÂMARA DE VILA BOA
HIERARQUIAS E CLASSIFICAÇÕES SOCIAIS – NOTAS E REFLEXÕES SOBRE A CARTA DA CÂMARA
DE VILA BOA ......................................................................................................................................................... 109
UM ÚLTIMO PEDIDO À RAINHA: O ENVIO DE UM NOVO GOVERNADOR PARA A CAPITANIA ...... 116
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 121
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO (AHU) ............................................................................................... 121
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................................................... 121
7 123
A RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E LITERATURA: AS CARTAS CHILENAS E A SOCIEDADE
COLONIAL
A RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E LITERATURA: AS CARTAS CHILENAS E A SOCIEDADE COLONIAL 127
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................................... 139
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 140
PREFÁCIO
Com isso, estamos querendo mostrar que falar do século XVIII não
é somente estudar os sujeitos letrados. Pelo contrário, falar do século
XVIII – e de uma capitania no interior da América portuguesa – é, igual-
mente, falar de um mundo baseado na oralização – a escrita não havia
se vulgarizado nem a escolarização (FONSECA, 2010) – ou, melhor di-
zendo, na indistinção entre o oral e o escrito, naqueles que mesmo não
sabendo ler ou escrever remetiam cartas ao rei português, denunciavam
os governadores e funcionários. Ou seja, um mundo com o qual o uso
social da escrita estava presente e foi, em razão disso, apropriado por
diferentes grupos.
Ademais, os estudos sobre a cultura escrita mostraram a riqueza
de circulação de livros e impressos na América portuguesa. Por exem-
plo, o historiador Luiz Carlos Villalta (1999) esclarece os “tempos
dissociados” na aprendizagem da escrita e da leitura, isto é, muitos in-
divíduos sabiam ler, mas não dominam as técnicas de escrita. A leitura,
portanto, antecedeu a aprendizagem da escrita. Os hábitos de leitura, a
história do livro e da leitura, comercialização de impressos, bibliotecas,
a circulação de professores régios pelas capitanias, o estabelecimento
de ensino régio durante o pombalismo (1750-177) são, em resumo, al-
guns temas candentes da historiografia sobre a cultura escrita e o
ensino no Brasil Colonial.
Sem dúvida, tais investigações mostraram uma importante faceta
da América portuguesa para além do aspecto econômico. Fundamen-
tam-se, em grande medida, na influência das questões culturais no
contexto do Império português. No entanto, parece conceber o universo
da escrita e da instrução somente vinculado ao evento do papel e/ou li-
vro. Em outras palavras, como se a cultura escrita fosse sinônimo de
livro. Não por acaso que a preocupação de tais trabalhados é aferir o
12 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
1
Publicado originalmente em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/
view/29463 .
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2
Como declarou outro tratadista, Luís da Silva Pereira Oliveira (1806, p.10)1, podia-se dizer que, em
Portugal, “(...) a nobreza no estado atual, podemos dizer que é uma certa dignidade derivada dos pais,
ou da concessão do Príncipe”. Com efeito, a ideia “pai” remetia, de maneira direta, a linhagem (ou
descendência) em que o sangue ratificava a nobreza do indivíduo1. Com efeito, a “qualidade” era, ao
lado de outros aspectos, fundamental na cultura política dos Grandes. Em síntese, poderia se tratar,
respectivamente, da “qualidade de nascimento” em que os pais, por natureza, herdavam aos filhos e da
“qualidade” alcançada através das mercês concedidas pelo Príncipe. Embora a “qualidade de
nascimento” fosse acentuada e o elemento-comum da nobreza castelhana também fazia parte, não
obstante, dos nobres e fidalgos lusitanos. No entanto, para Portugal a concepção que o rei podia, por
conta própria, nobilitar um indivíduo através dos serviços prestados – especialmente os feitos militares
– era, na maioria dos casos, preponderante.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 21
3
Tratando-se do hábito das ordens militares – como de Cristo, Avis ou Santiago – em Portugal
destacavam-se, sem sombra de dúvida, o Conselho Ultramarino e a Mesa de Consciência e Ordens. Mais
exatamente, o pedido “(...) passava pelo crivo do Conselho Ultramarino e, conforme o seu parecer, o rei
concedia ou não a mercê. Em caso afirmativo, a Mesa da Consciência e Ordens iniciava então o processo
de habilitação do candidato, sendo ouvidas testemunhas em número suficiente nos lugares da
naturalidade do candidato e seu ascendentes. O habilitando suportava as despesas decorrente de tais
inquirições. Se as provanças revelassem defeito de qualidade, ou qualquer outro impedimento, o rei
22 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
podia dispensá-los e então a mercê era efetivamente recebida; ou então seguia o parecer da Mesa e a
concessão do hábito não se concretizava. (SILVA, 2005, p.115-116)”. Ver: SILVA, Maria Beatriz Nizza da.
Ser nobre na colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2005. OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o
Estado Moderno, Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa, Estar, 2001.
4
Atenta-se, nesse contexto, que tal distinção foi abolida no período pombalino (1768-1773).
Alan Ricardo Duarte Pereira • 23
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Ao estabelecer essa divisão entre “cristãos- novos” e “cristãos-velhos”,percebe-se, sobretudo para a
última década de Seiscentos, que o grau de familiar no Santo Ofício tornava- se, naquela altura, um dos
cargos mais procurados. Em alguns casos, conforme mostra Torres (1994), ser familiar do Santo Ofício
era mais honorífico que a atividade do tribunal. Assim, fica evidente, pelo menos antes da abolição entre
“cristãos-velhos” e “cristãos- novos” feitos por Pombal, que a carreira no Santo Ofício era, de fato,
nobilitante. Ver: TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social. In: Revista Crítica
das Ciências Sociais, Lisboa, nº40, 1994, p.109-135.
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6
Após deixar de lados o estudo acerca das dioceses ultramarinas, enveredou-se, assim, pelo investigação
genealógica. Para tanto, dedicada exclusivamente à D. João V, a História Genealógica da Casa Real
Portuguesa não se refere somente da ascendência de D. João V. Ao contrário, o estudo de D. António
Caetano é, ao mesmo tempo, um estudo da família real e de outras casas nobres de Portugal. Nesse
sentido, o genealogista explica que “(…) porque nenhuma outra História lhe pode pertencer [D. João V]
tanto como a presente, que principia com a Real origem da sua Augusta Casa (...). (SOUSA, 1749, p.3-4)”.
26 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
7
D. António Caetano de Sousa ainda discuti, no início da sua obra, as distinções no seio da nobreza.
Quando voltarmos ao assunto da nobreza em Portugal e a Expansão Ultramarina iremos discutir, embora
não exaustivamente, tais diferenciações.
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entretanto, que “(...) essa decisão me parece que não tem lugar, porque
a contradizem as Escrituras, e as Memórias antigas (...), dizendo
expressamente o contrário (...)”. Para rebater essa incongruência na
superioridade ou não do título de “Infanção”, D. Caetano de Sousa
explorou uma variedade de constatações. Em primeiro lugar, chamava
atenção para o fato que nas “Escrituras” 8, os filhos dos Infantes eram
tratados como “Ricos Homens”. Em outras palavras, longe de ser uma
distinção alta, o filho do Infante era classificado como integrante dos
“Ricos Homens”.
Assim, não haveria nessa perspectiva diferença para os filhos dos
Infantes, uma vez que, desde o nascimento nobre, já era conferido o
título de “Rico Homem”. Mais especificamente, há outras evidencias,
segundo D. Caetano de Sousa, para acreditar que “Infanção” era, na
verdade, uma ramificação de “Rico Homem” 9.
Portanto, para concluir a problemática em torno da grandeza do
título de “Infanção” ser maior que de “Ricos Homens”, o genealogista
opina, ao final, que “(...) quando a mim esta opinião acho mais
verossmilidade, do que serem filhos dos Infantes, e serem preferidos
dos Ricos Homens em tudo”. Observando a processualidade da evolução
dos títulos em Portugal, D. Caetano de Sousa explica que, durante o
reinado de D. Afonso V, o título de “Rico Homem” foi substituído por
8
Pela amplitude do termo, não é possível dizer ao certo se “Escrituras” referia-se ao texto sagrado (a
Bíblia), obras genealógicas ou tratados escritos sobre os Grandes. Por certo, observando a valorização
de D. Caetano de Sousa pelas “memórias antigas” pode-se, no entanto, aventar que se tratava de obras
genealógicas.
9
Para dar concretude ao seu argumento, D. Caetano de Sousa cita que (...) como foy Ruy Gomes de
Briteiros, de quem trata o Conde D. Pedro no Titutlo 25, como advertio com a sua costumada erudição
o Doutor Fr. Antonio de Brandão no livro. 9, cap. 13 da terceira parte da Monarquia Lusitana, onde faz
menção das Cortes, que ElRey D. Afonso III, celebrou em Guimaraens na Era de 1294, que he anno de
1256, onde relugando o modo, com que a Nobreza havia de andar na Corte, se vê o excesso dos Ricos
Homens aos Infançoens, pois concede ao Rico Homem ande acompanhado com gente de Cavallo, sem
permitir ao Infanção mais que três Lacayos, sem Escudeiro algum de cavalo (...)” (SOUSA, 1755, p.21).
Alan Ricardo Duarte Pereira • 31
10
No caso francês, a nobreza cortesã foi estudada, meticulosamente, pelo francês Nobert Elias. Ver: ELIAS,
Nobert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de
corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
32 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
11
Sobre o título de Fidalgo Cavaleiro e Moço Fidalgo, D. Caetano de Sousa (1755, p.24) esclarece que
“(...) porém quanto à nobreza, que conseguem, e privilégios, não se alcança mais por hum, que por
outro: com tudo, odos desejão o de Moço Fidalgo, talvez pela semelhança, que tem com os filhos dos
Senhores, e Fidalgos, que servem no Paço por avizo do Mordomo Mór, com o nome de Moços Fidalgos,
e se lhes passa Alvará; porém estes depois tem accrescentamento, se o podem, e os outros permanecem
naquele mesmo, tirando os seus sucessores sempre o dito foro”.
34 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
FIGUEIROA REGO, João. A limpeza de sangue a escrita genealógica nos dois lados do
Atlântico entre os séculos XVII e XVIII: alguns aspectos. In: Actas do Congresso
Internacional. O Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedade. Lisboa,
2005. Disponível em: http://dspace.uevora.pt/rdpc/bitstream/1017 4/11947/1/joao_
figueiroa_rego.%20a%20limpeza%20de%20sangue%20e%20a%20escrita%20geneal
%C3%B3gica.pdf. Acesso em: 11/05/2020.
MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma fraude genealógica no Pernambuco
colonial. São Paulo: Companhias das letras, 1989.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo Monteiro. Elites locais e mobilidade social em Portugal nos
finais do Antigo Regime. finais do Antigo Regime. In: _____. Elites e poder: entre
o Antigo Regime e o Liberalismo. Lisboa: ICS, 2012, p.37-82.
_____. Genealogia. IN: BERTRAND, Annie Molinié. JIMÉNEZ, Pablo Rodrigues (orgs).
A través del tempo: diccionario de fuentes para la historia de la família. Murcia:
Editora da Universidade de Murcia, 2000, p.103-104.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Ediora UNESP, 2005.
_____. História genealógica da Casa Real Portuguesa. Lisboa: Academia Real, 1735.
TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social. In: Revista
Crítica das Ciências Sociais, Lisboa, nº40, 1994, p.109-135.
2
EDUCAÇÃO E CULTURA ESCRITA NA CAPITANIA DE
GOIÁS NO SÉCULO XVIII: REFLEXÕES A PARTIR DO
ESTUDO DE CARTAS 1
1
Publicado originalmente em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/10736/3/Tese%20-
%20Alan%20Ricardo%20Duarte%20Pereira%20-%202020.pdf.
38 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
2
É nesse aspecto que o cargo de governador e vice-rei assumiu uma dupla dimensão. Em primeiro lugar,
era considerado o topo da pirâmide no quadro de cargos e ofícios régios. Por conseguinte, os indivíduos
recrutados pela Coroa portuguesa entre os séculos XVII e XVIII pertenciam, segundo Monteiro (2005), “a
primeira nobreza de corte e de fidalguia inequívoca”. Isso significa dizer, em segundo lugar, que havia
uma relação estreita entre qualidade de nascimento dos nomeados – em geral, foram mais de 871
nomeações entre 1700 e 1826 pelas pesquisas de Monteiro – e os espaços governados. Portanto, quanto
maior a importância de uma região, por exemplo, como a Capitania de Goiás ou Minas Gerais no século
XVIII com a descoberta do ouro, maior o número de governadores pertencentes à primeira nobreza.
40 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
3
Os exemplos para o Estado da Índia e o Estado do Brasil deixam isso claro. Segundo Consentino (2005,
p.139), as necessidades militares e a importância do Estado da Índia no século XVII fizeram com que os
vice-reis daquela conquista gozassem de “poderes mais amplos”. Tinha alçada militar, mas
especialmente no campo da justiça civil e crime, "incluindo a morte, mas também suas sentenças não
tinham apelação nem ao rei”. Por sua vez, no Estado do Brasil os governadores não poderiam intervir na
justiça ou eclesiástica. Mesmo assim, era possível aos governadores sugerir candidatos ao hábito de
cavaleiro das ordens militares.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 41
foi, por conseguinte, a escrita de cartas. Era nesses documentos que re-
metia das possessões ultramarinas a quantidade de ouro arrecadado,
especialmente o quinto, mapa das receitas e despesas ou mapa da popu-
lação, denúncias contra ministros e funcionários régios, entre outras
coisas. Do outro lado do atlântico, o Conselho Ultramarino lia e, por ve-
zes, respondia tais cartas. O uso do papel, da tinta e da pena constituía,
naquele contexto, numa peça fundamental no jogo de governança no
Império português.
De tal maneira que não é possível conceber o Império português
sem um “Império de papel”. Autores como Hespanha ou Ângela Domin-
gues chamaram atenção para a correspondência produzida no Império
português. Nesse sentido, Hespanha (1994) na clássica obra As vésperas
do Leviathan havia classificado o Império português como um “Império
de papel” justamente quantidade expressiva de cartas que circulavam
de uma ponta a outra. No mesmo sentido, Domingues (2000;2012;2001)
aventa a hipótese de uma “rede de informações” com as quais engenhei-
ros, médicos, cirurgiões e governadores produziram. Em resumo, tais
estudiosos ressaltam a centralidade das cartas como meio de comuni-
cação política entre Portugal e suas conquistas.
Nesse ínterim, as cartas se constituíram como fonte privilegiada
para o estudo do Império português e suas conquistas. Há, por exemplo,
o estudo das cartas recorrendo à sua materialidade e circulação. Num
estudo sobre o 2° marques de Lavradio (1768-1779), a autora Conceição
(2011) percebeu que as cartas escritas pelo dito governador guardavam
aspectos importantes daquela sociedade. Um dos aspectos elencados
pela autora refere-se às cartas como objeto “de trocas de sensibilidades,
sociabilidades e representações do eu”. Nessa perspectiva, haveria uma
“sensação de fala” e uma “sensação de escuta” para a escrita de cartas.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 45
Nome Posse
Dom Marcos de Noronha, conde dos Arcos 8 de Novembro
de 1749
Dom Álvaro José Xavier Botelho de Távora, conde de S. Miguel 31 de Agosto de
1755
João Manoel de Mello, capitã-general 7 de Julho de
1759
Antônio José Cabral d’Almeida, Antônio Thomaz da Costa e Damião, 13 de Abril de
José de Sá Pereira (Junta Provisória) 1770
Antônio Carlos X. Furtado de Mendonça, brigadeiro (interino) 15 de Agosto de
1770
José de Almeida de Vasconcelos de Soveral e Carvalho, barão de 26 de Julho
Mossâmedes de1772
Fonte: Elaborado pelo autor com base nos documentos do Arquivo Histórico Ultramarino
(AHU).
Alan Ricardo Duarte Pereira • 47
Antônio José Cabral de Almeida, João Pinto Barbosa Pimentel e Pedro 17 de Maio de
da Costa (Governo Provisório) 1778
Luís da Cunha Menezes, capitão-general 16 de Outubro
de 1778
Tristão da Cunha Menezes, capitão-general 22 de Junho de
1783
João Manoel de Menezes, capitão general 25 de Fevereiro
de 1800
Francisco de Assis Mascarenhas, capitão-general 27 de Fevereiro
de 1804
Fernando Delgado Freire de Castilho, capitão-general 28 de Novem-
bro de 1809
Antônio José Álvares M. e Silva, Luís Antônio da Silva e Souza e Álvaro 2 de Agosto de
José Xavier (Junta administrativa) 1820
Manoel Inácio de Sampaio e Pina, capitão-general 4 de Outubro de
1820
Manoel Inácio de Sampaio e Pina, capitão-general, Antônio Pedro de
Alencastro e Paulo Conceito d’Almeida Homem (Junta Administrativa)
Francisco Xavier dos Guimarães Brito e Costa, Luís da Costa Freire de 30 de Novem-
Freitas, João José do Couto Guimarães e Inácio Soares de Bulhões bro de 1821
Álvaro José Xavier, Joaquim Rodrigues Jardim, Raimundo Nonato 8 de Abril de
Hyacinto, João José do Couto Guimarães, Joaquim Alves de Oliveira, 1822
Luís Gonzaga de Camargo Fleury (Junta Provisória)
Fonte: Elaborado pelo autor com base nos documentos do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU)
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRAFIA
ACEVEDO, Jefferson Roberto Nascimento. Nas teias de justiça: a justiça régia em Goiás
no século XVIII. Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História.
Universidade Federal de Goiás, 2019.
CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragança (1560-1640). Práticas Senhoriais e redes
clientelares. Lisboa: Estampa, 2000.
____. Trajetórias sociais e governo nas conquistas. Notas preliminares sobre os vice-
reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos século XVII e XVIII. In: FRAGOSO,
João Luís Ribeiro. BICALHO, Maria Fernanda Baptista. GOUVÊA, Maria de Fátima
Silva (orgs). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos
XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.249-283.
PUNTONI, Pedro. Bernardo Vieira Ravasco, secretário do Estado do Brasil: poder e elites
na Bahia do século XVII. In: BICALHO, Maria Fernanda. FERLINI, Vera Lúcia Amaral.
(org). Modos de governar. Ideias e práticas no Império português, séculos XVI a XIX.
São Paulo: Alameda, 2005.
PEREIRA, Alan Ricardo Duarte. Entre o nome e o sangue: a família Cunha Meneses no
Antigo Regime português. Dissertação de mestrado – Programa de Pós-Graduação
em História, Goiânia, 2016.
SANTOS, Marilia Nogueira dos. A escrita do império: notas para uma reflexão sobre o
papel da correspondência no Império português no século XVII. In: SOUZA, Laura
de Mello e. FURTADO, Júnia Ferreira. BICALHO, Maria Fernanda (org). O governo
dos povos. São Paulo: Alameda, 2009.
1
Publicado originalmente em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/10736/3/Tese%20-
%20Alan%20Ricardo%20Duarte%20Pereira%20-%202020.pdf.
2
Têm-se notícias de António José Artiaga desde 1770. Pode-se dizer que começou sua atuação nos
quadros da administração da capitania como administrador da casa do governo. Sobressaiu, num
primeiro momento, sua relação estreita com o governador, João Manuel de Melo, o considerava como
“seu amo” e, possivelmente, era um de seus criados. Após a morte do governador solicitou que, a partir
daquele momento, se conservasse seus serviços nos ofícios da Casa de Fundição de Vila Boa.
Possivelmente, ocupou algum cargo na Casa de Fundição e, por volta de 1780, se encontrava ocupando
o cargo de juiz ordinário e presidente da Câmara de Vila Boa. Após esse momento, a trajetória de António
José de Artiaga mudou completamente, pois já não ocupava nenhum cargo de prestígio na capitania.
Num requerimento datado de 1786, intitulava-se “morador de Vila Boa” e solicitava à rainha o
pagamento da propina por ter servido como juiz ordinário em 1782 (AHU_ACL_CU_008, Cx. 36, D. 2213).
54 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
ordens que saiam da Câmara e aquelas que, por sua vez, eram proferidas
pelo governador. Nas suas palavras, “e no no prez. tempo se ve confun-
dida a ordem da d.a Camara com as Rezoluçoens do d.o G.or [...]”. Por
um lado, era obrigação dele como juiz ordinário e presidente da Câmara
levar ao trono da rainha todos os “aconteçomen.tos que paresão ser
digno de V. Mag. lhe dar as providençias [...]”.
Assim, colocava nas primeiras linhas de sua carta as atribuições
que eram inerentes ao seu cargo. Mas, de outro lado, evocava insisten-
temente dar conta da situação Câmara e de seus oficiais naquele
contexto. No entanto, o mais interessante que, na sua escrita, referia-
se a Câmara como um “corpo”. Afirmava, assim, que “A Camara desta V.
[Vila] hê hum corpo ao qual V. Mag. onrra [honra] e Estima como obser-
vante das suas Reais Ordens [...]” (Ibidem, f.259). Não somente isso, ao
posicionar-se como juiz ordinário e citar os oficiais que serviam na Câ-
mara, buscava perspectiva-los como integrantes de um corpo maior.
Observa-se, nesse aspecto, que se diferencia da carta do ouvidor Joa-
quim Manuel de Campos. Mais exatamente, enquanto Joaquim Manuel
de Campos expôs os casos individuais de inúmeros vassalos e das insti-
tuições locais, aqui o objetivo do juiz ordinário era, por seu turno,
evidenciar a situação da Câmara. Mostrar o que acontecia com a Câmara
e, igualmente, com os integrantes desse corpo social.
Para tanto, naquele ano de 1782 convocou “o corpo da mesma Ca-
mara” com o objetivo de discutir as ordens expedidas pelo governador.
Ficou surpreso porque “todos os mais oficiais” se recusaram. A maioria
explicou ao juiz ordinário que, naquele momento, sentiam-se “temero-
sos das deliberasoens do G.or [Governador]”. Vendo que era inútil
convocá-los para uma sessão, decidiu, por fim, suspender. Nesse ínte-
rim, pode-se ver que a preocupação do juiz ordinário ao suspender a
Alan Ricardo Duarte Pereira • 55
3
Vale lembrar que Luís da Cunha Meneses chegou em 1778 e ficou até 1783 em Goiás. Em seguida foi
para a Capitania de Minas e por lá ficou até 1788 quando voltou a Portugal.
4
Bento José de Sousa ocupava o posto de tenente na Segunda Companhia do Primeiro Regimento de
Cavalaria de Milícias. Em 1804 juntou-se aos camaristas para prender o governador D. João Manuel de
Meneses e, logo em seguida, fugiu da capitania (AHU_ACL_CU_008, Cx. 49, D. 2779).
Alan Ricardo Duarte Pereira • 57
Camara daquele tempo [eram] atrevidos pela rezão [razão] de não terem
dado inteira satisfação ao seu pr.o [próprio] despacho” (Ibidem, f.260).
Na visão do juiz ordinário, o governador não poderia legislar acerca da-
quela questão.
O procedimento adotado pelo governador era “oposto a Provizão
de 15 de Novembro de 1730 [...]”. Tal provisão – esclareceu o juiz ordiná-
rio – versava sobre a relação do governador com a Câmara. Ali
mandava-se que, na ocasião dos governadores tratarem “algum Negoçio
com as Camaras”, que fossem realizados por meio de cartas e não por
portarias abertas. A atitude do governador foi considerada uma “injúria
social” justamente por ter usado de um simples requerimento na comu-
nicação com a Câmara. Para o juiz ordinário, “resultou ter aquele
Requerim.to servido de irrizão a Plebe, com grande injuria a Camara”.
É curioso perceber, nesse ínterim, o emprego da palavra “atrevi-
dos” por parte do governador. De um lado, os camaristas
desclassificaram o meio adotado do governador quando se comunicou
com a Câmara. Por outro lado, o governador não tinha atribuições de
deferir aquele tipo de solicitação de Bento José de Souza, especialmente
porque a Câmara não poderia pagar. Esses dois casos mostram que, na
compreensão do governador, bastava enviar solicitações na forma de
“requerimentos”. Dizer que os camaristas eram “atrevidos” deixava
transparecer o nível de “poder e autoridade” que o governador se via no
contexto da capitania. Com efeito, a negativa ao seu criado Bento José
de Souza não podia ser admitida.
Esse tipo de requerimento não foi o único. O juiz ordinário explica
que, após o caso de Bento José de Souza, o governador dirigiu à Câmara
uma carta em 27 de Fevereiro daquele mesmo ano ordenando que “por
ela [a Câmara] se pagasen 8320$000 r no prezente anno [1782] e 768$000
58 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
5
Os postos de Ordenanças de mais alta patente era de capitão-mor, sargento-mor e capitão. Seguido a
isso, vinha os oficiais inferiores, como os ajudante ou alferes. Assim, os pagamentos solicitados pelo
governador correspondiam um cargo de alta patente e outra mais inferior. Sobre isso, ver: COTTA,
Francis A. organização militar. In: ROMEIRO, Adriana. BOTELHO, Ângela Vianna. Dicionário histórico das
Minas Gerais. Belo Horizonte, 2004.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 59
Quadro 3 – Extracto q. fes a mesm Camara nos ditos sete annos que
vam 1775 ate 1781, segundo consta das contas dos Thezoureiros
se] as tais despezas com empenho da Camara p.a depois Seirem [se irem]
pagando [...]”. Por outro lado, alguns dos rendimentos da Câmara eram
oriundos dos “Com.cos adjçenses”. No entanto, não se poderia ter cer-
teza da quantia fornecida e que, frequentemente, não chegava “antes
dos fins dos annos [...]”. Por conseguinte, de tudo que foi exposto acerca
da situação econômica naquele ano de 1782 da Câmara, o juiz ordinário
informava que
Todas as Rezoens expendidas e q. [que] tas mais poderião ser proprias p.a
[para] se exporem a ele d.o [dito] G.or [Governador] afim de q. Suspendeçe
a Sua deliberação athê ser Rezolvida por V.Mag. logo [...] a Camara pela ex-
periençia adquerida da Ardençia delle d.o [dito] G.or. [Governador] q. mais
se derige por mero disputismo q. pela Moderação e clemencia tão filhas das
piedosos emtranhas de V. Mag. (Ibidem, f.261)
6
Na maioria das representações, seja de ouvidores ou juiz ordinário, é lugar-comum indicar a condição
do indivíduo recorrendo, em primeiro lugar, aos seus títulos e/ou ofícios e, em segundo lugar, ao fato
de se encontrarem “casados”. Aqui, para tanto, merece citar a historiografia goiana que trata do conceito
de “família” na Capitania de Goiás. Autores como Chaul (1998), identificaram nas suas pesquisas a
inexistência de família segundo os moldes da cristandade. Em outras palavras, o que se verificou nesse
tipo de historiografia foi argumentar que, na capitania e arraiais, os governadores e demais funcionários
se achavam envolvidos em concubinatos. No entanto, nos últimos estudos sobre família e mobilidade
social, já há uma problematização sobre o conceito de “família” levantado por esses autores. O primeiro
Alan Ricardo Duarte Pereira • 65
ponto dessa historiografia foi indicar que, no debate historiográfico, a maioria dos autores se baseava
nos relatos dos viajantes que passaram por Goiás. Calcados numa visão eurocêntrica, os viajantes
elaboraram uma visão preconceituosa e que, contrariamente ao mundo europeu e seus valores,
visualizaram na América portuguesa homens desregrados, régulos, não tementes a Deus, defloradores
de moças, etc. Por outro lado, o segundo elemento dessa historiografia foi mostrar, a partir do
cruzamento de dados sobre inventários e testamentos de pos morten, um novo conceito de “família”. A
ideia de família não é aquela somente baseada nos laços consanguíneos – uma visão, aliás,
demasiadamente contemporânea quando se analisa as sociedades do Antigo Regime. Pensa-se a família
como que ligada por laços sociais. Por conseguinte, constituir uma família nessa sociedade de Antigo
Regime é, antes de tudo, pertencer. Nesse sentido, como demonstrou Lemke (2013), um escravo poderia
ser considerado como parte da família de seu senhor. No mesmo sentido, Moraes (2012) ao estudar as
Irmandades e Confrarias trata a religiosidade como fator de enraizamento. Pode-se dizer, portanto, que
enraizar na capitania e ali construir lanços era, por assim dizer, tecer relações familiares. Sobre família
em Goiás ver: LEMKE, Maria. Trabalho, família e mobilidade social – notas do que os viajantes não
viram em Goiás (1770-1847). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Goiás, 2012. MORAES, Cristina
de Cássia Pereira. Do corpo místico de Cristo: irmandades e confrarias na capitania de Goiás (1736-
1808). Goiânia: Editora UFG, 2012. CHAUL, Nasr F. Contrabando, concubinato e ócio nas raízes de Goiás.
Fragmentos de cultura, V.08, n.4, Goiânia, 1998, p.1031-1048. MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Do
corpo místico de Cristo: irmandades e confrarias na capitania de Goiás (1736-1808). Goiânia: Editora
UFG, 2012.
66 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
constituía, por assim dizer, abrir mais espaços para que o governador
agisse. Na prática, não ter um juiz na Câmara significava a possibilidade
dos criados aprovarem despachos e portarias do governador.
Além disso, adentraram ao relato do juiz ordinário os episódios das
cobranças dos particulares por achar que, nas condições atuais da Capi-
tania de Goiás, era importante e “digno de expor a V. Mag. neste lugar a
Justi.a [Justiça] q. o dito G.or esta praticando nesta V.a [Vila] ” (Ibidem,
f.262). De modo geral, a consideração geral dessa matéria para o juiz or-
dinário foi de classificar as atitudes do governador como aquele que “a
huns não deixa cobrar dos seos devedores, e a outros obriga a q. [que]
paguem [para quem] aquilo mesmo q. as Leys de V. Mag. não mandão
pagar sem disputa entre os emteresados [...]”.
Assim, havia duas situações: de um lado, o governador não deixava
cobrar a “seus devedores” – certamente, a referência aqui são os criados
do governador – e, por outro, obrigava a pagar certas dívidas sem re-
metê-las à justiça. A gravidade do assunto ocupou espaço nas linhas
escritas pelo juiz ordinário justamente porque, na sua acepção, bloque-
ava-se a aplicação da justiça em Goiás. Não remeter à justiça era, desse
modo, uma prova da usurpação de jurisdição encabeçada pelo governa-
dor.
Não obstante, o juiz ordinário quis denunciar através destas ques-
tões que, em Goiás, o governador legislava sozinho e decidia assuntos
de cobranças. Tratavam-se, claramente, de usurpação de jurisdição. Ou
seja, eram casos que o governador, por si só, expressava sua opinião sem
consultar os funcionários que tinham, de fato, alçada nesse tipo de as-
sunto. Para tanto, situação parecida aconteceu com o alcaide-mor de
Vila Boa, Pedro António de Faria. O dito alcaide havia penhorado “hum
xifarote por seos emolumentos” para Luís Ribeiro de Faria. No entanto,
Alan Ricardo Duarte Pereira • 67
camaristas. Cada membro temia que, caso não aprovassem aquelas des-
pesas, poderiam ser vítimas da “Ardençia” e violências do governador.
Desse modo, ficou decidido que pagariam os soldos e, respectiva-
mente, as dívidas aos particulares. Verifica-se que, tratando das dívidas
aos particulares, o juiz ordinário acrescenta que muitas foram adquiri-
das no “tempo dos Anteçeçores do mesmo G.or [Governador]”. Por causa
disso, achava-se aquela matéria num completo “embaraço, e empoçibi-
lid.de [impossibilidade] da Câmara não proverão [todos] aqueles postos
[...]”. Em outras palavras, as dívidas acumuladas de governos passados
agigantavam de tal maneira que, no ano de 1782, era quase impossível à
Câmara dar conta de pagar tudo.
O “cálculo” elaborado pela Câmara dos rendimentos que houve en-
tre os sete anos – de 1775 até 1781 – seria, para tanto, o demonstrativo
ao governador das condições orçamentárias da Câmara. Com esse “cál-
culo”, o juiz ordinário e presidente da Câmara, António José de Artiaga,
pretendia mostrar ao “Ministro Corregedor huma demisão da Adminis-
tração das Rendas da mesma Câmara [...]” (Ibidem, f.263). Era uma forma
de isentar a Câmara no pagamento de soldos e dívidas e, assim, redire-
cioná-las para a Real Fazenda. Inclusive, o juiz ordinário cita que, após
a elaboração dos cálculos, foi escrito formalmente um requerimento, no
qual se pediu essa mudança, mas havendo “tambem nisto a fatalid.e [fa-
talidade] de se lhe demorar o requerim.to por alguns dias [...]”. Os
membros da Câmara tinham concordado com esse procedimento, con-
siderando-o “Líçito, como pareçia ser as suas rendas [...]”.
Com efeito, o juiz ordinário chegou a dizer que, de modo geral, “os
Governadores de V. Mag. [...] de lhe não deixarem ter acção propria [a
Câmara] a cada passo a imjurião por esses, e outros modos”. Nesse sen-
tido, é importante perceber que, no jogo das disputas por cargos e
70 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
7
Deve-se ter em conta que estamos mostrando tal assertiva como parte da visão do juiz ordinário. A
interferência do governador na Câmara foi uma reclamação recorrente ao longo da existência da
capitania. Desde sua fundação, em 1749 já era prática dos governadores tal interferência. Anteriormente
falamos da interferência do Barão de Mossâmedes na Câmara com o custeio das bandeiras. Além desse
governador, outros “Generais” buscaram mexer nas contas da Câmara ou da Fazenda Real. Tal situação
gerou a denúncia de muitos “queixozos” afirmando se tratar de um caso de usurpação de jurisdição.
8
Trata-se, sim, de uma generalização, mas que tem o objetivo de sistematizar ou identificar certas
tendências da governança ultramarina.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 71
9
Vale destacar que, no campo da historiografia, o fato de parte da legislação portuguesa não ter sido
aplicada efetivamente nos domínios ultramarinos, como em Goiás ou outras paragens da América
portuguesa, levou a entender que existia, por assim dizer, o caos completo nas relações sociais. Em
resumo, visualizaram nas “incoerências e fissuras” uma anomalia da (e na) sociedade. Um dos autores
que mais enfatizou isso – e que, posteriormente, influenciou toda uma geração de historiadores – foi
Caio Prado Junior no clássico Formação do Brasil Contemporâneo. Ali se defendeu a ideia que, na América
portuguesa, as leis régias não funcionavam ou, dito de outra forma, não condiziam com a realidade das
populações locais. Nessa perspectiva, os domínios portugueses estavam mergulhados no caos. Quando
um governador – ou juiz de fora – chegava como representante do rei encontrava, por isso mesmo, um
turbilhão de conflitos. Nas capitanias e vilas, os representantes régios encontravam indivíduos que não
estavam acostumados com leis ou que, na prática cotidiana, subvertiam as leis da Coroa portuguesa. No
entanto, nos últimos anos se tem pensado a aplicação das leis portuguesas nos domínios ultramarinos
numa outra perspectiva. O autor português Hespanha (1994; 1982; 2001a; 2001b;), por exemplo,
compreende a cultura jurídica portuguesa da Época Moderna como que marcada pelo paradigma
corporativista. Em Portugal e nos domínios ultramarinos, a sociedade se via como pertencente há um
só corpo. De maneira geral, o rei se constituía como cabeça e partilhava, por sua vez, de seu poder com
os outros membros (a Igreja, potentados locais, a Câmara, Ordenanças e Milícias, etc). Isso conferiu às
72 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
Não tem a Camara acção propria porq. [porque] o G.or [Governador] tomou a
Sua conta não sô Ordenar lhe as despezas q. [que] lhe pareçe, mas tambem
a destribuisão dos pagamentos das dividas da mesm Camara,preferindo as
q. [que] lhe parese ahumas [algumas] vezes por despa.p [despacho], e outras
vezes invoçe. Igualm.te não tem a Camara acção propria p.a [para] bem regu-
lar as suas obrigaçoens sobre as nomeasoens q. lhe estão emcarregadas,
porq.ao mesmo tempo, q. o G.or dirige Cartas para Mas se fazerem, manda
insinuasoens por bilhetes de fora, do Sacretario com os nomes dos Sugeitos
que ham [hão] de ser nomeados (Ibidem, f.263, grifo nosso).
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRAFIA
LEMKE, Maria. Trabalho, família e mobilidade social – notas do que os viajantes não
viram em Goiás (1770-1847). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Goiás, 2012.
4
A CARTA DO VIGÁRIO DE VILA BOA JOÃO ANTUNES
DE NORONHA 1
1
Publicado originalmente em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/10736/3/Tese%20-
%20Alan%20Ricardo%20Duarte%20Pereira%20-%202020.pdf.
76 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
2
A carta do vigário é, sem dúvida, recheada de termos e referências aos diversos grupos da capitania.
Aqui, todavia, não aprofundaremos nesse assunto. Cabe apenas observar as práticas clientelares de Luís
da Cunha Meneses.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 77
governador se mostrar que “sô ele deve ser obedecido” e provar, desse
modo, ter “absoluto poder em tudo”. Com efeito, as suas ações atesta-
vam que extrapolava as funções de governador ao ponto de imiscuir
pelas questões religiosas.
De tal maneira que pairava na capitania uma nuvem de temor.
Tudo em razão de “porque os despotismos deste [o governador] hê a ley
geral do receyo, e temor de todos”. Mais do que isso, na compreensão do
vigário, o acontecimento de 24 de Maio de 1782 mostrava decisivamente
o estilo governativo de Luís da Cunha Meneses que, ao invés de buscar
a paz e o bem público, evidenciava que “dâ bem a conhecer o modo, com
que teria o governado esse G.or e a pertubarção [...] não sô à Jurisdição
ecclesiastica, mas a todas as mais com gravíssimos prejuízos de muitos
oprimidos Vassalos de V. Mag.” (Ibidem, f.12).
O conflito não terminou por aí. O governador passou ordens aos
seus soldados para não deixar que ele, o vigário, entrasse na sua casa.
Assim, quando o vigário decidiu procurar o governador e esclarecer os
acontecimentos da procissão foi, por conseguinte, “inhibido de entrar
na Casa de hum Governador”. Mais do que o vexame público que fora
submetido, a ação do governador revelava outra faceta: a usurpação das
funções do vigário. Frente a isso, o vigário chamava a atenção na sua
carta que, na condição de “Magistrado ecclesiastico Territorial, e Dele-
gado, e Plenipotenciario em seus limites do R. do Bisco dentro em seu
Bispado”, somente ele poderia conduzir uma procissão 3.
A dita usurpação foi se escancarando cada vez mais no dia a dia da
Capitania de Goiás. O vigário cita numerosos casos para mostrar isso.
3
Ainda indagava que “Pelo que fica também patente, que se o d.o Governador chega a promulgar penas
tão desordenadas contra os próprios Magistrados ecclesiaticos, como me não estorvava todos os meus
actos de Jurisdição, como pratica todos os dias, e em todos os casos?” (Ibidem, f.14).
Alan Ricardo Duarte Pereira • 79
Um dos mais notórios foi o do padre José Simões do Mato Medeiros. Foi
acusado pelo Visitador Geral de cometer “erros, delictos” e, sobretudo,
de se mostrar de “reprehensivel conduta”. Segundo as recomendações
do visitador, o dito padre não poderia, a partir de então, exercer suas
funções e que deveria ser preso. Ao saber da decisão do visitador, o pa-
dre fugiu para Vila Boa e buscou abrigo com o governador que lhe deu
“salvo-conduto”. Além disso, o governador ordenou que ninguém o
prendesse na capitania. Assim, sub a tutela do governador, foi permitido
que o padre continuasse com suas atividades e atuava no Arraial de Tra-
íras como pároco e vigário geral.
O governador também interferia nos “bens dos Eclasiastico” sem a
devida legalidade. É o que aconteceu com o padre João de Sousa Oliveira
que lhe mandou tirar dois escravos e entregou, segundo o vigário, a “hua
mollher, que [...] dizia, que lhe devia o dito Padre [...]”; na mesma época,
o governador mandou demolir o templo da Senhora da Boa Morte da
Irmandade dos Pardos por puro “recreyo, e divertimento” e vendeu par-
tes do templo para “usos profanos”; em outra ocasião, o criado do
governador, Roberto Antonio de Lima, aprovou a licença para festejar
Santo António na casa de Félix Correa Pardo. Segundo o vigário, criou-
se um outeiro ao santo e se repetiu em frente ao altar “versos os mais
torpoes, lacivos, obscenos”; logo depois da festa do Espírito Santo, o cri-
ado do governador, o dito Roberto António de Lima, celebrou outras
ações misturando a celebração divina com a evocação dos “Bcanaes da
Antiguid.e” (Ibidem, f.15).
Os atos de Luís da Cunha Meneses traduziam, na acepção do vigá-
rio, um governo “sem religião, escandaloso publico pelas defloraçoens,
e concubinatos; e que sente mal da disciplina da Igreja”. No bojo de todos
os argumentos do vigário, há constantemente a comparação de um
80 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
governo com e sem religião. Desse modo, Luís da Cunha Meneses cris-
talizaria o exemplo de governo sem religião que, ao usurpar a jurisdição
eclesiástica e agir despoticamente, corria o risco de romper o elo mais
forte de todo o Império português: o sacerdócio. Para o vigário, o “Sa-
cerdocio e o Imperio” eram inseparáveis na regência dos povos no
ultramar e somente através da “União do Mixto Imperio” poderia um
governo ter sucessos.
De resto, a carta do vigário João Antunes de Noronha nos mostra a
relação do governador com membros da igreja. Talvez seja a única carta
tratando desse assunto. O evento de procissão era, sem dúvida, central
numa capitania. Era o momento de reunir a população. Compartilha-
vam, naquele momento, de interesses comuns amparando nos valores e
ideias cristãs. Como deixou claro em seu trabalho acerca das Irmanda-
des e Confrarias em Goiás, Moraes (2012) viu nas festas e procissões
práticas e valores que enraizavam os indivíduos. O elo mais forte dos
habitantes numa região ultramarina era, portanto, o elo religioso. Não
há como olhar para as sociabilidades tecidas nessas regiões sem se aten-
tar para o fenômeno religioso. O próprio vigário já expressava isso ao
dizer que o Império português era misto: igreja e rei.
REFERÊNCIAS
1
Publicado originalmente em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/10736/3/Tese%20-
%20Alan%20Ricardo%20Duarte%20Pereira%20-%202020.pdf.
82 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
2
Merecimento não confunde-se aqui com “mérito”, típico das sociedades contemporâneas. Nas
sociedades de Antigo Regime, o merecimento decorria, em primeiro lugar, dos serviços prestados ao
monarca. Na Dinastia de Bragança, a monarquia monopolizou as hierarquias sociais. As rendas e os
patrimônios da nobreza e a maioria de vassalos provinha, direta e exclusivamente, dos recursos da Coroa
portuguesa. Portanto, servir ao rei português no século XVIII era uma das principais vias de nobilitação.
Nesse sentido, poderia ser nos domínios ultramarinos nos cargos como governador, juiz de fora,
desembargador, diplomata, bispo, etc. Ao final, o monarca concedia privilégios (tenças, hábitos de
ordens militares, títulos de nobres, cargos de destaque, etc). O processo de conceder isso aos vassalos
era chamado de “liberalidade régia” ou “graça”. Em segundo lugar, o merecimento também não podia
estar vinculado aos serviços prestados pelos vassalos. O próprio monarca como detentor e regulador
das hierarquias sociais, tinha a liberdade de dar mercês aos vassalos sem que, necessariamente, fossem
atestados serviços à monarquia. A isso recaia a “graça” do monarca que, na esteira dos valores cristãos,
Alan Ricardo Duarte Pereira • 83
Com efeito, foi diante desses valores que Luís Henrique da Silva
orientou a escrita da sua narrativa. Esperava, assim, que sua represen-
tação subisse ao trono da rainha e lhe fosse restituídos os seus direitos.
Além disso, nota-se que, diferentemente de outras cartas e representa-
ções escritas no governo de Luís da Cunha Meneses, a condição social
de Luís Henrique da Silva se distanciava dos demais suplicantes. Não se
tratava de juiz ordinário que conhecia, de perto, os meandros da Câmara
e as legislações régias, ou um ouvidor-geral e presidente da Câmara,
tampouco alguém com destaque na área religiosa, como o vigário João
Antunes de Noronha. Ao contrário, Luís Henrique da Silva tinha ingres-
sado no cargo de escrivão recentemente e, antes disso, não chegou a
nenhum ofício no contexto da Capitania de Goiás 3.
Como dito anteriormente, o acesso aos “cargos da República” pas-
sava, necessariamente, pelas relações clientelares. O próprio cargo de
governador e capitão-geral não era apenas fruto das experiências mili-
tares que esses nobres adquiriram em Portugal ou em praças africanas.
Mas contava, especialmente, com as relações tecidas pelas “casas” e seu
grupo nobiliárquico 4. Igualmente, na Capitania de Goiás também se
traduzia-se por um privilégio não merecido, não conquistado por conta própria, mas que o rei se
dispunha a premiar seus vassalos espontaneamente. Sobre isso, ver: OLIVAL, Fernanda. As Ordens
Militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789).Lisboa, Estar, 2001.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2005. STUMPF, Roberta.
Cavaleiros do Ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações de hábitos das ordens militares
nas minas setecentista. Tese de Doutorado. Universidade de Brasília, 2009. PEREIRA, Alan Ricardo Duarte.
Entre o nome e o sangue: a família Cunha Meneses no Antigo Regime português. Dissertação de
mestrado – Programa de Pós-Graduação em História, Goiânia, 2016.
3
O mesmo pode ser dito para sua trajetória após a escrita da carta em 1782. Não ocupou nenhum cargo
ou, talvez, tenha mudado para outra capitania.
4
O historiador português, Nuno Gonçalo Monteiro, tem mostrado nas suas investigações que havia
pelos menos três fatores que contribuem amplamente na escolha dos governadores: ter experiência
militar, uma estrutura sólida de rede clientelar e, por fim, ostentar títulos de nobreza. O mesmo autor
também chama a atenção que, a partir do século XVII, a nobreza portuguesa concentrou sua atividade
no cargo de governador ou vice-rei. Quase todos os nobres de Portugal exerciam ou chegaram a exercer
algum cargo no ultramar, podendo, nesse caso, variar de governador ou juiz de fora, bispo, diplomatas,
entre outros. Sobre isso, ver: MONTEIRO, Nuno Gonçalo. CUNHA, Mafalda Soares da. Governadores e
84 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
capitães-mores do império atlântico português nos séculos XVII e XVIII. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo.
CARDIM, Pedro. CUNHA, Mafalda Soares da (orgs). Optima Pars: elites ibero-americanas do Antigo
Regime. Lisboa: ICS, 2005, p.191-252.
5
Embora não se tenha dados precisos das heranças na Capitania de Goiás, pode-se dizer que, numa
perspectiva comparativa com outras capitanias da América portuguesa, esse valor da herança de Manoel
Alan Ricardo Duarte Pereira • 85
da Silva poderia caracterizá-lo como detentor de um cabedal mediano. Não se sabe se tinha ligações
com mineração ou a pecuária, mas a julgar pelo valor de sua herança, os proventos eram quase todos
oriundos dos serviços prestados como tesoureiro em Vila Boa. Num estudo de fôlego, Homens ricos,
homens bons, Almeida (2001), rastreou e analisou o perfil socioeconômico dos moradores da capitania
de Minas Gerais. Seu estudo demonstrou que, naquele contexto, um indivíduo rico ostentava o
montante de mais ou menos 22.053, 445 libras. Foi o caso de Antônio Ramos dos Reis estudado pela
autora. Pelo seu testamento, era considerado um dos homens mais abastados de Minas Gerais, detendo
na sua fazenda mais de 100 escravos. De igual forma, possuía moradas em diversos arraiais daquela
capitania e gado vacum nas fazendas. Sobre isso, ver: ALMEIDA, Carla M. C. de. Homens ricos, homens
bons: produção e hierarquização social em Minas colonial (1750-1822). Tese de doutorado –
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2001.
6
A nosso ver, estamos diante de um indivíduo nobre. Vale lembrar que, diferentemente da nobreza
reinol, os indivíduos que se enobrecem nos domínios ultramarinos também detinham, salvaguardadas
as devidas proporções, de prerrogativas nobiliárquicas. Não se tratava de uma nobreza de sangue
86 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
Attesto que Luis Henrique da Silva sérvio na Real Caza da Fundição desta
Vila no anno de 1778 o Officio de Escrivão da Receita e Despeza da Meza
grande do despacho, mostrando em todo o tempo, q. sérvio, grande inteli-
gência, e agilidade, requisitos m.to [muito] necesarios, para servir o
referido emprega tanto em tirar os cálculos p.a [para] se separar o Real
Quinto, como na [...] e de tudo o maiy inherente a natureza do mesmo Offi-
cio, no qual tambem numca commetteo erro, delicto nem omissão, e que
parece ter sido [...] e emtão breve tempo, [...] pelo fim de se acommoda [...]
mais bem protegidos; fazendo se o ditto Luis Henrique da Silva pela [...]
grande capacid.e, e inteligência [...] de servir qualquer emprego, em q. V.
Magestade [...] ocupado no seu Real Seriço, o que [...] (Ibidem, f.30).
7
O primeiro regimento foi criado em 1736 quando vigorou naquele momento a captação. Aos poucos
foram acrescentadas mudanças nesse regimento, como, por exemplo, em 1750, a vinculação das Casas
de Intendências com as Casas de Fundição. Ou seja, funcionavam no mesmo lugar. O objetivo dessa
instituição era, entre outras coisas, a fiscalização e arrecadação. Sobre isso ver: SALGADO, Graça
(coord.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
PORTUGAL. Alvará de 4 de março de 1751. Regimento das Intendências e Casas de Fundição. Coleção
da legislação portuguesa desde a última compilação das ordenações redigida pelo desembargador
Antônio Delgado da Silva. Legislação de 1750-1762, Lisboa, p. 40-51, 1830.
88 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
Suplicante Luis Henrique da Silva pelo meu [livro de] rol de culpados
[...]” (Ibidem, f.37). Portanto, a partir desse documento arrolado, o supli-
cante evidenciava pelas cartas – aliás, de homens de grande
envergadura na capitania – outra exigência importante para se ocupar
um cargo na República: não ter cometido nenhum crime.
Nesse contexto, outro assunto de destaque na carta do suplicante
se refere aos criados do governador. Como se viu, o suplicante na sua
narrativa buscou explicitar desde o começo os requisitos e qualidades
para se ocupar o cargo de escrivão. Destacou-se, assim, a influência de
seu pai, a herança e todo patrimônio acumulado, a atividade como es-
crivão por 6 meses, o testemunho de Bernardo Miguel de Souza
Magalhães confirmando a “inteligência, e agilidade” mostradas pelo su-
plicante e, por último, o fato de não ser achado nos livros de culpados.
De resto, ainda faltava ao suplicante denunciar a relação do gover-
nador com seus criados e, consequentemente, a inserção desse grupo
nos cargos da República. O suplicante cita o aparecimento dos criados
precisamente na chegada do governador Luís da Cunha Meneses à capi-
tania. Vale destacar, nesse sentido, que os criados aludidos pelo
suplicante contemplam, de um lado, aqueles que vieram de Portugal
com o governador. Mas também sua carta apontou de outro lado e, em
menor grau, os criados que o governador conquistou na capitania 8, in-
gressandos, por conseguinte, à rede clientelar do “General”.
8
Nas outras representações citadas anteriormente, como do ouvidor Joaquim Manuel de Campos, o
vigário Antunes de Noronha ou do juiz António José de Artiaga, há a discussão sobre os criados do
governador. Mas ali o destaque são os criados que residiam na capitania e não aqueles que
acompanhavam o governador.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 89
9
Nota-se que, por vezes, o governador incluiu um ou dois criados na Câmara. Era um número pequeno
se comparado com o restante dos oficiais camaristas. Com o passar dos meses, o número de criados do
governador vai aumentando.
90 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
bens – como, por exemplo, as dívidas que o pai tinha contraído e que,
naquele ano de 1778, foram cobradas pelos credores. No entanto, é de
supor que o governador tenha influenciado decisivamente naquele as-
sunto.
As consequências do sequestro e arrematação de seus bens foram
aparecendo. Segundo o suplicante, ficou “a Caza do dito falecido The-
zoureiro Pay do Sup. carregada de huma numeroza família da viúva sua
mulher, e tres filhas solteiras, aquém o Sup. como filho deve amparar
[...]”. Em face disso, o suplicante buscou arrematar boa parte dos bens
de seu pai. Desse modo, era uma forma de “amparar” sua casa, na qual
permitiria ir “alimentando” e pagando aos credores.
O ano de 1783 marcou a saída de Luís da Cunha Meneses da Capita-
nia de Goiás. Num documento enviado a rainha em 1782, o governador
se queixava que, durante sua administração, contraiu doenças e fez
questão de solicitar, por sua vez, que a rainha nomeasse um sucessor
(AHU_ACL_CU_008, Cx. 33, D. 2047). Naquele mesmo ano, o irmão,
Tristão da Cunha Meneses, capitão de Mar e Guerra das naus da Armada
Real de Portugal, foi nomeado para assumir a capitania
(AHU_ACL_CU_008, Cx. 33, D. 2063). Pelo tom do ofício de Luís da Cu-
nha Meneses fez crer que voltaria a Portugal. Segredava à rainha a
penosa tarefa de governar uma capitania em paragens tão distantes e
num território “infestado de indígenas e gentes insubmissas”. No en-
tanto, contrariando suas expectativas, a rainha tinha guardado uma
nova tarefa para aquele governador: a capitania de Minas Gerais.
De tal maneira que os serviços de Luís da Cunha Meneses ainda
seriam usados pela rainha no ultramar. Foi reservado para ele uma das
capitanias mais importantes naquele contexto das minas. A experiência
acumulada na Capitania de Goiás concorreu para que a rainha tomasse
94 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
10
Ao todo foram três irmãos, Manuel Inácio da Cunha e Meneses (1742-1791), Luís da Cunha Meneses
(1742 1819), Francisco da Cunha e Meneses (1747-1812) e Tristão da Cunha Meneses (?-?). Todos se
lançaram no serviço no ultramar, seja como governador ou vice-rei.
11
AHU_ACL_CU_008, Cx. 33, D. 2068. Sobre o aldeamento organizado por Luís da Cunha Meneses, ver:
DIAS, Thiago Cancelier. O língua e as línguas: aldeamentos e mestiçagens entre manejos de mundo
indígenas em Goiás (1721-1832). Tese de doutorado – Universidade Federal de Goiás, Programa de Pós-
Graduação em História. Goiânia, 2017.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 95
à rainha seus feitos na capitania, era remetido, por seu turno, críticas e
denúncias à sua administração. Estas, não passaram incólumes e, com o
passar do tempo, envergaram a balança nas decisões da rainha. Isso se
atesta, por exemplo, com as cartas patentes que foram negadas pelo
Erário Régio e o Conselho Ultramarino, além dos gastos excessivos do
governador com os regimentos.
Antes de sair da capitania em 1783, o governador solicitava à rainha
a confirmação de todas as cartas patentes passadas como uma forma de
reconhecer o seu bom serviço na Capitania de Goiás
(AHU_ACL_CU_008, Cx. 34, D. 2087). Sem dúvida, esse tipo de compor-
tamento da rainha se tornou possível porque, aqui ou ali, vassalos
escreveram suas representações apontando a situação da Capitania de
Goiás. De uma forma ou de outra, a rainha se utilizou dessas críticas
para compreender o que ocorria na capitania e, a partir disso, traçar
diretrizes nos domínios ultramarinos. Por esse ângulo, há de entender
a escolha de Tristão da Cunha Meneses. Quer dizer, a pacificação dos
índios e a reorganização do aparelho militar se traduziram, naquele mo-
mento, como dois pontos importantes na governança da capitania
(APARÍCIO, 2015). A família Cunha Meneses, sobretudo os filhos de José
Félix da Cunha Meneses e D. Constança Xavier de Meneses, destacou-se
no século XVIII com os serviços no ultramar. Além disso, a experiência
militar em Portugal concorreu para que, em contextos de conquistas,
fossem escolhidos pela rainha. O próprio Tristão da Cunha Meneses
ocupou o cargo de mestre de campo e capitão das naus.
96 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Carla M. C. de. Homens ricos, homens bons: produção e hierarquização social
em Minas colonial (1750-1822). Tese de doutorado – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2001.
PEREIRA, Alan Ricardo Duarte. Entre o nome e o sangue: a família Cunha Meneses no
Antigo Regime português. Dissertação de mestrado – Programa de Pós-Graduação
em História, Goiânia, 2016.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
1
Publicado originalmente em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/10736/3/Tese%20-
%20Alan%20Ricardo%20Duarte%20Pereira%20-%202020.pdf.
2
Há poucos elementos novos na carta dos camaristas. A nosso ver, trata-se mais de uma carta
preocupada em resumir os desmandos do governador do que apresentar novos “factos”. Mesmo assim,
a utilizaremos para finalizar a discussão acerca de Luís da Cunha Menezes e a cultura escrita na Capitania
de Goiás.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 99
Nas materias Civies, por simples despacho seus anula Escripturas publicas,
revoga Sentenças de Juizes, súbdita, processos, concede moratorias, e
manda entregar os bens de huns a outros, sem audiencia de Partes, prova,
ou averiguação: Nos crimes, empata, que retirem as devassas, e se retirão
as chama a sy, as consome, ou conversa em seu poder, como ista, ate o livro
da querelas, ficando os delictos impunidos, solta os prezos da Justiça, só
para que não pareça haver mais quem possa Cominar penas senão elle, pelos
seus Castigos voluntarios, e dispoticos, e que não sendo os homicídios, rou-
bos, e assacinos de lutos para o mesmo, são somente Crimes de primeira
Cabessa, o que se encontra à sua vontade, Capricho, e elevação, tendo por
100 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
isto cheyas as Cadeyas, que não podem ter hoje outros prezos sem ordem do
dito Governador (Ibidem, f.106).
3
Nesse contexto, pode-se citar a obra clássica, Fiscais e Meirinhos. O estudo tem o mérito de ser
considerado uma das obras pioneiras acerca da administração portuguesa. Foram levantados os cargos
criados no contexto de todo o Império português, desde governador ao procurador de uma capitania.
Se, de um lado, a obra ganhou destaque pela quantidade de documentos e regimentos arrolados, por
outro lado, se equivocou ao realizar a separação demasiadamente hierárquica dos órgãos da Coroa
portuguesa. Acreditamos que, naquele contexto, havia certa indistinção das funções e cargos que
somente se consolidou no século XIX.
102 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
4
Em tese, a alçada do governador compreendia duas áreas: militar e civil. Conforme as Instruções
passadas pela rainha, o título de “capitão-general” ou “capitão-mor” designava a jurisdição do
governador no comando das atividades militares de conquista e defesa do território. Ademais, com a
conquista de terras em regiões auríferas, como Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais, o título de “capitão-
general” foi importante no envio de bandeiras para pacificar os indígenas e, ao mesmo tempo, na
reestruturação do aparelho militar. Por outro lado, o título de “governador” conferia o exercício de
funções civis. Desse modo, podia englobar o exercício da justiça, decisões ligadas à produção
econômica da região. Sobre isso: GOMES, Diego Veloso. Dos corpos militares no território do ouro: a
composição da força militar nas minas e Capitania de Goiás (1736-1770). Dissertação de Mestrado.
Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2013. RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial. São
Paulo: Alameda, 2009.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 103
5
Ocupando um cargo militar poderia, por exemplo, andar armado, receber soldo e uniforme.
6
Sobre as estratégias usadas pelos oficiais de Ordenanças e Milícias na América portuguesa, ver: COSTA,
Ana Paulo Pereira. Corpo de ordenanças e chefias militares em Minas colonial: Vila Rica (1735-1777).
Rio de Janeiro: FGV, 2014.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 111
depreciação dos camaristas com boa parte dos oficiais. O argumento dos
camaristas apontava o governador como o representante da usurpação
de jurisdição e, portanto, responsável pelos descaminhos na capitania.
No entanto, o mesmo argumento trazia, como pano de fundo, a acusação
que os criados endossaram e permitiam tal situação porque, antes de
qualquer coisa, lhes era natural esse tipo de situação. Na compreensão
dos camaristas, viviam sem normas e leis.
Para tanto, é o que se vê quando os camaristas diziam que a capi-
tania era infestada de “huns feiticeiros, ou embusteiros, os mais delles
forros, ou mandou prender, e fazer lhes perguntas pelo Carcereiro, e
por Soldados Pedestes, que são Mulatos, e Mestiços descalcos [...]” (Ibi-
dem, f.110). Os camaristas referiam-se aos soldados evocando, por
conseguinte, sua condição social. É curioso perceber que, na carta dos
camaristas, a citação dos feiticeiros e embusteiros tenha sido acompa-
nhada, respectivamente, pela figura dos oficiais. Parece que aos olhos
dos camaristas esses indivíduos pertenciam, por assim dizer, ao mesmo
grupo de pessoas ou que, na prática, não havia diferenciação.
Após as ordens do governador, os mesmos oficiais que prenderam
aos feiticeiros e embusteiros tiveram que soltá-los no pelourinho. Além
disso, os camaristas explicavam que “Os Auxiliares, que são todos os ho-
mens Brancos, Pardos, Pretos da Terra, nenhum pode ser Citado por
dividas de seus Contractos, e Officios [...]; nem poder ser notificados
para jurar em Cauzas, Civeis, ou Crimes [...]”. Como vê-se, o cargo e a
condição social do oficial – pardo, branco, pretos da terra – era uma
forma dos camaristas classificarem socialmente esse grupo de pessoas
que engrossava na sua maioria, os criados do governador.
A proteção conferida pelo governador fazia com que os oficiais não
fossem, segundo os camaristas, julgados em processos. As dívidas,
112 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
7
Para ter uma ideia mais conclusiva acerca disso o interessante seria rastrear a trajetória e os inventários
dos oficiais de Ordenanças e Milícias na Capitania de Goiás. Identificar as atividades que praticavam
antes de ingressarem no oficialato e, por outro lado, analisar a hipótese que, uma vez ocupando cargos
militares, tinham a possibilidade de ascender socialmente no universo da capitania.
8
Nesse sentido, se podem citar algumas obras na historiografia que se debruçaram nessa questão. São
estudos que privilegiaram a trajetória dos oficiais, os cargos acumulados, a fortuna que construíram na
capitania. Ver: FIORAVANTE, Fernanda. As contas da Câmara de São João Del Rei, 1719-1750. Diálogos,
DHI/PPH/UEM, v.13, n.3, p.643-673, 2009. COSTA, Ana Paula Pereira. Corpos de ordenanças e chefias
militares em Minas colonial. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. GOMES, José Eudes. As milícias d’El
Rey: tropas militares no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: FGV, 2010. MELLO, Christiane F. Pagano de.
Os corpos de auxiliares e de ordenanças na segunda metade do século XVIII: as capitanias do Rio
de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e a manutenção do Império português no centro-sul da América.
Tese de doutorado. Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2002.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 115
9
Adiante se verá que, no caso da Câmara, o mais importante não era a ocupação do cargo em si. O
benefício trazido para os camaristas residia, sobretudo, nos emolumentos e propinas que se cobravam.
10
Há uma miríade de fatores que poderiam influenciar, aqui ou ali, a condição social de um indivíduo.
Como foi dito anteriormente, o cabedal era um fator importante na definição da condição social assim
como também ocupar um cargo na administração portuguesa. No entanto, outros fatores concorriam
para definir socialmente a posição de um indivíduo nos quadros da América portuguesa. A historiografia
brasileira, por exemplo, nos últimos anos tem se dedicado a estudar os casos de mestiçagens e, com
isso, analisar os vetores e estratégias usados na atribuição social dos indivíduos mestiços. Sobre isso:
SOARES, Mariza de C. Devotos da cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro,
século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. PAIVA, Eduardo F. Escravidão e universo
cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. LEMKE, Maria.
Trabalho, família e mobilidade social – notas do que os viajantes não viram em Goiás (1770-1847).
Tese de Doutorado. Universidade Federal de Goiás, 2012. PAULA, Jason Hugo de. Entre picadas,
estradas e trieiros: os caminhos que levam à Freguesia de Santa Luzia. Negociantes, escravidão, família
e mestiçagens na Capitania dos Goyazes. Tese de doutorado. Universidade Federal de Goiás, 2014.
FERREIRA, Roberto Guedes. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto
Feliz, São Paulo, c.1798 – c.1850). Rio de Janeiro: Mauad, 2008.
11
“Esquecidos” porque em outro momento da trajetória desses indivíduos poderia aparecer os
“interditos da cor”. Por isso era fundamental servir ao rei português para que, com isso, se destacasse no
mundo das classificações sociais do Antigo Regime.
116 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Carla M. C. de. Homens ricos, homens bons: produção e hierarquização social
em Minas colonial (1750-1822). Tese de doutorado – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2001.
12
“De maneira geral, resumiam seus desejos nas últimas linhas da carta dizendo que” Não Suplicamos
mais, que o mandar V. Mag, que se Observem as Leys, pois que da transgressão dellas pelas da vontade
Capricho, Soberba do Gov.or nasce toda a dezordem, e que não se injuriem as Corporaçoens, e nem se
perturbem as Jurisdiçoens que V. Mag. as criou destinctas, e separadas. Que o Gov.or não de Moratorias,
e Privilegios, nem decida sobre os bens, e crimes a seu arbítrio, senão pelo estabelecido nas Leys.
Dandonos V. Mag. Regimento, e declarando as faculdades do Governador, determinando-nos as
Providentes rezoluçoens para paz, socego destes Povos. E que as mesmas rezoluçoens sejão dirigidas
de modo, que nos cheguem a noticia, e possão registar, não fiquem suprimidas pelo Governador, pois
não consta, que elle tinha executado ordem alguá de V. Mag, ou dos seus Tribunais. E ainda que corre a
noticia de que V. Mag he servida mandar nos novo Governador que muito que muito agradecemos a V.
Mag. ficamos contuto m.to mais nececitados das rezoluçoens de V. Mag [...] e assim Suplicamos a V.
Mag. como Raynha, e May dos meus Vassalos, algua Providencia as suas appreçoens, tanto pelo que se
reprezentou a V. Mag. o anno passado, como pelo mais que tem acrecido principalmente dipois, que o
Gov.or suspeita, que se tem procurado o recurso na Real Prezença de V. Mag., não inspirando nos seus
procedimentos senão vinganças, fuamos [?] por [...] tremendo de algum desatino do Governador, de
que tambem pedimos a V. Mag. todo o remedio de Segurança, pelas rezoluçoens, que forem de Real
agrado de V. Mag” (Ibidem).
122 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
LEMKE, Maria. Trabalho, família e mobilidade social – notas do que os viajantes não
viram em Goiás (1770-1847). Tese de Doutorado. Universidade Federal de Goiás, 2012.
PEREIRA, Alan Ricardo Duarte. Entre o nome e o sangue: a família Cunha Meneses no
Antigo Regime português. Dissertação de mestrado – Programa de Pós-Graduação
em História, Goiânia, 2016.
PAULA, Jason Hugo de. Entre picadas, estradas e trieiros: os caminhos que levam à
Freguesia de Santa Luzia. Negociantes, escravidão, família e mestiçagens na
Capitania dos Goyazes. Tese de doutorado. Universidade Federal de Goiás, 2014.
1
Publicado originalmente em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/
view/27885.
2
Essa conferência foi publicada e traduzida no Brasil sob a coordenação do historiador Marlon Salomon.
Ver: CHARTIER, Roger. A verdade entre a ficção e a história. In: SALOMON, Marlon (org). História, verdade
e tempo. Chapecó/SC: Argos, 2011, p.347-370.
3
Ademais, essa expressão surge, afinal, no estudo que Michel Certeau realizou com base no livro do
francês Foucault, Vigiar e Punir, e definiu-o, em termos gerais, como “à beira da falésia”. Retomando esta
expressão, Chartier usa para problematizar, de maneira elementar, o debate da especificidade do
conhecimento histórico entre incertezas e inquietudes. Ver: CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história
entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. Universitária/UFRGS, 2002.
124 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
4
Para Chartier (2011), essa consciência dentro do campo historiográfico ligada a escrita – e, portanto, a
textualidade discursiva – foi debatida, no contexto francês, por três historiadores: Michel de Certeau no
artigo sobre a “operação historiográfica”. Também o filósofo Paul Ricoeur na obra “Tempo e Narrativa”
e, por último, Jacques Rancière no livro “As palavras da história”. Acrescenta que, no bojo dessas
discussões, o tema mais evocado era, com frequência, a narrativa. O artigo de Lawarence Stone iniciou
o debate sobre o retorno da narrativa no campo da história. Porém, essa volta da narrativa, segundo
Chartier (2011) era, na verdade, uma falsa questão. O retorno da narrativa nunca aconteceu, pois, no
fundo e inconscientemente, a narrativa não tinha desaparecido do discurso histórico. A postura mais
enfática e esclarecedora nessa discussão foi, então, de Ricoeur. Esse filósofo francês demonstrou que
“(...) a ruptura com a história factual não implicava necessariamente a ruptura com as figuras da
elaboração da narrativa. A história, qualquer que seja ela, mesmo a mais quantitativa, mesmo a mais
estrutural, mesmo a mais conceitual, permanece sempre dependente das fórmulas que governam a
produção de narrativas, seja de história, seja de ficção. A demonstração, fascinante, em Tempo e
Narrativa retoma os três pontos que mencionei. De um lado, as entidades abstratas dos historiadores
são, de fato, construídas como quase-personagens, dotados implicitamente de propriedades que são as
dos indivíduos que compõem as coletividades que estas categorias designam. (CHARTIER, 2011, p.356)”.
5
Nesse sentido, a obra de HaydenWhite (2001) é fundamental para contextualizar a história dentro das
classes das narrativas, isto é, a metáfora, metonímia, sinédoque e a ironia. Ver: WHITE, Hayden. Trópicos
do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 125
6
Em contrapartida, com o alargamento do campo histórico efetivado com o grupo de historiadores
franceses ligados a Escola dos Annales – ou, simplesmente, Anais de História Econômica e Social – o
conceito de história foi reformulado e, em razão disso, o documento não era o portador de verdades
irrefutáveis. Ao contrário, a importância de um documento dependia, em primeiro lugar, do historiador
que o problematizava (tratava, em resumo, da história-problema em contraposição à história-narrativa).
Mais do que conferir a veracidade de um documento, o historiador buscaria, portanto, questões e as
levaria aos documentos. Resumidamente, o documento não era – como acreditava os metódicos do
século XIX – somente uma folha enegrecida de informações do passado, mas, antes e principalmente,
tornava-se documento na medida em que o historiador pudesse, com efeito, lançar perguntas.
126 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
7
Nesse sentido, durante o século XIX e XX, a crônica é, por excelência, o tipo de gênero literário mais
utilizado pelos autores ao considerarem, então, o literário como substrato de inquirição pelo historiador.
Essa preferência pela crônica é justificada, em geral, pelo fato de atestar e confirmar, mais facilmente, a
realidade de uma época.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 127
8
É importante destacar, conforme alerta de Naxara e Camilotti (2009), a forma que a literatura foi
utilizada no Brasil para refletir, sobretudo, a formação de uma consciência nacional.
128 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
9
As Cartas Chilenas têm uma longa história de organização e edição. Verifica-se que “As edições do
panfleto foram baseadas em manuscritos apógrafos dos quais quatro estão em poder do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro –mas somente um deles possuí as treze “cartas” hoje conhecidas. Os
outros três manuscritos relevam diferenças no número e na sequência das missivas satíricas, sugerindo
a possibilidade de uma versão original com sete “cartas” , segundo o filólogo Rodrigues Lapa. Um quinto
manuscrito foi encontrado na Biblioteca Pública de Belém por Vital Pacífico Passos, porém seu conteúdo
é idêntico ao do códice 2.076 do IHGB, composto das setes primeiras “cartas”, sendo que a sétima é a
oitava das edições mais recentes. Além disso, erros de grafia e variantes e variantes de versos, previsíveis
em se tratando de manuscritos, tornam os quatros apógrafos do Instituto diferentes entre si. O
manuscrito mais completo e confiável, ainda segundo Lapa, é justamente o que parece ter sido
produzido já nos primeiros anos do século XIX, contendo “um texto melhorado estilisticamente, embora
não seja talvez o texto que Gonzaga chegou a reformar. (FURTADO, 1997, p.40)”.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 129
10
Dependendo da versão, as Cartas Chilenas são antecedidas com a “Epístola a Critilo” – atribuído,
segundo os estudos coevos, a Cláudio Manuel da Costa – “Dedicatória aos grandes de Portugal” e,
igualmente, o “Prólogo”.
130 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
Não esperes, amigo, não esperes/Por mais galantes casos que te conte, /
Mostrar no teu semblante um ar de riso/ Os grandes desconcertos, que
Por exemplo: “Não cuides que te conte (p. 231)”; “Tu já tens, Doroteu, ouvido histórias (p. 233)”; “por
11
mais galante casos que te conte” (p.233)”; “Ah! Dize, meu amigo, se podia (p.256)”; “Responde agora tu,
por que motivo” (p.263); “Agora, Fanfarrão, agora falo/ contigo e só contigo (p.266)”.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 131
excutam /Os homens que governam, só motivam /Na pessoa composta, hor-
ror e tédio /Em conseqüência, as Cartas Chilenas. (GONZAGA, 2006, p.55)
As Cartas não apenas sugerem que ‘pintam’ os fatos acontecidos – eles efe-
tivamente o fazem e as cenas observadas podem ser consideradas segundo
os diversos tipos de imagens pictóricas do tempo. Existem, portanto, re-
trato, imagens, paisagens interiores, naturezas mortas, paisagens, cenas de
costumes, grandes painéis, quadros ordenados que constituem uma histó-
ria, quadros dentro de quadros, por vezes até retrospectivos , partes que se
refletem para constituírem cenas, algumas fragmentárias, escuras (...). Para
Critilo é essencial a fidelidade do retrato, haja visto a importância que atri-
bui à aparência para a revelação dos caracteres humanos. (POLITO, 1990,
p.200).
12
Os exemplos mais triviais são, em resumo, essas assertivas: “se este chefe/ não fez ainda mais do que
eu refiro (p.195)”; “Só sei que o que te escrevo são verdades” (p.205”; “Duvidas que isto seja ou não
verdade? / Então que hás de fazer, quando me ouvirdes/ contar desordens, que inda são mais calvas?
(p.315)”; “não hás-de / duvidar do que leres, bem que sejam/ desordens que pareçam impossíveis
(p.284)”.
132 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
13
Nessa vertente de interpretação pode-se citar Manuel Rodrigues Lapa em “As Cartas Chilenas, um
problema histórico e filológico” e, respectivamente, “Obras Completas de Tomás António Gonzaga”.
Alan Ricardo Duarte Pereira • 133
não mereçam a sua proteção pela eloqüência, com que estão escritas, sem-
pre a merecem pela sã doutrina, que respiram, e pelo louvável fim, com que
talvez as escreveu o seu Autor Critilo. (GONZAGA, 2006, p.25, grifo nosso).
Pensavas, Doroteu, que um peito nobre/ Que teve Mestres, que habitou na
Corte/Havia praticar ação tão feita/ Na casa respeitável de um Fidalgo/ Dis-
tinto pelo cargo, que exercia/ E mais ainda pelo sangue herdado? / Pois
ainda, caro amigo, não sabias/ Quando pode a tolice, a vã soberba/ Parece,
Doroteu, que algumas vezes/ A sábia natureza se descuida/ Devera, doce
amigo, sim devera/ Regular os natais conforme os gênios/ Quem tivesse as
virtudes de Fidalgo? Nascesse de Fidalgo, e quem tivesse/ Os vícios de vilão,
nascesse embora/ Se devesse nascer, de algum lacaio/ Como as pombas, que
geram fracas pombas/ Como os Tigre, que geram Tigres bravos/ Ah! Se isto,
Doroteu, assim sucede/ Estava a nosso Chefe [Luís da Cunha Meneses] ao
próprio/ Para nascer Sultão do Turco Imério. (GONZAGA, 2006, p. 43).
Alan Ricardo Duarte Pereira • 135
14
Além dessa obra de Lapa destacam-se, no plano historiográfico, as seguintes obras: FERREIRA, Delson
Gonçalves. Cartas Chilenas. Retrato de uma Época. Belo Horizonte: Lemi, 1982. MACHADO, Lourival
Gomes. Política e Administração sob os Últimos Vice-Reis. In: História Geral da Civilização Brasileira. A
Época Colonial. Administração, economia, sociedade (dir. Sérgio Buarque de Holanda). São Paulo: Difel,
1985. MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa. A Inconfidência Mineira. Brasil e Portugal (1750-1808). Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2000. RESENDE, Maria Efigénia Lage de. Inconfidência Mineira. São Paulo: Global
Editora, 1988.
138 • Educação, história e historiografia: o século XVIII em perspectiva
Por isso Doroteu, um chefe indigno é muito e muito mau, porque ele pode a
virtude estragar de um vasto império. Indigno, indigno chefe! Tu não buscas
o público interesse. Tu só queres mostrar ao sábio augusto um falso zelo,
poupando, ao mesmo tempo, os devedores, os grossos devedores que repar-
tem contigo os cabedais, que são do reino. (GONZAGA, 2006, p.88,).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. São Paulo:
Brasiliense. 1988.p.65-70.
BOSI, Alfredo. Debatedores: Alfredo Bosi e José Carlos Sebe Bom Meihy. In: CHIAPPINI,
Lígia. AGUIAR, Flávio Wolf de ( orgs). Literatura e história na América Latina –
seminário internacional, 9 a 13 de setembro de 1991. Edusp, 1993, p. 135-141.
CHARTIER, Roger. A verdade entre a ficção e a história. In: SALOMON, Marlon (org).
História, verdade e tempo. Chapecó/SC: Argos, 2011, p.347-370.
FERREIRA, Delson Gonçalves. Cartas Chilenas. Retrato de uma Época. Belo Horizonte:
Lemi, 1982.
FURTADO, Joaci Pereira. Uma república de leitores: história e memória na recepção das
Cartas Chilenas (1845-1989). São Paulo: Hucitec, 1997.
_____. Introdução. In: GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. São Paulo:
Companhia das letras, 2006.
PECORA, Alcir. Documentação histórica e literatura: a propósito das Cartas Chilenas. In:
Revista da USP. São Paulo, n.40, p. 150-157, dezembro/fevereiro 1998-99. Disponível
em: http://www.usp.br/revistausp/40/15-alcir.pdf.
POLITO, Ronaldo. A persistência das idéias e formas: um estudo sobre a obra de Tomás
Antônio Gonzaga. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de
História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1990.
RESENDE, Maria Efigénia Lage de. Inconfidência Mineira. São Paulo: Global Editora,
1988.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
A Editora Fi é especializada na editoração, publicação e
divulgação de produção e pesquisa científica/acadêmica das
ciências humanas, distribuída exclusivamente sob acesso aberto,
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