Temas Avancados de Criminologia I 19
Temas Avancados de Criminologia I 19
Temas Avancados de Criminologia I 19
CRIMINOLOGIA
SUMÁRIO
1. SISTEMA PENAL E CONTROLE SOCIAL. POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA
BRASILEIRA 3
2. O ENCARCERAMENTO NO BRASIL: DADOS E PERSPECTIVAS...........................................16
3. PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO. CRIMINALIZAÇÃO PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA.............16
4. POLÍCIA E SISTEMA PENAL. POLICIZAÇÃO E MILITARIZAÇÃO..........................................17
5. PRISIONIZAÇÃO E RELAÇÕES DE PODER PENITENCIÁRIAS..............................................26
3
ATUALIZADO EM 16/10/202012
Após essa curta revisão dos principais conceitos de criminologia, vamos avançar a alguns temas
isolados e especializados de criminologia que surgiram em concursos recentes (Defensoria Pública da
Bahia, Defensoria Pública do Espírito Santo, Defensoria Pública do Paraná, etc.). Portanto, apenas
prossiga na leitura dos tópicos do item 6 no caso da sua pretensão ser um concurso público em que a
matéria de criminologia – sobretudo crítica – seja cobrada de forma aprofundada, especificamente
Defensorias Públicas Estaduais.
Trata-se da perspectiva criminológica crítica do sistema penal. Portanto, todos os tópicos do edital
estão relacionados, de alguma forma, com uma visão alinhada à Defensoria Pública e o funcionamento
do sistema criminal. A leitura desses tópicos necessariamente passa por uma perspectiva crítica do
sistema penal que questiona os elevados índices de encarceramento, a seletividade do sistema penal
para o aprisionamento de pobres, pretos e pardos, a segregação social, toda a desconstrução do
discurso de “utilidade” do direito penal como algo útil à proteção dos bens jurídicos e etc.
O primeiro tópico, de fato, é a política criminal e penitenciária no Brasil. Poucos conhecem mas o
órgão responsável por definir essa política no Brasil é o Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária (CNPCP), vinculado ao Ministério da Justiça. E essa política existe, formalmente! O
documento é muito importante.
1
___________________________
As FUCS são constantemente atualizadas e aperfeiçoadas pela nossa equipe. Por isso, mantemos um canal aberto de diálogo
([email protected]) com os alunos da #famíliaciclos, onde críticas, sugestões e equívocos, porventura
identificados no material, são muito bem-vindos. Obs1. Solicitamos que o e-mail enviado contenha o título do material e o
número da página para melhor identificação do assunto tratado. Obs2. O canal não se destina a tirar dúvidas jurídicas acerca
do conteúdo abordado nos materiais, mas tão somente para que o aluno reporte à equipe quaisquer dos eventos
anteriormente citados.
2
Atenção: este material é produzido a partir de textos autorais, compilações e transcrições. O objetivo não é esgotar o tema
de criminologia. É o de facilitar o estudo desta matéria, principalmente para quem é iniciante no tema e tem dificuldade em
certos conceitos ou construções. Este material deve ser desconstruído e reconstruído, como tudo que a criminologia gosta de
fazer. Provavelmente você só entenderá essa “piadinha” no final dos seus estudos criminológicos. Além disso, em alguns
tópicos, explorou-se a visão tradicional sobre o tema, tendo o cuidado de sempre apresentar abordagens críticas em seguida,
sobretudo em atenção aos alunos Ciclos que irão prestar concurso para Defensoria Pública.
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Como justificativa para as várias medidas que são propostas no âmbito da prevenção, encontram-
se o compromisso com a diminuição do sentimento e da percepção de impunidade perante a sociedade,
além da atenção para o sofisticado nível alcançado pelos agentes criminosos quanto à ocultação do
produto financeiro de seus crimes.
Enfim, propõe-se que a diretriz geral da política criminal tenha como foco a criminalidade violenta,
o tráfico ilícito de entorpecentes, o crime organizado e a corrupção, mediante a adoção de diretrizes,
estratégias e ações com a finalidade de reduzir os índices de violência, ampliar a sensação de segurança,
diminuir a impunidade e difundir a cultura da paz.
2) diretrizes e medidas logo após o crime e investigação eficiente nos inquéritos - palavras-
chave: “repressão/investigação”:
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Para saber mais, acesse:
https://www.tjsc.jus.br/documents/66294/2623449/Plano+Nacional+de+Pol%C3%ADtica+Criminal/
d69101db-bc34-1568-d555-b51f023bc22d
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Enquanto a prevenção não alcança os níveis desejados, não se pode prescindir da repressão, que
ainda possui papel de relevo nas políticas de segurança pública e de justiça criminal no País.
Conclui-se que grande parte do insucesso da repressão aos crimes no Brasil decorre da baixa
interação entre os órgãos que integram o tripé do sistema repressivo: a Polícia Judiciária, o Ministério
Público e o Poder Judiciário.
Assim, sugere-se, entre outras medidas, maximizar a interação e integração dos órgãos e atores do
Sistema de Segurança e Justiça, a capacitação dos atores responsáveis pela repressão, a qualificação e
aparelhamento dos órgãos do Sistema de Segurança e Justiça, a melhoria dos sistemas de informações
criminais e o aperfeiçoamento na gestão de bloqueio e de confisco de bens e valores apreendidos. Pari
passu, medidas eficientes para venda ou destinação, visando dar maior eficiência e racionalidade na
gestão desses bens apreendidos ou confiscados, são necessárias. O próprio Judiciário pode fazer a
destinação dos bens, já que é capilarizado por todo o Brasil, basta criar os incentivos corretos e facilitar
a forma de destinação dos bens na fase judicial.
Com base em números obtidos em diversas pesquisas realizadas no País, demonstra-se não só a
recente escalada da criminalidade, como a baixa taxa de resolutividade, que em 2017 ficou abaixo de 5%
em algumas unidades da federação.
malogro da atividade delituosa, adicional ao debate, será exposto neste Plano – e o aprimoramento das
polícias técnico-científicas, com adoção da denominada cadeia de custódia como medida a aumentar a
credibilidade e segurança da prova pericial produzida. A Polícia Federal já tem o protocolo sobre a
cadeia de custódia, padronizar para as demais polícias se faz premente.
Neste capítulo consigna-se que o Código de Processo Penal, nada obstante as inúmeras alterações
que sofreu em seus quase oitenta anos de existência, não mais atende às necessidades atuais,
promovendo a percepção generalizada de que a ação penal nunca termina.
Como exemplo, a constatação de que nenhum ato praticado no sistema criminal brasileiro é
efetivo, terminativo ou conclusivo, desde o âmbito policial até chegar ao Ministério Público e ao
Judiciário. Todos os atos e os respectivos autores ficam sujeitos à imediata revisão por parte de outro
órgão, o que configura ambiente de desconfiança contra e entre os atores do sistema.
Para adequação do arcabouço processual penal à dinâmica dos tempos atuais, propõe-se: adoção
de soluções negociadas (acordo de não persecução penal e o acordo penal), execução provisória da
condenação criminal após julgamento em segunda instância, efetividade do Tribunal do Júri
(cumprimento imediato da pena imposta pelo júri popular) e expansão do processo eletrônico e de
videoconferência, podendo esta ser adotada, a princípio, como regra quando necessária a manifestação
de pessoa presa.
Também faz parte do trabalho proposta de revisão dos parâmetros para progressão de regime,
ante a incompreensão social de que as penas não são efetivamente cumpridas, quadro agravado ainda
mais pela mescla de regras de minimização dos efeitos punitivos, por exemplo: saídas, remição,
livramento e indulto.
Partindo da premissa da falência dos critérios atuais para progressão de regime, propõese sua
reconfiguração, com ênfase na individualização da pena. O mero critério objetivo do decurso de tempo
deve ser substituído pela consideração individualizada da autodisciplina, senso de responsabilidade e
vontade de cada preso.
Nesse contexto, considera-se o fim do regime semiaberto como etapa do sistema progressivo. Em
princípio, os regimes seriam apenas dois: aberto e fechado, com suas nuances e microssistemas
próprios, sendo o regime aberto a ser executado sob monitoramento eletrônico, com condições
obrigatórias e facultativas a serem definidas pelo juízo da execução, em razão da natureza do delito e
das demais condições do art. 59 do Código Penal (BRASIL, 1940).
Após invocarem conclusões de estudos sobre os custos de oportunidade para a prática de crimes e
a fragilização na sociedade brasileira das travas morais (formação familiar, escolar e religiosa), conclui-se
que o sistema criminal deve colaborar para que o preso e o egresso recuperem o rumo ligado às
referidas travas morais, variáveis dissuasórias da criminalidade.
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Nesse contexto, sugere-se, entre outras medidas: incluir no Sistema Nacional de Informações
Penitenciárias (SISDEPEN) dados e informações sobre egressos do sistema prisional; criar o observatório
do egresso, com o objetivo de monitoramento de ações voltadas para a reintegração em cada órgão de
execução penal; criar mecanismos de incentivo aos municípios para estruturação de programas e
projetos voltados para o egresso.
Mesmo sendo o foco desta parte a reintegração, importantes aspectos foram salientados para que
se possa pensar também nas vítimas afetadas, direta ou indiretamente, pelo agente criminoso. Neste
sentido, concomitante com a questão do egresso, é preciso pensar e executar uma política institucional
que atenda aos direitos e interesses das vítimas de crimes e atos infracionais.
https://bibliotecadigital.mdh.gov.br/jspui/handle/192/89
O documento é grande (116 páginas), mas a leitura não é demorada, sobretudo porque possui
diversos gráficos, tabelas e outras informações visuais. Para agilizar ainda mais o estudo, é fundamental
conhecer o panorama nacional e o local em relação ao quadro de encarceramento.
Assim, poderá utilizar não só em uma eventual questão de criminologia, mas também em
questões de direitos humanos e outras disciplinas similares.
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Um dos temas que tem ganhado força no debate criminológico é a desmilitarização da polícia.
Colocaremos a seguir alguns pontos primordiais para entender do que trata esse tema e sobretudo a
desmilitarização da polícia. É um tema complexo no aspecto político, sobretudo, mas relacionado muito
com o histórico de violência policial, a mortalidade em razão de ações policiais, o uso de “atos de
resistência” para mascarar práticas de violência policial entre outros.
mais recentes movimentos de reforma da instituição, argumenta-se que existe uma ameaça à
remilitarização, manifesta no aumento da demanda repressiva. A pesquisa leva à afirmação do
momento presente como crítico para a mudança e à defesa de um ideal de polícia cidadã. Palavras-
chave: Polícia Militar. Militarização. Segurança pública. Democracia. Violência.
Introdução
Segurança pública, em definição dada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, é “uma
atividade pertinente aos órgãos estatais e à comunidade como um todo, realizada com o fito de
proteger a cidadania, prevenindo e controlando manifestações da criminalidade e da violência, efetivas
ou potenciais, garantindo o exercício pleno da cidadania nos limites da lei”. A polícia é o personagem
mais emblemático, sendo em nosso país relevante o papel das Polícias Militares dos Estados. A
instituição, entretanto, muitas vezes deixa de prezar pela proteção à cidadania, já que sua evolução
histórica deu origem a uma cultura organizacional militarizada, voltada para a rigidez castrense e para o
combate ao inimigo.
A polícia, exercendo o monopólio da força em nome do Estado, tem a função de controle social,
em especial das classes consideradas perigosas – se presume que as classes superiores devem ser
protegidas e não policiadas – servindo à preservação da ordem social vigente. Os “inimigos” são
fabricados segundo as conveniências do poder e introduzem a dinâmica da guerra no Estado de Direito
(ZAFFARONI, 2007). O inimigo mudou ao longo do tempo: dos vadios aos subversivos. Nas últimas
décadas, são perseguidos os jovens dos bairros precários, os favelados, estereotipados como
potencialmente criminosos. Com o fim da ditadura militar, o modelo de segurança pública baseado na
repressão proveniente da ditadura perdeu seu sentido, mas como não houve mudança substancial na
cultura policial – tampouco na própria Constituição –, permanece a mentalidade belicista.
O discurso da insegurança atinge a opinião pública e contribui para a perpetuação do modelo
inadequado à democracia. É vendida a ilusão de que apenas o aumento da repressão policial é capaz de
aumentar a segurança urbana contra o delito comum, ideia que legitima todo gênero de violência. A
segurança pública no Brasil, é inegável, está em crise com o esgotamento do modelo em curso. Hoje
começa a ser esboçada no Brasil a ideia de uma polícia cidadã, mas aos movimentos democratizantes se
contrapõe uma tendência fortemente autoritária que possui um discurso legitimante que ameaça os
que preconizam qualquer mudança.
Os últimos eventos demonstram que o Brasil aderiu, a partir do Governo Federal, a uma
remilitarização da segurança pública em plena democracia. A ocupação militarizada das favelas se
justifica com o discurso de acabar com o tráfico e trazer a paz para os morros, mas esconde seu objetivo
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maior de abrir caminho para os grandes negócios e grandes eventos. As vítimas de tudo isso
permanecem sendo os socialmente vulneráveis. Estamos às vésperas da realização de uma Copa do
Mundo no Brasil e essa é a mais nova desculpa para reforçar a militarização da segurança pública e o
aprisionamento em massa dos pobres através de medidas nitidamente higienistas: os mendigos, os
meninos de rua, os vendedores ambulantes, os usuários de drogas, as ocupações urbanas etc.
Incomodam.
Neste momento, o poder público mais que nunca serve a interesses privados e surgem nas cidades
que sediarão jogos verdadeiras zonas de exceção. Essas são as questões que inspiram este trabalho.
Discutiremos a herança autoritária da segurança pública no Brasil e o modelo adotado durante a
ditadura militar, quando se consolidou a concepção de repressão como sinônimo de segurança.
Argumentaremos que esse modelo impede a consolidação da democracia e atenta contra os Direitos
Humanos. Por fim, apresentaremos o ideal de democratização das polícias, ao qual se contrapõem,
perigosamente, novas forças militarizantes.
(…)
A herança da ditatura e a transição democrática inacabada
O Brasil, desde sempre, contou com forças de segurança pública militarizadas, concebidas como
instrumento para a proteção do Estado e das classes dominantes e desde o início da República, as
Forças Públicas eram consideradas “pequenos exércitos estaduais”. Mas até a ditadura militar (1964-
1985), as Polícias Militares, a não ser quando empregadas a serviço da razão de Estado, eram
marcadamente aquarteladas e acentuadamente ociosas (SILVA, 2003) e se empenhavam, sobretudo, na
vigilância de “pontos sensíveis” como estações, torres de transmissão de energia, instalações de
tratamento de água etc.
Durante o regime militar, esse papel foi alterado, concomitantemente a um processo de
centralização do controle das PMs e intensificação da militarização. A ditadura é a origem mais próxima
da concepção de segurança pública hoje existente no Brasil, já que no período se deu a “construção de
um novo modelo teórico para as polícias de segurança que se caracteriza pela submissão aos preceitos
da guerra e que consiste na implantação de uma ideologia militar para a polícia” (CERQUEIRA, 1996:
142). A própria implantação da ditadura, quando do golpe que derrubou o presidente João Goulart, em
31 de março de 1964, contou com participação de Polícias Militares, que posteriormente seriam
instrumentos essenciais ao regime.
Algumas características as tornavam aptas na ação urbana em favor do regime de exceção e
justificam as transformações de suas atribuições e o aumento de sua importância durante a ditadura:
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seu contingente era maior do que o das Forças Armadas, seu armamento era adequado à repressão das
perturbações da ordem e a sua atuação permitia o controle próximo das forças de oposição. O regime
tinha como base teórica a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que “partia do pressuposto da divisão
do mundo em dois blocos adversários – comunista e capitalista –, considerando o dissidente como
inimigo interno” (CERQUEIRA, 1996: 163). Os princípios da DSN foram formalizados pela Lei de
Segurança Nacional (Decreto-Lei n. 314, de 13 de Março de 1967), que, atrelando o conceito de
segurança pública ao de segurança interna, declarou guerra aos inimigos do regime, fazendo com que as
polícias, controladas pelo governo Federal, fossem usadas para todas as atitudes repressivas e
antidemocráticas impostas pelo governo.
A Constituição de 1967, posteriormente alterada pelos Atos Institucionais, previa que as Polícias
Militares eram “instituídas para a manutenção da ordem e segurança interna”, atribuindo a elas, pela
primeira vez, uma identidade propriamente policial, com a competência pelo “policiamento ostensivo
fardado”. Também em 1967, o Decreto-Lei n. 317 (“Lei Orgânica da Polícia”) criou a Inspetoria Geral das
Polícias Militares (IGPM), órgão do Estado-Maior do Exército com competência para dirigir diretamente
as Polícias Militares, de forma a efetivar o controle da União sobre elas – uma vez que era uma ameaça
à União a existência de “pequenos exércitos estaduais”. O controle exercido pela IGPM constituiu, na
prática, numa inegável subordinação das polícias. Nessa época, aos governadores dos Estados não cabia
definir suas políticas de segurança, pois era uma questão nacional. Essa subordinação implicou que os
órgãos de informações das Polícias Militares passassem a atuar seguindo orientação dos órgãos de
informações do Exército, estes obviamente mais preocupados com as questões da ordem interna do que
com assuntos policiais.
Somente em 1982 a IGPM elaborou o Manual Básico de Policiamento Ostensivo, sendo o
treinamento conferido aos policiais militares até então baseado em manuais do Exército. Os Atos
Institucionais decretados durante o regime conferiram amplos poderes aos militares, legitimando suas
ações contrárias à própria Constituição de 1967. O Ato Institucional n. 1 criou os Inquéritos Policiais
Militares, de forma a autorizar e reforçar os arbítrios cometidos pela polícia. O Ato Institucional n. 5
suspendeu as garantias constitucionais, consolidando o Estado policial, fundado na Doutrina de
Segurança Nacional e consequente guerra contra a subversão interna. A Emenda Constitucional n. 1 de
17 de outubro de 1969 suprimiu a expressão “segurança interna” das atribuições da Polícia Militar.
No mesmo ano, o Decreto-Lei n. 667 – que ainda está em vigor – mais uma vez reorganizou as
Polícias Militares, atualizando suas missões com conceitos e definições mais adequados ao preconizado
na Doutrina de Segurança Nacional. Este Decreto-Lei estabeleceu de forma clara a exclusividade das
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atribuindo a primeira às Forças Armadas e a segunda às polícias, o que foi um avanço com relação à
Carta anterior. Embora a atual Constituição tenha avançado em alguns aspectos do tratamento
conferido à segurança pública, é significativa sua insistência em manter os dispositivos sobre as
instituições policiais dentro do título “Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”, onde também
se trata de Estado de Defesa, o Estado de Sítio e Forças Armadas. Além disso, as PMs e os Corpos de
Bombeiros Militares foram mantidos como forças auxiliares e reservas do Exército, sendo seus membros
militares (arts. 42 e 144, §6º). Como se sabe, a redemocratização foi uma transição negociada entre as
elites civis e militares.
As Forças Armadas mantiveram suas prerrogativas após o lobby realizado na Assembleia
Constituinte e o resultado foi uma Constituição ambígua, com artigos liberais entre artigos com forte
inclinação à ingerência militar (NÓBREGA JÚNIOR, 2010: 120). Para Cerqueira (1996: 155), a Constituição
de 1988 incorporou e legitimou toda a visão equivocada de ordem pública que se construiu no período
ditatorial sob a tutela da Doutrina de Segurança Nacional. Segundo o autor, dispositivos autoritários
foram mantidos e aperfeiçoados na nova Constituição e, além disso, ela inovou no quesito autoritarismo
ao permitir que as Forças Armadas atuem nos Estados na manutenção da ordem pública, criando a
figura de uma “quase intervenção” sem qualquer controle do legislativo.
A Constituição de 1988, portanto, misturou questões de segurança externa com questões de
segurança pública, tornando a militarização da segurança algo constitucionalmente válido (ZAVERUCHA,
2005: 74). Pode-se dizer que o constituinte, em grande medida, preservou o modelo estabelecido
durante a ditadura, ignorando a contradição deste com o Estado democrático de Direito e perdendo a
oportunidade de superar os vários debates existentes sobre o tema, como a questão do caráter militar
da PM e a dicotomia das polícias estaduais, por exemplo. Podemos dizer que a transição democrática é
um processo inacabado, já que o país insiste em preservar um modelo de polícia que ainda está
fortemente atrelado à defesa do Estado e à ideia de segurança nacional e não à defesa do cidadão. As
metáforas cotidianas ligadas à segurança são ainda militares: combater o crime, ocupar a favela etc.
Autoritarismo, repressão e violência: crítica à militarização da polícia
A ausência de transformações profundas no sistema policial brasileiro durante a transição
democrática condenou as polícias à reprodução de uma cultura própria, na qual violência, tortura e
corrupção são fatos comuns, além da seletividade da repressão e da criminalização. Pinheiro (1991)
defende que em todos os regimes políticos os órgãos de segurança pública brasileiros funcionaram num
“regime de exceção paralelo”, gozando de poderes extralegais e ampla margem de autonomia,
independentemente do arcabouço jurídico formalmente em vigor.
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Enquanto nos períodos de exceção propriamente ditos a repressão se concentrou nos opositores
do regime, a todo tempo ela se exerceu principalmente contra suas vítimas habituais – os pobres, os
negros, as minorias – sendo a brutalidade policial justificada em nome da “eficácia” no combate ao
crime. Ademais, o controle judicial sobre as polícias sempre foi débil, possibilitando o uso da violência
na repressão ao crime, desde que ela recaísse sobre as classes subalternas. As práticas violentas são, em
geral, legitimadas socialmente devido à prevalência de uma visão despótica da ordem pública em vastos
segmentos da sociedade.
Lemgruber; Musumeci e Cano (2003: 55) observam que Parcela muito significativa, se não
majoritária, da sociedade brasileira – atravessando todos os estratos sociais - rejeita visceralmente a
noção de direitos universais e divide binariamente os seres humanos em “cidadãos de bem” (ou
“cidadãos” tout court), merecedores de direitos, e “não cidadãos”, aqueles que “fizeram por
desmerecer” qualquer espécie de direito ou de proteção legal. Num gradiente de autoritarismo, essa
moral binária (...) oferece suporte à continuidade das práticas policiais ilegais, em nome da pretensa
necessidade de se travar uma “guerra” sem trégua, por todos os meios, contra o crime e a desordem.
Nesse sentido, as penas impostas pela polícia (maus tratos, torturas, execuções) são aceitas, toleradas
ou incentivadas por aqueles que acreditam que são instrumentos necessários à repressão do crime ou
substitutos necessários à justiça legal, uma vez que esta consagra a impunidade dos criminosos.
A mentalidade predominante é que o problema de segurança pública é simplesmente um
problema de polícia; e, sendo problema de polícia, há que se usar a força e a violência (SILVA, 2003:11).
A opinião pública e a mídia, então, clamam por mais repressão, mesmo que à margem do Estado de
Direito. Zaffaroni (2011) fala que as mortes por execuções sem processo são naturalizadas na mídia e na
opinião pública uma vez que atingem sempre eles, os outros, os inimigos, os criminalizados, o jovem
negro da favela – que se pressupõe criminoso. As execuções são “disfarçadas de mortes em
enfrentamentos, apresentadas como episódios da guerra contra o crime, em que se mostra o cadáver
do fuzilado como símbolo da eficácia preventiva, como o soldado inimigo morto na guerra4”
(ZAFFARONI, 2011: 375).
O nível de violência, às vezes, alcança os limites de um massacre5. A questão da violência policial e
do abuso no uso da força que se revela em diversas práticas das Polícias Militares tem por plano de
fundo uma cultura autoritária da repressão. Veremos como o modelo policial militarizado existente no
Brasil faz com que os policiais sejam despreparados para lidar com seu trabalho cotidiano sem a
perspectiva do confronto, o que resulta em violência e arbitrariedade. Veremos, ainda, que a atividade
de policiamento é eminentemente civil, de forma que o modelo militarizado se contradiz com o Estado
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democrático de Direito.
Mudanças e perspectivas
Hoje, nas polícias brasileiras, presenciamos uma tensão “entre um passado perverso que não foi
ainda rejeitado e uma possibilidade mais generosa de futuro sobre a qual ainda não se pode ter
qualquer certeza” (ROLIM, 2006: 49). Entre a herança autoritária e um futuro democrático, é possível
vislumbrar a existência de duas forças opostas na evolução das polícias. Por um lado, um movimento no
sentido do reconhecimento do caráter civil da atividade de policiamento e da construção de práticas
respeitosas aos direitos humanos. Por outro lado, no entanto, assistimos a uma preocupante tendência
à remilitarização das polícias, através de políticas repressivas dos governos estaduais. Por esse motivo, o
momento atual é importante na definição dos rumos a serem tomados para a construção de uma polícia
cidadã.
Os movimentos de reforma A elaboração de políticas públicas de segurança é novidade no Brasil.
Até o fim da ditadura militar, nunca havia sido formulado um plano de ações coordenadas, com metas e
fins determinados e os governos se limitavam a manter suas forças e conter o crime segundo a cultura
organizacional das próprias agências policiais (ADORNO, 2008: 14). O crescimento da criminalidade
urbana e os debates sobre os direitos humanos fizeram imprescindível a inclusão da segurança pública
na agenda política governamental. Também desde o fim da ditadura militar, tem sido possível encontrar
dentro das próprias polícias setores mais sintonizados com uma concepção democrática de ordem
pública e convencidos da necessidade de mudanças estruturais. Nesse sentido, nos governos de
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), foram elaborados os dois primeiros PNDHs (Programa
Nacional de Direitos Humanos), após um processo que contou com audiências públicas e com o diálogo
entre entes governamentais, representantes da sociedade civil e universidades, foram criadas a
Secretaria Nacional de Direitos Humanos e a Secretaria Nacional de Segurança Pública.
Foi também editado o Plano Nacional de Segurança Pública, com o objetivo de buscar a integração
ente políticas de segurança, políticas sociais e ações comunitárias. Nos governos de Luiz Inácio Lula da
Silva (2003-2010), foi implementado o Plano Nacional de Segurança Pública, tendo como principal
programa o Sistema Unificado de Segurança Pública, criado com o objetivo de articular ações federais,
estaduais e municipais na área da segurança pública e da justiça criminal, foi determinada a criação de
Conselhos de Segurança Pública e foi editado o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
(Pronasci), buscando a articulação de diferentes órgãos e níveis de governo e reunindo políticas
repressivas e sociais, com atuação focada nas raízes socioculturais do crime e no resgate da cidadania
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dos jovens de 15 a 24 anos, dada a elevada taxa de criminalidade e de vitimização entre os mesmos.
Uma das diretrizes surgidas dos planos federais e estaduais de segurança pública desde os anos
1990 foi o estímulo à implantação do modelo de polícia comunitária. A ideia de policiamento
comunitário faz parte de uma modificação doutrinária em curso entre as polícias do mundo inteiro e em
muitos países já se transformou em discurso oficial. É um modelo que pressupõe a transformação da
relação entre a polícia e a comunidade na qual ela se insere, partindo da ideia de que as tarefas de
manutenção da paz e de conquista da segurança devem ser concebidas como algo a ser compartilhado
entre o Estado e a sociedade8. Nos últimos anos, em vários Estados do Brasil, têm proliferado projetos
que se denominam polícia comunitária. A questão é saber se esses projetos significam mudanças
genuínas nas práticas policiais ou apenas se utilizam do nome policiamento comunitário para rotular
programas tradicionais, “um caso clássico de colocar vinho velho em garrafas novas” (SKOLNICK e
BAYLEY, 2006: 16).
De toda forma, não tem havido redução significativa das taxas de criminalidade e nenhum Estado
adotou o modelo de polícia comunitária como modelo geral para sua Polícia Militar. Outra mudança diz
respeito ao controle externo da polícia. O Ministério Público, com a Constituição de 1988, ganhou
amplas atribuições de ‘fiscal da lei’, entre elas a de controlar as polícias e defender os direitos dos
cidadãos contra abusos cometidos por policiais (art. 129, VII). Com o desempenho do MP tendo, nesse
aspecto, deixado muito a desejar, foram criadas nos últimos anos, em alguns Estados da federação, as
Ouvidorias de Polícia, órgãos de controle externo com a missão de receber denúncias de abusos
cometidos por policiais.
A maioria das Ouvidorias ainda funciona precariamente, sem funcionários e orçamento próprios,
além de não possuem poder de investigação, devendo repassar as denúncias às Corregedorias. O medo
da população de denunciar os abusos policiais e incipiente grau de institucionalização das Ouvidorias
associado ao corporativismo existente nas Corregedorias resulta em um baixo índice de punição dos
acusados e considerável insatisfação dos denunciantes. Avanço se observa nas iniciativas que buscam
retirar o monopólio das academias de polícia no treinamento dos policiais. Nos últimos anos têm
proliferado as parcerias entre organizações policiais militares e universidades, institutos de pesquisa e
organizações não governamentais.
Dessa forma, busca-se a institucionalização de uma doutrina democrática de policiamento e a
aproximação do saber acadêmico à prática da segurança pública, abrindo “a possibilidade de
socialização e consequente formação de uma nova elite organizacional em termos de valores e visão de
mundo adequados aos parâmetros normativos da democracia” (SAPORI, 2007: 118).
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Tem-se também buscado modificar os critérios de admissão nas carreiras policiais de forma a
incluir profissionais mais capacitados. Apesar de não ter ocorrido a desmilitarização das polícias, não se
pode negar o valor das mudanças e evoluções ocorridas desde o fim da ditadura militar, dentre as quais,
em síntese, destacamos:
As experiências de polícia comunitária em vários Estados;
A criação de Ouvidorias de Polícia;
O uso de técnicas mais modernas de policiamento, como o georeferenciamento para mapear
áreas e horários de maior incidência criminal e redirecionar o patrulhamento preventivo;
O desenvolvimento de programas para redução da violência em áreas marginais; Os avanços no
tratamento de informações policiais, através da informatização, racionalização e arquivo de denúncias e
dados de inteligência;
As tentativas de integração entre a Polícia Civil e a Militar.
Talvez seja um dos tópicos que mais cause estranheza na leitura. Calma. Não é tão difícil.
Basicamente trata da alteração de comportamento humano em razão do ambiente carcerário. Essa
alteração é verificada não só no preso, mas também nos agentes penitenciários e demais profissionais.
Se você tivesse tempo (rsrs) poderia ver o filme “Stanford Experiment” (O Experimento de
Aprisionamento de Stanford). Mas, como você não tem, leia o trecho do trabalho recortado a seguir:
O sistema social da prisão
É equivocada a perspectiva de se considerar a prisão como uma reprodução miniaturizada da
sociedade para além dos muros. A organização social na cadeia representa uma organização autônoma
e completamente diferente. É uma organização de hierarquia bem definida, de submissão e rigidez. Ao
mesmo tempo, convive o regime institucional e normatizado e o regime informal entre os detentos. O
comportamento e a vida de todos estão sempre em exposição e evidência. É a vida em massa.
Em certa medida, todos os detentos passam por um processo denominado prisionização, que é a
adequação do indivíduo ao comportamento padrão existente – linguajar, hábitos alimentares e de sono,
conhecimento das regras informais entre os detentos, grupos de interesse, facções criminosas, posição
de inferioridade e submissão. O detento passa a viver uma vida própria, adaptada à realidade prisional.
O mesmo vale para os carcereiros e demais agentes atuando na prisão. Estes também se integram à
realidade e passam a viver uma vida com valores sociais diferentes dos que tem fora dos muros.
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Por este motivo, admitem a realização de práticas desumanas, tratamento autoritário e utilização
de punições corporais como meio para a manutenção da ordem no presídio. Em suma, o indivíduo
chega despreparado à prisão. É inexperiente e se encontra deslocado. Suas deficiências são exploradas.
As normas são muitas, não só as institucionais, mas também as normas informais de tratamento entre
os detentos. Há a hierarquia e a submissão. Penalidades e agressões. Os guardas precisam manter
vigilância constante. O indivíduo tem sua vida devassada. A única alternativa que resta para todos é a
prisionização.
Para os detentos, isso significa assumir o comportamento dos encarcerados mais antigos e
endurecidos, que já conhecem as regras da prisão e, por isso mesmo, estão menos propensos a
mudanças. Adaptar- -se a vida na prisão significa adotar o comportamento daquelas que estão
acostumados com ela, em outras palavras, os delinquentes habituais. É desenvolver ainda mais a
criminalidade em oposição a atenuá-la. Mais uma vez, faz-se referência aos estudos de Bittencourt, em
perfeita sintonia com a posição apresentada pela obra em análise. A saber: A prisão, em vez de conter a
delinquência, tem lhe servido de estímulo, convertendo-se em um instrumento que oportuniza toda
espécie de desumanidades. Não traz nenhum benefício ao apenado; ao contrário, possibilita toda a
sorte de vícios e degradações.
Enquanto o regime prisional der destaque à segurança e à severidade punitiva não funcionará
como agente reformador. O indivíduo encarcerado não se comportará espontaneamente conforme as
regras rígidas de tratamento a que é submetido por isso, é sempre necessário o uso de coerção e
violência, o que impossibilita qualquer tentativa reformadora e pedagógica. É preciso assumir essa
incompatibilidade e afirmar que a penitenciária é uma instituição custodial, e não reformadora. Negar
tal afirmativa é se esconder atrás de uma falácia e isso nos impede de analisar a questão a fundo e
propor medidas alternativas mais eficazes para o tratamento dos criminosos.
(O trecho a cima faz parte da resenha do Livro de Augusto Thompson chamado A questão
Prisional. A resenha foi feita por Rafael Barros Bernardes da Silveira e está disponível na íntegra em:
http://www2.direito.ufmg.br/revistadocaap/index.php/revista/article/viewFile/369/350)