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Ficha Técnica
Título: Em Nome do Amor
Título original: The House Across The Street Autor: Lesley Pearse Tradução: Ana Saldanha Revisão: Salvador Guerra Imagens da capa: Miguel Sobreira / Trevillion Images e L. V. Clarke / Getty Images ISBN: 9789892345123
Edições ASA II, S.A.
uma editora do Grupo LeYa R. Cidade de Córdova, n.º 2 2160-038 Alfragide – Portugal Tel.: (+351) 214 272 200 Fax: (+351) 214 272 201
Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
LESLEY PEARSE EM NOME DO AMOR Para Olive Bedford, minha querida fã na Nova Zelândia, que ao longo de vinte anos se tornou para mim uma amiga, uma confidente e quase uma mãe. Para comemorar os seus noventa anos, virá a Inglaterra visitar a sua família e também visitar-me a mim. É uma fonte de inspiração, e duvido que alguma vez venha a tornar-se uma senhora idosa. PRÓLOGO Bexhill-on-Sea, 1964 A opela ouvir bater a porta de um carro na rua, Katy lançou um olhar janela do quarto. Era o velho Humber preto que já vira várias vezes, e duas mulheres saíram dele e começaram a subir o caminho do jardim até à porta da casa do outro lado da rua. Katy estava a passar a ferro no quarto das visitas na parte da frente da sua casa; o seu quarto ficava nas traseiras e só tinha vistas para o jardim. O irmão mais novo, Rob, dizia que ela era uma bisbilhoteira, sempre a observar as pessoas, fascinada pelas suas andanças. Ela negava-o, mas de facto achava a casa em frente muito misteriosa. Mrs. Gloria Reynolds, a dona da casa, tinha uma encantadora loja de roupa na cidade, a Gloria’s Gowns, só duas portas abaixo da firma de advogados onde Katy trabalhava como secretária. A loja e o facto de ser uma divorciada cheia de sofisticação eram mais do que suficientes para a tornar interessante aos olhos de Katy, mas o fator decisivo era que tinha visitas e hóspedes estranhíssimas a irem a casa dela. A condutora do Humber preto não tinha nada de assinalável. Era atarracada, cabelo grisalho, de meia-idade e usava o mesmo casaco de tweed de todas as outras visitas. Parecia a Katy o tipo de mulher que era casada com um médico, um pastor protestante ou outro profissional: imaginava que tinha uma pronúncia cuidada e passava o seu tempo livre a jardinar. Contudo, as mulheres que ela trazia aqui não poderiam ser mais diferentes dela ou de Mrs. Reynolds. Na maior parte dos casos, eram muito mais jovens, com frequência vestidas de forma bastante pobre, e por vezes – como a mulher de hoje, que coxeava – pareciam ter algum problema físico. Uma vez, no verão, quando Katy estava a arrancar as ervas daninhas no jardim da frente, tinha chegado uma mulher que não só tinha um olho pisado, mas todo o rosto inchado e distorcido. Alguns dos vizinhos também tinham reparado em visitas estranhas. Alguns achavam que Gloria devia andar a prestar auxílio a mulheres que tinham acabado de sair da prisão ou que sofriam de doenças graves. Prostitutas, alcoólicas, mulheres que tinham perdido um filho, tudo isso fora sugerido a Katy. No entanto, a maior parte dos vizinhos sentia que Gloria tinha um coração de ouro e que, fosse qual fosse a razão que levava aquelas mulheres a virem à casa dela, tinha de ser para ela as ajudar. Para vergonha de Katy, a exceção a esta regra era a sua própria mãe. Hilda Speed era conhecida pela sua língua afiada; poderia haver quem dissesse que ela nunca tinha nada de bom a dizer sobre ninguém. Sempre que o nome de Gloria era mencionado, comprimia os lábios em sinal de reprovação. «Pela aragem se vê quem vai na carruagem», era o que dizia sempre. Levantavam-lhe suspeitas o casaco de pele de raposa vermelha de Gloria, os seus saltos muito altos, as saias travadas e o cabelo castanho, que Hilda estava convencida que ela pintava para cobrir os cabelos brancos. Katy aproximou-se da janela e ficou a ver através da cortina de renda a senhora mais velha a pegar no braço da mais nova e a conduzi-la pelo caminho do jardim. Gostaria de poder ver o rosto dessa mulher, porque era difícil avaliar a idade de alguém só a vendo pelas costas, mas pensava que devia ser jovem, já que trazia umas calças de esqui justas e um blusão de couro, e o seu cabelo comprido e escuro estava preso num rabo de cavalo. A senhora mais velha abriu a porta da rua com uma chave. Isso era outra coisa que suscitava suspeitas a Hilda. Dizia sempre: «Que tipo de mulher permite que outras pessoas entrem na sua casa quando ela não está lá?» E Gloria não podia estar em casa hoje, porque era o último sábado antes do Natal, a época mais movimentada numa loja de roupa. Rob dissera a brincar a Katy que a mãe deles era tão mal-humorada que as únicas visitas que alguma vez teriam seria se as pessoas soubessem que ela não estava em casa. Quando as duas mulheres desapareceram dentro da casa, Katy voltou a passar a ferro, ao mesmo tempo que pensava nas misteriosas visitas. Tinha o hábito de dar dois dedos de conversa a Gloria sempre que entrava na loja dela. No mês anterior, comprara um vestido de chiffon verde-esmeralda para ir dançar no Natal. Mas Gloria era o tipo de mulher que se interessava mais pelas outras pessoas do que por falar de si mesma. Katy sabia que ela tinha duas filhas e um filho. A filha que vivia em Hastings tinha dois filhos pequenos, e o filho vivia algures lá para o norte. No entanto, por mais que Katy sentisse vontade de lhe fazer perguntas sobre as pessoas que vinham à casa dela, não podia. Não queria ter de confessar que espiava Gloria – e, além disso, é indelicado fazer perguntas pessoais a alguém que não se conhece bem. Katy pensava que talvez Gloria fosse conselheira matrimonial. Indubitavelmente, era fácil fazer-lhe confidências. Katy sempre detestara o seu cabelo ruivo, mas tinha de agradecer a Gloria por lhe dizer que não era cor de cenoura, mas de um louro-avermelhado e muito bonito. Há dois anos, Gloria escolhera um vestido de verão de um verde-pálido e sugerira a Katy que o vestisse, para provar o que estava a dizer. Katy vestiu-o e adorou-o, porque, subitamente, o seu cabelo parecia ter uma tonalidade menos acobreada. Comprou aquele vestido, que se tornou o seu favorito e a inspirou a comprar outras roupas na mesma cor. Sentia-se muito grata a Gloria por lhe ter dado uma nova confiança no seu aspeto. Recentemente, Gloria aconselhara-a a sair de Bexhill. «Está cheia de gente velha e é a cidade menos interessante de Inglaterra», dissera ela com um grande suspiro, a acenar com uma mão para a rua lá fora, que parecia estar cheia de reformados. «Vá para Londres, partilhar um apartamento com outras rapariga e divertir-se. Os únicos rapazes que alguma vez conhecerá nos bailes de sábado no De La Warr Pavilion são mecânicos, trabalhadores manuais e afins. Quem tiver alguma garra foge para Londres, nos dias que correm. É onde tudo está a acontecer.» Katy sabia que Gloria tinha razão. A maior parte das raparigas da turma dela na escola já estavam casadas, algumas com dois ou três filhos. Todas se tinham casado com rapazes da zona, viviam em casas camarárias e as suas vidas estavam encaminhadas para serem uma repetição da vida dos seus pais. Não era esse o tipo de futuro que Katy ambicionava. Ela e a sua amiga Jilly andavam sempre a falar de alargarem os seus horizontes, e talvez fosse agora o momento de começar. – Não há se nem meio se – disse Katy em voz alta. – Não tens nada a prender-te a Bexhill. Rob viera da universidade passar o Natal a casa; ainda na noite anterior tinha dito que pensava que não voltaria mais, porque a mãe deles era muito rabugenta. Contudo, se Katy também saísse de casa, isso deixaria o pai à mercê da mãe. Já atacado e ridicularizado, era provável que passasse cada vez mais tempo no escritório ou no barracão do jardim para evitar a mulher. O irmão de Katy talvez achasse que a mãe era uma pessoa rabugenta, mas na realidade não via como ela conseguia ser desagradável com o pai. Controlava-se sempre mais quando Rob vinha a casa. Ao ouvir a mãe chamá-la do andar de baixo, Katy foi à porta do quarto. – Querias alguma coisa, mãe? – disse para o fundo das escadas. – Com certeza já acabaste de passar a ferro? Katy deu uns passos para poder ver a mãe. Tudo em Hilda Speed era aguçado – a língua, as feições, os olhos e a mente – o que lhe permitia não perder pitada. Até mesmo o seu corpo parecia ser todo constituído por ângulos agudos. Era muito magra; os seus joelhos e os seus cotovelos eram como armas. Embora só tivesse quarenta e muitos anos, parecia mais velha, porque só muito raramente se ria ou até sorria. – Só estou a passar o último lençol – disse Katy. – Porquê, tens outra coisa que queiras que eu faça? – Não, só queria saber o que estavas a fazer. Katy revirou os olhos com irritação. Ao longo de toda a sua vida, a mãe sempre gostara de a trazer bem vigiada. Vir para casa da escola, ir fazer um recado, todas as atividades fora de casa tinham sempre um tempo definido, e se ela não voltasse no máximo uns dez minutos depois dessa hora, era interrogada. Era como se a mãe não conseguisse suportar a ideia de ela encontrar uma amiga ou uma vizinha por acaso e parar para dar dois dedos de conversa. – Vou só pôr os lençóis no armário e já desço – respondeu Katy. Acabou de passar o último lençol, meteu a pilha de roupas passadas a ferro no armário e depois foi ao seu quarto. Como queria adiar o momento de descer, sentou-se ao toucador a ver-se ao espelho. A sua amiga Jilly sempre a incentivara a gostar do seu ar «pálido e interessante» em vez de se queixar do tempo que demorava a ficar com um tom bronzeado no verão, por mais ligeiro que fosse. Agora, aos vinte e três anos, Katy aceitara finalmente o seu aspeto: cabelo comprido e liso de um louro-arruivado, um nariz polvilhado de sardas, a sua pele cor de pérola e os seus olhos verdes. De facto, gostava dos seus olhos; toda a gente os admirava, porque eram grandes e brilhantes. Também se sentia agradecida por ter sido abençoada com pestanas e sobrancelhas castanhas, já que muitas ruivas tinham pestanas e sobrancelhas louras. Era magra e tinha pernas compridas: preferiria ter mais uns cinco ou sete centímetros de altura, em vez de medir só um mísero metro e cinquenta e sete, mas não se podia ter tudo. Não achava que tivesse herdado grande coisa dos pais. Rob era uma réplica do pai na mesma idade: um metro e setenta e cinco de altura, bem constituído, com cabelo e olhos castanho-escuros. Hilda tinha olhos castanhos e dissera que o seu cabelo era castanho antes de ficar grisalho. Mas Katy tinha o rosto em forma de coração, ao passo que o da sua mãe era oblongo. O nariz de Hilda era afilado, o de Katy pequeno e com a ponta arredondada. – Desde que não te tornes tão difícil como a mãe ou tão mole como o pai, estás bem – disse ao seu reflexo no espelho. – Katy! Ao som do seu nome guinchado, Katy suspirou. Ainda faltavam uns dias para o Natal, mas a mãe já andava num corrupio. Não admirava que Rob tivesse dito que não tencionava voltar nunca mais a casa nas férias. 1 Janeiro de 1965 – F ogo! Fogo! Levantem-se, levantem-se! Katy acordou estremunhada com a ordem estridente da sua mãe. Saltou da cama e agarrou no roupão. Enquanto enfiava os pés nos chinelos, ouviu a voz do pai. – Por amor de Deus, Hilda! O incêndio é do outro lado da rua, não corremos nenhum perigo. Deixa os miúdos em paz. A sua súplica foi feita num tom de cansaço, e Katy sentiu pena dele. Estivera até tarde no escritório nos últimos dias porque a sua empresa de engenharia estava a ter uma auditoria. – Tu não pensavas em saltar para a água nem que tivesses os pés a arder – retorquiu Hilda. – Imbecil preguiçoso! Normalmente, Katy reagia a comentários cruéis como aquele como um touro a um pano vermelho, mas neste momento só queria ver o incêndio. Rob estava a sair do quarto quando Katy lhe passou à porta. – Que diabo está a acontecer? – perguntou mal-humorado, agarrando as calças do pijama como se receasse que lhe caíssem aos pés. – É um incêndio, mas o mais provável é a mãe estar a ter uma reação exagerada – respondeu ela. – Vamos ver? Contudo, quando deram um passo para dentro do quarto dos pais, ficaram espantados ao ver que estava tão iluminado como se fosse de dia devido ao clarão que vinha do outro lado da rua. – Oh, meu Deus! – exclamou Katy, boquiaberta ao ver a cena pela janela. Umas chamas vívidas, escarlates e amarelas, lambiam a frente da casa e iluminavam toda a rua. Contra o céu noturno, aquilo formava um quadro aterrador. Não se tratava de um qualquer pequeno incêndio numa cozinha, mas de um verdadeiro inferno. – Não posso acreditar – desabafou Katy, com a voz embargada de emoção. – Pobre Mrs. Reynolds, só espero que já não esteja ali dentro. Alguém chamou os bombeiros? – É claro que chamei – disse o pai, a vestir as calças por cima do pijama. – Posso ser um imbecil, mas sou capaz de ligar para o serviço de emergência. E agora vou lá fora ver se ela conseguiu sair... e, se tiver saído, vou convidá-la a ela e aos vizinhos de ambos os lados para virem até cá a casa. Katy ouviu a determinação na voz do pai e virou-se da janela para olhar para ele. – Fazes muito bem, pai. Posso ajudar-te de alguma maneira? – Não, tu e o Rob fiquem aqui no quentinho com a vossa mãe – disse ele, lançando um olhar à sua mulher, que tinha voltado a meter-se na cama como se não estivesse a acontecer nada fora do comum. – Dá a ideia de que está um gelo lá fora. Tinha razão; a alguma distância do incêndio, os passeios cintilavam com a geada. – Por favor Deus, que ela tenha conseguido sair. – Katy sentiu-se desfalecer ao pensar no que poderia ter acontecido. Havia alguns vizinhos lá fora a olhar para o fogo, mas ela não via Mrs. Reynolds entre eles. Virou-se para a mãe. – Ela não está lá fora, mãe! Avistaste-a quando viste o incêndio? – Não, mas já estava a arder bastante quando acordei, por isso o mais provável é que ela tenha fugido para a casa de algum vizinho. Katy acenou com a cabeça. Tinha a esperança de que fosse esse o caso. – Aos sábados à noite ela costuma ir para casa da filha. Esperemos que tenha ido desta vez. – Desde quando é que tu conheces aquela mulher tão bem que estás a par das andanças dela? – perguntou Hilda, num tom de voz ríspido e reprovador. Katy olhou para o irmão e revirou os olhos. Era típico da mãe preocupar-se mais com descobrir como a sua filha conhecia uma vítima do que com exprimir pena pela sua provação. – Visto que a loja dela fica a duas portas do escritório, seria muito indelicado da minha parte nunca ter falado com ela – disse Katy secamente. – Gosto dela, é muito interessante conversar com ela, e tem duas filhas. Uma com vinte e três anos, como eu. Mas é para casa da mais velha que ela vai aos sábados; vive em Hastings. A sirene do carro dos bombeiros abafou a resposta da mãe. Katy virou-se de novo para a janela e viu mais pessoas a chegarem para verem a casa a arder. Um carro da polícia estacionou mesmo atrás de um segundo carro dos bombeiros. Dois polícias saltaram para fora e puseram-se a afastar a multidão mais para baixo na Collington Avenue. O fogo era tão forte agora que Katy sentia o seu calor mesmo através da vidraça. Viu que, enquanto os bombeiros desenrolavam as mangueiras, o pai estava a falar com Mr. e Mrs. Harding. Esse casal idoso de pensionistas vivia numa casa paredes-meias com a casa a arder. Olhavam assustados para as chamas, muito juntos, com casacos por cima da roupa de dormir, claramente receosos de que a sua casa não tardasse a ser consumida pelas chamas. Katy imaginava que o pai estava a insistir com eles para que viessem até lá a casa e aguardassem num ambiente quente. Rob veio pôr-se ao lado de Katy à janela e apertou-lhe o braço, uma maneira silenciosa de comunicar a sua reprovação por a mãe deles não ter ido lá fora também, para tentar ajudar de algum modo. – Vou pôr a chaleira ao lume – disse Katy. Precisava de fazer alguma coisa; limitar-se a ficar ali especada a ver uma casa arder parecia horrendo. – Como o pai é capaz de trazer algumas pessoas para cá, talvez eu devesse fazer também umas sanduíches. Queres alguma coisa, mãe? – perguntou. – Um chocolate quente caía bem, e uma fatia daquele bolo de frutos cristalizados que fiz hoje à tarde. Katy limitou-se a acenar com a cabeça, a confirmar que a tinha ouvido, e desceu ao andar de baixo. Não compreendia por que razão a sua mãe estava a encarar o incêndio com tanta calma. Mesmo que não gostasse de Mrs. Reynolds, com certeza desejaria saber se estava viva ou tinha morrido queimada? Quanto aos Harding, já viviam ali há uns quinze anos quando Katy nasceu, e ela e Rob costumavam ir com muita frequência lanchar à casa deles a seguir às aulas. De facto, pensavam neles quase como avós substitutos. Na idade daquele casal, devia ser horrível que a casa e todo o seu recheio repleto de valor afetivo pudessem ser destruídos. Enquanto Katy enchia a chaleira, Rob desceu e veio ter com ela. – Por vezes, queria ainda ter cinco anos – disse ele com tristeza, de lábios virados para baixo. – Nessa altura, não sabia que outras mães queriam saber da família, e cantavam e dançavam ou corriam atrás dos filhos à volta do jardim. Não consigo acreditar que ela não foi lá fora com o pai para ver se podia ajudar. O que se passa com ela, maninha? Deve ter um coração de pedra. Já nasceu assim ou aconteceu-lhe alguma coisa? – Não sei, Rob – suspirou Katy. – Eu costumava rezar na catequese para que ela mudasse. O pior de tudo é que já quase não reparo em como é fria e dura. É só o facto de isto ser uma coisa tão dramática, tão séria e prejudicial para todas as pessoas afetadas, que me recordou como ela é esquisita. – Decididamente, não volto mais nas férias – disse Rob. Estava no último ano na Universidade de Nottingham, a estudar horticultura. – De cada vez que volto, é como um castigo, não um feliz regresso ao lar. Vou sentir saudades de ti e do pai, claro, mas não sou capaz de continuar a lidar com ela. Está sempre a fazer-me remoques, como se a minha vida a incomodasse. Acho que nunca me fez perguntas sobre os meus amigos ou como me dou nos estudos ou até como é a minha casa. A única coisa que faz é limpar e puxar o lustro. Katy viu que o irmão estava à beira das lágrimas e abraçou-o. Era três anos mais novo do que ela, mas sempre foram próximos. Quando eram pequenos, não tinham autorização para irem brincar para a casa de outros meninos, mas acreditavam que todas as mães eram como a deles. Mais tarde, quando começaram a poder brincar fora de casa e ficaram a saber que não era assim, arranjaram as suas próprias maneiras de compensar o facto de terem uma mãe difícil que raramente demonstrava qualquer afeto. Rob era inteligente, conseguia fazer coisas com quase nada – carrinhos de rolamentos, arcos para disparar setas, andas e muitos outros brinquedos engenhosos –, o que o tornava popular. Katy encontrou o seu nicho sendo audaz, a trepar às árvores, a bater às portas das casas e depois fugir e a comportar-se como um palhaço para fazer rir as outras crianças. Embora muito diferentes em temperamento – Rob era tímido, ao passo que Katy era extrovertida – formavam uma boa equipa, apoiando-se um ao outro e partilhando os seus recursos. – Tenho andado a pensar em mudar-me para Londres – admitiu Katy. – Por coincidência, foi Mrs. Reynolds quem me meteu a ideia na cabeça. Disse que Bexhill é a cidade mais desinteressante de Inglaterra e que eu devia era estar a divertir-me numa cidade grande. Tinha razão: Bexhill é desinteressante. Dançar no Pavilion ao sábado à noite é o melhor que se consegue. Os únicos rapazes que alguma vez encontro são aqueles com quem andei na escola, e metade já são casados e têm um par de filhos. – Eu sugeria-te que viesses para Nottingham, porque adorava que lá vivesses, mas não me parece que seja um sítio muito bom, a não ser que se ande na universidade. Além disso, não vou ficar lá depois dos exames finais este junho. Londres é onde tudo está a acontecer agora, ou assim me dizem. Katy sorriu ao irmão. – Não ia querer estragar-te o esquema em Nottingham. E, de qualquer modo, se eu for para Londres podes vir viver comigo lá. Enquanto Katy punha manteiga numas fatias de pão para fazer sanduíches pôs-se a pensar nos pais. Uma vez, conseguira dar uma espreitadela à certidão de casamento deles. Tinham-se casado em julho de 1941 e ela nascera em março do mesmo ano, quatro meses antes. Ao que sabia, não era invulgar naquela época; dizia-se que as pessoas viviam para o momento, e muitas mulheres davam por si grávidas depois de o seu homem ter partido para a guerra no estrangeiro. Mas era extremamente difícil imaginar a sua mãe a ser alguma vez arrastada pela paixão. Reprovava absolutamente o sexo antes do casamento. Quando tentara explicar a Katy a questão da cegonha, parecia e soava como se estivesse quase a sufocar com a ideia de tais coisas. Talvez tivesse passado momentos difíceis, sozinha com uma bebé recém-nascida. Mas isso não explicava exatamente por que razão o pai alguma vez se sentira suficientemente atraído por Hilda para sequer lhe dirigir a palavra, quanto mais para dormir com ela. Albert era quase o exato oposto de Hilda: bondoso, carinhoso, afável. Era um homem alto e bem-parecido, com farto cabelo escuro e bons dentes e sorriso fácil. Katy gostaria muito de fazer perguntas à mãe sobre aqueles tempos e o seu romance com Albert, mas Hilda não era do tipo de fazer confidências a ninguém; considerava as perguntas pessoais uma afronta, mesmo que viessem dos seus filhos. Não eram só os problemas com a mãe que faziam com que Katy quisesse sair de casa. Também ansiava pelo movimento e pela animação de Londres. Aqui em Bexhill sentia que estava sob a lente de um microscópio. Se não era a mãe a interrogá-la, eram os amigos e os vizinhos constantemente a observá-la. Bexhill não era só uma cidade desinteressante, era uma cidade morta! Circulava uma história segundo a qual a polícia levara uma vez o pastor protestante para a esquadra para o interrogar, porque o encontraram fora de casa depois das nove horas numa noite de inverno. Estavam convencidos de que era um ladrão, e recusaram- se a acreditar que ia visitar uma senhora idosa que estava doente até ele tirar o cachecol e lhes mostrar o colarinho de padre. Essa história sempre divertira Katy. No entanto, apesar das imperfeições da cidade, sentia afeto por ela. Para além do mar, tinha ruas largas ladeadas por árvores, pelo menos na zona onde ela vivia, e algumas cidades mais animadas, como Hastings ou Brighton, ficavam apenas a uma viagem de autocarro. Rob tinha saído da cozinha para ir levar à mãe o chá e a fatia de bolo. Quando voltou para a cozinha, Katy regressou ao momento presente. – Parece que o incêndio está a ficar sob controlo – disse ele. – Mas ninguém que estivesse dentro da casa poderia ter sobrevivido. Katy correu para a sala de estar e olhou pela janela. Rob tinha razão, as chamas já não consumiam tão vigorosamente a fachada da casa e o fogo na sala da frente parecia ter-se apagado. Sentiu um nó na garganta; mesmo se Mrs. Reynolds estivesse a salvo na casa da filha, perder a sua casa e todos os seus bens pessoais era terrível. Mas muito pior era a possibilidade de uma senhora assim tão simpática ter morrido no incêndio. Era demasiado trágico para sequer pensar nisso. Rob aproximou-se por trás dela. – Mr. e Mrs. Harding não vão poder voltar para a casa deles – disse, pensativo. – Embora não tenha propriamente ardido, o fumo deve ter danificado tudo. São idosos e fracos, e não me parece que tenham família para onde ir. Como Katy não sabia o que responder àquilo, disse que tinha de fazer as sanduíches. Ambos se afastaram da janela e da devastação lá fora e voltaram para a cozinha. Rob meteu mais lenha no fogão enquanto Katy começava a fazer as sanduíches. – Vais dizer à mãe e ao pai que não vens mais a casa nas férias? – perguntou ao irmão. – Ou vais só dar uma desculpa de cada vez que não vieres? Rob ficou com uma expressão embaraçada. – Acho que vou optar pelas desculpas. Não sou tão corajoso como tu. – Penso que é mais diplomático, na verdade. Quero dizer que não vai entristecer tanto o pai, pois não? Também não me agrada a ideia de o deixar, mas suponho que os pais esperam que a dado momento os filhos saiam de casa. – Talvez a mãe seja mais simpática com o pai quando estiverem sozinhos? – sugeriu Rob. Quase como se ouvisse o seu nome, a porta das traseiras abriu- se e Albert entrou com uma lufada de ar gélido. – Brrr, está um gelo lá fora – disse, a esfregar as mãos. – Mr. e Mrs. Harding vão para casa dos Brady lá mais para baixo na rua. Jogam bridge com eles, por isso é melhor para eles do que aqui. – E os Sutton? – perguntou Rob. Eram o casal que vivia do outro lado do número 26. – Bem, como a casa deles não é paredes-meias com o número 26, não sofreu danos. Entraram com os bombeiros para verificar. Disseram que fede a fumo, mas que está bem. De qualquer modo, vão para casa da filha até passar o cheiro. Ela vem a caminho. – Os bombeiros descobriram se Mrs. Reynolds estava lá dentro? – perguntou Katy. Albert franziu a testa. – Ainda não sabem. Mrs. Harding disse que ela estava em casa antes, porque ouviu a televisão. Foi desligada mais tarde, por isso esperemos que isso signifique que ela saiu. Mas os bombeiros ainda não podem entrar para verificar. Vamos ter de fazer figas e esperar que ela esteja a salvo algures. – Fazem alguma ideia de como começou? – perguntou Rob. – Ouvi um polícia dizer que suspeitavam de fogo posto. Mas não vão poder confirmar ou excluir essa hipótese até o incêndio estar mesmo apagado e a casa ter arrefecido. – Fez uma pausa, com um brilho nos olhos escuros que parecia de lágrimas de emoção. – Se foi ateado deliberadamente e Mrs. Reynolds morreu lá dentro, eu gostava de esganar pessoalmente a pessoa que lhe fez isso. * Quando Katy acordou na manhã seguinte, pensou por um momento que estivera a sonhar que tinha havido um incêndio. Os sinos da igreja tocavam em Little Common, chamando os fiéis para o serviço religioso das oito. Achava que devia sentir-se furiosa por a terem acordado às oito horas de um domingo – afinal, só tinha voltado para a cama às cinco da manhã. Mas havia algo de reconfortante nos sinos, como se nada realmente mau pudesse acontecer no espaço alcançado pelo seu som. Levantou-se e foi ao quarto das visitas olhar pela janela. Mas ali estava, pior do que esperara, uma casa em ruínas, enegrecida e ainda fumegante, com o telhado meio caído para dentro, sem janelas e com o jardim da frente, antes muito bem arranjado, todo pisado e cheio de destroços queimados. Mesmo com a janela fechada sentia aquele cheiro de destruição, desagradável, meio carbonizado e meio químico. Era demasiado cedo para haver pessoas na rua – e também estava um frio gélido – e, como Rob e os pais ainda deviam estar a dormir, ela voltou para a cama. Às onze dessa manhã já tinha começado a nevar, e Katy sentou- se no assento da janela na sala de estar a ver o que se passava na rua. Além das pessoas que vinham ver a casa ardida, havia vários bombeiros. Katy ficou com a ideia de que a casa estava demasiado quente ou demasiado perigosa para entrarem nela, já que se mantinham em grupos no exterior. Havia também polícias por ali, na maior parte dos casos a baterem à porta dos vizinhos desse lado da rua, embora um agente jovem também tivesse vindo bater à porta deles para perguntar o que tinham visto na noite anterior. Havia também homens à paisana a olharem para a casa, e esses, supunha Katy, eram inspetores de construção ou avaliadores. Foi logo a seguir ao almoço, quando Katy trazia uma chávena de chá para a sala de estar com a intenção de se sentar a ler um livro, que viu uns polícias saírem do número 26 com alguém coberto numa padiola. Quase deixou cair o chá com o choque, porque nessa altura ela e o resto da família já tinham a certeza de que não podia ter havido vítimas mortais. Mas depois, para aumentar o seu horror, uma segunda padiola foi trazida para o exterior. Bastava olhar para os rostos dos polícias e dos bombeiros para saber que se sentiam tão perturbados quanto ela. Katy viu que, enquanto ela e a família estavam a almoçar na parte das traseiras da casa, uma grande pilha de peças de mobiliário queimadas e o que pareciam ser portas tinha sido tirada da casa e acrescentada aos destroços no jardim. Por isso, presumivelmente os bombeiros tinham encontrado os dois corpos por baixo daquilo tudo. A soluçar, Katy correu para a sala de jantar, onde o pai e o irmão estavam sentados nos cadeirões que ladeavam o fogão de sala a ler os jornais de domingo. – Há dois corpos – deixou escapar. – A polícia acabou de os retirar da casa. Tanto Rob como o pai ficaram demasiado chocados para conseguirem falar por um momento. Limitaram-se a fitá-la como se não estivessem a compreender. – Que horror – disse Albert por fim, em voz abafada e trémula. – A pobre família dela! Achas que o outro corpo era o da filha? Katy começou a chorar. – A filha a casa de quem ela costuma ir aos sábados à noite tem dois filhos pequenos. Uma vez, a Gloria disse que nunca pernoitavam cá, por isso duvido que fosse ela – explicou por entre soluços. – Há outra filha, e um filho – disse Albert, pensativo. – Ela disse que a filha era uma mulher de carreira. Acho que me lembro que ia seguir Direito. O rapaz vive em Manchester. – É isso mesmo, lembro-me que ela também me disse isso – disse Katy. – Até me sugeriu que tentasse conseguir um lugar de secretária legal, porque é mais bem pago do que um emprego normal de secretária. – Então, se foi fogo posto, alguém é responsável por duas mortes – disse Rob, com o rosto contraído e corado de raiva. – É um pensamento tão horrível, logo aqui em Bexhill, onde nada acontece. – Não falemos sobre isto diante da vossa mãe – disse Albert em voz baixa. – Não conseguiria suportar ouvi-la falar sobre o assunto a noite toda. Ela ficou com qualquer coisa contra Mrs. Reynolds desde que eu fui lá a casa consertar um autoclismo que vertia água. – Onde é que está a mãe, afinal? – perguntou Rob. – Saiu para dar um passeio – disse Albert. – Só Deus sabe porquê, com este frio todo. Mas não havia como a convencer; até cheguei a oferecer-me para a acompanhar, mas ela quase me matou com o olhar. Já devia estar de volta, é quase noite. – Eu vou começar a preparar o lanche – disse Katy. – Não que me apeteça comer alguma coisa depois de ver aquelas duas padiolas. 2 Q uando Katy acordou e viu a luz baça e cinzenta no seu quarto soube imediatamente que tinha nevado durante a noite. Em criança, sentia-se sempre encantada com a neve, mas depois dos acontecimentos do dia anterior, tanto se lhe dava que tivesse havido um sismo ou um furacão durante a noite. Flora, uma colega de trabalho, revelara-lhe uma vez que a sua vizinha do lado tinha morrido inesperadamente. «Senti-me como se tivesse levado um pontapé no estômago», dissera ela. «Mas foi muito estranho, porque nunca tínhamos sido lá muito próximas.» Na altura, Katy achara que era uma coisa estranha de se dizer. No entanto, era tal e qual como se sentia agora: nervosa, com uma sensação de mágoa, mas sem conseguir compreender porque aquilo a afetava tanto. Seria porque quisera saber mais sobre Gloria Reynolds? Ou porque se sentia culpada por a ter observado à socapa com tanta frequência. A morte era uma novidade para Katy; até agora nunca tivera nenhuma experiência dela. Os avós de ambas as partes tinham morrido antes de ela nascer. Então, talvez fosse assim para toda a gente? Pensou que perguntaria à sua amiga Jilly, porque ela era de uma grande família alargada que falava sobre tudo e mais alguma coisa. Saberia se a reação de Katy era normal. Quando se levantou e afastou as cortinas, apesar do seu estado de espírito ficou contente ao ver um espesso manto branco de neve a cobrir o jardim. Os canteiros despidos, o velho rolo do relvado, a macieira, as cercas e o barracão do pai estavam todos magicamente transformados numa paisagem encantada de inverno, como uma cena de um conto de fadas. No entanto, não parecia correto que o mundo estivesse com um ar tão bonito quando algo tão horrível acontecera há tão pouco tempo. * Daí a uma hora, Katy estava a descer a rua a custo para chegar ao trabalho, com umas calças de xadrez por baixo do vestido, duas camisolas de lã e o seu casaco castanho de inverno, além de um gorro verde, luvas, cachecol a condizer e galochas. Levava na carteira os sapatos que usaria no escritório. Neve a uma segunda- feira, antes de os camiões poderem vir desimpedir as estradas, significaria que alguns dos seus colegas que viviam nos arredores talvez não viessem trabalhar, o que implicava mais trabalho do que o habitual para ela. Um pensamento deprimente. No entanto, apesar do frio, sentia-se contente por estar fora de casa pois ao pequeno-almoço o ambiente estivera bastante tenso. Normalmente, o mau humor da mãe era assinalado antecipadamente por pratos a chocalhar e portas de armários a serem fechadas com força, e mais cedo ou mais tarde irrompia um comentário desagradável. Mas hoje não fora assim – nada de ruídos, nem sequer remoques – de facto, a alguém que estivesse de fora pareceria uma situação calma e normal. Mas Katy sabia que não; observara os sorrisinhos sarcásticos, sentira o veneno escondido. Era assim quando a mãe estava a preparar-se para alguma. Rob disse que tinha ouvido o pai discutir com ela já tarde na noite passada. Contudo, não conseguira ouvir suficientemente bem para saber do que se tratava. Katy pensava que, provavelmente, a mãe se pusera outra vez a dizer mal de Mrs. Reynolds, como no domingo de manhã, quando Albert perdeu a paciência. Ele dizia sempre que era de mau gosto falar mal dos mortos. Contudo, se Katy julgava que ir trabalhar seria uma distração, estava bem enganada. A tragédia tinha sido divulgada nos noticiários locais, e, como todos no escritório sabiam que Katy vivia em Collington Avenue, mesmo em frente à casa ardida, aguardavam ansiosamente as suas informações privilegiadas. Até mesmo Mr. Marshfield, o sócio principal, saiu do seu gabinete de propósito para lhe fazer perguntas. Normalmente, as únicas ocasiões em que falava com Katy eram quando a chamava para lhe ditar uma carta. – Mrs. Reynolds era nossa cliente – disse ele, parecendo bastante preocupado. – Uma senhora tão cheia de vida, eu gostava imenso dela. E parece que a filha morreu com ela? Katy nunca ouvira o seu patrão admitir que gostava de alguém. Ela e as outras raparigas tinham-lhe dado a alcunha de «Eeyore», porque, tal como o burro bisonho em Winnie the Pooh, era um pessimista rematado, e no seu rosto comprido e magro nunca se via um sorriso. – Ainda não foi confirmado quem era a segunda mulher, Mr. Marshfield. Espero que não fosse a filha dela, mas, seja quem for, é parente de alguém. A polícia parece achar que o incêndio foi ateado de propósito, mas porque é que alguém quereria matar uma senhora assim tão encantadora? – Um amante rejeitado, talvez? – sugeriu Mrs. Edwards, a secretária de Marshfield. Era uma romântica incurável que comprava revistas de noivas para suspirar a olhar para as imagens e planear os casamentos dos filhos, embora nenhum dos quatro tivesse sequer namorada. Ela possuía também uma imaginação fértil alimentada pela leitura de policiais rocambolescos. – Talvez a loja de roupa fosse só uma fachada – sugeriu Sandra, a funcionária do arquivo, que era um pouco lenta de compreensão. – Talvez ela fosse uma espia! – Sim, isso é extremamente provável – retorquiu Mr. Marshfield com sarcasmo. – Ora, vá lá mas é trabalhar, Sandra, e certifique-se de que põe a correspondência nos ficheiros certos. Ao longo de todo o dia, o assunto da horrível morte prematura de Mrs. Reynolds foi sendo abordado. Como praticamente nunca acontecia nada de monta em Bexhill, não era surpreendente que alguém que tivesse uma ligação, mesmo que muito ténue, com a vítima quisesse falar sobre o assunto. Pessoas que nunca antes tinham entrado nos escritórios de Franklin, Spencer e Marshfield arranjavam desculpas para o fazer agora – tantas, de facto, que o pessoal se viu obrigado a pôr folhas de jornal junto à porta para absorver a neve que elas traziam para dentro. Foi a caminho de casa – mais cedo do que o habitual, porque começara a nevar outra vez – que os pensamentos de Katy se viraram para a última vez que tivera uma conversa com a lojista. Entrara na Gloria’s Gowns em finais de novembro para procurar um vestido para ir dançar no Natal. Conseguia ver Gloria mentalmente agora, uma senhora voluptuosa com uma silhueta em forma de ampulheta. Nesse dia, trazia um vestido vermelho a direito, com um cinto largo de verniz preto e sapatos de saltos altos a condizer, o cabelo castanho penteado como de costume em forma de colmeia, brincos pendentes vermelhos e pretos e a maquilhagem tão bem feita que a sua pele parecia imaculada. – Ainda bem que veio cá, Katy – disse ela. – Porque tenho o vestido de festa perfeito para si. – Tirou um vestido de chiffon verde- esmeralda do varão e sacudiu-o para mostrar como o tecido esvoaçava. – Um ótimo contraste com o seu bonito cabelo, e olhe para a maneira como a saia roda. Como sempre, Katy ficou encantada, não só com a maneira como Gloria sabia o que ficaria bem às suas clientes, mas também como fazia cada uma delas sentir-se especial. Quando Katy saiu do provador com o vestido, que lhe assentava como uma luva e a fazia sentir-se como uma estrela de Hollywood, Gloria bateu palmas, encantada. – Pensei em si mal o recebi – disse. – É perfeito para si: a cor e o modelo. Mas, minha querida, devia usá-lo num lugar muito mais interessante do que Bexhill. Acrescentou que pressentia que estavam a acontecer enormes mudanças em Inglaterra, a começar agora em Londres. – Senti-o na última vez em que lá estive – disse. – Finalmente, acabou toda aquela coisa puritana dos anos cinquenta, tipo Doris Day. Há lojinhas maravilhosas a abrirem por toda a parte; chamam- lhes boutiques, e as roupas ousadas e sexy são feitas por estilistas jovens e talentosos. E depois há também as discotecas – os salões de baile são agora coisa do passado. Se eu tivesse a sua idade, Katy, já lá estava que nem um foguete, para participar em tudo. Katy vira artigos em revistas a dizer o mesmo, mas o entusiasmo de Gloria fazia com que parecesse muito mais real e atingível. – Mas há o meu emprego na firma de advogados – disse Katy. – E se eu não conseguisse arranjar um emprego assim tão bom em Londres? – Não seja tonta, Katy, há milhares de advogados em Londres, e vai encontrar um emprego em que ganhe o dobro do que lhe pagam aqui, porque as boas secretárias como a Katy são uma raridade. A minha Elsie é secretária legal, por isso sei bem do que falo. – Mas tenho as minhas amigas todas aqui. Londres pode ser um lugar muito solitário, ao que me dizem. – Oh, uma rapariga como a Katy não tarda a fazer novos amigos. Partilha um apartamento com outras raparigas e num abrir e fechar de olhos vai haver festas e danças e encontros com jovens ambiciosos com futuro. Aposto que os únicos homens que a convidam para dançar no Pavilion são mecânicos ou trabalham numa loja. Katy pôs-se a pavonear-se ao espelho, a fazer rodar a saia, a adorar a sensação que o vestido lhe dava, embora custasse mais de duas semanas de salário. – Tenho de admitir que já conheci alguns mecânicos, trabalhadores agrícolas e até um lixeiro – disse com um sorriso. – Bem, ninguém que me pusesse o coração a palpitar. Mas, por outro lado, também posso não encontrar isso em Londres, e a minha mãe e o meu pai não iam gostar que eu me fosse embora. – Tem de viver a sua vida para si, não para os seus pais – disse Gloria com firmeza. – Parece uma modelo nesse vestido, o suficiente para destroçar o coração de qualquer homem. Além disso, o seu pai só quer o seu bem, ele sabe que Bexhill é um bocado parado para gente nova. Nessa noite, depois da conversa com Mrs. Reynolds, Katy pôs-se a sonhar acordada com ir para Londres. Imaginava-se e à sua amiga Jilly num apartamento elegante a divertirem-se a noite toda aos fins de semana. Conversaram as duas sobre o assunto e pensaram que poderiam ir a Londres em janeiro para apalpar o terreno, já que ambas tinham uns dias de férias para gozar. Mas depois os seus pensamentos voltaram-se para as compras de Natal e o que vestiriam nos bailes do Natal e da véspera de Ano Novo, e não tinham voltado a falar de ir a Londres desde essa altura. Agora, enquanto Katy arrostava com a neve a caminho de casa, sentia-se desesperadamente triste por não ter arranjado tempo para ir ver Gloria Reynolds antes do Natal para lhe agradecer as suas sugestões. Nunca mais a veria, e supunha que a loja seria encerrada. Seria como se uma luz viva se tivesse apagado na cidade. Talvez ela devesse realmente mudar-se para Londres agora, seria uma maneira de honrar a memória daquela senhora encantadora. Um carro azul e branco da polícia estava estacionado junto à sua casa. – Aí vem a minha filha – Katy ouviu a mãe dizer enquanto pendurava o casaco e tirava as galochas na porta das traseiras. – Mas não deve ter visto nem ouvido nada, tem o sono pesado. Katy entrou na sala de estar e viu a mãe com dois polícias. Ela trouxera um tabuleiro com chá e até pôs bolachas num prato. O lume estava aceso e a carpete vermelho-escura e o conjunto de sofás de brocado dourado faziam a sala parecer muito sumptuosa e acolhedora. – Esta é a Katy – disse a mãe. – Disse à polícia que não deves ter visto nem ouvido nada. – Pois não, é verdade, eu só soube quando a minha mãe nos disse a gritar que nos levantássemos – disse Katy, olhando para o polícia mais velho. Já tinha estado com ele por breves momentos, quando ele foi ao escritório fazer umas perguntas relacionadas com um assalto na rua principal, umas portas adiante. Andava pelos quarenta anos, era alto, tinha ombros largos e era calvo, mas tinha uns bonitos olhos castanhos brilhantes e um sorriso caloroso. Katy sabia que era sargento e se chamava Ransome. – É um caso terrível; espero que apanhem a pessoa que ateou o incêndio. – Ainda estamos a recolher informações. Neste momento, andamos a tentar formar uma imagem de Mrs. Reynolds. Conhecia- a, Katy? – Sim, comprava muitas vezes roupas na loja dela, e gostava dela – respondeu Katy. – Penso que toda a gente gostava. Era uma pessoa muito calorosa e simpática. – Ela alguma vez lhe contou alguma coisa sobre a sua vida pessoal? Katy abanou a cabeça. – Não exatamente pessoal, só que tinha duas filhas... e um filho também, em Manchester. Costumava ir para casa da filha que tinha filhos depois de fechar a loja aos sábados ao fim do dia. Penso que essa filha vive em Hastings. A outra, que se chama Elsie, é secretária legal em Londres. Mas não sei o nome da filha mais velha. – Nas suas saídas à noite em Bexhill, alguma vez se encontrou por acaso com Mrs. Reynolds? Num bar, num baile ou em qualquer outro lugar? – Não. Nunca. – O seu escritório fica a duas portas da loja dela. Alguma vez ouviu algum mexerico sobre ela? Sobre os amigos, com quem saía? Katy lançou um olhar à sua mãe. Tinha o pressentimento de que ela poderia ter sugerido aos polícias que a vizinha era uma devoradora de homens. – Considero os únicos mexericos que ouvi inteiramente infundados. Diria que vinham de mulheres patéticas e despeitadas, que tinham inveja por ela ser uma mulher tão atraente, carismática e bem-sucedida – disse Katy com firmeza, desviando o olhar da mãe. Houve um silêncio embaraçoso, o único som o do crepitar da lareira. Katy voltou a olhar para a mãe e viu que ela estava com os lábios comprimidos e a testa franzida. Deu-se conta de que iria ouvir das boas mais tarde. O sargento Ransome sugeriu que falassem em particular e conduziu-a até ao corredor, fechando a porta e deixando o outro polícia com a mãe dela. – Pressenti que se sentia pouco à vontade para dizer mais alguma coisa em frente à sua mãe – disse ele. – Mas fale agora, diga-me tudo o que lhe pareça importante. E, infundado ou não, alguma vez ouviu dizer que Gloria Reynolds andava a ter um caso com um homem casado? – Não, nunca – respondeu Katy com firmeza. – Sinto-me um pouco chocada por as pessoas dizerem coisas dessas quando ela acabou de morrer. – Sim, mas se for verdade esse homem pode ser o assassino dela – disse Ransome num tom calmo. – Poucas pessoas são assassinadas por estranhos; é quase sempre às mãos de alguém que lhes é próximo. – Alguém lhe falou sobre as visitas que ela tinha? – perguntou Katy. – Não imagino que tenha sido nenhuma delas, já que eram sempre mulheres e costumavam vir num velho Humber preto conduzido por uma mulher de meia-idade. Ransome pareceu ficar surpreendido. – Não, mais ninguém mencionou isso. Está a dizer que eram visitas, tipo, convidadas que iam lá a casa tomar uma bebida? – Não, não me parece. E, de qualquer maneira, vinham principalmente durante o dia, quando Mrs. Reynolds estava na loja. A mulher mais velha tinha uma chave. Ransome franziu a testa. – Com que frequência é que isso acontecia? – Não faço ideia, porque só o via ocasionalmente, aos sábados, e mesmo assim só se por acaso estivesse a olhar pela janela da frente. Mas vi o Humber várias vezes parado junto à casa quando voltava do trabalho. – O que pensava do motivo por que as tais mulheres iam lá a casa? – Cheguei a pensar se Mrs. Reynolds não andaria a aconselhá-las sobre o casamento delas, talvez, ou se seriam mulheres acabadas de sair da prisão. Ela era uma pessoa muito bondosa e interessada pelos outros, sabe? Quer dizer, outros vizinhos também o mencionaram, e alguns insinuaram coisas bastante desagradáveis. Mas não acredito que Gloria Reynolds tivesse nem uma ponta de maldade. – Reconheceria alguma dessas mulheres que foram a casa dela se voltasse a vê-las? – A senhora mais velha, a que conduzia o automóvel, essa conseguiria reconhecê-la. Mas não penso que fosse capaz de reconhecer as mulheres que vinham com ela. – A matrícula do carro? Katy abanou a cabeça. – Lamento, mas não. – Bem, foi tudo muito útil. Se se lembrar de mais alguma coisa, por favor telefone-me – disse ele, entregando-lhe um cartão de visita com o número de telefone da esquadra da polícia e o nome dele. – Assim farei – concordou ela. – Espero que apanhem quem quer que tenha sido. Não suporto a ideia de aquela senhora encantadora ter morrido de uma maneira assim tão horrível. * O jantar em família nessa noite passou-se num ambiente pesado. Rob fez uma careta a Katy, o que ela interpretou como sendo o resumo do dia. O silêncio persistia; Katy sentia que a mãe estava prestes a disparar uma das suas tiradas, quase de certeza dirigida a ela. – Acho que vou voltar para Nottingham amanhã – disse Rob subitamente. – Tenho um projeto para terminar e preciso de algumas informações que é mais provável que encontre na biblioteca lá. – Fazes bem, filho – disse Albert. – É mais fácil encarreirar no novo período se tiveres uns dias para voltares a instalar-te. – E o que é que tu sabes sobre isso? – perguntou Hilda com sarcasmo. – Nunca estiveste perto de uma universidade. – Quantos homens da minha idade andaram na universidade, com a ameaça da guerra? – respondeu Albert. – Eu tinha a idade do Rob nessa altura. Lá porque não andei na universidade, não quer dizer que não consiga imaginar como é. – Alistar-se para ir para a guerra deve ter sido muito mais duro do que ir para a universidade – disse Rob, como sempre a tentar ser o pacificador. – A minha geração está a ter uma vida muito mais fácil. Katy olhou para a mãe, a perguntar-se como ela podia dar a volta àquilo para fazer com que o marido parecesse um fracassado. Ele estivera nos Royal Engineers durante a guerra. Quando foi desmobilizado, o tio deu-lhe emprego na sua empresa de engenharia em Hastings e fê-lo completar um estágio na oficina e frequentar aulas à noite. O pai era agora o diretor executivo da Speed Engineering, e sob a sua direção a empresa ia de vento em popa. Era por esse motivo que tinham uma casa grande em Collington Avenue, que Katy e Rob frequentaram colégios particulares e que nunca tinha faltado nada a Hilda. No entanto, ela andava sempre a criticar o marido. Albert olhou para Katy e depois para Rob. – No que me diz respeito, sinto-me muito contente por nenhum dos dois ter tido de passar pela guerra. Tudo o que eu quero para os meus filhos agora é vê-los felizes. E se isso vos levar para longe de Bexhill e da vossa mãe e de mim, por mim está bem. O grunhido reprovador da mãe irritou Katy. – Fico muito contente por concordares, mãe – disse ela, num tom enjoativamente doce. – Ainda hoje estava a pensar em arranjar um emprego e um apartamento em Londres. Tenho uns dias de férias a haver e sou capaz de os gozar para a semana e ir até lá para ver como são as coisas. – És uma grande tola, é só o que posso dizer – disse Hilda, e levantou-se para recolher os pratos vazios, que fez entrechocar. – Tens um bom emprego e uma bela casa aqui. As pessoas vivem em condições degradantes em Londres. Saiu de rompante da sala de jantar com os pratos sujos. Albert, Rob e Katy trocaram olhares enquanto esperavam pelo som de louça a bater uma contra a outra que se seguiria. – Estás a falar a sério, Katy? – segredou Rob. – Não estava até ela ter começado – disse Katy. – Desculpa, pai, mas está a tornar-se insuportável. Qualquer coisa é preferível a voltar para casa para isto todas as noites. – Não te censuro – disse Albert em voz baixa. – Eu também gostaria de fazer as malas e zarpar. Já não há aqui nada para mim, mas prometi «nos bons e nos maus momentos» e tenho de manter essa promessa. – Não tens nada, pai, ela não merece a tua lealdade. – Katy ergueu a voz a sobrepô-la ao som dos tachos e dos pratos a chocarem. – Arranja um apartamento em Hastings e eu vou viver contigo. Viu um clarão de esperança acender-se e logo se desvanecer no rosto do pai. – Não posso fazer isso, Katy. É muito tentador, mas não resultaria. – Achas que ela ia à tua empresa fazer um escândalo? – Sei que sim. – Tu dizes que queres que sejamos felizes, mas como podemos ser felizes sabendo aquilo por que ela te faz passar? – perguntou Rob. – Devias separar-te. De repente, aperceberam-se de que os ruídos na cozinha tinham parado e que a mãe devia ter ouvido as palavras de Rob. Ele gemeu e passou as mãos pelo rosto. Katy sentiu-se inundada por uma onda de náusea. Todos sabiam que Hilda não aceitava bem críticas. De uma maneira ou de outra, ia fazê-los pagar pelo que tinha sido dito. * Na manhã seguinte, Rob e Katy saíram de casa com o pai às oito e meia, com o plano de levar Rob à estação dos caminhos de ferro e Katy ao escritório. Embora nenhum deles o dissesse, sentiam um enorme alívio por saírem de casa juntos. Os limpa-neves tinham desobstruído as ruas mais movimentadas, e, embora a neve suja amontoada nas bermas dos passeios fosse feia, era muito menos perigosa. Normalmente, Hilda fazia um bolo para Rob levar para Nottingham, embrulhava umas sanduíches para a viagem e andava de roda dele. Mas não desta vez. Mostrara-se um icebergue na noite anterior; atirou algumas das camisas de Rob por passar a ferro para o regaço dele e disse-lhe que as metesse na mala, antes de se instalar num cadeirão, onde ficou em total silêncio o resto da noite. Nem se despedira de nenhum deles esta manhã. Dantes, quando ela era realmente desagradável, Katy suplicava ao pai que procurasse ajuda para ela. Ele citava sempre o provérbio: «Pode levar-se um cavalo à água, mas não se pode fazê- lo beber.» Insistia que já tentara e falhara muitas vezes. – Estou a temer voltar para casa esta noite – disse Katy depois de terem deixado Rob na estação e quando se dirigiam para o escritório dela. – Ela vai ficar pior do que nunca, sem o Rob lá. Sabes que costuma controlar-se quando ele está em casa. Porque é que não podemos arranjar um apartamento, pai? Com certeza é ainda pior para ti do que para mim? Ele só respondeu quando parou à porta do escritório dela. – A tua mãe teve uma infância difícil – disse, o rosto contraído de ansiedade. – Se eu tivesse sido mais compreensivo quando vocês eram pequenos ou a repreendesse quando ela começou com estas birras talvez o problema pudesse ter-se resolvido. – Culpas-te sempre, pai. – Katy estendeu a mão e acariciou-lhe o rosto com ternura. – Tu és um bom homem, um pai maravilhoso, e tens sido um marido extremamente tolerante também. Não tens nada de que te recriminar. Só tens quarenta e cinco anos, ainda és suficientemente jovem para conhecer uma senhora que te dê valor. O divórcio não é nada de mais agora, nem sequer há o estigma que havia dantes. – Vejamos como ela está logo à noite – suspirou ele. – Tenho de confessar que estou pelos cabelos. Talvez devesse falar com um advogado a pedir conselho. Mas não na tua firma, Katy... não queremos que eles fiquem a saber da nossa vida... talvez numa firma em Hastings. Katy sentiu-se um pouco mais animada, porque isto era um grande avanço; o pai nunca sequer admitira que considerava a hipótese de divórcio. – Vejo-te por volta das seis – disse ela. – E conduz com cuidado. * Katy teve de dactilografar uma declaração de divórcio nesse mesmo dia. Era de uma tal Mrs. Byrne, uma cliente que estava a divorciar-se do marido alegando o seu comportamento insuportável, e, por coincidência, as suas queixas contra o marido eram muito similares àquelas com que o pai de Katy tinha de viver. «Não tem alegria nenhuma, queixa-se de tudo. Não quer ir a lado nenhum; é muito desagradável sobre as minhas amigas e os vizinhos, quando na verdade eles são mesmo simpáticos para com ele. Sinto-me muito contente por ter um part-time, porque me tira de casa, mas gostava de não ter de voltar para casa e vê-lo todas as noites.» Katy sentiu picadas de lágrimas nos olhos ao ler aquela declaração. Perguntou-se se o juiz pensaria que não havia motivos de queixa, mas sabia que o seu pai estava pelos cabelos tal como Mrs. Byrne dizia que estava. Mais tarde, quando levou a declaração dactilografada a Mr. Marshfield, não conseguiu conter-se; teve de lhe fazer a pergunta que lhe dominava os pensamentos. – Achei a declaração de Mrs. Byrne muito comovente – disse, esperando que ele não a repreendesse. – Imagino como deve ser um tormento viver com um homem assim tão difícil. Mas diga-me, senhor doutor, acha que ela vai conseguir o divórcio com base no comportamento pouco razoável dele? Mr. Marshfield pousou os cotovelos em cima da secretária e uniu as mãos, quase como se estivesse a rezar. Fazia sempre isso quando estava a pensar, e toda a gente no escritório achava esse gesto cómico. – Não, penso que o juiz vai recusar – disse ao fim de uns momentos. – Afinal, Mr. Byrne não lhe bateu nem foi infiel. – Então, o juiz pensa que uma esposa devia suportar o comportamento insensível do marido? E se fosse ao contrário, e Mrs. Byrne fosse a parte culpada? Seria concedido o divórcio ao marido? – É uma questão interessante, Katy – respondeu ele, fazendo-lhe um dos seus muito raros sorrisos. – Suspeito que o marido seria tratado com mais compreensão pelo juiz, mas o que pensariam dele os amigos e os parentes? Um marido dominado pela mulher é sempre motivo de chacota. Katy sentia vontade de lhe perguntar o que ele faria se a sua mulher fosse uma bruxa fria e antipática, mas, como essa pergunta era demasiado impertinente, agradeceu-lhe e saiu do gabinete. * Em vez de ir logo para casa depois do trabalho, Katy telefonou à sua amiga Jilly para a sondar sobre uma ida a Londres. Jilly era enfermeira na clínica veterinária local. A sua ambição era conseguir um emprego a tratar de animais doentes num jardim zoológico. Embora soubesse que a sua formação e experiência não chegavam para tratar de elefantes, macacos ou quaisquer outros animais selvagens, andava sempre a ler livros sobre diferentes espécies. – Entra – disse Mrs. Carter, a mãe de Jilly, quando abriu a porta a Katy. – Ela ainda não chegou, mas não tarda aí. Ficas para o jantar? Fiz bastante estufado. Daí a uns minutos, Katy estava sentada à mesa da cozinha com uma caneca de chá nas mãos e a pensar, como sempre, que a mãe de Jilly era o oposto da sua. Mrs. Carter não era nada angular, era uma senhora rechonchuda com um rosto bonito, cabelo louro aos caracóis e um sorriso quase permanente. A casa dos Carter era uma casa camarária, em tudo diferente da sua. A pequena sala de estar desarrumada nunca cheirava a cera com aroma de alfazema, as cortinas descaíam do varão porque faltavam alguns dos ganchos, e um cão muito peludo chamado Ruin monopolizava o sofá. Mas, por mais do que uma vez, Katy desejara que aquela fosse a sua casa. Se não fosse porque Jilly estava decidida a trabalhar no Zoo de Londres, Katy diria que era louca por querer deixar a família. Jilly e a sua irmã mais nova, Patsy, chegaram juntas e atiraram os casacos para o corrimão ao mesmo tempo que continuavam a discutir por causa de uma camisola em que Jilly acreditava que Patsy tinha pegado sem lhe pedir e fizera um buraco na manga. – Basta! – gritou Mrs. Carter da cozinha. – Querem que a Katy pense que não temos maneiras? – A Katy está aqui? – perguntou Jilly, e veio a correr para dar um abraço à sua amiga. – Que surpresa tão agradável! Só esperava ver-te no fim de semana. Conta-nos do incêndio. Não é horrível que Mrs. Reynolds tenha morrido nele? E disseram nas notícias esta tarde que a outra pessoa era a filha dela, a que trabalhava em Londres. Jilly era frequentemente descrita como «vistosa», o que ela detestava, porque tinha a certeza que significava «vulgar». Não era exatamente bonita, porque o seu rosto era muito angular, o seu nariz um tudo-nada grande e os olhos muito esbugalhados; além disso, media um metro e setenta, o que a tornava mais alta do que a maior parte das raparigas. Mas não parecia aperceber-se da sorte que tivera ao herdar o cabelo louro e ondulado da mãe, que usava pelos ombros, e os seus olhos de um azul surpreendente. A descrição «vistosa» era feita mais porque as pessoas nunca a esqueciam. Era uma força da natureza, a disparar perguntas, a querer que as coisas fossem para a frente. Fazia tudo a grande velocidade, mas quando uma pessoa tinha um problema e precisava de alguém com quem falar dele, ela era sempre a melhor ouvinte. – Suspeito que a Katy veio cá para evitar falar sobre o incêndio – disse Mrs. Carter. – Aposto que é só do que tens ouvido falar desde que aconteceu? – Desculpa – disse Jilly com um ar arrependido. – Não pensei nisso. De repente, Katy sentiu-se melhor em relação a tudo. Jilly tinha sempre esse efeito nela. Tinham-se conhecido aos treze anos, quando entraram para as Guias no mesmo dia. Um olhar trocado criou laços entre as duas, e daí a um ano foram expulsas por perturbarem demasiado a ordem. Não conseguiam controlar-se; muitas das outras raparigas eram umas santinhas que davam graxa às chefes e se esforçavam com diligência e bom comportamento por obter mais medalhas, ao passo que Katy e Jilly preferiam de longe fazer o pino e piruetas e jogar à macaca lá fora, e encorajar outras potenciais rebeldes a associarem-se a elas. A sua asneira final foi fazer uma fogueira no jardim do salão paroquial, demasiado perto de uma cerejeira, que pegou fogo. Hilda não aprovava Jilly, dizia que os Carter não eram «do nosso tipo», e afirmava que Mr. Carter tinha sido moço de recados de uma loja de apostas. Katy não sabia nem queria saber que mal tinha ter sido moço de recados de uma loja de apostas, e continuava a considerar Jilly a sua melhor amiga, embora Jilly tivesse frequentado a escola secundária da zona e ela o colégio particular Hamilton House School. Como Katy descobrira que a melhor maneira de lidar com os preconceitos da mãe era evitar abordar o assunto, embora estivesse com a sua amiga sempre que podia não a mencionava em casa. No entanto, Katy sentia-se muitas vezes mal por o afeto e a generosidade da família de Jilly para com ela nunca serem retribuídos pela sua família. Sentiu-se obrigada a contar a Jilly como era a sua mãe, e a explicar a razão por que não podia convidá-la para a sua casa. Mas envergonhava-a pensar que isso fora necessário. Jilly limitou-se a encolher os ombros. – Talvez lhe tenha acontecido algo mau, para ela ficar assim – disse, com a sua generosidade habitual. – De qualquer maneira, não me preocupa. Como sempre, Katy sentiu-se contente por estar na companhia dos Carter durante algumas horas; seria maravilhoso não ter de medir as palavras nem de tentar apaziguar a sua mãe. – Então, o que é que te trouxe cá a meio da semana? – perguntou-lhe Jilly, passando os dedos pelo cabelo louro, porque o gorro de lã que tinha usado lho tinha amassado. – Estás farta da polícia na tua rua, ou o Rob anda a mexer-te com os nervos? – Nem uma coisa nem a outra. O Rob voltou para Nottingham hoje de manhã, e eu decidi tentar arranjar um emprego em Londres. Tinha a esperança de que viesses comigo. – Oh, ena, se não vou! – exclamou Jilly, e mãe e filha deram vivas. – Ela anda com a esperança disto há meses – disse Mrs. Carter. – E eu fico com um quarto só para mim se ela se for embora – acrescentou Patsy. Katy sentiu imediatamente um pouco de inveja por Jilly ter sempre a família do seu lado, fosse o que fosse que ela quisesse fazer. – Tenho a haver uma semana de férias – disse. – Acho que tu disseste que também tens uns dias. E se fôssemos até lá para apalpar o terreno? 3 – B oa sorte e divirtam-se, meninas – disse Albert ao deixar a sua filha e Jilly na estação no sábado à tarde. – Obrigada, pai – disse Katy, pegando na sua pequena mala de viagem. – Eu telefono hoje à noite para saberes que chegámos bem, mas suponho que, se for a mãe a atender, não te diz. – Pôs-se em bicos de pés para lhe dar um beijo. – Espero que não seja demasiado mazinha para ti nestes dias. Tinha sido uma semana estranha. No dia 24, a notícia da morte de Winston Churchill rebentara como uma bomba. Entristeceu muito o seu pai, porque o admirava imenso. No entanto, desde a noite em que Rob anunciara que se ia embora, o ambiente em casa estava de cortar à faca. O jantar era praticamente atirado para cima da mesa, as gavetas e as portas fechadas com estrondo e quando Katy disse que ia para Londres no sábado com Jilly Carter e que iam ficar em Hammersmith com a irmã de Mrs. Carter, Hilda aumentou os estrondos e os suspiros e também acrescentou uns insultos. – É mesmo teu, ficares com uma parente daquela fraldiqueira! – exclamou. Continuou a resmungar sobre ratos, ratazanas e infestações de percevejos até Albert lhe ordenar que parasse. – Estás a ser ridícula – disse. – Não há nenhuma razão para supor que essas pessoas têm um padrão de vida mais baixo do que o nosso. Além disso, a Katy decidiu ir e, a não ser que tu comeces a ser um pouco mais agradável e encorajadora, podes vir a descobrir que, quando ela sair de casa, nem sequer vai voltar para nos visitar. Albert sorria agora a Katy enquanto se despediam. Apreciava que ela dissesse que esperava que a mãe não fosse mazinha para ele. – Não te preocupes, já vivo com as neuras dela há muitos anos para me incomodarem. Mas, na tua ausência, vou tentar conversar sobre o nosso futuro. O que é certo é que não podemos continuar assim. Depois de as duas raparigas terem encontrado um compartimento só para elas no comboio, Katy suspirou de alívio. – Pensei que a minha mãe ia tentar impedir-me de vir – admitiu à sua amiga. – Estava à espera que se fingisse doente ou coisa do género; já o fez antes, quando eu disse que ia a algum sítio especial. Tens sorte por a tua mãe ser tão equilibrada. Jilly estava encantadora. Embora vestisse apenas o seu velho casaco azul-marinho, acrescentara um gorro de lã de um cor-de- rosa vivo, com um cachecol a condizer, e até o batom era da mesma cor. – Não tem outro remédio; desde que se casaram que o meu pai ora trabalha ora não trabalha. A construção civil é mesmo assim, especialmente no inverno. – Então, imagino que ela não quer realmente que tu saias de casa? Jilly riu-se. – Oh, ela não é assim, diz piadas sobre como eu lhe gasto três libras em comida por semana e só lhe dou duas libras e dez xelins. Quer tanto como eu que eu arranje trabalho no Zoo de Londres. Por falar nisso, tenho uma surpresa para ti. Telefonaram-me ontem ao fim da tarde, e tenho uma entrevista lá na terça de manhã! Katy soltou uns gritos de alegria. – Que maravilha! Vamos ter de comemorar isso hoje à noite. – Suponho que a minha mãe já telefonou à tia Joan para lhe contar. Ela vai ficar encantada e com certeza faz um bolo ou coisa do género. Katy já sabia que Mr. e Mrs. Underwood, a tia Joan e o tio Ken de Jilly, a adoravam, porque não tinham filhos. Por isso, elas seriam muito bem tratadas e alimentadas, mas a desvantagem, como Jilly observara, era que não poderiam ficar fora até tarde ou voltar para casa a cair de bêbedas. De qualquer modo, esta estadia em Londres não se destinava a irem dançar ou beber em clubes noturnos. Jilly tinha a entrevista para o emprego no jardim zoológico, Katy iria inscrever-se em agências de emprego, e depois precisavam de arranjar um apartamento. * Mais tarde nesse mesmo dia, aconchegada na cama, com Jilly na cama ao lado e o trânsito ainda a zunir lá fora, embora fosse quase meia-noite, Katy sentiu que fizera a escolha certa ao vir para Londres. Mr. e Mrs. Underwood – ou Joan e Ken, como eles tinham insistido que ela lhes chamasse – eram realmente pessoas bondosas e bem- dispostas, e a sua casa vitoriana em banda era tão acolhedora e calorosa quanto eles. Já tinham dito que elas poderiam voltar e ficar tanto tempo quanto quisessem depois de começarem nos seus novos empregos, para poderem procurar um apartamento com tempo. Mas elas estavam ambas decididas a encontrar um sítio durante aquela semana. Tinham grandes planos para o decorar a seu gosto e dar festas. Os tios de Jilly, embora encantadores, eram muito conservadores. Ainda nessa noite, Joan falara com reprovação de ter visto uma rapariga na mercearia vestida à nova moda, com uma minissaia. – Nem queria crer que uma rapariga tão nova pudesse ser assim tão descarada – disse ela, num tom de voz horrorizado. Jilly e Katy tiveram de conter o riso. Ambas tencionavam encurtar as bainhas das saias de acordo com o que as raparigas usavam aqui, mal se instalassem em Londres. * O domingo foi passado com Joan e Ken. Fizeram uma caminhada revigorante ao longo da margem do rio em direção a Chiswick. Estava muito frio e o céu tinha a cor de chumbo, mas era bom ver que até mesmo numa grande cidade havia espaços abertos para caminhar. Depois de um abundante e variado almoço, o resto da tarde foi passado a ver televisão e a dormitar junto à lareira. Na segunda-feira, as raparigas exploraram a zona de Hammersmith. Tinha-lhes sido dito que era uma zona boa e central para procurar um apartamento e nem de longe tão cara como a vizinha Kensington. Inicialmente, sentiram-se um pouco intimidadas pelo aspeto desleixado de tudo, mas numa agência imobiliária em que entraram recomendaram-lhes que não se deixassem afetar por isso. – Tenho um apartamento de um quarto numa cave, todo equipado, numa rua muito boa, só por oito libras por semana – disse-lhes o homem. Parecia um bom preço, e foram logo vê-lo, só para ficarem horrorizadas de tão húmido e escuro que era. – Se calhar, ele achava o apartamento muito bem equipado porque tinha ar de réptil – disse Jilly quando se afastavam a toda a pressa. – E a senhoria era um dragão também! Tomaram um café antes de se aventurarem a entrar em mais agências, e fartaram-se de rir da senhoria, que dissera que não toleraria visitas de homens nem festas ou música alta. – E também era tão frio! – disse Katy. – E o fedor a bolor! As pessoas iam afastar-se de nós por causa do cheiro nas nossas roupas. Na terça-feira, saíram de casa juntas às nove horas e dirigiram-se à estação de metro de Hammersmith. Jilly ia para Regent’s Park, para a sua entrevista no jardim zoológico, e Katy para Oxford Circus, para se inscrever em algumas agências de emprego. Combinaram encontrar-se de novo em casa da tia de Jilly ao fim da tarde. Às duas da tarde, Katy já tinha ido a quatro agências, onde deixara todos os pormenores do atual e dos anteriores empregos, o número de palavras por minuto que conseguia dactilografar, resultados de exames e interesses pessoais, e começava a sentir- se um pouco cansada. Fizera testes de dactilografia e estenografia, e todos disseram que a sua velocidade era impressionante. Contudo, em nenhuma das agências falaram sobre empresas específicas que necessitassem de alguém com as suas competências. Só disseram que lhe telefonariam quando tivessem alguma coisa na calha. Katy supunha que fora um pouco ingénua ao pensar que a agarrariam com ambas as mãos ali mesmo. Entrou num Wimpy Bar para comer um hambúrguer e tomar um café, a sentir-se tentada a ir dar uma volta pelas lojas a seguir. No entanto, a comida deu-lhe forças, e pensou que talvez fosse boa ideia voltar a cada uma das agências para perguntar se tinham encontrado alguma coisa para ela. No mínimo, isso faria com que parecesse realmente interessada. Supostamente, os empregadores apreciavam esse tipo de atitude. Na primeira agência disseram-lhe que tinham feito uns telefonemas para lhe arranjar entrevistas, mas ainda não tinham conseguido firmar nada. Na segunda, olharam-na de lado, como se tivessem ficado espantados por ela ter a lata de voltar lá sem a terem chamado. Mas a rececionista loura e voluptuosa na Alfred Marks, a terceira agência, dirigiu-lhe um enorme sorriso e disse que a colega dela se preparava agora mesmo para telefonar para o número de Hammersmith a pedir que lhes telefonasse para combinar uma entrevista. Daí a meia hora, Katy saiu da agência sem conseguir parar de sorrir. Tinha uma entrevista na manhã seguinte para o lugar de secretária legal numa firma de advogados nos Inns of Court. Ouvira falar desta organização histórica de advogados que não sofria alterações há centenas de anos a alguns colegas na sua firma em Bexhill. Em filmes, tivera vislumbres ocasionais destas câmaras dignas de um romance de Dickens, e sempre a tinham atraído. No entanto, e pondo de lado o ambiente de trabalho interessante, o salário de uma secretária legal era quase três vezes mais do que o que auferia naquele momento. Na agência disseram-lhe que a sua correção a dactilografar os tinha impressionado muito favoravelmente, porque não podia haver erros em documentos legais. Katy sentia-se tão encantada que entrou na Peter Robinson’s em Oxford Circus e comprou um vestido mini preto e branco. Como era baixa, ficava-lhe só a uns três centímetros e meio acima dos joelhos, mas o estilo aos quadrados era mesmo à moda. Nunca teria encontrado um vestido como aquele em Bexhill. * – Consegui o emprego! – gritou Jilly quando Katy entrou em casa. – Havia quatro outras raparigas para a entrevista, mas escolheram- me a mim! Katy abraçou a amiga. – Tinha a certeza que ias conseguir, és uma enfermeira veterinária tão boa. Jilly soltou-se do abraço, a rir, com os olhos brilhantes. – Dizes tu, que nunca me viste tratar nenhum animal. O mais parecido foi veres-me a dar de comer ao Ruin. Katy não pôde deixar de sorrir. Ruin era um rafeiro bastante feio, às manchas castanhas, e muito manso – ao contrário dos animais de que Jilly trataria no jardim zoológico. – Bem, tu falas-me tanto sobre os animais que é como estar lá contigo – disse Katy a rir. – E eu tenho uma entrevista amanhã. Que me dizes a isso? Ao jantar, enquanto comiam um delicioso empadão de carne, Jilly contou-lhes tudo sobre a sua entrevista. – Havia um painel de cinco pessoas – disse. – Eu estava aterrada, porque havia outras quatro raparigas à espera de serem entrevistadas e pareciam todas mais adequadas do que eu. O painel disparou-me perguntas sobre higiene, e depois outras sobre como se trata um animal quando está a despertar da anestesia. Eu quase disse a brincar que saía porta fora se fosse um tigre, mas por sorte controlei-me a tempo e admiti que tudo o que lhes podia dizer era o que sabia sobre animais domésticos. Acrescentei que supunha que os animais selvagens, maiores, podiam ser mais perigosos em tal situação, e que por isso contava que uma enfermeira mais experiente ou o veterinário me explicassem o que fazer. – Meu Deus! – exclamou Joan. – Não consigo imaginar ninguém a tratar de um tigre doente. De facto, também não me agrada lá muito a ideia de tu estares perto de um! – Ela não pode ser enfermeira veterinária sem se aproximar do paciente – disse Ken com um sorriso. – Mas tenho a certeza de que eles não facilitam quando se trata de animais selvagens. Então, disseram-te logo que o lugar era teu? – Não, pediram-me que esperasse numa sala ao lado, e tive de fazer um teste de inteligência estranho. Eram coisas como seis objetos diferentes, e tinha de se escolher o que não pertencia ao grupo. Ou identificar as diferenças entre duas imagens, que, à primeira vista, pareciam iguais. Não vejo realmente que relevância teria para tratar de animais doentes. – Suponho que a capacidade de observação é de importância vital – disse Joan. – Li algures que agora fazem testes como esse em muitas escolas, e conseguem calcular o QI da pessoa com base nos resultados. Então, disseram-te que te queriam logo a seguir a isso? – Sim, um dos homens, Mr. Metcalf, penso que é o veterinário- chefe, voltou à sala, verificou as minhas respostas todas e depois sorriu e perguntou-me quando podia começar. Vou ser uma enfermeira muito júnior, a começar por baixo, sempre sob supervisão, pelo menos durante um ano. Mas era com isso que estava a contar, de qualquer maneira. E fiquei tão surpreendida por ter sido escolhida que mal conseguia falar. – Então, quando é que disseste que podias começar? – perguntou Katy. – Disse que tinha de me despedir em Bexhill, mas que pensava que eles não se importavam se eu desse só uma semana de aviso. Por isso, de segunda-feira a uma semana sou bem capaz de já estar a trabalhar cá. Imaginem só! – Esperemos que eu fique com o emprego amanhã, então – disse Katy. – Tenho a certeza que sim – disse Jilly cheia de convicção. – Eu vou lá contigo e espero por ti nas redondezas. * Katy optou por um vestido simples preto de lã com gola alta, na manhã seguinte, para o caso de lhe pedirem para tirar o casaco na entrevista. Prendeu o cabelo num puxo na nuca e rematou com uma fita preta. – Um bocado tipo funeral – comentou Jilly. Jilly nunca usava preto; gostava de cores vivas, e uma vez tinha dito que era porque detestava ser ignorada. Katy não achava que alguém pudesse alguma vez ignorar a sua amiga espampanante. – Os escritórios de advogados são lugares sérios – retorquiu Katy. – Além disso, o meu casaco de quadrados azul-marinho não é nada fúnebre, e talvez não me peçam para o tirar. – Talvez te apaixones por um advogado – disse Jilly com uma risadinha. – Imagina só! Mas serias capaz de suportar um homem que usasse peruca? – Só usam a peruca no tribunal, tontinha – respondeu Katy. – E suponho que todos sem exceção são casados, têm mau hálito e cheiram mal dos pés. Vamos lá embora! * As duas amigas saíram do metro na estação de Temple, junto ao Tamisa, e foram a pé até Middle Temple. Katy estava demasiado nervosa para olhar com atenção para os edifícios seculares, os lampiões a gás ou as portas antigas que conduziam ao labirinto de gabinetes de advogados. Encontraram facilmente o escritório de Frey, Hurst e Herbert, porque a placa de latão no átrio com o nome deles era maior do que outras que já tinham visto. – Eu vou explorar a zona – disse Jilly. – Se não estiver aqui quando saíres, espera por mim. – Apertou a amiga contra o peito num abraço rápido. – Boa sorte, e não te esqueças do que a minha mãe diz sempre: «Olha o entrevistador nos olhos e faz perguntas inteligentes.» A pessoa que ia entrevistar Katy, uma tal Miss Frogatt, veio ao balcão da receção ter com ela. Era uma mulher magra e muito elegante, com cerca de quarenta anos. O seu fato preto simples, saltos altos e cabelo à pajem louro e brilhante indiciavam uma autoridade firme. – Bom dia, Miss Speed. Tenho de admitir que o seu apelido é muito apropriado, se a agência me indicou corretamente a sua velocidade na dactilografia e na estenografia. Venha até ao meu gabinete para me falar um pouco mais sobre si. Eu própria farei um teste a essas velocidades mais tarde. O gabinete dela era espartano quando comparado com outros por onde passaram, mobilados com cadeirões de couro vermelho, com as paredes forradas a estantes com livros e lareiras a crepitar. Miss Frogatt tinha uma secretária de madeira clara bem arrumada, um arquivador de mesa com quatro prateleiras e uma parede com armários de arquivo. Nem uma fotografia emoldurada do marido ou de outro membro da família. Mas Katy apercebeu-se muito rapidamente que aquela mulher só se dedicava ao trabalho. Seria difícil imaginá-la alguma vez a descontrair-se o suficiente para partilhar um mexerico ou falar sobre a sua vida particular. No entanto, apesar dessa aparência, interrogou Katy de uma maneira encorajadora sobre o tipo de trabalho que ela realizava no seu atual emprego. – Na maior parte do tempo, anoto o que me ditam e depois escrevo cartas sobre venda de propriedades, divórcios e testamentos – disse Katy. – É claro que também já dactilografei muitos documentos legais. – Isso é bom – disse Miss Frogatt, a acenar com a cabeça. – Os que vai escrever à máquina aqui são habitualmente para um julgamento, para o advogado que está a processar ou a defender um cliente. Devo avisá-la, e isto é de importância vital, que não pode nunca falar de nada que ouça aqui no decurso do seu trabalho, com ninguém. – É claro – disse Katy. Isso era óbvio para ela; tinha-lhe sido bem vincado quando começara a trabalhar na firma em Bexhill. – Compreendo que a confidencialidade é de importância vital nesta profissão. – Ainda bem que compreende isso, Miss Speed – disse a mulher mais velha. – Infelizmente, temos tido secretárias que vieram, como a menina, de advogados da província, onde os documentos mais interessantes que já tinham visto até virem trabalhar para nós eram petições de divórcio. Aqui, é frequente termos casos muito destacados – homicídios, por exemplo –, casos que aparecem nas notícias, e, por mais tentador que possa ser falar sobre o que sabe, é de importância vital que não o faça. Miss Frogatt testou a velocidade de dactilografia e estenografia de Katy num outro gabinete e também lhe pediu que preenchesse uma ficha de candidatura ao emprego. Como Katy só trabalhara para uma empresa e tivera um emprego no Woolworths aos sábados enquanto estudava, não demorou muito tempo. A seguir, Miss Frogatt deixou Katy sozinha no gabinete, sem explicar sequer se ela devia ficar ou ir embora. Ao fim de uns vinte minutos, Katy começou a sentir-se um pouco assustada e pensou que talvez tivesse sido esquecida ou, o que era ainda pior, que esperavam que ela tivesse ido embora. Estava prestes a levantar-se quando Miss Frogatt voltou, e desta vez o seu sorriso era genuíno. – Bem, Miss Speed, acabei de trocar umas palavras com Mr. Marshfield, da firma de Bexhill, e, embora ele tenha ficado surpreendido por a menina andar à procura de outro emprego, recomendou-a vivamente. Disse que teria muito pena de a perder. – Não lhes disse que estava a pensar mudar-me para Londres – disse Katy, um pouco em pânico por não ter preparado ninguém para a notícia. – Lamento se a embaracei – respondeu Miss Frogatt, não parecendo nada arrependida, só bastante satisfeita consigo própria. – Mas descobri há algum tempo que se obtém sempre uma recomendação mais verdadeira apanhando as pessoas desprevenidas. Uma recomendação escrita pode muitas vezes ser falsa. Não havia nada que Katy pudesse dizer em resposta. De facto, chegara a dactilografar cartas de recomendação no passado em que, por vezes, mal reconhecia a pessoa que estava a ser descrita. – Disseram-me que a deixariam sair ao fim de duas semanas – prosseguiu Miss Frogatt. – Por isso, se quiser o lugar, pode começar na segunda-feira, 22 de fevereiro. Convém-lhe? – É maravilhoso – disse Katy sem pensar, e depois corou. – Quero dizer, sim, obrigada. – Ao sair, passe só pelo último gabinete antes de chegar à receção para falar com Mrs. Greenwood. Ela toma nota de mais alguns dados e explica-lhe as questões do salário e do horário de trabalho. Fico a aguardá-la no dia 22. Jilly estava à espera na rua quando Katy saiu. – Então? – perguntou, enfiando a mão no braço da sua amiga. – Estou gelada, vamos depressa para um sítio quente. – Começo no dia 22 de fevereiro, mal posso crer! – disse Katy enquanto se afastavam em passos rápidos. – Vão pagar-me setenta e cinco libras por mês. Nunca esperei ganhar tanto. – Bem, toda a gente diz que ganhamos um salário de miséria lá em Bexhill. Ora bem, viste alguém que achasses que podia vir a ser uma amiga? Alguns homens jeitosos? – As mulheres todas que vi eram muito mais velhas do que eu, mas vi um sujeito atraente. Diria que é só uns anos mais velho do que eu, com cabelo escuro, um fato elegante, uns olhos escuros bonitos. Sorriu-me quando eu ia a sair. Mas não me pareceu o tipo de lugar onde uma pessoa tenha conversinhas ou se divirta. Era muito sossegado, por isso vou ter de me controlar. Mais tarde, num pequeno café no Strand, Katy falou a Jilly sobre Mr. Frey, o sócio principal. Mrs. Greenwood tinha-a levado a conhecê-lo antes de ela se vir embora. – Era um bocado assustador, com um grande nariz adunco e uma voz grossa de homem da alta. Apertou-me a mão com tanta força que quase dei um grito. Mas disse que Miss Frogatt acreditava que eu seria uma mais-valia para a firma, por isso acho que tenho de me esforçar por ser mesmo. * As duas amigas passaram o resto do dia a visitar agências imobiliárias para deixarem o seu contacto. Foi muito desencorajador descobrir que um apartamento com dois quartos custaria pelo menos vinte e cinco libras por semana, e por isso pensaram que seria melhor partilharem o quarto de dormir. – Isso é até encontrarmos um rapaz mesmo giro e querermos estar a sós com ele – disse Jilly, erguendo as sobrancelhas numa expressão sugestiva. – Tu fazias isso? – perguntou Katy. Falavam muitas vezes sobre se iriam «até ao fim», mas, embora Jilly dissesse que seria capaz, com o homem certo, Katy tinha demasiado medo. Racionalmente, sabia que a sua mãe lhe fizera uma lavagem ao cérebro para a levar a acreditar que todos os homens do mundo estavam tão desesperados por sexo que fariam e diriam qualquer coisa para o obter. Claramente, não se aplicava a todos os homens, mas todos os que ela conhecera nos bailes eram como polvos, com as mãos por todo o lado. Tinha a ideia de que reconheceria o homem dos seus sonhos quando ele lhe aparecesse, porque não tentaria forçá-la a nada, mas esperaria até ao momento certo. Nesse fim de dia, as amigas foram até Chelsea. Tinham ouvido dizer que a King’s Road era realmente interessante, com lojas maravilhosas e bares. A informação não era exagerada; comparada com Bexhill numa noite fria de fevereiro, era como aterrar em Las Vegas. Havia multidões a andar lentamente nos passeios, tal como elas, a admirarem as montras bem iluminadas, felizes por estarem ali. Os muitos cafés, restaurantes e bares estavam cheios de gente nova, e saía música de todas as portas. – Nunca esperei nada assim – disse Katy, espantada. – Quem me dera que pudéssemos viver aqui. Parece tão divertido! Pararam para olhar para a montra de uma agência imobiliária e, ao lerem os anúncios expostos, aperceberam-se de que aquela zona estava muito longe do seu alcance. – Não importa – disse Jilly. – Podemos sempre vir até cá... e entretanto vamos tomar uma bebida e ver se encontramos uns sujeitos para namoriscar com eles. Muito mais tarde nessa noite, no regresso de metro à casa da tia de Jilly, não conseguiam parar de soltar risadinhas, em parte porque estavam um pouco tocadas, mas também por causa dos dois homens que se tinham fartado de lhes oferecer bebidas. Jeremy e Martin eram uns tipos emproados da alta que imaginavam que estavam a fazer um favor às pobres raparigas provincianas só por falarem com elas. Sem dúvida, também pensavam que se as fizessem beber bastante conseguiriam ir com elas para a cama mais tarde. Contudo, as duas amigas alinharam no jogo, dando a impressão de serem totalmente ingénuas e de estarem cheias de admiração por eles. A dada altura, quando os dois homens foram ao balcão buscar mais bebidas, elas escapuliram-se do bar e correram ao longo de Sloane Square para apanhar o metro para casa. – Eram demasiado convencidos – disse Katy a rir. – E ambos cheiravam mal e nem sequer eram bem-parecidos. Como o Rob diria: «Não lhes deitava água em cima nem que estivessem a arder.» – Aposto que ficaram danados por nos terem pagado tantas bebidas – disse Jilly toda satisfeita. – Devia ter-lhes dito que precisariam de clorofórmio para nos levarem para a cama. – Que noite fantástica, de qualquer maneira – disse Katy. – Quem me dera que pudéssemos viver em Chelsea, dava mesmo a sensação de que tudo estava a acontecer lá. Hammersmith não dá essa sensação. – Não, não dá. Mas não digas isso à minha tia e ao meu tio, eles iam ficar magoados. Talvez devêssemos tentar noutras zonas? – Fazemos isso amanhã – disse Katy. – Mas agora é melhor tentarmos parecer sóbrias quando chegarmos a casa. 4 – N ão me apetece nada voltar para casa – admitiu Katy quando ela e Jilly saíam da estação de Bexhill. Era sábado à tarde, uma semana depois da partida para Londres, e embora ela tivesse telefonado para casa duas vezes enquanto estiveram fora, a mãe recusara-se a envolver-se na conversa. Nem sequer reagiu quando Katy lhe disse que tinha conseguido um emprego muito bom. Também declarou que Albert não estava em casa, mas Katy tinha a certeza de que ele estava no barracão no jardim e a mãe poderia tê-lo chamado da cozinha. – Bem, só te restam duas semanas – disse Jilly, passando o braço pelos ombros da amiga a reconfortá-la. – E eu ainda vou estar por cá na primeira semana. É uma pena que não tenhamos arranjado um apartamento, mas eu continuo a procurar quando voltar. – Os teus tios são muito generosos por dizerem que podemos ficar lá – disse Katy. – Fizeram-me ver como a minha mãe é mesmo esquisita. E suponho que faz mais sentido procurar um sítio para viver quando já lá estivermos. Tinham visitado mais de dez apartamentos durante a semana, mas eram todos horrendos. Um tinha a banheira na cozinha, com uma tábua por cima. Alguns dos outros tinham casas de banho partilhadas com outros inquilinos, e todos os apartamentos eram imundos, com mobiliário velho, carpetes sujas e camas manchadas. Quando respondiam a anúncios no jornal vespertino, esses apartamentos já tinham sido arrendados. No entanto, apesar da deceção de não encontrar um apartamento, tinham passado uns dias maravilhosos em Londres e mal podiam esperar para voltar. Depois de combinar encontrar-se com Jilly durante a semana seguinte, Katy pegou na sua mala e dirigiu-se para casa com um peso no coração. * – Então, voltaste, foi? – disse Hilda quando Katy entrou pela porta das traseiras diretamente para a cozinha. Estava sentada à mesa da cozinha a polir uns objetos de latão e olhou para a filha com uma expressão azeda. – É o que parece – disse Katy. – Eu avisei que chegava hoje. – Não me venhas com sarcasmos – resmungou a mãe. – Bem, e se tu te portasses de uma maneira mais acolhedora? – retorquiu Katy. – Honestamente, mãe, és tão desagradável às vezes! É para admirar que eu queira sair de casa? Onde está o pai? Quero contar-lhe do meu novo emprego. – Então é melhor ires à esquadra. Ele foi preso! Katy quase se riu, julgando que se tratava de uma piada. Mas é claro que a mãe nunca dizia piadas. E quem brincaria com uma coisa dessas? – Preso! – exclamou Katy. – Porquê? Mãe, estás a assustar-me. O que se passa? – Foi detido por homicídio. Matou Mrs. Reynolds e a filha. Katy sentiu as pernas a cederem e teve de se agarrar às costas de uma cadeira para se apoiar. – O meu pai nunca mataria ninguém – disse, e a voz saiu-lhe fina e trémula. – Quem disse que ele fez isso? Hilda encolheu os ombros magros e comprimiu os lábios. – Devem ter provas; vieram cá e levaram-no pouco depois de ele chegar do trabalho ontem. – Mas ele estava a dormir quando o incêndio começou, como todos nós. – Isso foi o que eu disse à polícia. Mas houve alguma coisa que me acordou, por isso talvez fosse o Albert a voltar e a meter-se na cama. Katy olhou para a mãe, horrorizada. – Tu não podes acreditar nisso. O que te faz dizer uma coisa dessas? Hilda pegou num pequeno jarro de latão e começou a poli-lo vigorosamente. – Já não sei em que acreditar. Nunca imaginei que ele pudesse ter um caso com outra mulher, mas dá a ideia que é exatamente isso que ele tem andado a fazer. Por isso, diz-me tu porque é que eu devia acreditar que ele não a matou? Katy sentia náuseas e tonturas; era como se estivesse a ser sugada para uma espécie de turbilhão, sem nada a que se agarrar, nem sequer à sua própria sanidade mental. Sentou-se pesadamente e pousou a cabeça nas mãos por um momento para fazer parar a sensação de tontura. – Mãe, mesmo que ele andasse a ter um caso com Mrs. Reynolds, no que não acredito nem por um segundo, nunca a mataria. Especialmente incendiando a casa dela. Isso foi obra de uma pessoa transtornada. Ele é um homem delicado, bondoso e muito tolerante. – Os vizinhos do John Christie pensavam todos que ele era um bom homem – disse Hilda. – Mas matava mulheres jovens e enterrava-as na casa dele. E deixou que o seu pobre inquilino simplório arcasse com as culpas e fosse enforcado. – O pai está tão longe de ser como o Christie como tu de seres a Marilyn Monroe – berrou Katy, enraivecida por alguém poder ser assim tão estúpida. – Eu vou agora à esquadra para o ver. * Katy foi a correr todo o caminho até à esquadra, a chorar. Embora fossem apenas cinco da tarde, já escurecera e com o frio cortante havia poucas pessoas nas ruas. Ao balcão da esquadra pediu para ver o seu pai. Inicialmente, o sargento de meia-idade e a ficar calvo que estava na receção recusou. Contudo, quando ela começou a chorar outra vez, ele disse que veria o que podia fazer e desapareceu para as traseiras. Passaram-se cerca de vinte minutos até ele voltar. – OK, menina, eu pu-lo numa sala de interrogatórios. Pode falar com ele durante uns minutos, é tudo. Ser conduzida por uns corredores e depois por umas escadas de pedra toscas com um cheiro terrível a humidade fez com que a situação do seu pai parecesse ainda pior. Viu à sua frente uma entrada coberta com um gradeamento de ferro, que claramente dava para as celas, mas foi levada para a direita e metida numa sala muito pequena e sem janelas. Só continha duas cadeiras, uma mesa minúscula – e o seu pai. Nunca o vira assim. Com a barba por fazer e os olhos injetados, cheios de ansiedade. Parecia mais velho e derrotado. Katy correu para os seus braços. – Oh, pai, como puderam sequer pensar que foste tu? Ele abraçou-a com força por um momento e depois empurrou-a delicadamente para uma cadeira. Sentou-se na outra e inclinou-se sobre a mesa para limpar as lágrimas dos olhos dela com o polegar. Katy agarrou a mão dele e apertou-a, a tentar ao mesmo tempo conter as lágrimas. – Encontraram parafina no meu barracão – disse. – A lata era minha; comprei-a uma vez, quando fiquei sem gasolina, por isso tinha as minhas impressões digitais. Mas Deus é minha testemunha de que nunca pus parafina nessa lata. Porque o faria? Não temos fogões a parafina. Mas também encontraram um pano que disseram que era como os que foram usados para pegar fogo à casa. Os únicos panos que eu alguma vez tive no meu barracão foram farrapos; calças velhas e camisolas interiores e pedaços de lençóis de flanela usados. Mostraram-me o que tinham encontrado. Era como tecido de cortinas; não me serviria de nada para farrapos, porque não era absorvente, e nunca o tinha visto, de qualquer maneira. Por isso, alguém o pôs lá para me incriminar. – Fez uma pausa por um momento, a olhar atentamente para Katy. – Eu estava na cama, a dormir, quando começou. Levantei-me uns cinco ou dez minutos antes de a tua mãe te acordar a ti e ao Rob, e nessa altura telefonei para os serviços de emergência. – Eu acredito em ti, pai, sei que não farias mal a ninguém. Mas a mãe acha que tu estavas a ter um caso com a Gloria Reynolds. O pai de Katy abanou a cabeça. – Foi o que a polícia me disse. Não estava a ter caso nenhum com ela, claro, mas sou culpado de não ter dito à tua mãe que me tinha tornado amigo dela. Tenho a certeza de que podes imaginar porquê! Lembras-te da cena que ela fez quando eu fui a casa da vizinha consertar-lhe o autoclismo? Katy assentiu com a cabeça; recordava-se bem. Tinha sido há um par de anos, num domingo. Mrs. Reynolds foi lá a casa, toda aflita, porque havia água a cair em cascata pela parede da casa de banho dela. Albert agarrou nas ferramentas e foi com ela, mas quando voltou para casa daí a uma hora, Hilda mostrou-se furiosa com ele. Fartou-se de resmungar durante o resto do dia. – A partir desse dia, eu passava por casa dela com frequência, porque gostava dela. Era uma mulher calorosa, divertida e bondosa, e mostrava-se sempre contente por me ver. Tinha tido um marido violento de quem fugiu, e teve de criar os filhos sozinha. Falávamos muitas vezes sobre como era um inferno viver com uma pessoa cujos estados de espírito são de tal modo imprevisíveis que nunca se sabe quando ela se vai virar contra nós. Eu nunca antes tinha contado a ninguém como era a Hilda... afinal, fazia-me parecer um fraco. Mas contei à Gloria. – Oh, pai... – Katy começou a chorar outra vez. – Eu também gostava dela; compreendo que lhe fizesses confidências. Mas quem achas que pegou fogo à casa? – Diria que foi um dos maridos das mulheres que ela ajudava – respondeu ele, pensativo. – Ou talvez o ex-marido dela. – O que queres dizer com «mulheres que ela ajudava»? – Ela ajudava-as a deixarem os maridos violentos – respondeu ele. De repente, como uma luz a acender-se, Katy compreendeu que era isso que aquelas mulheres eram; as mulheres que vira chegar no carro preto. – Vinham com uma senhora mais velha, um pouco forte, num Humber preto? O pai de Katy acenou com a cabeça. – Sim. Bem, eu só vi a amiga dela do carro preto uma vez, mas a Gloria disse-me que ela trazia frequentemente essas mulheres lá a casa. Ficavam uns dois dias, enquanto a Gloria conversava com elas e as ajudava a começar uma nova vida. Tinha de manter aquilo secreto, por razões óbvias; os maridos daquelas mulheres eram perigosos. Katy deu-se conta de que a qualquer momento o sargento viria mandá-la sair. – Olha, pai, não temos muito tempo. O que posso fazer para ajudar? – Telefona ao meu advogado e marca um encontro com ele, para poderes dar-lhe um pouco mais de informação sobre isto, especialmente o que eu disse sobre aquelas mulheres que a Gloria ajudava. Até ontem à noite nunca tinha visto este advogado de direito penal. Chama-se Michael Bonham; foi o advogado da nossa empresa quem mo arranjou. Parece ser um bom homem. Tem a esperança de conseguir que me soltem sob fiança quando for a tribunal na segunda-feira. – Tirou um cartão de visita do bolso e deu-o a Katy. – Mr. Bonham pôs o número de telefone de casa dele nas costas. Telefonas-lhe e pedes para falar com ele amanhã? – Fez uma pausa por um momento, como se a pensar no que mais tinha para lhe dizer. – Se pudesses arranjar-me algumas camisas limpas, as coisas de barbear e uma muda de roupa interior e trazer- me isso aqui seria maravilhoso, Katy – acrescentou. A porta abriu-se e o sargento estava de volta. – Acabou o tempo – disse. – Eu vou ao tribunal na segunda-feira – disse Katy, e aproximou- se do pai para o abraçar. – Não vais nada, por isso é que te disse para falares com o Bonham amanhã. Não vai acontecer nada de mais no tribunal, é só para pedir a libertação sob fiança, por isso é melhor que vás trabalhar. Katy queria protestar, mas sabia pelo tom de voz do pai que ele falava a sério. Estava a tentar mantê-la fora daquilo, talvez com receio de que alguém que a conhecesse pudesse vê-la no tribunal. Ela poderia argumentar que até segunda-feira à noite toda a cidade de Bexhill estaria a par de que ele fora acusado de homicídio, quando os jornais locais soubessem da história. Mas tinha de deixar o pai com alguma esperança de que o nome da sua filha não seria também arrastado pela lama. Com um último abraço, e a conter as lágrimas, foi-se embora. Quando ele desapareceu com um guarda para a zona das celas, o gradeamento foi fechado nas costas deles. O sargento deu um pequeno empurrão a Katy, a indicar-lhe que subisse as escadas e voltasse à receção, e ela estremeceu. Se o pai não conseguisse sair sob fiança na segunda-feira, como iria suportar a prisão? Era o tipo de homem que gostava do ar livre, de dar longas caminhas, de jardinar – mesmo quando estava a trabalhar no barracão deixava a porta aberta para trás. Mas, mais importante ainda, como suportaria ser considerado um assassino? Telefonou a Michael Bonham de uma cabina telefónica antes de voltar para casa. Foi reconfortante falar com ele; tinha uma voz muito grave e mostrou-se paciente com Katy quando ela se atrapalhava com as palavras. – Eu sei que o meu pai não poderia nunca ter ateado aquele incêndio – disse ela com convicção. – Ele nunca faria mal a nenhuma mulher, mesmo que não gostasse dela. E ele gostava realmente da Gloria Reynolds; eram amigos. É um homem muito honesto, tem de acreditar nisso. – Eu acredito nisso, Katy – disse ele. – Não quereria defender o seu pai a não ser que acreditasse que ele estava a dizer a verdade. Sugiro que nos encontremos amanhã, para poder dar-me mais algumas informações sobre o contexto. Provavelmente, poderá transmitir-me também uma perspetiva diferente sobre Mrs. Reynolds. Combinaram encontrar-se num café à beira-mar, às onze da manhã seguinte. Katy foi para casa a sentir-se mais só do que alguma vez se sentira em toda a sua vida. Estava tentada a ir a casa de Jilly e contar-lhe tudo, mas sabia que não era boa ideia, ainda não. Rob devia ser informado primeiro, e ela queria muito falar com o irmão, mas não sabia o número de telefone para o contactar. Dantes, ele telefonava sempre para casa aos domingos de manhã. Mas desta vez partira tão aborrecido que o mais provável era que não se desse ao trabalho de telefonar. Logo a seguir ao jantar, ela iria sentar-se a escrever-lhe. Primeiro tinha de encarar de novo a sua mãe para tentar convencê-la de que estava errada ao pensar que o marido tinha tido um caso. Contudo, isso ia ser difícil; ela já sabia há muito tempo que quando Hilda se virava contra alguém, nada fazia com que mudasse de ideias. * Katy saiu de casa no domingo de manhã pouco antes das dez, levando o que o pai lhe tinha pedido. Escrevera a Rob e pusera a carta no correio, a implorar-lhe que telefonasse mal a recebesse. Infelizmente, não conseguira convencer a mãe. Hilda continuava a insistir teimosamente que o seu marido lhe era infiel. Nem sequer parecia compreender as implicações de ele ter sido acusado de homicídio; que ele poderia ser condenado a prisão perpétua ou até ser enforcado, sem o apoio dela. Ela dizia que não ia aceitá-lo em casa, mesmo que saísse sob fiança. – Acreditas realmente que ele pegou fogo à casa da vizinha? Porque, se não acreditas, tens de o ajudar – gritou-lhe Katy a certa altura. A resposta da sua mãe deixou-a arrasada. – Ao dar-se com aquela mulher mesmo debaixo do meu nariz, merece tudo o que lhe aconteça. Katy sentiu-se tentada a esbofetear a mãe para a fazer ver a razão. Mas controlou-se; bater à mãe só tornaria as coisas piores entre elas. Era mais um dia de um frio cortante, mas era bom estar fora de casa e longe da malevolência da mãe. Hilda fartara-se de falar sobre o alegado caso de Albert. Contudo, se ela acreditava realmente que ele estava a ter um caso, pensou Katy, porque não o confrontara com isso antes? Só uma pessoa completamente louca acordaria a meio da noite e, ao ver um incêndio, chegaria à conclusão de que o seu marido o ateara para encobrir a sua infidelidade. Katy dissera-lhe isso mesmo. Mas a resposta da mãe foi que, embora tivesse as suas suspeitas de que o marido andava a ter um caso, elas só foram confirmadas depois do incêndio por causa da maneira como ele estava sempre a olhar com tristeza para o outro lado da rua, para a casa ardida. E depois tinha chorado abertamente ao ver as padiolas saírem da casa. Katy lembrou-lhe que ela própria também tinha olhado com tristeza para a casa e também tinha chorado, como, provavelmente, todos os vizinhos sem exceção. Isso também fazia deles suspeitos? Depois de deixar as coisas do pai na esquadra, Katy foi até à beira-mar ao Marine Café. Era um dos poucos cafés com vista para o mar que estava aberto o ano todo, e era famoso pelos seus pequenos-almoços ingleses. Era o café preferido de Rob; Katy ia sempre lá com ele quando o irmão vinha a casa de férias. Michael Bonham dissera-lhe que ela o reconheceria pelo seu casaco de pelo de carneiro castanho-escuro, e ela avistou-o imediatamente. De facto, dava a impressão de que o casaco não era dele. Tinha o cabelo muito curto e penteado com Brylcreem. O vinco perfeito das suas calças azul-marinho e os sapatos caros muito bem engraxados ficariam muito melhor com um sobretudo de um tecido de lã escuro. Mas Katy suspeitava que ele não queria parecer um advogado e que o casaco de pelo de carneiro era uma espécie de adereço. Tinha-se sentado a uma mesa a um canto, na parte de trás do café, onde, presumivelmente, não poderiam ser ouvidos. Visto ao perto, era mais velho do que ela pensara inicialmente; tinha rugas, e as pálpebras descaídas sobre os olhos de um azul desmaiado. Até o seu cabelo era branco, não louro. Katy calculava que devia andar pelos cinquenta e muitos anos. – Mr. Bonham? – disse, estendendo-lhe a mão. – Sou a Katy Speed. Ele mandou vir café para os dois e perguntou-lhe se também queria alguma coisa para comer. – Não, obrigada. Estou demasiado nervosa para comer seja o que for – disse ela com um sorriso abatido. Ele pousou a mão em cima da dela, a reconfortá-la. – Sim, tenho a certeza de que deve estar. Mas, pelo que fiquei a saber sobre o seu pai, realmente não penso que a polícia consiga fazer vingar esta acusação. Depois de a empregada de mesa lhes trazer o café, o advogado pediu a Katy que lhe contasse o que acontecera exatamente na noite do incêndio. A seguir, perguntou-lhe o que sabia sobre Gloria Reynolds. – Era boa e amável – disse Katy. – Realmente não acredito nem por um momento que ela e o meu pai estivessem a ter um caso. E, mesmo que estivessem, porque é que o meu pai quereria matá-la? A minha mãe ficaria terrivelmente zangada, claro... mas tem tendência para andar sempre zangada, de qualquer maneira... e realmente um caso só teria dado ao meu pai uma desculpa, se precisasse dela, para deixar a minha mãe. Não se preocuparia com o Rob e comigo; já temos idade para conseguir lidar com o divórcio dos pais. Além disso, quem mataria uma mulher de quem gostava só para evitar que a sua esposa descobrisse? – Já aconteceu, muitas vezes, embora na maior parte dos casos quando a esposa era o cônjuge com dinheiro. Por falar nisso, o seu pai é bastante rico. Há alguma possibilidade de que a Gloria andasse a chantageá-lo? Katy olhou para o advogado de lado. – Parece-lhe que uma mulher que ajuda outras mulheres a deixarem maridos violentos pensaria sequer em chantagem? – Não se pensaria que sim, mas todo o tipo de pessoas se tornam chantagistas, Katy. Tenho de perguntar se seria possível. – Lembre-se, o meu pai é um homem de negócios inteligente – disse Katy num tom reprovador. – É bom e generoso, mas não é nenhum tolo. Não compreendo porque é que a polícia não anda à procura de um dos maridos violentos. É muito mais provável que tenha sido um deles. – Sim, concordo inteiramente. Mas não penso que a polícia soubesse que ela andava a ajudar outras mulheres. Eu só soube quando o seu pai me contou. Isto é algo sobre que tenho de lhes falar. A própria natureza do auxílio que ela prestava necessitava de ser mantida em segredo. Se aqueles homens violentos soubessem quem estava a ajudar as suas mulheres a escapar-lhes, levando os filhos com elas, seria muito provável que as procurassem e as arrastassem para casa. – Então, com certeza isso faz de um deles o principal suspeito? – Para nós, sim. Mas, como disse, na altura da detenção do seu pai a polícia não sabia da existência dessas mulheres vítimas de violência doméstica que Mrs. Reynolds andava a ajudar. No que lhes dizia respeito, bastavam a lata de parafina com as impressões digitais do seu pai e o pano no barracão dele, o mesmo que foi usado para começar o fogo. Katy revirou os olhos, impaciente. – Com o que já sabe sobre o meu pai, parece-lhe um homem estúpido? – Não, é claro que não. Longe disso. – Bem, se ele tivesse cometido este crime terrível, deixaria no barracão dele provas como a lata e o pano para a polícia as encontrar? Bonham sorriu. – Não, penso que não. E pode crer que isso é algo que apresentarei à acusação. Não é parecida com o seu pai fisicamente, Katy, mas tem a mesma maneira direta de falar. Gosto disso. Conversaram durante algum tempo, com Katy a falar-lhe sobre o seu emprego na firma de advogados e o que acabara de arranjar em Londres. – Não sei se me quererão num ou no outro, se isto se constar – disse com pena. – Infelizmente, vai constar-se, Bexhill é uma terra pequena e o seu pai é um destacado homem de negócios. Por isso, a primeira coisa que tem de fazer amanhã de manhã é contar ao sócio principal da sua firma. Se lhe contar antes de ele o ouvir da boca de outras pessoas, é mais provável que se mostre compreensivo. OK, talvez ele sinta que deve ir-se embora imediatamente, mas talvez não. Quanto ao emprego em Londres, não vejo nenhuma razão real para lhes dizer. Não vai afetá-los de nenhuma maneira. – O que posso fazer para ajudar o meu pai? – perguntou ela. – Vai falar com os outros dois filhos da Gloria? Quer dizer, talvez eles saibam o que ela pensava sobre o meu pai. – Quero mesmo muito falar com eles, e, como o funeral foi marcado para esta sexta-feira, vou estar presente e tentar falar com eles e talvez também com outros amigos íntimos. – Eu também gostava de ir ao funeral, para apresentar as minhas condolências – disse Katy. – Mas suponho que não seria bem recebida. Bonham comprimiu os lábios. – Não, Katy, duvido que fosse. Em situações como estas, habitualmente é preferível manter as distâncias. Mas vou tentar falar com a filha. – Havia uma senhora chamada Marleen a quem a Gloria costumava recorrer em tempos de mais movimento na loja e sempre que precisava de se ausentar – recordou-se Katy subitamente. – Fiquei com a ideia de que ela era uma velha amiga, não apenas uma empregada. Vive em Cooden Beach, mas não sei a morada. – Isso é útil – disse Bonham com um sorriso. – Talvez ela possa dizer-me alguma coisa sobre a senhora do Humber preto. – Quem me dera poder fazer alguma coisa para ajudar – suspirou Katy, melancólica. Bonham tocou-lhe na face delicadamente com a palma da mão. – Pode puxar pela cabeça para ver se se lembra se a Gloria alguma vez mencionou alguns amigos ou até mesmo pessoas de quem não gostava. Podia tentar perguntar a outras pessoas que conheça; por vezes, uns mexericos podem revelar-se úteis. A polícia interrogou os vizinhos mais próximos logo a seguir ao incêndio, mas talvez a Katy conheça outras pessoas na rua que mantinham relações amistosas com ela? Katy acenou com a cabeça. Não conseguia pensar em ninguém assim de repente, mas refletiria sobre o assunto e faria perguntas, de qualquer modo. – Vou dar o meu melhor – disse. – Tenho de me ir embora – disse Bonham, pondo-se de pé. – Vêm umas pessoas de família lá a casa almoçar e fico em maus lençóis se não voltar para dar uma ajuda à minha mulher. Ora bem, tem o meu número de telefone, Katy, se se lembrar de mais alguma coisa ou descobrir seja o que for, por mais insignificante que pareça, telefone-me! E também, se se mudar para Londres como planeou, comunique-me a sua morada e o seu número de telefone. Katy saiu do café com ele e recusou uma boleia para casa. – Uma caminhada vai fazer-me bem – disse ela enquanto lhe dava um aperto de mão. – Talvez me acalme o suficiente para evitar que eu ataque a minha mãe. Bonham riu-se e pousou-lhe a mão no ombro. – É um tempo difícil para si, Katy. Mas mantenha o seu sentido de humor e acredite no seu pai, e tenho a certeza de que tudo vai acabar por se resolver. * À hora do almoço na segunda-feira, Katy saiu para ir à farmácia comprar Aspirina, porque estava com uma enorme dor de cabeça. Depois de se encontrar com Bonham no dia anterior, tinha passado por casa de Jilly para lhe contar a ela e à sua família o que tinha acontecido, e acabara por ficar para o almoço. Embora tivesse telefonado para casa para avisar que não iria almoçar, não deixou de ser repreendida quando regressou por volta das seis da tarde. Por vezes, parecia que a mãe era diplomada em fazer-se de mártir. Katy apanhou com a cena do «estou aqui sozinha o tempo todo». Sentiu-se tentada a dizer que a mãe não estaria só se não tivesse dito à polícia que o seu marido era o incendiário. Mas não o disse, porque não tinha a certeza se fora de facto Hilda a denunciá-lo à polícia. Esta manhã, tivera de se preparar para contar a Mr. Marshfield que o seu pai fora preso. Contava que ele ficasse horrorizado, que lhe dissesse para se ir embora imediatamente. Mas, para sua surpresa, Mr. Marshfield mostrou-se compreensivo. – Que coisa mais ridícula! – exclamou ele. – Não consigo imaginar ninguém menos propenso a atear um incêndio de propósito. – Espero que a polícia e a acusação vejam isso nele – disse Katy. – Mas entretanto, Mr. Marshfield, eu tencionava dar-lhe duas semanas de aviso, porque encontrei outro emprego em Londres. No entanto, dadas as circunstâncias, talvez queira que eu me vá embora imediatamente. – Apercebi-me de que ia sair de cá quando nos pediram referências sobre si, cara menina. Mas de maneira nenhuma lhe vou pedir que se vá embora agora, não quando tem sido uma funcionária de primeira classe. De facto, se decidir que não quer ir para Londres por causa do seu pai, pode ficar cá na firma o tempo que quiser. Katy mal conseguia acreditar que aquele homem frio e sem sentido de humor pudesse ser assim tão bondoso. Vieram-lhe as lágrimas aos olhos. – Obrigada, Mr. Marshfield – disse em voz baixa. – Não pode imaginar como me sinto tocada pela sua reação. Mas receio que a minha presença aqui possa ter um impacto negativo na firma. – Porque o teria, cara menina? Já trabalha aqui há anos e conhece a maior parte dos nossos clientes. O seu pai é um homem respeitado, e a Gloria Reynolds era uma boa senhora. Acredito que a maior parte das pessoas conseguirá ver o que isto é: um erro da polícia. Vá lá agora, e prepare-se para eu lhe ditar umas cartas. A firma para se não enviarmos as cartas. Contudo, a dor de cabeça tinha persistido e Katy sentia muita dificuldade em se concentrar, com tantas coisas na cabeça. Pensou que uma caminhada para apanhar ar fresco talvez a livrasse da dor de cabeça e a fizesse sentir-se menos exausta e preocupada. Comprou a Aspirina e foi até à beira-mar. Num dia de inverno como aquele, estava deserta, como ela esperava, e as ondas rebentavam na praia ameaçando galgar o muro. Como estava demasiado vento para passear, daí a uns minutos ela atravessou para o outro lado e subiu uma rua lateral. Olhando à sua frente, viu um carro que reconhecia a estacionar mais acima na rua. O Humber preto! Nem queria crer na sua sorte. Estugou o passo e chegou ao carro no momento em que a senhora atarracada que vira tantas vezes antes estava a sair dele. – Desculpe – disse Katy, ofegante. – Creio que era amiga de Gloria Reynolds. Posso falar com a senhora por uns minutos, se não está muito ocupada? A mulher mais velha franziu a testa, claramente admirada por ter sido abordada na rua. – Bem, sim, mas sabe que ela morreu recentemente? Katy apercebeu-se de que a mulher pensava que ela era da imprensa e de que a ideia de falar com uma jornalista a assustava. – Sim, sei. Vivo na casa em frente à da Gloria. Juro-lhe que não sou de nenhum jornal. Eu gostava muito dela – disse Katy. – Mas preciso realmente de falar com a senhora. A mulher continuava a parecer assustada. – Bem, só posso dar-lhe alguns minutos, porque tenho compromissos esta tarde. Mas entre, para se abrigar deste vento. Era uma casa geminada com um ar bastante comum, e, quando a mulher abriu a porta da rua, Katy reparou que a decoração era do início dos anos 1950, com uma mesa para o telefone de pernas finas e papel de parede amarelo e preto ao estilo dessa época. – Peço perdão, não sei o seu nome, mas eu sou a Katy Speed. Como vivo em frente à Gloria, vi-a ir lá a casa muitas vezes. A morte dela é uma enorme tragédia. – Sim, de facto, uma coisa terrível – disse a outra, e os seus olhos escuros encheram-se de lágrimas. – Eu sou a Edna Coltrain, e será que a menina é a filha do Albert? – Sim, sou. Conhece-o, então? – Só o vi uma vez, mas a Gloria falava dele muitas vezes e indicou-me a casa dele. Ele ajudou-a muitas vezes; ela gostava muito dele. Depois de todas as coisas más que tinham acontecido, era muito bom ouvir algo positivo. – Se é assim, vai ficar chocada ao saber que ele foi acusado de atear o incêndio e matar a Gloria e a filha dela – disse Katy. – É uma loucura, ele não faria mal a ninguém, muito menos a uma senhora de quem gostava e que admirava. O rosto de Edna empalideceu subitamente. – Lamento muito, dei-lhe um choque horrível – disse Katy, e pediu a Edna que se sentasse enquanto lhe fazia um chá. – O meu pai contou-me o que a senhora e a Gloria fazem. Na minha opinião, é muito mais provável que o fogo tenha sido posto por causa disso. Katy foi para a cozinha fazer o chá. Quando voltou, Edna já tinha um pouco mais de cor no rosto, mas continuava a parecer muito abalada. A sua sala de estar também tinha ficado parada nos anos 1950, com tudo vermelho ou cinzento e um enorme espelho côncavo com uma moldura a imitar raios de sol por cima do fogão de sala. Katy calculava que Edna teria uns quarenta e cinco anos. Embora fosse baixa e com excesso de peso, tinha um rosto bonito, com olhos escuros meigos e uma pele linda. – Não queria acreditar que a Gloria e a Elsie, a filha dela, tivessem perdido a vida no incêndio. – Edna pegou na chávena de chá, mas a voz e as mãos tremiam-lhe. – Ouvi dizer que tinha sido fogo posto, mas pensei que eram só boatos. E agora diz-me que o seu pai foi acusado! Porquê? A Gloria pensava que ele era um homem doce e bondoso. – E é – disse Katy. – Alguém fez os possíveis por o incriminar; a polícia encontrou uma lata de parafina no barracão dele. – Com certeza metade dos homens de Inglaterra tem parafina nos seus barracões? – Bem, o meu pai não tinha... não temos aquecedores a parafina. A última vez que ele usou a lata foi para gasolina, e estava coberta de impressões digitais. Havia também um tecido de cortinas, idêntico aos pedaços encontrados na casa incendiada. Penso que a pessoa responsável deve ser um dos maridos das mulheres que a senhora e a Gloria ajudavam. – Oh, meu Deus! – Edna pôs as mãos no pescoço, com um ar aterrorizado. – Eu sempre tive medo que um deles viesse atrás de nós. Dizia isso mesmo à Gloria, mas ela dizia que homens daqueles eram uns cobardes; batem nas mulheres, mas têm medo das outras pessoas todas. – Parece que ela estava enganada – disse Kay. – Vem comigo à esquadra contar o que sabe? – Minha cara, não posso fazer isso – disse Edna, ofegante. – Nunca mais seria capaz de dormir à noite. Katy sentou-se ao lado da mulher no sofá e tomou a sua mão esquerda entre as dela. – Edna, pelo que sei da Gloria, ela esperaria que a senhora ajudasse a polícia contando-lhes tudo o que sabe. Eles protegem- na. – Não posso, Katy, simplesmente não posso. Eu também tenho um marido violento. Se ele soubesse onde estou, vinha cá e matava-me. De repente, Katy compreendeu melhor aquilo por que Gloria, Edna e aquelas outras mulheres tinham passado. Sempre a olharem por cima do ombro para o caso de o marido vir atrás delas. E não era um medo irracional. Qualquer publicidade poderia alertar o homem. – Não estou a dizer que tivesse de falar em tribunal. Só teria de explicar à polícia o que a senhora e a Gloria faziam. Se a polícia souber que têm medo dos vossos maridos, protegem-nas. – Não acredite nisso, minha cara – disse Edna, indignada. – Todas tivemos de ir ao hospital com ferimentos e ossos partidos, e a polícia foi chamada. Limitam-se a levar os homens à esquadra, fazer-lhes um aviso severo e depois soltá-los, muitas vezes para eles voltarem direitos para casa e agredirem as mulheres outra vez. Não me admirava nada que a maior parte dos polícias também batessem nas suas mulheres. Acham que é o direito de um homem castigar a mulher se ela fizer alguma coisa de que ele não goste. – Por favor, Edna, eu vou consigo – suplicou Katy. – Se não quer ir à polícia, pelo menos fale com o advogado do meu pai. Tenho a certeza de que a Gloria quereria que o fizesse. – Não compreende, Katy – disse Edna, a esfregar as mãos. – A Gloria e eu conseguimos ajudar essas mulheres a começarem de novo depois de uma vida de terror mantendo o que fazíamos em segredo. Algumas dessas mulheres eram da classe média, não eram só mulheres pobres de zonas desfavorecidas e sobrecarregadas de trabalho. Como tal, eram casadas com homens inteligentes, com poder. O tipo de homem que tem contactos em toda a parte. O que me está a pedir poderia pôr em risco a segurança atual de imensas mulheres e dos seus filhos. Katy apercebeu-se subitamente de que a parceria de Edna e Gloria era algo especial. Eram mulheres corajosas e altruístas, que poderiam simplesmente ter mantido um perfil discreto, contentes por terem escapado à crueldade dos maridos, mas em vez disso tinham feito tudo para ajudar outras mulheres na mesma situação. A morte de Gloria e da sua filha era uma prova dos verdadeiros perigos de fazer tal trabalho. Como poderia ela agora esperar que Edna arriscasse a sua vida? 5 M r. Bonham telefonou a Katy para o escritório quando ela se preparava para ir para casa na segunda-feira. – Lamento muito – disse ele, confirmando o que ela receava. – Infelizmente, o juiz não concedeu a fiança, porque se trata de um crime grave. O seu pai pediu-me que lhe telefonasse; disse que tivesse coragem, e que acredita que a verdade acabará por vir ao de cima. Katy sentiu umas picadas nos olhos e saltaram-lhe as lágrimas. – Mas é tão injusto! – conseguiu dizer. – O meu pai é a pessoa mais honrada do mundo. Não teria fugido. – Penso que o juiz estava ciente disso, mas tinha de cumprir a lei. O seu pai vai para a cadeia de Lewes esta noite, mas pode ser transferido para a de Brixton, em Londres, já que é para essa que mandam a maior parte dos detidos a aguardar julgamento que são acusados de crimes graves. Pelo menos, será mais fácil para si visitá-lo quando se mudar para Londres. – Como é que ele vai suportar isso? – disse Katy, a soluçar. – Ele deu-lhe a resposta. Disse: «Recorde-lhe que estive no exército, e não será assim tão diferente como isso.» Também disse que a Katy devia aceitar o emprego em Londres e desfrutar da sua nova vida. – Com certeza ele não julga que eu vou esquecê-lo? – perguntou Katy, a erguer a voz com a agitação. – Não era isso o que ele queria dizer. Penso que queria dizer que a Katy devia divertir-se com a sua amiga, ser jovem e despreocupada, para variar. Está contente por a Katy ir finalmente sair de casa. Katy recompôs-se e contou-lhe que encontrara Edna e o que tinha sido dito. – Não me surpreende que ela se sinta assim; tem razão, não há praticamente nenhuma proteção para as mulheres que têm maridos violentos – disse Bonham. – Eu posso convocá-la a tribunal como testemunha, mas preferia que ela prestasse declarações de livre vontade. – Eu dei-lhe a minha morada e o meu número de telefone, e o do senhor doutor também, para o caso de ela mudar de ideias – disse Katy. – Talvez na sexta-feira, quando estiver a pensar no funeral a que não tem a coragem de ir, se sinta envergonhada e queira ajudar. – Sim, talvez – disse ele. – Compreendo totalmente porque tem medo; a amiga morrer num incêndio basta para aterrorizar qualquer pessoa. Conseguir que os homens sejam castigados pela sua crueldade para com as suas mulheres é a única maneira de mudar a nossa sociedade e transmitir a mensagem de que esses comportamentos não serão tolerados. * Rob telefonou de uma cabina na terça-feira à noite, e foi uma sorte Katy ter atendido, já que Hilda poderia não a ter deixado falar com ele. – Quem me dera ter telefonado no domingo, como costumava – foi a primeira coisa que ele disse, com a voz trémula de emoção. – Só recebi a tua carta hoje de manhã, e mal queria acreditar que tinham prendido o pai. Porque é que a mãe não me mandou um telegrama? – Ela ainda está naquela sua teimosia – disse Katy cautelosamente, porque tinha a certeza de que a mãe estava a escutar a conversa. – Sinto-me tão aliviada por teres finalmente telefonado. Eu só soube da detenção quando voltei de Londres. O pai não quis que eu fosse à audiência da fiança, como te disse na carta, mas, infelizmente, afinal a liberdade sob fiança não lhe foi concedida. Está na cadeia de Lewes, a aguardar julgamento. – Que pesadelo que isto é – disse Rob, e Katy tinha quase a certeza de que ele estava a chorar. – O que podemos fazer, maninha? Katy contou-lhe que tinha encontrado Edna e que esperava que ela falasse em defesa do pai deles. Disse-lhe também que o seu patrão fora muito compreensivo. – Mas já se tinha constado o que se passou – acrescentou. – Vi uns vizinhos a conversarem na rua, e pararam quando eu passei. Estavam claramente a cortar na casaca. – Como é que as pessoas podem ser assim? – perguntou Rob. – Ao longo dos anos, o pai ajudou tantos vizinhos. Têm a memória tão curta que se esqueceram da bondade e da generosidade dele? – É o Rob? – berrou Hilda nas costas de Katy. – Deixa-me falar com ele. Katy passou-lhe o auscultador. Não valia a pena dizer mais nada a Rob, contara-lhe tudo o que sabia, e talvez ele conseguisse convencer a mãe a ir visitar o pai. Foi para o andar de cima, a querer muito que Rob estivesse ali com ela. Algo lhe dizia que o incidente com os vizinhos mexeriqueiros não iria ser o único. Aconteciam tão poucas coisas nesta cidade que as pessoas gostavam de ter algo picante de que falar. Katy tinha quase a certeza de que até ao fim da semana todas as pessoas que conheciam o seu pai ficariam convencidas de que ele tivera um caso tórrido com Gloria. Talvez até suspeitassem que ela andara a chantageá-lo, como aquele estúpido daquele polícia insinuara. * Na quinta-feira à noite, Katy estava a pensar em ir para a cama cedo, porque prometera ir sair com Jilly na noite seguinte, a última da sua amiga em Bexhill, quando o telefone tocou. Katy foi ao hall de entrada para atender, porque a mãe resmungou que não devia ser para ela. Era Edna, e dava a sensação de que tinha estado a chorar. – Tenho andado a pensar na Gloria e no seu pai toda a semana – começou. – Quero ir ao funeral da Gloria amanhã, mas, como a morte dela foi noticiada nos jornais, tenho medo de quem possa estar lá. Só o facto de Edna ter telefonado já dava a Katy a esperança de que ela ainda pudesse vir a ajudar o seu pai. – Vai haver polícias a vigiar, à procura de suspeitos – disse Katy. – Por isso, a Edna estará em segurança. – Talvez seja assim, Katy, mas não me parece que compreenda completamente o que tanto a Gloria como eu passámos durante tantos anos, e porque sinto tanto medo. – Gostaria que me falasse disso – pediu Katy num tom delicado, consciente de que a voz de Edna tremia de emoção. – A Gloria era muito mais do que uma mera conhecida ou até mesmo uma amiga. Era mais como a irmã que eu nunca tive, porque passámos pelo mesmo horror – começou ela. – Sabe, nós conhecemo-nos nas urgências de um hospital no centro de Londres. Foi em 1950. Ambas tínhamos o tipo de vida confortável da classe média que outras mulheres invejam, mas nessa noite estávamos as duas gravemente feridas, porque tínhamos sido espancadas pelos nossos maridos, homens com estudos, profissionais liberais. «Eu tinha um braço partido e costelas fraturadas e quase tinha perdido a visão por causa de um murro. A Gloria tinha sido pontapeada por todo o corpo de tal maneira que mal conseguia manter-se de pé, e muito menos andar. Por um acaso, os nossos filhos não estavam connosco ao princípio da noite, quando fomos agredidas. Os meus dois estavam a passar a noite em casa de um amigo; os da Gloria estavam com os pais dela. Se não se desse o caso de os nossos filhos não estarem em casa, duvido que tivéssemos procurado assistência médica; teríamos feito o que fazíamos sempre, tratávamos nós próprias dos nossos ferimentos, com a esperança de que tudo corresse pelo melhor, ou esperávamos pela manhã seguinte para ir ao hospital quando os nossos filhos estivessem na escola.» Katy mal queria acreditar no que estava a ouvir. Não conhecia Edna suficientemente bem para formar uma opinião sobre ela, mas era verdadeiramente chocante pensar que Gloria, uma mulher sofisticada e bondosa, podia ter sido espancada pelo marido. – Oh, Edna – disse numa voz entrecortada –, isso é horrível. Mas por favor continue. – Não quero demorá-la, tenho a certeza de que tem coisas melhores para fazer do que escutar-me a remoer isto tudo, mas só quero que compreenda como tudo aconteceu. A Gloria e eu vivíamos a cerca de seis quilómetros uma da outra. Eu morava em Hampstead Garden Suburb, ela em Primrose Hill. Nessa noite, ambas tínhamos optado por ir a um hospital bastante afastado de onde vivíamos para não esbarrarmos com ninguém que conhecêssemos. Tinha chegado a esse ponto! – Mas porque é que haviam de se sentir envergonhadas, quando eram as vítimas? – Em geral, as pessoas não veem as coisas dessa maneira – disse Edna, com a voz trémula de emoção. – Pensam que devemos ter provocado os nossos maridos, que fizemos algo realmente mau. Ninguém compreende que a situação pode agravar-se por causa de algo tão simples e inofensivo como o jantar estar cinco minutos atrasado ou uma camisa não ter sido passada a ferro. – Então, devia viver sempre com medo? – Ambas vivíamos assim, sempre a tentar apaziguar os ânimos, a tentar amenizar as coisas para os nossos maridos não terem um acesso de raiva. Para falar a verdade, muitas vezes eu desejava a morte. A dele, de preferência, mas muitas vezes os espancamentos eram tão violentos que eu julgava que ia morrer. No entanto, é milagrosa a quantidade de maus tratos que o corpo humano consegue aguentar. Mas conhecer a Gloria naquela noite, compreender que os ferimentos dela tinham a mesma origem que os meus e que ela tinha mais ou menos a mesma idade que eu e provinha do mesmo meio social foi de certa forma reconfortante. Como se eu não fosse a única criatura patética incapaz de dar luta. Ela disse-me mais tarde que sentiu a mesma coisa, e, como tivemos de esperar muito tempo pelo tratamento, pusemo-nos a conversar. Abrimo-nos uma com a outra, na realidade. Foi a primeira vez que eu admiti a alguém que o meu marido, um gerente bancário, era um bruto. O marido da Gloria era dentista. Dois homens que tinham frequentado bons colégios, que eram uns privilegiados. Nem sequer podiam dar a desculpa de ter passado horrores na guerra. Ambos tinham tido trabalhos de secretária. «Seja como for, suponho que nos apercebemos de que tínhamos batido no fundo, ali sentadas cheias de dores, de rostos pisados, com as nossas roupas caras, e rodeadas por bêbedos com ferimentos provocados por brigas. A Gloria pegou na minha mão e disse: – Edna, termo-nos encontrado assim esta noite foi obra do destino. Acredito que significa que temos de nos pôr a nós e aos nossos filhos em segurança.» Edna fez uma pausa por uns momentos e Katy sentiu que ela estava a esforçar-se por não se ir abaixo, decidida a explicar-lhe o que Gloria e ela tinham significado uma para a outra. Katy queria ouvir essa explicação; não só sentia que tornar-se mais íntima desta mulher ajudaria o seu pai, mas também precisava de saber exatamente o que fizera com que alguém matasse Gloria e a sua filha. – Essa noite foi o ponto de viragem. – A voz de Edna era agora mais forte. – Não só nos tornámos mais resistentes e corajosas juntas, mas também falámos com a assistente social do hospital, que nos deu uma morada de alguém que ela pensava que poderia ajudar-nos. Katy estava abismada com o que ouvira. Se tivesse conhecido Edna em quaisquer outras circunstâncias ou em qualquer outro lugar ou tempo teria pensado que era uma mulher da classe média que nunca tivera um momento de dor ou de tristeza na sua vida. As aparências podiam ser muito enganadoras. – As duas tornaram-se como a senhora que as ajudou? – Por fim, sim, mas isso só foi daí a vários anos. Naquele momento, tínhamos de nos concentrar nos nossos próprios problemas. Daí a uns dias, a Gloria e eu fomos juntas falar com uma tal Miss Dunkin, em King’s Cross. Era uma senhora de idade, com pelo menos uns sessenta e cinco anos, bastante frágil, mas uma verdadeira heroína. Prestava assistência a mulheres vítimas de violência doméstica há anos, usando o seu próprio dinheiro para as ajudar a instalar-se numa nova vida. «Contou-nos que muitas das mulheres que ajudava não tinham dinheiro nenhum; muitas vezes, fugiam com os filhos só com a roupa que traziam no corpo. Felizmente, tanto eu como a Gloria tínhamos um pecúlio. Tivéramos a cautela de pôr algum de lado antes de casarmos, e tínhamos andado a desviar algum do dinheiro das despesas domésticas, até mesmo dos bolsos dos nossos maridos quando eles estavam bêbedos, para uma conta nos Correios. – Fez uma pausa e soltou uma gargalhada triste. – Quando confessámos isso uma à outra, desatámos a rir, porque sempre nos sentíramos culpadas por o fazer. No entanto, depois do que os nossos maridos nos tinham feito, não era nada!» – Então, essa tal senhora, Miss Dunkin, o que é que ela fez por si e pela Gloria? – Sabia de uma casa em Hastings onde poderíamos ficar durante duas semanas. Disse que era um pouco básica. Mas ela achava que, se fôssemos juntas, com os nossos filhos, dar-nos-ia tempo para pensar em qual seria o próximo passo. «Tinha razão quanto a ser básica. Se era! A latrina era fora e não tinha casa de banho, mas o sol brilhou durante as duas semanas inteirinhas e para nós foi um paraíso. Os nossos filhos adoraram, divertiram-se imenso na praia todos juntos. Para a Gloria e para mim, era estonteante, sentíamo-nos livres por fim. Já não tínhamos de ficar tensas quando os nossos maridos chegavam a casa, com medo de mais uma briga que acabasse em espancamento.» – Disseram a alguém para onde tinham ido? – Telefonámos aos nossos pais a dizer-lhes que estávamos num lugar seguro, mas não lhes dissemos onde, para o caso de eles acidentalmente deixarem escapar a informação quando os nossos maridos os contactassem, como sabíamos que aconteceria. Os nossos filhos também não podiam contactar os amigos. Não que parecesse importar-lhes. Nenhum deles perguntou pelo pai. – E quando as duas semanas chegaram ao fim? – perguntou Katy. – Nessa altura já tínhamos decidido que não íamos voltar para Londres. Encontrámos uma casa para arrendar ali perto, com casa de banho, matriculámos os nossos filhos numa escola da zona em setembro. Eu arranjei emprego num hotel e a Gloria numa loja em Hastings. Partilhávamos tudo: os nossos filhos, a comida e o pouco dinheiro que tínhamos. Vivemos assim durante quatro anos, e éramos todos muito felizes. – Como é que acabaram ambas por viver em Bexhill, as duas em boas casas? – perguntou Katy. Como imaginava que a única maneira de ter uma boa casa era casar, pensou que talvez as duas mulheres tivessem conhecido alguém. – A Gloria foi a que teve sorte, o marido morreu subitamente de um ataque de coração. Ela disse que não devia gabar-se de ter sorte, mas eu disse-lhe que se gabasse à vontade, ele merecia morrer, depois de tudo o que lhe tinha feito. Seja como for, ela herdou a casa e tudo o resto. Ficou com posses para comprar a casa em Collington Avenue e mais tarde para abrir a loja de roupa. Quanto a mim, arrendei a pequena casa a que a Katy veio e arranjei emprego como assistente social no hospital. – Irónico, quando foi uma assistente social que a ajudou. – Não foi uma coincidência. Eu sempre soubera que as assistentes sociais lidavam com muitos problemas sociais, e senti que estava talhada para esse trabalho. Na verdade, era enfermeira diplomada antes de me casar. Fiz mais um par de cursos para obter as habilitações extra de que necessitava. A Gloria e eu tivemos imensa sorte quando comparadas com outras mulheres na nossa situação, pudemos começar de novo. Nem todas as famílias dão o mesmo apoio que as nossas nos deram; muitas pessoas ainda acreditam que o marido tem o direito de disciplinar a sua mulher, e que ela devia aguentar e cara alegre. – Então, planearam procurar mulheres vítimas de violência doméstica. – De modo nenhum, pelo menos não conscientemente. Mas há alguns anos, no hospital, fui chamada às urgências para falar com uma mulher, porque o pessoal de enfermagem disse que ela estava muito ferida e era necessário encontrar alguém para olhar pelos filhos dela. Tinha um bebé de seis meses nos braços e uma criança pequena agarrada às abas do casaco e o seu rosto estava tão ensanguentado que não se conseguia ver-lhe as feições. Necessitava realmente de ser hospitalizada, mas isso significaria que os filhos seriam entregues aos Serviços Sociais. Eu já tinha visto outras mulheres neste estado serem tratadas e irem para casa, como eu própria no passado, porque não suportavam a ideia de lhes tirarem os filhos. «Por isso, soube de imediato o que tinha de fazer; ajudar aquela mulher como eu própria tinha sido ajudada. Levei-a comigo para casa, a ela e aos filhos. Telefonei à Gloria e concordámos que precisávamos de fazer aquilo. Alguém tinha de o fazer.» Katy apercebeu-se de repente que, como o marido de Gloria estava morto, a suspeita da responsabilidade do incêndio recaía no seu pai. Edna não se importava de falar sobre si mesma e Gloria, mas Katy conseguiria levá-la a aceder a ajudar Albert? – Isso foi muito nobre da sua parte, Edna – disse. – Não, não foi nobre, ambas precisávamos de o fazer. Frequentemente, as mulheres ficavam um dia ou dois e depois voltavam para casa. Ficava sempre furiosa quando elas diziam: «Mas eu amo-o», como se isso fosse uma boa razão para permitir a alguém espancar-nos e intimidar-nos. Mas de vez em quando encontrávamos uma mulher que estava realmente pronta a começar de novo; só precisava de encorajamento e de lhe mostrarmos como obter apoio da Segurança Social e um lugar para viver até poder voltar a trabalhar. Fez uma pausa, e Katy pôde ouvir a sua respiração pesada. – Mas, Katy – começou de novo –, quando os homens que batem nas mulheres se veem sozinhos, sem alguém a quem moer de pancada, não conseguem funcionar. Movem o céu e a terra para encontrarem a sua mulher. Dizem que é por amor. Até acreditam nisso do fundo do coração, a tal ponto que chegam a convencer as outras pessoas, e esse é o momento de perigo. Nem a Gloria nem eu alguma vez tentámos obter o divórcio, porque isso teria implicado que os nossos maridos descobrissem o nosso paradeiro. Já se passaram quinze anos, mas continuo a tremer só de pensar que o Graham pode vir bater-me à porta. Livrou-se de me pagar uma pensão de alimentos, ficou com a nossa casa e a maior parte das pessoas diria que teve muita sorte. Mas sei que ele nunca verá as coisas dessa maneira. Neste momento, deve achar-se o mais prejudicado por eu lhe ter levado os dois filhos. Não importa que muitas vezes também batesse neles e eles nunca mais queiram vê- lo. Por esta altura, já deve ter reescrito a história toda, e acredita fervorosamente que é a parte lesada. E aposto que ainda anda a tentar encontrar-me. Katy pensou que era a coisa mais triste que alguma vez ouvira: uma mulher adulta cheia de medo de um homem que em tempos prometera amá-la e protegê-la, o pai dos seus filhos. – Entendo o que quer dizer, Edna, e compreendo totalmente porque se sente assustada. Mas tem de ir ao funeral da Gloria amanhã. Imagina como a Gloria ficaria triste por a Edna não estar lá, depois de tudo aquilo por que passaram juntas? Não se vai destacar das clientes e de outras amigas dela. Estará em segurança. Houve alguns momentos de silêncio antes de Edna falar outra vez. – Sabe, Katy, soa muito como a Gloria, ela conseguia sempre convencer-me. Naquela primeira noite no hospital, eu teria voltado para o Graham se não fosse ela. Manteve-me firme até fazermos os planos para ir para Hastings. Não me deixou vacilar. – Bem, pense nisso esta noite. E amanhã segrede-lhe que eu também iria ao funeral, mas receava que os filhos dela não me quisessem lá. Edna suspirou. Soava como resignação aos ouvidos de Katy. – Está bem, eu vou – concordou. – Obrigada, minha cara, por me escutar tanto tempo. Vem ver-me antes de ir para Londres? – Adorava – disse Katy, pensando que seria uma boa altura para voltar a pedir a Edna que ajudasse o seu pai. – Mantenha-se forte amanhã. – Quem era? – berrou Hilda quando Katy pousou o auscultador. – Era só uma pessoa do trabalho – respondeu Katy. Sentia-se emocionalmente esgotada e não tinha a mínima intenção de partilhar a história de Edna com a mãe. Hilda nunca compreenderia o que levaria uma mulher a arriscar a sua vida para ajudar outras pessoas. Foi para a cama, e, deitada no seu quarto quente e bonito, não conseguiu parar de pensar nas mulheres que se viam no dilema de manterem o silêncio sobre a violência de que eram vítimas, para darem aos filhos uma vida segura. – Quero fazer alguma coisa para ajudar – murmurou para consigo ao apagar a luz. – Mas primeiro tenho de encontrar alguma prova sobre quem realmente matou a Gloria. * Michael Bonham passava facilmente despercebido entre as pessoas reunidas na igreja de St. Peter’s para assistirem ao funeral de Gloria. Era mais um dia muito frio e cinzento, e muitas das mulheres usavam casacos de peles; ele viu pelo menos três de vison. Dado o que sabia agora sobre Gloria, não era propriamente surpreendente que houvesse tão poucos homens. Cerca de oito com idade para estarem aposentados só tinham vindo, claramente, porque as suas mulheres o esperavam deles. Contou cerca de dez homens de negócios – talvez fornecedores da loja dela, porque pareciam conhecer-se uns aos outros – e dois outros que tinha a certeza que eram polícias à paisana em serviço. Mas na sua maioria os presentes eram mulheres. Chegaram alguns outros casais mais velhos; Bonham supunha que eram vizinhos pela maneira como reagiam uns aos outros. A seguir chegaram dois carros funerários, com outro carro atrás deles. Bonham viu os homens da agência funerária tirar cuidadosamente os dois caixões cobertos de flores e pô-los em carretas, e nesse momento consciencializou-se da escala da tragédia, uma mãe e uma filha consumidas pelo fogo. A jovem agarrada ao braço do seu marido igualmente jovem, com os olhos inchados de chorar, era claramente a filha que restava. Bonham sabia que se chamava Janice Plowright e que tinha dois filhos pequenos, embora não estivessem ali com ela. Olhando à sua volta, viu chegar um outro jovem. Era magro, tinha o cabelo castanho-escuro, despenteado e demasiado comprido e usava um fato escuro que parecia demasiado grande para ele. Estava sem fôlego, como se tivesse vindo a correr. Bonham pensou que devia ser Paul Reynolds, o filho de Gloria que andava na universidade em Manchester, porque se dirigia para Janice e o rosto dela animou-se um pouco ao vê-lo. Bonham suspeitava que o fato era emprestado; nenhum jovem de vinte e poucos anos preveria que a sua mãe ia morrer e teria algo adequado para usar numa ocasião como essa. O serviço fúnebre foi breve. Ficou bem claro que o pastor não conhecia Gloria Reynolds nem Elsie, a sua filha, e que não lhe tinha sido fornecida muita informação sobre o carácter ou a personalidade delas. O filho de Gloria tentou dizer umas palavras, mas foi-se abaixo pouco depois de começar a falar e voltou para o seu lugar ao lado da irmã. O hino escolhido foi «Love Divine, All Loves Excelling», e, pelo que Bonham sabia sobre Gloria, era apropriado. Ela ajudara outras mulheres, não por dinheiro, mas porque era uma mulher bondosa e solidária. Não admirava que Albert passasse por casa dela frequentemente para a ver. Bonham pensava que ele próprio o teria feito, se a conhecesse. Albert tinha dito pouco sobre a sua mulher, mas Bonham não conseguia recordar-se de nenhum caso anterior em que a mulher do acusado não telefonasse ou aparecesse no seu escritório para tentar ajudar a provar a inocência do marido. Isso, para ele, dizia muito sobre o carácter dela. Bonham sentia-se agora plenamente convencido de que Albert estava inocente do crime. Tudo o que tinha de fazer era encontrar alguém ou alguma coisa para o provar à polícia. Estava tanto frio, ali de pé junto à sepultura, que muitas das pessoas se foram embora mal o enterro terminou. Bonham ficou a ver a filha, Janice, e o filho, Paul, deixarem-se abraçar pelas pessoas, e quando a maior parte das pessoas já tinha partido, aproximou-se de Paul. – Posso apresentar-lhe as minhas condolências? – disse, apertando a mão do jovem. – Sou Frank Chivers. Infelizmente, não conhecia muito bem a sua mãe, mas a minha falecida mulher gostava muito dela, e sei como se sentiria triste e chocada com a morte da Gloria. Sabia que era um pouco desonesto mentir sobre quem era na realidade. No entanto, se queria salvar Albert, tinha de se aproximar um pouco mais da família. – Foi muito simpático da sua parte ter vindo – disse Paul, com os seus olhos de um castanho-esverdeado marejados de lágrimas. – A minha irmã combinou reunirmo-nos no pub Black Swan. Espero que nos faça companhia. Os modos do rapaz eram impecáveis e fizeram Bonham sentir-se envergonhado por estar a enganá-lo. – Faço todo o gosto, obrigado – disse. Cerca de vinte pessoas compareceram na sala privada do Black Swan. Estava uma lareira acesa e o espaço dava uma sensação acolhedora; só algumas pessoas se sentaram, e todas as outras se mantiveram de pé em grupos, a aceitarem cálices de xerez da empregada que circulava com uma bandeja. As conversas faziam- se em voz baixa. – O meu irmão disse-me que a sua falecida mulher conhecia a nossa mãe. Bonham sobressaltou-se ao ver Janice a seu lado, porque não a sentira aproximar-se. – Sim, é verdade, só gostaria de também ter conhecido a Gloria, dá a impressão de que era uma pessoa encantadora. – Era bondosa e generosa, sempre pronta a ajudar os outros – disse Janice. – Não sei como o Paul e eu vamos lidar com a perda dela e da Elsie. Dá a impressão de que o nosso mundo desabou. – O que sentiu ao saber que a polícia tinha prendido o vizinho dela, o Albert Speed? Bonham aguardou, à espera de uma resposta cheia de veneno e raiva. No entanto, para sua surpresa, Janice abanou a cabeça. – É uma tolice. O Albert podia ter pegado fogo à casa tanto quanto eu. Ele e a minha mãe eram grandes amigos; sei que ela gostava imenso dele, e tinha a impressão de que ele sentia o mesmo. – Nem sempre se pode ter a certeza de que duas pessoas sentem o mesmo – disse Bonham cautelosamente. – Vi-os juntos em pelo menos dez ocasiões, e pode acreditar quando lhe digo que eram grandes amigos. Ele era bom para a minha mãe, um ótimo ouvinte. Fazia-lhe pequenos arranjos na casa, e ela fazia-o rir, algo que não penso que ele tivesse muito em casa. Na minha opinião, a polícia cometeu um erro enorme. Bonham engoliu em seco. Depois do que a jovem dissera, sabia que tinha de confessar quem era na realidade. – Concordo totalmente – disse. – Mas, em vista do que acabou de dizer, tenho de admitir a verdade sobre quem sou. – Conseguiu explicar-lho em poucas palavras bem escolhidas, mas o choque no rosto dela fê-lo sentir-se envergonhado por ter tentado esconder a sua verdadeira identidade. – Tem razão, Janice, o Albert Speed é um homem bondoso e pacato, e gostava muito da sua mãe. Mas espero que consiga compreender porque senti que tinha de vir aqui hoje e conhecê-la a si e ao seu irmão? E porque não podia dizer logo que era o advogado de defesa do Albert? – Devia ter vergonha. Foi desonesto da sua parte – disse ela severamente. – Mas, como havia polícias no serviço fúnebre a vigiarem, tanto o meu irmão como eu sentimos que até mesmo eles sabem que prenderam o homem errado. – Também preciso de lhe dizer que a Katy, a filha do Albert, queria vir apresentar as suas condolências hoje. Ela gostava muito da sua mãe – disse Bonham –, mas não se atreveu a vir para o caso de isso vos ofender. – Sim, a minha mãe também me falou dela. Disse que a Katy era uma querida e que, por sorte, saía ao pai, não à bruxa da mãe. Bonham sorriu discretamente ao ouvir a palavra bruxa. – Preciso de insistir com a polícia para que procurem com mais afinco o verdadeiro assassino da sua mãe – disse. – Se a senhora ou o seu irmão puderem ajudar de alguma maneira, ficar-lhes-ia muito grato. – Está a par daquilo em que a minha mãe estava envolvida? – Sim, estou – respondeu Bonham. – Bem, tanto ao Paul como a mim parece-nos que só pode ter sido um desses homens malvados. – Olhou para Bonham com uma expressão de desafio. – Ainda bem que o nosso pai morreu, ou seria o principal suspeito. – A sua mãe alguma vez disse ter visto uma pessoa suspeita a rondar a casa? – Não, mas não nos diria, sempre tentou proteger os filhos. Nunca falava sobre a vida que levou com o nosso pai e por isso nós nunca lhe dissemos o quanto todos recordávamos ainda dessa fase. – Antes do incêndio, durante a época do Natal, ela parecia preocupada com alguma coisa? – Não, de modo nenhum. Estava feliz como sempre, encantada por irmos os três passar o Natal lá a casa. Não se poupou a despesas nos enfeites de Natal e nos presentes, porque a loja estava a dar bons resultados. Falámos em alugar uma casa de férias no Devon para todos em agosto, e ela disse que ia a Londres em fevereiro para comprar mercadoria. Não se poria a fazer planos se estivesse preocupada com alguma coisa. – Estaria disposta a depor a favor do Albert se ele chegar a ser julgado? Esperou. Era neste ponto que até mesmo os apoiantes mais fervorosos recuavam. – Sim, com todo o gosto – disse ela, sem qualquer hesitação. – Tanto a Elsie como eu sabíamos que o Albert era casado, mas tínhamos a secreta esperança de que deixasse a mulher e talvez ele e a nossa mãe pudessem ser felizes juntos. – Eles andavam a ter um caso? – perguntou Bonham num tom delicado. Sabia que uma pergunta dessas tinha a probabilidade de ser ofensiva. – Não, não andavam. O Albert era demasiado correto para tal coisa, e penso que a minha mãe talvez estivesse demasiado traumatizada para ter um caso, de qualquer modo. Mas ficava toda animada quando ele a visitava. Eu nunca a tinha visto reagir assim com ninguém. – Obrigado, Janice – disse ele. – É encantadoramente direta, e, se me der a sua morada, gostaria de a contactar daqui a uns dias. Entretanto, lamento imenso a sua trágica perda, deve ser praticamente impossível aceitá-la. Mas também devo dizer que admiro realmente a sua força, a sua coragem e a sua humanidade. Poucas pessoas pensariam na provação do Albert numa altura destas da sua vida. A senhora, os seus filhos e o seu irmão estarão todos nos meus pensamentos nos próximos meses. – Quer falar com a amiga da minha mãe, a Edna, antes de se ir embora? – perguntou Janice, com os olhos cheios de lágrimas. – É a pessoa que conhece as histórias de todas as mulheres que ela e a minha mãe ajudaram. 6 K aty olhou à sua volta antes de parar junto à cancela de Edna. Era o fim da tarde do dia do funeral, e pensava que, se alguém ia espiar Edna, esta noite era o momento em que o faria. Mas a rua estava deserta; o frio era demasiado para as pessoas andarem fora de casa, e ela bateu à porta. Quando Edna veio abrir, via-se bem que tinha estado a chorar. Não só por ter os olhos estranhamente vermelhos, mas também porque o luto e o desânimo estavam estampados em todas as linhas do seu corpo. Mal a porta foi fechada, Katy pôs os braços à volta dela e abraçou-a. – Deve ter sido horrível para si – disse, a reconfortá-la. Edna encostou-se a ela, a sacudir os ombros com o choro. – Mas aposto que ficou contente por ter ido, e tenho a certeza de que os filhos da Gloria se sentiram melhor por a ter lá. – Oh, Katy! – disse Edna ao fim de uns momentos. Endireitou-se e limpou os olhos. – Senti-me bastante orgulhosa de mim própria por me aguentar o dia todo, mas há pouco, quando a minha Claire telefonou, não consegui conter-me mais. Ela não pôde vir hoje, e o meu filho está no estrangeiro. A Gloria era como uma segunda mãe para os dois. Assim como eu para os filhos da Gloria. A Claire sentiu muito esta perda, e queria falar sobre o passado. – Sobre o pai? Edna abanou a cabeça. – Oh, não, nunca falamos sobre ele! Falou principalmente sobre os bons momentos que partilhámos com a Gloria e os filhos dela. Disse que o que mais a magoa é nunca ter dito à Gloria o que sentia por ela, e agora é demasiado tarde. Sei exatamente o que a Claire quer dizer; sinto o mesmo, e todos aqueles bons momentos foram- se para sempre. Passaram para a sala de estar de Edna, na parte de trás da casa, e sentaram-se, Katy no sofá e Edna num cadeirão. – O advogado do seu pai foi ao funeral – disse Edna. – Um homem muito simpático. A Janice teve uma conversa bastante longa com ele; confessou-me antes de eu me vir embora que tanto ela como a Elsie teriam gostado que o Albert se divorciasse e casasse com a mãe delas. A Gloria e o Albert não andavam a ter um caso, espero que saiba isso? Eram só bons amigos. A Janice tenciona fazer um depoimento a dizer isso mesmo a favor do seu pai. Também disse que eu tenho de ajudar de todas as maneiras possíveis. Katy teve uma enorme sensação de alívio. – Mas como se sente em relação a isso? Ainda se sente assustada? – Por muito que quisesse que Edna apoiasse o pai, não lhe agradava a ideia de a senhora se sentir amedrontada. – Sim, sinto-me assustada, mas tenho de ajudar. Todos concordamos que o Albert nunca seria capaz de pegar fogo à casa; não pode ser castigado por uma coisa que nunca poderia ter feito. Empenhámo-nos em salvar mulheres de homens maus, por isso temos de dar o nosso apoio aos bons. Vou à esquadra amanhã. E, entretanto, há uma coisa que quero dar-lhe. Perplexa, Katy viu Edna levantar-se do cadeirão, afastá-lo da parede, abrir o fecho do forro e vasculhar lá dentro. Tirou um bloco de apontamentos de capas cinzentas. – Provavelmente, pensa que sofro de paranoia, Katy, mas as informações contidas neste bloco poderiam fazer com que certas pessoas sofressem. – O que tem aí? – perguntou Katy. – Tem algo a ver com as mulheres que ajudou? Se sim, não devia levá-lo à polícia? – Se eu sentisse que podia confiar em que a polícia não entraria a matar, entregava-o. Mas não posso. Sim, tem a ver com as mulheres. De facto, é um registo completo de quem elas são, onde viveram em tempos, o que os maridos lhes faziam e onde elas estão agora, pelo menos aquelas de quem ainda sabemos. No entanto, nas mãos erradas poderia causar imensos problemas. – Abriu o bloco de apontamentos na primeira página. – Veja aqui, Susan Mitchell, de Highgate, dois filhos, com quatro e seis anos. Fui buscá- la, a ela e aos filhos, à porta da estação de metro de Camden Town em agosto, há dois anos. Estava de canadianas. Quatro semanas antes, o marido tinha-a empurrado pelas escadas abaixo e ela partiu a perna. A seguir, ele pontapeou-a por todo o corpo e deixou-a deitada no chão do hall de entrada, com dores terríveis e completamente indefesa, e saiu. A filha de seis anos foi chamar uma vizinha, que levou a Susan ao hospital. A Susan teve a sorte de a nossa amiga nesse hospital lhe dar o nosso contacto. Ela não nos contactou de imediato, só quando o marido voltou a bater-lhe e lhe partiu umas costelas. Ela estava a tentar impedi-lo de bater no filhinho! – Oh, Edna! – exclamou Katy. – Foi o facto de ele se virar contra as crianças que a fez compreender que tinha realmente de escapar – disse Edna. – É muitas vezes isso que desencadeia a decisão final. Como lhe disse ao telefone, muitas mulheres ficam com os maridos e aguentam maus tratos terríveis, porque têm filhos e não têm para onde ir. Normalmente, também não têm dinheiro. Quase todas as mulheres que ajudámos viviam na zona noroeste de Londres, como a Gloria e eu. Vieram ter connosco através do nosso contacto no hospital Whittington, em Archway. – Edna voltou a olhar para o bloco de apontamentos. – Trouxe a Susan para cá; ficou duas noites em casa da Gloria antes de eu arranjar um alojamento temporário para ela e os filhos. Quando as fraturas da perna e das costelas sararam, ela já tinha tido a sorte de arranjar emprego como governanta interna numa casa onde podia viver com os filhos. Tive notícias dela no verão passado, e deu-me a impressão de estar muito bem instalada e feliz, na Escócia. Tal como a Gloria e eu, não tinha tentado obter o divórcio ou pensão de alimentos para os filhos, por medo do marido. – Então este bloco de apontamentos contém todos os pormenores de todos os casos? – perguntou Katy. Compreendia que se a polícia mostrasse as informações sobre Susan ao marido dela era provável que ele fosse imediatamente buscá-la. – Sim, mas nem todas as mulheres têm um final feliz como a Susan. Vai achar perturbante quando se aperceber de quantas mulheres acabam por voltar para os maridos. Algumas pessoas afirmam que elas são mulheres fracas ou até que necessitam da excitação de viver com um homem instável. Eu não me atrevo a formular um juízo sobre essa matéria. Há tantas razões diferentes para voltar para uma zona de guerra como há meses no ano. Mas a Gloria e eu não tardámos a descobrir que não podíamos salvar todas as mulheres. – Entregou o bloco de apontamentos a Katy. – Faça o que quiser com isto; só lhe peço que espere até eu me ir embora. Vou fazer o meu depoimento sobre o Albert na segunda- feira e depois parto daqui num prazo máximo de duas semanas. – Vai-se embora? – exclamou Katy. Não estava a contar com isso. – Sim, Katy, sem a Gloria sinto-me perdida e muito só. Quero estar mais perto da Claire e dos meus netos, e por isso avisei hoje no emprego que me ia embora. Como esta casa é arrendada, não há nada que me prenda a Bexhill. Katy mal sabia o que dizer. Compreendia que o medo e a perda da sua querida amiga eram razões suficientemente boas, mas, de algum modo, pensara que Edna dava demasiado valor ao seu trabalho para o abandonar. Olhou para o bloco de apontamentos que tinha nas mãos. – Então, desejo-lhe boa sorte na sua nova vida – disse. – Vou fazer o que me pede e esperar até a Edna se ir embora. – Também lhe desejo todas as felicidades em Londres – disse Edna com um sorriso. – Saia e divirta-se à grande; faça tudo o que a Gloria e eu devíamos ter feito em vez de casarmos com homens violentos. * Michael Bonham telefonou a Katy para o escritório na segunda- feira à tarde para lhe contar que Edna tinha ido à esquadra nessa manhã prestar um depoimento. – Disse que Mrs. Reynolds tinha o Albert em muito boa conta, assim como os filhos dela, e que é completamente ilógico pensar-se que ele pegaria fogo à casa dela. – Isso quer dizer que o meu pai vai poder sair da prisão? – Receio bem que não imediatamente, mas devo conseguir obter a libertação dele sob fiança na próxima audiência. Katy gostaria de poder falar-lhe sobre o bloco de apontamentos que Edna lhe dera. Ele poderia levá-lo à polícia para que os maridos mencionados fossem investigados. Mas fizera uma promessa a Edna e tinha de a cumprir. Além disso, ainda não o lera todo, e mais uns dias não fariam grande diferença. * Katy sentiu-se bastante triste no seu último dia na firma Franklin, Spencer e Marshfield. Levou uma caixa com bolos para partilhar, e sentiu-se tocada por toda a gente parecer lamentar genuinamente que ela se fosse embora. – Sempre julguei que ia ficar aqui até ter o seu primeiro filho – disse Mrs. Randolph, da Contabilidade. – Não vai ser a mesma coisa sem si. – Já eram horas de expandir os meus horizontes – disse Katy, abraçando-a. – Mas vou sentir saudades dos seus cuidados maternais. De facto, apercebia-se de que sentiria saudades de todos os seus colegas de trabalho, até mesmo do sério Mr. Marshfield. Mrs. Randolph podia ser a sua mãe-substituta, mas todos os outros elementos do pessoal, sem exceção, tinham qualidades de que ela ia sentir a falta. Divertira-se a ir às compras com as colegas jovens ou a ir beber um copo depois do trabalho. Recebia conselhos amigáveis dos advogados e dos advogados estagiários. Rachel, a telefonista, fazia-lhe a manicure durante o intervalo para o almoço. Aprendera muito a trabalhar ali, com muitos momentos de galhofa e também de frustração e de irritação. Houve alturas em que desatou a chorar e foi reconfortada por alguém, e havia também as conversinhas, que lhe permitiam ficar a conhecer melhor cada uma das pessoas semana após semana. Só esperava que o seu novo emprego se revelasse tão bom como este. O pessoal tinha organizado uma coleta para ela, e, juntamente com um grande postal a desejar-lhe «Boa Sorte no Teu Novo Emprego», assinado por todos, tinham-lhe comprado um nécessaire de pele vermelha para os seus produtos de maquilhagem e de beleza. – Se a qualquer momento voltar a Bexhill durante a semana, dê cá uma saltada para nos ver a todos – disse Mr. Marshfield quando ela ia a sair. – E se o novo emprego não resultar, não hesite em pedir- me outra recomendação. * – Já vou, mãe – disse Katy no sábado de manhã. A sua mala estava no hall de entrada, mas a mãe continuava a limpar as janelas da cozinha, a sua maneira de mostrar que não estava minimamente preocupada ou triste por a sua filha ir sair de casa. – Telefono-te no domingo – acrescentou Katy. Olhou para a mãe, empoleirada no escadote, a sua figura delgada rígida, como se estivesse a usar todos os ossos do corpo para demonstrar a sua indignação com a partida da filha. – Posso estar na igreja – retorquiu Hilda. – Então, insisto até tu atenderes – disse Katy. – Tu não me enganas, mãe, sei que estás triste por eu me ir embora. Mas não sejas assim, ou ainda me perdes para sempre. Katy virou-se para a porta, à espera de uma resposta zangada, mas, para sua surpresa, ouviu a mãe descer do escadote. – Não consigo evitar que a minha preocupação pareça reprovação – disse. Quando Katy se virou para olhar para ela, viu a expressão no rosto de Hilda suavizar-se; os lábios tremiam-lhe, como se estivesse prestes a chorar. Aproximou-se da mãe com alguns passos rápidos e pôs os braços à volta do corpo dela. Hilda manteve-se rígida, mas não se afastou. – Eu vou ficar bem, mãe – disse Katy docemente, acariciando-lhe a face. – Os passarinhos têm de acabar por sair do ninho. – É melhor ires ou ainda perdes o comboio – respondeu a mãe. Para Katy, aquilo foi tão bom como um beijo ou a sua mãe dizer: «Espero que te corra tudo bem.» * Katy chegou à casa de Joan e Ken em Londres mesmo antes da uma da tarde. Jilly veio a correr pelas escadas abaixo para a receber, a saltitar com a excitação. Estava encantadora num vestido de malha azul-turquesa que Katy nunca vira, com o cabelo louro preso com uma fita da mesma cor. – Julguei que nunca mais chegavas – disse Jilly, ofegante. – Arranjei um apartamento, mas só o reservam até às duas da tarde. Por isso, deixa aqui a mala e vamos já lá. Eu digo-te como é no caminho. Enquanto se apressavam a ir de Hammersmith na direção de Chiswick, Jilly explicou que alguém com quem trabalhava lhe falara do apartamento. – É já aqui abaixo, perto de Ravenscourt Park. A Jackie, a rapariga que vive lá agora, vai para a Austrália no fim do mês com a colega de casa, e pediu ao senhorio se podíamos ser as primeiras a ir ver o apartamento para ele não ter de pôr um anúncio. Vi-o ontem à noite e é mesmo giro. Só tem um quarto, e é bastante pequeno, mas não é escuro e malcheiroso. A mobília também é boa. Katy ficou encantada ao saber que a renda era só doze libras por semana, uma verdadeira pechincha. – Parece que o senhorio, Mr. Sawyer, gosta de inquilinos a longo prazo que olhem pela casa para ele não ter de se preocupar com isso. A Jackie disse-lhe que nós éramos muito sossegadas e bem- comportadas, por isso é melhor que tentemos parecê-lo – disse Jilly com uma risadinha. – Quero dizer, eu tenho trabalhado tanto esta semana que quando chego a casa só me apetece cair na cama. Shaftesbury Road era ladeada por árvores e o número 8 era uma das casas mais pequenas, em banda. O apartamento que tinham vindo ver ficava no rés do chão, com uma sala de estar de um tamanho razoável com vista para a rua. O quarto por trás era mais pequeno, mas suficientemente grande para dois divãs e um enorme armário de parede. A cozinha era ao fundo do corredor, e a casa de banho ficava para lá de uma porta que dava para o jardim das traseiras. Jackie, a amiga de Jilly, mostrou-lhes o apartamento enquanto Mr. Sawyer estava a falar com a inquilina do andar de cima. – Ele vai adorar que a Katy seja secretária legal nos Inns of Court; gosta que os inquilinos tenham empregos finos – disse Jackie com um sorriso trocista. – Eu disse-lhe que era responsável por aquisições no Harrods quando vim ver o apartamento. A verdade era que trabalhava num café nas redondezas, mas ocasionalmente «adquiria» coisas no Harrods. Mais tarde, quando arranjei um emprego melhor, disse-lhe que tinha saído do Harrods porque um dos empregados estava sempre a atirar-se a mim. Por sorte, a minha colega de casa é florista em Victoria, e Mr. Sawyer acha que isso é bastante chique, porque fornecem flores ao palácio. Katy via porque é que Jilly achava o apartamento fantástico. A mobília e a decoração eram muito parecidas com as da casa dela em Bexhill, igualmente desleixadas e usadas. Mas Katy sempre se sentira feliz na casa da amiga, e sabia que por doze libras por semana não conseguiriam arrendar uma mansão. Além disso, poderiam dar-lhe um jeito – e não cheirava a mofo nem era escura. Daí a meia hora, as duas amigas subiam King Street depois de assinarem o contrato de arrendamento a começar no início de março e de pagarem duas semanas de renda adiantadas. Como Mr. Sawyer vivia longe, em Brentford, não andaria sempre a aparecer para as vigiar, e as duas raparigas que viviam no andar de cima eram mais ou menos da idade de Jilly e Katy. Por isso, não se queixariam se elas fizessem um pouco de ruído. – Vamos ao Hammersmith Palais hoje à noite? – sugeriu Jilly. – Temos de fazer alguma coisa para comemorar. * Só no domingo à tarde, depois do almoço, é que Katy finalmente pôs Jilly a par dos últimos desenvolvimentos da situação em Bexhill. Estavam no andar de cima, no quarto, deitadas nas respetivas camas, ambas ainda um pouco cansadas, porque só tinham chegado do Palais à uma da manhã. Tinham passado uma noite divertida, dançaram com dúzias de homens diferentes e beberam demasiado. Até combinaram um encontro com Rob e John, dois tipos com um ar bastante empenhado que trabalhavam na Bolsa. Nem uma nem outra tinha ficado embeiçada pelo seu par, mas os jovens eram apresentáveis, tinham boas maneiras e ofereceram-se para as levar ao melhor restaurante chinês no Soho. Como Jilly lembrou: «Porquê gastar o nosso dinheiro a explorar os sítios finos quando podemos arranjar um par de tipos para nos mostrarem tudo?» Previsivelmente, Jilly ficou realmente chocada com as novidades de Katy. Sabia que Mr. Speed tinha sido preso, mas não que Katy guardara segredo de uma parte tão grande da história. – Então, como é que o teu pai se está a aguentar? – perguntou Jilly. – E soubeste como correu o funeral de Mrs. Reynolds? Katy contou-lhe uma versão resumida de tudo o que tinha acontecido, mas não lhe revelou que tinha o bloco de apontamentos em sua posse. Não pensava que fosse aconselhável falar a alguém sobre o assunto até ter tido tempo para refletir devidamente. – Não consigo perceber porque é que a Edna está tão assustada – disse Jilly, a franzir a testa com perplexidade. – OK, talvez tenha sido um tresloucado que pegou fogo à casa de Mrs. Reynolds. Mas não imagino esse mesmo tresloucado a atacar outra pessoa também. – Pelo que ela me contou sobre os danos físicos que aqueles homens tinham infligido às mulheres que ela e a Gloria ajudavam, não me admiraria se eles também fossem atrás da Edna. De facto, era ela quem tinha mais visibilidade, porque ia buscar as mulheres no carro dela. – Então vai-se embora de Bexhill? Pobre mulher, imagina só, na idade dela ter de começar do zero noutra cidade. Jilly adormeceu daí a uns minutos. Ali deitada, acordada, Katy pôs-se a pensar no que a amiga dissera. Pobre Edna, tivera tantos desgostos e ajudara tantas pessoas. No entanto, quem estava lá para a ajudar agora, quando ela mais necessitava? * No domingo ao fim da tarde, logo a seguir às seis horas, Edna correu para o seu carro com uma mala de viagem grande. Depois de a meter na mala do carro, voltou à casa para ir buscar um caixote com os seus bens pessoais mais preciosos. Decidira que pediria ao seu genro que pedisse emprestada uma carrinha daí a uns dias para vir buscar o resto dos seus pertences. Não suportava ficar aqui nem mais uma noite, com a preocupação de que alguém estivesse a vigiá-la. Mr. Bonham não acreditava que a vida dela estivesse em perigo; disse que quem quer que tivesse pegado fogo à casa de Gloria se teria dado por satisfeito. Disse que essa pessoa se sentiria demasiado assustada para repetir o ato noutra casa em Bexhill. Contudo, Edna estava decidida; ia começar de novo em Broadstairs com a sua filha, Claire, e a família dela. Era suficientemente longe de Bexhill para nunca correr o risco de se encontrar por acaso com alguém que conhecesse. Como Claire e Roger geriam um hotel e andavam sempre com falta de pessoal, para começar Edna trabalharia para eles, só até orientar a sua vida na nova cidade. Lembrando-se de que tinha deixado comida no frigorífico, voltou à casa para a tirar e levar alguns restos consigo. A seguir, depois de apagar todas as luzes e de pegar em mais um saco cheio com sapatos e um par de casacos, saiu da casa e fechou a porta à chave. Como estava muito frio e parecia que ia nevar, Edna não perdeu tempo a ligar o motor do carro e partir. Talvez pela primeira vez desde a morte de Gloria, não olhou à sua volta para a rua às escuras. Se o tivesse feito, poderia ter reparado no Jaguar vermelho-escuro ao fundo da rua, se mais não fosse porque era raro ver automóveis caros na sua zona. Edna não tencionava fazer toda a viagem até Broadstairs nessa noite. Reservara um quarto em New Romney, numa pequena pensão em que ficara várias vezes quando ia visitar Claire. Ao sair de Bexhill na direção de Hastings, sentiu-se aliviada. No dia seguinte, ao almoço, estaria com a sua filha e os seus dois netos e começaria um novo capítulo da sua vida. Depois de atravessar Hastings e a estrada começar a subir na direção de Guestling, já estava a sentir-se mais descontraída, porque havia pouco trânsito e aquela estrada era uma das suas preferidas. Passava com frequência por ela a caminho de Rye durante o verão, e conhecia-a bem. Um automóvel ultrapassou-a a alta velocidade imediatamente antes de ela chegar a Winchelsea. – Que tonto – murmurou para consigo. – Espero que saiba que a estrada é bastante estreita mais à frente. Passou por baixo da velha Landgate e estava a começar a descer a íngreme encosta que dava para a zona pantanosa quando subitamente avistou um carro a subir a encosta com os máximos ligados a cegá-la, e a buzinar sem parar. Teve uma impressão momentânea de que estava na sua faixa, o que não lhe deixava outra opção a não ser guinar para o outro lado da estrada para o evitar. De súbito, viu à luz dos faróis a barreira pintada de branco aparentemente a saltar diante de si e, embora tentasse travar e virar o volante na direção oposta, era demasiado tarde. A barreira rebentou com um estrondo e de repente o carro de Edna precipitou-se pela ribanceira coberta de erva na direção do rio lá em baixo. Ela ouviu-se gritar, e agarrou-se com força ao volante na vã esperança de conseguir virá-lo para impedir a descida a toda a velocidade. Mas o carro galgava os penedos e ganhava velocidade, e ali estava o rio, tão negro e oleoso como alcatrão à luz dos faróis do carro. Sentiu uns borrifos de água gelada quando o carro caiu ao rio; a água parecia estar a entrar à volta do fundo da porta. Edna lembrou- se de ter visto uma vez alguém numa situação semelhante num filme. A personagem não conseguia abrir a porta devido à pressão da água, e, embora o carro parecesse flutuar, ela via que o nível da água já atingia o meio da porta. Os faróis do carro ainda funcionavam, mas para além deles estava escuro como breu. Edna virou a cabeça na direção de Winchelsea, na vã esperança de que alguém tivesse visto o acidente, mas não havia luzes que pudessem ser de pessoas a virem salvá-la. À sua frente, do outro lado do rio, só havia terrenos pantanosos. Pôs a mão na buzina, mas não funcionava; o único som era o da sua voz a gritar com terror. Quando os faróis se apagaram de repente, estendeu instintivamente a mão para a manivela da janela, mas ao rodá-la entrou um jorro de água gelada e ela sentiu de imediato que o carro se afundava mais. Contudo, a janela era a única maneira de sair do carro. Agarrou a parte de cima da janela e tentou içar-se para fora. Conseguiu pôr de fora a cabeça e os ombros, mas, apesar de tentar desesperadamente levantar-se do assento, estava entalada, meio dentro e meio fora, e o nível da água gelada continuava a subir à sua volta. Apercebeu-se de que nunca mais veria Claire, o seu filho Robert ou os netos. Tinha a certeza que o automóvel de que tivera de se desviar era o mesmo Jaguar vermelho-escuro que a ultrapassara antes de Winchelsea. Certamente seguira Edna, ultrapassara-a e depois virara no fundo da encosta para voltar a subi-la e obrigá-la a sair da estrada. Porque decidira partir à noite? Devia ter ficado até de manhã. Passavam muito poucos carros nesta estrada, e, mesmo que passasse um agora, não conseguiriam vê-la e ao seu carro preto no rio. O carro continuou a afundar-se, fazendo o nível da água chegar- lhe ao pescoço. Ela pôs-se a gritar por socorro e a tentar desesperadamente sair pela janela, mas a água gelada estava a ter um efeito paralisante sobre ela. Parecia ter perdido toda a força e a vontade de continuar a lutar. Aquele homem tinha-se agora livrado das duas. Era o fim. 7 – E ntão, achas que vais gostar deste emprego, Katy? – perguntou Joan enquanto passava a travessa dos legumes à volta da mesa. Katy fez uma pausa antes de responder, recordando como se sentira assustada no seu primeiro dia. Toda a gente parecia tão fina e superinteligente que ela se sentiu como uma provinciana sem direito a estar ali. – Senti-me aterrada na segunda-feira – admitiu. – Mas como agora já sei quem todos são e o que fazem, está a tornar-se mais fácil. Penso que vai correr bem. – Senti o mesmo no jardim zoológico nos primeiros dias. Nem conseguia orientar-me. – Jilly sorriu. – Sentia-me estúpida, como se não soubesse nada sobre animais. No entanto, de repente tudo pareceu encaixar-se. Mas, provavelmente, ainda vão continuar a chamar-me «a rapariga nova» durante anos. Ken olhou para as duas raparigas. – Bem, tenho de reconhecer que ambas se saíram muito bem. Têm empregos de que gostam e encontraram um apartamento dentro das vossas posses. Não que nós queiramos que se vão embora, gostamos de as ter aqui. Mas admiramo-las pelo vosso sentido de independência. O telefone tocou no hall de entrada antes de qualquer uma das duas ter tempo para responder. – Quem será? – perguntou Joan quando Ken se levantou. – Nunca ninguém telefona à hora do jantar. Ken assumiu a sua voz de atender o telefone. – Underwood, em que posso ajudá-lo? – disse, fazendo com que as duas amigas sorrissem. – Sim, ela está aqui, eu vou chamá-la – disse, e voltou para a sala de estar. – É para ti, Katy; um sujeito da alta, a avaliar pela voz. Katy correu para o telefone. Era Michael Bonham. – Olá – disse ela. – São boas notícias? Conseguiu que o meu pai saísse da prisão? – Quem me dera que fossem boas notícias, Katy – disse ele. – E não tem a ver com o seu pai, pelo menos não diretamente. O carro da Edna Coltrain despenhou-se da estrada perto de Rye no fim de semana. Caiu ao rio. – Oh, não! – exclamou Katy. – Ela está...? – Parou de falar, incapaz de dizer a palavra. – Não, está viva, mas muito mal, esteve por um fio. Um homem que andava a passear o cão ouviu algo estranho, viu umas luzes junto ao rio e depois ouviu o que lhe pareceu um grito. Por isso, apressou-se a correr lá para baixo. Nessa altura, o carro já estava quase totalmente submerso e a Edna estava de rosto para baixo, meio dentro meio fora da janela do carro. Ele conseguiu tirá-la e fazer-lhe respiração boca a boca. Por sorte, outra pessoa parou o carro ao ver a luz da lanterna do primeiro homem e chamou uma ambulância. Ela está no hospital em Hastings. – Disse que não tinha diretamente a ver com o meu pai, mas isso dá a impressão de que pensa que não foi um verdadeiro acidente? – Não, não parece que tenha sido. A polícia pensa que ela foi deliberadamente forçada a sair da estrada. A Edna recuperou o suficiente para lhes dizer que acha que foi um Jaguar vermelho- escuro. Disse que a ultrapassou a grande velocidade mesmo antes de Winchelsea e que daí a pouco o que lhe parecia o mesmo carro subiu a estrada estreita, na faixa errada, direto a ela, com os máximos ligados. Ela guinou para o evitar, mas mesmo assim ele bateu-lhe. – Que terrível para ela! – exclamou Katy. – Sim, muito assustador, mesmo ainda antes de ela cair ao rio. A polícia encontrou uma grande mossa no guarda-lamas e na parte lateral, e vestígios de tinta vermelho-escura no chassis. Também encontraram marcas de pneus que indicam que um carro fez inversão de marcha a alta velocidade no fundo da estrada de Winchelsea. É improvável que alguém ultrapassasse um carro a toda a velocidade e depois invertesse a marcha daí a minutos a não ser que estivesse a tramar alguma. A mossa na parte lateral esquerda também confirma a versão dela. Se tivesse esbarrado com um carro a circular na faixa correta, seria o guarda-lamas do lado direito que ficaria danificado. A tinta vermelho-escura condiz com uma tonalidade usada pela Jaguar. – Meu Deus! – exclamou Katy. De repente, sentia-se como se fosse desmaiar. – Então, talvez essa pessoa seja a que incendiou a casa da Gloria e a matou e à filha? – Pode ser – concordou Bonham. – A Edna ia a caminho da casa da filha, em Broadstairs. Penso que essa pessoa pode tê-la seguido. – Teria de ser da zona, para conhecer aquela estrada tão bem – disse Katy, pensativa. – Não necessariamente, podia ter passado por aquela estrada numa outra altura. É uma estrada panorâmica bastante popular, e as pessoas tendem a lembrar-se de que é perigosa. Portanto, Katy, lamento ter de a perturbar com esta notícia, mas senti que devia pô- la ao corrente. – Ainda bem que o fez. Vai visitar a Edna? Se for, pode dizer-lhe como lamento, e que lhe desejo as melhoras? Não perguntei, que ferimentos é que ela tem? – O choque e quase se afogar foram o pior. Bateu com a cabeça com força no para-brisas, torceu o pulso e tem muitos cortes e equimoses. Agora tem uma infeção respiratória provocada pelo choque, suponho, e o frio extremo. Mas mais um ou dois minutos no rio tê-la-iam matado. Foi realmente um milagre alguém ver o que tinha acontecido e socorrê-la. Como provavelmente sabe, não há casas naquela zona, só pântanos. A probabilidade de alguém passar por ali numa noite de inverno é mínima. Como a própria Edna disse, graças a Deus que há pessoas a passearem os seus cães. E sim, transmitirei a sua mensagem. – Aposto que está ainda mais assustada agora. – Os olhos de Katy encheram-se de lágrimas ao recordar-se de como pensara que Edna estava a ter uma reação exagerada ao pensar que a pessoa que matara Gloria também viria atrás dela. – Ela saiu de Bexhill porque sentia que alguém ia atacá-la. – Bem, agora está em segurança, num quarto particular no hospital, com um polícia à porta para verificar a identidade das visitas. Está razoavelmente calma. Mas penso que vai sentir-se mais segura quando estiver instalada em casa da filha. – O meu pai está a par disto tudo? – Sim, fui hoje à cadeia de Lewes contar-lhe. Evidentemente, não o exonera, mas é o suficiente para pôr a polícia a examinar mais atentamente as provas. Oh, e o seu irmão foi visitá-lo; isso animou-o imenso. O Rob disse que ia telefonar-lhe para conversarem sobre tudo isto. Bonham prosseguiu perguntando-lhe como se estava a dar no novo emprego e como ia a procura de apartamento. Ela pôde dizer- lhe que gostava do emprego e que tinham encontrado um apartamento. Ele disse que entraria em contacto por telefone ou por carta se houvesse mais novidades e rematou a conversa desejando-lhe um serão agradável. – Oh, não! – disse Jilly quando Katy voltou para a sala de estar e lhes contou o que acontecera a Edna. – Pobre senhora. Quem quer que seja que está a fazer isto é uma pessoa realmente má. Esperemos que o apanhem rapidamente. * Depois do jantar, Katy subiu ao quarto, deixando Jilly no andar de baixo. Pegou no bloco de apontamentos que Edna lhe dera e ficou com ele nas mãos por um momento enquanto pensava no que devia fazer. O bloco continha as moradas originais de todas as mulheres que Edna e Gloria tinham ajudado. Se os seus maridos ainda vivessem na mesma casa e se um deles fosse proprietário de um Jaguar vermelho-escuro com uma mossa no guarda-lamas, possivelmente essa seria a única prova de que a polícia necessitaria para fazer uma detenção. Mas como é que Katy podia ter a certeza de que a polícia de Bexhill viria a Londres verificar os carros? Não podia. Ouvira muitas vezes dizer que a polícia da Costa Sul não gostava de se intrometer no terreno da polícia metropolitana. Poderiam solicitar que a polícia londrina verificasse as moradas, mas não havia nenhuma garantia de que isso fosse feito. Até mesmo Mr. Bonham dissera que uma das falhas da polícia era que não partilhavam informações e pessoal com outras áreas. Depois de ela entregar esta informação, não poderia reavê-la. E nunca se perdoaria se a polícia não fizesse nada. – Então, fazes tu – murmurou para consigo. – Não deve ser uma tarefa do outro mundo. Só precisas de verificar os carros nas moradas das mulheres que se foram embora e nunca mais voltaram. Ficam todas numa área bastante pequena. Katy sabia que se contasse a Jilly o que tencionava fazer ela tentaria impedi-la. Joan e Ken também desaprovariam. Contudo, se conseguisse juntar as moradas todas sem eles se darem conta do que ela andava a fazer, no sábado poderia ir verificá-las a todas. Ia ser difícil arranjar uma desculpa para estar fora sozinha todo o dia, mas pensaria em alguma coisa. Escreveu uma carta ao pai a falar-lhe sobre o emprego, o novo apartamento e o quanto estava a gostar de viver em Londres. Antes de terminar, disse que Bonham lhe telefonara nessa noite para lhe contar o que acontecera a Edna. Disse que esperava que o sucedido ajudasse no caso dele. Apetecia-lhe muito revelar-lhe que ia procurar o Jaguar danificado, mas pensou que isso poderia preocupá-lo. A seguir, escreveu também a Rob, a perguntar-lhe como achava que o pai estava a aguentar-se e a contar-lhe as suas novidades. Pediu-lhe encarecidamente que lhe desse um número de telefone para ela poder telefonar-lhe e falarem em condições. * À hora do almoço na quinta-feira, Katy levou uma sanduíche e o bloco de apontamentos para a sala do pessoal. Já descobrira que aquela minúscula sala raramente era usada, porque era um espaço feio e abafado só com uma banca, uma mesa de fórmica amarela, cadeiras desengonçadas e um sofá muito velho. Sentada à mesa, abriu o bloco de apontamentos no fim, onde estavam registados os nomes das mulheres mais recentes. Procedendo do fim para o princípio, começou a anotar todas as que não tinham regressado para casa e para os seus maridos. Não lhe parecia que pudesse incluir as últimas cinco mulheres, que tinham sido ajudadas em finais de novembro e em dezembro. Edna explicara que o primeiro mês fora de casa era sempre o pior para as mulheres vítimas de violência doméstica. Sentiam a falta dos seus pertences; tinham muito pouco dinheiro, por vezes quase nada. Era também um período difícil e de grande solidão, sem poderem recorrer aos amigos ou à família. Subitamente, os maridos não lhes pareciam tão maus como isso, e elas tinham a esperança de que o tempo da separação os tivesse levado a arrepender-se do seu comportamento. Por esses motivos, Katy excluiu essas mulheres, porque era bem possível que tivessem regressado a casa. Ao passar em revista o bloco de apontamentos, assinalou só seis mulheres que nunca tinham sucumbido à tentação de voltarem para os maridos. Todos eles eram uns verdadeiros brutos, que tinham acabado por as atacar com tal violência que elas tiveram de ser hospitalizadas com lesões pavorosas. Três das mulheres tinham um filho ou uma filha que necessitara de acompanhamento psiquiátrico devido ao que viram a mãe passar. Katy estava tão absorvida a estudar o bloco de apontamentos que nem reparou que Charles Stevenson entrou na sala do pessoal. – Em que é que está a marrar? – perguntou ele, fazendo-a dar um salto. – E neste buraco horrendo, ainda por cima. Katy riu-se nervosamente. Charles era o advogado mais jovem da firma. Era também muito atraente; alto, magro, com cabelo castanho-escuro e olhos de bombom de chocolate em que uma rapariga poderia afogar-se. Katy pensava que outras mulheres mais sabidas lhes chamariam «olhos de cama». A fazer fé na maneira como ele a fazia sentir-se quando lhe sorria, mostrando-lhe uns dentes brancos perfeitos, era bem provável que ela estivesse disposta a obedecer ao convite desses olhos. – Sobressaltou-me – disse ela, fechando o bloco de apontamentos e pegando no seu guia de Londres e nos seus apontamentos. – Não vá embora – disse ele. – Está tanto frio lá fora que não suporto a ideia de sair, e ia fazer chá. Fique e tome uma chávena comigo. Katy olhou para o relógio de pulso. – Tem de ser rápido, só me restam dez minutos. Sabia que ele era o advogado mais novo, mas ainda não compreendia bem a hierarquia: como se tornavam barristers, qual era a diferença entre um barrister e um QC, o que tinham de fazer para o ser ou mesmo porque é que ser QC era tão especial. Talvez Charles pudesse esclarecê-la. Ele pôs a chaleira ao lume e virou-se para olhar para ela. – Não me disse em que é que estava a marrar. – Oh, não é nada de muito interessante, só umas moradas que uma amiga da minha terra me deu. – E o guia de Londres? Katy estremeceu um pouco; não era fácil fazê-lo desistir. – Estava só a ver onde moram essas pessoas. – Vai procurá-las? Porquê? – Não, bem, talvez. São moradas de um bloco que pertence à mãe de uma minha amiga, e ela está no hospital. Eu prometi que ia visitar essas pessoas, se não fosse muito longe. – Porque é que ela não se limita a escrever-lhes? – perguntou ele enquanto acabava de fazer o chá. Encostou-se à parede e cruzou os braços. – Porque é que me está a mentir? – perguntou. Katy corou. – Porque é que é tão bisbilhoteiro? – conseguiu dizer. – Se estivesse no seu gabinete e alguém espreitasse para dentro e lhe perguntasse o que estava a fazer e porquê, o que diria? – Meta-se na sua vida, acho eu – disse ele com um sorriso. – Bem, então! – Bem, então, o quê? Quer vir tomar um copo comigo depois do trabalho? – Para me interrogar mais? – Talvez, mas mais sobre si. Gosto de saber coisas sobre as pessoas. Então, vem? – Não posso, estou em casa dos tios da minha amiga, e a tia vai ter o jantar pronto para mim. – Amanhã, então. É sexta-feira, por isso não se trabalha no dia seguinte. Tem desculpas? – Não consigo pensar em nenhuma – disse ela a sorrir. – Sim, seria agradável, Charles. Mas deixe-me beber esse chá depressa para voltar ao trabalho. Katy sentiu dificuldade em concentrar-se nessa tarde; não conseguia realmente acreditar que alguém tão bem-parecido e com tanto sucesso como Charles quisesse ir sair com ela. Não tinha a certeza absoluta de que ir tomar uma bebida depois do trabalho pudesse considerar-se um encontro, mas dava a impressão de o ser. Será que ele convidava para sair todas as raparigas novas na firma? Katy não podia realmente perguntar a ninguém, já que tinha quase a certeza de que os advogados não deviam confraternizar com o pessoal. * Mal pôde esperar para contar a Jilly quando regressou a casa. – Isso é fantástico – disse Jilly, com um sorriso rasgado. – Dá a ideia de que ele é o máximo, por isso faz os possíveis por o caçar. Eu também ando de olho num sujeito lá no jardim zoológico, mas ele não parece ter reparado ainda em mim. – Não vai tardar nada a reparar em ti – garantiu-lhe Katy. – E eu não estou disposta a «caçar» ninguém. Ele não é um dos teus animais selvagens. – Podemos aprender muito com os animais – disse Jilly com uma risadinha. – Podem ser treinados com petiscos, e procuram as melhores fêmeas disponíveis para as emprenharem. Katy sorriu com sarcasmo. – Bem, eu não vou deixar que ele me emprenhe. Mas se o encontro para uma bebida na sexta correr bem, quem sabe no que poderá vir a dar? – Espero que venha a dar num encontro no sábado ou no domingo. Porque eu tenho de trabalhar nesses dois dias. – Jilly afivelou uma expressão de tristeza. – Não quero que te sintas sozinha. – Vou sentir-me sozinha sem ti, mas hei de sobreviver. – Katy sorriu, aliviada por não ter necessidade de mentir sobre o que planeava fazer no sábado. – Mas talvez pudesse ir ter contigo ao trabalho no sábado para irmos a Hampstead ou a outro sítio beber um copo? – Cheiro um bocado mal quando saio do jardim zoológico – respondeu Jilly, enrugando o nariz. – Algumas das raparigas lavam- se e mudam de roupa lá, mas não me agrada por aí além fazer isso. Podemos ir sair depois de eu vir a casa e tomar um banho. Depois do jantar, Katy sentou-se a escrever a Edna para a morada da sua filha em Broadstairs, que Bonham lhe dera. Tendo em consideração que Edna se sentiria ainda mais assustada agora, Katy não lhe disse nada sobre o bloco de apontamentos nem sobre a sua intenção de procurar alguns dos maridos violentos, escrevendo apenas que ficara muito incomodada ao saber o que lhe acontecera. Falou-lhe sobre o seu novo emprego e disse que ela e Jilly iam mudar para o novo apartamento daí a pouco mais de uma semana. Contudo, mesmo enquanto escrevia, continuava a pensar em Charles, no que vestiria para o encontro e nos seus planos para lavar o cabelo nessa noite. Sentia-se muito contente por o estilo de penteado colmeia parecer ter desaparecido em Londres, pelo menos para mulheres abaixo dos trinta e cinco anos. Muitas raparigas usavam o corte curto à pajem, como a cantora Cilla Black, ou o estilo de pontas para fora se tivessem o cabelo pelos ombros, mas Katy reparara que as raparigas mais à moda, as que usavam minissaias, usavam o cabelo comprido e liso. Isso encantava-a, porque sempre fora um verdadeiro pesadelo tentar fazer caracóis no seu cabelo liso como uma prancha. Pensou que usaria o seu novo vestido preto e branco no dia seguinte, embora corresse o risco de ser repreendida por ele ser demasiado curto para o trabalho. Nessa noite, quando as duas amigas se preparavam para ir para a cama, Katy colou a franja com fita-cola, porque tendia a ficar numa poupa difícil de acamar. Sentia agora um nó no estômago; todos os homens e rapazes com quem saíra eram pouco sofisticados, a maior parte trabalhadores manuais, e frequentemente tinham pouca conversa. Charles era falador, mas ela receava que ele a achasse algo desinteressante e provinciana. Acabou por adormecer a pensar em tópicos de conversa a abordar que a fizessem parecer animada e inteligente. * – Então, vai dizer-me o que estava realmente a fazer com aquele bloco de apontamentos? – perguntou Charles ao pousar o segundo copo de espumante de Katy em frente a ela. – O Charles é um sujeito curioso – riu-se ela. – Já lhe disse tudo o que tencionava dizer-lhe. Ele sentou-se ao lado dela e bebeu um gole da sua cerveja. O pub Mitre estava muito cheio, na maior parte com empregados de escritório a tomarem algumas bebidas antes de regressarem às suas casas nos subúrbios. Charles trouxera-a a um pub em High Holborn porque não queria encontrar ninguém que conhecesse dos Inns of Court. – Irrita-me tanto aquela conversa fiada de meninos de colégio – acrescentou. – E também só falam do trabalho a noite toda. Quando saio do escritório à noite, gosto de pôr de lado os casos em que estou a trabalhar. Parece que sou uma raridade nos círculos legais. Katy sentia-se inclinada a acreditar nisso, já que ele não mencionara ninguém da firma ou alguma coisa relacionada com o trabalho. Enquanto tomavam a primeira bebida, ele tinha-lhe feito perguntas sobre Jilly, há quanto tempo eram amigas, e sobre o apartamento para que iam mudar-se em breve. Também disse a Katy que era de uma pequena vila no Hampshire e que tinha duas irmãs mais novas. Partilhava um apartamento em Westminster com Mike, um amigo dos tempos de Cambridge. Mike trabalhava na Bolsa de Londres. Katy ficou com a impressão de que Charles não se sentia completamente satisfeito com uma carreira em Direito e que talvez tivesse sido empurrado para ela pelos pais. – Diria que o facto de ser tão reservada sobre o seu bloco de apontamentos só confirma que está a preparar alguma – disse ele. – Uma coisa que se aprende muito rapidamente como advogado é a reconhecer quando nos estão a mentir. Sei que o seu pai está preso a aguardar julgamento, acusado de ter ateado um incêndio em que morreram duas mulheres. Katy abriu a boca, chocada. – Como sabe isso? – perguntou. – Tenho uma memória muito retentiva, e tinha lido nos jornais que um homem chamado Speed foi preso por atear um incêndio em Bexhill que causou a morte a duas pessoas. Não pensei mais no assunto, mas depois, subitamente, temos uma nova funcionária na firma chamada Katy Speed, e é de Bexhill. Por isso, deduzi que, quase de certeza, era parente desse homem. Mas não se preocupe, Katy, mais ninguém na firma sabe. Katy só queria que o chão se abrisse e a engolisse. Profundamente embaraçada, tentou explicar a sua versão da história. – Tudo bem, Katy, não tem de tentar convencer-me da inocência do seu pai – disse Charles, pousando a mão em cima da mão dela. – Pelo que descobri... porque, escusado será dizer, pedi a alguns contactos que me pusessem a par das linhas gerais do caso... diria que a polícia de Bexhill falhou redondamente na sua investigação. Tenho a certeza de que o seu pai será libertado em breve, completamente ilibado. Por isso, volto a perguntar-lhe a que vem o bloco de apontamentos. O meu palpite é que está a fazer de detetive para ajudar o seu pai. Katy sentiu que não tinha outra opção a não ser contar-lhe a verdade sobre Gloria e Edna. Explicou que o bloco de apontamentos continha pormenores sobre as mulheres que elas tinham ajudado. A seguir, disse-lhe que alguém tentara matar Edna. – Estou a ver – disse ele, pensativo. – Mas não pode pôr-se a contactar esses homens. Se encontrasse o carro vermelho-escuro, o proprietário poderia muito bem tentar matá-la a si. – Eu não tenciono bater-lhe à porta nem nada que se pareça – explicou ela. – Só quero encontrar o carro e depois informar a polícia e o advogado do meu pai. – Não deixa de ser arriscado. Podemos depreender que esse homem é esperto, observador, paciente, não tem escrúpulos e é impelido pelo desejo de vingança. Eu diria que é uma combinação mortífera. Não concorda? – Bem, sim, mas ele não me conhece, pois não? Eu podia passar pela casa dele sem despertar suspeitas. – Como sabe que ele não a conhece? Esse homem levou o seu tempo a planear a morte da Gloria. Podia estar entre os presentes no funeral, pode tê-la visto a si, Katy, quando andava a planear o incêndio. Podia ter posto a parafina e o pano no barracão do seu pai porque observara que ele e Gloria eram amigos. Isso significa que é possível que também saiba quem a Katy é. – Não pensei nisso – disse ela, deixando tombar a cabeça. Charles pôs-lhe um dedo debaixo do queixo, levantou-o e sorriu- lhe. – É por isso que eu sou advogado. Sou pago para pensar em todas as hipóteses. Também já defendi e acusei um número razoável de pessoas horríveis ao longo dos anos, e por isso tive de aprender a controlar a minha tendência natural para confiar. Também tem de aprender isso, Katy. Mas não a convidei para sair para lhe pregar um sermão, por isso vamos mas é acabar a bebida e procurar um restaurante agradável. De facto, ele já tinha reservado mesa num pequeno restaurante italiano a poucos minutos a pé do Mitre. Era acolhedor, mais do que chique, com toalhas aos quadrados vermelhos e brancos e velas espetadas em garrafas de Chianti. A avaliar pela maneira calorosa como o empregado e o dono o cumprimentaram, era óbvio que já ali tinha estado dúzias de vezes. Por isso, Katy sugeriu que ele escolhesse o que iriam comer. Tudo o que sabia sobre comida italiana aprendera num restaurante grego em Bexhill, cujos donos gostavam de pensar que eram cosmopolitas por porem piza e lasanha no menu, embora nem uma nem a outra fossem muito boas. Charles não voltou a mencionar o bloco de apontamentos ou o pai dela. Em vez disso, enquanto comiam uma entrada de cogumelos com alho, fez-lhe mais perguntas sobre Jilly, o apartamento para que iam mudar-se e os interesses dela. – Sou uma bisbilhoteira como o Charles – disse ela a brincar. – Gosto de observar as pessoas; suponho que é por isso que me agrada tanto um trabalho que tem tudo a ver com histórias humanas. Também gosto de dançar, de ler, de nadar e dedicava-me seriamente à culinária e à jardinagem se tivesse uma casa minha. Então, e o Charles? Ele fez uma careta cómica e revirou um dedo no lado da testa a indicar que tinha pouca coisa dentro da cabeça. – Jogo críquete bastante bem e toco piano bastante mal. Gosto de ler e de longos passeios no campo, mas, ao contrário de si, sinto-me muitas vezes descontente por ser advogado, possivelmente porque espero mais das pessoas do que de facto se obtém. Mentem, ludibriam, falta-lhes lealdade e são gananciosas. – Então, o que é que faria se pudesse mudar de rumo agora? – Vai-se rir. – Prometo que não – assegurou ela. Charles hesitou, a fazer girar o vinho no copo. – Gostava de ter um horto, de cultivar e vender árvores e flores – confessou. – Acho que é uma coisa maravilhosa para se fazer – disse ela. – Mas antes não disse que gostava de jardinagem. – Isso foi só porque a Katy o tinha dito. Em criança, adorava trabalhar na estufa do meu avô, preparar as sementes, peneirar o fertilizante, regar, tudo isso. Quando vou a casa dos meus pais, arranco as ervas daninhas e aparo as sebes, mas os meus pais não apreciam interferências. – Os meus também não – disse Katy, e riu-se. – O meu pai vigia- me como um falcão quando estou a arrancar ervas daninhas, porque pensa que eu também vou arrancar flores. Nunca me deixa tomar nenhumas decisões, como a escolha da cor de plantas para os canteiros ou sugestões de algo novo na horta. Riram-se ambos, e de repente Katy apercebeu-se de que gostava realmente deste homem. Não era só por ele ser bem-parecido e ter um bom emprego, mas tinha a sensação de que queria que a noite se prolongasse para sempre. Demoraram muito tempo a jantar, porque conversaram muito. Comeram frango com um molho mediterrânico de tomate e manjericão, mas Katy mal reparou no que comia, porque não tirava os olhos de Charles. Era tão animado quando falava, tão diferente da maior parte dos homens que ela conhecera, que tinham dificuldade em formar uma frase que fosse, e mais ainda em manter uma conversa interessante. E depois, havia aqueles olhos como bombons de chocolate que lhe causavam arrepios deliciosos pela espinha abaixo. Não tinha a intenção de se abrir em relação à sua mãe, mas, de repente, deu consigo a contar-lhe como Hilda era difícil. – Tenho passado a vida inteira a tentar apaziguá-la – disse ela. – Também é o mesmo para o meu pai. Ela é sempre tão desagradável e resmungona! Nunca se mostra contente com nada. – A minha avó paterna era assim – disse ele. – Tornou a vida do meu avô um suplício, e também foi horrível para o meu pai. Mas ele foi estudar para Cambridge e manteve-se afastado. Voltou a tentar aproximar-se quando éramos pequenos, levava-nos a visitá-la, na esperança de que, com uma nova geração, ela fosse diferente. Mas não valeu de nada, ela estava sempre a queixar-se e a criticar, nunca nada estava bem. O meu avô passava tanto tempo quanto podia no jardim, para estar longe dela. Mesmo quando eu tinha uns cinco ou seis anos, via que era por isso. Ela morreu quando eu tinha treze, e, para ser sincero, foi como se um peso fosse finalmente tirado de cima dos ombros do meu avô e do meu pai. Lembro-me de ir passar a noite a casa do meu avô com o meu pai logo a seguir ao funeral; eles beberam whisky e jogámos às cartas. Estavam ambos bem-dispostos, a rirem-se de certas coisas, a brincarem comigo. Eu fiquei bastantes vezes com o meu avô a partir dessa altura, ajudava- o no jardim, fazia fogueiras para queimar o lixo. Ele nunca me falava da minha avó... penso que também não falava dela ao meu pai... mas ambos víamos como ele se sentia muito mais feliz. – Pergunto-me se o meu pai voltará para a minha mãe quando este assunto horrível acabar – disse Katy. – Acho que ela não lhe escreveu nem o visitou. Disse que não o recebia de volta se ele saísse sob fiança. – Para bem dele, espero que não volte para ela. O meu avô só viveu mais oito anos depois de a minha avó morrer, e foi o mais feliz que alguma vez o vi. Ele devia tê-la deixado anos antes, mas é claro que as pessoas daquela geração não se divorciavam. O meu pai disse uma vez que se apaixonou pela minha mãe porque ela estava sempre a rir-se. Nunca criticava ninguém, nem sequer a nós, os filhos. Acho que isso resulta muito melhor; só queríamos ser bons, obter resultados, dar-lhe motivos para se orgulhar de nós. – Então ela deve estar muito orgulhosa por o Charles se ter tornado advogado? – Sabe, Katy, se eu tivesse confessado que queria ser dono de um horto ela teria o mesmo orgulho em mim; provavelmente mais, porque assim poderia ajudar-me. Mas o meu avô era advogado, penso que foi por isso que decidi seguir esta carreira. – Bem, tenho a certeza de que é um advogado muito bom. E pode abandonar a carreira a qualquer momento e fazer o que quer. Não tem de ficar. Mas não vá embora já; acabei de chegar a Londres e preciso de o conhecer melhor primeiro. Mal aquelas últimas palavras lhe saíram dos lábios, Katy desejou não ter bebido dois copos de vinho em cima dos de espumante. Fora demasiado atrevida. De facto, ao longo de todo o serão fizera o que sempre prometera a si mesma nunca fazer; contara-lhe demasiadas coisas. Mal se atrevia a olhar para ele. Contudo, quando se atreveu, viu que ele estava a sorrir. – Isso é uma coisa encantadora de se dizer, Katy. Subitamente, fez com que a Frey, Hurst e Herbert pareça muito mais aliciante. * Charles acompanhou-a no metro todo o caminho até casa, em Hammersmith. Ao saírem da estação, pôs o braço à volta do corpo dela e puxou- a para mais perto de si. – És um tesouro – disse num tom meigo. – Um tesouro por descobrir, ainda por cima, porque não me parece que alguém já te tenha apreciado devidamente. Virou-se para ela nesse momento e, apesar de estarem a passar pessoas, beijou-a. Foi o melhor beijo que alguma vez lhe tinham dado. Os dedos dos seus pés curvaram-se e o coração bateu-lhe mais depressa, e criou uma sensação dentro dela como se estivesse a ser puxada delicadamente de uma forma deliciosa como nunca sentira. O beijo prolongou-se. Ela não queria que acabasse, mas quando Charles parou de a beijar manteve-se muito perto dela, com os lábios na sua testa e os braços a apertá-la com força. – Já prometi aos meus pais que ia visitá-los no fim de semana – disse ele daí a pouco tempo. – Quem me dera não ter prometido, porque preferia de longe passá-lo contigo. Mas talvez na segunda à noite possamos ir ao cinema. Está a passar Zorba, o Grego, e consta que é muito bom. – Adorava – disse Katy, pensando que se sentiria feliz sentada num abrigo de autocarro gélido desde que ele estivesse com ela. Charles acompanhou-a todo o caminho até à casa de Ken e Joan e despediu-se com um beijo, desta vez ainda mais ardente. – Tenho de ir – acabou por dizer. – Ou ainda perco o metro para Westminster. Vemo-nos na segunda. Katy subiu os degraus até à porta da frente e ficou a vê-lo afastar- se. Delgado e ágil, apesar do seu pesado sobretudo azul-marinho. Tinha um bom andar – passadas longas, decididas – e a meio da rua virou-se e acenou-lhe, a caminhar às arrecuas durante algum tempo. Katy pôs as mãos nas faces. Apesar do frio, pareciam-lhe muito quentes, e apetecia-lhe gritar de alegria e dançar no passeio. 8 K aty foi acordada por Jilly a saltar num só pé a tentar vestir as calças de ganga. Como Jilly estava a dormir quando Katy regressou a casa na noite anterior, ela não pudera contar-lhe a saída com Charles. Esperou, a contar que Jilly lhe fizesse perguntas agora, mas a amiga estava cheia de pressa, claramente com receio de chegar atrasada ao trabalho. Mas ao abrir a porta para descer para o andar de baixo, olhou para trás. – Que tal foi o encontro? – Fabuloso – respondeu Katy. – Mas não te quero demorar agora... conto-te logo à noite. – Mal posso esperar! – Jilly fez uma careta cómica. – Volta lá a dormir para sonhares com ele. Katy ficou deitada mais algum tempo, a reviver o beijo de Charles, mas sentia-se tão excitada que era impossível voltar a adormecer. No entanto, também se sentia culpada por estar tão feliz enquanto o seu pai se encontrava preso. Charles aconselhara-a a não ir à procura do Jaguar vermelho, mas ela não via que mal podia acontecer-lhe se simplesmente passasse por cada uma daquelas seis casas. Como a única coisa que as pessoas normalmente recordavam era o seu cabelo ruivo, poria um gorro de lã para o esconder. Além disso, queria explorar Londres, e estava um lindo dia de frio, perfeito para caminhar. Daí a duas horas, quase às onze, depois de comer um grande pequeno-almoço preparado por Joan, Katy estava à porta da estação de metro de Hampstead a consultar o seu guia de Londres. A primeira morada parecia ser ao cimo de uma rua íngreme, de frente para o parque. Nunca tinha estado em Hampstead e sentiu-se algo surpreendida ao descobrir que era uma zona obviamente abastada. Era tentador entrar em algumas das boutiques, joalharias e lojas de recordações com um ar interessante pelas quais passava, mas resistiu, recordando a si mesma que poderia voltar ali um dia com Jilly para ver as lojas. A primeira morada, de onde Margaret Foster tinha fugido com os seus dois filhos, de cinco e sete anos, era uma bela casa de estilo jorgiano no meio de um jardim murado. Katy parou junto ao portão de ferro forjado para espreitar. O marido de Margaret era cirurgião no hospital Royal Free, e Katy pensou que quem olhasse para esta casa, com a porta da rua azul- escura brilhante, muito bem enquadrada por arbustos em forma de bola plantados em vasos de pedra dos dois lados, nunca imaginaria que por trás daquela fachada se encontrava violência e brutalidade. Havia uma pequena árvore no centro do relvado e à volta da sua base uma quantidade de campânulas brancas floridas, as primeiras que Katy via nesse ano. Imaginava que mais tarde no ano o jardim ficaria lindo, porque, apesar da estação e da ausência de folhas e flores, via que estava bem cuidado. Mas não havia um caminho para a garagem nem garagem propriamente dita, e nenhum Jaguar vermelho-escuro estacionado na rua. É claro que ele podia tê-lo estacionado no trabalho; talvez ela pudesse voltar aqui uma noite. A morada seguinte era mais longe para ir a pé do que parecia no mapa, quase em Golders Green. No entanto, embora se tratasse de mais um bairro abastado, a casa de Suzanne Freeman não era tão encantadora como a de Margaret. Era uma casa geminada de estilo neo-Tudor a precisar urgentemente de uma demão de tinta branca. O jardim da frente estava muito desleixado, com uma grande quantidade de lixo espalhado, trazido pelo vento. Um homem, talvez Mr. Freeman, estava a puxar o lustro ao seu carro no caminho para a garagem; era um Ford Zodiac azul-escuro. As portas da garagem estavam abertas de par em par e não se via mais nenhum carro lá dentro. Ela continuou a andar. Quando Katy chegou a Golders Green e à terceira morada, o seu ânimo já começava a esmorecer. Era uma casa geminada modesta, com cortinas de renda de um branco brilhante na janela e um jardim da frente que tinha sido todo pavimentado. O carro no caminho para a garagem era um velho Ford preto. Depois de parar para tomar uma chávena de chá num café junto à estação de Golders Green, apanhou o comboio para Hendon. Duas das moradas ficavam perto da estação e uma da outra, o que foi um alívio para Katy, porque lhe doíam os pés. Achava que não conseguiria ir à sexta casa hoje. A quarta morada era a de uma casa em banda bastante modesta, e realmente ela não pensava que alguém que ali vivesse pudesse ter um Jaguar. A quinta morada, o número 10 de Woodville Road, embora fosse só a um par de ruas de distância, era uma moradia de quatro frentes construída nos anos 1930. Ficava no ponto mais alto de uma encosta, com a garagem por baixo, e havia uns degraus para a porta da rua. O caminho da garagem descia da casa para a porta da garagem. Mesmo da rua, Katy conseguiu ver um cadeado grande, novo e brilhante na porta da garagem. As janelas brilhavam de limpas, com as cortinas muito simétricas em cada uma, e o caminho para a garagem estava bem varrido e sem ervas daninhas, o que sugeria que o dono desta propriedade tinha orgulho nela. No entanto, havia algo no facto de o cadeado ser novo e grande que despertou as suspeitas de Katy e a perturbou. Lembrava-se de ter lido no bloco de apontamentos que Deirdre Reilly fora hospitalizada por causa da agressão do marido; também dissera a Gloria e a Edna que muitas vezes ele a fechava na garagem dias a fio, por vezes por algo tão trivial como ervas daninhas no caminho para a garagem ou dedadas dos filhos nas vidraças. Fora um dos seus filhos – um menino chamado Tony – que tinha necessitado de cuidados psiquiátricos por causa das coisas traumáticas que vira. Consciente de que tinha ficado a olhar para a casa por demasiado tempo, Katy continuou a andar, mas, ao chegar mais abaixo na rua, viu um homem de volta do seu carro junto ao passeio. – Desculpe – disse, a ter uma ideia. – Pode dizer-me se há alguém nesta rua que tenha um Jaguar vermelho-escuro? – Sim, o Reilly, no número 10 – disse o homem. – Porque quer saber? Katy engoliu em seco. – Bem, um homem num Jaguar bateu no meu carro no outro dia e foi-se embora. Queria a matrícula do carro dele para comunicar ao seguro. – Nisso não posso ajudá-la, minha querida. Não faço ideia qual é a matrícula do carro dele, porque ele mete-o sempre na garagem. Mas parece mesmo típico do emproado do Reilly. Pensa que é superior a toda a gente. Katy sentiu-se encantada por ter obtido o que queria. Vira no bloco de apontamentos que Deirdre adotara o nome Purcell depois de deixar Reilly. O que lhe restava fazer agora era ir para casa, telefonar a Mr. Bonham e pedir-lhe que transmitisse à polícia o nome e a morada do homem. Agradeceu ao vizinho de Reilly e afastou-se, regressando pela rua acima na direção da estação. * Ed Reilly desceu as escadas a correr e agarrou no sobretudo e no cachecol mal viu a rapariga a olhar para a sua casa. Conhecia-a, mas não conseguia lembrar-se de onde. Bastaram uns momentos para a situar. Era a filha de Albert Speed, o homem que tinha sido preso por incendiar a casa de Gloria Reynolds. – Como é que ela descobriu onde eu moro? – perguntou-se em voz alta. – E que mais é que ela saberá? Quando se aproximou da janela da sala de estar para verificar o que ela estava a fazer nesse momento, viu-a parar para falar com um dos vizinhos, e ambos olharam para trás, na direção da casa de Ed. Soube imediatamente que teria de a silenciar, e depressa. Reilly era fã de policiais e já lera em muitas ocasiões que os criminosos mais bem-sucedidos deixavam pistas para lançar a suspeita sobre outra pessoa. Andava a fazer o reconhecimento das traseiras da casa de Gloria Reynolds, a planear como lhe pegar fogo, quando viu um homem sair pela cancela das traseiras e Reynolds a atirar-lhe um beijo. Era uma questão de sentido prático seguir o homem; para encanto de Ed, ele vivia na casa em frente à de Gloria Reynolds. A maneira como saíra pelas traseiras bastante furtivamente e se escapulira pela travessa por trás da casa, saindo para Collington Avenue mais adiante, convenceu-o de que os dois andavam a ter um caso. Soube de imediato o que faria. Prepararia as coisas de maneira a que o homem parecesse ser o culpado. Ateou o incêndio às primeiras horas da madrugada de domingo, depois de ter entrado no barracão do sujeito do outro lado da rua e encontrado a lata da gasolina dele para meter parafina nela. Deixou algum do tecido de cortinas que tencionava embeber em parafina e enfiar na caixa do correio da casa de Gloria Reynolds. Ed afastou-se de Collington Avenue mal pegou fogo ao tecido. Contudo, ao chegar ao seu carro, na rua ao lado, já via o clarão do incêndio, e arrancou todo contente. Tencionava nunca mais regressar a Bexhill. Mas a sua curiosidade pelo que as pessoas andavam a dizer sobre o incêndio levou-o a voltar, porque havia muito pouca informação nos jornais nacionais. Em Bexhill, não conseguiu resistir a perguntar a duas ou três pessoas como se sentiam em relação a uma tragédia daquelas na sua cidade, e perguntou-lhes se conheciam Gloria Reynolds. As opiniões eram variadas. Algumas pessoas diziam que era uma boa mulher, outras que era uma devoradora de homens, mas não acreditavam que um homem de negócios bem conhecido como Speed pudesse ter ateado o incêndio. Ed compreendeu que precisava de ficar a saber muito mais sobre o homem que incriminara. A pretexto de comprar um xarope para a tosse, travou conversa com uma empregada de balcão da farmácia Boots, uma mexeriqueira gorducha, e mencionou o incêndio em Collington Avenue. Ela começou imediatamente a falar sobre Gloria Reynolds – que senhora simpática que era, como a sua loja de roupa era encantadora – e perguntou-lhe se a conhecera. Ele respondeu que só a conhecia vagamente, mas não conseguia acreditar que alguém tivesse querido matá-la. Ao ouvir aquilo, a empregada disse que pensava que a polícia se tinha enganado e que Albert Speed estava inocente. – Conheço-o há anos – disse ela com extrema convicção. – Vinha cá muitas vezes, normalmente com a filha, a Katy. Ela agora já é crescida, claro. De facto, trabalha para os advogados aqui na rua, mais abaixo. E ali estava ele, daí a meia hora, a passar pela janela do escritório de advogados. E ali estava ela, uma rapariga bonita e com um ar delicado e cabelo comprido de um louro-avermelhado. A filha de Albert Speed. Katy. Parecia diferente agora, com um gorro de lã castanha a cobrir-lhe aquele seu cabelo maravilhoso. Mas era decididamente ela. Katy Speed. E ali estava ela, a passar junto à sua casa. O que andava a fazer em Londres? Ter-se-ia mudado para cá ou andaria só a bisbilhotar? E como raio tinha descoberto sequer a existência dele? Enquanto esperava que ela voltasse a passar diante da sua casa, pegou na carteira e nas chaves. Mal ela contornou a esquina, ele saiu de casa para a seguir. Quando ele virou para a rua principal, ela estava a atravessar para a estação. Alcançou-a e estava mesmo atrás dela na fila para a bilheteira quando ela pediu um bilhete para Hammersmith. Enquanto ela se encaminhava para a plataforma, ele comprou também um bilhete. Ed manteve-se no outro extremo da carruagem, bem longe da rapariga. Pegou num jornal deixado num assento e fingiu que o lia, embora continuasse a observá-la atentamente. Havia poucos passageiros na carruagem, mas ele sabia que quando chegassem a Camden Town se encheria. Ela era uma rapariga baixa e bonita, com traços delicados e pele clara e aveludada; de facto, recordava-lhe Deirdre nos primeiros tempos de casados. Mas duvidava que Katy fosse do tipo dócil, como Deirdre. Nos primeiros tempos, a sua mulher sentira-se tão grata por viver numa boa casa que fazia o que ele lhe dissesse. Nunca compreendera que se ripostasse ou lhe desobedecesse de vez em quando talvez ele tivesse deixado de lhe bater – afinal, era um tédio ela andar sempre a mostrar que lhe tinha tanto medo ou a tentar agradar-lhe. Mas esta rapariga era uma guerreira; tinha de ser, se estava a tentar limpar o nome do pai, a calcorrear Londres, praticamente a meter a cabeça na boca do lobo. Era com esse tipo de rapariga que sonhara a vida toda; uma rapariga que não se vergasse, fizesse ele o que lhe fizesse. Um desafio fabuloso. Mas como é que arranjara a morada dele? Ed levara quatro anos a descobrir quem tinha ajudado Deirdre quando ela fugiu com os seus filhos. Sabia que havia uma segunda mulher que era a condutora, mas não sabia o nome dela. No funeral de Gloria Reynolds e da sua filha, misturou-se com os fornecedores amigos dela, assegurando-se de que não se destacava da multidão. Reparou numa mulher baixa e gorda que parecia destroçada. A maneira como ela estava sempre a olhar à sua volta, como se quase esperasse que alguém lhe saltasse em cima, traiu-a completamente. Vigiar a casa dela confirmou as suas suspeitas; ela estava claramente apavorada com a ideia de que alguém pudesse andar a segui-la. E depois, finalmente, partiu com uma mala depois do anoitecer. Ed tinha quase a certeza de ter dado cabo dela quando a forçou a sair da estrada. Ouviu o som do carro a cair no rio e viu os faróis apagarem-se. Infelizmente, ainda não conseguira obter a confirmação de que ela se afogara. Voltara a toda a pressa para Londres, e a notícia não tinha aparecido nos jornais nacionais. Contudo, mesmo que de alguma maneira ela tivesse conseguido sair do carro e sobrevivido, não sabia nada; ficara ofuscada pelos máximos do seu carro quando ele abalroou o dela. * Edward Reilly orgulhava-se de ser mais esperto do que o homem comum. Provara a verdade desse facto ao vir do nada e, com um mínimo de estudos, ter conseguido juntar quase um milhão de libras, se contasse com a casa e o valor da sua empresa de construção. Nascera em Dover, e o seu pai, um marinheiro, desaparecera ainda antes de ele nascer, deixando a mãe e a avó sozinhas a criá- lo num apartamento horrendo. A opinião de Ed era que o pai devia ser um homem bonito e esperto que cometera o erro de se envolver com uma galdéria que pensou que arranjava marido ao dizer-lhe que estava grávida. Tinha essa opinião do pai porque acreditava que devia ter herdado o seu aspeto de ídolo latino do cinema – e também a sua agudeza de espírito, porque o certo era que não a tinha herdado da mãe. Ela não tinha o seu cabelo negro como carvão nem os seus olhos escuros melancólicos; era magricela e deslavada. Os olhos dela eram de um azul tão pálido que quase pareciam não ter cor. Também era estúpida, e analfabeta, e tão fraca que se podia fazer dela o que se quisesse. A avó era tão má como ela, preferindo gastar o dinheiro que conseguia em álcool. Desde os cinco ou seis anos, quando Ed teve idade para comparar como viviam diferentes pessoas, jurou que iria ser rico. A guerra começou quando ele tinha dezassete anos, e, se tivesse idade para se alistar, tê-lo-ia feito, porque estava farto de tentar ganhar a vida a trabalhar na lavoura. Chegou a entrar em combates de luta livre, o que era lucrativo, mas receava que, se perdesse o seu bom aspeto, as raparigas deixassem de se sentir atraídas por ele. Pensou que alistar-se no exército lhe daria uma oportunidade de demonstrar como era realmente duro e corajoso. Finalmente, fez dezoito anos e pôde alistar-se. Fez a recruta com ótimos resultados e foi enviado para o Egito. O seu bom aspeto, um certo encanto grosseiro e uma grande dose de astúcia não tardaram a afastá-lo dos perigos da guerra, sendo colocado num trabalho de secretária na secção de aprovisionamento. O convívio com oficiais não só lhe proporcionou uma imagem do tipo de vida que acreditava que devia ter tido, mas também o fez compreender que necessitava de copiar a maneira como eles falavam, comiam, se vestiam e se comportavam para não trair as suas verdadeiras origens. Foi um oficial, o major Royston Hawkins, um homem tão pouco escrupuloso quanto Ed, quem lhe abriu a perspetiva do setor imobiliário no final da guerra. Hawkins herdara uma série de casas em banda em Londres, muitas das quais tinham sido gravemente danificadas nos bombardeamentos. Hawkins não queria ter de lidar com aqueles a quem chamava «a ralé», os seus inquilinos, muitos dos quais não tinham de facto pago renda durante todo o período da guerra. Fez um contrato com Ed, segundo o qual ele poderia ficar com cinquenta por cento dos lucros em troca da gestão dos seus imóveis, mas seria responsável pelas obras e por fazer com que os inquilinos pagassem a renda. Era o trabalho perfeito para Ed. Não o incomodavam sentimentos de compreensão pelos pobres, doentes, velhos ou necessitados. Se não pagassem a renda, punha-os na rua. Para fazer obras nas casas, empregava homens desesperados a quem pagava uma miséria, e usava os materiais mais baratos que encontrava. Ganhou dinheiro, e montou uma empresa sua aos vinte e oito anos, a que chamou Reilly’s Real Homes. Comprou alguns lotes de terrenos à volta de Londres e construiu neles o maior número possível de casas. Conheceu Deirdre nessa altura. Ela tinha estudado num colégio de freiras, era bonita e passara toda a guerra como governanta de uma mansão senhorial em Northumberland. Ed apercebeu-se de que ela estaria a par de todas as questões de etiqueta e saberia como governar a mansão que ele tencionava adquirir daí a pouco tempo. Mas as coisas não correram como ele esperava. Deirdre engravidou ainda mal a tinta tinha secado na certidão de casamento, e ele só imaginara filhos crescidos como ele, não bebés a chorar dia e noite. Depois, deu-se um incêndio numa das suas casas, que se espalhou a outras três, e uma jovem mãe morreu no incêndio e duas crianças ficaram gravemente queimadas. Uma investigação provou que a instalação elétrica de todas as casas era pouco segura. Tinham sido construídas com materiais de tão má qualidade que tiveram de ser demolidas. Mais inspeções a outras casas que ele tinha construído provaram que muitas delas não eram seguras, e subitamente a Reilly’s Real Homes passou a ser sinónimo de construção de má qualidade e havia pessoas a exigir- lhe o escalpe. Contraíra grandes empréstimos, e teve de vender o que pôde para os pagar, o que o deixou onde começara. O sonho de ser proprietário de uma mansão foi-se; arranjou emprego como vendedor e à noite tinha de voltar para um par de quartos alugados, um bebé a chorar e uma mulher que o irritava. Começou a descarregar em Deirdre. Ao princípio, sentia-se envergonhado quando lhe batia, mas não tardou a descobrir que bater-lhe aliviava a tensão que sentia a acumular-se dentro de si. Era fácil encontrar razões para lhe pregar uns estalos: o jantar que não estava pronto a horas, uma camisa mal engomada. Quando o segundo filho nasceu, Ed estava de volta ao negócio da construção civil sob um novo nome, e começava de novo a ganhar dinheiro. Mas Deirdre, com a sua voz lamechas e os seus olhos reprovadores, incitava-o a novos cúmulos de violência. * Ed seguiu Katy para fora da estação de Hammersmith, mantendo- se bastante atrás para ela não reparar nele. Via pelo seu andar saltitante que estava a sentir-se toda contente, mas preocupava-o como a agarrar. Obviamente, não podia fazê-lo agora. Embora estivesse quase a anoitecer, havia demasiadas pessoas à volta – e, além disso, não tinha um veículo onde a meter. Descobriria onde ela morava e depois voltaria a casa para ir buscar o carro. As raparigas da idade dela normalmente saíam ao sábado à noite. Ele apanhá-la-ia nessa altura. Não o preocupava muito que ela falasse sobre isto com alguém antes de informar o advogado do seu pai. Trabalhava para um advogado, afinal, e estava habituada a não divulgar informações. E o advogado só estaria no seu escritório na segunda-feira. Se ela tencionasse ir à polícia teria ido direita à esquadra em Hendon. Talvez tivesse perdido a fé na polícia? Ela virou da rua principal para uma lateral. Ed deixou-se ficar à esquina, à espreita por trás de uma sebe de buxo. Katy subiu os degraus da sétima casa a contar da esquina. Como havia um lampião mesmo em frente, ele pôde vê-la claramente. Aguardou uns momentos, para o caso de ela voltar a sair. Como isso não aconteceu, ele deu meia-volta e encaminhou-se para a estação. * – O que fizeste hoje? – perguntou Joan a Katy quando ela entrou e se atirou para o sofá. – Pareces arrasada! – Estive a explorar a cidade – disse Katy –, mas andei mais do que tencionava. Fui a Hampstead. Não é bonito? – Sim, é uma das nossas zonas favoritas, minha e do Ken. No verão, gostamos de passear no parque e depois ir tomar uma bebida ao Spaniards. Quando éramos mais novos, costumávamos ir lá nadar nas piscinas. Talvez tu e a Jilly façam isso quando o tempo ficar mais quente... O telefone tocou nesse momento, interrompendo-as. Joan foi atender. – É a Jilly. Quer falar contigo, Katy – disse de junto ao telefone. Jilly soava muito excitada. Barry, o homem do jardim zoológico de quem ela gostava, ia dar uma festa nessa noite e perguntara-lhe se queria ir e trazer a sua amiga Katy. – Eu disse que adorávamos ir. – A voz de Jilly estava estridente com a excitação. – Mas não posso ir a casa mudar de roupa, é muito longe. Trazes-me uma muda de roupa? Disse o que queria que Katy levasse e deu-lhe um número de telefone. Disse que se Katy lhe telefonasse da cabina telefónica junto ao portão principal do jardim zoológico ela viria abrir-lhe o portão do pessoal. – Alguns dos meus colegas também vão direitos do trabalho, e vamos beber uns copos aqui antes de irmos todos para a festa. É do outro lado da rua, fica muito perto. Ficou combinado que Katy estaria lá às oito. E com isso Jilly desligou. Joan pareceu ficar um pouco zangada por a sua sobrinha não vir jantar. Disse que tinha feito um guisado. – Ela come-o amanhã – disse Katy para a consolar. Joan era mesmo mãe-galinha, sempre a querer dar-lhes de comer. – Ela gosta do homem que nos convidou para a festa, por isso não deve estar a pensar no jantar. – Bem, desde que tu comas alguma coisa – disse Joan secamente. – Suponho que vai haver bebidas nessa tal festa, e precisas de alguma coisa para forrar o estômago. Enquanto Katy comia o guisado, que estava muito bom, sentiu-se um pouco irritada pela primeira vez desde que chegara por Joan ser tão picuinhas. Já lhe bastava a sua mãe. Mas daí a uma semana ela e Jilly iam mudar-se, e ela sabia que devia sentir vergonha por ser tão ingrata. Depois do jantar, Katy tomou banho e pôs o vestido verde que comprara a Gloria antes do Natal. Com o cabelo arranjado e a maquilhagem aplicada, e os seus melhores sapatos de verniz preto de salto alto, sentia-se o máximo. Pegou nas roupas e nos sapatos que Jilly queria e meteu-os num saco, e depois foi para o andar de baixo esperar até serem horas de sair. – Ora bem, saiam da festa a tempo de apanhar o metro – disse Joan. – E não deixem que nenhum rapaz se ponha com frescuras. Katy teve de morder o lábio para não se rir; a sua mãe usava aquela expressão. Katy não sabia bem ao certo o que «pôr-se com frescuras» queria dizer. Tentar beijar uma rapariga? Ou enfiar a mão pela saia dela acima? * Reilly olhou para o relógio pela milésima vez. Eram sete e um quarto, e começava a perder a paciência. Estava estacionado ao fundo da rua, ao dobrar da esquina da rua principal. Já observara que havia uma casa meio em ruínas ali mesmo, para cujo jardim da frente poderia arrastá-la, pô-la sem sentidos e depois enfiá-la na mala do carro. Mas a espera estava a pô-lo nervoso. 9 Q uando de súbito começou a chover torrencialmente, Ed praguejou em voz alta, porque o mau tempo tornava improvável que a rapariga se aventurasse a sair. No entanto, ligou o limpa-para-brisas para poder ver claramente a rua até à casa dela e, por via das dúvidas, decidiu ficar à espera. Às sete e meia, quando a porta da rua se abriu e ela saiu, Ed sentiu vontade de dar vivas. Uma noite horrível era perfeita para o rapto; não se via vivalma, e a rapariga batalhava contra o vento forte com o guarda-chuva. Ed pôs o capuz do casaco e saiu do carro. Sem sequer lançar um olhar a Katy, abriu a mala do carro e ficou ali parado como se estivesse à procura de alguma coisa. Ouvia o matraquear dos saltos altos dela a aproximar-se. Pôs-se a remexer na mala do carro até ela passar por ele. Nesse momento, pegou na chave de rodas, deu meia-volta e atingiu-a com força na nuca. Ela deixou imediatamente cair o guarda-chuva e os sacos que trazia e tombou como um peso morto nos braços dele. Ed agarrou-a sem demora e deixou-a cair dentro da mala do carro, atirando o guarda-chuva e os sacos para cima dela. A luz do lampião era suficiente para lhe ver o rosto. Por um breve momento, sentiu uma pontada de vergonha, porque era um rosto muito doce. Mas só por um momento; dava demasiado valor à sua liberdade para permitir que a sentimentalidade interferisse. * Jilly estava à espera na sala do pessoal no jardim zoológico com Amy, uma colega. Ambas tinham o casaco vestido, prontas a saírem, e Jilly via que Amy começava a ficar impaciente, porque o restante pessoal do turno diurno já tinha partido. – Não compreendo porque é que ela ainda não chegou. Disse que estava aqui às oito com a minha roupa. – Talvez se tenha perdido? – sugeriu Amy, a olhar-se ao espelho enquanto encaracolava madeixas de cabelo diante das orelhas. – Virou para o lado errado ao sair do metro ou coisa do género. – Eu quero esperar, mas vejo que tu queres fechar a porta – disse Jilly. – Seja como for, não posso ir à festa com estas roupas sujas, e não me agrada nada a ideia de esperar à chuva para o caso de ela decidir aparecer. – Tenho mesmo de fechar – disse Amy. – Agora mesmo. Vou à festa. Mas talvez tu devas ir para casa? Jilly suspirou. – Tens razão, Amy. Espero um pouco mais lá fora, para o caso de ela aparecer. Desculpa lá ter-te atrasado. Jilly esperou mais vinte minutos no exterior, junto à bilheteira. Contudo, embora estivesse num abrigo, o vento soprava a chuva na sua direção e ela estava cheia de frio. Por isso, acabou por se dirigir para a estação de metro de Camden Town. Estava furiosa com Katy, porque pensava que o mais provável era ela ter recebido um telefonema daquele seu novo namorado e querer estar com ele mais do que com a sua velha amiga. Era mesquinho da parte dela; Katy sabia perfeitamente que o objetivo desta festa era Jilly começar a sair com Barry, e que não poderia de maneira nenhuma ir com as roupas do trabalho. A tia e o tio estavam a ver televisão junto à lareira quando ela chegou. Ambos vestiam pijama e roupão. Joan tinha rolos de metal no cabelo, e a sala estava quente como uma estufa. – Chegaste cedo – disse Joan. – E onde está a Katy? – Não foi ter comigo ao jardim zoológico. Fartei-me de esperar – disse Jilly atirando-se para o sofá e estendendo as mãos na direção do lume para as aquecer. – Mas ela saiu de casa às sete e meia para ir encontrar-se contigo, levou as tuas roupas e os teus sapatos num saco. Eu disse- lhe: «Deves ser louca para ires sair com esta chuva», mas ela limitou-se a rir e disse que a chuva não lhe fazia mossa. – Bem, então para onde é que ela foi? – perguntou Jilly. – Será que se perdeu no metro? Não se orienta bem em Londres. – Teria telefonado, com certeza, se fosse isso que se passou? – disse Ken. – Talvez tenha encontrado outra amiga? – Que amiga? Ela não conhece ninguém em Londres – contrapôs Jilly. – Bem, para além do sujeito lá do trabalho com quem saiu ontem à noite. Ele telefonou-lhe hoje? – Não, ela esteve fora o dia todo; disse que foi explorar a zona de Hampstead. Não telefonou ninguém a perguntar por ela – disse Joan. – Além disso, porque levaria as tuas roupas se não tencionasse ir ter contigo? Ficaram todos em silêncio durante uns momentos. Ken falou primeiro. – Devíamos comunicar o desaparecimento dela à polícia? – Não sejas tonto – ripostou Joan. – Ainda pouco passa das dez, iam dizer-nos que estávamos a fazê-los perder tempo. – Bem, vou tomar um banho e depois vou para a cama – disse Jilly. – Estou cansada e cheia de frio. Quando ela chegar, digam-lhe que não me acorde, porque tenho de ir trabalhar cedo amanhã. * Jilly acordou às sete na manhã seguinte. Embora ainda estivesse escuro, como a luz do lampião da rua brilhava através das cortinas, ela viu imediatamente que a cama da sua amiga não estava ocupada. Ficou realmente alarmada. Sabia que, mesmo que Katy tivesse encontrado Elvis Presley, que adorava, e que ele a tivesse convidado para ir jantar ao seu hotel, ela teria telefonado. E Jilly sabia que, como Katy ainda era virgem e também um pouco antiquada, nunca ficaria fora uma noite com qualquer homem. – O que havemos de fazer? – Jilly perguntou a Joan, sentadas à mesa a tomarem uma chávena de chá. – Devíamos telefonar primeiro à mãe dela? Esperar um pouco mais ou telefonar já à polícia? – A mãe dela não telefonou uma única vez desde que ela chegou – disse Joan, pensativa. – Por isso, é improvável que a Katy tenha ido para casa. Não podemos telefonar para o trabalho dela, porque é domingo, mas é um pouco cedo para telefonar à polícia. – Mas eu tenho uma sensação esquisita em relação a isto – disse Jilly. – E se ela foi atropelada e está no hospital? – Nesse caso, eles telefonam-nos – disse Joan com firmeza. – Sei que ela colou o nosso número de telefone ao porta-chaves. Fê-lo diante de mim, porque disse que não consegue memorizar números. Não vai a lado nenhum sem a chave. – Isso é verdade – disse Jilly, servindo-se de uma segunda chávena de chá. – Talvez ela apareça mais tarde com uma história mirabolante sobre onde esteve? – Se fizer isso, sentir-me-ei tentada a dar-lhe um puxão de orelhas por nos ter assustado – disse Joan rispidamente. Jilly compreendeu que a sua tia pensava que Katy era um pouco leviana e estava a divertir-se algures. Mas Jilly sabia que não podia ser; não condizia com a personalidade da sua amiga não pensar nos outros. Em todos os anos de amizade, ela fora sempre a mais conscienciosa. – Tenho de ir para o trabalho agora. – Jilly levantou-se da mesa com relutância. – Vou tentar telefonar mais tarde para saber se tiveram notícias. Se não houver novidades, quando eu chegar a casa vamos à polícia. * Enquanto Jilly se encaminhava para a estação de metro, Katy estava deitada numa cama num quarto mal iluminado e sem janelas. Tinha recuperado os sentidos, mas não fazia ideia do que lhe tinha acontecido. Apercebera-se de que estava na mala de um carro, porque não conseguia esticar-se – e, de qualquer maneira, ouvia o motor e o rolar dos pneus numa estrada molhada. Doía-lhe a nuca, e, quando lhe tocou, sentiu um alto, que estava pegajoso, como se estivesse a sangrar. Foi só então que compreendeu que tinha sido atacada por alguém e enfiada no seu carro. A última coisa de que se lembrava era de descer os degraus da casa de Joan e Ken, com o vento quase a virar-lhe o guarda-chuva do avesso, e de pensar que teria sido melhor meter os sapatos de salto alto no saco e usar uns rasos mais resistentes. Agora estava sem sapatos e tinha o casaco a tapá-la, a fazer de cobertor. Como não se lembrava de lhe terem tirado o casaco, supunha que o condutor do carro parara algures para ver se ela estava bem. Não sentia que alguém a tivesse violado de alguma maneira, o que queria dizer que o raptor não era um monstro ou que estava à espera de chegarem ao seu destino. Katy foi violentamente abanada quando o carro passou por um terreno acidentado, e a seguir parou. Devia estar ali presa há algum tempo, porque as pernas davam-lhe a sensação de estarem encolhidas há horas. A mala foi aberta. Mas estava demasiado escuro, e ainda a chover, para ela conseguir ver como era o seu captor. O homem pô- la de pé segurando-a pelos braços. Ela gritou e tentou debater-se, mas ele esbofeteou-a com força. – Não vale a pena gritares, não há ninguém para te ouvir – rosnou-lhe ele. A seguir, arrastou-a por um braço do carro para uma casa que estava às escuras. Sem sapatos, ela teve de atravessar uma poça gelada, e as pedras do caminho magoavam-lhe os pés. – Porque é que me trouxe para aqui? – berrou ela. – A que vem isto? Quem é você? – Sabes exatamente a que vem isto e quem eu sou – disse ele, e abriu a porta da casa e empurrou-a à sua frente para um corredor estreito. Cheirava a humidade e a bolor; o cheiro de uma casa habitualmente desocupada. – Por isso, podes deduzir porque te trouxe para aqui. – Edward Reilly? – disse ela, com o medo a provocar-lhe um nó no estômago. – O próprio – disse ele, e acendeu uma luz. Não parecia um louco ou um rufião corpulento com ombros como a porta de um celeiro, como ela imaginara. Era inegavelmente atraente e parecia muito mais novo do que imaginara, talvez com uns quarenta e poucos anos. Cabelo escuro, olhos escuros, pele lisa e brilhante e maçãs do rosto salientes; era alto, delgado e tinha um ar atlético. Parecia um ator italiano, com a sua pele macia e morena e um nariz aquilino. O seu sobretudo preto com uma gola de veludo era muito caro. Tentou implorar-lhe que a deixasse ir – ou, se não, pelo menos que fosse buscar o casaco dela ao carro, porque estava cheia de frio – mas ele ignorou-a, puxou-a para o fundo do corredor e empurrou-a à sua frente por uns degraus íngremes. A primeira impressão da divisão para dentro da qual a empurrou era que fora concebida como uma espécie de prisão. Não tinha janelas e era sombria, com linóleo castanho no chão, as paredes pintadas de azul-claro e uma lâmpada fraca a pender do teto. Estava limpa, mas não havia mais nenhuma mobília a não ser uma cama, e uma sanita e um lavatório por trás de um biombo. Sem dizer mais nada, ele empurrou-a na direção da cama, recuou e saiu, fechando a porta atrás de si. Ela ouviu os seus passos nos degraus de pedra que davam para o corredor, seguidos pelo estrondo de uma porta mais pesada a ser fechada e aferrolhada. Katy pôs-se a gritar e a bater na porta durante algum tempo. Contudo, ao fim de alguns minutos apercebeu-se de que ele se tinha ido embora no carro. Para onde quer que ele a tivesse trazido, ninguém ia ouvir os seus gritos ou as suas pancadas frenéticas na porta. Compreendeu que teria de se acalmar e tentar elaborar um plano. Perder a cabeça não a ajudaria a escapar. Mas era difícil não entrar em pânico e pôr-se a chorar. Tinha frio, e não havia lençóis na cama, só uns cobertores ásperos que cheiravam a bolor, e uma almofada com uma fronha às riscas pretas e brancas que cheirava ainda pior. Nunca na sua vida se esperara que ela dormisse numa cama como aquela; nem sequer queria tocar-lhe. No entanto, sabia que a frialdade da sua prisão significava que teria de se meter nela. Não havia outra saída a não ser a porta fechada à chave. Katy passou alguns momentos com a orelha colada a ela, a escutar com atenção, mas não ouvia nem sequer um carro ou um cão a ladrar. Tentou recordar-se do que vira lá fora, mas não lhe ocorria mais nada a não ser o carro comprido e elegante de que ele a tirara, que, muito provavelmente, era um Jaguar. Também não lhe parecia que houvesse iluminação pública de qualquer espécie, porque teria reparado nisso no escuro. Para além das suas faces ardentes, o efeito da bofetada que ele lhe dera, e do facto de ela estar apavorada por se encontrar fechada Deus sabia onde, também se sentia furiosa consigo mesma por não ter pensado em tudo antes de se pôr a fazer de detetive. Era mais do que óbvio que o incendiário e assassino era esperto. Não deixara pistas quanto à sua identidade em Collington Avenue, mas incriminara um homem inocente. Devia ter andado a vigiar a casa de Gloria para planear o incêndio, e depois seguira também Edna antes de tentar empurrá-la para fora da estrada. Por isso, também era possível, como Charles sugerira, que já antes tivesse visto Katy. Porque não dera ouvidos ao que Charles dissera? Só uma verdadeira tola – ou alguém muito convencido – ignoraria o conselho de um advogado! No entanto, ela fora à procura da casa de Reilly e fizera perguntas a um vizinho, como se fosse invisível. Ele devia tê-la seguido até Hammersmith para descobrir onde ela vivia. Depois, regressara mais tarde nesse fim de dia com o carro, supondo que ela iria sair a um sábado à noite. Indubitavelmente, se ela tivesse ficado em casa, ele teria aguardado até a um momento em que pudesse apanhá-la sozinha. Ela não tivera só pouca sorte, fora incrivelmente estúpida. Se ao menos, quando saiu do metro em Hammersmith, tivesse ido direita à polícia para contar o que descobrira! Ou, se não, por que não telefonara a Michael Bonham para lhe contar? Pior ainda, deixara o bloco de apontamentos de Edna na sua carteira, que estava agora no carro de Reilly, juntamente com o seu casaco e os seus sapatos. Se ela o tivesse deixado no seu quarto em casa de Joan e Ken, haveria uma probabilidade de Jilly deduzir o que ela andara a fazer. Poderia haver algo mais aterrador do que estar fechada numa cave sem saber quando se seria morta? Com certeza ele tencionava matá-la, também. Que mais poderia fazer com alguém que sabia o suficiente para o mandar para a forca? Jilly ficaria preocupada quando ela não aparecesse no jardim zoológico como combinado. Mas quanto tempo passaria até que ela, Joan e Ken decidissem comunicar o seu desaparecimento à polícia? E como é que a polícia a encontraria? Ela nunca falara a ninguém sobre o bloco de apontamentos, e escondera-o debaixo do colchão, porque não queria que Jilly o encontrasse e o lesse. A única pessoa que sabia da existência do bloco de apontamentos era Charles – e ele não fazia ideia de quais eram as moradas registadas nele. Inspirou fundo e recordou a si mesma que Charles era esperto. Quando ela não aparecesse no trabalho na segunda-feira de manhã, ele perguntar-se-ia a razão. Depois de descobrir que ela não voltara para casa no sábado à noite, adivinharia que andara a seguir uma pista para ajudar o pai. Quase conseguia ouvi-lo a perguntar a Jilly pelo bloco de apontamentos que vira. Mas o bloco não estava lá. Ele não poderia folheá-lo, por muito que quisesse. A única pista que alguém tinha do seu raptor era um Jaguar vermelho- escuro. Nos filmes policiais, os detetives conseguiam encontrar qualquer pessoa, em qualquer lugar. Mas como poderia alguém encontrá-la a ela, quando ninguém fazia a mínima ideia de onde tinha ido hoje? Tinha a certeza de que não estava numa cave na casa de Reilly em Hendon; esta casa só tinha um andar, e não havia iluminação pública. Além disso, tinham percorrido de carro uma distância demasiado grande para ainda estarem em Londres. Ele poderia matá-la e livrar-se do seu corpo muito antes de alguém conseguir encontrar sequer uma pista da morada da casa dele, muito menos deste lugar. Sentiu o estômago revirar-se e teve de correr para a sanita para vomitar. Debruçada sobre o vaso sanitário, num momento enregelada e no seguinte a transpirar, desejou mais do que tudo no mundo ter desrespeitado o pedido de Edna e ter levado aquele bloco de apontamentos para a polícia investigar as moradas. Que arrogância, pensar que poderia resolver o crime... Katy não teve outra opção a não ser envolver-se nos cobertores fedorentos, porque estava com imenso frio. A cabeça latejava-lhe e ainda se sentia enjoada, mas o pior era o medo. Como é que ele a mataria? Seria rápido? Ela já sabia que ele não tinha problemas em queimar duas pessoas vivas, e depois tentara matar Edna forçando- a a despistar-se. O que estaria a preparar para ela? * Katy devia ter dormido. Contudo, sem relógio e sem uma janela para ver se era de dia, não conseguia saber se dormira uma hora ou oito. Mas então, de súbito, ali deitada, ouviu Reilly entrar pela porta lá em cima, fechá-la atrás de si e depois descer os degraus de pedra até à segunda porta. Em pânico, saltou da cama, a olhar desesperadamente à volta da divisão à procura de uma arma, embora já soubesse que não havia nada, nem sequer os seus sapatos. A porta abriu-se e, embora Katy tivesse pensado por um segundo ou dois que poderia saltar-lhe em cima e derrubá-lo, não conseguiu mexer-se quando o viu. – Olá, Katy. Desculpa lá ter tido de te bater para te enfiar no meu carro. Mas na realidade não devias meter o nariz em coisas que não te dizem respeito. A sua voz grave e agradável parecia mais apropriada para um médico ou um advogado do que para um assassino que batia na mulher. – O meu pai está preso por um crime que não cometeu. Qualquer mulher tentaria provar a sua inocência, não acha? – conseguiu dizer Katy. Ele sorriu, e os seus olhos escuros e dentes brancos eram totalmente desarmantes. – Só algumas mulheres, o tipo de mulher engenhosa e corajosa que normalmente prefiro – disse ele. – Mas, infelizmente, é provável que os teus atos me façam perder a liberdade, e isso não posso admitir. Por um breve momento, Katy sentiu que estava num filme. Ele lembrava-lhe um daqueles oficiais nazis em filmes de guerra. É claro que não era louro, mas, de facto, ela achava que ele se adequaria a qualquer papel com uniforme. Sabia que era um homem muito cruel, mau, mas o seu aspeto e a sua maneira de falar não condiziam com esse tipo. – Porquê matar-me? Eu poderia ser-lhe útil – disse ela, mal conseguindo acreditar que aquelas palavras estavam a sair-lhe da boca. Ele riu-se e passou-lhe para as mãos um saco de compras. O saco estava quente, e, ao olhar para dentro dele, Katy viu que era fish and chips e uma lata de Coca-Cola. – É a última ceia? – perguntou. – Talvez – respondeu ele. – Por isso, aproveita. Virou-lhe as costas e, sem mais uma palavra, deixou-a ali, atordoada. * Enquanto Katy, totalmente confusa, abria o pacote de fish and chips, em Hammersmith o telefone começava a tocar. – Talvez seja ela – disse Joan a Ken. – Não acho que possa ser a Jilly, ela está a caminho de casa neste momento. Ken sentia-se sempre irritado com a maneira como a sua mulher tentava constantemente adivinhar quem estaria a telefonar em vez de se levantar e se limitar a ir atender. Estivera tenso todo o dia, à espera de notícias, e Joan agravara as coisas ao falar sem parar sobre a família estranha de Katy, chegando até a perguntar-lhe se pensava que o pai dela realmente poderia ser culpado de ter ateado o incêndio que tirara a vida a duas mulheres. – Então, é melhor ir eu atender, para o caso de ser ela e tu dizeres alguma coisa inconveniente – resmungou ele. Ao sair para o hall de entrada, viu a expressão chocada de Joan. Desta vez, não tencionava pedir desculpa. – Hammersmith 4371 – disse. – É o Ken? Ken disse que sim. – Daqui fala Charles Stevenson. Peço desculpa por me dirigir a si pelo seu primeiro nome, mas a Katy não me disse qual era o seu apelido. Posso falar com ela, se estiver em casa? – Ken serve muito bem. É o advogado da firma onde ela trabalha? – Sim, sou. – Bem, fico muito contente que tenha telefonado, Charles, porque a Katy desapareceu. Saiu ontem à noite às sete e meia para se encontrar com a nossa sobrinha no trabalho dela. Mas não apareceu. – Não sabem nada dela há vinte e quatro horas? – perguntou Charles. – Não, tínhamos a esperança de que ela tivesse ido ter consigo. Mas a nossa Jilly insistiu que ela não faria isso, não sem nos telefonar para dizer onde estava. Não sei se devia telefonar à polícia. As pessoas não têm de estar desaparecidas mais de quarenta e oito horas antes de eles fazerem alguma coisa? – Normalmente, sim. Mas parece-me bastante suspeito. A Jilly está aí, posso falar com ela? – Teve de trabalhar hoje, mas volta dentro de uns vinte minutos – disse Ken. – Importava-se que fosse aí? – perguntou Charles. – Gostaria de falar com a Jilly. – Quer dizer agora? – Sim, por favor. Sei que é domingo à noite e que, provavelmente, não querem um estranho em vossa casa, mas talvez eu consiga puxar uns cordelinhos na polícia. No entanto, preciso de falar primeiro com a Jilly. – É claro que pode vir – disse Ken. Deu-lhe a morada. – Para ser franco, será um alívio falar com alguém racional. Quando Ken voltou para a sala de estar, Joan lançou-lhe um olhar furioso. – Então, eu não sou racional? – Hoje, não tens sido – disse ele. – Segundo a Jilly, o pai da Katy é um dos homens mais bondosos à face da terra. Ela diz que ninguém que o conheça acredita que ele possa ser culpado, e eu tenho um pressentimento de que o desaparecimento da Katy tem algo a ver com aquele incêndio. Por isso, não digas mal dele, Joan. Magoaria a Katy, se ela viesse a descobrir... e a Jilly também não iria gostar. Joan limitou-se a comprimir os lábios, e Ken suspirou. Era perita em compreender mal as coisas e manter-se na sua. O som de uma chave a rodar na fechadura foi extremamente bem- vindo. Ken saiu para o hall de entrada e viu que era Jilly. – Ainda bem que chegaste! – Ken pegou no casaco dela, todo molhado porque estava a chover muito, e foi pendurá-lo na cozinha para secar. – Então, não há notícias da Katy? – Não, tio Ken – disse ela, e os seus olhos encheram-se de lágrimas. – Vamos à polícia agora? Joan veio da sala de estar. – Vais jantar antes de mais nada, e aquele homem do trabalho da Katy vem cá, por isso é melhor deixarmos que seja ele a comunicar o desaparecimento. – Referes-te ao Charles, o homem com quem ela teve um encontro? – Sim, ele telefonou agora mesmo para falar com ela e eu contei- lhe o que tinha acontecido. Ele vem já aí. – Ele acha que ela já está morta? – perguntou Jilly, correndo para os braços do tio para ser reconfortada. Ken abraçou-a e fez-lhe festas nas costas. – Tenho a certeza que não – disse em voz baixa. Mas o nó que sentia no estômago sugeria que talvez fosse exatamente isso que o advogado pensava. 10 – Q uero que me conte exatamente onde a Katy disse que tinha estado no sábado – pediu Charles a Joan, depois de ter sabido que Katy passara o dia a explorar Londres sozinha. Estavam agora todos na sala de estar, Ken e Joan no sofá, Jilly e Charles um em frente ao outro nos dois cadeirões. – Ela disse que tinha gostado de Hampstead – disse Joan. – De facto, disse que queria voltar lá um dia com a Jilly para ver as lojas em condições. – Isso indica que estava demasiado ocupada a fazer outra coisa qualquer para entrar nas lojas – observou Charles. – Deu-lhe alguma pista sobre o que poderia ser? Joan abanou a cabeça. – E a si, Jilly? – perguntou Charles. – As raparigas costumam contar coisas umas às outras. – Não tive oportunidade de falar com ela, não de manhã, porque ela ainda estava ensonada e não me contou o que planeava fazer. E depois, claro, não apareceu à noite como tínhamos combinado. – No trabalho, ela estava a ler um bloco de apontamentos muito usado – disse Charles. – Também tinha um guia de Londres, e estava a anotar moradas. Perguntei-lhe o que estava a fazer, e ela disse que ia procurar uma amiga de uns parentes de Bexhill ou coisa do género. Soube logo que estava a mentir. Disse-lhe que achava que estava a fazer de detetive para encontrar a pessoa que tinha incriminado o pai dela. – Ela não me contou nada disso! – disse Jilly, toda indignada. Sentia-se um pouco magoada por a amiga não lhe ter contado nada e ter revelado todas aquelas coisas sobre o seu pai a um homem que acabara de conhecer. No entanto, como nessa altura Jilly estava cheia de pressa para ir trabalhar, talvez Katy não tivesse tido tempo para lhe dizer nada. – O que era esse tal bloco de apontamentos? Nunca o vi! – Mais tarde, quando estávamos a tomar uma bebida, ela disse- me que lhe tinha sido dado pela Edna, a mulher que foi atirada para fora da estrada e quase morreu. Com certeza sabe disso? – Sim, tínhamos a esperança de que ela ilibasse o pai da Katy. – Bem, ao que parece ela deu o bloco de apontamentos à Katy. Continha todas as moradas e informações sobre as mulheres que a Edna e a Gloria tinham ajudado a começar uma nova vida depois de serem vítimas de maus tratos dos maridos. A Katy acabou por admitir que tinha a intenção de passar em revista as moradas e ver qual dos maridos tinha um Jaguar vermelho-escuro. – Santo Deus! – exclamou Jilly. – Por que raio é que a Katy não me disse nada? Então, acha que ela andava a investigá-los no sábado? – Sim, é o que acho. Pior ainda, penso que é possível que ela tenha encontrado a casa do homem certo, mas que ele a tenha visto e a tenha seguido até cá a casa. – E depois raptou-a quando ela saiu? – Jilly susteve a respiração. – Oh, não, ele podia matá-la! – Não nos precipitemos a tirar essa conclusão para já. Ora bem, Jilly, sabe onde está o tal bloco de apontamentos? – Não, mas vou procurá-lo no nosso quarto – disse Jilly, com os olhos marejados de lágrimas. – Se ela me tivesse contado o que tencionava fazer, eu tinha-a impedido. – A Katy é uma jovem muito decidida – disse Charles com um suspiro. – Se lhe serve de consolo, Jilly, não penso que nada que a Jilly ou outra pessoa qualquer dissesse a teria impedido. Estava desesperada por provar que o pai não ateou aquele incêndio. – Pobre Katy – disse Ken com tristeza, quando Jilly estava a sair da sala. – Quem me dera ter-me apercebido do que andava a passar-lhe pela cabeça. No mínimo, ter-me-ia oferecido para a acompanhar a essas moradas. Isto também vai afetar a Jilly, elas são inseparáveis. Mas o que fazemos agora? – Eu vou à polícia – disse Charles. – Esperemos que, com o tal bloco de apontamentos, se a Jilly o encontrar, a polícia possa verificar as moradas e os proprietários dos carros. Jilly esteve ausente durante uns vinte minutos e voltou para baixo de mãos vazias, com um ar muito preocupado. – Não está lá. Procurei na cama, debaixo do colchão, em todas as gavetas e no guarda-fatos. Não há mais nenhum sítio onde procurar. Charles sentiu que o coração lhe caía aos pés. Sem aquele bloco, não fazia ideia onde procurar. Limpou a testa com um lenço, subitamente cheio de calor. Ou talvez fosse pânico. – Ela deve tê-lo levado. De qualquer maneira, vou agora à esquadra. Mas primeiro, Jilly, tem de me fornecer dados sobre a Katy: data de nascimento, morada de casa e também uma fotografia, se a tiver. – Só tenho uma de nós as duas, que tirámos numa cabina fotográfica – disse Jilly, tirando-a da carteira. – É do verão passado. Charles olhou para a pequena fotografia a preto e branco por um momento. Não fazia justiça a Katy – não captava a sua pele branca e rosada, os seus bonitos olhos e a cor maravilhosa do seu cabelo – mas as duas raparigas pareciam muito felizes. Era o tipo de fotografia que as pessoas guardavam para recordar o momento. Esperava do fundo do coração que todos voltassem a vê-la em breve e pudessem ter também muitos mais momentos memoráveis com ela, mas tinha uma sensação desanimadora de que isso não aconteceria. – Telefono mal tenha comunicado o desaparecimento – disse Charles, depois de ter anotado os dados sobre Katy. Escreveu o seu número de telefone de casa e da firma e entregou-o a Jilly. – Telefone-me se tiver alguma notícia, se encontrar o bloco de apontamentos ou simplesmente se precisar de conversar. Nem sempre estarei disponível durante o dia, porque muitas vezes estou no tribunal, mas deixe uma mensagem e eu contacto-a logo que possa. Jilly fitou-o com os olhos cheios de lágrimas. – Ele vai matá-la, não vai? Não a teria levado se não fosse isso que tencionasse fazer. Charles não foi capaz de admitir que pensava que esse seria o desenlace mais provável. – A Katy deu-me a impressão de ser uma pessoa muito corajosa e engenhosa, por isso há todas as razões para sermos otimistas – disse, com mais convicção do que sentia. Quando Charles se meteu no carro para ir à esquadra em Hammersmith, sentiu um peso no peito maior do que alguma vez sentira. Se Katy tivesse deixado aquele bloco de apontamentos em casa, seria relativamente fácil encontrá-la. Contudo, sem ele, vinha- lhe à mente a velha frase feita, «encontrar uma agulha num palheiro». Evidentemente, ia procurar Michael Bonham e falar com ele. E talvez aquela outra mulher, Edna, pudesse lembrar-se de pelo menos alguns dos nomes que constavam do bloco de apontamentos. Mas era uma hipótese remota. Gostaria de não se sentir tão envolvido. Era irónico que tivesse passado toda a sua vida de adulto a evitar tais sentimentos. Houvera uma longa lista de mulheres, também. No entanto, sempre fugira a qualquer tipo de compromisso. Também não tinha nenhum tipo de compromisso com Katy. Como poderia tê-lo, depois de apenas um serão juntos? Mas passara todo o fim de semana a pensar nela, e por isso lhe telefonara esta noite. Tinha o pressentimento de que não descansaria enquanto ela não fosse encontrada. Só esperava que ainda estivesse viva. * Sem saber se era de noite ou de dia ou que horas eram tornava o encarceramento de Katy ainda pior. Tinha comido o fish and chips que Reilly lhe trouxera e depois disso sentiu tanto frio que se embrulhou nos cobertores e acabou por adormecer. No entanto, e mais uma vez, não sabia se estivera a dormir uma hora ou oito seguidas. Começou a chorar quando acordou. A sua situação era desesperada; ia morrer em breve. E duvidava que ele lhe desse uma morte rápida e relativamente indolor. Ainda por cima, sentia-se dormente com o frio. Talvez ele não voltasse e ela morresse à fome. E se ele voltasse para a torturar? Contudo, depois de chorar e se lamentar, levantou-se da cama e obrigou-se a fazer exercício até aquecer. Saltos estrela, exercícios de bicicleta em cima da cama, até alongamentos do ballet, que recordava de quando era muito mais nova. Quando se sentiu mais quente, começou também a sentir-se um pouco mais esperançada. Havia algumas coisas que sabia. A primeira é que deviam estar a uns dez minutos de lojas, unicamente porque o fish and chips chegara ainda bastante quente. Era também razoável supor que ele lho trouxera por volta das sete horas, já que a maior parte das lojas que vendiam fish and chips abriam por essa hora. Como isso não incluía lojas na província – poucas, se é que algumas, abriam ao domingo –, o mais provável era ela estar nos arredores de uma cidade. Ele também não era um assassino típico. Ao pensar nisso, quase se riu. O que é que ela sabia sobre assassinos? Absolutamente nada! Mas ele não tinha o aspeto nem a maneira de falar de um bruto. Era o tipo de homem que ela via diariamente no comboio a caminho do trabalho, com um bom corte de cabelo, bem barbeado, limpo e arranjado. Batera-lhe para a trazer para aqui, depois trouxera-lha comida um pouco mais tarde em vez de a matar logo de seguida, o que dava a entender que não sabia como se livrar do corpo; dizia-se sempre que esse era o maior problema de matar alguém. Ou seria que ele queria brincar com ela? Da mesma maneira que um gato brinca com um rato ou um pássaro durante algum tempo antes de finalmente o matar. Esperava que fosse esta última hipótese, e decidiu que era nisso que devia concentrar-se. Quanto mais tempo conseguisse mantê-lo interessado nela, tanto maiores seriam as suas probabilidades de ser encontrada viva. Mas como poderia mantê-lo interessado? Talvez não parecendo nem soando receosa dele? Recordou-se de Edna lhe ter dito qualquer coisa sobre o facto de os homens intimidarem e maltratarem as mulheres para encobrirem as suas próprias fraquezas. Ela dissera que lamentava não ter dado luta ou abandonado o lar na primeira vez em que foi vítima de violência doméstica. Mas não o fez, porque acreditava que, de algum modo, era responsável pela fúria do marido. Então, e se ela se comportasse como se não se importasse de ser sua prisioneira? Podia insistir que ele lhe trouxesse um aquecedor e roupas mais quentes, para começar, em vez de lhe suplicar que a libertasse. Talvez isso o desarmasse. Só pensar nisso fê-la sentir-se otimista. Chorar e bater com os punhos na porta não dariam resulta do nenhum. * Pareceu-lhe terem passado pelo menos dois ou mais dias até ela voltar a ouvir os passos dele do outro lado da porta. Duvidava que tivesse passado assim tanto tempo, porque com certeza teria adormecido. Mas nunca na sua vida se sentira tão entediada durante tanto tempo. Nada para fazer, ler, comer, escutar ou para que olhar, acompanhado por um enorme terror. Nem chávenas de chá nem uns petiscos. Começava a compreender porque é que a prisão solitária fazia enlouquecer as pessoas. E o frio era terrível; por muito que se embrulhasse nos cobertores fedorentos, não parava de tremer. Mas o som de passos nas escadas fê-la sentar-se direita e alisar o seu vestido engelhado, pronta para o que, esperava, seria uma atuação digna de um Óscar, a fazer exigências, ser encantadora e não mostrar nenhum medo. – Olá – disse ela quando ele entrou. – Tem de me arranjar um aquecedor e roupas mais quentes, isto aqui é como no Ártico. E já agora, estes cobertores cheiram muito mal. Ele estacou, nem sequer se virando para fechar a porta à chave. A sua expressão era de total perplexidade. – Oh, estou a ver – disse ela, animada, porque sentiu que ele ficara realmente espantado. – Esperava encontrar-me a soluçar? Desculpe lá, não sou de lágrimas. Pensei que seria melhor se nos déssemos bem. Vou dizer-lhe o que quero: comida, um aquecedor, roupas quentes e alguns livros. E depois pode dizer-me o que espera de mim. Oh, sim, e gostava que me devolvesse a carteira, porque tenho lá os meus cosméticos e a escova do cabelo. Também preciso de uma escova de dentes e de pasta de dentes. – Mas quem raio julgas que és? – perguntou ele, e Katy sentiu que havia uma pontinha de admiração na pergunta. – Sou a Katy Speed, secretária legal, é quem eu sou. Quem é que você julga que é? O novo Assassino do Banho de Ácido? O John Christie? Quem? Não havia dúvida de que ele era um homem bem-parecido, para quem gostasse do tipo de cabelo escuro, olhos melancólicos e maçãs do rosto salientes. Recordava-lhe um pouco Anthony Perkins, só que não tão assustador como ele era no filme Psico – e muito mais velho, claro. Recordava-se de ter ido ver esse filme com Jilly duas vezes, e em ambas tinham ficado tremendamente assustadas. – Vim para te perguntar o que queres comer. Não para ser insultado – disse ele. – Oh, desculpe lá! Mas dá-me uma pancada na cabeça e fecha- me aqui, e espera que eu seja toda simpática consigo? Que opções de comida tenho? – Fish and chips ou salsichas com batatas fritas. – Ainda bem que gosto desses dois pratos – disse ela, e lançou- lhe aquele sorriso a que alguns homens já tinham chamado desarmante. Para surpresa dela, ele riu-se. – És uma rapariga muito fora do comum, Katy. Mas não queiras fazer-me zangar. Eu posso ser muito mau. – Acredito que sim. Porque é que escolheu o meu pai para o incriminar pela morte da Gloria Reynolds e da filha? Ele não lhe tinha feito mal nenhum. – Cuidado com a língua – disse ele. Katy teve de se obrigar a não estremecer quando ele se aproximou dela. – Não pode esperar que eu não faça essa pergunta – disse, com mais coragem do que sentia –, especialmente quando estou cheia de fome e de frio. Por isso, arranje-me lá as salsichas com batatas fritas e traga as outras coisas que lhe pedi. Ele arregalou momentaneamente os olhos, com a surpresa. A seguir, semicerrou-os e comprimiu os lábios. Katy estremeceu interiormente, mas ele virou-se e saiu da divisão, fechando a porta à chave. – Agora é que a fizeste boa – disse ela para consigo. – Vais ficar sem comida nem nada. Passas sempre das marcas. * Charles entrou a toda a pressa na estação de St. Pancras e só por um triz conseguiu apanhar o comboio das 17h15 para Broadstairs. Teve de viajar de pé, porque o comboio estava cheio de pessoas a voltarem para casa do trabalho, mas não pudera ir mais cedo, porque esteve no tribunal. Era agora o fim da tarde de terça-feira, Katy estava desaparecida há quase setenta e duas e até ao momento a polícia não obtivera ainda nenhumas pistas. Tinham procurado ao longo da rua em Hammersmith – um sapato tombado ou algo que pudessem identificar como pertencendo a Katy – mas não encontraram nada. Um polícia perguntou a Charles quantos carros vermelho-escuros da marca Jaguar pensava que havia em Londres, e se pretendia verificá-los um a um. Charles não fazia ideia de quantos havia, e o número que lhe foi indicado, 7000, tornava de facto a investigação muito difícil. Na manhã do dia anterior, Charles tinha telefonado a Michael Bonham, que ficou horrorizado ao saber do desaparecimento de Katy. Só hoje conseguira persuadir Edna a falar com Charles e contar-lhe tudo o que sabia. Era então para onde Charles se dirigia agora, para a casa de Claire, a filha de Edna. Michael Bonham também se encarregara da tarefa pouco invejável de contactar a mãe de Katy. – Mrs. Speed mal reagiu – contara Bonham a Charles ao telefone. – Limitou-se a dizer: «É mesmo da Katy julgar que ela é que sabe.» Francamente! Que tipo de mãe não mostra pelo menos alguma emoção por a filha ter sido raptada? Se fosse a minha filha, eu ficaria destroçado, mas também com orgulho nela por ter tido a coragem de tentar ajudar o pai. Tiveram uma pequena conversa de advogados sobre a sua constante surpresa perante os comportamentos humanos. A seguir, Michael prosseguiu dizendo que Edna estava muito fraca e assustada. – A filha dela diz que envelheceu vinte anos da noite para o dia. Disse que treme com medo sempre que ouve tocar a campainha. A Edna está indecisa entre querer ajudar a Katy de todas as maneiras possíveis e o receio de que o homem possa vir atrás dela outra vez. Também tem medo de nos contar aquilo de que consegue lembrar- se sobre as mulheres que ela e a Gloria ajudaram, para o caso de isso a pôr em perigo assim como à família. – É bastante compreensível – disse Charles. – Mas temos de a fazer ver que está a pôr em perigo a vida de mais mulheres se mantiver o silêncio. Se o raptor da Katy tiver deitado a mão àquele bloco de apontamentos, e penso que é quase certo que sim, talvez não seja só à ex-mulher dele que queira fazer mal, mas também a todas aquelas mulheres que deixaram os maridos. – Concordo – disse Michael. – Penso que deve ir visitá-la, Charles, e tentar persuadi-la. Eu já tentei, mas falhei. Ela diz que não se lembra de nenhum dos pormenores do bloco de apontamentos, mas não acredito nisso. E por isso Charles estava agora a caminho de Broadstairs, depositando todas as suas esperanças em que Edna se lembrasse de algo útil. Com certeza recordaria os casos mais sérios de violência doméstica; os nomes das mulheres, e de onde eram. No seu trabalho, Charles não esquecia os casos piores, embora desejasse com frequência poder fazê-lo. Bonham mostrara-se também preocupado com a necessidade de informar Albert Speed do desaparecimento da filha. Charles pedira- lhe um par de dias para a encontrar primeiro. Parecia incrivelmente cruel dizer a um homem que se encontrava na prisão que a sua filha estava nas garras de um assassino. Mas Bonham conseguira obter de Hilda um número de telefone para contactar Rob, o irmão de Katy, e já lhe telefonara. Rob sugerira que iria ao Sussex e visitaria o pai na prisão para lhe contar. Quisera ir para Londres para tentar ajudar a encontrar a irmã, mas Bonham dissuadiu-o, dizendo que por agora seria mais útil se ficasse com a mãe e visitasse o pai. Por mais fria que Hilda Speed parecesse, era bem provável que estivesse muito perturbada e necessitasse do auxílio de Rob. * Smugglers, o pequeno hotel de que eram proprietários Mrs. e Mr. Unwin, a filha e o genro de Edna, era provavelmente bastante pitoresco num dia de verão, com vasos de flores junto à porta e uma vista desimpedida do mar. Contudo, no escuro e à chuva, ao espreitar da janela do táxi, pareceu a Charles simplesmente velho e um pouco desleixado; mesmo as luzes eram poucas e fracas. Charles desejou não ter acedido a passar lá a noite. Estava a contar com uma cama ligeiramente húmida e com um colchão cheio de altos, e falta de água quente de manhã. A porta foi aberta por uma mulher de uns vinte e muitos anos, baixa, atraente e com cabelo escuro. – Mr. Stevenson? – perguntou, e quando ele disse que sim, ela abriu a porta para trás a dar-lhe as boas vindas. – Que noite mais horrenda para nos visitar – disse, com um brilho nos olhos escuros. – Eu disse à minha mãe que devia sentir-se honrada por ter um advogado de Londres a vir cá abaixo vê-la. Normalmente, os nossos hóspedes tendem a ser um pouco desinteressantes. Seria difícil ter uma conversa interessante com qualquer um deles. – Não me parece que vá achar a minha conversa muito interessante – disse ele com um sorriso, já a gostar desta mulher inesperadamente bem-disposta. – Mas tentarei ao máximo não ser demasiado desinteressante. – A minha mãe está lá em cima no quarto dela. Lamento, mas tem demasiado medo para estar cá em baixo connosco. Bom, se eu tivesse sido empurrada para fora da estrada de propósito e quase me tivesse afogado em águas geladas, penso que talvez quisesse ficar num quarto fechado à chave. – Nisso concordo consigo – disse Charles. Hesitou antes de perguntar: – Então, acha que vá lá acima vê-la agora? – Não, primeiro tome uma chávena de chá ou uma bebida mais forte connosco – disse Claire. – Ela está a jantar neste momento. * Charles nunca tinha visto Edna. Mesmo assim, quando entrou no quarto dela, pôde confirmar como o seu quase encontro com a morte a tinha afetado profundamente. Parecia uma mulher de mais de sessenta anos, tinha os olhos mortiços e estava a esfregar as mãos nervosamente. Quando ele se aproximou da cadeira dela para lhe dar um aperto de mão e se apresentar, ela contraiu-se com medo. – Não tenha medo de mim, Edna, estou aqui para tentar ajudar – disse Charles suavemente, e acocorou-se ao lado da cadeira dela, pousando-lhe a mão no braço a sossegá-la. – Passou por uma provação terrível, e lamento imenso, mas agora pensamos que esse homem raptou a Katy. Por isso, tenho de lhe pedir que tente ultrapassar o seu medo, a bem dela. – Eu quero – disse ela, em voz baixa e com os lábios a tremer. – Gostei muito da Katy. Se ao menos não lhe tivesse dado o bloco de apontamentos! A minha intenção era que ela o entregasse à polícia ou a Mr. Bonham, não que fosse sozinha procurar o homem. – Penso que ambos reconhecemos agora que a Katy é uma rapariga destemida. Mas fez o que fez pelas razões certas, por isso temos o dever de ajudar a encontrá-la. – O que posso fazer? – perguntou Edna. – Tente lembrar-se de alguns dos piores casos com que a senhora e a Gloria se depararam. Particularmente aqueles em que, tanto quanto sabe, as mulheres não voltaram para os maridos. Edna fechou os olhos e juntou as mãos no regaço. – Acho que esta é a melhor maneira de eu recordar o passado. Vá lá para baixo ter com a Claire e jantar. Eu anoto tudo aquilo de que me lembrar. No andar de baixo, Claire recebeu-o calorosamente e ele relatou- lhe o que a mãe dela lhe dissera. – Ela vai lembrar-se de alguma coisa, lembra-se sempre – disse Claire. – Resta ver, no entanto, se vai lembrar-se do monstro certo. Pelo que me contou no passado, parecem todos ser discípulos do diabo. Mas sente-se, Mr. Stevenson. – Indicou a mesa da cozinha. – Vou servir o jantar daqui a pouco, mas que me diz a um gin tónico? Ou gostaria de ver primeiro o seu quarto? – O quarto pode esperar, um gin tónico seria maravilhoso – disse ele. A própria Claire revelou-se também um verdadeiro tónico. A bebida caiu mesmo bem a Charles, a cozinha estava quente e era acolhedora, e ela era ótima companhia, engraçada, irreverente e compassiva. – A minha verdadeira profissão é assistente social – admitiu. – Comprámos esta casa para quando eu decidir desistir poder ter alguma coisa para que me virar. É fácil de gerir; só temos quatro quartos de hóspedes, e mais ninguém a não ser o senhor esta noite. – Então, seguiu as pisadas da sua mãe? – Sim, e ambas parecemos atrair as pessoas desesperadas, despojadas e condenadas. Talvez seja por causa do que ela passou com o meu pai, e pelo meu sentimento de culpa por ter assistido ao que se passava. As pessoas imaginam que uma terrinha encantadora como Broadstairs não tem problemas como maridos violentos, pedófilos, pais cruéis e todas as outras coisas horrendas de que os seres humanos são capazes. Mas acredite em mim, também há bastantes casos desses aqui. Charles concordou. – Sim, os clientes que precisam de ser defendidos provêm de todas as classes sociais e zonas do país. Dá a impressão de que estamos cercados de vileza. Claire sorriu. – Adoro essa palavra, «vileza»! Agora diga-me, qual é a sua ligação com a Katy Speed? Sei que não é o advogado do pai dela. – A Katy veio recentemente trabalhar como secretária legal na nossa firma. Contra todas as regras, levei-a a beber uns copos na sexta-feira passada. – Está a tentar ajudar porque sente algo por ela, ou é só por um sentido de dever? – A senhora é direta. – Charles sorriu. – Não é meu costume admitir tal coisa, mas sim, sinto algo por ela. – Muito bem, é sempre bom confirmar os sentimentos das pessoas de imediato, e eu diria que lhe dá mais determinação para a encontrar do que a polícia deve ter. O que dizem eles sobre o desaparecimento da Katy? – Que é demasiado cedo para se ter a certeza se foi raptada. Como se a Katy desaparecesse sem motivo nenhum! – Suponho que, por vezes, há quem o faça, mas com o pai preso por um crime que obviamente não cometeu e a minha mãe a sofrer um atentado à sua vida, eu esperaria que a polícia não se poupasse a esforços para encontrar o verdadeiro assassino. * Tinham acabado de jantar quando Charles ouviu soar uma sineta no andar de cima. – Deve ser a minha mãe – disse Claire. – Penso que quer dizer que se lembrou de alguma coisa para si. Charles agradeceu a deliciosa refeição a Claire e apressou-se a ir ao andar de cima. Edna tinha um bloco de apontamentos no regaço e toda uma página coberta com palavras escritas por ela. – Tornou-se um pouco mais fácil depois de eu recordar aquilo a que chamámos «a nossa primeira». Ela não foi a primeira mulher que ajudámos, mas a primeira a nunca mais voltar para o marido. Chamava-se Sonia Birchill, e era de Kentish Town. Mudou-se para Brighton, com a nossa ajuda, e mudou de apelido, ela e os filhos, para Paterson. Embora Mr. Birchill fosse má rês, não penso que possa ser o nosso homem. Para começar, não conduzia, e viviam num apartamento camarário, com muito pouco dinheiro. Por isso, mesmo que tivesse aprendido a conduzir, duvido que tivesse posses para comprar um Jaguar; e não era lá muito esperto, pelo que a Sonia nos contou. – Teve notícias dela desde que se instalou em Brighton? – Sim, enviava-nos sempre um postal de Natal. E há cerca de quatro anos escreveu a dizer que tinha um homem encantador na sua vida e que os seus dois filhos estavam a ter bons resultados na escola. – Suponho que não se recorda da morada da Sonia ou da do marido dela? – Ele vivia num bloco de apartamentos chamado Denyer House. No segundo andar, mas não me recordo do número. A Sonia vivia bastante perto da estação de caminhos de ferro em Brighton, mas não me lembro da morada; nunca a punha nos postais ou nas cartas. Esse era um conselho que nós dávamos a todas as nossas mulheres, que nunca confiassem a sua nova morada a ninguém do seu passado. Assim, era mais seguro. Charles acenou com a cabeça. – A polícia deve poder verificá-los só com o que me deu. Ora bem, que mais tem? Edna indicou-lhe nove nomes no total. Conseguira recordar-se dos nomes de casadas de todas as mulheres e, se não da morada exata do domicílio conjugal, pelo menos da zona em que ficava. Também se recordava dos filhos dessas mulheres, surpreendendo Charles ao recitar os seus nomes e idades na altura em que ela tinha ajudado as mães deles. Lembrava-se de alguns dos nomes adotados pelas mulheres e de alguns dos locais para onde se tinham mudado. Charles achou que ela se saíra espantosamente bem, dadas as circunstâncias. Uma coisa que Edna recordava muito claramente era o tipo de danos físicos de todas essas mulheres quando vieram procurá-la. Charles estremeceu quando ela lhe falou da marca de um ferro quente nas costas de uma das mulheres. A outra o marido lambuzara o rosto com decapante de tinta e segurara-lhe os braços para ela não poder lavá-lo imediatamente até o líquido lhe queimar o rosto. Membros partidos, marcas de vergastadas, olhos pisados, dentes partidos e uma mulher grávida atirada por umas escadas abaixo. Perdera o bebé no dia seguinte. – Horrendo, não é? – disse Edna quando acabou de fazer aquela lista, e limpou uma lágrima que lhe corria pela face. – É claro, a Gloria e eu tínhamos recebido um tratamento mais ou menos semelhante dos nossos respetivos maridos, e de cada vez que conhecíamos uma destas pobres mulheres, era como se o revivêssemos. A polícia devia ser obrigada a atuar em tais casos; faz-me sentir tão furiosa ouvir como se referem a eles como um «caso doméstico». Mesmo quando prendem o marido, ele sai sob fiança e está de volta a casa numa questão de horas para dar mais uma dose à mulher. Fora um dia longo e cansativo, e Charles sabia que tinha de se ir deitar para se levantar cedo na manhã seguinte. Pôs-se de pé, inclinou-se e beijou Edna na face. – É uma senhora muito corajosa e bondosa, e uma inspiração – disse. – Farei todos os possíveis para que este homem não só seja posto atrás das grades, mas também seja enforcado. E também, daqui para a frente, pode contar comigo para divulgar a necessidade de ajudar as mulheres vítimas de violência doméstica. Ela sorriu-lhe e pegou-lhe na mão. – Rezarei para que a Katy seja encontrada viva e bem, e para que algo de bom saia de tudo isto para vocês os dois. Mas vou assegurar-me de que cumpre a sua promessa de apoiar as vítimas de violência doméstica; acredito que é o homem que poderia ajudar a mudar atitudes e a lei. 11 K aty tinha tanta fome que achava que seria capaz de comer um rato vivo, pelo e tudo, se ele entrasse ali naquela cave. Não tinha apenas fome, sentia-se faminta, e estavam sempre a passar-lhe pela mente ideias nojentas e ridículas, como a de comer o tal rato. Perguntava-se se seria um prelúdio da loucura. Nos livros, as pessoas que tinham fome ou sede pareciam sempre estar em locais quentes. Viam miragens de torneiras a pingar ou de fontes. Mas ela estava com tanto frio que queria imaginar-se a sentir calor. Infelizmente, era-lhe impossível. Conseguia imaginar facilmente terrenos cobertos de gelo, mas tentava não o fazer, porque só tornava as coisas piores. Quando Reilly saiu de rompante, ela pensou que ele a deixaria por uma hora ou duas para a punir por ter sido tão exigente. Mas esperava que acabasse por voltar com comida. Contudo, ele não voltara, e ela tinha quase a certeza, apesar de não ter relógio e não conseguir ver a luz do dia, que se tinham passado pelo menos quarenta e oito horas desde essa altura. Tentara dormir, mas não conseguira, por causa do frio. Sem nada para fazer para passar o tempo, a sua imaginação apoderara-se dela. Via-se a ficar cada vez mais magra até já não poder pôr-se de pé ou andar. Também começara a pensar na hipótese aterradora de ele nunca mais voltar. Era óbvio que ele poderia resolver o problema do que fazer com ela simplesmente deixando-a aqui para morrer. Quanto tempo demorava a morrer à fome? Sabia que se dizia que só era possível sobreviver cerca de uma semana sem água, mas nunca ouvira dizer quanto tempo poderia sobreviver-se sem comida. Supunha que, provavelmente, seriam semanas. Aquele pensamento era verdadeiramente horrível. O seu estômago já estava tão vazio que lhe doía, e a comida dominava os seus pensamentos: salsichas a fritar numa frigideira, um assado de domingo com batatas assadas douradinhas, ou uma tosta de queijo, com a manteiga a escorrer do pão por baixo do queijo. Recordava- se de como, quando tinha cerca de quinze anos, costumava ler livros sobre a vida nos campos de prisioneiros e como cada dia havia que procurar algo para comer: uma côdea de pão ou umas cascas de batata. Quando lera aquilo, nunca lhe passara pela cabeça que poderia um dia ter essa experiência. Para tentar esquecer a comida, punha-se a pensar na sua vida em Bexhill. Visto agora, com fome e frio, o seu lar parecia o palácio mais luxuoso, a sua mãe perfeita e afetuosa, a preparar refeições que eram verdadeiros festins. E havia também o escritório em Bexhill, com bolo quando alguém fazia anos, os folhados de salsicha da padaria do outro lado da rua, os intervalos para o almoço passados no Wimpy Bar; conseguia sentir o cheiro a cebolas fritas agora, o que lhe fazia crescer água na boca. Tentara a todo o custo pensar em qualquer outra coisa, mas não conseguia, os seus pensamentos estavam sempre a voltar à comida. No entanto, de vez em quando pensava de fugida em Charles. Reviver o beijo dele conseguia fazê-la esquecer a fome por breves momentos, assim como sonhar acordada sobre como tudo poderia ter sido se ela não tivesse ido à procura do Jaguar vermelho. Pensava também em como o seu pai ficaria perturbado quando soubesse que ela tinha desaparecido. Sabia que ele preferiria passar o resto da vida na prisão a estar em liberdade sem a filha. Até mesmo a sua mãe seria capaz de chorar – algo que Katy jamais vira. Perguntava-se porque é que nunca se lembrara de se sentar com a mãe e insistir que ela explicasse porque era tão fria e ríspida. O que a tinha tornado assim? Agora que Katy pensava no assunto, apercebia-se de que não sabia praticamente nada sobre a mãe; não fazia ideia de onde crescera ou de como tinha conhecido Albert. Como era em nova? Como eram os pais dela? Era simplesmente um grande espaço em branco. Ficar toda encolhida debaixo dos cobertores para tentar manter-se quente fazia-lhe doer o corpo todo. Obrigava-se a levantar-se, a espreguiçar-se e a tentar fazer alguns exercícios, mas, como isso lhe provocava tonturas, voltava a deitar-se e a puxar os cobertores para cima de si. Mas então, quando já pensava que nunca mais voltaria a ouvir aquele som, ouviu passos nos degraus do outro lado da porta. Ele teria vindo para lhe dar de comer ou para a matar? O coração começou a bater-lhe com mais força e apertou mais contra si os cobertores, como se isso a protegesse. – Toca a acordar – disse ele, e o tom jocoso foi mais assustador do que se lhe tivesse rosnado. Espreitou por cima dos cobertores. Para seu choque, Reilly trazia o que parecia ser um aquecedor elétrico e um saco de compras, que poderia conter roupas ou comida. Embora o seu instinto fosse levantar-se de um salto e agradecer- lhe, recordou a si mesma que iria mais longe com ele se continuasse a mostrar-se indiferente. – Que dia é, e que horas são? – perguntou, bocejando como se tivesse acabado de fazer uma sesta. – Quinta-feira, quatro da tarde. Tencionava vir ontem, mas não pude. – Bem, está aqui agora. – Tentou soar descontraída, mas tinha os olhos pregados no saco de compras. Teve de se conter para não dar um salto e arrancar-lho das mãos. – Estás muito calma – disse ele. – Contava vir encontrar-te desesperada. – Desesperada porquê? – disse ela. – Pela sua companhia? Ele pareceu surpreendido com aquilo e estendeu-lhe o saco. – Umas roupas e comida. Era demasiado cedo para te comprar comida quente, mas tens aí uma empada de porco, um bolo e fruta. Vou ligar este aquecedor. Resistir a atirar-se à empada de porco e metê-la toda na boca ao mesmo tempo que se punha quase em cima do aquecedor foi realmente difícil. Embora fosse um aquecedor só com uma resistência, Katy sentiu quase imediatamente o seu calor. Obrigou- se a afastar-se do aquecedor o tempo suficiente para tirar do saco uma camisola castanha de lã, umas calças castanhas e uma camisa branca. Vestiu a camisola imediatamente e dobrou as outras peças, que pousou em cima da cama. Não eram novas, mas eram de boa qualidade; Katy supunha que teriam pertencido à mulher dele. Também havia meias e cuecas. As cuecas eram novas, três pares num saco de celofane selado do Marks and Spencer. – Muito bem, obrigada – disse ela, e pegou na empada de porco com as mãos a tremer. Era grande, dava para quatro pessoas, com a massa folhada dourada e brilhante. Sabia que seria capaz de a despachar toda em quatro segundos, mas não devia fazê-lo. – Desculpe – disse, delicadamente. – Eu preferia comer isto num prato com faca e garfo, mas o que tem de ser tem muita força. – Deu uma dentada e esforçou-se ao máximo por disfarçar o seu tremendo deleite ao sentir o sabor. Nada por que alguma vez passara lhe custara tanto como não meter aquela empada à boca toda de uma vez. A carne estava perfeita, saborosa e tenra. A massa folhada derretia-se na boca. Mas comer uma empada de porco grande com boas maneiras sem talheres nem prato era muito difícil. Por isso, depois de algumas dentadas, embrulhou o que restava no papel vegetal e voltou a metê-la no saco das compras. – Como-a mais tarde – disse. – E agora, se se explicasse? Porque é que incendiou a casa da Gloria? Reilly encostou-se à parede, com os braços cruzados no peito. – Aquela cadela tirou-me a minha mulher – disse. – Mas tu sabes isso. A outra cadela, a ajudante dela, contou-te e deu-te aquele bloco de apontamentos. – A Gloria e a Edna ajudaram a sua mulher a ter uma nova vida, ela e os vossos filhos, longe de si. Alguém tinha de os ajudar; o senhor quase matou a Deirdre, e os seus filhos estavam a sofrer por presenciar isso. – Eu só lhe preguei um par de bofetadas, ela tinha uma boa vida comigo. Aos miúdos não faltava nada, bicicletas, qualquer brinquedo que quisessem. – Os brinquedos não compensam ver a mãe com ossos partidos. Porque não foram «só umas bofetadas», pois não? – Conheces a Deirdre? Katy viu um lampejo de esperança no rosto dele. – É claro que não, como poderia conhecê-la? O acordo dela com a Edna e a Gloria era muito privado. A única razão por que eu soube da existência dela e das outras mulheres foi o meu pai ser acusado de matar a Gloria. É por isso que eu andava a tentar caçá-lo a si. – A tentar caçar-me? – A voz dele subiu uma oitava. – Sim, era exatamente isso que eu estava a fazer – disse ela num tom de desafio. – E o que ias fazer quando me encontrasses? – Denunciá-lo à polícia, claro. – Mas não fizeste isso, pois não? Eu sei, porque andei a seguir-te. Katy apercebeu-se de que dar a entender que já tinha dito a alguém onde ele vivia poderia encurtar a sua vida. Ser mais esperto do que as outras pessoas era claramente importante para ele. – Lamento não ter ido direita à esquadra de Hammersmith. O meu plano era telefonar ao advogado do meu pai na segunda-feira de manhã. Mas, olhe lá, como estou aqui consigo agora, porque não me conta alguma coisa sobre si? – Porque faria uma coisa dessas? – Olhou para ela com uma expressão dura, os olhos escuros como alcatrão líquido. – Porque se sente infeliz, e talvez se sentisse melhor se partilhasse os seus sentimentos comigo. – Eu não me sinto infeliz. Katy suspirou. – Sente, sente. Suspeito que sempre foi infeliz, ou não teria começado a bater na Deirdre. Ainda sente a falta dela, quer que volte para si. Pensa que isso vai torná-lo feliz outra vez. Mas não vai, claro. Katy estava a dizer coisas ao acaso, pedaços mal digeridos de termos de psicologia que lera aqui e ali. O que realmente queria era comer o resto da empada de porco e o bolo. – Eu não a quero de volta, já não; ela era uma mulher estúpida, patética, e eu arranjo-me muito bem sem ela. – A quem é que está a tentar enganar? – perguntou Katy. – Não se está nada a arranjar bem. Está cheio de fúria. Até se libertar disso, nunca será feliz nem conseguirá começar uma nova vida. Katy recostou-se na cama e deu uma palmadinha nos cobertores, a convidá-lo a sentar-se ao seu lado. – Você fascina-me, Ed. Posso tratá-lo por Ed, não posso? Ele não se mexeu para se sentar ao seu lado, continuando a olhar para ela com aqueles seus olhos escuros inescrutáveis a perfurá-la. – Sim, podes chamar-me Ed. Que joguinho é o teu? – Joguinho? – Katy franziu a testa, como se não compreendesse a pergunta. – Só quero ficar a conhecer o homem que tenciona matar- me. É essa a sua intenção, não é? Embora eu não compreenda porque não o fez mal me apanhou. Quero dizer, podia ter-me espetado uma faca ou ter-me estrangulado e atirado com o meu corpo para o jardim de alguém. De repente, Katy compreendeu que ele só gostava de matar à distância. Num incêndio, a empurrar alguém para fora da estrada. Não gostava de estar perto. – Se pensas que isso quer dizer que te vou deixar ir embora, estás muito enganada – disse ele. Katy sorriu. Pressentia que ele não tinha um plano. – Que motivo tens para sorrir? – perguntou ele. – Tenho comida, roupas quentes e um aquecedor – disse ela. – Depois de como estavam as coisas há uma meia hora, pode considerar-se um progresso. E você também é um homem interessante, com bom aspeto. Consigo ver porque é que a Deirdre se apaixonou por si. O que é que havia nela que o fazia bater-lhe? – Cala essa boca, mulher – rosnou-lhe ele. Os seus olhos escuros tornaram-se ainda mais escuros e ficou com o rosto corado, quase roxo. – Vou-me embora, e não quero mais perguntas, ou não volto. – Faça o que entender – disse ela, com mais calma do que a que sentia. – Eu só queria ficar a conhecê-lo melhor. Ele saiu imediatamente, batendo com a porta atrás de si. Katy pegou na empada de porco e comeu-a com sofreguidão. Só quando sentiu a sua fome saciada parou para pensar no que se passara entre eles. Não havia dúvida de que ele era uma pessoa peculiar, perturbada. A maneira como se virara contra Katy por ela lhe perguntar o que o fizera bater em Deirdre era interessante. Katy supunha que ele gostaria de esquecer que tratara brutalmente a mulher que amava, e autoconvencera-se que fora Gloria quem levara Deirdre a deixá-lo. Deirdre era com certeza uma mulher muito fraca, pelo menos no início do casamento, até finalmente se fartar. Era irónico que Reilly não conseguisse ver que fora ele a levá-la a fugir. No entanto, refletir sobre os motivos por que Reilly fazia mal a mulheres não contribuiria para melhorar a sua situação. OK, tinha alguma comida por agora, e roupas, além do aquecedor, mas não tinha maneira de escapar. E como poderia alguém encontrá-la? Não tinha dúvidas de que Jilly estava a insistir com a polícia para que fizessem alguma coisa. Michael Bonham também. Mas a tarefa deles era quase impossível. De repente, apercebeu-se do carácter desesperado das suas circunstâncias e desatou a chorar. Se tinha razão quanto a Reilly não gostar de matar com as próprias mãos, isso significava que ele iria deixá-la morrer à fome. * Enquanto Katy se debatia com a perspetiva de ser deixada a morrer lentamente à fome, Jilly esforçava-se por não chorar enquanto se preparava para falar com Rob, o irmão de Katy. Chegara uma carta dele para Katy hoje, claramente escrita antes de ela ter sido raptada. Jilly sentiu-se culpada ao abrir o envelope e ler a carta, mas, como esperara, havia um número de telefone para o contactar. Sempre gostara de Rob. A certa altura, fantasiara um pouco com ele, mas nunca tinha acontecido nada; ele tratava-a como uma outra irmã. Na carta, falava de visitar o pai, de como Albert se mostrara estoico, e da sua preocupação que a mãe pudesse estar a perder o juízo. Certamente nenhuma mulher normal ignoraria o seu marido na prisão por um crime que ele não cometera? Tal como Katy, Rob sabia escrever uma bela carta, divertida, afetuosa e interessante. Jilly era um desastre a escrever cartas, mas os pais dela não eram pessoas letradas como Mr. Speed. E supunha que aquela mãe severa de Katy e Rob os tinha obrigado a praticar a redação de cartas até eles se tornarem excelentes. Finalmente, ganhou coragem para lhe telefonar. – Olá, Rob, é a Jilly Carter. Tive de abrir a tua carta para a Katy para obter um número para te telefonar, e receio bem que tenha notícias preocupantes. Foi um alívio saber que ele estava ao corrente de pelo menos parte do sucedido. Ao que parecia, Michael Bonham tinha obtido o número dele de Hilda Speed e informara-o de que Katy estava desaparecida. Rob ficou tão contente por Jilly lhe telefonar que era tentador aligeirar a situação, dar a entender que realmente pensava que Katy entraria pela porta a qualquer minuto com uma história complicada sobre uma velha amiga que encontrara e com quem tinha andado nos copos. Mas tanto ela como Rob sabiam que Katy não era esse tipo de pessoa. – Então, o caso parece mal parado – disse ela. – Quem me dera não ter de te dizer isso. – Eu sei, até a nossa mãe deixou de lado a frieza habitual para admitir que estava preocupada. – Ela telefonou-te? Nem sequer telefonou para cá para saber se tínhamos novidades. – Fui ontem a Bexhill, depois de ter visitado o meu pai em Lewes – disse Rob. – A minha mãe está a sofrer com tudo isto. Nunca foi de telefonar, especialmente a estranhos. Por isso, basicamente tem estado de cabeça metida na areia. Continua a recusar-se a visitar o meu pai, mas suspeito que é mais por medo de ir a uma prisão do que por não querer vê-lo. Também está realmente preocupada com a Katy. Vi isso pela maneira como as palavras não lhe saíam. De qualquer maneira, Jilly, obrigado por teres tentado dar-me estas más notícias todas de uma maneira compassiva. Voltei para Nottingham ontem à noite para organizar umas coisas, mas regresso hoje a Bexhill. Os meus pais precisam de mim, para manter o ânimo do meu pai e evitar que a minha mãe se vá abaixo. Tenciono tentar convencer a minha mãe a ir comigo visitar o meu pai. Por muito que gostasse de ir para Londres tentar ajudar a encontrar a Katy, penso que sou mais útil em casa, com a minha mãe. – Tens razão, não há nada que possas fazer aqui – concordou Jilly. – Fiquei tão feliz por conseguir o emprego dos meus sonhos no jardim zoológico, e depois arranjámos um apartamento e estávamos todas empolgadas, a falar das almofadas e dos candeeiros que íamos comprar para o decorar. Queríamos dar festas incríveis e fazer todas as loucuras que as pessoas fazem quando vêm viver para Londres, mas agora só passo o tempo a chorar. Tenho tanto medo por ela, Rob. – Eu também, Jilly – disse ele. – Porque é que ela teve de se armar em Sherlock Holmes? E porque é que, se estava decidida a tentar encontrar um assassino, não deixou um bilhete a dizer aonde ia? – E se ela está morta? – gritou Jilly. – Não consigo imaginar a vida sem ela. E tenho a certeza de que tu também não. – Não, não consigo, sempre partilhámos tudo até eu ir para Nottingham. Penso que em parte é a razão por que nem um nem outro tínhamos grande vontade de ter um namoro a sério. Andávamos muito ocupados a divertirmo-nos juntos. – Ela sempre me disse que adorava o irmão mais novo – disse Jilly a soluçar. – Por vezes, eu até sentia ciúmes. – Ela costumava dizer-me que te adorava – disse Rob, e a sua voz soava trémula. – Eu também tinha ciúmes, por isso somos tão maus um como o outro. Rob tinha de desligar, porque estava a falar do telefone da sua senhoria. Mas disse que Jilly poderia telefonar para Bexhill quando quisesse, para os pôr ao corrente ou lhes dar novidades. – Cuida-te – disse. – Esperemos que, daqui a umas semanas, quando tudo isto acabar, possamos os três rir disto tudo. * Charles fizera uma cópia da página de informações que Edna lhe dera e entregou-a à polícia na mesma noite em que regressou de Broadstairs. Ficou dececionado por não parecerem muito entusiasmados ou motivados. Como um seco «Deixe isso connosco, que nós averiguamos» era demasiado vago para o seu gosto, tirou uns dias do trabalho para investigar ele próprio. Até ao momento, com a ajuda de um amigo que trabalhara no CID e ainda tinha contactos na força policial, conseguira localizar as moradas dos anteriores domicílios conjugais de três mulheres. Em duas dessas moradas, o marido ainda ali vivia. Mr. Birchill, o que vivia num apartamento de um bairro camarário em Kentish Town, era obeso e quase não conseguia andar; um vizinho disse que ele raramente saía de casa. Não tinha carta de condução, muito menos um Jaguar. O marido da segunda morada, em Hampstead, era cirurgião no hospital Royal Free e tinha um Mercedes, não um Jaguar. Além disso, Charles ficara a saber através do dono do quiosque mais para baixo em Haverstock Hill que o doutor Forster estivera num cruzeiro nas Caraíbas com a namorada durante três semanas na época do Natal e do Ano Novo. Por isso, não poderia ter pegado fogo à casa de Gloria. Na casa ao lado da terceira morada, foi-lhe dito que os Talbot se tinham mudado há três anos. Charles não sabia se a Mrs. Talbot a que o vizinho se referia era, de facto, apenas uma namorada. Ou talvez a sua mulher tivesse voltado para ele, afinal? Charles não sabia, e não podia realmente perguntar. Mas perguntou se tinham um Jaguar, e foi-lhe dito que tinham um Rover cinzento. O passo seguinte era procurar os outros nomes da lista de Edna no recenseamento eleitoral e encontrar as moradas que lhes correspondiam. Foi uma tarefa demorada e laboriosa, mas conseguiu encontrar mais quatro domicílios conjugais, embora não pudesse ter a certeza de que essas casas não pertenciam a outra pessoa com o mesmo nome. Não podia propriamente ir pôr-se a bater às portas e perguntar se vivia lá um marido violento. Fingiu estar a conduzir uma sondagem para a empresa de energia elétrica para poder ir direto às casas em questão. Na casa dos Eden, Mrs. Eden não tinha mais de dezanove anos; estava na última fase da gravidez e só viviam naquela casa há três meses. Na casa dos Cameron, Mr. Cameron era de raça negra; uma fotografia no hall de entrada provava que a mulher e os filhos também eram negros. Os Butler tinham bastante mais de sessenta anos, e na última casa Mrs. Seymour insistiu que ele entrasse e tomasse um chá com ela e com o marido. Mr. Seymour estava numa cadeira de rodas, e era óbvio que eram muito dedicados um ao outro. Desmoralizado, Charles foi dar um curto passeio no parque de Hampstead depois de visitar a última casa da sua lista. No passado, constatara que caminhar o ajudava a pensar melhor. Saber que Katy viera a Hampstead naquele sábado de manhã, há seis dias, voltou a fazê-la ocupar o primeiro lugar nos seus pensamentos, uma posição de que fora destronada enquanto ele andou à procura de maridos violentos. O que é que aquele homem teria feito com ela? Como advogado, Charles sabia que alguém que raptasse uma pessoa quase sempre tencionava fazer-lhe mal. Mesmo os que exigiam um resgate, que prometiam libertar a vítima sem lhe fazer mal depois de lhes ser pago o dinheiro, não deixavam muitas vezes de a matar. Então, como poderia encontrar Katy? Não sabia quem a tinha ou onde a teria presa; de facto, não sabia mais nada a não ser que era proprietário de um Jaguar vermelho-escuro. E que não se importava de viajar para matar. Contudo, havia uma pessoa que poderia ser capaz de lançar alguma luz sobre este assassino: a sua ex-mulher, a mulher a quem ele infligira maus tratos até ela lhe fugir. Charles tirou a lista de Edna do bolso e parou de tentar encontrar a morada desse homem. Voltou a ler o que Edna recordava sobre as mulheres que não tinham voltado para casa. Claire dissera que a sua mãe nunca anotava as moradas para onde as mulheres se mudavam depois de elas se despedirem dela e de Gloria. Dizia que pensava que era demasiado perigoso ter essas moradas anotadas, para o caso de um marido irado decidir assaltar- lhe a casa à procura de registos. Edna era admirável por ter memorizado os nomes de tantas mulheres – tanto o apelido de casada como aquele que tinham adotado. Em muitos casos, também se lembrava da cidade para onde elas tinham ido. – Mas qual é a mulher do nosso homem? – disse Charles, olhando para a lista. Brighton, Eastbourne, Lewes e até uma em Tunbridge Wells. Não havia nenhuma garantia de que essas mulheres não tivessem voltado a mudar-se para outro local. Ou que acedessem sequer a falar com ele. Se tinham fugido e mudado de nome, cortando os laços com os amigos e a família para escaparem aos maridos, era provável que corressem o risco de falarem com um estranho que poderia destruir a sua segurança atual? E, além disso, quanto tempo demoraria a tentar encontrar essas mulheres? Não podia pedir uma licença prolongada da firma. De resto, aquelas mulheres também não fariam necessariamente ideia de onde o assassino estava a esconder Katy. Por isso, tudo poderia acabar por não ser mais do que tempo perdido. Parou junto a um carvalho grande, encostou-se ao enorme tronco e olhou para cima. Adorava árvores, especialmente no inverno, sem as folhas; adorava poder ver a sua estrutura nua. Katy era um pouco assim: sem floreados ou folhos, uma jovem direta que dizia o que pensava e fazia o que considerava estar certo. Destemida, inteligente, persistente. Tinha um rosto adorável, pele fina, cabelo bonito, como fios de ouro, e uns olhos azuis límpidos e francos. Ele não conhecera muitas mulheres francas em Londres. Na maior parte dos casos, o que queriam era caçar um homem com boas perspetivas; com frequência, preocupavam-se mais com a sua aparência do que com as outras pessoas. Katy merecia que se perdesse tempo por ela. Tinha de a encontrar. Ia encontrá-la. 12 N o dia a seguir a Reilly trazer a Katy a empada de porco e outras coisas e ter-se ido embora amuado, regressou. Katy ficou surpreendida. Tinha feito render o bolo, a contar que Reilly se mantivesse ausente durante dias. O aquecedor elétrico e as roupas quentes tinham contribuído para melhorar a situação, mas ela gostaria de ter alguma coisa para ler para passar o tempo. Por isso, quando ele apareceu de novo, com uma gabardina muito molhada, o cabelo a pingar, e um saco com quatro livros de bolso, uma escova de dentes e dentífrico e a carteira de Katy, em que ela tinha os cosméticos e a escova do cabelo, não se fingiu indiferente, teve vontade de lhe dar um abraço. Parecia-lhe que ele estava a amolecer; ela chegou até a sentir a esperança de que ele a libertasse. É claro que se tratava de um desejo pouco realista. Tinha de se lavar em água fria, não havia toalhas nem sabonete, e sentia que o seu cabelo estava a ficar cada vez mais oleoso. Mas algum prisioneiro espera encontrar as condições do Ritz? – É bom vê-lo – admitiu ela enquanto olhava para dentro da sua carteira. A única coisa que faltava era o bloco de apontamentos de Edna, mas ela contava com isso. Agora tinha uma caneta e um espelho. Embora não quisesse maquilhar-se era reconfortante ter de novo os seus cosméticos. – Obrigada por estas coisas. – Tu és uma rapariga esquisita, não me perguntaste pela comida – disse ele. – Isso significa que não queres comer? – Sim, quero, por favor – respondeu ela. – Estava a ser delicada. Pareceu-me um pouco ingrato pedir comida quando foi tão generoso ao trazer-me as outras coisas que pedi. – Não vou voltar a trazer-te comida – disse ele. Um arrepio gélido percorreu-lhe a espinha. Olhou para ele, horrorizada. Que tipo de jogo era este? – Pensava que tínhamos chegado a um acordo – disse ela, esforçando-se muito por não chorar. – Olhe, eu sei que não quer realmente matar-me. Tenho uma ideia que fará com que não seja apanhado. Digo que usou uma máscara e que não faço ideia para onde me levou. Depois, podia dizer que uma noite me meteu vendada no seu carro e foi até muito longe, para me libertar no meio do nada. Eu pus-me a andar até chegar a uma casa e pedir que telefonassem para a polícia. – Tens isso tudo calculado, então? – O tom gélido da voz de Reilly era alarmante. Contudo, Katy tinha de continuar a tentar convencê-lo. – Não está a ver? É uma ideia brilhante. A resposta foi uma forte bofetada no rosto dela. – Não quero as tuas ideias para nada. Fica mas é de boca fechada e deixa-me a mim decidir o que quero fazer. Com uma rapidez de relâmpago e sem pensar, Katy retribuiu-lhe a bofetada, pondo toda a sua força nela. – Não lhe disseram quando era pequeno que um homem não bate em mulheres? – berrou-lhe. – É claro que não. Aposto que a sua mãe era toda submissa ao seu pai e aguentava um verdadeiro inferno dele. É por esse motivo que se comporta assim? Ele estava com o rosto quase negro de fúria, e avançou para ela com as mãos estendidas, como se fosse estrangulá-la. Ela sabia que não podia recuar agora; fazê-lo significaria que ele a espancaria sem dó nem piedade. – Não se atreva a pôr-me a mão – rosnou. – Eu não tenho medo de si. Mas sou capaz de ser a única mulher no mundo que quer compreendê-lo. Ele estacou e a seguir virou-se na direção da porta e tentou enfiar a chave na fechadura, como se estivesse bastante perturbado. Por fim, conseguiu abri-la e saiu, batendo com a porta. – É isso mesmo, fuja, seu cobarde – berrou-lhe ela do outro lado da porta. – Aposto que passou a vida toda a fugir das pessoas que lhe dizem o que é! Foi só quando os passos dele se afastaram pelas escadas acima que Katy se atirou para a cama e tapou o rosto com as mãos. Sentia-se horrorizada por ter ido tão longe. Fora uma estupidez, agora ele ia deixá-la ali. O seu rosto esbofeteado ardia-lhe, e tinha fome. O que esperara obter com todo aquele desafio? * No domingo, Charles decidiu contactar um velho amigo, Patrick Bligh. Patrick estudara Direito em Cambridge com ele. Ao fim de dois anos, os problemas financeiros da sua família tinham obrigado Pat a desistir dos estudos. Alistou-se na polícia e progrediu muito rapidamente na carreira até ao CID. Charles supusera que ele subiria na hierarquia e um dia seria comissário, porque possuía a inteligência e a personalidade necessárias para esse cargo. Mas há um par de anos ele saíra da polícia e montara um escritório de investigação privada. Muitos dos seus amigos, e também colegas da polícia, riram-se dele e disseram que em menos de um ano ia ficar nas lonas, mas até ao momento estava a sair-se muito bem. Como não obteve resposta do número de telefone de Pat, e supondo que ele estava a fazer obras no seu apartamento e não ouvia o telefone, Charles meteu-se no carro e foi a Ladbroke Square. Pat comprara aquele apartamento na cave por uma ninharia na altura dos motins de Notting Hill. Embora as casas fossem enormes e bastante faustosas, a maior parte já tinha visto melhores dias. Quanto à zona em si, tinha-se degradado completamente. Com os estragos resultantes da guerra, os maus senhorios que sobrelotavam as casas com inquilinos e não faziam obras e a gente nova a alugar quartos, o aspeto da zona deixava muito a desejar – quase tanto como a zona vizinha, Ladbroke Grove, onde viviam todos os imigrantes. No entanto, Pat estava convencido de que um dia a zona daria a volta e se tornaria de novo um bairro rico. Provavelmente, tinha razão, porque, quando Charles estacionou o carro e olhou à sua volta, viu que várias casas tinham sido renovadas recentemente e que o parque no centro da praça estava arranjado. Ouvira até dizer que Ladbroke Grove estava a melhorar e era considerada uma zona da moda pela gente jovem. Pat usava a sala da frente do seu apartamento como escritório, e pintara de branco o exterior da zona da cave, com o gradeamento de um azul-escuro brilhante. Ainda andava a fazer obras nas divisões da parte de trás do apartamento. Da última vez que Charles estivera com ele, falara de tratar do problema da humidade. Pat veio abrir a porta envergando um fato-macaco verde com manchas de tinta. Era um homem grande, com um rosto redondo, orelhas espetadas, olhos escuros e barba escura e espessa por fazer no queixo. Rapara o cabelo, que começava a ficar ralo, e a sua cabeça calva dava-lhe um ar de vilão. Mas a sua voz desmentia essa impressão, porque era claramente de alguém da classe alta. – Que surpresa – disse ele com um sorriso. – Mas uma ótima surpresa, Charlie, meu amigo, eu estava a precisa de uma pausa para um café. Enquanto tomavam café, trocaram as piadas do costume, com Pat a troçar do amigo por usar peruca no tribunal e lamber as botas a advogados aristocráticos. Charles retaliou metendo-se com Pat por ele ter de espiar adúlteros e gente desse tipo. Foi bom, no entanto, ver como o escritório de Pat era profissional. Não havia pilhas de papéis no chão ou de dossiês periclitantes. Era todo em cinzento e branco, com a sua mesa e a da secretária sem tralha, só com o telefone, a máquina de escrever e tabuleiros para a papelada a arquivar. – Então, o que te traz aqui tão cedo numa manhã de domingo? Tens uma miúda nova e pensas que talvez seja casada? Ou cansaste-te da vida sofisticada e queres vir trabalhar comigo? – Há elementos de ambas essas coisas, com assassínio à mistura – disse Charles com uma risada, e lançou-se na história. Uma das muitas coisas que sempre admirara em Pat era o facto de ele ser muito bom ouvinte. Nunca era necessário repetir nada; ele assimilava todos os pormenores. Demorou algum tempo a explicar a coisa toda, mas Pat não o interrompeu nem pediu que clarificasse nada. – Então, o que achas? – perguntou Charles depois de terminar. – Podes descobrir onde vivem essas mulheres agora? Que hipóteses achas que há de encontramos a Katy viva? Pat pousou os cotovelos na secretária e pousou o queixo na mão, pensativo. – Ambos sabemos que os raptores raramente soltam as suas vítimas – disse por fim. – Ele é um homem muito zangado, também. Aposto que já tinha matado, antes da Gloria e da filha. A maneira como ateou aquele incêndio, a incriminar o Albert, foi demasiado profissional para ser a primeira vez. Como é que ele descobriu onde a Gloria vivia? Como Bexhill não é uma cidade que atraia uma data de pessoas pela sua beleza ou animação, tê-la encontrado por acaso é quase tão provável como eu ganhar o Campeonato do Mundo de Pesos Pesados. Deduzo que a mulher que ele fez sair da estrada não conseguiu ver-lhe o rosto? Charles abanou a cabeça. – Há tanta coisa que nós não sabemos. Nem sequer podemos ter a certeza de que o nome de uma dessas mulheres da lista é o da mulher dele. É como procurar uma agulha num palheiro, não é? – É, mas eu tenho colegas que podem fazer umas averiguações nos registos. Disseste que a Edna te tinha contado que praticamente todas as mulheres que elas ajudavam chegavam através do hospital Whittington. Portanto, esse é o primeiro local a que recorrer. Imagino que algumas das mulheres tenham fornecido identificações falsas, mas a minha experiência com as assistentes sociais diz-me que elas tendem a ter uma memória de elefante. Por isso, vejamos se podemos falar com ela imediatamente. Embora, como Charles esperava, a assistente social não trabalhasse aos domingos, espantosamente Pat conseguiu obter da rececionista o número de telefone da casa dela dizendo que se tratava de uma investigação policial e era muito urgente. A seguir, telefonou para esse número, e Charles teve de se conter para não se rir alto das falinhas mansas do seu amigo. Pediu imensa desculpa a Mrs. Haggetty por estar a telefonar-lhe a um domingo, especialmente porque tinha a certeza de que ela estava a preparar-se para ir para a igreja. Prosseguiu dizendo que pensava que talvez ela soubesse alguma coisa que pudesse salvar a vida de uma jovem. Charles viu Pat escrever um endereço em Muswell Hill. Deduziu que teriam de ir a essa morada imediatamente. – Ela estava desconfiada – admitiu Pat. – Mas estas mulheres são acima de tudo assistentes sociais; lidam principalmente com os problemas de que mais ninguém pode ou quer tratar. O marido dela vai estar presente na nossa conversa. Ela pareceu-me um pouco nervosa. Com pouco trânsito nas ruas, chegaram em meia hora, dez minutos dos quais foram gastos antes de saírem da casa de Pat, com ele a pôr um fato e uma gravata e a passar uma máquina de barbear elétrica pelo queixo. A casa dos Haggetty era uma casa em banda muito bem arranjada perto de Alexandra Park. Mr. Haggetty abriu-lhes a porta, um homem alto, com um ar de autoridade e uma farta cabeleira branca. – Isto é uma irregularidade muito grande – disse ele rispidamente. – Mas a minha mulher disse que duvidava que o senhor tivesse pedido para vir cá se não fosse algo de muito importante. – Exatamente, Mr. Haggetty. Uma jovem encontra-se num perigo terrível, e a única pessoa que achamos que talvez possa dar-nos pelo menos uma pista para a encontrar é a sua mulher. Ora bem, este é o Charles Stevenson, advogado em Middle Temple, e eu, como já disse à sua mulher, fui polícia e sou agora detetive privado. Pat já dissera a Charles que devia ser ele a encarregar-se de contar a história. Mal ele começou a falar sobre mulheres vítimas de violência doméstica, viu uma profunda preocupação nos olhos de Mrs. Haggetty. – Duas senhoras, a Gloria e a Edna, conheceram-se no Whittington quando tinham sido violentamente espancadas pelos maridos, e a assistente social que lá trabalhava na altura pô-las em contacto com outra senhora que as ajudou a sair de casa. O resultado foi que estas duas corajosas senhoras começaram a ajudar outras. Prosseguiu explicando que Gloria e a sua filha tinham perdido a vida num incêndio, e que também a vida de Edna fora ameaçada. A seguir, descreveu o envolvimento de Katy e o seu subsequente desaparecimento. – Eu não era a assistente social na altura em que a Gloria e a Edna foram ao hospital – disse Mrs. Haggetty, parecendo muito preocupada. – Mas desde que lá estou que tenho tentado aconselhar muitas mulheres na mesma situação. É um problema extremamente difícil; não há nenhuma organização para que possam voltar-se, e a polícia considera-o um «caso doméstico», fora da sua competência. Mesmo que prendam o marido e o acusem de agressão, daí a umas horas ele está de volta a casa e a desforrar-se na mulher. Como, especialmente para as mulheres que têm filhos, é muito difícil saírem de casa e começarem uma nova vida, uma grande percentagem acaba por voltar ao lar. Não conseguem arranjar trabalho sem terem onde deixar os filhos, e não têm dinheiro. Fez uma pausa, um pouco dominada pela emoção. Aquele era claramente um problema que a tocava profundamente. Limpou uma lágrima da face e tentou sorrir. – Perdoe-me, custa muito manter a distância em relação a algo tão grave. Eu soube alguma coisa sobre a Gloria e o que ela e a amiga conseguiram através da minha antecessora. Faz-me sentir duplamente horrorizada que ela tenha pago pela sua bondade com a própria vida e a vida da filha. Temos de fazer tudo o que pudermos para salvar essa jovem. Esperemos que não seja demasiado tarde. – Recomendou algumas das mulheres vítimas de maus tratos a Gloria? – perguntou Pat. – Não diretamente – respondeu Mrs. Haggetty. – Não tinha maneira de a contactar, mas havia um outro elo na cadeia, a velha Miss Dunkin. Infelizmente, era bastante idosa e estava fraca, e ouvi dizer que morreu no ano passado. Desde então, a única ajuda que pudemos disponibilizar às mulheres é a morada de um par de pensões que aceitam mulheres numa situação de emergência. – Então, consegue recordar-se de alguns dos nomes de mulheres que conheceu que tenham sido vítimas de violência grave? – perguntou Charles, e falou do bloco de apontamentos de Edna. – Os apelidos que deram quando vieram ao hospital. – Não, de facto não me ocorre nenhum. – Importar-se-ia de olhar para estes nomes que aqui tenho e ver se lhe lembram alguma coisa? – Estendeu-lhe a lista que Edna tinha escrito. Não podia acusá-la de não ter olhado cuidadosamente para os nomes, com os lábios comprimidos, esforçando-se para que lhe ocorresse algo útil. Ela devolveu-lhe o papel com um ar de pena. – Há vários nomes que me soam familiares, mas não o suficiente para eu poder ter a certeza. No entanto, todas essas mulheres devem estar no registo do Whittington, se foi a esse hospital que se dirigiram. Tenho a certeza que, se examinar os registos e encontrar uma paciente com danos físicos que me indiquem que foi vítima de violência doméstica, é provável que me recorde de mais pormenores. Com sorte, talvez encontremos as mulheres da sua lista. Mas aviso-o desde já que, por vezes, as mulheres nessa situação dão nomes e moradas falsos. Mas nem todas. De qualquer maneira, poderia fazer isso amanhã. – Hoje não? – perguntou Charles, esperançado. Ela fez uma expressão de pena. – Fomos convidados para almoçar hoje. Mas, mesmo que eu estivesse livre, duvido que conseguisse obter autorização para ir procurar os registos antigos. Venha ter comigo às dez horas amanhã de manhã, isso dar-me-á tempo para obter a autorização. * Quando os dois homens arrancaram, Charles suspirou. – Este trabalho de detetive é mais duro do que parece nos filmes. – Sem dúvida que é – concordou Pat. – É noventa e nove por cento de trabalho de sapa. Só um por cento de sorte. Mas não desanimes, Charley, meu caro, aquela senhora vai dar-te nomes, toma nota do que te digo. Pressenti que estava prestes a deitar qualquer coisa cá para fora, mas quer ter a certeza de que não nos vai mandar numa caça aos gambozinos. – A nós? Pat riu-se trocista. – Julgas que te vou deixar dar cabo de tudo sozinho? No entanto, mesmo que consigamos saber o nome da mulher certa, identificar este tipo, descobrir se tem cadastro, a matrícula do carro e tudo e mais alguma coisa sobre ele, isso não quer dizer que vamos ficar a saber para onde ele levou a Katy. Presumivelmente, ele e a mulher já estão separados há muito tempo. A fúria dele contra ela deve ter- se agravado, o que, provavelmente, é o motivo por que ele foi atrás da Gloria e da Edna. Por isso, é mais do que provável que tenha arranjado este esconderijo desde que a mulher o deixou. Talvez o plano dele fosse encontrar a mulher e metê-la lá... quem sabe? Mas pode ser em qualquer parte de Inglaterra. Charles sentiu-se desanimado; estava habituado a ter todo o caso resolvido antes de chegar às suas mãos. Não esperava que aquilo fosse assim tão difícil. – Mas se descobrirmos quem ele é, com certeza podemos emitir um comunicado de imprensa para levar as pessoas a dizer-nos se o viram? Pat virou-se para ele e lançou-lhe um olhar reprovador. – Oh, brilhante, Charley, meu caro! Não te parece que será mais provável que ele mate a Katy, se já não o tiver feito? Quando um animal se sente encurralado, ataca. – Então, o que sugeres? – Temos de começar pelo princípio. Agora, vamos mas é almoçar. Amanhã, se tivermos sorte e Mrs. Haggetty o identificar, podemos ir vigiar a casa dele e segui-lo se ele for a algum lado. Se não estiver em casa, sou a favor de entrarmos e procurarmos alguma coisa que nos indique onde está. Receio bem que não possamos obter um mandado de busca com provas tão ténues. – Ao ver que Charles parecia muito desanimado, Pat mudou de assunto. – Mas agora fala-me lá sobre a Katy. Que tipo de rapariga é? – Parece uma bonequinha – disse Charles com um sorriso. – Mas a semelhança fica-se pela aparência. É corajosa, resistente, decidida e esperta, também. Eu não suporto a ideia de aquele patife lhe ter feito mal. – Dá a impressão de que estás caído por ela. – Pat ergueu uma sobrancelha. – Pensei que nunca chegaria o dia em que tu te apaixonarias. – Só saí uma vez com ela – admitiu Charles. – Foi raptada no dia seguinte. Por isso, não sei se o que sinto é só a ansiedade normal por causa de alguém de quem gosto. – Não serve de nada perguntar-me a mim. – Pat sorriu. – Sou um zero à esquerda no que diz respeito a mulheres. A minha mãe está sempre a dizer-me que já está na altura de eu me casar. Como se bastasse ir a uma loja e escolher uma mulher! Charles sorriu. Ambos tinham problemas com as mulheres. Pat apaixonava-se por quase todas as raparigas que conhecia e sufocava-as com expressões de afeto. Elas não tardavam a fugir- lhe. Charles sabia que era o exato oposto. Nunca demonstrava entusiasmo suficiente; as mulheres sentiam-se excluídas. Contudo, não parecera passar-se o mesmo com Katy. Ele tinha a esperança de que ela tivesse sentido que havia algo de bom naquilo, tal como ele. * Ao fim da tarde, Charles foi a Hammersmith, a casa de Jilly, para falar com ela e com os tios. Os tios receavam o pior, mas Jilly mostrou-se muito mais otimista e pediu para falar com ele a sós. Charles ficou com a impressão de que não agradou nada aos parentes dela que ela o levasse para a cozinha. – Estão sempre a meter-se, especialmente a minha tia – explicou Jilly enquanto lhe fazia um chá. Estava com um vestido cinzento-claro de malha, e, embora não fosse exatamente bonita, havia algo especial nela. Tinha os olhos vermelhos, e via-se bem que andava a dormir tão pouco quanto ele nas últimas noites. Mas fazia os possíveis por se manter otimista. – A minha tia Joan tem boas intenções, mas julga que é especialista em tudo. Ontem até disse que não achava que a Katy tivesse sido levada por ninguém, mas que tinha ido para casa, para Bexhill, porque sabe que foi o pai que ateou aquele incêndio. Dá para acreditar? Estará boa da cabeça? Não pensou no que disse. – Ficaria surpreendida se soubesse quantas pessoas se recusam a acreditar no que têm à frente dos olhos – disse Charles. – Uma vez, defendi um homem que tinha sido acusado de assalto à mão armada a um posto dos correios. Ele negava que tivesse sido ele. Depois, de repente, na véspera do julgamento, confessou-me que era verdade. Até me revelou onde tinha escondido o dinheiro que roubara. Eu disse-lhe que ele tinha de mudar a declaração que fizera para culpado e que ia falar com a mulher dele para lhe contar a verdade. Mas a mulher dele recusou-se a acreditar em mim! Tentou dar-me uns murros no peito e fartou-se de berrar que o Frank dela nunca faria tal coisa. Jilly sorriu. – A minha mãe contou-me que há uma data de pessoas em Bexhill que andam a dizer todo o tipo de coisas sobre o Albert Speed; até lhe disseram no outro dia que ele era bígamo! É uma pena que não tenham nada de melhor para fazer do que inventar coisas sobre pessoas inocentes. – Fico muito contente por a Katy ter uma amiga assim tão leal. Não se preocupe com as opiniões esquisitas da sua tia, provavelmente a ela só a preocupa que tudo isto a afete muito a si – disse Charles. – Então, o que queria dizer-me? – Só queria explicar-lhe o tipo de pessoa que a Katy é. Ela é realmente forte, Charles, e consegue ser incrível a convencer as pessoas. Eu não podia contar-lhe isto em frente aos meus tios, mas há cerca de três anos, a Katy e eu fomos abordadas num baile por dois rapazes de Londres. Comparados com os rapazes lá da terra, eram o máximo: fatos de bom corte, sapatos caros, e tinham a conversa toda. Seja como for, esses tipos não nos levaram a casa, levaram-nos direitinhas a Fairlight Glen, do outro lado de Hastings. Deixaram bem claro o que queriam. «Eu comecei a chorar. Estava com medo, porque um dos tipos tinha uma navalha e já me dissera que a usaria se eu não cooperasse. Mas a Katy começou a falar como se fosse uma professora. Perguntou porque queriam fazer sexo com uma rapariga que não estava disposta a tal. Insistiu que isso mostrava algo realmente mau sobre o carácter de um homem se ele tinha de forçar as raparigas. Lembrou-lhes que eram bem-parecidos, estavam bem vestidos e tinham um bom carro, e que provavelmente poderiam convencer algumas raparigas com falinhas mansas. ‘Mas nós não’, disse ela. ‘Se insistirem em fazer isto, vamos considerar que é uma violação e vamos à polícia e fazemos com que sejam presos. Eu sei a matrícula do vosso carro.’» – Fiquei espantada, Charles – prosseguiu Jilly. – Ela nem sequer soava assustada. Disse a matrícula e mandou o da navalha guardá- la, porque se não ela teria isso a acrescentar ao que contaria à polícia. Não vacilou nunca. Depois, ordenou-lhes que nos trouxessem de volta a Bexhill. – E eles trouxeram-nas? – Não, quando chegámos a Hastings, a Katy disse-lhes que nos deixassem sair, que apanhávamos um táxi. A caminho de casa, disse-me que não queria que eles soubessem onde vivíamos, para o caso de tentarem apanhar uma de nós noutra ocasião. É assim que ela é: calma, confiante e com atitude. Eu já me meti numa data de trabalhos por ser mole com os rapazes, mas ela vê logo ao que eles andam. É por isso que eu penso que ela vai arranjar uma maneira de dar a volta ao homem que a raptou. – Sinceramente, espero que sim, Jilly – disse Charles. – O que acabou de me contar sobre a Katy faz-me sentir mais otimista, e vou ver uns registos hospitalares amanhã. – No Whittington, onde a Gloria e a Edna se conheceram? A Katy falou-me disso. – Sim, a ideia é passar em revista os nomes nas urgências e ver se conseguimos encontrar algumas mulheres vítimas de violência doméstica que tenham sido tratadas lá. Procuramos a mulher do homem que raptou a Katy. – Posso ir consigo para o ajudar? – perguntou Jilly. – Receio que não, porque o meu amigo, o ex-polícia, persuadiu a assistente social a deixar-nos deitar uma olhadela aos tais registos. Se a Jilly fosse também, poderia ser um pouco de mais. – Compreendo. Só gostava de poder fazer algo construtivo para a encontrar – disse Jilly com tristeza. – Eu sei, mas se houver mais alguma coisa, eu peço-lhe para vir connosco – disse Charles. – Telefono amanhã à noite para lhe contar como correu. 13 A s dores da fome regressaram, piores do que nunca. Katy pensava que, provavelmente, tinham passado três dias desde a última visita de Reilly. Lera todos os livros que ele trouxera e agora estava completamente desmoralizada e a sentir-se doente. Estar quente era preferível a estar fria, mas num minuto sentia-se tão quente que lhe dava a impressão de estar a arder e no seguinte tremia de frio. Doía-lhe o corpo todo, e nunca se sentira tão assustada e tão só. Estava agora convencida de que morreria ali; só podia ter a esperança de que, se a febre continuasse a aumentar, ela desmaiasse e ficasse insensível à dor, à fome e ao que a rodeava. Escrever uns apontamentos num pequeno bloco que encontrara na carteira ocupara-lhe algum tempo. Anotou como se sentia, os seus pensamentos sobre Reilly, Charles, Rob, Jilly e os seus pais. As coisas que gostaria de ter dito às pessoas. De repente, no entanto, pareceu-lhe inútil, se ia morrer ali. Nunca ninguém encontraria e leria os seus apontamentos. Reilly estaria a castigá-la por ela lhe ter dado uma bofetada? Duvidava que ele tivesse sido esbofeteado por muitas mulheres, ou mesmo por uma só. A sentir-se doente, enroscada debaixo dos cobertores na cama, mesmo assim Katy queria compreender Reilly. O que o fizera dizer que amava a mulher e, mesmo assim, bater-lhe? E depois, quando ela o deixou, porque não conseguiu aceitar que era a consequência dos seus maus tratos? A acrescentar a isso, matara Gloria e Elsie, permitira que o seu pai fosse acusado das mortes e tentara matar Edna. Seria louco? O que poderia ter-lhe acontecido para o tornar assim tão perverso? Para além de pensar sobre Reilly, Katy andava a ter alguns sonhos muito estranhos que a faziam crer que havia outras pessoas ali no quarto com ela. O seu pai, e também Rob, o seu irmão. Pensava que era real quando sonhava com o pai, e chamava-o. Isso acordava-a, e via que o quarto estava vazio: só ela, a cama, a sanita e o lavatório, mais nada. Um outro sonho era sobre um jardim, um jardim fabuloso com relva viçosa e caminhos sinuosos por entre canteiros com flores de cores vivas. Mas ela caminhava, caminhava, e nunca chegava a uma saída. Parecia que os caminhos andavam às voltas; não havia fim, nem uma entrada ou uma saída. Um ruído trouxe-a de volta ao presente. Pensou que estava a imaginá-lo por querer tanto que alguém viesse. Mas voltou a ouvi-lo, e desta vez soube que era real. Aqueles passos leves e confiantes de Reilly. Desta vez, não conseguia levantar-se. Ficou ali deitada, consciente de que ele estava de pé à entrada a olhar para ela na cama. – O que se passa? – perguntou ele. – Ainda estás amuada por eu te ter dado uma estalada? – Não me sinto bem – respondeu ela, e a voz saiu-lhe rouca. Ouviu-o fechar a porta e desandar a chave na fechadura e depois encaminhar-se para a cama. – Trouxe-te fish and chips, e café num termos – disse ele. Aquilo devia tê-la feito levantar-se de um salto, mas, em vez disso, só lhe provocou uma volta no estômago, como se fosse vomitar. – Vá lá, senta-te e come enquanto está quente – disse ele. Katy tentou sentar-se, mas sentiu o quarto começar a andar à roda e, quando ele lhe pôs o fish and chips embrulhado em papel de jornal no regaço, o cheiro provocou-lhe náuseas. Com a mão a tapar a boca, conseguiu ir até à sanita a cambalear e vomitou. Não saiu comida, só um líquido, e ela caiu sobre os joelhos e encostou a cabeça à porcelana fria do lavatório. – Bem, é um desperdício trazer-te comida – disse ele. Aproximou- se dela com um copo de água e deu-lho a beber. Mal ela o engoliu, vomitou-o. – Anda lá, é melhor voltares para a cama – disse ele e, pondo as mãos debaixo dos braços dela, ajudou-a a levantar-se. Katy ouviu a porta fechar-se atrás dele e o som da chave a rodar na fechadura. Saber que estava doente e sozinha outra vez fez com que lhe viessem aos olhos as lágrimas que andava a conter há tanto tempo. – Não chores, Katy! Não ouvira Reilly entrar de novo, e não esperava nada uma reprimenda assim tão carinhosa. Ele sentou-se na cama ao lado dela e limpou-lhe o rosto com um pano húmido que cheirava a limão. – Penso que precisas de beber mais um pouco – disse ele. – Levei lá para fora o fish and chips, já que o cheiro te punha enjoada. Achas que consegues beber um pouco de água? Ajudou-a delicadamente a sentar-se. Ela bebeu cerca de metade de um copo de água e depois voltou a deixar-se cair para trás. – Trouxe uma bacia cá para baixo, para o caso de voltares a vomitar. Também trouxe outras coisas. Arroz doce enlatado... gosto sempre de arroz doce quando me sinto adoentado... iogurte e um medicamento para te acalmar o estômago. Katy nem olhou para as coisas que ele tinha trazido; simplesmente fechou os olhos e quis dormir. Sentiu que Reilly a cobria, e o seu último pensamento foi que ele tinha sido bondoso para ela. * Na segunda-feira de manhã, Charles apanhou Pat pouco depois das nove e dirigiram-se ao hospital Whittington. Mal pregara olho, preocupado com Katy. Ela estava agora desaparecida há nove dias, e o seu cérebro de advogado dizia-lhe que já devia estar morta e já deviam ter-se livrado do corpo dela. Mas o seu coração dizia-lhe que ela estava à espera de ser salva. Os dois homens apressaram-se a chegar às Urgências, onde tinham combinado encontrar-se com Mrs. Haggetty. Tinham a esperança de que ela ainda quisesse ajudá-los e não tivesse mudado de ideias da noite para o dia. Mesmo assim, não podiam ter a certeza de que ela conseguisse obter acesso aos registos. – Temos autorização, Mrs. Haggetty? – perguntou-lhe Charles, ansioso, quando a viu vir pelo corredor do hospital. – Trate-me por Irene – disse ela. – E sim, tenho autorização para lhes mostrar os registos. Vou levá-los lá abaixo agora. Conduziu os dois homens pelo corredor pintado de branco e verde, de onde acabara de vir, desceram umas escadas e percorreram outro corredor. Ela abriu uma porta, acendeu a luz e conduziu-os para dentro de uma divisão sem janelas que estava cheia, do chão ao teto, com dossiês. Milhares e milhares deles. Charles gemeu. Irene ergueu uma sobrancelha, interrogativa. – Não é tão mau como parece – disse, com um sorrisinho. – A maior parte são o historial médico de pacientes. Os registos que nós queremos estão aqui. – Acenou com a mão para duas prateleiras cheias com grandes livros encadernados. – Estão ordenados cronologicamente, e nós precisamos de 1955 até, digamos, 1963. É isso? – Então, são só oito livros? – Pat soou absolutamente encantado. – Eu fico com os números ímpares, Charles, e tu com os pares. Talvez a Irene possa andar entre nós os dois para identificar alguém de quem se lembre? – Bem, eu não vou conhecer ninguém de antes de 1961, já que ainda não estava cá, mas podemos descobrir que algumas das mulheres vieram cá mais do que uma vez. – De quanto tempo pode dispor? – perguntou Charles a Irene. – Não queremos interferir com o seu trabalho. – Tenho o dia livre hoje – disse ela. – Além disso, encontrar uma jovem em perigo é extremamente importante. * Ao meio-dia, entre os casos de emergência e de acidentes, tinham já encontrado dúzias de mulheres cujos danos físicos pareciam ter sido causados numa situação de violência doméstica. Iam desde membros fraturados, dentes partidos e olhos e queixos danificados a cortes e equimoses, e também queimaduras. À exceção de duas mulheres, todas afirmavam que os seus ferimentos tinham sido acidentais. Das duas que admitiram que o marido era o responsável, nem uma nem outra quiseram marcar uma hora para falar com a assistente social. – Isso é outro problema, sabem? – disse Irene. – Como costumo trabalhar de segunda a sexta, se estas mulheres vierem ao fim de semana ou à noite, a enfermeira só pode tentar convencê-las a voltarem para falarem comigo. Mesmo durante a semana, o meu trabalho leva-me por todo o hospital. Posso estar a averiguar se um paciente idoso e frágil tem alguém que olhe por ele quando voltar para casa, ou talvez uma grávida solteira precise de aconselhamento. Por vezes, é só organizar a visita ao domicílio de uma enfermeira quando o paciente volta para casa. Há sempre muito que fazer. Por isso, se a mulher vítima de maus tratos não optar por marcar uma hora para falar comigo ou não esperar, acabo por não a ver. Chegamos a fazer uma visita domiciliária de seguimento se os maus tratos tiverem sido suficientemente graves para o justificar, mas temos de ser extremamente cautelosos. Poderíamos tornar a situação muito pior se o marido pensar que a mulher andou a dar com a língua nos dentes. Não pararam para almoçar, embora Pat tenha ido buscar três chávenas de café do hospital para eles. Finalmente, às duas e meia, encontraram um nome que Edna pusera na sua lista. Suzanne Freeman, de Golders Green. Daí a meia hora, encontraram Margaret Foster. – Lembro-me dela – disse Irene, toda entusiasmada, apontando para o nome. – O marido era cirurgião. Olhem, ela até deu uma morada verdadeira em Hampstead Village. Já cá tinha vindo, se bem me lembro. Danos físicos graves, também. De facto, ela confidenciou-me que vivia com medo do marido, sem nunca saber quando ele ia explodir de raiva. Durante anos, pensou que era só um escape das pressões do trabalho dele. Todas as outras pessoas que o conheciam achavam que ele era encantador, preocupado com os outros, quase um deus. – A Edna também se lembrava dela bastante bem – disse Charles. – Contou-me que ela se tinha instalado numa vila relativamente perto de Eastbourne. Mas não se lembrava que apelido adotara. – Eu posso descobrir isso – disse Pat. Animados com aquele sucesso, prosseguiram com entusiasmo, mas sem obterem mais resultados. Às quatro e meia, quando já começavam a esmorecer, Pat encontrou mais um dos nomes na lista. Edna só recordara o nome próprio, Deirdre, e que ela acabara por ir viver para Brighton, mas dissera que ela era uma criaturinha frágil, e que tinha sido torturada, não fora só vítima de maus tratos físicos. – Diz aqui que os danos físicos da Deirdre pareciam sinais de tortura: queimaduras de cigarros, marcas de cordas nos pulsos, vergões nas costas, como se tivesse sido vergastada com uma bengala, e um braço partido. Por isso, deve ser a mesma mulher – disse ele. – Lembro-me dela – disse Irene, cheia de júbilo. – Só dizer o nome dela trouxe-ma claramente à memória. Rosto pálido, cabelo louro-arruivado, uns grandes olhos assustados e terrivelmente magra. Tinha duas crianças com ela, penso eu. O apelido dela era Reilly. Lembro-me, porque eu adorava aqueles filmes antigos da Old Mother Riley quando era pequena. Mas aquela morada que ela deu em Hornsey é falsa. Como ela me fez sentir preocupada, verifiquei a morada. Não existe. – Fez uma pausa, parecendo pensativa. – Surpreende-me que tenha acabado por ir ter com a Edna e a Gloria. Realmente, não julguei que tivesse forças para isso. Pior ainda, honestamente esperava ler nos jornais um dia que tinha sido encontrada assassinada ou que se tinha suicidado. Tiveram de dar o dia por terminado; já se fazia tarde e estavam todos cheios de fome. – Muito obrigado pela sua ajuda, Irene – disse Charles. – Penso que vamos investigar estas três. Mas, se não tivermos sorte, talvez possamos voltar? – É claro que sim – acedeu ela com um sorriso rasgado. – E entretanto eu vou puxar pela cabeça e tentar lembrar-me de mais nomes. Espero que a encontrem. Telefonam-me a dizer? Asseguraram que o fariam e saíram do hospital. – Então, quem vai onde a seguir? – perguntou Charles ao seu amigo. – Bem, posso pedir a um colega que verifique as moradas de Londres, para ver se o marido tem um Jaguar vermelho. E se eu fosse a Eastbourne amanhã procurar a Margaret Foster? Tu podias ir a Brighton procurar a Deirdre. Ponho a polícia local a verificar os nomes. Geralmente, quando alguém muda de nome, especialmente se tem filhos, isso aparece nos pedidos de casas camarárias ou nos registos escolares. Charles parecia pensativo. – Se estas duas mulheres estão sempre a olhar por cima do ombro, à espera que os maridos as persigam, provavelmente não vão querer abrir-nos a porta. O que fazemos, nesse caso? – Improvisamos, acho eu – respondeu Pat. – Talvez valha a pena pormos por escrito quem somos e porque queremos falar com elas, pelo sim pelo não. E depois podemos meter o papel na caixa do correio, se elas estiverem demasiado assustadas para falarem connosco. * Katy acordou sobressaltada. Pensou que estava a sonhar que alguém estava na cama com ela, mas, ao estender a mão para perscrutar o espaço ao seu lado, sentiu alguém perto de si. A luz do teto já não estava acesa, e ela estava coberta por algo quente e macio que não cheirava a bolor. – Quem é você? Para onde me trouxe? – gritou, em pânico. – Está tudo bem, Katy, sou só eu, o Ed – soou a voz dele, mesmo ali ao seu lado. – Eu fiquei aqui porque tu estavas muito doente. Katy pôs os braços à volta do corpo. Ainda estava completamente vestida, e a coisa quente e macia por cima dela dava a sensação de ser um edredão. – Acenda a luz – ordenou ela. Ouviu o som de um interruptor e acendeu-se uma luz abaixo do nível da cama. Uma luz suficiente para ela ver que ainda estava na mesma cave e que Reilly estava completamente vestido ao seu lado, exceto os sapatos. Demasiado chocada para falar, só conseguiu fitá-lo. – Como te sentes agora? Estava preocupado contigo – disse ele. A mente dela rodopiava. Como podia um homem que ela sabia ser um assassino, que tencionava matá-la também, ficar ali a vigiá-la porque ela estava doente? O candeeiro e o edredão, de onde tinham vindo? Há quanto tempo é que estava a dormir? – Estiveste a dormir mais de vinte e quatro horas – disse ele, como se lhe tivesse lido a mente. – Consegui que tomasses um medicamento para o estômago, e quando não o vomitaste dei-te uma canja. Depois, voltaste a adormecer, mas eu achei que era melhor ficar aqui. Por isso, fui buscar o edredão e o candeeiro, e também uma chaleira e outras coisas, para o caso de quereres um chá. Katy só conseguiu acenar com a cabeça, demasiado espantada para digerir a revelação de que estivera deitada na cama com Reilly – e que agora ele estava a oferecer-se para lhe fazer um chá. Ele não falou enquanto a água fervia e depois quando fez o chá. Ela sentou-se na cama, envolvida no edredão. Era muito parecido com o que os seus pais tinham na cama, com um padrão de cornucópias verde e branco. Quando Katy e Rob eram pequenos, costumavam pegar nele para fazer uma tenda no quarto de hóspedes. Punham um cobertor por cima de um estendal e depois o edredão tornava o interior mais aconchegado. Era bom ter algo que se assemelhava a um lar. – Uma colher de açúcar – disse ela quando o viu deitar folhas de chá num bule. – E sirva-me o meu fraco. – Sim, minha senhora – disse ele, e fez continência a brincar. – Você é um verdadeiro enigma – disse ela quando já tinha na mão a caneca com o chá e uma bolacha. – Como consegue passar de ser cruel para ser assim bondoso? É um homem bem-parecido, simpático. Por favor explique-se, Ed. Eu quero muito compreendê- lo. Ele encolheu os ombros. – Não sei. – Os seus pais foram cruéis consigo? – Nunca conheci o meu pai; ele não ficou o tempo suficiente para chegar a saber da minha existência. A minha mãe só queria saber da bebida. Quando eu era pequeno, todos os homens na vida dela lhe batiam. Eu via que ela merecia. – Como pode dizer isso sobre a sua mãe?! – exclamou Katy. – Ela era uma galdéria, uma bêbeda, uma mentirosa e uma ladra. Nós, os filhos, tínhamos de nos desenvencilhar. Por vezes, os homens batiam-lhe porque ela não olhava por nós ou pela casa. Bem, não era uma casa, era um apartamento imundo. Mas não sei porque é que te contei isto. Outros miúdos também passavam mal nessa época. Ed pôs-se de pé e Katy apercebeu-se de que ele sentia que se abrira demasiado. – Tenho de ir embora – disse ele. – Fico contente que estejas a sentir-te melhor. Uma vaga de excitação percorreu Katy. Sentia que as coisas tinham avançado para um plano diferente, e talvez agora ele a deixasse ir embora – Volte em breve – disse ela. – Gosto da sua companhia. Ed foi-se embora sem dizer nem mais uma palavra, e Katy sentiu- se um pouco perplexa. Era verdade, ela apreciara realmente a companhia dele. Era muito estranho estar a começar a gostar de um homem que a raptara. * Rob olhou para o pai quando ele vinha a entrar na sala de visitas da cadeia de Lewes. Albert tinha o rosto de um tom macilento preocupante e parecia ter encolhido desde a sua vinda para ali. – É bom ver-te, Rob – disse ele, estendendo a mão para apertar o ombro do filho a saudá-lo. – Gostava de te dar um abraço, pai, mas suponho que isso não é apropriado aqui dentro? – Não, filho, mas imagina que te dei um abraço. – Sentou-se do outro lado da pequena mesa. – Como está a tua mãe? – Muito nervosa, não anda a comer – respondeu Rob. – Tentei convencê-la a vir hoje, mas ela não quis. Se te serve de consolo, não é que ela não queira ver-te, é só o estigma de entrar numa prisão. – Posso imaginar – disse Albert, e dirigiu-lhe um meio sorriso. – Há notícias da Katy? – O Charles anda a ser ajudado por um velho amigo que é detetive. Tenho um bom pressentimento, mas até agora não há novidades. Mas diz-me, como te sentes? – Orgulhoso do meu filho – disse Albert com um sorriso. – Com vontade de poder ajudar a encontrar a Katy. A sentir pena da tua mãe, porque sei que ela está a sofrer imenso, mesmo que não o admita. Gostava de estar no jardim, a ver desabrochar as flores da primavera, e de poder beber uma cerveja contigo e comer um dos almoços de domingo da tua mãe. Acho que é tudo. – Tu és tão forte, pai – disse Rob, com a voz trémula. – Passei por pior na guerra. Não te preocupes comigo, Rob, a tua mãe é quem precisa de compreensão. Mas, como ambos sabemos, ela não nos torna isso fácil. A conversa avançou para os livros, e daí ao que pareceu um breve momento a sineta tocou a anunciar o fim da visita. – Antes de me ir embora, pai – disse Rob –, só queria dizer-te que a mãe tem ido à igreja. Ela não o admitiria a ninguém, mas sei que anda a rezar por ti e pela Katy. Albert limitou-se a sorrir. – Vai lá, filho, e esperemos que as preces da tua mãe sejam ouvidas. * Katy tinha encontrado um fio no saco que Ed lhe trouxera com algumas coisas, e entretinha-se a fazer a cama do gato com ele. Como de costume, não fazia ideia de quanto tempo passara desde a partida de Ed. Mas sentia-se bem outra vez, e com uma chaleira, chá e livros, estava a sentir-se recomposta e cheia de vontade de que ele voltasse. O seu cérebro dizia-lhe que era louca por estar desejosa de voltar a vê-lo. Mas não parecia ser capaz de fazer parar as perturbantes fantasias de ele a beijá-la e da sensação de que queria que as coisas fossem mais além. Tinha de ser realmente estúpida para pensar que poderia haver um fim feliz para isto! Mas quando se deitava na cama e fechava os olhos, via-os aos dois a andarem de mãos dadas no areal de uma praia, a rirem-se enquanto saltavam por cima das ondas. Depois arrancava-se àquela fantasia, pensava no seu pai preso, em Gloria e Edna mortas e nas coisas terríveis que Ed fizera à sua mulher para a levar a fugir-lhe. Estaria a ficar louca? O isolamento poderia fazer com que uma pessoa se apaixonasse pelo seu raptor? – Tu não o amas, isso é absolutamente ridículo – disse em voz alta. A sua voz pareceu ecoar à volta da sua prisão. Desfez a cama do gato que tinha à volta dos dedos, como se fosse uma corrente. Contudo, embora soubesse que não era saudável começar a pensar em Ed como algo mais do que um bruto, continuava a estar atenta a sinais do seu regresso. Ed apareceu finalmente depois do que pareceram horas a Katy. Trazia uma camisola azul-clara e calças cinzento-claras e cheirava a uma loção cara. Passou pela mente de Katy que ele se arranjara com cuidado para ela. – Olá – disse ela, sorrindo-lhe. – Como é que está o tempo? – Ligeiramente mais quente do que nas duas últimas semanas, mas com um vento forte – respondeu ele. – Parece um pouco perturbado – disse ela, embora não fosse verdade. – Quer contar-me o que se passa? – Apetecia-me mesmo um café – respondeu ele. – Queres fazer- mo? Ela riu-se e levantou-se para fazer café. – Ainda bem que não quer chá, o leite azedou, mas um guarda prisional esperto deixou-me leite em pó, que é aceitável no café. – Quando eu era pequeno, a coisa mais deliciosa do mundo era chá com leite condensado – disse ele, pensativo. – Experimentei outra vez há pouco tempo, mas é horrível. – Eu gostava de meter os dedos na lata do leite condensado e lambê-los – disse Katy. – Ainda acho uma delícia. Ed parecia pensativo ao sentar-se na cama. – Ser adulto não é como se julgava que seria quando éramos pequenos, pois não? Katy acenou com a cabeça, a concordar. – O que mais queria? – perguntou. – Quero dizer, quando era criança? Ele deixou-se ficar sentado a olhar para as mãos por um momento. – Lembro-me de desejar ter uma mãe que por vezes nos levasse até à praia para fazermos um piquenique. Vivíamos muito perto do mar, e embora eu e os meus irmãos pudéssemos ir à praia quando quiséssemos, costumávamos ver outros miúdos lá depois das aulas com as mães. Os piqueniques deles pareciam sempre ótimos. – Como viviam junto ao mar, provavelmente ela pensava que vocês não veriam isso como nada de especial – disse Katy. – Ela nunca fazia nada connosco – disse ele. – Mesmo quando tinha um bebé, esperava que fosse eu a dar-lhe o biberão. Eu vinha das aulas e encontrava o bebé todo molhado e a berrar. Ela estava a dormir, bêbeda como um cacho. Para Katy aquilo era uma imagem muito triste. – A Deirdre recordava-lhe a sua mãe? – perguntou. Os olhos dele chisparam perigosamente. – Não, não recordava. Era o mais diferente possível dela. Então, qual é a tua teoria sobre mim, afinal? – Eu não tenho uma teoria, Ed – disse ela. – Claramente, teve uma infância horrível. Mas muitas pessoas a têm, e nem todas acabam por matar. – Talvez a minha intenção não fosse matar aquela mulher e a filha dela. Só queria dar-lhe uma lição por me ter tirado a Deirdre e os meus filhos. – Bem. Não há dúvida de que o fez! Deu-lhe o pior tipo de lição que é possível. E os dois filhos dela que lhe sobreviveram? É uma coisa terrível o que o Ed lhes fez. Odiava-os porque a mãe deles os levava à praia a fazer piqueniques? A Gloria não lhe tirou a Deirdre. O Ed é que tornou impossível que ela ficasse consigo. Ele lançou-se sobre ela sem lhe dar tempo de reagir, empurrou-a para cima do colchão e deu-lhe um murro em cheio no rosto. – Não, Ed – gritou ela. – Não faça isso. Ele voltou a dar-lhe um murro. – Suplica-me – rosnou-lhe. – É o que fazem as mulheres, dão-me corda e depois suplicam-me que não lhes faça mal. – Eu não vou suplicar por coisa nenhuma – cuspiu ela, a tentar libertar-se das mãos dele. – Você mostrou-me que conseguia ser um homem bom e compassivo. Agora estragou tudo. Bata-me, se o faz sentir-se grande, mas não vou suplicar por nada. Ele bateu-lhe mais uma vez e outra. Tudo na linha de visão dela ficou vermelho, porque os seus olhos estavam cheios de sangue, pensou ela. Quando Reilly se cansou de lhe bater no rosto, começou a bater-lhe no peito e na barriga, e, embora ela tentasse encolher-se na posição fetal para se proteger, ele continuou a bater- lhe nas costas e nos lados. – Suplica, sua cadela – berrava-lhe. Ela gostaria de poder ver-lhe o rosto, que tinha a certeza que estaria contorcido de raiva. Mas, por mais dor que sentisse, não ia suplicar-lhe que parasse. – Eu vou matar-te. Tu sabes isso, não sabes? – rosnou ele. – Pensas que estás acima das outras mulheres, mas não estás nada. És só uma intrometida que meteu o nariz onde não devia. Pôs-se de joelhos e deu-lhe um murro tão forte no estômago que Katy caiu do outro lado da cama. Sentiu que ele lhe agarrava o cabelo e a puxava de novo para cima da cama para continuar a espancá-la. A cama parecia estar a andar à volta, ela só conseguia ver um clarão cor-de-rosa e sentia que estava a deslizar para um lugar escuro, com a dor e a voz dele finalmente a recuarem. 14 E mbora Charles sempre tivesse adorado Brighton, vista numa manhã chuvosa, ventosa e fria de março, a cidade não tinha o seu encanto habitual. Tudo parecia degradado; as casas pintadas de branco tinham uma pátina de bolor verde, as vidraças precisavam de ser limpas, os caixotes do lixo estavam a transbordar. Parecia também haver muito mais cocó de cão do que em Londres. Pat tinha pedido um favor na véspera à noite e encontrara as moradas de três Mrs. Reilly, que tinham todas vindo para Brighton de fora da zona, há cerca de dois e três anos, com filhos, e pediram uma casa camarária de emergência. Só a uma tinha sido concedida. O contacto de Pat não soubera dizer-lhe o nome próprio dessas mulheres, de onde eram ou mesmo a idade dos filhos. Pat também se recusara a revelar quem era o seu contacto. Charles suspeitava que era uma antiga namorada dele que trabalhava no departamento da habitação. Pensava que Edna se sentiria horrorizada se soubesse que, depois de todos os esforços dela e de Gloria para manter as mulheres em segurança, havia outras mulheres dispostas a revelar informações confidenciais só porque gostavam do homem que lhas pedira. Apanhou um táxi para a primeira morada, na zona de Withdean. Blythe Street era uma rua bastante degradada, com casas de três andares que davam a impressão de que deviam já ter sido demolidas. Duvidava que alguma dessas casas tivesse até casa de banho. O número 8 era uma das piores; mesmo com a porta da rua fechada, saía de lá um cheiro fétido. Como não havia campainhas, ele bateu com força. Não obtendo resposta, voltou a bater, desta vez ainda com mais força. Um matraquear de tacões numas escadas de madeira sem passadeira indicaram-lhe que alguém o tinha ouvido. – Queria falar com Mrs. Reilly – disse ele à mulher que veio à porta. Parecia desleixada, com uns trinta anos, e vestia uma enorme e suja camisola de lã grossa e umas calças de ganga e tinha um cigarro na mão. O cabelo estava-lhe colado à cabeça de tão oleoso. – Ela vive no último andar, é melhor você subir – disse a mulher, olhando-o de alto a baixo. – Parece que ela está a arranjar clientes com mais classe! Charles perguntou-se se isso quereria dizer que Mrs. Reilly era prostituta. Não poderia censurar que uma mulher adotasse essa profissão se estivesse sozinha e com filhos para sustentar, mas não conseguia imaginar nenhum homem desejoso de sexo a querer pagar para um encontro numa casa tão suja e degradada. Parecia que as escadas nunca haviam sido varridas e que a última vez que a casa tinha sido pintada fora no princípio do século. A porta ao cimo das escadas estava aberta, e ouvia-se um rádio a tocar lá dentro. Charles bateu à porta e chamou o nome dela. – Sim, quem é? – A mulher que veio à porta ainda estava de roupão e tinha rolos no cabelo. – A senhora é Mrs. Reilly? – perguntou ele. – E se for, que é que isso tem? – respondeu ela, espetando o queixo em desafio. Provavelmente, andava pelos trinta e muitos anos e seria sem dúvida razoavelmente atraente depois de se maquilhar. Mas tinha o rosto às manchas vermelhas, um indício de que bebia muito, e o seu corpo parecia um par de almofadas cheias de altos, apertadas pelo cinto do roupão. – Não tenho a certeza se é a pessoa que procuro. Importa-se de me dizer o seu nome próprio? – Freda – resmungou ela. – Por isso, a não ser que tenha cá vindo para me dizer que ganhei o totobola, ponha-se a andar. – Lamento não lhe trazer boas notícias – disse ele com um sorriso. – E peço-lhe desculpa pelo incómodo. Ela retribuiu-lhe o sorriso, revelando um dente da frente partido. – É mesmo cavalheiro, não se veem muitos por estas bandas. O que é que essa tal mulher fez? Charles compreendeu que Freda julgara que ele era polícia. – Não fez nada de mal, a não ser que se considere como tal ter casado com um homem perigoso. Só preciso de ajuda para o encontrar. – A mim parece-me que a maior parte das mulheres em Brighton a criarem os filhos sozinhas casaram com o homem errado – disse ela. – Penso muitas vezes no que é que aconteceu ao «viveram felizes para sempre». – Espero que encontre a felicidade um dia. Obrigado e adeus, Freda – disse ele, e deu meia-volta. Já na rua, abriu o guarda-chuva. Duvidava que passassem muitos táxis por ali. Depois de consultar a planta da cidade, como viu que a segunda Mrs. Reilly não morava longe, encaminhou-se nessa direção. Hardy Place era um bloco de apartamentos camarários, e quando Charles lá chegou estava todo molhado, apesar do guarda-chuva, e tinha os pés como gelo. O apartamento de Mrs. Reilly ficava no segundo andar. Era um prédio limpo e bem arranjado; alguém mantinha as escadas e os patamares de cimento limpos. Mesmo o parque infantil no rés do chão estava bem cuidado. Bateu à porta do número 22, que foi aberta quase imediatamente por uma mestiça alta e atraente. Charles apresentou-se, embora soubesse que aquela não podia ser a mulher de quem ele andava à procura, já que lhe fora dito que ela era baixa e tinha cabelo louro-arruivado. Explicou que andava à procura de uma senhora chamada Deirdre e perguntou-lhe o nome próprio; ela disse que era Dawn. Depois de uns minutos de conversa de circunstância, Charles foi-se embora. Só esperava que a última mulher da sua lista fosse a certa. Ela vivia perto da estação – o que, se mais não fosse, seria conveniente no caso de ela não ser Deirdre. Charles poderia apanhar o comboio e voltar para Londres. O número 83 de Station Road ficava por cima de uma mercearia, com a sua própria porta da rua ao lado da loja. Ele bateu à porta e aguardou, com a esperança de que não viesse a revelar-se uma perda de tempo. A porta abriu-se e a primeira ideia de Charles foi que aquela mulher tinha uma semelhança notável com Katy. Pequena, magra, com a mesma cor de cabelo e os mesmos olhos azuis. Contudo, ao passo que os olhos de Katy eram de um azul intenso e cintilavam com vida e inteligência, os olhos desta mulher pareciam mortiços, e tinha olheiras. Trazia uma camisola azul e uma saia cinzenta às pregas, pelos joelhos. Um pouco antiquado para uma mulher de uns trinta e poucos anos. – Deirdre Reilly? Não fique alarmada, eu sou advogado, e garanto-lhe que não estou aqui para lhe causar nenhuma dificuldade. Ela parecia estar em pânico. Charles entregou-lhe o seu cartão de visita, garantiu-lhe mais uma vez que só estava ali para falar com ela e perguntou se podia entrar. Depois de examinar o cartão, ela acedeu, algo relutante. Disse que o seu apelido era Purcell. Deirdre era claramente uma fada do lar, porque ele via que a mobília, que devia pertencer ao apartamento, era de fraca qualidade, mas ela acrescentara almofadas, algumas plantas, alguns quadros e uma manta de um vermelho-vivo a cobrir o sofá para tornar o espaço acolhedor. Duas fotografias a preto e branco tiradas na escola ocupavam o lugar de honra: uma menina e um menino. Charles supôs que teriam oito e sete anos, respetivamente. Eram tudo o que ela tinha na sua vida agora. – Ninguém a não ser eu conhece este endereço – assegurou-lhe ele. – A senhora e os seus filhos estão em absoluta segurança. Mas penso que o seu marido, Edward Reilly, raptou uma jovem chamada Katy Speed. Contou-lhe com a maior rapidez e brevidade possível quem era Katy e tudo o que tinha acontecido. – A Gloria está morta? – perguntou ela, horrorizada. – Aquela senhora bondosa, maravilhosa que me ajudou tanto? Devo a minha vida a ela e à Edna. – Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e fitou- o como se quase a implorar que lhe dissesse que não era verdade. – E foi o Ed quem fez isso? – Sim, receio bem que sim. E, a não ser que consigamos encontrá-lo, penso que também vai matar a Katy. – Ele é um demónio – disse ela, quase num sussurro. – Mesmo agora, três anos depois, ainda receio que ele me procure e venha castigar-me outra vez. Charles disse-lhe que Katy vivia em frente a Gloria, e que o seu pai tinha sido preso pelo homicídio. – A polícia sabe agora que não foi Albert Speed, mas ele continua em prisão preventiva até o caso ir a tribunal. – A Katy vivia na casa em frente à da Gloria? – perguntou ela. – Tem o mesmo tom de pele e cor de cabelo que eu? Charles disse que sim. – Então eu vi-a da janela do quarto da frente quando estive em casa da Gloria. Ela estava a ajudar o pai no jardim da frente. Pensei que parecia muito jovem e despreocupada, viva e bonita como uma manhã de primavera. Como me recordou de mim em nova, quase me apeteceu ir lá avisá-la para ter cuidado antes de se comprometer com qualquer homem. O problema é que ela é o tipo do Ed. Oh, meu Deus, espero que ele não lhe faça mal como me fazia a mim. Contou-lhe alguns factos sobre como Ed fizera muito dinheiro a construir casas e depois como as suas asneiras tinham vindo à luz do dia e ele perdera tudo. – Conheci-o pouco antes de vir tudo por ali abaixo; ele ainda tinha uma grande casa e tudo o mais. Quando o negócio foi à falência, tivemos de nos mudar para um apartamento pequeno, pouco maior do que este. Isso não lhe agradou nada. Os meus filhos nasceram lá, e isso pôs muita pressão sobre ele. Charles acenou com a cabeça. – Não tenho pena nenhuma dele, mas consigo imaginar o que lhe fez ao ego. Então, ele montou outro negócio? – Sim, foi trabalhar para um homem da construção civil que estava a fazer mais ou menos o mesmo que o Ed tinha feito, mas sem ir por atalhos. O Ed estava encarregado das vendas e da publicidade. Depois, comprou a casa em Hendon. Pensei que tudo ia ficar bem. Mas é claro que não ficou. – Ele ainda vive lá? – Suponho que sim, ele tinha imenso orgulho na casa. – Deu a morada a Charles. – Certo, Deirdre. Há algum sítio para onde imagine que ele possa ter levado a Katy? Algum lugar aonde ele costumasse ir em criança ou quando tinha o negócio? Ou até algum lugar que pertença a um amigo? – Ele não tem amigos – disse ela, encolhendo os ombros. – Dá-se com as pessoas que lhe são úteis, mas não tem aquele instinto afetuoso das pessoas normais. Parecia adorar ser carinhoso e generoso quando nos conhecemos, e eu pensei que tinha tido muita sorte, mas era tudo uma fachada. De modo nenhum real. Ele só queria ter poder sobre mim. Vergar-me à vontade dele. Pobre Katy, gostava de poder dizer-lhe que ele a vai soltar, mas não vai. Se eu não tivesse fugido quando fugi, ele ter-me-ia matado, e provavelmente também os nossos filhos. Tenho a certeza absoluta. Estou certa de que ele diz a quem o queira ouvir que eu era o amor da vida dele e tudo isso, mas ele não sabe o significado da palavra amor. – Lamento imenso, Deirdre. A Edna teve sorte em sobreviver a ele tê-la empurrado para fora da estrada. Ainda continua aterrada, com receio de que ele a encontre. Mas, Deirdre, por favor pense bem, há algum lugar que ele alguma vez tenha mencionado para onde possa ter levado a Katy? Alguma outra pessoa que pudesse ajudar-me, e à polícia também, claro? – A Katy é sua namorada? – Só saí com ela uma vez, mesmo antes de ele a raptar. Mas gostava que fosse minha namorada. Deirdre fez chá para os dois. Charles via que ela estava a esforçar-se por pensar; tinha a testa franzida com a concentração. – Ele era um bocado obcecado por Dover – disse ela ao dar a Charles uma chávena de chá. – Foi onde nasceu, e viveu lá até se alistar no exército durante a guerra. Quando nos casámos, levou-me lá. Pensei que se ia pôr todo sentimental, e contava vislumbrar alguma coisa sobre o passado dele. Mas ficou todo zangado quando lá chegámos, a desabafar sobre o facto de a mãe andar sempre a beber e de ele ter tido de tomar conta dos irmãos. A casa em que tinha vivido em pequeno fora demolida, mas ele fartou-se de dizer como era horrível. «O estranho para mim é que ele estava sempre a voltar lá. Nunca mais me levou. Ia sozinho; por vezes, dizia-me que tinha lá estado, ou que ia lá, mas na maior parte das vezes não dizia nada, simplesmente desaparecia. A única razão por que eu sabia que ele ia a Dover era que encontrava recibos da gasolina nos bolsos do casaco dele. Também encontrei um cartão de um agente imobiliário. Por isso, é possível que ele tenha uma casa lá em baixo.» – Ele manteve-se em contacto com os irmãos? – Não, não os suportava. Dizia que eram como a mãe, sempre de mão estendida. Nunca conheci nenhum deles; nem sequer os convidou para o nosso casamento. Como Charles pressentiu que ela não sabia mais nada sobre os irmãos do marido, avançou para outro tópico. – Por que foram viver para Hendon? Houve alguma razão para isso? – Depois da guerra, ele travou conhecimento com uns homens de negócios judeus que viviam em Golders Green; penso que se envolveu financeiramente com eles no negócio da construção civil que foi à falência. Há uma data de gente rica a viver lá, e penso que ele teve a ideia de que poderia ser-lhe vantajoso, especialmente porque muitas pessoas pensavam que ele era judeu, com o cabelo e os olhos escuros que tem. É claro que não tinha posses para comprar uma casa em Golders Green, mas Hendon ficava perto e era uma zona mais barata. – Quais eram os interesses dele, Deirdre? Passatempos, esse tipo de coisa? – Só o dinheiro, realmente, e carros bons – disse ela com um sorriso de desprezo. – Gostava de dar a impressão que era muito rico, o Jaguar era parte disso. Também fez com que a nossa casa parecesse grandiosa. Era de quatro frentes, e ele fez todo o tipo de melhoramentos, uma coisa chamada um pórtico, com colunas à volta da porta da rua. Tinha muito orgulho nisso. – Dá a ideia de que nada disso a impressionava por aí além? – Não, não me impressionava nada. Achava até um pouco embaraçoso. Ainda por cima, mal nos mudámos para lá os maus tratos tornaram-se muito piores. Nunca, jamais lá voltarei. Nem poderia dar-lhe uma pálida ideia daquilo por que ele me fez passar. – Arregaçou as mangas para lhe mostrar que tinha os braços cheios de marcas de queimaduras de cigarros. – Tenho o corpo todo coberto de cicatrizes. Mesmo que eu viesse a conhecer um homem às direitas e bom, nunca poderia deixar que visse o que me foi feito, sinto demasiada vergonha. O truque favorito do Ed era fechar-me na garagem. Fica por baixo da casa, mas ele insonorizou-a, por isso era mais como uma cave, e ninguém podia ouvir-me. Até as luzes se acendiam e apagavam do lado de fora. Ele acorrentava-me à parede e torturava-me. Por vezes, mantinha-me lá presa dias a fio. Charles sabia que ela estava a contar a verdade, e fê-lo estremecer pensar que Katy estava nas garras daquele homem. Poderia estar presa nessa tal garagem? – Porque não fugiu na primeira vez? – perguntou ele. – Ou até mesmo depois de nascer o seu primeiro filho? – Faço muitas vezes essa pergunta a mim mesma – disse ela com um suspiro. – Em minha defesa, só posso dizer que em criança vivi num orfanato dirigido por freiras, e elas fizeram-me sentir que não tinha valor. Também era muito nova quando conheci o Ed, e muito ingénua. Quando ele disse que me amava e que queria casar comigo, mal consegui acreditar na minha sorte. «Nos primeiros tempos, ele pedia desculpa depois de me bater, dizia-me o quanto eu significava para ele e suplicava-me que lhe desse mais uma oportunidade.» Fitou Charles com os olhos cheios de lágrimas. – Dizia-me que era assim por causa das coisas que tinha visto durante a guerra e, estupidamente, acreditei. Além disso, eu não tinha ninguém para quem me virar, nenhum sítio para onde ir. Mas ele foi ficando pior ao longo do tempo; as crianças chorarem, eu partir alguma coisa, atrasar-me a preparar uma refeição, qualquer coisa era desculpa para ele. Foi só quando começou a bater na Jane e no Tony que eu soube que tinha de me ir embora. Uma coisa é apanhar pancada, mas que mãe ficaria a ver os filhos serem maltratados e não faria nada? – É uma boa mãe, Deirdre, lembre-se sempre disso. Sentia uma profunda compaixão por ela; duvidava que as suas feridas psicológicas alguma vez cicatrizassem, e devia estar muito sozinha, só ela e os dois filhos, a sobreviver com muito pouco dinheiro. Mas Katy precisava de ser salva, e a sua necessidade era maior do que a de Deirdre. Charles pressentia que ela não tinha mais nada a contar-lhe, só outras histórias de maus tratos e do seu terror. – Tenho mesmo de me ir embora – disse Charles. Queria ir à casa de Hendon imediatamente. – Foi muito corajosa ao contar tudo isto, e espero realmente que alguém entre na sua vida dentro em breve para a fazer feliz. Tem o meu cartão com o meu número de telefone. Se se lembrar de mais alguma coisa que possa ser útil, por favor telefone-me. – Tirou uma nota de vinte libras do bolso e pousou-a na mesa de apoio ao sofá. – Leve a Jane e o Tony a um lugar bonito para lhes fazer um miminho. Ela começou a protestar, mas ele inclinou-se para a frente e pôs- lhe um dedo nos lábios a silenciá-la. – É só um pequeno sinal do meu apreço – disse. Ela sorriu, e desta vez os seus olhos brilharam. – Espero mesmo que encontre a Katy, e que ela venha a ser sua namorada. Eu telefono-lhe, quanto mais não seja para perguntar se esse desejo se concretizou. Charles aproximou-se e desta vez pôs os braços à volta de Deirdre para a abraçar. Sentia tanta pena dela que até lhe doía o coração. 15 K aty mal conseguia mexer-se com as dores. Não eram só num sítio, mas pelo corpo todo, na cabeça e no rosto, nos braços, no tronco, nas costas e na barriga, e até mesmo nas pernas. Não sabia como alguém podia sentir tanta dor e continuar viva. Mas, como precisava de ir à sanita, tinha de se levantar. Com grande dificuldade, conseguiu rolar até à beira da cama. Pondo um pé no chão e içando-se com a mão direita apoiada na cama, conseguiu pôr-se de pé. Suspeitava que tinha o braço esquerdo partido, porque estava numa posição estranha e lhe doía imenso quando o mexia. Tinha quase a certeza de que perdera os sentidos e assim ficara durante algum tempo, porque o sangue no seu rosto estava agora seco. Precisou de todas as suas forças e de todo o seu ânimo para chegar à sanita. Uma vez ali, no chão ao lado do lavatório, viu a chaleira elétrica e as outras coisas que Reilly tinha trazido para fazer chá. Embora tivesse a boca muito inchada e os lábios cortados, e duvidasse que fosse capaz de beber chá, a ideia animou-a. Pelo menos, podia ferver água e lavar-se em água quente. Demorou uma eternidade a retirar o sangue seco do rosto, usando a pequena toalha com que Reilly a limpara quando ainda estava a ser caridoso com ela. Agora, perguntava-se como alguma vez poderia ter pensado que o interpretara mal e chegara a gostar dele. Cada movimento que fazia provocava-lhe tanta dor que não conseguia conter as lágrimas. Tivera muitos momentos maus desde que Reilly a fechara nesta prisão, mas este era o pior. Já não havia esperança de que ele regressasse. Instintivamente, sabia que as visitas dele tinham acabado; a fome e a dor eram tudo o que lhe restava antes da morte. O ato de fazer o chá ajudou um pouco, só pela sua normalidade. Mas sentia-se estonteada com a dor, via estrelas, e passou-lhe pela cabeça que poderia ter um traumatismo craniano. Surpreendentemente, o leite não se tinha estragado, e ela deitou bastante no chá para o arrefecer. Mesmo assim, era difícil de beber, porque tinha a boca muito dorida. Olhar-se ao espelho não ajudou nada; parecia grotesca, com dois olhos negros e as faces e a boca tão inchadas que pensava que nem a sua própria mãe a reconheceria. Arrastou-se de volta para a cama e bebeu o resto do chá, tentando a muito custo não pensar na sua situação. Mas não havia mais nada em que pensar. Tinha um pacote de bolachas que Reilly trouxera, uma laranja e uma banana. O termos em que ele trouxera a sopa, que dizia ter-lhe dado às colheres, estava vazio. Felizmente, não sentia fome; era algo por que estar grata, supunha. O braço doía-lhe tanto que sentia vontade de gritar. Mas quando tentou rasgar o forro do seu vestido de chiffon para fazer uma ligadura, doeu-lhe ainda mais, e abandonou a ideia. Permanecer deitada muito imóvel era a única maneira de não sentir tantas dores. Cobriu-se com o edredão e esperou pelo sono. * Charles estava de regresso a Londres à uma hora da tarde. Ainda antes de sair da estação, telefonou a Pat para lhe dizer que descobrira onde Reilly vivia e que deviam ir lá imediatamente. – Graças a Deus por isso – disse Pat. – Eu acabei agora mesmo de regressar, e tenho imenso para te contar, mas isso pode esperar até nos encontrarmos. Mete-te no metro e eu vou buscar-te à estação de Hendon. Charles tinha outra chamada a fazer, para Jilly. Sabia que ela devia estar a sentir-se cada vez mais preocupada com a amiga, e poderia ajudá-la um pouco saber que tinham finalmente obtido a morada do homem que raptara Katy. Julgava que teria de deixar uma mensagem para ela, já que Jilly lhe dissera que muitas vezes estava fora do posto médico dos animais durante o dia. Contudo, para encanto de Charles, estava lá, junto ao telefone. – É a melhor notícia de sempre! – exclamou depois de Charles lhe contar que obtivera a morada de Hendon. – Bem, vai ser, se conseguir encontrá-la. Não teve de acrescentar «viva»; era o que ocupava permanentemente os pensamentos de Charles. – Telefono-lhe para casa, ou vou lá esta noite. Mantenha a esperança – acrescentou ele antes de desligar. * Pat estava à espera no seu carro junto à estação de Hendon. Tinha um ar tenso, como se fosse capaz de atacar alguém que se metesse com ele. Charles conhecia muito bem aquele ar; em Cambridge, Pat metera-se muitas vezes em trabalhos por não conseguir controlar-se. – O que se passa? – perguntou Charles ao entrar para o lugar do passageiro. – Acho que o filho da mãe é capaz de ter raptado outra mulher – disse Pat. – E os dois filhos dela. – Não! O que te faz pensar isso? – Lembras-te da mulher do médico, a Margaret Foster, de Hampstead? Bem, ela mudou o nome para Peggy Ashcroft, e agora desapareceu. – Porque é que parece que o Reilly está envolvido? – Segundo uma amiga que ela arranjou na vila, um homem veio vê-la algumas vezes, um tipo bem-parecido, com cabelo escuro. Uma manhã, logo a seguir ao Natal, ela apareceu com um olho negro e deu uma desculpa esfarrapada. Daí a uns dias, pôs-se a andar, pegou nos filhos e desapareceu. – Levou todos os seus pertences? – Levou. – Bem, é mais provável que tenha dado à sola para não pagar as contas. Os assassinos não esvaziam a casa das suas vítimas – disse Charles. – Isso é verdade, mas para onde é que ela foi? Não contactou os pais. – Quando é que isso aconteceu? – Há apenas duas semanas. Como estava a viver perto de Eastbourne, podia ter lido sobre a notícia da morte da Gloria nos jornais locais e ter entrado em pânico, como a Edna. Mas aposto que o Reilly está envolvido; ela andava com ele, e ele bateu-lhe. Se ela se pisgou com os filhos e com os seus pertences ou ele a levou ainda está para se ver. Mas estou convencido de que o Reilly era o homem com quem ela andava. – Bem, não era o marido, sabemos que ele estava na Flórida num congresso de cirurgiões. – A amiga dela na vila disse que ficou bastante surpreendida por ela ter um namorado. Disse que a Margaret/Peggy era contra os homens. Mas como é que o Reilly a encontrou? E porquê? Quereria castigá-la de alguma forma por causa da mulher dele? – Talvez a ligação entre as duas mulheres seja o hospital Whittington? – sugeriu Charles, pensativo. – Mas vamos agora à casa do Reilly dar uma vista de olhos. É possível que encontremos algumas respostas. Daí a uns minutos, pararam junto à casa. Charles compreendeu o que Deirdre quisera dizer quando lhe contou que Reilly tentara fazer com que a casa parecesse de uma pessoa rica. Fora construída no cimo de uma encosta, como todas as casas naquela rua, mas tinha um caminho grandioso a descer para a garagem por baixo da casa. O pórtico de pedra à volta da porta da rua era pretensioso, inadequado para uma casa construída nos anos 1930, e havia dois leões de pedra acocorados a ladeá-lo. O jardim da frente estava extremamente bem cuidado, na maior parte com arbustos perenes aparados em forma de bolas e de cubos. Não se via uma erva daninha, um papel de rebuçado ou um bilhete de autocarro no jardim. Os degraus até à porta da frente da casa da maior parte das pessoas estariam verdes com musgo no início de março, mas parecia que os dele tinham acabado de ser esfregados. – Fica aqui – disse Pat. – Buzina se aparecer alguém. – Não vais entrar na casa, pois não? – Charles estava horrorizado. – Porque é que não chamamos a polícia imediatamente? Pat arreganhou os dentes como um lobo. – Para me estragarem o divertimento? Além disso, se a Katy estiver naquela garagem subterrânea, não queres tirá-la de lá o mais depressa possível? – É claro que sim, mas não posso ser conivente com um assalto a uma casa. Daria cabo da minha carreira; seria expulso. – Tu não me viste fazer nada – disse Pat. – Tanto quanto sabes, limitei-me a bater à porta. Eu assumo a responsabilidade. Charles ficou a ver Pat subir o caminho até à casa e tocar à campainha. Perguntou-se que história rocambolesca ele contaria se Reilly viesse abrir a porta. Mas Reilly não estava em casa, e Pat desceu à garagem e bateu na porta com um instrumento comprido e fino que, muito claramente ia ser usado para arrombar a porta da casa se a garagem se revelasse vazia. Pat tinha a orelha encostada à porta, e abanou a cabeça a Charles a confirmar que não pensava que Katy estivesse lá dentro. A seguir, desapareceu por uma cancela lateral e Charles perdeu-o de vista. A Charles parecia que estava ali sentado há horas, preocupado de morte com o que aconteceria se Reilly voltasse ou se um vizinho telefonasse para a polícia a informar que a casa do lado estava a ser assaltada. De facto, Pat só esteve ausente vinte minutos, mas foram os vinte minutos mais longos da vida de Charles. – Está tudo incrivelmente limpo e arrumado lá dentro – disse Pat ao entrar no carro. – As latas de comida todas alinhadas como soldados numa fileira, com os rótulos para a frente. Os fatos e os casacos todos arrumados por cores, do preto até a um de linho branco. Cada camisa tem uma gravata de uma cor a condizer posta sobre o ombro. Pobre Deirdre, se era forçada a manter aquele regime. – Encontraste algo que nos possa ser útil? – Charles sentia-se um pouco irritado com a atitude descontraída de Pat, como se aquilo fosse a excursão de primavera do trabalho e não a vida de uma jovem em risco. – Alguns mapas pormenorizados de zonas do país – disse ele. – Estranho, não fiquei com a impressão, ao ver aquela casa obsessivamente arrumada, que ele seria de gostar do ar livre. Os mapas eram na sua maioria da Costa Sul, e um que estava particularmente usado era do Kent. De facto, ele desleixou-se na questão da arrumação; estava dobrado a mostrar a costa de Dover. Diria que o esteve a estudar recentemente. – Ele é de Dover. A Deirdre disse que era obcecado por ir lá. – Então, talvez nós devêssemos ir a Dover – disse Pat. – Mas neste momento devíamos levar o que temos à polícia. Por muito que gostasse de encontrar a Katy, requer mais pessoal do que só nós os dois. Esta casa precisa de ser vigiada, para o caso de o Reilly voltar aqui, e devia ser feita uma averiguação dos antecedentes, juntamente com a família e os contactos dele em Dover. Charles soltou um suspiro de alívio. Pat era tão aventureiro que ele receara que o seu amigo quisesse conduzir toda a investigação. – Tinha muita esperança de que ela estivesse aqui. Encontraste alguma coisa que nos dê mais pistas? – Não. Não me parece que ele tenha levado alguém para casa ou até que lá tenha estado sozinho nos últimos tempos – disse Pat, e deu uma palmadinha no braço do seu amigo para o consolar da deceção. – Aquilo é absolutamente estéril. Nem uma fotografia, nem a mínima coisa da Deirdre ou dos filhos. Nem sequer fruta numa taça. Procurei em guarda-fatos, em gavetas, por toda a parte. Para um homem que estava desesperado por encontrar a mulher e os filhos, é notoriamente sinistro que se tenha livrado das coisas todas deles. Pat ligou o motor e arrancou. – Vou agora à polícia. Conheço uma série de agentes, e isso ajuda realmente a incentivá-los a agir. Não acho que seja aconselhável que tu também venhas, podia dar confusão mais tarde. Se me deres todas as informações que descobriste em Brighton, eu posso fazer de conta que são resultado da minha investigação. – Então, o que é que eu faço? – Charles sentia-se um pouco irritado por o seu amigo se mostrar subitamente tão autoritário. – Talvez pudesses ir amanhã a Dover dar uma vista de olhos? És bom a falar com as pessoas. Com alguma relutância, Charles tirou do bolso o bloco de apontamentos em que anotara tudo o que Deirdre lhe dissera. Pousou-o no tabliê. – Está aí tudo o que aconteceu hoje. Pat lançou um olhar para o lado e sorriu-lhe. – Não admira que acabasses por ser advogado e eu não. Sempre foste bom a tomar apontamentos, a procurar os pormenores. Eu sou melhor a torcer o braço às pessoas para as fazer falar. * Depois de Pat deixar Charles em casa, ele telefonou a Michael Bonham e contou-lhe as novidades mais recentes. – O pai e o irmão da Katy estão desesperadamente preocupados – disse Michael a Charles. – Penso que sabe que o Rob, o irmão, está agora em Bexhill. Estive com ele e com o Albert na prisão. A seguir, o Rob e eu fomos a um hotel ali perto tomar uma bebida e comer uma sanduíche para podermos continuar a conversar. Aquele pobre rapaz está fora de si com o receio do que possa ter acontecido à Katy. Eu telefono-lhe a transmitir estas últimas informações. Mas há boas notícias: todas as acusações contra o Albert vão ser retiradas, esperemos que amanhã. O Rob vai ficar em Lewes até isso acontecer e ele poder levar o pai para casa. – E a mãe? Vai receber o Albert de volta? – O Rob está a tentar convencê-la. Ele acha que talvez ela sofra de alguma doença mental. Mas o Rob deixou bem claro que se ela não permitir que o Albert volte para casa e não o tratar com respeito, ele vai-se embora com o pai. O rapaz causou-me uma ótima impressão, é forte e direto, como a irmã e o pai, mas até mesmo as pessoas mais fortes podem ir-se abaixo sob este tipo de pressão. Charles disse que tivera de telefonar a Jilly e contar-lhe as últimas notícias. – É outra que está desesperadamente preocupada – disse ele. – Teve de desistir do apartamento para que ela e a Katy iam mudar- se. Não podia pagar a renda sozinha, e convenceu o senhorio a devolver-lhe o depósito. Penso que ela sentiu que seria tentar o destino manter o apartamento na esperança de a Katy ser encontrada. – A probabilidade de isso acontecer está mais ténue a cada dia que passa – disse Bonham com um suspiro. – É claro que eu não disse isso ao pai e ao irmão dela hoje. Há sempre esperança, especialmente se a polícia não se poupar a esforços, agora que sabem que é o Reilly que está por trás do rapto da Katy. * Charles telefonou a Jilly depois das sete, quando sabia que ela estaria em casa. – Tem boas notícias? – perguntou ela mal ouviu a voz dele. – Bem, sim, na medida em que sabemos quem é o raptor da Katy e onde vive, e o meu amigo Pat está neste momento a entregar o caso à polícia. Contou-lhe mais alguns pormenores, pois sabia que ela estava desesperada por se manter totalmente a par da situação. – Estou a pensar ir a Dover amanhã e ver o que consigo desencantar lá – acrescentou. – Posso ir consigo? Por favor! – implorou ela. – Vai ser melhor para si ter-me ao seu lado. As pessoas sentem-se mais dispostas a falar com um casal do que com um sujeito da alta com um fato todo catita. Charles sorriu ao ouvir aquelas palavras. – Mas a Jilly tem de ir trabalhar. – Posso pedir à minha tia que telefone a dizer que estou doente. Por favor, deixa-me ir consigo, Charles? Quero fazer alguma coisa para ajudar a encontrar a Katy. E as mulheres são sempre melhores do que os homens a repararem nos pequenos pormenores. – Não tenho argumentos contra isso – disse ele. – OK, pode encontrar-se comigo na estação de Charing Cross às nove e meia? Eu espero debaixo do relógio. * Quando chegaram a Dover na manhã seguinte, Jilly já tinha decidido que Charles era um dos homens mais simpáticos que alguma vez conhecera. Podia ser da alta e extremamente inteligente, mas não a fazia sentir-se desconfortável ou estúpida. Era bondoso e bem-parecido e tinha um bom sentido de humor. Não que houvesse motivo para risos neste momento, e não os haveria até encontrarem Katy, mas com Charles envolvido no caso ela sentia-se muito mais confiante de que o resultado viria a ser positivo. Tinha de se agarrar à ideia de que em breve os três estariam a jantar juntos e a rir-se. Não a rir-se de Katy ter sido raptada, claro – de algum modo, sabia que nunca haveria nada de divertido nisso –, mas de qualquer outra coisa. Jilly tinha de se agarrar a essa ideia, porque não se atrevia a pensar no que seria a vida sem a sua melhor amiga. Não se importava de ter tido de desistir do apartamento. Não se importava se perdesse o emprego no jardim zoológico e tivesse de voltar para Bexhill, com tudo o que isso implicava. Nada importava a não ser encontrar Katy. – O meu amigo Pat conseguiu arranjar-me algumas informações sobre a família do Reilly ontem à noite – disse Charles quando ainda estavam no comboio. – Tenho a morada da Susan Gosling e da Dolly Meek, ambas tias dele. São irmãs da mãe. A Dolly é gerente de uma residencial. – Nunca fui a Dover – disse Jilly. – É um sítio bonito? – Sempre o achei um pouco opressivo – respondeu Charles. – Vai-se a Folkestone, a cidade vizinha mais próxima, e é tudo ligeiro e claro, mas Dover tem um ar acinzentado. Talvez seja por causa do castelo ou das docas, com os ferries a chegarem e a partirem, ou por causa dos penhascos altos, mas a taxa de crimes é mais alta, e é uma cidade um pouco sórdida. – Conseguiste realmente convencer-me – disse Jilly com um sorriso. – Então, é a cidade adequada para o Edward Reilly ter nascido nela! – Vamos ver a tia Dolly primeiro – disse Charles. – Fica perto das docas, por isso acho que vamos encontrar um albergue, mais do que uma residencial. – A mãe da Katy já começou a mostrar alguma emoção? – perguntou Jilly. – A minha mãe telefona-me quase todos os dias para perguntar se há notícias, mas foi visitar Mrs. Speed e ela disse- lhe mais ou menos que se pusesse a andar. Charles abanou a cabeça, perplexo. – Não me compete comentar as atitudes dos parentes. Mas começo a achar cada vez mais difícil compreendê-la. – A Katy também não conseguia compreendê-la. Penso que preferiria viver na pobreza com a minha família a viver na casa dela, toda limpa e arrumada. Charles gostou da maneira como Jilly falou sem papas na língua da sua casa e da sua família. Era evidente que a adorava e que eram uma família muito feliz, mas ele raramente se deparava com uma franqueza tão desassombrada, e achou-a revigorante. – A minha família também não é de grandes limpezas – disse. – Os cães são quem manda na casa, a mobília é velha e a cozinha normalmente está uma confusão. De facto, suspeito sempre de quem tenha uma casa demasiado arrumada. – Contou-lhe o que Pat dissera sobre a casa de Reilly. – Não preciso de dizer mais nada – concluiu, e riu-se. – Uma ordem tão incrível revela uma mente distorcida. * Charles acertara em relação à Residencial White Cliffs. Ficava junto às docas, numa estrada cheia de movimento, e era o tipo de residencial em que só as pessoas mais desesperadas se alojariam. Era de tijolos, mas estava pintada de branco; a tinta tornara-se verde com a humidade, e estava a descascar, fazendo com que a casa parecesse sofrer de alguma doença. As janelas e as cortinas de renda davam a impressão de já não serem lavadas há anos. A porta foi-lhes aberta por Dolly Meek, que poderia ser um modelo para postais brejeiros: um busto enorme, pernas como troncos de árvore, o cabelo grisalho com rolos e um cigarro a pender-lhe dos lábios. Trazia uma bata florida cruzada no peito que não primava pela limpeza. – Pois é, a nossa Mavis foi burra o bastante para se envolver com o Angelo Reilly – disse ela à soleira da porta, numa voz suficientemente alta para servir de buzina de nevoeiro. – Nunca se casou com ele, ele não lhe deu tempo para isso, mas ela adotou o apelido dele quando emprenhou do Ed. Eu disse-lhe nessa altura: «Vai mas é falar com a Ma Grady, que trata dessas coisas.» Mas ela não quis. Disse que o amava e que queria um filho dele. Charles mal conseguia acreditar que ela estivesse a berrar aquela informação à rua toda. Sugeriu que os convidasse a entrar, porque estava muito frio e havia muito barulho na rua. – Ainda não levantei a mesa do pequeno-almoço – disse Dolly, empinando um pouco mais os seus consideráveis seios e atirando a ponta do cigarro para a rua. – Por isso, vão ter de desculpar a desarrumação. O fedor a fritos rançosos e a fumo de cigarro era potente, mas pelo menos a sala de estar para onde ela os levou estava quente, com um grande lume na lareira. O centro da sala era ocupado por uma mesa coberta com uma toalha de plástico aos quadrados vermelhos e brancos. Havia cerca de sete lugares postos à mesa, com cigarros apagados entre os restos de um pequeno-almoço à inglesa. Toda a sala estava cheia de tralha, desde jornais velhos a latas de comida e um grande número de garrafas, tanto cheias como vazias. Dolly fez desaparecer algumas roupas de um sofá para eles se sentarem. – É realmente sobre o Edward, o seu sobrinho, que preciso de lhe fazer umas perguntas – disse Charles depois de ouvir Dolly tagarelar alguns minutos sobre como a irmã tinha estragado as suas hipóteses de futuro ao envolver-se com um fogueiro de um navio, um homem sem préstimo que era meio irlandês meio italiano. – O nosso Ed era um bom miúdo, na realidade – disse ela, alisando a bata e sentando-se numa das cadeiras da mesa. – Tipo, nunca teve hipóteses, não quando a nossa Mavis se virou para os copos e desatou a ter mais miúdos. O Ed era quem se encarregava de tratar deles na maior parte do tempo. Mas meteu-se-lhe na cabeça que estava destinado a coisas melhores. É sempre perigosa, essa ideia. Charles e Jilly escutavam Dolly com espanto. Ela debitava informações pessoais sobre a irmã sem qualquer embaraço. – Ela abria as pernas a qualquer tipo que lhe pagasse uns copos. Apanhei-a um dia nesta sala a fazer uma mamada a um dos meus hóspedes. Fê-la por dois xelins. Valha-me Deus! Tinham de me dar mais do que dois xelins para tocar nas pilas dos meus hóspedes, quanto mais meter uma na boca. Charles tentou repetidamente levá-la a falar sobre Edward e por fim conseguiu. – Ir para o exército foi bom para ele. Não me parece que tenha combatido grande coisa, é bom que se diga. Ele costumava gabar- se de ter ficado preso num tanque a arder e coisas do género. Mas isso era tudo inventado. Ele tinha dinheiro quando foi desmobilizado, por isso acho que deve ter tido um arranjinho qualquer lá no exército. Tinha-se tornado duro como uma pedra. Não dava dinheiro à mãe, nem a nenhum de nós. Também dava uns safanões à Mavis, chegou a partir-lhe uns dois dentes. Depois desapareceu por uns anos. Voltou uma vez num carro todo vistoso e com um fato que devia ter custado umas cem libras. Dessa vez, deu-nos dinheiro a todos, queria exibir-se, porque tinha uma empresa de construção. Mas perdeu tudo, não foi? Lemos nos jornais. Veio cá abaixo uma vez com a moça com quem tinha casado. Ela devia ser uma boa mocinha, mas demasiado mole para um tipo como ele. Eu disse-lhe que ela tinha de lhe fazer frente, mas ela só sorriu, como se não acreditasse em mim. – Dolly, o Edward quase a matou, e ela acabou por fugir dele. – Charles sentiu que tinha de fazer aquela mulher ver como esta investigação era séria, e não queria que ela continuasse a relembrar o passado a não ser que fosse relevante. – Desde essa altura, já pegou fogo a uma casa e provocou a morte de duas mulheres no incêndio, uma das quais era a que tinha ajudado a mulher dele a escapar-lhe. Ao ouvir aquilo, Dolly ficou de boca aberta e deixou cair o cigarro que acabara de acender e meter entre os lábios. – Oh, meu Deus! – exclamou. – A polícia anda à procura dele? – Sim, claro. Suponho que virão procurá-lo por estas bandas não tarda nada. Mas o que me preocupa realmente é uma jovem chamada Katy Speed. Ele raptou-a, e receio que a mate. Por isso, por favor diga-nos se sabe de algum sítio em Dover para onde ele pudesse tê-la levado. – Eu já não o vejo há anos. Mas uma amiga minha disse-me que o viu aqui mesmo antes do Natal. – Onde é que ela o viu? – Na rua principal. – Diga-me, Dolly, a mãe dele ainda é viva? – Não, morreu em 1956. Foi a bebida que deu cabo dela. A única outra pessoa da nossa família aqui é a Susan, a minha irmã. Não é como eu. É dada à religião, pertence ao Exército de Salvação. – E amigos dele, rapazes que ele conhecia quando andava na escola? Conhece alguns? – Há quatro ou cinco tipos com quem ele costumava andar. Vão beber uns copos ao King’s Head. Pergunte pelo John Sloane. Mas tenha cuidado com o que lhe diz, ele tem mau feitio. – Quero que me prometa uma coisa, Dolly. – Charles aproximou- se dela e olhou-a nos olhos. – Se o Ed vier cá nas próximas semanas ou alguém lhe disser que o viu, telefona-me, a mim ou à polícia, imediatamente? E por favor prometa-me que não o avisa de que eu ando a fazer perguntas. – Prometo. Eu não lhe despejava água em cima nem que o visse a arder – disse ela, e os seus olhos azuis deslavados chisparam, provando que falava a sério. – Não é provável que ele venha visitar- me, mas se vier dou-lhe um pontapé nos tomates e fecho-lhe a porta na cara. * – Uma coisa boa de ver uma pessoa realmente rasca, no seu ambiente imundo – disse Jilly quando voltavam para o centro da cidade para procurar a outra tia de Ed, Susan –, é que nos faz compreender como nós e a nossa família somos realmente bastante civilizados. Charles riu-se. Achava Jilly muito revigorante, com a sua franqueza total. Havia muito de que gostar nela. Embora não fosse convencionalmente bonita, tinha um rosto interessante. A sua altura, a maneira graciosa como se movia e os seus olhos namoradeiros, com umas pestanas incrivelmente compridas, recordavam-lhe uma girafa. Trazia uma minissaia de xadrez e botas altas, e tinha umas pernas sensacionais. A caminho de Dover, dissera-lhe que a sua tia Joan não aprovava o uso de minissaias, mas ela andava a subir a bainha gradualmente a todas as suas saias, um pouco de cada vez, para que o choque de ver tanta perna à mostra não matasse a tia. Charles divertia-se muito com as coisas com que ela se saía. – A Dolly é rasca, a Mavis era uma vadia – disse Charles quando se aproximavam da casa da tia Susan. – Faz pensar como seria a mãe delas. No entanto, fiquei com a ideia de que a Dolly tem de facto um bom coração. – Bem, encaremos os factos, alguma coisa de bom ela deve ter – disse Jilly a rir-se. – Quando se saiu com aquela história de a Mavis fazer aquilo por dois xelins, eu só queria que o chão se abrisse e me engolisse. Mas, para fazer justiça à Dolly, ela deve proporcionar um lar acolhedor aos homens que ficam lá na residencial. A casa de Susan era uma minúscula casa em banda numa viela estreita. Era uma pequena rua suja, com as portas da entrada a darem diretamente para o passeio, mas Jilly observou que o número 9 era a única casa com uma soleira bem limpa e cortinas de renda de um branco ofuscante nas janelas de vidraças cintilantes. – Mas ela pertence ao Exército de Deus – acrescentou Jilly, arqueando as sobrancelhas. – A limpeza é um dos mandamentos, afinal. A porta foi aberta por uma mulher muito pequena e magra, com cabelo branco como a neve e vestida de preto. Fitou-os com um olhar interrogativo. – Mrs. Susan Gosling? – perguntou Charles. Por um segundo, julgou que estavam na casa errada, porque era difícil imaginar aquela mulher a ter saído do mesmo ventre que Dolly. Quando ela acenou que sim, ele entregou-lhe o seu cartão de visita. – Sou advogado, e ando a investigar o filho da sua irmã Mavis, o Edward, e esta é a minha assistente, Miss Carter. Podemos entrar? – Ele morreu? – perguntou Susan enquanto os conduzia por um corredor estreito para uma sala de estar e cozinha nas traseiras. Era um espaço inóspito, sem nenhum conforto real a não ser uma lareira. Um crucifixo simples de madeira estava pendurado por cima da lareira. Ela apontou para as cadeiras à volta da mesa coberta por um oleado. – Não, não morreu, mas está metido em sarilhos e é procurado pela polícia. No entanto, a nossa verdadeira preocupação é com uma jovem, Katy Speed, que foi raptada há dez dias. Receamos que ele a mate. Susan Gosling era o tipo de mulher de certa idade que nunca se destacaria numa multidão a não ser que estivesse com um casaco ou um chapéu fora do comum. Não tinha feições distintivas; só um rosto suave de velhinha, com a boca chupada. A sua expressão nem sequer se alterou ao ouvir as palavras de Charles. Não demonstrou choque ou horror, nem mesmo indignação por ele dizer uma coisa tão terrível sobre o sobrinho dela. – Desde que ele tinha uns vinte anos que estou à espera de alguma coisa deste género – disse ela. – Sabia que ele se tinha tornado mau, ando sempre a rezar por ele. Mas ele nunca teve hipótese nenhuma, não com a minha irmã Mavis. Ela foi uma mãe terrível, os filhos todos sofreram, mas ele mais do que todos. Ofereceu-lhes um chá e abriu o armário para tirar as chávenas. Charles reparou que só havia quatro chávenas e quatro pires; suspeitava que ela tinha poucos bens pessoais. – Fale-nos sobre o sofrimento dele – pediu Jilly. Olhou para Charles, como se a recordar-lhe que ele lhe chamara sua assistente. – A mãe batia-lhe, ou eram os homens da sua irmã? – Ela vingava-se de tudo nele, porque ele era parecido com o Angelo, o pai. Se aquele homem a tivesse amado como ela o amava a ele, talvez a minha irmã tivesse sido uma boa pessoa. Por isso, o pobre do Ed é que apanhou com a fúria e a mágoa toda dela. Batia- lhe, fazia pouco dele. Até chegou a queimá-lo com cigarros. Eu ameacei fazer queixa dela muitas vezes, mas ela só se ria de mim. E teve mais uma data de filhos. E o Eddie, aos sete ou oito anos, tomava conta deles o melhor que podia. «Ela ensinou-o a ser cruel, embora ele nunca o tenha mostrado até ser mais velho; enquanto tomou conta dos mais pequenos foi sempre bondoso e paciente. Mas depois meteu-se em combates de boxe com as mãos nuas e tornou-se campeão. As pessoas começaram a admirá-lo, quando antes o olhavam de alto com desprezo.» – Alistou-se durante a guerra, não foi? – perguntou Jilly. Susan assentiu com a cabeça enquanto aquecia o bule. – Queria alistar-se mal a guerra começou, mas só tinha dezassete anos. Mal podia esperar para ir. Quem o censuraria? – Como é que a senhora é tão diferente da sua irmã? – perguntou Jilly. – Sei que pertence ao Exército de Salvação, mas foi sempre a irmã boa? A velha mulher sorriu ao ouvir aquilo. – Começamos todos iguais aos olhos de Deus – disse. – É o que nos acontece enquanto crescemos, os caminhos que tomamos, que nos modificam. Eu casei-me com o Sydney, que trabalhava na lavoura, e fomos muito felizes na nossa casinha lá para os lados de Folkestone. Primeiro, perdemos a nossa filha quando ela tinha dois anos, com difteria, e daí a três anos o Sydney morreu num acidente com a debulhadora na quinta. – Lamento muito. – Charles e Jilly falaram ao mesmo tempo. Susan pousou o bule na mesa e tirou um pequeno jarro de leite da despensa. – Já foi há muito tempo. Mas, felizmente, fui ajudada por um elemento do Exército de Salvação, que viu como eu estava perdida e cheia de medo. Sabe, é que tive de deixar a casinha na quinta e voltar para Dover. Não tinha nada. Bem, tinha as minhas duas irmãs, mas nunca quis ser como elas. Estranhamente, era o Eddie em pequeno quem mais me reconfortava. Arrependo-me agora de não o ter tirado à Mavis e não o ter criado eu. Talvez pudesse ter evitado que ele desse para o torto mais tarde. Tomaram uma chávena de chá e Susan ofereceu-lhes um queque. Disse que os tinha feito nessa manhã, cedo, porque não conseguia dormir. – Devo ter pressentido que ia ter visitas – comentou, com um sorriso triste. Charles explicou-lhe os crimes de Ed. Disse que agora ele tinha Katy, e que eles acalentavam a esperança de encontrar alguém em Dover que pudesse fazer uma ideia de para onde ele a levara. – Veio visitá-la recentemente? – perguntou Charles. – Não, não veio. Mas não viria, porque da última vez que veio cá ameaçou-me. Foi por volta da altura em que a mulher o deixou. Julguei que me ia matar, estava mesmo furioso. Acreditava realmente que eu sabia para onde ela tinha ido, mas eu não sabia. Só a vi uma vez, quando ele a trouxe aqui depois de se casarem. Costumava escrever-lhe, enviava um postal e um pequeno presente nos anos dos filhos. Mas não a via. Como nem sequer tenho telefone, não podia telefonar-lhe. – Então, o que é que a senhora fez? – perguntou Jilly. – Gritei a chamar o marido da minha vizinha. Ele pôs o Ed na rua, mas não antes de eu dizer ao Eddie que ele era o único responsável por a Deirdre se ter ido embora e que não era bem-vindo em minha casa. Ele voltou a Dover, houve quem me dissesse. A última vez foi há cerca de três meses. Mas não veio cá a casa. Jilly perguntou o que ela fazia no Exército de Salvação e ela disse que ajudava no albergue para homens sem abrigo, junto às docas, umas três ou quatro vezes por semana. – Dover é uma cidade triste, apercebo-me disso agora. As pessoas chegam no ferry, com a esperança de uma nova vida em Inglaterra, e muitas vezes não chegam a sair de Dover. Temos marinheiros estrangeiros que fugiram do navio, muitas vezes por causa de uma mulher, parecemos ter mais alcoólicos aqui do que noutras cidades, e agora também começam a aparecer as drogas, principalmente usadas pelos jovens. Se eu me tivesse dado conta disto quando era mais nova, talvez tivesse mudado de cidade. Mas não me apercebi, e por isso ainda aqui estou, a tentar ajudar outras pessoas a encarreirar. – Penso que a polícia virá interrogá-la muito em breve. Mas se o seu sobrinho vier vê-la antes disso, é melhor que a senhora telefone à polícia – disse Charles. – Ele não vem cá porque sabe que é isso mesmo que eu faria. Posso ser pequena, mas aprendi a defender-me. – Tem a certeza de que não há um lugar para onde ele possa ter levado a Katy? Algum lugar onde ele brincava em criança? Alguma casa que ele possa ter comprado quando tinha dinheiro? Ela abanou a cabeça. – Lamento, mas não sei de nenhum lugar. No entanto, se me ocorrer alguma coisa, contacto a polícia. Perguntou a Jilly se conhecia bem Katy. – É a minha melhor amiga, tão íntima como uma irmã – disse Jilly simplesmente, com uma lágrima a correr-lhe pela face. – Tenho de a trazer para casa sã e salva. Susan levantou-se, aproximou-se de Jilly e pôs os braços à volta dela, apertando-a contra o peito. – Vou rezar para que voltem a ficar juntas – disse. – E lamento muito que o meu sobrinho lhe tenha trazido tanta dor. * – É uma boa mulher – disse Jilly enquanto ela e Charles voltavam pela rua.– Mas não consegui deixar de sentir pena do Ed. A vítima de abuso torna-se o abusador. – Vamos ao King’s Head – disse Charles, ignorando a compreensão dela por Ed. Ele próprio a sentia, de certo modo, mas não queria admiti-lo. – Esperemos que sirvam comida decente lá. 16 C harles pediu uma cerveja para si e uma limonada para Jilly ao empregado corpulento do bar do King’s Head. Embora pouco passasse do meio dia e meia hora, o bar já estava muito cheio. Na sua maioria, pareciam homens desempregados, ou talvez estivadores à espera de mercadoria para descarregar. – Sabe por acaso se um homem chamado Edward Reilly alguma vez vem cá beber? – perguntou enquanto pagava as bebidas. – Não imagino porque é que alguém perguntaria por esse monte de esterco. – Quem falou foi um homem calvo e com um ar duro que estava ao lado de Charles. Charles ficou um pouco surpreendido com o veneno na voz do homem. Mas, pelo menos, permitia-lhe descobrir algo mais sobre Reilly. – Chamo-me Charles Stevenson, sou advogado. Preciso de encontrar o Reilly depressa, suspeitamos que raptou uma jovem. Na verdade, estava à procura de John Sloane, que, segundo creio, cresceu com o Reilly. Também o conhece? O empregado do bar tossiu a alertar Charles. – Este é o John Sloane. A expressão beligerante de Sloane deu lugar a um sorriso rasgado. Estendeu a mão a Charles. – Uma mulher destas bandas? Charles apertou a mão do homem. Sentia-se um pouco embaraçado, mas ao mesmo tempo aliviado, por o homem parecer amigável. Sloane aparentava ser capaz de o decapitar com um só golpe. Ao que parecia, trabalhava na construção civil; estava com roupas de trabalho imundas e botas robustas e tinha um lápis atrás da orelha. – Não, foi em Londres, mas recomendaram-me que viesse falar consigo, por serem amigos quando eram pequenos. Estava com a esperança de que pudessem ter um lugar favorito onde brincavam, faziam acampamentos... sabe o tipo de coisa de que falo... especialmente se fosse um lugar que ele pudesse estar agora a usar para ter esta jovem presa. Sloane pareceu refletir. – Na maior parte do tempo andávamos pela cidade ou na praia. Mas íamos bastante a St. Margaret’s Bay. Ele gostava daquilo. Eu deixei de me dar com o tipo depois da guerra, ele ficou todo convencido, andava sempre a gabar-se. Contou-nos a todos uma data de mentiras das grossas sobre o serviço militar dele. A verdade é que conseguiu arranjar um trabalho de secretária, enquanto que nós estivemos na linha da frente. Um outro homem, mais alto, mais magro e com cabelo ruivo, que estava do outro lado de Sloane, falou nesse momento. – Ele esteve cá mesmo antes do Natal. Sloane olhou para o outro homem, surpreendido. – E tu não disseste nada, Bri? – Não te disse, porque sei que o Reilly te faz chegar a mostarda ao nariz. Só falei com ele para ser bem educado. Ele disse que tinha comprado uma propriedade cá em baixo há uns anos e estava a fazer obras nela. Perguntou-me se queria trabalho. – Onde era essa propriedade? – perguntou Charles, com o coração a bater-lhe mais acelerado. – Não disse, e eu não perguntei, porque ele foi sempre um bazófias. – Pode ficar a saber ao certo se for à agência imobiliária a umas portas daqui – sugeriu Sloane. – O Maxwell, o dono, sabe sempre quem comprou o quê em Dover. – Foi uma grande ajuda da vossa parte. Posso oferecer-lhes uma bebida? Ambos disseram que queriam uma caneca de cerveja. Charles pagou as bebidas deles, mas Sloane estava muito interessado em saber mais. – Ele sempre foi esquisito, tinha mau feitio, juntamente com grandes ideias, e mentia mais facilmente do que respirava. Quem é a tal jovem que ele raptou? Se encontrar o tal sítio dele aqui em Dover, venha cá chamar-nos que nós vamos lá tratar da saúde ao Reilly. Tenho umas contas que gostava de ajustar com ele. Charles olhou para Jilly, subitamente um pouco nervoso por Sloane querer envolver-se. Jilly decidiu assumir o controlo. – Charles, não podemos ir agora à procura dele. Temos de apanhar o comboio, se queres chegar a tempo da reunião desta tarde. – Ela tem razão, tenho de ir embora – disse Charles a Sloane. – Vou deixar isso para a polícia. Mas obrigado pela vossa ajuda. Já na rua, virou-se para Jilly. – Pensaste depressa, veio mesmo a tempo, eu sentia que estava a ser encostado à parede. Também não tenho a certeza se devia ter dito que era advogado. Mesmo que eles não gostem do Reilly, provavelmente ainda gostam menos da polícia e de advogados. – Penso que eles queriam genuinamente ajudar – disse Jilly para tranquilizar Charles, apercebendo-se de que ele não estava acostumado a lidar com homens rudes como Sloane e se sentia um pouco nervoso. – Mas acho que seria mais avisado não revelar demasiado na agência imobiliária. As pessoas falam, e, encaremos as coisas como elas são, um tipo cá da zona procurado por rapto é um mexerico dos bons. Se ainda por cima descobrissem que também é procurado por homicídio, a cidade toda ia pôr-se a falar disso. * Charles não tardou a aperceber-se de que Maxwell, o agente imobiliário, não era muito esperto. Andava pelos quarenta anos e trajava um fato barato e uma gravata berrante. Tinha tanto Brylcreem no seu cabelo escuro que a mulher dele devia ter de mudar as fronhas da almofada todos os dias. Era o tipo de homem que Charles mais desprezava: espalhafatoso e ordinário, sempre a dizer piadas de mau gosto, porque não tinha realmente conversa. Dizendo que estava a defender um cliente em Londres que afirmava ter estado a trabalhar numa propriedade ali em baixo na altura em que o crime foi cometido, Charles pediu a Maxwell uma lista de pessoas que lhe tivessem comprado imóveis nos últimos cinco anos. Disse que pensava que o proprietário se chamava Reilly, mas que podia estar errado. Maxwell fez um grande espalhafato a abrir e a fechar armários de arquivo. Repetiu o nome Reilly vezes sem conta. – Com certeza tem uma lista de todos os imóveis que vendeu? O seu contabilista precisaria dela. – Oh, sim, claro. Não é isso, é o nome Reilly. Dá-me a ideia que o conheço, mas não consigo lembrar-me porquê. Charles aguardou sem dizer nada até Maxwell pegar num dossiê. Abriu-o e passou o dedo pela lista de imóveis. – Ah, é isso! Sim, ele comprou um imóvel quase em ruínas em St. Margaret’s Bay. Foi há quatro anos. Comportava-se como se fosse um figurão de Londres, falou de fazer uma grande urbanização no local. É por isso que o nome me dizia alguma coisa. – Poderia facultar-me uma fotocópia dessa lista? – pediu Charles. – Preciso de a mostrar ao meu cliente para confirmar se foi o imóvel em que ele trabalhou. – Engraçado! Lembro-me agora que o Reilly se gabou de saber todas as artes da construção civil e dizer que ia fazer ele tudo, porque não confiava em trabalhadores. – Suponho que era só gabarolice, mas dê-me uma cópia da lista. Ficou surpreendido por Maxwell estar disposto a facultar aquela informação sem um pedido legal. Charles não sabia se seria por ele ser demasiado estúpido para pensar nisso ou por ter ficado impressionado por um advogado ter vindo à sua loja. O homem pôs três ou quatro folhas na máquina fotocopiadora e premiu a tecla. – Ótimo, meu bom homem – disse Charles na sua voz mais altiva ao pegar nas folhas. – Aprecio o seu gesto. * – Parecias mesmo um tipo da alta – disse Jilly com uma risadinha quando voltaram a descer a rua. – Meu bom homem! As pessoas que conheces falam realmente assim? – Muitas delas – respondeu ele. – E descobri que é uma ótima maneira de sair airosamente de uma situação delicada. – Então, vou ter de me lembrar disso – disse ela, ainda divertida. – Só que não há um equivalente feminino para a expressão, pois não? – Não, agora que falas nisso, não há – disse Charles, sentindo-se animado com o bom humor de Jilly. – Anda daí, vamos apanhar um táxi para St. Margaret’s Bay. – Não achas que devias telefonar à polícia e entregar-lhes o caso? – perguntou Jilly. – Oh, Jilly, já chegámos até aqui, agora temos de dar os passos que faltam. Além disso, não vale a pena telefonar-lhes se for uma ruína, só íamos parecer um bocado estúpidos. – Para um homem que trabalha no sistema legal, não tens muita consideração pela polícia – comentou ela. – De facto, até tenho. Hoje à noite, quando a mensagem for transmitida pela polícia metropolitana, vai haver agentes por toda a zona de Dover, mas eu preciso de encontrar a Katy agora. – O teu instinto diz-te que ainda está viva? – perguntou Jilly, com os lábios a tremer. – Não sei – respondeu Charles com sinceridade. – Quero realmente acreditar que está. Mas tu conhece-la há anos, que pressentimento tens? – Sei que ela deve ter-lhe dado luta, se não com armas, pelo menos com a língua... e consegue ser bastante assustadora... mas isso podia tê-lo tornado ainda mais cruel e furioso. Só sei que não consigo imaginar a minha vida sem a Katy. Sempre pensei que quando fôssemos velhinhas ainda íamos às compras e tomar chá juntas. Charles fez sinal a um táxi que vinha a descer a rua. – St. Margaret’s Bay – disse. Não confiava em como reagiria se olhasse para Jilly; pressentia que ela estava a chorar. Maxwell dissera que era bastante difícil dar com a morada em St. Margaret’s Bay, e o taxista não demonstrou qualquer vontade de os ajudar a encontrá-la. Deixou-os ao cimo de uma encosta íngreme que descia para St. Margaret’s Bay e apontou de má vontade para a direita. – Penso que é ao cimo desse caminho. A estrada está muito esburacada para ir de carro – disse secamente. O taxista tinha razão quanto aos buracos, que estavam todos cheios de água. O caminho era ladeado por arbustos, na sua maior parte sem folhas neste início de março, mas, mesmo assim, era difícil ver o que estaria para lá deles. Chegaram à cancela de uma quinta ao lado direito. Olhando por cima dela, viram um caminho sinuoso que levava a uma casa algo decrépita e uns celeiros, pelo menos a uns seiscentos metros de distância. Tinha vistas para o mar e, provavelmente, pareceria idílica no verão, mas hoje o céu e o mar estavam cinzentos, o vento sacudia os ramos das árvores e estava muito frio. Cerca de trinta metros mais à frente, chegaram a outra cancela de uma quinta à esquerda. O enorme campo parecia estar em pousio e subia para um bosque. Charles estava prestes a sugerir que abandonassem a busca, porque tinha os sapatos e as calças cobertos de lama, quando viram uma chaminé mesmo por cima da sebe. Tiveram de percorrer mais cerca de duzentos metros para ver que a casa de pedra de um só andar a que a chaminé pertencia se situava numa depressão do terreno. O denso arvoredo quase ocultava aquele lugar. As palavras «Dean Cottage» na tabuleta estavam tão desvanecidas, e parcialmente cobertas por heras, que eram difíceis de ler. – O lugar perfeito para esconder alguém – disse Charles, pensativo. Não havia nenhum veículo estacionado na zona de cascalho e lama diante da casa. Mas via-se um trilho fundo feito pelos pneus de um carro. O trilho estava parcialmente coberto por água da chuva, mas dava a impressão de ter sido feito recentemente, porque o padrão dos pneus era muito nítido. – É claro que, como tem havido geada na maior parte das noites, isso preservaria o padrão dos pneus – disse Charles, pensando em voz alta. – Vem daí, vamos dar uma vista de olhos. – Não está tão em ruínas como aquele agente imobiliário deu a entender – disse Jilly. – Quer dizer, para começar, tem telhado e janelas. – O telhado foi consertado, olha! – Charles apontou para ele. Jilly viu que ele estava a apontar para uma secção grande de telhas novas. Eram de um vermelho mais vivo do que as outras. – A parede de pedra também foi rebocada – observou ela. – Bem, de facto dá a impressão de que ele renovou a fachada toda e, se calhar, substituiu algumas pedras. O meu pai faz trabalhos desses às vezes. Era muito difícil ir às traseiras da casa. Pilhas de tijolos, cascalho e um misturador de cimento bloqueavam o acesso, e os arbustos e as árvores de ambos os lados tornavam impossível contornar esses obstáculos. – Tenho a sensação de que ele não quer que ninguém vá lá atrás – disse Charles. Umas cortinas de renda impediam-nos de ver o interior pelas janelas. Mas desataram a bater à porta e a berrar. Só puderam vislumbrar o interior da casa através da ranhura da caixa do correio. Mas era apenas um átrio vazio, todas as portas estavam fechadas. – Se o meu amigo Pat estivesse connosco, entrava à força – disse Charles. – Mas eu não me atrevo a fazer isso. Aquele taxista podia identificar-nos e o Maxwell também. Além disso, vai anoitecer daqui a pouco e nós temos de ir a pé até St. Margaret’s Bay para chamar um táxi. – Concordo. Mas vamos à esquadra de Dover falar com alguém antes de apanharmos o comboio para Londres? – sugeriu Jilly. – A polícia de cá pode não estar a par da existência deste sítio, por isso, quando a polícia de Londres lhes contar o resto da história, eles vão poder vir direitos aqui para revistar a casa. Virou-se de costas para a casa. No verão, a vista do mar para lá dos campos devia ser linda. Presumia que, como Maxwell dissera que Reilly tencionava construir uma urbanização ali, devia estar a referir-se ao bosque por trás e de ambos os lados da casa. Disse isso a Charles e chamou a atenção para a possibilidade de ele ter outra casa, algures no bosque. – Tenho o pressentimento de que a Katy está aqui – acrescentou. – Mas este espaço é demasiado grande para fazermos uma busca exaustiva. Vamos voltar para Dover e pedir ajuda. Charles pôs o braço à volta dos ombros dela e voltaram pelo caminho por onde tinham vindo. Estava muito frio e o vento era forte, e ele sentia o receio dela pela amiga. – Desculpa, Jilly, por eu não ter sido suficientemente corajoso para arrombar aquela porta. Ou suficientemente sensato para insistir que o taxista esperasse por nós. O sorriso dela foi sombrio. – Pelo menos, vamos andar mais depressa, dessa maneira podemos manter-nos quentes. * Katy sentia que estava a morrer. Tinha tantas dores que até desejava que a morte chegasse depressa para a poupar a mais sofrimento. O rosto da sua mãe, do seu pai e de Rob estavam sempre a passar-lhe pela cabeça, e com cada imagem a recordação de algum acontecimento feliz. Via o pai a sair do trabalho para ir vê- la correr na corrida de cem metros no Dia do Desporto. Estava um calor abrasador, e ele dissera que duvidava que conseguisse ir. Mas chegara no momento em que ela estava a perfilar-se na linha de partida. Viu-o fazer-lhe um sinal com o polegar, que lhe dissera que significava que estaria a correr com ela mentalmente, e Katy disparou como um foguete. Ganhou por uma enorme margem, e ouvira os seus vivas durante toda a corrida. A sua mãe não contribuía com frequência para a alegria de um acontecimento, mas Katy recordava-se de a ver chorar quando ela cantou um solo nas canções de Natal na igreja uma vez. Katy só devia ter uns oito anos nessa altura, e a caminho de casa a mãe dissera-lhe que a voz dela era como a de um anjo. Quanto a Rob, as recordações felizes com ele eram tão abundantes que ela saltava de uma para outra. A rirem-se a bandeiras despregadas enquanto rolavam por uma encosta relvada abaixo; a trocarem de roupa quando tinham cerca de cinco e oito anos, e irem à cidade vestidos dessa maneira. Ela enfiara o cabelo no boné da escola do irmão e poderia ter passado por um rapazinho, mas Rob, de vestido, parecia ridículo, não enganaria ninguém. Rob a acompanhá-la no seu primeiro encontro. Ela combinara encontrar-se com Peter Hayes à porta do cinema e tinha demasiado medo de ir sozinha. O plano era que Rob voltaria para casa quando ela se encontrasse com Peter, mas, num momento de pânico cego, ela perguntou a Peter se o seu irmão podia ficar a ver o filme com eles. Mais tarde nessa noite, Rob disse que ela não devia voltar a fazer aquilo, ele nunca se sentira tão embaraçado, mas ambos se riram até às lágrimas por Peter ter acedido e até pagar o bilhete de Rob. Infelizmente, Peter nunca mais voltou a convidá-la para sair. Era com Rob que ela jogava jogos de tabuleiro, batia na bola para ele poder treinar bólingue, jogavam ténis no parque, desafiavam-se um ao outro a nadar no mar na Páscoa quando a água ainda estava um gelo. Riam-se sobre alguma coisa tarde da noite, partilhavam tanto, e Katy ficou destroçada quando ele foi para a universidade. Não viria a conhecer a rapariga com quem ele casaria nem teria nos braços os filhos dele. Nunca teria a oportunidade de descobrir porque é que a mãe era tão gélida, e com certeza não veria o dia em que ela se tornasse mais calorosa e disposta a divertir-se. Quanto ao pai, a vida nunca mais seria a mesma para ele sem a filha. Katy sabia que, embora ele gostasse de ambos os filhos, era ela quem lhe era mais querida. De facto, depois de ela morrer, a família iria desfazer-se. Rob iria concentrar-se na sua carreira; o pai embrenhar-se-ia no trabalho e, provavelmente, deixaria a mãe, porque não haveria nada lá que o fizesse ficar. Era insuportável pensar no que isso faria à sua mãe. E depois havia também Jilly. A amiga e a família dela significavam muito para Katy. Sempre acreditara que ela e Jilly iriam ao casamento uma da outra, seriam madrinhas dos filhos uma da outra, partilhariam a vida uma da outra até serem ambas senhoras de muita idade. Perguntava-se também se Charles ficaria triste com a sua morte. Teria pensado, como ela, que talvez houvesse algo especial entre eles? Ou seria só a sua imaginação fértil a funcionar? No entanto, por mais dores que sentisse, por mais impossível que lhe parecesse escapar, uma voz na sua cabeça dizia-lhe que não podia desistir, animava-a a olhar à sua volta para ver se haveria alguma coisa naquele quarto que pudesse ajudá-la a alcançar a sua liberdade. * Enquanto Katy pensava nas recordações mais felizes da sua família e no que Charles e Jilly significavam para ela, eles os dois estavam de facto a poucos quilómetros de distância, na esquadra de Dover. Charles não se sentia nada satisfeito com a receção que estava a ter. Ao perguntar se a polícia metropolitana contactara a de Dover para que prendessem Edward Reilly, obteve apenas um olhar inexpressivo do sargento Forbes. Charles explicou o rapto de Katy. Mesmo assim, apesar de Charles dizer a Forbes que a vida de uma jovem estava em perigo, ficou com a distinta impressão de que ele levava a mal que um advogado lhe dissesse o que fazer. Profundamente frustrado, Charles começou a erguer a voz. – Não faças isso – segredou-lhe Jilly. – Só vai fazer com que as coisas piorem. Charles sabia que ela tinha razão – o seu pai sempre dissera que quando se perde a calma, perde-se a razão –, mas tinha dificuldade em acreditar que a polícia metropolitana não tivesse informado imediatamente a polícia de Dover de que devia investigar Reilly aqui. Pat com certeza teria explicado a situação com absoluta clareza, dizendo que mandara Charles ali para fazer algumas perguntas e insistindo que, se ele contactasse a polícia de Dover com um pedido de ajuda, ela deveria ser-lhe dada prontamente. – Ouça, eu não estou a dizer que a Katy Speed está de certeza naquela casa em St. Margaret’s Bay. Ela pode já estar morta e enterrada algures. Mas, se ainda estiver viva e morrer porque não levaram isto a sério, como é que se vai sentir? Ela só tem vinte e três anos, é uma jovem. Se fosse a sua filha que lá estivesse, não estaria já a arrombar a porta? – disse ele, a suplicar a Forbes que agisse. – Mas nós não recebemos instruções da polícia metropolitana – explicou Forbes mais uma vez. – Não tem provas de que ela esteja na tal casa; não podemos entrar assim sem mais nem menos, por um palpite. Charles fitou o sargento da receção e reparou nos seus olhos mortiços, no rosto corado e em como era gordo. Era óbvio que já não perseguia malfeitores, e tornara-se complacente, porque a maior parte do seu trabalho estava agora relacionada com as docas, com imigrantes e casos de contrabando. – Este homem pegou fogo a uma casa em Bexhill e causou a morte a uma mulher e à sua filha. Tentou matar outra mulher empurrando-lhe o carro para fora da estrada, e um colega meu, um ex-polícia, pensa que ele também pode ter raptado outra mulher e os filhos dela perto de Eastbourne. Agora, tem a Katy. Por isso, diga-me, ainda acha que é só um palpite? – Porque não telefona a um superior na polícia metropolitana? – sugeriu Jilly. – Ou telefone para a esquadra de Hammersmith, onde estão ao corrente de tudo. – Fiquem aqui. Eu vou falar com o chefe – disse Forbes. Estava a escurecer, embora só fossem cinco e meia da tarde. Charles já tivera muitas vezes clientes a queixarem-se de que a polícia não os levara a sério quando denunciaram um crime ou que dissera que trataria do caso e depois não fez nada. Na maior parte das vezes, Charles acreditara que era pura fantasia da parte dos seus clientes. Mas agora começava a ver que poderia ser verdade. Desejava ter aceitado a oferta de John Sloane de ir à casa com um bando de durões. De facto, se a polícia não entrasse em ação na próxima meia hora, ele voltaria ao King’s Head e reuniria um grupo de pessoas. Enquanto aguardava, Charles telefonou a Pat. O seu amigo ficou chocado por a polícia de Hammersmith não ter informado Dover; disse que o procedimento normal era dar seguimento ao caso noutra cidade, se houvesse a informação de que o suspeito era de lá ou ainda tinha parentes ou colegas nessa cidade. – Espera aí, Charles – disse ele. – Eu vou telefonar-lhes e dar- lhes um pontapé no traseiro. – Duvido que ela esteja na casa. Não conseguimos ver nada de suspeito, para além de marcas recentes de pneus. Mas pode haver alguma coisa na casa que aponte para onde ela está presa. – Já fizeram uma busca à casa de Hendon e entraram na garagem. Disseram-me que encontraram algumas provas interessantes, mas não revelaram mais nada. Sei agora porque é que saí da polícia. Quando Charles voltou para junto de Jilly, viu que ela estava a esmorecer. – Anda daí, vamos comer qualquer coisa enquanto esperamos que eles se decidam – disse ele. – Eu vou só avisar o sargento da receção que já voltamos. * Havia uma loja de fish and chips com mesas do outro lado da rua. – Hum, isto está bom – disse Jilly ao atacar o bacalhau com batatas fritas. – Não sabe tão bem em Londres. Não julguei que conseguisse comer, o meu estômago estava a dar tantas voltas, mas talvez fosse da fome, não da ansiedade. – As coisas parecem sempre melhores depois de se comer alguma coisa – disse Charles. – Espero ser capaz de voltar à esquadra e não disparatar com ninguém. – Tu és engraçado – disse ela. – Pensava que eras sempre o Senhor das Calmas. É bom ver que até um advogado pode perder as estribeiras. – Não é o advogado que está a perder as estribeiras, é o homem que gosta da Katy – confessou ele em voz baixa. – Tenho de fazer com que entrem em ação hoje à noite. 17 K aty arrastou-se a custo até à chaleira. Cada passo lhe provocava dor, e o plano que tinha em mente dependia de Reilly voltar ali. Nas duas últimas horas, estivera a pedir mentalmente que ele viesse, apesar de saber perfeitamente que era improvável que tivesse algum efeito pedir mentalmente que alguém fizesse alguma coisa. Mas tinha de estar preparada, para o caso de ele vir, e a chaleira era a sua única arma. Encheu-a com água e ligou-a. A seguir, teve de afastar a cama da porta para deixar mais espaço para quando ele entrasse. O seu braço partido e todos os outros ferimentos gritavam-lhe que parasse, mas a sua determinação era mais forte do que a dor. Por sorte, era uma cama barata, não muito pesada; não tardou a conseguir colocá-la a um lado do quarto. Agora, podia sentar-se nela, com a chaleira mesmo ao seu lado e o aquecedor elétrico a um metro da porta, pronto para Reilly tropeçar nele. Esperava que, quando lançasse sobre ele a água a ferver, ele caísse em cima do aquecedor. Teria as chaves na mão, que ela poderia tirar-lhe. Tudo o que tinha a fazer agora era esperar e rezar. Esperar por alguém quando se sabe que essa pessoa acabará por vir é uma coisa. Esperar por alguém que poderia nunca vir é outra muito diferente. Pior ainda era estar com dores e ter de se manter sentada muito direita, pronta para entrar em ação. Ela sabia que, depois de ouvir o estalido da primeira fechadura, Reilly demoraria uns dez segundos a descer as escadas e abrir a porta interior. Katy não se atrevia a deixar-se dormir e arriscar-se a não ouvir aquele primeiro estalido. Também estava sempre a ter de ligar a chaleira para ter a certeza de que a água continuava escaldante. Pegou num dos livros que ele deixara e começou a lê-lo outra vez, mas, como não via bem por causa dos olhos inchados, teve de abandonar a ideia. Tirou a nota de cinco libras que tinha na carteira e enfiou-a no soutien. Era o seu dinheiro de emergência. Se conseguisse sair, tencionava procurar um telefone e ligar para a polícia. Só esperava que o endereço estivesse indicado na cabina telefónica, se não como poderia dizer à polícia onde estava? Katy sabia que teria de atuar à velocidade de um relâmpago quando ouvisse os passos dele, o que ia custar-lhe muito, dado o seu estado físico. Tinha de estar de pé, a empunhar a chaleira e pronta a agarrar as chaves mal ele tropeçasse. Precisava de sair por aquela porta a toda a pressa e fechá-la à chave. Se não conseguisse fazê-lo, sabia que ele ferveria água naquela chaleira e a despejaria em cima dela. Mesmo depois de o fechar ali dentro, ela não poderia ter cem por cento de certeza de que estaria em segurança. Reilly podia ter um segundo molho de chaves. Mas Katy podia fechar a porta de fora à chave e deixar a chave na fechadura, o que o atrasaria. Como Ed era muito mais forte do que ela, e usava sapatos, poderia conseguir arrombar as fechaduras ao pontapé. Como ela só tinha meias calçadas, nada mais, se não conseguisse ver imediatamente um lugar seguro para onde fugir, teria de se esconder. Katy não sabia onde estava, nem sequer em que cidade se encontrava. Podia estar junto a uma estrada principal, num bosque, em qualquer lugar. Nem sequer sabia para que lado correr. Pensar em todas essas variáveis fê-la tremer de medo. Havia tantas coisas que podiam correr mal! Na escola, toda a gente a achava corajosa, porque aceitava sempre os desafios. Mas agora não se sentia nada corajosa. Também fora uma boa corredora, mas agora estava demasiado ferida para correr. – Por favor, meu Deus, dai-me forças, ajudai-me se ele vier – rezou. Já rezara muito desde que chegara ali. Pensou que, se conseguisse escapar, iria direita à igreja agradecer a Deus. Como Jilly se riria disso... Estava sempre a falar dos «santos de pau carunchoso» de Bexhill, que iam à igreja todos os domingos, mas ficaram horrorizados quando um par de famílias das Antilhas veio viver para a cidade. Contudo, Katy fora habituada a rezar as suas orações ao deitar, e, embora nunca o tivesse admitido a Jilly, nunca deixara de o fazer. Acabara de calçar os três pares de meias e de ferver a água mais uma vez quando ouviu o estalido do fecho por que tinha estado à espera. Pôs-se de pé de um salto, pegou na chaleira do chão e pôs- se à escuta. Reilly estava a ter dificuldades com a segunda fechadura, e passou pela cabeça a Katy que ele poderia ter estado a beber. Como a porta abria para a esquerda, ocultá-la-ia momentaneamente. Ele ficaria confuso por a cama, que antes estava mesmo em frente à porta, não se encontrar na mesma posição. Katy esperava que isso bastasse para o apanhar desprevenido. A porta abriu-se. Katy sentiu o cheiro a cigarros e a álcool. Sentia o seu coração bater com força. – Andaste a mudar a mobília de lugar? – perguntou ele, e deu um passo para a frente. – Onde é que estás? Não na sanita? – Não, estou mesmo aqui – disse ela, e arremessou a chaleira para a frente e para cima, de modo que a água a ferver atingiu o lado da cabeça de Reilly ainda antes de ele se virar para ela. Ele soltou um grito de dor. Deu um passo cambaleante para a frente e fez exatamente o que ela esperava, caindo em cima do aquecedor elétrico. As chaves que trazia na mão direita caíram ao chão. Ela saltou por cima dele rapidamente, pegou nelas e saiu, fechando a porta à chave. O esforço que despendera naqueles poucos movimentos deixou-a exausta. Teve de se encostar à parede e inspirar fundo algumas vezes antes de tentar subir as escadas. – Divirta-se aí dentro – berrou pela porta. – Espero que as queimaduras sejam uma agonia. Deve dar-lhe uma ideia do que será arder no Inferno. Subiu o lanço de escadas com dificuldade e depois parou à escuta antes de sair pela segunda porta e a fechar também à chave. Ele estava a chorar como uma menina pequena. Aquilo atenuou um pouco as dores que Katy sentia. A segunda porta era muito grossa; não só se fechava com uma chave, mas também tinha dois grandes ferrolhos, que ela correu. Ele não conseguiria passar dali. A porta dava para um pequeno corredor; ao fundo havia uma cozinha. Mas ela não ia demorar-se a examinar aquele espaço. Havia uma porta com vidraças à esquerda, através da qual pôde ver que estava escuro lá fora. Mas a porta estava fechada à chave, e não havia chave. À direita, havia uma outra porta que dava para um átrio. Como ele deixara a luz acesa, devia ter entrado por ali. Quando Katy chegou à porta da rua, quase se riu ao ver o quadro elétrico. Com grande prazer, puxou para baixo a alavanca para fazer Reilly mergulhar na escuridão e no frio. Uma vez no exterior, com a porta fechada atrás de si, demorou uns momentos a acostumar-se à escuridão. Estava realmente muito escuro, sem iluminação pública – nem sequer um clarão à distância, de outras casas ou de uma cidade – e o frio e o vento eram terríveis. Não tardou a aperceber-se, pelo cheiro a terra, que se encontrava nas profundezas do campo, e o caminho junto ao jardim da casa de Reilly nem sequer estava alcatroado. As pedras magoavam-lhe os pés, e pisou uma poça sem a ver. Por isso, agora tinha as meias molhadas e os pés a tornarem-se blocos de gelo. O carro dele estava ali; o capô ainda estava quente quando ela lhe tocou. No entanto, embora tivesse as chaves do carro com as chaves da casa, como não sabia conduzir o carro não era uma opção de fuga. – A cidade não pode ser muito longe – disse em voz alta. Como o ângulo em que ele estacionara o carro indicava que viera da direita, foi nessa direção que ela se encaminhou. Todos os ossos do seu corpo protestavam contra o esforço de andar. O braço partido pendia-lhe ao lado do corpo e latejava com uma dor atroz. – Mas estás livre – recordou a si mesma. – Mesmo que não saibas onde te encontras. * Na esquadra de Dover, Charles ouvia as mesmas perguntas pela terceira vez. Jilly sentia-se desesperada por ninguém estar a correr para a casa em St. Margaret’s Bay. De súbito, sentiu-se farta de polícias a fitá-la, do cheiro a fumo requentado de cigarro e do ruído de fundo de pessoas aos berros em salas perto dali. Correu porta fora, desceu os degraus da esquadra e subiu a rua até ao King’s Head. Encontrou John Sloane, que estava ainda ao balcão, e só então lhe passou pela cabeça que ele não lhe serviria de nada se tivesse estado a beber. – Falava a sério quando disse que ia à casa do Reilly? – perguntou-lhe. – Nós fomos lá hoje à tarde e o Charles está agora na esquadra a tentar fazer com que entrem em ação e vão lá acima. Mas eles não estão a fazer nada. O senhor ou um dos seus amigos seria capaz de me levar lá e arrombar a porta? Eu sei que é pedir muito, mas tenho o pressentimento de que a Katy está lá. Sloane cambaleou, a olhar para ela com os olhos semicerrados. – Estou demasiado bêbedo para ir seja aonde for, querida. – Eu vejo isso, mas haverá outra pessoa que possa levar-me lá? Por favor, John, estou com medo de que o Reilly a possa matar. – O que se passa, John? – perguntou outro homem. Tinha ombros tão largos como a porta de um celeiro. – Aonde é que a senhora quer ir? – A St. Margaret’s Bay, pá – disse Sloane. – Tens aí o carro, Lance? Podes levar-nos? Jilly fitou o homem grande com um olhar de súplica. – É a minha amiga, a Katy. Foi raptada, e eu acho que ela está na casa do Ed Reilly. Fica num caminho, no cimo de um monte, acima da cidade. Por favor, Lance, eu estou tão assustada por ela. Lance parecia perplexo. Como não se encontrava no pub antes, não estava a par da história. Embora Sloane estivesse bêbedo, pareceu compreender isso. – Olha, pá, é mesmo sério. Eu explico-te no caminho. Perante a insistência embriagada de Sloane, Lance acedeu, a sorrir com um ar tonto a Jilly. – Então, onde é que está o rapaz da alta? – perguntou Sloane quando já estavam no carro a sair de Dover. Ia no lugar do passageiro e Jilly no banco de trás. Quando Sloane se virou para ela, soltou uma baforada a cheirar a whisky, mas parecia estar um pouco mais sóbrio. – Está na esquadra. Eu simplesmente não consegui aguentar mais a indecisão da polícia – disse ela. – Não se calavam com os problemas de obter um mandado de busca. Eu não posso de maneira nenhuma voltar para Londres hoje à noite sem saber se a Katy está naquela casa, viva ou morta. Explicou um pouco mais sobre Reilly. Sloane assobiou quando ela chegou à parte em que ele incendiara uma casa com duas mulheres lá dentro. – Que diabo! Porque é que não me contou isso esta tarde? O homem precisa de ser pendurado de uma corda. – Eu sei. E também há muito mais. O pai da Katy foi preso por ser suspeito de atear o incêndio, e por isso ela começou a fazer trabalho de detetive por conta própria para provar a inocência dele. – Se ela está no tal sítio, nós tiramo-la de lá – disse Sloane com firmeza. – E não se preocupe por eu estar borracho, minha querida, trabalho melhor com um pouco de pinga no papo. * O frio e a dor faziam Katy sentir-se muito estranha. Tinha os pés tão frios e molhados que cada passo lhe dava a sensação de estar a caminhar sobre punhais. Mal via por causa dos olhos inchados. O braço doía-lhe imenso, e não conseguia discernir as pedras do caminho suficientemente bem no escuro para evitar as maiores. Estava sempre a tropeçar e cair. – Vais chegar à estrada não tarda nada – disse em voz alta. – Vai passar alguém e dar-te boleia. Mas as palavras ainda mal lhe tinham saído da boca quando voltou a cair, e desta vez não o pôde evitar. Sentiu uma dor aguda no tornozelo e bateu com a testa em algo duro. Por um segundo ou dois, viu estrelas diante dos olhos. E depois só escuridão. * – Fica perto! – disse Jilly, inclinando-se para a frente no assento para apontar para um marco iluminado pelos faróis ao lado da estrada. – Lembro-me de ver aquilo antes de o taxista parar, por isso o caminho fica aqui à esquerda. Lance abrandou até quase parar. – Nunca gostei do Ed Reilly. Ele foi sempre esquisito, mesmo quando éramos pequenos. – Com a galdéria bêbeda da mãe a mandar cá para fora miúdos sem pai como se estivesse a descascar ervilhas, não admira que ele tenha dado para o torto – disse Sloane. – Olhem ali! – Apontou para o caminho. – O taxista recusou-se a ir por aí, por isso tivemos de ir a pé – disse Jilly quando Lance virou para o caminho e o carro passou por cima de um buraco. – Meu Deus, é um bocado acidentado! – Eu mando-lhe a conta do conserto da suspensão – disse Lance. – Valha-me Deus, o que é aquilo? Travou a fundo, com os faróis a incidirem no terreno à frente do carro. Parecia um saco no meio do caminho. – Cabelo louro... acho que é a Katy. – Jilly saiu do carro como uma bala e desatou a correr, pisando uma poça de água. Os homens apressaram-se a segui-la, deixando o motor do carro ligado. – É a Katy, mas está sem sentidos – disse Jilly, ajoelhando-se ao lado da amiga e afastando-lhe o cabelo do rosto, que mostrava indícios de ter sido severamente esmurrado. – Meu Deus, ela esteve na guerra. Ele desfê-la à pancada. Se não fosse pelo cabelo, não a reconhecia. Conseguimos metê-la no carro? – Valha-me Deus! Ela está um farrapo – exclamou Lance ao chegar junto de Katy e acender um fósforo para a ver melhor. – Devíamos mexer-lhe? – Ela morre de frio se não a tirarmos daqui rapidamente – disse Sloane. – Pobre miúda! Esperem só até eu deitar a mão àquele filho da mãe. À luz dos faróis, dava-lhe a sensação de estar a olhar para um pedaço de fígado, não para um rosto. Já vira muitas vezes tipos quase feitos em pedaços em lutas, mas nunca uma mulher num estado tão pavoroso como aquele. – Pega-lhe pelos pés, Lance, eu pego-lhe pela cabeça, metemo-la no banco de trás e vamos diretos ao hospital. * Foi só quando Katy já estava a receber tratamento nas urgências do hospital de Dover que Jilly se lembrou de telefonar para a esquadra da polícia e transmitir uma mensagem a Charles sobre o que acontecera. O estado de Katy era crítico; estava sempre a perder os sentidos. Partira um braço, um tornozelo e duas costelas, tinha uma infeção respiratória e inúmeras lesões causadas pelo espancamento que Ed Reilly lhe infligira. Charles chegou tão rapidamente depois do telefonema que Jilly viu então quanto ele gostava da sua amiga. Tinha o rosto pálido e os olhos desvairados de ansiedade. – Não nos deixam vê-la, ainda não – disse ela, impedindo-o de entrar na enfermaria. O médico dissera-lhe que Katy talvez demorasse semanas a recuperar e que receava que o trauma psicológico pudesse levar anos a sarar. – Ela está realmente bastante mal e precisa de uma operação ao tornozelo e ao braço. – Eu fiquei furioso contigo quando saíste a correr da esquadra – disse Charles. – Passou-me pela cabeça a ideia louca de que tinhas ido apanhar o comboio para Londres! Devia ter adivinhado que não. – Olhou para Sloane e para o homem grande ao lado dele, ambos à espera ansiosamente com Jilly. – Chamaste a cavalaria? Ao ouvirem o comentário de Charles, os dois homens sorriram embaraçados. – Não tenho palavras para agradecer aos dois – disse Charles. – Eu não resisto a uma donzela em apuros – disse Sloane. – Devia ter-nos deixado ir consigo logo. Podíamos ter desancado o Reilly. – Como é que a Katy escapou? – perguntou Charles, perplexo com o desenrolar dos acontecimentos. – Não sabemos – disse Jilly. – Encontrámo-la deitada no caminho. A única coisa que ela disse quando recobrou os sentidos momentaneamente no carro foi: «És mesmo tu, Jilly?» Mas perdeu outra vez os sentidos logo a seguir. – Então, não sabemos onde está o Reilly? – perguntou Charles. – Depois de teres telefonado para a esquadra, Jilly, o sargento disse que iam direitos lá. Mas o mais certo é ele já se ter ido embora. * Ed Reilly não ia a lado nenhum. Conseguira arrastar-se até à cama depois de as luzes se apagarem. O rosto e o pescoço escaldado doíam-lhe como tudo e queimara as mãos no aquecedor elétrico quando caiu em cima dele. Mas o que realmente lhe doía era uma rapariga ter-lhe levado a melhor. Sabia que, provavelmente, conseguiria arrombar a porta de baixo ao pontapé, mas não a de cima. Essa era de carvalho maciço – e Katy devia tê-la aferrolhado também. Por isso, só lhe restava esperar pela polícia. * O agente Withers abrandou ao entrarem em Hart Lane. Nem ele nem Perkins conheciam a propriedade de Reilly ou mesmo aquele caminho, e fora-lhes dito que a casa estava escondida por árvores; e depois havia também a questão dos buracos no caminho, alguns suficientemente fundos para partirem o eixo. Withers quisera vir aqui antes, quando o advogado estava a insistir com eles para que verificassem se Reilly tinha a rapariga ali presa. Mas o sargento não era de agir por impulso ou de contornar as regras. Na opinião de Withers, o sargento não os tinha no sítio. Com certeza, quando a vida de alguém estava em perigo, havia que contornar as regras e correr riscos. – Ali está o automóvel dele! – exclamou Perkins, apontando para o Jaguar estacionado visível à luz dos faróis do carro da polícia. – Achas que precisamos de reforços? – Os nossos cassetetes são o reforço – disse Withers, sombrio. – Fico todo contente se ele tentar dar luta. Por tudo o que sabemos, merece uma boa carga de porrada. – Não há luzes em lado nenhum – observou Perkins quando saíram do carro. – É uma boa desculpa para arrombar a porta ao pontapé – disse Withers todo satisfeito, e com um pontapé da sua botifarra a porta abriu-se para trás. Withers ligou o interruptor, mas a luz não se acendeu. Perkins apontou a lanterna para os cantos do átrio escuro e avistou o quadro elétrico. – A eletricidade foi desligada. Será que foi ela que fez isso antes de sair? Depois de ter ligado a luz, procuraram na primeira divisão à direita. Não havia lá nada a não ser um velho sofá azul, com o enchimento a sair-lhe dos braços. Estavam espalhados por ali vários jornais velhos, o mais recente de há uma semana, e um cinzeiro quase a transbordar fora deixado no peitoril da janela. Havia também uma lareira, ainda com cinzas. As cortinas de chintz desbotado estavam corridas. Na divisão em frente, do outro lado do átrio, só havia um saco- cama e uma almofada pousada nele. Prosseguiram, dirigindo-se à cozinha nas traseiras da casa. Era de antes da guerra, com uma mesa coberta por uma toalha de oleado, um fogão antigo a carvão, um lava-louça de outras eras e um armário de cozinha com uma porta de baixar esmaltada. Reilly tinha usado um fogão de campismo a gás. Havia um tacho e uma frigideira ao lado dele, e algumas latas de comida – feijões guisados, carne enlatada e sopas – no armário. Mas não havia vestígios de ele ter preparado alguma refeição ali recentemente. – O Maxwell, o agente imobiliário, disse que ele comprou a propriedade há uns anos para a renovar e viver nela – disse Withers, pensativo. – Se assim foi, eu esperaria ver sacos de cimento, pedaços de madeira e canos. Mas não há nada. Porque é que ele não começou as obras? E onde é que está agora? Um som ténue fê-los virarem-se, e viram outra porta no pequeno corredor. Era uma porta sólida, bastante diferente de todas as outras. Tinha dois pesados ferrolhos corridos, mas a chave estava na fechadura. – Penso que ele está ali dentro! – exclamou Withers. – Deve dar para uma cave. Olha para estes ferrolhos. Ninguém põe ferrolhos destes numa porta interior a não ser que esteja a planear fechar alguém lá dentro. Por Deus, aquela moça deve ter virado o feitiço contra o feiticeiro! – Seria bom deixá-lo aí dentro por uns dias – disse Perkins com uma risada. – A ver se gostava. Mas suponho que não podemos fazer isso. Voltaram a ouvir um som, e Withers destravou os ferrolhos e desandou a chave na fechadura. As escadas por trás da porta eram íngremes, e havia outra porta ao fundo. – Polícia! Afaste-se da porta e ponha as mãos no ar! – ordenou Withers. Olhou para Perkins e sorriu. – Deixa-o pensar que estamos armados – segredou. Perkins desandou a chave na fechadura e quando a porta se abriu Withers ergueu o cassetete, a contar que Reilly tentasse passar por eles e fugir. Em vez disso, estava sentado na cama com um pano encostado ao rosto. Nem sequer se mexeu ou revelou qualquer emoção quando Withers lhe disse que o detinha por rapto, fogo posto e o homicídio de duas mulheres. A seguir, leu-lhe os seus direitos. – Eu não fiz nada disso – protestou Reilly numa voz débil. – Têm o homem errado. – É claro que sim, meu menino, e a lua é feita de queijo azul – disse Perkins. – O que é certo é que raptaste a moça errada. Ela realmente virou o feitiço contra o feiticeiro. Withers algemou-o sem grande delicadeza, e só então viram o escaldão, mesmo no lado do seu rosto, e a mão queimada. – Dói, não é? – perguntou Withers. Reilly assentiu com a cabeça. – E ainda bem. Tu mereces a dor. Perkins subiu as escadas primeiro. Withers empurrou Reilly à sua frente e seguiu-o. – É melhor mandarmos a rapaziada cá acima recolher provas, o mais depressa possível – disse Perkins. – Com a porta da rua arrombada, qualquer pessoa pode entrar. 18 N os dois primeiros dias no hospital, Katy teve consciência de muito pouco. Recordava-se vagamente de voltar da sala de operações, depois de lhe terem operado e engessado o braço e o tornozelo partidos, e de uma enfermeira lhe dizer que estava num quarto particular. Mas os analgésicos que lhe estavam a dar eram tão fortes que entre as medições da pressão arterial e da temperatura, ela estava sempre a adormecer. No terceiro dia, no entanto, sentiu-se suficientemente desperta para pedir um espelho para ver o seu rosto, e disse até que estava com fome. A enfermeira disse que era um indício de que estava a recuperar. Embora cheia de compaixão por Katy quando ela viu o seu rosto desfigurado, lembrou-lhe que o inchaço já tinha diminuído e que as equimoses não tardariam a desvanecer-se. Katy sentia que não devia lamuriar-se pelo estado do seu rosto – afinal, sobrevivera. Além disso, olhando para todas as flores e todos os postais no seu quarto, sentia-se verdadeiramente amada. O enorme ramo de rosas cor-de-rosa era de Charles, com um postal encantador a dizer que a visitaria mal ela estivesse suficientemente bem para receber visitas. Todo o pessoal da Frey, Hurst e Herbert enviara flores, e havia mais de Joan e Ken, com uma mensagem a dizer que se sentiam muito aliviados por ela estar a salvo agora. O postal cómico de Jilly era o seu preferido. Tinha uma imagem de uma mulher na cama, toda maquilhada, com um casaquinho de dormir fofo e a comer chocolates, e a legenda dizia: «Algumas pessoas fazem tudo e mais alguma coisa para chamar a atenção.» De cada vez que olhava para ele, sorria. Depois, para completa surpresa de Katy, a sua mãe chegou. Trazia o casaco castanho de peles com chapéu a condizer, que só usava em ocasiões especiais. Pusera também perfume Tweed; recordou a Katy a igreja aos domingos quando ela era muito mais nova. – O que estás a fazer aqui? – perguntou Katy, espantada. – Ao que parece, estou a visitar-te – disse Hilda, pousando um ramo de flores primaveris na cama e pondo uma pequena mala de viagem por baixo dela. – Na mala há camisas lavadas, produtos de higiene pessoal e roupas para quando voltares para casa. Meteste- te numa bela alhada. Se Katy não tivesse ficado tão comovida ao ver a mãe, poderia ter-se sentido magoada com o tom de acusação que ela empregou, especialmente porque estava a sentir-se muito fraca. Contudo, sabendo que Bexhill ficava a mais de oitenta quilómetros de distância, aquela visita provava que Hilda gostava muito mais dela do que alguma vez demonstrara. – Fico tão contente por te ver – disse Katy, e estendeu o braço são para a abraçar. Surpreendentemente, Hilda aproximou-se e deu-lhe um verdadeiro abraço. – Foi uma preocupação tão grande. O Rob disse que pensava que o homem te matava. – Bem, mas não matou, e eu consegui levar-lhe a melhor. Mas neste momento não me parece um triunfo, ainda tenho muitas dores. – A tua cara linda parece bastante magoada – disse Hilda, estendendo a mão para tocar delicadamente na face de Katy. – Que coisa horrível! E estás tão magra! – Isso não tarda nada a ser retificado, logo que melhore da boca. Agora já tenho fome. – Katy queria sorrir, mas qualquer movimento do rosto, por mais ligeiro que fosse, ainda lhe causava dores. – Mas senta-te, mãe, e diz-me como tens passado. Hilda puxou uma cadeira e sentou-se, a agarrar a carteira pousada nos joelhos como se receasse que alguém lha roubasse. Katy aguardou; quase conseguia ver o processo de reflexão da sua mãe. Deveria pedir desculpa? Talvez agir como se não se tivesse comportado de facto de um modo horrível? Talvez até esperar que a filha tivesse perdido a memória? – Bem? – disse Katy diretamente. – Lamento as coisas que disse e não te ter dado mais apoio antes de ires para Londres. Mas receava por ti, e parece que tinha razão. Katy sentiu vontade de rir. Era mesmo típico da mãe justificar o seu comportamento. – Tu foste mazinha, mãe – disse num tom cauteloso. – Mas estás aqui agora, por isso vamos virar a página. Como está o pai? Espero sinceramente que não o tenhas rejeitado quando o soltaram? – Não, não o rejeitei – disse ela, e pareceu envergonhada. – Voltou para casa e tivemos uma boa conversa sobre o assunto. Foi ele quem me trouxe aqui hoje. Disse que me deixava ver-te primeiro e que vinha mais tarde com o Rob. Katy ficou muito contente por saber que os seus pais estavam a tentar resolver as coisas entre eles e sentiu-se encantada com a perspetiva de ver o irmão daí a pouco. – Isso são mesmo boas notícias – disse. – Mas quando eu voltar para casa temos de ter uma conversa em condições. Há muito a compreender sobre ti, mãe, e penso que realmente precisas de te explicar e de me contar o teu passado. Fazes isso? – Vou tentar – respondeu ela, e olhou para o regaço, como se a desejar que aquela provação terminasse. – Isso quer dizer que não vais voltar para Londres? – Não, não quer, mãe. Mesmo que não me guardem o emprego, continuo a querer viver em Londres. – O Charles, o advogado, é teu namorado? – Saí uma vez com ele, mãe, por isso não sei onde isso nos deixa. – Mas ele fartou-se de dar voltas para te encontrar. Foi ele quem nos telefonou a dizer que tinhas sido encontrada. Deu a impressão de que estava apaixonado por ti. Katy conseguiu soltar uma risadinha ao ouvir aquilo. – Nunca esperei que te tornasses uma romântica! – Eu sempre quis que tivesses um marido bom que gostasse de ti, e uma casa bonita. – Como tu tiveste? – Sim, eu tenho tudo isso. Talvez nem sempre tenha parecido que o aprecio. O Michael Bonham, o advogado do teu pai, visitou-me. Falou sobre aquilo por que algumas mulheres passam com os maridos. Compreendo agora que a Gloria Reynolds era uma mulher muito bondosa. – És a minha mãe verdadeira ou uma impostora? – perguntou Katy a brincar. Custava-lhe acreditar que a mãe admitisse que estivera errada. – E como está o Rob? – Katy pensou que era melhor não insistir em obter mais desculpas. – Está bem, agora que foste encontrada, mas andava perturbado. Bem, andávamos todos. Eu vou-me embora daqui a pouco para ele e o teu pai virem cá acima. – Fez uma pausa, agarrando a carteira ainda com mais força, e tremeram-lhe os lábios. – Nunca saberás até que ponto ficámos todos assustados. Tínhamos começado a pensar que podias estar morta. A única coisa em que eu pensava era que nunca te tinha dito como és preciosa para mim. – Oh, mãe! – Os olhos de Katy encheram-se de lágrimas. Nunca, nem nos seus sonhos mais ambiciosos, imaginara a mãe a dizer que lhe era preciosa. – Eu também pensei muito em ti. Ajudou-me a aguentar aquelas horas frias e solitárias na cave. Mas isso acabou tudo, e mal posso esperar para comer uma das tuas maravilhosas refeições. Hilda pôs-se de pé e inclinou-se para beijar a filha nas faces e voltar a abraçá-la. – Tenho sido muito tonta, não tenho? – disse em voz baixa. – O Michael Bonham disse que a mulher dele teve um problema semelhante e que lhe deram medicação para ajudar. Vou ao médico amanhã ver o que ele pode fazer. – Isso é bom, mãe. Nós faremos tudo o que pudermos para te ajudar. – Neste momento, és tu quem precisa de toda a nossa ajuda – disse Hilda. – Foste sujeita a uma provação longa e cruel. Deves ter pensado que ias morrer. Por isso, não vais esquecer isto rapidamente, se é que alguma vez o esquecerás. – Bem, isso é um pouco negativo, mãe – disse Katy a brincar. – E pensar que eu me imaginei a ir dar umas voltas pela cidade daqui a uns dois dias... Surpreendentemente, Hilda sorriu. – Sempre tiveste tendência para ver o lado positivo das coisas. Mas deixa-me ir chamar o teu pai e o teu irmão, eles mal podem esperar para te ver. * Rob correu para dentro do pequeno quarto, trazendo com ele um cheiro a fritos. A mãe e o pai ficaram um pouco para trás. – Tomaste um grande pequeno-almoço, sinto-lhe o cheiro – disse ela quando ele a abraçou. – Estava capaz de o comer eu também. – Mal possamos levar-te para casa, é o que vais comer – disse Albert, afastando o filho com uma cotovelada para poder abraçá-la também. – Pareces um bocadinho mais magro – disse Katy. Ergueu a mão e tocou na face do pai; parecia frágil e ressequida, como uma folha seca. – A comida da prisão era horrível. E, claro, estava preocupado contigo e com a tua mãe. Mas umas boas refeições contigo em casa vão pôr-me em forma. Com os três à volta da cama, por uma vez de acordo, ali por ela, Katy sentiu uma vaga de afeto por eles. Ainda não tivera a energia necessária para lhes contar mais coisas sobre a sua provação ou mesmo para lhes fazer perguntas. Talvez nunca viesse a querer falar muito sobre o assunto, mas subitamente a sua casa parecia- lhe o único lugar no mundo onde queria estar. – Falei com o teu médico, que me disse que só te dá alta daqui a uma semana – disse Albert, como se conseguisse ler-lhe a mente. – Ainda tens uma infeção respiratória, para além de que ele tem de se assegurar de que consegues aguentar-te. Com o tornozelo partido e o braço fraturado, realmente não podes movimentar-te com duas canadianas. Eu disse que podíamos trazer uma cama para o andar de baixo e que posso empurrar-te numa cadeira de rodas. Mas mesmo depois de eu fazer tudo para poder levar-te para casa, o médico continuou a dizer que não, pelo menos para já. – Quero tanto ir para casa! – disse Katy com um suspiro. – E é demasiado longe para me virem visitar aqui. – Depois de eu levar a tua mãe e o Rob a casa, podia voltar e ficar algures aqui em Dover – disse Albert. – Oh, pai, isso não te ia agradar, ia ser uma maçada enorme. – Ela está mas é com esperança que o Charles a venha visitar – brincou Rob. – Pelo que ouvi dizer, na noite em que foste encontrada ele passou aqui a noite toda. – Passou? – perguntou Katy. – E não só ele, a Jilly também ficou aqui. Só se foram embora porque o médico disse que não autorizava visitas – disse Albert com um sorriso rasgado. – Soube pela rececionista lá em baixo. Mal posso esperar para conhecer o homem que deu tudo por tudo para encontrar a minha filha. – A Jilly foi igualmente corajosa e maravilhosa – disse Hilda. – Arrastou uns homens para fora de um pub para a levarem à tal casa. Encontrou-te, sem sentidos e ao frio, num caminho todo enlameado. Se ela tivesse esperado que a polícia entrasse em ação, podias estar morta quando te encontrassem. Arrependo-me muito de antes ter má opinião dela. Katy só podia olhar de um rosto querido para outro, com o coração a transbordar de afeto por eles. Sabia que queriam ouvir a história com todos os pormenores, mas sentia-se demasiado fraca para tentar reviver tudo. Nem sequer tinha energia suficiente para perguntar o que acontecera a Reilly. – Foi tão maravilhoso ver-vos a todos, só gostava de me sentir com um pouco mais de vida – disse ela. – Mas estou realmente cansada, acho que agora deviam ir para casa. Eu volto não tarda nada. Pareceram dececionados, mas não argumentaram com ela. Rob disse que ia voltar para a universidade na manhã seguinte e Albert disse que já eram horas de ele voltar para a Speed Engineering. – Não quero que descubram que já não precisam de mim – disse com um sorriso. Hilda aproximou-se de Katy e abraçou-a. – Mal posso esperar por te ter em casa para te cozinhar todos os teus pratos preferidos – disse. Katy acenou uma última vez quando eles desapareceram de vista, no corredor, e deixou cair a cabeça nas almofadas. As últimas palavras da mãe ficaram a soar-lhe na cabeça e perguntou-se se seria duplamente difícil sair de casa da próxima vez. * – Charles, que bom ver-te – disse Katy quando ele a surpreendeu ao entrar pela porta do quarto com um enorme ramo de flores. Passara agora uma semana desde que ela conseguira escapar a Reilly, e quatro dias desde a visita dos seus pais e de Rob. Katy começara a pensar que Charles perdera o interesse ou estava demasiado ocupado para vir visitá-la tão longe. Por sorte, na véspera tinha pedido à enfermeira que lhe lavasse o cabelo e vestira a camisa de nylon nova, azul-clara e com rendas, que a mãe lhe comprara. – Já queria ter vindo há dias, mas a enfermeira disse-me que a tua infeção respiratória não estava a passar e que estavas cansada por causa das visitas da polícia. Ela soube então que ele devia ter telefonado para o hospital diariamente. A enfermeira-chefe era um verdadeiro dragão. Insistira que Katy descansasse mais e mantivesse a perna do tornozelo partido ao alto, e que os agentes da polícia não a cansassem demasiado com os seus interrogatórios. – A infeção respiratória já quase desapareceu, graças a Deus – disse Katy. – Foi horrível; doía-me quando tossia e sentia-me mesmo mal. Ainda bem que me deixaram ficar neste quarto particular. Pelo menos, quando os polícias vêm cá, não tenho a enfermaria toda a olhar para mim. – Também era importante manter os jornalistas à distância – disse Charles. – Havia alguns lá em baixo agora mesmo. Não desistem facilmente. Charles sentou-se na beira da cama e inclinou-se para a frente para lhe beijar delicadamente os lábios. Ainda estavam pisados e um pouco inchados, como o resto do seu rosto. Apesar disso, o beijo fez todo o corpo de Katy estremecer deliciosamente, deixando- a a querer mais. – Hum – murmurou ele. – Ando a sonhar com isto há tanto tempo! – E não te importas que eu pareça um verdadeiro susto? – perguntou ela. Ele pôs-lhe a mão delicadamente na face. – A mim não me pareces um susto. Pareces-me a rapariga mais corajosa que já conheci, cada nódoa negra é uma medalha de coragem. – Ou de estupidez – sugeriu ela. – Se ao menos eu tivesse dito a alguém aonde ia ou se tivesse deixado o bloco de apontamentos da Edna em casa da Joan e do Ken. Mas basta de falar sobre mim! Porque é que estás aqui a meio da semana? Deves ter clientes para defender. – Adiei uns compromissos – disse ele, afastando-lhe o cabelo do rosto. – Queria muito ver-te, já não conseguia esperar mais. Então, diz-me lá o que tem acontecido. A polícia tem-te posto doida? – Fazer o meu depoimento foi a pior coisa; perguntaram-me as mesmas coisas vezes sem conta. O que ele disse, o que eu disse, como me bateu e porquê, tudo e mais alguma coisa. Penso que os deixei ainda mais confusos por lhes dizer que por vezes ele era simpático. Falou a Charles da noite em que estava doente e Ed ficou com ela e lhe trouxe o edredão e o aquecedor elétrico. – Penso que ele não sabia como me matar – explicou. – Suspeito que não tinha forças para matar de perto, esfaquear ou estrangular. Será enforcado? Charles encolheu os ombros. – Duvido. A brigada antipena de morte está a ganhar cada vez mais apoio, e, em geral, eu diria que ainda bem. Contudo, quando olho para o que o Edward Reilly fez, é difícil encontrar uma razão para perdoar. – Então, ele vai apanhar pena perpétua? – Sim, mas isso não vai acontecer da noite para o dia. Ainda há muita coisa que a polícia tem de investigar. Suspeitam que ele possa ter cometido outros crimes. A mulher do médico de Hampstead está desaparecida, com os filhos; parece que ele andava com ela quando ela estava a viver perto de Eastbourne. Também andam a reabrir casos antigos, por resolver, que são semelhantes. O que me intriga é como ele conseguiu encontrar a Gloria, a Edna e a mulher do médico, mas não encontrou a própria mulher, a Deirdre. Será que a assistente social do hospital Whittington deu com a língua nos dentes? Ou teria sido aquela senhora mais velha de King’s Cross que lhe disse? Dela não podemos obter informações, porque morreu no ano passado. – Talvez ele confesse tudo – disse Katy. – Duvido – disse Charles. – Adorava ter a oportunidade de o interrogar e averiguar o que o tornou assim. O que fiquei a saber sobre ele pelas tias, e também pela Deirdre, é fascinante. E tu disseste que ele conseguia ser bondoso, e que não pensavas que soubesse como te matar. É tudo interessantíssimo para mim! – Bem, não quero pensar mais nele – disse Katy com firmeza. Charles sorriu e fez-lhe uma festa na cara. – Não, suponho que não. Foi uma falta de tato da minha parte falar sobre ele. Além disso, prefiro de longe falar sobre nós. – Nós? Ele sorriu ao ver a expressão de perplexidade dela. – Lá estou eu outra vez, a falar alto sem pensar bem. É só que, desde que tu desapareceste não tenho conseguido pensar em mais nada a não ser em ti. Tinha a esperança de que pudesses sentir o mesmo. Mas suponho que sobreviveres era a única coisa em que pensavas. – Na verdade, passavas-me bastante pela cabeça – admitiu ela, corando muito. – Distraías-me da possibilidade de morrer à fome. Charles sorriu. – Essa é nova! Nunca ninguém disse isso sobre mim. Katy soltou uma risadinha. – Não pode haver nenhum «nós» durante algum tempo. Eu vou voltar para Bexhill, esperar que o tornozelo e o braço sarem. Isso vai demorar cerca de seis semanas. – Eu posso ir lá aos fins de semana. O coração de Katy saltou-lhe de alegria no peito. – Adorava, mas duvido que te agrade estar na companhia da minha mãe. Ela é uma mulher difícil. – Posso ficar numa pensão e visitar-te, até mesmo empurrar-te numa cadeira de rodas. Por favor, não ergas obstáculos! – Vou tentar não o fazer. Suponho que tenho medo que te canses de esperar que eu volte ao normal. Ele inclinou-se para mais perto dela na cama e pôs os braços à volta do seu corpo. – Quero ajudar-te a recuperar. Não só o tornozelo e o braço, mas na totalidade. Nenhuma pessoa que seja raptada assim e fechada num quarto, a temer pela vida, volta imediatamente a ser como era antes. É por isso que precisas de estar com os teus pais, ter a segurança da tua casa e saber que podes falar do assunto comigo sempre que sintas necessidade. Pode demorar seis semanas ou seis meses, mas eu quero ajudar-te a superar isto. Katy encostou-se ao ombro de Charles; era tão bom estar assim perto dele! Tal como conseguira esquecer a sua desgraça na cave por curtos períodos pensando nele, também agora conseguia dominar a sensação de pânico ao sentir o perfume a cedro do sabonete e da loção para depois da barba de Charles. Não falara a ninguém, nem às enfermeiras nem aos médicos, daqueles momentos de pânico. Pensava que, se admitisse a sua existência, esses momentos só se tornariam mais prolongados e mais fortes. Uma mulher-polícia que viera falar com Katy pouco depois de ela recobrar os sentidos após a operação, perguntou-lhe se Reilly a tinha violado. – Ele não era assim – foi como Katy respondeu. Pressentiu que a agente não acreditara nela e que pensava que Katy estava a negá- lo porque se sentia embaraçada. No entanto, de facto Reilly não a abordara sexualmente. Na vez em que dormiu com ela na cama, quando ela estava doente e vulnerável, nem tentara abraçá-la. No entanto, de uma forma estranha, isso tornava a violência dele contra ela ainda pior. Mas Reilly não a raptara porque queria uma mulher, só porque tinha de evitar que ela o denunciasse. E depois ficou com Katy às costas, sem saber como se livrar dela. Katy estava sempre a pensar no dia em que escapara. O que lhe teria ele feito se ela não o tivesse atacado? Poderia ter-lhe ocorrido alguma maneira de a matar? Ou tê-la-ia simplesmente deixado ali, mais uma vez, incapaz de a matar, mas também incapaz de a soltar? Ele era um quebra-cabeças, e provavelmente ela nunca obteria as respostas para todas as perguntas sobre ele. Isso quereria dizer que nunca ficaria livre dele? 19 – Q ue maravilha poder ir finalmente para casa. – Katy suspirou de felicidade enquanto o pai a levava de carro ao longo de Shakespeare Cliff na direção de Folkestone. Estava um dia lindo, sem nuvens, com o mar abaixo dos rochedos à sua esquerda a refletir o azul do céu, como se a dizer-lhes que a primavera estava quase a chegar. Aqui e ali viam amendoeiras em flor, grupos de flores de açafrão, narcisos e camélias. Mas o sol era enganador, e ainda fazia muito frio. Usar as suas roupas de novo também lhe dava uma sensação agradável. Sempre gostara da camisola de gola às riscas pretas e brancas que a mãe lhe comprara, e as calças pretas escondiam o gesso na perna. Mas era muito estranho calçar apenas um sapato. Só trazia uma meia de lã calçada no outro pé. – Vai ser ótimo ter-te em casa – disse Albert, sorrindo-lhe. – A tua mãe anda numa roda-viva a fazer bolos há dias. Fez bolos que cheguem para uma festa para a rua toda. Talvez devêssemos fazer uma dessas festas, com toda a gente que tem vindo lá a casa perguntar por ti. – As pessoas só querem saber os pormenores horrendos – disse Katy. – É engraçado que não tenham ido lá a casa quando foste preso para te darem o seu apoio. – Vá, vá, não sejas assim – disse Albert, repreendendo-a. – Tem sido bom para a tua mãe, ela agora até conversa com outras senhoras. Além disso, há muita gente na nossa rua que gosta mesmo de ti. Katy não ficou convencida, mas deixou passar; o pai era uma daquelas pessoas que viam o melhor em toda a gente. – Como estão as coisas entre ti e a mãe agora? – perguntou-lhe. – E quero uma resposta sincera, por favor. – Muito melhor – disse ele. – Ela não pode mudar da noite para o dia, mas está a tentar. Quem me dera ser capaz de desaferrolhar o que quer que está dentro dela que a torna assim tão... – parou de falar, talvez incapaz de dizer a palavra. – Difícil? Feroz? Pouco razoável? – sugeriu Katy. – Escolhe a palavra que quiseres! Mas eu tenciono averiguar a coisa a fundo. Vou ser como um cão com um osso. Mandaram um psiquiatra ver- me no outro dia. Deu-me algumas boas ideias. – O que é que ele te perguntou? Katy encolheu os ombros. – Como me sentia em relação ao Reilly, se andava a ter pesadelos com ele. As coisas todas do costume. Eu perguntei ao psiquiatra o que poderia ter acontecido ao Reilly para fazer com que um rapaz que olhava pelos irmãos mais novos se transformasse num homem que batia na mulher e acabou por ser um homicida. O psiquiatra disse que sentia que era o ódio pela mãe e depois ver as mulheres da sua vida a transformarem-se nela. Mas eu não vejo que isso faça sentido. O Charles disse que a Deirdre é uma mulher delicada e pacata, não é uma galdéria bêbeda. Seja como for, nada do que aquele psiquiatra disse explica porque é que o Reilly quis matar a Gloria e a Edna. – Presumivelmente, só porque elas lhe tinham tirado a Deirdre? Embora fosse o comportamento dele que acabou por a fazer abandoná-lo. Então, que boas ideias é que tiraste da conversa com o psiquiatra que possam aplicar-se à tua mãe? – A mãe nunca fala sobre a infância dela, pois não? – Não consegue falar sobre nada do seu passado. Tentei levá-la a falar, mas ela muda de assunto. E, se insisto, fica furiosa. – Bem, vou tentar fazer com que ela me fale disso. – Boa sorte para ti – disse Albert com um sorriso irónico. – Eu ponho-me ao largo, vou para o barracão enquanto estiverem a ter essa conversa. Ficou em silêncio por uns instantes e a seguir suspirou. – Há uma coisa, Katy. Algo importante. Mas não me cabe a mim contar-te; ela nunca me perdoaria. Mas penso que tens razão, chegou o momento de tirar os esqueletos do armário. Amanhã, vou estar no trabalho o dia todo, por isso talvez seja uma boa oportunidade para falares com ela. Mas por favor não fiques zangada comigo se as coisas derem para o torto. * Katy sentiu-se encantada ao chegar a casa. O jardim da frente estava cheio de narcisos, e a grande cameleira que crescia contra o muro da casa estava coberta de flores de um vermelho vivo. A porta abriu-se ainda antes de o seu pai ter desligado o motor, e a mãe correu para fora de casa, com um sorriso rasgado que era uma maravilha de se ver. Abriu a porta do lado do passageiro. – É tão bom ter-te em casa! – disse, num tom caloroso que normalmente não usava. – Vou só tirar a cadeira de rodas da mala – disse Albert. Katy não ficou surpreendida ao ver que o pai tinha feito uma pequena rampa para a cadeira de rodas passar na soleira da porta; ele sempre fora de pensar em tudo. Ela conseguiu saltar a pé- coxinho do carro para a cadeira, e o pai empurrou-a para dentro de casa. – O teu pai disse que achava que tu preferias dormir lá em cima, no teu quarto – disse Hilda depois de Katy ser trazida para a cozinha. – Sim, prefiro. Posso subir e descer as escadas de rabo. Mas só preciso de fazer isso uma vez por dia, como temos uma casa de banho cá em baixo. – Vais conseguir entrar nela? – Hilda parecia duvidar. – É claro que sim. Posso andar a pé-coxinho apoiada a uma canadiana. Para de te preocupares comigo. Não tardo a acostumar- me. – Bem, devo dizer que não me apetecia nada trazer a tua cama cá para baixo – confessou Hilda, provando que não tinha mudado assim tanto, ainda continuava a preferir a ordem. – Agora, chá e bolos, e depois podes contar-me as novidades. A infeção respiratória já passou? Dói-te o tornozelo... ou o braço? – A infeção já passou e só sinto umas pontadas de vez em quando no braço e no tornozelo. Detesto o gesso; é muito difícil dormir com ele à noite. – Deve ser – disse Hilda, olhando com atenção para a filha. – Ainda estás muito pálida e magra, mas a tua cara está muito melhor, e as nódoas negras que ainda restam vão desvanecer-se em pouco tempo. Katy achava que parecia um susto. Outras pessoas podiam tentar convencê-la de que o seu aspeto era bom, mas tinha todas as cores do arco-íris à volta dos olhos, do púrpura ao amarelo. No entanto, prometera a si mesma que não se lamuriaria. Afinal, tinha sorte por estar viva. Nessa noite, contudo, não se sentiu cheia de sorte. Primeiro içou- se pelas escadas acima apoiando-se no rabo e depois foi à casa de banho a pé-coxinho, só então descobrindo que deixara a escova de dentes no quarto. Outra ida ao quarto a pé-coxinho, depois o regresso à casa de banho para lavar os dentes. Depois de fazer tudo isso, ao voltar para o quarto sentia-se exausta. Já na cama, o gesso na perna prendia-se nos lençóis e arranhava- lhe a outra perna. Ainda por cima, o gesso do braço tornava-lhe impossível deitar-se para o lado direito. Viu-se obrigada a ficar deitada de costas, e a perspetiva de passar pelo menos mais cinco semanas assim era terrível. Depois de desligar a luz, as recordações vieram à tona. O cheiro daquela cave, o frio, a fome e o medo. Sentia cada pancada que Ed lhe dera, e não conseguia impedir-se de recordar a expressão louca dos seus olhos. No entanto, havia aquele seu lado mais carinhoso também. Fora muito bondoso quando Katy esteve doente – de facto, ela tinha julgado que ele se emendara e a soltaria. Contudo, não eram só as suas provações na cave que a preocupavam. Ansiava por poder tomar banho e usar roupa bonita. Por poder ir dar um passeio sozinha. Por voltar a ser normal. * Só na tarde seguinte Katy pôde abordar a mãe. Hilda não era de se sentar durante o dia. Mantinha-se ocupada a limpar, a puxar o lustro, a lavar roupa, a passar a ferro, a cozinhar e a lavar a louça. Katy aprendera desde tenra idade que nada impedia Hilda de seguir a sua rotina. Mesmo que estivesse constipada ou doente, não parava. Contudo, depois de almoçarem uma sopa caseira de cebola e de a louça ser lavada, Katy pediu a Hilda que se sentasse com ela junto à lareira. – Tenho de passar a ferro, e preciso de ir ao Home and Colonial comprar queijo – disse ela, esfregando as mãos nervosamente, como fazia sempre que alguém lhe pedia que fizesse algo que fosse inesperado. – A roupa pode esperar, e amanhã vais precisar de mais coisas das lojas além do queijo – disse Katy. – Agora senta-te, mãe, é importante. Hilda sentou-se na beira do sofá com as mãos unidas no regaço. – Senta-te para trás e descontrai-te, mãe. Parece que estás aqui para uma entrevista para um emprego. – O que é assim tão importante? – resmungou Hilda. – Passa-se algo de errado contigo? – Não é comigo, mãe, é contigo. No hospital, prometeste-me que teríamos uma conversa, e hoje vamos fazer isso mesmo. Quero que comeces por me contar onde cresceste e que me fales dos teus pais. Viu o rosto da mãe contrair-se. Ela não queria falar sobre mais nada a não ser sobre a receita do seu bolo de frutas cristalizadas ou o facto de o quarto de hóspedes estar a precisar de cortinas novas. – Não há grande coisa a contar – disse Hilda com um profundo suspiro. – Os meus pais tinham uma pequena quinta perto de Salisbury. Cultivavam produtos hortícolas e criavam galinhas. Vendíamos os produtos num pequeno barracão junto ao portão. – Tiveste irmãos, irmãs? – Tive um irmão mais velho, o Richard, mas morreu quando eu tinha doze anos. Era um problema de fígado. Os meus pais nunca se recompuseram. Era uma notícia importante, e Katy perguntou-se como alguém poderia guardar para si uma coisa dessas durante anos. – Os teus pais fizeram-te sentir culpada por seres saudável? Hilda pareceu ficar pensativa, mais do que zangada, ao ouvir a pergunta. – Sim, acho que fizeram. Eles precisavam do Richard, sabes, para o trabalho pesado, cavar e coisas do género. Eu sentia que eles pensavam que eu não tinha préstimo, embora me encarregasse de arrancar as ervas daninhas e de dar de comer às galinhas e olhasse pelas plantas ornamentais que vendíamos no verão. Mal voltava da escola para casa, tinha de trabalhar. – Como é que isso te fazia sentir? Hilda franziu a testa e olhou fixamente para Katy. – Sentir? Quando eu era nova, ninguém queria saber de como me sentia. Não era coisa com que eu contasse. – Talvez, mas como te sentias? – Explorada, acho eu. Costumava sonhar acordada com uma vida em que pudesse ir passear, ficar deitada a ler livros, usar roupas bonitas e ter muitas amigas. Eu não fazia amigos, porque nunca tinha tempo para estar com eles. – E os teus pais andavam sempre a falar na morte do Richard, ao ponto de quereres ter sido tu a morrer? Hilda pareceu espantada com aquela pergunta. Abriu e fechou a boca, mas não lhe saíram nenhumas palavras. – Sei que soa duro, mas era isso que se passava? – perguntou Katy. – Sim, era – disse a mãe, algo relutante. – Eu sentia que não contava para nada. Por vezes, desejava adoecer, para eles se preocuparem comigo. – Então, quando deixaste de estudar e o que fizeste depois? – Deixei de estudar em 1929. Tinha catorze anos. Trabalhava três dias por semana como criada para tratar das roupas dos Coleridge, eles tinham a casa grande na vila, e no resto do tempo trabalhava para os meus pais. Mas a minha mãe morreu de repente em 1931; disseram que foi um ataque de coração. Ela andava sempre consumida por causa da Depressão. As coisas estavam difíceis para todos, com os homens a perderem o emprego e coisas do género, mas não ia fazer com que a nossa vida mudasse grande coisa. O meu pai andava sempre a dizer-lhe que nunca passaríamos fome, porque cultivávamos o que comíamos e vendíamos o suficiente para comprar outras coisas de que necessitássemos. Mas ela era uma cismática. Sempre foi. – Lamento muito. Então, ficaste só com o teu pai? Como foi isso? Eras muito nova para ficares sem mãe. Uma lágrima rolou pela face de Hilda. – Foi horrível. Ele ia ao pub todas as noites e dormia metade do dia. Eu tinha de tentar manter tudo a funcionar sozinha. Ele não fazia nada. Como não tínhamos dinheiro para a ração das galinhas, ele vendeu-as todas e gastou o dinheiro na bebida. Sem ovos para vender e com cada vez menos vegetais para comer ou vender, ficámos na penúria. Ele era horrível comigo; exigia-me o dinheiro que eu ganhava a lavar roupa e gastava-o na bebida. Também me batia muitas vezes. Por fim, como ele não pagava a renda da propriedade, fomos despejados. Mrs. Coleridge sentiu pena de mim e contratou-me como criada para todo o serviço. Tinha despedido a maior parte do pessoal, porque os tempos também estavam difíceis para ela e para o marido. Por isso, era só eu a fazer tudo na casa. Katy sentia que lhe tinha sido dada a explicação para muitas das atitudes estranhas da mãe. A mania da poupança, a reprovação da bebida e a sua incapacidade de se descontrair. Pousou a mão na da mãe e apertou-lha. – Não admira que nunca fales desses tempos – disse. – Deve ter sido horrível. – Era melhor com os Coleridge do que quando estava com o meu pai – disse ela. – Pelo menos, andava bem alimentada, vivia numa casa decente e ninguém me berrava nem me batia. De facto, Mrs. Coleridge era bastante bondosa. Apoiava-se em mim, era uma senhora muito fraca. – E o teu pai? O que lhe aconteceu? – Matou-se a beber. – Hilda cuspiu aquelas palavras, revelando que ainda sentia azedume em relação a ele. – Tentou sacar-me dinheiro algumas vezes, mas eu não ganhava muito e não ia dar-lho para a bebida. Foi encontrado morto no bosque, mesmo antes de rebentar a guerra. A viver como um vadio, imundo, uma verdadeira vergonha. Katy compreendia agora porque é que a mãe tinha padrões de limpeza, ordem e autodomínio tão elevados. Mas queria saber a «grande» coisa a que o seu pai aludira, e por isso precisava de fazer Hilda passar à frente. – Isso deve ter sido tão horrível para ti, mãe! – disse. – Tão humilhante e triste também. Foste-te embora nessa altura para fazer trabalho de guerra? Se Hilda sentia que tinha sido interrompida no assunto do seu pai, não o mostrou. – Sim, inscrevi-me para fazer trabalho de guerra e fui enviada para uma fábrica em Southampton. – Então, nessa altura tinhas vinte e quatro anos. O que achaste do trabalho na fábrica? Deve ter sido estranho, depois de viveres numa vila sossegada. – Gostei. Ganhava bem, tinha a companhia de outras raparigas e, como estávamos todas longe de casa, tínhamos muito em comum. O trabalho era repetitivo, barulhento e sujo. Fabricávamos peças pequenas para tanques, aviões, todo o tipo de coisas, na realidade. Mas íamos a bailes aos sábados à noite, e eu gostava de partilhar casa com outras raparigas. Era sempre eu quem limpava. Katy sorriu ao ouvir aquilo. Imaginava a sua mãe a assumir o papel de dona de casa. – E o amor? Tiveste alguns namorados? – Houve um par de rapazes, mas eu era demasiado tímida para me sentir à vontade com eles. Também não era bonita. Sentia-me embaraçada. – Todas nos sentimos assim ao princípio – disse Katy. – Eu senti- me apavorada nos meus primeiros bailes. Costumava dizer à Jilly que não ia a mais nenhuma festa. Então, o que é que mudou para ti? Conheceste o pai e tudo ficou bem? – O que está por trás de tudo isto? Porque estás a interrogar-me? Katy sentiu-se alarmada ao ouvir o tom agressivo da mãe. Pensara que tudo estava a correr muito bem. – A interrogar-te? – disse. – Só estava interessada em ouvir-te falar do teu passado, de como conheceste o pai. De como eras em nova. Nós precisamos de falar destas coisas, mãe. Todas elas te afetaram, tornaram-te a pessoa que és hoje. É provável que a experiência horrível que eu tive com o Reilly me afetasse muito se eu não falasse sobre ela. – Porque é que supões que eu tive uma experiência horrível? – Porque andas a esconder alguma coisa, mãe. As pessoas não escondem coisas boas. – Julgas-te muito esperta – resmungou Hilda, pondo-se de pé e olhando para baixo, para Katy, com uma expressão quase de ódio. – Sempre achaste que sabias tudo. Bem, não sabes, e algumas coisas que acontecem às pessoas é melhor deixá-las no passado. – Mãe, eu só quero compreender-te – disse Katy em voz baixa. – Rezei muito enquanto estive fechada naquela cave. Também pensei muito em ti, no pai e no Rob. Como pensei que não ia sobreviver, isso fez-me ver que, se Deus me poupasse, eu tinha de tentar chegar até ti. Tinha de descobrir o que te põe tão infeliz às vezes, e assim talvez pudesse ajudar-te. – Ninguém pode ajudar-me, e, se eu te contasse, tu ias odiar-me. – Mataste alguém? Roubaste uma velhinha ou fizeste mal a uma criança? – Não, é claro que não – disse Hilda, furiosa. Voltou a sentar-se, mas manteve-se na beira do assento. – Bem, essas seriam as únicas coisas que poderiam fazer-me odiar-te – disse Katy. – Não me importava se tivesses assaltado um banco, afogado um gato ou dançado nua no paredão de Hastings. Todas as pessoas já fizeram alguma coisa que julgam que é motivo para os outros as odiarem. E geralmente estão erradas. Estendeu a mão para pegar na da mãe, mas Hilda afastou-lha. – Deixa-me em paz, Katy. Tu não queres saber isto; é terrível. Katy viu que a mãe estava a chorar. Não chorava alto, mas corriam-lhe grandes lágrimas silenciosamente pelas faces. – Eu quero mesmo saber. Não me importa que seja muito mau. Prometo que continuo a gostar de ti na mesma – disse ela, e pôs os braços à volta do corpo da mãe e puxou-a para o seu peito. – Anda lá, segreda-o, se não consegues dizê-lo em voz alta. Hilda não disse nada por algum tempo. Os ombros tremiam-lhe e Katy sentia a humidade das lágrimas dela na sua camisola, mas não saía um som da boca da mãe. – Fui violada! Saiu como um sussurro, mas mesmo assim Katy ouviu claramente. – Conta-me como foi – disse. – Não posso. – Podes sim. Explica só onde estavas, com quem estavas. Acho que compreendo o resto sem entrares em pormenores. Houve um longo silêncio. Katy aguardou pacientemente, porque pressentia que a mãe necessitava de contar a sua história. – Quatro de nós fomos a um baile em Aldershot – acabou por dizer. – A Nancy, uma das raparigas, tinha um namorado destacado lá, e arranjou boleia de alguém para irmos até lá. Eu tinha feito um vestido novo, era cor-de-rosa com flores brancas, e as outras disseram que eu estava bonita. Sentia-me bem. Estava uma noite quente, e pensei que algo de bom ia acontecer. – Fez uma pausa. Katy não tentou apressá-la, porque sentia que a mãe estava a reviver aquela noite. – E foi bom. Tinham decorado o salão com grinaldas de papel e balões, e a banda era de primeira classe. Dancei com imensos homens nessa noite e bebi bastante, porque tínhamos levado gin. Pensei que finalmente tinha deixado de me sentir pouco à vontade, e estava mesmo feliz. Mas começou a ficar muito calor no salão e fui até lá fora apanhar ar. Soltou-se do abraço de Katy e sentou-se muito direita, a olhar para um ponto à distância como se estivesse de volta àquele salão de baile. – O recinto do baile ficava num caminho de aldeia e, claro, estava tudo às escuras por causa da guerra. Mas a lua brilhava nessa noite, e eu afastei-me do recinto. Ouvia patos a grasnar, mesmo com a música que vinha lá de dentro. Havia um lago, e a lua brilhava diretamente na água e nos patos brancos que andavam a nadar, tornando a cena nítida como se fosse de dia. «E depois, subitamente, apareceu ali um homem. Não estava fardado, trazia uma camisa desabotoada no colarinho e umas calças escuras. Comentou que a lua estava brilhante e perguntou-me de onde eu era. Tinha uma voz toda fina e bom aspeto, com cabelo louro que brilhava ao luar. Eu namorisquei um bocado com ele. Ele sugeriu que fôssemos dar um passeio. Não sei porque concordei, nem sequer sabia o nome dele, mas suponho que pensei que seria uma coisa boa para contar às minhas amigas, como uma pequena aventura. «Mas não foi aventura nenhuma. Ele pegou-me na mão e arrastou-me do caminho para umas moitas. Começou a beijar-me e eu fiquei assustada e disse que tinha de voltar. Mas então ele deu- me um murro em cheio na cara. Bateu-me com tanta força que eu caí por terra. «Ele tinha uma daquelas gravatas tipo lenço ao pescoço e enfiada na camisa. Tirou-a e atou-a à volta da minha cabeça, a amordaçar- me. E depois violou-me. Doeu-me imenso, e tentei dar luta, mas ele era muito forte e bateu-me vezes sem conta. «Quando acabou, levantou-se, deu-me um pontapé com força na barriga e depois desapareceu nas moitas.» Katy mal podia acreditar no que tinha ouvido. Seria chocante saber que aquilo acontecera a qualquer pessoa, mas saber que tinha acontecido à sua mãe – uma mulher muito reservada, exigente e contida – tornava-o ainda mais devastador. – Oh, mãe, isso é terrível! – Katy estava também ela a chorar agora. Voltou a abraçar a mãe. – O que é que tu fizeste? – Consegui tirar o lenço e pus-me a gritar. Tentei levantar-me, mas não conseguia equilibrar-me, doía-me imenso a barriga. Depois, de repente, apareceu ali um soldado; veio a correr para as moitas e ajudou-me a pôr-me de pé. Eu não precisei de lhe dizer o que tinha acontecido. As minhas cuecas estavam no chão, onde o homem mas tinha arrancado. O soldado ajudou-me a vesti-las. – Então, foste à polícia? – Não, sabia como eles iam reagir. Iam pensar que a culpa era minha, porque tinha ido para as moitas com o homem. – Mas o soldado que te ajudou não quis chamar a polícia? – Quis, mas eu não deixei. Disse-lhe que só ia ser pior para mim. Até podia perder o emprego se se soubesse. – Perder o emprego! Um homem viola-te e de repente tu é que és a má da fita? – Era assim que eram as coisas, naquela época. – Hilda encolheu os ombros. – Acho que não deve ser muito melhor mesmo agora. Seja como for, o soldado voltou para o salão de baile e disse às minhas amigas que me ia levar a casa, e levou, num jipe do exército. Foi muito bondoso. – Então, chegaste a descobrir quem te tinha violado? – Não, não contei a mais ninguém o que tinha acontecido. Já estava na cama quando as outras chegaram. – Mas como conseguiste viver com um segredo assim tão horrível? – Tinha alguém que o sabia. O soldado que me tinha ajudado. Falei com ele sobre isso, e ele voltou para me ver muitas vezes. – Como é que ele se chamava? – Era o cabo Albert Speed. Por um momento, Katy julgou que a mãe estava baralhada. Mas Hilda repetiu o nome e olhou a direito para Katy. – O pai? – exclamou Katy. – Foi assim que o conheceste? 20 – O pai! – Katy murmurou a palavra, profundamente chocada por algo tão horrível como aquilo ter aproximado os seus pais. – Sim, o Albert. Se não fosse ele, quase de certeza eu ter-me-ia matado. Acredita em mim, Katy, eu era uma rapariga extremamente ingénua. Não compreendia realmente nada do que tinha a ver com esse assunto. Katy sabia que a mãe estava a referir-se a sexo. Pouquíssimas vezes falara abertamente sobre o assunto, só insinuações vagas, geralmente pronunciadas com os lábios comprimidos, como se até a ideia a perturbasse. Katy obtivera todos os conhecimentos sobre a reprodução humana e as relações entre homens e mulheres através de livros e das amigas. A mãe de Jilly colmatara as lacunas de um modo bem-disposto mas bastante direto. Agora Katy compreendia porque a sua mãe não conseguia falar sobre o assunto. No entanto, ter tido dois filhos desde essa altura devia tê-la ajudado? – Então, o pai levou-te à polícia? – Ele queria, mas eu não deixei. – Hilda inclinou a cabeça em desafio. – Não poderia falar com um homem sobre essas coisas. E, de qualquer maneira, tinha medo que dissessem que a culpa era minha. Eu tinha estado a beber e tinha-o deixado levar-me para longe do baile. Katy conseguia compreender aquele raciocínio. Uma amiga sua da escola tinha ido à polícia depois de ser violada, e lá disseram-lhe que não devia ter aceitado a boleia do homem para casa. Também não tinham demonstrado nenhuma preocupação com ela. – Quando se passou isto, mãe? – perguntou Katy. – No final de junho de 1940. A razão por que fomos ao baile em Aldershot foi porque o namorado da minha amiga era um dos muitos soldados, juntamente com o Albert, que tinham estado na retirada de França e foram recolhidos da praia em Dunquerque. Ambos tiveram sorte por voltarem para casa sãos e salvos. Katy nem sequer sabia até àquele momento que o pai tinha estado em Dunquerque. Ele só dizia piadas sobre o seu tempo no exército. – Então, o que fizeste? Continuaste como se nada tivesse acontecido? Hilda fitou a filha com um olhar sombrio. – Tentei. Mas há certas coisas que simplesmente não se conseguem esquecer. Foi o Albert quem me ajudou a aguentar. Escrevia-me, e por três vezes apanhou o comboio para me vir ver. – A Inglaterra estava a ser bombardeada nessa altura? – perguntou Katy. – Nessa altura não, tivemos aquilo a que chamávamos a Guerra Falsa, não acontecia realmente nada. Mas depois de Dunquerque os alemães varreram a Europa. A Holanda, a Bélgica e a França caíram. Depois, no início de julho, tivemos o primeiro bombardeamento durante o dia em Inglaterra. O blitz de Londres começou em 23 de agosto, mas o nosso pior período em Southampton foi a partir do final de novembro. – O pai continuou colocado em Aldershot? – Não, a unidade dele foi enviada para o Norte de África. Na altura, eu não sabia para onde ele tinha ido, os soldados não podiam revelar esse tipo de informação, mas ele escrevia-me. Eu voltei ao trabalho, e era muito assustador quando as bombas caíam em Southampton. Era um alvo importante, não só por causa dos navios e do porto, mas também porque as fábricas estavam a produzir tudo, desde armas a tanques. Vivíamos todos num estado constante de ansiedade. Acho que foi por isso que nem me dei conta de que estava de esperanças. – Oh, mamã! – exclamou Katy. – O violador engravidou-te? – Bem, do que não há dúvida é que eu não tinha feito aquilo com mais ninguém – retorquiu Hilda com indignação. Subitamente, como se um raio a tivesse atingido, Katy soube a verdade. Nascera em março de 1941. Era filha do violador. Teve a sensação de estar a cair por um buraco que não vira. Fragmentos de recordações da infância passaram-lhe pela mente, como se estivesse a ser-lhe dado um último vislumbre de coisas que lhe eram queridas antes de lhe serem tiradas para sempre. – Então, o Albert casou contigo por compaixão? – perguntou horrorizada. – E tu deixaste-me acreditar este anos todos que ele era o meu pai? Como pudeste fazer isso? No calor do momento, Katy esqueceu-se do tornozelo partido e, querendo afastar-se o máximo possível da mãe, levantou-se do sofá. Contudo, mal deu um passo, tombou sobre as almofadas. Começou a chorar. Não conseguia escapar, e todo o seu mundo ruíra à sua volta. – Desculpa, Katy. Fui demasiado brusca; nunca te devia ter contado o que me aconteceu. Mas ao contar-te parte da história, tinha de ta contar toda. Disseste que querias a verdade sobre mim. Agora já a tens. – Estes anos todos! Toda aquela crueldade acumulada com que tive de lidar, tu a olhares para mim como um falcão, a criticar tudo o que eu fazia. Então, vias todo o mal daquele homem em mim, imagino? Hilda estava agora a chorar, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces. – Não, nunca vi mal nenhum em ti. Nem sequer pensava nele como teu pai, não depois de tu nasceres e de eu te ter nos braços. O Albert sempre foi o teu pai em tudo o que importa. Estava sempre a escrever-me, queria saber como tu eras, e quando voltou para Inglaterra em julho de 1941 pediu-me em casamento. – Então, o que é que ele lucrou com o casamento? – Katy sentia- se tão furiosa com a mãe que queria magoá-la. – Uma mulher fria e amarga com a filha de um violador. Desde que me lembro, andas sempre a implicar com ele, nada é nunca suficientemente bom para ti. Por que carga de água é que ele te quis? – Ele disse que se apaixonou por mim naquela noite em que me levou a casa depois do baile. Mas eu não acreditei nele. Como é que algum homem podia querer uma mercadoria em segunda mão? – Então, tu só o usaste? É isso que estás a dizer? – Não foi assim, Katy. Eu também me apaixonei por ele. Ele era tão bondoso, tão carinhoso, mas forte também. Se eu nunca tivesse sido violada e o tivesse conhecido primeiro e me apaixonasse por ele teria sido maravilhoso. Um sonho tornado realidade. Mas a violação estragou tudo. Por favor não fiques a pensar que eu usei o Albert. Apoiei-me nele, é verdade, porque não tinha mais ninguém, mas amava-o, e ainda o amo. Embora Katy se sentisse furiosa e magoada, conseguia ouvir a verdade nas palavras de Hilda. Mas não estava disposta a desculpá-la assim, sem mais. – Todas aquelas vezes em que te perguntei porque é que tinha cabelo ruivo e olhos verdes, quando tu, o pai e o Rob tinham olhos castanhos e cabelo escuro, podias ter-me contado a verdade. – Diz-me tu como é que se conta a uma filha que o pai dela não é o pai dela? Ou como se faz uma distinção entre um irmão e uma irmã? Não julgas que era como um punhal que eu trazia cravado no peito? Tu és filha do Albert em tudo o que importa. Ele mudou-te as fraldas, ajudou-te a dar os primeiros passos, ensinou-te a nadar e a andar de bicicleta, ajudou-te com os trabalhos de casa. Não me digas que não sabes que ele te adora; mostrou-o em todos os dias da vida dele. Muitas vezes sinto ciúmes por ele gostar mais de ti do que de mim. – Quem me dera poder sair desta casa e ir para longe de ti – rosnou Katy, e virou-se de costas no sofá para não ver Hilda. Ouvia a mãe chorar, mas não ia virar-se e pedir desculpa. Ao fim de algum tempo, Hilda levantou-se e foi para a cozinha. Katy puxou a cadeira de rodas para junto de si e içou-se para ela com a ajuda da canadiana. Depois, dirigiu-se para as escadas, saiu da cadeira de rodas e subiu as escadas apoiando-se no rabo. Bateu com a porta do quarto com força, fechou-a à chave e depois arrastou-se até à cama para chorar. Parecia a Katy que toda a sua vida era uma enorme mentira. Se o seu pai verdadeiro tivesse morrido na guerra e depois a sua mãe tivesse conhecido Albert e casado com ele, ela poderia suportar mais facilmente o fingimento de que Albert era o seu pai. Mas ser concebida numa violação! Como poderia alguma vez ultrapassar isso? E quem era esse homem sem nome que violara uma jovem e a abandonara num bosque? Que traços teria ela herdado dele? Como poderia alguma vez sentir-se completamente à vontade com Rob e com o pai, agora que era só meia-irmã e enteada? Esta notícia devastadora magoava-a imenso. Acreditara, depois de fugir de Reilly, que todos os seus problemas tinham acabado. Desejava agora que ele a tivesse matado. Nada podia ser tão mau como saber que o seu pai verdadeiro era um violador e a mãe uma mentirosa. Às cinco e meia, a mãe veio bater-lhe à porta do quarto e suplicar- lhe que descesse para jantar. – O teu pai vai chegar daqui a pouco e vai ficar muito preocupado por tu estares aqui fechada – disse ela. – Por favor, Katy. Lamento o que te contei, mas tu disseste que querias a verdade. Katy ignorou a mãe e pôs a almofada por cima da cabeça. Sentia- se demasiado deprimida para pensar em comer fosse o que fosse, e também não queria ver Albert. * Albert chegou a casa por volta das seis. Katy ouviu vozes abafadas, a voz de Hilda a tornar-se mais estridente enquanto contava ao marido o que tinha acontecido. Depois houve um silêncio. Katy perguntou-se se teriam saído. Normalmente, a casa não estava assim tão silenciosa. Mas então, pouco depois das sete, ouviu Albert subir as escadas. Os seus passos eram arrastados e cansados, o que indicou a Katy como ele se sentia perturbado. – Abre, Katy – disse ele firmemente à porta do quarto dela. – Tenho aqui chá e umas sanduíches para ti, e temos de conversar. – Vai-te embora, eu não quero falar contigo nem comer sanduíches! – berrou ela em resposta. – Se não abrires a porta e não te comportares como uma adulta, eu deito-a abaixo ao pontapé. Há dois lados em todas as histórias, e tu vais ouvir o meu, mesmo que tenha de te prender para te obrigar a ouvires-me. Só usava aquele tom alterado quando estava muito zangado. Katy sabia que tinha de abrir a porta, se não ele cumpriria a ameaça. Com relutância, foi a pé-coxinho até à porta, desandou a chave na fechadura e voltou a atirar-se para cima da cama. Albert fechou a porta atrás de si e puxou o banco do toucador de Katy para junto da cama para se sentar. – Em toda a nossa vida de casados, a Hilda sempre soube que um dia teria de te contar a verdade – disse, com o rosto tenso e uma expressão perturbada nos olhos. – Manter o segredo aferrolhado dentro dela tornou-a infeliz, mas achava impossível contar-te. Ter-te- ia contado eu próprio, mas não tinha esse direito. No entanto, visto que tu reagiste tão mal, vou contar-te o meu lado da história. – De que é que vocês os dois estavam à espera? Que eu dissesse ai que bom, que lindo ser filha de um violador? – Não sejas ridícula, Katy – disse ele num tom reprovador. – E se tentasses encarar o que aconteceu de um ponto de vista diferente... do da tua mãe? Katy cruzou os braços e fitou o teto com um ar de desafio. – A Hilda teve uma infância dura, infeliz. Suportou coisas que tu, com a tua infância privilegiada, nem sequer consegues imaginar. Por fim, a morte dos pais liberta-a, e vai trabalhar para uma fábrica em Southampton, e, pela primeira vez na sua vida, diverte-se com outras jovens que estão na mesma situação que ela. A guerra é uma ameaça, mas em finais de junho de 1940 não está ainda à nossa porta, e ela e as amigas vão a um baile em Aldershot. Quase todos os soldados que estavam lá nessa noite, eu incluído, foram retirados das praias em Dunquerque, e estão todos animados por causa disso. Lembro-me de avistar a Hilda quando ela entrou no salão de baile. Parecia um pouco assustada, mas estava muito bonita com o seu vestido cor-de-rosa e com o cabelo atado com uma fita da mesma cor. Pressenti que não estava habituada a bailes, que era tímida e que, provavelmente, estava a desejar não ter ido. Mas quando eu estava prestes a ir convidá-la para dançar, chamaram-me. Dois homens do meu regimento estavam a lutar lá fora, e, como cabo, eu tinha de resolver a questão antes que a polícia militar aparecesse. Katy fungou. Albert era tão razoável, sabia contar uma história tão bem que poderia modificar a opinião de qualquer pessoa. Ela estava decidida a não permitir que ele enfraquecesse a sua resolução. – Afinal, acabei por me ausentar por quase duas horas; um dos homens tinha ficado bastante ferido e tive de o levar de volta para a base. Quando voltei, já começava a ficar escuro, mas procurei a Hilda. Estava com um homem que eu conhecia bastante bem, o Roy, um bom tipo, e estava com os copos. Fiquei a saber que as amigas haviam trazido gin e tinham andado a deitá-lo na laranjada. Mas eu disse para comigo que perdera a minha oportunidade e que o Roy olhava por ela. Comecei a dançar com outra rapariga e passou-se algum tempo até eu reparar que o Roy estava sozinho e a Hilda tinha desaparecido. Por isso, fui lá fora procurá-la. – Então, porque é que tu achaste que tinhas de ser responsável por uma estranha? – Oh, Katy, tu mais do que ninguém sabes porque é que alguns de nós olham pelos mais fracos. Andavas sempre a fazê-lo na escola. Seja como for, eu não a vi em lado nenhum. Havia alguns pares na marmelada, mas nada de Hilda. É claro que eu ainda não sabia o nome dela nessa altura. Por isso, perguntei a um tipo que conhecia se tinha visto uma rapariga com um vestido cor-de-rosa e ele disse que ela tinha ido pelo caminho com um civil. Como eu não tinha visto nenhuns civis no salão, tive o pressentimento de que era melhor ir procurá-la. – Mas chegaste demasiado tarde, a coisa já estava feita. – Tragicamente, sim. Ela estava a várias centenas de metros de distância do salão de baile, no bosque, deitada por terra a chorar. O resto tu sabes. – É o resto que eu não compreendo. Entendo porque é que ela teve medo de ir à polícia; encaremos os factos, eles não têm grande compaixão pelas mulheres. E entendo porque a levaste a casa. Mas a mãe não é propriamente uma Miss Simpatia, porquê envolveres-te para sempre? Albert fitou-a demoradamente, com uma expressão dura e reprovadora. – Porque é que o Charles andou à tua procura? Só tinhas saído uma vez com ele – retorquiu. – O que é que havia de tão especial em ti? Katy sentiu-se envergonhada e não conseguiu responder. – A verdade é que me apaixonei pela Hilda naquela noite. OK, talvez fosse principalmente pena, mas não na totalidade. E outro sentimento suplantou isso. Encontrei-me com ela três vezes antes de ser enviado para o Norte de África; em cada encontro ficava com mais certeza de que ela era a tal. Obviamente, tinha de ser muito cuidadoso com ela, pois passara por algo terrível, mas ela era uma pessoa calorosa e divertida, e queria deixar para trás o que lhe tinha acontecido. Disse-lhe que a amava numa carta antes de partir de Inglaterra. «Quando ela descobriu que estava de esperanças, enviou-me uma carta a dizer que, embora gostasse de mim e apesar de se sentir em dívida para comigo pela minha bondade, não queria arruinar a minha vida. Fiquei chocado, mas de maneira nenhuma ia abandoná-la, e escrevi-lhe a dizer isso mesmo. «Ela foi muito corajosa durante toda a gravidez; as cartas dela para mim eram calorosas, não se queixava da sua situação e trabalhou até dois dias antes de tu nasceres. Teve de suportar os bombardeamentos de Southampton e depois de se mudar para um quartinho modesto quando tu nasceste, o único sítio que conseguiu arranjar. Não tinha dinheiro, as amigas do trabalho tinham desaparecido como fumo, mas, mal te teve nos braços, adorou-te. Ainda tenho as cartas que ela me escreveu na altura. Salientou que, embora gostasse de me ter na vida dela, não queria amarrar-me, e dizia que eu não lhe devia nada. Mas quando fui a casa de licença e voltei a vê-la, soube que queria casar com ela. Foi simplesmente amor, eu queria-vos a ambas, para sempre.» – Mas ela era tão insuportável! Já te esqueceste, pai, que disseste que a ias deixar? – Não, não me esqueci. Mas quase ter-te perdido alterou as coisas e fez-me compreender o que é importante e o que não é. Foi ter guardado o segredo que a azedou, que a tornou até um pouco louca. Consegues imaginar ter alguma coisa assim a roer-te por dentro? – Mais ou menos – concordou Katy, com relutância. – Eu devia ter sido o mais forte e ter-te contado a verdade há anos. Mas, Katy, quando é o momento certo para contar tais coisas? Uma criança que não sabe nada sobre sexo não compreenderia, e quanto mais velha fica tanto mais difícil se torna. Pensa na maneira como reagiste hoje. Quase morreste às mãos de um louco, e no entanto sentes-te horrorizada com isto e não consegues confiar nas duas pessoas que mais te amam. – De que é que estavas à espera? Que eu dissesse tudo bem, pai, tu não és o meu pai, o meu pai é um imundo de um pervertido que arruinou a vida da minha mãe. Eu devia ter-me abraçado à mãe e ter-lhe dito que não me importa que ela me tenha mentido durante vinte anos? Albert soltou um profundo suspiro de frustração. – Penso que devias considerar o que farias se o Reilly te tivesse violado e agora estivesses grávida. Sei que ele não o fez, e tu não estás grávida, mas, e se isso tivesse acontecido? É claro que a tua mãe e eu olharíamos por ti. Provavelmente, poderíamos arranjar-te um aborto numa clínica particular ou talvez sugerir a adoção. Mas é muito mais provável que te convencêssemos a ficar aqui para podermos criar o bebé juntos. Mas a Hilda não teve nenhuma dessas opções. Lá no fundo, talvez tenha pensado que só casei com ela porque tinha pena dela. Mas isso não é verdade. Eu amava-a, e continuo a amá-la. A porta do quarto abriu-se e ali estava Hilda. Era evidente pela sua expressão que ouvira o que o marido dissera. – Não bebeste o chá nem comeste as sanduíches, Katy. Se julgas que uma greve da fome me vai fazer sentir pior do que já sinto, estás enganada. Eu não poderia sentir-me pior. Mas não deites as culpas para o teu pai; tudo o que ele fez foi por amor. Só espero que um dia possamos estar na igreja a ver-te casar com um homem com as excelentes qualidades dele. Deu meia-volta e desceu as escadas. Katy sentiu-se como se tivesse acabado de apanhar uma bofetada. – Bem, Katy? – Albert sentou-se ao lado dela na cama. – Já desististe de me odiar? Katy baixou a cabeça. – Eu nunca poderia odiar-te. Como a mãe lembrou, tu foste o herói. E concordo que nunca haveria um momento para me contar isto em que não fosse doloroso. Eu quero que sejas o meu pai. – E sou, minha querida – disse ele, abraçando-a. – Em tudo o que importa. Deixa-me dizer-te uma coisa. No final da guerra, um número incontável de homens voltou para casa para dar com uma criança que não era sua. A vasta maioria aceitou essa criança. Sabiam que a guerra leva as pessoas a fazerem coisas extraordinárias; talvez alguns dos homens se tivessem virado para outra mulher enquanto estiveram fora, e soubessem como as suas mulheres deviam ter-se sentido sós e assustadas. Mas, acima de tudo, o fruto dessa união é inocente de tudo. Merece ser aceite e amado. Amei-te desde o primeiro momento em que te tive nos braços. Nada que alguma vez tenhas dito ou feito alterou isso. Só gostava de ter obrigado a Hilda a contar-te isto há anos, não só por ti, mas também por ela. Um enorme mal foi cometido contra ela naquela noite em Aldershot, e ela carrega com a culpa dentro de si há vinte e quatro anos. Sê uma pessoa generosa agora, Katy, e liberta-a dessa culpa. Katy ficou a soluçar nos braços do pai durante algum tempo. A fúria e a mágoa tinham desaparecido; não podiam subsistir quando estava nos braços de um homem maravilhoso como o seu pai. Por fim, endireitou-se, assoou-se e limpou os olhos. E a seguir comeu as sanduíches. Albert ergueu uma sobrancelha, interrogativo. – Não posso abordar a mãe de estômago vazio – disse ela. * Katy fez rolar a cadeira de rodas para a sala de estar, onde a mãe estava à espera. Com as cortinas corridas e o lume aceso, o ambiente era quente e acolhedor, como sempre. Içou-se da cadeira de rodas para o sofá, ao lado da mãe. – Desculpa, mãe, não merecias que eu fosse tão má contigo. Devia ter-me posto no teu lugar. Hilda dirigiu-lhe um sorriso débil e estendeu a sua mão pequena e magra para pegar na da filha. – Quando desapareceste, receei que te tivesse acontecido o mesmo, mas que ele te matasse a seguir. Fiquei paralisada com o medo. Não conseguia telefonar a ninguém ou visitar o teu pai, nem sequer conseguia comer. Sabia que devia parecer que não me importava, mas era exatamente o oposto. Por sorte, aquele monstro não te violou nem chegou a matar-te. Subitamente, eu consegui respirar de novo, e resolvi que tinha de te contar o meu passado. – Compreendo, mãe. – Katy deixou-se abraçar pela mãe. – Tens problemas em demonstrar afeto, não só por causa do que te aconteceu naquela noite em 1940, mas também por causa da tua infância. Mas eu também compreendo agora que o andares sempre a fazer bolos, a cozinhar refeições maravilhosas e a manter a casa impecável é a tua maneira de nos mostrares que nos amas. Podes relaxar um bocado agora, sentares-te a conversar, rir comigo e com o pai. Quando o Charles vier de visita, tenta sorrir mais. Hilda afastou o cabelo de Katy do rosto dela e sorriu. Desta vez, o sorriso iluminou-lhe os olhos. – Penso que finalmente compreendo a sorte que tive – admitiu. – Vamos deixar tudo isso para trás agora? Katy assentiu com a cabeça. Sentia que, se dissesse mais uma palavra, poderia desatar a chorar de novo. 21 – O Charles pode vir este fim de semana para os meus anos? – perguntou Katy à mãe na sexta-feira à tarde. – Eu disse que lhe telefonava se não pudesse. – É claro que pode, minha querida – disse Hilda com um sorriso. – Ele vai gostar, o tempo está a melhorar a cada dia que passa. A primavera chegou finalmente. Passara uma semana desde as perturbantes revelações familiares, e durante esse tempo Katy começara a ficar muito mais calma e a ter mais mobilidade, e as nódoas negras do rosto estavam finalmente a desaparecer. Somente no dia anterior Hilda a empurrara na cadeira de rodas até ao cabeleireiro para um corte de cabelo de que estava a precisar e para o lavar e secar. Tinham passado pela firma de advogados onde ela trabalhara e entraram por um momento para cumprimentar as pessoas. Katy gostou de ver os antigos colegas e teve convites para saídas à noite de algumas das mais novas. Ela riu-se e disse que não ia a lado nenhum enquanto não tirasse o gesso para poder voltar a dançar. Viu que a loja de Gloria fora vendida. Um cartaz na montra anunciava que tinha nova gerência e estava fechada para obras, mas as raparigas da firma de advogados disseram-lhe que haviam conhecido a nova proprietária. Era uma das fornecedoras de Gloria e tinha uma personalidade semelhante à dela. Mas a principal novidade durante a semana foi que Ed Reilly tinha finalmente confessado os seus crimes à polícia. Para além de atear o incêndio que causara a morte de Gloria e da sua filha e de tentar matar Edna, também confessou que tivera um relacionamento com Margaret Foster, que começou quando ela ainda vivia em Hampstead e foi retomado por um breve período quando ela se mudou para a vila perto de Eastbourne. No entanto, insistiu que não lhe fizera mal nem a raptara e aos filhos, e que não fazia ideia de onde ela se encontrava agora. Esta informação viera de Michael Bonham. Katy previa que a polícia a visitaria dentro de pouco tempo para atar quaisquer pontas soltas. Mas, por agora, sentia-se empolgada por Charles vir passar o fim de semana. – Vou fazer a cama no quarto de hóspedes, pôr uma botija de água quente e arejar o quarto – disse Hilda nessa noite. – Vai ser tão bom conhecê-lo finalmente em condições. – Mas não sejas muito insistente – avisou Katy. – Sei que gosto mesmo dele, mas só tivemos um encontro até agora. Por isso, não é um grande romance. Hilda sorriu, como se soubesse que não era assim. Estava uma pessoa diferente desde que revelara o seu segredo: bem-disposta, conversadora, sorridente e sem nenhuma das suas demonstrações de nervosismo anteriores ou incessantes limpezas. Houvera uns dias de chuva no princípio da semana, e ela e Katy tinham-se sentado na sala de estar a passar em revista umas fotografias da família numa velha caixa e a pô-las em álbuns. Olhar para as imagens da família quando ela e Rob eram pequenos trouxe-lhe muitas recordações felizes, e foi surpreendente ver que, antes de Hilda começar a ficar muito magra, era animada e bonita, tal como Albert dissera. – Tinhas cerca de doze anos quando eu comecei a ficar nervosa e a perder peso – admitiu Hilda. – Lembro-me de vestir um vestido de verão um dia e ficar chocada por me estar tão largo. Habituei-me a ter sempre um casaco de malha vestido, porque tinha os braços magrinhos, e nunca mais vesti um fato de banho. Sabes como o Albert andava sempre a insistir que eu fosse ao médico, mas quanto mais ele insistia tanto mais zangada eu ficava. Acho que tinha medo que o médico me fizesse perguntas. – Bem, até ao verão vamos engordar-te e vais vestir um fato de banho. – Katy pegou numa fotografia da sua mãe na água com os dois filhos. Estava magra, mas possuía umas formas lindas. Devia ter sido tirada no verão de 1946, porque Albert tinha sido desmobilizado e tirara a fotografia. – Podes voltar a ser assim! Hilda riu-se. – Oh, olha-me só para esse fato de banho horrível. Tinha uma data de folhos com elástico, e quando se entrava na água enfunava. Eu tinha de passar as mãos pelo corpo quando saía do mar. – Eu também tinha um assim – recordou-se Katy, e procurou entre as velhas fotografias até o encontrar. – Era de um vermelho-vivo e eu achava que era maravilhoso, muito melhor do que o que tive antes, que era de tricô. As fotografias a partir de 1953 mostravam o problema crescente de Hilda. Numa delas, tirada na festa de rua do Dia da Coroação, dava a impressão de que Hilda estava à beira das lágrimas. – Nessa altura havia uma senhora que vivia na rua, chamada Alice Manders – explicou Hilda. – Nesse dia estava sempre a comentar como tu e o Rob eram diferentes. Até chegou a insinuar que talvez eu tivesse sido «marota» durante a guerra. Estragou-me o dia todo, e eu comecei a ficar pior a partir dessa altura. – Encontrei-te a chorar na cozinha nessa noite – recordou Katy. – Tu disseste que te tinha entrado qualquer coisa para um olho. Eu sabia que não era verdade e pensei que estavas dececionada comigo por eu te ter deixado ficar mal ao ser gulosa e comer demasiados bolos. – Como podes sequer ter pensado isso? O racionamento do açúcar foi suspenso para o Dia da Coroação, e todas as mães estavam encantadas por ver os filhos a comerem o tipo de comida de festas que quase tínhamos esquecido que existia. Eu fiz cerca de duzentos queques para aquela festa, já para não mencionar dez taças de trifle. Era muito bom estar finalmente a forjar uma verdadeira relação com a sua mãe, a descobrir a sua faceta mais suave, mais simpática e – o que era ainda mais surpreendente – o seu sentido de humor. Ao levar Katy à rua na cadeira de rodas, Hilda correra enquanto a empurrava, e algumas vezes ameaçou-a a rir-se de largar a cadeira. As horas das refeições já não eram dominadas pela tensão, com a mãe a bater com os tachos. Antes, Katy raramente via televisão à noite com os pais, porque Hilda era como um censor, a reprovar tudo o que fosse um nadinha mais atrevido. Agora, ria-se das comédias, quase como se o seu sentido de humor, antes inexistente, tivesse finalmente voltado. Nem sequer hesitava perante piadas um pouco mais picantes. Contudo, embora fosse bom ter uma mãe muito mais simpática, Katy continuava a sentir-se triste por Albert não ser o seu pai biológico. Perguntava-se se deveria contar a Rob quando ele viesse a casa. Sentir-se-ia de forma diferente em relação a ela? Tinha a certeza que não, porque ele era sempre muito sensato, mas não deixava de se preocupar. É claro que era maravilhoso estar agora em casa, enquanto tinha ainda uma mobilidade reduzida. Mas o que queria realmente era voltar para Londres, estar na companhia de Jilly e, claro, passar mais tempo com Charles. Falava com Jilly ao telefone quase todas as noites. Ela andava agora com um sujeito chamado Guy, que trabalhava no jardim zoológico, e ansiava por ter um apartamento dela, principalmente porque, confessou, queria ir para a cama com Guy. Como o senhorio de Guy não permitia visitas femininas, não podiam ir para a casa dele. Jilly ia ter uns dias de folga e tencionava vir a Bexhill mais para o fim da próxima semana. Disse por piada que ia fazer com que Katy apanhasse uma piela, mesmo que ainda andasse de cadeira de rodas. Voltar a ver Charles era assustador. Realmente empolgante a certo nível, mas, como estar presa numa cadeira de rodas a fazia parecer um pouco patética e nada atraente, talvez quando ele a visse assim se desinteressasse. Tinham acontecido tantas coisas desde o encontro deles que ela nem podia ter a certeza do que sentia por ele. Era tudo um pouco como uma fantasia, como se Charles não fosse real. Confessara os seus receios a Jilly, mas a sua amiga limitara-se a rir. – Deixa-te de coisas, ele é giríssimo. E só te quer a ti. Talvez fosse verdade; Katy só podia ter esperança. * Charles chegou no sábado de manhã, com um enorme sorriso e um gigantesco ramo de flores primaveris. Albert abriu-lhe a porta e Katy aproximou-se da porta da sala de estar na cadeira de rodas para o cumprimentar. «A Jilly tinha razão», pensou. «Ele é lindo de morrer, e ainda bem que fui arranjar o cabelo e as nódoas negras já se desvaneceram.» Também não prejudicava nada o estar com um conjunto de camisola e casaco de malha cor-de-rosa que a mãe lhe comprara. Via-se obrigada a usar calças para esconder o gesso, mas pelo menos a parte superior do corpo parecia bem arranjada e atraente. – Olá, Charles – disse ela, e apresentou-o aos pais. Ele falara ao telefone com ambos, mas ainda não os conhecera pessoalmente. – Tenho um grande prazer em conhecê-los finalmente – disse ele enquanto dava um beijo à mãe de Katy e um aperto de mão ao seu pai. – Não há dúvida de que passaram por um verdadeiro inferno com isto tudo. – O horror desapareceu mal soubemos que a Katy estava viva – disse Albert. – Mas, pelo que deduzi, foi principalmente obra sua e da Jilly, não da polícia. – Não pensemos mais nisso – disse Katy. – Acho que já dissemos tudo o que havia a dizer sobre o assunto. Entra, Charles, e senta-te, deves estar cansado depois da longa viagem. – Sim, claro, Charles. Eu vou pôr as flores para a Katy numa jarra. Quer uma chávena de chá? – Gostaria muito, Mrs. Speed – disse ele. – Mas as flores são para a senhora. O presente da Katy ainda está no carro e vai ficar lá até amanhã. – Deu o ramo de flores a Hilda, que corou como uma colegial. Sentados na sala de estar, a tomar chá e a comer algumas das bolachas de manteiga feitas por Hilda, Katy só queria que os pais desaparecessem para ela poder beijar Charles. Adorava a maneira como ele olhava para a sua mãe, com os olhos a brilhar de interesse, a maneira como erguia os cantos dos lábios, como se a sorrir secretamente. Era inegavelmente uma pessoa com boas maneiras. Sem dúvida já devia estar a pensar como ia sobreviver a um fim de semana inteiro de conversas de circunstância. No entanto, parecia completamente empenhado na conversa. – Está um dia tão bonito, talvez devêssemos ir até lá fora? – sugeriu Katy nervosamente. – Quero dizer, se não te importares de empurrar a cadeira de rodas. – Importar-me? Adorava! – Pôs-se de pé de um salto. – O mar fica longe? – Nada longe. Mas não se esqueçam de voltar para o almoço à uma hora – disse Hilda. – Espero que não seja um grande almoço, Mrs. Speed, porque pensei levar a Katy a jantar fora hoje à noite... isto é, se não se importarem – disse ele. – Reservei mesa no Grey Goose, em Battle. É altamente recomendado. – E muito caro, também – disse Hilda, com uma ligeira ponta do seu tom reprovador do passado. – Mas dizem que a comida é maravilhosa. Charles ajudou Katy a vestir o casaco e a sentar-se na cadeira de rodas e sorriu agradecido a Albert quando ele abriu a porta da rua. A seguir, empurrou a cadeira para fora de casa e disse que estariam de volta à uma hora. Parou junto à cancela, a olhar para a casa ardida de Gloria. As madeiras queimadas e as paredes tinham sido demolidas, mas os escombros não foram retirados, e continuava a ser um espetáculo confrangedor. – O pior de tudo é que a casa ao lado, onde viviam Mr. e Mrs. Harding, também vai ser demolida – disse Katy. – Ficou demasiado danificada no interior para que eles pudessem voltar a viver nela. Mudaram para uma casa em Cooden Beach. É muito triste, porque eles eram quase como avós para o Rob e para mim. Mal eu volte a andar, tenho de ir visitá-los. – Já se sabe o que vão construir no terreno da casa? – perguntou Charles. – Corre o boato de que o promotor imobiliário quer construir uma enorme casa de quatro frentes. Alguns dos vizinhos já protestaram. Mas eu penso que é melhor ter uma casa grande e elegante do que um prédio de apartamentos ou coisa do género. – Há sempre quem proteste contra a mudança – disse Charles com um sorriso. – Não sei porque é que as pessoas não conseguem simplesmente aceitá-la. Em Londres, há imensos projetos a começar para renovar zonas afetadas pela guerra e degradadas. Acho isso empolgante. Mas muitas pessoas encaram-no como uma ameaça. – É melhor irmos indo – disse Katy. – Ou a minha mãe ainda vem com uma mantinha para me pôr nos joelhos. Faz isso... como se eu tivesse oitenta anos! Estava ameno ao sol, e mal chegaram à beira-mar, Charles procurou um abrigo contra o vento e empurrou a cadeira para ele. – Assim está melhor – disse ao sentar-se. – Agora posso olhar para ti. – Inclinou-se para a frente para a beijar demoradamente, e a sensação de efervescência que Katy sentira com o primeiro beijo voltou. – Não pensei em mais nada enquanto vinha para cá – disse ele. – Mal posso esperar pelo momento em que tires o gesso da perna e do braço para te levar para um sítio qualquer. Katy sentiu uma pontada de medo ao ouvir aquilo. Ele queria dizer que queria dormir com ela? Ainda não estava pronta para isso, e também não lhe agradava pensar que era só o que ele queria. – Tive notícias sobre o Reilly – disse ela, avançando para terreno mais seguro. Contou-lhe o que Michael Bonham lhe dissera. – Mas sinto-me um pouco confusa em relação à mulher do médico. Como é que ela entrou em cena? E onde está agora? – Falei com o detetive que interrogou o Reilly – disse Charles. – Parece que ele conhecia a Margaret Foster desde que fez uma pequena obra na casa dela em Hampstead. Isso foi há uns anos, e nessa altura ele teve um caso passageiro com ela. Ela contou-lhe na altura que o marido lhe batia, mas que não sabia como se afastar dele. O Reilly disse que gostava mesmo dela, mas que o que ela lhe contou o assustou: tinha dois filhos, o marido era um homem implacável e poderoso e, claro, ele próprio estava casado com a Deirdre. Por isso, disse à Margaret que, embora quisesse ajudá-la não podia, e pôs fim ao caso. – Muito galante! Charles sorriu em concordância. – Seja como for, o Reilly disse no depoimento dele que se passou mais um ano e meio até voltar a ver a Margaret, ainda em Londres, e ela confidenciou-lhe que estava prestes a deixar o marido, porque lhe tinham dado o contacto de duas senhoras que ajudavam mulheres vítimas de violência doméstica a começar uma nova vida. Disse-lhe os nomes delas e que viviam em Bexhill. O Reilly fingiu que ainda gostava dela e queria manter-se em contacto, porque suspeitava que essas mesmas duas senhoras poderiam ter ajudado a Deirdre a deixá-lo. Katy fez uma careta. – Que horror, servir-se de uma vítima para encontrar outra! – exclamou, indignada. – E a Margaret podia estar a assinar a sua sentença de morte. – Exatamente, mas o detetive não acredita que o Reilly tenha feito mal à Margaret. Na opinião dele, e eu sinto-me inclinado a concordar, o Reilly só a visitava para lhe sacar informações sobre a Gloria e a Edna. Quando a Margaret leu no jornal local que a Gloria tinha morrido num incêndio, ficou com medo e foi por isso que fugiu. – É estranho que não tenha dito aos pais onde está. – Tenho a certeza que vai dizer agora que a história sobre o Reilly já apareceu em todos os jornais nacionais. Foi avistada uma mulher que correspondia bastante à Margaret, também com duas crianças, no ferry do Canal da Mancha por volta da altura em que ela desapareceu de Eastbourne. – Esperemos que seja esse o caso, os pais dela devem estar doentes com a preocupação – disse Katy. – Não há dúvida de que ele era excelente a planear – disse Charles. – Disse que entrou às escondidas na casa da Gloria meses antes de atear o incêndio, à procura de informações sobre o paradeiro da Deirdre. Mas não encontrou nada. Passou muito tempo a vigiar e a seguir as duas senhoras, e foi a fúria que o levou a atear o incêndio. É claro que disse que julgava que a Gloria não estava em casa e vai declarar que não é culpado de homicídio. – Não me parece que nenhum júri acredite nisso – disse Katy. – Mas graças a Deus, ele foi apanhado antes de encontrar mais alguém no bloco da Edna. Achas que ele queria fazer isso? – Não sei. – Charles ficou com um ar pensativo. – Ele nunca o vai admitir, mesmo que fosse esse o seu plano. Se fosse eu a defendê- lo, e graças a Deus não sou, sugeriria que ele agiu num estado de desequilíbrio mental. Tenho de dizer que vai ser duro para ti quando tiveres de prestar depoimento em tribunal. – Não estou muito preocupada com isso. Quero dizer, não tenho nenhuns segredos obscuros a revelar quando for interrogada. Charles dirigiu-lhe um sorriso trocista. – É uma pena. Estava todo entusiasmado com a ideia de te interrogar hoje à tarde! Katy riu-se. – Falando mais a sério, eu concordo que ele estava desequilibrado; era quase como Jekyll e Hyde, Quando estava calmo, era realmente simpático, encantador até. Percebi como uma mulher poderia deixar-se levar por ele. Continuaram a passear ao longo da beira-mar e tomaram um café antes de voltarem para casa. – Ainda continuas a ter pesadelos? – perguntou Charles quando viraram para Collington Avenue. – Agora, só ocasionalmente – respondeu ela. – É bom estar de novo no meu velho quarto, pelo menos até ficar completamente bem. Depois, vou voltar para Londres; só consigo aguentar os cuidados da minha mãe até um certo ponto. Charles riu-se. – Consegui pressentir como ela pode ser intensa. – Há muito a contar-te sobre a minha família – disse ela, virando a cabeça para cima para olhar para ele. – Mas não tudo de uma só vez ou ainda desatas a correr para longe. – Eu não vou correr para lado nenhum, a não ser aqui – disse ele, e começou a correr enquanto empurrava a cadeira de rodas até Katy desatar aos gritinhos. * – Este bife está tão bom! – disse Katy, nessa noite, quando estavam no restaurante Grey Goose. Tinham ficado numa mesa ao canto junto à lareira, e, com a comida e o vinho deliciosos e Charles sentado em frente a ela, tão bonito, Katy sentia-se como se tivesse morrido e ido para o Céu. Não tinham tentado levar a cadeira de rodas; ela saltou a pé-coxinho apoiada a uma canadiana e com Charles a segurá-la do outro lado. – Então, conta-me lá o segredo de família – disse ele. – Senti que tinha acontecido algo importante na semana passada quando te telefonei. E a tua mãe também não me pareceu encaixar-se bem no que tanto tu como a Jilly me tinham dito sobre ela. – Não admira que te tenhas dedicado ao Direito – disse Katy. – Tens faro para os mistérios. Ora bem, se eu te contar, não te descaias com os meus pais, acho que isso ia perturbá-los muito. – Os meus lábios estão selados – disse ele, fazendo o gesto de correr um fecho. Katy contou a história de modo tão breve e sucinto quanto pôde. Charles pareceu chocado. – Isso deve ter sido horrível para ti, e ainda pior para a tua pobre mãe – disse ele, pousando a mão em cima da mão dela na mesa. – Lamento imenso. – Foi terrível quando ela me contou. Mas o meu pai fez-me ver como tinha sido para ela, e o mal que guardar tal coisa para si lhe tinha feito. – Tu és fantástica – disse ele com um sorriso. – Tanta compaixão, tanta sensatez também. É claro que o teu pai é um verdadeiro herói, e suspeito que muita da tua força vem dele. Acredito que não só herdamos coisas geneticamente, mas também por vivermos com alguém. – Sim, penso que isso é verdade. Sempre tive uma ligação forte com o meu pai. Sempre soube como ele reagiria às coisas. O que era importante para ele. – Acho que uma das coisas mais incríveis dele foi escrever à tua mãe a dizer-lhe que registasse o teu nascimento no nome dele. Ainda nem sequer te tinha visto; podia ter morrido no Norte de África, mas estava a pensar no futuro e a querer proteger-vos às duas, acontecesse o que acontecesse. É um homem muito nobre. – Disse-me que se apaixonou pela minha mãe na noite em que a encontrou no bosque. Acreditas que o amor pode acontecer assim, sem mais? – perguntou ela. – Sim, acredito. – Charles sorriu e estendeu a mão para passar um dedo pela face dela. – Soube que tu eras a tal no nosso primeiro encontro. – Não podias saber – disse ela, a duvidar. – Mas soube. Não consegui tirar-te da cabeça no dia seguinte. Queria muito ver-te naquele domingo, foi por isso que telefonei para a casa dos tios da Jilly. Depois de ficar a saber que saíras no sábado à noite e que havias desaparecido, apercebi-me de que não descansaria enquanto não te encontrasse. Tinha tanto medo que ele te matasse, mas agarrei-me à ideia de que ainda estavas viva. E a Jilly também, ela é uma ótima rapariga. – Ela também te acha bastante especial – admitiu Katy. – Não sei o que faria sem ela, uma amiga tão boa e fiel. Mal posso esperar que ela chegue na próxima semana. Sinto saudades dela. – E de mim, também vais sentir? – Tenho a certeza de que sabes perfeitamente que sim. – Parecias um pouco preocupada quando eu falei em te levar para algum sítio para estarmos sozinhos. Porquê? Katy corou. – Porque eu nunca fiz nada, sabes, com um homem. – Queres dizer que ainda és virgem e que tens um pouco de receio do que implica? Ou que és contra sexo antes do casamento? – És muito direto. É o primeiro. – Nunca te pressionarei para fazeres alguma coisa que não queiras realmente fazer – disse ele. – Mas acredito que chega um momento em que duas pessoas não conseguem resistir mais. Katy olhou para os seus meigos olhos castanhos e sentiu que estava quase a chegar a esse momento; só o gesso na perna a deteria. No regresso a casa, Charles estacionou na berma da estrada. – Só quero beijar-te – disse. – Sei que não vamos poder fazê-lo quando estivermos em tua casa. Ele beijava melhor do que qualquer outro homem que ela já tinha conhecido. Todo o seu corpo pedia mais, e quando Charles enfiou a mão na blusa dela e pôs a mão à volta do seu seio acariciando delicadamente o mamilo entre os dedos, ela quis estar num quarto de hotel com ele sem nada a detê-los. – Temos de ir para casa – disse ele ao fim de algum tempo. As janelas do carro estavam todas embaciadas, e Katy sentia o tornozelo a latejar por não poder estender a perna. – Se não formos agora, vais ouvir das boas amanhã de manhã. Eu vou ficar deitado naquele quarto de hóspedes hoje à noite a querer atrever-me a ir meter-me na tua cama à socapa. – Mas não vais fazer isso, pois não? A minha mãe tem ouvidos de tísica. – Não, não o vou fazer, mas vou imaginar o que te faria se lá estivesse. Katy gostaria de lhe pedir que lhe dissesse o que lhe faria, mas não tinha ainda a audácia suficiente para isso. * Charles partiu para Londres no domingo à noite, às oito horas. Tinha sido o melhor dia de anos de que Katy se lembrava. Ele comprara-lhe uma linda pulseira de prata, e dos pais recebeu uma gabardine branca que tinha admirado numa revista enquanto estava no hospital. Rob enviara-lhe um minúsculo ursinho de porcelana com uma canadiana. – Uma recordação – disse ela quando viu que Charles parecia perplexo. – Quando éramos pequenos gostávamos os dois de ursos de porcelana pequeninos, e costumávamos comprar um ao outro uns que fossem apropriados. Ele tinha sempre ursinhos com bolas de futebol ou bastões de críquete. Fico surpreendida por ele ter tirado tempo dos estudos para encontrar um urso com uma canadiana. Comeram rosbife com todos os acompanhamentos ao almoço e depois Charles e Albert levaram Katy a dar um passeio na cadeira de rodas. Quando voltaram, Hilda tinha posto na mesa o lanche de aniversário: salada de salmão, pãezinhos doces torrados, um bolo de anos com velas e trifle. – Já não comia um lanche destes há anos – disse Charles todo contente. – A minha avó costumava fazer aquilo a que eu chamava o Grande Chá. Sonhava com ele quando estava no colégio interno. Os da minha mãe eram uma pobreza, só pão com compota e um bolo simples. Albert acendeu as velas no bolo. – Não quero acreditar que já tens vinte e quatro anos – disse. – Parece que ainda ontem tinhas cinco e tinhas de te ajoelhar numa cadeira para soprar as velas. – Não te esqueças de pedir um desejo – exclamou Hilda quando Katy se preparava para soprar as velas. Katy não se ia esquecer de pedir um desejo. Queria casar com Charles, viver numa casinha no campo e ter quatro filhos. Mas perguntava-se se não seria um pedido algo excessivo. EPÍLOGO Tunbridge Wells, 1972 K aty entrou em casa depois de tirar a roupa do estendal, pousou o cesto no chão da cozinha e, com um grande suspiro, sentou-se numa cadeira. Era mais um dia muito quente de julho, e o nascimento do bebé estava previsto para daí a uma semana. O vestido de algodão cor- de-rosa, com um bordado de estilo cigano na frente, colava-se-lhe ao corpo com o calor. Abanou-se com um velho envelope numa das mãos, e com a outra acariciou a barriga. – Já não demora muito, meu pequenino – disse. – O papá chega a casa daqui a pouco e vamos todos sentar-nos à sombra no jardim a beber aquela limonada caseira que pus no frigorífico. – Falar sozinha é um sinal de loucura. Katy ergueu a cabeça e viu June Pettigrew na soleira da porta aberta. Sorria e tinha a mão pousada na sua barriga de grávida. O parto dela estava previsto para daí a um mês, e vivia com Katy e Charles, juntamente com os seus dois filhos, Matthew e Angela, desde que o marido a agredira severamente há uns três meses. – A câmara arranjou-me casa – disse June, cheia de júbilo. – Tenho de reconhecer, Katy, que tinhas razão quanto a insistir com as autoridades. Acho que estavam tão fartos de me ver lá na repartição que cederam. – Isso é uma maravilha! – exclamou Katy. – Como é a casa? Já a viste? – Fui logo lá. É encantadora: tem três quartos, jardim, e foi bem cuidada, havia lá um pintor a dar uns retoques enquanto lá estive. Nem queria acreditar que era tão boa, julguei que me iam dar um casebre. Katy explicou a June que ela poderia obter um subsídio da Segurança Social para comprar os bens essenciais, camas, um fogão e um frigorífico. Mas também tinha um contacto com um proprietário de uma loja de produtos em segunda mão que ajudava com peças de mobiliário as mulheres que se encontrassem em circunstâncias difíceis. June subitamente deu um salto para a frente e abraçou Katy. – O que é que eu teria feito sem ti e o Charles? – disse, os olhos a encherem-se com lágrimas de emoção. – Acolheram-nos quando mais precisávamos de um refúgio; deram-nos de comer e de vestir, aconselharam-me sobre os meus direitos, fizeram os meus filhos voltarem a sorrir. Deram-nos uma nova vida. Como posso alguma vez pagar-lhes? – Encontrares finalmente a felicidade é toda a recompensa que queremos – disse Katy. – Sabes os motivos por que ajudamos mulheres na tua situação? Embora estejamos prestes a ter um bebé nosso, esperamos poder continuar a ajudar pessoas. Por sorte, graças a pessoas como a Erin Pizzey e o seu refúgio em Chiswick para mulheres vítimas de violência doméstica e toda a publicidade que ela conseguiu obter para a causa, as pessoas estão a tornar-se muito mais conscientes do tipo de crueldade com que tu tiveste de viver. Mas agora que tens uma casa tua, é um começo novinho em folha. – E tenho de começar a fazer as malas. Vou buscar as chaves amanhã – disse June. – Os miúdos vão dormir em casa da Marlene. Marlene era outra das mulheres que tinham passado alguns meses com Charles e Katy, até arranjar uma casa camarária. Ainda ajudava Katy em Old Rectory, na limpeza e no tratamento das roupas, e acompanhava e dava conselhos às residentes mais recentes. Depois de June ter ido para o andar de cima, Katy sentou-se de novo e pensou em como a sua vida mudara desde o dia em que fizera vinte e quatro anos. Nessa altura, a sua maior preocupação era aguardar a remoção do gesso da perna e do braço e esperar que os pesadelos com Reilly desaparecessem em breve. Charles e Jilly foram os responsáveis pela sua recuperação. Telefonavam, mandavam-lhe cartas e iam a Bexhill visitá-la – eram os seus amigos e quem a reconfortava quando ela mais precisava. Jilly fazia-a rir, pintava-lhe as unhas, contava-lhe histórias sobre o que os seus amigos do jardim zoológico faziam. No entanto, foram os sentimentos maravilhosos que Charles evocava dentro dela que realmente fizeram afastar as trevas. A excitação de o ver, o mero toque da sua mão, os seus lábios nos dela faziam-na esquecer-se de ter medo. Em vez de ficar deitada na cama a recordar o que tinha passado na cave, dava consigo a só conseguir pensar em como seria maravilhoso passar uma noite inteira com Charles. No entanto, Charles nem queria ouvir falar do assunto até ela tirar o gesso e estar de volta ao trabalho em Londres. Dizia piadas sobre a mãe dela os apanhar em flagrante e pô-lo fora de casa. Mas no seu íntimo Katy sabia que ele precisava que ela tivesse a certeza absoluta de que era ele quem ela queria. Jilly arranjou um apartamento com dois quartos em Camden Town, barato mas bastante degradado, que pintaram e remodelaram, mas Katy não voltou para a firma Frey, Hurst e Herbert nos Inns of Court. Tanto ela como Charles pensavam que a sua relação poderia revelar-se problemática. Em vez disso, encontrou um emprego como secretária legal num escritório de advogados em Chancery Lane, a Whitehouse, Gibson e Alton. O principal obstáculo a superar em 1965 foi o julgamento de Edward Reilly. Os julgamentos de homicidas atraíam sempre bastante interesse, e os meios de comunicação eram vorazes. Felizmente, nunca chegaram a descobrir onde Katy e Jilly viviam ou onde ela trabalhava. Mas a pobre Hilda e o pobre Albert tiveram um bando de jornalistas à porta quando o julgamento começou. A afirmação de Reilly de que cometera os crimes sob o efeito de um desequilíbrio mental não foi aceite. O eminente psiquiatra que prestou depoimento deixou bem claro que Reilly sabia exatamente o que estava a fazer. Embora apresentasse circunstâncias atenuantes, já que a juventude de Reilly tinha sido arruinada pela crueldade da sua mãe e dos namorados dela, sustentou que Reilly era são de mente. Katy só esteve no banco das testemunhas durante uma hora, mas pareceu-lhe muito mais tempo. Detestou a maneira como Reilly nunca tirava os olhos dela e achou irritante que o advogado de defesa insistisse nos atos de bondade de Reilly, tais como trazer-lhe uma chaleira e um aquecedor. Chegou até a lembrar que ela usara a chaleira para queimar o rosto dele, chamando a atenção do júri para a marca ainda vermelha. Katy sentia vontade de gritar que ninguém naquela sala fazia a mínima ideia do que era estar prisioneira, ser espancada e passar fome. Nessas circunstâncias, alguém não usaria o único instrumento à mão para conseguir escapar? Contudo, por mais dolorosa que fosse a experiência, Charles lembrou-lhe que tinha a compreensão de todas as pessoas na sala, e o advogado de acusação disse que ela fora esperta e corajosa na maneira como vencera Reilly. Nunca houvera uma real expectativa de que Reilly fosse condenado à forca. O grupo de pressão antipena de morte já era demasiado poderoso e insistente nessa altura. De qualquer modo, como Katy sempre pensara que o enforcamento era uma barbaridade, quando soube que ele fora condenado a prisão perpétua sentiu-se vingada. Por fim, poderia seguir em frente e ser mais uma jovem a desfrutar da sua vida em Londres. Londres era um local excitante onde viver naquele verão de 1965. As saias ficavam mais curtas semana após semana, os homens andavam a deixar crescer o cabelo, e por toda a parte surgiam como cogumelos boutiques a vender roupas extravagantes. Havia discotecas e concertos de rock a que ir. Pela primeira vez na vida dela, estava realmente a viver, não a marcar passo como em Bexhill, com o baile de sábado à noite no De La Warr Pavilion a ser o momento alto da semana. Não passava todos os seus tempos livres com Charles, porque, frequentemente, ele tinha de tratar de casos noutras cidades e de se ausentar de Londres. Ele dizia que queria que Katy saísse e se divertisse, o que ela fazia, com colegas do trabalho e com Jilly e muitos dos seus novos amigos do jardim zoológico. Foi no feriado de agosto, quase seis meses depois de ela ter escapado a Reilly, que Charles lhe disse que a amava. Ele e Katy tinham ido de comboio a Southend passar o dia, juntamente com Jilly e o seu namorado, Guy. Estava um dia muito quente, e Katy trazia uns calções brancos curtos e um top branco bastante reduzido. Puseram-se na fila para andarem no Wild Mouse, uma montanha- russa aterradora, com carrinhos tão estreitos que as pessoas tinham de se sentar umas atrás das outras, não lado a lado. – Amo-te – disse ele quando estavam a entrar para os carrinhos, com Katy no lugar à frente do dele. Não era o momento adequado para fazer tal declaração, e embora ela estivesse ansiosa para lhe dizer que o amava há imenso tempo, não respondeu. – E também quero casar contigo – gritou ele quando a corrida começou. Os carrinhos seguiam a alta velocidade, virando tão rapidamente nas curvas que Katy desatava aos gritos, com medo de que estivessem a sair dos carris. Mas Charles estava inclinado para a frente, ela sentia o hálito quente dele no seu pescoço, e quando os carrinhos iniciaram a aterradora descida final, ele segredou-lhe ao ouvido. – Falo a sério, casas comigo? * Nesse verão, Katy já descobrira que Charles tinha várias facetas. Havia o advogado calmo e contido, o resultado de uma educação num colégio particular e de pais abastados; esse Charles usava fatos de Savile Row e comprava as camisas na Hawes & Curtis em Jermyn Street, falava com uma pronúncia cuidada e tinha modos impecáveis. No entanto, longe dos tribunais Charles gostava de usar calças de ganga Levi’s, botas e T-shirts. Ouvia música rock e gostava daquilo a que chamava «diversões foleiras», o que significava parques de diversões e corridas de cães. Foi também um dos primeiros advogados a deixar de usar o corte de cabelo tradicional, curto dos lados e atrás. Conseguia ser quezilento e teimoso e acreditava que tinha sempre razão. Mas também era terno, apaixonado e bondoso. Pedi-la em casamento na montanha-russa era típico do seu sentido de humor. Não era para ele um pedido de joelho por terra. Talvez tencionasse também tornar a vida de Katy uma corrida louca! Katy não acedeu imediatamente a casar com ele. Não porque tivesse dúvidas de que ele era o homem certo, mas porque ele ia levá-la para um hotel no campo perto de Tunbridge Wells no fim de semana seguinte. Já perdera a sua virgindade com Charles, no apartamento dele, duas semanas depois de voltar para Londres, mas aquele fim de semana em Tunbridge Wells iria ser uma primeira noite romântica que passariam juntos, e ela conseguira convencer o seu médico a receitar-lhe o novo método contracetivo, a pílula. Oficialmente, a pílula só devia ser receitada a mulheres casadas, mas ela convenceu o médico dizendo-lhe que estavam noivos. E ele concordou que era prudente tomar a pílula. Aquele fim de semana foi perfeito a muitos níveis. Era a primeira oportunidade de estarem completamente a sós, fizeram amor apaixonadamente, o tempo estava maravilhoso e o hotel era um encanto. Katy aceitou casar com ele na primeira noite, ao jantar. Enquanto passeavam pela bonita cidade de Tunbridge Wells no sábado de manhã à procura de um anel de noivado, ambos sentiram que aquele era o lugar onde gostariam de passar toda a sua vida de casados. Era fácil chegar a Londres de comboio e visitar a família dela em Bexhill e a dele no Hampshire. Charles comprou-lhe um anel de noivado com um lindo brilhante solitário. Decidiram que casariam na primavera seguinte. E que comprariam uma casa em Tunbridge Wells. Encontraram a casa na segunda vez que foram a Tunbridge Wells. Chamava-se Old Rectory e era uma casa antiga de tijolos vermelhos curtidos pelo tempo, grande e degradada, com um alpendre na frente e um enorme jardim desleixado. Tinha um aspeto ligeiramente neogótico, com janelas em arco e um par de pequenas torres engraçadas por cima dos quartos, de ambos os lados da casa. Como o seu interior se encontrava em mau estado, conseguiram comprá-la por apenas duas mil libras. Uma verdadeira pechincha. O casamento teve de ser adiado, e a maneira mais fácil e menos dispendiosa de fazer obras na casa seria deixar que alguns dos trabalhadores ficassem nela até terminarem o trabalho. Houve quem os aconselhasse a não o fazerem. De facto, resultou maravilhosamente, porque atraíram pessoas talentosas e sensíveis que não eram unicamente motivadas pelo dinheiro. A casa tornou- se uma espécie de comuna, com pessoas a virem e a irem, um lugar divertido cheio de riso e de música. Charles fixou o preço para cada trabalho, e Katy dirigia a casa. Os vizinhos referiam-se a eles como «hippies» ou «filhos das flores», e comentavam que dormiam todos em colchões no chão e acreditavam no amor livre, mas nem Charles nem Katy se importavam. «A paz e o amor» andavam no ar, e eles queriam aderir a esse movimento. Foi no início de 1968, quando as obras terminaram, que tanto Charles como Katy se aperceberam de que tinham de fazer alterações na sua vida. As pessoas estavam a começar a ficar dependentes deles, apareciam lá em casa a qualquer hora a pedir conselhos, uma refeição ou um lugar onde dormir. Não podiam continuar a ser responsáveis pelos outros. – Foi muito divertido, mas temos de ter um objetivo na nossa vida – disse Charles com firmeza. – Sempre dissemos que íamos ajudar mulheres a escaparem de casamentos violentos. Acredito que é isso que temos de fazer. Mas primeiro temos de casar; compramos mobília em condições e tornamo-nos respeitáveis. Katy riu-se imenso na parte de se tornarem «respeitáveis». No trabalho e em tribunal, Charles era-o sempre, e alguns dos vizinhos mais emproados deviam sentir-se perplexos por ver o homem de fato que saía da casa dos loucos todos os dias com uma pasta. Por sorte, naquela altura só tinham um hóspede, Tom; todos os outros tinham partido nos trilhos hippies para Marrocos, a Índia ou o Afeganistão. Charles explicou a situação a Tom e ele aceitou muito bem. – Foi o máximo – disse, bem-disposto. Tinha o cabelo pelos ombros e, no verão, usava só uns calções, nem sequer sapatos. Assentara tijolos, estucara paredes e tratara das canalizações, e vivera com eles quase um ano. – Mas todas as coisas boas têm um fim, e vocês precisam de um tempo a dois. Tom tinha razão, precisavam de facto de um tempo a dois. Ambos trabalhavam cinco dias por semana na cidade e os fins de semana eram sempre preenchidos com tarefas domésticas, cozinhar, organizar materiais de construção e escutar os problemas de outras pessoas. Ambos tiraram férias em março e passaram duas semanas inteiras a observar atentamente a casa, a elaborar listas do que ainda era necessário fazer, a anotar que peças de mobiliário e cortinas tinham de comprar, e passaram o resto do tempo na cama a fazer amor. Katy recordava-se de um dia estar sentada ao sol da primavera debaixo da cerejeira em flor, a olhar para a casa. Adoraram-na quando a compraram, mas durante todo aquele tempo tinha havido tantas pessoas por ali que acabaram por esquecer os seus atrativos. Viam-nos agora muito claramente: os encantadores tijolos antigos, as janelas fora do comum e as pequenas torres. – Está à espera de uma família – disse Katy. – Imagina um carrinho de bebé no alpendre com um bebé gordinho e moreno a mexer as pernas. E um rapazinho a trepar às árvores enquanto a sua irmã mais velha está no baloiço. – Então, três filhos, é isso? – Charles sorriu. – Porquê parar pelos três? – Vamos decidir isso mais tarde – disse ela. – E agora, quanto ao casamento? – Pensei que podíamos casar em junho – disse Charles. – Isso dá-nos tempo para pôr tudo em ordem aqui. O jardim é lindo no verão, podíamos fazer o copo-d’água aqui numa tenda alugada e casar na igreja local. Contratamos o catering. Era bom ouvir Charles fazer planos outra vez. Andava há algum tempo sem rumo. Jilly veio visitá-los num dia durante aquelas duas semanas, e ficou muito satisfeita por eles terem finalmente visto a luz. – Encheram a casa com pessoas divertidas, tivemos algumas festas memoráveis aqui, e momentos incríveis, mas agora chegou a hora de serem só os dois. Guy fora viver com ela no apartamento de Camden Town, e também eles andavam sempre a falar de casar, mas nunca passavam das palavras ao ato. – Quantas pessoas vão convidar para o casamento? – perguntou. – Vamos evitar convidar os hippies – disse Charles com um sorriso irónico. – Podiam não se ir embora a seguir. – Olhou para Katy com uma expressão interrogativa. – Vamos anunciar que será só a família e os amigos mais íntimos e alguns colegas de trabalho. Que te parece? – Ótimo – disse ela. – As tuas duas sobrinhas podem ser as meninas das alianças, são tão lindas. E a Jilly é dama de honor. E foi assim mesmo. Arrumaram a casa, compraram mobília, e o dia do casamento foi esplêndido. Katy usou um vestido comprido de cetim branco muito simples, e as meninas das alianças e Jilly vestiram de cor-de-rosa. Pat foi o padrinho de Charles, e Albert levou Katy ao altar. Até mesmo Edna veio de Broadstairs. No entanto, estarem os dois sozinhos numa grande casa não fazia o seu estilo. Por isso, pouco depois do casamento, Katy falou com a assistente social do hospital local e a mais duas assistentes sociais e disse-lhes que estava disposta a ajudar mulheres ansiosas por escaparem a situações de violência doméstica. Começou aos poucos – uma mulher com o seu bebé, que só ficou cinco noites e a seguir voltou para o marido –, mas depois foram duas, três e mais. Por vezes, tinham até oito mulheres, com cerca de dezasseis crianças ao todo. No Natal de 1968, só tiveram duas mães, Pat e Gwen, com cinco filhos entre as duas. Charles disse que a alegria daquelas crianças ao verem os presentes na meia e se divertirem, em segurança e descontraídas, longe dos seus pais violentos, compensava de longe a confusão e o ruído que causavam. Deu a Katy uma satisfação ainda maior ver que Pat e Gwen, duas mulheres ligadas apenas pela adversidade, se tornaram verdadeiras amigas e pouco depois foram viver juntas com os filhos. Tinha a estranha sensação de que Gloria estava a olhar lá do alto e a aplaudir. Katy deixou de trabalhar no início de 1969, quando o número de mulheres a procurarem refúgio começou a aumentar. Muitas dessas mulheres tinham sofrido maus tratos graves, e, por muito que quisessem ter uma casa segura, até mesmo só um quarto, necessitavam de ajuda e de cuidados até serem capazes de viver sozinhas. Por vezes, chegava a haver dez crianças em colchões num quarto, e as mães apinhadas como sardinhas noutros quartos. Katy ia a vendas de caridade ou pedia a grupos de mulheres, como o Women’s Institute ou Mother’s Union que doassem roupas de criança e de mulher, já que era frequente as vítimas fugirem de casa sem nada a não ser a roupa do corpo. Tornou-se perita em convencer merceeiros e padeiros a darem-lhe os produtos que restavam ao fim do dia. Falando com algumas das senhoras mais abastadas de Tunbridge Wells, persuadiu-as a organizar lanches para angariar fundos para a causa. Charles, entretanto, dava aconselhamento legal gratuito às mulheres que precisavam dele, por vezes reclamando a casa da família para elas ou garantindo que os maridos eram acusados de agressão física. Frequentemente, havia pessoas que diziam não compreender como Katy e Charles podiam permitir que a sua casa fosse ocupada por outros – querendo dizer, por outras palavras, por mulheres de meios bastante menos sofisticados. Ocasionalmente, Katy olhava para Charles e desejava que ele dissesse que já era tempo de pararem, que já tinham feito a sua parte. Mas ele não o diria, porque, tal como ela, sentia que deviam prosseguir. Eram a única rede de segurança daquelas mulheres. Havia alguns albergues a abrirem nessa altura, mas Katy ouvira dizer que eram lugares horrendos, onde as mulheres se viravam umas contra as outras. As crianças já tinham passado por muito; talvez Old Rectory estivesse sobrelotada, mas era um verdadeiro lar, e as crianças aprendiam depressa a tratá-lo com respeito. Katy descobriu que também tinha as suas recompensas: dar apoio a mulheres como June, que, por seu turno, ajudava outras como em tempos fora ela própria ajudada; ver mães assustadas finalmente terem um lugar seguro onde viver; saber que tinham mostrado às crianças que a violência doméstica é sempre errada, e que elas não eram responsáveis de algum modo pelas coisas más. E então, pouco antes do Natal de 1971, Katy descobriu que estava grávida. Sonhara com isso, ansiara por isso, e começara até a pensar que o seu papel na vida seria tornar-se uma espécie de tia de todos para sempre. – As coisas podem ser ainda melhores? – disse ela a Charles na mesma noite em que lhe contou, quando estavam a ir para a cama. – Sim, e serão, quando tivermos enchido esta casa com crianças – disse Charles, a rir-se. * Agora, enquanto Katy estava sentada na cozinha a acariciar a barriga de grávida e a pensar no passado, perguntou-se se Hilda se sentira como ela hoje, quando estava quase a dar à luz. Estranhamente, apesar de toda a rabugice de Hilda, ela mostrara- se notavelmente entusiástica quanto ao plano de Charles e Katy abrirem a sua casa a vítimas de violência doméstica. Vinha com frequência visitá-los e ficava cerca de uma semana; ensinava as crianças mais velhas a fazerem bolos, a limparem tudo o que estava à vista e a polirem as vidraças até ficarem a brilhar. Mas a coisa mais inesperada era vê-la com bebés pequenos. Adorava-os, e era capaz de embalar um horas a fio, se tivesse essa oportunidade. Essa era a razão por que Katy queria saber como Hilda se sentira quando estava quase a dar à luz. Sentiu-se impelida a telefonar-lhe para lhe fazer a pergunta. Nunca tinham falado sobre o nascimento de Katy; o de Rob fora mencionado, mas o dela não. – Olá, minha querida – disse Hilda. – Não é costume telefonares- me a meio da tarde. Estás com dores? – Não, mãe, estava só aqui na cozinha a passar a mão na barriga e a falar com o bebé, e pensei se tu terias feito isso quando estavas grávida de mim. – É claro que fiz – respondeu ela, sem parar para pensar. – Costumava dizer-te como estava o tempo, o que ia comer ao lanche. Tudo. – Então, não sentias ressentimento contra mim? – É claro que não. Para ser franca, nas últimas semanas da gravidez senti-me numa espécie de bolha. Estava feliz, nada de fora me afetava. Tinha as cartas do Albert; ele dizia-me todas as coisas que íamos fazer juntos quando voltasse. Costumava sonhar acordada com nós os dois a passearmos-te no teu carrinho no parque. As coisas podem ter começado mal, minha querida, mas quando te senti a mexeres-te dentro de mim, soube que ia adorar-te. Era tudo o que Katy queria ouvir. Charles tivera razão. Não importava quem o seu pai biológico era. Depois de desligar, continuou sentada. A cozinha estava fresca naquele tempo quente; era maravilhoso andar na tijoleira quando fazia calor, mesmo que fosse o diabo encerá-la. De repente, inundou-a uma enorme sensação de calma, uma sensação de que tudo estava bem agora no seu mundo. Ainda olhava para os vizinhos das janelas do andar de cima e pensava como seria a vida deles. Por vezes, Charles chamava-lhe a Katy do Buraco da Fechadura, uma personagem de uma banda desenhada. De facto, ela não era realmente bisbilhoteira, só queria assegurar-se de que as famílias na sua rua tinham vidas felizes. Ela e Charles continuariam a receber mulheres vítimas de violência doméstica e os seus filhos em Old Rectory. Talvez só recebessem uma ou duas de cada vez, não as hostes do passado. Ela convidaria a mãe e o pai para a visitarem com frequência – queria que se tornassem próximos do bebé. Já nem sequer pensava em Ed Reilly. Pusera de lado toda aquela triste saga quando ele fora para a prisão. Mas tinha tido sorte, como a sua mãe. Ambas tinham encontrado homens bons que não queriam mandar nelas, que as tratavam como iguais. Acariciou mais uma vez a barriga. – Se fores menina, assegura-te de que escolhes um homem como o teu pai – disse. – E se fores menino, vou ensinar-te a ser um marido perfeito. AGRADECIMENTOS Os meus agradecimentos a Louise Moore e Yasmin Morrissey, da Penguin Books, por toda a vossa ajuda, todo o vosso apoio e, acima de tudo, pelo vosso entusiasmo sem limites. Não poderia ter escrito este livro sem as duas.