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Fenomenologia: Fontes e Conceitos

AS FONTES

Acepções da fenomenologia

A palavra fenomenologia, peça importante no estoque terminológico


do pensamento contemporâneo, pode ser tomada em três acepções.
De um modo geral, designa uma nova atitude filosófica à luz da qual
Edmund Husserl (1859-1938) focalizou a problemática da filosofia. Foi
dessa atitude que resultou um processo de investigação, relativamente
autônomo, que constitui a fenomenologia no sentido metodológico do
termo. Temos, finalmente, na terceira acepção, a fenomenologia no sen-
tido estrito: é a filosofia fenomenológica propriamente dita, que sintetiza
o desenvolvimento que, dentro de uma perspectiva idealista, Husserl deu
à atitude e ao método por ele estabelecidos.
Sem vinculações com a Fenomenologia do Espírito de Hegel, e não
tendo chegado a formar um sistema especulativo, a fenomenologia, seja
pelo método, seja pela atitude que a inspirou, rapidamente se propagou,
servindo de fundamento, quando não de subsídio, a concepções outras,
independentes da orientação mantida por Husserl, a qual foi mais uma
Jonga reflexão inacabada acerca de certos problemas filosóficos essen-
ciais do que uma filosofia sistemática. Logo apareceram no Anuário de
Filosofia e de Pesquisa Fenomenológica (Jahrbuch fãr Philosophie und
phânomenologisch Forschung), publicado por Husserl, os trabalhos de
Max Scheler e Martin Heidegger, que, valendo-se do método fenomeno-

109
lógico, inauguram duas novas direções, respectivamente a ética material
dos valores (1913)' e a analítica do Dasein (1927). É do mesmo método
que vão sair, muito mais tarde, as ontologias de Jean-Paul Sartre e de
Maurice Merleau-Ponty. Quanto a Husserl, para quem o pensamento
fenomenológico era tarefa infindável, a exigir o esforço concatenado de
muitas gerações de filósofos, continuou ele, até o fim da vida, sempre
retornando aos mesmos temas, a desenvolver e a enriquecer a filoso-
fia fenomenológica. Esse seu esforço de reflexão, sinuoso e reversível,
deu origem a uma obra de “circuito fechado”, onde últimos problemas
o

debatidos são desdobramento das mesmas questô.

A obra de Husserl

Excluindo-se uma tese de doutoramento, Contribuição à Teoria do Cál.


culo das Variações (1883), e a Filosofia da Aritmética (1891), em
que já
transparecem as motivações de ordem lógica que o conduziriam à feno-
menologia, Husserl publicou em vida os seguintes textos fundamentais,
que representam uma reduzida parcela de sua volumosíssima produ-
ção filosófica: Investigações Lógicas, dois volumes na edição original
(1901-1902) - o primeiro, Prolegômenos à Lógica Pura, o segundo con-
tendo seis Investigações (segunda edição em três volumes, 1913-1922;
terceira e quarta edições, 1922 a 1928); A Filosofia como Ciência Rigorosa
(1911), ensaio estampado
na
revista Logos 1; Ideias Diretrizes para uma
Fenomenologia e uma Filosofia Fenomenológica Puras (1913), conhecido
como Ideias lançamento especial do Jahrbuch; Lógica Formal e Lógica
1,

Transcendental (1930), também publicação do Jahrbuch. Intercalam-se


entre esses livros diversas publicações esparsas, com base em cursos
e conferências, como a Fenomenologia da Consciência do Tempo Ima-
nente, editada por Heidegger (1924), é o artigo “Fenomenologia”, para a

1.
Ver“A Intencionalidade dos Sentimentos" p. 131.

2. Ver “Analítica do Dasein",p. 145.

120 FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA


14ºedição da Enciclopédia Britânica (1927). Registra-se, depois disso, o
aparecimento de Meditações Cartesianas (1934), preleções de Husserl na
Sorbonne, pela primeira vez publicadas em tradução francesa, e, mais
ainda, Experiência e Juízo (1939, Praga), edição de Landgrebe. Outros
muitos escritos formaram a pilha de trinta mil páginas inéditas, autó-
grafas in octavo, dos arquivos Husserl em Louvain, a partir dos quais
o
responsável, H. L. Van Breda, conieçou, sob sua direção, a partir de
1950, à edição da Husserliana (Edmund Husserl Gesammelte Werke,
Haag, Martinus Nijhoff), estendendo-se hoje por vários tomos, nos
quais se incluem, ao lado dos textos mais antigos, a exemplo de A Ideia
de Fenomenologia (1907), outros mais recentes, como A Crise da Ciência
Europeia e a Fenomenologia Transcendental (1935-1937). Por uma ironia
do tempo, condizente com o modo de pensar do filósofo, foram
alguns
dos inéditos antigos, Ideias 11 e Ideias 1m, do período de 1923 a 1928,
somente conhecidos, antes da Husserliana, por um grupo de discípulos
e pesquisadores, aqueles que, juntamente com A Crise, reforçaram, após
a morte de Husserl, o prestígio e a influência da fenomenologia. Não
resta dúvida, porém, de que, apesar de toda essa diversificação e com-
plexidade, as Investigações Lógicas e Ideias 1 formam como que os dois
centros do pensamento husserliano, nos quais podemos encontrar os
conceitos fundamentais, de cuja explicitação resultaram as três acepções
convergentes de fenomenologia inicialmente mencionadas.

OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS

A lógica pura
Adotando uma posição francamente antipsicologista, afirma Husserl, nos
Prolegômenos, que os princípios lógicos, independentemente das fun-
ções anímicas ou psíquicas a que se acham ligados, têm valor próprio e
autonomia específica. A lógica, mais do que uma ciência entre outras, é

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a teoria geral, a base mesmado conhecimento objetivo, fundamentado,
a que os gregos deram o nome de episteme.
Acima dos seus intuitos polêmicos, o antipsicologismo de Husserl,
orientado pela ideia de fundamentação do conhecimento, reabre, assim,
a questão primordial que na história do pensamento moderno liga a filo -
sofia de Descartes ao criticismo de Kant questão da possibilidade
da teoria em si, da construção de uma ciência dos princípios de todo
conhecimento científico. Ora, esse problema se situa num plano muito
diferente daquele que cabe à psicologia abordar. Enquanto esta só pode
conceber o conhecimento como atividade do sujeito empírico, como
parte de sua experiência mutável, subordinada, portanto, a condições
subjetivas, variáveis de indivíduo para indivíduo, a teoria pura, visando
a ciência, exige condições objetivas, essenciais e ideais. Para a elabora-
ção de semelhante teoria, cuja validade incontestável deverá obedecer
ao modelo comum de que participam a lógica e a matemática, não basta
1a análise formal do pensamento, tarefa na qual, muito embora desem-

penhando papel importante, os matemáticos, forçosamente limitados à


descoberta e à aplicação de leis, precisam da companhia dos filósofos, os
quais procuram determinar nos conceitos o sentido e o núcleo racional
em que repousa a possibilidade da ciência. Vejamos como foi que desse
jal de Husserl
projeto i surgiu a fenomenologia.

Vivência e significação

Para estabelecer as matrizes de toda teoria ou ciência, não poderemos

a
contentar-nos com a psicologia nem satisfazer-nos com simples expo
sição das técnicas operatórias dos procedimentos e dos métodos em uso
pelas diferentes ciências. Será preciso que acompanhemos o pensamento,
que o vejamos transmudar-se em conhecimento. O ato de conhecer per-
tence a um sujeito psicológico-empírico. Mas o conhecimento mesmo
é indissociável de conteúdos objetivos, válidos, quaisquer que sejam as
oscilações da experiência individual. De que modo, porém, acompanhar

112 FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA


o pensamento se não acompanharmos os atos que o especificam, tais
como perceber, conceber, julgar, raciocinar e imaginar? Esses atos, que
podemos apreender ou captar direta e imediatamente, são todos eles,
antes de mais nada, atos da consciência, e, como atos da consciência,
encerram vivências de certo tipo. Seja a simples representação do objeto
mesa, seja um conceito abstrato como matéria ou a ideia absurda de um
quadrado redondo, todas as vivências possuem uma significação, que
deve ser preliminarmente buscada nas expressões linguísticas.
primeira das seis Investigaç
AA
Lógicas, que se seguiram aos Prole-
ss

(gômenos, inicia, visando


a linguagem, uma análise da significação, que
irá condicionar o rumo posterior do pensamento husserliano. Para exem-
plificar, indaguemos: qual é a vivência da significação de uma frase como
“a mesa é redonda”?

A intuição
Deixemo-nos guiar pelas vivências, procurando apreender seus pró- os
prios conteúdos transparentes. Se nos limitamos à intuição em todo o
processo que vai ser exposto, o que se apresenta, em primeiro lugar,
quando visamos aquela frase, é um conjunto de signos sensíveis, orais
ou gráficos, articulados de maneira expressiva. Podemos até enunciá-la
como quem registra uma impressão momentânea a outrem, notificando
é
um estado subjetivo, que passageiro. tão é aí, porém, que reside a vivên-
cia correspondente à significação do nosso juízo afirmativo. Ao dizermos
“a mesa é redondz”, afirmamos algo que possui unidade, pois que há, no

juízo acima, um significado único, sintético, que pertence ao juízo como


um todo que ele é e que não podemos decompor.
Vemos, continuando a análise, que a significação inerente àquele juízo,
como unidade que caracteriza, traz em si mesma uma referência obje.
o

tiva, a qual aponta para um objeto. Não importa que nenhuma mesa
Tedonda exista neste momento. Mas quando enunciamos aquela frase,

por mais que variem os estados de consciência que experimentamos,

FENOMENOLOGIA: FONTES E CONCEITOS | 113


apresenta-se-nos um significado, com a referência objetiva que lhe é
peculiar, e que compreendemos como unidade significante. As vivên.
cias aqui se apresentam numa certa ordem, com uma propensão à
objetividade, que não se relaciona com o encadeamento empírico ou
real dos estados de consciência. No caso em foco, pode ser a mesa real,
como objeto a que o ato de julgar se refere, por meio da expressão falada
ou escrita, o mesmo objeto da nossa intuição. Muitos outros objetos,
além dos reais, podem ser, contudo, objeto de intuição: os fictícios que
a imaginação produz, os lógicos e matemáticos, que são objetos ideais,
incluindo-se nestes os chamados universais (universalia), que não se
Teduzem, como queriam os empiristas (Locke, Berkeley, Hume),
abstratas, e que são, segundo Husserl, unidades concretas, captadas por
a ideias
um ato específico, de caráter intuitivo, que acompanha a respectiva vivên-
cia que temos deles. “Em sentido lógico, são objetos tanto os sete
corpos
regulares quanto os
sete sábios, o teorema do paralelogramo de forças e
cidade de Paris»

Fenômeno

análises que Husserl procede nas Investigações Lógicas, combinando


AAs

vivência e intuição, têm por fim apreender o que é essencial nas vivências
da percepção, da imaginação, do juízo etc. intuitivamente visadas.
Asvivências, juntamente com o que nelas aparece ou se torna manifesto,
chamam-se fenômenos, no sentido que Husserl, volvendo à acepção dos
vocábulos gregos phainesthai, aparecer, e phainomenon, o que aparece,
empresta à palavra.
Segundo o que vimos até aqui, não há dúvida de que o vocabulário de
Husserl tem relações estreitas com a psicologia. Vivência (Erlebnis) é a
qualidade própria dos estados psíquicos enquanto fenômenos da cons-

3: H. Husserl, Investigações Lógicas, 1,$ 3x, Paris, Presses Universitaires de France, 1961, t 2,
parte

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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
ciência, por nós diretamente experimentados ou vividos. Ora, o conhe-
cimento das vivências e de seus conteúdos, para determinar-se a essên-
cia da percepção, do juízo, da imaginação, e, enfim, de todos os estados
do pensamento, seria apenas uma das modalidades da psicologia des-
critiva, se, já a partir da v Investigação Lógica, a noção de consciência
não tivesse passado
por uma reformulação, graças à qual os conceitos de
e
vivência, fenômeno essência ganharam uma nova perspectiva, que nos
dará acesso ao domínio fenomenológico propriamente dito.

Intencionalidade
Baseado nas distinções essenciais entre fenômenos psíquicos e fenôme-
nos físicos que Franz Brentano (1838-1917) estabeleceu em sua Psicologia
do Ponto de Vista Empírico (1874), Husserl vê na intencionalidade (in-exis-
tência intencional para os escolásticos) a característica fundamental da
consciência”.
significa intencionalidade? A psicologia tradicional, no pressu-
Que

posto de que a consciência abriga as imagens ou as representações dos


objetos que afetam os sentidos, fala em conteúdos ou estados de cons-
ciência. Desse ponto de vista, a consciência com as suas leis próprias e
seus dados imediatos é o reduto da vida interior, até onde chegam, para
aí formarem diversos conteúdos (representações ou imagens) ou pro.
duzirem modificações (estados afetivos), e seguindo caminhos obscuros
que as correntes filosóficas dos séculos
xvr e xIX tentaram deslindar,
as impressões provenientes da realidade exterior, à qual pertencem os
objetos e as coisas. A consciência seria um amálgama de todos esses
estados ou conteúdos, um verdadeiro recipiente privilegiado, quando
não o reflexo dos fenômenos exteriores. Toda e qualquer interpretação
dos fenômenos psíquicos, ainda que os considerados fossem os de natu-
reza ativa (desejo, vontade), tinha de levar em conta a barreira estabe-

4. Ver"O Realismo p.ax.

FENOMENOLOGIA: FONTES E CONCEITOS | 115


lecida por este duplo pressuposto: a índole essencialmente receptiva da
consciência, pelo que diz respeito aos objetos, e sua natureza interna,
confinada à experiência imediata de si mesma, que tem por limite
extremo o conhecimento do Eu.
A natureza interna dessa experiência justificava a indagação sobre
se os objetos que nos são dados se encontram mesmo na consciência.
AA
resposta dos escolásticos, renovada por Brentano e aceita por Husserl,
foi negativa. Os objetos não ingressam na consciência como um con-
teúdo externo que nela se interioriza, A consciência já está voltada para
eles, numa forma de relacionamento imediato, que melhor se traduz pela
ideia de orientação, de direção. A consciência está dirigida, orientada
para os objetos, como termo de seus próprios atos. intencionalidade, A
sugerida quando antes nos referimos à propensão das vivências para a
objetividade, é essa orientação, esse nexo direcional.
Para bem compreendermos o alcance do conceito de intencionali-
dade, devemos afastar as noções comuns de intenção voluntária ou de
atividade biológica e psíquica, e enfatizar, juntamente com a ideia de
nexo, orientação, direção, a de ato da consciência. A consciência existe
visando algo, dirigindo-se para. “Na percepção alguma coisa é perce-
bida, na imaginação alguma coisa é imaginada, na enunciação alguma
coisa é enunciada, no amor alguma coisa é amada, no ódio alguma coisa
é odiada, no desejo alguma coisa é desejada etc”

Os objetos intencionais

Do ponto de vista da intencionalidade, os objetos se delineiam como que


através de diferentes faixas focais que constituem a consciência. Nada,
pois, emerge da consciência ou nela se encontra submergido. Não há
uma interioridade fechada em si mesma, nem uma exterioridade pura,
neutra, que a consciência alcança só por ter sido afetada. Ser consciente

H. Husserl, Investigações Lógicas, V,$ 10, op. cit. p. 168, 1.


2, 3º parte.

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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
já é estar voltado para, já é visar algo que se situa no âmbito da visão,
mas que com a visão não se confunde. À metáfora de um foco luminoso
ilustra essa verdade. Uma coisa é o foco que ilumina, outra, os objetos
iluminados. Assim, a consciência, respeitando-se a intencionalidade que
a caracteriza essencialmente, é, como ato (nóesis), o que visa, ilumina,
focaliza, e, como referência implícita a objetos que se delineiam na orla
do próprio ato, é o que é visado, iluminado e focalizado (nóema). Foi
atendendo a esse duplo aspecto que Husserl falou na estrutura noético-
nocemática das vivências, a qual se sobrepõe aos elementos reais (sensa-
ções) que as integram, e que são objeto da psicologia empírica.
O
que interessa à fenomenologiaa vivência intencional (com o seu
é
conteúdo, a sua matéria, a sua qualidade). No caso da percepção, por
exemplo, existe um substrato real (hyletico): as sensações de que não
temos consciência e que ficam na retaguarda do ato com que visamos os
“objetospercebidos. Mas há diversos modos de visar (o da imaginação,
do juízo, dos atos de avaliar, de sentir esteticamente etc), a cada um dos
quais corresponde um certo modo de intencionalidade, com uma zona
de unidades significantes e de objetos.
AA
intencionalidade, que é ato e visão, carreia um sentido. Portanto,
108 atos da consciência, do ponto de vista fenomenológico, são insepará-

veis daquilo que neles se encontra efetivamente dado, como significação


ou objeto. “O dado é essencialmente o mesmo para a consciência, quer
+ objeto representado exista ou seja simplesmente imaginá ão, ou até
mesmo absurdo. Como tal representação, Júpiter ou Bismarck, a Torre
de Babel ou a Catedral de Colônia, o quiliágono ou o poliedro regular,
são sempre iguais”

6. Idem, VSn,p.176.

FENOMENOLOGIA: FONTES E CONCEITOS |


17
Descrição fenomenológica

A intencionalidade, que transforma o teor da vida psíquica, é o que per.


mite unir, na unidade do fenômeno, vivência e significação. Uma nova
perspectiva substitui a da mera descrição psicológica dos estados vivi-
dos. Tomando
as
vivências sem os índices de origem material ou real
que a psicologia não dispensa, sem qualquer pressuposição acerca da
existência empírica que Dilthey manteve sempre na sua teoria da com-
preensão, podemos acompanhar os modos intencionais da vivência, e
descrever tanto o conteúdo e o caráter dos atos (nóesis) quanto a maté-
Tia das objetividades (nóema) que aparecem no âmbito desses atos. Mas
essa descrição do que se apresenta no fenômeno completa-se por uma
apreensão de seus traços irredutíveis, permanentes, os quais formam
0 núcleo da objetividade, que é a essência como tal. Essa apreensão,
denominada abstração ideatória nas Investigações Lógicas, e intuição da
essência nas Ideias 1, legitima-se mediante duas razões fundamentais,
ainda relacionadas com o caráter intencional da consciência: a) o poder
atencional, reflexivo, que nos autoriza a, invertendo a direção natural do
pensamento para os objetos, focar os próprios atos intencionais da cons-
ciência (giro reflexivo) a fim de descrevermos o que é que se apresenta
ou se manifesta neles (fenômeno); b) o critério soberano da intuição,

o
segundo o qual tudo que se nos oferece intuitivamente, com a máxima
evidência (a intencionalidade plenamente esclarecida), é conhecimento
lógica e epistemologicamente fundamental.

O método fenomenológico

A dificuldade do método fenomenológico, que se baseia na intuição cor-

o
roborada pela evidência, que tem por objeto curso das vivências inten-
cionais, e por fim explicitar o que nelas se encontra efetivamente dado
ou manifesto, está, segundo nos diz Husserl, na direção antinatural,
porém legítima, que o pensamento toma ao refletir sobre os seus atos e o
sentido imanente que eles comportam. Essa fidelidade do método feno-

n18 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA.


menológico ao sentido de tudo o que se oferece à intuição com evidên-
cia essencial (em pessoa ou de corpo presente), constitui, para Husserl,
0 caminho indispensável do autêntico positivismo, de que a filosofia
necessita para retornar às coisas. “Se entendemos por positivismo o
esforço, absolutamente livre de preconceitos, para fundamentar todas
as ciências sobre aquilo que é positivo, quer dizer, susceptível do ser
apreendido de modo originário, somos nós os verdadeiros positivistas”
É na obra acima citada que Husser] formula as bases do método feno-

menológico. Devendo seguir a exigência de “retorno às próprias coisas”


(zu den Sachen selbst), não procurando explicar, mas compreender, esse
método tem por fundamento a verdade preliminar apreendida nas
vivências intencionais, segundo o grau de evidência que a reflexão des-
cobre e atualiza

Nenhuma teoria
imaginável pode induzir nos à erro se obedecermos prin- ao
(ípio dos princípios: toda intuição que se oferece originariamente é uma fonte legi
tima para o conhecimento; tudo que se oferece na intuição de modo originário (na
Sua realidade corporal,por assim dizer) deve ser simplesmente aceito por aquilo
que apresenta, mas sem ultrapassar os limites dentro dos quais se manifesta.

7H. Husserl, Ideias Diretrizes, Paris, Ed. NRF, p. 69.


8.
ldem,p.78.

FENOMENOLOGIA: PONTES E CONCEITOS |


19
10
A Fenomenologia Transcendental

DAS INVESTIGAÇÕES LÓGICAS À FILOSOFIA COMO CIÊNCIA RIGOROSA

Foi em suas Ideias Diretrizes


para uma Fenomenologia que Husserl tratou
especialmente da redução. Atitude filosófica radical, implícita nas Investi-
gações Lógicas e abordada em A Ideia de Fenomenologia, lições proferidas
em 1907, a redução é o conceito operatório que condicionou o desenvol-
vimento da filosofia fenomenológica, objeto do presente capítulo, e ao
qual se deve não apenas idealismo singular dessa filosofia como tam-
o

bém a originalidade, a força e a fraqueza da fenomenologia. Antes de


tratarmos desse conceito, vejamos, rapidamente, qual o salto das Inves-
tigações Lógicas para o problema do conhecimento e o ideal da ciência.

A sexta investigação
Coroamento da obra de 1901-1902, a Sexta Investigação soluciona, no
sentido fenomenológico, em função da teoria geral da ciência como Teo
ria do Conhecimento, por meio das noções de ato (vivência intencional)
e objeto intencional, o problema da significação colocado na Primeira.
Seé na intencionalidade, em última análise, que as significações repou.
sam, o conhecimento propriamente dito depende do ajuste, controlado
pela evidência, entre a significação que a consciência visa e a intuição com

a
que medimos sua objetividade. Quando as intuições preenchem os sig-
nificados intencionais (preenchimento intuitivo), pode-se dizer
que há
conhecimento; em caso contrário, o conhecimento é falho ou não existe.

m
O conhecimento não é uniforme: apresenta graus que vão da pleni-
tude mínima à máxima, numa gama variável, dentro da qual intuição e
intenção se correspondem. A plenitude máxima diferencia-se segundo a
adequação e a inadequação, características essenciais do conhecimento.
numa ordem dada, Assim, por exemplo, as leis lógicas puras (categorias
formais) são adequadamente conhecidas, isto é, o seu conhecimento,
fenomenologicamente considerado, faz-se acompanhado de total evi-
dência. Certas categorias materiais, que constituem determinações
necessárias, decorrentes das essências dos objetos, apresentam-se por
meio de um conhecimento do mesmo tipo (a relação entre matéria e
extensão, por exemplo), o qual, prevalecendo para todos os casos indi-
viduais que se possam imaginar, é de caráter apriorístico. Temos, em
ambos os casos, um conhecimento adequado, em que a evidência ocorre
no grau máximo. A verdade é, por definição, o correlato da evidênci
que nem sempre atinge a plenitude.

A percepção
O preenchimento intuitivo a que nos referimos é sempre inadequado na
percepção. Descrevendo, numa de suas mais famosas análises, a vivên-
cia intencional da percepção, mostra-nos Husserl que a intenção e a
intuição do objeto percebido se perseguem, sem jamais coincidir plena-
mente. O objeto, na percepção, sempre aparece através de uma série de
perspectivas: ora por um lado, ora por outro, cada um desses aspectos
Temetendo ao seguinte, de tal modo que há, na percepção, e em cará
ter essencial, elementos potenciais que impedem a completa evidência
acerca do objeto sensível. Quer isso dizer que o objeto percebido não
pode ser enfeixado numa síntese racional pura, completamente atuali-
zada pela evidência. Daí ser o fenômeno da percepção embaraçoso para
0 ideal de conhecimento, no grau exigido pelo racionalismo.

122 FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA


AA
ideia de fenomenologia e a redução

Husserl, no período das Investigações Lógicas, definiu a fenomenologia como


à teoria das vivências em geral, ou, simplesmente, a teoria das essências.
O mesmo ponto de
vista é
mantido nas Lições de 1907 (A Ideia de Feno-
menologia), as quais já empregam, juntamente com a ideia de redução,
uma terminologia que é nova, comparada com a das Investigações. É
que em À Ideia de Fenomenologia, as vivências intencionais, em conso-
mânc com a tradição cartesiana, passam a ser chamadas cogitationes.
E ainda de acordo com essa tradição que Husserl, levando em conta
O caráter imanente que elas possuem, faz das cogitationes os primeiros
dados absolutos do conhecimento. À imanência que as caracteriza pro-
vêm de uma só fonte: a evidência. As cogitationes podem, desse modo,
delimitar aquele domínio do conhecimento intuitivo puro que Descar-
tes vislumbrou, mas que não foi capaz de isolar metodologicamente.
Seguindo o caminho correto da dúvida universal, que o levou ao
Cogito, Descartes não se manteve fiel à imanência das cogitationes. Em
vez de explorá-las intuitivamente, admitiu ele, logo de início, a relação
de certas espécies de vivências (as ideias adventícias) com as coisas exte-
Tiores. Incorreu assim no pressuposto da existência de uma realidade
transcendente que se situa fora da consciência (problema de existência
do mundo exterior).
Foi com o
intuito de preservar o dado fenomenológico puro, e assim
manter intacto o domínio da evidência originária, que Husserl refez o
movimento inicial das Meditationes de Prima Philosophia, de 1641. Mas,
ao contrário de Descartes, decidiu abster-se do pressuposto de trans.
cendência, colocando então a realidade entre parênteses, ou, o que é
o mesmo, colocando em suspenso os juízos de realidade, inclusive
as proposições das ciências. Tal processo - a epoché que os céticos
-,

antigos utilizaram pela primeira vez, e que a dúvida cartesiana refor-


mulou, atinge os fatos psíquicos e os físicos, os seres matemáticos e a
existência empírica, reduzindo todas as coisas ao estado de vivências,

A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL |
123
Essa mudança de registro, operada por meio da epoché fenomenológica,
como atitude radical de abstenção permanente dos juízos de realidade,
em proveito dos fenômenos e de suas essências, é a redução.

AA
ciência rigorosa

Depois de constatar, em A Filosofia como Ciência Rigorosa, a falência


dos sistemas, e de criticar o psicologismo, o naturalismo e o histori.
cismo, particularmente o historicismo de Dilthey e sua doutrina das
concepções do mundo, Husserl ressalta o fato de que jamais a filoso-
fia, que aspira ao verdadeiro conhecimento,
conseguiu, no curso de sua
história, edificar-se como ciência. A filosofia, sob pena de sacrificar o
Seu próprio espírito, necessita adquirir caráter científico. Ela deve ser
a ciência de fundamentos firmes e indiscutíveis. Não que se pretenda
transformá-la em metafísica geral. O que se quer, isto sim, é fazer da
filosofia uma ciência rigorosa, que tenha o seu objeto e o seu
ponto de
vista, específico e intransferível, sobre todos os objetos.
atitude redutora, formulada em 1907, inspirou esse ideal de ciência
AA

Tigorosa (strenge Wissenschaft), o qual, buscado desde as Investigações


Lógicas, é aquele que Husserl, por meio do método fenomenológico,
pretende impor
à
filosofia. Já não se trata mais da preocupação com a
lógica pura ou com à teoria da ciência como tal. A fenomenologia, que
precede a psicologia, e que, procurando determinar a origem das sig-
nificações, situa-se numa esfera anterior à lógica formal, é mais do que
uma teoria da ciência, precisamente porque, na medida em que debate
0 problema da significação, ela investiga e critica o conteúdo mesmo da
Razão. Mas guindada à posição de filosofia científica, a fenomenologia
atém se à sua finalidade, ao seu ponto de vista específico, que é o estudo

e
dos fenômenos de suas essências. Ela abrange, pois, toda aquela nova e
riquíssima área da nossa experiência, formada pelas cogitationes, como
vivências intencionais puras, que foi aberta pela redução.

124 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA


Anulado, com a redução, o índice de realidade dos fenômenos, produz-se
“um efeito curiosíssimo: novas transcendências surgem das cogitationes, das
vivências, dos conteúdos, que antes julgáramos de todo imanentes. Mas
isso não deve causar-nos estranheza. efeito apontado nada mais é do
O

que uma decorrência necessária da natureza intencional da consciência:


a todo ato corresponde um objeto, a toda nóesis um nóema, a todo cogito
um cogitatum.
Pode-se, com fundamento nesse fato essencial, estabelecer, como o
fez Husserl, uma fenomenologia sistemática e transcendental que, não
empregando a posição existencial, e formada por todos os enunciados
que se baseiam na intuição das essências, seja o esboço de uma nova
filosofia primeira.

|A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL E O LIMITE DA REDUÇÃO

O
pressupõe as conclusões anteriores, começa pela
livro de 1913, Ideias 1, que
distinção entre fato e essência. À essência, originária e a priori, é um eidos,
mas não como ideia, na acepção platônica, separada e independente dos
fatos. Ela constitui para a fenomenologia, como eidos, o próprio sen-
tido dos fatos e só a partir deles pode ser concebida, Mas, em compen-
sação, não há fatos sem essências. Para cada ordem de fatos existem
ordens eidéticas, isto é, essências determinadas, como há, também, uma
essência para os fatos em geral. Que é que caracteriza um fato qualquer?
Digamos, por exemplo, a percepção de um objeto, a queda de um corpo
!ou a existência de um determinado indivíduo. io acontecimentos que
variam, no espaço e no tempo, que se
apresentam de diferentes formas,
fatos. Só o
que aparecem agora e desaparecem depois. Tudo varia nos
cará-
que não varia é a contingência que os marca, que constitui o seu
ter essencial, o eidos propriamente dito. Podemos, seguindo a mesma
orientação, determinar o eidos das coisas físicas, dos seres animados
e espirituais, dos valores, cada ordem dessas constituindo uma região

A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL 125


|
Essa mudança de registro, operada por meio da epoché fenomenológica,
como atitude radical de abstenção permanente dos juízos de realidade,
em proveito dos fenômenos e de suas essências, é a redução.

A ciência rigorosa

Depois de constatar, em A Filosofia como Ciência Rigorosa, a falência


dos sistemas, e de criticar o psicologismo, o naturalismo e o histori-
cismo, particularmente o historicismo de Dilthey e sua doutrina das
concepções do mundo, Husserl ressalta o fato de que jamais a filoso-
fia, que aspira ao verdadeiro conhecimento, conseguiu, no curso de sua
história, edificar-se como ciência, A filosofia, sob pena de sacrificar o
seu próprio espírito, necessita adquirir caráter científico. Ela deve ser
a ciência de fundamentos firmes e indiscutíveis. Não que se pretenda
transformá-la em metafísica geral. O que se quer, isto sim, é fazer da
filosofia uma ciência rigorosa, que tenha o seu objeto e o seu ponto de
vista, específico e intransferível, sobre todos os objetos.
atitude redutora, formulada em 1907, inspirou esse ideal de ciência
AA

rigorosa (strenge Wissenschaft), o qual, buscado desde as Investigações


Lógicas, é aquele que Husserl, por meio do método fenomenológico,
pretende impor à filosofia. Já não se trata mais da preocupação com a
lógica pura ou com a teoria da ciência como tal. A fenomenologia, que
precede a psicologia, e que, procurando determinar a origem das sig-
nificações, situa-se numa esfera anterior à lógica formal, é mais do que
uma teoria da ciência, precisamente porque, na medida em que debate
0 problema da significação, ela investiga e critica o conteúdo mesmo da
Razão. Mas guindada à posição de filosofia científica, a fenomenologia
atém-se à sua finalidade, ao seu ponto de vista específico, que é o estudo

e
dos fenômenos de suas essênci . Ela abrange, pois, toda aquela nova e
Tiquíssima área da nossa experiência, formada pelas cogitationes, como
vivências intencionais puras, que foi aberta pela redução.

124 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA.


Anulado, com a redução, o índice de realidade dos fenômenos, produz-se
um efeito curiosíssimo: novas transcendências surgem das cogitationes, das
vivências, dos conteúdos, que antes julgáramos de todo imanentes. Mas
isso não deve causar-nos estranheza. O efeito apontado nada mais é do
que uma decorrência necessária da natureza intencional da consciência:
atodo ato corresponde um objeto, a toda nóesis um nóema, a todo cogito
um cogitatum.
Pode-se, com fundamento nesse fato essencial, estabelecer, como o
fez Husserl, uma fenomenologia sistemática e transcendental que, não
empregando a posição existencial, e formada por todos os enunciados
que se baseiam na intuição das essências, seja o esboço de uma nova
filosofia primeira.

|A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL E O LIMITE DA REDUÇÃO

O
livro de 1913, Ideias que pressupõe as
1, conclusões anteriores, começa pela
distinção entre fato e essência. A essência, originária e a priori, é um eidos,
mas não como ideia, na acepção platônica, separada e independente dos
fatos. Ela constitui para a fenomenologia, como eidos, o próprio sen-
tido dos fatos e só a partir deles pode ser concebida. Mas, em compen-
sação, não há fatos sem essências. Para cada ordem de fatos existem
ordens eidéticas, isto é,
essências determinadas, como há, também, uma
essência para os fatos em geral. Que é que caracteriza um fato qualquer?
Digamos, por exemplo, a percepção de um objeto, a queda de um corpo
“ou existência de um determinado indivíduo. São acontecimentos que
a
variam, no espaço e no tempo, que se apresentam de diferentes formas,
que aparecem agora e desaparecem depois. Tudo varia nos fatos. Só o
que não varia é a contingência que os marca, que constitui o seu cará-
ter essencial, o eidos propriamente dito. Podemos, seguindo a mesma
Orientação, determinar o eidos das coisas físicas, dos seres animados
e espirituais, dos valores, cada ordem dessas constituindo uma região

/A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL | 125


cidética, Para cada ciência (psicologia, biologia, geometria, sociologia)
haveria uma ciência fenomenológica prévia (ontologia regional), ocu-
pando-se das determinações de essência, as quais, pelo seu caráter geral,
constituem verdadeiras categorias, válidas para uma região específica
de fenômenos (categorias regionais). Das ontologias regionais, sempre
relacionadas com circunscrições específicas do ser, com espécies deter-
minadas de objetos (físicos, orgânicos etc.), cujas essências são mate.
Tiais,passaríamos a uma ontologia formal, correspondendo à ideia de
objeto em geral, com as suas respectivas categorias.
sas conclusões todas que acabamos de
expor fundamentam -se
evidentemente na redução, de que trata a 2º seção de Ideias Diretrizes,
depois da parte dedicada à distinção entre fatos e essências. E tanto
isso é verdade que Husserl, ainda na 1º seção, sustenta que a intuição
das essências (Wesensschau) pode ser livremente praticada, tanto com
os dados da experiência perceptiva, quanto com os objetos imaginá.
rios. À imaginação tem grande importância no método fenomenoló.
gico. Certas essências, como, entre outras, aquela que é dada na rela
entre coisa material e extensão, são apreendidas mediante o processo das
variações imaginárias com diferentes casos da mesma espés ie. Assim,
jamais podemos imaginar um só exemplo em que a coisa material se
apresente sem extensão. À impossibilidade de conceber diferentemente
tal relação nos leva a estabelecer um eidos ou uma essência, que tem, no
exemplo citado, caráter necessário, categorial e apriorístico.

Atitude natural e redução

Tomando expressamente a redução como tema, diz-nos Husserl (Ideias


Diretrizes, 2º seção) o que se perde e o que se ganha com essa atitude
fenomenológica radical. Não haverá, de fato, verdadeiras perdas a lamen-

a
tar, porque o mundo continua subsistindo, e é apenas tese de sua exis-
tência, de sua realidade, que deixamos de utilizar em nossos juízos. E se
algo perdemos com a redução, é a nossa habitual familiaridade com o

126 | FILOSOFIA CONTEMPOR:


mundo. A epoché rompe
a
crosta dos hábitos orgânicos e psíquicos, por
força da qual nos sentimos como partes de uma realidade circundante,
onde tudo (a Natureza, as nossas vidas, os outros seres) integra um sis
de relações, costumeiro, doméstico, sem problemas. É no conjunto

Eu
tema

dessas relações que se enraíza a atitude natural, por meio de cuja perspec-
tiva a realidade se nos apresenta como o que está aí diante de nós: as coisas
com que nos defrontamos e que existem lado à lado conosco.

cia
epoché suspende a atitude natural. Interrompida
AA

a
tácita convivên-
entre nós e as coisas, que nos obriga a aceitar como real tudo aquilo
que temporal e especialmente nos circunda, compreendemos então que
à atitude natural é uma simples posiç; (tese), que pode ser neutrali-
zada. A redução equivale, por isso, a uma depuração, a um distancia-
mento, que nos permite contemplar reflexivamente, como que de longe,
as diferentes coisas e o nosso próprio Eu empírico, individual. O mundo
físico e o mundo psicológico passam a existir para nós como um cir-
cuito de vivências estruturadas de certa forma. Eis aí o que ganhamos
com a atitude fenomenológic: 0 acesso à região da consciência pura,
que corresponde a esse circuito de vivências, e em que o puro, trans-
cendental, substitui o Eu real, empírico. “Pode-se dizer que a epoché”,
conclui Husserl já numa outra de suas obras, Meditações Cartesianas, “é
o método radical e universal que permite apreender-me como Eu puro,
com a vida de consciência pura que me é própria, na qual e por meio da
qual o mundo objetivo é para mim e tal qual é para mim”.

O eu transcendental e a constituição

Mostra-nos a passagem citada que a consciência, não cedendo à redu-


ção, permanece como a
única realidade efetiva, e que é por meio dela
que o mundo se constitui. Irradiam-se do os atos intencionais, as
nóesis com os seus nóema característicos, que são os objetos do mundo

2 H Husserl, Meditações Cartesianas, Paris, Librairic Philosophique J.


Vin, 1953, p.18.

/A PENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL |
127
transcendentalmente constituído. Semelhante hipótese da constituição
dos objetos à partir do Eu transcendental ocupa o âmago dafilosofia
fenomenológica. A constituição da qual Husserl tratou, longe de ser,
porém, uma atividade produtiva da consciência, como admitia o idea.
lismo de Fichte, é a constituição do sentido que os objetos, por meio de
atos intencionais, alcançam para a consciência, depurada pela redução.
O mundo que o fenomenólogo procura cons ituir é o mundo redu-
ido a fenômeno, cujos aspectos se retraem aos atos intencionais do Eu
transcendental, “que existe para si próprio em ininterrupta evidência”,
e onde Husserl encontrou a fonte de todo sentido e da Razão. Fonte de
divergência entre os fenomenólogos, a constituição, que é uma tentativa
para fundamentar todas as coisas, todos os fatos, em significações redu-
tíveis à consciência, demonstra, por um lado, as tendências racionalistas
elogicizantes do pensamento de Husserl, mas precipita-nos, por outro,
na questão da natureza do Tempo.
tempo, consoante a análise da Fenomenologia da Consciência do
O

Tempo Imanente, é um fenômeno ainda mais originário do que as


pró
prias vivências. Constatamos, examinando a gênese (constituição) feno-
menológica de um dado som, como nóema ou objeto físico, que esse
fenômeno perdura através de vivências sucessivas entrelaçadas de uma
certa maneira. O momento em que começamos a ouvir não desaparece
para dar lugar a outro, e logo a outro momento, mas a impressão pri-
meira, que não é mais, quando sobrevém a segunda, fica como que retida
nesta última (o que se chama retenção), e ainda posso referir. me a ela
como presente. Do mesmo modo, foi da impressão da primeira que bro-
tou a segunda (o que se chama protensão). Não se trata, em nenhum des-
ses casos, de recordação. A retenção e a protensão constituem momentos
do presente. À lembrança propriamente dita implica uma outra espécie
de consciência, em que vivo o passado como um “haver sido”, dimensão
na qual posso visar uma série de momentos, de “agoras” que transcor-

128 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA


Teram, e que obedecem ao mesmo dinamismo anteriormente exposto,
indo de retenção em retenção, de protensão a protensão.
tempo apresenta-se aí, não como
|O

É a
intuição pura, vazia, da Estética
transcendental de Kant. o horizonte em relação ao qual as vivências
É

aparecem e se constituem. E é também o próprio curso que rege o entre-


laçamento dessas vivências, dentro de um continuum,
presente, passado e futuro - que a
a
consciência renova
três dimensões
do ins-
a partir
tante imediato de cada impressão. “Cada tempo percebido foi percebido”,
explica Husserl descrevendo a percepção do voo de um pássaro, “como
passado que termina no presente, e o presente é um ponto limite”,

A intersubjetividade
AA
tese anteriormente referida, de que todos os fenômenos que redu-
ção desconectou da realidade existem para o Eu puro, e tal como a ele
a
se apresentam, expõe a fenomenologia ao perigo de encerrar-se numa
posição solipsista. Uma vez que é o Eu que possui o privilégio da evi-
dência contínua em relação aos seus próprios atos, há dificuldade de se
transferir essa mesma evidência para outra esfera subjetiva que não a
minha, operando-se constituição de um outro Eu que é diferente, e no
a
entanto idêntico a mim próprio. O tremendo esforço das análises feno-
menológicas redundaria no final e melancólico reconhecimento da exis.
tência de uma subjetividade monádica, autossuficiente, mas sem janelas
para outras mônadas, refletindo o mundo inteiro de seu ponto de vista
soberano mas solitário.
Husserl deteve-se longamente, em suas Meditações Cartesianas, na
descrição da experiência fenomenológica do Alter ego, que é muito dife-
Tente da experiência com as coisas físicas, objetos imaginários e ideais,
Do ponto de vista natural, que é o adotado pelo conhecimento obje-

2. H. Husserl, Fenomenologia da Consciência do Tempo Imanente, Buenos Aires, Ed. Nova,


1959, p17.

A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL |
129
tivo das ciências, os outros se apresentam sempre, seja sob a forma de
corpo físico, seja sob a de organização biopsíquica, como um gênero de
“objetos entre outros objetos da natureza. Abrindo um problema dessa
ordem, que não foi debatido, dentro das correntes tradicionais, nem
pelo realismo, nem pelo idealismo, Husserl teve ainda maior mérito,
quando procurou, além do conhecimento de coisas físicas, organismos
e outros objetos ideais, estabelecer um meio para chegar à evidência das
relações intersubjetivas.
Meu Eu, que me é dado de maneira apodítica único ser que posso admitir
existindo de maneira absolutamente apodítica não pode ser um eu tendo à expe-
-,

Fiência do mundo se não estiver em comércio com outros ego, meus semelhantes,
se não for um membro da sociedade de mônadas que lhe é dada de um modo
orientado, A justificação consequente do mundo da experiência objetiva implica
uma justificação consequente da existência de outras mônadas”.

Esta solução, que Husserl ofereceu ao problema, no quadro de sua


fenomenologia ou egologia transcendental pura, condicionando obje.
tividade do mundo à prévia comunicação entre as consciências, colocou
a
a intersubjetividade no rol das questões filosóficas primordiais.

3: H. Husserl, Meditações Cartesianas, op. cit. p. 18.

130 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA


11
Principais Interpretações da Fenomenologia

A INTENCIONALIDADE DOS SENTIMENTOS

Em estudos memoráveis, Para a Fenomenologia e Teoria da Simpatia,


do Amor e do Ódio (1913), Do Formalismo na Ética e a Ética Material
dos Valores (1916), Da Essência e Forma da Simpatia (1922), que
primam
pela intuição aguda e pelas riquíssimas observações de detalhe, Max
Scheler, que foi discípulo de Husserl, defende, divergindo de seu mestre,
a existência de uma intencionalidade específica dos sentimentos, diri.
gida para a apreensão dos valores.
Dado esse caráter intencional, os sentimentos, como o amor, o
ódio
e a simpatia, não são apenas estados afetivos, que correspondem
à modificações internas do sujeito, mas verdadeiros atos, por meio dos

quais podemos ter a experiência dos valores. Em vez de a experiência


valorativa fundamentar-se na percepção ou no juízo, é ela que prelimi-
narmente determina o conteúdo e o caráter das apreciações relativas ao
valor e ao desvalor de coisas e situações. Essa experiência, é mesmo para
Scheler, um campo fenomenológico, com os seus dados efetivos, que são
os valores, transparecendo na órbita dos sentimentos que os revelam,
sem a interferência da percepção e das funções lógicas do pensamento.
Temos, pois, nos valores, além de um novo gênero de objetos, a
matéria imponderável de um conhecimento especialíssimo que não se
obtém por meio da inteligência e dos conceitos, mas pela via incontro-
Jável, espontânea e pessoal dos sentimentos. Por ser um nexo afetivo é
que o amor, relacionando duas pessoas entre si, as relaciona também
com determinados valores, que só se tornam manifestos para aqueles
que amam. Aliás, o amor e o ódio são, do ponto de vista de que estamos
examinando, atos preliminares de preferência valorativa, comparáveis
aos polos da vida moral, o primeiro dando acesso aos valores positivos,
€ o segundo, aos negativos. “Amor meus, pondus meumr, dizia Santo
Agostinho, a quem Scheler deve em parte a sua concepção do amor,
muito semelhante, por outro lado, à ideia platônica do eros universal,
que eleva a alma, fazendo-a subir até o Sumo Bem. Por meio do amor é
que se processa o descortínio dos valores mais altos e mais novos, des
cortínio equivalente a um ato de criação, contraposto à função destrutiva
do ódio. Outros sentimentos estão relacionados com preferências que
traduzem valores mais baixos - o prazer com o útil e o agradável, o bem-
estar físico e a euforia com o saudável, o enérgico, o vigoroso, sintetiza-
dos por Nietzsche no conceito de nobreza. Acima desses, situam-se os de
natureza espiritual (estéticos, jurídicos, cognoscitivos, incluindo os da
ciência e da filosofia) e, mais acima, encerrando a hierarquia, o sagrado e
0 profano (valores religiosos).
Esse quadro dos valores, verdadeiro universo axiológico, dá um con-
teúdo concreto à ética. Os bens condicionando o
ideal de felicidade, a
vontade racional dos estoicos, o Dever como princípio a priori da razão
prática de Kant, tudo isso depende, para Scheler, do prévio conheci-
mento dos valores, que são, na verdade, os primeiros elementos da
experiência moral. Esta só existe como realização dos valores mais altos
e positivos na escala da hierarquia polarizada que antes foi descrita. De
modo que os valores morais aparecem e se afirmam na “retaguarda” dos
atos que visam os valores da escala axiológica.
Tal é, em linhas gerais, a estrutura da ética material de Max Scheler,
assim denominada devido ao fato de, contrariando a ética formal de
Kant, atribuir aos valores uma matéria concreta que os individualiza,
e que é intuída a priori pelos sentimentos. O que sustenta esse aprio-

132 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA


Tismo material de procedência fenomenológica é a concepção dos valores
como essências alógicas, irracionais, irredutíveis a fatos da percepção
interna ou externa, que somente a intuição sentimental, emotiva, pode
captar. O conhecimento dos valores, que escapa aos limites do pensa-
mento racional, é assim a expressão daquele aspecto da vida universal
relativa à ordre du coeur, a que Pascalse
referia e que engloba as razões
que a razão desconhece.
Uma particularidade notável da filosofia scheleriana dos valores é o
reconhecimento da necessidade de ligar-se a ordem das essências valo-
Tativas com a “história das formas do ethos”. Condicionados histórica e
socialmente, os sentimentos participam da descoberta dos valores, atra-
vês do tempo e de formas sociais determinadas.
Em sua Ética, publicada em 1926, Nicolai Hartmann (1882-1950), tri-
Ihando o caminho aberto por Scheler, procurou fazer uma outra con-
ciliação, mas desta vez entre a ética material dos valores e a teoria das
virtudes esboçada por Aristóteles. Igualmente, tentou conciliar o a priori
emocional com os problemas concretos de conflitos entre valores na
vida moral dos indivíduos. Hartmann procurou, enfim, concretizar uma
lógica dos valores morais, respeitando concomitantemente a função da
consciência moral na renovação do ethos humano é ocaráter essencial
dos valores éticos descobertos na corrente do desenvolvimento histó-
Tico pela moral antiga (justiça, sabedoria, coragem, autocontrole), pelo
cristianismo (amor ao próximo, veracidade e lealdade, fidelidade e con-
fiança) e por intermédio da consciência moderna em revolta (amor ao
remoto, virtude radiante, personalidade, amor pessoal).

ANÁLISE CATEGORIAL

Nicolai Hartmann, já em utilizara o método fenomenológico em


1921,

sua Metafísica do Conhecimento, conseguindo formular em novas bases,


independentemente das concepções neokantianas, o problema do conhe-

“PRINCIPAIS INTERPRETAÇÕES DA FENOMENOLOGIA |


133
cimento. Deve-se isso à maneira pela qual ligou o método fenomenoló-
gico à compreensão dos problemas filosóficos em geral.
Pela descrição do conhecimento, como relação entre sujeito e objeto,
Hartmann desentranhou os problemas que constituem a dimensão
metafísica desse fenômeno. Assim é que o sujeito, correlativo ao objeto,
é um ente determinado, cuja existência não
se
esgota nessa função de
ser sujeito para um objeto. Analogamente, o objeto (objectum, aquilo
com que o sujeito se defronta) é mais do que objeto. Fora da relação que
“o conhecimento é, e na qual
o
ocupa um dos termos, objeto existe como
ser que pode ou não tornar-se conhecido. Quer isso dizer que o que
se chama objeto de conhecimento é apenas uma parte objetificada do
ser, o qual, considerado em si mesmo, é indiferente ao conhecimento.
Para além dessa parte objetificada ou conhecida, estende-se, segundo
Hartmann, o domínio do transobjetivo. O processo do aumento, da
correção e do progresso das ciências, que exige um esforço permanente
de renovação e ampliação da verdade, pela conquista de novos concei-
tos e pela correção e retifi ção dos antigos, é possibilitado justamente
por essamargem indefinida e oscilante de conhecido e desconhecido
(transobjetivo), entre o ser e a parte da realidade que se transforma
em objeto de conhecimento. O transobjetivo, evite-se a má compreen-
são do termo, difere essencialmente do incognoscível. Enquanto aquele
inclui em potencial a matéria do conhecimento (relacionada com o que
Giordano Bruno chamou de poder infinito doentendimento humano),
0 incognoscível significa a total impossibilidade de conhecer ou de
objetificar o ser.
De um lado e de outro, portanto, quer por meio do sujeito, quer por
meio do objeto, a relação do conhecimento se
problematiza. Vê-se que
ela está mesmo inserta na realidade, da qual a filosofia a retirou após
o triunfo do criticismo kantiano. “O sujeito e o objeto são membros

134 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA


existentes da mesma esfera do ser e apoiam-se nas mesmas condições
gerais da realidade”.
O problema fundamental a que a análise fenomenológica do conheci
mento remete é aquele mesmo da metafísica de Aristóteles e da ontologia
clássica: o ser enquanto ser.
Em Para a Fundamentação da Ontologia (1934), Possibilidade e Efe-
tividade (1937), O Arcabouço do Mundo Real (1939), obras que formam
uma trilogia monumental, Hartmann, sempre unindo a análise feno-
menológica dos problemas com a interpretação crítica e histórica dos
conceitos ontológicos fundamentais, traçou uma filosofia do ser, com-
patível com o nível de conhecimento alcançado pelas ciências em nosso
tempo, é na qual se entrelaçam, num conjunto harmonioso, as discipli
mas filosóficastradicionais, reduzidas ao essencial. Essa filosofia do ser
restabeleceu o sentido ontológico das categorias, como determinações
dos próprios objetos. A inversão do ponto de vista kantiano, segundo
o qual as categorias constitutivas do conhecimento, derivando da
estrutura do espírito, é completa. Princípios gerais, mas não a priori,
“coligidas passo a passo das relações reais”, as categorias acompanham,
desempenhando a mesma função, a unidade e a diversidade do ser.
Não há dúvida de que Hartmann revigorou o princípio aristotélico da
analogia. Assim como
a
diferença entre essência e existência se impõe
para todos os objetos, assim também, independentemente dos modos
gerais - possibilidade, efetividade e necessidade -, os objetos, quanto à
maneira de ser, distribuem-se em duas regiões ou esferas ontológicas: o
Teal (dos seres reais em geral) e o ideal (essências, valores, leis lógicas,

relações matemáticas), para as quais não prevalecem as mesmas catego-


rias. Essas regiões ontológicas, que têm o seu antecedente mais próximo
mas ontologias regionais de Husserl, estão imbricadas, mas não se pode
falar numa correspondência entre elas. Assim, o real, sob o aspecto de

2. N. Hartmann, Metafísica do Conhecimento, Buenos Aires, Ed. Losada, 1957, v.1, p. 246.

PRINCIPAIS INTERPRETAÇÕES DA FENOMENOLOGIA |


135
seu conhecimento, repousa na estrutura ideal das relações lógicas e
matemáticas. No entanto, esse nexo não prejudica a autonomia dos dois
domínios, equipados com distintas categorias.
Aproximando-se de Aristóteles pelo princípio da analogia, Hartmann
separa-se dele na questão da substância, que, como sesabe, resumia, para
0 Estagirita, a questão do ser. Em vez do primum ens, do ser substancial,
que foi o principal instrumento da escolástica, oferece-nos Hartmann
uma concepção estratificada da realidade, na qual o problema das for-
mas individuais transfere-se para a articulação de diferentes camadas ou
estratos o físico, o orgânico, o psíquico e o espiritual dominados, em

a
conjunto, por certo número de categorias gerais (como o tempo, indivi-
dualidade, a causalidade) e tendo cada qual as suas categorias específicas.
Pode
oleitor perceber, pelo que diz respeito às principais vertentes
da tradição filosófica, quer sejam espiritualistas ou materialistas, as mar-
cas não clássicas da concepção de Hartmann: 1º) o espírito colocado na
mesma região que compreende a materialidade física, a vida e o psíquico;
2º) o problema das relações entre substâncias substituído pela questão
das relações entre estratos, que constituem parte da mesma circunscri-
ção ontológica, mas descontínuos (irredutibilidade do orgânico ao físico,
do psíquico ao orgânico etc.), superpostos e não opostos, havendo entre
eles diferença de grau ou altura, correspondendo a diferenças qualitati-
que essa questão cabe à análise categorial resolver. Assim, as rela-
Vas; 3º)
ções entre os estratos estão asseguradas pela permanência e modificação
de categorias comuns, que, passando de um estrato inferior ao supe-
rior, sofrem neste uma supraconfiguração. O estrato superior depende
sempre do inferior, mas graças à emergência de uma nova categoria,
que constitui para Hartmann a lei da liberdade, é autônomo em rela-
ção àquele no qual se fundamenta. As diferentes formas, e, entre elas,
0 próprio homem, recebem a sua inteligibilidade desses quatro estratos
com os quais não coincidem inteiramente. O homem abrange -os todos,
mas nem por isso ganha qualquer privilégio ontológico especial. O espí.

136 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA


Tito que o anima, sustentado pelas várias camadas inferiores, continua
nas formas objetivas que os produtos sociais e históricos possuem. Por
esse lado, o pensamento de Hartmann, que sintetiza admiravelmente os
principais veios da tradição filosófica, liga-se com a noção de espírito
objetivo da filosofia hegeliana, favorecendo uma filosofia da cultura, de
que o filósofo se ocupou em O Problema do Ser Espiritual (1933), e com
a qual se relaciona a sua Estética, obra póstuma, onde a análise do objeto
estético obedece à ideia de estratificação.
Na antropologia em que essa ontologia de Hartmann se prolonga
domina a preocupação de ligar o homem à existência universal. É dessa
existência que se deve partir para a compreensão de sua essência. A tese
aqui enunciada situa a filosofia de Hartmann numa posição radical-
mente oposta às ontologias de Heidegger e Sartre.

ONTOLOGIAS DE HEIDEGGER E SARTRE

Martin Heidegger (1889-1976), em Ser e Tempo (1927), propõe o retorno


ao problema capital da Filosofia - a questão do ser que, tendo sido o
-,

fio condutor da reflexão de Platão e Aristóteles, “emudeceu desde então


como pergunta temática de uma investigação efetiva" na trivialização
que a relegou ao esquecimento. Mas ao recuperá-la, dá-lhe um outro
registro - a questão do sentido do Ser - que a desvia do caminho da
especulação metafísica, ao qual Heidegger parecia retornar.
No
entanto, o “estranho Tratado” de 1927, como dele diria o seu
próprio autor, referindo-se à incompletude de Ser e Tempo, que per-
maneceu no estado de inacabamento em que foi publicado, produziu
um efeito suspensivo da tradição metafísica, pela maneira como propôs
a velha questão ontológica, valendo-se da fenomenologia husserliana
reinterpretada,
Ora, indagar sobre o sentido do ser é indagar acerca de uma signifi-
cação difusa, que, estando em todo perguntar e responder, em todos os

PRINCIPAIS INTERPRETAÇÕES DA FENOMENOLOGIA |


137
modos de questionamento de nós mesmos e das coisas, impregna não
só o pensamento como
a
ação ou a conduta (esta palavra tomada no
sentido amplo). Como, pois, dar resposta a tal pergunta aparentemente
das mais abstratas, mas na verdade voltada para nós mesmos, que já
nos “movemos sempre numa certa compreensão do ser” numa certa
compreensão incerta, não determinada, que se antecipa à questão, e no
âmbito da qual ela recai desde que formulada? Será preciso desde logo
formular corretamente essa pergunta, Mas como fazê-lo, sem elaborá-
la suficientemente, isto é, sem que se procure, de saída, seguindo o
fio condutor daquela compreensão indeterminada, pré-ontológica, não
ainda tematizada teoricamente, perseguir o sentido do ser para o ente
que nós mesmos somos, para o ente que pergunta, é que, ao perguntar,
está de antemão comprometido com o objeto de sua inquirição? Então
a resposta que obtivermos, reveladora do nosso ser e que preencherá o
campo da Analítica, enquanto Ontologia Fundamental, terá o caráter de
preparação à abordagem da questão do ser em sua generalidade.
A esta altura já deve ter observado leitor, no
o
que acompanhará o
próprio Heidegger, que, ao pressupor no seu ponto de partida o sen-
tido daquilo que pretende elucidar, a Analítica, enquanto Ontologia
desse ente que nós mesmos somos - expressamente chamado Dasein -,
incorre num desenvolvimento circular. Mas esse desenvolvimento que
constitui, na acepção estritamente lógica, um circulus in probando, é,
sob o aspecto metodológico, o resultado da exigência de não se conside-
Tar, antes e durante a investigação, nada além da compreensão pré-onto-
lógica que temos de nós mesmos e do mundo. Procedendo dessa forma,
a fim de evitar a interferência das ideias herdadas da tradição metafísica
— como
Espírito, Consciência-ou Sujeito Transcendental a Analítica
-,

se ajusta ao entendimento que Heidegger confere à fenomenologia hus-


serliana por ele reinterpretada.
Ser e Tempo emprega a Fenomenologia como uma ontologia her-
menêutica, Ontologia, ela é um legein tá phainomena. De acordo com

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isso, a Analítica procura ler através do Dasein (ente) o ser que nele se
mostra; mas como os fenômenos não são imediatamente dados, será
preciso extraí-los da conduta mesma que tende a encobri-los. Eis por
que a visada fenomenológica, que remonta às estruturas essenciais do
Dasein, assim passando do ôntico (ente) ao ontológico (ser), também
realiza um trabalho de caráter hermenêutico, interpretativo, segundo a
perspectiva da existência cotidiana.
Afastadas as significações de realidade e ser determinado que ao
termo atribuíram, respectivamente Kant e Hegel, Dasein, como ente o

que “tem por seu ser, entre outras coisas, a possibilidade de colocar
questões”, reforça a exigência metodológica antes mencionada, que jus-
tifica a tradução neutra que dele se faz (ser-aí, ser-ahi, Iétre-lá) nas lin-
guas neolatinas.
É o ponto de vista da consciência, eminente em Husserl e neutral
zado por Heidegger, aquele que marca a ontologia de Jean-Paul Sartre
(1905-1980), em parte fruto da interpretação que esse filósofo, o qual i
milou de maneira original o pensamento do Ser e Tempo, deu ao método
fenomenológico em A Imaginação (1936) e Esboço de uma Teoria das
Emoções (1939), ensaios onde expõe as implicações do conceito de inten-
cionalidade, cuja importância ressaltou em “Uma Ideia Fundamental da
Fenomenologia de Husserl” (1939), artigo depois incluído em Situações 1.
Desses ensaios, na linha que seguiria O Imaginário (1940), resultam duas
conclusões sobre a natureza da consciência, posteriormente incorporadas
a O Ser e o Nada, Ensaio de Ontologia Fenomenológica (1943): a) a função
negadora da consciência, que consiste em negar ou des-realizar a reali-
dade imediata, comprovada pela imaginação; b) o predomínio, nas con-
dutas emocionais, da consciência imediata, antecedendo a consciência
reflexiva, e que Sartre chamará consciência pré-reflexiva, não posicional.
Em O Ser e o Nada, entendendo, de acordo com o princípio da inten-
cionalidade, que a consciência não é substancial, porque existe voltada
para os objetos, afirma Sartre, ao mesmo tempo, que ela é uma exis-

PRINCIPAIS INTERPRETAÇÕES DA FENOMENOLOGIA |


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tência plena, que se determina por si mesma. Realidade incomparável
ou única, que nem para si mesma pode ser objeto, não se confundindo
portanto com a forma reflexiva, em que se verifica o desdobramento
entre sujeito e objeto?, a consciência, apesar disso, existe fora de si, em
permanente ligação com o mundo, absorvida por um ser que ela não
é Essa contradição se exterioriza nas duas modalidades essenciais do
é.

ser, sobre cuja oposição a ontologia sartriana está construída: o para-si


(pour-soi), que é a consciência de existir ou existência, e o em-si (en-soi),
ser incriado, irredutível à razão, e portanto absurdo.

A FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO.

Aproveitando e corrigindo em A Estrutura do Comportamento (1942)


a Teoria da Forma, já sob a influência de Heidegger e do método feno-
menológico, Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) deu em A Fenomeno-
logia da Percepção (1945), fundamentado no estudo direto dos inéditos
de Husserl, uma nova interpretação à intencionalidade, que é, segundo
ele, o nexo originário da experiência perceptiva ligando-nos ao mundo.
O mundo, que

se delineia na consciência, e a consciência, que existe
como presença ao mundo, formam o “sólido tecido” da realidade, nem
completamente objetiva, nem totalmente subjetiva. É nessa trama, a que
Husserl, em seus últimos escritos, chamara Lebenswelt (o mundo da
vida), e com a qual se preocupou, que mergulham as admiráveis ans
ses de Merleau-Ponty. Os primeiros fios que a constituem passam pelo
corpo, “nossa ancoragem no mundo”, espaço que tem a sua expressi-
vidade própria, veículo articulador das primeiras e fundamentais sig.
nificações. É nesse sentido que a existência é corporal, que eu sou o
meu corpo. Unidos a ele, na medida em que não somos espectadores de
nós mesmos, a nossa existência é fundamentalmente ambígua: assim a

2. Ver"A Fisionomia Atual de Hegel p. 35.

3: Ver"O Nada ea Liberdade, p. 155.

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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
consciência, que melhor se revela a si mesma quando engajada, assim
o mundo, “que envolve determinações objetivas, mas também fissuras e
Jacunas..”. É essa imagem complexa de uma realidade inacabada, na qual
as contradições existem, mas não se resolvem pelo pensamento, o cen-
tro da concepção de Merleau-Ponty, situada na delicada zona fronteiriça
entre a fenomenologia é as filosofias da existência propriamente ditas,

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