Do Diagnostico em Psicanalise

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8 conteúdo

O órgão sem o falo 256


1. Do diagnóstico em psicanálise
A relação sexual entre as gerações 260
Nora, um corpo adicional 266
Um sinthoma que difere 271
O sinthoma-pai e a transmissão 277

11. Clínica borromeana da paranoia 281


9 de junho de 2004 281
Usos do corpo 282
Joyce e o corpo 285
Novidade sobre a paranoia: o nó de trevo 286
O que está em jogo: o sujeito real 289
Paranoia e personalidade 295 12 de novembro de 2003
Estrutura de massa freudiana 301
Começamos mais um ano de trabalho, finalmente, e, de mi-
Definição da paranoia 302
nha parte, com grande satisfação. Vocês já conhecem o meu título:
Rousseau 305 anunciei-o como A querela dos diagnósticos e dedicarei somente a
aula de hoje a ele, não mais que isso, e, em seguida, vou lhes dizer
12. Prevalência imaginária 309 aquilo de que vou tratar.
23 de junho de 2004 309
A identificação imediata 310
Congelamento de um desejo 312
Atualidade da ética da psicanálise
Voz e olhar 316 Introduzirei minha proposta de hoje com um breve preâmbu-
Privilégio do olhar e da voz na paranoia 320 lo, a partir de uma citação extraída do texto “Introdução à edição
Exibido ou pior 326 alemã dos Escritos”, datada de 7 de outubro de 1973. Nele, Lacan
Continuidade dos gozos na paranoia 332 fala dos analistas e assinala que eles têm medo, que eles têm medo
do chiste, isto é, temem o fato de que podem ser enganados pelo
significante, pelas palavras. Ele diz, na página 552 de Outros escri-
Referências 337
tos, que, no fundo, eles têm desculpas para ter medo, porque “se
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beneficiam do novo destino de que, para ser, eles precisam ex-sis- Com efeito, nas discussões com colegas, as posições são múl-
tir”.1 Entendam esse “para ser” como ser representante de um de- tiplas, claro, como ocorre a cada vez que nos reunimos em gran-
sejo específico, em outras palavras, para que haja desejo do analis- de número; há, porém, dois extremos. Em um deles, estão os que
ta, é necessário para eles ex-sistir. Escrito assim, ex-sistir não quer dizem “somos psicanalistas, a psicanálise não é uma psicoterapia,
dizer apenas “estar presente no mundo”, pois, para estar presente isso não nos diz respeito e ponto”; no outro extremo, estão os que
no mundo, não é preciso muito, basta estar vivo. Para ex-sistir é dizem “mas claro que sim, o título deve ser protegido, peçamos ao
preciso acrescentar um dizer específico a essa presença – necessá- Estado que reconheça o título de psicanalista”. Não entrarei nos
ria, decerto. A ex-sistência dos psicanalistas é a ex-sistência de um detalhes dos argumentos de uns e de outros.
dizer que seja próprio ao discurso analítico, mais além das próprias
Trata-se, de fato, de uma luta política, que é dupla: é uma luta
pessoas. É um dizer diferente, que veicula finalidades e, digamos,
política para precisar o lugar, o papel da psicanálise no campo da
uma ética diferente da do discurso comum.
saúde e da medicina, para saber se ela está dentro ou à margem do
campo da saúde, e seu lugar com relação à ideologia do direito à
saúde, já que nos encontramos no âmbito de uma ideologia desse
Faço agora menção a essas palavras de 1973 porque elas me
tipo; essa é uma primeira frente de batalha.
parecem ser de uma espantosa atualidade na atual conjuntura, que
faz com que, por acaso, eu comece, nós comecemos, nosso tra- Mas há também, no interior da própria psicanálise, uma luta
balho nessa nova situação criada – como sabem – pela emenda de opções entre as duas posições que acabo de evocar como dois
Accoyer para a regulamentação da psicoterapia.2 extremos. Sabemos, por exemplo – os textos escritos e divulgados
mostram isso –, que a SPP [Société Psycanalytique de Paris] se de-
Penso que todos estejam a par disso, mas, ainda assim, vou
clarou favorável à emenda Accoyer, e não apenas favorável, como
dizer algumas palavras para anunciar outro debate, em outro âm-
também propôs combiná-la com aquilo que ela chama de “comis-
bito. Vocês já sabem o alvoroço que isso suscita entre os psicotera-
sões de certificação dos psicanalistas” nas quais deveria haver, diz
peutas, psiquiatras e, inclusive e sobretudo, entre os psicanalistas.
a Société Psychanalytique de Paris (SPP), não somente universi-
Ações estão sendo preparadas e, nas reuniões com os representan-
tários e médicos, mas inclusive psicanalistas. Vejam que aí esta-
tes de diferentes associações que pude assistir, percebe-se que, no
mos em terrenos extremamente problemáticos, e certamente, nos
fundo, a pertinência da observação de Lacan permanece intacta.
Fóruns e na Escola do Campo Lacaniano, teremos que estabelecer
nossa orientação comum e, sobretudo, nossos argumentos.
1 Lacan, J. (1973). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escri-
tos. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 552.
2 Referência ao projeto de lei de saúde pública do governo francês proposto Gostaria de ressaltar um pouco os dois extremos desse dilema.
pelo deputado Bernard Accoyer, em 2004, que propunha a regulamentação
das psicoterapias. O texto inicial incluía os psicanalistas no campo das Podemos continuar dizendo que “a psicanálise não é uma psi-
psicoterapias, o que suscitou manifestações por parte dos psiquiatras e coterapia”? É verdade que ela não é uma psicoterapia, no entanto,
dos psicoterapeutas. [N. T.]
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observo que os psicanalistas recebem as mesmas demandas que nos sintomas: é isso que chamamos de terapêutica. É muito im-
os psicoterapeutas, as demandas, digamos, suscitadas pelos sinto- portante ressaltar que essas duas vertentes são indissociáveis. Na
mas e pelo sofrimento que nosso mal-estar produz. A psicanálise psicanálise, cuidamos dos sintomas por meio da exploração do in-
transforma essas demandas em outra coisa, mas recebe as mes- consciente, essa é nossa diferença, formulada de maneira muito
mas. Por outro lado, muitos analistas não fazem somente análises; simples, com relação às simples psicoterapias da escuta, do acon-
muitos deles trabalham em instituições, e, por mais analistas que selhamento, do consolo e tutti quanti. O que faz, creio eu, com que
sejam, pensa-se, não fazem psicanálise nas instituições, mas se não se possa dissociar a psicanálise de seu alcance terapêutico, o
limitam a responder ao sintoma que encontram, e, é preciso dizer, que, ademais, dá testemunho do inconsciente linguagem. Já desen-
às vezes fazem o mesmo que os psicoterapeutas. No melhor dos volvi esse assunto muitas vezes, deixo-o de lado.
casos, os psicoterapeutas escutam – nem sempre é assim –, outros
falam. Então, continuar com o slogan “a psicanálise não é uma
psicoterapia” não somente elimina os psicoterapeutas (não temos Não vou me deter muito nas demandas que alguns querem fa-
vontade alguma de eliminar os psicoterapeutas, evidentemente), zer ao Estado com o objetivo de se fazer reconhecer como psica-
mas seria, sobretudo, um pouco – eu fazia essa comparação – nalistas; trata-se de posições muito mais pragmáticas, um pouco
como uma loja de alimentos que pendurasse um cartaz dizendo extraviadas, ou que podem chegar a extraviar. É preciso discutir
“aqui não se vende comida”. sobre isso com todo mundo, mas, em todo caso, noto que se vê
bem aí a pertinência dessa frase de Lacan. Para fazer existir a psi-
Creio que foi Lacan, mais uma vez, quem deu a fórmula da
canálise pura – a psicanálise do psicanalista – alguns gostariam de
posição justa – volto sempre a ela, mas como fazer de outra forma?
se subtrair, de se colocar como exceção, de se extraterritorializar
–, quando ele diz que “a psicanálise é uma terapia, mas não como
com relação aos problemas do discurso contemporâneo; outros es-
as outras”.3
tão prontos a deixar de ex-sistir, no sentido de produzir um dizer
Com efeito, não vendemos psicoterapia – se me permitirem específico – o do discurso analítico – para estar presente no mun-
a expressão –, mas aceitamos demandas terapêuticas e, portanto, do, para continuar presente no mundo. São duas respostas a um
tratamos de demandas terapêuticas. Nós as tratamos efetivamente, mesmo dilema: como ex-sistir ao discursocorrente comum, em sua
para além da escuta psicoterápica. Podemos precisar ainda mais, forma capitalista atual, sem desaparecer? É essa a questão.
dizendo que a psicanálise apresenta dois aspectos indissociáveis.
Não creio que seja possível deixar de lado a psicoterapia, como
Trata-se de uma exploração do inconsciente, consiste em construir
acabo de dizer, e não creio que se possa esperar que o Estado se
e, ao construir, por meio da fala, explora os significantes, as pala-
transforme em grande Outro da psicanálise, já que é assim que
vras, os desejos que circulam no inconsciente: essa é sua vertente
interpreto essas tentativas: como poderíamos regulamentar a com-
epistêmica. E fato é que, ao mesmo tempo, ela obtém modificações
petência do analista, tal como se faz com a competência de um
técnico? Claro que todo mundo gostaria de se assegurar da com-
3 Lacan, J. (1955). Variantes do tratamento-padrão. In Escritos. Rio de Janeiro:
petência do analista, mas como poderíamos fazer isso sem, por um
Zahar, 1998n, p. 326.
26 do diagnóstico em psicanálise colette soler 27

lado, eliminar o ato de levar em conta o inconsciente e, por outro, configuração dos sintomas, já que sabemos, é claro, que eles mu-
a ética do sujeito – dois fatores que introduzem o incalculável no dam conforme o contexto de discurso, que são históricos – sempre
cálculo das competências? se fala disso, e o próprio Freud percebeu isso. No fundo, Freud se
deu conta de que as psicologias que ele nomeou individual e cole-
tiva eram solidárias entre si.
Essas questões continuam abertas, e acredito que isso seja algo
positivo, e vamos continuar tentando elaborá-las um pouco mais
adiante. Essas questões, árduas hoje em dia, não são novas, e é por Hoje, diríamos mais que os indivíduos, um a um, estão sujei-
isso que citei a frase de Lacan de 1973. Há muito tempo, ele havia, tos a um mesmo discurso. A sintomatologia é outra coisa, trata-se
ironicamente, denunciado aquilo que queria voltar “ao redil da psi- da conceitualização dos sintomas, isto é, o saber que se constrói,
cologia geral”4 – ele dizia assim. Essa frase se referia os universitá- ou, se preferirem – para empregar um termo simples da teoria clí-
rios, Lagache e outros, que queriam ligar os conceitos da psicologia nica –, a teoria elaborada acerca dos sintomas. As teorias clínicas
e os da psicanálise, como se se tratasse de um campo homogêneo. (já que existem várias) não são simplesmente teorias causais, ex-
Hoje não se está mais à procura de um redil conceitual, mas, sim, plicativas; elas começam no plano da designação, da identificação
à procura de um redil de saúde pública, o que está um grau abaixo. dos sintomas, com a questão de saber a que se chama de sintomas.
Voltarei a isso um pouco adiante.
Creio que todos esses problemas estão bastante presentes na
questão dos diagnósticos, então, volto ao meu tema, a questão dos
diagnósticos e as polêmicas que isso implica.
Desde o início da psicanálise, Freud e seus colegas colocaram a
questão da elaboração de uma teoria clínica própria à psicanálise,
diferente das teorias clínicas da psiquiatria. Tratava-se de saber se
Um século de diagnósticos na psicanálise havia uma clínica psicanalítica que fosse própria ao discurso ana-
lítico e que não fosse simplesmente a clínica psiquiátrica daque-
Na medida em que seguimos o ensino de Lacan, não podemos le tempo. Uma clínica psicanalítica própria, no sentido forte do
prescindir do diagnóstico. Em geral, justificamos isso em nome da termo, suporia duas coisas: uma nosografia própria, isto é, uma
possível psicose do paciente que nos consulta. Em princípio, gos- identificação dos sintomas que lhe fosse própria, e, além disso, em
taria, então, de fazer um panorama que vou chamar de “variantes segundo lugar, teorias explicativas próprias.
da sintomatologia na psicanálise”.
A psicanálise – em um século de existência – teve evolu-
ções sintomatológicas. O que chamo de “sintomatologia” não é a Lembro a vocês a evolução da história com relação a essas
questões.

4 Lacan, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In Ou-


tros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 597.
28 do diagnóstico em psicanálise colette soler 29

Em princípio, é possível constatar que Freud, Lacan, Melanie por meio da análise das neuroses, em cada um dos sintomas. Titu-
Klein – nela isso é menos nítido, mas penso que também seja o beando um pouco nos primeiros anos, ele responde com a noção
caso – construíram sua clínica desviando-se da clínica psiquiátri- de psiconeurose de defesa, teoria unitária das psicoses e das neuro-
ca; ou seja, grosso modo, eles retomaram as categorias diagnósti- ses. Em seguida, pode-se acompanhar passo a passo a explicitação,
cas da psiquiatria: psicose, neurose e perversão. Vocês sabem que na obra de Freud, da busca dos mecanismos diferenciais a partir
todos os primeiros textos de Freud sobre questões da psicose são dessa teoria unitária.
diálogos a respeito de duas grandes vertentes da psicose: a para-
Lacan retomou as categorias diagnósticas. Vê-se muito bem
noia e a esquizofrenia. É possível acompanhá-los sem dificuldade.
isso quando ele luta contra o organo-dinamismo de Henry Ey, seu
E o mesmo ocorre com as grandes vertentes da neurose: a histeria,
colega e camarada. Se retomarem os textos dos Escritos, verão que
a obsessão e a fobia. A perversão, desde o início, foi mais polimor-
eles estão perfeitamente de acordo sobre a nosografia, mas contes-
fa. Por outro lado, cada uma dessas categorias está historicamente
tam a teoria explicativa. Lacan põe em ação a empreitada de re-
ligada a um grande nome da psiquiatria clássica: Kraepelin, à pa-
pensar todos os fenômenos da neurose, da psicose e da perversão a
ranoia; Bleuler, à esquizofrenia; Krafft-Ebing à perversão, e, para
partir da estrutura do sujeito na medida em que ele é determinado
resumir, digamos que Charcot à neurose de base que é a histeria.
pela estrutura do significante e do discurso.
Tanto Freud quanto Lacan retomaram essa nosografia, ao me-
nos no início. Em Freud isso se concebe porque se tratava da clíni-
ca psiquiátrica de sua época, o fim do século XIX e início do XX. Tudo isso me parece totalmente claro na história da psicaná-
Ele era contemporâneo da construção dessa nosografia. Em Lacan lise, deixo de lado as nuances. Em 1973, em “Introdução à edi-
é um pouco diferente. Durante sua formação como psiquiatra, nos ção alemã dos Escritos”, Lacan permanece nessa posição. Ele diz,
anos 1930, ele não estava longe dessas elaborações, mas se o tomar- na página 554 dos Outros escritos: “existe uma clínica (ele chama
mos, digamos, a partir do pós-guerra, o Lacan psicanalista já está de clínica a descrição dos tipos). Só que, vejam: ela é anterior ao
praticamente a cinquenta anos de distância. discurso analítico”.5 Não se pode mais admitir com tanta clareza
os tipos clínicos isolados pela psiquiatria. E, portanto, sua questão
Com relação a nós, já se passou um século. Além disso, La-
ainda permanece nesse texto: “será que se pode demonstrar que os
can partiu da psicose, ao passo que Freud, da neurose. No entanto,
tipos clínicos da psiquiatria procedem da estrutura?” (Entenda-se
apesar de todas essas diferenças, Freud e Lacan fizeram a mesma
aí, “procedem do efeito de linguagem”).
operação: eles retomaram a nosologia psiquiátrica, seus termos,
o mapa dos transtornos isolados pela psiquiatria, e procuraram
construir uma teoria psicanalítica a partir dessa nosografia. Gostaria de fazer dois comentários sobre a posição de Lacan
Vê-se isso muito claramente em Freud. Desde o princípio, ele em 1973, já que tudo isso poderia pedir uma interpretação.
efetua uma operação muito simples: toma o mapa dos sintomas e
5 Lacan, J. (1973). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escri-
se pergunta qual a incidência do inconsciente, descoberto por ele
tos, op. cit., p. 554.
30 do diagnóstico em psicanálise colette soler 31

Com efeito, em 1973, Lacan não se refere em absoluto à nova Lacan, em linha de frente, ressaltou a historicidade do sintoma, e
sintomatologia do DSM.6 Ora, o DSM-I foi publicado em 1952, até mesmo produziu o neologismo de escrita, hystoire [história],
não sei se vocês têm isso em mente: ele é velho! O DSM-II apare- com “y”, como se escreve hystérie [histeria] com um “y” em fran-
ceu em 1968. Em 1973, Lacan evidentemente não o desconhecia, cês, indicando que a estrutura da histeria está em funcionamen-
mas não o menciona... O que quer dizer? Como compreender isso? to na historicidade. Ele tinha, pois, uma poderosa consciência da
Minha hipótese, que não vou desenvolver aqui exaustivamente evolução dos sintomas, de sua relatividade em função do estado do
agora, é que, talvez contrariamente àquilo que se acredita, a clínica discurso. E ele não fala dos novos sintomas que, contudo, já exis-
da psiquiatria clássica e a clínica do DSM não são tão heterogêneas tiam em 1973 – não creiam que eles são produtos dos anos 2000!
quanto se imagina; com efeito, ambas são estritamente descritivas. Hoje, insiste-se muito nesses novos sintomas, na série depressão,
Nos casos em que há hipóteses causais, elas não entram na descri- abulia, toxicomania, transtorno da oralidade, passagem ao ato... E
ção clínica, nem a mudam. Mas, naturalmente, há uma diferença: há preocupação porque se vê nisso manifestações de rebeldia, as
a clínica do DSM é uma clínica descritiva que passa pela via esta- pessoas estão mais rebeldes à transferência, resistentes em começar
tística, a qual, portanto, leva em conta o grande número e as repar- uma análise. Mas observem que toda essa série designa transtor-
tições; ao passo que a clínica clássica baseava-se no interrogatório nos de conduta que concernem diretamente ao desejo ou aos gozos
dos pacientes um a um, e é possível dizer que a relação e a observa- pulsionais: depressão e abulia é a deflação do desejo; toxicomania,
ção no um a um e a acumulação dessas observações estavam mais transtornos da oralidade; passagem ao ato é a pulsão em ação...
em consonância com o método analítico que a via estatística e a Não são sintomas que procedem da decifração. Os sintomas e os
resposta aos questionários anônimos. transtornos de conduta não são a mesma coisa, a psicanálise deci-
fra os sintomas construídos por transtornos diretos do desejo e da
pulsão (a psicanálise em sua origem freudiana). Certo é que hoje,
Minha primeira observação é que Lacan não se comoveu com trinta anos depois da frase de Lacan, esses transtornos não são ver-
a aparição dos DSM no campo da psiquiatria, isso é evidente. dadeiramente novos, e adquiriam uma amplitude numérica que
A segunda observação é que Lacan não se refere, em absolu- não tinham nos anos 1970.
to, aos novos sintomas com os quais o capitalismo nos presenteia,
sintomas que os psicanalistas de hoje dão tanta importância e
O que é novo, então, para que os psicanalistas se queixem tanto
que chamam de “os novos sintomas”. Isso é bem estranho porque
deles? Acredito que é porque eles os encontram mais que antes por
6 Referência ao Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (ou Ma- dois motivos que não estavam completamente presentes na déca-
nual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Trata-se de um ma- da de 1970. Porque, ao saírem de seus consultórios, eles já não se
nual para profissionais da área da saúde mental que elenca as distintas moda-
reduzem mais agora ao corpo dos psicanalistas liberais. Eles estão
lidades de transtornos mentais e os critérios para diagnosticá-las, seguindo as
orientações da American Psychiatric Association (APA). Sua primeira versão um pouco por toda parte, nessas instituições em que se encontram
foi publicada em 1952, atualmente estando na quinta versão (DSM-V), lança-
do em 2013. [N. T.]
32 do diagnóstico em psicanálise colette soler 33

sujeitos que tenham, talvez, a chance de localizar um analista ali, se critique essas categorias – das quais não sou parte interessada –,
mas que, em geral, não vão procurá-lo. mas é preciso reconhecer que eles tentaram criar uma sintoma-
tologia própria ao discurso analítico. Sintomatologia pragmática,
E ademais, há a publicidade que se faz para a psicanálise na
sem dúvida, mas, no entanto, específica do discurso analítico.
televisão, na imprensa, nos livros, enfim, em todos os meios de
comunicação; isso é incomparável com relação ao que aconteceu Para concluir esse panorama, gostaria de dizer algo sobre o que
vinte, trinta ou cinquenta anos atrás. Propaga-se na opinião públi- chamarei de “as variantes da sintomatologia lacaniana”. Acabo de
ca a ideia de que a psicanálise é um recurso indistinto para aqueles salientar que Lacan manteve a mesma posição até 1973. Mas ele
que têm algo que não vai bem, o que faz com que cada vez mais se deu um passo a mais em seu último ensino, a partir do momento
recebam sujeitos, diria “por mal-entendido”, que não teriam vindo em que introduziu o nó borromeano, o que começa justamente
se consultar há trinta anos – é isso o que mudou, me parece. Há nos anos de 1972-1973. Ele inseriu ali, falando com propriedade,
algo aí para se preocupar? Deixo que vocês julguem. uma nova sintomatologia, isto é, novas designações dos sintomas
e uma nova construção teórica para tratar de dar conta dela. O
Em todo caso, em 1973, Lacan permanece impávido com re-
mais estranho, enfim, é que quase nunca nos referimos a ela. Nós
lação a essas questões; como ressaltei, é impressionante que ele,
nos referimos a ela para estudar a coisa, eventualmente para fazer
que fez tantas predições que se verificam hoje sobre o que estava
explanações, mas, na prática, quando se trata de falar de um caso,
acontecendo e o que ia acontecer, não tenha dito nada com relação
utiliza-se muito pouco as últimas elaborações de Lacan – e por
a isso. Até 1973, ele continua se ocupando dos sintomas-padrão
“se trata” refiro-me aos lacanianos. Nós continuamos a nos referir
que enumerei no começo.
preferencialmente às elaborações anteriores. Sobretudo na psicose,
vamos diretamente a “De uma questão preliminar...”7 ao Seminário
Assinalo agora – esse é outro breve ponto – o grande contraste 3:8 é claro que não sou eu quem vai desencorajar o estudo desses
com o ocorrido na corrente da IPA. Por intermédio de alguns de textos, eles são a base, mas que ficamos um pouco estacionados, é
seus membros, não todos, os psicanalistas da IPA tentaram inven- o mínimo que se pode dizer!
tar categorias sintomáticas novas a partir da experiência analítica.
Podemos criticar essas categorias – alguns, inclusive, podem dizer
É preciso reconhecer que Lacan realmente não desenvolveu
“é porque eles não conhecem a psiquiatria”–, dado que isso veio
uma clínica borromeana, ele apenas a introduziu, nomeou – o que
mais dos Estados Unidos. De todo modo, seria um pouco insu-
já é muito. Dispomos ao menos de três exemplos: um que não é
ficiente ater-se a isso, mas, é certo que quando Winnicott produz
grande coisa, e dois muito importantes.
seu “self”, quando outros produziram as “personalidades como se”,
as “personalidades narcísicas”, as “personalidades borderline”, não
7 Lacan, J. (1958). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
eram categorias da psiquiatria clássica, que eles forjaram a partir de
psicose. In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998h, pp. 537-590.
sua experiência da psicanálise. Não se trata nem de neurose nem 8 Lacan, J. (1955-1956). O seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Zahar,
de psicose, isso vem da psicanálise. O que digo aí não impede que 1985c.
34 do diagnóstico em psicanálise colette soler 35

Em primeiro lugar – já expus isso e afins também durante uma do possível, os fundamentos e os recursos clínicos da sintomato-
apresentação de pacientes – temos o que ele propôs com relação logia borromeana. Para incluir isso em meu título, poderia dizer
ao que chamou de “doença da mentalidade”. Não estou explicando “a querela da sintomatologia borromeana e da sintomatologia da
o que ele entendia por isso, mas aqui há uma categoria nova total- cadeia significante”. Na realidade, não se trata de uma querela, mas
mente desconhecida na legião da nosografia psiquiátrica e que não para indicar que há, ainda assim, certo hiato, gostaria de estudar o
poderia ter sido produzida se ele não tivesse utilizado os esquemas que constitui a clínica borromeana, se conseguirmos chegar até aí.
oriundos do nó borromeano, que respondem a uma realidade clí-
nica precisa.
Por outro lado, ele propôs o “sinthoma [sinthome] Joyce”, que Polêmica sobre o uso do diagnóstico
não é o sintoma [symptôme] Joyce, ainda que haja algo nesse texto,
extrema e rigorosamente preciso, que se poderia chamar de uma Antes disso, gostaria hoje, depois desse panorama da evolução
nova formulação de um tipo de sintoma totalmente inédito. da sintomatologia na psicanálise, de passar a outro aspecto: o uso
Em outra ocasião – mas, neste caso, trata-se realmente de algo dos diagnósticos, o uso prático perante o paciente. Trata-se de algo
bem reduzido –, ele pôde dizer, ainda durante uma apresentação diferente do mapa nosográfico ou da teoria dos tipos sintomáticos.
de pacientes: “essa é uma psicose lacaniana”.9 Por que disse isso? Há uma polêmica viva sobre essa questão, isto é, toda uma corrente
Porque se tratava de um sujeito que, se me lembro bem, alucinava de pensamento que recusa duas coisas.
e delirava ao mesmo tempo, mas delirava com uma espécie de cos-
mologia em que havia o simbólico, o imaginário e o real – era ele
Primeiramente, a necessidade do diagnóstico em psicanálise.
quem nomeava dessa forma, e não me parecia suspeito de ter lido
Algumas pessoas pensam que o diagnóstico é inútil no discurso
muito, de ter copiado isso. Era bastante surpreendente! É por isso
analítico, que não se deveria usar o diagnóstico. Mas também, e
que Lacan diz “essa é uma psicose lacaniana”. Foi um gracejo, mas
isso está ligado, há aqueles que denunciam o uso do diagnóstico
serve para indicar que, a partir de certo momento, ele começou
como um abuso, o que não é totalmente igual.
a abordar os fenômenos clínicos com sua nova ideia quanto aos
registros do imaginário, do simbólico e do real. Trabalhei esse tema até o começo do ano e certamente não vol-
tarei a ele, porque não é, de forma alguma, algo atual – essa cor-
Como creio que não estamos totalmente em dia com esses diag-
rente pertence um pouco ao passado. Ela proliferou nos anos 1970,
nósticos de Lacan, minha intenção neste ano é estudar, na medida
mas os tempos atuais são mais “diagnosticistas”; diagnostica-se
bem ou mal, a torto e a direito. Os próprios sujeitos o demandam:
9 Federación de Foros del Campo Lacaniano España, F7. Documento de uso
Interno: Lacan, Diciembre 1975, Abril 1976. 8 Presentaciones de enfermos en “diga-me o que sou, diga-me o que tenho”, eles querem etiquetas, o
Sainte-Anne, Presentación del viernes 13 de febrero de 1976. Caso G. L., 26 que talvez os tranquilize diante do desconcerto existente.
anos: Una psicosis lacaniana. Recuperado de http://www.valas.fr/IMG/pdf/
j_lacan_presentations_clinique_de_sainte-anne_en_espagnol.pdf (Acesso em Mesmo assim, ainda há vozes que proclamam guerra contra
27/03/2018). os diagnósticos na psicanálise. Para tomar as coisas de forma mais
36 do diagnóstico em psicanálise colette soler 37

positiva, menos polêmica, então, de onde vem o problema? Creio tratado, e não simplesmente aquele que nos é apresentado, e, talvez
que compreendemos bem se nos referirmos às análises que Mi- – é até mesmo certo –, que não seja possível tratar de todos.
chel Foucault fez em seu livro O nascimento da clínica.10 É uma de
O sintoma que pode ser tratado é constituído de outra forma,
suas melhores obras – há outras que são interessantes, mas essa,
ele é necessariamente autodiagnosticado. Na psicanálise, é sintoma
particularmente, era pertinente. Nela, Michel Foucault estudava a
aquilo que o sujeito considera como sintoma. Na medida em que
clínica psiquiátrica, não a clínica psicanalítica, e caracterizou a ati-
ele não considerar um traço como um sintoma, este permanece-
vidade diagnóstica de uma forma que considero justa: diagnosticar
rá inerte, um enclave na fala analisante. Há, então, uma disjunção
é fazer o caso singular entrar em uma espécie geral. Isso é feito
entre os sintomas cuja presença ou ausência o médico procura, e
por uma preocupação com a racionalidade, o que é, porém, um
aqueles que permitem entrar na psicanálise.
pouco homólogo ao que se faz ao se classificar as espécies animais
ou vegetais: criam-se jardins botânicos, zoológicos... É possível É por isso, aliás, creio eu, que se coloca a questão da demanda
fazer também um jardim das patologias, sem problema! Michel de entrada. Sabe-se bem que não é qualquer demanda que permite
Foucault ressaltou precisamente que se tratava de uma medicina entrar em uma análise. Essa questão é muito importante, precisa-
do visível, do mostrável, que ela implicava o olho clínico – esse mente porque não é qualquer estado do sintoma que se presta à
olho do clínico que, a partir do século XIX, passou inclusive para elaboração analisante. Poderia, ainda, dizer isso de outra forma: só
além do campo macroscópico, chegando até o microscópico com é sintoma tratável aquilo que se apresenta como um significante da
a anatomopatologia. transferência, isto é, que supõe um sujeito. O que não se vê, isso
não procede da clínica do visível. Que um transtorno qualquer,
Essa sintomatologia do olhar é sempre uma sintomatologia do
algo que não vai bem para o sujeito, suponha o sujeito, não é visível.
Outro, estabelecida pelo médico. Na psiquiatria, faz-se, sem dúvi-
da, o paciente falar, mas na medida em que, por meio do que ele O que faz com que o mesmo sintoma, definido na clínica psi-
diz, se possa entregar os signos da espécie mórbida à qual pertence. quiátrica, na clínica da observação – quer seja uma conversão, uma
Em sua fala, procura-se não os traços de um sujeito, mas os traços fobia etc. – possa ou não se tornar um sintoma analítico. O fato de
de sua doença. É, portanto, um hétero-diagnóstico, um diagnósti- fabricar a forma analítica do sintoma é uma transformação.
co que vem do Outro e no qual a fala não é, em absoluto, consti- Pode-se expressar isso de diversas formas: o que se denomina
tuinte, mas simplesmente o veículo dos signos. Isso imediatamente “sintoma” na clínica da observação não se denomina forçosamente
faz parecer que há um problema com a psicanálise, porque nela “sintoma” na clínica autodiagnosticada do sujeito. Ou ainda: o que
se acolhe o sintoma constituído de forma muito distinta. Quan- o Outro social (e o psiquiatra faz parte do Outro social) não su-
do digo “se acolhe o sintoma”, quero dizer o sintoma que pode ser porta ou estigmatiza nem sempre coincide com o que cada sujeito
não suporta. Nesse sentido, a fala, os ditos do sujeito, são consti-
tuintes do sintoma que é possível tratar na psicanálise. Somente o
10 Foucault, M. (1963). O nascimento da clínica. São Paulo: Forense Universitária, sujeito pode dizer o que não vai bem para ele, embora ele ignore
2011. a causa disso; naturalmente, ele talvez tente descobri-la. Às vezes,
38 do diagnóstico em psicanálise colette soler 39

aquilo que não vai bem demonstra muito mais isso – o que não vai A ética dos diagnósticos
bem, quando tudo vai bem, aliás. É isso que faz com que, muitas
vezes, os neuróticos sejam tratados como doentes imaginários. Um É para ser indulgente que estou tentando explicar, para mim
“doente imaginário” é um doente subjetivo, isto é, que o discurso mesma, a tese da inutilidade do diagnóstico. Mas há outra parte da
comum diz: “ele tem tudo para ser feliz”, mas não, algo não está tese que denuncia o abuso do diagnóstico. Há um problema de ética
bem. Percebe-se aí uma considerável diferença entre o sintoma vi- com os diagnósticos, sobre o qual gostaria de dizer algumas palavras.
sível, aquele que a psiquiatria pode diagnosticar – e o psicanalista
eventualmente também –, e o sintoma invisível, aquele que o sujei-
to vive, entre o sintoma observado e o sintoma subjetivo. Para resumir a tese daqueles que o denunciam, o diagnóstico
seria uma espécie de abuso do saber em prol de outra coisa; em ou-
tras palavras, é a ideia de que o exercício clínico, que é um exercício
Recebi recentemente uma pessoa assim. Foi bastante interes- de saber, é apenas o álibi do gozo do clínico. Essa tese partiu emi-
sante. Tinha 47 anos, o que começa a ser apenas a metade da vida. nentemente de Michel Foucault, de quem acabam de republicar o
Uma pessoa bem-sucedida, em tudo. Dizia a mim mesma que gos- curso de 1973-1974 sob o título de O poder psiquiátrico.11 A data aí
taria de saber o que um analista da IPA diria diante de uma pessoa é importante, porque nessa época ainda estávamos sob os sobres-
assim. Porque se procurarmos esses critérios de adaptação ao dis- saltos dos efeitos de 1968, da ideologia antimestre e antipoder de
curso e ao mundo, tudo está bem – o marido, os filhos, sua carreira 1968. Comprei esse livro, então, com bastante esperança, porque
de sucesso (até mesmo excepcional), talentos manifestamente fora Michel Foucault, apesar de tudo, escreveu diversos grandes textos,
do comum. E eis que então, já há tempos, ela pensa na psicanáli- mas devo admitir que aquele não foi seu melhor ano (acontece!).
se, e finalmente vem a ela, porque com esse “tudo vai bem”, algo Ele me pareceu muito fraco e, sobretudo, datado, embora, como
ou tudo também vai mal. O que é isso, então? Isso é um sintoma sempre, encontre-se em seu texto uma massa de informações, de
possivelmente tratável pela psicanálise; não se sabe para onde isso erudição, sempre úteis para o leitor.
levará, mas, em todo caso, trata-se de uma configuração que torna
sensível, na própria entrada, essa diferença profunda entre a clínica
psiquiátrica e a clínica psicanalítica. Qual é a tese de Michel Foucault?

Creio que é essa diferença, para tomá-la da forma mais positiva Em princípio, ele estigmatiza a posição do poder do psiquiatra
possível, explica porque certos analistas pensam que o diagnóstico tomando seu parâmetro, digamos, longe no tempo, mas essencial-
prévio é inútil, já que é na elaboração da fala que se pode desdobrar mente no século XIX e no início do XX. Há ali textos extremamen-
o sintoma, mas que o sintoma que se observa na entrada não é in- te convincentes que ele cita e em que se vê, na verdade, que os psi-
teressante para o psicanalista, e que, no fundo, o que lhe interessa quiatras dessa época não se consideravam somente como homens
é aquilo que se revela mediante transferência nos ditos do sujeito.
11 Foucault, M. (1973-1974). O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
40 do diagnóstico em psicanálise colette soler 41

de saber, mas retificadores de desvios morais e sociais. Foucault toda apreensão nosográfica do outro, toda etiqueta que
estigmatiza o poder do psiquiatra sobre o pobre psiquiatrizado, lhe fizesse carregar [é a hospitalidade incondicional,
que está à sua mercê. E em seguida, ele isola – estou resumindo em portanto, que exclui qualquer olhar nosográfico] seria
linhas gerais – duas empreitadas, as quais chama de despsiquiatri- um dispositivo imunitário [ele escreve bem!] contra
zação, que ele coloca no mesmo plano – se não o tiverem lido, não todo advento imprevisível, inesperado, surpreendente, e
vão adivinhar quais são: a farmacologia e a psicanálise, na medida seria, em suma, uma medida de hospitalidade limitada.
em que elas despsiquiatrizam e tocam, efetivamente, em algo do
poder moral do psiquiatra. De fato, tudo isso para fazer uma apo-
logia, uma verdadeira apologia, da antipsiquiatria que seria a única Quando lemos isso, dizemos “Ah, sim...”. Somente nos adven-
a ter efetivamente desfeito o abuso psiquiátrico. tos imprevisíveis, inesperados e surpreendentes pode ocorrer, por
exemplo, o suicídio de um sujeito melancólico... O que já é, então,
Essa tese de Michel Foucault parece-me bastante representativa um problema. Ele acrescenta: “a hospitalidade incondicional deixa
de uma tese defendida por certo número de autores: a tese do abu- de reserva todo saber e toda inquisição”. Essa é uma tese muito
so inerente ao diagnóstico, que faz do saber um álibi do gozo. Aí forte, ele diz que a posição nosográfica é inquisidora.
já não se trata mais tanto do gozo do olhar, mas do gozo do poder.
Um pouco mais adiante, ele diz que essa hospitalidade exclui
Michel Foucault, decerto, não está no campo da psicanálise, o cálculo, a antecipação e o apropriável. Tudo isso – cálculo, an-
mas encontramos tais ecos no campo da própria psicanálise. Gos- tecipação, previsão na clínica –, ele imputa àquilo que chama de
taria de citar um exemplo, não porque ele é representativo, mas crueldade, que é um dos nomes do gozo do poder.
porque, de forma contingente, li o livro de René Major, que se
chama La démocratie en cruauté.12 Como ele teve a gentileza de René Major, por fim, provavelmente tenha razão no âmbito já
me oferecer um exemplar, eu o li e encontrei uma tese que me fixado, já desenhado da psicanálise do sujeito neurótico. Nesse âm-
surpreendeu muito, na verdade. Há nele muitas coisas interessan- bito, é possível sustentar o que ele coloca. É bastante próximo do
tes, mas, no fundo, René Major, inspirado por Derrida, introduz que Freud dizia, quando convidava a esquecer tudo o que se sabe
a seguinte noção: “a hospitalidade incondicional do analista”. É para abordar cada caso como se fosse o primeiro. Isso também se
uma noção muito bonita, e é preciso dizer que a hospitalidade – tratava de hospitalidade incondicional, porém, não antes da entra-
condicional ou incondicional – é uma prática que está se perden- da em análise, mas depois.
do. Ele propõe essa ideia, que a princípio parece muito simpática,
mas logo diz:
O que podemos conservar dessas críticas? Diagnóstico inútil
ou abusivo? Nós, enquanto alunos de Lacan, estamos persuadi-
a hospitalidade incondicional com o paciente faz pres-
dos da necessidade do diagnóstico prévio, para saber se, e como, a
cindir de tudo o que posso saber, nunca sei o bastante, pessoa que recebemos pode ou não se beneficiar com o processo
analítico.
12 Major, R. (2003). La démocratie en cruauté. Paris: Éditions Galilée.
42 do diagnóstico em psicanálise colette soler 43

Freud, como sabem, pensava que a psicanálise era inoperante Gostaria, agora, de ressaltar o seguinte: em qualquer diagnós-
para a psicose. Essa não é exatamente a posição de Lacan, nem a tico – e isso é talvez algo que os denunciadores do diagnóstico te-
dos pós-freudianos; a posição de Lacan é muito simples: a de que nham percebido – há algo que excede apenas o juízo de saber. Mais
o saber clínico orienta a ação. Se não se sabe como uma psicose se vale, é claro, que o diagnóstico seja justo; justo ou não, porém, ele
constrói, quais são as condições e a natureza de seus fenômenos, implica sempre um juízo ético, e um juízo ético não é um juízo
então – como ele diz ao terminar seu texto “De uma questão pre- de saber. Se preferirem, poder-se-ia dizer um juízo de gosto, para
liminar...” – se “remará na areia”13 – em outras palavras, agiremos retomar o termo de Kant. Percebe-se muito bem isso, na época
em vão. Remar na areia é inútil. Se fosse apenas inútil, não haveria atual, quando se ouve falar do sintoma da homossexualidade. Os
problema, mas também pode ser perigoso, e isso é mais incômodo: psicanalistas falarem do sintoma da homossexualidade é o exem-
dou-lhes um exemplo (há outros exemplos), quando se tem que plo atual para apreender realmente que nos diagnósticos não há
lidar com um sujeito melancólico, que pode se parecer com um somente o elemento de saber.
neurótico como qualquer outro em certos momentos, é melhor
Há fenômenos discretos que mostram essa dimensão de juí-
perceber isso e não imaginar que a fala é um remédio para tudo.
zo ético no diagnóstico, e, em princípio, algo muito simples: ser
Ele pode, por vezes, precisar também de medicamentos e, prova-
diagnosticado é sempre muito desagradável. Fala-se daquele que
velmente, de abrigo hospitalar. A “hospitalidade incondicional”
faz o diagnóstico, mas há também aquele que é diagnosticado. E
seria aí, antes, culpada.
algumas vezes ser diagnosticado é muito desalentador.
E depois há a prática do diagnóstico selvagem, que é frequente:
Para concluir sobre isso, a necessidade do diagnóstico é solidá- trata-se como maluco, histérico, paranoico, esquizofrênico... Que
ria do racionalismo da orientação lacaniana, isto é, do postulado no cotidiano seja possível fazer esse uso é um índice de que há
segundo o qual a relação analítica com sua experiência da fala e o um uso possível do diagnóstico como injúria, especialmente nos
instrumento da linguagem, por um lado, e, por outro, o campo de meios informados psicanalíticos e psiquiátricos, isto é, que há tam-
que ela trata (a saber, os sintomas), que ambos – relação analítica e bém diagnósticos de corredor, fofocas que dizem “você sabe que
sintoma – são, um e outro, regulados, ou seja, que há leis, mecanis- fulano é um...”. Essas pequenas ocorrências discretas do cotidiano
mos, e, portanto, cálculo possível. Evidentemente, o cálculo não é devem ser colocadas em uma estrutura muito mais geral que Lacan
tudo, não exclui a incidência da causa subjetiva singular própria a formulou de forma bem simples: “todo significante faz injúria ao
cada um, em que reside o incalculável. O melhor que se pode fazer sujeito”, isto é, todo juízo que atribui um significante a um sujei-
na psicanálise é um cálculo que dê lugar ao incalculável. to exerce uma violência sobre esse sujeito. O que quer dizer que
o caráter injurioso não depende tanto do sentido do significante
quanto da própria predicação, a predicação que vem do Outro, um
Outro que formula “você é isso ou aquilo” – seja isso positivo ou
13 Lacan, J. (1958). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da negativo. O “isso ou aquilo”, o significante predicado, faz injúria ao
psicose, op. cit., p. 590.
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sujeito. O que quer dizer que ele recalca e aliena seu ser próprio. como de uma vítima comovente (isso é gentil!), isto é, que ele vê
Há uma violência da predicação e a predicação do diagnóstico não nos neuróticos sujeitos que têm dificuldades com seu desejo (é esse
escapa, em absoluto, dessa estrutura geral. As palavras que nos im- o caso), mas que, por isso mesmo, já que têm dificuldades – virtu-
putam nos violentam. de do sintoma – revelam que o próprio desejo implica dificuldades.
Não são apenas eles que têm dificuldades, o próprio desejo veicula
Nesse sentido, o diagnóstico é o oposto do nome próprio – não
dificuldades estruturais, e não somente eles as revelam, diz Lacan,
me refiro ao nome próprio como o patronímico que se carrega,
mas as têm presentes, e ele acrescenta – eis o juízo ético – que isso
mas a uma definição de nome próprio como um nome que iden-
não os coloca tão mal assim na escala humana.
tifica os traços de alguém como singulares, únicos, impredicáveis
justamente e que só se promove por meio dos atos e das obras. É o É evidente que se poderia dizer que uma avaliação dessas –
que permite dizer que o nome próprio ex-siste ao Outro: não é um vista hoje a partir do relatório Cléry-Melin,14 por exemplo, o qual
significante do Outro, mesmo que faça muitos outros para con- queria fazer todo mundo passar pelo critério da normalidade – é
firmar isso. Nem todo sujeito tem um nome próprio. E não estou um juízo que gostaríamos de encontrar.
longe de pensar que uma análise digna desse nome, se ela começa
Mas Lacan,que valorizava o sintoma neurótico na medida em
com a injúria do diagnóstico prévio necessário, e da qual depen-
que estava elaborando a dimensão do desejo na experiência, faz
dem as indicações da análise, deveria terminar com um nome pró-
outra avaliação quando começa a se interessar por aquilo que não
prio, para permitir ao sujeito apreender aquilo que, para ele, fixa
é o desejo, mas o gozo, e retoma um termo que Freud sublinhou na
seu ser singular fora do Outro, fora da alienação.
fala do Homem dos ratos, o termo “vileza”, “covardia”. Ou seja, que
Tudo isso para dizer que não há por que esconder a face: reco- o neurótico, por causa do recalque, da defesa e tutti quanti, recua
nheçamos a violência do diagnóstico. Se tivéssemos que escolher quando se trata de reconhecer e de assumir seu próprio gozo.
entre violência e não violência seria muito simples, mas não é esse
E, consequentemente, nesses anos – estamos em 1967 – ele faz
o caso. Temos que escolher entre tipos de violência e, portanto, há
elogios ao perverso, o qual, diz ele “confrontado muito mais de
uma violência do diagnóstico que não deve ser a última palavra
perto com o impasse do ato sexual”.15
de nossa prática, mas que, no entanto, é necessária para evitar os
desastres. Vejam, portanto, que nessas duas etapas Lacan explicita o juí-
zo do diagnóstico em função da perspectiva que ele assume para
Lacan, por sua vez, não tinha o hábito de ignorar a realidade, e
o diagnóstico. O que faz, creio eu, com que seja sempre útil, em
ele nunca dissimulou um juízo ético que implicava suas categorias
diagnósticas. É muito impressionante, ele explicitou passo a passo
14 O relatório Cléry-Melin foi uma encomenda do Ministério da Saúde francês
como as categorias diagnósticas implicavam avaliações éticas, con- visando “coordenar os profissionais e engajar a avaliação de práticas por parte
forme já evoquei. das ANAES (Agence Nationale d’Accréditation et d’Évaluation en Santé) e tra-
zer a psiquiatria para outras especialidades médicas”. [N. T.]
Podemos acompanhar essa evolução: vemos, por exemplo, a 15 Lacan, J. (1967). A lógica da fantasia. Resumo do Seminário de 1966-1967. In
princípio, que ele tem muita simpatia pelo neurótico e fala dele Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 327.
46 do diagnóstico em psicanálise

cada juízo de diagnóstico que proferirem ou que ouvirem proferir,


interrogar não somente sua pertinência nosográfica, mas o pon-
to de perspectiva de onde o sintoma é avaliado. É o que sempre
permanece silenciado, somos obrigados a extrair isso se quisermos
percebê-lo, e aí é preciso reconhecer justamente que a ética do
diagnóstico não é a mesma na psicanálise e na psiquiatria. Não é
de se espantar. Para o psiquiatra, na medida em que ele é agente da
saúde mental, os diagnósticos, mais ou menos, em última análise,
referem-se sempre à adaptação social, à periculosidade ou não.
A avaliação ética do diagnóstico psicanalítico não tem esse
referente, ela se refere àquilo para que a psicanálise aponta – a sa-
ber, encontra-se aí no inconsciente: é esse o dever analítico. É um
dever relativo a esse discurso, não do dever em geral! Com efeito,
e podemos interrogar, quanto ao diagnóstico, sobre a forma pela
qual um sujeito singular responde ao destino que o inconsciente
produz para ele, como ele se situa com relação à sua verdade e
com relação ao gozo real que ele tem tendência a desconhecer,
mais ou menos.
Concluo sobre essa questão do abuso do diagnóstico. Creio
que aqueles que denunciam o uso dos diagnósticos enganam-se de
alvo. No plano epistêmico e prático, precisamos dos diagnósticos
mediante a pena de sermos irresponsáveis. O abuso possível, se
houver algum, é no nível da predicação ética e daquilo que inspira
o juízo ético que é interno ao diagnóstico. Pode haver aí, efetiva-
mente, usos pouco recomendados do diagnóstico.

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