O Traçado Tortuoso Da Defesa Da Democracia Burguesa - Vania Noeli
O Traçado Tortuoso Da Defesa Da Democracia Burguesa - Vania Noeli
O Traçado Tortuoso Da Defesa Da Democracia Burguesa - Vania Noeli
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No texto aqui em análise, volta-se contra o “mito hoje dominante” segundo o
qual “democracia e livre mercado capitalista se identificam”, arrematando que
“precisamente a história dos países em que a tradição liberal está mais
profundamente enraizada se mostra inextricavelmente entrelaçada com a história
do instituto da escravidão” e “acumularam um considerável atraso histórico no
próprio terreno da emancipação política” (Losurdo, 2004, pp. 9; 51). Esta tese
apologética atribui ao processo histórico de conquista dos direitos políticos uma
linearidade que não possui e “passa por cima das gigantescas lutas políticas e
sociais empreendidas pelas massas populares excluídas” (Losurdo, 2004, pp. 39-
40).
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Sublinha o fato de que o bonapartismo está inscrito na natureza da
república liberal e tem como inimigo natural a classe trabalhadora, como Marx já
afirmara, em suas obras clássicas sobre a história francesa. Percebe-se que o
recurso ao bonapartismo volta-se naturalmente contra as massas trabalhadoras,
em momentos nos quais esta poderia apontar a possibilidade prática de ruptura da
ordem burguesa. Em relação ao movimento sindical, Losurdo frisa como o regime
bonapartista recém-nascido o reprimiu duramente, e voltaria a fazê-lo sempre que
diante de uma crise potencialmente revolucionária. Ao se sentir fortalecido, o
bonapartismo francês não medrou diante da legalização do direito de greve, mas
manteve sempre sua posição de proibição de qualquer entidade associativa com
caráter permanente.
Em observações que podem em muito (guardadas, evidentemente, as
devidas proporções) aclarar as confusões relativas a recentes acontecimentos na
América Latina, Losurdo ressalta aquele como “um novo modelo de controle
político e social das massas” que neutralizava o potencial desestabilizador do
sufrágio universal com a centralização dos poderes no chefe do executivo – o qual
relaciona-se com as classes tidas como perigosas via concessões limitadas
(realização de obras públicas, tabelamento dos aluguéis nas grandes cidades e
outras nada socialistas, porquanto destinadas a garantir a segurança da
propriedade e da esfera privadas) e via política exterior agressiva, voltando os
ódios e descontentamentos para o inimigo externo. A centralização de forças no
poder executivo era considerada o melhor contrapeso à democracia e à perniciosa
onipotência parlamentar.
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intermediário que se arrogue o direito de substituir um e outro’”. Por isso a
propaganda bonapartista denunciava recorrentemente os partidos, os grupos
políticos organizados e os órgãos de imprensa correlacionados a eles,
considerados “instrumentos de coerção e de sufocamento da espontaneidade do
eleitorado, o qual deve ser ‘libertado’ de tudo isto para se entregar à relação direta,
e subalterna, com o líder local e, em nível nacional, com o líder carismático e
indiscutido da nação” (Losurdo, 2004, pp. 62-3).
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Para Bonaparte “a natureza da democracia é a de personificar-se num
homem” (apud Losurdo, 2004, pp. 65-6). O presidente compartilhava com a
burguesia liberal “o ódio e o desprezo por aqueles que define e tacha como
‘demagogos’, ‘igualitários’, ‘detestáveis sonhadores da doutrina especulativa’”
(Losurdo, 2004, p. 61). Defendia o sufrágio universal por substituir a revolução por
um direito e tomava para si a tarefa de acabar com a era das revoluções,
tutelando os anseios populares e mantendo o povo indene a paixões doutrinárias.
Sua incompatibilidade com as organizações sociais do povo – clubes, partidos,
sindicatos, associações, imprensa – advém justamente desta necessidade de
substituir o convencimento em relação a um programa pela excitação em relação
a um líder, o que poderia ser obstruído se o contato direto sofresse a
intermediação de uma organização popular. Donde a repressão a todo tipo de
associação, mesmo quando se relaxaram as proibições ao direito de greve.
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latente e implícito na democracia ‘burguesa’ o momento da ditadura” (Losurdo,
2004, p. 327).
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Socióloga, é mestre e doutora pela PUC-SP. Este texto resulta de trechos
modificados do trabalho intitulado Pandemônio de infâmias: classes sociais,
estado e política nos estudos de Marx sobre o bonapartismo. 2005. Tese
(Doutorado) apresentada à PUC-SP.