A Herança Afriana e A Construção Do Estado Brasileiro
A Herança Afriana e A Construção Do Estado Brasileiro
A Herança Afriana e A Construção Do Estado Brasileiro
ARTIGO
http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.246
A herança africana e a
construção do Estado brasileiro
African heritage and the construction of the
brazilian State
Resumo: Este artigo tem como objetivo Abstract: This article aims to understand
compreender como, de maneira aparente- how, in an apparently paradoxical way in
mente paradoxal no Brasil, com uma so- Brazil, with a society erected in a close
ciedade erigida em estreita relação com o relationship with the African Continent, a
Continente Africano, se construiu um Es- State that since its first decades of existence
tado que desde suas primeiras décadas de has showed itself hostile to africans and
existência mostrou-se hostil aos africanos their descendants was built, promoting,
e a seus descendentes, promovendo, ao con- on the contrary, the continuation of an
trário, a continuidade de uma civilização european civilization in the tropics.
europeia nos trópicos.
Keywords: Brazil. State Formation. 19th
Palavras-chave: Brasil. Formação do Estado. Century. Slavery. Racism.
Século XIX. Escravidão. Racismo.
a
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Minas Gerais, Brasil.
Recebido: 16/12/2020 Aprovado: 21/2/2021
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Introdução
A
pesar do etnocentrismo evidente, as relações com a África mar-
caram e marcam o desenvolvimento da sociedade brasileira desde
os primeiros tempos coloniais. Milhões de africanos escravizados
chegaram até a colônia portuguesa e, a partir de 1822, ao Império brasi-
leiro. Tal presença, além de ser responsável pela construção da riqueza
da colônia e do Estado Independente, construiu uma sociedade em que
o fenótipo e a influência africana são marcantes. Contudo, desde os pri-
meiros momentos da formação do Estado brasileiro, a elite construtora
pautou-se pela construção de uma sociedade e de um Estado que se
viam como parte de uma civilização europeia, branca e cristã. Este artigo
tem como objetivo compreender esse processo que, apesar de paradoxal,
concretizou-se na formação do Estado brasileiro e se tornou a tônica de
nossas relações sociais até os dias de hoje.
Com esse intuito, o texto se divide em três partes, além desta in-
trodução. Na primeira parte trata da construção do Brasil no Atlântico
Sul, buscando compreender o estabelecimento das relações entre Brasil
e África e a herança africana. Na segunda, trata da formação do Estado
independente no Brasil e como os seus construtores, brancos, lidaram com
a herança africana que, ao mesmo tempo que continuava a construir a
riqueza nacional, era alijada da participação nesse processo. Por último,
como considerações finais, buscará fazer um balanço da discussão e
compreender a persistência da herança africana, apesar da visão europeia
que pautou os construtores de nosso Estado independente.
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Costa e Silva, na apresentação do livro Agudás, de Milton Gurán (2000), usa a expressão “te-
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cer no tear da tragédia” para tratar da construção de um Atlântico de substrato negro pelas
relações entre Brasil e África.
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acadêmicos e políticos, segundo os quais, com o fim das administrações coloniais e a formação
dos Estados-nação na periferia, passamos a viver em um mundo descolonizado e pós-colonial
(tradução do autor).
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Luís Alves de Lima e Silva, que foi contemplado com o título de Duque de Caxias pelo Império
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brasileiro, foi um dos grandes responsáveis pela concretização territorial do Estado no Brasil,
agindo contra diferentes focos de levantes regionais e contra ameaças externas, como no caso
da Guerra do Paraguai. Domingos Jorge Velho, antes dele, foi responsável pelo ataque ao Qui-
lombo de Palmares, o qual desafiou a política metropolitana portuguesa e, por consequência,
o desdobramento e a concretização da sociedade ocidental de origem europeia onde mais tarde
seria o Brasil.
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Para Silvio Almeida (2019, p. 50), o racismo é estrutural quando “é uma decorrência da pró-
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pria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas,
econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social nem um desarranjo
institucional”.
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Ainda sobre o papel do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro como guardião da história
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oficial, ver Schwarcz (1993). É interessante destacar que mesmo na literatura o indígena foi
incorporado como gênesis do Brasil, mesmo na pena dos autores escravocratas, como é o caso
de José de Alencar no livro Iracema. Sobre as relações entre literatura e Nação, é interessante
a crítica de Kwame Appiah no livro Na casa de meu pai (2010). A existência de uma relação
entre literatura e nação, além de esclarecer sobre os elementos considerados na construção
desta entidade, por si só desvela a reprodução de um processo que se pretende universal, ou
seja, significa a reprodução de uma cosmologia e de uma entre várias possibilidades de orga-
nização social. Sobre e a desnaturalização do Estado, ver Clastres (2013). Sobre esse mesmo
processo no continente africano, ver Belucci (2010).
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Sobre essa compreensão, é interessante registrar a crítica de Appiah (2010, p. 96) segundo a
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qual a ideia de África, por si só, quando racializada e levada para além dos aspectos geográficos,
apresenta-se como fruto do racialismo europeu.
A colonialidade do saber diz respeito à maneira como, no Ocidente, foi imposta uma concepção
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de conhecimento que se torna padrão e se sobrepõe a outras maneiras que passam a ser desle-
gitimadas. Certamente, para utilizar uma terminologia de Pierre Bourdieu, o campo acadêmico
foi construído com esses pilares e reproduz, em grande medida, a legitimação de um saber
europeu e a deslegitimação de outras formas de falar sobre o mundo ou concebê-lo.
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É importante destacar que mesmo a centralização política, mesmo aquela que não cria um
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Estado como o inventado pelos europeus, não pode ser naturalizada. Para isso, é relevante a
obra de Pierre Clastres A sociedade contra o Estado (2013).
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Tanto a Revolta dos Malês quanto a de Carrancas, apesar de ocorridas em regiões diferentes,
foram importantes demonstrações de resistência dos escravizados frente aos processos colo-
nizadores.
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Janeiro, que sustentou e liderou o pacto político de formação do Estado brasileiro até a década
de 1870. Ver Mattos (2004).
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Sobre o autor
Paulo Roberto de Oliveira – Doutor em História Econômica; docente do
Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP) e do Programa de Pós-graduação em História da mesma universidade. Tutor
do PET — Economia/Conexão de Saberes.
E-mail: [email protected]
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