Nunes - Filosofia Contempornea - 9 - Fenomenologia - Fontes e Conceitos 10 - A
Nunes - Filosofia Contempornea - 9 - Fenomenologia - Fontes e Conceitos 10 - A
Nunes - Filosofia Contempornea - 9 - Fenomenologia - Fontes e Conceitos 10 - A
AS FONTES
Acepções da fenomenologia
109
lógico, inauguram duas novas direções, respectivamente a ética material
dos valores (1913)' e a analítica do Dasein (1927). É do mesmo método
que vão sair, muito mais tarde, as ontologias de Jean-Paul Sartre e de
Maurice Merleau-Ponty. Quanto a Husserl, para quem o pensamento
fenomenológico era tarefa infindável, a exigir o esforço concatenado de
muitas gerações de filósofos, continuou ele, até o fim da vida, sempre
retornando aos mesmos temas, a desenvolver e a enriquecer a filoso-
fia fenomenológica. Esse seu esforço de reflexão, sinuoso e reversível,
deu origem a uma obra de “circuito fechado”, onde últimos problemas
o
A obra de Husserl
1.
Ver“A Intencionalidade dos Sentimentos" p. 131.
OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS
A lógica pura
Adotando uma posição francamente antipsicologista, afirma Husserl, nos
Prolegômenos, que os princípios lógicos, independentemente das fun-
ções anímicas ou psíquicas a que se acham ligados, têm valor próprio e
autonomia específica. A lógica, mais do que uma ciência entre outras, é
Vivência e significação
a
contentar-nos com a psicologia nem satisfazer-nos com simples expo
sição das técnicas operatórias dos procedimentos e dos métodos em uso
pelas diferentes ciências. Será preciso que acompanhemos o pensamento,
que o vejamos transmudar-se em conhecimento. O ato de conhecer per-
tence a um sujeito psicológico-empírico. Mas o conhecimento mesmo
é indissociável de conteúdos objetivos, válidos, quaisquer que sejam as
oscilações da experiência individual. De que modo, porém, acompanhar
A intuição
Deixemo-nos guiar pelas vivências, procurando apreender seus pró- os
prios conteúdos transparentes. Se nos limitamos à intuição em todo o
processo que vai ser exposto, o que se apresenta, em primeiro lugar,
quando visamos aquela frase, é um conjunto de signos sensíveis, orais
ou gráficos, articulados de maneira expressiva. Podemos até enunciá-la
como quem registra uma impressão momentânea a outrem, notificando
é
um estado subjetivo, que passageiro. tão é aí, porém, que reside a vivên-
cia correspondente à significação do nosso juízo afirmativo. Ao dizermos
“a mesa é redondz”, afirmamos algo que possui unidade, pois que há, no
tiva, a qual aponta para um objeto. Não importa que nenhuma mesa
Tedonda exista neste momento. Mas quando enunciamos aquela frase,
Fenômeno
vivência e intuição, têm por fim apreender o que é essencial nas vivências
da percepção, da imaginação, do juízo etc. intuitivamente visadas.
Asvivências, juntamente com o que nelas aparece ou se torna manifesto,
chamam-se fenômenos, no sentido que Husserl, volvendo à acepção dos
vocábulos gregos phainesthai, aparecer, e phainomenon, o que aparece,
empresta à palavra.
Segundo o que vimos até aqui, não há dúvida de que o vocabulário de
Husserl tem relações estreitas com a psicologia. Vivência (Erlebnis) é a
qualidade própria dos estados psíquicos enquanto fenômenos da cons-
3: H. Husserl, Investigações Lógicas, 1,$ 3x, Paris, Presses Universitaires de France, 1961, t 2,
parte
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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
ciência, por nós diretamente experimentados ou vividos. Ora, o conhe-
cimento das vivências e de seus conteúdos, para determinar-se a essên-
cia da percepção, do juízo, da imaginação, e, enfim, de todos os estados
do pensamento, seria apenas uma das modalidades da psicologia des-
critiva, se, já a partir da v Investigação Lógica, a noção de consciência
não tivesse passado
por uma reformulação, graças à qual os conceitos de
e
vivência, fenômeno essência ganharam uma nova perspectiva, que nos
dará acesso ao domínio fenomenológico propriamente dito.
Intencionalidade
Baseado nas distinções essenciais entre fenômenos psíquicos e fenôme-
nos físicos que Franz Brentano (1838-1917) estabeleceu em sua Psicologia
do Ponto de Vista Empírico (1874), Husserl vê na intencionalidade (in-exis-
tência intencional para os escolásticos) a característica fundamental da
consciência”.
significa intencionalidade? A psicologia tradicional, no pressu-
Que
Os objetos intencionais
116 |
FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
já é estar voltado para, já é visar algo que se situa no âmbito da visão,
mas que com a visão não se confunde. À metáfora de um foco luminoso
ilustra essa verdade. Uma coisa é o foco que ilumina, outra, os objetos
iluminados. Assim, a consciência, respeitando-se a intencionalidade que
a caracteriza essencialmente, é, como ato (nóesis), o que visa, ilumina,
focaliza, e, como referência implícita a objetos que se delineiam na orla
do próprio ato, é o que é visado, iluminado e focalizado (nóema). Foi
atendendo a esse duplo aspecto que Husserl falou na estrutura noético-
nocemática das vivências, a qual se sobrepõe aos elementos reais (sensa-
ções) que as integram, e que são objeto da psicologia empírica.
O
que interessa à fenomenologiaa vivência intencional (com o seu
é
conteúdo, a sua matéria, a sua qualidade). No caso da percepção, por
exemplo, existe um substrato real (hyletico): as sensações de que não
temos consciência e que ficam na retaguarda do ato com que visamos os
“objetospercebidos. Mas há diversos modos de visar (o da imaginação,
do juízo, dos atos de avaliar, de sentir esteticamente etc), a cada um dos
quais corresponde um certo modo de intencionalidade, com uma zona
de unidades significantes e de objetos.
AA
intencionalidade, que é ato e visão, carreia um sentido. Portanto,
108 atos da consciência, do ponto de vista fenomenológico, são insepará-
6. Idem, VSn,p.176.
o
segundo o qual tudo que se nos oferece intuitivamente, com a máxima
evidência (a intencionalidade plenamente esclarecida), é conhecimento
lógica e epistemologicamente fundamental.
O método fenomenológico
o
roborada pela evidência, que tem por objeto curso das vivências inten-
cionais, e por fim explicitar o que nelas se encontra efetivamente dado
ou manifesto, está, segundo nos diz Husserl, na direção antinatural,
porém legítima, que o pensamento toma ao refletir sobre os seus atos e o
sentido imanente que eles comportam. Essa fidelidade do método feno-
Nenhuma teoria
imaginável pode induzir nos à erro se obedecermos prin- ao
(ípio dos princípios: toda intuição que se oferece originariamente é uma fonte legi
tima para o conhecimento; tudo que se oferece na intuição de modo originário (na
Sua realidade corporal,por assim dizer) deve ser simplesmente aceito por aquilo
que apresenta, mas sem ultrapassar os limites dentro dos quais se manifesta.
A sexta investigação
Coroamento da obra de 1901-1902, a Sexta Investigação soluciona, no
sentido fenomenológico, em função da teoria geral da ciência como Teo
ria do Conhecimento, por meio das noções de ato (vivência intencional)
e objeto intencional, o problema da significação colocado na Primeira.
Seé na intencionalidade, em última análise, que as significações repou.
sam, o conhecimento propriamente dito depende do ajuste, controlado
pela evidência, entre a significação que a consciência visa e a intuição com
a
que medimos sua objetividade. Quando as intuições preenchem os sig-
nificados intencionais (preenchimento intuitivo), pode-se dizer
que há
conhecimento; em caso contrário, o conhecimento é falho ou não existe.
m
O conhecimento não é uniforme: apresenta graus que vão da pleni-
tude mínima à máxima, numa gama variável, dentro da qual intuição e
intenção se correspondem. A plenitude máxima diferencia-se segundo a
adequação e a inadequação, características essenciais do conhecimento.
numa ordem dada, Assim, por exemplo, as leis lógicas puras (categorias
formais) são adequadamente conhecidas, isto é, o seu conhecimento,
fenomenologicamente considerado, faz-se acompanhado de total evi-
dência. Certas categorias materiais, que constituem determinações
necessárias, decorrentes das essências dos objetos, apresentam-se por
meio de um conhecimento do mesmo tipo (a relação entre matéria e
extensão, por exemplo), o qual, prevalecendo para todos os casos indi-
viduais que se possam imaginar, é de caráter apriorístico. Temos, em
ambos os casos, um conhecimento adequado, em que a evidência ocorre
no grau máximo. A verdade é, por definição, o correlato da evidênci
que nem sempre atinge a plenitude.
A percepção
O preenchimento intuitivo a que nos referimos é sempre inadequado na
percepção. Descrevendo, numa de suas mais famosas análises, a vivên-
cia intencional da percepção, mostra-nos Husserl que a intenção e a
intuição do objeto percebido se perseguem, sem jamais coincidir plena-
mente. O objeto, na percepção, sempre aparece através de uma série de
perspectivas: ora por um lado, ora por outro, cada um desses aspectos
Temetendo ao seguinte, de tal modo que há, na percepção, e em cará
ter essencial, elementos potenciais que impedem a completa evidência
acerca do objeto sensível. Quer isso dizer que o objeto percebido não
pode ser enfeixado numa síntese racional pura, completamente atuali-
zada pela evidência. Daí ser o fenômeno da percepção embaraçoso para
0 ideal de conhecimento, no grau exigido pelo racionalismo.
A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL |
123
Essa mudança de registro, operada por meio da epoché fenomenológica,
como atitude radical de abstenção permanente dos juízos de realidade,
em proveito dos fenômenos e de suas essências, é a redução.
AA
ciência rigorosa
e
dos fenômenos de suas essências. Ela abrange, pois, toda aquela nova e
riquíssima área da nossa experiência, formada pelas cogitationes, como
vivências intencionais puras, que foi aberta pela redução.
O
pressupõe as conclusões anteriores, começa pela
livro de 1913, Ideias 1, que
distinção entre fato e essência. À essência, originária e a priori, é um eidos,
mas não como ideia, na acepção platônica, separada e independente dos
fatos. Ela constitui para a fenomenologia, como eidos, o próprio sen-
tido dos fatos e só a partir deles pode ser concebida, Mas, em compen-
sação, não há fatos sem essências. Para cada ordem de fatos existem
ordens eidéticas, isto é, essências determinadas, como há, também, uma
essência para os fatos em geral. Que é que caracteriza um fato qualquer?
Digamos, por exemplo, a percepção de um objeto, a queda de um corpo
!ou a existência de um determinado indivíduo. io acontecimentos que
variam, no espaço e no tempo, que se
apresentam de diferentes formas,
fatos. Só o
que aparecem agora e desaparecem depois. Tudo varia nos
cará-
que não varia é a contingência que os marca, que constitui o seu
ter essencial, o eidos propriamente dito. Podemos, seguindo a mesma
orientação, determinar o eidos das coisas físicas, dos seres animados
e espirituais, dos valores, cada ordem dessas constituindo uma região
A ciência rigorosa
e
dos fenômenos de suas essênci . Ela abrange, pois, toda aquela nova e
Tiquíssima área da nossa experiência, formada pelas cogitationes, como
vivências intencionais puras, que foi aberta pela redução.
O
livro de 1913, Ideias que pressupõe as
1, conclusões anteriores, começa pela
distinção entre fato e essência. A essência, originária e a priori, é um eidos,
mas não como ideia, na acepção platônica, separada e independente dos
fatos. Ela constitui para a fenomenologia, como eidos, o próprio sen-
tido dos fatos e só a partir deles pode ser concebida. Mas, em compen-
sação, não há fatos sem essências. Para cada ordem de fatos existem
ordens eidéticas, isto é,
essências determinadas, como há, também, uma
essência para os fatos em geral. Que é que caracteriza um fato qualquer?
Digamos, por exemplo, a percepção de um objeto, a queda de um corpo
“ou existência de um determinado indivíduo. São acontecimentos que
a
variam, no espaço e no tempo, que se apresentam de diferentes formas,
que aparecem agora e desaparecem depois. Tudo varia nos fatos. Só o
que não varia é a contingência que os marca, que constitui o seu cará-
ter essencial, o eidos propriamente dito. Podemos, seguindo a mesma
Orientação, determinar o eidos das coisas físicas, dos seres animados
e espirituais, dos valores, cada ordem dessas constituindo uma região
a
tar, porque o mundo continua subsistindo, e é apenas tese de sua exis-
tência, de sua realidade, que deixamos de utilizar em nossos juízos. E se
algo perdemos com a redução, é a nossa habitual familiaridade com o
Eu
tema
dessas relações que se enraíza a atitude natural, por meio de cuja perspec-
tiva a realidade se nos apresenta como o que está aí diante de nós: as coisas
com que nos defrontamos e que existem lado à lado conosco.
cia
epoché suspende a atitude natural. Interrompida
AA
a
tácita convivên-
entre nós e as coisas, que nos obriga a aceitar como real tudo aquilo
que temporal e especialmente nos circunda, compreendemos então que
à atitude natural é uma simples posiç; (tese), que pode ser neutrali-
zada. A redução equivale, por isso, a uma depuração, a um distancia-
mento, que nos permite contemplar reflexivamente, como que de longe,
as diferentes coisas e o nosso próprio Eu empírico, individual. O mundo
físico e o mundo psicológico passam a existir para nós como um cir-
cuito de vivências estruturadas de certa forma. Eis aí o que ganhamos
com a atitude fenomenológic: 0 acesso à região da consciência pura,
que corresponde a esse circuito de vivências, e em que o puro, trans-
cendental, substitui o Eu real, empírico. “Pode-se dizer que a epoché”,
conclui Husserl já numa outra de suas obras, Meditações Cartesianas, “é
o método radical e universal que permite apreender-me como Eu puro,
com a vida de consciência pura que me é própria, na qual e por meio da
qual o mundo objetivo é para mim e tal qual é para mim”.
O eu transcendental e a constituição
/A PENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL |
127
transcendentalmente constituído. Semelhante hipótese da constituição
dos objetos à partir do Eu transcendental ocupa o âmago dafilosofia
fenomenológica. A constituição da qual Husserl tratou, longe de ser,
porém, uma atividade produtiva da consciência, como admitia o idea.
lismo de Fichte, é a constituição do sentido que os objetos, por meio de
atos intencionais, alcançam para a consciência, depurada pela redução.
O mundo que o fenomenólogo procura cons ituir é o mundo redu-
ido a fenômeno, cujos aspectos se retraem aos atos intencionais do Eu
transcendental, “que existe para si próprio em ininterrupta evidência”,
e onde Husserl encontrou a fonte de todo sentido e da Razão. Fonte de
divergência entre os fenomenólogos, a constituição, que é uma tentativa
para fundamentar todas as coisas, todos os fatos, em significações redu-
tíveis à consciência, demonstra, por um lado, as tendências racionalistas
elogicizantes do pensamento de Husserl, mas precipita-nos, por outro,
na questão da natureza do Tempo.
tempo, consoante a análise da Fenomenologia da Consciência do
O
É a
intuição pura, vazia, da Estética
transcendental de Kant. o horizonte em relação ao qual as vivências
É
A intersubjetividade
AA
tese anteriormente referida, de que todos os fenômenos que redu-
ção desconectou da realidade existem para o Eu puro, e tal como a ele
a
se apresentam, expõe a fenomenologia ao perigo de encerrar-se numa
posição solipsista. Uma vez que é o Eu que possui o privilégio da evi-
dência contínua em relação aos seus próprios atos, há dificuldade de se
transferir essa mesma evidência para outra esfera subjetiva que não a
minha, operando-se constituição de um outro Eu que é diferente, e no
a
entanto idêntico a mim próprio. O tremendo esforço das análises feno-
menológicas redundaria no final e melancólico reconhecimento da exis.
tência de uma subjetividade monádica, autossuficiente, mas sem janelas
para outras mônadas, refletindo o mundo inteiro de seu ponto de vista
soberano mas solitário.
Husserl deteve-se longamente, em suas Meditações Cartesianas, na
descrição da experiência fenomenológica do Alter ego, que é muito dife-
Tente da experiência com as coisas físicas, objetos imaginários e ideais,
Do ponto de vista natural, que é o adotado pelo conhecimento obje-
A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL |
129
tivo das ciências, os outros se apresentam sempre, seja sob a forma de
corpo físico, seja sob a de organização biopsíquica, como um gênero de
“objetos entre outros objetos da natureza. Abrindo um problema dessa
ordem, que não foi debatido, dentro das correntes tradicionais, nem
pelo realismo, nem pelo idealismo, Husserl teve ainda maior mérito,
quando procurou, além do conhecimento de coisas físicas, organismos
e outros objetos ideais, estabelecer um meio para chegar à evidência das
relações intersubjetivas.
Meu Eu, que me é dado de maneira apodítica único ser que posso admitir
existindo de maneira absolutamente apodítica não pode ser um eu tendo à expe-
-,
Fiência do mundo se não estiver em comércio com outros ego, meus semelhantes,
se não for um membro da sociedade de mônadas que lhe é dada de um modo
orientado, A justificação consequente do mundo da experiência objetiva implica
uma justificação consequente da existência de outras mônadas”.
ANÁLISE CATEGORIAL
2. N. Hartmann, Metafísica do Conhecimento, Buenos Aires, Ed. Losada, 1957, v.1, p. 246.
a
conjunto, por certo número de categorias gerais (como o tempo, indivi-
dualidade, a causalidade) e tendo cada qual as suas categorias específicas.
Pode
oleitor perceber, pelo que diz respeito às principais vertentes
da tradição filosófica, quer sejam espiritualistas ou materialistas, as mar-
cas não clássicas da concepção de Hartmann: 1º) o espírito colocado na
mesma região que compreende a materialidade física, a vida e o psíquico;
2º) o problema das relações entre substâncias substituído pela questão
das relações entre estratos, que constituem parte da mesma circunscri-
ção ontológica, mas descontínuos (irredutibilidade do orgânico ao físico,
do psíquico ao orgânico etc.), superpostos e não opostos, havendo entre
eles diferença de grau ou altura, correspondendo a diferenças qualitati-
que essa questão cabe à análise categorial resolver. Assim, as rela-
Vas; 3º)
ções entre os estratos estão asseguradas pela permanência e modificação
de categorias comuns, que, passando de um estrato inferior ao supe-
rior, sofrem neste uma supraconfiguração. O estrato superior depende
sempre do inferior, mas graças à emergência de uma nova categoria,
que constitui para Hartmann a lei da liberdade, é autônomo em rela-
ção àquele no qual se fundamenta. As diferentes formas, e, entre elas,
0 próprio homem, recebem a sua inteligibilidade desses quatro estratos
com os quais não coincidem inteiramente. O homem abrange -os todos,
mas nem por isso ganha qualquer privilégio ontológico especial. O espí.
que “tem por seu ser, entre outras coisas, a possibilidade de colocar
questões”, reforça a exigência metodológica antes mencionada, que jus-
tifica a tradução neutra que dele se faz (ser-aí, ser-ahi, Iétre-lá) nas lin-
guas neolatinas.
É o ponto de vista da consciência, eminente em Husserl e neutral
zado por Heidegger, aquele que marca a ontologia de Jean-Paul Sartre
(1905-1980), em parte fruto da interpretação que esse filósofo, o qual i
milou de maneira original o pensamento do Ser e Tempo, deu ao método
fenomenológico em A Imaginação (1936) e Esboço de uma Teoria das
Emoções (1939), ensaios onde expõe as implicações do conceito de inten-
cionalidade, cuja importância ressaltou em “Uma Ideia Fundamental da
Fenomenologia de Husserl” (1939), artigo depois incluído em Situações 1.
Desses ensaios, na linha que seguiria O Imaginário (1940), resultam duas
conclusões sobre a natureza da consciência, posteriormente incorporadas
a O Ser e o Nada, Ensaio de Ontologia Fenomenológica (1943): a) a função
negadora da consciência, que consiste em negar ou des-realizar a reali-
dade imediata, comprovada pela imaginação; b) o predomínio, nas con-
dutas emocionais, da consciência imediata, antecedendo a consciência
reflexiva, e que Sartre chamará consciência pré-reflexiva, não posicional.
Em O Ser e o Nada, entendendo, de acordo com o princípio da inten-
cionalidade, que a consciência não é substancial, porque existe voltada
para os objetos, afirma Sartre, ao mesmo tempo, que ela é uma exis-
A FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO.
140 |
FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
consciência, que melhor se revela a si mesma quando engajada, assim
o mundo, “que envolve determinações objetivas, mas também fissuras e
Jacunas..”. É essa imagem complexa de uma realidade inacabada, na qual
as contradições existem, mas não se resolvem pelo pensamento, o cen-
tro da concepção de Merleau-Ponty, situada na delicada zona fronteiriça
entre a fenomenologia é as filosofias da existência propriamente ditas,