Gabriella Grey Moreira
Gabriella Grey Moreira
Gabriella Grey Moreira
Volta Redonda-RJ
2021
GABRIELLA GREY MOREIRA
CDD -
BANCA EXAMINADORA
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 9
1- DOS DIREITOS HUMANOS COMO PROCESSOS CULTURAIS...................... 11
1.1. O contexto da Declaração Universal dos Direitos Humanos ..................... 11
1.2. Os Direitos Humanos na concepção de uma sociedade política .............. 14
1.2.1. Teoria Crítica dos Direitos Humanos de Joaquín Herrera Flores........... 15
1.2.2. O entendimento do Direito como processo cultural ............................... 18
1.2.3. A complexidade prática dos Direitos Humanos ...................................... 19
2. A ARTE COMO PROCESSO CULTURAL ......................................................... 23
2.1. Breve Introito ................................................................................................. 23
2.2. Os movimentos artísticos que impulsionaram debates sobre Direitos
Humanos ................................................................................................................. 25
2.3. A arte como direito em si.............................................................................. 31
2.3.1. Os Direitos Culturais na Declaração Universal dos Direitos Humanos da
ONU e Constituição da República Federativa do Brasil de 1988........................ 31
2.3.2. A prerrogativa da arte no direito ao desenvolvimento ............................ 35
CAPÍTULO 3 – DAS INTERFERÊNCIAS SOCIAIS ENTRE ARTE E DIREITO ....... 37
3.1. O Direito a partir da sétima arte ................................................................... 37
3.1.1. O acesso ao cinema no Estado do Rio de Janeiro ................................. 40
3.1.2. O Filme Parasita e a denúncia de desigualdades ................................... 48
3.2.1. Avatar: A Lenda de Aang e o alcance da arte .......................................... 53
3.2.2. Irmão do Jorel e a arte como resistência ................................................. 55
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 58
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 60
8
INTRODUÇÃO
10
1- DOS DIREITOS HUMANOS COMO PROCESSOS CULTURAIS
11
qualquer norma. Por sua vez, a teoria positivista caracteriza os direitos
humanos através da ordem normativa, sendo necessária a previsão expressa
em um ordenamento jurídico para a fundamentação. De acordo com Jair
Teixeira dos Reis, a teoria moralista de Perelman acredita que os direitos
humanos se encontram na consciência moral do povo, configurando o espíritu
razonable (REIS, 2014, p. 56-57).
Quanto à relação dessas teorias1, pontua André Ramos Tavares (2012),
que as concepções jusnaturalistas, ao afirmarem a existência de um postulado
de suposta juridicidade inicial, deixam a cargo do Direito positivo apenas a
justificação deste postulado. O positivismo, no entanto, dispõe que os supostos
direitos naturais consistem uma categoria de regras morais, filosóficas ou
ideológicas que no máximo influenciam o Direito, porém não necessariamente
vão compor o Direito.
Vale ressaltar que não há consenso na literatura quanto à natureza dos
direitos humanos. Norberto Bobbio (2004) expõe que o grande problema
enfrentado atualmente consiste mais sobre a proteção dos direitos, do que no
se refere à sua fundamentação.
Não se quer dizer com isso que a discussão sobre os fundamentos
tenha perdido espaço, porém, o estabelecimento da Declaração Universal de
Direitos Humanos da ONU, de 1948, fez com que o debate diminuísse e o foco
das pesquisas jurídicas se desenvolvesse em torno do descobrimento de
formas eficientes que tornem realidade o acesso aos direitos previstos
(BOBBIO, 2004).
Para contextualizar a noção de direitos humanos referida acima, faz-se
mister examinar a conjuntura de afirmação de direitos civis, políticos e sociais
através da mencionada Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
cujos 30 artigos que a compõem encontram eco em outros documentos
importantes: a Déclaration des droits de l'homme et du citoyen e o Bills of rights
americano, casos restritos aos seus países (França e Estados Unidos,
respectivamente).
1
André Ramos Tavares (2012) também indica a importância da Teoria do Realismo Jurídico
norte-americano que não outorgam ao processo de positivação um significado declaratório de
direitos anteriores (tese jusnaturalista), ou constitutivo (tese positivista), mas entendem que tal
processo pressupõe um elemento diverso, que deve ser considerado para o efeito e real
desfrute desses direitos. São direitos conquistados historicamente pela humanidade.
12
A realidade do século XX, entretanto, proporcionou condições para que
os direitos humanos fossem afirmados em 193 países com a Declaração da
ONU. As circunstâncias têm relação a eventos da Segunda Guerra Mundial que
criaram a necessidade de providenciar um documento indicando direitos
básicos para toda a humanidade. Revela Fábio Konder Comparato:
O ato final da tragédia – o lançamento da bomba atômica
em Hiroshima e Nagasaki, em 6 e 9 de agosto de 1945,
respectivamente – soou como um prenúncio de
apocalipse: o homem acabara de adquirir o poder de
destruir toda a vida na face da Terra.
As consciências se abriram, enfim, para o fato de que a
sobrevivência da humanidade exigia a colaboração de
todos os povos, na reorganização das relações
internacionais com base no respeito incondicional à
dignidade humana. (COMPARATO, 2003, p. 128).
Por esta razão, Comparato indica que o contexto explicado acima foi
decisivo para o surgimento da Declaração Universal de Direitos Humanos da
ONU, afinal, era preciso um esforço jurídico e político para impedir a repetição
de circunstâncias que permitiram a morte de no mínimo 60 milhões de pessoas
durante a referida guerra.
A Declaração Universal da ONU, de 1948, por ser parte integrante da
Carta Internacional de Direitos Humanos, é compreendida no direito brasileiro
como Tratado (MUSSI GABRIEL, 2005). E, segundo o Supremo Tribunal
Federal, tratados internacionais ratificados pelo Brasil compõem o direito
interno como legislação ordinária, desde que não seja internalizado pelo
procedimento do art. 5º, § 3º, da CF/88, em que terão status de emenda
constitucional. Entretanto, é estabelecido também que quando a Constituição
introduz direitos fundamentais resultantes de tratados, a própria atribui
natureza de norma constitucional. Dessa forma, os tratados que versem sobre
direitos humanos são amparados pelo art. 60, § 4º, IV, da CF.
Além das questões do direito brasileiro, há também uma importância
inegável da DUDH, por ser um sistema aceito de forma expressa pela
comunidade internacional – agora não mais compreendida apenas como
Estados, mas também por indivíduos que vivem na Terra. Logo, existe um
conjunto de valores humanamente fundados que, seguindo o próprio
preâmbulo da Declaração, seriam um “ideal comum a ser alcançado por todos
13
os povos e por todas as nações” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,
1948).
A partir disso, cabe destacar então dois fatores significativos para o
prosseguimento da análise. O primeiro deles é entender que os princípios
dispostos na declaração são muitas vezes entendidos como um dever ser,
afinal, ainda que esteja escrito no texto, por exemplo, que os homens são livres
e iguais, essa percepção não se confirma na prática, o que faz com que sejam
percebidos como um valor a ser buscado. Essa busca terá marcações
históricas, já que a criação de novas técnicas e aspectos permitem alterar as
condições sociais e, por consequência, a transformação nas exigências
humanas ocorre. O que leva a confirmar o segundo fator: a motivação do
Direito deriva de acontecimentos históricos, entendidos como um conjunto de
componentes políticos e culturais (BOBBIO, 1995).
Bobbio (1995) afirma que o elenco dos direitos do homem se modificou,
e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja,
dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios
disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc.
Neste sentido, o Direito é também avaliado como um produto das interações
inseridas em determinado convívio.
14
em algum nível conjunto o direito e a moral, ocorre quando a própria sociedade
pede por modificações, normalmente a partir da ação de um grupo de
conscientizar outras pessoas das problemáticas de manter os pensamentos
vigentes.
A cultura abarca, portanto, a multiplicidade de ações sociais em uma
dimensão coletiva. Para Boaventura de Sousa Santos (2006, p.73), os
interesses coletivos são a expressão do espirito associativo do homem. Dizem
respeito ao homem associado, socialmente agrupado, membro de grupos ou
comunidades, com algum grau de organização que medeiam entre o indivíduo
e o Estado. Logo, o produto das interações de homens socialmente agrupados
compreende ao legado de interações anteriores (gerações passadas) e a
aplicação da capacidade de mudanças.
O Direito – enquanto um componente da sociedade – permite que as
alterações de dinâmicas sociais influenciem no campo jurídico, ao mesmo
tempo em que este é responsável por ditar normas e princípios para o contexto
social. Em um caminho de mão dupla, os direitos humanos desenvolvem um
papel importante de assegurar a existência da democracia na sociedade.
Norberto Bobbio (2004, p. 7) comenta que os direitos do homem,
democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento
histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há
democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos
conflitos. Ora, se um dos pretextos primordiais para uma organização em
sociedade seria a perspectiva de melhores respostas aos diversos impasses
encontrados no mundo2, reafirma-se a relevância dos direitos humanos frente
ao corpo social de transformar a realidade em um contexto concreto cada vez
mais justo e igualitário.
2
De acordo com Marilena Chauí – professora de filosofia da USP e autora de diversos livros –
o estado de natureza de Hobbes e o estado de sociedade de Rousseau evidenciam uma
percepção do social como luta entre fracos e fortes, vigorando a lei da selva ou o poder da
força. Para fazer cessar esse estado de vida ameaçador e ameaçado, os humanos decidem
passar à sociedade civil, isto é, ao Estado Civil, criando o poder político e as leis.
15
são peças norteadoras para o entendimento da Teoria Crítica dos Direitos
Humanos, formulada por Joaquín Herrera Flores.
De acordo com Herrera Flores (2009), o Direito não é uma técnica
neutra que se realiza em si, tendo em vista que os sistemas de valores
dominantes e os processos de divisão do fazer humano determinam
circunstâncias para as normas jurídicas. Sendo assim, o direito é uma das
técnicas que garantem o resultado dos interesses sociais concernentes aos
direitos humanos. Os direitos humanos são percebidos nesta teoria enquanto
processos institucionais e sociais com resultados provisórios alcançados por
lutas comuns objetivando o acesso aos bens indispensáveis para uma vida
digna.
O acesso aos bens está inserido em um processo mais amplo que faz
com que uns tenham mais facilidade para obtê-los e que a outros seja mais
difícil ou, até mesmo, impossível de obter. Considerando que a vida está
imersa nesses processos hierárquicos e desiguais de acesso aos bens, os
objetivos dos direitos humanos é a concretização de um acesso igualitário e
generalizado que trazem dignidade a vida (HERRERA FLORES, 2009). Por
isso, se defende a dignidade como um fim material, e não uma abstração ou
idealismo.
Alguns aspectos devem ser observados ao falar de uma consolidação de
espaços de lutas por dignidade humana. A dignidade humana no sentido de
fundamento de ordenamentos jurídicos surge após a Segunda Guerra Mundial
em uma ruptura com as atrocidades dos regimes totalitários e foi pensada para
deixar as pessoas em igual medida perante o Direito. Veja, nesse sentido, a
seguinte manifestação do ministro Luís Roberto Barroso:
16
portanto, a dignidade atua não só como valor
fundamental e justificação moral de todo ordenamento
jurídico, mas também como princípio constitucional e
fundamento jurídico-normativo dos direitos previstos na
Constituição. (MI 6825 AgR, Relator(a): Min. EDSON
FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 11/04/2019,
processo eletrônico dje-110 divulg 24-05-2019 public 27-
05-2019).
17
própria História, procura meios diversos para alcançar os elementos que julga
imprescindíveis para atingir uma concepção típica de dignidade humana. Ao
entender esta complexidade dos direitos humanos, torna-se indispensável a
formulação de uma metodologia relacional que introduza na prática uma
diversidade de formas para abordar as lutas por dignidade. Desse modo, a
dignidade é concebida na obtenção de um acesso igual e justo aos bens,
materiais e imateriais, que se consegue no constante processo de
humanização do ser humano.
Mesmo que o reconhecimento jurídico dos direitos humanos não tenha
solucionado por completo as injustiças através de uma regulação de normas,
este cenário não apaga o esforço internacional em formular uma base legítima
mínima que alcance todas as pessoas. As normas jurídicas desempenham a
garantia legal de acesso a bens considerados exigíveis para viver com
dignidade e, ao menos, reconhecem a primordialidade de ter condições para
exercer os direitos, mesmo que as condições em si não existam propriamente
em inúmeros casos. Sem embargo as críticas quanto a concretização dos
anseios escritos no texto, a Declaração Universal de Direitos Humanos
conseguiu desempenhar um louvável prelúdio de humanização da
humanidade.
18
meios concretos para atuar frente à desigualdade de posições ocupadas no
acesso aos bens.
A caracterização dos direitos humanos por pautas culturais possibilita
uma construção própria que encontrará na dignidade o caráter universal,
portanto, há formas plurais de atuar no mundo em busca da igualdade de boas
condições. Assim, a cultura dos outros3 também consta no cerne dos direitos
humanos e poderá alcançar uma veracidade formal e material, sem
generalizações coloniais ou imperialistas. Entretanto, para que esse processo
ocorra da maneira devida é preciso entender as complexidades do direito como
processo cultural (HERRERA FLORES, 2009).
3
Em uma edição do Direito e Literatura, Lenio Streck discutiu o conceito de outros a partir do
tema “Minorias” com demais professores de Direito. O programa está disponível no canal do
youtube da Tv e Rádio Unisinos.
19
bens. Entender essa dualidade é um motor que impulsiona pensar no Direito
para além de um instrumento de valores inalcançáveis, afinal “O que fazer com
um instrumento que “temos” se não podemos colocá-lo para funcionar por falta
de meios, por falta de políticas públicas ou por razões que apelam a alguma
tradição considerada intocável?” (HERRERA FLORES, 2009, p. 39).
A complexidade jurídica advém da própria natureza normativa. As
normas jurídicas ou morais, assim demonstradas no tópico 1.1, não descrevem
fatos, mas um dever ser, principalmente no que tange a direitos sociais,
políticos e culturais que seguem entrelaçados como princípios norteadores de
políticas públicas ou econômicas. A natureza normativa faz com que a norma
seja um meio para estipular uma direção que satisfaça as exigências da
sociedade, entretanto esta direção por si só também não assegura o acesso
aos bens. Logo, os direitos permanecem com a imagem de inclusão de modo
concreto, sem o fazer. Um problema ostentado tanto em nível empírico quanto
jurídico.
A complexidade científica decorre da neutralidade hipotética que apenas
causa distúrbios interpretativos aos direitos humanos. Ao analisar processos
culturais é preciso contextualizar as produções que permitem a resistência de
determinados grupos humanos frente às diferenças sociais que os afastam de
uma vida digna. Perseguir uma análise neutra retira a complexidade própria
dos direitos humanos, algo que em si já requer um entendimento marcado por
contexto que identifique as dificuldades e facilidades da implementação dos
direitos em certo local, momento e grupo. Uma investigação científica não deve
se abster da realidade.
A complexidade filosófica é um efeito da procura por uma essência a
partir da filosofia. Avaliar um essencialismo infelizmente resulta na redução das
formas de resistência citadas acima e retira o traço plural das percepções de
mundo. Nessa perspectiva, vaticina Flores:
Postular essências consiste, portanto, em sobrepor a uma
pluralidade de significados e símbolos – que nós, seres
humanos, propomos para nos entender mutuamente – uma
esfera unitária e homogênea de produtos culturais que reduz a
complexidade do real ao que se considera ideologicamente
como algo absoluto e separado da capacidade humana de
criação, interpretação e transformação do mundo. Essa
tendência, ao final, resulta em alguma forma de dogmatismo a
partir do qual uns – os privilegiados por ele – querem ou
pretendem convencer os desfavorecidos de que, ainda que
20
sejam vítimas de uma determinada ordem, isso não é mais que
uma aparência ou um momento temporal que acabará
culminando por si mesmo na felicidade universal. (HERRERA
FLORES, 2009, p. 45).
21
A visão realista do mundo se caracteriza como relevante por conseguir
orientar racionalmente a atividade humana. A consciência das dificuldades e
obstáculos que serão reparados a caminho da garantia da dignidade humana é
a única forma de superá-los. Partimos, então, do reconhecimento da
capacidade humana de fazer e refazer os mundos que são dados (HERRERA,
FLORES, 2009, p. 55). O papel de conscientização auxilia no reforço desta
finalidade. O pensamento crítico é eficaz na forma de mobilização, porém
precisa ser assimilado por todos. O emponderamento do cidadão encaminha a
ação de movimentos sociais que permite falar sobre direitos humanos em sua
própria linguagem (HERRERA FLORES, 2009, p. 56).
Os escritos de Herrera Flores ainda lecionam a importância da
coletividade social para criar concepções e práticas que funcionem na
transformação de contextos sociais, políticos, culturais e jurídicos em busca de
satisfazer as necessidades humanas (HERRERA FLORES, 2009, p. 58).
Por último, a criação de vontades que empoderem pressupõe uma
busca permanente de exterioridade ao sistema dominante. Apenas pelo caráter
crítico de determinada ordem ser uma forma de dar voz às possíveis
indignações humanas, o que permite ampliar as conquistas concernentes a
dignidade. Para Herrera Flores (2009), permitir a indignação expande
multilateralmente as questões de justiça.
22
2. A ARTE COMO PROCESSO CULTURAL
23
Ao perceber essas noções relativas à cultura, torna-se mais simples a
associação da arte como parte do processo cultural. Afinal, o que é a arte se
não um meio de contato e percepção da vivência humana? Para além disso, a
arte também intensifica o caráter transformador das pessoas através dos
próprios sentidos e muitas vezes estimula o questionamento da ordem vigente.
“A arte funciona como uma das principais armas de uma teoria crítica da cultura
que pretende potencializar o que de transformador e revolucionário levamos
em nossa própria essência de seres humanos” (HERRERA FLORES, 2005,
p.31).
O desempenho criativo e artístico deve objetivar uma emancipação que,
segundo Boaventura de Sousa Santos (2003): “El pilar de emancipación está
constituido por las tres lógicas de la racionalidad definidas por Weber: la
racionalidad estético-expresiva de las artes y de la literatura, la racionalidad
cognitivo-instrumental de la ciencia y la tecnología, y la racionalidad moral-
práctica de la ética y del derecho.”
Desse modo, está posta a notoriedade da arte como processo cultural
que se correlaciona com a busca por dignidade e, por conseguinte, uma aliada
a materialização dos direitos humanos como um espaço de luta por bens
indispensáveis. Porém, antes de aprofundar as interferências entre arte e
direito, é conveniente perceber determinadas evoluções da arte do século XX
ao século XXI, afinal o objetivo do presente trabalho é avaliar uma relação
entre a arte no período anterior a Declaração Universal dos Direitos Humanos
da ONU e a própria publicação da Declaração, a fim de que se visualizem
formas de amplificar a prática de direitos humanos nos dias atuais.
A arte apresenta um histórico de tentativas de categorização desde a
Antiguidade, entretanto um dos marcos mais importantes para a classificação
da arte ocorreu em 1911 com a escrita do Manifesto das Sete Artes por
Ricciotto Canudo. Canudo reconheceu o elenco de artes como artes plásticas
do espaço, consagrando a arquitetura, escultura e pintura, e as artes plásticas
do tempo, como música, literatura e dança. Todavia, a maior contribuição de
Canudo foi adicionar o cinema como arte plástica em movimento
(CAPPARELLI, 2013). Ainda é possível reconhecer que existem outras artes
para além das que fazem parte desta lista, contudo, elas seriam a união de
aspectos da lista clássica. O teatro, por exemplo, apresenta recursos da
24
música, da literatura e da dança; as histórias em quadrinhos se unificam pela
pintura e literatura; os desenhos animados pressupõem a utilização de técnicas
do cinema e da pintura.
Com o propósito de abarcar, então, uma conceituação da arte para além
da classificação, cabe expor a definição disjuntiva desenvolvida por Wladyslaw
Tatarkiewicz, em que essa era entendida como “uma atividade humana,
consciente, dirigida à reprodução de coisas ou construção de formas ou
expressão de experiências, se o produto dessa reprodução, construção ou
expressão é capaz de suscitar prazer ou emoção ou choque” (TATARKIEWICZ,
1971, p. 150). As reações que decorrem da arte são as peças principais para o
poder de mudança social que se realizam através de expressões artísticas.
Apontam Maysa Novais, Roberta Jucá e Vanessa Berner:
As obras de arte envolvem elementos essenciais de nossa
existência, tanto individual (o imaginário radical) quanto o
coletivo (o imaginário social constituiunte), inserido no contexto
ambiental de cada artista: falam de salvação, liberdade,
mortalidade, transgressão, do mundo, das almas... não são
obras triviais e fica patente que não se busca o efeito estético
apenas. Assim, as obras de arte podem ser e muitas vezes são
produtos culturais de cunho emancipatório, que buscam nos
conectar à realidade para que possamos interpreta-la, explica-
la, transformá-la (NOVAIS; JUCÁ; BERNER, 2019, p. 246-247).
25
renovar os padrões presentes se refletiram e foram impulsionadas pela
linguagem artística.
O Cubismo foi o primeiro dos novos movimentos artísticos que iriam
surgir no século XX. A famosa pintura Les demoiselles d’Avignon de Pablo
Picasso é vista como um protótipo do cubismo que tem como característica
principal a representação dos corpos em três dimensões (LAMBERT, 1984).
Para este trabalho, é importante focar na terceira fase do movimento
conhecida pelo nome de Cubismo Sintético. O Cubismo Sintético, movimento
forte entre 1911 e 1916, se utilizava do método de colagem, principalmente
com recortes de jornais, para tratar das figuras de uma forma distante do
realismo. Anos depois, em 1937, Pablo Picasso simulou a técnica de collage
em uma de suas obras mais famosas que retratava o bombardeio à cidade de
Guernica durante a Guerra Civil Espanhola.
26
O entendimento político na criação artística de Picasso declara uma
guerra contra a guerra, uma manifestação em discordância da violência. A obra
“Guernica” sintetiza uma reação cultural aos feitos sociais no mundo.
O segundo movimento artístico que será exposto é o Expressionismo. O
Expressionismo é a qualificação para arte do século passado que revelava
como tema substancial os estados mentais do homem e tinha como
característica a exibição do mundo segundo o olhar do artista, muitas vezes se
depreendendo de fidelidade ao real (LAMBERT, 1984). O movimento artístico
teve sua iniciação com Van Gogh no final do século XIX e prosseguiu durante o
começo do século XX quando Edward Munch foi o principal expoente. Uma
análise mais atenta demonstra como a arte se transforma para acompanhar as
exigências de realidades sociais. Ana Mae Barbosa comenta sobre algumas
modificações que ocorreram no mundo e trouxeram consequências a arte
naquele período:
A “condição moderna” sofre novos deslocamentos e ampliação
de suas fronteiras decorrentes da Segunda Revolução
Industrial, entre outros tantos fatores. Aconteceu na época o
“boom” das técnicas e inovações: da luz elétrica, das
mudanças da estética das esferas urbanas (...).
Foi imerso no interior desse campo de mudanças que
prosperaram as novas concepções estéticas. O mundo da arte
também passava por inquietações e mudanças. Os referenciais
artísticos da pintura alteravam o gosto e deixavam perplexos os
mais tradicionais ligados à idéia do belo e das operações
acadêmicas e românticas da primeira metade do século XIX.
Manet, quando de sua recusa na mostra oficial de pintura, já
apontava para a resistência do academicismo a uma nova
concepção artística, que, apenas anos depois, iria florescer no
campo das rupturas com Cézanne, Van Gogh, Gauguin e
Seurat.” (MAE BARBOSA, 2009, p. 149).
Além dos citados por Ana Mae Barbosa, outro fator que contribuiu para a
baixa do Impressionismo e promoção do Expressionismo foi o invento da
câmera fotográfica em 1839, que tornou dispensável a função da arte de ser
inteiramente leal a realidade. Portanto, ficam corroboradas novamente as teses
de interferências da sociedade na arte.
Para mais, o quadro “O grito” de Edvard Munch expressa total
desespero. No livro de Introdução à História da arte da Universidade de
Cambridge sobre o Século XX, é explicado como o artista manipulou a tinta
para tornar visível a emoção. As formas sinuosas do céu e da água, e a forte
diagonal da ponte, tudo conduz o olhar para a boca que se abre num grito; e
27
embora existam outras pessoas na ponte, há uma atmosfera de aterrador
isolamento (LAMBERT, 1984). Os expressionistas desvendam os sentimentos
humanos com primor e realizam um processo de humanização das situações
da vida. Todas as inquietações humanas são válidas e retratadas nas obras
artísticas deste movimento.
28
guerra era vista como algo veloz que higienizaria o mundo (LAMBERT, 1984).
Logo, não é coincidência o declínio certeiro do Futurismo após as Guerras
Mundiais, sobretudo com o avanço dos espaços de luta por dignidade
propiciada pelos direitos humanos.
Ao contrário da exaltação da temática pelos Futuristas, o Dadaísmo teve
uma reação oposta às injustiças e atrocidades promovidas pela guerra. A
produção de horrores pela guerra mundial fez os escritores e artistas do Dadá
renegarem a cultura anterior em forma de protesto. Para eles, a
desumanização ocorrida foi um atestado da falha social e moral da sociedade
(LAMBERT, 1984).
O Dadaísmo utilizava do escárnio com o intuito de confrontar a arte
institucionalizada. Para Marcel Duchamp, por exemplo, qualquer acaso teria
maior relevância que obras artísticas de uma sociedade falida. Reforçando
essa visão, o pintor Hans Arp – um dos fundadores do Dadá na cidade de
Zurique – chegou a fazer colagens jogando pedaços de papel de forma
aleatória, um processo bem diferente das colagens cubistas de Pablo Picasso
já explicadas.
Isto posto, a importância do Dadaísmo se encontra no caráter
questionador. As indagações das realidades que se apresentam, a procura por
diferentes pontos de vistas e a negação dos estados de desigualdades
permearam todo o movimento.
Além de movimentos com enfoque nas artes plásticas, não se pode
esquecer da manifestação da guerra pelas lentes do cinema. A arte
cinematográfica em muitos momentos foi utilizada como instrumento e
propaganda de guerra. Entretanto, como explica Francisco Carlos Teixeira da
Silva (2004), as guerras atômicas não espantaram apenas pintores e
escultores. A maioria dos filmes assumiu desde logo uma postura
militantemente antiguerra, de caráter fortemente pacifista e de denúncia
política. Merecem realce as palavras de Teixeira Silva:
A ficção política da Guerra Atômica não produzirá apenas
filmes de guerra. Do impacto dos testes nucleares, ou dos
despejos de usinas atômicas, surgirá uma imensa estirpe de
monstros, tais como insetos e mutantes, de aranhas gigantes
até Godzilla. O surgimento na tela grande dos chamados
“monstros da bomba”, como uma advertência ao homem por
ter aberto a fatídica Caixa de Pandora da energia nuclear (aos
poucos substituída pelos horrores das experiências de
29
engenharia genética), marcará toda uma geração. Desde o
final dos anos 40, começaram a surgir filmes em que a trama
se desenvolvia a partir dos campos de provas da bomba
atômica, nos desertos do Novo México e do Arizona.(TEIXEIRA
DA SILVA, 2004)
30
2.3. A arte como direito em si
Com a compreensão da influência da Arte nos Direitos Humanos, é
plausível estudar também de que forma o Direito reafirma a existência da arte e
a função que ela desenvolve para a sociedade. Marcílio Toscano Franca Filho
(2009, p.327) caracteriza quatro níveis de correlação entre Arte e Direito: (I) o
direito como objeto da arte; (II) a arte como objeto do direito; (III) a arte como
um direito; (IV) o direito como uma arte. O enfoque deste tópico é tratar do
terceiro nível.
A arte como direito em si pressupõe uma forma de reivindicar o acesso
aos bens que foram distribuídos de forma desigual, o que inclui o próprio
acesso a arte e cultura. Ademais, a arte e a cultura devem ser analisadas a
partir de conceituações associadas. A cultura como símbolo está na arte, assim
como a arte cria símbolos e está na cultura (SANTOS, 2009, p. 342).
Dessa maneira, a arte pode ser entendida enquanto direito por um viés
cultural abarcado nos direitos humanos. Bianca Caroline dos Santos (2009)
sustenta:
Defender a arte como um direito humano foi a maneira
encontrada para difundir a ideia de que mais e mais pessoas
devem poder criar e ter acesso à arte. Em um momento de
dominação hegemônica do mundo, no qual os valores de
mercado são impostos como verdades imutáveis, apostamos
na arte como um meio de criar contra-hegemonias, de
questionar, duvidar, promover processos de emancipação e de
luta pela dignidade humana.
31
ela: o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
No âmbito internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
da ONU, de 1948, seria o primeiro instrumento a mencionar – ainda que de
forma tímida - os direitos culturais no Artigo XXII, cujo conteúdo é retomado de
maneira mais aprofundada nos Artigos XXVI (educação) e XXVII (cultura). O
Artigo XXVII dispõe que toda pessoa tem direito de participar livremente da
vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo
científico e de seus benefícios. Além disso, há uma proteção dos interesses
morais e materiais do autor decorrentes de qualquer produção científica,
literária ou artística.
Em breve retrospecto histórico, José Afonso da Silva (2001) identifica a
origem da preocupação com o tema se deu primeiro com a Constituição
Mexicana de 1918 e em Cartas Políticas produzidas entre as duas Grandes
Guerras Mundiais. A cultura se integrou aos textos constitucionais quando as
Constituições abriram um título especial para a ordem econômica, social,
educação e cultura. Contudo, após os acontecimentos do século passado,
como as consequências das guerras mundiais já citadas, a cultura também
deixou de ter apenas a natureza de desenvolvimento pessoal e passou ser
compreendia como fator de igualdade, solidariedade e desenvolvimento em
sentido amplo. Segundo lições de Cunha Filho:
A Segunda Guerra Mundial, conflito catastrófico para a
humanidade que, pela via do sofrimento, legou a certeza de
que os direitos fundamentais não poderiam se vincular
exclusivamente a indivíduos ou grupos específicos. As bombas
atômicas, os holocaustos, a destruição de patrimônios
históricos e artísticos e a própria ameaça de extinção de toda
vida no planeta nos levaram à conclusão de que há bens
jurídicos para os quais as fronteiras dos países não fazem
sentido, pois pertencem a todos, enquanto coletividade, e a
cada um, enquanto indivíduo (CUNHA FILHO, 2018).
32
Afinal, o Artigo 27 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966
indica:
Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou
linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não
poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com
outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de
professar e praticar sua própria religião e usar sua própria
língua.
33
No caso da amplificação de direitos humanos a partir dos direitos
culturais, por exemplo, permitiu que a conceituação de liberdade tivesse maior
consistência. A preservação do direito à liberdade deve atingir também o direito
a expressar pensamentos de forma clara em um sistema de sentidos e signos
partilhados em sociedade. Conforme assevera Coelho:
34
A proteção do acesso aos bens e valores da cultura são garantias do
desenvolvimento de uma vida digna, justa e democrática entre os seres
humanos. Além disso, caracterizam direitos de suma relevância, salienta Pérez
Luño: “en orden a las garantías para el pleno desarollo de la persona en las
esferas económica, social y cultural: el derecho a la calidad de vida y al disfrute
del patrimonio histórico-artístico”( 2014, p.467) .
35
interna do direito ao desenvolvimento, bem como por prescrever princípios
normativos para sua implementação.
O preâmbulo da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de
1986 reconhece que o desenvolvimento é um processo econômico, social,
cultural e político abrangente, que busca aprimorar o bem-estar individual e da
população por meio da participação ativa, livre e significativa no processo. Além
disso, é definido que os bens derivados do desenvolvimento devem ser
distribuídos de forma justa.
Após a Declaração de 1986, o direito ao desenvolvimento voltou a ser
tratado em 1993 na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos realizada na
cidade de Viena. O resultado desta Conferência foi a Declaração e Programa
de Ação de Viena que, para Mônica Teresa Costa Souza (2008), tem como
fatores relevantes o estabelecimento da inter-relação entre desenvolvimento,
direitos humanos e democracia, e a confirmação do direito ao desenvolvimento
como um direito humano.
36
CAPÍTULO 3 – DAS INTERFERÊNCIAS SOCIAIS ENTRE ARTE E DIREITO
37
século XX para que o filme narrativo se estabelecesse – tanto como um
produto comercial viável quanto como um candidato para o status de “sétima
arte”.
A dinâmica da arte cinematográfica tem impressionante relevância pelo
alcance popular da linguagem trazida. No início das produções, em países
como Estados Unidos e os que formam a Grã-Bretanha, o cinema se restringiu
por algum tempo a classe de trabalhadores. Esclarece Turner que:
Nos Estados Unidos começou nas chamadas penny arcades
(“penny gaffs” na Grã-Bretanha) e nas casas de vaudeville
como uma apresentação secundária em relação às
apresentações ao vivo. Já na sua primeira década de exibição,
porém, o cinema se mudava para salas de projeção, de frente
para a rua, a princípio espalhadas pelos bairros pobres dos
Estados Unidos. Na Austrália, o apresentador de shows
itinerantes também foi importante, levando seus filmes para as
cidades do interior e projetando-os nas salas de espetáculos
locais ou nos marquees, que eram grandes tendas ao ar livre.
Em todos os casos, era um meio de comunicação que chegava
o mais direto possível a seu público. (TURNER, 1997, p. 36)
38
pensamento e da reflexão. Esse referencial está diretamente
ligado à estética, à beleza, à inspiração. As artes enriquecem a
cultura e o cinema representa essa cultura em forma de
encantamento. Arte e cinema recorrem às imagens como forma
de comunicação. Ambos são fontes de conhecimento, oriundos
da sociedade e valorizados por ela (NASCIMENTO, G.;
SOUSA, A., 2011, p. 109).
39
tensões sociais e culturais (CORNEJO, 2008). E, se for levado em conta que a
compreensão de um filme é uma prática social que mobiliza toda a gama de
sistemas no âmbito da cultura (TURNER, 1997), o cinema carrega em si a
oportunidade de, através de uma reflexão sobre as próprias vivências, os
indivíduos assimilarem conteúdos relacionados a direitos humanos –
principalmente no que tange a dignidade humana.
A afinidade entre o campo jurídico e cinematográfico é proveitosa para a
formação de raciocínio crítico em questionamentos sociais que resulte em uma
participação conjunta – tanto por profissionais e estudiosos do direito quanto
por outros agentes da sociedade que se envolvem com o cinema de alguma
maneira – para que o direito possa ser percebido como justiça efetivada no
mundo.
No que concerne ao sistema dos direitos humanos, os direitos culturais
atingem caráter de ferramentas, afinal permitem garantir o bom uso da
diversidade a serviço da dignidade humana, universal, singularmente presente
em cada um e desenvolvida graças a seus recursos culturais (MEYER-BISCH,
2011). Sendo válido ressaltar que a cultura, além de contribuir para a formação
de identidades e a construção da base simbólica e de valores, também atende
a inúmeros outros propósitos, desde o crescimento econômico até a coesão
social (LAAKSONEN, 2011). Este aspecto de tantas funções inclusive fortifica o
desenvolvimento em nível pessoal e coletivo proporcionado por intermédio
cultural.
A barreira, observada por Herrera Flores em sua Teoria Crítica e exposta
anteriormente, entre os Direitos Humanos enquanto norma e a execução
destes no mundo pode ser diminuída a partir do cinema. A sétima arte
desenvolve papel de grande valor para a manutenção de direitos humanos, ao
fomentar um universo de indagações sobre dignidade, diversidade, igualdade e
outras temáticas pertinentes ao povo que almeja garantir um acesso
democrático a todos os bens indispensáveis a vida.
40
da forma que esta interatividade se comportou em solo brasileiro,
principalmente no meio fluminense. Nesse sentido pontua Marson:
Compreendendo o campo cinematográfico como um importante
espaço social de produção material e simbólica que obedece a
leis próprias de funcionamento, mas está em constante diálogo
com o mercado e o Estado, podemos entender melhor o
cinema brasileiro (...) (MARSON, 2010, p. 27-28).
41
Contudo, apesar da importância do cinema para a prosperidade de uma
vida digna, a situação de cidades médias e pequenas do Estado do Rio de
Janeiro exibe adversidades para assegurar direitos culturais e de
desenvolvimento. A pesquisa a seguir foi realizada com suporte dos dados
abertos do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual da Agência
Nacional do Cinema, as bases oferecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística, e o estudo elaborado por Leandro Valiati para a Revista
Observatório Itaú Cultural, n.10.
De acordo com a Relação geral das salas de exibição e complexos
regularmente credenciados na Ancine, o Índice de Desenvolvimento Humano e
as estimativas da população foram possíveis traçar panoramas de direitos
culturais e de desenvolvimento a partir do cinema nas cidades do Rio de
Janeiro com menos de 300.000 habitantes.
Um aspecto importante a ser avaliado primeiro é a tendência prevista
por Leandro Valiati sobre a concentração das salas de cinema nas captais do
Brasil. Este foi um dos motivos para desconsiderar o município do Rio de
Janeiro e outros com população maior que 300 mil habitante nos demais dados
apresentados, já que causaria uma distorção pela realidade tão diferente.
42
de um grande público potencial. A gravidade e influência desta desigualdade de
acesso ao cinema no Estado do Rio de Janeiro em outras questões, como a
efetividade do direito ao desenvolvimento ao morador fluminense, podem ser
percebidas também com a análise dos próximos dados referentes à situação.
Os dados a seguir foram averiguados a partir do disposto Agência
Nacional do Cinema, além de consulta aos endereços digitais das prefeituras
municipais em pauta. O objetivo consistia em averiguar de forma geral quais
municípios do Estado com menos de 300 mil habitantes garantem o acesso ao
cinema de forma contínua, por esta razão, neste momento não são
considerados os projetos de cinemas itinerantes.
O grupo de município que apresentam cinema nesses termos é
composto por: Angra dos Reis, Araruama, Armação dos Búzios, Barra do Piraí,
Barra Mansa, Bom Jardim, Bom Jesus do Itabapoana, Cabo Frio, Casimiro de
Abreu, Itaboraí, Itaguaí, Itaperuna, Macaé, Maricá, Nilópolis, Nova Friburgo,
Paracambi, Paraíba do Sul, Paraty, Petrópolis, Quissamã, Resende, Rio das
Ostras, São Pedro da Aldeia, Saquarema, Teresópolis, Três Rios, Valença,
Vassouras e Volta Redonda. Deste modo, dos oitenta e cinco municípios
considerados para a pesquisa, apenas trinta e um dispõe de cinema em seu
território.
43
No caso do gráfico4 anterior é fácil perceber que as cidades com cinema
apresentam uma maior dispersão no número populacional, ou seja, é possível
encontrar cinemas tanto em cidades com menos de 50.000 habitantes quanto
em cidades com quase 300.000 habitantes no Estado do Rio de Janeiro. Em
contrapartida, as cidades sem cinema estão concentradas em locais com
menos de 50.000 habitantes, existindo apenas cinco exceções a esta regra.
Portanto, no Estado do Rio de Janeiro a maior dificuldade para a
implementação do acesso a sétima arte reside nos municípios com baixos
valores populacionais. Este fator manifesta que aproximadamente 1.743.840
moradores do conjunto de municípios fluminenses com menos de 300.000
habitantes não possuem acesso a um dos elementos que compõe direitos
culturais e desenvolvimento, estas pessoas dependem de outros municípios,
projetos de cinemas itinerantes ou casas de cultura para conseguir participar
da vivência cinematográfica.
4
O gráfico box-plot apresenta várias características da variável de interesse. O gráfico de
caixa representa a mediana, o primeiro e terceiro quartil, os valores mínimos e máximos e
eventuais outliers e extremos.
44
regularmente em seus próprios municípios, isto é, 15,57% de uma das regiões
fluminenses não observam a vida cultural completa na cidade que residem.
45
ostentam um desenvolvimento humano menos disperso e mais elevado que as
demais cidades, onde não existem cinemas fixos. A seguir é exposta outra
maneira de visualização para estes dados.
46
pessoa, particularmente por criação de condições socioeconômicas
apropriadas, para que os valores e propriedades culturais possam ser
usufruídos. Ao observar as disposições do Estado do Rio de Janeiro quanto ao
cinema, fica perceptível que a participação e acesso a cultura está longe do
ideal, e influencia para um baixo parâmetro de desenvolvimento pessoal e
coletivo nos termos dos direitos humanos.
Em razão da competência da sétima arte para efetivar direitos, alguns
municípios sediaram projetos que incentivam esta atividade cultural em praças,
centros culturais, drive-in, teatros e escolas. Considerando os 54 municípios
sem sala de cinema contínua, ao menos 28 cidades promoveram encontros
com cinema itinerante. De acordo com Antenor Neto, Gerente de Cultura e Arte
do Sistema FIRJAN em 2015, ao discorrer sobre o projeto Cine na Estrada
SESI Cultural, estabeleceu:
(...) iremos intervir positivamente no cotidiano de cidades do
interior, democratizando o acesso à cultura por meio da
linguagem cinematográfica e da difusão do cinema brasileiro. A
ocupação do espaço público com essas atividades culturais é
uma forma de reforçar a autoestima e o afeto das pessoas em
relação à cidade onde elas estão inseridas (NETO, 2015).
47
3.1.2. O Filme Parasita e a denúncia de desigualdades
5
É muito importante ressaltar que os diretores sul-coreanos que mais fazem sucesso
atualmente cresceram em um contexto de ditadura militar. A ditadura não perdurou até os dias
atuais, contudo influencia nas temáticas abordadas e na sensibilidade que o cinema sul-
coreano vem apresentando ao tratar de desigualdades sociais. A história do diretor Boon Joon-
ho e o processo de criação do filme Parasita são explorados nos Comentários na sessão de
exibição e debate do filme realizada no Auditório Elke Hering da Biblioteca Central da UFSC.
Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/201649 > .
6
Embora Parasita seja uma obra de ficção, esses apartamentos semissubterrâneos não são.
Eles são chamados de banjiha, e abrigam milhares de pessoas que vivem na capital da Coreia
do Sul. A falta de luz, privacidade, espaço é realidade comum aos jovens que precisam
conciliar trabalho e estudo. A história dos porões reais da Coréia do Sul é retratada na matéria
disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51377330> .
48
Figura 3 – Parte da casa dos Kim
Fonte: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51377330.Acesso em 01 de
abril de 2021
49
comparando com o cheiro presente no metrô. Nas palavras do milionário, as
pessoas que andam no metrô tem um cheiro especial.
Das entrelinhas da fala de Dong-ik se subtraí um ponto importante
levantado pelo enredo: em uma sociedade desigual, até o cheiro é fator
diferenciador entre as classes. Ainda que Ki-taek sempre compareça ao
trabalho com trajes finos, sua origem é revelada por outras características.
Assim, o contraste econômico e social perpassa todas as interações.
“Parasita” também escancara como um mesmo evento pode ter reflexos
opostos para as pessoas, caso a garantia de dignidade humana seja
desconforme. Determinada sequência do filme mostra uma tempestade e os
resultados dela para as famílias Kim e Park. O porão dos Kim é inundado e
revirado em algumas horas de chuva, os parentes conseguem salvar apenas
alguns objetos e acabam perdendo o restante dos bens que juntaram ao longo
de suas vidas. Todavia, ao tratar sobre essa mesma situação, Yeon-kyo Park
chama a chuva de benção e se alegra com o dia azul feito na manhã seguinte.
Essas contraposições exibem novamente uma profunda desigualdade
instalada.
A circunstância da vida em um porão reaparece na trama em outro
momento. Segundo a governanta da casa dos Park, o arquiteto que a construiu
também instalou um bunker, um porão que só seria utilizado como abrigo em
caso de guerras ou conflitos políticos. Os ricos só se colocariam em uma
situação próxima a dos pobres em um evento isolado, raro. Enquanto isso,
essa vivência restrita de dignidade é algo cotidiano para as classes menos
favorecidas em termos econômicos e sociais.
É a partir dessas reflexões que o termo parasita, palavra usada para dar
título ao filme, deve ser pensado. No âmbito da biologia, parasita é o termo
utilizado para definir um organismo que habita em outro, dele obtendo alimento
e muitas vezes causando dano. Em primeiro instante, é possível imaginar que
os parasitas são a família Kim, já que se utilizaram de meios ilegais para
conseguir empregos na residência dos Park. Porém, o diretor Boong Joon-hoo
aborda esta questão de outra forma.
No meio de um mundo assim, quem pode apontar o dedo para
uma família em dificuldades, travada em uma luta pela
sobrevivência, e chama-los de parasitas? Não é que eles
fossem parasitas desde o início. São nossos vizinhos, amigos e
50
colegas, que foram simplesmente empurrados para a beira do
precipício (COLIDGE CORNER, 2019).
51
Sendo assim, analisar um conjunto diverso de formatos de audiovisual
não apenas é válido, como também honra o histórico de evolução conjunta
entre cinema e TV. Logo, ter como pressuposto que séries, novelas e desenhos
animados – formas muito presentes na televisão – são meios artísticos
indispensáveis para debates sociais é imprescindível em uma pesquisa que
pretende averiguar temáticas de direitos humanos através da própria arte.
Ademais, para Raymond Williams, a televisão opera na interface entre a elite e
o popular, o comercial e o público, o estado e o cidadão.
Perceber conteúdos que aproximam tantos agentes e expressões
sociais por intermédio da arte é, no mínimo, proveitoso. Nesse sentido:
Notícias, dramas, entrevistas, programações educativas,
variedades, todos tiveram seus precursores. Mas Williams se
esforça para apontar a distinção e a novidade da televisão,
sobretudo, talvez, em sua relação direta e sua aproximação
com o caráter ordinário da vida cotidiana. A televisão oferece
uma forma tecnológica e institucionalmente específica de
enquadramento e expressão cultural, uma forma que só pode
ser entendida, digamos assim, in situ (no próprio local), e
também como uma expressão de forças sociais, políticas e
econômica mais amplas (SILVERSTONE, 2003).
52
Uma interpretação possível do escrito é que as ficções, mesmo quando
fazem projeções de mundos futuros, ou tratam de realidades que não existem
de maneira concreta, acabam por evidenciar a vida presente. Afinal, segundo
Luisa Davi Oliveira de Mesquita (2018), até mesmo mundos fictícios refletem as
dinâmicas de poder, identidade e mudança de esfera internacional.
Com estes fundamentos, é possível prosseguir para a análise de dois
episódios de animações que cumprem com maestria a função relacional com
direitos humanos, ao passo que defendem a participação da vida cultural e a
identidade de resistência que a arte carrega. Compreender quais discussões
estão sendo incentivadas pelo audiovisual televisivo é crucial para saber quais
espaços de luta por dignidade podem ser criados, e, portanto como o acesso a
arte atual de maior alcance consegue ampliar os saberes populares sobre
direitos humanos.
53
A abordagem de temas tão relevantes em um desenho animado não
passou despercebida pela crítica e público. A produção garantiu um Emmy
(DESOWITZ, 2007) e diversos prêmios Annie (ANNIE AWARDS, 2006; 2007),
responsáveis pela seleção de melhores trabalhos animados. A aclamação do
público7 é perceptível pelos números proporcionados pela audiência na
conclusão do desenho, com os episódios finais sendo os programas de maior
audiência na TV paga dos EUA na semana de 14 de julho a 22 de julho de
2008, somando 5,6 milhões de telespectadores (GRAY, 2008).
O enredo do desenho se desenvolve a partir dos planos e treinamentos
do Avatar e sua equipe para derrotar o líder da Nação do Fogo – o Senhor do
Fogo Ozai, e durante os processos de amadurecimento pessoal, os
personagens principais também se incumbem de restaurar as fronteiras às
suas nações originais. Aang, Katara e Sokka viajam pelo mundo procurando
professores de dominação dos elementos para Aang e descobrimos, junto com
o novo Avatar, o que significa seu título, suas habilidades e sua missão
(MESQUITA, 2018).
É em uma viagem por terras da Nação do Fogo, na busca de
professores, que o valor da arte no mundo de Avatar: A Lenda de Aang se
torna mais evidente. No episódio 04 da terceira temporada, exibido pela
primeira vez no Brasil em 6 de março de 2008, Sokka encontra com um mestre
disposto a ensinar a arte da espada, o que permitiria que ele contribuísse mais
com o grupo e, consequentemente, na derrota da tirania da Nação do Fogo.
Sokka inicia os estudos com Piandao – o mestre da arte das espadas,
porém para que fosse aceito no treinamento, Sokka pensou que precisaria
alterar sua identidade. O jovem julgava que um professor da Nação do Fogo
não passaria adiante um conhecimento de artes a alguém da Tribo da Água, ou
seja, um inimigo de guerra.
7
O sucesso foi tanto que Avatar: a lenda de Aang foi transformado em filme live-action no ano
de 2010, dirigido e escrito por M. Night Shyamalan e denominado O último mestre do ar.
54
Figura 5 – Os estudos de Sokka e Piandao
55
1990. O programa gira em torno do filho mais novo da família – o irmão do
Jorel – um menino de 8 anos que nunca tem seu nome citado por ser
conhecido apenas como parente de Jorel – o irmão do meio popular.
A família da trama simboliza traços significativos da realidade brasileira.
Para Joyce Silva Cardoso e Julia Silveira Matos (2019), essas características
podem ser observadas no núcleo familiar composto por sete moradores em
uma casa, outra característica bem comum, se levado em conta que a maior
parte da população brasileira é composta por pobres, tendo em torno de 60%
da população sobrevivendo com apenas um salário mínimo, segundo o censo
do ano de 2010 do IBGE.
Na próxima imagem se apresenta a família do desenho, da esquerda
para a direita, a mãe (Danuza), o pai (Edson), avó materna (Vovó Gigi), avó
paterna (Vovó Juju), a mãe (Danuza), o pai (Edson), o irmão mais velho (Nico
ou Nicolau), o irmão do meio (Jorel) e Irmão do Jorel que é o irmão caçula.
Figura 1 – A família do irmão do Jorel
56
Fonte: Gangorras da Revolução, 1min27s.
O personagem do Seu Edson é conhecido pelas histórias contadas da
sua época de combate a ditadura militar no Brasil, regime autoritário que
perdurou por anos no século XX. O pai de irmão do Jorel sempre demonstra ter
como referências o que ele mesmo chama de cinema conceitual e teatro
revolucionário. Portanto, não é rara a mensagem da relevância da arte como
forma de garantia a direitos humanos. Em poucos minutos do episódio
analisado, Seu Edson enuncia: “A arte foi e sempre será a arma mais poderosa
na luta contra a repressão” (IRMÃO DO JOREL, 2018).
O caráter transformador e de resistência da arte se faz presente em um
ciclo. A arte, falando de si mesma, além de defender seu espaço como meio de
proporcionar reflexões, ainda assegura a proteção de direitos humanos. Em
contrapartida esses direitos também envolvem a arte como elemento essencial
para direitos culturais e de desenvolvimento.
57
CONSIDERAÇÕES FINAIS
58
variados elementos da cultura, como a arte, podem auxiliar no processo de
formação e garantia de direitos.
Por esta razão foram avaliados os ideais de diversas áreas e
movimentos do campo artístico para compreender as contribuições que por
eles foram oferecidas ao contexto de aprovação da Declaração Universal dos
Direitos Humanos da ONU de 1948. A influência de movimentos das artes
plásticas e também do ramo cinematográfico reforçaram as vontades e anseios
populares do pós guerra no meio jurídico. Os manifestos pacifistas trazidos por
pinturas e filmes sintetizam as circunstâncias sociais que impulsionaram o
clamor por uma resposta jurídica que resguardasse a dignidade da pessoa
humana em diversos aspectos da vida. Portanto, ficou comprovada a arte no
sentido de processo cultural com papel político de extrema relevância, já que
evidencia atentados a justiça.
Considerando o valor da arte para a observação dos direitos humanos
na realidade do século XX, passou a ser traçado então a evolução dos
instrumentos que asseguravam o próprio acesso a arte, como os direitos
culturais e o direito ao desenvolvimento humano. A vida cultural, prevista na
DUDH, na Constituição Federativa da República do Brasil e na Declaração
sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986, porém enfrenta a complexidade
dos direitos humanos de se efetivar. Por isto, foi mapeada a situação de um
importante elemento da vida cultural no Estado do Rio de Janeiro: o cinema.
A triste realidade revelou que ainda se faz necessário garantir, facilitar e
ampliar o acesso a arte cinematográfica, ainda mais quando os temas
abordados em filmes e séries refletem desigualdades sociais e a importância
dos direitos humanos de forma lúdica e didática para a população, como visto
nos exemplos: Parasita (2019), Avatar: A Lenda de Aang (2006) e Irmão do
Jorel (2018).
A arte do audiovisual consegue, portanto, assegurar as condições para a
prática de direitos humanos que foi definida por Herrera Flores, ao
desempenhar um forte papel de conscientização e abarcar uma visão de
mundo repleto por coletividades sociais. Incentivar e alargar o entendimento
das pessoas quanto direitos humanos através da arte é uma ferramenta
essencial para a efetivação de uma vida digna, democrática e justa seja
garantida.
59
REFERÊNCIAS
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517.
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https://newsblaze.com/entertainment/features/nickelodeons-avatar-the-last-
airbender-hits-all-time-series-high_62095/> . Acesso em: 15/03/2021.
61
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REIS, Jair Teixeira dos. Direitos Humanos. 4 ed. São Paulo: LTr, 2014.
63
TATARKIEWICZ, Wladyslaw. What is Art? The Problem of Definition Today,
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64