Arqueologia em Portugal 2023. Estado Da Questâo.
Arqueologia em Portugal 2023. Estado Da Questâo.
Arqueologia em Portugal 2023. Estado Da Questâo.
Textos
Coordenação editorial: José Morais Arnaud, César Neves e Andrea Martins
Design gráfico e paginação: Paulo Freitas
ISBN: 978-972-9451-98-0
O conteúdo dos artigos é da inteira responsabilidade dos autores. Sendo assim a Associação dos
Arqueólogos Portugueses declina qualquer responsabilidade por eventuais equívocos ou questões
de ordem ética e legal.
Desenho de capa:
Planta das ruínas de Conímbriga. © Museu Nacional de Conímbriga
Apoio Institucional:
Índice
15 Prefácio
José Morais Arnaud
1. Pré-História
19 O potencial informativo dos Large Cutting Tools: o caso de estudo da estação paleolítica
do Casal do Azemel (Leiria, Portugal)
Carlos Ferreira / João Pedro Cunha-Ribeiro / Eduardo Méndez-Quintas
Em busca da colecção perdida (1): Vila Nova de São Pedro no Museu Municipal de Vila
149
Franca de Xira
César Neves / José Morais Arnaud / Andrea Martins / Mariana Diniz
167 De casa em casa: novos dados sobre o sítio pré-histórico do Rio Seco/Boa-Hora (Ajuda, Lisboa)
Regis Barbosa
179 Um contributo para o estudo das Pontas Palmela das «Grutas de Alcobaça»
Michelle Teixeira Santos / Cátia Delicado / Isabel Costeira
253 Dos ossos, cacos, pedras e terra à leitura detalhada das práticas funerárias no 3º milénio a.C.:
o caso do Hipogeu I do Monte do Carrascal 2 (Ferreira do Alentejo, Beja)
Maria João Neves
267 Os sepulcros da Pré-História recente da Quinta dos Poços (Lagoa): contextos e cronologias
António Carlos Valera / Lucy Shaw Evangelista / Catarina Furtado / Francisco Correia
285 Quinta dos Poços (Lagoa): Dados biológicos e práticas funerárias dos Sepulcros da
Pré-História Recente
Lucy Shaw Evangelista / Eduarda Silva / Sofia Nogueira / António Carlos Valera / Catarina Furtado /
Francisco Correia
299 Everything everywhere? Definitely not all at once. Uma aproximação inicial às práticas
de processamento de macrofaunas da Pré-História recente do Centro e Sul de Portugal
Nelson J. Almeida / Catarina Guinot / António Diniz
313 Um sítio, duas paisagens: a exploração de recursos vegetais durante o Mesolítico e a Idade
do Bronze na Foz do Medal (Baixo Sabor, Nordeste de Portugal)
João Pedro Tereso / María Martín Seijo / Rita Gaspar
345 Lost & Found. Resultados dos trabalhos de prospecção arqueológica realizados no vale
do Carvalhal de Aljubarrota (Alcobaça, Leiria)
Cátia Delicado / Leandro Borges / João Monte / Bárbara Espírito Santo / Jorge Lopes / Inês Sofia Silva
2. Proto-História
377 Dinâmicas de Povoamento durante a Idade do Bronze no Centro da Estremadura Portuguesa:
O Litoral Atlântico Entre as Serras d’Aires e Candeeiros e de Montejunto
Pedro A. Caria
389 Novos dados sobre os povoados do Bronze Final dos Castelos (Beja) e Laço (Serpa) no âmbito
do Projeto Odyssey. Contributos a partir de um levantamento drone-LiDAR
Miguel Serra / João Fonte / Tiago do Pereiro / Rita Dias / João Hipólito / António Neves / Luís Gonçalves Seco
401 Metais do Bronze Final no Ocidente Ibérico. O caso dos machados de alvado a sul do rio Tejo
Marta Gomes / Carlo Bottaini / Miguel Serra / Raquel Vilaça
411 Dois Sítios, um ponto de situação. Primeiros resultados dos trabalhos nos Castros de Ul
e Recarei em 2022
João Tiago Tavares / Adriaan de Man
425 Reflexões acerca dos aspetos técnicos e tecnológicos dos artefactos de ferro do Bronze Final /
Ferro Inicial no território português
Pedro Baptista / Ralph Araque Gonzalez / Bastian Asmus / Alexander Richter
Resumo de resultados do projeto IberianTin (2018-22) e resultados iniciais do projeto
439
Gold. PT (2023-)
Elin Figueiredo / João Fonte / Emmanuelle Meunier / Sofia Serrano / Alexandra Rodrigues
451 À volta da Pedra Formosa. Estudo do Balneário Este da Citânia de Briteiros
Gonçalo Cruz
463 Intercâmbio no primeiro milénio A.C., no litoral, entre os estuários dos rios Cávado e Ave
Nuno Oliveira
Castro de Guifões: elementos para a reconstituição paleogeográfica e compreensão
481
da ocupação antiga do sítio
Andreia Arezes / Miguel Almeida / Alberto Gomes / José Varela / Nuno Ramos / André Ferreira /
Manuel Sá
493 O Castro da Madalena (Vila Nova de Gaia) no quadro da ocupação proto-histórica
da margem esquerda do Douro
Edite Martins de Sá / António Manuel S.P. Silva
507 Uma cabana com vista para o rio, no Sabugal da Idade do Ferro
Inês Soares / Paulo Pernadas / Marcos Osório
519 Cerca do Castelo de Chão do Trigo (S. Pedro do Esteval, Proença-a-Nova): resultados
de três campanhas de escavações (2017-2019)
Paulo Félix
533 Instrumentos e artes de pesca no sítio proto-histórico de Santa Olaia (Figueira da Foz)
Sara Almeida / Raquel Vilaça / Isabel Pereira
549 Sobre a influência da cerâmica grega nas produções de cerâmica cinzenta do estuário
do Tejo: um vaso emblemático encontrado nas escavações arqueológicas do Largo de Santa
Cruz (Lisboa)
Elisa de Sousa / Sandra Guerra / João Pimenta / Roshan Paladugu
563 To buy fine things: trabalhos e perspectivas recentes sobre o consumo de importações
mediterrâneas no Sul de Portugal durante o I milénio a.n.e.
Francisco B. Gomes
Arquitecturas orientais em terra na fronteira atlântica: novas abordagens do Projecto
575
#BuildinginNewLands
Marta Lorenzon / Benjamín Cutillas-Victoria / Elisa Sousa / Ana Olaio / Sara Almeida / Sandra Guerra
585 Frutos, cultivos e madeira no Castro de Alvarelhos: a arqueobotânica do projeto CAESAR
Catarina Sousa / Filipe Vaz / Daniela Ferreira / Rui Morais / Rui Centeno / João Tereso
665 Sítio do Antigo (Torre de Vilela, Coimbra): uma possível villa suburbana de Aeminium
Rúben Mendes / Raquel Santos / Carmen Pereira / Ricardo Costeira da Silva
679 A fachada norte da Casa dos Repuxos (Conímbriga): resultados das campanhas de 2021 e 2022
Ricardo Costeira da Silva / José Ruivo / Vítor Dias
741 Villa romana da Herdade das Argamassas. Delta, motivo de inspiração secular. Do mosaico
ao café
Vítor Dias / Joaquim Carvalho / Cornelius Meyer
A Antiguidade Tardia no Vale do Douro: o exemplo de Trás do Castelo (Vale de Mir, Pegarinhos,
755
Alijó)
Tony Silvino / Pedro Pereira / Rodolphe Nicot / Laudine Robin / Yannick Teyssonneyre
785 Balneário romano de São Vicente (Penafiel): projeto de revisão das estruturas construídas
e do contexto histórico-arqueológico do sítio
Silvia González Soutelo / Teresa Soeiro / Juan Diego Carmona Barrero / Jorge Sampaio / Helena Bernardo /
Claus Seara Erwelein
815 Trabalhos arqueológicos no Patarinho (Santa Comba Dão, Viseu): caracterização de uma
pequena área de produção vinícola no vale do Dão em época alto-imperial
Pedro Matos / João Losada
843 Os materiais do sítio romano de Eira Velha (Miranda do Corvo) como índice cronológico
das suas fases de construção
Inês Rasteiro / Ricardo Costeira da Silva / Rui Ramos / Inês Simão
873 Revisão dos objetos ponderais recuperados na antiga Conimbriga (Condeixa-a-Nova, Coimbra)
Diego Barrios Rodríguez / Cruces Blázquez Cerrato
915 Análise (im)possível dos espólios arqueológicos do sítio do Mascarro (Castelo de Vide,
Portugal)
Sílvia Monteiro Ricardo
Reconstruindo a paisagem urbana de Braga desde a sua fundação até à cidade medieval:
931
as ruas como objeto de estudo
Letícia Ruela / Fernanda Magalhães / Maria do Carmo Ribeiro
941 A dinâmica viária no vale do Rabagão: a via XVII e o contributo dos itinerários secundários
Bruno Dias / Rebeca Blanco-Rotea / Fernanda Magalhães
953 Resultados das leituras geofísicas de Monte dos Castelinhos, Vila Franca de Xira
João Pimenta / Tiago do Pereiro / Henrique Mendes / André Ferreira
965 Loca sacra: Para uma topografia dos lugares simbólicos no atual Alentejo em época romana
António Diniz
4. Época Medieval
1009 A necrópole da Alta Idade Média do Castro de São Domingos (Lousada, Portugal)
Paulo André Pinho Lemos / Manuel Nunes / Bruno M. Magalhães
1037 A reconfiguração do espaço rural na Alta Idade Média. Análise dos marcadores
arqueológicos no Alto Alentejo
Rute Cabriz / Sara Prata
1047 O Castelo de Vale de Trigo (Alcácer do Sal): dados das intervenções arqueológicas
Marta Isabel Caetano Leitão
1061 Convento de Nossa Senhora do Carmo de Moura, um conjunto de silos medievais islâmicos:
dados preliminares de uma das sondagens arqueológicas de diagnóstico
Vanessa Gaspar / Rute Silva
1075 Potes meleiros islâmicos – Contributo para o estudo da importância do mel na Idade Média
Rosa Varela Gomes
1085 Luxos e superstições – registos de espólio funerário e outras materialidades nas necrópoles
islâmicas no Gharb al-Andalus
Raquel Gonzaga
1129 Do solo para a parede: a intervenção arqueológica no Pátio do Castilho n.º 37-39 e a(s)
Torre(s) de Almedina da muralha(s) de Coimbra
Susana Temudo
1145 Utensílios cerâmicos de uma cozinha medieval islâmica no espaço periurbano de al-Ushbuna
(1ª metade do séc. XII)
Jorge Branco / Rodrigo Banha da Silva
1159 O convento de S. Francisco de Real na definição da paisagem monástico-conventual de Braga,
entre a Idade Média e a Idade Moderna
Francisco Andrade
1169 “Ante o cruzeiro jaz o mestre”: resultados preliminares da escavação do panteão da Ordem de
Santiago (séculos XIII – XVI) localizado no Santuário do Senhor dos Mártires (Alcácer do Sal)
Ana Rita Balona / Liliana Matias de Carvalho / Sofia N. Wasterlain
1181 Produções cerâmicas da Braga medieval: cultura e agência material
Diego Machado / Manuela Martins
1197 Agricultura e paisagem em Santarém entre a Antiguidade Tardia e o Período Islâmico
a partir das evidências arqueobotânicas
Filipe Vaz / Luís Seabra / João Tereso / Catarina Viegas / Ana Margarida Arruda
5. Época Moderna
1215 A necrópole medieval e moderna de Benavente: resultados de uma intervenção
de Arqueologia Preventiva
Joana Zuzarte / Paulo Félix
Rua da Judiaria – Castelo de Vide: Aspetos gerais da intervenção arqueológica na eventual
1229
Casa do Rabino
Tânia Maria Falcão / Heloísa Valente dos Santos / Susana Rodrigues Cosme
1239 A coleção de estanho de Esposende
Elisa Maria Gomes da Torre e Frias-Bulhosa
1253 Três barris num campo de lama: dados preliminares para o estudo da vitivinicultura
na cidade de Aveiro no período moderno
Diana Cunha / Susana Temudo / Pedro Pereira
1269 Aveiro como centro produtor de cerâmica: os vestígios da oficina olárica identificada na
Rua Capitão Sousa Pizarro
Vera Santos / Sónia Filipe / Paulo Morgado
1319 Conhecer o quotidiano do Castelo de Palmela entre os séculos XV e XVIII através dos
artefactos metálicos em liga de cobre
Luís F. Pereira
1331 Um forno de cerâmica do início da Época Moderna na Rua Edmond Bartissol, Setúbal
Victor Filipe / Eva Pires / Anabela Castro
“Não ha sepultura onde se não tenham enterrado mais de dez cadáveres”: as valas comuns
1379
de época moderna da necrópole do Hospital dos Soldados (Castelo de São Jorge, Lisboa),
uma prática funerária de recurso
Carina Leirião / Liliana Matias de Carvalho / Ana Amarante / Susana Henriques / Sofia N. Wasterlain
1403 Variabilidade formal e produtiva da cerâmica moderna na cidade de Braga: estudo de caso
Lara Fernandes / Manuela Martins / Maria do Carmo Franco Ribeiro
1437 A Chacota de Faiança a uso e o significado social do seu consumo em Lisboa, nos meados-
-finais do século XVII: a amostragem do Hospital dos Pescadores e Mareantes de Alfama
André Bargão / Sara da Cruz Ferreira / Rodrigo Banha da Silva
1461 Os cachimbos cerâmicos dos séculos XVII e XVIII do Palácio Almada-Carvalhais (Lisboa)
Sara da Cruz Ferreira / André Bargão / Rodrigo Banha da Silva / Tiago Nunes
1483 Um copo para muitas garrafas. Algumas palavras sobre um conjunto de vidros modernos
e contemporâneos encontrados na Praia da Alburrica (Barreiro)
Carlos Boavida / António González
1595 Um olhar sobre o passado: apresentação dos resultados de uma intervenção arqueológica
na Figueira da Foz
Bruno Freitas / Sérgio Gonçalves / André Donas-Botto
1607 Todos os metros contam, 200 mil anos num quarteirão? O caso das Olarias de Leiria
Ana Rita Ferreira / André Donas-Botto / Cláudia Santos / Luís Costa
6. Época Contemporânea
1625 Navios de ferro: contributos para uma abordagem arqueológica aos naufrágios de Idade
Contemporânea em Portugal
Marco Freitas / Francisco Mendes / Sofia Simões Pereira
1735 Personagens Escondidas: À procura das emoções esquecidas das mulheres na indústria
portuguesa. Uma análise arqueológica através de novas materialidades
Susana Pacheco / Joel Santos / Tânia Manuel Casimiro
7. Arte Rupestre
1761 O projeto First-Art (Extension): determinação cronológica e caracterização dos pigmentos
nas fases iniciais da Arte Rupestre Paleolítica
Sara Garcês / Hipólito Collado / Hugo Gomes / Virginia Lattao / George Nash / Hugo Mira Perales /
Diego Fernández Sánchez / José Julio Garcia Arranz / Pierluigi Rosina / Luiz Oosterbeek
1771 Mais perto da conclusão: novo ponto da situação da prospecção e inventário da arte rupestre
do Côa
Mário Reis
1787 Propostas metodológicas para a conservação dos sítios com Pinturas Rupestres da Pré-História
recente no Vale do Côa
Vera Moreira Caetano / Fernando Carrera / Lara Bacelar Alves / António Batarda Fernandes / Teresa Rivas /
José Santiago Pozo-Antonio
1801 Alguma cor num fundo de gravura: principais conjuntos da pintura pré-histórica do Vale do Côa
Lara Bacelar Alves / Andrea Martins / Mário Reis
1815 Desde a crista, olhando para o Tejo – os abrigos com pintura esquemática do Pego da Rainha
(Mação, Portugal)
Andrea Martins
1859 Um novo olhar sobre as gravuras de labirintos: o caso do Castelinho (Torre de Moncorvo, Portugal)
Andreia Silva / Sofia Figueiredo-Persson / Elin Figueiredo
1875 Os seixos incisos da Idade do Ferro de São Cornélio (Sabugal, Alto Côa)
Luís Luís / Marcos Osório / André Tomás Santos / Anna Lígia Vitale / Raquel Vilaça
1891 Entre topónimos e lendas. Explicações das sociedades rurais para o fenómeno podomórfico
do nordeste de Trás-os-Montes
José Moreira
1943 Vila Nova de São Pedro e a Arqueologia Pública – a consolidação de um projecto através
dos agentes da sua história
José M. Arnaud / Andrea Martins / César Neves / Mariana Diniz
1963 O Monumento Pré-histórico da Praia das Maçãs (Sintra): atividades de divulgação e educação
patrimonial realizadas no âmbito das recentes escavações arqueológicas
Eduardo Porfírio / Catarina Costeira / Teresa Simões
2025 “Cada cavadela sua minhoca”: Arqueologia Pública e Comunicação através do caso de estudo
do Largo do Coreto e envolvente em Carnide (Lisboa)
Ana Caessa / Nuno Mota
2037 Grupo CIGA: comunicar e divulgar a cerâmica islâmica
Isabel Inácio / Jaquelina Covaneiro / Isabel Cristina Fernandes / Sofia Gomes / Susana Gómez / Maria
José Gonçalves / Marco Liberato / Gonçalo Lopes / Constança Santos / Jacinta Bugalhão / Helena Catarino /
Sandra Cavaco
2047 O Forte de São João Batista da Praia Formosa: a recuperação virtual e a reconstrução
da memória
Diogo Teixeira Dias / Sérgio Gonçalves
2069 A Arqueologia e os seus Públicos: relação dos Arqueólogos com os outros Cidadãos no âmbito
da Contemporaneidade
Florbela Estêvão / Vítor Oliveira Jorge
2079 Arqueologia e Comunicação na era da Big Data: do sítio arqueológico ao registo de monumentos
e paisagens. Será este um dia FAIR?
Ariele Câmara / Ana de Almeida / João Oliveira / Daniel Marçal
9. Historiografia e Teoria
2103 Pré-História e “Antropologia Cultural”: repensar esta interface
Vítor Oliveira Jorge
2125 “Criei o hábito de geralmente ignorar”: sexismo, assédio e abuso sexual em Arqueologia
Liliana Matias de Carvalho / Sara Simões / Sara Brito / Jacinta Bugalhão / Miguel Rocha / Mauro Correia /
Regis Barbosa / Raquel Gonzaga
2149 O Grupo Pró-Évora e o curso de arqueologia de 1968: uma primeira aproximação ao tema
Ana Cristina Martins
2199 A Igreja do Carmo de Lisboa: um exemplo de arqueologia vertical com 600 anos
Célia Nunes Pereira
2291 A paisagem marítima do litoral do Minho. Uma primeira aproximação à paisagem económica
de Viana do Castelo
Tiago Silva
2301 O projeto TURARQ – Turismo Arqueológico para a compreensão da cultura e das interações
ambientais
Hugo Gomes / Sara Garcês / Marco Martins / Anícia Trindade / Douglas O. Cardoso / Eduardo Ferraz /
Luiz Oosterbeek
2331 Arqueologia da Arquitetura aplicada ao estudo dos espaços construídos: uma metodologia
de análise
Eduardo Alves / Rebeca Blanco-Rotea
2381 Umas termas debaixo dos vossos pés: o Projeto de Estudo e Valorização do Criptopórtico Romano
de Lisboa (CRLx)
Nuno Mota / Ana Caessa
2419 Os antigos sistemas de gestão de água de Coimbra: características formais e estado da arte
Paulo Morgado / Sónia Filipe
A Direcção da AAP propôs-se, assim, continuar esta colaboração com o meio académico
nacional, realizando o seu IV Congresso em Coimbra, desafio que foi prontamente acei-
te pelo Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
com o apoio do Centro de Estudos Interdisciplinares (CEIS 20) e do Centro de Estudos
em Arqueologia, Artes e Ciências do Património (CEAACP), a cuja Direcção se agrade-
ce, na pessoa dos Professores Doutores Pedro Carvalho, José Oliveira Martins e Maria
da Conceição Lopes.
A resposta da comunidade arqueológica ao desafio deste Congresso foi, uma vez mais,
excelente, tendo mesmo ultrapassado ligeiramente a adesão aos eventos anteriores.
Com efeito, participarão cerca de 350 arqueólogos e foram entregues, dentro dos prazos
e aceites, 130 comunicações e 58 posters, o que perfaz um total de 188 apresentações,
agrupadas pelas seguintes áreas temáticas: 1. Pré-História; 2. Proto-História; 3. Antigui-
dade Clássica e Tardia; 4. Época Medieval; 5. Época Moderna; 6. Época Contemporânea;
7. Arte Rupestre; 8. Arqueologia Pública, Comunicação e Didática; 9. Teoria e Historio-
grafia; 10. Gestão, Valorização e Salvaguarda do Património.
No total, os textos entregues perfazem cerca de 2450 páginas de trabalho científico, com
estudos de âmbitos temáticos e envolvendo quadros crono‑culturais muito díspares,
num retrato actualizado da investigação arqueológica realizada por diversos arqueólo-
gos que, qualquer que seja a sua nacionalidade, trabalham no território actualmente por-
tuguês ou sobre contextos relacionados com a presença portuguesa no Mundo.
A realização em tempo útil deste Congresso, só foi possível graças ao cumprimento rigo-
roso das normas e prazos para entrega dos textos, e sobretudo ao empenho, dedicação
e profissionalismo dos nossos consócios Andrea Martins e César Neves, da Comissão
Científica e Executiva do IV CAAP, assim como do designer Paulo Freitas, a quem mani-
festamos aqui o nosso profundo agradecimento.
16
1
Pré-História
18
O POTENCIAL INFORMATIVO DOS LARGE
CUTTING TOOLS: O CASO DE ESTUDO
DA ESTAÇÃO PALEOLÍTICA DO CASAL
DO AZEMEL (LEIRIA, PORTUGAL)
Carlos Ferreira1, João Pedro Cunha-Ribeiro2, Eduardo Méndez-Quintas3
RESUMO
Os Large Cutting Tools (LCTs), considerados como o hallmark do tecno-complexo Acheulense, são artefactos
privilegiados para o estudo do comportamento humano durante o Plistocénico Inferior e Médio. No ocidente
europeu, uma das maiores coleções de LCTs é proveniente da jazida do Casal do Azemel (Leiria, Portugal),
constituída por ca. de 750 exemplares (distribuídos entre artefactos enquadráveis no grupo dos bifaces, macha-
dos de mão e outros macro-utensílios), que foram recentemente reanalisados com base numa abordagem
tecno-tipológica, tecno-funcional e morfo-geométrica. Globalmente, os dados obtidos colocam em evidência
um reportório comportamental complexo, patente em diferentes estratégias orientadas essencialmente para
a produção de LCTs sobre lasca, que revelam um grau de conceptualização e estandardização significativo, e
indiciam a existência de importantes pré-requisitos cognitivos e tecnológicos.
Palavras-chave: Large Cutting Tools (LCTs); Cadeia operatória; Suporte; Estandardização; Conceito de utensílio.
ABSTRACT
Large Cutting Tools (LCTs), considered as the hallmark of the Acheulean techno-complex, are privileged arte-
facts for studying human behaviour during the Lower and Middle Pleistocene. In Western Europe, one of the
largest collections of this type of products comes from the Casal do Azemel site (Leiria, Portugal), composed by
ca. 750 artefacts (distributed among handaxes, cleavers on flake and other macro-tools), that were recently re-
examined based on techno-typological, techno-functional and 2D Geometric Morphometric approaches. Over-
all, the findings highlight a complex behavioural repertoire associated to the production of large cutting tools,
preferably on flake blanks, through distinct strategies that reveal a significant degree of conceptualization and
standardization, and suggest the existence of important cognitive and technological prerequisites.
Keywords: Large Cutting Tools (LCTs); Chaîne opératoire; Blank; Standardization; Tool concept.
2. Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa; Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa (UNIARQ); [email protected]
3. Grupo de Estudos de Arqueoloxía, Antigüidade e Territorio (GEAAT), University of Vigo, Campus As Lagoas, 32004 Ourense;
[email protected]
20
de um extenso planalto arenoso que se desenvolve a Independentemente da ausência de um enqua-
Noroeste da vila da Batalha (fig. 1). dramento cronométrico mais preciso, do contexto
Descoberta em 1978, após a recolha à superfície de secundário da indústria, ou da forte eolização do
alguns artefactos líticos, a jazida foi intervencionada material, a estação paleolítica do CAB é uma jazida
entre 1988 e 1991 (e posteriormente em 2001). Dos incontornável para o estudo da ocupação humana na
trabalhos aí efetuados, que incidiram numa área de Península Ibérica durante este período, não só devido
135 m2, resultou a recolha de 3957 peças líticas inte- à concentração de quase 4000 artefactos, enquadrá-
gradas em depósitos coluvionares que afetam lo- veis num conjunto homogéneo (do ponto de vista do
calmente o topo da formação marinha pliocénica. estado físico das peças, da matéria-prima empregue
Concretamente, duas camadas associadas a duas e das suas características tecno-tipológicas e tecno-
coluviões foram identificadas. A esmagadora maioria -económicas – cf. Cunha-Ribeiro, 1999, Capítulo 9),
do espólio provém da Camada 2, que corresponde a mas também em função do elevado número de LCTs
uma coluvião mais antiga, associada a uma fase de re- aí exumados, que ultrapassam os 700 exemplares
xistasia correlacionável com um episódio de deflação, (Cunha-Ribeiro, 1999; Ferreira, 2023). Constituindo
tendo-se recolhido um número residual de artefactos a maior coleção deste tipo de artefactos provenien-
na Camada 3, um depósito mais recente, igualmente te de contextos escavados no território peninsular
coluvionado (cf. Cunha-Ribeiro, 1999, pp. 302-306). (Méndez-Quintas & alii, 2020, p. 13), os LCTs repre-
Sinteticamente, a indústria lítica do CAB resultou sentam ca. 19% da indústria do sítio, que é maiorita-
de uma concentração de vestígios que não se desta- riamente composta por produtos de debitagem (las-
ca topograficamente da superfície aplanada circun- cas – 41% e fragmentos de talhe – 12%), seguindo-se
dante. Tendo em conta a textura dos depósitos, a os detritos, estalamentos e seixos (13%), os núcleos
circunstância de a implantação do sítio não permitir (11%) – entre os quais se assinala a prevalência de
“uma mobilização torrencial dos materiais detríti- processos de exploração mais estandardizados, no-
cos coluvionados (…) nem tão pouco a deslocação meadamente de tipo centrípeto –, e um número re-
dos objectos líticos de maiores dimensões de origem duzido de utensílios sobre lasca de média dimensão
antrópica neles integrados” (Cunha-Ribeiro, 1999, (4%) (cf. Cunha-Ribeiro, 1999, Capítulo 9).
p. 452), ou ainda o facto de nas sondagens mais
afastadas apenas se ter identificado um reduzido 3. MATERIAIS E METODOLOGIA
número de pequenos produtos (que podem ter sido
dispersos pela baixa energia associada à formação Representando ca. 85% dos utensílios da jazida,
dos depósitos), propôs-se anteriormente que os ma- os LCTs do CAB, preferencialmente sobre lasca, e
teriais, não obstante o seu contexto secundário, re- quase exclusivamente em quartzito (mais de 98%),
sultaram de um processo de acumulação antrópica distribuem-se entre produtos enquadráveis no gru-
na área onde foram encontrados (Idem). Por outro po dos bifaces (num total de 556 artefactos4), ma-
lado, dada a sua localização num extenso planalto, chados de mão (124 peças5) e um conjunto de ou-
sugeriu-se que a ocupação teria ocorrido numa fase tros utensílios elaborados em suportes > 10 cm (63
de vegetação rarefeita, o que permitiria a perceção exemplares), que foram agrupados sob a designação
e/ou o controlo sobre a área envolvente, sendo a pro- de “LCTs diversos”.
nunciada eolização da quase totalidade dos artefac- As informações reportadas no presente trabalho de-
tos compatível com essa realidade, isto é, com uma rivam da análise de um universo de 311 LCTs, con-
importante fase de deflação (Idem, 462). Embora
não tenha sido possível estabelecer a cronologia do 4. Uma vez que no estudo de Ferreira (2023) se analisou
conjunto, atendendo à presença de elementos tipi- apenas uma amostra do grupo dos bifaces do CAB, conti-
nua a considerar-se o total de 556 artefactos reportado por
camente acheulenses, e ao registo geoarqueológico
Cunha-Ribeiro (1999).
da região, existem elementos sugestivos que o per-
mitem associar à segunda metade do Plistocénico 5. No estudo anterior assinalou-se a presença de 127 macha-
dos de mão (Cunha-Ribeiro, 1999). A diferença face ao total
Médio, como, aliás, é a tendência no Acheulense pe-
aqui reportado deriva do facto de não ter sido possível recu-
ninsular (Ferreira, Cunha-Ribeiro & Méndez-Quin- perar 14 produtos anteriormente contabilizados – pelo que
tas, 2021; Méndez-Quintas & alii, 2020; Santonja & o total de machados de mão da jazida pode ascender às 138
Pérez-González, 2010; Santonja & alii, 2016). unidades; e da reclassificação de outras peças.
22
conjunto, estas observações são de elevado valor suportes resultantes de modalidades de exploração
informativo, uma vez que não só complementam com especificidades próprias, dados os tipos repre-
a perceção com que se ficou no decorrer do estudo sentados no conjunto. Globalmente, as observações
tecno-tipológico, como suportam a noção de que reunidas revelam que subjacente à produção dos
aos machados de mão do CAB está subjacente uma machados de mão do CAB se encontra um conceito
forma ideal, alcançada repetidamente, independen- bem definido e uma interessante flexibilidade tec-
temente das estratégias tecnológicas envolvidas na nológica e cognitiva, o que potenciava a obtenção do
sua definição. Na maior parte dos casos, dado o ca- mesmo produto final através de sequências rotinadas
rácter marginal das extrações, esta vinha, em grande paralelas. Neste sentido, é possível falar não apenas
medida, predefinida na lasca suporte, podendo nou- de predeterminação, mas também de estandardiza-
tros ser mais bem garantida / retificada por talhe. ção (Texier & Roche, 1995, p. 405).
Além de se registar a tendência para a partilha da
mesma predisposição formal, assinala-se ainda uma 4.2. Grupo dos bifaces
similitude virtualmente total entre o comprimento, Entre as cadeias operatórias de produção de LCTs
a largura, a espessura e o peso médio dos machados identificadas na estação paleolítica do CAB, as que
de mão dos tipos mais representados (0, II e VI) (Fer- assumem maior preponderância foram direciona-
reira, 2023, fig. 23), o que se propõe ser consequência das para a elaboração dos artefactos enquadráveis
de um comportamento deliberado no momento da no grupo dos bifaces. De acordo com Cunha-Ribeiro
produção / seleção do suporte. Por um lado, porque (1999), que estudou integralmente a coleção, este
se trata de exemplares elaborados sobre lascas ob- grupo é constituído por 556 peças, concretamente:
tidas a partir de esquemas de exploração distintos 262 bifaces, 156 bifaces parciais, 53 unifaces, 21 es-
e/ou associados a diferentes fases de exploração de boços e 64 fragmentos. Em conjunto, representam
um volume – com a norma a ser para os machados de 14,1% da indústria lítica da jazida, assumindo um
mão de tipo 0 corresponderem aos maiores e mais lugar de destaque entre a utensilagem e, especifica-
pesados, visto que são sobre suportes debitados a mente, entre os LCTs (ca. 74%).
partir de núcleos mais intactos. Por outro, porque a Além de se dispor de uma grande população, o con-
explicação mais óbvia – a de que a semelhança mé- junto evidencia uma distribuição pelos principais
trica assinalada resultaria de uma maior alteração grupos tipológicos e subtipos tradicionalmente consi-
por talhe das lascas suporte dos machados de mão derados (Bordes, 1961). Independentemente do grau
de tipo 0 – não é aplicável a este caso de estudo. Ain- da incidência facial do talhe, prevalecem as formas
da que a diferença no número médio de negativos tendencialmente mais alongadas (Cunha‑Ribeiro,
entre tipos não seja significativa (cf. Ferreira, 2023, 1999, Quadro 9.36.; p. 378; p. 384), seguindo-se as
pp. 79-80), são precisamente os de tipo 0 os que re- elípticas a circulares, que no caso dos bifaces par-
gistam o valor médio mais baixo; e os seus negativos ciais se aproximam da percentagem dos exemplares
também não exibem, de um ponto de vista global, amigdalóides, superando os lanceolados. Por outro
um carácter mais invasor do que o verificado nos res- lado, regista-se a primazia quase total dos espécimes
tantes tipos. espessos (sensu Bordes, 1961), o que é expectável,
Consequentemente, a caracterização dos machados tendo em conta que estes utensílios foram preferen-
de mão do CAB beneficiou do cruzamento de abor- cialmente confecionados em lascas obtidas a partir
dagens complementares que permitiram realçar a da exploração de seixos rolados de quartzito (maté-
sua predeterminação e assinalar a partilha de ca- ria-prima de mais de 98% dos exemplares – Cunha-
racterísticas tecno-funcionais e morfométricas bas- -Ribeiro, 1999, p. 355) (Cunha-Ribeiro, 1999, Quadro
tante similares. Tal torna-se ainda mais relevante, 9.35.; Ferreira, Cunha-Ribeiro & Méndez-Quintas,
atendendo ao facto de, por um lado, contrariamente no prelo).
ao assinalado noutros LCTs, a definição deste tipo Globalmente, os unifaces, os bifaces parciais e os
de utensílios requerer uma decisão antecipada que bifaces do CAB (ex.: fig. 3) têm um carácter tenden-
estabelecia a sua principal área ativa (Herzlinger, cialmente equilibrado e estandardizado (Cunha
Wynn & Goren-Inbar, 2017), e o implemento global ‑Ribeiro, 1999; Ferreira, 2023). Definidos através
em que esta se enquadra (Ferreira, 2023); e, por ou- de um número médio de extrações não muito ele-
tro, de se tratar de produtos elaborados em lascas vado, não se reconhecendo diferenças substantivas
24
principais), a sua análise permitiu reunir algumas marcadores tecno-tipológicos habitualmente agru-
observações relevantes, tais como: a comprovação pados sob a designação de Large Cutting Tools. Como
do potencial intrínseco cortante e resistente dos gu- referido anteriormente, são vestígios materiais com
mes naturais das lascas de quartzito, e, por inerên- um elevado potencial informativo, encontrando-se
cia, da adequabilidade deste tipo de suportes para a atualmente consolidada a relevância da análise dos
definição de LCTs – o que se correlaciona também seus esquemas de produção como forma de aceder
com o facto de o carácter funcional da maioria dos às capacidades cognitivas e tecnológicas dos gru-
artefactos enquadrados neste grupo não depender pos responsáveis pela sua elaboração (White, 2022
de uma alteração substancial do respetivo supor- e referências).
te; o aproveitamento sistemático de uma face ven- No ocidente europeu, a estação paleolítica do CAB é
tral tendencialmente plana enquanto superfície de uma das jazidas privilegiadas para explorar esses tó-
percussão para realizar as extrações que, incidindo picos, devido ao facto de aí se ter exumado uma das
marginalmente numa área já de si cortante e resis- maiores coleções de LCTs no âmbito geográfico men-
tente, visam, de forma expedita, a melhor adequa- cionado. Assumindo uma preponderância incontes-
ção e/ou a definição de um gume com certas ca- tável entre a utensilagem da jazida, estes artefactos
racterísticas (ex.: carácter serrilhado, denticulado, foram alvo de uma reapreciação circunstanciada,
reentrante…) relevantes para a função a desempe- tendo o número excecional de exemplares potencia-
nhar; a constatação do potencial da debitagem de do uma reflexão mais aprofundada e representativa.
grandes lascas de quartzito na predefinição simultâ- Globalmente, os dados recolhidos testemunham a
nea de uma área ativa cortante (natural ou retoca- existência de um reportório comportamental ex-
da), oposta a uma área preferencial de preensão (a tenso e complexo, patente em diferentes estratégias
zona do talão), dadas as direções de percussão mais orientadas essencialmente para a produção de LCTs
recorrentes (transversais e oblíquas em relação ao sobre lasca. Atendendo à representatividade dos
eixo morfológico da peça); a proposta de que existia artefactos identificados, as sequências operatórias
uma consciência dessa mesma predisposição estru- principais visavam a obtenção de suportes que ser-
tural de oposição geométrica, a qual era inteligen- vissem de base à definição de produtos enquadráveis
temente aproveitada, visto que mesmo nos casos no grupo dos bifaces e de machados de mão, com
em que o talão foi parcial ou totalmente suprimido a uma maior preponderância dos primeiros, poden-
área ativa principal se localiza sistematicamente no do os LCTs diversos corresponder a um subproduto
bordo contrário (ex.: fig. 4B-D, F), preservando-se a dessas mesmas sequências.
conceptualização tecno-funcional original de am- Não obstante a ausência dos núcleos do qual proced-
bos os bordos; e que, independentemente de serem eram as lascas suporte – a inexistência de grandes
produto de uma exploração oportunista e/ou do seu núcleos pressupõe que terão sido obtidas numa zona
carácter expedito, são artefactos cuja estruturação exterior ao sítio (tendo-se identificado duas poten-
revela considerações tecno-funcionais e ergonómi- ciais áreas de abastecimento, ambas a uma distância
cas, podendo o respetivo suporte ter sido cuidado- superior a 1,5 km, mas inferior a 5 km – Cunha-Ri-
samente selecionado. beiro, 1999, p. 455) e nele integrados durante a fase
Neste sentido, embora minoritários, os LCTs di- de configuração ou de uso, como verificado nou-
versos remetem para outro tipo de estratégias que tros contextos (ex.: Méndez-Quintas, 2017; Sharon,
fazem parte do large toolkit do tecno-complexo 2006) – a sua caracterização permitiu reconhecer
Acheulense, assinalando-se a sua presença enquan- diferentes modalidades de exploração. Nomeada-
to soluções complementares às principais categorias mente, o método cobble-opening (com base nos ma-
de LCTs identificadas no sítio (e à própria utensila- chados de mão de tipo 0 e noutros LCTs sobre lascas
gem retocada de média dimensão). entame), o método Kombewa (atendendo aos macha-
dos de mão de tipo VI e a um número reduzido de
5. O LARGE TOOLKIT DA ESTAÇÃO outros produtos sobre este tipo de lascas), ou a ex-
PALEOLÍTICA DO CASAL DO AZEMEL ploração bifacial ao longo da periferia de um núcleo
(com base nos machados de mão de tipo I e de tipo
As indústrias líticas do tecno-complexo Acheulen- II, e noutros LCTs cujos suportes conservam vestí-
se são comumente conhecidas por um conjunto de gios de extrações prévias, mas também na noção de
26
através de uma análise circunstanciada foi possível BIBLIOGRAFIA
extrair destes artefactos um conjunto valioso de BALOUT, Lionel; BIBERSON, Pierre; TIXIER, Jacques (1967)
informações. Concretamente, foi possível apreen- – L’Acheuléen de Ternifine (Algérie), gisement de l’Atlan-
der que subjacente à sua produção se encontram thrope. L’Anthropologie. 71: 3-4, pp. 217-237.
importantes e bem estruturados pré-requisitos cog-
BOËDA, Eric; GENESTE, Jean-Michel; MEIGNEN, Liliane
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Entre outros aspetos, tal é inteligível na concep-
CLARK, John D. (1994) – The Acheulian industrial com-
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eram judiciosamente aproveitadas no decorrer da de mão no Paleolítico Inferior português. Portugália. 17-18,
sua transformação secundária; no reconhecimento pp.23-50.https://ojs.letras.up.pt/index.php/Port/article/view
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tável, e de uma plasticidade cognitiva e tecnológica CUNHA-RIBEIRO, João Pedro (1999) – O Acheulense no Cen-
que viabilizava a definição de utensílios de grandes tro de Portugal: o Vale do Lis. Contribuicão para uma aborda-
dimensões através de estratégias diversas; e, noutro gem tecno-tipológica das suas indústrias líticas e problemática
nível de análise, quer na constatação de um padrão do seu contexto cronoestratigráfico. Tese de Doutoramento
apresentada à Universidade de Lisboa. https://repositorio.
comportamental distinto, patente na produção pa-
ul.pt/handle/10451/27502.
ralela de artefactos estruturalmente distintos, quer
na própria estandardização das suas dinâmicas pro- DE LA TORRE, Ignacio (2016) – The origins of the Acheu-
lean: past and present perspectives on a major transition
dutivas, o que se propõe estar correlacionado com a
in human evolution. Philosophical Transactions of the Royal
existência de um conceito de utensílio bem definido,
Society B: Biological Sciences. 371, 20150245. https://doi.
que se assinala à escala ampla deste tecno-comple- org/10.1098/rstb.2015.0245
xo, dada a identificação dos mesmos morfo-tipos em
DIEZ-MARTÍN, Fernando; WYNN, Thomas; SÁNCHEZ-
diferentes contextos (Sharon, 2006; White, 2022 e
-YUSTOS, Policarpo; DUQUE, Javier; FRAILE, Cristina; DE
referências). Com efeito, tal é uma parte integrante FRANCISCO, Sara; URIBELARREA, David; MABULLA,
da natureza que estrutura o Acheulense, num pro- Audax; BAQUEDANO, Enrique; DOMÍNGUEZ-RODRIGO,
cesso que se prolonga no tempo (Key, 2023; Lycett Manuel (2019) – A faltering origin for the Acheulean? Tech-
& Gowlett, 2008), embora o seu estatuto ontológico nological and cognitive implications from FLK West (Oldu-
e modos de difusão permaneçam por melhor com- vai Gorge, Tanzania). Quaternary International. 526, pp. 49-
66. https://doi.org/10.1016/j.quaint.2019.09.023.
preender (Diez-Martín & alii., 2019, p. 59; Ferreira,
2023 e referências). FERREIRA, Carlos (2023) – Variabilidade vs. homogeneidade
Em última análise, considera-se que os dados reuni- no tecno-complexo Acheulense e a importância do suporte: uma
abordagem baseada nos Large Cutting Tools do território portu-
dos são relevantes para a discussão mais alargada em
guês (entre os rios Lis e Tejo). Tese de Mestrado apresentada à
torno da complexidade cognitiva do comportamento Universidade de Lisboa. http://hdl.handle.net/10451/56777.
tecnológico dos nossos antepassados, fundamentan-
FERREIRA, Carlos; CUNHA‑RIBEIRO, João Pedro; MÉN-
do o potencial informativo dos diferentes elementos
DEZ-QUINTAS, Eduardo (2021) – O tecno‑complexo Acheu-
que constituem o large toolkit das indústrias acheu-
lense em Portugal: contribuição para um balanço dos co-
lenses (e não apenas dos bifaces) para este debate. nhecimentos. Ophiussa. Revista do Centro de Arqueologia da
Simultaneamente, contribuem para aprofundar o Universidade de Lisboa. 5, pp. 5-29. https://doi.org/10.51679/
conhecimento deste tecno-complexo no território ophiussa.2021.80.
atualmente português, colocando em evidência o ca- FERREIRA, Carlos; CUNHA-RIBEIRO, João; MÉNDEZ-
rácter de um Large Flake Acheulean da estação paleo- -QUINTAS, Eduardo (no prelo) – Os bifaces da estação pa-
lítica do Casal do Azemel. leolítica do Casal do Azemel (Leiria, Portugal): uma (re)in-
28
SANTONJA, Manuel; VILLA, Paola (2006) – The Acheulean TEXIER, Pierre-Jean; ROCHE, Hélène (1995) – El impacto
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Figura 1 – Casal do Azemel: (A) localização geográfica; (B) exemplo de acumulação de LCTs.
30
Figura 3 – Uniface: proto-limande com talão (A); Biface parcial: lanceolado típico (C); Biface: amigdalóide com talão (B), lan-
ceolado típico (D-E), de bisel terminal (F).
32
PALEOTEJO – UMA REDE DE TRABALHO
PARA A INVESTIGAÇÃO E PARA O
PATRIMÓNIO RELACIONADO COM
OS NEANDERTAIS E PRÉ-NEANDERTAIS
Telmo Pereira1, Luís Raposo2, Silvério Figueiredo3, Pedro Proença e Cunha4, João Caninas5, Francisco Henriques6,
Luiz Oosterbeek7, Pierluigi Rosina8, João Pedro Cunha-Ribeiro9, Cristiana Ferreira10, Nelson J. Almeida11,
António Martins12, Margarida Salvador13, Fernanda Sousa14, Carlos Ferreira15, Vânia Pirata16, Sara Garcês17,
Hugo Gomes18
1. Universidade Autónoma de Lisboa, Instituto Politécnico de Tomar, CGeo-Centro de Geociências, Uniarq – Centro de Arqueologia
da Universidade de Lisboa. / [email protected]
2. Museu Nacional de Arqueologia / Associação dos Arqueólogos Portugueses / ICOM-Conselho Internacional dos Museus /
[email protected]
7. Instituto Politécnico de Tomar, CIPSH – Conselho Internacional para a Filosofia e Ciências Humanas, CGeo-Centro de Geociências /
[email protected]
11. Uniarq – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa; Departamento de História, Universidade de Évora /
[email protected]
ABSTRACT
The west of the Iberian Peninsula is an important region for the knowledge of the Lower and Middle Palaeoli-
thic because it was where human dispersal westwards in Eurasia ended. At the same time, it was an ecological
refuge whose diversity of resources and landscapes allowed for cultural idiosyncrasies. Although research on
the Palaeolithic in Portugal began in the 19th century, its knowledge is still scarce, not very detailed and dis-
persed, both in time and space.
The project PaleoTejo – Lower and Middle Palaeolithic in the Tagus River is driven by three main objectives: 1) study
of assemblages; 2) geoarchaeological characterization of the contexts; 3, respective dating and, finally, system-
atic publication of the results. Here we present the historical framework of the investigations and the current
state of the work.
Keywords: Acheulean; Mousterian; Tagus basin; Geoarchaeology; Second half of the Middle Pleistocene.
34
cidos na bacia do Rio Tejo, na sua maioria reconhe- te na região de Vila Nova da Barquinha (Cura 2013),
cido como relevantes, mas aos quais falta um estudo mas particularmente no sistema cárstico do Rio
detalhado. Este projeto é eminentemente um estudo Almonda, que permitiram a recolha de uma gran-
de gabinete, mas pretende também desenvolver um de quantidade de artefactos líticos em sequências
conjunto de trabalhos de campo com o intuito de re- acheulenses e mustierenses, abundantes faunas e
colher dados relevantes e em falta, especialmente, restos osteológicos humanos (Trinkaus et al. 2007,
de cariz geoarqueológicos e cronológicos. Richter et al. 2014, Matias 2016, Daura et al. 2017,
2018, Sanz et al. 2018, Nabais & Zilhão 2019, Zilhão
2. ESTADO DA ARTE et al. 2021b).
Já nos terraços, os contextos acheulenses e mustie-
Desde o estabelecimento da investigação sobre a renses conhecidos estão presentes no T4 (340-155ka
Pré-história em Portugal no final do século XIX que – Acheulense e Mustierense), T5 (140-70ka – Mus-
foram identificados vários vestígios os quais apon- tierense) e T6 (60-35ka – Mustierense) (Martins et al.
tavam para uma ocupação humana muito antiga, 2010, 2017, Almeida 2012, 2014, Cunha et al. 2016,
nomeadamente no vale do Tejo (Ribeiro 1866, 1867, 2017b, 2017a, Cunha 2019, Pereira et al. 2019) cen-
1871, 1873, 1880). tral Portugal.
Entre 1930 e 1960, os trabalhos efetuados pelos Em suma, atualmente, o conhecimento da sequência
Serviços Geológicos no Vale do Tejo resultaram na do Paleolítico Inferior em Portugal começa apenas
construção de um quadro que correlacionava a alti- no Acheulense, sendo muito poucos os sítios esca-
tude dos terraços fluviais com a patina dos artefactos vados, datados, estudados e publicados em detalhe.
líticos encontrados nas suas superfícies, combina- Já no que concerne ao Paleolítico Médio, a diferen-
ção essa que servia para inferir a cronologia do de- ça é também acentuada com lacunas de dezenas de
pósito dos terraços onde ocorriam esses artefactos milhares de anos entre contextos e falta de publica-
(Breuil & Zbyszewski 1942, Zbyszewski 1943, 1954, ções sistemática e detalhada dos sítios. Porém, exis-
1962, Zbyszewski et al. 1970). Todavia, a investiga- tem vários sítios bem escavados e recorrentemente
ção realizada posteriormente não reviu nem ques- referidos na bibliografia, para os quais falta apenas
tionou este sistema, o que levou à continuação do um estudo exaustivo segundo critérios modernos e
seu uso até à década de 1990, momento em que se a sua publicação detalhada (Figura 1 e Tabela 1).
iniciou uma nova etapa tendo agora por base a tec- Assim, tendo em consideração o estado atual dos
tónica, as datações radiométricas e novos estudos conhecimentos, a sua qualidade e potencialidade,
arqueológicos. os trabalhos já efetuados, o rigor dos registos de
Nas décadas de 1970 e 1980, os trabalhos de cam- campo e a disponibilidade para o seu estudo, sele-
po realizados em Vila Velha de Ródão pelo GEEP cionamos um conjunto que, após a informação devi-
– Grupo de Estudos para o Paleolítico Português leva- damente sistematizada e cruzada, cremos que pos-
ram à descoberta do complexo de arte rupestre do sam trazer um contributo muito significativo para
Tejo e de sítios acheulenses e mustierenses, alguns a construção de quadros de referência para estas
dos quais foram sondados e escavados, revelando, comunidades, nomeadamente no que diz respeito
nalguns casos, contextos com excelentes condições às características das indústrias líticas, à funciona-
de preservação, conservando fauna e estruturas lidade das ocupações, às ecodinâmicas e cronologia
(G.E.P.P. – Grupo de Estudos para o Paleolítico Por- das respetivas populações.
tuguês 1977, Raposo et al. 1985b, 1993). Simultanea- O vale do Tejo é excelente para esta investigação por
mente, trabalhos em Alpiarça, na região do Vale do diversas razões. Em primeiro lugar, é o rio mais ex-
Forno, permitiram identificar importantes jazidas tenso da Península Ibérica, atravessando-a de leste a
acheulenses, algumas delas estudadas (Raposo et al. oeste por uma diversidade de paisagens ricas em re-
1985a, Raposo 1996, Salvador 2002) porém, a maio- cursos bióticos e abióticos que permitiram a criação
ria acabou por não o ser extensivamente nem publi- de ecossistemas favoráveis à sobrevivência e fixação
cados em detalhe. dos grupos humanos. Em segundo lugar, porque
Na passagem do século XX para o século XXI e em fez a fronteira entre as regiões biogeográficas euro-
continuação até aos dias de hoje, deram-se avanços siberiana e mediterrânica ao longo das flutuações
muito significativos na bacia do Tejo, especificamen paleoambientais globais, com potencial relevância
36
volvimento, nomeadamente do sítio Vale do Forno Dados (bdFENX) em Access. No decurso deste pro-
8, não só consolidam a relevância da análise das di- cesso, foram digitalizados todos os materiais gráfi-
nâmicas subjacentes à produção dos elementos que cos como plantas e perfis, assim como as folhas de
constituem as indústrias líticas acheulenses como informação das cotagens de cada nível/UE/quadra-
forma de explorar a complexidade comportamental do. Esta base de dados será posteriormente faculta-
destes grupos humanos no ocidente europeu como da ao Museu Nacional de Arqueologia para carrega-
colocam em evidência a importância das coleções mento do inventário na MATRIZ.
do Vale do Tejo para o conhecimento deste período. Após toda a inserção dos dados, foram verificados
Já no segundo caso, o trabalho versou sobre os con- todos os materiais líticos, de forma individualizada,
textos expostos e conjuntos artefactuais recupera- e retificados alguns dos atributos, como a descrição,
dos por trabalhos de Arqueologia Empresarial em matéria-prima, conservação e alteração, permitindo
2003, 2018 e 2019 que incluíram recolhas de super- a atualização da base de dados. No decurso destes
fície, sondagens mecânicas, sondagens manuais e trabalhos foram ainda desenhados dezenas de arte-
escavação, e a sua comparação com os artefactos factos que incluem núcleos, lascas, pontas Levallois
presentes no Museu Geológico de Lisboa e no Mu- e uma vasta série de utensílios retocados. Todo este
seu de História Natural da Universidade do Porto. trabalho está já concluído.
De salientar, a enorme discrepância entre as cole- Em curso encontra-se a ilustração arqueológica de
ções dos museus (mais pequenas e dominadas por mais artefactos líticos, o desenho digital (Adobe
Large Cutting Tools) e as recuperadas em contexto Illustrator) das plantas e perfis (Fernanda Sousa), a
de Arqueologia Empresarial (maiores e compostas correção de cotas e orientação dos quadrados (Mar-
quase exclusivamente por suportes e núcleos). Estes garida Salvador), a análise tecnológica atualizada
trabalhos revelaram ainda a inexistência de níveis dos líticos (Telmo Pereira, Fernanda Sousa, Marga-
arqueológicos dentro do terraço até, pelo menos, 3 rida Salvador) e a análise das restantes faunas (Silvé-
metros de profundidade, bem como dupla pátina na rio Figueiredo).
maioria das peças a distinguir ambas as faces das Uma breve comparação entre a Foz do Enxarrique
peças. A combinação destes dois aspetos sugere que e Vale do Forno 8 (Figura 3) mostra fortes seme-
estas se encontram onde foram feitas, usadas e dei- lhanças em vários aspetos. Desde logo, as matérias-
xadas, ausência de sedimentação sobre as mesmas -primas mostram pequenas variações no quartzito
e um revolvimento recente do contexto, provavel- e quarto, nos restos de talhe, nos seixos talhados e
mente, associado à agricultura (Pirata 2023). nos raspadores. As principais diferenças surgem na
Já no que diz respeito ao Mustierense, o trabalho maior quantidade de debitagem e de utensílios, so-
desenvolvido focou o inventário da Foz do Enxarri- bretudo denticulados e furadores em VF8, enquan-
que (Tabela 2 e Figura 2). O conjunto faunístico tem to na FENX existem mais pontas, buris (mas estes
sido estudado por Silvério Figueiredo e publicado ao podem ser falsos buris) e mais núcleos. Em geral, os
longo dos anos (Raposo & Brugal 1999, Figueiredo dados atualmente disponíveis sugerem uma tecno-
2010, Figueiredo et al. 2021). Já no que diz respeito logia mais oportunista, com abundância de matéria-
ao conjunto lítico, o trabalho de inventário foi feito -prima de boa qualidade no local, na FENX e uma
por Margarida Salvador e Fernanda Sousa, tendo-se maior rentabilização dos suportes (menos núcleos e
iniciado em 2019 e sido concluído em 2023. mais utensílios) no VF8.
Durante a organização da sala cedida no Museu Na- As razões por trás destas diferenças poderão estar li-
cional de Arqueologia, para o estudo dos materiais gadas à funcionalidade dos sítios, a tradições cultu-
da Foz do Enxarrique (FENX), procedeu-se à lim- rais, cronológicas ou ainda resultantes do emprego
peza e marcação de líticos provenientes dos traba- de diferentes sistemas tecnológicos. Espera-se que
lhos de escavação dos anos 1998, 2000 e 2001. Os a continuação dos estudos permitam clarificar e dar
cadernos de campo foram selecionados por ano de resposta as estas questões.
campanha, e arquivados em pasta única, juntamen- Importa ainda referir que, no âmbito de outros pro-
te com todas as informações disponíveis para o res- jetos, foram executadas, por membros desta equipa
petivo ano. (Francisco Henriques e João Caninas, com Carlos
Toda a informação contida nos cadernos foi siste- Neto de Carvalho), prospeções arqueológicas sobre
matizada e informatizada para a criação da Base de formações cenozóicas, na zona montante da bacia
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40
# Sítio(s) CNS Cronologia Concelho Distrito
1 Malhadinhas 11576 Acheulense Salvaterra de Magos Santarém
2 Cabeço da Mina n/d Acheulense Salvaterra de Magos Santarém
3 Vale do Forno 1 5854 Acheulense Alpiarça Santarém
4 Vale do Forno 2 5855 Acheulense Alpiarça Santarém
5 Vale do Forno 3 1482 Acheulense Alpiarça Santarém
6 Vale do Forno 4 5856 Acheulense Alpiarça Santarém
7 Vale do Forno 5 6233 Acheulense Alpiarça Santarém
8 Vale do Forno 6 7323 Acheulense Alpiarça Santarém
9 Vale do Forno 7 7317 Acheulense Alpiarça Santarém
10 Vale do Forno 8 7318 Acheulense Alpiarça Santarém
11 Vale do Forno 9 7319 Acheulense Alpiarça Santarém
12 Vale do Forno 10 n/d Acheulense Alpiarça Santarém
13 Mato de Miranda 38556 Acheulense Golegã Santarém
14 Martim Ladrão n/d Acheulense Golegã Santarém
15 Rua das Gamelinhas n/d Acheulense Chamusca Santarém
16 Casal Trincão n/d Acheulense Golegã Santarém
17 Ramalhosa 27756 Acheulense Torres Novas Santarém
18 Casal do Seixo n/d Acheulense Torres Novas Santarém
19 Castelo Velho 3264 Acheulense Torres Novas Santarém
20 RCAMB 37949 Acheulense Entroncamento Santarém
21 Gruta do Cadaval 4930 Mustierense Tomar Santarém
22 Lagoa do Bando 34296 Mustierense Mação Santarém
23 Cobrinhos 35437 Mustierense Vila Velha de Ródão Castelo Branco
24 Monte da Revelada 36870 Mustierense Vila Velha de Ródão Castelo Branco
25 Alto da Revelada 36869 Mustierense Vila Velha de Ródão Castelo Branco
26 Vilas Ruivas 56 Mustierense Vila Velha de Ródão Castelo Branco
27 Foz do Enxarrique 2220 Mustierense Vila Velha de Ródão Castelo Branco
28 Monte do Famaco 33282 Acheulense Vila Velha de Ródão Castelo Branco
Figura 2 – Foz do Enxarrique. Distribuição das materiais líticos pelas respetivas matérias-primas (Margarida Salvador e
Fernanda Sousa).
42
Figura 3 – Comparação entre as indústrias de Foz do Enxarrique (FENX) e Vale do Forno 8 (VF8) (Luís Raposo).
RESUMO
Malhadinhas é um sítio acheulense localizado no terraço T4, na margem esquerda do Rio Tejo. O depósito
caracteriza-se pela sequência de camadas de densas cascalheiras com seixos rolados de quartzito intercaladas
por camadas de argila.
Conhecido há mais de um século, o sítio foi teve trabalhos sumários de recolha e estudo de materiais. Em 2019,
a construção de uma Central Fotovoltaica permitiu, pela primeira vez, a realização de sondagens que expuse-
ram a sequência do depósito de terraço e a recolha de mais de 1300 elementos líticos, entre artefactos típicos
do Acheulense, e amostras de matéria-prima. Esta combinação, constitui um contributo significativo para o
conhecimento e divulgação dos testemunhos acheulenses na bacia do Rio Tejo.
Palavras-chave: Acheulense; Tecnologia lítica; Vale do Tejo; Terraço T4.
ABSTRACT
Malhadinhas is an Acheulean site located on the T4 terrace, on the left bank of the Tagus River. The deposit is
characterized by a sequence of layers of dense gravel with rolled quartzite pebbles, separated by layers of clay.
The site is known for more than a century and had summary archaeological work and sampled. In 2019, the
construction of a photovoltaic power plant made it possible for the first time to do mechanical test pits that
revealed the sequence context and to collect more than 1300 lithic elements, including artefacts typical of the
Acheulense and samples of raw materials. This combination represents a significant contribution to the knowl-
edge and dissemination of the Acheulean remains in the basin of the Tagus River.
Keywords: Acheulean; Lithic Technology; Tagus Valley; Terrace T4.
2. Universidade Autónoma de Lisboa / CGeo-Centro de Geociências / UNIARQ, Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa/
Instituto Politécnico de Tomar / [email protected]
46
gicos, que visa a caracterização da indústria lítica, a referência sobre tecnologia (Inizan et al., 1999) e
caracterização de dados geomorfológicos, litoestra- tipologia lítica (Bordes, 1961; Tixier, 1956; Leroy-
tigráfios, sedimentológicos, paleontológicos e data- -Prost, et al., 1981).
ções absolutas. De carácter multidisciplinar pretende
fazer a ligação entre diversas universidades, centros 5. RESULTADOS
de investigação, associações e empresas, transversal
às várias gerações que trabalharam no Tejo (Martins Trabalho de campo
e Cunha, 2009; Pereira, et al., 2021; 2022). A prospecção permitiu verificar que os materiais se
encontravam dispersos de forma relativamente ho-
3. CONTEXTO GEOMORFOLÓGICO mogénea, sem concentrações significativas, do que
se depreende que a ocupação tenha ocorrido em
Malhadinhas localiza-se em Salvaterra de Magos a toda a plataforma. Paralelamente, todos os artefac-
uma altitude de 45 metros. tos foram encontrados na camada superficial, não se
A sua posição geomorfológica está na base do de- tendo identificado qualquer nível arqueológico ou
pósito sedimentar do terraço T4 do Tejo (Figura 1) vestígio isolado nos metros subjacentes expostos pe-
numa área plana de ondulação suave, formadas por las sondagens mecânicas.
sedimentos arenosos e cascalhentos, complexos As sondagens confirmaram que toda esta área cor-
areno-argilosos e algumas formações carbonatadas responde ao topo do terraço T4 do Baixo Tejo, antigo
(SIG, 2018). As formações que ocupam maior exten- Q3 cartografado na Carta Geológica de Portugal, fo-
são correspondem a areias e cascalheiras de génese lha 31-C (Coruche) de 1967, reconhecer e descrever
indiferenciada, da Bacia Cenozoica do Baixo Tejo as camadas de topo até à cota de afetação da obra,
(SIG, 2018). assim como a distribuição e enquadramento dos ves-
tígios arqueológicos na sequência estratigráfica ex-
4. METODOLOGIA posta e interpretar o significado crono-cultural das
indústrias líticas.
A prospecção arqueológica da área de implantação Os resultados foram semelhantes e coerentes entre
da central fotovoltaica, numa fase prévia à de cons- cada sondagem com o topo da sequência das sonda-
trução, teve como objectivo o reconhecimento do gens mecânicas, indicando uma formação homogé-
terreno e de áreas de concentração artefactual, em nea do depósito geológico e dos depósitos arqueo-
simultâneo foi realizado o levantamento fotográfico, lógicos a ele associados. Verificou-se a presença de
a recolha e georreferenciação. Estes trabalhos per- uma sequência sedimentar constituída por três (nas
mitiram uma primeira avaliação sobre o potencial extremidades SO e SE) a quatro (nas extremidades
científico e patrimonial de toda a área. NO e NE) unidades estratigráficas que correspon-
Foram realizadas oito sondagens mecânicas com dem do topo para a base:
8x2 m e cinco sondagens manuais com 2x2 m, pro- [101] Nível de superfície, composição siltosa, de co-
postas no Estudo de Impacto Ambiental (Batista, et loração castanha acinzentada, com inclusão de sei-
al., 2019) nas áreas de maior concentração dos acha- xos de quartzito de médio e grande calibre e artefac-
dos e onde se previa uma maior afectação do solo, tos líticos. Potência sedimentar que se situa entre os
com o objetivo de aferir a existência de contextos 20 cm e 55 cm.
arqueológicos preservados. A escavação seguiu o [102] Sedimento revolvidos pela agricultura, de
método de decapagem das unidades estratigráficas composição argilosa de cor amarelada, com inclu-
com recolha de todos vestígios arqueológicos. Fo- são de seixos de quartzito de médio calibre e alguns
ram ainda recolhidas amostras de sedimentos para artefactos líticos. Potência sedimentar que se situa
datação absoluta. entre os 15 cm e 30 cm.
Todos os trabalhos de construção que implicaram [103] Depósito de origem natural de composição are-
revolvimento e escavação de solos, foram alvo de no-argilosa, com alguns seixos de quartzito de médio
acompanhamento arqueológico e registados sob a calibre. Apresenta uma coloração laranja avermelha-
forma de fichas de acompanhamento arqueológico, da; possui uma potência sedimentar que partia dos
caderno de campo, e fotografias (Pirata et al., 2019). 75 cm, e se prolongava além da sondagem.
A análise dos materiais líticos seguiu trabalhos de [104] depósito de origem natural de composição
48
1930, teve um carácter selectivo, sendo o tipo de fer- logia empresarial e a Arqueologia Académica é ain-
ramenta mais comum, os bifaces. Isto contrasta radi- da desproporcional entre estes dois ramos (Luciano,
calmente com as recolhas feitas em 2019 composto 2023). Esta situação é desfavorável a ambas. Por um
por um conjunto homogéneo, constituído essencial- lado, a Arqueologia Académica usufrui pouco dos
mente por núcleos em diferentes graus de explora- novos contextos, por outro, a Arqueologia Empre-
ção e lascas não corticais, corticais, mas sobretudo, sarial não explora o valor acrescentado do conheci-
semi-corticais. Notam-se alguns entalhes recentes e mento proveniente dos especialistas académicos e
dispersos nas arestas de algumas peças que deverão dos recursos dos centros de I&D.
decorrer do pisoteamento e dos trabalhos agrícolas. Neste contexto e, na ausência de projetos de investi-
Por outro lado, a maioria das peças de ambas as co- gação, especificamente direcionados para o estudo
leções apresentam dupla patina indicando a sua ex- do Paleolítico Inferior, é através das intervenções de
posição parcial aos elementos durante um período arqueologia preventiva que se têm vindo a exumar
muito longo, o que poderá sugerir que os artefactos materiais potencialmente associáveis ao tecnocom-
foram talhados, usados e abandonados, que o depó- plexo Acheulense (Ferreira, et al., 2021). No entanto
sito não esteve coberto por sedimento na maior par- a esmagadora maioria dos materiais recolhidos nes-
te do tempo, ficando as peças na sua posição original te tipo de intervenções, não foi alvo de estudo ou pu-
até ao revolvimento do terreno pela agricultura. Por blicação, situação, que não só impossibilita a correta
fim, o facto de não se verificar qualquer artefacto Le- compreensão de tais achados e a sua potencial asso-
vallois permite excluir a presença de Mustierense. ciação ao tecnocomplexo Acheulense, como impe-
No Tejo, com uma indústria rica em seixos talhados de a sua problematização no âmbito das indústrias
e lascas de grandes dimensões, denota-se pouca re- líticas do Plistocénico Médio do ocidente europeu
presentatividade dos machados-de-mão, o que está (Ferreira, et al., 2021). Esperemos que o desenvol-
em sintonia com a variabilidade documentada nou- vimento de novas investigações multidisciplinares,
tros conjuntos acheulenses peninsulares e permite o estudo geoarqueológico dos terraços fluviais das
reforçar a importância da vertente atlântica do ter- principais bacias hidrográficas, assim como na ob-
ritório ibérico para a compreensão das complexas tenção de datações absolutas e o estudo tecnotipoló-
dinâmicas populacionais do continente europeu du- gico de antigas e novas coleções, permitam ampliar
rante a segunda metade do Plistocénico Médio, no o nosso conhecimento acerca do comportamento
âmbito da coexistência de grupos distintos de homi- humano no território português durante a segunda
níneos com diferentes tecnologias e origens geográ- metade do Plistocénico Médio e a sua inserção no
ficas (Méndez-Quintas, et al., 2020). contexto Europeu (Ferreira, et al., 2021).
Considerando o seu enquadramento geomorfológi-
co e arqueológico, a formação do sítio Malhadinhas BIBLIOGRAFIA
corresponderá ao intervalo entre o MIS 9 até à transi- BAR-YOSEF, Ofer; BELFER-COHEN, Anna (2013) – Follow-
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fase de forte incisão do Tejo, eventualmente asso- tónico e Etnográfico do Estudo de Incidências Ambientais
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52
Classificação Matéria-Prima Total
Quartzito Sílex
Núcleos 111 5 116
Fragmento de núcleo 53 53
Lascas 145 3 148
Fragmento de lasca 64 64
Utensílios retocados 43 43
Raspador simples côncavo 1 1
Raspador duplo direito 1 1
Raspador convergente côncavo 1 1
Raspador transversal direito 2 2
Raspador de face plana 2 2
Raspador de retoque abrupto 1 1
Buril atípico 1 1
Entalhe 6 6
Lasca retocada na face ventral 4 4
Lasca espessa com retoque abrupto 4 4
Lasca plana com retoque abrupto 15 15
Entalhe distal 2 2
Raspador simples direito 3 3
Utensílios configurados 50 50
Biface Cordiforme alongado 9 9
Biface Discoide 1 1
Biface em Bisel terminal 1 1
Biface Limande 5 5
Biface Subcordiforme 9 9
Biface Subtriangular 7 7
Biface Cordiforme 4 4
Biface Ovalar 2 2
Biface Triangular 3 3
Machados-de-mão 3
TIXIER 1 2 2
TIXIER 2 1 1
Picos 6
TIPO 2.1 2 2
TIPO 2.3 1 1
TIPO 3.3 3 3
Seixos 54 2 56
Seixos talhados (Chopper/Chopping tool) 14 14
Seixos talhados bifaciais 7 7
Unifaces 17 17
Diversos 4 4
Fragmento de seixo 12 2 14
Total 520 10 530
54
Figura 2 – Aspecto dos trabalhos de escavação em profundidade – a) caixa 2; b) caixa 4; c) e d) caixa 7 (projecto CF GRANHO-19).
56
Figura 4 – a) e b) Esboços de biface sobre seixo (projecto CF GRANHO-19).
58
Figura 6 – a) Biface sobre seixo; b) Uniface sobre lasca (colecção do Museu Geológico). Autor: dr. José Moita.
60
O ABRIGO DO LAGAR VELHO REVISITADO
Ana Cristina Araújo1, Ana Maria Costa2, Montserrat Sanz3, Armando Lucena4, Joan Daura5
RESUMO
Em 2018 inicia-se uma nova fase de investigação no Lagar Velho ao abrigo do projecto ALV. Os trabalhos inci-
diram na escavação dos depósitos subjacentes à EE15, numa área de 16m2, que levaram à identificação de uma
sequência sedimentar muito complexa e onde o contributo de distintos agentes biológicos constitui o maior
desafio à investigação arqueológica. O Nível 143, a unidade geoarqueológica mais importante agora documen-
tada, caracteriza-se por uma elevada taxa de termoalteração da componente faunística e uma reduzida presen-
ça de artefactos líticos, por oposição ao elevado número de seixos representado. O conjunto de datações 14C
obtidas indicam a sua contemporaneidade com o enterramento infantil. Foi igualmente identificada no decurso
das investigações uma nova ocupação gravetense, designada de Nível 100.
Palavras-chave: Abrigo do Lagar Velho; Projecto ALV; Gravetense; N143; N100.
ABSTRACT
In 2018, a new research phase began at Lagar Velho under the ALV project. The investigations focused on the
excavation of the deposits underlying EE15, in an area of 16m2, which led to the identification of a very complex
sedimentary sequence where the contribution of different biological agents constitutes the greatest challenge to
archaeological research. Level 143, the most important geoarchaeological unit now recognized, is characterized
by a high rate of thermoalteration of the faunal component and a low proportion of lithic artefacts, as opposed
to the high number of pebbles represented. The set of dates currently available points to its contemporaneity
with the infant burial. A new Gravettian occupation, designated Level 100, was also identified during these
investigations.
Keywords: Lagar Velho rock shelter; ALV project; Gravettian; N143; N100.
1. Laboratório de Arqueociências (LARC)-DGPC, Calçada do Mirante à Ajuda, nº 10A, 1300‑418 Lisboa, Portugal / Faculdade de
Letras, UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa, Universidade de Lisboa, 1600‑214 Lisboa, Portugal / InBIO
Laboratório Associado, BIOPOLIS – Programme in Genomics, Biodiversity and Land Planning, CIBIO – Centro de Investigação em
Biodiversidade e Recursos Genéticos, Vairão, Portugal / [email protected]
2. Laboratório de Arqueociências (LARC)-DGPC, Calçada do Mirante à Ajuda, nº 10A, 1300‑418 Lisboa, Portugal / InBIO Labora-
tório Associado, BIOPOLIS – Programme in Genomics, Biodiversity and Land Planning, CIBIO – Centro de Investigação em Biodi-
versidade e Recursos Genéticos, Vairão, Portugal / IDL – Instituto Dom Luiz, Universidade de Lisboa, Edifício C6, Piso 3, 1749‑016
Lisboa, Portugal / [email protected]
3. Faculdade de Letras, UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa, Universidade de Lisboa, 1600‑214 Lisboa,
Portugal / Grup de Recerca del Quaternari, GRQ‑SERP, Departamento de História e Arqueologia, Universitat de Barcelona, 08001
Barcelona, Espanha / [email protected]
5. Faculdade de Letras, UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa, Universidade de Lisboa, 1600‑214 Lisboa,
Portugal / Grup de Recerca del Quaternari, GRQ‑SERP, Departamento de História e Arqueologia, Universitat de Barcelona, 08001
Barcelona, Espanha / [email protected]
62
sobretudo nas quadrículas A a C (Figura 3), confir- campo se centraram na escavação dos depósitos
maram as mesmas observações quanto à carateriza- subjacentes à EE15 (que ficaram por concluir), numa
ção arqueológica e disposição relativa das unidades área de 16m2 (sector EE, Escavação em Extensão). Os
estratigráficas, bem como as respectivas condições trabalhos desenvolvidos ao abrigo deste novo pro-
tafonómicas (Araújo e Costa, 2013). jecto de investigação permitiram i) documentar con-
Mais para poente, e afastada do contexto sepulcral, textos acumulados por agentes biológicos distintos,
mas praticamente à mesma profundidade, foi esca- humanos e animais, na área de escavação EE, subja-
vada a partir de 2000 uma superfície de ocupação centes aos depósitos arqueológicos escavados entre
do Gravetense recente (designada de EE15, Escava- 2000 e 2009 (Fiadas G-J / 3-9; ver Figura 2 e Figura
ção em Extensão) muito bem preservada e aparen- 4); ii) identificar uma nova ocupação humana, tam-
temente organizada em torno de duas áreas de bém Gravetense, numa área imediatamente contí-
combustão com arquitecturas e funcionalidades dis- gua a EE, (Fiada 10 / I-J) para leste e sobrejacente à
tintas, a lareira do talhe e a lareira da fauna (Almei- ocupação EE15, poupada à retroescavadora em ~2m2;
da et al., 2009a; ver Figura 2), cujo funcionamento iii) afinar a cronologia absoluta da ocupação huma-
terá decorrido no quadro de estadias repetidas de na do abrigo (14C e OSL) e iii) do quadro paleoam-
curta duração putativamente relacionadas com o biental que serviu de cenário aos grupos humanos
tratamento de peles, como sugerem Almeida et al., do Gravetense; iv) compreender as relações crono-
(2009a). A cronologia absoluta de EE15 foi estabe- -culturais entre o episódio de ocupação protagoni-
lecida a partir da datação absoluta de uma amostra zado pelo enterramento infantil (Sector Nascente)
de carvão de Pinus sylvestris recuperada no interior e as ocupações humanas escavadas em EE (Sector
da lareira da fauna (Almeida et al., 2009a; Zilhão e Poente). Aproveitando o desenvolvimento científico
Almeida, 2002), em H4, a qual forneceu o resultado ocorrido em vários domínios das arqueociências e
de 22493±107 BP (Wk-9256) que, calibrado, situa a da investigação paleolítica nas duas décadas que se
ocupação no intervalo de tempo entre os 27121 e os seguiram à descoberta de ALV e de LV1, este novo
26436 anos atrás. O grau de integridade arqueológi- projecto alicerçava-se num programa de análises de
ca deste horizonte de ocupação é invulgar. Com efei- alta resolução de modo a distinguir e caracterizar
to, foi possível remontar 35% dos artefactos líticos, eventos específicos de actividade que tiveram lugar
98% se for considerada a variável peso, correspon- no Lagar Velho, dando-lhes suporte tafonómico e ri-
dendo os restantes restos a pequenas esquírolas de gor cronológico. Embora estas análises e estudos se
talhe não intencionais resultantes do normal proces- encontrem ainda em curso, é possível apresentar no
so de talhe dos volumes de matéria-prima (Almeida âmbito das presentes actas alguns resultados das in-
et al., 2009a). A esmagadora maioria da componen- vestigações conduzidas no abrigo entre 2018 e 2022
te lítica da EE15 encontrava-se na área ocupada pela no quadro do projecto ALV.
denominada lareira do talhe, uma pequena estrutu-
ra de combustão (c.70cm de diâmetro) construída 2. A SUPERFÍCIE DE OCUPAÇÃO EE15 (2000 –
com lajes de calcário recuperadas já termoalteradas. 2009) E O NÍVEL 143
A lareira da fauna, pelo seu lado, apresentava forma,
dimensão e conteúdo distinto: tratava-se de uma Finalizar a escavação da superfície de ocupação EE15
grande cuvete que ocupava uma área de cerca de e identificar a relação estratigráfica entre as princi-
3,5m2 e uma profundidade de 20cm, preenchida com pais unidades que formavam este horizonte de ocu-
carvões, ossos maioritariamente queimados (sobre- pação constituíam objectivos das campanhas con-
tudo porções apendiculares de veado) e calhaus ter- duzidas no sector poente de ALV, fiadas G-J / 4-9.
moclastados. A lareira do talhe serviu para aquecer A Figura 5 mostra a situação da área Escavação em
os artesãos no decurso das suas actividades de talhe; Extensão (EE) em 2012, quando se procedeu à colo-
a lareira da fauna para as artes culinárias e de prepa- cação de geotêxtil e areias para protecção da área
ração de carcaças. arqueológica intervencionada anteriormente e, em
A partir de 2018 inicia-se uma nova fase de investi- 2018, quando se voltou a retirar essa mesma protec-
gação arqueológica no quado do projecto ALV – O ção para dar início à primeira campanha arqueoló-
Abrigo do Lagar Velho e os primeiros humanos moder- gica ao abrigo do projecto de investigação ALV: em
nos do extremo ocidental europeu, cujos trabalhos de H-I8 observa-se ainda a base da lareira do talhe,
64
de das matérias-primas trabalhadas e dos tipos líti- lareira do talhe. Os resultados obtidos são estatisti-
cos recuperados. Com efeito, a componente lítica de camente comparáveis aos do Nível 143 e apontam
N143 é constituída, maioritariamente, por seixos de para a formação de EE15 entre os ~28.5 e os - 29.3
quartzito e de quartzo inteiros, fragmentados ou em ka cal BP (limites baseados em seis resultados 14C),
fragmentos (N=1520), cuja presença no sítio se deve aproximando-se, portanto, dos resultados radio-
maioritariamente a factores naturais (embora 31,5% métricos da N143 (Figura 8; Tabela 1). É necessário,
apresente sinais de termoalteração), tendo sido in- porém, jogar com toda a informação disponível (de
ventariadas apenas 168 peças com estigmas claros natureza espacial, estratigráfica, arqueológica e ta-
de talhe intencional (Alonso-Fernández et al., 2023). fonómica) de modo a compreender a sucessão de
Este comportamento singular da tecnologia lítica acontecimentos que tiveram lugar em ALV, numa
tem de ser entendido no quadro da especificidade perspectiva duplamente sincrónica e diacrónica.
do contexto arqueológico posto a descoberto em O modelo bayesiano construído com base nas data-
N143, e que mostra a existência de um leque muito ções 14C e OSL obtidos para o Lagar Velho (Arnold et
mais diversificado de formas de estar e de fazer que al., 2023) é um primeiro ensaio e aponta também no
eram parte das vivências quotidianas destas socie- mesmo sentido: a contemporaneidade (à escala dos
dades ancestrais, nem sempre fáceis de discernir métodos de datação absoluta) entre ambas, EE15 e
no registo arqueológico paleolítico. Dada a enorme N143, e entre estas e o contexto sepulcral de LV1.
complexidade deste nível, onde ocorrem também
vestígios produzidos por outros agentes biológicos 3. ENTRE GRAVETENSES: O NÍVEL 100 DE ALV
(Sanz et al., 2023), é necessário aguardar pelo resul-
tado do estudo da componente faunística e das aná- Trata-se de um pequeno testemunho (c. 10 cm de es-
lises geoarqueológicas já referidas de modo a identi- pessura) que escapou também intacto às actividades
ficar qual a responsabilidade de cada um dos agentes de terraplanagem (Figura 9). Localiza-se na unidade
acumuladores na formação de N143 e construir uma de escavação I-J10 (sobretudo nesta última), no pro-
interpretação arqueológica bem fundamentada so- longamento da área de escavação EE para nascen-
bre as actividades humanas que tiveram ali lugar há te. Tem pouco mais de um metro de comprimento e
29 000 anos. encontra-se ~80cm acima da EE15. Documenta uma
Mas qual a relação de N143 com a EE15, nomeada- ocupação que, necessariamente, pela sua posição
mente com a EE15b, a very dark area composed of estratigráfica, formou-se no decurso do tecnocom-
ashes, charcoal fragments and burnt fauna (Almeida plexo gravetense. Com efeito, este pequeno teste-
et al., 2009a, p. 245), documentada sobretudo nas munho encontra-se posicionado entre o TP06 (Gra-
unidades de escavação H3, H4 e G4 (ver Figura 2) e vetense terminal, ~26.0 ka cal BP) e a Superfície de
interpretada como estrutura de combustão cujo fun- Ocupação EE15 (Gravetense Final, ~29.0 Ka cal BP)
cionamento ocorreu há 27 000 anos? A resposta a e constitui o Nível 100. A cronologia absoluta deste
esta questão é complexa e exige, ainda, a conclusão contexto indica que a sua formação teve lugar à ~27.8
dos estudos em curso. No entanto, houve, também ka cal BP (datação baseado em três resultados 14C).
aqui, e relativamente a este assunto, uma aposta Um dos aspectos mais interessantes que caracteri-
forte na extensão do programa de datação absoluta zam esta nova ocupação entre gravetenses diz respei-
aos contextos escavados no quadro dos antigos tra- to aos padrões tecnológicos e faunísticos aqui do-
balhos de escavação dirigidos por F. Almeida (Sec- cumentados, que se afastam de forma bem clara do
tor EE) e por J. Zilhão (Testemunho Pendurado e área comportamento representado na EE15 e em N143,
sepulcral) de modo a afinar a diacronia da ocupação aproximando-se mais das características identifi-
humana do abrigo, aproveitando o desenvolvimen- cadas no TP06, embora a área escavada e o número
to que, entretanto, se verificou nos métodos de da- de vestígios recuperado sejam extremamente redu-
tação absoluta e nas técnicas e procedimentos de zidos. Com efeito, e contrariamente ao verificado
descontaminação das amostras sujeitas à datação na EE15 e em N143, este testemunho inclui i) uma
por radiocarbono. componente lamelar; ii) a utilização de sílex para a
A selecção das amostras da EE15 foi muito criterio- produção destes pequenos produtos alongados; iii) a
sa e recaiu sobre materiais com localização precisa presença de Lagomorpha, praticamente ausente em
recuperados por F. Almeida na lareira da fauna e na N143 e em EE15 (Figura 10). A presença de pequenos
66
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68
Figura 2 – A. Planta de ALV com a localização das áreas de intervenção levadas a cabo entre 1998 e 2009. B e C. Superfície de
Ocupação EE15 em 2018, após retirada do geotêxtil que protegia os depósitos arqueológicos escavados por F. Almeida, vista de
Oeste. A cinzento (A), localização das sondagens arqueológicas; os dois círculos desenhados na área EE (A) correspondem às
duas estruturas de combustão documentadas na referida superfície de ocupação.
Figura 4 – Esquema diacrítico com a localização no tempo e no espaço dos principais episódios de ocupação identificados no
Abrigo do Lagar Velho entre 1998 e 2009.
70
Figura 5 – Área Escavação em Extensão (EE) em 2018, quando se iniciou a primeira campanha de trabalhos arqueológicos ao
abrigo do projecto de investigação ALV.
72
Figura 7 – Perfil F/G, em cima) (Perfil Norte da Fiada G) e 5/6, em baixo (Perfil Este a Fiada 5) onde se observam os níveis 143
e 144.
Figura 8 – Um exemplo das relações estratigráficas e cronológicas que podem ser estabelecidas entre a EE15b e a N143, jogando
apenas com um conjunto reduzido de resultados 14C. A: corte Norte de ALV, área EE (Fiada G) com a localização das amostras
recolhidas no interior deste perfil para datação absoluta. No Gráfico da imagem B apenas estão incluídos os resultados de três
amostras (assinaladas a cinzento-claro no Corte e no Gráfico B). B. Gráfico com a distribuição de seis datações 14C provenientes
das escavações conduzidas ao abrigo do projecto ALV (2018 – 2022, a cinzento-claro) e das escavações de F. Almeida (2000-
2009; selecção das amostras nossa; a preto) calibradas com recurso ao programa OxCal v.4.4., utilizando a curva de calibração
IntCal20 (Radiocarbon, Volume 62, Issue 4: IntCal20: Calibration Issue, August 2020, pp. b1 - b2; Bronk Ramsey, 1995; 2001).
Figura 10 – Selecção de uma amostra de materiais líticos recuperados no Nível 100. 1. Lasca de quartzito; 2-3. Lascas de sílex;
4-6. Lamelas de sílex; 7. esquírola em quartzo hialino; 8. Fragmento proximal de lamela em sílex; 9 pequena lasca alongada em
quartzo filoniano.
Tabela 1 – Conjunto de seis datações 14C sobre amostras de osso incluídas no Gráfico (B) da Figura 8. A calibração foi realizada
com recurso ao programa OxCal v.4.4., utilizando a curva de calibração IntCal20 (Radiocarbon 62 (4), 2020, Bronk Ramsey,
1995; 2001). Radiocarbon, Volume 62, Issue 4: IntCal20: Calibration Issue, August 2020, pp. b1-b2.
74
CONTRIBUTO PARA O CONHECIMENTO
DAS INDÚSTRIAS LÍTICAS PRÉ-HISTÓRICAS
DO LITORAL DE ESPOSENDE (NW DE
PORTUGAL)
Sérgio Monteiro-Rodrigues1
RESUMO
Neste texto descrevem-se, sumariamente, 12 sítios arqueológicos com indústrias líticas talhadas, descobertos
pelo autor, a partir de 2006, na faixa litoral do concelho de Esposende. Enquadráveis no Paleolítico e na Pré-
-história Recente, estes sítios permitiram aumentar consideravelmente o número de estações arqueológicas
com artefactos de pedra lascada referenciadas na Carta Arqueológica do Concelho (7) e na Planta de Patrimó-
nio Arqueológico do Plano Diretor Municipal (4).
Palavras-chave: Indústrias líticas; Minho Litoral; Paleolítico; Pré-história recente.
ABSTRACT
In this text, 12 archaeological sites with knapped stone assemblages, discovered by the author on the coastline
of the municipality of Esposende, from 2006 onwards, are briefly described. Dating from the Palaeolithic and
from Late Prehistory, these sites considerably increased the number of archaeological sites with lithic artefacts
inventoried in the Archaeological Map of the Municipality (7) and in the Plan of Archaeological Heritage of the
Municipal Master Plan (4).
Keywords: Lithic industries; Minho Litoral region; Palaeolithic; Late Prehistory.
1. Faculdade de Letras da Universidade do Porto / Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM) /
[email protected]
76
áreas mais afastadas do rio Cávado, a cotas mais ele- berta, na praia de Rio de Moinhos, de cerâmicas ro-
vadas, nomeadamente num terraço fluvial pleisto- manas e restos de madeira, relacionados, ao que tudo
cénico, cuja base se encontra a cerca de 10 m acima indica, com um naufrágio da época do Imperador
do leito atual. Augusto (Almeida & Magalhães, 2013; Morais, 2013,
Tendo em conta que este nível de terraço surge tam- 2020), houve necessidade de expandir a área arqueo-
bém na margem sul do Cávado, e que o sítio 57/6.2 lógica, demarcando-se na PPA do PDM (em 2015)
(Cordas, Fão) se implanta nele, não é de excluir a uma faixa que se estende desde a praia de Cepães até
hipótese de os “instrumentos líticos da família dos às formações dunares a norte da ribeira do Peralta.
‘picos asturienses’”, recolhidos “entre o hospital [de Durante vários anos, o sítio 12.4 foi, então, associado
Fão] e a necrópole das Barreiras” (Almeida, 1988, a vestígios de épocas “recentes”, acrescentando-se-
p. 32), remeterem para uma realidade arqueológica -lhes, a partir de 2012, os materiais líticos talhados
paleolítica, semelhante à observada na margem nor- por nós identificados na estação pré-histórica da
te (sítio 54/9.6). praia de Rio de Moinhos (vide infra Sítio 2).
Em relação aos sítios da PPA do PDM, e, especifica- Por fim, e referindo-nos aos sítios 3.2 e 8.2, a inexis-
mente, no que toca ao sítio 1.6 – que inclui a Capela tência de informação detalhada sobre os respetivos
de Santa Tecla (Antas) e se desenvolve para sul des- achados e contextos leva a considerar, apenas, que
ta, abrangendo uma área considerável – a sua inven- devem ser alvo de investigação futura, por forma a
tariação decorreu de informações sobre a descober- poder avaliar-se a sua real importância arqueológi-
ta, naquele local, de instrumentos líticos associados ca. Em relação ao sítio 3.2, especificamente, salienta-
a um terraço flúvio-marinho2. De facto, trabalhos -se, tal como fizemos em relação ao 40/11.4, o fac-
arqueológicos levados a cabo em 2022 (coordenados to de os instrumentos líticos terem sido detetados
por Pedro Xavier), no âmbito de um acompanha- numa área implantada acima da cota dos 20 m, po-
mento de uma obra nas imediações da referida ca- dendo, por isso, associar-se a eventuais depósitos
pela, permitiram identificar, num setor mais eleva- pleistocénicos.
do do terreno intervencionado, um terraço rochoso,
possivelmente de génese fluvial, implantado a ca. 3. INVENTÁRIO E DESCRIÇÃO SUMÁRIA
5 m acima do leito atual do rio Neiva. Este terraço DOS NOVOS SÍTIOS COM MATERIAIS
conservava alguns seixos rolados de quartzito em in- LÍTICOS TALHADOS
terstícios do substrato granítico, mas nenhum deles
evidenciou vestígios de talhe. Como referimos, o reconhecimento do território con-
Já num outro setor de cota mais baixa, coinciden- celhio, com o objetivo de encontrar depósitos com
te com o leito de cheia do Neiva, recolheu-se um artefactos líticos, iniciou-se em 2006, sendo espe-
pequeno conjunto de peças em conexão com um cialmente motivado pela descoberta casual, naque-
depósito cascalhento, que surge a mais de 2,5 m de le mesmo ano, de algumas lascas de quartzito num
profundidade. A presença de “pesos de rede” entre talude de um terreno na Zona Industrial de Bouro
estas peças permitiu avançar a hipótese do conjunto (ZIB), mais precisamente no sítio onde, mais tarde,
datar do Holocénico. viríamos a detetar a jazida paleolítica da ZIB (vide in-
O sítio 12.4, por seu turno, corresponde, no essen- fra Sítio 1) (Monteiro-Rodrigues & alii, 2023). Na rea-
cial, ao alargamento para norte do sítio 44 da CACE, lidade, a descoberta das referidas lascas confirmou,
inicialmente inventariado devido à identificação de logo na altura, as nossas suspeitas relativamente à
salinas de xisto nas áreas de Cepães e de Barrelas (Al- existência de utensílios de pedra lascada em certas
meida, 1987, p. 101). A partir de 2005, com a desco- formações sedimentares do litoral de Esposende.
Desde 2006, temos, então, percorrido áreas onde
tais formações afloram, prestando especial atenção
2. Desconhecemos a razão pela qual a publicação Fonseca, aos locais onde a erosão é mais intensa – essencial-
1936 surge associada a este sítio, no inventário de patrimó- mente na plataforma costeira – e onde decorrem
nio arqueológico existente no Centro Interpretativo do Cas-
trabalhos que implicam remoção ou revolvimento
tro de S. Lourenço. Ao consultarmos a obra, constatámos
que o autor faz referência apenas à Capela de Santa Tecla,
de terras – normalmente relacionados com a cons-
não havendo qualquer alusão à presença de artefactos líti- trução civil –, uma vez que neles não só se consegue
cos no local, nem à existência de um terraço flúvio-marinho. observar as características dos depósitos, como é
78
que documenta uma praia antiga, poderá ter uma Altitude: 17 m | Ano de descoberta: 2023
idade de cerca de 125 mil anos (MIS 5), idade esta ex- Cronologia genérica: Paleolítico Inferior
tensível à indústria lítica. Descrição: Durante uma rápida visita a este local,
Uma vez que este sítio se encontra em condições se- no contexto de trabalhos de geomorfologia, identifi-
melhantes às do sítio 2 (sítio pré-histórico da praia caram-se artefactos líticos talhados (até ao momen-
de Rio de Moinhos – RM-SPH), isto é, na zona inter- to, apenas três núcleos sobre seixo rolado de quartzi-
tidal, o material lítico surge com alguma frequência to, com debitagem unifacial) na base de um terraço
na sequência da intensa erosão marinha. marinho, que aflora num terreno privado, no lado
Bibliografia: Granja et alii, 2016 (referência rela- leste da EN 13, imediatamente a sul da Casa Museu
tiva apenas ao depósito marinho; a indústria lítica Viana de Lima. Tendo em conta a sua altitude (17 m),
encontra-se inédita). é provável que este terraço corresponda ao da Zona
Industrial de Bouro (sítio 1 – ZIB, terraço implantado
Sítio 4 – Praia de Barrelas (PB) (Figura 2) a 15-20 m) (Monteiro-Rodrigues & alii, 2023).
Freguesia: Marinhas (União de Freguesias de Espo- As condições de jazida dos artefactos aconselham
sende, Marinhas e Gandra) a futura realização de prospeções arqueológicas no
Coordenadas geográficas: local e na área envolvente.
41º33’41.80”N | 8º47’45.31” W Bibliografia: Sítio inédito.
Altitude: 1 m | Ano de descoberta: 2019
Cronologia genérica: Paleolítico Inferior / Paleolí- Sítio 7 – Pinhote-N (Pnh-N) (Figura 2)
tico Médio Freguesia: Marinhas (União de Freguesias de Espo-
Descrição: As condições em que aparecem os arte- sende, Marinhas e Gandra)
factos líticos neste local (que é também abrangido Coordenadas geográficas:
pela mancha definida pelo sítio 12.4 da PPA do PDM) 41º33’25.65”N | 8º46’27.85”W
são em tudo idênticas às do sítio 3 (Praia de Rio de Altitude: 38 m | Ano de descoberta: 2016
Moinhos – Norte) (Figura 6). Cronologia genérica: Paleolítico Inferior?
Bibliografia: Sítio inédito. Descrição: Uma visita ocasional a esta área permi-
tiu identificar um instrumento talhado (núcleo sobre
Sítio 5 – Cepães-Norte (Cp-N) (Figura 2) seixo rolado de quartzito, com debitagem bifacial)
Freguesia: Marinhas (União de Freguesias de Espo- num depósito cascalhento, parcialmente revolvido.
sende, Marinhas e Gandra) A importância deste achado reside no facto de ele su-
Coordenadas geográficas: gerir a existência de indústrias líticas em formações
41º33’41.80”N | 8º47’45.31” W sedimentares localizadas a altitudes superiores a 20-
Altitude: 13 m | Ano de descoberta: 2013 30 m, possivelmente de génese flúvio-marinha. Tra-
Cronologia genérica: Pré-história ta-se de um aspeto que carece ainda de confirmação.
Descrição: Os artefactos líticos (essencialmente nú- Bibliografia: Sítio inédito.
cleos sobre seixo rolado de quartzito, com debitagem
unifacial) surgem associados a um depósito consti- Sítio 8 – Agrela-Cepães (Agr-C) (Figura 2)
tuído por seixos rolados, embalados em areias finas Freguesia: Marinhas (União de Freguesias de Espo-
não concrecionadas, de aspeto dunar. Os processos sende, Marinhas e Gandra)
que estiveram na origem deste depósito não foram Coordenadas geográficas:
ainda determinados. 41º33’09.43”N | 8º47’13.68”W
Na maior parte dos casos, as peças ocorrem em ta- Altitude: 6 m | Ano de descoberta: 2017
ludes que ladeiam caminhos e em terrenos lavrados. Cronologia genérica: Paleolítico Inferior / Paleolíti-
Bibliografia: Sítio inédito. co Médio (terraço marinho); Pré-história (coluvião).
Descrição: Os materiais líticos talhados foram
Sítio 6 – Viana de Lima-Sul (VL-S) (Figura 2) identificados nas fundações do “Aldeamento Agrela
Freguesia: Marinhas (União de Freguesias de Espo- Mar”, surgindo quer num depósito coluvionar, que
sende, Marinhas e Gandra) se desenvolve sobre uma cascalheira de origem ma-
Coordenadas geográficas: rinha, quer nesta última, que assenta numa superfí-
41º33’41.07”N | 8º47’03.90”W cie rochosa, que corresponde a uma antiga platafor-
80
Sítio 12 – Jazida paleolítica do Canal Intercetor de como também possibilitam a sua datação, quer em
Esposende 2 (CIE 2) (Figura 2) termos relativos, quer em termos absolutos. Por isso,
Freguesia: Marinhas (União de Freguesias de Espo- é bem provável que, a prazo, Esposende venha a au-
sende, Marinhas e Gandra) mentar significativamente o seu contributo para co-
Coordenadas geográficas: nhecimento das sociedades da Pré-história, por via
41º32’58.80”N | 8º46’53.66”W dos artefactos de pedra lascada da região.
Altitude: 11 m | Ano de descoberta: 2023
Cronologia genérica: Paleolítico Inferior BIBLIOGRAFIA
Descrição: A jazida paleolítica do Canal Intercetor
ALMEIDA, Ana P.; MAGALHÃES, Ivone (2013) – O acha-
de Esposende 2 foi descoberta em 2023, durante uma mento do sítio da praia da Ribeira do Peralto (Esposende –
visita ao local para registo dos depósitos que afloram Noroeste de Portugal). In MORAIS, Rui; GRANJA, Helena;
nos respetivos taludes. No talude do lado leste, so- MORILLO CERDÁN, Ángel, eds. - O Irado Mar Atlântico. O
bre um nível de areia fina (marinha) e sob um outro Naufrágio Bético Augustano de Esposende (Norte de Portugal).
Braga. pp. 11-26.
de areia mais grosseira (possivelmente fluvial), re-
colheram-se dois artefactos talhados, um dos quais, ALMEIDA, Carlos A. B. de (1985) – Carta arqueológica do
um biface (Figura 10). Pelo que nos foi dado a obser- concelho de Esposende. Boletim Cultural de Esposende. Es-
var, trata-se de um sítio com potencial arqueológico posende. 7/8, pp. 27-51.
elevado, com características geomorfológicas e sedi- ALMEIDA, Carlos A. B. de (1986) – Carta arqueológica do
mentares muito semelhantes às da jazida do CIE 1, concelho de Esposende. Boletim Cultural de Esposende. Espo-
que se associa também ao terraço marinho implan- sende. 9/10, pp. 39-59.
tado a 9-13 m. ALMEIDA, Carlos A. B. de (1987) – Carta arqueológica do
Bibliografia: Sítio inédito. concelho de Esposende. Boletim Cultural de Esposende. Espo-
sende. 11/12, pp. 93-109.
4. CONCLUSÕES
ALMEIDA, Carlos A. B. de (1988) – Carta arqueológica do
concelho de Esposende. Boletim Cultural de Esposende. Espo-
Considerando os sítios com artefactos líticos talha- sende. 13/14, pp. 21-45.
dos da CACE, da PPA do PDM e os que foram por
ALMEIDA, Carlos A. B. de (1989) – Carta arqueológica do
nós identificados, é possível, atualmente, contabili-
concelho de Esposende. Boletim Cultural de Esposende. Es-
zar um total de 21 estações arqueológicas com vestí- posende. 15/16, pp. 90-102.
gios daquele tipo (Quadro 3). Este valor, que pratica-
ALMEIDA, Carlos A. B. de (1990/92) – Carta arqueológica
mente duplica o que anteriormente se conhecia (11),
do concelho de Esposende. Boletim Cultural de Esposende.
inclui oito jazidas atribuíveis ao Paleolítico Inferior,
Esposende. 17, pp. 137-159.
em função da presença de peças de diagnóstico (bi-
faces e machados de mão) e/ou da idade estimada CARVALHIDO, Ricardo P.; PEREIRA, Diamantino I.;
CUNHA, Pedro P.; BUYLAERT, Jan-Pieter.; MURRAY, An-
para as formações sedimentares a que se associam
drew S. (2014) – Characterization and dating of coastal depo-
(Carvalhido & alli, 2014).
sits of NW Portugal (Minho – Neiva area): A record of climate,
A pré-história recente, por sua vez, encontra-se do- eustasy and crustal uplift during the Quaternary. Quaternary
cumentada por três sítios, um dos quais bem datado International. s/l. 328-329, pp. 94-106.
pelo Carbono 14 (Rio de Moinhos).
CARVALHO, Gaspar S.; GRANJA, Helena M. (2003) – As
O enquadramento cronológico-cultural dos locais mudanças da zona costeira pela interpretação dos sedimen-
com idade indeterminada (ou pouco precisa) só tos plistocénicos e holocénicos (a metodologia aplicada na
poderá ser conseguido após a análise dos materiais zona costeira do NO de Portugal). Revista da Faculdade de
líticos neles detetados e através da respetiva carac- Letras – Geografia. Porto. Série I. XIX, pp. 225-236.
terização geomorfológica, o que implica a realização CARVALHO, Gaspar S.; GRANJA, Helena M.; LOUREIRO,
de trabalhos de campo e, eventualmente, a obtenção Eduardo.; HENRIQUES, Renato (2006) – Late Pleistocene
de datações absolutas. and Holocene environmental changes in the coastal zone of
Em jeito de balanço, podemos afirmar que a faixa li- northwestern Portugal. Journal of Quaternary Science. s/l. 21:
toral do concelho de Esposende reúne um conjunto 8, pp. 859-877.
de condições que não só favorecem a boa preserva- CEPA, Manuel M. (1944) – Monografia de S. Bartolomeu do
ção dos contextos em que ocorrem indústrias líticas, Mar. Braga.
GRANJA, Helena M. (1990) – Repensar a geodinâmica da MORAIS, Rui (2020) – Naufrágio bético e provável embar-
zona costeira: o passado e o presente; que futuro? (Dissertação cadouro de época romana em Rio de Moinhos (Esposende,
de Doutoramento) Braga: Universidade do Minho. Norte de Portugal). Boletim Cultural de Esposende. Esposen-
de, 3ª Série. 1, pp. 203-215.
GRANJA, Helena M. (1999) – Evidence for Late Pleistocene
and Holocene sea-level, neotectonic and climatic indicators PAÇO, Afonso do (1937) – Paleo e Mesolítico Português.
in the northwest coastal zone of Portugal. Geologie en Mijn- Descobrimentos, Bibliografia. Revista de Guimarães. Guima-
bouw. s/l. 77: 3-4, pp. 233-245. rães. 47: 1-2, pp. 8-24.
GRANJA, Helena M. (2013) – Reconstituição paleoambien- SOUSA, Bárbara R. (2022) – Estudo tecno-tipológico da indús-
tal do Holocénico Final. In MORAIS, Rui; GRANJA, Helena; tria lítica holocénica da praia de Rio de Moinhos, Esposende
MORILLO CERDÁN, Ángel, eds. – O Irado Mar Atlântico. (NO, Portugal). (Dissertação de Mestrado). Porto: Faculdade
O Naufrágio Bético Augustano de Esposende (Norte de Portu- de Letras da Universidade.
gal). Braga. pp. 221-235.
82
Figura 1 – Localização dos sítios arqueológicos com artefactos líticos talhados inventariados na CACE e na PPA do PDM (orto-
foto extraída do programa Google Earth, modificada).
84
Figura 3 – 1. Vista atual do pavilhão industrial onde outrora existia a jazida paleolítica da ZIB. 2. Cobertura sedimentar do ter-
raço marinho implantado a 15-20 m de altitude. 3. Algum do material lítico recolhido (A e B: unifaces; C: biface; D: núcleo;
E: utensílio sobre lasca).
86
Figura 5 – 1. Vista da plataforma costeira onde se conservam afloramentos do depósito cascalhento da praia antiga, com uma
idade estimada em ca. 125 mil anos. 2. Um dos afloramentos registados. 3. Algum do material lítico recolhido (A: uniface; B e C:
núcleos com extrações unifaciais).
88
Figura 7 – 1. Vista atual do local dos achados. 2. Fundações do “Aldeamento Agrela Mar”, sendo visível (de baixo para cima) a
cascalheira marinha, o depósito coluvionar e uma cobertura dunar (afetada por um solo orgânico). 3. Algum do material lítico
recolhido no local (A: núcleo; Restantes: seixos talhados unifaciais).
90
Figura 9 – 1. Vista atual de uma das áreas com potencial arqueológico (neste caso, no lado oeste da A28, nas imediações do
Clube Hípico do Norte). 2. Cascalheira onde se recolheram artefactos líticos (talude oeste da A28). 3. Algum do material lítico
recolhido no local (A: biface; B e C: núcleos; D: seixo talhado unifacial).
92
Quadro 1 – Sítios arqueológicos com artefactos líticos talhados inventariados na CACE.
*Além do número de inventário que o sítio possui na CACE, indica-se também o código que recebeu aquando da sua inclusão na PPA do
PDM de Esposende.
Quadro 2 – Sítios arqueológicos com artefactos líticos talhados inventariados na PPA do PDM.
* Segundo o inventário de património arqueológico existente no Centro Interpretativo do Castro de S. Lourenço (não publicado).
1. Possivelmente por lapso, a localização do sítio 54 da CACE na Planta de Património Arqueológico do PDM não está correta. Efeti-
vamente, o sítio 9.6, que lhe corresponde, encontra-se assinalado na margem norte do rio Cávado, todavia a cerca de 800 m a oeste
da área onde surgem os materiais líticos a que se alude na CACE (que, por sua vez, relacionam-se com os achados de Santos Júnior,
dos anos de 1930. Vide Júnior, 1940).
2. Desconhecemos a razão pela qual a publicação Fonseca, 1936 surge associada a este sítio, no inventário de património arqueoló-
gico existente no Centro Interpretativo do Castro de S. Lourenço. Ao consultarmos a obra, constatámos que o autor faz referência
apenas à Capela de Santa Tecla, não havendo qualquer alusão à presença de artefactos líticos no local, nem à existência de um
terraço flúvio-marinho.
3. À época desta publicação (1987), conheciam-se, no local, apenas salinas. A identificação dos restantes materiais arqueológicos,
nomeadamente dos líticos, ocorreu muito mais tarde.
*Indica-se o código do sítio na CACE e na PPA do PDM, e o código por nós atribuído aos novos sítios.
94
À VOLTA DA FOGUEIRA NA PRÉ-HISTÓRIA:
ANÁLISE ÀS ESTRUTURAS DE COMBUSTÃO
DO SUL DE PORTUGAL – A PRAIA DO
MALHÃO (ODEMIRA)
Ana Rosa1
RESUMO
É objectivo do presente trabalho dar continuidade ao estudo das estruturas de combustão da pré-história, cuja
crescente distribuição no Sul de Portugal, em particular, no território alentejano, têm permitido identificar tam-
bém padrões de mobilidade e assentamento das antigas populações. No âmbito do projecto POLIS Litoral do
Sudoeste (2015), foram identificados novos vestígios, associados à ocupação neolítica da faixa costeira. As la-
reiras intervencionadas na Praia do Malhão (Odemira), inéditas neste contexto, são agora pretexto para uma
revisão da informação arqueológica que tem vindo a ser sistematizada (Rosa e Diniz, 2017; Rosa, 2017).
Palavras-chave: Estruturas de combustão; Mesolítico/Neolítico; Sul de Portugal.
ABSTRACT
The purpose of this work is to continue the study of the combustion structures of prehistory, whose growing dis-
tribution in southern Portugal, particularly, in Alentejo territory, have also allowed to identification of patterns
of both mobility and settlement of former populations. As part of POLIS Litoral do Sudoeste project (2015), new
traces were identified, associated with the Neolithic occupation of the coastal strip. The fireplaces intervened in
Praia do Malhão (Odemira), unprecedented in this context, are now a pretext for a review of the archeological
information that has been systematized (Rosa and Diniz, 2017; Rosa, 2017).
Keywords: Combustion structures; Mesolithic/Neolithic; Southern Portugal.
96
posição ao fogo. As alterações térmicas produzidas dos, na década de 90, pontos de ocupação enquadra-
através da fracturação dos elementos pétreos que dos, cronologicamente, no Mesolítico. No entanto,
constituem as bases destas estruturas (placa térmi- os vestígios (fauna malacológica e indústrias líticas),
ca), assim como, a cozedura das paredes internas, parecem corresponder a achados dispersos. As larei-
comprovam “que estiveram em contacto directo ras detectadas, no decorrer da empreitada consoli-
com as chamas durante um intervalo de tempo re- dam a presença humana nesta área, de acordo com
lativamente longo e num tipo de combustão fecha- o modelo conhecido para a faixa Sudoeste. (Figura 5)
do ou semi-fechado” (Araújo e Almeida, 2013:193).
Desse modo, estes fornos poderiam ter algum tipo 3.1. A Praia do Malhão: descrição e caracterização
de cobertura, madeira ou argila cozida, elementos A Praia do Malhão situa-se na freguesia de Vila Nova
não detectados por se perderem no registo arqueo- de Milfontes, no concelho de Odemira, distrito de
lógico. A argila rubefacta que reveste o interior das Beja (CMP, folha 535, à escala 1/25000). O sítio in-
estruturas é interpretada por outros autores, como tervencionado está referenciado com as seguintes
uma forma intencional de criar uma superfície re- coordenadas geográficas: -58792.084; - 209114.189.
fractária estável para, nomeadamente, manter uma (Figura 6)
temperatura fixa ao longo do tempo de cozedura As duas estruturas de combustão, identificadas na
(Ruíz, 2016). Estes fornos distribuem-se no espaço Praia do Malhão, foram escavadas como medida de
de forma mais ou menos organizada, podendo, em minimização de impactos negativos sobre o patri-
número, constituir áreas de laboração de carácter mónio. Ambas, caracterizavam-se pelas plantas de
verdadeiramente “industrial”, embora, a sua real plano ovalado, constituídas por seixos de grauvaque
função esteja ainda por definir. A cronologia atribuí- e arenito, com vestígios de alteração térmica (Reis,
da para estas estruturas situa-se, genericamente, en- 2016). Estas pequenas lareiras, tipo “cuvette”, apre-
tre o Mesolítico e o Neolítico Antigo. Alguns destes sentavam cerca de 0,50m a 1m de diâmetro.
exemplos foram localizados na Cova da Baleia (Sou- Do ponto de vista estratigráfico, verificou-se uma
sa e Gonçalves, 2015), em Defesa de Cima 2 (Santos sequência constituída por “camadas arenosas de de-
e Carvalho, 2007), e, no Barranco Horta do Almada posição natural, com diferentes composições orgâ-
1 (Rosa, 2017). (Figura 3) nicas, que influenciam a coloração e o tipo de com-
pactação” (Reis, 2016:10). Os planos de combustão
3. NOVOS DADOS NO LITORAL ALENTEJA- encontravam-se cobertos e assentes sobre depósitos
NO: O PROJECTO POLIS de areia, sem diferenças significativas “devido às
características deste tipo de contextos, nomeada-
Em 2015, no âmbito do empreendimento do progra- mente a grande mobilidade dunar” (Reis, 2016:12).
ma POLIS Litoral do Sudoeste, foram realizados tra- (Figuras 7 e 8)
balhos arqueológicos no litoral alentejano, a cargo A interface das estruturas não estava bem definida,
da empresa Era-Arqueologia. O projecto consistiu verificando-se também uma dispersão dos blocos
na valorização e qualificação de espaços balneares e constituintes do empedrado de base, factores re-
de reposição das condições de ambiente natural das sultantes do seu mau estado de conservação. O tom
praias que se estendem entre Sines, Odemira e Alje- mais alaranjado do sedimento e a presença de car-
zur a Vila do Bispo. (Figura 4) vões, relacionados com o severo processo de com-
A intervenção, das áreas a afectar, conduziu à iden- bustão, tornaram-se as principais características
tificação de novas estruturas de combustão, nomea- para a identificação destas estruturas.
damente, na Praia do Malhão (Odemira), e na Praia As áreas intervencionadas, no âmbito da empreita-
da Samouqueira (Sines), as quais, relacionadas com da, encontravam-se repletas de termoclastos, assim
a ocupação pré-histórica conhecida para esta área. como, de um conjunto considerável de espólio lítico.
No que respeita a esta parte, torna-se indispensável Os materiais são, quase na sua totalidade, resultan-
a actualização da informação disponível, conside- tes das áreas alvo de acompanhamento arqueológi-
rando que alguns dos sítios documentados, como co. Esta dispersão de material, não atribuível a um
Samouqueira I, possa ter uma dimensão mais ampla. contexto estratigráfico concreto, dificulta também
Segundo o portal da DGPC (Endovélico), na proxi- uma atribuição crono-cultural segura. A pedra las-
midade à Praia do Malhão já haviam sido localiza- cada, encontrada no local, é constituída, em grande
no solo oferece garantias de uma acção calorífica REIS, Helena (2016) – Relatório Final dos Trabalhos Arqueoló-
mais intensa. Por oposição, uma paragem por algu- gicos, Era-Arqueologia S.A, policopiado.
mas horas, dispensaria o esforço de uma construção
ROSA, Ana (2015) – Relatório dos Trabalhos Arqueológicos de
de raíz. Os silos-lareira, vazios de quaisquer elemen- Minimização de Impactes sobre o Património Cultural decor-
tos auxiliares à cozedura, como termoclastos ou as rentes da execução do Circuito Hidráulico de Baleizão-Quintos
habituais placas térmicas, podem eventualmente ter e respectivo Bloco de Rega: fase de obra. Sondagens Arqueológi-
98
cas – Barranco Horta do Almada 1, Sta. Clara do Louredo, Beja, SOUSA, Ana Catarina; GONÇALVES, Victor (2015) – Fire
EDIA. walk to me. O sítio da Cova da Baleia e as primeiras arqui-
tecturas domésticas de terra no Centro e Sul de Portugal. In
ROSA, Ana; DINIZ, Mariana (2017) – Fossas, fornos ou silos?
GONÇALVES, Victor; DINIZ, Mariana; SOUSA, Ana Cata-
O contributo do Barranco Horta do Almada 1 (Beja) para a
rina, eds. – Actas do 5º Congresso de Neolítico Peninsular.
definição cronológica e funcional das estruturas negativas
Lisboa: UNIARQ. pp. 123-142.
mesolíticas e neolíticas. Arqueologia em Portugal: estado da
questão. II Lisboa: Congresso da Associação dos Arqueólo-
gos Portugueses. pp. 461-465.
100
Figura 3 – Exemplo de estrutura identificada no Barranco Horta do Almada 1 (Rosa, 2015).
Figura 6 – Localização do sítio, respectivamente, em excerto da CMP, folha 535, à escala 1/25000, e em ortofotomapa (in mapas.
dgterritorio.pt) – modificado.
102
Figuras 7 e 8 – Planos de combustão identificados na Praia do Malhão (Reis, 2016).
104
O PROJECTO LANDCRAFT.
A INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA
NO ABRIGO DAS LAPAS CABREIRAS
João Muralha Cardoso1, Mário Reis2, Bárbara Carvalho3, Lara Bacelar Alves4
RESUMO
Considerando um dos objectivos do nosso projecto - a investigação dos contextos sócio-culturais da Arte Es-
quemática no Vale do Côa – e partindo do caso de estudo das Lapas Cabreiras, consideramos que a investigação
dos contextos arqueológicos, quer no sentido da identificação de um momento de passagem/ocupação/uso dos
sítios, quer do reconhecimento de outras ocorrências na sua envolvente, fornecerá um conjunto de dados mui-
to importantes para a reflexão e compreensão de várias questões em aberto, sobressaindo a seguinte: Até que
ponto as evidências materiais (da escavação e da prospecção) e a ocupação de diferentes sítios nos ajudam a
compreender o uso e a ocupação daquela paisagem?
Palavras-Chave: Pré-história Recente; Arte Esquemática; Escavação; Prospecção.
ABSTRACT
Considering one of the objectives of our project - the investigation of the socio-cultural contexts of Schematic
Art in the Côa Valley – and starting from the case study of Lapas Cabreiras, we consider that the investigation
of archaeological contexts, either in the sense of identifying a moment of transit/occupation/use of the sites,
or the recognition of other occurrences in its surroundings, will provide a set of very important data for un-
derstanding several open questions, highlighting the following: To what extent does material evidence (from
excavation and field surveys) and the occupation of different sites help us to understand the use and occupation
of the landscape?
Keywords: Late Pre-history, Schematic Art; Excavation; Fieldwalking.
1. Professor auxiliar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa – investigador do CHAM /
[email protected]
2. Fundação Côa Parque | CEAACP- Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património. Universidade de Coimbra /
[email protected]
3. Investigadora do LandCRAFT.
4. Investigadora no CEAACP – Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património. Universidade de Coimbra /
[email protected]
106
turas estratigráficas que melhor definissem a ocupa- cesso de interpretação; as questões deposicionais e
ção das Lapas Cabreiras. Os resultados não foram pós-deposicionais e as materialidades arqueológicas.
muito animadores, principalmente nas sondagens No final dos trabalhos arqueológicos identificamos
efectuadas nas plataformas mais afastadas do abri- quatro grandes depósitos. Depósitos de formação
go, mas na última sondagem, realizada no espaço recente (Cardoso et al., no prelo); depósitos forma-
fronteiro ao painel, os resultados foram interessan- dos no sentido da vertente (sudeste/Noroeste); de-
tes e corroboraram os dados das primeiras interven- pósitos correspondentes ao momento mais antigo
ções realizadas em 2014 (Reis et al., 2017). Conside- de ocupação do abrigo e os depósitos estéreis. Eli-
rando os resultados de todas as sondagens, o passo minando deste discurso os depósitos de formação
seguinte consistiu na escavação em área do espaço recente e os estéreis, ficamos com duas grandes uni-
mais próximo ao abrigo e ao painel. Foram abertos dades, onde a maior parte do material arqueológico
três setores na área envolvente aos grandes blocos foi encontrado. Os depósitos que se formaram no
graníticos que definem a galeria onde se encontram sentido da vertente tem uma grande expressão em
os vários painéis com arte pintada das Lapas Cabrei- quase toda a área intervencionada. A grande hete-
ras e uma outra área de escavação, mais a Sul, perto rogeneidade cronológica do material arqueológico
de um outro painel encontrado já no âmbito deste recolhido nas unidades estratigráficas que compõe
projecto (Painel 6) (Reis e Alves, 2023). Esta fase de este depósito, permite-nos avançar com a hipótese
trabalhos decorreu em Setembro de 2022 e Abril de de que, aquelas unidades, poderão ter resultado de
2023. (Figura 3) um ou vários momentos relativamente rápidos de
Torna-se importante referir que, além da intervenção formação. Os depósitos que correspondem ao mo-
arqueológica, o sítio foi objecto de trabalhos comple- mento mais antigo de ocupação do abrigo encon-
mentares e essenciais, quer aos objectivos do Land- tram-se nas áreas mais próximas à sua pala e junto
CRAFT, quer à interpretação da própria escavação: aos grandes blocos abatidos da galeria. Estes depó-
a) Recolha sistemática de sedimentos, em todo o sitos embalam fragmentos de rocha que parecem ter
sítio arqueológico na tentativa de compreen- abatido da pala e cujas arestas se apresentam bas-
dermos as dinâmicas sedimentares, cronológi- tante frescas.
cas e paleoambientais da estação. Trabalho que Os materiais arqueológicos recolhidos foram na sua
está a ser feito por António Cortizas da Univer- maioria, identificados na plataforma adjacente à
sidade de Santiago de Compostela. zona abrigada. Representam um conjunto hetero-
b) Diagnóstico preliminar do estado de conserva- géneo de materiais líticos e cerâmicos que atestam
ção do abrigo, do conjunto de pinturas rupestres uma ocupação, desde o Neolítico Antigo, passando
e suporte (trabalhos efectuados por Fernando pela Pré-história Recente até à época contemporâ-
Carrera e Vera Caetano, na qualidade de Bol- nea. A análise sumária destes materiais foi já refe-
seira de Investigação FCT integrada no projecto rida sumariamente. (Cardoso et al., no prelo). No
(Caetano et al., neste volume). entanto, para melhor compreensão do texto, relem-
c) Análises físico-químicas de pigmentos por pro- bramos aqui algumas ideias:
cessos não destrutivos: espectroscopia Raman a) Existe um conjunto importante de materiais as-
com aparelho portátil e espectrofotometria de sociados ao uso e ocupação recentes do abrigo,
cor das pinturas e suporte, feita in loco por uma por pastores e agricultores. Os fragmentos cerâ-
equipa da Universidade de Vigo (Teresa Rivas micos encontrados correspondem a produções
Brea, José Santiago Pozo e Pablo Barrero) (Cae- locais da aldeia de Santa Comba (Vila Nova de
tano et al., neste volume). Foz Côa), produzidas, pelo menos desde o séc.
Retornando à escavação arqueológica, a metodo- XVIII. Esta ocupação é igualmente visível atra-
logia de trabalho e a caracterização mais exaustiva vés da existência de pequenos muretes cons-
dos depósitos encontrados e escavados encontra-se truídos para a prática da agricultura e pastorícia
já publicada (Cardoso et al., no prelo), pelo que não na envolvente do abrigo, pelo menos até ao fi-
iremos aqui, repetir essa informação. nal dos anos 60 (informação corroborada pela
Importa fazer apenas duas referências que nos pare- população local, durante acções de divulgação
cem importantes, para uma melhor compreensão do da escavação).
processo de escavação e consequentemente do pro- b) O conjunto de materiais atribuídos à Idade do
108
plataformas, pequenos cabeços e esporões sobre o rio e bordo denteado, um fragmento com mamilo e um
Côa. O nosso espaço de trabalho pode-se delimitar fragmento Cogeces.
pela ravina do Côa a Este, pela linha de cumeada que 3 – Faia Brava – No topo da falésia da Faia Brava, en-
está próxima às pinturas da Faia a Norte, a Sul pelo tre pequenos cabeços de rocha, foram recolhidos um
grande cabeço que forma o sítio do Alto da Mioteira conjunto de materiais conectados à Pré-história Re-
e a Oeste, pela sucessão de plataformas mais eleva- cente, cerâmicas, lascas não retocadas em quartzo e
das e cabeços graníticos que unem os limites Norte quartzito e uma outra com retoque e plano de per-
e Sul. O interior deste espaço é marcado por várias cussão. O sítio domina visualmente para Norte e Sul
plataformas aplanadas, cortadas por linhas de água uma vasta área geográfica, e encontra-se completa-
que descem para o Côa, das quais a maior é a Canada mente virado ao rio Côa.
da Abóbora, que rodeia o abrigo pelo lado Sul. 4 – Lapas Cabreiras Norte – Cerca de 200m para
Os dados provenientes de todos estes momentos Norte, numa área de olival, perto da falésia da Faia
de prospecção podem ser sintetizados na seguinte Brava, em área aplanada, tem-se recolhido algum
cartografia (Figura 4): material em quartzito.
1 – Lapas Cabreiras e área a Oeste da escavação ar- 5 – Casa Grande – Descoberto por um de nós (Mário
queológica – Esta área de plataformas, mesmo em Reis), na acção de prospecção em que foi descober-
frente ao abrigo das Lapas Cabreiras, tem sido vi- to o abrigo das Lapas Cabreiras. O sítio é composto
sitada constantemente. Ao longo dos anos, foram por duas plataformas contíguas, separadas por uma
referenciados alguns vestígios de superfície, que discreta linha de água. Os fragmentos cerâmicos
sugeriam a existência de uma ocupação. No âmbito encontram-se distribuídos pelas duas plataformas,
do projecto LandCRAFT, em 2021, executamos um assim como alguns, raros elementos líticos em
programa de sondagens arqueológicas (Cardoso et quartzito, sugerindo uma cronologia da Pré-história
al., no prelo, e já referido em cima), para caracteri- Recente.
zação da área. No entanto, as sondagens não ofere- 6 – Alto da Mioteira – Foi inicialmente referido por
ceram um registo que nos permitisse dizer que toda Manuel Sabino Perestrelo (2003:42, nº 24) que des-
esta área seria densamente ocupada. A prospec- creveu o sítio como uma plataforma sobre o Côa com
ção também não nos apontava essa direcção, mas alguns materiais líticos e cerâmicos. Prospecções do
os materiais arqueológicos à superfície existiam e PAVC, feitas na sequência da descoberta do abri-
continuam a existir. É evidente que o contexto geo- go das Lapas Cabreiras permitiram aclarar melhor
morfológico (sucessão de plataformas) e a acção da a natureza do sítio. Trata-se de um grande cabeço,
vertente poderiam explicar o posicionamento des- de topo aplanado, com vestígios de um muro, muito
ses materiais, mas a acção da vertente, restringe-se destruído, do seu lado Oeste. A Sul, não possui qual-
à primeira plataforma, e as plataformas seguintes quer restrição à entrada. No interior surgem alguns
são largas e com grandes afloramentos, tornando-se raros materiais arqueológicos; restos de talhe em
factores de impedimento ao rolamento de materiais. quartzito, fragmentos de cerâmica, muito rolados
A agricultura também foi considerada. No entanto, de difícil caracterização, no entanto sugere-se uma
sabemos que apenas algumas pequenas áreas foram cronologia da Pré-história Recente.
cultivadas, e nunca mecanicamente. Poderíamos ex- 7 – Rebofa – Um abrigo granítico situado na margem
plicar a existência destes materiais apenas por facto- esquerda do Côa, muito perto da linha de água e
res pós-deposicionais, como por exemplo, escorrên- subjacente ao grande sítio do alto da Mioteira. Des-
cias do abrigo. Mais uma vez, não é um argumento coberto durante os trabalhos de prospecção para a
suficientemente forte para explicar a quantidade de execução do EIA da barragem do Alto Côa (García
materiais e a diversidade de implantações, onde vão Diez, Rodrigues & Maurício 2001; ficha 34), forne-
sendo recolhidos. ceu raros materiais de superfície, incluindo cerâmi-
2 – Picão dos Castelejos – Pequeno esporão sobre o cas da Pré-história Recente, entre as quais um frag-
rio Côa, caracterizado por um conjunto de aflora- mento de colher.
mentos dispostos no sentido Norte / Sul. Os mate- Como podemos pensar estes dados?
riais foram recolhidos predominantemente na área O quadro 1 pretende sintetizar as principais caracte-
Oeste e são característicos da Idade do Bronze. Frag- rísticas dos sítios identificados.
mentos com decoração plástica; cordão segmentado
110
de que uma arqueologia de causas e consequências As concentrações de materiais vistas como con-
do comportamento humano num determinado es- textos arqueológicos
paço físico. À excepção das Lapas Cabreiras e provavelmente do
Picão dos Castelejos, sítios com conjuntos de mate-
4. OBSERVAÇÕES FINAIS rialidades mais substanciais, todos os outros locais
cartografados, constituem-se como concentrações
O contexto arqueológico das Lapas Cabreiras de materiais. Não estão no seu contexto “original”,
Os sítios com materiais do Neolítico Antigo, já co- mas representam a passagem e o uso daqueles es-
nhecidos e publicados (Carvalho 1999; Rodrigues paços, assim, podemos considerar estas áreas como
2011), na área do vale do Côa, são sítios de baixa sítios arqueológicos. Desta forma, introduzimos
densidade, pequenas áreas de ar livre e ocupações nesta reflexão, os diferentes ritmos de passagem,
junto a abrigos rochosos. Acrescentado à reflexão, as formas variadas de uso e as diferentes escalas
todos os lugares com materiais de todo o Neolítico, dos sítios. Não podemos definir sítios arqueológicos
a imagem pouco se altera. Continuam a ser de bai- apenas baseando-nos na sua funcionalidade. Estes
xa densidade, em pequenas áreas de ar livre, junto a contextos arqueológicos serão evidências de activi-
grandes afloramentos de granito. Se olharmos para dades, são meios de acções das comunidades que
alguns destes sítios como o Prazo (Rodrigues 2011), entre o Neolítico Antigo e a Idade do Bronze, per-
Quinta da Torrinha e Quebradas (Carvalho 1999) e correram aquele espaço. Como nos diz McFadyen,
mesmo um pouco mais longe, na submeseta Norte citando ideias de Barrett:
em Valle Amblés (Ávila) (Guerra et al., 2012 e 2021),
percebemos que o tipo de implantação geomorfoló- “(…) we cannot think of archaeological sites as
gica – áreas com extensos penedos graníticos, alguns a record of “something” because to do so would
sobressaindo da paisagem – é uma constante a todos be to think that time had stopped (…)” 2010:46)
eles. Aliás como referem os autores:
E o tempo de estar nos sítios é constante e o uso dos
“(…) las estaciones neolíticas en el entorno del espaços é cheio de diferentes significados. O tempo
Valle Amblés se encuentra compuesto por algo longo torna-se uma das escalas de análise mais pro-
más de una veintena de sítios entre los que se veitosa, a paisagem vivida através de sítios ocupados
cuentan lugares com pinturas rupestres, sítios persistentemente.
de habitacion dentro de abrigos o covachas y
possibles lugares de habitación al aire libre“. A paisagem ocupada e sítios persistentes
(Guerra et al. 2012:512) A paisagem está pontuada por usos e mobilidades.
Frequentar um sítio, não é ocupá-lo. Frequentar sis-
Os materiais encontrados e aqueles que se encon- tematicamente um sítio, como parece ter aconteci-
tram publicados (Carvalho 1999 e 2003), parecem do com as Lapas Cabreiras, é dar-lhe um significado
reflectir: específico para esse uso frequente. O sítio e a sua
paisagem envolvente têm de ser entendidos como
“(…) um povoamento levado a cabo por peque- espaços incorporadores de acção. É uma acção fun-
nos grupos humanos com grau de mobilidade cional enquanto estruturadora das comunidades
ainda acentuado, dentro de um esquema de que o visitam. É identitária e memorial, conferindo
“mobilidade residencial” (Carvalho 2003:68).” ao lugar a historicidade necessária para o tornar um
lugar ancestral. Os caminhos até ao sítio e os cami-
Por outro lado, os sítios da Idade do Bronze Antigo nhos para fora do sítio, as mobilidades percebidas
e Médio parecem constituir uma ocupação mais in- através das concentrações de materiais, acontecem
tegral da paisagem. São lugares dispersos na paisa- numa paisagem cheia de significados, de referências
gem, ocupando diferentes implantações geomorfo- a usos antigos dos lugares, de referências sociais e
lógicas, parecendo afirmar uma efetiva apropriação biográficas, e através do uso da paisagem e frequen-
do espaço e até, outra forma de estar na paisagem. tação de determinados sítios tornam-se narrativas
(Figura 6) da identidade humana, tornam-se memórias.
Não sabemos se o significado dado à arte das Lapas
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112
Caleidoscópio e Direcção Regional de Cultura do Norte,
11-124.
114
Figura 4 – Área de prospecção. A vermelho, pinturas da pré-história recente. A preto: 1 – Lapas Cabreiras; 2 – Picão
dos Castelejos; 3 – Faia Brava; 4 – Lapas Cabreiras Norte; 5 – Casa Grande; 6 – Alto da Mioteira; 7 – Abrigo da Rebofa.
Figura 6 – Cartografia de sítios na área do Alto Douro. Neolítico (lado esquerdo) e Idade do Bronze antigo e médio (lado direito).
1 – Lapas Cabreiras.
116
Cerâmica Líticos Atribuição Implantação
cronológica
2 – Picão dos Castelejos Decoração plástica Material debitado Idade do Bronze Cumeada em esporão
e Cogeces sobre a ravina do rio Côa
3 – Faia Brava Não decorados Material debitado Pré-história Recente Cumeada sobre a ravina
do Côa
5 – Casa Grande Não decorados Material debitado Pré-história Recente Plataformas contíguas
6 – Alto da Mioteira Não decorados Material debitado Pré-história Recente Cumeada em esporão
sobre a ravina do rio Côa
7 – Rebofa Não decorados Material debitado Pré-história Recente Abrigo em fundo de vale
Quadro 1
RESUMO
Em 2018, no âmbito do Estudo de Impacte Ambiental realizado pela EMERITA, Lda. para a Administração do
Porto de Sines, identificou-se um importante núcleo de povoamento e de culto, com ocupação, pelo menos,
entre o Neolítico Final e o Calcolítico Pleno. Núcleo este que integra: o recinto megalítico Monte Novo 1,
escavado nos anos 70 do século XX por Joaquina Soares e Carlos Tavares da Silva e nos anos 80 por Mário Varela
Gomes; uma área de povoado designada como Monte Novo 3, a qual abrange dois prováveis fundos de cabana
e uma fossa que se encontrava preenchida com materiais arqueológicos; por fim, uma área de culto designada
como Monte Novo 4, que integra dois santuários contíguos.
Palavras-chave: Sines; Neolítico Final; Calcolítico Pleno; Santuário; Povoado.
ABSTRACT
In 2018, within the scope of the Environmental Impact Study carried out by EMERITA for the Administration
of the Port of Sines, an important settlement and cult nucleus was identified, with occupation, at least, between
the Late Neolithic and the Full Chalcolithic. This nucleus includes: the megalithic enclosure Monte Novo 1,
excavated in the 70s of the 20th century by Joaquina Soares and Carlos Tavares da Silva and in the 80s by Mário
Varela Gomes; a settlement area designated as Monte Novo 3, which includes two probable hut bases and a pit
that was filled with archaeological materials; finally, a cult area designated as Monte Novo 4, which includes two
adjoining sanctuaries.
Keywords: Sines; Late Neolithic; Chalcolithic; Settlement; Santuary.
120
– Fundo de Cabana 2 um acaso extraordinário, uma vez que pelo lado sul
Resultado das sondagens foi cortada pela máquina que trabalhava na frente da
Identificada na S5 (figura 6), encontra-se implantada pedreira e pelo lado norte foi removida a parte su-
em antigo terreno agrícola, sendo uma zona revol- perior da fossa pela máquina que fez a descubra do
vida pela lavoura tradicional, que por norma atinge terreno, encontrando-se as marcas dos dentes das
cerca de 30 cm. Localiza-se entre a S1 e o sítio Monte máquinas gravados no que permaneceu conservado
Novo 1. Identificaram-se nesta sondagem o que pa- (figura 7, esquerda).
recem ser dois pisos sobrepostos, contudo, sendo Foi aberta na rocha, um diorito amarelado e pouco
uma área muito reduzida e tendo em conta o revolvi- compactado, sendo de planta circular, afunilando
mento causado pela lavoura e por um grande formi- em profundidade (figura 7, direita), encontrava-se
gueiro que destruiu todo o canto SO, esta sondagem preenchida na totalidade com sedimentos e mate-
carece de ampliação para confirmar a existência de riais arqueológicos, que indiciam que após a, pro-
duas fases ocupacionais. vável, utilização como silo foi reutilizada como va-
As camadas escavadas contêm elevada quantidade zadouro para resíduos domésticos, em duas fases
de cerâmica manual e raros líticos, estando muitos diferenciadas.
dos materiais imbricados nos níveis considerados No interior da fossa encontravam-se dois grandes
como pisos batidos. blocos cuja explicação mais lógica para a sua pre-
O piso superior ([502] na figura 6) é um piso de argila sença é terem sido utilizados como tampas na fase
batida, muito afetado pela lavoura, tendo inclusive de utilização da fossa como silo. Ainda que a dimen-
algumas marcas de arado. No canto SO foi muito são e peso não se coadune com as tampas que por
afetado por um grande formigueiro. Contém abun- norma são identificadas nestas estruturas, não tem
dante cerâmica (recolheram-se 116 fragmentos) de qualquer lógica que tenham sido intencionalmente
pequena dimensão e rolada, barro de cabana e raros despejadas no interior da fossa (devido à dimensão
líticos, sendo espessados os fragmentos de bordos e peso), apenas com o intuito de a preencher, ainda
cerâmicos recolhidos. que seja uma hipótese que não se pode descartar.
O piso inferior ([504] na figura 6) é de um sedimento O preenchimento da fossa corresponde a depósitos
muito compacto e argiloso com abundantes seixos e realizados entre o Neolítico Finale o Calcolítico Ple-
fragmentos de cerâmica, assentando sobre o subs- no, contendo sedimentos com abundantes carvões,
trato geológico. fragmentos cerâmicos, termoclastos e outros mate-
As cerâmicas manuais são caracterizadas por pastas riais arqueológicos como utensílios líticos e fauna
grosseiras com elevada quantidade de desengordu- mamalógica e malacológica.
rantes, nas tonalidades vermelho, laranja ou negro. Com um conjunto artefactual formado por mais de
As pastas vermelha e negra são mais depuradas, com mil fragmentos de cerâmica manual, inclui uma im-
elevada densidade de mica e uma cozedura oxidante portante variedade de recipientes, no qual se des-
ou mista. Como acabamento final possuem um ali- tacam peças de tipologia datável, como os bordos
samento rude no exterior e alisamento cuidado ou almendrados, espessados e em aba, fragmentos de
um polimento engobado no interior. Predominam os taças esféricas e de vasos carenados. Destaca-se a
bordos espessados de seção semicircular extroverti- quantidade de barro de cabana recolhido em todas
dos ou de lábio plano pertencentes a recipientes de as camadas que preenchiam a fossa, mais concreta-
média e grande dimensão. mente 7,8 kgs, predominantemente barro de Tipo 1.
O facto de se encontrar em toda a profundidade da
– Fossa fossa, leva a conjeturar que frequentemente era lim-
Resultado da escavação pa e/ou “re”construída uma(s) estrutura(s). Foguei-
A cerca de 10m para sul da S1 identificou-se uma ra? Forno? ou Paredes de cabana?
fossa escavada na rocha, cortada verticalmente pela A base do bloco de maiores dimensões marcava
frente da pedreira de brita. Permanecem conserva- claramente um período de abandono no Calcolítico
dos aproximadamente três quartos da fossa. Desco- Inicial, estando na época a ser já utilizado como va-
nhece-se qual seria a cota de superfície, por ter sido zadouro, e a reutilização no Calcolítico Pleno como
destruída pela descubra do terreno. Poderá dizer-se vazadouro para resíduos domésticos. Estes blocos,
que a conservação desta estrutura apenas se deve a provavelmente tampas, como acima referido, po-
122
Tem na superfície superior abundantes covinhas Este local está virado, grosso modo, para poente, po-
ovais ou circulares, abertas com a técnica de picota- dendo-se conjeturar se os dois santuários não teriam
gem e abrasão, com visível desgaste e de diferentes uma relação com o sol nascente e o sol poente.
dimensões e profundidades, por vezes unidas por Na área sul do santuário 2 foram implantadas três
canais afeiçoados (alguns reaproveitando falhas na- sondagens, S3, S3b e S13. Caraterizam-se por uma ca-
turais da rocha) e uma gravura retangular com cerca mada de sedimento vegetal muito solto, com eleva-
de 2cm de profundidade. Na área central da superfí- da densidade de raízes das árvores que envolvem o
cie tem uma concavidade em cujo centro se encon- afloramento sobre substrato geológico composto por
tra uma covinha. um diorito pouco compacto e de tonalidade amarela.
A maioria das covinhas são pouco profundas e de No decorrer da escavação na S3 identificou-se o ní-
difícil visualização, provavelmente algumas adicio- vel geológico, rochoso, a cerca de 40cm de profun-
nadas posteriormente, enfatizando o significado sa- didade, onde se destaca um bloco com as dimensões
grado do local. de 1,05m de comprimento e 0,80m de largura, que
Entre os esteios de corredor e o altar registou‑se uma possui um conjunto de gravuras rupestres formadas
estrutura semi‑circular com pedra local, gabro‑dio- por uma covinha profunda, com cerca de 12cm de
rito, de médio calibre, preenchida com sedimentos. diâmetro e 5cm de profundidade, e outras três pe-
No decorrer da escavação, na parte inferior do esteio quenas covinhas que partilham um canal.
norte identificou-se uma possível gravura (báculo), Estas gravuras estão associadas à profusão de covi-
na face virada a Este, e no esteio sul o mesmo tipo de nhas e canais abertos nas superfícies do afloramento
gravação no topo do esteio. O corredor está alinha- rochoso, cada bloco apresenta entre duas a cinco co-
do com a covinha mais larga e profunda do aflora- vinhas, cada uma com 5 a 14 cm de diâmetro.
mento, uma covinha hemisférica, com um raio com Em todos os blocos que compõem o afloramento
dimensões semelhantes ou iguais à profundidade há uma covinha que se destaca pela sua dimensão,
(Gomes, Malveiro, Ninitas, 2013, p.544). enquanto que as menores se apresentam geralmen-
O espólio recolhido revela uma reutilização do espa- te posicionadas em linha reta, entre curtos canais,
ço, como local sagrado ou simplesmente para des- alinhadas de forma irregular. As covinhas possuem
canso durante os trabalhos agrícolas. Nas camadas canais de ligação, alguns reaproveitando as fissuras
superiores foi exumada uma moeda em mau estado da rocha, com comprimentos distintos, entre 5cm a
de conservação, um provável ceitil, e dez fragmen- 1,20m, o mais longo gravado desde o centro do topo
tos de cerâmica moderna-contemporânea, incluin- plano do painel até ao solo.
do três fragmentos de faiança de um prato, cinco O escasso material arqueológico recolhido à super-
vidrados e três de cerâmica comum. A cerâmica fície ou exumado na escavação, inclui uma lamela
manual exumada corresponde a um fragmento de de sílex e seis peças líticas (moventes e dormente de
parede com alisamento cuidado no exterior e sem mó manual, raspadeira e percutor).
tratamento final no interior, um bordo almendrado Nas sondagens 3b e 13, que deram continuidade à pri-
e uma raspadeira frontal denticulada. meira, identificaram-se dois sulcos, de direção oeste-
-este, gravados no substrato rochoso, corresponden-
– Santuário 2 do a marcas de arado. Estas marcas vêm confirmar
Resultado das sondagens a afetação do local pelos trabalhos agrícolas, ocasio-
Trata-se de um afloramento em gabro, com pen- nando na mesma camada um conjunto artefactual
dente para sul, contendo as superfícies abundantes com uma cronologia muito alargada, onde mistu-
covinhas, também ele interpretado como sendo um rados com fragmentos de cerâmica manual e lascas
santuário, que deveria estar associado ao primeiro de sílex, se encontram faianças, botões em metal do
(figura 9). século XIX e um cartucho de caçadeira do século XX.
Por vezes as covinhas formam alinhamentos de duas
a quatro, associadas a um ou a dois canais e com 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
uma orientação norte-sul ou sudoeste-sudeste. Um
dos afloramentos comporta dois degraus laterais Considera-se que os vestígios identificados formam
talhados na rocha e uma possível forma de cadeira, um importante núcleo de povoamento e de culto,
obtidos com rebaixamento de plataformas naturais. no qual estão integrados o recinto megalítico Monte
124
como suporte os seixos rolados e os afloramentos, de SILVA, Carlos Tavares da; SOARES, Joaquina (1980) – “O
gabro-diorito. Bronze do SO na área de Sines”. In Descobertas Arqueológicas
A intervenção arqueológica executada, incluindo no Sul de Portugal. Lisboa: Centro de História da Universida-
de de Lisboa.
a desmatação da totalidade da área, que abrangeu
também o recinto megalítico Monte Novo 1, per- SILVA, Carlos Tavares da; SOARES, Joaquina (1981) – Pré-
mitiu visualizar a articulação entre os vários locais -História da Área de Sines. Lisboa: Gabinete da Área de Sines.
definidores do povoado, que, de grosso modo, numa SILVA, Carlos Tavares da; SOARES, Joaquina (1984 – “A es-
abordagem espacial preliminar poderemos destacar tratégia do povoamento dos Chãos de Sines durante a Pré-
como sendo composto por (ver figura 2): o núcleo ha- -História”. In Volume d’ hommage au geologue G. Zbyszewski.
bitacional (Monte Novo 3) localizado a norte; os san- Paris: Recherche sur les Civilisations.
tuários (Monte Novo 4) a oeste; o recinto megalítico SILVA, Carlos Tavares da (1989) – “Novos dados sobre o
(Monte Novo 1) a sul. Isto apesar da grave afetação Neolítico antigo do Sul de Portugal”. In Arqueologia Porto 20,
provocada no povoado pela intensa atividade agríco- pp. 24-32.
la e pela exploração de uma pedreira que eliminou SILVA, Carlos Tavares da; SOARES, Joaquina; COELHO-
qualquer possibilidade de saber se o núcleo arqueo- -SOARES, Antónia (2009) – “Arqueologia de Chão de Sines,
lógico se desenvolveria para este. novos elementos sobre o povoamento pré-histórico”. Atas
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gia, Vol. 35 N.º 4.
Figura 2 – Identificação dos vestígios arqueológicos sobre vista aérea (fotografia aérea extraída do Google Earth).
126
Figura 3 – Levantamento fotogramétrico da área arqueológica de Monte Novo (realizado por Hugo Pires - MORPHIC).
128
Figura 5 – Cabana 1, vestígios identificados (fotografias realizadas por Anabela Joaquinito).
130
Figura 7 – Fossa: à esquerda, o topo da estrutura após definição; à direita, no decurso da escavação das camadas finais (fotogra-
fias de Mário Monteiro).
132
Figura 10 – Cerâmicas manuais e utensílios, em gabro diorito, provenientes da fossa (realizado por Anabela Joaquinito).
RESUMO
O recinto murado de Castanheiro do Vento (V. N. de Foz Côa) apresenta-se como um intrincado e labiríntico
espaço de construção pautado por uma acentuada variabilidade de estruturas. Este texto versa sobre as Grandes
Estruturas Circulares (GEC), um tipo arquitetónico individualizável pela sua dimensão e planta. Analisando-
se esta unidade arquitetónica, colocar-se-á a hipótese de estes locais acolherem ações diversas, indiciadoras
das múltiplas e complexas relações entre o sítio e o território, sendo o território e o dia-a-dia das comunidades
convocados para o interior do recinto, em particular e de modo formal, através da formalização e vivência
destes espaços. Desta perspetiva, as estruturas são interpretadas como locais de assembleia – lugares públicos
de atualização da rede territorial do recinto.
Palavras-chave: Arquitetura pública; Reunião/Assembleia; Calcolítico; Castanheiro do Vento; Estruturas
circulares.
ABSTRACT
The walled enclosure of Castanheiro do Vento (V. N. Foz Côa) is an intricate and labyrinthine constructed
space characterised by a significant variety of structures. This paper focuses on large circular structures (GEC),
which can be identified by their size and general ground plan. Through an analysis of these architectural units,
this study hypothesises that these spaces hosted various activities, indicating the multifaceted and complex
relationships between the site and the surrounding territory. The paper further explores the integration of the
territory and the everyday lives of the communities within the enclosure through the formalisation and use
of these spaces. From this perspective, the structures are interpreted as assembly areas - public spaces that
manifest the territorial network of the enclosure.
Keywords: Public Architecture; Assembly; Chalcolithic; Castanheiro do Vento; Circular structures.
1. FLUP/CITCEM / [email protected]
3. CEAACP-UC / [email protected]
4. IHC / [email protected]
136
ra e um buraco de poste no limite oeste da entrada. de poste que acompanham a curvatura interior (es-
Esta passagem abre-se a uma espécie de antecâmara tariam estas unidades conectadas com a construção
delimitada por um muro pétreo, no qual se identifi- da própria parede do bastião ou indicam a presença
caram buracos de poste, indicando uma construção de uma outra estrutura?).
em altura com materiais perecíveis e terra/argila, e Na área sul do recinto principal (definido pela linha
três buracos de poste que acompanham pelo exterior de muro 3) identificaram-se a GEC3, a GEC4, a
a curvatura da parede do GEC1. O espaço interno GEC5, a GEC6. Estas estruturas desenvolvem-se em
apresenta três estruturas de planta de tendência cir- grandes arcos, definidos por lajes de xisto fincadas
cular. A Estrutura 1 encontra-se no extremo sudoes- dispostas na horizontal. A construção destas unida-
te e a sua construção entrelaça-se com a construção des parece estar interligada, não se assumindo como
dos limites da GEC1; apresenta c. de dois metros de dispositivos independentes, parecendo que o limite
diâmetro, delimitada parcialmente por lajes de xis- de cada arco se entrelaça na estrutura seguinte.
to fincadas e por um nível de lajes de xisto dispostas A GEC3 foi construída em estreita relação com a
na horizontal, formando uma espécie de pavimen- GEC4 (Fig. 4). A primeira com 7 metros de abertura
to. A Estrutura 2, construída no espaço central, cor- volta-se a Este na direção da GEC4, com 6,5 metros
responde a uma depressão no afloramento xistoso de abertura e virada a Norte. A GEC3 apresenta par-
delimitada por lajes de xisto; a sua utilização como cialmente uma dupla linha delimitadora. O espaço
estrutura de combustão é sugerida pela presença de entre estes dois alinhamentos de tendência curvilí-
vários termoclastos em quartzo e de lajes de xisto al- nea é de cerca de 60 cm e encontrava-se preenchido
teradas pela exposição a altas temperaturas. A Estru- com pequenas lajes de xisto. A GEC3 acompanha a
tura 3 situa-se no extremo noroeste, sendo delimita- curvatura do murete do Bastião W distando no seu
da por quatro lajes de xisto fincadas; no seu interior extremo norte cerca de dois metros, distancia que
foi registado um contexto de deposição intencional se encurta à medida que a curvatura da estrutura se
selado. Esta pequena estrutura encontrava-se no in- desenvolve para sul, até o alinhamento da GEC3 en-
terior de uma estrutura de planta circular de cerca de costar no limite do muro que desenha o bastião. Este
dois metros de diâmetro, definida de forma residual intrincado construtivo estará em relação com profun-
por um depósito cujos limites coincidiam com lajes das alterações na parede do bastião, momento em
de xisto que indicavam o contorno. Encontrava-se que a parede interna do bastião é coberto por um se-
selada por uma expressiva concentração de 37 kg de dimento argiloso, integrando outros materiais como
barro de revestimento, embalado num depósito de uma enchó em anfibolito, fragmentos cerâmicos e
cor castanha acinzentada. Neste depósito, registou- uma raspadeira em sílex (McFadyen e Vale, 2014).
-se também um vaso inteiro em calote de esfera, e Na GEC4 registaram-se 125 fragmentos de barro de
um punção em cobre. revestimento (num total de 3546 gr) ao contrário da
A GEC2 é definida por lajes de xisto fincadas e apre- GEC3 na qual não foi registado nenhum fragmento
senta um diâmetro de c. 5 metros, encontrando-se de barro de revestimento. No limite oeste da GEC4 e
muito perturbada no extremo sul. No interior regis- no local central da GEC3 identificou-se uma concen-
taram-se três buracos de poste e um conjunto de pe- tração de termoclastos, blocos de quartzo de filão, de
quenas estruturas com diferentes plantas e dimen- configuração irregular. Estes elementos em quart-
sões, conferindo ao espaço uma complexa organiza- zo encontravam-se em relação com um sedimento
ção interna (Fig. 3). A GEC 1 e a GEC 2 localizam- cinzento-escuro, depositados numa depressão do
-se numa área intensamente construída. O Murete afloramento rochoso. Em conexão com a concentra-
2 ampara um conjunto de estruturas, de tendência ção de elementos em quartzo foi registado um agru-
circular, de diversos tamanhos, cujos limites foram pamento de 20 unidades em granito (dormentes) e
possíveis registar de forma contínua ou intermiten- um grande seixo rolado de quartzito de cor alaranja-
te. O M2 neste espaço é cortado pela passagem 12. da. Na GEC4 identificou-se uma pequena fossa, de
Esta abertura depara-se a oeste com as estruturas 23 contorno subcircular, aberta num sedimento pouco
e 24 e a Leste com GEC1. Os Bastiões U e T encon- compacto de cor amarela, e, no seu interior, uma ou-
tram-se em íntima associação com um conjunto de tra estrutura em negativo interpretada como buraco
estruturas circulares de diversos diâmetros. O Bas- de poste (esta leitura atendeu ao diâmetro do seu
tião T é ainda pontuado por um conjunto de buracos contorno). O extremo leste do grande arco que dese-
138
pla estrutura registaram-se depósitos de coloração tado encontra-se queimado assim como as duas pe-
heterogénea, pouco compactos, com centenas de quenas lascas em material silicioso. Destes últimos
fragmentos cerâmicos. Foram também registados as lascas retocadas e as raspadeiras são preponde-
centenas de fragmentos de fauna em aparente bom rantes. Destacamos dois pequenos furadores e dois
estado de conservação, e dois objetos em osso (tipo buris. O conjunto de núcleos, todos informes e para
agulha e furador). Estes depósitos assentam num ní- lascas, representam 8% da totalidade dos materiais.
vel de sedimento compacto, de matriz argilosa, de Os elementos de moinho, os percutores, os seixos
cor amarela. Na possível área central, corta o depósi- em quartzito encontram-se fragmentados. Os mate-
to da base da estrutura (sedimento argiloso compac- riais em xisto polido revelam-se muito interessantes;
to) uma unidade caracterizada por um sedimento de uma pequena placa fragmentada e um pequeno poli-
coloração irregular, apresentado manchas cinzentas dor com pequeníssimas incisões em ziguezague.
com diferentes gradações, de grão muito fino e pou- Atendendo à análise do conjunto artefactual da
co compacto (UR57). Nesta unidade, parcialmente GEC1 e da UR 57 da GEC7, sublinha-se o caracter de
escavada, registaram-se vertebras de Alosa sp. (sável reunião de um conjunto variado de coisas – de ossos
ou savelha) queimadas em conexão anatómica5 e ou- de animais, de fragmentos cerâmicos, de sementes
tros fragmentos de fauna (em estudo6) e um objeto e frutos. Estes elementos convocam o território. Um
trabalhado em osso (tipo furador). A análise carpo- território próximo, mas com a potencialidade de
lógica identificou a presença sobretudo de bolotas e convocar outros territórios percorridos ou imagina-
cereais (maioritariamente trigo e cevada) na UR 57 dos como indicam as vertebras de sável ou savelha.
(Rodrigues, 2020). Os estudos de carpologia realiza- Esta espécie vive em água salgada, subindo os rios
dos consideraram as campanhas realizadas em 2017, por altura da desova, nos meses coincidentes com a
2018 e 2019. A área abrangida por este estudo con- Primavera. A pesca destes dois indivíduos terá ocor-
templa os três muretes e deu indicações importantes rido nos rios próximos de Castanheiro do Vento. A
sobre a distribuição dos elementos vegetais regista- sua presença nos rios em alturas especificas do ano,
dos. Apesar de se identificarem restos antracológi- de forma sazonal e cíclica, terá associado os trajetos
cos em toda esta área estudada apenas se registaram e os movimentos destes animais do mar até ao seu
elementos carpológicos no Bastião L e GEC 7, es- aparecimento nos rios? A sua ocorrência neste tipo
tando 50,8% concentrados na UR 57. Nesta unidade arquitetónico – em determinados contextos e em
ocorrem 395 fragmentos de cerâmica, maioritaria- associação aparentemente deliberada a outras cate-
mente preservados e cerca de 36% encontram-se vi- gorias de artefactos e ecofatos – parece convocar as
sivelmente queimados. Alguns fragmentos apresen- dinâmicas e memórias destes trajetos, alargando os
tam concreções nas superfícies e arestas, sobretudo horizontes territoriais do recinto.
os localizados na base do depósito (estes elementos
aguardam análise). Apesar da obtenção de algumas 2.3. As GEC e as estruturas de planta circular de
colagens, a fragmentação dos recipientes cerâmicos menor dimensão
terá ocorrido previamente, e/ou em outro espaço, à A técnica construtiva das GEC assemelha-se às de-
sua inserção no depósito final; mesmo os que perten- nominadas estruturas circulares (EC). Também este
cem ao mesmo vaso terão sido depositados já como tipo se define pela técnica e forma. São estruturas
fragmentos. Neste contexto registaram-se também delimitadas por lajes de xisto fincadas e outros ele-
dois moventes em granito de pequenas dimensões e mentos como dormentes em granito, de tendência
71 elementos líticos. Deste pequeno conjunto, des- circular, fechadas, a maioria sem uma passagem de-
taca-se a elevada percentagem de material debitado finida ao nível basal. Têm um diâmetro médio de 2
(39%) e os utensílios (20%). Parte do material debi- metros. Até ao momento foram registas 35 unidades.
Encontram-se elaboradas em conjuntos de 2, 3 e de
5. A identificação da espécie foi realizada por Sónia Gabriel
forma isolada; junto a muretes, no espaço interno de
(UNIARQ) a quem expressamos um reconhecido agradeci- bastiões, junto a passagens, ou em espaços aparen-
mento. temente abertos. No seu espaço interno estão maio-
6. A investigação em zooarqueologia no sítio de Castanhei-
ritariamente limpas; são preenchidas por níveis de
ro do Vento é desenvolvido pela investigadora Cláudia Cos- cascalho de xisto e sedimento de matriz argilosa,
ta (ICArEHB). prováveis camadas de assentamento do “piso” des-
140
nidores do centro. A formalização dos espaços de que permitiriam a negociação dos poderes (públi-
reunião dita a orgânica da assembleia. Nestes espa- cos), através da partilha de coisas, da convocação de
ços de assembleia, as relações diárias com o territó- animais distintos, do seu consumo, pela agregação
rio são convocadas e formalizadas. As materialida- de vários elementos da comunidade que pela cons-
des do dia-a-dia da comunidade são manuseadas e trução e na construção saberiam a ordem das coisas,
evocadas, e em certos casos adquirem um carácter num continuo gesto de ligação entre a tradição e a
extraordinário pela sua reunião – como a Estrutura 3 abertura a novas possibilidades, entre a reprodução
da GEC1 e o contexto UR57 da GEC7. Na GEC1 um e a criação de vida. Acresce que em Castanheiro do
conjunto particular de elementos parece ser inten- Vento os materiais são tendencialmente regionais,
cionalmente selecionado e reunido construindo um em termos de matérias-primas e de estilos formais.
espaço juntamente com lajes de xisto: um corno de As coisas que se ligam a um território que seria qua-
bovídeo, um peso de tear, um sável ou as suas ver- se sempre coincidente com o território habitado e
tebras, e uma dezena de fragmentos cerâmicos com percorrido, com implícitas linhas de tradição a co-
as arestas preservadas foram arranjadas provavel- nectarem sítios (construídos ou especificidades geo-
mente no encerramento da estrutura. Na GEC7 os morfológicas7), adquirem uma natureza excecional
elementos artefactuais não terão sido escolhidos in- pela singularidade da sua reunião.
dividualmente e depositados intencionalmente. No
entanto, as ações que aí decorreram integraram um 4. PALAVRAS FINAIS
conjunto diferenciado, ou melhor, com intensidade
distinta do resto do sítio, como a presença de cente- As Grandes Estruturas Circulares de Castanheiro do
nas de fragmentos de fauna de várias espécies ani- Vento são assim interpretadas como espaços públicos
mais, e a presença excessiva de vestígios de cereais. de reunião, como casas comuns que convocam toda
A unir estes contextos parece estar o sável. a comunidade. Pela sua construção, pelo seu uso, e
Grandes estruturas circulares, com diâmetros supe- pela colmatação/destruição/obstrução dos seus es-
riores a 5 metros de diâmetro, são elementos pouco paços. Estes processos dependem dos materiais que
usuais em contextos do chamado calcolítico penin- se reúnem e se convocam. A fisicalidade e as histó-
sular, podendo destacar-se os exemplos registados rias das coisas ditam o que se pode e o que não pode
em El Casetón de la Era (Delibes de Castro et al. ser feito, e carregam as possibilidades de desafiar o
2015), Los Marroquiés Bajos (Jaén) (Zafra de la Torre que se pode fazer e como. As GEC traduzem também
et al. 2003), interpretados como unidades domésti- o espaço onde emergem e que modificam. Atendem
cas, e no sítio da E.T.A.R de Vila Nova de Milfontes à inclinação e às qualidades do solo, às tradições dos
(Valera e Parreira, 2014) e no recinto dos Perdigões lugares do próprio sítio, às estruturas já construídas
(Valera e Parreira, 2018 e Valera e Basílio, 2017). Me- e respeitadas, ou reformuladas, ou destruídas, ou
rece especial destaque a cabana da E.T.A.R de Vila colmatadas e obstruídas. As GEC constroem-se num
Nova de Milfontes, de forma circular, com 10 m de movimento continuo de criação e tradição, cujo de-
diâmetro, “delimitada por sulcos descontinuados sign se resolve pela construção (a partir de Ingold,
escavados no substrato, os quais eram preenchidos 2013). A reunião destas estruturas num tipo formal
por calços de xisto, arenito e seixos de média/gran- não ofusca as diferenças ao nível do desenho das li-
de dimensão” (Valera e Parreira, 2018, 142) e uma nhas basais, das técnicas construção e da habitação
entrada estruturada virada a nascente. Foi interpre- dos espaços, integrando diferentes assembleias, tal
tada como uma “estrutura de reunião” (ibid. 149), como ficou exposto. No entanto, insere estas estru-
albergando práticas de carácter ideológico-político, turas num movimento de reunião do território no sí-
inferidas também pela presença de materiais “as- tio, formalizando espaços públicos de reunião, como
sociados a contextos relacionados com o sagrado” casas comuns. Estas casas comuns reforçam o papel
(ibid. Ibidem) como ídolos, recipientes de calcário e agregador de Castanheiro de Vento como espaço
cerâmica simbólica. identitário que, pela sua durabilidade, permitiu a so-
Castanheiro do Vento é definido pela própria reu- brevivência de um modo muito particular de habitar
nião, pela prática de assembleia. Neste contexto, o território por centenas de anos.
registam-se espaços de reunião mais formalizados,
de arquitetura pública, desenhando casas comuns 7. Segundo a definição de Cardoso (2007).
142
Figura 1 – Planta arqueológica de Castanheiro do Vento com representação de todas as estruturas de base pétrea identificadas
até 2022.
Figura 3 – Fotografia da Grande Estrutura Circular (GEC) 2 e estruturas internas. As lajes de xisto definidoras da estrutura alber-
gam uma complexa arquitetura interna definida por pequenas estruturas de tendência circular e de tipo “cista” e vários buracos
de poste. (Fotografia de João Muralha, 2008).
144
Figura 4 – Desenho da Grande Estrutura Circular (GEC) 3 e da Grande Estrutura Circular (GEC) 4 e Bastião W. As duas grandes
estruturas em forma de arco estão em relação com uma concentração de blocos de quartzo de filão queimados. (Desenhos de
B. Carvalho, 2009).
Figura 5 – Fotografia da Grande Estrutura Circular (GEC) 6 e da estrutura tipo cista construída no espaço delimitado pelo arco
da GEC. (Fotografia de João Muralha).
Figura 7 –Fotografia da Estrutura 3 (GEC1) definida por 4 lajes de xistos fincadas. Pormenor da deposição intencional do corno
de bovídeo e um peso de tear inteiro. Campanha arqueológica de 2010.
146
Figura 8 – Fotografia da Estrutura Circular 8 definida por lajes de xisto e elementos em granito (moinhos manuais) e preenchida
por depósitos com escasso material arqueológico. (Fotografia de João Muralha, 2018).
RESUMO
Desde 2016 que Vila Nova de São Pedro corresponde à temática central do projecto VNSP 3000, que procura
reunir e analisar toda a informação relacionada com este sítio. Além do Museu Arqueológico do Carmo (MAC),
tem-se vindo a contactar instituições que contam, nos seus acervos, com espólio arqueológico proveniente des-
te povoado Calcolítico. Perante estas colecções, tem sido adoptada a mesma metodologia usada no conjunto do
MAC: inventariar; registar.
Entre os numerosos artefactos arqueológicos à guarda do Museu Municipal de Vila Franca de Xira, encontra-
-se uma pequena colecção proveniente de Vila Nova de São Pedro. Contabilizaram-se 149 elementos divididos
entre Indústria Lítica (pedra lascada e pedra polida/afeiçoada) e Cerâmica. O destaque vai para o conjunto de
pedra polida e afeiçoada, assim como para os pesos de tear em cerâmica.
Palavras-chave: Vila Nova de São Pedro; Calcolítico; Colecções de arqueologia; Cultura material; Vila Franca
de Xira.
ABSTRACT
Since 2016, Vila Nova de São Pedro has been the central theme of the VNSP 3000 research project, which seeks
to gather and analyze all the information related to this site. In addition to the Carmo Archaeological Museum,
has been made contacts with institutions that have archaeological remains from this Chalcolithic settlement
in their collections. For these collections, it has been adopted the same methodology used at Carmo Museum:
inventory and record.
Among the numerous archaeological artefacts of the Vila Franca de Xira Municipal Museum, there is a small
collection from Vila Nova de São Pedro of 149 elements, divided between Lithic Industry (chipped stone and
polished/ground stone tools) and Ceramics. The main items are the polished and ground stone set, as well as
the loom weights in ceramics.
Keywords: Vila Nova de São Pedro; Chalcolithic; Archaeology collections; Material culture; Vila Franca de Xira.
1. Associação dos Arqueólogos Portugueses /UNIARQ – Faculdade de Letras – Universidade de Lisboa / [email protected]
3. UNIARQ – Faculdade de Letras – Universidade de Lisboa / FCT / Associação dos Arqueólogos Portugueses/ [email protected]
4. UNIARQ – Faculdade de Letras – Universidade de Lisboa / Associação dos Arqueólogos Portugueses / [email protected]
UNIARQ financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito dos projectos UIDB/00698/2020 e UIDP/00698/2020.
150
O seu reconhecimento como contexto arqueológico 1. Nº Inventário
ocupado durante a Pré-História tornou-se oficial em 2. Nº Saco – Inventário por saco, mas as peças são con-
1936, após uma pequena campanha de escavações tabilizadas individualmente
dirigida por Hipólito Cabaço. A partir do ano seguin- 3. Sítio – Vila Nova de São Pedro / VNSP
te Eugénio Jalhay e Afonso do Paço assumem, como 4. Campanha
dupla, a direcção dos trabalhos de escavação até 5. Intervenção – Escavação / Limpeza / Recolha Su-
1950, ano da morte do arqueólogo e padre jesuíta. perfície
A partir daí, até 1967, Afonso do Paço encabeça a 6. Área
coordenação da escavação arqueológica de VNSP, 7. Sondagem
com a participação de diversos investigadores. 8. Quadrícula
Os materiais arqueológicos e as estruturas identifi- 9. Unidade Estratigráfica / Camada / Nível / Estrato
cadas desde as primeiras sondagens arqueológicas, 10. Tipo – Tipo de artefacto – Cerâmica / Lítico / Me-
as leituras estratigráficas e análises dos contextos tal / Osso
preservados que têm vindo a ser observadas durante 11. Estado – Inteiro / Fragmentado
as campanhas arqueológicas desenvolvidas no âm- 12. Elemento conservado – aplicável à cerâmica – Bor-
bito do projecto VNSP3000 – suportados pelo qua- do / Bojo / E.p.s. / Fundo / Bordo e bojo / – apli-
dro cronológico radiométrico em constante cons- cável aos líticos – Frag. proximal / Frag. mesial /
trução – permitem enquadrar este sítio no período Frag. distal / Indeterminado
Calcolítico – 3º milénio a.C. (c. 2800-2000 cal AC.), 13. Número de fragmentos
tendo ocupação conhecida até ao início da Idade do 14. Matéria-prima – aplicável à Indústria Lítica
Bronze (Martins, et al 2019; Neves, et al, 2021). 15. Categoria – Recipientes / Peso Tear / Ídolo “cor-
Considerado como um dos povoados calcolíticos nos / “Queijeira” / Colher / Algaravizes / Argila
ícones da pré-história europeia, Vila Nova de São Pe- cozida / Lasca / Lâmina / Lamela / Núcleo / Res-
dro foi classificado como Monumento Nacional em to Talhe / Utensílio / Pedra polida / Pedra afei-
1971 (Decreto nº 516/71, DG, 1ª série, nº274 de 22 de çoada / Placa / Manuporte / Indeterminada
Novembro de 1971 (Figura 1). 16. Forma
17. Tipologia – aplicável aos recipientes cerâmicos
2. OBJECTIVOS E METODOLOGIA 18. Técnica decorativa - aplicável à cerâmica
19. Classificação tipológica
Perante estas colecções, que apresentam artefactos 20. Medidas
arqueológicos provenientes de Vila Nova de São Pe- 20.1. Altura (mm) – Máxima conservada; apli-
dro, tem sido adoptada a mesma metodologia usada cável à Indústria Lítica (lascada e polida), arte-
na colecção do MAC: consultar os elementos; conta- factos em calcário, “ídolos de cornos”, contas,
bilizar; inventariar; registar. pendentes, artefactos em osso, pesos de tear; al-
Após a informação que existe espólio de VNSP à garavizes; outros;
guarda de uma instituição museológica, é feito um 20.2. Largura (mm) – Máxima conservada; apli-
contacto formal para que a colecção possa ser obser- cável à Indústria Lítica (lascada e polida), arte-
vada e, aí, analisada. Depois da resposta positiva e factos em calcário, “ídolos de cornos”, contas,
com a autorização devidamente concedida, a equi- pendentes, artefactos em osso, pesos de tear; al-
pa do projecto VNSP 3000 desloca-se ao local e, aí, garavizes; outros;
procede ao inventário e registo do espólio. O registo 20.3. Espessura (mm) – Máxima conservada;
fotográfico é feito a todos os elementos da colecção, aplicável à Indústria Lítica (lascada e polida), ar-
enquanto o registo gráfico é produzido nos exempla- tefactos em calcário, “ídolos de cornos”, contas,
res com maior informação culturalmente significati- pendentes, artefactos em osso, pesos de tear; al-
va ou em melhor estado de conservação. garavizes; outros;
O inventário, que é idêntico para todas as colecções 21. Observações – Espaço reservado para a indicação
de VNSP, independentemente da proveniência ins- de mais algum elemento característico do arte-
titucional, segue, de forma genérica, os seguintes facto que não pôde ser descrito nos parâmetros
critérios de descrição: da Ficha de Inventário. No caso particular dos
objectos em cerâmica, é aqui que se indica do
152
vam-se artefactos em bom estado de conservação, 3.2. Indústria lítica
com os pesos de tear a apresentarem-se praticamen-
te inteiros e os instrumentos em pedra polida e afei- 3.2.1. Pedra lascada
çoada a permitirem a aferição tipológica. O estado Os materiais de pedra lascada têm escassa represen-
físico destes materiais e o facto de alguns dos ele- tação neste conjunto, correspondendo, unicamente,
mentos em pedra polida e afeiçoada apresentarem a sete elementos: um em quartzito; seis em sílex.
uma marcação a tinta (“V.N.S.P” ou “V.N.S. Pedro”), Quatro correspondem a subprodutos e restos de ta-
de caligrafia idêntica a marcações que existem em lhe, associados à fase de preparação/reavivamento
alguns artefactos, provenientes de VNSP ou de ou- ou matéria residual. Uma das esquírolas apresenta
tras estações arqueológicas, à guarda do Museu córtex e um outro caso poderá estar, mesmo, asso-
Arqueológico do Carmo e do Museu Municipal de ciado às etapas de manutenção e reavivamento de
Alenquer (MMA), indiciam que, tal como estes des- núcleos (tablete de reavivamento). Embora muito re-
tas instituições, terão a sua proveniência da colecção siduais, estas peças apresentam-se como indicado-
de Hipólito Cabaço devendo, no caso de Vila Franca res seguros de preparação e manutenção pontual, no
de Xira, terem sido ofertados por ele. À imagem dos local, de blocos debitados (ausentes neste conjunto).
elementos aqui em análise, esta marcação está, nor- Ao nível da fase plena de debitagem, estão presentes
malmente, presente no espólio lítico (pedra lascada três lascas de pequenas dimensões (não ultrapassam
[nos quartzitos], pedra polida e/ou afeiçoada), exis- os 47mm de altura e os 29mm de largura). Relativa-
tente no MAC e no MMA. mente à matéria-prima utilizada, duas das lascas fo-
Como acima referido, deste subconjunto de 16 arte- ram produzidas em sílex e uma em quartzito. Atra-
factos destacam-se três pesos de tear provenientes vés de observação macroscópica, identificaram-se
de VNSP que integram a exposição permanente des- possíveis de traços de utilização no bordo esquerdo
se espaço museográfico do Núcleo do Mártir Santo. de uma das lascas, o que poderá elevar este artefacto
Outra curiosidade reside no facto desses três arte- à categoria de utensílio a posteriori.
factos serem a figura central de uns marcadores de
livros que o Museu Municipal/Centro de Estudos 3.2.2. Pedra polida
Arqueológicos de Vila Franca de Xira oferece aos O grupo da pedra polida é composto por oito ele-
seus visitantes, sem qualquer problema em indicar mentos que apresentam, do ponto de vista tipoló-
a origem desses elementos, apesar de provirem de gico e funcional, alguma diversidade interna apesar
um contexto arqueológico que pertence a outro con- de, como constataremos adiante, existir alguma ho-
celho (Figura 3). mogeneidade do ponto de vista formal dentro das
O restante conjunto (133 artefactos), mais numero- diferentes categorias. O conjunto caracteriza-se pela
so e onde se incluem todos os fragmentos de reci- presença de instrumentos acabados, estando ausen-
pientes cerâmicos, os escassos elementos de pedra tes elementos que possam corresponder ao processo
lascada e, possivelmente, um instrumento em pedra de produção desta utensilagem.
polida muito fragmentado (o que impede a sua clas- As peças apresentam estados de conservação dis-
sificação tipológica), parece resultar de recolhas de tintos, com um exemplar inteiro, um outro de perfil
superfície, oriundas de visita(s) fortuita(s) ao sítio completo (mas com muitas zonas facturadas), e os
arqueológico. Os artefactos apresentam algumas ca- restantes a classificarem-se como facturados (alguns
racterísticas que indiciam essa proposta, tais como com elevado grau de fragmentação), situação que
o seu estado de conservação (muito fragmentados), poderá estar relacionada com a intensidade e grau
aliada à presença elevada de bojos lisos que não se- de utilização a que estes elementos estiveram sujei-
riam recolhidos em contexto de escavação, quer na tos, assim como por fenómenos pós-deposicionais
primeira campanha realizada por Hipólito Cabaço, que contribuiram, de igual modo, para a sua desa-
quer nas dirigidas por Eugénio Jalhay e Afonso do gregação.
Paço. Apesar da sua menor apelatividade museográ- Os elementos artefactuais em pedra polida foram
fica e de corresponderem a elementos que apresen- quase todos produzidos em anfibolito, com excep-
tam algumas limitações para a sua definição tipoló- ção de um exemplar feito em xisto. O anfibolito
gica, reconhece-se o seu interesse científico, dado e o xisto correspondem a rochas que têm as suas
que aqui procuraremos demonstrar. fontes primárias em áreas afastadas de VNSP (nun-
154
Os outros martelos têm dimensões muito idênticas ao nível do polimento que o artefacto do conjunto de
(92mm e 97mm de comprimento; 34mm e 35mm de Vila Franca de Xira apresenta), mas, por outro lado,
espessura), excepto na largura que é mais estreita a sua forma não parece ir ao encontro dos esferóides
que o martelo completo, devido à fractura longitu- de calcário que surgem em outros contextos do 3º
dinal que ambos possuem (49mm e 42mm, respecti- milénio AC. Neste particular, destaca-se a colecção
vamente). Tal como se observou no grupo das enxós, do povoado fortificado de Leceia, e o seu estudo cor-
também nas dimensões dos martelos se observa respondente, com o tema da sua interpretação estar
uma grande homogeneidade formal (Figura 4). ainda em aberto e as propostas funcionais oscilarem
entre projécteis, balas de funda, “bolas” de arre-
3.2.3. Pedra afeiçoada messo utilizadas na caça, marcas ou pedras de jogo,
Para esta categoria foi possível identificar dois arte- não excluindo uma finalidade mais simbólica/voti-
factos, um em quartzito e outro em calcário, ambos va quando as mesmas apresentam um acabamento
de pequenas dimensões, possivelmente para serem particularmente cuidado (como parece tratar-se do
manipulados com uma só mão. exemplar em análise) (Cardoso, 2001/2002). Se-
O elemento em quartzito corresponde a um seixo ro- guindo o critério dimensional atribuído pelo autor
lado, de morfologia discoidal (embora ligeiramente citado, a peça de Vila Nova de São Pedro ficaria in-
fracturado, mas que não inviabiliza a caracterização serida no grupo “esferóides de tamanho médio”
da sua forma e tamanho original: 72mm de largura (até cerca de 75mm de diâmetro máximo) (Idem,
por 32mm de espessura). Os bordos encontram-se 2001/2002, p.78).
em bruto, restando as duas superfícies activas como
indicadores de conformação e utilização enquanto 3.3. Cerâmica
instrumento, nomeadamente um movente. Um dos
bordos parece ter sinais de percussão, indiciando 3.3.1. Recipientes
uma outra funcionalidade, a de percutor. Embora o A cerâmica corresponde à categoria artefactual mais
quartzito não seja uma matéria-prima com origem representada no conjunto. No total, são 132 elemen-
local, existem áreas perto do sítio onde a recolha de tos, estando 120 associados a recipientes. Destes
seixos rolados em quartzito seria uma tarefa de re- últimos, 80 correspondem a bojos totalmente lisos
duzida dificuldade. não sendo, por isso, possível reconstituir a morfolo-
O artefacto em calcário corresponde a uma peça de gia e dimensão do vaso a que pertenceriam.
excepcional qualidade, levando-nos a questionar se Desta forma, a informação cultural parte da análise
terá sido utilizada em ambiente doméstico ou se teria de 35 bordos lisos e de cinco bojos decorados, os úni-
um outro propósito (futuro artefacto votivo?). O cal- cos do conjunto global dos recipientes. A significati-
cário corresponde ao substrato geológico local o que va presença de fragmentos lisos dificulta a colagem
indicia que os artefactos identificados nesta matéria- entre elementos, assim como o cálculo aproximado
-prima sejam produzidos no local, para distintos fins do número mínimo de recipientes.
(como por exemplo, os artefactos cilíndricos – sobre Um dos elementos decorados pertence a um vaso
este tema ver Martins et al, 2020 e 2021; Rodrigues campaniforme, observável na impressão linear pon-
et al, 2022). Trata-se de um instrumento, com 69mm tilhada composta por seis fiadas horizontais e para-
de altura, 55mm de largura e 50mm de espessura, lelas entre si. Pela reduzida dimensão do fragmento
que apresenta as superfícies e bordos totalmente desconhece-se se faria parte de um recipiente com
afeiçoados/polidos. A sua morfologia é subcilíndri- uma temática decorativa mais diversificada. Ainda
ca. Ocorre algum desgaste e lascamento nos bordos, nas decorações, ocorrem quatro fragmentos decora-
mas que não indicia traços de uso (como percutor), dos a incisão que, não sendo possível a colagem en-
mas sim de desgaste pós-deposicional (Figura 5). tre si, parecem corresponder a um mesmo recipien-
A sua categoria artefactual levanta algumas ques- te. Todos apresentam pequenas caneluras paralelas
tões. Parece muito bem trabalhado para correspon- e perpendiculares entre si, num registo técnico que
der a um movente (embora exista um exemplar se repete nestes fragmentos, aliado às característi-
morfologicamente idêntico na colecção de VNSP à cas técnicas (pasta, cozedura, tratamento de super-
guarda do MAC, com essa atribuição funcional – Ar- fície), igualmente semelhantes entre os elementos.
naud e Fernandes, 2005, p.205 – mas sem o cuidado No conjunto dos bojos lisos, existem dois fragmen-
156
elementos, registam-se duas perfurações conserva- 3.4. Leitura (possível) de conjunto
das e no outro uma só perfuração (no caso em que o Teorizar a partir de um (pequeno) conjunto artefac-
exemplar apresenta pior estado de conservação). tual, cujo contexto arqueológico é praticamente des-
O diâmetro da perfuração situa-se entre os 4-7mm, conhecido, apresenta-se como uma tarefa difícil de
com o diâmetro máximo a ser registado nos casos cumprir. No entanto, o conhecimento produzido em
onde são visíveis as marcas de utilização destes ele- torno de Vila Nova de São Pedro, quer nas escava-
mentos, nomeadamente da sua presumível suspen- ções antigas quer pelo projecto VNSP 3000, a que se
são. Essa situação está presente de forma mais evi- acresce o progresso da investigação acerca do Calco-
dente em, pelo menos, cinco exemplares. lítico no espaço estremenho, possibilitam que espó-
A distância das perfurações para as extremidades das lios como o aqui analisado possam ter o seu espaço
peças nunca supera os 10mm, sendo a distância mais no debate científico.
aproxima a de cerca de 5mm. A distância entre per- Os 149 artefactos que integram o conjunto de VNSP
furações é, em média, de 35mm nos elementos mais à guarda do Museu Municipal de Vila Franca de Xira
próximos, e de 50mm nos elementos mais distantes. enquadram-se no mundo cultural que caracteriza o
Só um destes componentes de tear apresenta deco- 3º milénio AC no espaço peninsular. Não há um único
ração. Localizado numa única superfície e junto a objecto que remeta, de forma inequívoca, para perío-
uma das extremidades foi aplicado, com recurso à dos anteriores ou mais recentes. Por outro lado, reco-
técnica de incisão, um motivo geométrico composto nhece-se que rareiam os elementos de diagnóstico.
por 12 pequenos traços em ziguezague, com alguns Neste particular, o artefacto mais destacado será o
a sobreporem-se. O peso em causa é um dos que se fragmento com decoração campaniforme e os pesos
apresenta muito fragmentado o que não permite de tear. Estas duas categorias estão bem presentes
avaliar se existiriam mais motivos decorativos e qual no universo artefactual do sítio, desde as primeiras
a temática total que esta superfície tinha (Figura 8). campanhas (Paço e Jalhay, 1939), às mais recentes,
contando já com um suporte cronométrico que vali-
3.3.3. Outros elementos cerâmicos da a sua presença em VNSP, pelo menos, a partir do
Além dos artefactos acima referidos, o conjunto à 3º quartel do 3º milénio cal AC (Martins, et al, 2019).
guarda do Museu Municipal de Vila Franca de Xira Os restantes artefactos situam-se num mundo cul-
conta, ainda, com quatro fragmentos que se inse- tural mais genérico e pode percorrer a longa diacro-
rem em outras categorias artefactuais, além das já nia do Calcolítico sendo, por isso, mais difíceis de
mencionadas. precisar no tempo. Os recipientes cerâmicos lisos
Dois elementos correspondem a fragmentos de bojo correspondem a morfologias típicas deste período,
que, pela sua espessura e (ir)regularidade formal, não sendo específicas de nenhum momento em par-
deverão pertencer a um “Ídolo de Cornos”. ticular, registadas nos níveis de ocupação datados
Surge, igualmente, um outro fragmento de bordo que de VNSP.
remete para um “disco”. Pelo seu estado de conserva- A pedra polida corresponde a um dos grupos artefac-
ção, desconhece-se se teria uma perfuração central tuais mais bem representados em VNSP. Só no MAC
que o remetia para a categoria de cossoiro, elemento estão contabilizados mais 570 exemplares de gran-
com alguma representatividade na colecção de Vila de multiplicidade formal e tipológica/funcional,
Nova de São Pedro existente no Museu Arqueológico espelhando bem o peso, em VNSP, das actividades
do Carmo. Associados a contextos a partir do Neo- económicas e sociais que estão associadas a estes
lítico final, estes elementos cerâmicos sem qualquer instrumentos. Sem, ainda, nenhum estudo especifi-
perfuração e com uma forma discoide e achatada camente centrado nestes elementos, e com poucos
surgem ocasionalmente no registo arqueológico. Os registos nos níveis arqueológicos identificados nas
autores têm-nos remetido para possíveis elementos escavações desenvolvidas pelo projecto VNSP3000,
de jogo ou, quando apresentam dimensões maiores, torna-se ainda difícil proceder a um exercício analí-
para possíveis tampas (Lago et al, 1998, p. 100; Ro- tico que permita observar possíveis evoluções e va-
drigues, 2017, p.28; Valera, 2018, p.108). riabilidades tecno-tipológicas ao longo do Calcolíti-
Por fim, regista-se ainda um pequeno nódulo de ar- co, tal como já foi testado para outros povoados da
gila cozida que não corresponderá a qualquer cate- Estremadura portuguesa (Cardoso, 2020).
goria artefacutal.
158
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Figura 2 –Museu Municipal de Vila Franca de Xira – Núcleo Museológico do Mártir Santo. À direita da imagem, três pesos de
tear de Vila Nova de São Pedro que integram a exposição permanente (imagem retirada de: https://www.cm-vfxira.pt/).
160
Figura 3 – Marcador de livro do Museu Municipal de Vila Franca com a imagem de três pesos
de tear de Vila Nova de São Pedro, devidamente mencionados (imagem da frente e verso)
(imagem retirada de: https://www.cm-vfxira.pt/).
162
Figura 5 – Pedra afeiçoada: polidor/percutor em calcário com a marcação antiga indicando a proveniência do sítio arqueológico
(“V.N.S.P”).
164
Figura 7 – Cerâmica: recipientes lisos.
166
DE CASA EM CASA: NOVOS DADOS SOBRE
O SÍTIO PRÉ-HISTÓRICO DO RIO SECO /
BOA-HORA (AJUDA, LISBOA)
Regis Barbosa1
RESUMO
Apresentamos os resultados de uma intervenção arqueológica realizada na Calçada da Boa-Hora, em Lisboa,
no âmbito da reabilitação de um edifício. O local implanta-se entre o Tejo e o alto da Ajuda. A componente
artefactual é diversificada e pode ser enquadrada no Neolítico Final e no Calcolítico, destacamos a presença de
cerâmicas carenadas, com bordos denteados e com decoração “folha-de-acácia”, bem como indústria lítica em
sílex com uso recorrente do método prismático e indústria em osso. Identificámos ainda estruturas positivas e
negativas, nomeadamente uma possível fossa, que continha fauna mamalógica e malacológica. Interpretamos
estes vestígios como componentes de uma economia de largo espectro, onde diferentes atividades teriam sido
efetuadas num possível povoado.
Palavras-chave: Neolítico Final; Calcolítico; Arqueologia urbana; Arqueologia de salvaguarda.
ABSTRACT
We present the results of an archaeological intervention carried out on Calçada da Boa-Hora, in Lisbon, within
the scope of the rehabilitation of a building. The site is located between the Tagus and Alto da Ajuda. The arte-
fact component is diverse and can be framed in the Late Neolithic and Chalcolithic, we highlight the presence
of careened ceramics, with jagged edges and with “acacia leaf ” decoration, as well as lithic industry in flint with
recurrent use of the prismatic method and bone industry. We also identified positive and negative structures,
namely a possible pit, which contained mammological and malacological fauna. We interpret these traces as
components of a broad spectrum economy, where different activities would have been carried out in a possible
settlement.
Keywords: Late Neolithic; Calcolithic; Urban Archaeology; Rescue Archaeology.
2. Os trabalhos arqueológicos foram dirigidos pelo autor, a Entidade Enquadrante foi a empresa Clay, Arqueologia.
168
baixa, o que permitiu a conservação integral da refe- ser datados do Calcolítico Inicial a par de outros do
rida estrutura. Neolítico Final.
Além da primeira sondagem, foi aberta um segun- A sondagem 2 foi escavada numa área onde não hou-
da na área do logradouro, junto ao limite do edifício, ve qualquer movimentação de terras por parte da
onde foi construído o lintel mais a oriente. Esta son- obra, o seu objetivo era o de perceber a afetação das
dagem foi escavada até o substrato geológico, con- construções feitas no interior do edifício, bem como
forme determinado pela Tutela. conhecer os contextos arqueológicos existentes na
Quando iniciamos a escavação da sondagem 1 já ha- área. Por isto, foi implantada num local o mais próxi-
via sido retirado o pavimento e respetiva preparação, mo possível da área construída, em zona não mexida.
sendo claro que na área havia afetações da obra. Inicialmente foram removidos os depósitos con-
Após a remoção dos contextos relacionados ao edifí- temporâneos e modernos, destacamos o depósito
cio do século XX, identificámos o depósito [1009] / [2003], heterogéneo e de matriz arenoargilosa, que
[1010], que é caracterizado pela sua coloração negra continha tanto materiais pré-históricos como mate-
e pela presença de carvões. A sua relação com outras riais modernos.
unidades estratigráficas sugere que seja da Idade Por baixo de [2003], a camada [2002] continha fun-
Moderna ou do início da época contemporânea. damentalmente materiais de cronologia pré-histó-
Sob [1010] foi identificada a camada [1005]. Uma rica, que incluem indústria lítica, cerâmica manual,
parcela do topo deste depósito estava exposta às mo- fauna mamalógica e malacológica. A sua matriz era
vimentações de terra feitas pela obra, assim surgi- arenoargilosa, mas diferentemente do depósito an-
ram alguns materiais claramente mais recentes, mas terior era homogénea. Notemos também a presença
no decorrer das escavações concluiu-se que seriam de calcários de médio e pequeno porte.
afetações da obra. Posto isto, foi dada equivalência Já a camada [2004], era imediatamente anterior a
às camadas [1005], [1013] e [1014], todas arenoar- [2002]. A sua matriz era arenosa, e a sua coloração
gilosas, compactas e com uma componente artefac- castanha clara. A componente artefactual continha
tual pré-histórica. exclusivamente materiais pré-históricos. O estrato
A sequência estratigráfica prosseguia com a camada [2004] marca o abandono da estrutura [2007].
[1015] / [1016], de matriz arenosa, coloração casta- O muro [2007] é constituído por pedras calcárias
nha clara, pouco compacta e que apresentava algu- irregulares, de grande porte e ligadas por terra. A
mas pedras de médio porte (calcários e basaltos). Os sua orientação é sul-norte. Não obstante, tanto para
materiais exumados tinham uma forte componente norte como para sul não havia qualquer sinal de
calcolítica, apesar de surgirem também vestígios ca- continuidade do muro, concretamente nos cortes
racterísticos do Neolítico Final. Esta camada pode noroeste e sudoeste não existia qualquer vestígio
ser interpretada como o abandono da estrutura pé- de prolongamento do mesmo. Esta estrutura indica
trea que será descrita mais abaixo. pelo menos uma fase de ocupação pré-histórica do
Após a retirada de [1015] / [1016] foi reconhecido sítio, mas não foi possível detetar qualquer paleoso-
um empedrado, constituído por pedras basálticas lo ou nível de circulação associado, apenas foi reco-
e calcárias, irregulares e de médio porte. Apesar nhecida a camada [2005] / [2006], onde assenta-
do empedrado não ter sido vislumbrado na sua to- vam os elementos pétreos.
talidade, pois estendia-se para fora da área de es- A camada [2005] era equivalente a [2006], fazem
cavação, optamos por diferenciar duas parcelas da parte de uma mesma realidade, e guardam as mes-
estrutura. Uma primeira parte corresponderia à des- mas características. A sua coloração era castanha
truição ou derrube da estrutura, a que atribuímos avermelhada, a sua matriz era arenoargilosa e era
a U.E. 1017, outra parte seria o muro propriamente homogénea. Dentre os materiais exumados havia
dito, [1018]. Este último assentava sobre as camadas cerâmicas manuais, indústria lítica e fauna.
[1020], que não foi escavada, e [1019]. Esta última Sob [2005] / [2006] foram detetadas duas camadas
foi parcialmente escavada, devido à necessidade de [2009] / [2011] e [2010] / [2012]. A primeira era o
construção das infraestruturas de esgoto. A camada enchimento das estruturas negativas [2013] e [2014].
[1019] era de coloração castanha escura, arenoar- Era de coloração acinzentada, arenosa e pouco com-
gilosa e pouco compacta, continha bastante fauna pacta, continha indústria lítica, cerâmica manual
malacológica e materiais arqueológicos que podem e fauna. Do lado oposto da sondagem, a sudoeste,
170
materiais. No depósito [2003] surgiram artefactos lamelares. Outro vestígio com interesse é uma pré-
de cronologia moderna a par de materiais pré-histó- -forma de foliáceo (foicinha), que parece atestar a
ricos. Por um lado, foram exumados vidros, faiança, produção desta tipologia de utensílio sobre lasca. No
cerâmica comum e vidrada; por outro, e em simultâ- que concerne às faunas, foram recolhidos mais de
neo, identificamos cerâmica manual, indústria lítica, uma centena de vestígios de fauna mamalógica, sen-
indústria em osso e um almofariz em mármore/cal- do, entretanto, necessário um estudo de zooarqueo-
cário. Este último tem vários paralelos, tais como o logia para uma correta quantificação. Por outro lado,
artefacto exumado na intervenção na Rua dos Quar- a fauna malacológica é numerosa, apresentando
téis (Basílio, Pereiro, 2017, pp. 39-40), ou os exem- mais de 200 indivíduos. Entre as cerâmicas destaca-
plares oriundos de contextos domésticos de Leceia mos um fragmento de cerâmica com decoração ca-
(Cardoso, 1997, p.98), ou mesmo os almofarizes dos nelada sob o bordo e no bojo, apresentando orifício.
hipogeus 1 e 2 da Quinta do Anjo (Soares, 2003, p. A sua superfície é negra e o seu cerne é oxidante. A
98). Não obstante os diferentes contextos apresenta- cronologia deste fragmento é claramente calcolítica,
dos, há certa convergência em relação ao uso deste havendo semelhanças com a decoração de um copo
tipo de peças para a moagem, em alguns casos pro- proveniente de Leceia (Amaro, 2008/2009, p. 168).
vavelmente de ocre e em outros de corantes e produ- Já a camada [2005/2006], continha uma menor
tos medicinais. quantidade de materiais do que [2004], tanto no
A camada que se seguia, [2002], continha materiais que concerne às cerâmicas, como a indústria lítica
com forte componente calcolítica como cerâmicas e mesmo a fauna. Entretanto, não foram exumadas
com decoração em folha de acácia e canelada, um quaisquer cerâmicas que pudessem ser conotadas
foliáceo (foicinha), uma ponta de seta, para além claramente com o Neolítico Final. A par da indústria
de um artefacto em cobre indeterminado, mas que lítica, foram identificados um fragmento de copo ca-
eventualmente poderia ser um lingote ou machado nelado, relacionado ao Calcolítico Inicial, e um fura-
plano (Cardoso & alii., 2020, p.49). dor em osso.
Também estavam presentes outros artefactos, como Relativamente ao copo canelado, a sua decoração é
lâminas em sílex, cerâmica manual sem decoração semelhante à existente no copo 187-06, oriundo de
e cerâmica com bordo denteado. O fragmento de Vila Nova de São Pedro (Ferreira, 2003, p. 218). Os
peso de tear exumado está relacionado às mudan- copos canelados protagonizaram um longo debate
ças decorrentes da chamada Revolução dos Produ- ao longo da investigação arqueológica em Portugal,
tos Secundário, é possível que os furadores em osso atualmente, o seu fabrico endógeno é amplamente
exumados nesta camada também estivessem liga- reconhecido, bem como a sua cronologia, que reme-
dos à tecelagem, não obstante também ser plausível te sobretudo, mas não exclusivamente, ao Calcolíti-
que fossem utilizados em outras atividades, como o co Inicial (Ferreira, 2003, p.221; Amaro, 2008/2009,
trabalho de peles (Salvado, 2001, p.43). Por fim, foi p. 164; Cardoso, 1999/2000, pp. 343-344; Kunst,
exumado um fragmento de um possível ídolo em 1996, pp. 278-280). De facto, é um fenómeno funda-
calcário, característico do III milénio, e identificado mentalmente da Estremadura.
em diferentes sítios, tanto funerários como habita- No seguimento da escavação identificámos estrutu-
cionais, com especial incidência na Península de ras negativas escavadas no substrato geológico, con-
Lisboa (Gonçalves, 1995, pp.157-160). cretamente as estruturas [2013] e [2014], cheias pelo
Sob a realidade atrás descrita, surgia a camada depósito [2009/2011], e a estrutura [2015], cheia por
[2004]. A sua componente artefactual é semelhante [2010/2012]. O enchimento [2009/2011] revelou
à atrás descrita, com vestígios claramente do Calco- escassos materiais, nomeadamente fragmentos de
lítico e outros, menos numerosos, do Neolítico final. bojos de cerâmica manual sem decoração, indústria
A indústria lítica é numerosa, tendo sido recolhidos lítica (material de preparação e suportes) e fauna
mais de 100 indivíduos, com destaque para o mate- malacológica.
rial de preparação e reavivamento, e subprodutos. Já o enchimento [2010/2012], continha uma quan-
Não obstante, também foram identificados os tecno- tidade muito relevante de fauna mamalógica, ao
-tipos mais extremos da cadeia operatória, nomea- todo foram recolhidos 229 ossos. Não obstante, foi
damente os nódulos e os utensílios. Destes últimos, possível reconhecer que uma parcela dos vestígios
destacamos utensílios sobre produtos laminares e osteológicos pertencia a ovicaprinos de diferentes
172
teriores. Relativamente à interface [2015], o seu en- foram recolhidos na intervenção, nomeadamente
chimento revelou mais vestígios, sendo claro o seu um fragmento de ídolo em calcário, bastante co-
uso como fossa. Este uso pode não ter sido a sua mum nos contextos coevos da Estremadura, e um
funcionalidade original, de que não temos vestígios, almofariz em calcário/mármore, com provável fun-
mas indica a sua derradeira colmatação. Quanto à cionalidade relacionada à trituração de ocre ou de
sua datação, consideramos que o enchimento deve produtos medicinais.
remeter ao Calcolítico, dado o espólio exumado. A fauna recolhida é numerosa. O conjunto de fauna
Não é possível o estabelecimento de cronologia para mamalógica contém vestígios osteológicos de ovica-
a interface propriamente dita, eventualmente pode prinos, que indicam a atividade pastorícia. Já a fauna
remeter ao Neolítico Final, conforme é defendido malacológica, é também abundante. Tal facto, pare-
pelos autores dos estudos sobre a Travessa das Do- ce ter clara relação com o ambiente estuarino onde a
res (Neto, Rebelo, Cardoso, 2015, p.238). estação arqueológica se implanta. Não é certo que os
De um modo geral, parece clara a existência de uma vestígios exumados estivessem unicamente ligados
ocupação do Calcolítico associada às estruturas. com o consumo, existindo maiores concentrações
Quanto à funcionalidade das mesmas, não vemos a consoante a camada identificada.
mesma clareza. De acordo com esta primeira análi- No sítio pré-histórico da Calçada da Boa-Hora/Rio
se dos dados há uma diacronia dentro deste período, Seco, as relações existentes entre o povoado do Cal-
de modo que a colmatação da fossa é anterior à uti- colítico Inicial, as diferentes ocupações ao longo
lização do muro. Por outro lado, os materiais do Cal- da Pré-história e o ambiente são complexas. Além
colítico Pleno e do Neolítico Final também parecem disto, necessitamos do estudo de uma amostragem
indicar ocupações destas épocas, mesmo que não mais ampla, bem como da realização de investiga-
existam quaisquer relações com o uso das estruturas. ções em arqueociências sobre aspetos específicos
A cultura material exumada pode ser relacionada à da cultura material. A partir daí, poderão ser esta-
economia da Revolução dos Produtos Secundários, belecidas interpretações mais consistentes sobre as
processo que se inicia ainda no Neolítico Final, mas funcionalidades e os significados dos diferentes ves-
que se espraia pelo Calcolítico. No arqueossítio te- tígios e contextos.
riam sido realizadas atividades de largo espectro, de-
notando um aproveitamento de recursos variados, BIBLIOGRAFIA
desde o sílex, encontrado em diferentes fases da ca- AMARO, Gonçalo (2008/2009) – Os copos canelados vis-
deia operatória, até a tecelagem, caracterizada pela tos desde o século XXI: características, distribuição e novas
presença de um peso de tear, mas igualmente pelos perspectivas de estudo. Arqueologia e História. Lisboa. 60-
inúmeros furadores em osso, que também poderiam 61, pp. 163-177.
estar relacionados ao trabalho do couro. No que con- AMARO, Gonçalo (2004/2005) – Interpretação das facas
cerne às práticas agrícolas, mesmo que não tivessem ovóides (foicinhas) através do estudo dos exemplares de Vila
sido recolhidas sementes, é patente o processamen- Nova de São Pedro. Arqueologia e História. Lisboa. 56-57,
pp. 63-80.
to e eventual consumo de cereais, como se pode ve-
rificar através da presença de uma mó dormente. Os ANDRADE, Marco António (2011) – O sítio pré-histórico de
foliáceos (“foicinhas”) também poderiam indicar o Monte da Pedras (Mina, Amadora): identificação e caracte-
rização de uma oficina de talhe neolítica. Revista Portugue-
trabalho de processamento de cereais, mas a discus-
sa de Arqueologia. Lisboa. 14, pp. 5-39.
são existente sobre o tema impede uma correlação
BASÍLIO, Ana Catarina; PEREIRO, Tiago do (2017) – Peda-
segura, urgindo a análise traceológica dos utensílios
ços de um passado comum: ocupações do 4ª e 3ª milénios
exumados. A presença de utensílios em cobre tam-
AC na zona do Rio Seco/Boa Hora (Ajuda, Lisboa). Aponta-
bém confirma o acesso a bens produzidos através da mentos de Arqueologia e Património. Lisboa. 12, pp. 37-44.
metalurgia, mesmo que nos contextos de abandono
CARDOSO, João Luís; BOTTAINI, C.; MIRÃO, J.; SILVA,
do arqueossítio. Tal inferência torna-se ainda mais R. J.; BORDALO, R. (2020) – O espólio metálico do povoa-
robusta quando associada ao facto de que na escava- do pré-histórico de Leceia (Oeiras), Inventariação e estudo
ção da Travessa das Dores foi encontrado um frag- analítico. Estudos Arqueológicos de Oeiras. Oeiras. 26, pp.
mento de cadinho, vestígio da prática metalúrgica 41-66.
dentro do próprio povoado (Neto, Rebelo, Cardoso, CARDOSO, João Luís, MARTINS, Felipe (2013) – O povoa-
2017, p.32). Os objetos “mágico-religiosos” também do pré-histórico de Leceia (Oeiras): Estudo dos utensílios de
174
Figura 1 – Localização do sítio arqueológico (Carta Militar de Portugal, Folha 431).
176
Figura 5 – Indústria lítica em sílex e cerâmica carenada.
178
UM CONTRIBUTO PARA O ESTUDO
DAS PONTAS PALMELA DAS «GRUTAS
DE ALCOBAÇA»
Michelle Teixeira Santos1, Cátia Delicado2, Isabel Costeira3
RESUMO
No conjunto dos artefactos metálicos recolhidos por Vieira Natividade nas intervenções realizadas nas «Grutas
de Alcobaça», cujos resultados foram pioneiramente publicados em monografia homónima (Natividade, 1901),
destacam-se as diversas pontas de cobre «tipo Palmela», exemplares em bom estado de conservação que in-
tegram a colecção do Mosteiro de Alcobaça e que agora revisitamos, procurando contribuir para o seu estudo
através de uma leitura tipológica, análise composicional e algumas considerações cronológicas.
Palavras-Chave: Metalurgia do cobre; Pontas «tipo Palmela»; Campaniforme; Transição Idade do Bronze.
ABSTRACT
Among the metallic artefacts collected by Vieira Natividade in the «Grutas de Alcobaça» interventions, which
are part of the collection of the Alcobaça Monastery, stands out the various Palmela Points, in good conserva-
tion condition, that we revisited, seeking to contribute to its study through a typological reading, compositional
analysis and some chronological considerations.
Keywords: Copper metallurgy; Palmela Points; Bell Beakers; Bronze Age transition.
2. FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia / UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa / CIAS – Centro de
Investigação em Antropologia e Saúde da Universidade de Coimbra / [email protected]
180
erosão regressiva a montante dos cursos de água go de Natividade, que identificou um enterramento
(Martins, 1949; Crispim et al., 2001:13). De orienta- de um único individuo mais tarde confirmado por
ção preferencial NE-SW, este apresenta diferenças Sueiro e Fernandes (Sueiro e Fernandes, 1938:5) e
significativas no seu perfil longitudinal. A partir da enquadrável por datação radiocarbono de sementes,
zona da gruta do Cabeço da Ministra (baixa) e até às associadas a um vaso de grandes dimensões (grãos
nascentes de Chiqueda o declive é mais acentuado. de Hordeum vulgare L. var. nudum), com um valor
Neste troço, caracterizado pelo forte encaixe e mea- Cal BC de 2140-1950 (2 sigma, 95% de probabili-
dramento do vale, podem-se observar penas altas e dade), justamente neste hiato de transição entre os
abruptas e inúmeras cavidades que foram posterior- últimos anos do 3.º milénio a.n.e. e os primeiros do
mente utilizadas maioritariamente em época pré- novo milénio, do Bronze Inicial (Senna-Martinez et
-histórica (Crispim & al, 2001; Natividade, 1901). al., 2017:834-835).
As intervenções nas grutas do vale do Carvalhal de Após a remoção das camadas arqueológicas, Nativi-
Aljubarrota, por Manuel Vieira Natividade, corres- dade identificou abaixo de um manto estalagmítico,
pondem ao primeiro bloco de escavações neste tipo um depósito com grandes mamíferos, tendo cessa-
de contexto em Portugal, a par das escavações nas do os seus trabalhos e solicitado a presença de Paul
grutas da Furninha, Casa da Moura e Lapa furada, Choffat para a prossecução das investigações (Na-
por Nery Delgado. A monografia relativa às Grutas tividade, 1901:40). Os trabalhos ficaram a cargo de
de Alcobaça, publicada na revista Portvgália, des- Romão de Sousa, colector dos Serviços Geológicos
creve os achados das grutas localizadas no interior de Portugal, em 1909 (Cardoso, 1997: 16). Vários
do vale do Carvalhal de Aljubarrota (como Calatras foram os investigadores ao longo do tempo que se
Alta, Média e Baixa, Cabeço Rastinho, Casa da Gé- interessaram por estudar os elementos provenientes
nia, Pena da Velha, Ervideira, Mosqueiros Alta e Bai- desta cavidade como: E. Harlé (Harlé, 1910/1911) e
xa e Ministra Alta, Média e Baixa) e outras em áreas João L. Cardoso (Cardoso, 1997) em estudos faunísti-
limítrofes (como Cadoiço, Vale do Touro, Lagoa do cos; H. Breuil (Breuil, 1918:37), Georges Zbyszewsky
Cão e Redondas/Algar de João Ramos) (Natividade, (Zbyszewsky, 1943) e Octávio da Veiga Ferreira (Fer-
1899-1903). reira, 1964) em estudos dedicados à indústria lítica
Num pequeno caderno de apontamentos destinado do Paleolítico; Barbosa Sueiro (Sueiro, 1931) sobre a
apenas a conter a descrição dos trabalhos de explora- antropologia física; João L. Cardoso e Júlio Carreira
ção da gruta das Redondas (localizada na povoação (Cardoso e Carreira, 1991) e Senna-Martinez (Sen-
homónima, freguesia de Turquel), surge a lápis, num na-Martinez et al., 2017) em estudos arqueológicos.
canto da primeira página, a data de 14 de Fevereiro Por fim, Sangmeister e Junghans (Sangmeister e Ji-
de 1898. Possivelmente, o primeiro dia de trabalhos ménez Gomez, 1995; Junghans et al., 1960, 1968 e
da sua exploração por Manuel Vieira Natividade. 1974) em estudos sobre a composição metálica dos
Assim, foi em Alcobaça, que, pela primeira vez al- artefactos da gruta das Redondas e dos restantes ar-
gumas tipologias de artefactos surgiram no panora- tefactos provenientes das outras grutas do vale.
ma arqueológico português. O primeiro registo de A maior parte dos artefactos metálicos como as pon-
braçais de arqueiro proveio da gruta das Redondas, tas «tipo Palmela» proveio efetivamente da gruta
onde foram recolhidos três elementos inteiros, os das Redondas, contudo, Natividade menciona a pre-
quais não passaram despercebidos aos olhos de Ma- sença de pontas Palmela e artefactos metálicos nou-
nuel V. Natividade, que observou uma nova presença tras cavidades do vale como: Cabeço Rastinho (com
no contexto artefactual da arqueologia pré-histórica um punhal de lingueta e dois punções), Ministra Bai-
da época (Natividade, 1901:40). A par destes foram xa (com punhal de lingueta), Ministra Média (com
também recolhidos braçais de arqueiro em xisto nas uma ponta Palmela) e Pena da Velha (ponta Palmela
grutas da Ministra Alta e Mosqueiros Baixa (Nativi- e um cinzel) (Natividade, 1901).
dade, 1901:40 e 5). Também Nery Delgado, notou Embora as grutas localizadas no vale do Carvalhal
que alguns dos artefactos ali encontrados não ti- de Aljubarrota não tenham sido tão intensamente
nham ainda paralelos em outras cavidades estreme- estudadas como a gruta das Redondas, o seu espólio
nhas tendo o cuidado de os comparar com materiais sofreu estudos pontuais, sobretudo o grupo das ce-
de outras regiões (Vasconcelos, 1897:42). A explora- râmicas, como é o caso dos estudos de Jean Guilaine
ção da gruta das Redondas ficou inteiramente a car- e Veiga Ferreira (Guilaine, 2004; Guilaine e Veiga
3. OS MATERIAIS METÁLICOS DE COBRE 3.1. Alguns dados sobre as Pontas «tipo Palmela».
E AS PONTAS «TIPO PALMELA» DO MUSEU Tipologias, dimensões e composição metálica
DE ALCOBAÇA. As pontas «tipo Palmela» têm sido conotadas com
uma origem ibérica e a sua dispersão alcança a Fran-
As Pontas «Tipo Palmela» que se conhecem na área ça e o Norte de África. Associados ao grupo Campa-
de Alcobaça são como evidenciámos, oriundas de niforme e normalmente presentes no denominado
dois conjuntos identificados na colecção de Vieira pacote campaniforme, estes exemplares, que diver-
Natividade (Fig. 5 e 6). O primeiro corresponde aos sos autores apontam como uma inovação campani-
sete exemplares recolhidos nas Redondas, recente- forme, aparecem em inúmeros contextos funerários
mente reunidas no estudo publicado sobre o enterra- e perduram no 2.º milénio a.n.e.
mento das Redondas (Senna-Martinez et al., 2017) e Se olharmos o mapa (Fig. 7) percebemos que o in-
o segundo conjunto, cuja correspondência geográfi- ventário realizado das pontas Palmela provenientes
ca e contextual não é tão simples, é composto por seis de contextos do Campaniforme e Bronze antigo da
pontas, sabendo-se que são provenientes de algumas Península Ibérica e da Europa Ocidental, contabiliza
grutas e planaltos do Vale de Carvalhal em Alcobaça. até ao momento 342 pontas Palmela, dados obtidos
O conjunto de espólio metálico recolhido por V. Na- através do estudo realizado e publicado em 2019
tividade é muito expressivo, sendo composto por (Kleijne, 2019).
diferentes objectos de cobre nomeadamente, ma- Reconhece-se uma ampla dispersão geográfica, com
chados planos (alguns com gume largo), punções, os algumas notórias concentrações em Portugal (Estre-
punhais de lingueta e outros punhais, alguns curtos madura e Norte), Espanha (noroeste e área central
e de formato triangular acentuado, as treze Pontas da meseta) e França (na área centro Oeste, estuário
«tipo Palmela» (que abordamos neste estudo) e do Gironda e na região da Bretanha). Mas também
uma alabarda de tipo Atlântico (Senna-Martinez et temos presenças no Norte de África (Marrocos e Al-
al., 2017:833-847. Fig.4. Peça n.º 0048), que o pri- geria). A origem e o porquê desta distribuição ainda
meiro autor deste colectivo considera uma variante permanecem por explicar.
do tipo Carrapatas (Id., p. 836). Na investigação que Tratam-se de artefactos pedunculados com folha
desenvolveu, V. Natividade não hesitou em concluir plana, alongada, mais ou menos ovalada, dos quais
que se tratavam de estações arqueológicas «da eda- se conhece uma considerável diversidade morfoló-
de do cobre, (…) todos os objectos teen a linha de imper- gica, sobretudo no que respeita ao tamanho, a forma
feito acabamento, outros conservam nítidas as linhas da folha, o tamanho e formato do pedúnculo, bem
de martelagem, e todas as arestas e gumes tão vivas que como a conexão entre ambas as partes. A peculiari-
deixam ver o pouco ou nenhum uso que tiveram…» (Na- dade desta diversidade tem justificado a proposta de
tividade, 1901:40; Senna-Martinez et al., 2017:834). modelos tipológicos, destacando-se o de Delibes de
A associação dos materiais do enterramento das Re- Castro (1977: 109-111) e, posteriormente, de Garrido
dondas com o aglomerado de grãos carbonizados Pena (2003:298), sem que se consiga atribuir signi-
de cevada nua, que foram alvo de estudo e datação, ficado cronológico ou sequência evolutiva segura,
182
pois os vários tipos coexistem num mesmo contexto, para as espessuras, quase sempre com 2 mm de es-
o que tão bem é ilustrado pelos exemplares do Mu- pessura da folha e espessura mínima do pedúnculo e
seu de Alcobaça. no caso dos bordos, também com 2 mm e dos gumes,
Os treze exemplares estudados distribuem-se pelos a grande maioria apresenta 1 mm de espessura.
três tipos e subtipos da proposta de Delibes de Cas- A ponta mais pesada, não é a de maiores dimensões
tro, desde o Tipo A – folha ovalada, com pedúnculo e regista 22.3 gr. de peso, comparativamente com os
curto, normal ou alongado; Tipo B – folha oval alon- 3.65 gr do exemplar MVN.005795, que curiosamente
gada e ombros marcados, com pedúnculo curto e também não é o de menor dimensão.
longo e do Tipo C – folha romboidal, com pedúnculo Nas tipologias sentimos necessidade de repensar
plano e comprido. Considerado o tipo mais tardio alguns exemplares, como é o caso da Ponta Palme-
dos três. la (MVN.5495), proveniente do enterramento das
Posteriormente, acrescentam-se mais dois novos Redondas, que apresenta o pedúnculo com remate
tipos a esta classificação (D e E) que não são consi- prismático e não é caso único, como se observa no
derados Palmela (Rovira et al., 1992). Os tipos D e fragmento de ponta Palmela (MVN.5595) que tam-
E representam novos modelos de pontas metálicas bém evidencia a base do pedúnculo prismática.
pedunculadas de folha triangular ou com aletas, en- O processo de desenvolvimento da metalurgia pré-
quadráveis no Bronze Antigo e Pleno, e que parecem -histórica é lento e gradual, dependendo do conhe-
ter substituído as foliáceas, que desaparecem no cimento tecnológico e da disponibilidade dos mi-
Bronze Final. nérios. No início do 3.º milénio a.n.e., a produção
No estudo académico que a primeira autora se en- de artefactos metálicos em liga de cobre parece não
contra a desenvolver sobre as pontas «tipo Palmela», passar de uma actividade de pequena escala, sem
reconhece-se a dificuldade de realizar uma aborda- significativas alterações tecnológicas, tipológicas ou
gem tipológica rigorosa, motivo pelo que, procura- composicionais até à ocorrência de objectos com-
mos observar atentamente um conjunto abrangente postos por uma liga metálica com estanho (Sn) (Va-
de pontas e registar todas as variantes formais, di- lério et al., 2014).
mensões (contrariamente a Garrido Pena, consi- No território português os exemplares das colecções
deramos importante medir as espessuras da folha calcolíticas com elevados valores de arsénio são
incluindo os gumes, bem como as larguras e espes- comuns nos conjuntos metálicos, apontando para
suras máximas e mínimas do pedúnculo, bem como uma aplicação preferencial destas ligas na produção
o peso de cada ponta) e os pormenores que possam de artefactos metálicos de morfologia simples, tais
ajudar a melhor compreender a sua funcionalidade. como, as pontas Palmela, machados planos ou os pu-
Começamos então por registar as dimensões da nhais (Valério, et al., 2014; Müller e Cardoso, 2008).
peça, desde as medidas gerais, passando pelo ta- As pontas de tipo Palmela com folha plana, mais ou
manho da folha, do pedúnculo, as diferentes largu- menos ovalada e com pedúnculo curto ou alongado,
ras e espessuras, em particular da nervura central são peças cuja composição metálica é maioritaria-
da folha, dos bordos e dos gumes e do peso de cada mente composta por cobre com pequenas impure-
peça (Fig. 8. Tabela 1). No imediato partilhamos da zas, e alguns exemplares apresentam uma conside-
homogeneidade formal registada por Garrido Pena rável percentagem de As, que não costuma superar
(2003:299), ao nível das dimensões básicas da peça. os 2% (Rovira et al., 1997).
Este equilíbrio não é tão notório ao nível do peso, Recorrendo aos resultados das análises já realizadas
onde os valores oscilam entre os 3.65 gr e os 22.3 gr. (Junghans et al., 1960; 1968 e 1974; Valério et al.,
Observando os resultados, verifica-se que as treze 2016b e Senna-Martinez et al., 2017) temos conhe-
pontas apresentam um comprimento entre os 40 cimento do metal e minerais utilizados nos objectos
mm e os 115 mm e uma largura máxima da folha, en- de cobre alvo deste estudo e na sua maioria tratam-
tre os 14 mm e os 27 mm. A maioria das peças apre- -se de peças de cobre arsenical (AS superior a 2%),
senta um comprimento superior a 65 mm e uma fo- onde se registam outros elementos esporádicos,
lha inferior a 19 mm de largura máxima. como por exemplo: o ferro, o zinco, o bismuto.
Os dados compulsados sobre a espessura máxima da Nas pontas Palmela, a cadeia operatória implica-
folha, dos bordos e gumes, do pedúnculo e o peso de va que, após a sua fundição, o artefacto seria mar-
cada peça revelam-nos valores muito homogéneos telado, reaquecido e novamente martelado na fase
184
demonstrando ainda a sua importância nas socieda- estar relacionados com o mundo funerário. Outras
des agro-metalúrgicas, apesar da existência de ou- cavidades como Ministra Média e Baixa ou Cabeço
tras variantes arquiteturais utilizadas durante a tran- Rastinho, não detinham nenhum resto osteológico
sição 4.º/3.º milénio (Sousa e Gonçalves, 2019:158). humano, no entanto, foram recuperados do seu in-
A compilação das datas disponíveis para grutas-ne- terior artefactos metálicos (pontas Palmela).
crópole do Maciço Calcário Estremenho demonstra A única datação que corrobora actividade doméstica
o que parece corresponder a um vazio no Calcolítico no vale durante este período, é a datação sobre res-
inicial, algo que, se observa também no vale do Car- tos carpológicos obtida para o povoado do Cabeço
valhal, não lhe sendo conhecidos artefactos votivos da Ervideira, balizada entre 2461-2210 (cal BC 2σ)
calcários. Embora a funcionalidade funerária esteja (Tereso, Gaspar e Oliveira, 2017: 615).
incutida de forma indubitável a este vale, existem No conjunto cerâmico do Cabeço de Ervideira sur-
deposições de artefactos metálicos, nomeadamente gem bordos de taças lisas de bordo plano espessado
as pontas «tipo Palmela», em grutas que, Nativida- internamente com excelente acabamento que se
de indica não ter reconhecido a presença de nenhum assemelham morfologicamente às taças tipo palme-
resto osteológico humano (Natividade, 1901). Esta la. Embora sejam cerâmicas de fundo comum há a
acção demonstra que o vale embora menos utilizado possibilidade de se incluírem no campo das campa-
para o sepultamento destes grupos humanos, conti- niformes lisas, alargando assim o espectro relativo à
nuava assim a ser frequentado pelos mesmos, rece- utilização destas grutas durante o Calcolítico final.
bendo ofertas votivas, como é o caso das grutas de Isto vai ao encontro à realidade observada por João
Ministra Média (com uma ponta Palmela), Ministra Zilhão, na Galeria da Cisterna da gruta do Almonda
Baixa (com um punhal de lingueta) e Cabeço Ras- (Zilhão, 2016): a existência de locais com cronolo-
tinho (com um punhal de lingueta e dois punções) gias campaniformes, mas sem a presença manifesta
(Natividade,1901). de campaniforme (Valera, Mataloto e Basílio, 2019).
Contudo, em Alcobaça existem artefactos que de- Estes aspectos complexificam os contextos e leitu-
monstram a utilização durante este período, em ras à escala micro-regional nos diversos períodos
associação ao denominado pacote campaniforme cronológicos.
(Guilaine, 2004). No artigo “Grutas de Alcobaça – A separação entre o final do Calcolítico e Bronze an-
Aditamento” (Paço, 1966) são apresentados de forma tigo não é ainda bem compreendida, na medida em
incorrecta vários artefactos relacionados com o fenó- que, tal como acontece noutros períodos, nunca há
meno campaniforme, associando-os exclusivamente um corte abrupto com o período anterior e muitas
à Gruta das Redondas. No entanto, a documentação vezes existe um prolongamento na presença de cer-
de campo da Gruta das Redondas e a bibliografia de tos artefactos (Valera, 2021).
Vieira Natividade relativa ao Cabeço da Ministra não
corrobora esta afirmação. Contudo, vários autores AGRADECIMENTOS
seguiram A. Paço contribuindo para o equívoco (Har-
rison, 1977; Cardoso, 2012 e Mataloto, 2017). Ao Mosteiro de Alcobaça e à Dr.ª Ana Pagará (DGPC/
Assim, no Carvalhal, em Ministra Alta, Mosqueiros Museu de Alcobaça), por nos ter permitido desen-
Baixa e Redondas foram recuperados braçais de volver este estudo; ao João Miguel Nunes pelo apoio
arqueiro e na Ministra recuperaram-se ainda três na edição das imagens e na elaboração das estampas
fragmentos de um mesmo vaso campaniforme, com dos materiais; à Paula Bivar de Sousa pelos desenhos
decoração incisa tipo Ciempozuelos, que possuía e a todo o apoio e orientação da professora Ana Cata-
preenchimento a pasta branca e um punção em co- rina Sousa (UNIARQ/FLUL).
bre. Provém de Ministra Média um fragmento de fo-
lha de uma ponta tipo Palmela. BIBLIOGRAFIA
Sabe-se ainda que do Vale do Carvalhal (sem indi- BREUIL, Henry (1918) – Impressions de Voyage Paléolithi
cação de gruta) se recolheu um vaso campaniforme que à Lisbonne. Terra Portuguesa. N.º 3, Vols. 27-28, pp. 33-40.
liso, pouco fragmentado.
CARDOSO, João Luís (1997) – As grutas, os grandes mamí-
Nem todos os registos do Calcolítico final no vale in- feros e o homem paleolítico: uma aproximação integrada ao
dicam presença funerária. Neste aspecto apenas Mi- território português. Estudos do Quaternário. Lisboa: Colibri.
nistra Alta, Mosqueiros Baixa e Redondas parecem Vol. 1, pp. 13-23.
186
dura Atlântica. In Arnaud, J. M. e Martins, A. (eds.) – Arqueo-
logia em Portugal / 2017 – Estado da Questão. Lisboa. Associa-
ção dos Arqueólogos Portugueses, pp. 833-847.
188
Figura 3 – Exemplo de uma moldura com materiais arqueológi-
cos (MVN022195(221-228). Museu de Alcobaça).
190
Figura 6 – Pontas «Tipo Palmela» do Museu de Alcobaça (Desenhos: Paula B. Sousa; Fotografias: Cátia Delicado; Estampa:
João M. Nunes).
192
DIMENSÕES (mm)
PEÇA SÍTIO CT L E FC FLD FLM FLP FE FEB PC PLM PLm PEM PEm PESO (Gr)
MVN.FD. Redondas, 65 15 2 41 5 15 12 2 1 24 10 3 2 2 6 gr
1455–07 Alcobaça
Figura 8 – TABELA 1. Dimensões das Pontas Palmela (Acervo Vieira Natividade do Museu de Alcobaça). Legenda. Dimensões
(mm): CT – Comprimento Total; L – Largura Máxima; E – Espessura média | FC – Folha Comprimento; FLD – Folha Largura
Distal; FLM – Folha Largura Mesial; FLP – Folha Largura Proximal; FE – Folha Espessura; FEB – Folha Espessura de Bordos
| PC – Pedúnculo Comprimento; PLM – Pedúnculo Largura Máxima; PLm – Pedúnculo Largura Mínima; PEM – Pedúnculo
Espessura Máxima; PEm – Pedúnculo Espessura Mínima | Peso (gr.): P – Peso.
RESUMO
O Monte da Ponte, localizado em Évora, foi identificado em 1989 através de fotografia aérea. Em 1996, Martin
Höck e Philine Kalb realizaram uma sondagem e prospeção geofísica na plataforma superior que forneceu indí-
cios da existência de fossos e de muralhas. A confirmar-se, o Monte da Ponte remete-nos para uma problemáti-
ca que tem sido alvo de importante debate entre especialistas e que se relaciona com as dinâmicas dos Recintos
de Fossos e Recintos Amuralhados. Este estudo, apresenta então os dados preliminares derivados do estudo
do conjunto artefactual, dos materiais provenientes das sondagens realizadas, na tentativa de contribuir para o
conhecimento das complexas realidades associadas à Pré-história Recente do Sudoeste Peninsular.
Palavras-chave: Recintos de Fossos; Recintos Murados; Pré-História Recente; Povoamento; Alentejo.
ABSTRACT
Monte da Ponte, located in Évora, was identified in 1989 by aerial photography. In 1996, Martin Höck and
Philine Kalb carried out a geophysical survey of the upper platform, which provided evidence of ditches and
walls. If confirmed, the Ponte Mound brings us back to an issue that has been the subject of important debate
among specialists, and which relates to the dynamics of the Pit Enclosures and Walled Enclosures. This study
presents preliminary data from the study of the artefacts and the materials from the excavations carried out, in
an attempt to contribute to the knowledge of the complex realities associated with the Recent Prehistory of the
Peninsular Southwest.
Keywords: Alentejo; Pits Enclosures; Recent Prehistory; Settlement; Walled Enclosures.
196
• Cozedura 1 – cozedura em ambientes redutores Quanto ao calibre, o Calibre 1 é sem dúvida o mais
que originam peças de tonalidade escura; representado, correspondendo a ENP’S com tama-
• Cozedura 2 – cozedura em ambientes redutores nhos entre 1 e 3 mm. É evidente também a expres-
com arrefecimento oxidante que origina super- são de materiais de Calibre 0, que correspondem a
fícies claras e núcleos escuros; ENP’S de reduzida calibragem. Pouco expressivos,
• Cozedura 3 – cozedura em ambiente oxidante nesta amostra, são os que se enquadram no Calibre
e arrefecimento redutor que origina peças com 2, que remete para a presença de grânulos de maio-
superfícies escuras e núcleos claros; res dimensões.
• Cozedura 4 – Este tipo é um acrescento pessoal Relativamente à cozedura, a análise dos dados re-
às categorias elaboradas por António Valera e velou-se mais complexa devido à não homogenei-
que se caracteriza por originar peças cinzentas. dade das cozeduras que, por vezes, variam ao longo
do perfil da peça. Contudo, e apesar da comum não
Tratamento de superfície. Neste parâmetro consi- uniformidade das cozeduras em materiais para esta
deramos quatro tipos: cronologia, é notório o predomínio da Cozedura 0,
• Tratamento 0: Engobe externo; com peças de tons alaranjados. A segunda catego-
• Tratamento 1: Engobe interno; ria mais representada é a Cozedura 2, também ela a
• Tratamento 2: Engobe nos dois lados; representar peças com superfícies claras (e núcleos
• Tratamento 3: Nenhum tipo de tratamento, pe- escuros). As cozeduras que originam peças com su-
ças rugosas. perfícies escuras são notoriamente as menos repre-
sentadas (Cozedura 1, 3 e 4).
4. ANÁLISE GLOBAL DOS DADOS Como se pode verificar pelo gráfico apresentado
(gráfico 7), estes materiais raramente apresentam
Considerando os critérios metodológicos anterior- qualquer tipo de tratamento das superfícies, tanto a
mente referidos para o tratamento desta amostra, nível interno como externo. Evidencia-se um equilí-
verificamos os seguintes resultados, para os atribu- brio entre o Tratamento 1 e o Tratamento 2 e a pre-
tos acima referidos (gráfico 2). sença residual de materiais com o Tratamento 0.
Analisando os dados presentes no gráfico 2, é possí- Em relação a este parâmetro, deve-se salientar que
vel notar o claro domínio de pastas compactas, com se trata de um componente que poderá ter sofrido
alguma representação de materiais com pastas de alterações derivado de processos pós-deposicionais,
consistência média, e uma reduzida percentagem nunca ignorando o facto do desgaste e erosão das
de materiais com pastas friáveis. superfícies face às ações de agentes externos como
Assim, podemos provisoriamente assumir que a chuva, sol, entre outros.
qualidade das pastas em termos de consistência é Por fim, deixamos aqui retratado as formas que
elevada, apesar de estarmos perante uma amostra- conseguimos identificar até ao presente. Infeliz-
gem ainda reduzida de materiais estudados. mente, os bordos representam não só uma reduzida
Relativamente à textura dos materiais, e face aos percentagem no que toca aos materiais em estudo,
dados presentes no gráfico 3, podemos verificar que como também é possível notar que a maioria são
existe um predomínio das texturas arenosas (3), mas indeterminados quanto à tipologia, devido à sua es-
que as texturas homogéneas (0) também estão pre- cassa dimensão.
sentes numa quantidade bastante elevada de ma- Não conseguimos, por enquanto, apresentar dese-
teriais. De salientar a total ausência de materiais nhos dos materiais, mas deixamos representado em
enquadrados na textura 1 e a existência residual de imagem alguns dos bordos estudados e dos quais
alguns fragmentos enquadrados na textura 2. conseguimos identificar a sua tipologia (figuras 1 e 2).
Os elementos não plásticos (ENP’S), acabam por re- Por último, de referir que não foram encontrados
fletir um pouco do que ocorreu na textura. Verifica- quaisquer tipos de vestígios de decorações nos ma-
mos assim, que os materiais apresentam uma forte teriais, realidade já bastante comum nos materiais
quantidade de ENP’S, o contrário do que acontece deste período, nesta região do país, razão pela qual
em pastas compactas e homogéneas, acabando por não foi estabelecida nenhuma metodologia para
ser o reflexo do predomínio das pastas mistas e tex- esse parâmetro.
turas arenosas.
de quantidade de barros de cabanas, de variadas di- RODRIGUES, Ana Filipa (2015) – O sítio da Ponte da Azam-
mensões recolhidos por Philine Kalb e Martin Höck. buja 2 (Portel, Évora) e a Emergência dos Recintos de Fos-
198
sos no SW Peninsular nos finais do 4º milénio a.n.e. Tese de VALERA, António Carlos (2003) – A propósito de recintos
Doutoramento em Arqueologia apresentada Faculdade de murados do 4º e 3º milénios a.C. dinâmica e fixação do dis-
Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve sob curso arqueológico. In JORGE, Susana Oliveira ed. Recin-
orientação do Prof. Doutor António Faustino de Carvalho. tos murados da Pré-História Recente: DCTP/CEAUCP, pp.
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RODRIGUES, Ana Filipa (2015) – Hidráulica na Pré-Histó-
ria? Os fossos enquanto estruturas de condução e drenagem VALERA, António Carlos (2013a) – Cronologia dos recintos
de águas: o caso do sistema de fosso duplo do recinto de de fossos da Pré-História Recente em território português.
Porto Torrão (Ferreira do Alentejo, Beja). In DINIZ, Maria- In ARNAUD, José Morais.; MARTINS, Andrea; Neves, Cé-
na; NEVES, César; MARTINS, Andrea, eds. O neolítico em sar, eds. Arqueologia em Portugal – 150 anos: Associação dos
Portugal antes do Horizonte 2020: Perspetivas em debate: Arqueólogos Portugueses, pp. 335-343.
Associação dos Arqueólogos Portugueses, pp. 119-130.
VALERA, António Carlos (2013b) – As comunidades agro-
SOARES, Joaquina (2013) – Transformações e mudanças pastoris na margem esquerda do Guadiana: 2ª metade do IV
durante o III milénio AC no Sul de Portugal. O Povoado do aos inícios do III milénio a.C. EDIA, S.A.
Porto das Carretas. EDIA, S.A.
Gráfico2 – Consistência dos materiais cerâmicos estudados. Gráfico 3 – Textura dos materiais cerâmicos estudados.
Gráfico 6 – Cozedura dos materiais analisados. Gráfico 7 – Tratamento de superfície dos materiais analisados.
200
Figura 1 – Fragmento de taça.
RESUMO
Revelam‑se neste texto os resultados preliminares do estudo de duas peças antropomórficas, provenientes da
necrópole megalítica de Alto das Madorras que se localiza na fronteira dos concelhos de Murça e Alijó (Trás
‑os‑Montes). São elas um esteio‑estela antropomórfica da Mamoa 4 e uma placa sub‑rectangular da Mamoa 8,
depositada no Museu Nacional de Arqueologia, esta conhecida correntemente na bibliografia como “ídolo”. Em
ambas se procedeu ao registo 3D. Sendo as duas antropomórficas e provenientes de duas mamoas muito próxi-
mas, é discutida aqui a pertinência da comparação entre o motivo sub‑rectangular gravado no esteio‑estela e a
placa, sendo adiantado que estas peças e desenhos – gravuras e pinturas –, sem deixar de personificar entidades
muito características do mundo megalítico peninsular e bretão, parecem ter a sua tradução em objectos reais.
O texto chama ainda a atenção para a necessidade dum estudo mais apurado desta necrópole, “explorada”, já
no final do séc. XIX, com métodos que não se adequam ao questionamento científico actual. E insiste na neces-
sidade de, no âmbito do Projecto TSF, criar territórios temáticos que abranjam as necrópoles e monumentos
neolíticos e calcolíticos, conectando as comunidades locais com a sua ancestralidade.
Palavras-chave: Neolítico-Calcolítico; Tumuli-Dolmenes; Esteios-estelas antropomóficos; Registo fotogra-
métrico; TSF.
ABSTRACT
The aim of this text is to present the preliminary results of an ongoing study of two anthropomorphic stone
elements from the Alto das Madorras megalithic necropolis, in border between Murça and Alijó municipalities
(Trás-os-Montes, Northern Portugal). The two stone elements are: an anthropomorphic orthostate-stelae from
Dolmen 4 and a sub-rectangular granite slab from Dolmen 8, formerly referred to as an «idol» and presently de-
posited in the National Museum of Archaeology. Both stone elements have now been 3D recorded. Considering
that both are anthropomorphic and found in nearby megalithic monuments, this paper discusses the relevance
of the analogy between the sub-rectangular engraved motif of the orthostate-stelae and the granite slab itself.
We propose that such engraved or painted motifs relate to real objects, while they also personificate characteris-
2. FLUP e CITCEM, Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (I&D 4059 da FCT) /
[email protected]
3. CITCEM, Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (I&D 4059 da FCT) / FLUP; FCT (SFRH/BD/
129089/2017) / [email protected]
4. Morph – Geociências.
5. CITCEM, Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (I&D 4059 da FCT) / FLUP; FCT (2020.06831.BD) /
[email protected]
204
sentável: o tempo. Somente o estudo arqueológico cados por Henrique Botelho, esta necrópole teria,
multidisciplinar permitirá abordar naqueles terre- no final do séc. XIX, 34 mamoas, das quais oito “já
nos e paisagens com mamoas as vivências humanas destruídas” (Botelho, 1898), que entendemos serem
desaparecidas. Tal desiderato contribuirá para enri- aquelas cujos dólmenes teriam sido desmantelados.
quecer qualitativamente o sentimento de afecto e de Das resumidíssimas descrições das diversas mamoas
orgulho pelas terras onde, com toda a familiaridade, que escavou (contámos 11), destaca-se, pelo porme-
semeiam centeio, cortam mato para o gado, plantam nor e pelo seu estado de conservação actual, a do dól-
árvores, circulam de uns lugares para outros ou, sim- men K, que associamos à nossa Mamoa 8. Não é tão
plesmente passeiam nos tempos livres (Fig. 1: B). seguro que tenha sido ele a escavar a nº 4, que é tam-
Por conseguinte, coincide esta publicação com um bém objecto deste texto, sendo possível que seja a
dos objetivos do plano de educação patrimonial do que representa com o nº 5 (Botelho, 1898: mapa s/p).
projeto TSF – Territórios sem Fronteiras, que inci- Situam-se ambas, a nº4 e a nº 8, do lado nascente
de sobre um território, definido pelo Alto Tâmega e do estradão que atravessa o planalto no sentido S-N
Tinhela, que apresenta um assinalável potencial de (Pópulo-Asnela) – que, por esse facto, lhes destruiu
exploração do seu capital simbólico. Na visão des- parte dos tumuli – e pertencem à freguesia de Fiolho-
te projecto, a valorização deste capital simbólico so (Murça), estando separadas por uma curta distân-
depende de um esforço de densificação do conhe- cia de 450m (Fig.1: B). No final do séc. XIX fariam
cimento histórico para promoção da distintividade parte dum alinhamento compacto de 14 mamoas
dos recursos endógenos e consequente promoção adjacentes a ambos os lados do caminho (Botelho,
do reforço da consciência histórica, coesão territo- 1898, mapa s/p).
rial, desenvolvimento cultural e apropriação da he- O motivo pelo qual foram selecionadas neste estudo
rança cultural pelas populações locais. prende-se com o facto de na mamoa nº 8 ter sido re-
colhido um “ídolo” (paleta ou ídolo-placa, que pas-
2. AS PEÇAS E SEUS CONTEXTOS saremos a designar como placa), bastante citado em
ARQUEOLÓGICOS NA NECRÓPOLE diversa bibliografia posterior (Jorge, 1982: 781-782)
DE ALTO DAS MADORRAS e a que deu cabal internacionalização a obra de E.
Shee Twohig (Twohig, 1981:126-Fig. 12b) (Fig. 2: A e
A necrópole de mamoas megalíticas e não megalíti- B); e de na mamoa nº 4 se ter identificado, no único
cas de Alto das Madorras, na atualidade classificada esteio remanescente das “escavações” antigas (que
como SIP, é entendida ainda hoje, como uma das intuímos pelo texto não serem da lavra de H. Bo-
maiores necrópoles megalíticas de Trás-os-Montes telho), uma gravura similar à daquela placa, esten-
ocidental, não somente pelo número e concentração dendo-se a parecença da forma ao tamanho. Por seu
de monumentos, mas igualmente pelas inusuais di- turno, este esteio junta uma semelhança com outros
mensões de pelo menos duas das suas mamoas – as esteios conhecidos na arte megalítica e cujos orna-
Madorras (ou Madornas) grandes (Nunes, 2003: mentos lhe conferem um ar antropomórfico. Daí o
XVIII) (Fig. 1:A). Situada num agreste e elevado pla- nome de esteio-estela (Fig. 4 e Fig. 5: A).
nalto granítico (900m) que se desenvolve orografi- Voltando ao Alto de Madorras, merece menção a
camente entre a Veiga de Perafita (Alijó) e o Pico da descrição sucinta das condições espaciais, estrati-
Asnela (Serra da Padrela), a ocidente, a necrópole gráficas e associativas/contextuais da placa. Para
interrompe-se, a oriente, nas encostas acidentadas e não tornar o texto demasiado extenso, deixaremos
abrigadas do rio Tinhela (Fiolhoso). Conserva ainda aqui somente a nossa interpretação da descrição de
18 mamoas (talvez 19), reconhecidas no âmbito das H. Botelho (Botelho, 1898: 186-8).
prospeções e registos da viragem do 2º milénio DC Foi exumada pela equipa de H. Botelho no decurso da
(Sanches et al. 2001; Nunes, 2003; Sanches e Nunes, “exploração” do dólmen, que já estava “devassado” e
2005), sendo que aqui se juntam mamoas de maio- sem tampa. Seria um pequeno e estreito dólmen de
res dimensões, maioritariamente “megalíticas” e um corredor (ou vestíbulo), podendo igualmente ter tido
grupo mais pequeno de cinco (talvez seis) tumuli bai- planta em V – sem distinção entre câmara e corredor
xos, aparentemente não megalíticos e provavelmen- em planta – mas clara distinção em alçado já que o
te mais tardios, da Idade do Bronze (grupo de Cabeço corredor, formado por duas lajes e coberto por outras
Carvalho). Porém, segundo o mapa e os textos publi- duas, se encontraria aparentemente bem conservado
206
Dado que toda a Mamoa 4 e o esteio estavam de As secções transversais e longitudinais são plano-
novo completamente ocultos por vegetação, por ve- -côncavas (Fig. 2: A). Na parte inferior tem quatro
zes com cerca de 3 m de altura (giestas, tojo e urze), chanfraduras bem marcadas, internamente polidas
o estudo que agora se iniciou teve de ser precedido na sua depressão côncava e bem visíveis em ambas
duma desmatação manual, implementada pelo Mu- as faces, que lhe conferem um aspecto algo “serri-
nicípio de Murça. lhado” (Fig. 3: B e D). Na parte superior, adjacentes
à protuberância distal – de contorno trapezoidal ar-
3. RESULTADOS DO PRESENTE ESTUDO redondado e com uma pequena depressão no topo
–, existe, igualmente, e de cada um dos lados da-
3.1. O método quela, uma chanfradura bem polida, de perfil em V
A combinação de diferentes técnicas e o desenvol- agudo (Fig. 2 A e B e Fig. 3: A e B). Numa das faces,
vimento de métodos de digitalização 3D permitiram que fixámos para esta descrição ser o anverso, foi vi-
atingir os resultados aqui exibidos. O modelo tridi- sivelmente destruída no extremo superior esquerdo,
mensional da placa da Mamoa 8 de Alto de Mador- como acima referimos, estrago que se estende ao
ras foi obtido através de fotogrametria digital (Struc- reverso. Mesmo assim, está praticamente completa.
ture-from-Motion with Multi-View Stereo) (Ramos, No anverso destacamos um sulco gravado, bem
2021) de onde foram geradas ortoimagens de alta marcado, porque largo e internamente polido, de de-
resolução e modelos sombreados a partir da micro- senho subquadrangular, que acompanha, pelo inte-
topografia da peça. As ortoimagens foram ainda ob- rior, todo o contorno do artefacto. Define um espaço
jecto de tratamento da cor, possibilitando destacar interno muito bem polido e rebaixado relativamen-
tons invisíveis a olho nu através da aplicação de al- te ao contorno e onde se vislumbram vestígios de
goritmos de correlação de cor (Gillespie et al., 1986; ocre, tendo ficado a confirmação desta substância,
Alley, 1996). Por sua vez, o esteio da Mamoa 4 de por análise química, para uma fase posterior do seu
Alto de Madorras foi digitalizado através de técnicas estudo (Fig. 2: A e B). De igual modo, se procederá
de laser scanning, fotogrametria e aerofotogrametria a análises conducentes a verificar se esta superfície
com recurso a drone que são actualmente referên- terá sido utilizada, como suspeitamos, para moagem
cia na documentação de património histórico-ar- ou outro tipo de manipulação de produtos particula-
queológico (Jaillet et al., 2017; Luhmann et al., 2020; res, designadamente colorantes.
Yang et al., 2023). O levantamento aéreo serviu de No reverso, novamente um sulco (menos marcado
reconstituição à envolvente do esteio, permitindo- que na outra face) acompanha, pelo interior, o con-
-se observar, inclusivamente, a mamoa. O levanta- torno, mas delineia, já não uma figura sub-rectan-
mento laser serviu somente de base à aquisição da gular simples, mas antes se alonga no topo superior,
geometria do esteio, adquirindo as suas dimensões esboçado em ogiva suave; coincide essa ogiva com a
reais com uma precisão milimétrica, bem como a base do arranque da protuberância distal, tal como
sua inclinação. Por fim, foi realizado o levantamento já fora desenhada por E. Shee (Twohig 1981, Fig. 12),
fotogramétrico que possibilitou obter num modelo o que reforça, também em desenho gravado, a figu-
3D a superfície da rocha com elevada qualidade grá- ra idoliforme que a placa já personifica na sua tridi-
fica e resolução, aplicando-se um fluxo de trabalho mensionalidade (Fig. 2).
em gabinete semelhante ao da primeira peça. Reforçando triplamente o seu carácter antropomór-
fico, verificámos que existem indícios abrasivos in-
3.2. A placa da Mamoa 8 de Alto de Madorras dicadores da passagem dum fio/corda/correia que
A placa é ao mesmo tempo um artefacto de arte mó- partiria da chanfradura do lado direito da protube-
vel e uma figura antropomórfica de tipo placa dupla, rância distal, que se orientaria para a chanfradura
pelas razões que de seguida aduzimos no decurso inferior esquerda; e, igualmente, pelo anverso, essa
da descrição. mesma corda/correia, iria no sentido oposto, ou
Trata-se de uma peça escultórica em granito fino, de seja, orientar-se-ia para a chanfradura inferior do
muito boa qualidade, cuidadosamente polida em to- lado direito (Fig. 3: A).
das as suas faces. De formato subquadrangular, com Em síntese, se considerássemos a peça como uma
24 cm de largura, 27,9 cm de altura até ao arranque figura real, diríamos que teria tido uma correia que
da protuberância distal, tem de altura total 28,7 cm. passaria sobre o ombro esquerdo, adjacente à ca-
208
ponto anterior, sublinhando, todavia, que não têm as Com efeito, mamoas, dólmenes, estelas exteriores
mesmas dimensões dado que esta figura do esteio- aos monumentos ou inseridas nos seus dispositivos
-estela é maior. internos, menires, etc., têm sido tema de diversos e
Exibe-se ainda do lado direito desta figura sub-rec- profícuos estudos, tanto no que respeita à “biogra-
tangular e sendo a ela adjacente, um círculo alar- fia” cultural dos monumentos – que, por vezes se
gado, gravado por traço largo de abrasão, em torno estende por várias centenas ou mesmo um milhar
duma protuberância natural da rocha, de modo a de anos (Bueno Ramírez et al, 2014; Bueno Ramírez
destacá-la, ou seja, configurando-a em baixo-relevo. et al. 2015; Fabregas Valcarce e Vilaseco Rodriguez,
O reverso do esteio-estela está também muito de- 2006; Tejedor Rodríguez, 2015) –, como ao claro
teriorado por erosão, incêndios, etc. Todavia, deve delineamento dos “programas gráficos” megalíti-
salientar-se que se desenha ali, por gravação, um cos (Bueno Ramírez et al. 2016) e que, no fundo, se
sulco contínuo, de largura irregular, sub-horizontal, relacionam estreitamente com a questão anterior:
abrangendo toda a largura da peça e a c. de 41 cm do a da reformulação dos espaços megalíticos e dos
seu topo, destacando assim, nessa face, toda a sua seus monumentos.
parte superior (Fig.5: C e D). Adjacente a esta linha/ Daí que o nosso objectivo, ainda não concluído, pro-
demarcação/faixa, e abrangendo toda essa parte su- cure delinear as cadeias operatórias das duas peças
perior, gravou-se uma figura alongada em X – ador- em estudo, quer estas sequências possam vir reve-
no em faixa cruzada? suspensório de fixação de cor- lar-se longas ou mais curtas no tempo. Porém, estas
reias? – que dá coerência ao conjunto, ao desenhar, só serão cabalmente percepcionadas se se proceder
na parte nobre da peça a indumentária de figuras an- à escavação (reescavação...) das mamoas 4 e 8 já
tropomórficas reconhecidas noutras estelas. Porém, que, em última análise, trabalhámos com informa-
pelo facto deste sulco não se prolongar para as faces ções de escavações antigas, muito difíceis de enten-
laterais, nem coincidir, em termos de altura, com o der (na Mamoa 8) e com dados muito escassos, de
peitilho/face do anverso, não deve a peça ser enten- prospecção, na Mamoa 4.
dida como uma figura tridimensional una do ponto Partimos do pressuposto de que, neste último caso se
de vista iconográfico. Mas antes, como uma estela tratava de um dólmen violado, e que o esteio-estela
com duas faces, ao mesmo tempo autónomas na sua faria parte da sua estrutura megalítica. Porém, nem
iconografia e unas no seu suporte. temos possibilidade de avaliar se tal mamoa alguma
No topo superior esquerdo do reverso exibe ainda vez teve um dólmen já que H. Botelho narra que em
uma cruz, que provisoriamente atribuímos a uma 1896, em busca de tesouros, se escavou até ao solo
época posterior, não pré-histórica. de base, e de lado a lado, a madorna grande (Mamoa
6), mas “... no centro do túmulo não se viu o menor
4. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS vestígio de câmara ou câmaras, nem de galeria que,
E ALGUMAS CONSIDERAÇÕES MAIS a existir, deixaram á direita os de Parafita.” (Bote-
PERTINENTES lho, 1898: 185). Sabemos, hoje, que os monumentos
megalíticos são muito complexos nas suas arquitec-
O estudo destas peças pertencentes a monumentos turas, pelo que esta informação somente abre a pos-
megalíticos, uma transportável (arte móvel) e outra sibilidade da existência de estruturas internas dos
fixa, encaminha-nos naturalmente para diversas tumuli que não se conformam com o “modelo” mais
questões inerentes à compreensão da intensa vida corrente que temos dos dólmenes.
social e ideológica que os monumentos concatenam Sendo inegável que bordejando a cratera de violação
na sua ligação aos ancestrais, e que urge conhecer, da Mamoa 4 existe uma estela cujo antropomorfis-
particularmente na Necrópole/Planalto de Alto de mo se evidencia em ambas as faces, ela faria parte
Madorras (Murça e Alijó). Na realidade, é a necrópo- da estrutura existente na parte central do tumulus,
le como unidade, e os seus monumentos, peças e es- fossem quais fossem as arquitecturas em questão.
paços – como rede histórica que se tece ao longo do Conformada (de uma só vez?) para ser vista na sua
tempo – que deve ser sublinhada pelo realce que esta tridimensionalidade, podemos aventar que pode ter
documentação arqueológica confere a estas antigas estado fincada no terreno dentro do espaço desta
topografias, tão familiares no Neolítico e tão aban- necrópole, desempenhando aí um papel particular,
donadas e “distantes” no presente. antes de ser inserida na estrutura interna da mamoa
210
5. ESTEIOS-ESTELA, PEÇAS ANTROPO- BUENO RAMÍREZ, Primitiva; DE BALBÍN BEHRMANN,
MÓRFICAS E OUTRAS DO DOMÍNIO DO Rodrigo; BARROSO BERMEJO, Rosa (2016) – Megalithic
EXTRAORDINÁRIO RECOLHIDAS EM art in the Iberian Peninsula: Thinking about graphic dis-
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nando; BALBÍN BEHRMANN, Rodrigo de; BARROSO tugal: o distrito do Porto-os monumentos e a sua problemá-
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BAR-IS, 2708, pp. 83-94.
212
Figura 1 – A – Localização do Alto das Madorras na Península Ibérica; B – Levantamento aerofotogramétrico com recurso a
drone da área da Mamoa 4, observando-se o esteio-estela no seu local de implantação, associado a uma cratera central na área
da mamoa.
214
Figura 3 – Detalhes da Placa da Mamoa 8. A – Tratamento de decorrelação de cor sobre modelo 3D texturizado obtido por
levantamento fotogramétrico de curta distância, evidenciando vestígios de pelo menos uma correia que atravessaria o corpo
da peça partindo da chanfradura do lado direito da protuberância distal para a chanfradura inferior esquerda; B – fotografia
evidenciando as 4 chanfraduras inferiores, observando-se ainda bem marcadas as duas chanfraduras distais; C – fotografia de
detalhe da protuberância distal; D - fotografia do reverso da peça onde se observam bem as chanfraduras inferiores.
216
Figura 5 – Esteio-estela da Mamoa 4. A – vista geral do anverso, onde se observa desde logo o carácter antropomórfico do
contorno e volumetria do esteio e onde se observa igualmente a face gravada sobre o peitilho avermelhado, bem como a figura
subquadrangular, obtida por rebaixamento da superfície original através de picotado fino e, à direita desta um círculo alargado,
gravado em torno duma protuberância natural da rocha; B – detalhe do topo da peça, com a face marcada sobre o peitilho
avermelhado; C e D – detalhes do reverso onde se distingue o sulco sub-horizontal e, acima dele, a figura alongada em X.
RESUMO
O presente trabalho pretende dar a conhecer ainda que de uma forma preliminar alguns dados sobre o monu-
mento megalítico da Bouça da Mó localizado em Balugães, Barcelos. Este monumento foi intervencionado em
2004 após ter sido grosseiramente mutilado à revelia das entidades competentes o que originou posteriormente
uma intervenção arqueológica, a qual possibilitou a recolha de dados interessantes demonstrando uma longa
diacronia de utilização desde o Neolítico, período da sua construção e posteriores reutilizações e/ou revisita-
ções durante o Calcolítico, Idade do Bronze e talvez também durante a Idade do Ferro.
Palavras-chave: Neolítico; Megalitismo; Reutilização; Calcolítico; Idade do Bronze.
ABSTRACT
This paper aims to provide some preliminary information on the megalithic monument of Bouça da Mó, located
in Balugães, Barcelos. This monument was intervened in 2004 after having been grossly mutilated without the
knowledge of the competent authorities. This led to an archaeological intervention, which made it possible to
collect interesting data demonstrating a long diachrony of use from the Neolithic period, when it was built, and
subsequent reuses and/or revisits during the Chalcolithic, Bronze Age and perhaps also during the Iron Age.
Keywords: Neolithic; Megalithism; Reuse; Chalcolithic; Bronze Age.
220
por meios mecânicos, durante a fase de execução preservada e um anel lítico periférico bastante pos-
da obra. sante e edificado com blocos graníticos colocados
No decorrer dos trabalhos foram recolhidos sedi- na oblíqua, possibilitando, deste modo, a sustenta-
mentos, especialmente da UE 03, por esta não apre- ção da própria couraça lítica, constituída por blocos
sentar indícios de perturbação e aparentar o uso do graníticos de menor dimensão.
fogo em momento prévio à construção do monu- Nos quadrados B5, B6 e no que sobrou dos quadra-
mento megalítico. Estes sedimentos poderão vir a dos C5 e C6 (localizados no flanco nordeste, isto é,
ser utilizados para diversos tipos de análises. entre o anel lítico e a câmara funerária) observou-
-se um hiato de blocos pétreos (Fig. 4) tendo-se en-
4.2. Estratigrafia (flanco nordeste) contrado, apenas, a presença de calhaus graníticos
Neste quadrante foram identificadas quatro uni- que compunham a couraça lítica. Assim, desde logo
dades estratigráficas: a UE 01, de formação con- levantou-se a hipótese de esta “clareira” poder cor-
temporânea, associada à obra; a UE 02, de matriz responder a um átrio (Dias, 2005: 22). No entanto, a
areno‑argilosa, coloração castanha‑escura, pouco leitura da vala mecânica que aí afetou o monumen-
compacta e pouco uniforme, com presença de frag- to, não permitiu confirmar esta hipótese, podendo a
mentos líticos e cerâmicos pré‑históricos; a UE 03, dita “clareira” revelar apenas perturbações posterio-
também de matriz areno‑argilosa, de coloração cas- res ao fecho do monumento.
tanha muito escura, compacta e uniforme, que co- A câmara funerária estava profundamente alterada
bria o substrato rochoso, ao qual foi atribuída a UE por sucessivas violações (algumas delas para extra-
04 (Dias, 2005: 26‑27). ção e reaproveitamento do granito, tal como os en-
talhes para colocação de cunhas de madeira obser-
4.3. Estratigrafia (flanco sudoeste) vados em dois dos ortostatos, assim o evidenciam),
Também neste flanco foram identificadas, esca- ainda que a posição dos parcos ortostatos detetados
vadas e registadas quatro unidades estratigráficas: permitam levantar a hipótese de que o centro da câ-
uma primeira de formação contemporânea, asso- mara funerária estaria localizado, precisamente, na
ciada à obra (UE 01); uma segunda (UE 02) carate- área afetada pela abertura da vala mecânica.
rizada por sedimentos de matriz areno-argilosa, de A localização e orientação de (quatro) ortostatos, in
coloração castanha-escura, pouco compactos, pou- situ, embora todos fraturados, possibilita colocar a
co uniformes, com inclusão de blocos e calhaus, em hipótese de que este monumento teria uma câmara
granito, e fragmentos cerâmicos pré-históricos; uma de planta poligonal (Dias, 2005) (Fig. 5).
terceira (UE 03), também de matriz areno-argilosa, Os ortostatos foram numerados no sentido inverso
castanha-escura, compacta e uniforme e uma última dos ponteiros do relógio partindo do esteio que se
que se refere ao nível geológico (UE 04) (Dias, 2005: encontrava mais a oeste. Esteio nº 1: 30 cm de altura,
26-27). 50 cm de largura e 20 cm de espessura. Encontrava-
-se in situ e fraturado junto ao topo do alvéolo de
4.4. Estruturas implantação. Esteio nº 2: 76 cm de altura máxima,
Após a escavação verificou-se que o montículo arti- 91 cm de largura e 20 cm de espessura. Encontrava-
ficial teria contorno oval, com cerca de 12 metros, no -se in situ mas fraturado a cerca de 30 cm do topo do
sentido nordeste – sudoeste e 14 metros, no sentido alvéolo de implantação. Tinha fraturas intencionais
noroeste – sudeste. Este apresentava uma couraça lí- revelando três entalhes para colocação de cunhas.
tica superficial bem definida, apenas a este e a sudes- Esteio nº 3: 222 cm de altura, 142 cm de largura e 10
te, estando, nas restantes áreas, muito perturbada. cm de espessura. Encontrava-se in situ mas fratura-
Esta finalizava com um anel lítico, mais ou menos do junto ao alvéolo de implantação. Também apre-
bem definido, consoante as áreas. A norte, a espes- sentava três entalhes para colocação de cunhas. Es-
sura da couraça lítica era menor e o anel lítico que teio nº 4: 90 cm de altura, 84 cm de largura e 24 cm
a circundava não era tão percetível, provavelmente de espessura. Encontrava-se in situ, mas fraturado
pelo facto de o terreno ser aplanado, nesta área. Já junto ao alvéolo de implantação.
na área este-sudeste, com maior inclinação topográ- Foram, ainda, observados nas imediações do monu-
fica, houve um maior investimento na construção mento megalítico, fruto da abertura da vala mecâ-
desta estrutura, pelo que aí se apresentava melhor nica que mutilou o monumento, outros dois blocos
222
12 a 14 metros, é possível que a Bouça da Mó 2, seja Trata-se, pois, de uma construção Neolítica que foi
um monumento antigo, tanto mais que aí foi encon- significante no tempo e no espaço por vários milha-
trado um conjunto significativo de micrólitos, o que res de anos, tendo o monumento permanecido ativo
segundo Cruz (1992:74-75), também se associa a e importante como marco espacial ao longo da histó-
momentos antigos no contexto deste fenómeno. No ria, quer pelo facto de ter topónimo, quer por, ainda
entanto, a existência de várias tipologias de pontas hoje, o limite do distrito de Braga e de Viana do Cas-
de seta aconselha prudência quanto à cronologia da telo se encontrar nas suas imediações.
sua construção, pois desconhece-se se seriam con-
temporâneas das primeiras utilizações ou de utiliza- BIBLIOGRAFIA
ções posteriores, ainda durante o Neolítico.
BASÍLIO, Ana; RAMOS, Rui (2020) – Come together: O con-
Outro dado curioso prende-se com a ocorrência de junto Megalítico das Motas (Monção, Viana do Castelo) e as
artefactos em sílex (micrólitos, lâminas/lamelas e expressões Campaniformes do Alto Minho. III Congresso da
pontas de seta) o que demonstra relações de inter- Associação dos Arqueólos Portugueses: Arqueologia em Por-
câmbio supra-regionais, já que esta matéria-prima tugal / 2020 – Estado da Questão.
não ocorre no noroeste de Portugal. BETTENCOURT, Ana (2011) – El vaso campaniforme en el
Todavia o conjunto artefactual exumado permite Norte de Portugal. Contextos, cronologias y significados, in
afirmar que este monumento teve uma longa dia- M. P. Prieto-Martínez & L. Salanova (eds.) Las comunidades
cronia de utilização, levando em linha de conta os campaniformes en Galicia. Pontevedra: Diputación de Ponteve-
fragmentos de recipientes de tipo Penha e campani- dra: 363-374.
formes aí registados. De salientar que, se os campani- BETTENCOURT, Ana; VILAS BOAS, Luciano (2019) – “Mo-
formes são comumente depositados em monumen- numentos megalíticos do Alto Minho. Uma Paisagem mile-
tos megalíticos do Noroeste de Portugal (S. Jorge, nar”, in A. Campelo (ed.), Património Artístico e Cultural do
2002; Rebuge, 2004; Bettencourt, 2011; Basílio e Ra- Alto Minho. Uma Viagem no Tempo. Viana do Castelo: Comu-
nidade Intermunicipal do Alto Minho.
mos, 2020) ou do vale o Douro (Tejedor-Rodríguez),
já os recipientes de tipo Penha são mais incomuns, CRUZ, Domingos (1992) – A mamoa 1 de Chã de Carvalhal
conhecendo-se poucos casos no Noroeste (como por (Serra da Aboboreira). Universidade de Coimbra.
exemplo, nas Mamoas de Cotogrande, em Vigo (Fá- DIAS, Vítor (in press/no prelo) – A Necrópole da “Bouça da
bregas Valcarce & Vilaseco Vázquez), de Lordelo de Mó 2”, Balugães, Barroselas. Da afetação à publicação. In
Cima / Chafé, em Viana do Castelo4, das Motas 1, 5 e Tarcísio Maciel (cord.) – Cadernos do Neiva, vol. 2. GEN Casa
da Soalhosa 1, em Monção5), numa tendência que pa- do Povo de Durrães. No prelo.
rece privilegiar os monumentos localizados em áreas
DIAS, Vítor (2005) – A Necrópole da “Bouça da Mó 2” (Balu-
de baixa altitude. Deste modo fica claro que, durante gães, Barroselas). Resultados da sondagem arqueológica. Da
o período Calcolítico, este monumento terá sido visi- afetação e da escavação. Relatório final apresentado à Tutela.
tado ou revisitado.
FÁBREGAS VALCARCE, Ramon; VILASECO VÁZQUEZ,
No fim do Calcolítico ou nos inícios da Idade do
Xosé (2012) – Usages et Rituels Funéraires dans le Nord-Ouest
Bronze foi depositada uma ponta de cobre de tipo de la Péninsule Ibérique pendant le Néolithique Final et le
Palmela, na Bouça da Mó 2. Durante a Idade do Bron- Chalcilithique: Mégalithes eta utres formes d`enterrements.
ze novas reutilizações e/ou revisitações terão ocorri- La fin du Néolithique en Europe de l´Ouest, valeurs sociales
do neste monumento, tendo em consideração alguns et identitaires des dotations funéraires (3500-2000 av. J.-C.).
Archives d`Ecologie Préhistorique. Volume 1, Toulouse.
fragmentos de cerâmica, como bases de fundo pla-
no, podendo ter pertencido a vasos troncocónicos, JORGE, Susana (2002) – Na all-over corded Bell Beaker in
pelo que resta dos seus perfis. Northern Portugal. Castelo Velho de Freixo de Numão (Vila
De destacar a deposição de recipientes cerâmicos da Nova de Foz Coa): Some remarques. Journal of Iberian Arche-
ology 4: 107-129.
Idade do Ferro neste monumento, fenómeno muito
pouco sistematizado, embora tal pareça ter ocorrido MAGALHÃES, Marisa (2016) – O Calcolítico e a Idade do
nas Motas 1, em Monção (Basílio e Ramos, 2012: 890). Bronze na bacia do rio Neiva, NW de Portugal. Universidade
do Minho. Dissertação de Mestrado policopiada.
SILVA et Alii (1981) – A Necrópole do Bronze Inicial da Chã VEIGA, S. (1891) – Antiguidades monumentais do Algarve.
de Arefe, Durrães (Barcelos), Arquivo do Alto Minho, XXVI: Imprensa Nacional. est. 2-27-29, est.4. 3.6. Lisboa, 38: s.n.
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Viana do Castelo (notícia preliminar, Arqueologia, 13: 207-208. basin, Northwest of Iberia Peninsula. In Cambridge Scholar
Publishing. No Prelo.
TEIXEIRA, C.; MEDEIROS, A. (1969) – Carta Geológica de
Portugal. Notícia explicativa da folha 5-C. Lisboa.
Figura 1 – Localização do sítio arqueológico na Península Ibérica e em excerto da Carta Militar 55.
224
Figura 2 – Contexto geológico do monumento da Bouça da Mó 2, em excerto da Carta Geológica de Portugal, folha 5C.
Figura 6 – Cerâmica campaniforme à esquerda e cerâmica de tipo Penha ao centro e cerâmica da Idade do Bronze à direita
(Vilas Boas, no prelo).
226
A MAMOA 1 DO CRASTO, VALE DE
CAMBRA. UM MONUMENTO SINGULAR
Pedro Manuel Sobral de Carvalho1
RESUMO
A intervenção arqueológica na Mamoa 1 do Crasto realizada no âmbito de trabalhos de minimização de impac-
tes da construção de um pavilhão na zona industrial do Rossio, Vale de Cambra, revelou um interessante mo-
numento que vem sublinhar o polimorfismo arquitetónico das expressões tumulares da Pré-história Recente da
região Centro Norte Litoral. Trata-se de uma mamoa com um possante anel lítico, verdadeiramente megalítico,
que contrasta com a estrutura central, em fossa. A ausência de uma câmara megalítica encontra paralelos em
alguns monumentos da Plataforma Litoral, colocando em cima da mesa a questão cada vez mais alicerçada de
haver um megalitismo de Litoral e um megalitismo de hinterland.
As questões são muitas e de certo que abrem novas perspetivas na abordagem do(s) megalitismo(s) desta região.
Palavras-chave: Plataforma Litoral; Centro de Portugal; Megalitismo; Tradição megalítica; Polimorfismo ar-
quitetónico.
ABSTRACT
The archaeological intervention at Mamoa 1 do Crasto, carried out as part of the minimization of impacts of the
construction of a pavilion in the industrial area of Rossio, Vale de Cambra, revealed an interesting monument
that highlights the architectural polymorphism of the tomb expressions of the Recent Prehistory of the North
Central Coastal region. It is a tumulus with a powerful lithic ring, truly megalithic, which contrasts with the cen-
tral, pit-like structure. The absence of a megalithic chamber finds parallels in some monuments of the Littoral
Platform, putting on the table the increasingly well founded question of there being a Littoral megalithism and
a megalithism in the hinterland.
There are many questions and they certainly open new perspectives in the approach to the megalithic monu-
ments of this region.
Keywords: Coastal Platform; Central Portugal; Megalithism; Megalithic tradition; Architectural polymorphism.
1. ENQUADRAMENTO 2. LOCALIZAÇÃO
228
A cobrir estas estruturas foi edificada uma carapaça bertas por finas camadas de terras argilosas e are-
ou couraça pétrea em granito, que apresentava um nosas, dispostas sucessivamente e alternadamente,
contorno subcircular com 12m de diâmetro no eixo resultantes da periódica acumulação de águas que ar-
N-S e 13,5m no eixo O-E. Esta cobria preferencial- rastava estes sedimentos para o interior da estrutura.
mente o pendor da estrutura tumular, espraiando-se Todo este enchimento era colmatado, no topo, por
para o exterior da cintura lítica (figs. 1 e 2). O topo da um nível de pedras com 0,40m de potência. Foi exu-
mamoa, aplanado, foi ocupado, essencialmente, por mado apenas um pequeno fragmento cerâmico mui-
uma camada de seixos em quartzo leitoso que envol- to erodido, correspondente a uma parece de vaso,
via a estrutura central. talvez troncocónico, que se encontrava no topo da
Efetivamente, ao centro do círculo foi aberta uma camada 5.
fossa escavada nas terras do tumulus (camada 2), Tudo leva a crer que era pelo lado este que se faria
tendo perfurado, igualmente, o substrato rochoso o acesso ao cerne do monumento: o espessamento
(figs. 4, 5, 6 e 7). De planta subcircular e de contorno da cintura pétrea e da couraça nesta zona; o depósi-
irregular, possuía um diâmetro máximo, na boca, de to das lâminas; a abertura de uma ligeira fossa sob o
2,80m. As paredes eram ligeiramente côncavas, fac- tumulus e a construção do maciço de pedras que se
to sobretudo visível na área sul e este. No lado norte, encontrava unido por pequenas pedras ao anel lítico
existia um patamar ou degrau, logo abaixo da linha que circundava o topo da fossa funerária.
de pedras que circundava a fossa, sugerindo que o De referir ainda um buraco de poste estruturado,
acesso ao interior do espaço seria feito por este lado. que se encontrava a sul, no exterior do tumulus. Qual
A superfície do fundo era irregular. Enquanto que o a sua funcionalidade?
lado este era plano, o lado oeste apresentava uma
concavidade revestida com pedras de pequeno cali- 4.2. O monumento satélite
bre. A sua profundidade máxima era de 1,60m. No Nas quadrículas D9/D10 e E9/E10 foi identifica-
topo, no exterior, do lado nordeste, na quadrícula E6, da uma estrutura de planta circular composta, es-
foi identificada uma depressão escavada no substra- sencialmente, por pequenos blocos ou seixos de
to de base, de contorno subcircular, com o diâmetro quartzo leitoso (fig. 8). Esta apresentava-se trunca-
máximo de 0,22m e 0,28m de profundidade. da a sul e a este pela construção do tumulus central,
A coroar e a circundar a fossa, foi identificada uma encontrando-se cingida praticamente a uma única
estrutura pétrea que se encontrava particularmente fiada de seixos não atingindo mais do que 0,20m de
bem conservada a sul e bastante danificada a norte, altura conservada. Originalmente, teria cerca de 3m
caracterizada pela colocação de pedras em granito, de diâmetro e seria, certamente, mais alta. Na sua
de médias dimensões, quase que pequenos ortós- constituição, foram colocadas algumas pedras de
tatos, muito inclinados para o interior, em escama, maior tamanho em granito. Uma depressão em E9
formando um anel pétreo que indiciava o arranque pode indiciar a existência de uma estrutura em fos-
de uma cobertura. Estas pedras encontravam-se en- sa. Contudo, esta era uma zona com muitas raízes
castradas nas terras compactas do tumulus. de grande porte que podem também ter interferido
Ao nível de topo, partindo do limite do anel pétreo com o substrato de base.
que delimitava a fossa, a sul, foi observado um ali-
nhamento de pedras que se prolongava, pelo lado 5. CONCLUSÕES
sul, até a um amontoado de pedras caoticamente
dispostas, igualmente, encastradas nas terras com- A Mamoa 1 do Crasto é um tumulus que hospeda
pactas do tumulus. uma estrutura funerária invulgar (fig. 9). A ausência
Ainda relacionada com esta estrutura central, obser- de restos osteológicos, por um lado, e de recipientes
vou-se uma outra estrutura negativa identificada a 1m no seu interior, por outro, torna difícil avançar que
a este do amontoado de pedras, nas quadrículas F5 tipo de ritual funerário foi aqui perpetrado. A sua
e G5 com um contorno circular com cerca de 0,80m cronologia é, igualmente, difícil de definir. Se, por
de diâmetro e 0,40m de profundidade máxima. um lado, temos um tumulus baixo, pouco visível na
O enchimento da fossa central era constituído por paisagem, que destruiu parcialmente um monumen-
uma amálgama de pedras de granito e alguns quart- to mais pequeno, morfologicamente semelhante aos
zos. Estas pedras encontravam-se envolvidas e co- túmulos dos finais da Idade do Bronze, por outro, o
230
A maior questão prende-se com a cronologia do mo- Aliviada7, Mamoa 2 da Aliviada e Mamoa 4 da Ali-
numento. No momento, apenas podemos contar viada) e por um corredor (Mamoa 4 de Alagoas) es-
com os dados obtidos e observados durante a inter- tes últimos com um número muito pouco expressivo.
venção. Assim, se por um lado a destruição de um Por outro lado, existe um elevado número de tumuli
monumento em quartzo que se enquadra nos parâ- de “tradição megalítica”, termo usado por Fernando
metros arquitetónicos das sepulturas dos finais da Silva para definir os monumentos cronologicamente
Idade do Bronze, nos leva a considerar este período integráveis nos finais da Idade do Bronze que pon-
(sécs. XII a IX a. C) como uma possibilidade, já o tuam as serras do Centro de Portugal. Um outro gru-
achado das lâminas em sílex, de cariz arcaico, bem po de monumentos com características particulares,
como a cintura pétrea de morfologia megalítica, in- são os tumuli que encerram anéis líticos que envol-
dicia uma maior antiguidade do monumento. De fac- vem espaços centrais “vazios” ou com estruturas em
to, o tipo de talão observado na peça proximal – liso, fossa (Mamoa 1 do Calvário, Mamoa 1 do Castelo,
com esquirolamento bulbar e contrabolbo côncavo Mamoa 7 da Urreira, Mamoa 3 do Taco, Mamoa do
(M. Castro.02.2020), sugere talhe por percussão in- Mamodeiro, Mamoa da Galinha), muitas das vezes
direta (apesar da pouca expressão que as ondulações reutilizando monumentos ortostáticos (Mamoa 3
têm nas respetivas faces inferiores), sendo de salien- do Taco). Estas soluções parecem ser cronologica-
tar a ausência de tratamento térmico2. Estas duas mente integráveis no Calcolítico ou Idade do Bronze
características, combinadas com as dimensões das (Carvalho, 2017a).
peças (larguras superiores a 2 cm e comprimentos Tudo isto aponta para soluções tumulares hetero-
estimados iguais ou superiores a 15 cm), sugerem os géneas, não havendo dois monumentos iguais, in-
módulos de talhe robustos que surgem no IV milénio dependentemente da sua cronologia. Torna-se, por
a.C. e se prolongam pelo seguinte. A inexistência do isso, premente e crucial a escavação e o estudo de
pintalgado bege na segunda peça não significa ne- mais monumentos, pois só assim poderemos come-
cessariamente que estas não tenham sido debitadas çar a ter uma visão mais real do fenómeno tumular
a partir do mesmo bloco de sílex. da pré-história recente desta região. A identificação
A ser assim, teríamos que descartar a possibilida- de 62 monumentos apenas na área mais próxima
de de o amontoado de quartzos corresponder a um desta mamoa, faz-nos ter a certeza de como estes
monumento. Será que estamos em presença de um monumentos foram importantes para a construção
monumento proto-megalítico, anterior ao fenóme- da identidade deste território.
no megalítico e, assim, dos finais do neolítico? Para
já, estão todas as possibilidades em aberto. BIBLIOGRAFIA
Numa perspetiva regional, o panorama é igualmen- BRANDÃO, Domingos Pinho (1963) – Achado da “época do
te complexo. A variedade das soluções tumulares é Bronze” de Vila Cova de Perrinho, Vale de Cambra. Lucerna.
extremamente acentuada, encontrando-se bastan- Porto. 3, pp. 114-118.
te patente no conjunto de túmulos que se espraiam BOTTAINI, Carlos; RODRIGUES, Alexandre (2011) – O con-
a norte na freguesia de Escariz com 42 monumen- junto de metais da Idade do Bronze de Vila Cova de Perrinho
tos conhecidos (fig. 10) (Silva, 1993, 1994, 1999a, (Vale de Cambra, Portugal central) 50 anos após a sua desco-
1999b), mas também para oeste no concelho de Oli- berta, Estrat Critic: Revista d’Arqueologia, nº 5, 3, pp. 103-114.
veira de Azeméis (Carvalho, 2017). CARVALHO, Pedro Sobral de (2016) – Taco a taco. A história
Essa diversidade pode ser observada não apenas ao de 2 monumentos. Câmara municipal de Albergaria-a-Velha.
nível das estruturas tumulares propriamente ditas,
CARVALHO, Pedro Sobral de (2017a) – Tumulações da Pré-
como nos tumuli que as envolvem. Efetivamente, -história Recente do Centro / Norte Litoral: o caso das Ma-
podem ser observados monumentos megalíticos moas do Taco (Albergaria-a-Velha), in Atas do II Congresso da
compostos por câmaras ortostáticas simples (Ma- Associação dos Arqueólogos Portugueses, Arqueologia em Portu-
moa 10 da Urreira, Mamoa 1 do Calvário, Mamoa 1 gal. Estado da Questão, Lisboa, pp. 505-517.
de Alagoas, Mamoa 1 de Couto de Mós, Mamoa 1 da CARVALHO, Pedro Sobral de (2017b) – Pré-história. A mi-
lhares de anos de distância, in Memória de O a Z, Câmara
Municipal de Oliveira de Azeméis, pp. 19-27.
2. O espólio lítico foi analisado e descrito por António Faus-
tino Carvalho a quem expressamos o nosso sincero agrade- CARVALHO, Pedro Sobral de; CAETANO, Vera (2016) – As
cimento. mamoas do Taco (Albergaria-a-Velha). Recuperação e valo-
232
Figura 1 – Mamoa 1 do Crasto. Carapaça pétrea superficial.
234
Figura 3 – Mamoa 1 do Crasto. Cintura pétrea. Observe-se o seu maior espessamento na área este.
Figura 4 – Mamoa 1 do Crasto. Estrutura central no final dos trabalhos. Vista de noroeste.
236
Figura 6 – Mamoa 1 do Crasto. Estrutura Central. Alçado 1.
Figura 7 – Mamoa 1 do Crasto. Estrutura central enquadrada nas restantes estruturas. Perfil sul-norte.
238
Figura 10 – A Mamoa 1 do Crasto no contexto regional das expressões tumulares da Pré-história recente. (Mapa de Luís da Silva
Alexandre).
RESUMO
Na Lapa da Bugalheira (Almonda, Torres Novas), localizada no extremo sul do Maciço Calcário Estremenho,
foram realizados trabalhos arqueológicos na década de 40 do século XX e desde 2019. No presente trabalho foi
analisada a amostra óssea humana cronologicamente enquadrada no Neolítico Final/Calcolítico exumada das
duas intervenções.
Os restos ósseos foram recuperados sem qualquer conexão anatómica. Contudo, a representatividade óssea e
dentária sugerem que se trate de um local de inumação primária. O número mínimo de indivíduos estimado
é de 35, 24 adultos (68.6%) e 11 não-adultos (31,4%). Nestes últimos, a faixa etária mais representada foi a dos
5-9 anos (n=5). Poucas foram as patologias observadas, que incluem oral, degenerativa, infeciosa e traumática.
Palavras-chave: Estudo antropológico; Neolítico final/Calcolítico; Maciço Calcário Estremenho; Gruta natu-
ral; Coleção museológica.
ABSTRACT
In Lapa da Bugalheira (Almonda, Torres Novas), located at the southern end of the Estremenho Limestone Mas-
sif, archaeological work was carried out in the 40s of the 20th century and since 2019. In this work, the human
bone sample chronologically framed in the Late Neolithic/Chalcolithic exhumed from both interventions were
studied.
The human remains were recovered without any anatomical connection. However, the bone and dental repre-
sentation suggest that this is a primary burial site. The estimated minimum number of individuals is 35, 24 adults
(68.6%) and 11 non-adults (31.4%). In the latter, the most represented age group was 5-9 years old (n=5). Few
pathologies were observed, which include oral, degenerative, infectious and traumatic.
Keywords: Anthropological study; Late Neolithic/Chalcolithic; Extremadura Limestone Massif; Natural cave;
Museum collection.
1. Universidade de Coimbra, Centro de Investigação em Antropologia e Saúde (CIAS), Departamento de Ciências da Vida, Coimbra,
Portugal / [email protected]
2. UNIARQ, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal/ Município de Torres Novas, Museu Municipal Carlos Reis.
3. Universidade de Coimbra, Centro de Investigação em Antropologia e Saúde (CIAS), Departamento de Ciências da Vida, Coimbra,
Portugal / UNIARQ, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal / Universidade de Coimbra, Centro de Ecologia Funcional (CFE),
Departamento de Ciências da Vida Coimbra, Portugal.
242
da por Afonso do Paço, que se encontra depositada também ter influenciado estes resultados. Contudo
no Museu Geológico, e a amostra óssea recolhida é também de notar que a escavação de 2019, não
em 2019, na camada 1 (Figura 2 – Quadriculas L/M abrangeu a totalidade da trincheira aberta na inter-
13,14), durante a intervenção arqueológica do proje- venção de Afonso do Paço.
to ARQEVO. As duas subamostras foram analisadas Baseando-se na informação anteriormente descrita,
em conjunto, uma vez que devem corresponder ao o local seria um espaço de inumação primária, hipó-
mesmo conjunto funerário. Com efeito, a interven- tese corroborada pela presença de ossos pequenos
ção arqueológica de 2019 demonstrou que a “cama- como é o caso do osso hióide e dos dentes anterio-
da 1 corresponde à redeposição das terras escavadas res. Estes dados vão de encontro do descrito para
por Afonso do Paço (Rodrigues et al. 2020). muitos outros espaços funerários do Neolítico Fi-
A amostra é constituída por 2479 fragmentos ósseos nal/Calcolítico, onde os restos ósseos humanos são
e dentários, dos quais 1094 foram identificados e in- encontrados não articulados, tais como a gruta do
ventariados, complementados por mais dois conjun- Morgado Superior (Cruz et al. 2013), Algar do Barrão
tos embebidos em concreções. É ainda de referir a (Carvalho et al. 2003), Gruta da Pedra Furada (Silva
existência de três pirâmides petrosiais retiradas para et al. 2014), Gruta de Porto Covo (Silva 2008), Gruta
análise de ADN em 2016 pela Doutora Rita Peyroteo. do Poço Velho (Gonçalves 2003; Antunes-Ferreira e
Dos 1094, 933 são ossos humanos, 852 (91,3%) de Faria 2005) e Lapa do Bugio (Silva e Marques 2009),
adulto e 81 (8,7%) de não-adulto. A amostra odonto- mas a análise antropológica rigorosa, que recorreu a
lógica é formada por 203 dentes, 16 (7,9%) decíduos, metodologias adequadas, demonstrou serem locais
22 (10,8%) permanentes em formação e 165 (81,3%) primários de deposição, ainda que sujeitos a grandes
permanentes com formação completa. remeximentos (Silva 2003; 2012).
Esta amostra óssea humana caracteriza-se por uma
elevada fragmentação, muito frequente em contex- 4. PERFIL DEMOGRÁFICO: NÚMERO MÍNI-
tos funerários similares, e por exibir muitas altera- MO DE INDIVÍDUOS (NMI), ESTIMATIVAS
ções tafonómicas: 12,5% (N=69) dos ossos apresen- DA IDADE À MORTE E DO SEXO
tam alterações relacionadas com a ação das raízes,
15,8% (N=87) revelam um pigmento escuro prova- A amostra óssea humana inclui um número míni-
velmente manganês, 27,5% (N=151) apresentaram mo de 35 indivíduos, 24 adultos e 11 não-adultos.
alterações da superfície causadas pela água e 44,2% A proporção de não-adultos, de 31,4%, vai ao encon-
(N=243) exibem incrustações calcárias. Todas as tro do documentado para espaços funerários coevos
alterações tafonómicas registadas são bastante co- do Neolítico Final/Calcolítico, variando entre os
muns em restos ósseos recuperados de grutas-ne- 18% e 50%, usualmente rondando os 30%, tal como
crópoles (Baxter 2004; Silva 2002; 2012; 2017). observado na tabela 4. O NMI escavados em abrigos
A representatividade óssea é um parâmetro impor- e grutas naturais exibem comumente uma grande
tante para inferir sobre a decomposição diferencial e variabilidade, podendo ir de uma dezena a mais de
o tipo de inumação do espaço funerário (primária ou uma centena de indivíduos (Silva 2003; 2012).
secundária) (Silva 1996; 2003; 2012). Esta amostra A estimativa da idade à morte é um parâmetro im-
incluí peças de todas as partes do esqueleto, incluin- portante para perceber a estrutura etária das popu-
do ossos de pequenas dimensões, como ossos do car- lações humanas do passado. Na amostra foi possível
po, tarso e ossos hióides. Relativamente à amostra estimar a idade à morte nos 11 não-adultos e em dois
dentária (Tabelas 2 e 3), verifica-se que as percenta- dos adultos (N=24). O indivíduo mais novo identifi-
gens obtidas dos dentes monoradiculares são supe- cado teria 10,5 meses. O grupo etário melhor repre-
riores às percentagens esperadas e a dos dentes plu- sentado é o de 5-9 anos (N=5), registando-se ainda
riradiculares inferiores às teóricas. Os desvios destes uma subrepresentatividade de indivíduos com me-
últimos pode ser explicado pelo facto de serem os nos de 5 anos, como é usual em amostras coevas (ver
dentes mais afectados por patologias que podem le- Silva 2003; 2012). Relativamente aos adultos foi pos-
var à perda antemortem (Silva 2012). Além disso, a re- sível identificar dois indivíduos com mais de 30 anos.
colha incompleta da amostra óssea e dentária na in- Devido à elevada fragmentação óssea, apenas foi
tervenção dos anos 40 do século XX, envolvendo os possível estimar o sexo num número restrito de os-
fragmentos esqueléticos de menor dimensão, pode sos, estando representados pelo menos dois indiví-
244
a moderado, para os dentes permanentes, o que vai teres usualmente observados em amostras coevas.
ao encontro do observado em amostras semelhan- Entre as patologias observadas, que incluem orais,
tes (v. Tabela 6). A perda antemortem de dentes, ou degenerativas infeciosas e traumáticas, destacam-
seja, a perda de dentes em vida é de 11,3% (14/124). -se estas últimas, com cinco ossos a revelarem sinais
Em 4,5% (6/134) dos dentes permanentes foram de fracturas antigas e completamente remodeladas.
identificadas lesões cariogénicas, e depósitos de
tártaro, em 14,3% (1/7) de dentes decíduos e 21,5% BIBLIOGRAFIA
(28/130) dos dentes permanentes. Nos dentes an-
ANTUNES-FERREIRA, Nathalie (2003) – Paleobiologia e
teriores com indícios de cálculo dentário, os dentes paleopatologia de grupos populacionais do Neolítico Final/
inferiores foram os mais afetados, com 66,7% (8/12). Calcolítico do Poço Velho (Cascais). (Dissertação de Mestra-
Já nos posteriores, foram os dentes do maxilar, com do, Universidade de Coimbra).
68,8% (11/16). Todos estes dados enquadram-se ANTUNES-FERREIRA, Nathalie; FARIA, Ana (2005) – Pa-
nos obtidos em outras coleções exumadas de gru- leobiologia e paleopatologia de grupos populacionais do
tas naturais (Tabela 4). Em 2,7% (4/147) dos dentes Neolítico Final/Calcolítico do Poço Velho (Cascais). Lisboa:
permanentes, correspondendo a dois caninos (um Instituto Português de Arqueologia.
inferior direito e um superior esquerdo) e dois incisi- BAXTER, Kyle (2004) – Extrinsic factors that effect the pre-
vos centrais superiores (um direito e um esquerdo), servation of bone. The Nebraska Anthropologist. University of
detetaram-se hipoplasias do esmalte dentário, um Nebraska - Lincoln. 19, pp. 38-45.
indicador de stress fisiológico não específico. Estes BOAVENTURA, Rui; Ferreira, Maria. T.; Neves, Maria. J.; e
referem-se a um número mínimo de dois indivíduos, Silva, Ana. M. (2014) – Funerary practices and anthropology
sendo um deles um não-adulto com cerca de 7.5-8.5 during Middle-Late Neolithic (4th and 3rd millennia BCE) in
anos na altura da morte. Nas séries contemporâneas Portugal: old bones, new insights. Anthropologie. 52:2, pp.
é comum a inexistência de hipoplasias de esmalte 183-206.
dentário em dentes decíduos (Silva 2002). CARDOSO, João Luis; CUNHA, Armando Santinho (1995)
Para além das patologias descritas, 0,6% (5/852) – A Lapa da Furada (Sesimbra): resultados das escavações
dos ossos de adultos e 1,2% (1/81) dos ossos de não- arqueológicas realizadas em Setembro de 1992 e 1994. Se-
-adulto, apresentaram lesões infeciosas do periósteo simbra: Câmara Municipal de Sesimbra.
não específicas. Estes valores correspondem a uma CARREIRA, Júlio R. (1996) – As ocupações das Idades do
prevalência baixa, mas usualmente observada em Cobre e do Bronze da Lapa da Bugalheira (Torres Novas).
séries coevas (Silva 2003; 2017; 2019). Nova Augusta. Torres Novas. 10, pp. 91-112.
dos restos ósseos humanos exumados de duas in- CARVALHO, António; CARDOSO, João (2011) – A crono-
tervenções na Lapa da Bugalheira, concretamente a logia absoluta das ocupações funerárias da gruta da Casa
amostra recuperada da galeria por Afonso do Paço da Moura (Óbidos). Estudos Arqueológicos de Oeiras. 18, pp.
393-405.
na década de 40 do século XX, e a exumada em
2019. Ambas são enquadrados nos finais do 4º e iní- CRUZ, Ana; GRAÇA, Ana; OOSTERBEEK, Luís; ALMEI-
cios do 3º milénio BC. DA, Fátima; DELFINO, Davide (2013) - Gruta do Morgado
Os 2479 fragmentos ósseos e dentários recuperados, Superior. Um Estudo de Caso Funerário no Alto Ribatejo
(Tomar, Portugal). Vínculos de Historia. 2, pp. 143-168.
pertencem a um mínimo de 35 indivíduos, 24 adultos
e 11 não-adultos, o mais novo dos quais com 10,5 me- DIAZ-GUARDAMINO, Marta; MORAN, Elena (2008) – En-
ses. Entre os adultos, foram identificados duas mu- tre muralhas e templos. A intervenção arqueológica no Largo
de Santa Maria da Graça. Lagos: Câmara Municipal de Lagos.
lheres e dois homens. A nível morfológico, os fému-
res e tíbias destes indivíduos revelam achatamento, FARINHA DOS SANTOS, Manuel (1981) – Pré-história de
ou seja, são platiméricos (84,3) e platicnémicos Portugal. Biblioteca das Civilizações. Verbo.
(57,1). Entre os caracteres discretos pós-cranianos, FERNANDES, Rosário; ROCHA, Leonor (2008) – Interven-
foi observada abertura septal nos úmeros (1/10) e a ção arqueológica na Lapa dos Pinheirinhos 1 (Sesimbra). Re-
presença de terceiro trocânter (n=1/8), dois carac- vista Portuguesa de Arqueologia. 11:2, pp. 29-4.
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246
Código do Amostra Contexto Datação BP cal BC (2σ) Bibliografia
Laboratório
VERA- LpBug.139 M/13, C2, na 2 6084±26 5196BC (2.0%) 5180 Rodrigues et al.
7047 Metápode de Ovis 5063BC (92.5%) 4932 2020
4921BC (0.8%) 4912
ICEN-739 Osso Homo Sala do Ricardo 5090 ± 60 4037 - 3711 Zilhão e Carvalho
Recolha Superfície 1996
Tabela 1 – Síntese das datações de radiocarbono publicadas da Lapa da Bugalheira. Calibração com a curva IntCal20 e o progra-
ma Calib 8.1.0 (Reimer et al. 2020; Stuiver e Reimer 1993).
Tabela 2 – Percentagens dos dentes permanentes monorradiculares e pluriradiculares da amostra da Lapa da Bugalheira.
Superiores 48 21 2.3 1
Tabela 3 – Proporção dos dentes permanentes superiores e inferiores da amostra da Lapa da Bugalheira.
Tabela 4 – Número mínimo de indivíduos de adultos e não-adultos das grutas/abrigos naturais do Neolítico final/Calcolítico.
Cova da Moura 3,65 (n=339) 8.2% (27/331) 8.8 (101/1145) Silva (2002)
Serra da Roupa 3.10 (n=60) 4.5% (3/67) 22.1 (62/281) Silva (2002)
Tabela 6 – Desgaste e frequência das cáries e das perdas antemortem dos indivíduos exumados de grutas naturais do Neolítico
final/Calcolítico.
248
Figura 1 – Plano e corte da Lapa da Bugalheira com a representação do espaço inter-
vencionado por Afonso do Paço e seus colaboradores e com a distinção das duas ca-
madas. (Adaptado de Afonso do Paço et al. 1971: 26).
250
Figura 3 – Fratura remodelada a meio da diáfise do rádio esquerdo da Lapa da Bugalheira.
Figura 4 – Vértebra cervical com presença de labiação e porosidade no corpo vertebral, inserindo-se no grau 4 de acordo com
Assis, 2007. Norma anterior.
RESUMO
A caracterização do tratamento funerário em sítios complexos, como os sepulcros colectivos pré-históricos nos
quais a acumulação e justaposição de milhares de fragmentos ósseos fragmentados é comum, encontra-se de-
pendente da adopção de um conjunto conceitos radicados na Arqueotanatologia. Neste trabalho será apresen-
tado e discutido o caso do Hipogeu I do Monte do Carrascal 2 (Ferreira do Alentejo, Beja), onde a abordagem
arqueotanatológica, cruzada com a leitura geoarqueológica do sítio e com a análise da distribuição espacial dos
elementos presentes no sepulcro, permitiu reconstituir a cadeia operatória funerária ali implementada entre
2900 e 2300 cal. a.C., resultados enquadrados à luz dos trabalhos recentes em sítios coevos do sudoeste da
Pensínsula Ibérica.
Palavras-chave: Sines; Neolítico Final; Calcolítico Pleno; Santuário; Povoado.
ABSTRACT
Understanding the funerary treatment in complex sites such as prehistoric collective graves where the accu-
mulation and juxtaposition of thousands of fragmented bone fragments is usual, depends on adopting a set of
Archaeotanatological concepts and procedures. This paper presents the case of Hypogeum I of Monte do Car-
rascal 2 (Ferreira do Alentejo, Beja), where an archaeotanatological approach, coupled with a geoarchaeological
evaluation of the site, and the spatial distribution analysis of all elements of the tomb, allowed the reconstruc-
tion of the funerary chaîne operatoire implemented there between 2900 and 2300 cal. BC. The results will be
discussed here in light of recent works on coeval sites in the southwestern Iberian Peninsula.
Keywords: Sines; Late Neolithic; Chalcolithic; Settlement; Santuary.
1. CIAS – Centro de Investigação em Antropologia e Saúde – Research Centre of Anthropology and Health / Instituto de Investigação
Interdisciplinar Universidade de Coimbra – Institute for Interdisciplinary Research of the University of Coimbra / [email protected]
254
fica) e os dados de Santos (2011) foram integrados do paulatinamente do topo da estrutura para a base.
como dados secundários dado o seu processamen- A matriz sedimentar que preenche a câmara fune-
to e trabalho interpretativo anterior. Os dados se- rária caracteriza-se por uma elevada homogeneida-
cundários usados integram ainda os dimanantes da de, constituída por uma sucessão de depósitos cuja
prospecção geofísica (Garcia & alli, 2011). diferenciação assenta na natureza e frequência dos
A escavação foi orientada de acordo com os princí- vestígios osteológicos, arqueológicos e elementos
pios da Arqueotanatologia (Duday, 2010), tendo-se geológicos presentes. O hipogeu apresentava um
implementado e testado um protocolo de recupera- preenchimento inter-estratificado que incluía nove
ção de vestígios osteológicos (Neves, 2019). Foi rea- níveis estratigráficos (Fig. 2).
lizada manualmente, por unidades estratigráficas
definidas com base nas características geológicas e 3.1. Utilização funerária do hipogeu
estruturais dos depósitos, ou com base na identifica-
ção de contextos arqueológicos. A implantação duma 3.1.1. [ue1]
quadrícula do sítio, com unidades mínimas de 50x50 Na [ue1] a totalidade dos ossos não possuía qualquer
cm, visou facilitar a leitura e interpretação da estrati- continuidade anatómica, acumulando-se nas áreas
grafia e obter um corte estratigráfico longitudinal de laterais do hipogeu. Foram recuperadas 123 peças os-
acordo com o eixo maior das estruturas, tendo tam- teológicas – 120 peças ósseas e três dentes soltos. 32
bém possibilitado a recuperação do material crivado peças ósseas pertenciam a não-adultos e 82 a adultos.
com um referencial espacial. A totalidade dos ossos Os ossos mais frequentes são os cranianos e os ossos
e material arqueológico foram georreferenciados, in- longos tanto no caso dos adultos como dos não adul-
ventariados, registados graficamente sobre ortofoto tos. A presença de um número importante de crânios
e embalados individualmente (Neves, 2019). pode dever-se ao facto deste tipo de osso tender a
A análise dos parâmetros do perfil biológico foi feita rolar facilmente dada a sua morfologia arredondada.
com recurso aos métodos compilados por Buikstra e O grau de fragmentação das peças osteológicas é
Ubelaker (1994) e Scheuer e Black (2000). Utilizou- muito significativo, o que a par com a morfologia do
-se ainda o método de Wasterlain (2000) para a depósito, a ausência de ossos com continuidade ana-
diagnose sexual. A recolha de dados osteométricos tómica, o tipo de ossos presente e a fragmentação da
foi realizada de acordo com as recomendações de série constituem argumentos em favor do carácter
Olivier (1960). secundário do depósito sedimentar. A acumulação
Os elementos gráficos foram vectorizados median- destes vestígios osteológicos resulta da remobiliza-
te a criação de shapefiles na extensão ArcCatalog ção por acção natural dos vestígios funerários depo-
(10.2.2), tendo sido depois importados e editados na sitados na ue [2].
extensão ArcMap (10.2.2). Os objectos vectorizados
estão associados a uma base de dados onde constam 3.1.2. [ue2]
as informações relativas aos elementos osteológicos A [ue 2] corresponde à última utilização funerária
e arqueológicos. Os trabalhos de análise espacial e do Hipogeu I. Foi nesta unidade que se identificou o
de elaboração de mapas de distribuição dos vestí- maior número de peças osteológicas (N=3638). Des-
gios constaram de uma análise exploratória median- tas, 1353 (37,20%) pertenciam ao grupo das peças
te a selecção e a classificação de dados geo-espaciais osteológicas sem conexão anatómica. As restantes
de acordo com a sua localização e atributos. 2285 (62,80%) pertenciam aos 62 indivíduos inuma-
dos nesta unidade.
3. RESULTADOS Dos 1353 ossos sem continuidade osteológica reco-
lhidos, 1003 a adultos e 335 a não adultos. Surgem
Do ponto de vista construtivo o Hipogeu I do Monte bem representados os ossos de menores dimensões
do Carrascal 2 corresponde a uma estrutura escava- sustentáveis por conexões lábeis como os das extre-
da num substrato rochoso brando formado por cali- midades ou muito frágeis (como o osso hióide). Os
ços resultantes da meteorização dos gabros de Beja ossos frágeis do esqueleto axial, como as costelas,
(Ribeiro & alli, 2010). A área escavada possibilitou a apresentam também valores importantes.
identificação de uma câmara, com uma abertura no Quanto à fragmentação óssea importa notar que
topo, de morfologia sub-circular que se vai alargan- esta é bastante elevada, estando 68,91% (N=2507)
256
se encontrarem dispostos em diversos sentidos, cial cinco indivíduos adultos, dois de sexo feminino
registando-se também uma alteração do local esco- e os outros três de sexo indeterminado. A totalidade
lhido para depositar os remanescentes cadavéricos dos indivíduos identificados exibem diversas alte-
e esqueléticos. Mais uma vez a existência de alinha- rações tafonómicas nomeadamente deslocações de
mentos de ossos admite a presença duma estrutura ossos da sua posição original decorrentes da decom-
perecível que poderia ter acomodado os vestígios posição cadavérica em ambiente aberto. Analisando
funerários (Fig. 3). a repartição espacial do momento mais recente para
o mais antigo da utilização sepulcral desta unidade
3.1.3. [ue3] constata-se que neste último momento foi utilizada
A partir desta unidade a escavação incidiu sobre a zona mais central da área escavada.
uma área reduzida de 1,5m x 0,5 m.
Na [ue3], 20 das peças recolhidas pertenciam a in- 3.1.5. [ue6]
divíduos não adultos e 54 (72,97%) a indivíduos Na [ue6] foram apenas recolhidos escassos vestí-
adultos. Das 74 peças identificadas, 25 pertenciam gios ósseos sem qualquer continuidade anatómica
a porções esqueléticas em conexão anatómica e 49 (N=19) de não adultos (N=7) e de adultos (N=12).
a ossos sem continuidade anatómica. Em ambos os Dos indivíduos não adultos estão presentes ossos do
grupos estão representados todos os tipos de peças esqueleto craniano, apendicular e um osso fémur.
ósseas, argumento em favor da realização de inuma- Já os adultos surgem representados genericamente
ções primárias, tanto de adultos como de não adul- com os mesmos ossos, acrescentando-se um osso da
tos nesta unidade. mão, uma patela e um osso do pé.
No seio desta unidade foram também escavados de Face ao efectivo muito reduzido de elementos es-
forma parcial três indivíduos adultos, um de sexo queléticos recolhidos, a caracterização da utilização
feminino e os outros de sexo indeterminado, iden- funerária desta unidade é difícil de realizar. A pre-
tificados de forma sucessiva nas decapagens 3,4 e 5. sença de alguns ossos de tamanho reduzido, pode
As modalidades de gestão sepulcral nesta unidade indiciar a realização de inumações primárias, mas
parecem ser semelhantes às registadas na unidade por si só não constituiu uma evidência suficiente
que lhe sucedeu, registando-se inumações primá- para a realização de tal afirmação. Os ossos, bem
rias de indivíduos depostos em posição flectida e como os elementos da cultura material identifica-
cuja decomposição ocorreu em ambiente aberto. dos, encontram-se mais concentrados na zona norte
A área da câmara ocupada para as inumações é mais da área escavada, surgindo-se algo dispersos.
abrangente do que aquela depois utilizada aquando
das deposições da ue [2], mais confinadas no espaço 3.1.6. [ue7]
(cfr. Fig. 2). A ue [7] proporcionou a recolha de 71 ossos huma-
nos. A totalidade das peças osteológicas recolhidas
3.1.4. [ue4] correspondia a ossos soltos sem qualquer conti-
Foram recolhidas 161 peças osteológicas, das quais nuidade osteológica. Relativamente ao seu estado
153 ósseas e oito dentárias, provenientes de oito de maturação, 35 ossos pertenciam a não adultos
decapagens arqueológicas. Do total das peças, 113 (47,76%) e 33 a adultos (47,76%). Em 3 casos não foi
correspondem a ossos desprovidos de continuida- possível determinar o estado de maturação das pe-
de anatómica enquanto que as demais 48 (29,81%) ças ósseas (4,48%). Encontram-se presentes todos
pertencem aos cinco indivíduos adultos identifica- os tipos de ossos. A presença de ossos de pequeno ta-
dos nesta unidade. Foram ainda identificados restos manho e mantidos por conexões lábeis tanto de não
ósseos de não-adultos mas desprovidos de conti- adultos como de adultos aponta para uma utilização
nuidade anatómica (N=12). No grupo dos ossos sem primária funerária. No entanto face às dimensões
continuidade anatómica estão presentes todos os reduzidas da área escavada, tal interpretação deve
tipos de peças ósseas. Ossos muitos frágeis como as ser realizada com alguma prudência. O material en-
costelas ou de dimensões reduzidas como os ossos contra-se agrupado, estando a sua repartição espa-
das mãos e dos pés encontram-se bem representa- cial bem delimitada por um círculo pétreo, formado
dos nos adultos e nos não-adultos. por blocos de tamanho decacentimétrico de gabros
Foram aqui escavados e identificados de forma par- e caliços.
258
5) um aproveitamento mais intenso e prolongado 4. DISCUSSÃO
do espaço sepulcral (ue [2]), no qual foram iden-
tificados 62 indivíduos depositados sucessiva- A relevância dos contextos escavados no Hipogeu I
mente. Tendo em conta a geometria do depó- para a compreensão das dinâmicas dos comporta-
sito, com elevada concentração de indivíduos mentos funerários das comunidades calcolíticas é
e peças ósseas no centro do hipogeu, coloca-se evidente, não só pelo número e preservação de in-
a hipótese de as inumações terem ocorrido a divíduos aqui depositado, mas também pelo espólio
partir da abertura superior. Ao nível do mate- que os acompanha e pela dimensão arquitectural
rial arqueológico associado regista-se a pre- que todo o espaço encerra.
sença de material cerâmico, onde predominam Tendo em conta o NMI calculado por Santos (2011)
as formas abertas (pratos de bordo espessado, de 28 e os 62 identificados na fase seguinte, o número
almendrado, taças em calote), material lítico dos cadáveres ali depositados será pelo menos de 90,
(grandes lâminas de acordo com as análises pelo que corresponde sem dúvida a uma fase de utili-
traceológicas realizadas por Juan Gibaja Bao, zação colectiva do sepulcro, dedicado à deposição de
apresentam marcas de uma utilização reduzida adultos e de não adultos. Não há indícios de ter sido
e relacionada com o corte de cereais, evocativa aqui depositada uma população selecionada à seme-
da prática agrícola deste grupo humano), ador- lhança de outros sepulcros colectivos coevos, desta e
nos (contas de colar em Trivia) e indústria sobre de outras tipologias (Silva, 1996; Silva 2002; Boaven-
osso (agulha), materiais integráveis no Calcolí- tura, 2009; Díaz-Zorita & alli, 2017; Marçais, Cham-
tico Pleno. Pode-se incluir nesta fase a unidade bon e Salanova, 2016; Evangelista, 2017). Especifi-
[2013] (Santos, 2011), que poderá corresponder camente, e no que concerne aos hipogeus podem-se
a topo da ue[2], o que conferia a esta unidade citar os sepulcros vizinhos do Outeiro Alto, Vale de
uma topografia superior em “montículo”. A ob- Barrancas I, ou Sobreira de Cima 2 (Fernandes, A.,
tenção de dez datações de 14C é consentânea 2013; Fernandes, P., 2013; Valera, 2013) onde também
com a esta observação, apontando para uma não se identificaram quaisquer indícios dos sepul-
utilização do sepulcro na primeira metade do 3º cros conterem um grupo populacional selecionado.
milénio a.C (Tabela1; Fig.4). A colocação sucessiva dos cadáveres incrementa a
6) o abandono da utilização do hipogeu enquanto possibilidade de se registarem movimentações dos
espaço sepulcral e a entrada de depósitos sedi- esqueletos antes depositados. Deste modo consi-
mentares e clásticos a partir do topo da estru- dera-se que se as conexões lábeis são mantidas,
tura (ue[1]). Este momento corresponde à ue decorreu um tempo curto entre as deposições. Pelo
[2010] de Santos (2011) – evidenciando-se, du- contrário, se estas estão deslocadas, o tempo decor-
rante os trabalhos de Neves e Mendes (2011), rido terá sido longo (Marçais, Chambon e Salanova,
apenas na periferia da estrutura. 2016), sendo o estado de conectividade bastante in-
formativo acerca do estabelecimento dos ritmos de
Nas fases finais de utilização funerária do hipogeu, o utilização e do preenchimento dos sepulcros. Face
seu acesso era feito através de uma abertura existen- aos resultados obtidos durante a análise arqueotana-
te no topo, abertura esta, que sofreu diversos alar- tológica e estratigráfica do sepulcro pode-se inferir
gamentos ao longo do tempo, como o testemunham que a utilização da [ue2] se inicia de forma algo rá-
pelo menos os dois momentos de abatimento da co- pida, registando-se na décima decapagem a sobre-
bertura registados: a ue [2010] (Santos, 2011: 123) e a posição de indivíduos cujo esqueleto está bastante
ue [3]. Não se pode excluir que contudo existam ou- completo. Assim, aquando da deposição dum novo
tros pontos de comunicação com o fosso que dados inumado, o(s) anterior(es) não tinham perdido a sua
os limites da escavação não tenham sido identifica- continuidade anatómica e não tinham sido sujeitos a
dos. De igual modo não se pode excluir a existência qualquer manipulação ou retirada de elementos es-
de outras entradas laterais, como o deixa supor a queléticos. A falta de peças em alguns dos esqueletos
existência do nível pétreo – ue[5] – que pode corres- testemunha a intervenção sobre os mesmos, evocan-
ponder a uma possível condenação de uma entrada do o que Blin e Chambon (2013) apelidam de desin-
que poderia existir a Oeste. dividualização dos mortos. O indivíduo deixa de ser
reconhecível enquanto tal, mas há a noção de que
260
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Ind. Osso UE/ Deca- Idade Sexo (morfo 14C Lab Age BP δ13C δ15N C/N 2 σ cal BCE
pagem ‑métrico) no. (‰) (‰)
21 Porção pétrea Ut2 d3 Adulto n/d Ua-58750 4188±40 -19.5 8.5 3.3 2900-2630
–D
28 Temporal c/ Ut2 d5 Não-adulto n/d Ua-58751 4027±38 -19.7 7.3 3.5 2840-2460
p. pétrea – E
30 Temporal c/ Ut2 d5 Adulto Feminino Ua-58752 4143±33 -19.5 7.5 3.2 2880-2610
p. pétrea – D
34 Porção pétrea Ut2 d5 Não-adulto n/d Ua-58753 4134±36 -18.7 9.1 3.3 2880-2580
–D
35 Porção pétrea Ut2 d5 Não-adulto n/d Ua-58754 3950±46 -21.1 8.2 3.8 2580-2290
–D
39 Temporal c/ Ut2 d6 Adulto, Feminino Ua-58755 4126±33 -21.4 8.2 3.2 2880-2570
p. pétrea – D maduro
60 Temporal c/ Ut2 d9 Não-adulto n/d Ua-58756 4211±39 -19.8 7.3 3.3 2910-2660
p. pétrea – E
62 Temporal c/ Ut2 d10 Adulto Feminino Ua-58757 4072±48 -20.9 7.4 3.5 2870-2470
p. pétrea – E
67 Temporal c/ p. Ut2 d10 Não-adulto n/d Ua-58758 4199±37 -20.1 8 3.3 2900-2660
pétrea - D
Tabela 1 – Resultados das datações de 14C obtidas para o Hipogeu I do Monte do Carrascal 2.
262
Figura 1 – A ) Localização da área classificada de Porto Torrão,
do Monte do Carrascal 2, dos tholoi de Monte do Cardim,
Horta de João de Moura 1, Monte do Pombal e posicionamen-
to aproximado do achado isolado de um ídolo oculado sobre
ortofotomapa. Dados cartográficos: Esri, S.A., Styx, Estudos
de Antropologia, Lda.; B) Resultados da prospecção geofísica
no Monte do Carrascal 2 com indicação dos eventos assina-
lados e da dispersão de fragmentos observados à superfície
do terreno. Dados cartográficos: Esri, S.A., Styx, Estudos de
Antropologia, Lda.
264
Figura 3 – Representação da sobreposição dos indivíduos exumados no Hipogeu I do Monte do Carrascal 2. À direita da base
para o topo estão representadas as dez decapagens realizadas dando conta da diferente repartição espacial dos 62 indivíduos.
À esquerda sobre a planta do Hipogeu I estão representados por códigos de cores os indivíduos da [ue 2] num espaço bem deli-
mitado, de tendência quadrangular. Esta delimitação pode indicar a presença duma estrutura perecível.
266
OS SEPULCROS DA PRÉ-HISTÓRIA
RECENTE DA QUINTA DOS POÇOS
(LAGOA): CONTEXTOS E CRONOLOGIAS
António Carlos Valera1, Lucy Shaw Evangelista2, Catarina Furtado3, Francisco Correia4
RESUMO
A Quinta dos Poços, no município de Lagoa, foi intervencionada pela ERA Arqueologia no âmbito da construção
de um campo de golf pelo Grupo Pestana. Nesses trabalhos, que envolveram a realização de acompanhamen-
to arqueológico, prospecção geofísica e escavação arqueológica, foram intervencionados quatro sepulcros, dos
quais um revelou uma cronologia do 3º milénio a.C. e os restantes três uma cronologia atribuível ao Neolítico
Médio (4º milénio a.C.). No presente texto são apresentados os dados relativos às arquitecturas, às estratigra-
fias, à componente material votiva e à cronologia absoluta já disponível. É ainda realizada uma breve contextua-
lização regional, salientando as principais aportações deste contexto para o aprofundamento do conhecimento
da Pré-História Recente Regional.
Palavras-chave: Calcolítico; Neolítico; Práticas Funerárias; Hipogeus; Fossas.
ABSTRACT
The Quinta dos Poços, located in the municipality of Lagoa, was intervened by ERA Arqueologia as part of the
construction of a golf course by the Pestana Group. These works involved archaeological monitoring, geophysi-
cal prospecting, and archaeological excavation. Four tombs were intervened, one of which revealed a chronol-
ogy from the 3rd millennium BC, and the remaining three were attributed to the Middle Neolithic (4th millen-
nium BC). This text presents the data regarding the architectures, stratigraphies, votive material component,
and available absolute chronology. It also provides a brief regional contextualization, emphasizing the main
contributions of this context to the deepening of knowledge of the Recent Regional Prehistory.
Keywords: Chalcolithic; Neolithic; Funerary Practices; Hipogea; Pits.
268
nos apresentam, nomeadamente na necrópole igual- nas dimensões, correspondendo a quatro machados
mente do Neolítico Médio de Vale de Barrancas 1 e duas enxós. Os machados apresentam corpo pico-
(Valera, Nunes, 2020). Tinha um eixo maior de 3.1m tado e polimento restrito à área do gume, secções
e uma profundidade variável entre 0.10m e 0.30m. transversais circulares ou elipsoides e talão convexo
Esta estrutura apresentava no seu interior um nível ou pontiagudo. As enxós, de secções longitudinais
de empedrado composto por elementos de peque- bi-convexas e secções transversais sub-rectagular e
na e média dimensão, que parecem ter funcionado assimétrica, apresentam polimento tendencialmen-
como uma espécie de carapaça de encerramento. te integral. A pedra talhada é constituída por três
Na sua área central apresentava uma estruturação geométricos trapézios assimétricos realizados sobre
composta por pedras de pequena e média dimen- grande lamela de sílex, uma pequena lâmina de sí-
são alinhadas e outros dois alinhamentos mais a lex e por uma pequena lasca igualmente em sílex.
Oeste, assim como dois possíveis buracos de poste. O adorno corresponde a dois fragmentos de pulseira
Sob o empedrado, arrancando a partir do vértice de Glycymeris, os quais não remontam e se apresen-
do lóbulo a Este, registou-se uma estruturação de tam bastante erodidos. A cerâmica está ausente.
blocos pétreos de grande dimensão, ligeiramente O Sepulcro 3 proporcionou genericamente o mesmo
afeiçoados e tendencialmente de formato sub-rec- tipo de materiais. A pedra polida é constituída por três
tangular (eventual compartimentação do interior do machados e uma enxó que apresentam as mesmas
espaço funerário). características tipológicas registadas no conjunto do
Alguns restos humanos e materiais arqueológicos Sepulcro 2. Na pedra talhada, o número de geomé-
surgiram integrados no empedrado inicial. Contu- tricos é agora maior (6), estando presentes trapézios
do, a maioria dos ossos surgiu de modo disperso, simétricos e assimétricos e triângulos, sempre em
mas com maior densidade no lado SE, sob estas es- sílex, ocorrendo ainda uma lamela igualmente em
truturas pétreas, evidenciando diferentes momen- sílex. Um elemento de adorno foi registado, corres-
tos de deposição. O número mínimo de indivíduos é pondendo a uma conta de colar tubular em forma de
de 10 (para os dados antropológicos ver Evangelista azeitona em calcário, e uma valva convexa de Pecten
et al., neste volume). maximus. Os fragmentos de cerâmica totalizam ape-
nas 5, sendo de dimensões muito reduzidas.
3.2. Os conjuntos votivos dos sepulcros do Neo Quanto ao Sepulcro 4, apresenta, uma vez mais, um
lítico Médio conjunto com grandes paralelismos com os anterio-
Os três sepulcros atribuíveis ao Neolítico Médio res, ainda que mais numeroso. A pedra polida é com-
apresentam conjuntos artefactuais muito homogé- posta por quatro machados e quatro enxós e um frag-
neos entre si. Em termos globais, as categorias ar- mento de gume de enxó. No geral, as características
tefactuais preponderantes são a pedra polida (com tipológicas mantêm-se, ainda que alguns machados e
um equilíbrio entre enxós e machados) e os geomé- enxós apresentem dimensões ligeiramente maiores.
tricos (dominando os trapézios, com os triângulos a A pedra talhada, toda em sílex, é constituída por sete
ocorrerem pontualmente). Lâminas, lamelas, lascas geométricos, incluindo trapézios e triângulos, uma
e alguns elementos de adorno (contas e pulseira) lasca, duas lamelas e uma pequena lâmina. Ocor-
também ocorrem, mas com baixa representativida- rem ainda elementos de indústria macrolítica (dois
de. O mesmo acontece com outras categorias, como seixos, um fragmento de seixo e uma lasca em ro-
os seixos (inteiros ou fragmentados), os percutores e chas locais) e um percutor em quartzo. No adorno,
os elementos mais directamente relacionáveis com foi recolhida uma conta de colar tubular em forma
o sagrado (uma valva de Pecten maximus). A cerâmi- de azeitona em calcário idêntica à registada no Se-
ca ocorre em apenas dois dos sepulcros e sempre em pulcro 3 e uma pulseira inteira realizada sobre con-
número reduzido e sob a forma de pequenos frag- cha de Glycymeris. Regista-se ainda a presença de
mentos, sugerindo que a sua integração terá mais a pequenos fragmentos cerâmicos (vinte e um bojos e
ver com prováveis adições não intencionais ao con- um bordo de morfologia não reconstituível).
texto durante o seu processo de uso, não traduzindo Numa análise comparativa, os conjuntos artefac-
actos votivos deliberados (Tabela 1; Figuras 4 e 5). tuais registados nos Sepulcros 2, 3 e 4 revelam uma
Olhando aos sepulcros individualmente, no Sepulcro grande homogeneidade, quer nas suas caracterís-
2 a pedra polida é constituída por seis peças de peque- ticas tipológicas, quer em termos das categorias de
270
integre num momento de transição do Neolítico Fi- com os quais se alinham igualmente em termos de
nal / Calcolítico, como indicado pela datação de cronologia absoluta (entre meados / terceiro quartel
radiocarbono (ver ponto 5). De facto, a presença de do 4º milénio AC), num momento final do Neolítico
machados e enxós nos pacotes votivos funerários é Médio (Valera, 2020) (Figura 9B).
mais significativa durante o Neolítico, tornando-se Já no Algarve, regista-se a proximidade na compo-
vestigial ou ausente no Calcolítico. nente ritual ao hipogeu 1 da Barrada, o qual apresen-
ta igualmente uma datação (CNA30008.1.1. – 4489
5. CRONOLOGIA ABSOLUTA E DIETAS ±33BP, Odriozola et al., 2017) semelhante há obtida
para o Sepulcro 2 da Quinta dos Poços, revelando
Foram já obtidas cinco datações de radiocarbono, que este tipo de práticas características do Neolítico
três para o Sepulcro 1, uma para o Sepulcro 2 e outra Médio se estende até à transição entre o terceiro e
para o Sepulcro 3 (Tabela 3; Figura 9A). o quatro quartéis do 4º milénio a.C., como acontece
A datação do Sepulcro 3 centra-se em meados do 4º também no Alentejo. Ainda que não datado, pode-
milénio a.C., enquanto do Sepulcro 2 se enquadra ríamos associar a este momento o enterramento em
entre o terceiro e o quarto quartel desse milénio. fossa do Cerro das Cabeças, em Silves (Gomes, Pau-
Genericamente, estas datações colocam estes sepul- lo, 2003), onde surge um espólio composto por uma
cros no final do Neolítico Médio e transição para o lâmina, uma bracelete de Glycymeris e um punção
Neolítico Final, sendo compatíveis com os conjuntos ou punhal em osso. Mas é igualmente interessante
votivos evidenciados e com o que se conhece para registar a total sobreposição das datações do Sepul-
contextos equivalentes no interior alentejano. cro 2 da Quinta dos Poços e do hipogeu da Barrada
Já as datações obtidas para o Sepulcro 1, revelam com a do monumento ortostático de Castro Marim
uma utilização com uma longa diacronia, iniciada (OxA-5441 – 4525±60BP, Gomes et al., 1994) e a sua
na transição para o 3º milénio a.C. (redução junto sobreposição parcial às datações de Monte Canelas
às deposições de pedra polida), no final do Neolíti- (ICEN-1149 – 4460±110BP; OxA-5514 – 4370±60BP;
co, prolongando-se depois durante o Calcolítico até OxA-5515 – 4420±60BP, Parreira, 2010), revelando
ao seu terceiro quartel (Figura 9A). Note-se que as uma pluralidade de soluções tumulares na transi-
datações obtidas para o Indivíduo 5 (meados do mi- ção Neolítico Médio / Neolítico Final (Figura 9C).
lénio) e Indivíduo 4 (terceiro quartel) praticamente Mais antigos, essencialmente abrangendo a segun-
não se recobrem, revelando uma periodicidade es- da metade do 5º milénio a.C. temos os contextos do
passada de deposições. Neolítico Médio de Castelo Belinho (Gomes, 2012),
Relativamente às dietas evidenciadas pelos dados Alcalar 7 (Morán, Parreira, 2004) e Algar do Goldra
isotópicos, os indivíduos do Sepulcro 1 enquadram- (Carvalho, Straus, 2013) (Figura 9C). Assim, os se-
-se perfeitamente no padrão de alimentação terres- pulcros da Quinta dos Poços, nomeadamente o Se-
tre que tem vindo a ser evidenciado para o Sul de pulcro 3, permitem começar a preencher um “espa-
Portugal. Já os dados revelados pelo único indivíduo ço temporal em aberto” entre as primeiras fases do
do Neolítico Médio analisado até ao momento, reve- Neolítico Médio algarvio e os seus momentos mais
lam uma ligeira divergência, sugerindo uma alimen- tardios, assim como uma caracterização mais deta-
tação com maior componente marinha, circunstân- lhada das práticas funerárias envolvidas.
cia igualmente exibida por um indivíduo de Castelo Já no que respeita ao Sepulcro 1, verifica-se uma utili-
Belinho (Figura 10). zação alargada no tempo, que se inicia num momen-
to de transição Neolítico Final / Calcolítico, onde a
6. BREVE DISCUSSÃO deposição de elementos de pedra polida (parte in-
tegrante da tradição funerária do Neolítico Médio /
No que respeita aos três sepulcros mais antigos da Final) ainda se faz sentir, para depois se desvanecer
Quinta dos Poços, os mesmos encontram claros nas utilizações mais recentes, como é comum obser-
paralelos no ritual funerário em hipogeus que têm var-se nos contextos funerários do 3º milénio a.C.. A
vindo a ser intervencionados no interior alentejano, não sobreposição das três datas já obtidas e o espec-
como Sobreira de Cima (Valera, 2013), Outeiro Alto 2 tro cronológico que cobrem (do princípio do 3º mi-
(Valera, Filipe, 2012), Quinta da Abóbada (Valera, et lénio a.C. ao seu terceiro quartel) revelam uma uti-
al., 2017) ou Vale Barrancas 1 (Valera, Nunes, 2020), lização periódica do monumento, o que nos remete
272
do megalitismo do vale do Raia (Cabeção, Mora), Era Mono-
gráfica 6. Lisboa. Nia-Era: 53-58.
Totais
Totais
2704
5907
5902
5903
2802
2801
2702
2701
Categorias
Recipientes
Frag. Bordos 1 1
Bojos 5 5 11 10 21
Pedra Polida
Machados 3 1 4 3 3 1 3 4
Enxós 1 1 2 1 1 1 4 5
Pedra Talhada
Percutor 1 1
Lâminas 1 1 1 1
Lamela 1 1 2 2
Lasca 1 1 1 1
Geométrico 2 1 3 4 2 6 1 6 7
Adorno
Contas de colar 1 1 1 1
Pulseira 1 1 1 1
Sagrado
Pecten 1 1
Seixos
Frag. De Seixo 1 1
Lasca de seixo 1 1
Seixos 1 1 2
2203
2303
2201
Categorias
Recipientes
Vasos 2 1 2 5
Frag. Bordos 3 4 2 9
Pedra Polida
Machados 4 4
Enxós 4 4
Pedra Talhada
Núcleo (lascas) 1 1
Frag. Inclassif. 1 1 2
Pontas de seta 2 3 5
Lâminas 1 2 1 1 4
Lamela 2 2
Lasca 1 1
Adorno
Contas de colar 5 2 7
Alfinete 1 1
Sagrado
Falange afeiçoada 1 3 4
Falange não afeiçoada 2 1 3
Betilo ? 1 1
Seixos
Frag. De Seixo 2 4 6
Lasca de seixo 2 2
Sep. 1 Redução 1 Tíbia direita 2216 SUERC-108445* 4345±25 3021-2901 -19,3 10,3
Sep. 1 Indivíduo 5 Tíbia esquerda 2207 FTMC-PB57-2 3998±29 2576-2465 -19,3 9,47
Sep. 1 Indivíduo 4 Úmero direito 2206 FTMC-PB57-1 3862±30 2460-2207 -19,84 8,36
* Datação obtida no âmbito de uma colaboração com o Grupo de Pesquisa Atlas. (Universidade de Sevilha) A por meio do projeto WOMAM
(GA 891776), financiado pela Comissão Europeia.
274
Figura 1 – (1) Localização da Quinta dos Poços na Península Ibérica e na C.M.P. 1:25000 fl. 594; (2) Perfis topográficos da área
de implantação do sítio (a amarelo a amplitude de visibilidade); (3) Vista aérea do local da necrópole; (4) Plantas dos sepulcros.
276
Figura 3 – (1) Planta e perfil do Sepulcro 1; (2) Aspecto da escavação do Sepulcro 1; (3) Deposições de materiais na base do
Sepulcro 1 e primeira deposição de ossos humanos (redução) que forneceu a datação SUERC-108445 – 4345±25BP 3021-2901
cal 2σ.
278
Figura 5 – Conjuntos artefactuais registados nos Sepulcros 2 e 3. 1-5 e 13-14 geométricos em sílex; 4. Lasca de sílex; 5 e 23 lamelas
de sílex 6 fragmento de pulseira em concha de Glycymeris; 7-12 e 19-22 enxós e machados de pedra polida; 24 conta de colar;
25 concha de Pecten maximus.
280
Figura 7 – Conjunto artefactual recolhido no Sepulcro 1. 1-14 recipientes cerâmicos; alfinete em osso; 16-22 contas de colar em
xisto; 23-30 enxós e machados de pedra polida.
282
Figura 9 – A. Datações para os Sepulcros 1, 2 e 3 da Quinta dos Poços. B. Datações dos Sepulcros 2 e 3 da Quinta dos Poços
(vermelho) no contexto das datações das necrópoles de hipogeus alentejanos do Neolítico Médio: VB1 – Vale Barrancas, BVA –
Barranco do Vale do Alcaide, QA – Quinta da Abóbada, SC – Sobreira de Cima, MA – Mina das Azenhas, OA2 – Outeiro Alto 2,
QP – Quinta dos Poços. 1; C. Datações dos sepulcros da Quinta dos Poços (vermelho) no contexto das datações para o Neolítico
Médio – Calcolítico do Algarve (no A. do Goldra não se considera a data sobre carvões de grande desvio padrão): PE – Pedra
Escorregadia, QP – Quinta dos Poços, MC – Monte Canelas, HB – Hipogeu I da Barrada, CM – Castro Marim, AG – Algar do
Goldra, A7 – Alcalar 7, CB – Castelo Belinho.
284
QUINTA DOS POÇOS (LAGOA):
DADOS BIOLÓGICOS E PRÁTICAS
FUNERÁRIAS DOS SEPULCROS DA
PRÉ-HISTÓRIA RECENTE
Lucy Shaw Evangelista1, Eduarda Silva2, Sofia Nogueira3, António Carlos Valera4, Catarina Furtado5, Francisco Correia6
RESUMO
No âmbito da construção de um campo de golf pelo Grupo Pestana no município de Lagoa foram intervenciona-
das pela equipa da Era Arqueologia, três estruturas funerárias atribuíveis Neolítico Médio (meados do 4º milé-
nio a.C.) e um sepulcro datado do início do 3ª milénio a.C.. Neste artigo serão apresentados os dados relativos à
caracterização bioantropológica dos restos osteológicos humanos e aos rituais funerários identificados.
Palavras-chave: Bioantropologia; Neolítico;Calcolítico; Paleobiologia; Práticas Funerárias.
ABSTRACT
In the context of the construction of a golf course by the Pestana Group in the municipality of Lagoa, three fu-
nerary structures attributed to the Middle Neolithic period (around the mid-4th millennium BCE) and one tomb
dating from the early 3rd millennium BCE were excavated by the Era Archeology team. This article will present
data related to the bioanthropological characterization of the human osteological remains and the identified
funerary rituals.
Keywords: Bioanthropology; Neolithic; Chalcolithic; Paleobiology; Funerary Practices.
1. INTRODUÇÃO 2. METODOLOGIA
A intervenção levada a cabo na Quinta dos Poços 4 O estado de preservação do material e as diferentes
e 5, Lagoa, enquadrou-se no processo de escavação formas de deposição observadas foram as variáveis
arqueológica realizada neste local numa perspectiva consideradas na hora de avaliar a aplicabilidade dos
de minimização de impactes sobre o património ar- métodos de estudo. Na medida em que se tratam
queológico, decorrente do projecto de construção do de realidades funerárias de diferentes cronologias,
Campo de Golfe da Quinta de São Pedro, em Lagoa. contendo formas de deposição variadas, as meto-
Os trabalhos efetuados pela equipa da Era- Arqueo- dologias aplicadas foram adaptadas aos diferentes
logia, S.A., entre 14 de março e 9 de Junho de 2022 e contextos. Para todos os contextos de origem pré
revelaram a presença de vestígios que se enquadram ‑histórica aqui discutidos foi necessário apurar o nú-
na cronologia do período Neolítico Médio, Calcolíti- mero mínimo de indivíduos (NMI) seguindo as reco-
co e período Islâmico. mendações de Ubelaker (1974). Para tal, utilizou‑se
286
O primeiro contexto identificado [2702] cobria a A aplicação de diferentes metodologias em ossos
parte central da câmara e era composto maiorita- distintos para atestar a veracidade destes resultados
riamente por ossos longos e fragmentos de crânio. não foi possível por se tratar de uma amostra de os-
Estes encontravam-se dispersos, sem continuidade sos desarticulados. Nestes dois casos foi empregue
anatómica nem organização especifica. Foi indivi- uma única variável como fator discriminante.
dualizada uma conexão anatómica nesta realidade Em termos de análise morfológica não foi possível
[2703] constituída por crânio e parte de uma mandí- estimar a estatura de nenhum dos adultos presentes.
bula. A [2704] integrava um conjunto de vários ossos Um fémur esquerdo revela um índice platimérico de
longos e fragmentos de crânio dispostos de forma 144,6 ou seja, estenomérico.
mais ou menos organizada ao longo da parede Norte A má preservação da amostra também condicio-
da estrutura (Figura 1). nou a análise de caracteres discretos no esqueleto
A amostra é composta por 414 ossos coordenados craniano e pós-craniano. Apenas uma patela direi-
e 284 dentes, a que acresce um conjunto de vários ta revelou a presença de nó vastus. Nos dentes ape-
fragmentos de ossos indeterminados recolhidos por nas foi possível observar a presença de shoveling
quadricula. (margem mais elevada na parte lingual) em um in-
Do ponto de vista da representatividade óssea cisivo superior esquerdo, com um ponto de cisão
destaca‑se a presença de alguns ossos de pequena + = ASU 2.
dimensão, como mãos e pés, e uma presença relati- A análise paleopatológica do conjunto de ossos do
vamente equilibrada dos grandes ossos longos. Os Sepulcro 2 devolveu resultados muito reduzidos.
resultados estão necessariamente influenciados pelo A alteração da superfície óssea e o mau estado de
elevado estado de fragmentação da amostra que im- preservação dos mesmo terá contribuído para esta
pediu a identificação e lateralização de muitas esqui- situação. Assim apenas se pode registar patologia
rolas e fragmentos ósseos encontrados podendo ca- degenerativa articular em duas patelas, uma direita
muflar o número de indivíduos não‑adultos contidos e esquerda e que apresentavam artrose grau 2 na su-
na contabilização de indivíduos adultos. perfície posterior (Figura 5B).
A maioria dos ossos recuperados (94,2%) pertencem Foram analisados 148 dentes para a presença de hi-
a indivíduos adultos sendo que os restantes 5,8% a poplasias do esmalte dentário. Apenas um FDI 33
indivíduos não-adultos. apresentava três acidentes hipoplásicos, o que revela
O número mínimo estimado para os indivíduos recu- a sobrevivência a vários episódios de stress fisiológi-
perados no Sepulcro 2 é de 18, baseado na contagem co. Um FDI 36 foi perdido antemortem, com absor-
de FDI 36. Uma vez que se trata de um dente que já ção alveoloar quase completa. Foi possível analisar
se encontra totalmente formado por volta dos 8 anos um nível de desgaste médio de 2,9 em 202 dentes
de idade, foi necessário cruzar os dados da restante permanentes, afectando sobretudo a dentição pos-
análise dentária para chegar a um número de pelo terior inferior. A dentição decídua analisada (n=23)
menos cinco não-adultos neste conjunto. Assim, revela a presença de desgaste médio de 2,5. Apenas
foi possível aferir a presença de um indivíduo com foi observada a presença de tártaro num FDI 45 que
2 anos±8 meses de idade à morte, outro de 4 anos ± se revela de forma ligeira na superfície bucal. A res-
12 meses, outro com 8 anos ± 24 meses e outro com 9 tante dentição apresenta níveis de concreção ele-
anos ± 24 meses. Foi também atribuído a este grupo vado o que impede uma leitura mais alargada desta
um indivíduo de 15 anos ±36 meses. condição. Dos 260 dentes permanentes analisados,
Não foi possível estimar a idade de nenhum adulto apenas se identificou uma lesão cariogénica grave
dado que os ossos utilizados para essa avaliação não na face oclusal de um FDI 26. A dentição decídua
estavam presentes ou muito fragmentados. não revelou a presença de lesões cariogénicas.
Na análise de diagnose sexual foi apenas possível
definir a presença de pelo menos um indivíduo do 4.2. Sepulcro 3 (EN28)
sexo feminino, através da medição de um calcâneo O Sepulcro 3 apresentava uma arquitectura muito
esquerdo com o comprimento máximo de 71 mm, e similar à descrita para o Sepulcro 2. Trata-se de uma
de pelo menos dois indivíduos do sexo masculino, estrutura negativa, escavada na rocha, de forma
com talus direitos a apresentar valores ≥53,5 mm e ovalada e com medidas aproximadas de 2,20 m de
aproximadamente 50mm. comprimento e 2 m de largura. Os limites do monu-
288
FDI 28 uma lesão mesial ligeira. A dentição decídua A idade dos adultos não foi estimada dado que os os-
não revelou a presença de lesões cariogénicas. sos utilizados para essa avaliação não estão presen-
tes ou estão muito fragmentados para se conseguir
4.3. Sepultura 4 (EN59) aplicar qualquer método, sendo apenas possível a
A arquitetura funerária da necrópole (EN59) é carac- distinção entre adulto e não-adulto.
terizada por uma fossa simples circular escavada no Relativamente aos não-adultos, a análise dentária
caliço com cerca de 3,10m de comprimento, 2,90m permitiu verificar diferentes estádios de formação
de largura e 0,30m de profundidade. Esta estrutura dentária resultando num total de 2 indivíduos não-
apresentava no seu interior um nível de empedrado, -adultos, crianças: um com idade entre os 10-13 anos
[5902], composto por elementos de pequena e mé- e um com idade entre 5-7 anos (Smith, 1984; Ube-
dia dimensão, estando na zona central do sepulcro laker,1989; AlQahtani, 2010).
uma estruturação. A diagnose sexual apenas foi realizada através da ob-
Os ossos encontravam-se maioritariamente desar- servação morfológica da proeminência mentoriana
ticulados e dispersos em depósitos ou concentrados de uma mandíbula, com características masculinas.
em núcleos embora não seja claro se alguns destes As alterações observadas no periósteo assim como
diferentes núcleos são independentes entre si ou se, a elevada fragmentação das extremidades ósseas
em alguns casos, resultem de descontinuidades de condicionou a presença/ausência de caracteres dis-
um grande depósito de ossos. (Figura 3) cretos no esqueleto craniano e pós-craniano. No que
Os materiais arqueológicos registados documen- diz respeito aos caracteres dentários, foi possível ve-
tam a utilização funerária do monumento como um rificar em dois dentes, FDI 16 a presença de cúspide
todo, estando presentes fragmentos cerâmicos, ele- de Carabelli.
mentos da indústria lítica de pedra talhada (lâminas, A única evidência relacionada com um possível caso
pontas de setas, geométrico), elementos em pedra de patologia degenerativa não-articular encontrada
polida (enxós e machados) e elementos de adorno em todo o material recuperado do Sepulcro 4, é a
(contas de colar em calcário e pulseira de Glycyme- proeminência da linha áspera no fémur esquerdo de
ris glycymeris (ver Valera et al., neste volume). não-adulto o que poderá indicador um esforço repe-
A amostra é composta por 110 ossos e 76 dentes. A titivo continuo.
maioria dos ossos recuperados (81,81%) são de adul- No que respeita à patologia oral, observa-se que dos
to e 10,0% de indivíduos não-adultos, sendo que os 76 dentes recuperados no Sepulcro 4 apenas 2 dentes
restantes 8,18% são indeterminados. Estes resulta- (2,63%) apresentam hipoplasias do esmalte dentário,
dos estão relacionados com o facto de todos os ves- nomeadamente no FDI 32 com uma linha de esmalte
tígios ósseos recuperados apresentarem o periósteo e no FDI 23 com pelo menos 2 linhas. Dos restantes
muito alterado e fragilizado decorrentes de altera- dentes 11 (14,47%) não exibem hipoplasias e em 63
ções tafonómicas resultantes tanto da acumulação (82,89%) não é possível analisar a coroa dentária.
de água das chuvas como da presença de flora, o que A presença e/ou ausência de tártaro dentário tam-
dificultou a sua determinação. bém foi limitado pelas transformações tafonómicas
O número mínimo de indivíduos estimado para os que alteraram o esmalte dentário e consequente-
ossos desarticulados recolhidos no Sepulcro 4 é de mente o fragmentou. Assim dos 76 dentes presentes
10: 8 adultos e 2 não-adultos. na amostra, 53 (69,73%) não apresentam sinais de
Destaca-se a presença de ossos longos, como úme- tártaro e em 23 (30,26%) não foi possível observar a
ro, fémur e tíbia, em contrapartida com a notória au- superfície dentária.
sência de ossos de pequena dimensão, como mãos e O desgaste, apesar de não ser uma patologia oral por
pés. Não se observa uma disparidade na preservação si só, mas que acaba por estar diretamente relacio-
óssea, existindo um equilíbrio entre o lado direito e nada com a prevalência de patologias como cáries,
esquerdo. Estes resultados podem não corresponder foi contabilizado nesta amostra. Foi possível veri-
à realidade funerária do sepulcro, mas sim à amos- ficar que existem exemplares de todos os graus de
tra que se preservou até ao momento do processo desgaste, desde grau 0 (inclusos) até 7. O grau mais
de escavação arqueológica, dado que das 110 peças frequente é o 1 com 21 dentes (27,63%) onde o esmal-
ósseas recuperadas e identificadas, não foi possível te apresenta um aspeto de não-desgastado a polido,
determinar a lateralidade em 43 (39,09%). sem remoção das cúspides. Seguidamente registam-
290
vértebras (três cervicais e duas torácicas); três ulnas perior esquerdo apresenta um tamanho muito redu-
e dois rádios, assim como num ilíaco (Figura 4B). zido (apex fechado) em comparação com os outros
Relativamente à presença de patologia degenerativa incisivos recuperados.
não-articular, observou-se a presença de alterações
de entese (porosidade, crescimento de osso e ero- 5. DISCUSSÃO BREVE
são) em locais de inserção ou origem muscular em
três ossos, nomeadamente uma clavícula direita com A escavação arqueológica levada a cabo na Quinta
grau 1 e duas falanges proximais da mão com grau 2. dos Poços 4 e 5, Lagoa decorreu no âmbito da mini-
Também se registou uma espícula laminar na diáfi- mização de impactes sobre o património causados
se, porção anterior proximal de uma fíbula esquerda. pela construção de um campo de golfe. No âmbito
No Sepulcro 1 apenas seis dentes (1,89%) apresen- dos trabalhos, foram detectadas quatro estruturas
tam hipoplasias do esmalte dentário, dos quais três negativas circulares ou semi-circulares pré-históri-
são caninos (dois FDI 23 e um FDI 43) e três incisivos cas, contendo restos humanos.
(dois centrais – FD1 21 e FDI 31; e um lateral – FDI A análise de campo aos materiais associados às es-
22) com pelo menos duas linhas horizontais na coroa truturas funerárias pré-históricas, associadas às da-
(Figura 5A). tações de C14 obtidas, permitiu perceber que três
Relativamente à presença/ausência de tártaro, a delas (Sepultura 2, 3 e 4) foram utilizadas durante o
análise macroscópica permitiu verificar a presença Neolítico Médio sendo que a Sepultura 1, de maiores
de placa mineralizada em 10 dentes (3,15%), todos dimensões, terá tido uma utilização mais tardia, em
eles anteriores, com vestígios ligeiros em sete e gra- período Calcolítico.
ves em apenas três, fixados tanto na superfície bucal A escavação integral de três monumentos funerários
como lingual. A arcada inferior foi a mais afetada atribuíveis ao Neolítico Médio (Sepulcros 2,3 e 4) pôs
pela acumulação de depósito, ao apresentar nove a descoberto vários fragmentos de ossos desarticu-
dentes em resposta a um da arcada superior. lados que podiam ou não conter conexões anatómi-
Na amostra, apesar da elevada fragmentação do ma- cas sendo que os ossos encontrados não seguiam
terial osteológico com alvéolos dentários intactos, qualquer orientação ou posição específica.
foi possível determinar que pelo menos três alvéolos O espólio arqueológico identificado não estava di-
apresentam sinais de reabsorção, nomeadamente rectamente associado aos indivíduos mas sim espa-
duas mandíbulas com o FDI 48 e FDI 47, respetiva- lhado pelas câmaras. Apesar dos monumentos terem
mente, com vestígios de reabsorção completa e um sido perturbados, parte do seu interior manteve-se
maxilar com o FDI 15 com reabsorção parcial. intacto, sendo possível recuperar um vasto número
No que toca a lesões cariogénicas foi possível iden- de artefactos em cerâmica, pedra talhada e/ou poli-
tificá‑las em pelo menos 11 dentes (3,47%) dos quais da e objectos de adorno.
sete pertencem à arcada superior e quatro à arca- A tafonomia teve uma grande influência na preser-
da inferior. vação do material osteológico. No geral, as amos-
Foi possível verificar que existem exemplares de to- tras recuperadas apresentavam uma preservação
dos os graus de desgaste, desde grau 0 (inclusos) até mediana/fraca, sendo os ossos de menor dimensão,
7. O grau mais frequente é o 2 com 69 dentes (21,76%) como ossos da mão e pés, os que apresentam melhor
onde o esmalte apresenta um aspeto de desgastado preservação. As esquírolas de osso longo e de crânio
com a ligeira remoção das cúspides. Foi registado o impossibilitaram qualquer tipo de análise, condicio-
grau 0 em 58 dentes (18,29%) demostrando que não nando o estudo integral das amostras.
estavam, ainda, expostos na cavidade oral. O grau 3 No que concerne à análise paleodemográfica, ob-
foi registado em 53 (16,71%), o grau 4 em 50 dentes serva-se que a amostra datável do Neolítico Médio
(15,77%) e o grau 1, onde o esmalte apresenta um era constituída por um número mínimo de 35 indiví-
aspeto a polido, sem remoção das cúspides, em 48 duos, dos quais 27 adultos e 8 não-adultos. Do ponto
dentes (15,14%). de vista do perfil biológico apenas foi possível deter-
O único caracter discreto dentário registado é a va- minar que três adultos seriam do sexo masculino,
riável de “raízes hipotróficas dos incisivos centrais dois identificados no Sepulcro 2 e um no Sepulcro
superiores” (já identificado noutras amostras pré- 4, e um indivíduo do sexo feminino, identificado
-históricas), onde a raiz de um incisivo central su- no Sepulcro 4.
292
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U.E. Posição Ori. Posição Memb. Sup. Memb. Inf. Sexo Idade C4 CAL 2s
crânio
Decúbito Fletidos sobre Adulto
[2204] N-S NO Ausente Ind
ventral tórax
Decúbito Adulto
[2205] E-O Ausente Ausente Hiperfletidos Ind
ventral
Decúbito Fletidos ao lado Fletidos para 2460-2207
[2206] O-E Ausente Ind (45-50)
lateral direito do tórax a direita a.c
Decúbito Fletidos ao lado Fletidos para 2576-2465
[2207] O-E Ausente Ind Adulto
lateral direito do tórax a direita a.c
Decúbito Voltado para Fletidos sobre Hiperfletidos
[2208] NO-SE Masculino Adulto
lateral direito a direita tórax para a direita
Direito fletido
Decúbito Voltado para ao lado do
[2211] S-N Ausente Feminino Adulto
lateral direito a direita tórax, esquerdo
perturbado
294
Figura 1 – Aspecto Geral do Sepulcro 2 (EN 27) e pormenor de conexão anatómica [2703]. Quinta dos Poços 4 e 5 (Lagoa).
Figura 2 – Aspecto Geral do Sepulcro 3 (EN 28) e pormenores das conexões anatómicas [2804], [2803] e [2805]. Quinta dos
Poços 4 e 5 (Lagoa).
Figura 4 – Aspecto Geral da Sepultura 1 (EN22) e pormenores das inumações primárias [2204],[2205 ],[2206], [2207], [2208] e
[2211]; dos dois ossários [2213] 3 [2215] e da redução [2216]. Quinta dos Poços 4 e 5 (Lagoa).
296
Figura 5 – Evidências de (A) Hipoplasias dentárias num canino do Sepulcro 4 e (B) patologia degenerativa articular de grau 2 na
superfície posterior de uma patela direita do Sepulcro 2.
RESUMO
Partimos da informação tafonómica publicada sobre conjuntos arqueofaunísticos do Centro e Sul de Portugal
enquadráveis nos períodos Neolítico e Calcolítico. O intuito é realizar uma aproximação inicial às práticas de
processamento e consumo de macrofauna, pelo que focaremos as evidências em caprinos, suínos, cervídeos,
bovinos e equídeos. São também considerados os restos de macrofauna indeterminados taxonomicamente,
quando tivermos acesso a essa informação, porquanto ajudam a caracterizar as histórias tafonómicas. As variá-
veis analisadas são as marcas de corte, indicadores de fractura antrópica, alteração térmica por contacto com
fogo e fervura, marcas de dentes e indicadores associados. Ainda que a informação seja desigual, algumas con-
siderações preliminares sobre o tema são lançadas à discussão.
Palavras-chave: Tafonomia; Zooarqueologia; Pré-história Recente; Portugal.
ABSTRACT
We review published taphonomical information on Neolithic and Chalcolithic faunas from central and Southern
Portugal. The aim is to make an initial approach to macrofauna butchering and consumption practices, specifi-
cally in caprine, swine, cervids, bovine and equids. Taxonomically undetermined remains are also considered
when information is available, since it may help to characterise taphonomic stories. Variables under analysis
are the presence of cutmarks, anthropic breakage indicators, thermal alteration (fire, boiling), tooth marks and
related indicators. Although available information is unequal some preliminary considerations on these topics
are discussed.
Keywords: Taphonomy; Zooarchaeology; Late Prehistory; Portugal.
1. Uniarq, Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa; Departamento de História, Universidade de Évora; O Legado da Terra,
Cooperativa de Responsabilidade Limitada / [email protected]
300
marcas (n=27), nomeadamente incisões finas e su- 2022b). Correia (2015) indica uma predominância
perficiais e cortes profundos, menos comuns. As in- de corte fino em detrimento de cutelo no Castro da
cisões no esqueleto axial pós-craniano e apendicular Columbeira. As marcas foram relacionadas com a
foram relacionadas com esfolamento, desarticulação desarticulação e esfolamento, mas também seccio-
e descarnamento, este em ossos da região axial como namento de extremidades distais e descarne em
vértebras e costelas. Acrescentámos que a presença restos de mamíferos indeterminados, suínos, veado,
de marcas em costelas, caso seja na sua face ventral, bovinos e caprinos.
poderá dever-se a evisceração (Almeida, 2017 e refe- No Mercador, Moreno-García & Valera (2007) iden-
rências citadas). As marcas no fosso 4 (n=32) estão, tificam marcas de esfolamento em equídeo, veado e
sobretudo, em ossos longos de suíno associadas a bovino e possível descarnamento em equídeo. Diá-
descarnamento, mas nos veados estão dispersas pe- fises e vértebras de caprino e suíno têm marcas de
las partes anatómicas como no fosso 3 (Costa, 2013). descarnamento, enquanto que nos suínos, as marcas
As marcas são parcas e circunscritas a ossos apen- em vários atlas indiciam um padrão de remoção da
diculares, especialmente ossos longos de suínos. As cabeça. A presença de actividades como esfolamen-
marcas no fosso 1 (n=27) concentram-se em restos to, desmembramento e descarnamento é indicada
de bovino, como vértebras, ossos longos e das extre- para Vila Nova de São Pedro (Detry & alii, 2020),
midades. Denota-se variabilidade entre elementos e Castro de Chibanes (Pereira & alii, 2021; Cardoso &
taxa afectados no fosso 7, todavia, inferem-se activi- alii, 2021) e Barranco do Xacafre (Silva, 2018).
dades de esfolamento, evisceração, desarticulação e,
inclusive, seccionamento axial em caprinos, suínos, 3.2. Fracturação antrópica
cervídeos e bovinos (Almeida & Valera, 2021). Nas Cardoso & Valente (2021) apontam para a presença
deposições estruturadas da fossa 50 foram registadas de fracturas longitudinais e em espiral no Carras-
incisões e alguns golpes em tarsais e porções proxi- cal (<4%), relacionadas com obtenção de tutano,
mais de metápodes encontrados em articulação ana- sobretudo em restos de caprinos e bovinos. A baixa
tómica, consequentemente, contendo tecidos moles preservação das amostras do Abrigo de Pena d’Água
quando depositados. Aqui, cabe destacar as marcas levam Valente (1998) a sugerir uma intensa fractu-
de corte de remoção em chifres de cabra depositados ra antrópica. Verifica-se uma baixa preservação na
em opostos (Valera & alii, 2020). As marcas de corte Encosta de Sant’Ana e os elementos completos são,
são residuais nos contextos de cremação (fossas 16 e maioritariamente, de baixo conteúdo cárnico/me-
40) (Almeida & Valera, 2022). dular ou resistentes ao atrito diagenético (Almeida
A Espargueira/Serra das Éguas tem incisões (n=47), & alii, 2017). Os planos de fractura sugerem fractu-
golpes (n=9) e serrados (n=2) em suínos, caprinos, ra em estado fresco e/ou pós-fervura, registando-
cervídeos, bovinos e indeterminados de >20kg (Al- -se indicadores de fractura antrópica (estigmas, co-
meida, 2017). Todas as partes anatómicas têm mar- nes) em animais de 20-300 kg. Uma fragmentação
cas, em especial os ossos longos e costelas. Ainda que que mascara a fracturação foi registada também na
associadas a esfolamento, evisceração, desmembra- Gruta de Nª Sª das Lapas (Almeida, 2017), mas com
mento e desarticulação, o descarnamento seria im- indicadores antrópicos variados (impactos, cones,
portante, como sugere a frequência de marcas em contra-golpes, estigmas) em bovinos e indetermina-
porções diafisárias. Na amostra do Neolítico final dos de >20 kg. Na camada C da Gruta do Cadaval,
do Penedo do Lexim indica-se a presença de marcas as delineações longitudinais e transversais em res-
de corte finas e profundas (Moreno-García & Sousa tos de >20 kg, ângulos rectos e mistos, e superfícies
2015a). Na Figura 6, é visível uma maior prevalência irregulares foram relacionadas com fractura pós-fer-
em bovinos que suínos e caprinos. Quanto ao Calco- vura, tendo-se identificado contra-golpes, abrasão e
lítico, conforme o Quadro 6, estão presentes sobre- estigmas em restos de vaca, veado, caprino e mamí-
tudo em caprinos e suínos (Moreno-García & Sousa feros de 20-300 kg (Almeida, 2017).
2015b). No conjunto da Ota, infere-se a presença das Na amostra neolítica dos Perdigões, Costa (2018) re-
diversas etapas de processamento, destacando-se as porta fracturas em espiral (23%) e valores elevados
marcas de tipo incisão (n=116) comparativamente de percussão (9%). As amostras calcolíticas ana-
a golpes e serrados, com valores similares em res- lisadas por Costa (2013) têm fracturas em espiral/
tos indeterminados e identificados (Almeida & alii, helicoidais e alguns impactos, sobretudo em ossos
302
metade dos quais de mamíferos de 20-100 kg. Na tão são residuais e associadas a um carnívoro, prova-
queima, destaca-se a carbonização em vários outros velmente canídeo (Moreno-García & Sousa, 2015b).
conjuntos (Correia, 2015; Silva, 2018; Pereira & alii, Na Ota registam-se mordiscos, perfurações e con-
2017; Moreno-García & Valera, 2007; Detry & alii, sumo gradual, mas também bordos crenulados, di-
2020; Antunes, 1987; Almeida & alii, 2021). gestão, sulcos, entre outros, sobretudo em suínos,
caprinos e restos de 20-100 kg, destacando-se o es-
3.4. Consumo queleto apendicular (Almeida & alii, 2022b). Estes
Indicadores de consumo foram identificados na En- indicadores foram associados a um grande canídeo,
costa de Sant’Ana (Almeida & alii, 2017) e Gruta de com algumas marcas de menores dimensões e mais
Nª Sª das Lapas (Almeida, 2017). Nesta, apesar de superficiais em animais de menor porte eventual-
inexpressivos quantitativamente, englobam marcas mente devidas a acção antrópica. Mordeduras asso-
de dentes (mordiscos, depressão, sulcos, furrowing) ciadas a canídeos são comuns em outros conjuntos
e restos digeridos, tendo-se identificado sulcos de (Correia, 2015; Detry & alii, 2020; Cardoso & Va-
suíno. Esta variabilidade nos indicadores de consu- lente, 2021). No Mercador, Moreno-García & Valera
mo é ainda maior na camada C da Gruta do Cadaval, (2017) identificaram marcas em porções proximais e
prevalente em restos de caprinos, especialmente no distais de ossos de veado, bovino, equídeo e suíno,
esqueleto apendicular, tendo sido associados a um com destaque para a afectação de restos de caprinos.
grande canídeo sem descartar certa acção antrópica Em São Pedro, Davis e Mataloto (2012) publicam
(Almeida, 2017). nove ossos parcialmente digeridos, associados pelos
Indicadores vestigiais foram publicados para a fossa autores a canídeo, tratando-se apenas de ossos das
50 (Valera & alii, 2020), 16 e 40 (Almeida & Valera, extremidades distais (falanges, astrágalos, calcâ-
2022), não se mencionando a sua existência noutros neos), quase unicamente de suíno e veado.
contextos dos Perdigões (Costa, 2013, 2018). Algu-
mas marcas comparecem em restos indetermina- 4. DEFINITELY NOT ALL AT ONCE:
dos de 20-100 kg, suíno, veado e bovino do fosso 7 IDENTIFICAÇÕES, AUSÊNCIAS
que, não descartando por completo outros agentes, E MUITAS DÚVIDAS
parecem dever-se a um grande canídeo (Almeida &
Valera, 2021). Os materiais do “cairn 1”, interpreta- No que respeita às marcas de corte, quando a infor-
do como um evento de comensalidade, têm algumas mação é apresentada, denota-se, como esperado,
marcas de corte, percussão e de dentes; apesar da uma maior abundância de marcas finas (=incisões),
sua “expressão muito reduzida”, Cabaço (2017, p. com as marcas consideradas profundas ou de cutelo
29) indicam existirem marcas de dentes antrópicas. (=golpes) a serem mais reduzidas. Existe a possibi-
Cardoso e Detry (2001/2002, pp. 150-151) sugerem lidade de entre as mesmas encontrarem-se alguns
que as marcas de carnívoros de Leceia, tanto roídos serrados, o mesmo sendo mais difícil de sugerir para
intensos como outros mais dispersos, relacionam- os raspados que, pelas suas características, são nor-
-se com canídeos. Estas ocorrem de forma repetida malmente inconspícuos. Grosso modo, as diversas
com bordos boleados por possível acção mecânica etapas de processamento são registadas nestes sí-
ou química. Os indicadores de consumo são varia- tios, destacando-se o desmembramento/desarticu-
dos na Espargueira/Serra das Éguas, afectando es- lação, esfolamento e descarnamento. Actividades
pecialmente os restos de 20-100 kg, caprinos, suínos como a evisceração raramente são mencionadas.
e bovinos (Almeida, 2017). Esta variabilidade, suas Referem-se em alguns casos marcas de corte de ca-
características e dimensões de mordiscos e depres- rácter não-utilitário ou tecnológico, destacando-se
sões apontam para o acesso secundário de um gran- marcas associadas a uma componente de deposi-
de canídeo, ainda que não se possa descartar suínos ção estruturada de chifres de cabra na fossa 50 dos
e humanos. Moreno-García & Sousa (2015a) indicam Perdigões e de remoção de hastes de cervídeos em
a existência de marcas de dentes de carnívoros no vários contextos.
conjunto do Neolítico final do Penedo do Lexim que, A ausência de marcas e presença de conexões anató-
conforme a Figura 6, são proporcionalmente mais micas em alguns contextos podem dever-se à depo-
comuns em bovinos (20%) que nos caprinos e suí- sição de porções com carne (Liesau & Blasco, 2006).
nos. Durante o Calcolítico, marcas de dentes e diges- Na fossa 13 de Monte das Cabeceiras 2, interpretado
304
a fractura depois de alteração térmica apresenta pa- 2021). Quanto ao consumo, apenas pontualmente
drões que, mesmo não atingindo os da fragmenta- se sugere a existência de marcas de dentes antró-
ção, acercam-se a estes. Na Espargueira/Serra das picas ou por suínos (Almeida, 2017). Estes, apesar
Éguas, os ângulos oblíquos são reduzidos compa- de existirem alguns estudos, não estão plenamen-
rativamente aos rectos e mistos, mas as superfícies te caracterizados. A ausência de sulcos associáveis
suaves mantêm-se (Figura 2). Parece tratar-se de a suínos tem servido para descartar a sua (grande)
um caso com fractura em fresco e pós-fervura se- influência em diversas amostras, enquanto certa
guido de fragmentação, como indiciam as delinea- agência antrópica, entenda-se marcas de dentes, é
ções transversais e parte das longitudinais, alguns mencionada (e.g., Almeida, 2017; Almeida & Valera,
ângulos rectos e mistos e superfícies irregulares. 2021). Grosso modo, em fases nas quais os suínos são
A fragmentação parece mais relevante na Ota como tão relevantes como a Pré-História recente, não nos
aponta a ligeira subida nas delineações transversais parece descabido que parte da destruição das super-
e, sobretudo, as superfícies irregulares. O fosso 7 fícies ósseas se deva a estes, apesar do “culpado” ser
dos Perdigões tem valores intermédios, inferindo-se invariavelmente o expectável grande canídeo.
fractura em fresco e/ou pós-fervura e uma compo- Os conjuntos com mais dados demonstram sobrepo-
nente de fragmentação. sições nas dimensões de amostras arqueológicas e
Nas alterações térmicas denota‑se um padrão de actualistas (Figura 3). Em tecido canceloso, destaca-
identificação de restos queimados que, salvo raras ex- -se a maior dimensão de marcas em animais de di-
cepções associadas a comportamentos específicos, ferentes portes do fosso 7 dos Perdigões, inclusive,
comparecem carbonizados e com graus inferiores de com maior similaridade com amostras por suínos.
dano. A queima (Stiner & alii, 1995), re‑exposição e Em tecido cortical, normalmente considerado mais
remobilização de restos aumenta a fragmentação. informativo, denota-se maior similaridade entre
Práticas culinárias do tipo churrasco normalmente conjuntos como a Gruta do Cadaval e Espargueira/
não necessitam de um grande processamento, pelo Serra das Éguas e grandes canídeos; a Ota tem uma
que ossos queimados não têm que ser abundantes tendência para uma maior dimensão, acercando-se
mesmo quando é o processamento principal (Kent, aos suínos. Os dados métricos não descartam por
1993). Destacam‑se os valores de 71% do “cairn 1” completo certa acção antrópica, ainda que os restan-
dos Perdigões, onde quase metade destes restos es- tes indicadores destes conjuntos sugiram que a mes-
tavam apenas levemente queimados (Cabaço, 2017) ma é reduzida face ao principal agente modificador.
e, como tal, relacionados com práticas culinárias.
Subsiste o problema da fervura em conjuntos onde a 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
priori a mesma estaria presente. Apesar das conheci-
das dificuldades em reconhecer fervura em registos É apresentado um “estado da arte” sobre os padrões
arqueológicos (Almeida, 2017 e referências citadas), de consumo e processamento de macrofaunas no
esta foi sugerida para alguns conjuntos. Parece‑nos centro e sul de Portugal, com o intuito de compreen-
interessante que a partição de porções anatómicas der possíveis tendências, semelhanças e ausências,
em pedaços mais manejáveis ou adequados para e inferir acerca da formação de alguns destes con-
caber em recipientes cerâmicos seja indicada como textos enquanto marcos polimodais. Não se preten-
uma possibilidade em vários destes estudos. Efec- dia, até por espaço editorial, realizar uma exaustiva
tivamente, nos casos em que a fervura é sugerida, apresentação de resultados e variáveis passíveis de
denota‑se uma maior prevalência de restos indeter- influenciar frequências de determinado indicador.
minados, sobretudo de ossos longos indeterminados As marcas de corte são um dos indicadores comum-
taxonomicamente, intensamente processados. mente referidos, a par da fractura antropogénica
Esta prática pode reduzir o interesse de carnívoros (impactos e fracturas helicoidais). Mesmo não com-
pelos restos, o que poderia parcialmente explicar parecendo em grande número, permitem identificar
baixos valores de marcas de dentes em alguns casos. as diversas etapas de esquartejamento das carcaças,
O despojo de restos de forma que previna o seu aces- a aquisição de tutano e/ou segmentação devido ao
so a carnívoros (Russell, 2012) é também importan- uso de recipientes. Nas alterações térmicas, a pre-
te e, em alguns casos, pode sugerir-se quando se dá sença de queima é usualmente referida – sobretudo
uma ausência de meteorização (e.g., Almeida & alii, carbonização, ficando geralmente a dúvida quanto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais atra- ANDRÉS, Miriam; GIDNA, Agness O.; YRAVEDRA, José;
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[17] Moinho de Valadares NF Valente, 2013
[18] Ota CAL Almeida & alii, 2022b
[19] Castro da Columbeira CAL Correia, 2015
[20] Castro de Chibanes CAL Pereira & alii, 2017; Cardoso & alii, 2021
[21] Castro do Zambujal CAL Driesch & Boessneck, 1976
[22] Monte das Cabeceiras 2 CAL Almeida & alii, 2021
[23] Alto de Brinches 3 CAL Delicado & alii, 2017
[24] Porto Torrão CAL Arnaud, 1993; Pereira 2016
[25] Mercador CAL Moreno-García & Valera, 2007; Moreno-García, 2013
[26] Vila Nova de São Pedro CAL Detry & alii, 2020
[27] São Pedro CAL Davis & Mataloto, 2012
[28] Monte da Tumba CAL Antunes, 1987
Tabela 1 – Sítios em análise em correspondência com a Figura 1. As amostras com NISP/PoSACs* >500 encontram-se assinaladas
a negrito. Legenda: NA = Neolítico antigo, NM = Neolítico médio, NF = Neolítico final, CAL = Calcolítico.
310
Figura 2 – Histogramas com abundâncias relativas de morfologias de planos de fractura para macrofauna, conforme Villa e
Mahieu (1991).
Figura 3 – Comparação (média e IC 95%) de resultados obtidos para os eixos máximos (comprimento) e mínimo (largura) de
mordiscos/depressões em amostras experimentais (cinzento) e amostras arqueológicas (laranja): *Andrés & alii, 2012; “Saladié,
2009; /Saladié & alii, 2013, )Delaney-Rivera & alii, 2009.
RESUMO
As intervenções arqueológicas realizadas no sítio da Foz do Medal revelaram lareiras, buracos de poste e, prin-
cipalmente, fossas datadas de diferentes momentos do Mesolítico e do Bronze Médio, onde foram recolhidos
macrorrestos vegetais. O seu estudo sugere que as comunidades humanas que frequentaram o local no Mesolí-
tico e na Idade do Bronze movimentaram-se em paisagens bastante distintas, evidenciando-se uma crescente
antropização na fase mais recente.
Efetivamente, os dados antracológicos demonstram que durante o Mesolítico foram exploradas formações ar-
bóreas diversas, enquanto no Bronze Médio os táxones arbustivos surgem recorrentemente, indiciando uma
marcante ação humana na paisagem. Esta ideia é reforçada pela identificação de vestígios carpológicos de dife-
rentes cultivos, sendo provável que este sítio se encontrasse nas proximidades dos campos agrícolas.
Palavras-chave: Pré-história; Arqueobotânica; Baixo Sabor; Paisagem; Agricultura.
ABSTRACT
The archaeological interventions carried out at Foz do Medal revealed several features such as hearths, post-
holes and, mainly, pits dating from different periods of the Mesolithic and Middle Bronze Age. During archaeo-
logical excavations, plant macro-remains were collected and their study suggests human communities that vis-
ited the site in these periods experienced quite different landscapes, as evidences of human pressure are clear
in the most recent phase.
Effectively, data from wood charcoal shows that during the Mesolithic different woodlands were exploited,
while in the Bronze Age shrubs were used recurrently, indicating a marked human action in the landscape. This
idea is reinforced by the identification of different crops, as this site was likely close to agricultural fields during
the Bronze Age.
Keywords: Pre-history; Archaeobotany; Lower Sabor; Landscape; Agriculture.
1. CIBIO-BIOPOLIS (Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, InBIO Laboratório Associado) / Centro de
Estudos Interdisciplinares, Universidade de Coimbra / Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa /Museu de História Natu-
ral e da Ciência da Universidade do Porto / [email protected]
314
a estas ocupações surgem entalhes, peças retocas maior parte das amostras foi recuperada em quatro
e denticulados. fossas de diferentes formatos da subfase VIb e na
Às fases da Idade do Bronze estão associadas 12 fos- Sond. 19. Foram igualmente amostradas duas fos-
sas. As restantes fossas não foram ainda adscritas a sas da Área Central, uma da subfase VIb e outra da
qualquer fase. Acrescentam-se cinco estruturas de VIa (Tabela 1). Esta última foi um dos dois únicos
combustão em covacho, escavadas nos depósitos contextos amostrados adscritos a este momento.
fluviais e duas estruturas de cariz indeterminado. Acrescenta-se ainda duas estruturas de combustão
Quatro das fossas da Idade do Bronze continham da Área Central. O depósito aluvionar [28000] é de
enterramentos humanos (Gaspar et al., 2014). As cronologia incerta, mas o seu conteúdo carpológico
restantes seis foram amostradas e apresentavam es- parece apontar para a Idade do Bronze (vide infra).
cassos macrorrestos vegetais (vide infra). As poucas
cerâmicas decoradas associadas apresentam moti- 3.2. Métodos laboratoriais
vos Proto-Cogotas e Cogotas I. Também as datações As amostras sedimentares foram processadas por
de radiocarbono obtidas sugerem uma cronologia do flutuação manual com decantação, com recurso a
Bronze Médio. Uma leitura, eventualmente simplis- crivos com malha de 0,5 mm. A fração leve resultan-
ta, das mesmas parece sugerir que o espaço terá sido te foi triada com recurso a uma lupa binocular, de
primeiramente utilizado para funções funerárias, no forma a separar frutos e sementes. Estes foram iden-
segundo quartel do II milénio a.C. e, com funções tificados por comparação com atlas morfológicos
domésticas e/ou agrícolas (ver discussão abaixo) no (e.g. Anderberg, 1994) e com auxílio das coleções de
terceiro quartel. Devemos ter em conta, porém, que referência do CIBIO e do Herbário da Universidade
estes espaços de fossas da Idade do Bronze, muito do Porto (PO).
comuns em diferentes regiões ibéricas, seriam lo- O estudo antracológico incidiu sobre fragmentos de
cais de visitação recorrente, pelo que na impossibili- madeira com dimensões superiores a 2 mm. Estes fo-
dade de datar todos os contextos estudados, esta in- ram seccionados manualmente de forma a obter as
terpretação funcional bipartida é uma hipótese que três secções de diagnóstico, que foram depois obser-
carece de confirmação. vadas ao microscópio ótico de luz refletida. O diag-
nóstico taxonómico foi realizado com auxílio de atlas
3. MATERIAIS E MÉTODOS anatómicos de madeira (e.g. Schweingruber, 1990).
316
tos surgem, porém, como cf. Triticeae frag. disfor- durabilidade, podendo levar à recuperação de alguns
mes, pois não podemos excluir a hipótese de alguns carvões no fundo do buraco de poste. Em ambos os
pertencerem a outros táxones. casos, seria expectável que só fosse identificada ma-
As restantes fossas e dois depósitos dispersos forne- deira de uma espécie. Tal é o que acontece nos três
ceram ainda menos vestígios carpológicos, apresen- buracos de poste mesolíticos amostrados, onde só
tando uma composição semelhante a F55, com pou- foi recuperada madeira de Quercus sp. Não se exclui
cas exceções. Na fossa F57 foi identificado um grão a hipótese de esta ter pertencido aos postes, mas a
de Hordeum vulgare, um aquénio de Rumex tipo aceto- verdade é que existem outros contextos com carvões
sa e no depósito [28000] foi encontrado um segundo de uma só espécie neste sítio (Tabelas 2 e 3).
grão de Hordeum vulgare, assim como um aquénio de No que se refere a fossas de diferentes morfolo-
Rubus sp. e várias sementes de Papaver somniferum. gias, ainda que seja frequente a sua interpretação
como locais de armazenagem, seja de comunidades
5. DISCUSSÃO E CONCLUSÃO agrícolas, seja de grupos de caçadores-recolectores
(Cunnigham, 2011; Jiménez-Jáimez & Suárez-Padi-
5.1. Condicionantes à interpretação dos conjun- lla, 2020), este tipo de estrutura poderia ter várias
tos arqueobotânicos funções, avançando-se, entre outros, o seu uso como
A maioria dos vestígios arqueobotânicos da Foz do armadilhas de caça, áreas de combustão, sepulturas,
Medal foi recuperada em estruturas negativas, como lixeiras e até como espaços ritualizados (Garrow,
fossas e buracos de poste, e depósitos dispersos pelo 2015; Martín-Seijo et al., 2017a). Por outro lado, a
sítio. As deposições primárias são raras, restringin- abertura de fossas de armazenagem eficazes, segue
do-se a uma lareira mesolítica (Fase Vb) e duas do determinados princípios (Jiménez-Jáimez & Suárez-
Bronze Médio (Fase VI), que forneceram pouco car- -Padilla, 2020) que não se verificam no terraço fluvial
vão. Na lareira mesolítica Quercus sp. perenifólia foi em questão. Aqui, os sedimentos arenosos, permeá-
o principal combustível, contando-se um carvão de veis e próximos do rio, dificultariam a preservação
Fraxinus sp. e uma semente de Fabaceae. Uma das de alimentos, pelo menos a médio e longo prazo.
lareiras mais recentes forneceu unicamente carvão As fossas na Foz do Medal, abundantes tanto nos ní-
de arbustos (Erica e Fabaceae) e a última dois car- veis mesolíticos como da Idade do Bronze, poderão,
vões de Quercus sp. A escassez de madeira nestas por isso, ter cumprido diferentes funções. Infeliz-
estruturas poderá eventualmente resultar da limpe- mente, com exceção das fossas com uso funerário,
za quotidiana das mesmas, necessária para que se da Fase VIa, não temos qualquer base material que
mantenham funcionais, mas também de eventuais permita aferir a função destas estruturas. Acresce
processos pós-deposicionais. que a mesma fossa poderá ter tido usos distintos
Ainda que a consideração como combustível destes ao longo da sua vida útil e, no final, os vestígios an-
vestígios recuperados em lareiras seja evidente, a tracológico e carpológicos aí recuperados poderão
interpretação de madeiras, frutos e sementes carbo- não ter qualquer conexão com o seu uso primordial.
nizadas encontradas nas estruturas negativas exige Efetivamente, estudos experimentais e arqueobo-
cautelas. Este tema tem sido alvo de debate, inclu- tânicos (e.g. Reynolds, 1994) demonstraram que as
sive no âmbito da investigação realizada no vale do estruturas negativas, como os buracos de poste e as
Sabor (Jesus et al., 2020) e em outras jazidas no no- fossas, são armadilhas sedimentares que acumulam
roeste peninsular (Martín-Seijo et al., 2017a). No que resíduos de atividades quotidianas que decorrem na
concerne aos buracos de poste, para que a madeira aí sua proximidade, possivelmente em diferentes mo-
recuperada pertencesse efetivamente ao poste, este mentos, o que torna a sua interpretação difícil. Neste
teria de se ter carbonizado em algum momento, o sentido, a presença de vestígios vegetais poderá re-
que poderia deixar evidências arqueológicas claras, sultar, ou não, de ações humanas deliberadas.
nomeadamente níveis com abundantes macrorres- Em ambos os casos – buracos de poste e fossas – os
tos vegetais carbonizados. Tal não é o caso da Foz do vestígios arqueobotânicos serão, por isso, interpre-
Medal. Por outro lado, dados etnográficos e arqueo- tados como deposições secundárias ou terciárias
lógicos (e.g. Vaz et al., 2016) demonstram que algu- (apud Schiffer, 1987; La Motta & Schiffer, 1999).
mas comunidades queimavam intencionalmente a
ponta dos postes, para lhes conferir maior dureza e
318
Ramil-Rego et al., 1998; Muñoz Sobrino et al., 2004; mas também de leguminosas, como a ervilha e fava.
Mighall et al., 2023), variando a extensão e a crono- O amplo e muito diverso conjunto de infestantes,
logia, mas diversas sugerindo uma crescente desflo- bem como as abundantes inflorescências, deverão
restação durante a Idade do Bronze e o uso recorren- resultar do descarte dos resíduos de processamento
te do fogo como agente de modificação da paisagem. de cereais, provavelmente das etapas iniciais após a
colheita, tendo sido adiantada a hipótese de os cam-
5.3. Agricultura na Idade do Bronze pos agrícolas estarem localizados nas proximidades
A desflorestação referida poderá, pelo menos em (Jesus et al., 2020). O conjunto carpológico da Foz
parte, resultar da expansão das práticas agrícolas e do Medal é menos rico, dificultando a sua interpre-
pastoris, assim como de alterações demográficas tação, mas apresenta semelhanças com o do Terraço
que aumentaram a pressão sobre os territórios ex- das Laranjeiras. Acrescem as parecenças entre as
plorados. O estudo carpológico da Foz do Medal per- duas ocupações, tanto ao nível da localização, num
mitiu identificar alguns dos cultivos com os quais es- terraço fluvial, a poucos metros do rio, como ao nível
tas comunidades se alimentariam, nomeadamente a das estruturas.
cevada (Hordeum vulgare) e trigo de grão nu (Triti- Não se exclui a possibilidade de algumas das fossas
cum aestivum/durum/turgidum), incluindo trigo-mo- dos dois sítios terem sido usadas como estruturas
le (Triticum aestivum). A estes poderá acrescentar-se de armazenagem. Salienta-se, contudo, que os ves-
o a papoila (Papaver somniferum), eventualmente tígios carpológicos nelas encontrados dificilmente
cultivada, e a recoleção de amoras (Rubus sp.). A es- resultarão desse uso, correspondendo a deposições
cassez de contextos e de vestígios bem preservados, associadas ao seu abandono. Sítios com abundantes
assim como a raridade de infestantes, não permitem fossas são comuns na Idade do Bronze peninsular,
tecer grandes considerações acerca de práticas agrí- testemunhando o uso recorrente deste tipo de estru-
colas, mas estes são cultivos comuns no noroeste turas, certamente para diferentes fins, incluindo a
peninsular e noutras regiões ibéricas neste período armazenagem de alimentos.
(Tereso et al., 2016). É provável, assim, que as áreas onde o vale apresenta
A fossa F55 forneceu mais fragmentos de cereais que um perfil mais amplo, como os dois locais onde se lo-
as restantes, mas, ainda assim, são raros e encon- calizam a Foz do Medal e o Terraço das Laranjeiras,
tram-se muito deteriorados. Acresce que não se dis- fossem usadas preferencialmente para a agricultu-
tinguem dos vestígios recuperados no exterior das ra, seja pela existência de áreas planas, seja pela sua
estruturas, nos depósitos [28000] e [28012], ainda eventual fertilidade e maior exposição solar. Seriam,
que se encontrem em maior quantidade na fossa, o por isso mesmo, as áreas mais antropizadas, onde a
que poderá resultar unicamente de aí se verificarem pressão sobre os recursos vegetais endógenos seria
melhores condições de preservação face aos proces- mais sentida, promovendo a expansão de matos e
sos erosivos acima mencionados. campos de cultivo, em detrimento da floresta, justi-
É possível, por isso, que os vestígios do interior e exte- ficando as referidas diferenças nos conjuntos antra-
rior da fossa tenham uma origem comum e que a es- cológico da Idade do Bronze face aos do Mesolítico.
trutura negativa tenha atuado como armadilha sedi-
mentar, preservando, assim, vestígios de atividades AGRADECIMENTOS
que decorreram nas suas imediações. Considerando
os vestígios recuperados – grãos, inflorescências e in- J. Tereso foi financiado pela Fundação para a Ciência
festantes – as atividades em questão poderão relacio- e Tecnologia através de fundos nacionais. M.M.S. foi
nar-se com o processamento de cereais, à semelhan- financiada pelo Programa Beatriz Galindo “WILD-
ça do que se verificou no Terraço das Laranjeiras. Crafting wild plants resources during Bronze and
O Terraço das Laranjeiras localiza-se a jusante, a 16 Iron Age in the North of Iberia” (BG20/00076), Uni-
km da Foz do Medal, apresentando uma cronologia versidad de Cantabria.
semelhante (Jesus et al., 2020). Neste foi recupe-
rada maior quantidade de vestígios carpológicos,
sugerindo, como no sítio aqui estudado, um efetivo
predomínio do trigo de grão nu, hexaploide e tetra-
ploide, assim como a presença da cevada e papoila,
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Figura 1 – Localização da Foz do Medal (M.D. – Margem Direita) no Baixo Sabor (esquerda, direita em cima); área de escavação
(direita em baixo).
322
Estrutura/Depósito
Fase Área U.E. Nº de amostras
Código Tipo
IV-V S.19 28048 Depósito aluvionar 1
V Central 1203 F33 Fossa (perfil em U) 1
1077 F4 Fossa (perfil em U) 3
Central 1152 F22 Fossa (perfil em U) 1
1256 F50 Fossa (perfil globular) 1
Va 28003 Depósito 22
28031 Depósito 11
S.19
28045 Depósito 3
28046 Ind. Estrutura indeterminada 1
28007 3
F60 Fossa (perfil em U)
28023 1
28027 E7 Lareira 7
Vb S.19 28040 E8b Buraco de poste 1
28022 E11 Estrutura indeterminada 1
28028 E12 Buraco de poste 1
28002 Depósito 9
1151 2
Vc Central F14 Fossa (perfil em U)
1162 1
1050 E1 Lareira 3
VI Central
1126 E3 Lareira 1
Central 1205 F28 Fossa (perfil em câmpanula) 1
VIa
S.19 28012 Depósito 6
Central 1136 F16 Fossa (perfil cónico) 1
S.19 19004 (N.1) 1
19004 (N.2) 1
F55 Fossa (perfil cónico)
19004 (N.3) 1
19005 4
VIb
19013 F53 Fossa (perfil cónico) 3
28005 1
F56 Fossa (perfil em U)
28009 1
Fossa (forma
28001 F57 7
indeterminada)
V-VI S.19 28000 Depósito aluvionar 4
Estrutura Dep. F33 F4 F22 F50 Dep. Dep. Dep. Und. S. F60 E7 E8b E11 E12 Dep. F14 F14
28040
28046
28007
28048
28002
28003
28045
28028
28027
28022
28023
28031
1077
1203
1256
1162
1152
1151
U.E. V
Juniperus sp. 3 3
Pinus pinaster 1 6 1 8 16
Pinus pinea/
76 10 3 89
pinaster
Pinus sp. 60 27 11 98
Quercus sp.
1 20 18 6 68 15 6 41 5 1 2 14 1 1 199
perenifólia
Quercus suber 1 9 10
Rosaceae tipo
7 7
Maloideae
Dicotiledónea 2 3 31 8 3 1 10 1 59
Gimnospérmica 5 12 17
Undetermined 1 1 2
Nº Mínimo de
1 2 2 1 1 5 3 1 1 1 1 2 1 1 1 3 1 1 5
Espécies
324
Fase VI VIa VI b V-VI
Estrutura E1 E3 F28 Dep. F55 F53 F56 F57 Dep.
19004-2
19004-3
19004-1
28000
28009
19005
28005
28001
19013
28012
1050
1205
1126
U.E. VI
Acer sp. 2 2
Alnus sp. 2 2
Arbutus unedo 1 1 2
Cistus sp. 1 3 1 3 1 9
Erica arborea/
1 1 1 3 6
australis
Erica scoparia/
1 1
umbellata
Erica sp. 1 1 2
cf. Erica sp. 1 1
Fabaceae 1 2 3
Fraxinus sp. 2 1 1 1 6 1 13 25
Olea europaea 4 1 5
Pinus pinaster 1 1 2
Pinus pinea/pinaster 2 2
Pinus sp. 1 2 3
Quercus sp.
1 1
caducifólia
Quercus sp.
1 3 1 1 20 2 1 20 25 74
perenifólia
Quercus suber 1 1
Quercus sp. 1 15 3 2 2 2 2 1 5 18 51
Salix/Populus 1 1
Dicotiledónea 4 1 5 1 8 8 4 31
Gimnospérmica 2 2
Monocotiledónea 1 1
Undetermined 1 1 2
Total 7 2 1 27 8 4 7 47 17 2 5 50 52 229
Nº Mínimo de
2 1 1 4 4 2 4 9 4 1 2 5 4 13
Espécies
19004-2
19004-3
19004-1
28000
19005
28003
28001
28045
28027
19013
28012
VI
1136
U.S. Total
Cereais – grãos
Hordeum vulgare 1 1 1
Triticeae 1 1 1 3 3 6 15
Triticeae (frag.) 5 3 6 9 4 4 31
Triticeae (frag.
1 2 8 19 24 3 1 57
disformes)
cf. Triticeae (frag.
6 60 11 9 37 99 96 327 5 108 644
disformes)
Triticeae – escutelo 2 1 3
Triticum aestivum/
1 2 10 4 1 2 18
durum
Triticum sp. 1 2 3
Triticum sp. (frag.) 3 3
Poaceae – inflorescências
cf. Avena sp. (arista
4 1 1 6 12
helicoidal – frag.)
Triticeae – entrenó
2 11 13
de ráquis (frag.)
Triticum aestivum
1 1
– nó de ráquis
Triticum aestivum/
durum – nó de ráquis 3 1 1 9 3 14
(frag.)
Outros
Fabaceae (semente
1
– frag.)
Papaver somniferum
1 6 1
(semente)
Papaver sp. (semente
2
– frag.)
Poaceae (grão) 1 1 2
Raphanus
raphanistrum 1 1
(segmento de silíqua)
Rubus sp. (aquénio) 1
Rumex tipo acetosa
1 1
(aquénio)
Indeterminado 1 1
Indeterminado (frag.) 12 4 2 1 3 1 11 23
Monocotiledónea
1
– nó de caule
326
ANÁLISE ISOTÓPICA ESTÁVEL (δ13C) EM
SEDIMENTOS DE SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS
Virginia Lattao 1, Sara Garcês 2, Hugo Gomes 2, Maria Helena Henriques 3, Elena Marrocchino 4, Pierluigi Rosina 2,
Carmela Vaccaro 4
RESUMO
Nos últimos anos, a análise de isótopos leves em sedimentos tem sido utilizada para reconstruir variações climá-
ticas em contextos continentais. O objetivo deste estudo é verificar a utilidade desta metodologia analítica em
depósitos arqueológicos, especialmente na ausência de outros proxies. Foram analisados sedimentos de diferen-
tes contextos (fluviais, coluviais e de preenchimento de gruta), do pleistocénico e do holocénico, para ter melhor
controlo estratigráfico e cronológico foram recolhidos em locais com evidências arqueológicas. Os resultados
são comparados com os dados mais conhecidos dos isótopos marinhos.
Palavras-chave: Isótopos; Paleoambientes; Quaternário; Sedimentos.
ABSTRACT
In recent years, light isotope analysis in sediments has been used to reconstruct climatic variations in continen-
tal contexts. The aim of this study is to verify the usefulness of this analytical methodology in archaeological
deposits, especially in the absence of other proxies. Sediments from different contexts (fluvial, colluvial and
cave-fill), from the Pleistocene and Holocene, were analysed, in order to have better stratigraphic and chrono-
logical control, and were collected from sites with archaeological evidence. The results are compared with the
best-known marine isotope data.
Keywords: Isotopes, palaeoenvironments, Quaternary, Sediments.
1. Centro de Geociências, Universidade de Coimbra, Rua Silvio Lima, Pólo II, 3030-790 Coimbra, Portugal; Universidade de Coim-
bra (Pólo II), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Ciências da Terra e Centro de Geociências, Coimbra, Portugal /
[email protected]
2. Instituto Politécnico de Tomar, Estrada da Serra, 2300-313 Tomar, Portugal; Centro de Geociências, Universidade de Coimbra,
Rua Sílvio Lima, Pólo II, 3030-790 Coimbra, Portugal
3. Centro de Geociências, Universidade de Coimbra, Rua Sı´lvio’lvio Lima, Po’lo II, 3030-790 Coimbra, Portugal; Universidade de
Coimbra (Pólo II), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Ciências da Terra e Centro de Geociências, Coimbra,
Portugal.
4. Departamento de Ciências do Ambiente e da Prevenção, Universidade de Ferrara, via Saragat, 1, 44122 Ferrara, Itália.
328
num almofariz para obter um pó fino, facilitando médio de ±0,1‰ com base em análises repetidas
a preparação das soluções para a análise dos isóto- dos padrões mencionados.
pos estáveis. O trabalho de preparação e análise foi realizado no
Para a análise de espectrometria de massa de rácio Departamento de Física e Ciências da Terra da Uni-
isotópica com o equipamento Elementar Vario Mi- versidade de Ferrara.
cro Cube (EA-IRMS), foram preparadas soluções de A medição dos rácios isotópicos é normalmente ex-
amostra com os seguintes passos de modificação, pressa em partes por mil (‰). Os enriquecimentos
vaporização e purificação antes da análise: (Δ) representam o rácio entre isótopos pesados e le-
As amostras moídas foram colocadas em cápsulas ves em comparação com um rácio padrão. Para cal-
de estanho, que foram embrulhadas e pesadas. As cular o enriquecimento, o rácio isotópico padrão do
cápsulas, contendo entre 20 e 30 mg de amostra, elemento químico é subtraído do rácio encontrado
foram colocadas no autoamostrador Vario Micro na amostra analisada. O resultado é então dividido
Cube para combustão rápida. As amostras foram pelo rácio padrão, multiplicado por 1000 e expresso
oxidadas a temperaturas de até 1050°C, formando como ‰ (Kelai et al., 2019).
CO2 gasoso em um tubo de quartzo selado. Grãos Existem cinco isótopos estáveis utilizados neste do-
de óxido de cobre atuaram como catalisador, e gás mínio: Carbono Δ13C, Oxigénio Δ18O, Hidrogénio
O2 (pureza grau 6) purificado foi utilizado. O CO2 Δ2H, Enxofre Δ34S e Azoto Δ15N. Para este estudo
gasoso formado, transportado por gás He seco e pu- em particular, vamos investigar o isótopo de carbo-
rificado (pureza grau 5), passou por uma armadilha no δ13C. O carbono tem dois isótopos estáveis, δ12C
de água preenchida com Sicapent® para remover e δ13C, bem como um isótopo radioativo, 14C (West
qualquer umidade. As amostras vaporizadas e purifi- et. al., 2006).
cadas foram quantitativamente determinadas usan- Na natureza, o carbono existe sob a forma de carbono
do um detector de termocondutividade (TCD). Os orgânico ou de carbonatos, cada um com assinaturas
rácios isotópicos do carbono foram então medidas isotópicas distintas devido ao seu envolvimento em
usando o instrumento IRMS (ISOPRIME 100 IRMS) diferentes processos. Um processo fundamental que
no modo de fluxo contínuo. Para calibrar as massas envolve carbono orgânico é a fotossíntese. O dióxi-
isotópicas das amostras, massas isotópicas distintas do de carbono desempenha um papel importante
foram comparadas com as de um gás de referência na fotossíntese das plantas e classifica as plantas em
CO2 (pureza grau 5) purificado, que havia sido cali- três grupos principais com base nos seus processos
brado usando uma série de materiais de referência. fotossintéticos. A principal fonte de carbono para
Os materiais de referência foram calibrados em re- as plantas é o dióxido de carbono, que elas utilizam
lação aos padrões internacionais da IAEA, como cal- para criar moléculas orgânicas mais complexas por
cário JLs-1, folhas de pêssego NIST SRM1547, már- meio da fotossíntese. Os três principais grupos de
more Carrara (calibrado no Instituto de Geociências plantas são C3, C4 e CAM (por exemplo, cactos,
e Georecursos do Conselho Nacional de Pesquisas com metabolismo ácido crassuláceo). As plantas C3,
de Pisa) e sulfanilamida sintética fornecida pela Iso- como arroz, beterraba açucareira e a maioria das ár-
prime Ltd. Os rácios isotópicos foram recalculadas vores, utilizam o ciclo de Calvin para produzir seu fo-
como picos de massa pelo software Ion Vantage. tossintato. Elas representam mais de 90% de todas
A precisão da análise elementar foi estimada em as espécies de plantas. As demais plantas são predo-
aproximadamente 5% do valor medido absoluto, minantemente C4, incluindo culturas como milho e
determinada por análises padronizadas repetidas. cana-de-açúcar. O foco da discussão será em plantas
A exatidão foi estimada comparando-se os valores C3 e C4 (Zacháry, 2019; Reiffarth, et al., 2016).
de referência e medidos. A incerteza da análise au- A metodologia aplicada neste estudo envolve a cole-
mentou quando o conteúdo de carbono se aproxi- ta e análise de amostras de sedimentos de diferen-
mou do limite de detecção de 0,01 g/kg. tes formações. Os contextos escolhidos abrangem
Os resultados dos rácios isotópicos do carbono fo- depósitos fluviais, coluvionais e de enchimento de
ram expressos na notação padrão (δ), em partes por grutas, cada um com contextos estratigráficos e cro-
mil (‰), em relação ao padrão isotópico internacio- nológicos bem estabelecidos. A espectrometria de
nal Vienna Pee Dee Belemnite (V-PDB). Os valores massa é utilizada para medir a composição isotópi-
de δ13C foram caracterizados por um desvio padrão ca, especificamente focando no isótopo δ13C, que
330
no passado em contextos continentais. A utilização Virginia Lattao beneficia de uma Bolsa de Investiga
da espectrometria de massa permitiu a investiga- ção de Doutoramento do projecto (UI/BD/150848/
ção da geoquímica isotópica de diversos elementos 2021) FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia.
químicos, fornecendo conhecimentos sobre a idade Os autores gostariam de agradecer aos laboratórios
(cronologia), a origem (proveniência) e as condi- e aos seus respectivos técnicos que colaboraram no
ções climáticas dos contextos continentais em estu- projecto. Agradecemos aos laboratórios do Instituto
do. Esta abordagem analítica complementa outras Politécnico de Tomar (Portugal), da Universidade de
técnicas de datação e análise estratigráfica e sedi- Ferrara (Itália).
mentar, contribuindo para uma compreensão mais
abrangente e detalhada dos climas do passado e das BIBLIOGRAFIA
interações entre os seres humanos e o ambiente. A BERTO, Daniela; CALACE, N.; RAMPAZZO, F. & Sacco-
análise de isótopos estáveis em depósitos arqueo- mandi, F. (2018) – Isotopi: dalla teoria alla pratica. In Journal
lógicos representa, portanto, uma importante fer- of Chemical Information and Modeling.Istituto Superiore
ramenta para a investigação arqueológica e para a per la Protezione e la Ricerca Ambientale, I. ISPRA, Quader-
ni – Laboratorio 2/2018.
reconstrução da história ambiental e cultural.
Considerando que o estudo de isótopos em sedi- CALDEIRA, Ana Teresa; SCHIAVON, N.; MAURAN, G.;
mentos ainda está num estágio inicial, é importante SALVADOR, C.; ROSADO, T.; MIRÃO, J. & Candeias, A.
(2021) – On the biodiversity and biodeteriogenic activity of
observar que os valores de δ13C obtidos em todos os
microbial communities present in the hypogenic Environ-
contextos até agora analisados se alinham com as ment of the Escoural Cave, Alentejo, Portugal. Coatings,
informações estratigráficas reconhecidas (Duque 11(2), 209.
Espino, 2022; Caldeira et al., 2021; Ferreira, 2017;
CRUZ, Ana Rosa (2011) – A pré-história recente no vale do
Mauran, 2016; Cruz et al., 2015; Marín, 2012; Cruz, Baixo Zêzere: paisagens de transição: povoamento, tecnolo-
2011; Oosterbeek, 1994). gia e crono-estratigrafia da transição para o agro-pastoralis-
Os resultados são consistentes com o objetivo, ou mo no Centro de Portugal. Ceiphar.
seja, a reconstrução ambiental. CRUZ, Ana Rosa & BERRUTI, G. L. F. (2015) – A use-wear
No futuro, é nosso objetivo correlacionar os dados analysis of the knapped lithic grave goods from Gruta do
obtidos em contextos diferentes que incluem depó- Morgado Superior (Tomar, Portugal). Arqueologia Iberoa-
sitos fluviais (Ribeira da Ponta Pedra e Santa Cita, mericana, 7(28), pp. 81-94.
Portugal), coluvionais (Amoreira, Portugal) e de DUQUE ESPINO, David (2011) – Anthracology in the Caves
enchimento de grutas (Gruta do Escoural, Portugal of Fuentes de León (Badajoz, Extremadura, Spain): Notes
for the Characterization of the Plant Environment of the
e Cueva de Los Postes, Espanha), o outros com cro-
Neolithic Communities and Roman Period of the SW of the
nologias que remontam ao período pleistocénico e
Iberian Peninsula. Saguntum Extra, 11(11), pp. 175–176.
holocénico, com dados coletados de contextos seme-
FAURE, Gunter & MENSING, T. M. (2005) – Principles and
lhantes, a fim de garantir uma possível reconstrução
applications (p. 897). John Wiley & Sons, Inc.
paleoambiental de contextos que tem sido alvo de
FERREIRA, Cristiana Duarte (2017) – Dinâmicas ambien-
ocupação humana e obter um controle estratigráfico
tais e humanas durante o holocénico, no Vale do Tejo. Uni-
e cronológico adequado. Essa comparação nos ajuda-
versidade de Tras-os-Montes e Alto Douro (Portugal).
rá a entender se os depósitos de sedimentos em dife-
HOEFS, Jochen (2009) – Stable isotope geochemistry (Vol.
rentes ambientes produzem resultados comparáveis.
285). Berlin: Springer.
332
SOBRE A PRESENÇA DE SÍLEX NA PRAIA
DAS MAÇÃS (SINTRA)
Patrícia Jordão1, Nuno Pimentel2
RESUMO
O estudo de material silicioso recolhido à superfície no Outeiro das Mós (Praia das Maçãs) conduziu à descober-
ta, neste local, de sílex na Formação de Bica, até então não cartografada, e que assim constitui uma potencial
área-fonte de proveniência.
A caracterização petrográfica do sílex daquela unidade do Cenomaniano permitiu detalhar as microfácies an-
teriormente identificadas entre Torres Vedras e Lisboa, contribuindo para ampliar o referencial geológico sili-
cioso do Sector Central da Bacia Lusitânica. Por outro lado, verificou-se que esta matéria-prima poderá ter sido
alvo de extracção próxima, ficando por esclarecer o local e o processo da actividade.
Por último, confirmou-se que a atitude e a litologia das camadas calcárias condicionaram o plano de construção
e a arquitectura final da gruta artificial.
Palavras-chave: Sílex; Área-fonte; Cartografia; Petrografia; Geoarqueologia.
ABSTRACT
The study of siliceous material collected at the surface in Outeiro das Mós (Praia das Maçãs) led to the discovery
of flint from the local not mapped Bica Formation.
The petrographic characterisation of the flint from this Cenomanian unit allow us to detail the microfacies pre-
viously identified between Torres Vedras and Lisboa, contributing to broadening the siliceous geological refer-
ence of the Central Sector of the Lusitanian Basin. On the other hand, it was verified that this raw material may
have been extracted nearby, remaining unclear the location and process of the activity.
Finally, it was confirmed that the attitude and lithology of the limestone layers conditioned the construction
plan and the final architecture of the artificial cave.
Keywords: Flint; Source-area; Cartography; Petrography; Geoarchaeology.
1. UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa / Instituto Dom Luiz – Faculdade de Ciências da Universidade de
Lisboa / [email protected]
334
do topo da Câmara Ocidental da Praia das Maçãs, foi cos, rosados avermelhados e mais margosos no topo
efectuada prospecção para Sul e a cotas mais baixas, da unidade, onde ocorrem nódulos de sílex, e que
seguindo o sentido geral da inclinação das mesmas. alternam com margas amarelas, rosadas e esbran-
Foi assim encontrado o corte geológico do Outeiro quiçadas. As unidades mais margosas da base da
das Mós, detectando-se a presença de nódulos e ní- sucessão poderão corresponder com probabilidade
veis de sílex. ao topo da Formação de Caneças (Rey et al. 2006),
Foi feita a caracterização da litologia dos aflora- Albiano inferior-Cenomaniano médio.
mentos, atitude das camadas e recolhidas amostras No afloramento com sílex, agora identificado, a se-
de sílex (2) para observação microscópica em lâmi- quência carbonatada é constituída, da base para o
na delgada. topo, por: (1) calcários compactos, cremes claros,
Os afloramentos calcários de superfície foram loca- com cerca de 90-100 cm de espessura, intercala-
lizados com recurso a GPS (± 3m), em coordenadas dos por dois níveis tabulares de sílex com 2-5 cm de
geográficas WGS 84, cujos dados foram transpor- espessura; (2) fina camada de calcários margosos,
tados para ArcGIS, onde foram produzidos mapas amarelados, com 10 cm de espessura; (3) nova ca-
com base num MDT- RASTER_RES30. O trabalho mada de calcários compactos, fissurados, com uma
de campo envolveu ainda o registo fotográfico. espessura entre 75-80 cm, com a presença de nódu-
O sílex recolhido à superfície do terreno, em depó- los de sílex alongados (até 15 cm de comprimento)
sito no MASMO (Figura 3), foi observado macro- e na base, e sob formas esféricas (5-7 cm de diâmetro
mesoscopicamente, e do conjunto, cuja listagem se máximo) ao longo da camada (Figura 6).
apresenta (Tabela 1), foram retiradas amostras para A orientação geral das camadas é de N20ºW, 25ºNE,
observação em lâmina delgada (2). próxima mas não exactamente igual às camadas do
corte junto ao tholos, o que poderá resultar da in-
5. O SÍLEX DA PRAIA DAS MAÇÃS fluência das fracturas e falhas identificadas nesta
crista calcária.
5.1. Descrição dos afloramentos
A Câmara Ocidental da Praia das Maçãs foi esca- 5.2. Descrição das amostras
vada no substrato geológico, que hoje se observa As microfácies identificadas nas quatro amostras
em corte, fruto do abatimento parcial das camadas de sílex, recolhidas na Formação de Bica (A1 e A2)
do tecto. Estas fazem parte de uma sequência car- e à superfície do Outeiro das Mós (PM-2015-9 e PM-
bonatada constituída, de baixo para cima por: (1) 2015-10) apresentam estrutura criptocristalina, com
na base do tholos, um calcário margoso, com inter- silicificação incompleta, observando-se uma com-
calações argilosas, bastante friável, de cor amarela, ponente importante de CaCO3 (até 20%). A textura
com elevado grau de alteração e presença de fósseis é mudstone, com ocorrência de bioclastos preenchi-
de ostreídeos; (2) uma camada de calcário apinhoa- dos por quartzo macrocristalino, por vezes de forma
do, cinzento claro, com cerca de 60 cm de espes- incompleta (Figura 7-A2), ou com rebordo carbona-
sura; (3) no topo, um estrato de calcário compacto, tado, como por exemplo o fragmento de bivalve da
de grão fino, com uma espessura entre 110-150 cm, Figura 7-B2. Observam-se também fragmentos pe-
com muitas fracturas sub-verticais e microfractura- quenos de moscovite bastante alterada (Figura 7-A3
ção paralela à estratificação, apresentando sinais de e 7-B3).
carsificação avançada (Figura 4). Esta camada tem
uma orientação de N40Wº, 15ºNE é atravessada por 6. DISCUSSÃO
diversas fracturas e falhas, entre as quais foi possível
identificar duas famílias principais, ambas sub-ver- A região de Pero Pinheiro, concelho de Sintra, é co-
ticais, uma com uma orientação NNW-SSE e outra nhecida pelos seus calcários microcristalinos bio-
NE-SW a NNE-SSW. clásticos, com alguma recristalização, explorados
O afloramento de calcários mais compactos prolon- como matéria-prima ornamental pelo menos desde
ga-se para SW e foi identificado no topo da elevação o período romano, e intensivamente em época histó-
a uma cota entre os 40-4 5m (Figura 5A). Este peque- rica até à actualidade (Choffat 1950, Ramalho et al.
no retalho foi atribuído à Formação de Bica (Rey et 1993, Gaspar 2018). Estes calcários fazem parte da
al. 2006) (Figura 5B), de calcários compactos bran- Formação de Bica, do Cenomaniano superior, a qual
336
brandas, imediatamente abaixo do calcário compac- Por outro lado, a atribuição do sílex à Formação de
to, teria sido facilitada pelo desnível na bancada de Bica, do Cenomaniano final, permitiu detalhar as
calcário virada a NE e, provavelmente, pela fragili- microfácies anteriormente identificadas entre Tor-
dade das formações mesozóicas afectadas pelo con- res Vedras e Lisboa e ampliar o referencial geológi-
junto de falhas (Figura 10). co silicioso. Assim, as microfácies criptocristalinas
O monumento da Praia das Maçãs evidencia a es- características do sílex C3-Lx parecem estender-se
tratégia recorrente de aproveitar “pequenos esboços para NW, no entanto, acompanhadas por um empo-
naturais” para iniciar a escavação de uma gruta, à brecimento do conteúdo micropaleontológico, cuja
semelhança do principal grupo de grutas artificiais tendência se mantém para norte do Sector Central
estremenhas – Tipo 2 - associado, em termos de re- da Bacia Lusitânica.
levo, a encostas ou bancadas elevadas, preferencial- Por último, confirmou-se que a disposição (orien-
mente constituídas por rochas brandas. No caso da tação e inclinação) e a litologia contrastante das di-
Câmara Ocidental, existe uma manifesta irregulari- versas camadas calcárias, condicionaram o plano de
dade do conjunto sepulcral, nomeadamente no que construção do monumento e a arquitectura final da
respeita ao tecto da câmara, não abobadado, devido gruta artificial.
a constrangimentos do substrato geológico. Note-se
também que a existência de uma câmara com cor- AGRADECIMENTOS
redor (Tipo 3), ambos escavados na rocha branda, o
que torna a arquitectura deste sítio particular, justifi- O nosso agradecimento a Catarina Costeira e Eduar-
cada pela possança métrica das camadas margosas. do Porfírio (Câmara Municipal de Sintra) pela visita
ao sítio arqueológico, bem como pela cedência da
7. CONCLUSÕES cartografia de pormenor utilizada neste trabalho
(ortofotomapa e mapa hipsométrico).
A Praia das Maçãs é conhecida pela existência de um
conjunto de estruturas funerárias – gruta artificial e BIBLIOGRAFIA
tholos - atribuídas à Pré-História recente. Para além
ALVES, Carlos Matos (1964) – Estudo petrológico do maciço
do espólio proveniente de intervenções no monu- eruptivo de Sintra. Revista da Faculdade de Ciências da
mento, foram recolhidos à superfície materiais sili- Universidade de Lisboa. XII:2, pp. 124–289.
ciosos, entre 2000 e 2015, em depósito no MASMO,
ANDRADE, Marco; MATIAS, Henrique (2013) – Lithic raw
observados neste estudo. material procurement and consumption during the Late
A descoberta de um afloramento com sílex no Ou- Neolithic/Early Chalcolithic: the case of Casal dos Matos
teiro das Mós e a correlação da matéria-prima de and Cabeça Gorda 1 (Vila Nova de Ourém, Estremadura,
superfície com a fonte primária, permitiu sugerir a Portugal). Complutum. 24:1, pp. 91-111.
existência de outro tipo de ocupação, cuja relação BERTHOU, Pierre Yves (1973) – Le Cénomanien de l’Estré-
com o monumento funerário ainda não se encontra madure portugaise. Memórias dos Serviços Geológicos de Por-
esclarecida. tugal. 23, pp. 1-168.
No quadro da diversidade de ocupação junto de CALLAPEZ, Pedro (1998) – Estratigrafia e Paleobiologia
áreas-fonte de sílex da Estremadura, relacionada do Cenomaniano-Turoniano. O significado do eixo da
com o abastecimento em matéria-prima, este po- Nazaré-Leiria-Pombal.
deria ter sido um pequeno sítio de exploração com
CALLAPEZ, Pedro (2009) – Tectono-sedimentary and biotic
produção ocasional de artefactos (Andrade & Matias events on the Cenomanian and Lower Turonian of Nazaré
2013), ou um sítio de acesso directo a fontes de ma- (West Central Portugal). In RODRÍGUEZ, Gilbert, GAL-
téria-prima local, com produção não especializada, LASTEGUI, Jorge, BLANCO, Fombella & LLANEZA, J. Mar-
com um território de abastecimento local (Jordão tin, eds. – Nuevas Contribuciones al Margen Ibérica Atlântica
2009 Oviedo, pp. 117-120.
2022). Ainda que de momento não se consiga optar
por uma das duas hipóteses, ficou confirmada uma CARDOSO, João Luís; SOARES, António M. (1995) – Sobre
utilização de carácter não funerário no local. Será a cronologia absoluta das grutas artificiais da Estremadura
necessário aguardar por resultados de intervenções portuguesa. Al-Madan. 4, pp. 10-13.
futuras para o esclarecimento cabal da natureza da CHOFFAT, Paul (1950) – Géologie du Cenozoique du Portugal
ocupação e da eventual relação com a necrópole. (Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal).
338
Figura 1 – À esquerda, localização da Praia das Maçãs na foz da ribeira de Colares na plataforma litoral portuguesa; à direita,
mapa geológico do complexo ígneo de Sintra no contexto sedimentar circundante com indicação dos contactos e das principais
falhas (Terrinha et al. 2017).
Figura 2 – Localização do monumento da Praia das Maçãs e do perfil A-B (em cima). Perfil A-B com corte
geológico simplificado.
Figura 4 – A: Em cima, localização do afloramento carbonatados e das falhas identificadas. Em baixo, corte do substrato geoló-
gico junto à Câmara Ocidental, com indicação das principais camadas e falhas. À direita, coluna litoestratigráfica.
340
Figura 5 – A: Mapa hipsométrico com localização dos afloramentos da Formação de Bica; B: Formação de Bica na Península de
Lisboa, adaptado das Cartas Geológicas de Portugal 1/50000 CGP 34-A Sintra, 34-C Cascais, 34-D Lisboa e 34-B Loures.
Figura 6 – A: Afloramento calcário com sílex de Outeiro das Mós (Praia das Maçãs), com indicação das imagens de pormenor B
(B’) e C (C’). À direita, coluna litológica com indicação da presença de sílex.
342
Figura 8 – Principais microfácies siliciosas e síntese micropaleontológica esquemática do topo da Formação de Bica da área-
-fonte de Torres Vedras, Pero Pinheiro e Lisboa, sobre esboço paleogeográfico da margem ocidental portuguesa (adaptado de
Rey, 2006) (Jordão 2022): microfácies C3-PM, mudstone com associação de bivalves e foraminíferos (assinalado a vermelho).
Figura 10 – A: Conjunto de falhas que afecta as camadas geológicas junto ao monumento da Praia das Maçãs, onde se observa
a interrupção e consequente desnível da formação compacta cenomaniana, com indicação da falha B’, orientada NNW-SSE. B:
Parede B’ correspondente ao plano de falha NNW-SSE assinalado na Figura A.
344
LOST & FOUND. RESULTADOS DOS
TRABALHOS DE PROSPECÇÃO
ARQUEOLÓGICA REALIZADOS NO
VALE DO CARVALHAL DE ALJUBARROTA
(ALCOBAÇA, LEIRIA)
Cátia Delicado1, Leandro Borges2, João Monte3, Bárbara Espírito Santo4, Jorge Lopes5, Inês Sofia Silva6
RESUMO
Em Julho de 2022 foram efectuadas prospecções no vale do Carvalha de Aljubarrota (Alcobaça) com o propósito
de relocalizar as cavidades intervencionadas por Manuel Vieira Natividade. Não só foi possível relocalizar a
maioria das cavidades mencionadas por si na monografia relativa às grutas de Alcobaça como também identi-
ficar novas grutas de potencial arqueológico, dentro e fora do vale. A relocalização das grutas permitiu que fos-
sem ainda recuperados alguns restos osteológicos humanos que ainda se encontravam no interior das mesmas,
dando origem à maioria das datações agora existentes para este vale. O fraco afinamento cronológico sobre
os materiais fez com que estas cavidades tenham sido repetidamente ignoradas da bibliografia arqueológica e
etiquetadas como pertecendo ao “Neolítico e Calcolítico” de forma generalista.
Palavras-chave: Alcobaça; Prospecção; Vale do Carvalhal; Grutas.
ABSTRACT
In July 2022 prospections were carried out in the Carvalhal de Aljubarrota valley (Alcobaça), with the purpose
of relocating the caves intervened by Manuel Vieira Natividade. It was possible to relocate most of the caves
he mentioned in the Alcobaça caves monograph and identify new caves of archaeological potential inside and
outside the valley. The relocation of the caves allowed the recovery of some human osteological remains which
were still inside the caves, giving rise to most of the dates now existing for this valley. The poor chronological
refinement on the materials has meant that these caves have been repeatedly ignored in the archaeological bib-
liography and labeled as belonging to the “Neolithic and Chalcolithic” in a generalist way.
Keywords: Alcobaça; Prospecting; Carvalhal valley; Caves.
1. FCT – Bolseira Doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia / UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de
Lisboa / CIAS – Centro de Investigação em Antropologia e Saúde da Universidade de Coimbra / [email protected]
346
co ao Quaternário (há cerca de 2 milhões de anos) materiais ainda no interior das mesmas, pelo que, se
(Crispim et al., 2001:1) e terá resultado da erosão de procedeu igualmente a sua recolha com o propósito
uma linha de água, tal como acontece em Rio Seco, de salvaguardar os mesmos de terceiros, mas surgin-
situado a sul, entre Turquel e o rio da Fonte Santa. O do assim a possibilidade de obter datações para as di-
aprofundamento das redes de drenagem terá ocor- versas grutas, algo que, apenas com base no conjunto
rido durante o último período glaciário do Würm, osteológico presente na colecção não seria possível.
há cerca de 18.000 anos, quando a costa portugue- Foram recolhidos diversos restos osteológicos hu-
sa desceu a menos de 100 metros de altitude, origi- manos nas grutas de Ministra Alta, Mosqueiros Bai-
nando a descida brusca do nível de base dos rios que xa, Calatras Alta e Média e Lagoa do Cão, tendo sido
condicionaram uma forte erosão regressiva a mon- posteriormente obtidas cinco datações para todas
tante dos cursos de água (Martins, 1949; Crispim elas, exceptuando Calatras Média, da qual existiam
et al., 2001:13). De orientação preferencial NE-SW, já duas datações sobre mandíbula provenientes do
este apresenta diferenças significativas no seu per- conjunto osteológico humano depositado no Mos-
fil longitudinal. A partir da zona da gruta do Cabeço teiro de Alcobaça. Apesar da variada recolha osteo-
da Ministra (baixa) e até às nascentes de Chiqueda, lógica humana no interior das grutas, algumas das
o declive é mais acentuado. Neste troço, caracteri- cavidades pelas condições ambientais existentes,
zado pelo forte encaixe e meadramento do vale, ob- inviabilizaram a preservação de colagénio na maio-
servam-se inúmeras cavidades com ocupação pré- ria dos casos. Os materiais arqueológicos detectados
-histórica que foram intervencionadas entre 1886 e à superfície não foram abundantes, demonstrando o
1900 por Manuel Vieira Natividade (Crispim & al, carácter exaustivo das intervenções de Manuel Viei-
2001; Natividade,1901). A monografia relativa às ra Natividade. Foram recolhidos em sílex dois tra-
grutas de Alcobaça, publicada na revista Portvgália, pézios: um na gruta de Calatras Alta, semelhantes
descreve os achados das grutas localizadas no inte- aos restantes ali encontrados por Natividade, bem
rior do vale do Carvalha de Aljubarrota (como Cala- como os da gruta de Ministra Alta e outro na área do
tras Alta, Média e Baixa, Cabeço Rastinho, Casa da Cabeço da Ervideira. Foram detectados fragmentos
Génia, Pena da Velha, Ervideira, Mosqueiros Alta e de cerâmica manual no Cabeço da Ervideira e no
Baixa, e Ministra Alta, Média e Baixa) e outras em interior das grutas, nomeadamente em Mosqueiros
áreas limítrofes (como Cadoiço, Vale do Touro, La- Alta e Lagoa do Cão foram recolhidos fragmentos de
goa do Cão e Redondas/Algar de João Ramos) (Nati- cerâmica a torno sem que, contudo, se consiga com-
vidade, 1899-1903). preender a sua cronologia, uma vez que não apre-
sentam características que o permitam.
3. PERDIDOS E ACHADOS
3.2. Achados
Os trabalhos de campo tiveram como principal ob- Durante as prospecções para relocalização das ca-
jectivo a relocalização das grutas intervencionadas vidades intervencionadas por Natividade e uma vez
por Manuel Vieira Natividade no vale do Carvalhal que se bateu a maior parte de terreno possível, foram
de Aljubarrota para que se pudesse proceder princi- igualmente procuradas novas grutas. Neste sentido
palmente à recolha gráfica das mesmas, mas tam- e sob indicação do Sr. António Baltazar, residente no
bém compreender a dinâmica paisagística e de in- lugar de Chiqueda de Cima, foi detectada uma gruta
tervisibilidade entre grutas. de elevado potencial arqueológico ( e designada por-
tanto de gruta do Sr. António) (Figura 2, nº1). Apre-
3.1. Perdidos sentando uma planta sensivelmente circular e um
Das cerca de vinte e duas grutas mencionadas por algar lateral com cerca de cinco metros de profun-
Manuel Vieira Natividade, localizadas no interior e didade com presença de água, esta é efectivamente
área limítrofe do vale foi possível relocalizar treze uma gruta de acesso bastante fácil. À superfície não
delas, ficando em falta apenas sete. foi verificada a presença de nenhum indicador de ac-
Em todas as grutas foi efectuado o mesmo tipo de tividade humana uma vez que devido ao abatimento
registo: GPS, fotográfico e fotogramétrico para ela- do tecto e elevada sedimentação, os potenciais níveis
boração de 3D. Durante o exercício do registo foi ve- arqueológicos deverão estar possivelmente selados.
rificada a presença de restos antropológicos e alguns Foi-nos relatado por outro popular que assistiu à des-
348
da uma pequena cavidade de tendência triangular, rior, Mesolítico e Neolítico Final. A estação por nós
bastante estreita e com cerca de 1,73m de altura por identificada não consta na lista de núcleos identifi-
83cm de largura na base e 1,54m de fundo. Embora cados pelo investigador, referindo-se assim a uma
esta cavidade esteja localizada num plano inferior à nova estação. Para além dos numerosos núcleos de
conhecida gruta de Mosqueiros Baixa, a mesma, é matéria-prima siliciosa foram recolhidas lâminas e
conhecida pela população como Mosqueiros Média um fragmento de cerâmica campaniense (sem que
(Figura 3, nº3), e referenciada por Natividade, onde nenhum outro elemento de época romana tivesse
o mesmo encontrou lâminas retocadas e não retoca- sido detectado). A análise do conjunto demonstrou a
das (Natividade, 1901: 53). sujeição da maior parte deste material a tratamento
No vale foram ainda encontrados um fragmento de térmico para a obtenção primária de lascas que terão
lâmina em sílex negro no trilho de circulação que sido trabalhadas noutro local. Na área imediatamen-
acessa ao interior do vale bem como um fragmento te sobranceira à gruta da Cova das Lapas, numa área
de cerâmica manual já no lado Norte, onde o relevo de pinhal (Abril de 2021) sujeita a trabalhos agrícolas
é mais reduzido. (2022) tratando-se de uma área de plantio de pomar,
Na área limítrofe do vale, e ainda relacionado com foram novamente identificados diversos núcleos
os trabalhos de prospecção das cavidades, na área de matéria-prima siliciosa, semelhantemente ao
envolvente à gruta de Lagoa do Cão, foi identifica- que acontece noutros pontos desta zona planáltica.
do num terreno próximo à mesma, um fragmento de No trilho de acesso à Cova das Lapas foram identi-
vaso campaniforme e numa outra área fragmentos ficados diversos fragmentos siliciosos de pequenas
de sílex (Figura 3, nº4). É possível que o fragmento dimensões. Os dois núcleos por nós identificados
de vaso campaniforme esteja relacionado com a ca- exibem poucas semelhanças com o sílex desta cavi-
vidade uma vez que Natividade indica a recolha de dade, ainda assim, há possibilidade de relação entre
um punhal elaborado em sílex que foi recolhido nas o núcleo mais distante junto do marco geodésico e o
terras da vinha, que existia em frente da cavidade. sílex desta cavidade.
Verificou-se ainda no local que a coloração do solo Foi ainda identificado um possível alinhamento
original é relativamente escuro em comparação com pétreo, conhecido pela população como a Pedra do
o sedimento avermelhado existente no interior da Aguilhão (Figura 3, nº 7 e 8). Trata-se de um alinha-
gruta. Na área em frente à gruta é ainda possível ob- mento de três rochas sedimentares de grandes di-
servar este sedimento avermelhado, testemunhan- mensões, com elevada presença de moluscos, numa
do assim a retirada do mesmo da zona da câmara área de areias sem bancadas calcárias ou outro tipo
mais profunda desta gruta, onde segundo Nativi- de elementos rochosos que justifiquem a sua pre-
dade, estava depositada uma grande quantidade de sença naquele local, onde existe apenas plantação
ossos humanos. de eucaliptal.
Como consequência da vaga de calor que Portugal
atravessou em Julho de 2022 e dentro das proibições 4. O VALE DO CARVALHAL DE
estabelecidas em diário da República que implica- ALJUBARROTA E O SEU ENQUADRAMENTO
vam a proibição de acesso e permanência em áreas NO QUADRO DO MACIÇO CALCÁRIO
de floresta, implicaram uma alteração de planos nos ESTREMENHO
trabalhos de campo. Desta forma foram prospecta-
das áreas de cultivo de pomar e campo aberto, que, Durante o 4º milénio e a primeira metade do 3º mi-
proporcionou a identificação de uma cavidade aber- lénio a.n.e, as grutas continuam a ser lugar de sepul-
ta numa bancada arenítica em Turquel, designado tamento, demonstrando ainda a sua importância nas
de Abrigo do Aguilhão (Figura 3, nº5), e uma área de sociedades agro-metalurgicas, apesar da existência
aprovisionamento de matéria-prima no planalto de de outras variantes arquitecturais utilizadas du-
Montes (Ribeira do Pereiro) sobranceiro à gruta ne- rante a transição 4º/3º milénio (Sousa e Gonçalves,
crópole do Neolítico final da Cova das Lapas (Gon- 2019:158). As grutas do Carvalhal de Aljubarrota são
çalves, 2021) (Figura 3, nº6). Nesta área foram já um bom exemplo da continuidade cultural da utili-
identificadas por Jonathan Haws cerca de 16 núcleos zação de cavidades ao longo do tempo (Figura 1, nº1
de matéria-prima onde se verificaram igualmen- e 2). Embora a utilização relativa ao Neolítico antigo
te práticas de talhe referentes ao Paleolítico Supe- seja potencialmente funerária, não existem elemen-
350
que ainda se encontra por compreender. Não nos períodos cronológicos. Apenas Ministra Alta, Mos-
parece possível admitir que as grutas simplesmente queiros Baixa e Redondas parecem estar relaciona-
tenham deixado de ser utilizadas durante este perío- dos com o mundo funerário através da presença de
do de forma abrupta, existindo sim, de forma óbvia braçais de arqueiro e cerâmica campaniforme incisa
uma baixa numerária a nível de enterramentos em e lisa. Outras cavidades como Ministra Média e Bai-
gruta consequência da alteração das soluções sepul- xa ou Cabeço Rastinho, não detinham nenhum resto
crais e uma deslocação do povoamento para outras osteológico humano, no entanto, foram recuperados
regiões e/ou uma quebra populacional. do seu interior artefactos metálicos (pontas Palme-
Apenas uma das cavidades no vale forneceu uma da- la). A separação entre o final do Calcolítico e Bronze
tação do Calcolítico inicial. Através do espólio não antigo não é ainda bem compreendida, na medida
abundam os indicadores claros relativos a este perío- em que, tal como acontece noutros períodos, nunca
do tais como placas de grés lisas ou oculadas, contu- há um corte abrupto com o período anterior e muitas
do, é preciso ter em consideração a existência de di- vezes existe um prolongamento na presença de cer-
ferentes ritmos não só populacionais, mas também tos artefactos (Valera, 2021).
materiais. A multiplicidade de soluções funerárias Para além da gruta das Redondas também uma ou-
existentes para o MCE deixaria supor a existência de tra cavidade no vale aponta para uma ocupação da
uma ampla malha de povoamento do que aquela que idade do Bronze. A maioria dos artefactos em cobre,
na realidade se conhece até ao momento. Face às como as pontas tipo Palmela, parecem sugerir uma
fracas evidências e de acordo com o que se conhece cronologia de um período de transição entre o Cal-
para outras áreas do território estremenho, não é de colítico e a idade do Bronze. No entanto, no vale do
descartar que, tal como mencionado por Araújo e Zi- Carvalhal, em Cabeço Rastinho recuperou-se um
lhão (1991), o estabelecimento das comunidades do punhal de lingueta inteiro e de Pena da Velha apenas
4º e 3º milénio se tenha feito numa área de relevos um fragmento de punhal. Estes podem remeter para
suaves e convidativos à fixação das populações. De cronologias das fases finais do Bronze antigo.
certa forma é o que se verifica no vale do Carvalhal Existem no conjunto cerâmico pelo menos quatro
de Aljubarrota em relação ao povoado da Ervideira. fragmentos brunidos apresentando sulcos verticais e
Localizado uma zona elevada de acesso facilitado a cerâmicas carenadas provenientes também do vale,
Oeste, apresenta as condições ideais para fixação po- que, contudo, não sabemos a proveniência. Esta
pulacional. A proximidade às grutas poderá ter sido facto por si é suficientemente indicador sobre a fre-
fundamental para o assentamento da comunidade, quência do vale por populações não só da transição
pelo menos a partir do Neolítico final. A única data- para o Bronze antigo, mas durante toda essa fase.
ção que corrobora actividade doméstica no vale du- Efectivamente a separação entre o Calcolítico final e
rante este período, é a datação sobre restos carpoló- o Bronze antigo está envolta em grande penumbra.
gicos obtida para o povoado do Cabeço da Ervideira, É o crescimento do sepultamento individualizado
balizada entre 2461-2210 (cal BC 2σ) (Tereso, Gas- em cistas associado ao desaparecimento de cerâmi-
par e Oliveira,2017: 615). No conjunto cerâmico das cas campaniformes decoradas em substituição das
grutas surgem bordos de taças lisas de bordo plano lisas e ao crescimento da presença de jóias auríferas,
espessado internamente com excelente acabamento pontas palmela, punhais e adagas, que nos indica
que se assemelham morfologicamente às taças tipo sem sombra de dúvida, tratar-se de contextos da
palmela. Embora sejam cerâmicas de fundo comum, idade do Bronze (Cardoso, 2005:7), existindo, con-
há a possibilidade de se incluírem no campo das tudo, revisitações de contextos megalíticos.
campaniformes lisas, alargando assim o espectro re-
lativo à utilização destas grutas durante o Calcolítico AGRADECIMENTOS
final. Estes dados vão ao encontro à realidade obser-
vada por João Zilhão, na Galeria da Cisterna da gru- Um agradecimento especial à Câmara Municipal de
ta do Almonda (Zilhão,2016): a existência de locais Alcobaça, na pessoa do Dr. César Salazar por todo
com cronologias campaniformes, mas sem a presen- o apoio logístico, suporte e interesse demonstrado
ça manifesta de campaniforme (Valera, Mataloto e sem o qual os resultados desta campanha não teriam
Basílio, 2019). Estes aspectos complexificam os con- sido possíveis. Ao Sr. António Baltazar de Chique-
textos e leituras à escala micro-regional nos diversos da que no auge das suas largas décadas de vida nos
CARVALHO, António Faustino (2021) – O Neolítico médio NEVES, César (2023) – O Neolítico médio no Sul de Portu-
no Maciço Calcário Estremenho. Cronoestratigrafia e po- gal. O sítio da Moita do Ourives (Benavente), no quadro do
voamento. Terra e Sal. Das Antigas sociedades camponesas ao povoamento do 5º e 4º milénios a.C. Estudos e Memórias.
fim dos tempos modernos. Estudos oferecidos a Carlos Tava- UNIARQ: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
res da Silva, pp.133-151. Vol. 21, pp. 5-26.
CARVALHO, António Faustino; ANTUNES-FERREIRA, SOUSA, Ana Catarina; GONÇALVES, Victor Santos (2019)
Nathalie; VALENTE, Maria João (2003) − A gruta-necrópole – Changements et permanences des rites funéraires dans
neolítica do Algar do Barrão (Monsanto, Alcanena). Revista les anciennes sociétés paysannes du centre et du sud du
Portuguesa de Arqueologia. Lisboa. 6: 1, pp. 101-119. Portugal. Sépultures et Rites Funeéraires. Actes du colloque
352
organisé par l’Association de Recherches Préhistoriques et
Protohistoriques Corses (ARPPC) Calvi, pp. 149-192.
354
Figura 2 – 1. Entrada da cavidade denominada de gruta do Sr. António localizada em Chiqueda; 2. Gruta de Calatras 4 onde é
visível o abatimento do tecto; 3. Gruta de Mosqueiros Nascente; 4. Pormenor da sala de entrada de Mosqueiros Nascente com
revolvimento visível do sedimento da mesma; 5. Gruta do Seixo; 6. Gruta de Mosqueiros Nascente 2; 7. Vale Escuro de Cima;
8. Vale Escuro.
356
ANÁLISE DOS PADRÕES DE LOCALIZAÇÃO
DAS GRUTAS ARQUEOLÓGICAS
DA ARRÁBIDA
João Varela1, Nuno Bicho2, Célia Gonçalves3
RESUMO
A área de Sesimbra apresenta um conjunto já significativo de cavidades cársicas identificadas, umas com vestí-
gios de ocupação humana, outras sem quaisquer vestígios e muitas outras por descobrir.
Até à presente data não existe nenhum estudo exaustivo que contenha a recolha de dados geográficos, e arqueo-
lógicos que ajude a decifrar os padrões geográficos e temporais da utilização das grutas, durante a Pré-História
na região da Arrábida. É objectivo deste poster dar a conhecer esta problemática, apresentando os resultados
preliminares de trabalho de campo, de um projecto que visa o levantamento detalhado de todas as grutas ar-
queológicas da Serra da Arrábida. Para atingir o nosso objectivo foi utilizado como ferramenta um Sistema de
Informação Geográfica (SIG).
Palavras-chave: Grutas Arqueológicas; Grutas da Arrábida; Sistemas de Informação Geográfica.
ABSTRACT
The Sesimbra area already presents a significant number of identified karst caves, some with traces of human
occupation, others without any traces and many others yet to be discovered.
To date there is no exhaustive study which contains the collection of geographical and archaeological data
which help to decipher the geographical and temporal patterns of the use of the caves during prehistoric times
in the Arrábida region. The aim of this poster is to present the preliminary results of the fieldwork of a project
which aims at a detailed survey of all the archaeological caves of the Arrábida Mountains. To achieve our goal, a
Geographic Information System (GIS) was used as a tool.
Keywords: Archaeological Caves; Arrábida Caves; Geographic Information System.
358
rinhos 1 (Sesimbra), esta intervenção, que inicial- multidisciplinar a obra que faltava e que junta dois
mente se perspectivava de longa duração, com esca- mundos: o da Arqueologia e o da Espeleologia “No
vações a decorrer no interior da gruta. Segundo as tempo das Grutas. Carta Arqueológica e Espeleo-
autoras, a mesma acabou por se restringir à criva- lógica da Serra da Arrábida (concelho de Setúbal)”
gem dos sedimentos existentes no exterior, e à lim- (Gonçalves et al., 2015).
peza e desenho do seu interior, por motivos financei- No ano de 2019, um dos signatários deste artigo,
ros (Fernandes e Rocha, 2008). João Varela ao abrigo de campanhas de prospecção
Entre o ano de 2007 e 2009 é de destacar o projecto para a sua Tese de Doutoramento, com a colabora-
da Nova Carta Arqueológica do Concelho de Sesim- ção de Hugo Batista, Rui Francisco (Lóia), João Luz
bra: Arqueologia de Sesimbra, projecto de investiga- e Lúcia Santos, conseguem identificar e catalogar 25
ção e valorização do Património arqueológico con- grutas arqueológicas na região da Arrábida. Infeliz-
celhio, realizado por uma equipa multidisciplinar mente em plena época da pandemia do covid 19 as
coordenada por Manuel Calado (Goncalves et al., investigações não prosseguem. No âmbito de sua
2011; Soares, 2013; Calado et al., 2009). Tese de Doutoramento e tendo uma área maior para
Os trabalhos desta Nova Carta Arqueológica do se prospectar, que ia de Coimbra a Faro os trabalhos
Concelho de Sesimbra são publicados em 2009, deslocam-se posteriormente para outras áreas cársi-
pela Câmara Municipal de Sesimbra e com a deno- cas de Portugal.
minação de “O tempo do Risco”, na continuidade da No ano de 2020, Luís Gonçalves, Mila Abreu e Cláu-
investigação arqueológica do concelho, foram efec- dia Pereira no artigo denominado “Arrábida, territó-
tuadas escavações arqueológicas na Lapa da Cova rio da espiritualidade: geologia, arqueologia e arte”,
(Serra do Risco) (Soares, 2013). procuram compreender como o homem utilizou a
Entre o ano de 2010 e 2013, João Zilhão realiza es- sua paisagem singular, no seu contexto envolvente,
cavações arqueológicas na Gruta da Figueira Brava, como espaço de habitat, de actividade de subsistên-
que consistiu na abertura de uma sondagem na en- cia e de espiritualidade. Este artigo é o resultado do
trada 3 e na escavação da área F (Zilhão et al., 2020; conhecimento agregado por aproximadamente cem
Melo, 2013). anos de investigação e de cerca de sete anos de pros-
No ano de 2011, Maria Fernandes na sua tese de Mes- pecções arqueológicas realizadas entre 2007 e 2014
trado denominada de “Entre a Arrábida e o Alentejo (Goncalves et al., 2020).
Central: o enquadramento das Grutas Naturais no No ano de 2023, Maria Melo elabora uma tese de
contexto da Pré-história”, inúmera e descreve várias Mestrado apresentada à Faculdade de letras da Uni-
grutas arqueológicas da Arrábida (Fernandes, 2011). versidade de Lisboa com a temática “Estudo tecno-
No ano de 2013, Ricardo Soares na sua tese de Mes- -económico da indústria lítica em quartzo do Pa-
trado denominada de “A Arrábida no Bronze Final”, leolítico Médio (MIS 5) na Gruta da Figueira Brava
dedica uma boa parte da tese para mencionar a im- (Setúbal, Portugal)", a mesma faz o estudo da indús-
portância das grutas da região como áreas de ocupa- tria lítica de quartzo provenientes das escavações de
ção, permanência e culto dos mortos dos povos pré- João Zilhão à Gruta da Figueira Brava (Melo, 2013).
-históricos e das comunidades humanas do passado. No ano de 2023, Rui Francisco publica o livro “Un-
O autor, inúmera algumas grutas e suas prováveis derground Arrábida Subterrânea. Memória da Pro-
cronologias (Soares, 2013). fundidade dos tempos”, faz o estudo exaustivo das
No ano de 2013, Leonor Rocha e Rosário Fernandes grutas da Arrábida e inúmera as que são arqueoló-
publicam o artigo denominado “Povoamento da Pré- gicas (Francisco, 2023). É o culminar de 18 anos de
-história recente na Arrábida: Novos dados”, onde a incessante e interrupto trabalho espeleológico e co-
equipa apresenta um conjunto de sítios identificados laboração em trabalhos arqueológicos.
nos últimos anos que vêm trazer novos dados sobre
a Pré-história recente da Arrábida, e onde se realça o 3. METODOLOGIA
registo de novos sítios mesolíticos. No que concerne
às grutas são referidas as seguintes: Gruta de San- A recolha de dados geográficos e arqueológicos para
ta Margarida, Gruta do Médico e Gruta do Valongo a construção de uma base de dados que incorpore
(Rocha e Fernandes, 2013). cada gruta arqueológica de cronologia que vai des-
No ano de 2015, é publicada por uma vasta equipa de o Paleolítico à Idade do Bronze, pela consulta dos
360
ISIDORO, Agostinho (1963) A Lapa do Bugio. Trabalhos de SERRÃO, Eduardo (1959) – Investigações arqueológicas na
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rábida. IN: Tectónica das regiões de Sintra e da Arrábida. Mem.
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mero 2. pp. 35-84. da Região de Sesimbra. Arqueologia & História, 9. Lisboa: As-
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362
Gráfico 1 – Número total de grutas com vestígios arqueológicos por cronologia. Autor: João Varela.
Gráfico 2 – Grutas só com uma cronologia e grutas com várias cronologias.Autor: João Varela.
RESUMO
Na sequência da identificação recente de um extenso e relevante conjunto de evidências de ocupação pré-
-histórica confirmada para a margem direita da ribeira de Santa Margarida, afluente do rio Sor (Alto Alentejo),
apresenta-se, até existir uma visão mais ampla da distribuição dos vestígios, a notícia preliminar dos achados,
baseada na sua distribuição e tipologia, assim como uma breve reflexão sobre a continuidade do projecto e as
orientações de trabalho a desenvolver nas zonas com potencial arqueológico, associadas aos afluentes do rio
Sor, na área em estudo.
Palavras-chave: Alto Alentejo; Ribeira de Santa Margarida; Prospecção; Pré-História.
ABSTRACT
Following the recent discovery of extensive and relevant evidence of prehistoric occupation, confirmed for the
right margin of the Ribeira de Santa Margarida, tributary of the Sor River (Alto Alentejo). We present now, until
there is a wider view of the distribution of the remains, a preliminary notice of the discoveries, based on their dis-
tribution and typology, as well as a brief reflexion about the continuity of the project and the direction of the work
to be carried out in the archaeological potential zones, related to the affluents of the Sor River in the study area.
Keywords: Alto Alentejo; Ribeira de Santa Margarida; Survey; Prehistory.
366
gem esquerda do rio Sor, abrangendo os seus prin- Com a descida acentua do nível de água, as boas con-
cipais afluentes: ribeiro do Cortiço, ribeira de Santa dições de visibilidade do terreno, geralmente sem
Margarida e ribeira da Margem. vegetação, permitiram avaliar o potencial arqueoló-
Pela sua localização e características naturais, esta gico da ribeira e identificar testemunhos de indústria
tornou-se uma das zonas privilegiada dos trabalhos, lítica sobre seixo.
considerando que para a restante área do concelho, Estes primeiros indícios vieram confirmar a presen-
abrangida pela referida folha da Carta Geológica, a ça humana nesta área e reconhecer um eventual pa-
ocorrência de manchas com características idênti- drão de ocupação, associado a terraços baixos (80-
cas era pontual e circunscrita. 60m) na margem direita.
A distribuição dos terraços apresenta uma variação Perante estes resultados, era fundamental aferir a
de cotas, que varia entre 150-140m, 130-120m, 110- distribuição dos vestígios e confirmar o enquadra-
100m e 90-80m. A cobertura do terreno, em par- mento cronológico destas realidades.
ticular dos depósitos situados a cotas mais baixas, Deste modo, na segunda fase do projecto TEMPH
adjacentes às principais linhas de águas, foi condi- foi reajustada a estratégia de prospecção, sendo
cionada pelo nível das albufeiras de Maranhão e de dada prioridade à cobertura da margem direita da
Montargil, cobrindo contextos privilegiados para ribeira até à zona de confluência com o rio Sor. Esta
uma ocupação durante o Paleolítico. opção baseou-se na localização dos achados e na to-
Nesta primeira abordagem à Pré-História Antiga no pografia da margem, mais favorável, na sua exten-
concelho de Avis, cujos resultados parciais foram são, que a margem oposta, e pretendia documentar
apresentados no I Congresso da Associação dos Ar- a distribuição dos vestígios da presença humana.
queólogos Portugueses (Ribeiro e Salvador, 2013), a Nas campanhas 5 e 6, esta última ainda a decorrer,
informação reunida não foi expressiva, e, em alguns foram prospectados os contextos geomorfológicos
casos, de integração cronológica questionável, mas na margem direita que se afiguravam favoráveis à
abriu uma nova perspectiva de abordagem do terri- ocupação, confirmando-se a densidade e a exten-
tório decorrente da identificação de um conjunto de são dos vestígios. Tornou-se, assim, evidente que a
vestígios de indústria macrolítica, alguns dos quais ribeira constituía um eixo privilegiado para a circu-
passíveis de enquadrar em momentos mais recuados lação e a permanência de grupos humanos durante
de ocupação deste território, e que correspondem a a Pré-História.
achados isolados (Monte Velho 1, Areeiro 2, Mara-
nhão 1, Camões 1, Casas Novas 3, Monte dos Cavalos 3. AS EVIDÊNCIAS: BREVES
3) e vestígios de superfície (Ordem 10 e Ordem 11). CONSIDERAÇÕES
Para a zona poente, e apesar do seu enquadramento
natural e potencial arqueológico, continuavam por Os trabalhos realizados permitiram identificar um
identificar vestígios da presença humana. vasto conjunto de vestígios de natureza e cronolo-
A continuidade dos trabalhos de campo, com a con- gia semelhantes. Os sítios, de pequena dimensão e
cretização da primeira fase do projecto TEMPH, e localizados a pouca distância entre si, ocupam en-
as condições favoráveis para prospecção, verifica- costas suaves ou pequenas plataformas em zonas
das na sequência da descida acentuada dos planos de confluência de pequenas linhas de águas com a
de água associados às albufeiras, levaram a uma ribeira principal, sobre a qual detém controlo visual.
inevitável revisão dos dados, refletindo-se na iden- (Figura 4)
tificação de um número considerável de vestígios da Implantados na margem direita da ribeira de Santa
presença humana, em particular na zona poente do Margarida, em terraços com variação de cotas entre
concelho, associados ao curso inferior da ribeira de 60 e 80 m de altitude, os sítios registados, num total
Santa Margarida. de 523, distribuem-se pelos núcleos Morenos (10),
Neste contexto, foi possível, em 2018, o reconheci- situado a montante, Vale de Ruana (13), Embarbez
mento preliminar desse território, com a identifica- (12), na zona central, e Sagolga (17), na zona de con-
ção de cascalheiras em zonas sobranceiras à ribeira,
em terraços submersos pela albufeira de Montargil, 3. Os sítios foram registados de acordo com as manchas de
cuja cota do nível pleno de armazenamento corres- dispersão de materiais à superfície, pelo que, não havendo
ponde a 80 m. uma continuidade, os vestígios foram individualizados.
368
(d) O estudo tecnológico e morfológico do conjun- BIBLIOGRAFIA
to artefactual reunido para a caracterização e ALMEIDA, Carlos; LOPO, Mendonça; JESUS, Maria e GO-
enquadramento crono-cultural dos sítios regis- MES, António (2000) – Sistemas Aquíferos de Portugal Conti-
tados. nental. Instituto Da Água e Centro de Geologia da Universi-
Pelas suas características naturais e localização, esta dade de Lisboa, 3 volumes.
zona assumiu um papel fundamental para a com- ALMEIDA, Francisco coord. (2013) – Testemunhos do Paleo-
preensão dos processos de relação inter-regional e lítico no regolfo de Alqueva. Resultados do Bloco B1 do Plano
dos eixos de circulação durante a Pré-História na de Minimização de Impactos sobre o Património Arqueológico.
região. Por essa razão, o enquadramento crono-cul- Beja, EDIA; Évora: DRCALEN, Memórias d’ Odiana, 2.ª sé-
rie, vol. 2.
tural das realidades identificadas é uma prioridade.
Neste momento, não é possível uma avaliação rigo- ALMEIDA, Nelson (2012) – O Paleolítico Médio do Comple-
rosa e segura do tipo, natureza e cronologia do con- xo Pré-histórico do Arneiro – Santa, Nisa. Dez anos de inves-
junto identificado. tigação. In AÇAFA online, Associação de Estudos dos Alto
Tejo, n.º 5, pp. 273-292. Disponível em: https://www.altotejo.
No entanto, e numa primeira análise, os indicadores
org/acafa/docsn5/paleolitico_medio_arneiro.pdf.
reunidos apresentam características passíveis de en-
quadrar no Paleolítico, em particular no Paleolítico ALMEIDA, Nelson (2014) – O Paleolítico Médio das Portas de
Rodão, a margem esquerda (Nisa, Portugal). Contributo para a
Médio, considerando a economia de matéria-prima,
sua caracterização cronoestratigráfica. Tese de Doutoramen-
com predomínio do quartzito, e variabilidade tecno- to em Arqueologia – Pré-História, Universidade de Évora.
lógica, como a utilização exclusiva de quartzito sob a
ALMEIDA, Nelson (2017) – Mais dúvidas que certezas: estra-
forma de seixos talhados para produção de artefac-
tégias de povoamento no Paleolítico Português. In Scientia
tos de grande dimensão e de lascas.
Antiquitatis, n.º 1 (2017), pp. 47-64. Disponível em: https://
Porém, e atendendo à natureza dos dados e à ausên- www.scientiaantiquitatis.uevora.pt/index.php/SA/article/
cia de contextos estratigráficos, a integração crono- view/15/9.
lógica e cultural só poderá ser validada a partir do
ALMEIDA, Nelson (2020) – Cadeias operatórias do Paleolí-
estudo do conjunto artefactual, ainda em desenvol- tico Médio da bacia do Arneiro, Nisa, Portugal. In Arqueolo-
vimento e que se espera apresentar em breve. gia e História, Associação dos Arqueólogos Portuguese, vol.
A confirmar-se a sua antiguidade, estes achados, 70, pp. 51-73.
terão um papel determinante na leitura diacrónica ALMEIDA, Nelson; CARVALHO, Vânia e AVELEIRA, Au-
da presença humana neste território, pelo que será gusto (2011) – Primeiros dados sobre a Pré-história antiga no
fundamental uma abordagem na perspectiva do seu Nordeste alentejano. In Arqueologia do Norte Alentejano – Co-
rela
cionamento com a estrutura de povoamento municações das 3ª Jornadas. Lisboa, Edições Colibri / C.M.
posterior. Fronteira, pp. 35-43.
Numa escala mais alargada, estes dados vêm refor- ALMEIDA, Nelson; DEPREZ, Sarah e DAPPER, Morgan de
çar a importância de Avis enquanto plataforma de (2008) – The Palaeolithic occupation of the North-eastern
relação inter-regional, associada a corredores na- of Alentejo (Portugal): a geoarchaeological approach. In
BUENO-RAMIREZ, Primitiva; BARROSO-BERMEJO, Rosa
turais que favoreceram, desde tempos recuados, o
e BALBÍN-BERHMANN, Rodrigo de Ed. – Graphical Markers
contacto com o vale do rio Sorraia e com o rio Tejo.
and Megalith Builders in the International Tagus, Iberian Pen-
Pelas características, localização e extensão dos insula, BAR International Series 1765, pp. 19-26.
achados, a área onde se enquadra a ribeira de Santa
ALVES, Maria Helena coord. (2008) – Tipologia de rios em
Margarida tornou-se central no estudo das primeiras
Portugal Continental no âmbito da implementação da directiva
ocupações humanas na região, constituindo-se num quadro da água. I – Caracterização abiótica. Lisboa, Instituto
dos eixos prioritários de investigação promovido da Água, I.P.
pelo Centro de Arqueologia de Avis.
ARAÚJO, Ana Cristina e ALMEIDA, Francisco (2013) – Barca
do Xerez de Baixo: um testemunho invulgar das últimas comuni-
dades de caçadores-recolectores do Alentejo interior. Beja, EDIA;
Évora: DRCALEN, Memórias d’ Odiana, 2.ª série, vol. 3.
370
Figura 2 – Distribuição dos sítios registados na margem direita da ribª de Stª Margarida. Extracto da folha 32-C da Carta
Geológica de Portugal, escala 1:50 000.
372
Figura 6 – Cascalheira associada à margem direita na área da Sagolga.
374
2
Proto–História
RESUMO
O projecto de doutoramento aqui apresentado, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, visa
sistematizar os dados arqueológicos relativos à Idade do Bronze para a região central da Estremadura, de modo
a compreender os processos históricos e as respectivas sub-fases da ocupação humana. Em termos metodo-
lógicos, será necessário rever os espólios existentes e informações contextuais associadas. A incorporação de
novos dados será obtida através de prospeções, revisitando e relocalizando os sítios conhecidos, assim como
zonas que constituem vazios no quadro do povoamento deste período. Serão aplicadas novas metodologias,
concretamente a utilização de Sistemas de Informação Geográfica (SIG), que permitam desenvolver leituras
paisagísticas articulando os núcleos de ocupação com os recursos e as vias naturais de comunicação.
Palavras-chave: Maciço Calcário Estremenho; Território; Modelos de ocupação espacial; Ambientes cársicos;
Contactos culturais.
ABSTRACT
The doctoral project presented here, funded by the Foundation for Science and Technology, aims to systematize
the archaeological data related to the Bronze Age in the central region of Estremadura, in order to understand
the historical processes and their respective sub-phases of human occupation. In methodological terms, it will
be necessary to review the existing artifacts and associated contextual information. The incorporation of new
data will be achieved through surveys, revisiting and relocating known sites, as well as areas that represent gaps
in the settlement pattern of this period. New methodologies will be applied, specifically the use of Geographic
Information Systems (GIS), which will allow for the development of landscape readings by linking occupation
centers with resources and natural communication routes.
Keywords: Estremadura Limestone Massif; Territory; Spatial Occupancy Models; Caves; Cultural contacts.
1. O presente trabalho foi realizado no âmbito de uma Bolsa de Doutoramento financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia,
com a referência 2022.13717.BD.
2. UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa; Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Fundação para
a Ciência e Tecnologia / [email protected]
378
cársicos e outras formas geológicas como abrigos, pequenos núcleos domésticos em zonas de vale, as-
lapiás, dolinas, entre outros. segurando a exploração de recursos agropecuários,
No que diz respeito à ocupação humana, esta região e, eventualmente, metalúrgicos (pequenas jazidas
apresenta várias condicionantes naturais que po- de cobre e talvez também o ouro de aluvião). A in-
dem ter afectado a sua densidade durante a Antigui- formação atual sobre estes sítios é, infelizmente, di-
dade. A nível da qualidade dos solos, a geologia cal- minuta. Em todo o território estremenho, notam-se
cária das zonas de serra dificultaria a prática agrícola apenas três povoados com alguma informação con-
nestes espaços e, consequentemente, uma presença textual: o Agroal, em Ourém (Lillios, 1993), e o Catu-
permanente de grupos humanos, sendo possível que jal, em Loures (Carreira, 1997), ambos sítios de altu-
esta se tivesse concentrado nos vales aluviais ad- ra, e o Casal da Torre, em Torres Novas (Carvalho et
jacentes (Leal, 2014, p. 123). Mesmo em outros pa- al., 1998), em planície. Apenas o primeiro e o último
râmetros, os recursos naturais disponíveis não são sítio se encontram próximos do território abrangido
abundantes, sendo a excepção os recursos vegetais. neste projecto de doutoramento.
Elementos metalíferos importantes para as comuni- A invisibilidade destes sítios arqueológicos durante
dades da Idade do Bronze, como o cobre e, mais tar- os momentos iniciais da Idade do Bronze dificultou
de, o estanho, encontram-se praticamente ausentes a aplicação da clássica tripartição desta cronologia
nesta região (Fontes, 2014; Senna-Martinez, 2019, (Jorge, 1996-1997; Cardoso, 2005, Rios, Blasco &
p. 58). A sua proximidade da costa atlântica torna-a, Aliaga, 2011-2012, Mataloto, Martins & Soares, 2013;
contudo, propensa para eventuais atividades piscí- Leitão & Cardoso, 2014; Senna-Martinez, 2019),
colas ou de recoleção, podendo ainda valorizar-se a sendo extremamente difícil definir e mesmo susten-
potencialidade da exploração do sal, quer de origem tar a sua etapa intermédia.
marinha, quer de origem geológica (sal-gema), que No entanto, a partir do final do 2º milénio a.C., nota-
em épocas posteriores conferiu determinada impor- -se uma densificação das redes de povoamento, com
tância histórica ao território, especialmente à região a identificação de sítios em altura, de meia encosta e
de Rio Maior (Pinto, 2019). em planície. Além disso, é neste momento que se in-
tensificam as práticas de deposição ritual/simbólica
2.2. Contextualização arqueológica: a Idade (Sousa e Sousa, 2018), nomeadamente em cavidades
do Bronze entre as Serras d’Aire e Candeeiros cársicas. Menos numerosos são os espaços funerá-
e de Montejunto rios (Vasconcelos, 1896; Spindler & Ferreira, 1973;
O estado atual da investigação sobre a Idade do Vilaça, Cruz & Gonçalves, 1999; Cardoso 2004),
Bronze no centro da Estremadura Portuguesa reve- ainda que a sua escassez contraste com a variedade
la uma realidade complexa e de dificil compreensão, de rituais e arquitecturas utilizados.
principalmente devido à invisibilidade arqueológica Já no contexto específico da região aqui em apreço,
das ocupações e mesmo à erosão/degradação que as informações relacionadas com os diversos sítios
se verifica em alguns contextos arqueológicos as- arqueológicos do final deste período são limitadas,
sociados. Além destes fatores, a falta de rigor me- reduzindo-se a estudos tipológicos de materiais,
todológico nas intervenções de campo mais antigas geralmente degradados por fatores antrópicos e
dificulta o entendimento concreto destas realida- naturais. No entanto, esta região participa ainda no
des. Assim, as cronologias dos sítios são apontadas papel da Estremadura como “plataforma giratória”
muitas vezes com base em dados descontextualiza- nos relacionamentos inter-regionais do ocidente da
dos, e as suas eventuais funcionalidades deduzidas Península Ibérica (Senna-Martinez, 1995), como se
predominantemente com base nas características da aprecia pela presença em simultâneo de materiais
sua implantação. de matriz exógena resultado dos contactos com as
Começando pelo início da Idade do Bronze, a tran- redes de circulação mediterrânea e atlântica.
sição do 3º para o 2º milénio a.C. é marcada pela
quebra das redes de povoamento calcolíticas, resul- 2.2.1. Os sítios
tando no abandono generalizado destes sítios (Car- O primeiro levantamento de sítios baseou-se tan-
doso, 2004, p. 163; Rios, Blasco & Aliaga, 2011-2012, to na bibliografia disponível para a região quanto
p. 196). Para este momento equaciona-se uma possí- na base de dados Endovélico. Após uma primeira
vel dispersão dos grupos humanos na paisagem em pesquisa, deparámo-nos com uma multiplicidade
380
Avançando para o interior, no município do Cadaval esta região, contrastando com outras zonas da Estre-
encontramos um elevado número de sítios arqueo- madura, nomeadamente as mais próximas ao Estuá-
lógicos. Estes incluem as grutas da Serra de Monte- rio do Tejo (Cardoso, 2004; Sousa, 2016).
junto (Gonçalves, 1990/1992), vários depósitos me- Ao concentrar as atenções entre os principais pon-
tálicos (Coffyn, 1983), o Castro de Pragança (Caria, tos de referência visual, procura-se entender com
2021; Melo, 2022) e outros sítios referenciados no maior precisão as atividades humanas decorridas
Endovélico, como o Casal do José Alexandre 1, identi- neste território, a sua relação com a paisagem e,
ficado em campanhas de prospeção mas infelizmen- eventualmente, o seu papel nos contactos inter-re-
te sem informações específicas sobre os materiais gionais com a Beira litoral, com o Alto Ribatejo e o sul
que permitiram a sua atribuição à Idade do Bronze. da Estremadura.
Finalmente, definimos o limite sul da área de estudo O plano de trabalhos para o desenvolvimento deste
nas proximidades da Serra de Montejunto, no muní- projecto prevê quatro fases fundamentais: 1. revisão
cipio de Torres Vedras. As ocupações da Idade do da bibliografia disponível; 2. análise e tratamento
Bronze nesta região são mencionadas sobretudo na dos acervos materiais e documentais disponíveis; 3.
bibliografia mais antiga e muitas não estão devida- campanhas de prospeção destinadas à reavaliação
mente atualizadas na base de dados Endovélico, ainda de sítios previamente identificados e identificação de
que as coleções daí provenientes, depositadas em al- novos núcleos de ocupação; 4. por fim, a análise dos
guns museus da região, como é o caso do Museu Mu- dados recolhidos e elaboração da respetiva síntese.
nicipal Leonel Trindade, atestem a sua importância. Relativamente à primeira fase, actualmente em cur-
A cronologia de alguns destes sítios ainda precisa de so, esta tem como principal objectivo a identifica-
ser esclarecida e requer uma revisão mais detalhada ção e caracterização preliminar dos vários núcleos
dos materiais disponíveis. Entre eles contam-se as da Idade do Bronze, de forma a elaborar um estado
grutas artificiais da Quinta das Lapas (Leisner & Leis- da arte actualizado, aferir em termos quantitativos
ner, 1965), o Cabeço do Charrino (Savory, 1951), o e qualitativos a natureza dos materiais associados e
Castro da Achada (Ferreira, 1973) e a Quinta da Man- determinar a historiografia dos sítios e coleções.
cheia (Savory, 1951), sítios geralmente atribuídos de A segunda etapa do projecto prevê o estudo das cole-
forma exclusiva ao calcolítico, mas nos quais se ates- ções disponíveis da Idade do Bronze da área geográ-
tam alguns indícios que podem eventualmente suge- fica delimitada, distribuídas por instituições regio-
rir ocupações mais tardias. Em sítios como o Castro nais (museus municipais), mas também em outras
do Zambujal (Kunst e Uerpmann, 2002), a gruta da com maior abrangência territorial como o Museu
Cova da Moura (Spindler, 1981), a Gruta II da Portu- Nacional de Arqueologia, o Museu Arqueológico do
cheira (Schubart, 1975, p. 139), ou o Tholos do Barro Carmo e o Museu Geológico. A análise dos materiais
(Madeira et al., 1972), a informação bibliográfica so- envolverá, sempre que possível, a revisão do espólio
bre as ocupações da Idade do Bronze é mais consis- identificado na bibliografia, a sua inventariação e
tente, mas os mesmos carecem ainda de uma análise quantificação, a sua classificação e descrição morfo-
global e de uma caracterização mais detalhada. lógica, tecnológica e decorativa e, caso se justifique,
a representação gráfica dos conjuntos artefactuais.
3. METODOLOGIA – DESCRIÇÃO DO Ainda neste ponto, importa reconhecer o grande di-
PROJECTO namismo da Arqueologia portuguesa, desde os seus
primórdios até ao presente, provocando não só uma
A origem deste projeto partiu da dissertação de mes- elevada dispersão dos vestígios por diversas institui-
trado do signatário, centrada no estudo tipológico ções, mas também a precária existência de dados de
da coleção cerâmica da Idade do Bronze do Castro proveniência dos mesmos. De forma a contornar esta
de Pragança, Cadaval (Caria, 2021). A partir deste dificuldade, prevê-se também a realização de várias
tema, pretende-se ampliar o escopo de análise na re- campanhas de prospecção na área delimitada, com
gião enquadrante da Serra de Montejunto, partindo dois objectivos principais. O primeiro consiste em re-
do sul do município de Torres Vedras até ao limite localizar os locais aos quais se associam os espólios
sudoeste da Serra D’Aires e Candeeiros, e o municí- previamente analisados, de forma a poder contextua-
pio de Alcobaça, a norte. A escolha deste tema de- lizar as respectivas ocupações no seu quadro paisa-
correu da escassez de sínteses dos dados relativos a gístico e territorial. Os trabalhos de campo poderão,
382
O desenvolvimento dessas ferramentas de leitura CARREIRA, Júlio Roque (1994) – Pré-História recente do
histórica parece-nos fundamental para potenciar Abrigo Grande das Bocas (Rio Maior). Trabalhos de Arqueolo-
trabalhos futuros, facilitando a identificação de no- gia da EAM. Lisboa. 2, pp. 47-134.
vos sítios, contextos e materiais, e fomentando o CARREIRA, Júlio Roque (1997) – Catujal: um povoado da
empreendimento de projetos específicos centrados Idade do Bronze (Médio) à entrada da “ria de Loures”. Con-
em sítios e áreas concretas. Só com estes e outros tribuição para o estudo das influências do Bronze do Sudoes-
te na formação do Bronze estremenho. Vipasca, Aljustrel 6,
trabalhos será possível vir a conhecer de forma mais
pp. 119-140.
detalhada este período ainda obscuro, compreen-
dendo melhor uma etapa certamente crucial da evo- CARREIRA, Júlio Roque & CARDOSO, João Luís
lução da região, mas também o seu papel, não me- (2001/2002) – A gruta da Casa da Moura (Cesareda, Óbidos)
e sua ocupação pós-paleolítica. Estudos Arqueológicos de Oei-
nos crucial, no desenvolvimento de toda a fachada
ras. Oeiras. 10, pp. 249-361.
atlântica durante a Idade do Bronze.
CARVALHO, António Faustino; BRAGANÇA, Filipa; NETO,
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Figura 3 – Vista do Castro de Pragança para a vila de Pragança e paisagem. Foto: Autor
386
Figura 4 – Formas atribuídas ao Bronze Pleno na bacia do Médio e Alto Mondego, segundo Senna Martinez, 1993, Estampa II.
Figura 6 – Bacia de visibilidade a partir do Castro de Pragança, Cadaval. Com o ponto: 26° Serra da Lua 21 milhas
0 pés. (heywhatsthat.com)
388
NOVOS DADOS SOBRE OS POVOADOS
DO BRONZE FINAL DOS CASTELOS (BEJA)
E LAÇO (SERPA) NO ÂMBITO DO PROJETO
ODYSSEY. CONTRIBUTOS A PARTIR DE UM
LEVANTAMENTO DRONE-LIDAR
Miguel Serra1, João Fonte2, Tiago do Pereiro3 , Rita Dias4, João Hipólito5, António Neves6, Luís Gonçalves Seco7
RESUMO
Os sítios dos Castelos (Beja) e Laço (Serpa) integram uma rede de povoamento do Bronze Final, composta por
vários povoados fortificados nas margens do Rio Guadiana e outros tipos de povoados na envolvente.
As suas plantas e áreas de ocupação encontravam-se escassamente documentadas, resumindo-se à identificação
de alguns troços de muralhas e à recolha de materiais de superfície.
O Odyssey Sensing Project (Alg-01-0247-Feder-070150 – https://odyssey.pt/), desenvolvido pela Era Arqueologia,
S.A. em parceria com as Universidades de Aveiro e da Maia, efetuou levantamentos microtopográficos de alta-
resolução em ambos sítios através de drone com sensor LiDAR.
Os trabalhos permitiram definir as plantas das muralhas e rever as áreas de ambos os sítios, com os Castelos a
assumir uma extensão e complexidade surpreendente, face ao conhecimento sobre outros povoados da região.
Palavras-chave: Bronze Final; LiDAR; Drone; Rio Guadiana.
ABSTRACT
The Castelos (Beja) and Laço (Serpa) sites are part of a Late Bronze age settlement network, made up of various
fortified settlements on the banks of the Guadiana River and other types of settlements in the surrounding area.
Their plans and areas of occupation have been poorly documented, with only the identification of a few sections
of ramparts and the collection of surface materials.
The Odyssey Sensing Project (Alg-01-0247-Feder-070150 – https://odyssey.pt/), developed by Era Arqueologia,
S.A. in partnership with the Universities of Aveiro and Maia, has carried out high-resolution micro-topographic
surveys in both sites using a drone with a LiDAR sensor.
This work allowed to define the wall plans and to review the areas of both sites, with the site of Castelos assuming
a surprising extension and complexity, compared to the knowledge about other settlements in the region.
Keywords: Late Bronze Age; LiDAR; Drone; Guadiana river.
390
Estes povoados não seriam fortificados, mas as suas das. Um outro aspeto destacado sobre o povoado
vertentes pronunciadas serviriam como uma eficaz dos Castelos é a sua implantação em frente a outro
defesa natural. povoado fortificado coevo, localizado na margem
O terceiro grupo era formado por povoados de di- esquerda do Guadiana, o Laço, do qual dista cerca
mensão inferior a 1 hectare, muralhados e localiza- de 500 metros com boa visibilidade direta entre
dos nas proximidades de bons terrenos agrícolas. ambos (Serra 2014: 83).
Integravam este grupo sítios como Quinta do Pantu- A rede de povoamento do Bronze Final identificada
fe, Moitão d`Altura, São Brás 1 e São Gens, todos no na margem direita do Guadiana apresenta algumas
concelho de Serpa. ligeiras diferenças para com a realidade proposta
O último grupo integrava os povoados abertos de para a margem esquerda.
planície situados junto a cursos de água secundários A zona de Beja também revela a presença de um
e terrenos de grande capacidade agrícola, como San- povoado fortificado de grandes dimensões locali-
ta Margarida ou Casa Branca 1, ambos em Serpa. zado no interior, o Outeiro do Circo, bem como po-
Esta proposta seria revista anos mais tarde pelo au- voados fortificados de dimensão inferior na zona
tor, passando a incluir outros sítios e abarcando ou- mais próxima ao Guadiana, nos quais se integra o
tras regiões limítrofes e com uma ordem hierárquica Castelos, e que foram designados como povoados
melhor definida (Soares 2013). fluviais fortificados. Nos afluentes do Guadiana não
O povoado dos Castelos (Baleizão, Beja) é descrito encontramos, do lado de Beja, pequenos povoados
pela primeira vez por Maria da Conceição Lopes, na fortificados, mas apenas alguns povoados fluviais,
obra resultante da sua dissertação de doutoramen- aparentemente sem defesas, como o Pé do Caste-
to sobre a ocupação romana da civitas de Pax Julia. lo, marcando uma diferença para com o sistema de
É dada uma breve nota sobre o povoado, que não povoamento da margem esquerda. Outra diferença
é individualizado no catálogo de sítios, na entrada regista-se ao nível da possível existência de atalaias,
correspondente ao povoado da Idade do Ferro do como proposto para o caso do Cabeço da Serpe, nas
Cerro Furado, referindo “Do outro lado da ribeira dos proximidades do Outeiro do Circo, situação similar
Castelos, ocupando o topo de dois cabeços, no interior à identificada entre a Coroa do Frade e o Castelo do
de duas linhas de muralhas, situa-se um grande povoa- Giraldo (Arnaud 1979: 87), mas sem paralelos, até ao
do que teve ocupação no Bronze Final. Este povoado momento, para a margem esquerda.
inédito foi denominado Castelos” (Lopes 2003: 14). Semelhante em ambos os territórios é a presença
No entanto, o povoado já seria conhecido da autora, de vários povoados abertos de planície, revelados
uma vez que surge cartografado na Carta Arqueo- em grande parte pelos trabalhos de arqueologia pre-
lógica de Serpa, em relação a outros sítios, como o ventiva ocorridos nos últimos 15 a 20 anos na região,
Cerro Furado (Baleizão, Beja) e o Laço (Brinches, sobretudo no âmbito de medidas de minimização
Serpa) (Lopes et al. 1997: 27). decorrentes do plano de rega do Projeto da Barra-
Anos depois da sua descoberta, Raquel Vilaça dá a gem do Alqueva.
conhecer materiais aí recolhidos, integrando o sítio Assim, a rede de povoamento do Bronze Final, pro-
na rede de povoamento do I milénio a.C. estrutura- posta para a margem direita, composta por 5 grupos,
da ao longo do troço do Rio Guadiana situado nos integraria à cabeça um grande povoado fortificado
concelhos de Beja, Moura e Serpa. Esses materiais de altura (1), o Outeiro do Circo, seguindo-se os po-
revelam que o sítio já era conhecido localmente, voados fluviais fortificados (2), como os Castelos e o
uma vez que são mencionadas peças e fragmentos Monte do Mosteiro, os povoados fluviais não forti-
metálicos aí recolhidos por José Brissos, de Baleizão, ficados (3), de que apenas se conhece o Pé do Cas-
oferecidos ao Museu Nacional de Arqueologia, en- telo, atalaias ou pequenos povoados de altura (4),
tre os quais se encontrava um tranchet, que serviu situação apenas proposta para o Cabeço da Serpe, e
para corroborar a cronologia proposta para o Bronze os povoados abertos de planície (5), de que existem
Final (Vilaça 2008-2009: 66). diversos exemplos para o concelho de Beja (Serra
A sua área de ocupação foi inicialmente cifrada entre e Porfírio 2017: 228).
4 a 6 hectares, em função da dispersão de materiais A análise separada das redes de povoamento da
entre os dois cabeços que se encontram rodeados margem direita e esquerda do Guadiana, não se
por duas linhas de muralha inicialmente identifica- afigura como a abordagem mais correta para inter-
392
Permanentes (ReNEP) disponibilizada pela Dire- homogénea, sem identificação de outros elementos
ção-Geral do Território (DGT) para posicionamen- de reforço defensivo, como duplas muralhas, torre-
to PPK (Post Processed Kinematic). Depois de efe- ões ou fossos, rodeando o povoado na área virada
tuada a retificação, o ficheiro gerado foi processado para o interior, nos quadrantes Sul e Este, e termi-
com o software mdInfinity da Microdrones, no qual nando na zona escarpada sobre o Guadiana, virada a
foi produzida uma nuvem de pontos georreferen- Norte e Oeste, que acompanha a curva do próprio rio.
ciada (ETRS89 / Portugal TM06 – EPSG:3763) para Tal como no caso do Castelo da Crespa, a muralha
cada um dos sítios. do Laço adapta-se às curvas de nível, e define um
O pós-processamento das nuvens de pontos de am- formato sensivelmente trapezoidal para o sítio.
bos sítios geradas no passo prévio foi realizado atra- O troço Este, que se desenvolve desde uma elevação
vés de uma combinação de diferentes softwares, prolongada sobre o rio, onde desaparece junto à es-
nomeadamente o LAStools e o planlauf/TERRAIN. carpa rochosa, é o mais regular, sendo constituído
A classificação da nuvem de pontos foi realizada com por um traçado retilíneo com cerca de 240 metros,
o LAStools, para identificar em particular os pontos que termina numa curva pronunciada a Sudeste.
do terreno. No planlauf/TERRAIN foi interpola- Sensivelmente a meio deste troço observa-se uma
do um Modelo Digital de Superfície (MDS) a partir pequena saliência em direção ao exterior, onde a
do primeiro retorno, e um Modelo Digital de Ter- muralha se encontra interrompida numa largura de
reno (MDT) a partir dos pontos classificados como 2,5 metros, no que atualmente é um acesso agrícola
terreno, ambos com 0,20 m de resolução espacial. para o espaço interior do povoado. A perturbação na
Seguidamente, foram aplicados diversos filtros de leitura causada por este acesso atual dificulta a aná-
visualização aos MDS’s e MDT’s para ressaltar as lise morfológica, não permitindo assumir de forma
microtopografias arqueológicas, nomeadamente o clara se poderia tratar-se de uma entrada original.
local relief model (Hesse 2010), o positive openness O facto desta possível entrada se localizar ao longo
(Doneus 2013) e o sky-view factor (Zakšek et al. 2011). de uma linha de cumeada, que se desenvolve entre
o exterior e o interior do povoado, associada à ine-
4. RESULTADOS xistência de qualquer reforço ou dissimulação para
proteção do acesso, dificulta a sua associação a uma
Os levantamentos drone-LiDAR efetuados nos po- entrada do povoado. Também a extensão da mura-
voados dos Castelos e do Laço permitiram aferir que lha em direção ao rio suscita algumas dúvidas de lei-
as áreas de ocupação são superiores ao proposto na tura, difíceis de confirmar nas observações feitas no
bibliografia existente e possibilitaram a definição, terreno, devido à pendente pronunciada.
pela primeira vez, das plantas das suas muralhas. O troço Sudeste, com uma extensão de 244 metros,
Estes dados permitem-nos novas leituras, com parti- é constituído por dois tramos curvos que acompa-
cular destaque para o caso dos Castelos, que revelou nham as curvas de nível e projetam-se para o exterior
um nível de extensão e complexidade pouco expetá- como falsos torreões, constituindo a zona de maior
vel, com a identificação de várias linhas de muralha imponência e que simultaneamente permite um
e uma área de ocupação que suplanta tudo o que se controlo e eficácia defensiva mais abrangente para
conhece para o quadro regional do Bronze Final do várias direções. Esta situação é semelhante à deteta-
Sudoeste Peninsular. da no Castelo da Crespa, que também evidencia cur-
No Laço foi possível definir uma área estimada de vas pronunciadas na muralha a projetarem-se para
ocupação em torno aos 10 hectares, bastante supe- o exterior, mas que nesse caso também incluem um
rior à projeção inicial que se cifrava em cerca de 6 grande bastião semicircular (Serra et al. 2023: 59),
hectares, em função dos limites definidos pela mu- situação não identificada no Laço.
ralha e pela escarpa em direção ao Guadiana (Figu- A muralha prossegue em direção ao rio, a Oeste, num
ras 2 e 3). Estes dados são semelhantes aos obtidos último troço com cerca de 500 metros, interrompido
para o povoado do Castelo da Crespa (com uma área nas escarpas do Guadiana. Este troço é mais irre-
de cerca de 9,5 hectares), também alvo de um levan- gular, face à adaptação às curvas de nível, mas não
tamento no âmbito do projeto Odyssey, e com o qual exibe a situação de curvas pronunciadas para o exte-
partilha outros elementos comuns (Serra et al. 2023). rior, como eventual reforço defensivo. Também aqui
A muralha do Laço desenvolve-se de forma linear e se observa uma interrupção na muralha, com cerca
394
paralelas e muito próximas entre si que aparentam taludes, alteando artificialmente a muralha. Estas
corresponder a derrubes e destruições da muralha, situações ocorrem sobretudo em zonas de maior de-
facilmente observáveis no terreno, onde se registam clive e poderão estar relacionadas com a estabiliza-
algumas acumulações recentes de pedras e cortes no ção das encostas para evitar escorrências de terras.
talude para passagens eventualmente associadas à O troço Sul é mais irregular e termina na encosta
utilização agropecuária do sítio na atualidade. sobre o rio, adaptando-se às curvas de nível e con-
A linha de muralha mais interior define um recin- tornando desníveis pronunciados, que formam pelo
to com cerca de 20 hectares e apresenta diversos menos duas zonas mais projetadas para o exterior
reforços defensivos. como falsos torreões.
O troço Norte tem cerca de 450 metros e integra um No interior, que forma duas vastas áreas aplana-
grande bastião com 70 metros de diâmetro. Entre o das, registam-se algumas possíveis estruturas de di-
bastião e o fim do troço em direção ao rio, a muralha fícil interpretação.
apresenta uma seção bastante projetada para o exte- A primeira localiza-se a 100 metros para Sul do bas-
rior, formando uma “cunha” e também outro possí- tião Este e tem um comprimento de 70 metros por
vel bastião que rodeia uma área aplanada, com cerca 50 metros de largura, com forma elíptica, que po-
de 18 metros de diâmetro, coincidente com o fim do deria estar relacionada com uma eventual zona de
troço da muralha. Este bastião possui excelente vi- acrópole, situação semelhante à registada no Castro
sibilidade para os pontos mais elevados do interior de Ratinhos e com dimensões equivalentes.
do povoado, em direção a Sudoeste e Sul, onde se A outra estrutura interior encontra-se sensivelmente
localizam dois recintos, bem como para o povoado ao centro do povoado, sobre um outeiro arredondado,
do Laço e o Rio Guadiana, em direção a Nordeste. mas a uma cota inferior e virada ao rio, que poderá ter
Do lado Oeste do bastião a muralha encontra-se cor- acolhido uma torre com cerca de 15 metros de diâme-
tada pelo mesmo caminho de acesso que atravessa tro, integrada num recinto com 90 por 50 metros.
a muralha exterior, mas que aqui possibilita uma Tal como no Laço, também no povoado dos Castelos
melhor observação de um corte na muralha, cons- não se assinala nenhuma entrada evidente, com a
tituído por blocos de pedra irregular (xisto) e terras devida salvaguarda anteriormente mencionada.
argilosas de tom alaranjado, com cerca de 1,5 metros
de altura conservado e 13 metros de largura, com 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
derrube para o exterior.
Este troço faz uma inflexão de 90º, acompanhando Os dados obtidos com os levantamentos microto-
a muralha exterior e aparenta possuir outro bastião pográficos efetuados nos povoados fortificados do
no local da inflexão. Este bastião é mais irregular e Bronze Final do Laço e dos Castelos demonstram
bastante destruído, mas com dimensão semelhante. o grau de utilidade dos métodos não-invasivos apli-
A leitura do levantamento sugere que o bastião Oeste cados, em particular do sistema drone-LiDAR. Este
terá sido adossado à muralha, enquanto o bastião Este permitiu uma melhor caraterização dos respetivos
integra-se diretamente na linha de muralha, podendo sistemas defensivos, por vezes pouco evidentes e
por isso tratar-se de uma obra de reforço posterior. percetíveis em imagens aéreas ou de satélite, ape-
Este grande aparato defensivo poderá indicar a pre- sar da sua monumentalidade, sobretudo no caso
sença de uma entrada principal, que a existir estaria dos Castelos. Os trabalhos possibilitaram o mapea-
praticamente na mesma zona onde o caminho de mento detalhado das muralhas que delimitam os
acesso cortou a muralha, dificultando a sua identifi- sítios, a identificação de troços desconhecidos até à
cação. No entanto, também deveremos ter em con- data, bem como a definição das respetivas áreas de
sideração que esta é a zona de mais fácil acesso ao ocupação. No caso do Laço é revista para cerca de
povoado, pelo que a presença de dois grandes bas- 10 hectares, dimensão similar ao povoado do Cas-
tiões poderia assim ser facilmente justificada. telo da Crespa, também objeto de um levantamento
O troço Oeste desenvolve-se desde o bastião até drone-LiDAR no âmbito do projeto Odyssey (Serra et
uma larga curva que inicia o troço Sul, numa exten- al. 2023), e no respeitante aos Castelos, passa agora
são de 330 metros, sem outros elementos dignos de a ser considerada uma área máxima de 45 hectares,
nota. No entanto, é de assinalar a presença de alguns em vez dos 4 a 6 hectares anteriormente indicados.
troços com acumulação recente de pedras sobre os De referir que o mapeamento digital realizado a
396
ze Final. In Raquel Vilaça e Miguel Serra (coord.), Idade do
Bronze do Sudoeste – Novas perspectivas sobre uma velha
problemática. Coimbra: IAFLUC, CEAACP, Palimpsesto
[http://www.uc.pt/fluc/iarq/pub_online/], pp. 75-99.
Figura 2 – Laço: Ortofoto DGT 2018 (A); MDS-LiDAR (B); MDT-LiDAR (C); Proposta interpretativa
do sistema defensivo (D).
398
Figura 3 – Laço: Vista de Sudeste para Noroeste (A); Talude da muralha no sector Sudeste (B); Vista para o Rio
Guadiana, quadrante Nordeste (C); Vista para o Rio Guadiana, quadrante Sudoeste (o povoado dos Castelos
está ao centro da imagem em segundo plano) (D).
Figura 4 – Castelos: Ortofoto DGT 2018 (A); MDS-LiDAR (B); MDT-LiDAR (C); Proposta interpretativa do
sistema defensivo (D).
400
METAIS DO BRONZE FINAL NO OCIDENTE
IBÉRICO. O CASO DOS MACHADOS DE
ALVADO A SUL DO RIO TEJO
Marta Gomes1, Carlo Bottaini2, Miguel Serra3, Raquel Vilaça4
RESUMO
No presente estudo analisamos nove machados de alvado procedentes do território a sul do rio Tejo, sendo
na sua maioria machados com duas argolas. Este texto tem como base interpretativa um conjunto de
dados empíricos aos quais se junta um quadro de análises químicas a que foram submetidos alguns destes
artefactos. Estes materiais, infelizmente, carecem de um contexto específico, limitando o enquadramento
arqueológico e contextual dos mesmos. Porém, com o cruzamento dos dados de natureza arqueológica e das
análises realizadas, pretendemos valorizar este conjunto material no quadro das dinâmicas das sociedades
humanas que viveram a sul do Tejo nos finais da Idade do Bronze, contribuindo assim para o conhecimento
acerca destas mesmas, cuja informação é ainda insuficiente.
Palavras-chave: Bronze Final; Machados de alvado; Arqueometalurgia; Sul de Portugal.
ABSTRACT
In the present study we analyze nine socketed axes from the south territory of the Tagus River, mostly double-
looped types. This paper is based on a set of empirical data, together with a set of chemical analyses of some
of these artefacts. These materials, unfortunately, lack a specific context, limiting their archaeological and
contextual framework. However, by cross-referencing the archaeological data and the analyses carried out, we
intend to value this set of materials within the framework of the dynamics of the human societies that lived
south of the Tagus River during the Late Bronze Age, thus contributing to the knowledge about these societies
still poorly known.
Keywords: Late Bronze Age; Socketed axes; Archaeometallurgy; South of Portugal.
2 . Geography, Archaeology and Palaeoecology, School of Natural and Built Environment, Queen’s University Belfast (Reino Unido).
Laboratório HERCULES / In2Past, Universidade de Évora (Portugal). / [email protected]
402
ra Alambre), num terreno a norte do rio Sorraia, a 2.4. Alandroal (Évora) (Fig.1.4)
NW do Couço, numa região onde as evidências as- Machado de gume arredondado e cujo alvado é de
sociadas ao Bronze Final parecem ser inexistentes. secção quadrangular. A “boca” do alvado apresenta-
Os parcos testemunhos das últimas etapas da Ida- -se fragmentada, sendo incerto se a peça possuiria
de do Bronze no concelho de Coruche distribuem- ou não argolas. A superfície das faces apresenta al-
-se mais para Ocidente na zona onde se encontram gumas rugosidades. Corresponde ao tipo 42A (Oes-
as águas da Ribeira do Divor com as do Sorraia, e te-Portugal) (MONTEAGUDO, 1977: 250, Est. 119).
onde também se concentram outros vestígios já da Os dados que possuímos relativamente a este ma-
Idade do Ferro. chado não são os mais significativos. A primeira re-
ferência a esta peça foi feita por Monteagudo (1977:
2.2. Coruche (Fig. 1.2) 250) que refere que o machado estaria associado ao
Machado de alvado de duas argolas com suave ner- povoado do Bronze Final/Ferro Inicial do Castelinho
vura longitudinal, gume simétrico acusando pouco (CALADO, BARRADAS & MATALOTO, 1999: 371).
desgaste; o alvado é subquadrangular com duas ner- Monteagudo mencionou também que este machado
vuras de reforço. Sem rebarbas de fundição. Uma se encontrava presente na coleção de artefactos do
das faces encontra-se fragmentada no alvado, área MNA, embora o número de inventário que assinalou
junto à qual existe um alvéolo irregular decorrente corresponda na verdade a um machado plano, como
de um deficiente processo de fundição com perda foi possível confirmar-se no processo de pesquisa no
de material. Pátina esverdeada e irregular. Compri- âmbito deste estudo. Assim sendo, as circunstâncias
mento: 18 cm; largura (gume 5,5 cm, lâmina 3,9 cm); concretas do machado de alvado procedente da re-
espessura (lâmina) 3,2cm; alvado (4,7 x 4,2 cm; pro- gião do Alandroal são um tanto dúbias, não havendo
fundidade: 8,8 cm); peso: 750,3 g. provas concretas de ter sido encontrado em circuns-
Nada se conhece sobre as suas circunstâncias de tâncias que o pudessem associar ao povoado do Cas-
achado nem, tão-pouco, é segura a sua proveniência telinho.
atendendo a que corresponde a aquisição feita na
Feira da Ladra (Lisboa) a 7 de dezembro de 1920. É 2.5. Évora (Fig. 1.5)
essa a informação que consta na respetiva etiqueta Machado de duas argolas com alvado de secção
manuscrita por Mesquita de Figueiredo, que deixou quadrangular e gume convexo bastante gasto. Pos-
a peça, até aqui inédita, em legado ao Museu Muni- sui uma nervura central saliente em ambas as faces
cipal Dr. Santos Rocha (Figueira da Foz). bem como algumas fraturas nos bordos. As argolas
encontram-se fragmentadas, ficando a faltar a infor-
2.3. Soeiros (Arraiolos) (Fig.1.3) mação se este foi o resultado de uma ação intencio-
Machado de alvado com duas argolas possuindo uma nal ou não. Esta fratura deixa em aberto a possibili-
nervura central e um gume convexo com algum des- dade de este machado poder ter servido, em algum
gaste. Não é disponibilizada informação sobre as suas momento, como escopro. De acordo com a tipologia
dimensões nem sobre o tipo de secção do alvado. de Monteagudo enquadra-se no tipo 41E (Fiães)
O machado foi encontrado no sítio de Soeiros (Ar- (MONTEAGUDO, 1977: 246, Est. 118). Possui as se-
raiolos) localizado na margem esquerda da Ribeira guintes dimensões: comprimento: 17,5 cm; largura
de Tera (CALADO, DEUS & MATALOTO, 1999: máxima (gume): 5,3 cm; espessura: 4,8 cm.
759). Apesar de as circunstâncias de achado deste Desconhecem-se as circunstâncias em que este ma-
artefacto serem desconhecidas, sabemos que foi en- chado apareceu, sabendo-se apenas que é prove-
contrado isolado num espaço onde terá existido um niente da região de Évora.
núcleo habitacional de reduzidas dimensões (VALÉ-
RIO & alii, 2018: 258), com vestígios que remetem 2.6. Alfarim 1 e 2 (Sesimbra) (Fig. 1.6)
para um período entre o Bronze Final e a I Idade do O machado 1 (MNA 17480), sem argolas, apresen-
Ferro, podendo ter correspondido a um pequeno po- ta um gume arredondado com algumas marcas de
voado aberto sem qualquer vestígio de fortificação uso. O alvado é de secção quadrangular e a lâmina
(CALADO, DEUS & MATALOTO, 1999: 760-761). possui uma nervura central. Corresponde ao tipo 41
E1 de Monteagudo (1977: 247, Est. 118). Apresenta as
seguintes dimensões: comprimento: 13,02 cm; lar-
404
por um motivo decorativo, ou com outro significado, cia de raios-X Bruker Tracer III SD, tendo como base
em “V”, i.e., Monte do Olival. Relativamente a esta as condições descritas em (BOTTAINI, 2021).
última ocorrência, estamos perante um motivo que Os resultados apontam para machados compostos
não é muito comum em território português, com por uma liga binária de Cu e Sn com reduzidas im-
paralelos, todavia, num outro machado de alvado purezas (Fig. 2). Bronzes bastante puros são carac-
procedente de Santo Tirso (MONTEAGUDO, 1977: terísticos da metalurgia do Bronze Final portuguesa
245, Est. 117; MELO & ARAÚJO, 2000). Outros pa- e da maior parte dos restantes machados de alvado
ralelos são igualmente conhecidos em Espanha, no- até à data analisados. Cabem neste modelo compo-
meadamente no depósito de Rippol (Girona) (HAR- sicional, por exemplo, os exemplares de Candemil
DARKER, 1976: 155), na Galiza e Astúrias, regiões (Amarante) e Lugar da Bouça (Vila Nova de Fama-
estas onde se verifica a maior concentração deste licão) (BOTTAINI & alii, 2012a), no Norte, Monte-
tipo de machados (MONTEAGUDO, 1977: Est.142). muro (CRUZ & alii, 2018: 74), Casais da Pedreira
A escassez de informações sobre os contextos de (Alenquer) (BOTTAINI & alii, 2012b), Coles de
procedência dos machados incluídos no catálogo Samuel (4 exemplares) (Soure) (BOTTAINI & alii,
não permite tecer qualquer tipo de consideração so- 2016), Cabeço de Maria Candal (4 exemplares) (Ou-
bre a sua possível cronologia em termos contextuais. rém) (GUTIÉRREZ-NEIRA & alii, 2011; VILAÇA,
Contudo, a este respeito, importa salientar a asso- BOTTAINI & MONTERO-RUIZ, 2014), no centro,
ciação que ocorre no depósito de Pedreiras entre um e Soeiros (Arraiolos) (VALÉRIO & alii, 2018), no sul
machado de alvado e uma foice de talão de tipo Ro- de Portugal.
canes (SERRÃO, 1966), tipologia atribuída, segundo Ao contrário desses, um machado de alvado proce-
A. Coffyn, ao Bronze Final III (900-700 a.C.) (CO- dente do rio Cávado (BETTENCOURT, 1998; BET-
FFYN, 1985: 222), ou à fase IIIb (séc. VIII a.C., hori- TENCOURT, 2001: 33), assim como os exemplares
zonte Baiões/Vénat), de acordo com M. Ruiz-Galvez do Castro de Fiães (Santa Maria da Feira) (BOT-
Priego (RUIZ GÁLVEZ-PRIEGO, 1986: 15). TAINI & alii, 2012a: 28), de Santo Tirso (MELO &
Ainda sobre os contextos originais, os machados de ARAÚJO, 2000: 56) e de Vila Cova-à-Coalheira (Vila
Soeiros e do Alandroal podem ter estado integrados Nova de Paiva) (MENDES, 2009: 70; CRUZ & alii,
numa esfera de cariz doméstico, uma vez que foram 2018:74) exibem uma composição bastante distinta,
encontrados em sítios onde se encontraram evidên- pois possuem teores de chumbo acima de 7%. Isso
cias materiais associadas a núcleos de habitação, sugere que a presença desse elemento químico é re-
embora o machado do Alandroal coloque algumas sultado de uma adição intencional durante o proces-
dúvidas acerca da sua proveniência. Procedem de so de produção.
possíveis depósitos os achados de Alfarim e Pedrei- Independentemente da presença de chumbo, ob-
ras, uma vez que nos parece viável que os objetos serva-se que, de acordo com os dados disponíveis,
que integram estes conjuntos (estando estes asso- o Sn presente nos machados de alvado oscila entre
ciados a práticas agrícolas) tenham sido escolhidos aproximadamente 6% e 15% (Fig. 3A), sendo que a
previamente por uma comunidade, para integrarem presença de elementos secundários é reduzida, na
uma esfera simbólica associada à valorização do maior parte dos casos, abaixo de 1% (Fig. 3B). De-
trabalho (VILAÇA, 2006: 86-87; BOTTAINI, 2013: vido à escassez de dados analíticos disponíveis, não
305). Infelizmente, os restantes machados de alvado é possível identificar tendências significativas. No
carecem de um contexto específico, dificultando a entanto, é possível observar que machados de alva-
conceptualização dos significados sociais e culturais do com composição binária encontram-se em todo o
que possam ter estado associados a estes artefactos. território português. Por outro lado, os quatro exem-
plares com maior teor de chumbo concentram-se na
3.2. Tecnologia de produção região Norte/Centro Norte (Fig. 4) onde, aliás, este
Até à presente data, apenas uma pequena parte dos tipo de metalurgia é caraterístico da passagem entre
machados de alvado conhecidos no registo arqueo- o Bronze Final e o Ferro inicial, estando particular-
lógico português foi analisada. No âmbito do presen- mente associada à produção de machados de talão
te estudo, foi possível analisar mais dois exemplares (BETTENCOURT, 2001; BOTTAINI, 2013).
dos nove procedentes do sul de Portugal. A análise
foi realizada com um espectrómetro de fluorescên-
Os autores agradecem ao Dr. António Carvalho, Di- BRADLEY, Richard (1990) – The Passage of Arms. An archaeo-
retor do Museu Nacional de Arqueologia, e à Dr. Sara logical analysis of prehistoric hoards and votive deposits. Cam-
Ramos do Museu de Ferreira do Alentejo, pelas au- bridge. University Press.
torizações concedidas para a análise dos machados BRANDÃO, Domingos de P. (1962) – Achados soltos de co-
cujos dados são apresentados no presente trabalho. bre e bronze no concelho de Arouca. Studium Generale, IX
Agradecem ainda à Drª. Manuela Silva, Chefe de (1) (Actas do I Colóquio Portuense de Arqueologia). Porto,
Serviço do Museu Municipal Dr. Santos Rocha (Fi- pp. 85-93.
gueira da Foz), a autorização para estudo do macha- CALADO, Manuel; BARRADAS, Manuel Pisco; MATALO-
do inédito atribuído a Coruche. O trabalho laborato- TO, Rui (1999) – Povoamento proto-histórico no Alentejo
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Monte do Olival MMF.O.490/04 FAL01 89.2 9.7 0.7 0.2 0.07 0.03 0.1
Figura 2 – Resultados das análises realizadas por XRF nos dois machados de alvado com duas argolas. Valores em percentagem
normalizados ao 100%. N.d.: não detetado.
408
Figura 3 – Histograma da distribuição do estanho (6A) e dos elementos secundários (6B) nos machados de alvado analisados e
citados no texto.
RESUMO
Este artigo pretende apresentar os resultados preliminares dos trabalhos realizados nos Castros de Ul e Recarei,
Oliveira de Azeméis, em 2022.
No Castro de Ul, o espólio recolhido foi pouco numeroso, e surgiu em camadas que cobriam um conjunto de
estruturas, relacionadas com a proteção do povoado, que foram exumadas durante a escavação. Estas parecem
estar, sobretudo, relacionadas com a última fase de ocupação do povoado, nos séculos III e IV d.C.
No Castro de Recarei o espólio recolhido foi bastante numeroso, e parece sugerir dois momentos de ocupa-
ção, correspondentes ao Bronze Final e Idade do Ferro. A ausência de construções em pedra sugere a utilização
de estruturas perecíveis, cujos negativos identificados em escavação serão o testemunho que subsistiu da
sua ocupação.
Palavras-chave: Resultados; Preliminar; Povoados; Ul; Recarei.
ABSTRACT
This article intends to present the preliminary results of the works carried out in Castro de Ul and Recarei,
Oliveira de Azeméis, in 2022.
In Castro de Ul, the collection was few in number, and appeared in layers that covered a set of structures, related
to the protection of the settlement, that were exhumed during the excavation. These seem to be, above all,
related to the last phase of occupation of the settlement, in the 3rd and 4th centuries AD.
In Castro de Recarei, the collection was quite numerous, and seems to suggest two periods of occupation,
corresponding to the Late Bronze and Iron Age. The absence of stone constructions suggests the use of per-
ishable structures, whose negatives identified in the excavation will be the surviving testimony of the settle-
ment’s occupation.
Keywords: Results; Preliminary; Settlement’s; Ul; Recarei.
Situado a sul do Douro, o território do concelho de conhecido pelos habitantes da aldeia por ser um lo-
Oliveira de Azeméis situa-se no limite do horizonte cal onde ainda eram visíveis fragmentos de cerâmi-
cultural conhecido como cultura castreja. Essa loca- cas e os alicerces de muros de construções antigas,
lização, afasta geograficamente estes povoados da- possivelmente reaproveitados para a construção de
queles que reconhecemos como exemplos clássicos novas habitações (Carqueja 1909 pp. 347–354).
do mundo castrejo, mas permite, porventura, identi- Não surpreende que ao longo do século XX, diver-
ficar variáveis resultantes da sua implantação numa sos autores (Almeida 1956) (Alarcão 1974) (Silva
zona de transição. 1993) (Silva 1995) (Silva 2007) (Mantas & Alvarez
Martínez 2012) tenham, sobretudo em estudos de
Figura 1 âmbito regional ou nacional, feito referência ao sí-
No início do século XX, o monte do crasto em Ul, era tio arqueológico e à sua importância no contexto da
412
mento cronológico à muralha e esclarecer a forma deste alargamento da muralha, funcionando como
como se articula com a porta, nomeadamente se um contraforte da mesma. Admitimos ainda a possi-
esta é posterior ou coeva à construção da muralha, bilidade de a sua implantação estar relacionada com
porque os trabalhos de escavação não foram direcio- a porta, funcionando como um elemento de estran-
nados para procurar obter dados que permitissem gulamento da passagem para o interior da platafor-
essa resposta, temos uma maior clareza quanto às ma, algo que, nesta fase, ainda não é possível afirmar.
estruturas que encostam à muralha. Referimos que este alargamento suscitou novas
O alargamento da área escavada em direção a norte questões. Uma delas passa pela eventual necessi-
revelou-se decisivo para esse propósito, visto que nos dade de reinterpretação dos dados resultantes dos
permitiu perceber a continuidade da muralha que trabalhos de Maia Marques na década de oitenta.
mantém as mesmas dimensões e uma orientação Na sondagem que designa como Setor B (Marques
que acompanha o talude. Se este dado era expectá- 1989), Maia Marques assinala na planta publicada, a
vel, visto que os trabalhos de Maia Marques (Mar- existência da face interna da muralha e de um muro
ques 1989) haviam deixado à vista uma parte da mes- cujo limite interior se encontra sensivelmente à mes-
ma e, como referimos, havia pontos dispersos onde a ma distância da muralha que a nossa UE[03]. Poderá
sua face externa era observável no talude, o prolon- este muro corresponder, também ele, a este alarga-
gamento, com uma orientação paralela, da estrutura mento da muralha? Neste momento não consegui-
– UE[03] – que lhe encostava não seria tão evidente. mos ter uma resposta clara a esta hipótese. Se o autor
É certo que em corte havia indícios de um pro dos trabalhos, não lhe atribuiu uma funcionalidade
longamento dessa estrutura. Porém, se a mesma específica, ficando-se pela designação de “muro
correspondesse a um compartimento construído de delimitação (?)”, acrescentando, contudo, que a
aproveitando a muralha teríamos uma parede a de construção era descuidada e a espessura irregular,
finir o seu limite norte. predominando pedras de dimensão média (Marques
A definição do topo das estruturas permitiu perceber 1989), o que parece favorecer a hipótese de ser uma
que estas se prolongavam até ao limite da área esca- continuação da nossa UE[03], não é feita qualquer
vada. Não se identificou, deste modo, nenhuma pa- referência à existência de um “derrube” de pedras
rede que delimitasse, a estrutura encostada à mura- no espaço entre este muro e a muralha, deixando um
lha – UE[03]. Assim, e tendo em conta a extensão do grau de incerteza elevado, quanto a essa possibilida-
troço já escavado, parece-nos seguro avançar com a de. Acresce, ainda, que a muralha nessa zona é des-
interpretação de que esta estrutura corresponderá a crita como tendo uma espessura aproximada de 4
um alargamento da muralha. metros (Marques 1989), o que corresponde à espes-
Considerando os dados estratigráficos que já tínha- sura da muralha e alargamento na área por nós es-
mos disponíveis (Tavares & De Man 2020) que indi- cavada. Poder-se-á argumentar que esta espessura
ciavam uma cronologia de construção enquadrável de 4 metros corresponde à integração na muralha de
nos séculos III/IV d.C. para esta estrutura e sugerin- algumas zonas onde o afloramento granítico estava
do que era mais recente que a muralha, parece-nos quase à vista, mas esse é um argumento resultante
não ser esta uma interpretação desprovida de funda- de uma observação empírica e não de uma análise
mento. Este alargamento da muralha duplica sensi- rigorosa e detalhada desse troço da muralha.
velmente a sua espessura, o que parece transforma-
-la de uma simples delimitação de um povoado, ou Figura 4
de uma plataforma de um povoado, numa estrutura Será, muito naturalmente, um dos aspetos a escla-
cuja transposição seria necessariamente mais com- recer com a ampliação para norte da área escavada,
plexa e demorada. Este alargamento duplica, grosso fazendo com que o Setor B das campanhas de Maia
modo, a espessura da muralha que passa de, apro- Marques venha a ser integrado na nossa malha qua-
ximadamente, 2 metros de espessura para, sensivel- driculada, correspondendo às quadrículas A e B 1 e 2.
mente, 4 metros de espessura. O alargamento da área escavada para sul, não foi
A UE[05], que encosta à UE[03], e que pelos dados tão esclarecedor. Se o topo da muralha pode ser
resultantes da estratigrafia do sítio parece correspon- identificado com relativa facilidade, a delimitação
der à mesma fase construtiva pode agora ser, tam- da sua face interna ainda não é totalmente eviden-
bém ela, interpretada como uma estrutura de reforço te. De igual forma, o alargamento da muralha, não
414
A camada cortada pelas estruturas negativas pela sua validade, possibilitarão a obtenção das primeiras
sua compacticidade, poderia admitir-se que corres- datações absolutas de sítios do concelho.
ponderia a um piso. Porém, pela sua pendente, so-
mos tentados a considerar que se trata de uma ca- Figura 9
mada de preparação, destinada a auxiliar a fixação Junto ao limite sudoeste da sondagem, uma camada
dos postes e sobre a qual poderia existir uma camada de argila relativamente compacta e com uma super-
nivelada de circulação. Ao contrário do que sucedeu fície plana, situada a uma cota superior à camada
em 2018, por baixo desta camada compacta recolhe- cortada pelos buracos de poste, poderá correspon-
ram-se alguns fragmentos de cerâmica, ainda que der a um piso. No entanto, no espaço não escavado
numa quantidade pouco significativa (19), o que nos destes quadrantes não se conservou mais nenhum
parece reforçar essa interpretação. elemento que pudéssemos considerar como estando
A ausência de estruturas positivas neste tipo de con- relacionado com aquele.
texto, continua a deixar-nos bastantes interrogações, Sendo o único elemento que poderia representar
uma vez que não conseguimos encontrar uma expli- uma estrutura positiva preservada, optámos pela sua
cação para isso. Em termos locais, os dados que resul- manutenção, pelo que se procedeu apenas à escava-
tam das escavações no Monte Calbo, parecem sugerir ção do quadrante norte, para procurar esclarecer a
a ausência de estruturas positivas nas sondagens ali hipótese da existência de uma outra estrutura nega-
escavadas com os materiais a corresponderem a uma tiva sob os buracos de poste.
ocupação durante o Bronze pleno/Final. No entanto, Com a decapagem das camadas não escavadas em
devemos aqui ressalvar que nessas intervenções a au- 2018, começou a perceber-se que o afloramento termi-
sência de identificação de estruturas foi total. nava de forma abrupta, quase vertical, numa situação
Já no castro de Ul, as estruturas escavadas na década diversa do que acontecia nos outros pontos da sonda-
de oitenta, nomeadamente, as que foram interpre- gem, onde mantinha sempre uma pendente com maior
tadas como pertencendo a estruturas habitacionais, ou menor inclinação, mas relativamente regular.
foram cronologicamente enquadradas na Idade do Percebemos que estávamos perante uma estrutura
Ferro (Marques 1989), apesar da sua planta ortogo- de tipo fossa, escavada no afloramento rochoso, sem
nal. Para períodos de ocupação anterior, o mesmo que no seu interior se recolhessem vestígios orgâni-
autor sugere que as estruturas seriam construídas cos que possibilitassem considerar que se tratava de
em materiais perecíveis. um silo. O material orgânico carbonizado foi todo
Com base nestes elementos parece-nos razoável ad- recolhido a uma cota superior ao topo desta estrutu-
mitir que seria expectável a existência de estruturas ra, não se tendo recolhido qualquer vestígio no seu
positivas em Recarei, algo que ainda não é possível interior, o que parece reforçar a nossa interpretação.
confirmar, nesta fase dos trabalhos. Não se tratando de um silo, poderia equacionar-se a
A escavação dos quadrantes que não tinha sido pos- hipótese de ter servido de lixeira, onde seriam depo-
sível concluir em 2018, veio trazer dados distintos. sitados os restos de materiais e utensílios descarta-
Os materiais recolhidos enquadram-se essencial- dos. Porém, a quantidade muito reduzida de mate-
mente no Bronze Final, havendo a expetativa de riais recolhidos no seu topo e interior, não permite
que tenhamos algumas colagens de fragmentos avançar com essa leitura.
que possibilitem a reconstituição quase integral A sua aparente continuidade, visível no corte Norte,
de formas carenadas. contrasta com o seu limite perfeitamente definido a
Nestes quadrantes não se identificou a camada mui- Sul, sensivelmente a meio entre os dois quadrantes
to compacta e rosada cortada pelos buracos de pos- da sondagem sugerindo que teria uma forma longi-
te. Consequentemente, a presença de estruturas ne- tudinal com a secção em U. O seu limite oeste, quase
gativas foi bastante escassa. vertical e escavado no afloramento, contrasta com o
Em contrapartida identificamos duas camadas com limite este, em que a base é, também ela, escavada
material orgânico, carvões e bolotas carbonizadas, no afloramento, quase na vertical, para, a meio, as-
que se espera venham a permitir a obtenção de da- sumir um formato rampeado.
tações e identificação de espécies, que possibilitem
uma tentativa de reconstituição paleoambiental. As Figura 10
amostras de material orgânico, caso se confirme a Na ausência de elementos materiais que possibili-
416
Figura 1 – Enquadramento regional do território correspondente a Oliveira de Azeméis face aos principais povoados castrejos
do noroeste português.
418
Figura 3 – Plano final da área escavada em 2018, sendo visíveis algumas das estruturas então identificadas.
420
Figura 5 – Topo das estruturas visíveis na sondagem C-3A a sul da porta na muralha, podendo ver-se um alinhamento
que corresponderá à face interna da muralha, mas não sendo claro o limite que corresponderia à face interna do
seu alargamento.
Figura 6 – Conjunto de fragmentos recolhidos sobre as estruturas que permitiam a reconstituição gráfica parcial
das formas.
Figura 8 – Conjunto de fragmentos decorados recolhidos no alargamento da área escavada, com decorações incisas e
estampilhadas enquadráveis cronologicamente na Idade do Ferro.
422
Figura 9 – Camada com concentração de carvões, da qual foi recolhida uma amostra para datação.
Figura 10 – A sondagem no final dos trabalhos, vista de sul para norte, podendo observar-se o afloramento rochoso que
apresenta uma pendente similar à orientação da foto e a fossa nele escavada que parece prolongar-se para lá do corte
norte. No subquadrante – C6 2 é visível o possível fragmento de piso que se optou por conservar in situ.
RESUMO
Reavaliam-se neste trabalho as quatro metalografias atualmente disponíveis para artefactos de ferro atribuídos
ao Bronze Final ou à transição para o Ferro Inicial na Península Ibérica, comentando aspetos relacionados com
a sua cadeia operatória e propriedades físicas através de uma perspetiva interdisciplinar, cruzando contributos
da arqueologia, arqueometalurgia e ciências dos materiais.
Desta reavaliação, apesar do carácter incipiente da metalurgia destes primeiros ferros, assinalam-se
vários indicadores diretos e indiretos do reconhecimento das suas potencialidades físicas que se mostram
perfeitamente adequadas à função para a qual foram produzidos.
Conclui-se com a necessidade de prosseguir com esta linha de investigação, alertando para a importância da
realização de análises metalográficas sob pena de perder um vasto manancial informativo devido à corrosão
destes materiais.
Palavras-chave: Bronze Final; Ferro Inicial; Metalurgia de ferro; Arqueometalurgia; Metalografia.
ABSTRACT
In this paper, the four metallographic analyses available for early iron artefacts from the Final Bronze Age
and the transition to the Early Iron Age in the Iberian Peninsula are reevaluated through an interdisciplinary
framework, articulating contributions from archaeology, archaeometallurgy and material sciences, and
highlighting the aspects related to their operatory chain and physical properties.
Based on these, despite the incipient character of this early iron metallurgy, there are several direct and
indirect indicators that their physical potentialities were recognized and valued, being well adjusted to their
respective functions.
Lastly, we alert to the importance of metallographic analyses to keep this research line active, with the added
risk of losing vast troves of information due to iron’s rapid corrosion.
Keywords: Final Bronze Age; Early Iron Age; Iron metallurgy; Archaeometallurgy; Metallography.
426
Península Ibérica em ferro (Almagro-Gorbea, 1993, em conta que ferro puro, sem quaisquer vestígios de
p. 88; Vilaça, 2006, pp. 94-95) permanece uma ques- carbono, é extremamente difícil de obter (Sauder &
tão em aberto. Williams, 2002, p. 130).
Independentemente da modalidade de adoção ve- Com efeito, embora muitas vezes os termos de “fer-
rificada, a introdução do ferro não foi um processo ro” e “aço” sejam aplicados de forma indiscrimi-
passivo, nem isolado, para as comunidades indíge- nada no meio arqueológico, estes correspondem,
nas. Se por um lado há ainda uma clara continuidade do ponto de vista técnico e químico, a materiais
e predominância dos artefactos de bronze, por outro, diferentes. Por “aço” entendem-se as ligas de fer-
alguns dos dados obtidos através das metalografias ro e carbono passíveis de endurecimento através
sugerem o reconhecimento e valorização de algumas da têmpera (Silva, s/d3, p. 12). Do ponto de vista
das propriedades físicas destes materiais (Araque, químico, correspondem a percentagens de carbo-
2018, pp. 187-188), algo particularmente relevante no no entre, aproximadamente, os 0.42-0.50wt% e
quadro da adoção de um novo metal no seio de co- 1.50wt%. Abaixo deste limiar, aplica-se o termo de
munidades com uma continuada e profícua tradição “aço macio” ou “ferro forjado”, relativamente mais
de metalurgia de bronze (Vilaça, 2006, p. 93). maleável e dúctil. Por sua vez, acima do limite má-
ximo, torna-se num material quebradiço que já não
3. CONCEITOS-CHAVE DA METALURGIA é possível forjar, designando-se de “ferro fundido”
DE FERRO (Bergland, 20196, pp. 51-53; Denig, 1990, pp. 19-24).
Por sua vez, “forjar” consiste em dar a forma e di-
Desde o início da metalurgia do ferro e até meados mensão pretendida ao material (Silva, s/d3, p. 30),
do séc. XIX, os princípios de trabalho e tratamento através de processos mecânicos, como o martela-
deste material mantiveram-se relativamente cons- mento, e que ocorre sobretudo a quente, embora
tantes, salvo pontuais exceções bem circunstancia- pontualmente possa ser feito a frio. Dentro do pro-
das no espaço e no tempo. cesso de forja englobam-se vários, nomeadamen-
Assumindo-se uma postura marcadamente inter- te, e particularmente relevante neste trabalho, o
disciplinar, torna-se aqui fundamental aproveitar o de “calda”, através do qual se ligam como uma só
manancial de informação disponível acerca do tra- peça dois ou mais pedaços de ferro / aço (Silva, s/d3,
balho dito “tradicional” dos ferreiros, cruzando os pp. 102-103). A calda é feita através do aquecimen-
seus conceitos e técnicas de trabalho com as bases to do metal até este se tornar plástico o suficiente
físico-químicas utilizadas pela arqueometalurgia, e para permitir a sua junção através da martelagem.
clarificando o que se entende por determinados con- Aqui, o controlo da temperatura assume-se como
ceitos-chave empregues ao longo deste contributo. fundamental, utilizando-se regra geral a cor de ru-
Salienta-se a importância de uma linguagem técnica bro branco como indicador. Este cuidado deverá
e científica correta e partilhada entre estas diferen- ser particularmente redobrado nos aços com maior
tes áreas do saber, de forma a nela se alicerçar uma percentagem de carbono que mais facilmente se in-
discussão sólida e profícua. cendiam, oxidando a peça e falhando o processo de
Desde logo, importa começar pelos processos de be- caldear (Silva, s/d3, p. 102).
neficiação e redução de minério. Nestes períodos, Finalmente, a capacidade de adquirir têmpera é a
estes correspondem a exclusivamente a processos propriedade fundamental que distingue o aço do
de redução direta, produzindo o designado “ferro- ferro. Consiste no arrefecimento súbito do aço, atra-
-esponja” (Fig. 2), um aglomerado de ferro e escória vés da sua indução em água ou outro líquido, com
(Sauder, 2000), passível de ser consolidado direta- o objetivo de aumentar a sua dureza (Silva, s/d3,
mente numa “barra” de ferro através de forja e cal- p. 118). Do ponto de vista microestrutural, este en-
da. O metal proveniente deste processo apresenta durecimento é conseguido através da formação de
diferentes percentagens de carbono em função da martensite5 a partir do arrefecimento repentino da
sua localização dentro do forno e, particularmente,
do seu contacto com o carvão (Sauder, 2000). As-
5. Martensite (ou martensita), termo metalográfico: estrutu-
sim, a mesma “fornada” poderá dar lugar a aço com ra tetragonal de corpo centrado supersaturada em carbono,
elevadas percentagens de carbono ou a um ferro resultante do arrefecimento repentino da austenita. Extre-
quase desprovido deste, embora seja importante ter mamente dura, mas frágil.
428
Proveniente do sítio da Cachouça (Idanha-a-Nova), dendo a valores de carbono compreendidos entre os
escavado na década de ’90 (Vilaça, 2007). Possui 0.17 wt% e 0.75 wt% em duas micrografias de 190 µm
uma expressiva ocupação durante o Bronze Final, de largura, e os 0.58wt% numa de 500 µm (Araque et
com continuidade para a Idade do Ferro, de difícil alii, 2023, pp. 8-11) (Fig. 4). A ferrite é predominante-
diferenciação estratigráfica. O espólio metálico con- mente alotriomorfa, resultado do seu arrefecimento
ta com vários artefactos em ferro, tipologicamente lento em torno de cristais de austenite pré-existentes.
diversificados, testemunhando uma acelerada in-
corporação deste material, embora ainda coexistin- 5. DISCUSSÃO
do com uma esmagadora maioria de exemplares em
bronze (Vilaça, 2006, p. 97). Apresenta vestígios de Com base na presença de inclusões de escórias e nos
atividade metalúrgica ligada ao bronze (cadinhos e níveis de microdurezas relativamente baixos, Renzi
moldes), mas também potenciais indícios de redu- (et alii, 2013, p. 179) defende que as três lâminas de fa-
ção do ferro (Vilaça, 2006, p. 97). cas analisadas se tratam de artefactos de baixa quali-
À semelhança da “Faca 1” da Moreirinha, este dade, sobretudo se comparados a bronzes coetâneos.
exemplar apresenta uma microestrutura de grãos Com efeito, a metalurgia do bronze na transição do
de ferrite poligonais com abundantes inclusões de Bronze Final para o Ferro Inicial no território atual-
escória. É possível discernir uma ligeira orientação mente português encontra-se no seu auge. Do vasto
dos grãos resultante do processo de forja. O teste de conjunto de artefactos reportáveis a este período e
microdureza de Vickers aponta para um valor médio das análises arqueometalúrgicas a que foram sujei-
de 93.4 HV (Renzi et alii, 2013, p. 179, Fig. 1c). tos, torna-se patente o profundo conhecimento dos
metalurgistas da época. Não só, regra geral, as com-
4.3. Escopro da Rocha do Vigio 2 posições químicas apresentam proporções de cobre
(Reguengos de Monsaraz) e estanho adequadas à funcionalidade pretendida
Escopro de secção quadrangular, com cerca de 18 cm das peças, como são recorrentes os tratamentos ter-
de comprimento, em bom estado de conservação, com momecânicos, identificados através de metalogra-
camada de corrosão predominantemente superficial. fias, que visavam melhorar a eficácia dos utensílios,
Foi recolhido durante as campanhas de escavação melhorando ora a sua dureza, ora a sua resistência,
realizadas no povoado do Bronze Final da Rocha ora ambos (e.g. Bottaini, 2012).
do Vigio 2 (Reguengos de Monsaraz) no âmbito do Em contrapartida, quando nos reportamos à me-
projeto de Minimização de Impactes Arqueológicos talurgia do ferro nestes períodos, falamos dos pri-
do Regolfo do Alqueva (2001-2002). Provém de um meiros artefactos de ferro conhecidos, até agora,
contexto de cabana cuja fase final se encontra datada no território português. Isto não significa apenas
entre os finais do séc. X e início do VIII a.C. (Wk18496: que estamos perante um incipiente trabalho deste
2645 ± 33 BP – 900-770 cal. BC para 2σ) (Mataloto, “novo” material, com toda a necessidade de expe-
2012, p. 202). Encontrava-se estratigraficamente as- rimentação que isso acarreta, e da sua adoção; sig-
sociada a um molde bivalve de fundição de cinzéis. A nifica igualmente que o nosso conhecimento sobre
atividade metalúrgica encontra-se documentada no estes é ainda muito limitado. Limitado não só pelo
povoado com base na presença de escórias à superfí- modesto número de artefactos conhecidos e prove-
cie e de uma tubeira de secção quadrangular. nientes de contextos seguros, como também pelo
Por questões de preservação da peça, a análise foi ainda mais reduzido número de análises metalográ-
realizada em amostra do extremo proximal. Apre- ficas – e pela inexistência, até à data, de contextos de
senta uma liga de aço heterogénea endurecível com trabalho do ferro atribuíveis a momentos pré-fení-
pontuais inclusões de escórias à base de sílica e con- cios na Península Ibérica (Renzi et alii, 2013, p. 180;
centrações variáveis de ferrite vs. perlite10, correspon- Renzi & Rovira, 2015).
Assim, com base nos dados arqueométricos dispo-
níveis das análises a estas quatro peças, há alguns
10. Perlite (ou perlita), termo metalográfico: estrutura que
aspetos que importam apontar, deixando de parte,
consiste em duas fases lamelares, formadas através do arre-
fecimento abaixo do ponto de austenização a 723 º C: ferrita
nesta fase, considerações sobre a origem geográfi-
e cementite. A cementite é um composto químico de ferro e ca destes primeiros ferros e se se poderiam ou não
carbono (Fe3C). tratar de produções locais.
430
rica poderia incluir a produção de aço endurecível ponta de vídia13 embutida em cabo de aço flexível.
(Araque, 2018, pp. 187-188). Esta hipótese pôde O teste desta hipótese seria possível mediante aná-
finalmente ser testada não só através das análi- lise metalográfica, procurando identificar microes-
ses metalográficas realizadas ao cinzel da Rocha truturas de martensite, mas devido à acelerada
do Vigio 2 (c. 900-770 cal. a.C.), como através da corrosão da peça, será mais uma das questões a per-
tentativa de réplica de duas das estelas de Capi- manecer sem resposta.
lla (Badajoz, Espanha), gravadas em rochas duras Ainda assim, como referimos anteriormente, do
(arenito quartzítico) e caracterizadas petrografica- ponto de vista metalográfico, o endurecimento por
mente no âmbito do projeto “As estelas ibéricas da têmpera deixa marcas claras na microestrutura de
Idade do Bronze Final: iconografia, tecnologia e a uma peça, levando à formação de martensite nos lu-
transferência de conhecimento entre o Atlântico e gares onde o arrefecimento é mais rápido, ou seja,
o Mediterrâneo” (DFG-project AR 1305/2-1). Após na superfície da peça. Infelizmente, é esta mesma
este ensaio de arqueologia experimental, testando superfície que está mais sujeita à ação da oxidação,
a eficácia, por parte de um canteiro profissional, acrescendo a dificuldade em identificar evidências
de escopros em bronze (com várias proporções de claras e diretas de endurecimento por têmpera em
cobre vs. estanho e diferentes tratamentos térmi- materiais arqueológicos. Se entre os anos ’70 e ’90
cos), de vários materiais líticos duros (quartzo e houve um claro desenvolvimento nos estudos ar-
quartzito), e de escopros em aço endurecido e não queometalúrgicos aplicados a ferro, a verdade é
endurecido, confirmou-se que os seus motivos não que muitos desses projetos acabaram por não ter
poderiam ser replicados nem com os instrumentos qualquer continuidade (Eliyahu-Behar & Yahalom-
de pedra ou bronze conhecidos do registo arqueo- -Mack, 2018, p. 448).
lógico do Bronze Final / Ferro Inicial, nem com um Assim, do registo arqueológico mediterrâneo glo-
escopro em aço C60 não endurecido, dada a radical balmente contemporâneo do que ora analisamos, o
diferença de durezas (entre 195 HV e 340-530 HV) processo de têmpera foi apenas verificado de forma
(Araque et alii, 2023, pp. 12-16). Adicionalmente, direta pela identificação de martensite numa faca
mesmo quando endurecido, a rápida abrasão do seu proveniente de uma sepultura em Idalion (Chipre),
gume resultante do impacto na superfície da rocha datada do séc. XI a.C. (Tholander, 1971).
obrigava ao seu constante re-endurecimento, ape- Alargando o espectro geográfico, e a título de exem-
nas possível repetindo o processo de têmpera e de plo, microestruturas de martensite foram igualmen-
revenido (Araque et alii, p. 12). Ou seja, a execução te identificadas num escopro recuperado em escava-
destas estelas no Bronze Final / Ferro Inicial re- ções em Mahurjhari (Índia), num contexto megalítico
quereria não só um escopro com as características datado do séc. IX a.C. (Deshpande et alii, 2010).
físico-químicas do da Rocha do Vigio 2, como tam- Nesta linha, importa relembrar a antiguidade dos
bém o conhecimento de como proceder à sua ma- vestígios de produção metalúrgica de ferro identifi-
nutenção e re-endurecimento através de têmpera, cados na África Central, remontando ao 3.º milénio
reconhecendo, por exemplo, as cores como indica- a.C. e precedendo, inclusive, a metalurgia de cobre
doras das temperaturas necessárias para a têmpera na região (Holl, 2020, p. 41). A linha de investigação
(cor cereja clara a c. 850 ºC) e para o revenido (cor aqui conduzida tem trazido à luz inúmeros contex-
castanha-escura a c. 260 ºC). Neste quadro, a con- tos, materiais e estruturas ligados à redução de mi-
firmação da prática de têmpera no escopro da Ro- nério e forja do ferro, indiciando não só um, mas
cha do Vigio 2 fica suspensa até à realização de uma vários locais onde se pode identificar uma inovação
metalografia no seu gume. local do trabalho deste material.
No campo das hipóteses, não podemos igualmente Neste quadro, embora limitados, os dados disponí-
deixar de assinalar o caso do escopro bimetálico de veis através destas quatro metalografias permitem
Baiões, com ponta em ferro e alvado em bronze (Sil- tecer várias considerações acerca da íntima relação
va et alii, 1984), articulação que apenas faz sentido
se aproveitar a dureza de uma ponta em aço endure-
13. Material de carboneto cimentado de dureza extrema-
cido, mas quebradiço, conjugada com um cabo que mente elevada. A designação em português é um estrangei-
absorvesse e dissipasse o impacto (Araque, 2018, rismo adaptado da designação comercial “WIDIA”, a partir
p. 187-188), à semelhança de utensílios atuais com do alemão “wie diamant” = “[duro] como diamante”.
432
AGRADECIMENTOS vant through microstructure analysis. Journal of Archaeologi-
cal Science: Reports. 18, pp. 447-462.
O presente trabalho resulta do projeto “As estelas HOLL, Augustin (2020) – The Origins of African Metallur-
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Figura 1 – Distribuição de artefactos de ferro atribuíveis a contextos do Bronze Final ou da transição Bronze Final – Ferro Inicial.
(Autor: Pedro Baptista, segundo Almagro Gorbea, 1993 e Vilaça, 2006)
434
Figura 2 – Amostra de ferro-esponja seccionada obtida através de redução direta em ensaio de arqueologia experimental realiza-
do na Universidade Autónoma de Madrid (junho de 2023) no âmbito deste projeto e em colaboração com Thomas Mink. (Autor:
Bastian Asmus).
Figura 3 – Têmpera do gume de um escopro em aço C60, assinalando-se a tonalidade cereja clara, indicadora de uma tempera-
tura de cerca de 800-850 º C. (Autor: Ralph Araque Gonzalez).
436
Tabela 1 – Cores representativas da temperatura do metal para forja e têmpera, segundo Bergland
(20196, p. 59) e Santos (s/d3, p. 8-9).
Tabela 2 – Cores representativas da temperatura do metal para o grau de têmpera / revenido, segundo
Bergland (20196, p. 62).
RESUMO
O presente trabalho efetua um breve resumo sobre algumas atividades e resultados obtidos no âmbito de
dois projetos de investigação, IberianTin e Gold.PT, parcialmente financiados pela Fundação para a Ciência
e Tecnologia (FCT-MCTES), que incidem sobre mineração e metalurgia do estanho, bronze, ouro e prata no
Oeste Peninsular durante a Proto-história. Foram investigados vários sítios arqueológicos e geológicos do terri-
tório nacional e galego (Espanha), bem como coleções geológicas e metalúrgicas de vários museus. Foram tam-
bém consultadas várias bases documentais, entre as quais se destacam os registos mineiros. Os projectos pre-
tendem contribuir para bases mais sólidas sobre os processos metalúrgicos antigos, nomeadamente da Idade do
Bronze e da Idade do Ferro, e a sua relação com recursos territoriais e economias antigas.
Palavras-chave: Idade do Bronze; Idade do Ferro; Mineração; Metalurgia; Arqueometalurgia.
ABSTRACT
This paper provides a brief summary of some activities and results obtained within the framework of two resear-
ch projects, IberianTin and Gold.PT, which are partially funded by the Portuguese Foundation for Science and
Technology (FCT-MCTES). The projects focus on the mining and metallurgy of tin, bronze, gold, and silver in
the Western Iberian Peninsula during Protohistory. Several archaeological and geological sites of the Portuguese
and Galician (Spain) territories were investigated, as well as geological and metallurgical collections of several
museums. Various documentary bases were also consulted, among which we highlight the mining records. The
projects aim to contribute to more solid bases on ancient metallurgical processes, namely during the Bronze Age
and the Iron Age, namely establishing relationships with territorial resources and ancient economies.
Keywords: Bronze Age; Iron Age; Mining; Metallurgy; Arc.
1. CENIMAT/i3N, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade NOVA de Lisboa, Caparica, Portugal / [email protected] /
[email protected]
2. CHAM – Centro de Humanidades, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa, Lisboa, Portugal /
[email protected]
440
Os resultados mostram que as escórias (Figura 3) têm tiu identificar os vestígios da mineração do séc. XX
teores relativamente elevados de Ta e Nb, compará- e também lavras mineiras mais antigas, com uso da
veis às escórias romanas de Centum Cellas (centro força hidráulica para explorar aluviões localizados
de Portugal) e diferentes das escórias de estanho nas encostas do vale a norte do castro. Essa explo-
antigas da Grã-Bretanha. Isto mostra que a cassite- ração hidráulica corresponde à tipologia conhecida
rite com teores relativamente elevados de Ta e Nb para o período romano, mas carecemos ainda de da-
em solução sólida, e/ou uma combinação de cassite- dos cronológicos diretos sobre os mesmos.
rite pura com minerais do grupo da columbite (pre- Uma escória de estanho (Figura 4) procedente do
sentes como inclusões ou como associados) foram Outeiro de Baltar e conservada no Museo Arqueo-
utilizados. Estes tipos de concentrado de cassiterite lóxico Provincial de Ourense foi analisada. É o se-
encontram-se facilmente disponíveis na região de gundo sítio da Idade do Ferro com este tipo de ves-
Carvalhelhos, bem como em muitas outras regiões tígios no Noroeste Ibérico. A escória, para além de
do Noroeste da Península Ibérica. estanho, possui também Ta, Nb, W e Ti, o que se
A microestrutura das escórias sugere a fusão total relaciona com elementos encontrados nos minérios
da carga, com exceção dos minerais mais ricos em de cassiterite da região, que também foram anali-
Ta (como a tapiolite) e algumas inclusões de zircão sados, nomeadamente na cassiterite e nos minerais
associados, que foram apenas parcialmente decom- associados aos sedimentos aluvionares da ribeira do
postos. A microestrutura das escórias sugere tempe- Ferradal, que passa na base do castro.
raturas de fusão da ordem dos 1300ºC. Além disso, verificou-se que as ligas de bronze pro-
O estudo mostrou que alguns fragmentos de cerâmi- duzidas no sítio fizeram uso da adição de cassite-
ca/argamassa cozida do sítio poderiam fazer parte rite num processo de cementação ou co-redução.
de uma estrutura de fundição. Duas amostras estu- É provável que o bronze produzido fosse usado para
dadas indicam a utilização de argilas não calcárias, a manufactura de produtos acabados, como artefac-
com propriedades refractárias moderadas (avaliadas tos, enquanto o estanho metálico servia de produto
segundo os padrões modernos). A formação de cris- intermédio, como para a produção de lingotes. Am-
tobalite e mullite sugere que os fragmentos foram bos podem ter servido para consumo local, comér-
submetidos a temperaturas superiores a 1100ºC, cio próximo e de longa distância, especialmente os
o que está de acordo com uma temperatura 100- lingotes, que poderiam facilmente integrar redes de
300ºC mais elevada no centro do forno/fornalha, intercâmbio com zonas sem recursos de estanho.
correspondente à temperatura de formação da escó- Com base nas análises de vários nódulos metáli-
ria. A identificação de hercinite e maghemite mos- cos produzidos no sítio, podem ter sido produzidos
tra que os fragmentos foram expostos a atmosferas bronzes com teores variáveis de Sn (4-15%) e Pb (até
redutoras, como seria de esperar para uma operação 15%). A análise de cinco fragmentos de barras, que
de redução de minério para metal. poderiam ter sido produzidas localmente, mostra-
ram que, para estas peças, os teores de estanho e de
2.2. Produção de estanho metálico no castro chumbo seriam de cerca de 11% de Sn e <2,5% de
de Outeiro de Baltar (Ourense, Espanha) Pb, sendo por isso consideradas como uma liga de
(Idade do Ferro) bronze de boa qualidade. Por outro lado, a análise de
O castro de Outeiro de Baltar (Ourense, Galiza) é várias tipologias de objectos presentes no castro, tais
datado do final da Idade do Ferro /início do período como fíbulas, barras e moedas (as moedas de origem
romano, e encontra-se localizado num sítio onde de- exógena), mostrou uma grande variedade de metais
correram trabalhos de extração de estanho no sécu- e ligas em circulação na época: bronze, bronze com
lo XX. O estudo deste sítio (Figueiredo & alii, 2022) chumbo, latão, cobre e prata metálica.
permitiu evidenciar vestígios de exploração mineira
de diversos períodos e resíduos de metalurgia pro- 2.3. Mineração antiga em extensão, em contexto
duzidos durante o período de ocupação do castro. secundário, no Vale do rio Tinto (Viana do
Relativamente à mineração, dados de detecção re- Castelo)
mota (LiDAR e imagens aéreas históricas) foram O tratamento de dados LiDAR fornecidos pela CIM
combinados com documentação e mapas de arquivo Alto Minho e de imagens aéreas históricas permitiu-
mineiro num SIG. Essa análise cartográfica permi- -nos identificar e mapear antigos vestígios mineiros
442
de estanho em aluvião, cuja importância é impos- Bronze encontra-se principalmente relacionada
sível de avaliar até ao momento, e a existência de com a composição do ouro nativo, que tem geral-
outras minas em contexto primário que ainda não mente entre 5 e 25 % em peso de prata. Os artefac-
foram estudadas, fariam também parte do quadro tos podem ainda ter teores de cobre em quantidades
económico local. Futuras escavações arqueológicas baixas, normalmente <1% em peso, embora o cobre
nos povoamentos próximos para recolher dados me- não esteja normalmente associado ao ouro nativo.
talúrgicos, ou estudos em outras minas antigas, po- Os pares de argolas estudados apresentam composi-
derão ajudar a compreender melhor as economias ções relativamente dispersas, com 10 a 17 % de Ag e
locais e a metalurgia praticada. <2,5 % de Cu, composições estas no entanto dentro
das esperadas para artefactos de ouro da Idade do
3. RESULTADOS NO ÂMBITO DO PROJECTO Bronze no Oeste Peninsular.
GOLD.PT Interessantemente, não foi encontrada qualquer
relação composicional entre as argolas de cada par,
O projecto Gold.PT (PI: Elin Figueiredo) começou que entre elas podem apresentar teores de prata e
com trabalhos prévios durante os anos de 2021 e cobre díspares (Figura 8).
2022, tendo tido financiamento da FCT para 1,5 anos
com início no ano de 2023. O projecto procura col- 3.2. Brincos com trabalho fino de ouro complexo
matar a falta de estudos em peças de ouro e prata da da Idade do Ferro
Idade do Ferro do território nacional, que contrasta Durante a Idade do Ferro, na Europa Ocidental,
com os estudos existentes para o vizinho território como resultado da intensificação do contacto com as
espanhol, ou mesmo a nível Europeu. O estudo foca- culturas mediterrânicas e orientais registou-se uma
-se principalmente na colecção do Museu Nacional evolução significativa no trabalho do ouro. Durante
de Arqueologia, tendo como um dos objectivos pro- este período, o teor de prata e cobre aumentou em
duzir conhecimento que possa ser incluído nos con- relação às ligas usadas durante a Idade do Bronze.
teúdos para a nova exposição da ourivesaria antiga, Também o trabalho fino se desenvolveu, com o uso
assim como para um possível catálogo futuro sobre da filigrana, da granulação, da soldadura e de lâmi-
as peças da Idade do Ferro. Apesar dos trabalhos nas de ouro no fabrico de objectos complexos e este-
ainda se encontrarem em curso, o início dos estudos ticamente ricos.
deu já resultado a uma tese de mestrado (Serrano, Num conjunto de brincos densamente decorados
2022) e a várias apresentações em conferências na- (Serrano, 2022), foi possível determinar a presença
cionais e internacionais. De seguida iremos referir de fios de ouro produzidos através de lâminas finas
alguns dos trabalhos mais significativos e que envol- enroladas e torcidas segundo as técnicas strip e block-
vem peças do Museu Nacional de Arqueologia. -twist nas direcções S e Z, com um diâmetro inferior a
0,7 mm (Figura 9). Foi também possível determinar a
3.1. Argolas/sanguessugas de ouro da Idade do utilização de lâminas finas de ouro para criar volumes
Bronze Final economizando no material, com uma espessuras que
Foi estudado um grupo de oito argolas lisas de variam entre 0,04 e 0,19 mm e grânulos de ouro com
ouro, do tipo sanguessuga, atribuíveis ao Bronze um diâmetro máximo de 1,2 mm, utilizados como
Final (Serrano, 2022; Serrano & alii, 2023b). São fre- elementos decorativos no contorno ou na superfície
quentemente descritas como brincos pelo facto se interior dos brincos. Os resultados obtidos são signi-
se encontrarem aos pares. Dois deles (2017.5135 e ficativos para o estudo das tecnologias antigas, desta-
2017.5136) são provenientes de uma escavação ar- cando-se a ausência de fios produzidos pelo método
queológica recente (Albergaria-a-Velha) e os restan- da fieira, bem como para futuras abordagens de con-
tes fazem parte da coleção do Museu Nacional de servação deste tipo de ourivesaria proto-histórica.
Arqueologia (Lisboa, Portugal) (Figura 8). Apresen-
tam um corpo maciço em forma de meia-lua, com 3.3. Lúnulas de ouro e de prata da Idade do Ferro
terminais curtos e finos que se adelgaçam do centro As lúnulas são objectos que nos remetem para o Cal-
para as extremidades, extremidades estas que se en- colítico ou para a Idade do Bronze Inicial, devido aos
contram ligeiramente afastadas. exemplos emblemáticos da Irlanda, para além de
A composição dos artefactos de ouro da Idade do algumas outras regiões atlânticas. Estes primeiros
444
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Figura 1 – Imagem produzida pela equipa do IberianTin exibindo as ocorrências de estanho na forma de cassiterite (a ver-
de) na Península Ibérica, que representa a maior extensão com mineralização de estanho na Europa Ocidental (adaptado de
Comendador Rey & alii, 2017).
446
Figura 2 – Castro de Carvalhelhos (ao centro da imagem) implantado num alto, junto ao meandro de um ribeiro.
Figura 3 – À esquerda materiais estudados do Castro de Carvalhelhos, que incluem (de cima para baixo, da esquerda para a
direita) uma escória de ferro, dois fragmentos cerâmicos/argamassas de revestimento de forno/fornalha metalúrgico/a e três
fragmentos de escórias de estanho. À direita uma microestrutura de uma das escórias de estanho (imagem BSE, de SEM-EDS,
escala 50 mm), onde são visíveis estruturas dendríticas numa matriz vítrea e ao centro uma inclusão de estanho metálico (a
branco).
Figura 5 – À esquerda, imagem LiDAR (CIM Alto Minho) da zona mineira de estanho estudada no Vale do rio
Tinto com os três sítios delimitados a vermelho: A – Sapeiras, B – Zolas, C – Rasas. A zona é rasgada por uma
autoestrada que terá interferido na topografia da zona central. À direita, membros da equipa durante trabalhos
de campo no sítio de Sapeiras, encontrando-se assinalado os limites de um possível tanque para armazena-
mento de água de utilidade mineira.
448
Figura 6 – À esquerda, imagem do Google Earth do estado actual da cratera deixada pela exploração do séc. XX da mina do
Tuela (Ervedosa). À direita identificação de um filão de quartzo com cassiterite pela equipa durante o trabalho de campo.
Figura 7 – Fotografias de três das oito peças de pedra encontradas na mina do Tuela (Ervedosa) relacionadas com mineração e
processamento de minério durante a Idade do Bronze ou primeira Idade do Ferro.
Figura 9 – Imagem de microscópio digital de detalhes de fios num brinco da Idade do Ferro. À direita os contor-
nos dos fios e marcas da torção das bordas das lâminas que estão na origem da produção dos fios.
Figura 10 – À esquerda imagens de duas lúnulas do MNA, uma de ouro (Au 294 de Viseu) e outra de prata (Au
208 de Pragança). À direita dois espectros de pXRF das mesmas, mostrando que uma foi fabricada numa liga
de ouro com prata e a outra é de prata quase pura.
450
À VOLTA DA PEDRA FORMOSA.
ESTUDO DO BALNEÁRIO ESTE DA CITÂNIA
DE BRITEIROS
Gonçalo Cruz1
RESUMO
Depois de um registo preliminar dos elementos visíveis realizado em 2006, a estrutura conhecida como
Balneário Este da Citânia de Briteiros (Guimarães) identificado primeiramente em 1932, foi alvo de trabalhos
arqueológicos nas campanhas de 2016 e 2018, que permitiram o registo dos elementos conservados, bem
como da estratigrafia associada à sua edificação, abandono e posterior saque. Foram registados dois contextos
distintos de destruição, coincidindo o primeiro com um saque que terá ocorrido na Idade Moderna, e o segundo
com o momento da construção da Estrada Nacional 309, na década de 1930.
A associação deste edifício à mítica Pedra Formosa de Briteiros, recolhida há mais de trezentos anos no sítio
arqueológico, remonta ao primeiro registo de Mário Cardozo, efetuado pouco depois da segunda destruição
parcial do edifício de banhos. Partindo desta ideia, serão apresentados os dados documentais e arqueológicos
que possibilitam essa associação, bem como uma interpretação atualizada dos vestígios do Balneário Este, que
foram, entretanto, alvo de medidas de conservação.
Palavras-chave: Idade do Ferro; Citânia de Briteiros; Pedra Formosa; Balneários castrejos.
ABSTRACT
The East Bathhouse of Citânia de Briteiros (Guimarães), identified in 1932, underwent archaeological works in
2016 and 2018, after a first registration made in 2006. These campaigns allowed the registration of the preserved
elements and the stratigraphy related to its construction, abandonment and later spoiling. There were identified
two different contexts of destruction, the first coincident with a spoiling in the Modern Age, the second with the
construction of the National Road 309, in the 1930’s.
The relation between this building and the mythic Pedra Formosa (ornate stone), taken from Citânia de
Briteiros more than three hundred years ago, was first made by Mário Cardozo, shortly after the second partial
destruction of the bathhouse. From this perspective, we present the written and archaeological sources that
make possible this association, as well as an update in the interpretation of this building, that underwent
conservation procedures.
Keywords: Iron Age; Citânia de Briteiros; Pedra Formosa; Iron Age bathhouses.
1. Sociedade Martins Sarmento; Laboratório de Paisagens / Património e Território da Universidade do Minho (Lab2pt) /
[email protected]
452
nos últimos anos. Em 2006, fez-se uma limpeza dos uma saibreira, ainda bem visível, seguramente aber-
vestígios existentes à superfície e um levantamento ta durante as obras de construção da estrada, fosse
dos mesmos (Lemos et alii 2008). Integram estes a razão para este saque, por muito que fosse estranho
vestígios uma parte da parede semicircular da forna- não existirem no local fragmentos dos elementos das
lha, a parede oeste e parte da parede sul do átrio, um paredes e cobertura, como existiam do pavimento.
arranque da parede entre o átrio e a antecâmara e Foi precisamente a procura dos vestígios desta pare-
alguns elementos de pedra interpretados como par- de ocidental que motivou a implantação desta vala
te do pavimento da antecâmara e da câmara. Con- de sondagem. No entanto, procuravam-se também
serva-se também parte do lajeado do átrio (figura 5). elementos cronológicos, em níveis preservados sob
Um saque verificado em 2014, em que os vestígios a cota de circulação atual, procurando assim facultar
das paredes do átrio começaram a ser desmontadas, à comunidade científica alguns dados relativos à cro-
sendo levadas as pedras em dias distintos, levou à ne- nologia destes balneários, genericamente atribuídos
cessidade de vedação dos vestígios e à reposição de à última fase da Idade do Ferro, e certamente ainda
elementos, evitando o desmoronamento das paredes em utilização após a transição da Era.
restantes (Cruz e Antunes, 2016-2017). Nesta oca- A escavação foi feita preservando todos os elemen-
sião, foi aberta uma sondagem de 5x3,50m de forma tos pétreos visíveis, sendo a conservação dos restos
a tentar recuperar alguma informação estratigráfica do edifício do balneário um princípio fundamental
sobre o edifício. Esta sondagem foi realizada em dois da intervenção. A decapagem dos estratos mais su-
momentos, começada em julho de 2016 e apenas ter- perficiais propiciou, desde logo, duas informações
minada em julho de 2018 (Cruz e Antunes, 2018). relevantes.
A primeira é que um dos elementos pétreos consi-
2. A ESCAVAÇÃO NO BALNEÁRIO ESTE derados como parte do pavimento da câmara, pelas
suas dimensões, mormente a sua irregularidade, é,
Estamos, naturalmente, diante de uma construção na verdade, um elemento da cobertura, voltado para
profundamente afetada, desde já pela construção baixo. A sua superfície visível corresponde à face ex-
do troço da Estrada Nacional 309, que a cortou lon- terior da cobertura, onde se vê um sulco esculpido
gitudinalmente. Além disso, a sua atual implanta- longitudinalmente. Estes pormenores são perfeita-
ção, condicionada pela mesma estrada, dificulta a mente comparáveis aos dois elementos originais que
sua eventual musealização, como dificultou a inter- se conservam da cobertura do Balneário Sul, em que
venção arqueológica. O que resta do balneário fica a a face interior das pedras da cobertura foi perfeita-
pouco mais de um metro do pavimento da estrada, mente regularizada, não tendo o mesmo acabamen-
junto a uma curva. Para oeste, o terreno é bastante to a face exterior. Também no Balneário Sul, um dos
íngreme, estando o que seria o átrio do balneário, elementos da cobertura tem um sulco idêntico ao
quase encostado à face externa da segunda muralha longo da face exterior, o que talvez esteja relaciona-
da Citânia, também cortada pela construção da es- do com a aplicação de cordas usadas para a colocação
trada. Este aspeto sugere, desde logo, que o acesso dos elementos, aquando da construção do edifício.
ao balneário se faria pelo lado este, na parte desapa- Este elemento tinha sido confundido com uma pedra
recida do edifício. do pavimento, por estar à mesma cota das restantes
Logo após a limpeza de 2006, foi identificado o pon- pedras. Quer isto dizer que, neste ponto, o pavimento
to do edifício onde estaria a Pedra Formosa, fazendo da câmara foi também saqueado, ficando este bloco
a divisão entre a antecâmara e a câmara, visível por da cobertura tombado sobre a vala de saque.
um sulco escavado numa das pedras do pavimento, A segunda novidade foi a identificação do emba-
preservando-se ainda a depressão polida no local da samento original da parede oeste da câmara e da
porta que seria o vão da estela (Lemos et alii 2008). antecâmara (figura 6). Sendo esta muito provavel-
Embora se tenha então efetuado uma projeção das di- mente construída com grandes placas retangulares
mensões do edifício original, através da curvatura da de granito colocadas na vertical, à semelhança do
parede da fornalha, não estavam à vista vestígios da que encontramos no Balneário Sul. As placas eram
parede oeste da câmara e da antecâmara, totalmen- colocadas sobre um lancil de pedras mais pequenas,
te saqueadas, ao contrário das paredes ocidentais do que calçavam a parede, regularizando a sua base de
átrio e da fornalha. Pensava-se que a existência de apoio. Este lancil conserva-se no espaço correspon-
454
com o que se considera ser o período de maior ex- CARDOZO, Mário (1935) – Possível identificação do primiti-
tensão do povoado, caracterizado pela construção vo local da “Pedra Formosa”, na Citânia de Briteiros. Revista
da malha urbana que é um dos elementos mais evi- de Guimarães, vol. 45, (3-4), pp. 150-153.
dentes da Citânia de Briteiros (Cruz, 2015: 408). CRAESBECK, Francisco (1992) – Memórias ressuscitadas da
A sua implantação original é hoje difícil de ler devi- Província do Minho em 1726. Ponte de Lima: Edições Carva-
do à alteração topográfica resultante da construção lhos de Basto.
da estrada. É, no entanto, notório que este edifício CRUZ, Gonçalo (2015) – O surgimento do espaço urbano no
de banhos estava muito mais próximo da acrópole Noroeste da Ibéria. Uma reflexão sobre os oppida pré-roma-
que o Balneário Sul, o que também faz sentido com nos. In Martínez Peñín e Cavero Domínguez (eds.) Evolución
a ideia de ter sido este um edifício de banhos com de los espacios urbanos y sus territorios en el Noroeste de la Pe-
nínsula Ibérica (403-424). León: Instituto de Estudios Medie-
maior grandiosidade, admitindo aqui a localização
vales de la Universidad de León, Unidade de Arqueologia da
dos elementos decorados musealizados. Como já Universidade do Minho.
referimos, o acesso ao edifício deveria fazer-se pelo
CRUZ, Gonçalo (2020) – Citânia e Sabroso. Memória histórica
lado oriental, por onde hoje passa a estrada. Por este
e arqueológica. Guimarães: Sociedade Martins Sarmento.
lado, o acesso seria bastante fácil a partir de uma das
entradas principais do povoado, através da quarta CRUZ, Gonçalo (2022) – Pedra(s) Formosa(s) de Briteiros.
e da terceira muralhas. Desconhece-se, todavia, Imagem dupla de uma arte ancestral. In Romero, Adriana
e Patrão, Joana (coords.) Livro das Transfigurações (58-69).
a sua fonte de suprimento de água, mas esta deveria
Braga: GNRation.
provir das cotas mais elevadas, dos terrenos envolvi-
dos pela quarta muralha. Dificilmente seria este edi- CRUZ, Gonçalo e ANTUNES, José (2016-2017) – Citânia de
Briteiros. Notícia dos trabalhos arqueológicos de 2016. Re-
fício abastecido pela mesma fonte que alimentava
vista de Guimarães, vols. 126-127, pp. 433-451.
o Balneário Sul.
Como também seria de esperar, a sua configuração CRUZ, Gonçalo e ANTUNES, José (2018) – Citânia de Britei-
parece integrar-se perfeitamente no modelo tipifica- ros. Notícia dos trabalhos arqueológicos de 2018. Revista de
Guimarães, vol. 128, pp. 205-226.
do dos balneários castrejos da área bracarense (figu-
ra 9), não apenas a nível dos espaços e sua eventual FIGUEIREDO, Luís. "Relação de algumas cidades antigas que
funcionalidade, como também a nível das dimen- estiveram situadas neste Arcebispado de Braga e floresceram
com nome no tempo dos Romanos". Biblioteca Nacional de
sões, idênticas ao exemplar mais próximo, o Balneá-
Portugal, COD 143, fls. 135-137. Noticias do Arcebispado de
rio Sul da mesma Citânia (Figura 10). O comprimen-
Braga remetidas pelo Bispo de Uranópolis / D. Luiz Alvares
to de cada compartimento é, naturalmente, mais de Figueiredo. – [Entre 1716 e 1725].
fidedigno que a área, que se baseia numa projeção
LEMOS, Francisco; CRUZ, Gonçalo e FONTE, João (2008)
que parte de um pressuposto discutível de simetria.
– Estruturas de banhos do território dos Bracari: os casos de
Podia não ser assim, particularmente no caso do Briteiros e de Braga. Férvedes, nº 5, pp. 319-328.
átrio, conhecendo-se exemplares de balneários com
um átrio descentrado. Contudo, a padronização da RÍOS GONZÁLEZ, Sergio (2017) – Los baños castreños del
noroeste de la Península Ibérica. Pola de Siero: Ménsula
planta parece ser uma evidência.
Ediciones.
Talvez futuros trabalhos, pesquisas documentais e
análises de materiais possam vir a desvendar mais SARMENTO, Francisco (1933) – Observações à Citânia do
Sr. Doutor Emílio Hübner. In Francisco Sarmento (autor),
informações sobre o Balneário Este da Citânia de
Dispersos (463-489). Coimbra: Faculdade de Letras da Uni-
Briteiros e a Pedra Formosa. Neste trabalho resumi- versidade de Coimbra.
mos os conhecimentos reunidos até à data e a inter-
pretação que nos parece mais coerente. SILVA, Joaquim (1876) – Esculptura romana conhecida pelo
nome de Pedra Formosa, achada em Portugal, e o que ela
representa. Boletim Architectonico e de Archeologia. 2ª série,
BIBLIOGRAFIA nº 9, pp. 136-138.
ARGOTE, Jerónimo (1734) – Memórias para a Historia Ecle-
SILVA, Armando e MACHADO, João (2007). Banhos castre-
siástica do Arcebispado de Braga, Primaz das Hespanhas,
jos do Norte de Portugal. In SILVA, Armando (cood.) Pedra
Tomo segundo. Lisboa: Lisboa Occidental.
Formosa. Arqueologia experimental. Vila Nova de Famalicão
CARDOZO, Mário (1928) – A Pedra Formosa. Revista de Guima- (21-61) Vila Nova de Famalicão: Câmara Municipal.
rães, vol. 38, Sociedade Martins Sarmento, Guimarães, p. 140.
456
Figura 2 – A Pedra Formosa da Citânia de Briteiros, registada por Cesário Augusto Pinto em 1872, na igreja de Santo Estevão de
Briteiros. Autor: Cesário Augusto Pinto, reproduzido por Silva, 1876: est. 14.
Figura 4 – Vestígios do Balneário Este da Citânia de Briteiros, em 1932. Autor: Mário Cardozo (reproduzido de Cardozo, 1935: 151).
458
Figura 5 – Perspetiva sobre os vestígios do Balneário Este da Citânia de Briteiros, em 2016.
Figura 6 – Alinhamento da base da parede oeste da câmara do balneário, identificado na escavação de 2016.
Figura 8 – Parte dos materiais recolhidos na sondagem de 2016/2018: seixo de granito, cerâmica da Idade do Ferro e fragmento
de gargalo de ânfora Haltern 70.
460
Figura 9 – Levantamento dos vestígios do Balneário Este da Citânia de Briteiros. A linha ver-
melha marca a destruição de 1932; o retângulo azul corresponde aos limites da sondagem; as
linhas a castanho são uma projeção das eventuais dimensões originais. A cinza, o elemento de
cobertura identificado.
462
INTERCÂMBIO NO PRIMEIRO MILÉNIO
A.C., NO LITORAL, ENTRE OS ESTUÁRIOS
DOS RIOS CÁVADO E AVE
Nuno Oliveira1
RESUMO
Neste artigo aborda-se a temática dos contactos suprarregionais existentes entre as populações da faixa costeira
entre o Cávado e Ave, através da diversidade dos materiais exógenos, e de como esses contatos podem ter-se
constituído como mais um fator para explicar as estratégias de povoamento em determinados períodos ou casos.
Para o desenvolvimento deste artigo foram estudadas coleções de materiais de vários povoados considerados
nessa área, como a intervisibilidade entre povoados, genericamente contemporâneos e chegou-se à conclusão
que há estratégias de povoamento, em rede, nos diferentes estuários que possibilitaram o controlo das rotas
marítimas e uma maior facilidade na receção de materiais e ideias exógenas. A transmissão de itens e costumes
para o interior, ter-se-á dado através do intercâmbio local.
Palavras-Chave: Noroeste de Portugal; Faixa costeira; Proto-história; Trocas; Padrões de consumo; Povoamento.
ABSTRACT
This article addresses the issue of existing supra-regional contacts between the populations of the coastline
between Cávado and Ave, through the diversity of exogenous materials, and how these contacts may have
constituted one more factor to explain the settlement strategies in certain periods or cases.
For the development of this article, collections of materials from various settlements considered in this area
were studied, such as the intervisibility between settlements, generically contemporary, and it was concluded
that there are settlement strategies, in a network, in the different estuaries that made it possible to control the
maritime routes and greater ease in receiving exogenous materials and ideas.
The transmission of items and customs to the interior took place through local exchange.
Keywords: Northwest of Portugal; Coastline; Protohistory; Exchanges; Consumption patterns.
464
não publicados, exigindo da nossa parte estudo dos samparados, numa colina do estuário do Cávado.
materiais (Laúndos, em Póvoa de Varzim (Silva, Foi, inicialmente, classificado por Almeida (1996)
1896; Gomes, 1996), S. João3 (Pinheiro, 2020) e S. como sendo um “castro agrícola”. Do seu topo regis-
Paio, ambos em Vila do Conde (Almeida e Pinto, ta-se uma ampla visibilidade para a foz do rio. É de
1994, 1996, 1996a), outros foram alvo de publica- pequenas dimensões, possuindo, todavia, um siste-
ções, mais ou menos desenvolvidas, que possibi- ma defensivo composto por duas muralhas, reforça-
litaram a sua interpretação ou reinterpretação (S. das a norte e a poente por um fosso, seguido de um
Lourenço (Almeida e Almeida, 2015) e Senhor dos talude, em terra (Marques, 2012).
Desamparados, ambos no concelho de Esposende, Este sítio foi escavado sob a direção de Carlos A.
Alto da Torre (Bettencourt, 1999, 2000) e Faria Brochado de Almeida, entre 1996 e 1999, e sob a di-
(Almeida, 1996, 1997; Bettencourt, 1999, 2000)4, em reção de Ana Almeida, entre 2001 e 2007. Aí foram
Barcelos, Terroso (Silva, 1986; Gomes, 1996; Gomes registadas várias estruturas circulares da Idade do
e Carneiro, 2005) e Bagunte (Almeida e Almeida, Ferro (Marques, 2012, 1: 327-328 e 2: LVI).
2015; Almeida, et al. 2020), em Vila do Conde. Num pequeno estudo sobre ânforas foi detetado,
Na margem norte do Cávado (Fig. 1), encontramos pelo menos, um exemplar de tipo tardo-púnico, o
o povoado de S. Lourenço, que se encontra numa tipo T-7.4.3.3 ou Mañá C2b (Silva, 2005-2006, vol. I:
posição privilegiada de controlo visual da platafor- 45, nota de rodapé 282), dados que permitem admitir
ma litoral e do que seria a foz do rio. Foi alvo de es- uma ocupação do Ferro Recente.
cavações arqueológicas (Almeida, 1996; Marques, Mais para montante, no estuário do Cávado, en-
2012; Almeida e Almeida, 2015) com resultados contra-se o povoado do Alto da Torre. Fica locali-
relevantes no que diz respeito à cronologia da sua zado num remate de esporão na vertente nascente
ocupação. Terá tido ocupações calcolíticas uma vez do monte de Catulo, na margem norte do Cávado,
que foram encontrados fragmentos cerâmicos com com visibilidade para oeste e para o interior da ba-
decoração incisa metopada de tipo Penha (Almeida, cia. Foi escavado em 1978 sob a direção de Carlos A.
1996, vol. IV: 46-122), do Bronze Final (Bettencourt, Brochado de Almeida, tendo os resultados sido pu-
1999: 1014-1015), do Ferro Antigo, com uma data- blicados, de forma sumária, pouco depois (Almeida
ção de radiocarbono, datável, a 2 sigma, de entre et al., 1980, entre outros). Um estudo efetuado por
798 a.C. e 484 a.C. (Almeida, 1996). Destacamos Bettencourt (1999: 1014; 2000: 128-129) dos ma-
deste período, o achado de cerâmica ática (tipo teriais das camadas mais profundas da sondagem
krâter-de-sino do tipo 2), da primeira metade do realizada revelaram ocupações da transição entre a
séc. IV a.C. (Ferreira, 2019: 256-257) e uma conta de Idade do Bronze e o Ferro Antigo.
pasta vítrea, oculada (Gomes, 2012). Na margem sul do Cávado, em frente ao Alto da
S. Lourenço foi também ocupado no Ferro Recente Torre, encontra-se o povoado de Faria, localiza-
e durante a romanização (Almeida e Almeida, 2015). do num esporão da vertente noroeste do Monte da
Destes períodos, cabe-nos destacar exemplares de Franqueira, com ampla visibilidade e controlo sobre
ânforas tardo-púnicas de tipos Mañá Pascual A4 o estuário desse rio. Foi alvo de explorações arqueo-
e C2b e uma quantidade importante de ânforas de lógicas, entre 1929 e 1949, pelo Grupo dos Alcaides
tipo Haltern 70 (285 exemplares), além de múltiplos de Faria. Nos primeiros anos da década de 80 (1981-
tipos registados de fabrico gálico, itálico, bético, tar- 1984) foi escavado sob a orientação de Carlos A.
raconense e oriental (Ródia) (Silva, 2005-2006). Brochado de Almeida. Aí foi encontrado espólio com
A pouco mais de 2 km para sudoeste de S. Lou grande amplitude cronológica, desde o Calcolítico
renço, encontra-se o povoado do Senhor dos De até à época medieval, passando pelo Bronze Médio
(?), Bronze Final, Ferro Antigo e Ferro Recente
(Almeida 1996, vol. I: 291-403, 1997; Martins, 1990:
3. Este povoado encontra-se em vários inventários de dis-
sertações de mestrado e de teses de doutoramento (Silva,
75; Bettencourt, 1999, 2000: 50-51).
1986; Queiroga, 1992; Dinis, 1993) mas julgava-se irreme- Foram identificados por nós alguns materiais indí-
diavelmente destruído, até 2019. genas do Ferro Antigo e do Ferro Recente e de im-
4. De referir que analisámos as coleções das escavações
portação, provenientes das antigas escavações dos
antigas deste local que se encontravam praticamente por Alcaides de Faria e das escavações dos anos 80 que se
estudar. encontravam inéditos. Entre os materiais de impor-
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Deste contexto cronológico parece-nos importante podemos propor (com reservas) que o sítio terá tido
trazer à colação um fragmento, inédito, de cerâmi- uma ocupação da Idade do Ferro Recente, sendo
ca de origem setentrional. Trata-se de um bojo de- posteriormente, romanizado.
corado por aplicação plástica, apelidada de deco- Para nordeste de Santagões, entre os rios Ave e Este,
ração perlada (Fig. 4), decoração comum nas Rias fica o povoado de Bagunte, no Monte da Cividade (a
Baixas Galegas (Castiñeira, 1991), até à margem sul 205 m de altitude). Deste local avista-se o povoado
rio Minho, que deve ser considerada, neste contex- anterior, o de S. João e o oceano atlântico, a cerca de
to, como elemento de intercâmbio durante o Ferro 8,5 km. Tem vindo a ser escavado, desde os inícios
Recente. Deste contexto cronológico serão, tam- do séc. XX (Severo e Cardoso, 1896). No entanto,
bém, as duas contas vítreas, uma de cor negra e ou- os resultados e interpretações das estruturas e do
tra azul-cobalto estudadas por Gomes (2012). espólio encontrado só foram publicados com maior
Sobre uma colina da margem norte do rio Ave, im- detalhe, entre os anos 70 e 90 do séc. XX (Almeida,
planta-se o povoado de S. João8, com visibilidade 1974; Silva, 1986, 2007: 200; Almeida, 1992; Dinis,
para o estuário e para o oceano. Foi recentemente 1993; Almeida, 1995). As escavações continuam,
escavado, no âmbito da arqueologia empresarial ao abrigo de vários PNTAS, propostos pela Câmara
por parte da empresa ERA, Arqueologia S.A, sob a Municipal de Vila do Conde. Os materiais estuda-
direção de Rui Pinheiro (Pinheiro, 2020). Pela aná- dos, até 2020, colocavam este local entre o Ferro
lise do seu espólio, sobretudo cerâmico e metálico, Recente (a partir do séc. II a.C.) e a Idade Média
realizada por nós, individualizámos uma ocupação considerando-se o período de maior expansão do
datável da Idade do Bronze Final. Posteriormente, povoado, entre o séc. I a.C. e o a I d.C. (Almeida e
verificou-se uma ocupação do Ferro Antigo e, outra Almeida, 2015: 61). Num artigo recente, foram pu-
do Ferro Recente, que terá ocorrido entre os meados blicados materiais deste local, de entre o Bronze
do séc. II a.C. até aos finais do séc. I d.C., cronologia Final e a Idade Média. Do Bronze Final, será, ain-
proposta com base nos materiais cerâmicos e metá- da, o machado de aletas (Fig. 6), sem contexto, mas
licos, alguns dos quais de importação. Esta última aparentemente encontrado na área deste povoado
fase é a mais bem conhecida quer pelos materiais (Monteagudo, 1977: 142, Tafel 52, n.º 854; Almeida,
quer também pelas estruturas postas a descoberto, et al. 2020). Trata-se de uma peça de importação
que consistem em cabanas de pedra e várias fossas, meridional. Destacamos, ainda, dessa coleção, uma
abertas no substrato rochoso, sendo muito evidente asa de secção bífida que, pela sua pasta e desengor-
o aumento do intercâmbio suprarregional, especifi- durantes e forma devemos enquadrar numa produ-
camente com o mundo romano que dominava ad- ção de tipo púnico ou meridional, talvez de um vaso
ministrativamente o sul da Península Ibérica. É dis- de tipo pithoi, datável do séc. VI/V a.C. (Fig. 4), ou
so prova os vários materiais importados, não só os seja, do Ferro Antigo.
contentores anfóricos de várias proveniências (tais No que concerne ao povoado da Retorta, na mar-
como Haltern 70, Ovóide 6 entre outros) mas, tam- gem esquerda do Ave, localizado a oeste-sudoeste
bém, alguns materiais finos de mesa, como fragmen- do povoado de Santagões e a este-sudeste do de S.
tos de cerâmica cinzenta. Este material de importa- João, poderá corresponder ao Castro Celoria referido
ção data-se do séc. II a.C. até meados do séc. I d.C.. em documentos medievais (Freitas, 1949). Terá tido
Para montante do povoado de S. João, a cerca de 4,5 ocupação da Idade do Ferro (provavelmente do Ferro
km para nascente, na margem norte do estuário do Recente) e da época romana (Alarcão e Alarcão,
Ave, encontra-se o de Santagões, pouco conhecido. 1963: 197; Dinis, 1993: 93-94; Moreira, 2009: 324) Já
Segundo Almeida (1992: 55), trata-se de um “castro no interflúvio entre o Ave e o rio Onda, destacam-se
agrícola” que terá sido ocupado no período romano, os povoados de Boi (Dinis (1993: 94-95) e de S. Paio
segundo Dinis (1993: 42-43). Pelos dados existentes (Almeida e Pinto, 1994, 1996, 1996a; Oliveira, 2020).
Relativamente ao primeiro, sobranceiro a um afluen-
te da margem sul do Ave, mas com excelente visibi-
8. Agradecemos à empresa ERA, Arqueologia S.A., nas pes-
lidade para o atlântico, há indícios de uma muralha,
soas do Doutor Carlos Valera, José Pinheiro e José Carva-
lho o acesso aos dados (documentais e materiais) apurados
de um talude, e de fragmentos cerâmicos micáceos,
nas escavações de 2019 deste povoado, no contexto de uma pertencente a grandes recipientes. Parece ter tido
obra privada. uma ocupação do Ferro Recente, posteriormente
468
Bagunte (no estuário do Ave e foz do Este) e S. Paio próximos, noticiando esse acontecimento. Tal pare-
(no interflúvio Ave-Onda). ce indiciar um modelo (que necessita de ser confir-
Destacamos neste contexto o possível papel do po- mado noutras áreas do noroeste português) em que
voado de S. Paio que, pela sua localização e configu- vários povoados e populações estariam implicadas
ração da costa, poderá ter sido uma espécie de ponto quer no controlo das navegações fenício-púnicas
de referência para a navegação marítima (visto que quer na receção das novidades e no contacto com os
se localiza numa espécie de promontório composto grupos exógenos. Este fenómeno, aliás, parece ser
por caos de blocos granítico, em muitos quilómetros semelhante, ao verificado no estuário do Tejo, em-
de costa) (Fig. 8). Talvez por isso se possa explicar bora com um fundo histórico diferenciado (Arruda,
o aparecimento de um possível bétilo – objeto ceri- 2015) e parece contrariar a ideia de port-of-trade,
monial ligado às crenças religiosas das populações em que apenas um povoado receberia as novidades
púnicas ou meridionais, segundo Rodríguez Corral e depois as distribuiria por outros mais próximos,
(2008). De referir que há paralelos para Punta de defendida por Silva e Pinto (2001) e por González-
Muiño de Vento, Vigo (González-Ruibal, 2006, Ruibal (2006-2007).
González-Ruibal et al., 2010-2011). As matérias trocadas pelas importações seriam o
Devemos notar ainda que, em zonas mais interio- estanho e o ouro (de ter em conta a jazida aurífera
res do curso do rio Este (a cerca de 23 km do litoral), da Lagoa Negra, perto do litoral da Póvoa de
encontram-se povoados que têm, também, mate- Varzim10) e o abastecimento das embarcações com
riais importados desta fase, em quantidade superior água e víveres.
aos povoados costeiros. Tal é o caso de Ermidas e Durante o Ferro Recente o número de povoados
de Penices (Silva e Pinto, 2001: 233-235, 238; Pereira, aumenta consideravelmente, face à época anterior.
2011: 129; Ferreira, 2019: 250-253). Estes materiais te- Agora todos os mencionados no texto são ocupados
riam ali chegado por intercâmbio local, efetuado en- nesta fase, em número de 13. Ainda assim, não se co-
tre populações do litoral e do interior. Neste sentido, nhecem materiais de importação em todos eles, por
a ausência de materiais de importação em S. João, motivos vários11.
instalado perto da foz do Ave, talvez se deva explicar Os produtos cerâmicos consumidos são agora, na
pela pequena área escavada, na vertente nascente. sua maioria, contentores anfóricos tardo-púnicos
Seria expectável que este povoado fosse um impor- e tardo-republicanos (S. Lourenço, Senhor dos
tante recetor e difusor das novidades oriundas de Desemparados, Faria, talvez Alto da Torre, Terroso,
sul, dada a sua localização geoestratégica. S. João, Bagunte, S. Paio), revelando que o importan-
O conjunto de materiais importados, se bem que te são os subprodutos transportados nesses conten-
em quantidades reduzidas, revela um novo padrão tores, nomeadamente o vinho, salmouras e seus de-
de consumo, relativamente à época anterior. Nesta rivados e azeite. Chegam, também, cerâmicas finas
fase, além de ocorrerem materiais de uso corporal de mesa, como em S. Lourenço, Terroso e S. João,
(o caso das contas vítreas) surgem objetos destina- evidenciando novos hábitos alimentares ou osten-
dos a conter/transportar e consumir (krater e phitoi) tação de novas vasilhas para consumos tradicionais,
de uma bebida nova que se introduz com as novida- uma problemática que só se poderia resolver com
des artefactuais. análises de química orgânica a resíduos devidamen-
Também é significativa a distribuição espacial dos te recolhidos.
povoados que recebem importações. Em primeiro Também aumentam os produtos de ostentação pes-
lugar, nota-se que são os povoados dos estuários, soal, como as contas de colar (S. Lourenço, Faria,
face aos dos interflúvios, que recebem maior nú- Terroso, Penices, Ermidas e S. Paio).
mero de peças, o que é normal se pensarmos que
os estuários seriam mais seguros para atracagem
10. Esta jazida, muito próxima do povoado de S. Félix pode
dos navios de longo curso. Também parece existir explicar, em parte a sua localização, mas também o depósito
uma complementaridade entre os povoados litorais, áureo aí encontrado, bem como o depósito áureo, conhecido
os existentes na foz dos rios e os localizados mais a como “Tesouro da Estela” (Fortes, 1905-1908), na freguesia
montante nos estuários, pois cada um deles poderia da Estela, na Póvoa de Varzim, já na plataforma litoral.
controlar percursos distintos das embarcações ten- 11. A ausência de escavações ou sondagens pequenas será o
do, assim, possibilidade de contactar com os mais fator mais determinante.
470
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Figura 1 – Área litoral entre o rio Cávado e Ave com a localização dos povoados mencionados e jazidas de minérios metálicos na
região. Área de estudo destacada da Península Ibérica.
474
Figura 3 – Estuário do rio Cávado: intervisibilidade a partir do povoado de Faria para os restantes povoados nessa área.
Intervisibilidade a cinzento claro.
476
Figura 6 – 1) Possível bétilo de S. Paio; 2) Machado de aletas de Bagunte (Monteagudo 1977: tafel 52, n.º 854)
Figura 7 – Fragmentos com aguada escura em cerâmica indígena registada em Terroso, S. João e S. Paio.
478
Figura 9 – Povoados da área mencionados no texto: em cima os povoados com ocupação no Ferro Antigo, e em baixo s povoa-
dos com ocupação no Ferro Recente.
RESUMO
Documentada desde meados do I milénio a.C., a ocupação do Castro de Guifões estendia-se até ao antigo es-
tuário do Leça, onde o PIPA GUIFARQ tem procurado clarificar a importância da relação do sítio com o rio e
com o Atlântico, atestada pelos materiais arqueológicos e descrita em fontes historiográficas.
Um programa de investigação na intercepção da Arqueologia com a Geomorfologia fluvial contribui para a com-
preensão da envolvente ambiental daquela ocupação através da modelização digital da área, inspecções geofísi-
cas não-intrusivas e ensaios geotécnicos intrusivos para caracterização geométrica e arquitectural da sequência
sedimentar aluvial que bordeja as estruturas arqueológicas na base da vertente.
Os primeiros resultados demonstram a extensão da área edificada para Sul e indiciam diferenças consequentes
na configuração deste sector recuado do estuário na época da ocupação antiga.
Palavras-chave: Castro de Guifões; Arqueologia; Geomorfologia; Geofísica; Programa transdisciplinar.
ABSTRACT
Documented since the middle of the 1st millennium BC, the occupation of Castro de Guifões extended to the an-
cient Leça estuary. The GUIFARQ Research Project has sought to clarify the importance of the site’s relationship
with the river and the Atlantic, attested by archaeological materials and described in historiographic sources.
A research program at the intersection of Archaeology and Fluvial Geomorphology contributes to the under-
standing of the environmental surroundings of that occupation through digital modelling of the area, non-intru-
sive geophysical inspections, and intrusive geotechnical tests for geometric and architectural characterization
of the alluvial sedimentary sequence that borders the archaeological structures at the base of the slope.
The first results demonstrate the extension of the built-up area to the south and suggest consequent differences
in the configuration of this recessed sector of the estuary during the ancient occupation.
Keywords: Castro de Guifões; Archaeology; Geomorphology; Geophysics; Transdisciplinary programme.
482
metros para jusante desta ponte acumulam-se depó- no Campo da Ponte como um “[...] agrupamento
sitos aluvionares de sedimentos, como consequência de edifícios, de forma quadrada e rectangular, com
das cíclicas cheias que periodicamente afectam este átrios e calçadas de acesso, situadas na raiz do Cas-
curso de água, formando uma extensa várzea. Ante- tro e voltados para o mar, onde, segundo remotís-
riormente à construção das docas do Porto de Lei- sima tradição, existiu a lendária Praia dos Mouros
xões, o Rio Leça dividia-se na parte terminal do seu [...]” (Santos 1963a: p. 6).
curso em dois braços. Junto à margem direita passava Também segundo o mesmo autor, os pavimentos das
o Rio Doce, enquanto na margem esquerda corria o construções correspondentes à última fase de ocu-
Rio Salgado. Este último era assim designado porque pação estavam “[...] coberto[s] por camadas mais
na Preia-Mar recebia o influxo da água salgada maríti- ou menos espessas de terras com cinzas. Seguindo-
ma que chegava até à Ponte de Guifões. Este fenóme- -se-lhe entulhos provenientes de ruínas e contendo
no explica o facto de diversos documentos medievais, também muitos e variados fragmentos de cerâmica
produzidos entre os séculos XI e XIV, mencionarem doméstica diversa, bem como tégulas em quanti-
a presença destas “marinhas de sal” (Costa & Cleto dades apreciáveis [...]” (Santos 1963a: p. 6). No ex-
2008: p. 69). No entanto, até ao momento, não foram tremo sul deste conjunto de edifícios foi detectada
ainda realizados estudos arqueológicos que aportem uma pedra reutilizada, com uma suástica gravada
informação adicional sobre estas salinas. (actualmente depositada no Museu da Memória de
Matosinhos), cujos quatros braços apresentam as ex-
1.3. Trabalhos arqueológicos de Joaquim Neves tremidades engrossadas e marcadas com uma covi-
dos Santos na margem esquerda do Leça nha. De acordo com Joaquim Neves dos Santos “[...]
Nas proximidades da ponte medieval, na margem ri- esta lápide estava encaixada na face interior da pare-
beirinha, estende-se o local que era tradicionalmen- de de um estranho edifício, apenas a 25 cm da face da
te conhecido como a “Praia dos Mouros” (Santos lareira de tijolo [...]”, sendo que a referida lareira se
1963a: p. 6). Nesta antiga praia fluvial, actualmente encontrava “[...] num chão de argamassa endureci-
transformada numa horta, afloravam à superfície da de barro cerâmico e terra [...] composta de tijolos
abundantes fragmentos de ânforas romanas. Até assentes horizontalmente, todos muito queimados
1960 esta zona do Campo da Ponte era uma bouça pela acção intensiva do fogo [...]” (Santos 1963b, p.
inculta que prolongava a encosta Poente do Castro 6-7). Observou ainda que alguns dos muros “[...] não
até à “Praia dos Mouros”. Em 1961 os proprietários tinham os alicerces assentes em chão firme, [...] so-
decidiram proceder ao seu arroteamento de forma mente um longo alicerce de cabeço ou de sapata [...]
a convertê-la em campos agrícolas. Foi neste quadro assente no pavimento de terra batida das duas habi-
que Joaquim Neves dos Santos, que tinha já efectua- tações que sacrificou” (Santos 1963b: p.9).
do pequenas escavações dispersas por vários locais Pode então concluir-se que as estruturas exumadas
do monte, conseguiu autorização para realizar uma neste espaço terão sido erguidas em diferentes mo-
escavação, com vista a estudar as estruturas ali exis- mentos, sendo que as construções da Antiguidade
tentes. Esta intervenção decorreu com meios muito Tardia utilizariam simples sapatas ou enrocamentos,
limitados durante os anos de 1961 e 1962, abrangen- podendo apoiar-se sobre dispositivos mais antigos,
do uma área de cerca de 800 m2. provavelmente alto-imperiais, que assentariam no
A planta final da zona (Fig. 02), publicada postuma- “chão firme”. Não obstante, há que notar que, numa
mente (Santos, 1995/1996: 22; Varela 2010: p. 143), área delimitada, Joaquim Neves dos Santos identi-
mostra uma grande densidade de estruturas arqueo- ficou também os segmentos de duas estruturas de
lógicas, com 14 espaços compartimentados, alguns planta tendencialmente circular, de cronologia mais
dos quais corresponderão a divisões interiores com antiga, provavelmente anterior ao período augusta-
pisos preparados em terra batida, enquanto outros, no (Varela & Pires 2019: p. 44). Igualmente relevante
com pavimento lajeado, poderão corresponder a é o facto de este mesmo terreno ter proporcionado
pátios ou espaços de circulação. Algumas destas a recolha de um conjunto significativo de materiais
estruturas possuíam pedras de soleira, marcando arqueológicos de diferentes épocas. Parte deles,
as entradas, com sulcos profundos, para a coloca- caso de uma sítula de bronze (Varela & Pires 2019:
ção de portas de madeira. Joaquim Neves dos San- p. 46), ou de um exemplar completo de um almofa-
tos descreve o conjunto de estruturas identificadas riz com revestimento vidrado na superfície interna
484
veitados e reutilizados). Em paralelo, proporcionou explorar outras possibilidades de investigação, agora
também a exumação de um vasto conjunto de mate- numa dimensão transdisciplinar. Considerando as
riais: vítreos, metálicos e cerâmicos. É, claramente, especificidades do Castro e, concretamente, da zona
sobre estes últimos que recai a primazia esmaga- de intervenção, marcada pela proximidade física
dora em termos de ocorrências. E são também eles face ao Leça, foi solicitada à Morph – Geociências a
que, em grande medida, nos interpelam a conside- elaboração de um programa de trabalho que permi-
rar, com maior atenção, quer as dinâmicas de inter- tisse, por um lado, avaliar, através de meios não in-
câmbio promovidas por via marítima, quer o papel trusivos, o potencial arqueológico de parte do terre-
redistributivo potencialmente assumido pelo sítio no do Campo da Ponte ainda por escavar e, por outro,
(Morais, 2013: 112). De facto, e a par das produções promover o estudo da geomorfologia da área. Uma
locais e regionais, as recolhas de material importa- aposta e orientação essenciais para o conhecimento
do merecem inquestionável destaque. Para a Anti- mais alargado das dinâmicas de ocupação do sítio,
guidade Tardia surgem testemunhadas, na esteira que começou desde logo a proporcionar resultados
do que havia já sido evidenciado por Carlos Alber- promissores, mas que em contrapartida desvelou a
to Ferreira de Almeida e Joaquim Neves dos Santos necessidade de diversificar estratégias, incrementar
(Almeida & Santos 1975), nas sigillatas africanas, de os pontos de acção para diagnóstico e aprofundar /
fabrico C e D (Hayes, 1972), e ainda por fragmen- complementar as pesquisas efectuadas.
tos de ânfora, entre os quais importa realçar parte
de uma de tipo Keay 59, provavelmente oriunda de 3. PRIMEIROS TRABALHOS DO PROGRAMA
Bizacena (Bonifay 2004: 481; Arezes 2018: p. 188). DE RECONSTITUIÇÃO PALEOAMBIENTAL
Mas é em cronologia mais recuada, concretamen-
te, no período Augustano, que o afluxo de material 3.1. Justificação e estratégia
procedente de outras paragens se mostra verdadei- A apreciação da distribuição do material arqueoló-
ramente substancial. Refere-se, essencialmente, a gico, nomeadamente anfórico, e das evidências so-
contentores de transporte, corporizados em produ- bre a relação do sítio com o oceano, também docu-
ções itálicas (residuais), lusitanas e, sobretudo, bé- mentada por fontes históricas (cfr. supra), justificou
ticas (Arezes 2018: 187; Arezes & Varela 2022: 54). a implementação de um programa multidisciplinar
Ainda que algumas, de pastas brandas e claras, pro- de trabalhos orientados para a produção de dados
cedam da Bética costeira, é essencialmente das ofi- para uma reconstituição do ambiente circundante
cinas do Vale do Guadalquivir que provém a esma- do antigo estuário do Rio Leça, onde se implanta
gadora maioria dos fragmentos recuperados, parte o sítio arqueológico.
importante dos quais deverá pertencer a Haltern A estratégia desta intervenção assume-se como emi-
70: uma tipologia que os tituli picti atestam ter sido nentemente transdisciplinar, combinando métodos
usada na contenção de diversos produtos e que se e tecnologias de diferentes áreas do conhecimen-
encontra amplamente presente no registo arqueoló- to para maximizar a capacidade de exploração do
gico do Noroeste, sobretudo nos níveis com crono- registo arqueo-estratigráfico conservado no local.
logia compreendida entre os finais do século I a.C. e De igual modo, visa produzir informação conver-
os meados da centúria ulterior (Morais 2004: p. 545; gente para uma análise integrada de arqueo e eco-
Fabião 1988: p. 180-181). No Campo da Ponte, as factos que concorra para reconstruir as condicio-
maiores concentrações de ânfora surgem mapeadas nantes ambientais da ocupação humana antiga do
nos depósitos acumulados a Oeste das estruturas sítio, num esforço de reconstituição regressiva da
visíveis nas quadrículas 4, 8 e 12, que se alinham no geomorfologia fluvial desta várzea.
extremo Poente da área de escavação, na faixa mais Neste sentido, realizámos a partir de 2022 um con-
próxima do Leça. Quantidades e posicionamentos junto de trabalhos de terreno combinando detecção
das materialidades a suscitar não apenas uma refle- remota, prospecção geofísica, ensaios geotécnicos
xão, mas também novos estudos, centrados na rela- e modelização digital tridimensional, com vista a
ção entre o sítio, o rio e o oceano. relacionar as estruturas já postas a descoberto na
Com base no apoio financeiro extraordinário a Pro- área de escavação com informação relativa à evo-
jectos de Investigação Plurianual em Arqueologia, lução paleogeográfica e paleoambiental desta zona
concedido pela DGPC em 2021, tornou-se possível recuada do estuário do Leça (cujo tramo distal é hoje
486
do uma planta ortogonal (Fig. 07) concordante com e conclusão do esforço interpretativo de reconsti-
a orientação das estruturas conhecidas na área esca- tuição paleoambiental e paleogeográfica regressiva
vada, imediatamente contígua. desta zona recuada do estuário do Rio Leça.
dos aterros que lhe foram apostos durante o séc. XX, COSTA, Patrícia & CLETO, Joel (2008) – O Sal do Esqueci-
e (2) georradar, para aferir a eventual preservação de mento: salinas e comercialização de salgados na Foz do Rio
estruturas arqueológicas coevas da ocupação em es- Leça. In A articulação do sal português aos circuitos mundiais:
antigos e novos do convento. Porto: Instituto de História Mo-
tudo na base da vertente.
derna – Universidade do Porto, pp. 65-78.
Consideramos que a implementação das estratégias
evocadas poderá originar a produção de novos da- COSTA, J. & TEIXEIRA, C. (1957) – Carta Geológica de Portu-
gal. Notícia Explicativa da Folha 9-C (Porto). Lisboa: Serviços
dos, passíveis de clarificar algumas das dúvidas ac-
Geológicos de Portugal Lisboa.
tualmente persistentes em torno do sítio, respeitan-
tes, nomeadamente, à forma como as comunidades FABIÃO, Carlos (1998) – O vinho na Lusitânia: reflexões em
torno de um problema arqueológico. Revista Portuguesa de
o foram moldando, transformando e potenciando as
Arqueologia. 1:1, pp. 169-198.
suas características intrínsecas, num cenário clara-
mente distinto daquele que é actualmente observá- FURUKAWA, Yasutaka & PONCE, Jean (2010) – Accurate,
vel. Em paralelo, poderão também concorrer para Dense, and Robust Multiview Stereopsis. In IEEE Transac-
tions on Pattern Analysis and Machine Intelligence, 32, no. 8,
desvelar, ainda que de modo parcial, o grau de afec-
pp. 1362-1376.
tação decorrente das acções intrusivas infligidas so-
bre níveis e estruturas antigos e, consequentemente, HAYES, J. W. (1972) – Late Roman Pottery. London: The Brit-
ish School at Rome.
contribuir para avaliar a situação efectiva da acrópo-
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Figura 3 – Perspectiva da área de escavação do Projecto GUIFARQ no final da campanha de escavação de 2023.
490
Figura 4 – Representação georreferenciada dos perfis dos ensaios a PDL (CloudCompare v.2.12).
Figura 5 – Representação tridimensional georreferenciada dos logs dos ensaios de trado manual (CloudCompare v.2.12).
Figura 7 – Time-slice 23,611ns (profundidade estimada = 1,00m) sobre ortofotomapa local (QGIS v.3.26.1 “Buenos
Aires”).
492
O CASTRO DA MADALENA (VILA NOVA
DE GAIA) NO QUADRO DA OCUPAÇÃO
PROTO-HISTÓRICA DA MARGEM
ESQUERDA DO DOURO
Edite Martins de Sá1, António Manuel S.P. Silva2
RESUMO
O Castro da Madalena, em Vila Nova de Gaia, é um povoado atlântico de reduzidas dimensões e com implan-
tação privilegiada, próximo da orla costeira. As intervenções arqueológicas realizadas desde 2020 colocaram
a descoberto diversas estruturas habitacionais de planta circular. Constatam-se elementos comuns na edifica-
ção destas arquiteturas, quer na sua configuração, quer na matéria-prima utilizada, predominando o recurso
a materiais construtivos como a argila, saibro, elementos vegetais, e a pedra, cuja articulação e planeamento
construtivo cuidado lhes conferiu robustez e consistência. O espólio é constituído, na sua larga maioria, por
cerâmica indígena da segunda Idade do Ferro. Sintetizando os dados das escavações arqueológicas, ensaia-
-se ainda a sua integração nos ritmos de ocupação no panorama da designada «cultura castreja» na margem
esquerda do rio Douro.
Palavras-chave: Castro da Madalena; Idade do Ferro; Norte de Portugal; Proto-história; «Cultura castreja».
ABSTRACT
The Castro da Madalena, in Vila Nova de Gaia, is a small Atlantic settlement with a privileged location near the
coast. The archaeological interventions carried out since 2020 have uncovered several circular residential struc-
tures. There are common elements in the construction of these architectures, both in their configuration and
in the raw materials used, predominantly the use of construction materials such as clay, gravel, plant elements
and, stone, whose articulation and careful construction planning gave them robustness and consistency. The
archaeological remains are mostly made up of indigenous pottery from the Second Iron Age. The archaeologi-
cal excavation data are synthesized, and its integration into the occupation rhythms of the so-called “Castro
culture” on the left bank of the Douro river, is also tested.
Keywords: Castro da Madalena; Iron Age; Northern Portugal; Protohistory; ‘Castro culture’.
2. Coordenador do projeto ARQ-EDOV (Centro de Arqueologia de Arouca); Investigador CITCEM Centro de Investigação Transdis-
ciplinar Cultura, Espaço, Memória (Univ. do Porto) unidade de I&D 4059 da FCT / [email protected]
494
2. OS TRABALHOS ARQUEOLÓGICOS compactada, de coloração laranja-avermelhada (UE
(2020-2022) 005), talvez endurecida com recurso ao uso do fogo,
ainda que não tenham sido observados carvões ou
Para a primeira abordagem ao povoado, para efeitos manchas de fuligem. No centro da cabana foi cons-
de sondagens arqueológicas, selecionou-se uma pla- truída, sobre o piso, a base de uma lareira (UE 47),
taforma aplanada, sensivelmente a meio da encosta de contorno irregular, formada por uma fina camada
nascente, convencionalmente designada como Sec- de argila compactada, de coloração esbranquiçada e
tor A (Fig. 3). Os resultados da primeira campanha com cerca de 0,60 m de diâmetro no seu eixo maior.
(Silva & Sá, 2021), ainda que espacialmente contidos Esta estrutura ostenta uma considerável mancha ne-
(16 m2), foram bastante promissores, revelando estru- gra de fuligem, que confirma a sua utilização como
turas relacionadas com a ocupação da Idade do Fer- estrutura de combustão (Figs. 4 e 5).
ro. Detetaram-se, então, os restos de uma cabana de As paredes desta construção parecem documentar
planta circular, com pavimento interno e lareira em duas técnicas distintas. No quadrante noroeste da
argila (Cabana I), da qual se escavou perto de metade cabana seriam constituídas por argila, eventual-
do perímetro, bem como evidência de pisos similares mente com recurso a adobes elementares (dos quais,
exteriores, além do negativo de uma vala de saibreira, todavia não se encontrou evidência clara), como é
eventualmente aberta para obter material construtivo sugerido especialmente pelo tramo basal da parede
para as habitações do castro (Silva & Sá, 2021, 2022b). no limite norte da cabana, com cerca de 1,20 m de
As campanhas de 2021 e 2022 (Silva & Sá, 2021, 2022a, comprimento e 0,35 m de largura.
2022b, 2023) possibilitaram alargar um pouco a área Já na área contígua, no quadrante nordeste da ca-
de escavação na Cabana I, detetando-se em escava- bana, e em aparente associação coeva, surgiu um
ção próxima os restos de outras habitações circulares, pequeno segmento de murete, de dupla face, cons-
a Cabana II, de planta já completa, e as Cabanas III e tituído por pedras em granito de pequeno e médio
IV, estas ainda em fase inicial de escavação7. Os tra- calibre, com algum afeiçoamento e corte tenden-
balhos de 2022 abriram ainda novo sector a norte, em cialmente subretangular (UE 011), servindo de li-
ponto mais elevado (Sector B), mas com resultados in- gante um sedimento de textura arenosa e colora-
conclusivos no que se refere à presença de estruturas. ção amarelada. A vala de fundação [010], efetuada
para a construção da cabana ou, pelo menos, para o
2.1. Cabana I segmento de murete apresentou cerca de 30 cm de
(Quadrados BR-BS 12, 13, 14 / BR 13, 14) largura, paredes verticais e fundo aplanado. De vo-
Os trabalhos arqueológicos realizados nas duas pri- lumetria modesta, com cerca de 0,35m de largura
meiras campanhas permitiram a identificação de máxima e menos de um metro de tramo preserva-
contextos integráveis, cronologicamente, na Idade do, esta estrutura achava-se reduzida à fiada basal,
do Ferro, tanto pelo espólio exumado, como pela desconhecendo-se se o alçado terá sido feito inte-
natureza das estruturas. Os alargamentos efetua- gralmente em pedra ou recorrendo, igualmente a
dos a partir das sondagens iniciais confirmaram a materiais argilosos (Figs. 4 e 5).
existência de parte substancial de uma estrutura Deve destacar-se, neste ambiente, a multiplicida-
arquitetónica, certamente de carácter habitacio- de de recursos e soluções construtivas utilizadas,
nal. Designada como Cabana I, apresenta planta observando-se ligantes de argila e saibro, talvez
subcircular e terá, a avaliar pelo segmento trazido à complementados com madeira, ramagens ou outros
luz pelos trabalhos arqueológicos, cerca de 4,25 m2 materiais perecíveis. O único elemento desta cabana
de diâmetro interno, correspondendo a uma área onde se recorreu à pedra foi no segmento de mure-
de, aproximadamente, 14 m2 (Figs. 4 e 5). Apresenta te em granito, que poderá ter funcionado como base
um piso de circulação interno, composto por argila de sustentação de uma presumível soleira de porta,
hipótese reforçada pela aparente associação a dois
blocos graníticos [013], com afeiçoamento sumário e
7. A interpretação funcional destas cabanas como habita-
configuração subtrapezoidal, existentes na área adja-
ções é, por ora, convencional, embora a presença de lareiras
centrais em, pelo menos, duas delas, bem como o espólio
cente ao limite exterior nordeste do murete (Figs. 4 e
cerâmico recolhido, permitam avançar a sua natureza do- 5). Apesar do seu aparente deslocamento, por proces-
méstica. sos pós-deposicionais, estes blocos estavam numa
496
pelos habitantes do povoado para regularizar o solo 3. ESPÓLIO ARQUEOLÓGICO
e altear a plataforma. Curiosamente, o piso não foi
nivelado, uma vez que o seu declive é concordante, A componente artefactual resultante das três cam-
embora de forma não acentuada, com o do próprio panhas efetuadas até o momento ascende a vá-
terreno, ação que julgámos ter sido propositada para rios milhares de fragmentos, com natural desta-
facilitar eventualmente, o escoamento de águas plu- que, como é habitual, para os materiais cerâmicos.
viais e outros detritos, e evitar a sua acumulação em No seu conjunto, o espólio ainda não foi objeto de
redor das habitações. estudo próprio, incluindo seriação estratigráfica e
tipológica, pelo que, se apresenta, por enquanto,
2.3. Cabana III (Quadrados BE/BF 12) e provável mera nota divulgativa.
Cabana IV (Quadrados BB 10) A cerâmica corresponde, quase na sua totalidade, a
Na sequência do alargamento executado no quadra- olaria proto-histórica (Figs. 9 e 10), abundantemen-
do BF 12, a cerca de um metro para noroeste da ca- te identificada a partir dos depósitos mais super-
bana II, foi identificada parte de uma nova estrutura ficiais. O grau de fragmentação das peças é muito
habitacional, a qual foi designada, sequencialmen- elevado, consistente com a natureza secundária da
te, como Cabana III (Figs. 6 e 7). Após a remoção generalidade dos depósitos. Uma observação macro
dos depósitos de abandono, foi identificado um pa- permite, contudo, destacar algumas características
vimento em argila de coloração amarela/alaranjada, gerais, que claramente enquadram este conjunto ce-
muito compacto e bastante perturbado pelo cresci- râmico nos repertórios habituais da louça «castreja»
mento de raízes (UE 087, Fig. 6). Associa-se a uma do Entre Douro e Minho, com analogias claras nos
parede, também em argila muito compacta e mistu- materiais já publicados das estações litorais a sul do
rada com um ligante de coloração cinzento esbran- Douro, do que constituem melhores exemplos os
quiçado, ainda indefinido, cuja largura varia entre materiais exumados nos castros de Ovil (Salvador &
os 24 e os 38 cm. Encontra-se num elevado nível de Silva, 2010, 2020), Salreu (Almeida e Silva & Silva,
destruição, quer por raízes, quer por outros proces- 2020), Romariz, Santa Maria da Feira (Silva, 2007,
sos pós-deposicionais, o que dificultou a distinção pp. 179-240; Centeno & Oliveira, 2008, pp. 44-107),
relativamente a outros depósitos adjacentes à sua Valinhas, Arouca (Silva, 1995; 2004, p. 242) ou Cas-
face externa. Por último, mas não menos revelan- telo de Gaia (Ramos & Carvalho, 2020, pp. 77-78;
te, surgiu, sobre o pavimento [087], aparentemente Carvalho, Nascimento & Sousa, 2020), entre outros.
descentrada e a ocupar parte do que será o quadran- As formas identificadas integram os tipos mais co-
te sul/sudoeste da cabana, um nível de barro cozido muns da louça doméstica tipicamente castreja,
com coloração vermelha-alaranjada, cuja espessura como os potes e panelas, alguns com asa, recipien-
não ultrapassa os 3 cm, porém com uma compacida- tes de armazenamento e outros de menor dimensão
de muito elevada, conferida pela exposição ao fogo e espessura, que sugerem formas mais pequenas
(UE 092, Fig. 6). A sua configuração é muito irregu- como taças e potinhos ou púcaros. Os bordos das
lar e apresenta várias fraturas em toda a superfície, vasilhas mostram, em maioria, lábio arredondado e
bem como manchas cinza-escuras de fuligem, o que arredondado para o exterior ou em bisel ou ligeiro
sugere configurar a base de uma lareira. Encontra-se bisel, e os fundos são na sua maioria de base plana,
interrompida pelo corte oeste da intervenção, pelo alguns mais robustos e com espessura considerá-
que a sua caracterização é, por ora, parcial (Fig. 8). vel, atribuíveis a recipientes de maiores dimensões.
Um pouco a sudeste da Cabana II, no quadrado BB As pastas argilosas, são, numa abordagem macros-
10 (Fig. 6), surgiram ainda duas estruturas que pa- cópica, maioritariamente de composição micácea,
recem, com bastante verosimilhança corresponder a havendo algumas areno-micáceas, de cozedura re-
outra estrutura habitacional, a Cabana IV. Trata-se dutora (observando-se, todavia, um largo número
da base de um aparente murete em argila (UE 096), de fragmentos que parecem ter estado expostos a
que delimita interiormente um piso composto pelo um ambiente mais oxidante), fabrico manual e com
mesmo material (UE 097), não podendo adiantar- tonalidades que variam entre a acinzentada, beije,
-se, de momento, outros dados pela exiguidade da castanho-clara e alaranjada. Assinalam-se escassos
área em que foi detetada. elementos de pastas notoriamente mais depuradas.
O acabamento é genericamente alisado, havendo,
8. Agradecemos a J. M. Mendes-Pinto e Rui Centeno a ajuda 9. Veja-se Larrazábal, 2017, com paralelos e ampla biblio-
na classificação deste espécime numismático. grafia.
498
Não tendo ainda sido feitas datações absolutas – pre- BIBLIOGRAFIA
vistas para breve –, a análise geral do espólio arqueo- ALMEIDA E SILVA, Sara; SILVA, António Manuel S. P. (2020)
lógico não garante a fixação de um intervalo crono- – Cerâmica da Idade do Ferro do Castro de Salreu (Estarreja,
lógico seguro para a fundação, ocupação e abandono Aveiro). Estudo Preliminar. In CENTENO, Rui; MORAIS,
do povoado. A aparente homogeneidade formal e Rui; SOEIRO, Teresa; FERREIRA, Daniela (coord.) – Atas
tecnológica da cerâmica indígena, se tomada como do Congresso Internacional de Cultura Castreja: Identidade e
Transições, vol. 2. Santa Maria da Feira: Câmara Municipal,
indicador temporal, foi ultimamente posta em dis-
pp. 393-403.
cussão pela identificação de alguns itens «roma-
nos», de pouco servindo, a este propósito, as contas ALMEIDA E SILVA, Sara; SILVA, António Manuel S. P.; LE-
MOS, Paulo; SÁ, Edite (2020) – O Castro de Salreu, um po-
azuis em pasta vítrea – objetos de grande difusão e
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Conchero & Rey, 2003; Parcero et alii, 2007, pp. 211- arqueologia, Porto, Arqueologia e Património, datilografado.
212). Deste modo, considerando a similar topogra-
CARBALLO ARCEO, Xulio; CONCHEIRO COELLO, A.;
fia, arquitetura e ergologia material dos povoados
REY CASTIÑEIRA, J. (2003) – A introducción dos muiños
próximos aqui citados, nomeadamente os castros de circulares nos castros galegos, Brigantium, 14, La Coruña,
Ovil e de Salreu, parece-nos razoável propor, como pp. 97-108.
hipótese, que seja relativamente sincrónica a ocu-
CARVALHO, Teresa P.; NASCIMENTO, André; SOUSA,
pação de todos eles, compreendida entre os séculos
Laura (2020) – O Castelo de Gaia: a cerâmica dos contextos
IV/III e I a.C., tendo aqueles castros, como hipote- castrejos. In CENTENO, Rui; MORAIS, Rui; SOEIRO, Te-
ticamente o da Madalena, sido abandonados, muito resa; FERREIRA, Daniela (coord.), Atas do Congresso Inter-
provavelmente, pouco tempo antes da plena domi- nacional «Cultura Castreja: Identidade e Transições», vol. 2.
nação romana na região, considerando a escassez Santa Maria da Feira: Câmara Municipal, pp. 353-369.
de artefactos indiciadores de «aculturação mate- CENTENO, Rui M. S.; OLIVEIRA, Ana J., coord. (2008) –
rial» (Pereira-Menaut, 2010, p. 248). Como variante Roteiro do Museu Convento dos Lóios. Santa Maria da Feira:
no castro gaiense, talvez os itens exógenos possam Câmara Municipal.
documentar alguma forma de reocupação ou revi- CORREIA, António A. Mendes (1924) – Os povos primitivos
sitação tardia do povoado, mas os indícios para tal da Lusitânia, Porto: Figueirinhas.
interpretação são ainda muito esporádicos, sendo CORREIA, António A. Mendes (1935) – As Origens da cidade
necessário aguardar pelos resultados da campanha do Porto (Cale, Portucale e Pôrto). 2.ª ed. rev. e ampliada, Por-
de 2023, e de outras que venham a realizar-se, para to: Fernando Machado & C.ª.
construir uma visão mais aproximada e consolidada
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Figura 3 – Castro da Madalena. Levantamento topográfico e implantação das sondagens arqueológicas (levantamento
Multimapa, infografia ARQ-EDOV).
502
Figura 4 – Sector A – Quadrados BR/BS 12-14. Planta da Cabana I (desenho de campo: Raquel Ferreira; desenho de gabinete:
Paulo Lemos).
Figura 7 – Cabanas II, III, provável IV e áreas de circulação exteriores. Vista superior (Ortofotografia: João Silva).
504
Figura 8 – Sector A – Quadrados BE/BF 12. Base de lareira da Cabana III (foto: Edite Sá).
RESUMO
No centro histórico do Sabugal, no decorrer de uma intervenção arqueológica de salvaguarda, identificou-se
uma cabana da Idade do Ferro.
Corresponde a uma unidade doméstica, de contorno ovalado, composta por um pavimento de argila calcinada,
buracos de poste, sulco de fundação e área de combustão, disposta a sul na ladeira do rio Côa.
A variedade de elementos identificados nesta intervenção, reúne significados sociais e técnicos, de acordo com
as ações individuais/coletivas, num tempo/espaço de um complexo mosaico social, físico e económico no de-
correr da Idade do Ferro.
Deste modo, pretendemos compreender os diferentes sentidos da cabana, socialmente produzida e socialmen-
te utilizada, no seu ciclo de vida, recipiente de práticas, formas e usos, até à sua identificação no âmbito da
escavação arqueológica.
Palavras-chave: Sabugal; Idade do Ferro; Cabana; Unidade doméstica.
ABSTRACT
In the historic center of Sabugal, in the course of an safeguard archaeological intervention, an Iron Age hut was
identified.
Corresponds to a household unit, with oval outline, composed of a circulation floor of calcined clay, post holes,
foundation furrow and combustion area, facing south on the slope of the river Côa.
The variety of elements identified in this intervention brings together social and technical meanings, according
to individual/collective actions, in a time/space of a complex social, physical and economic mosaic throughout
the Iron Age.
In this way, we intend to understand the different meanings of the hut, socially produced and socially used, in
its lifecycle, container of practices, forms and uses, until its identification in the context of the archaeological
excavation.
Keywords: Sabugal; Iron Age; Hut; Household.
508
cerâmicos, bastante fraturados e rolados, de cro Projetou-se num perímetro tendencialmente qua-
nologias prévias (Idade do Bronze e Idade do Cobre). drangular, aproximadamente 50 x 50 cm, demarcado
Na zona onde o afloramento é mais aplanado, apre- por algumas pedras fincadas (Fig.4-c). O interior en-
senta menos orifícios e suporte para encostar a es- contrava-se preenchido com uma primeira camada
trutura, os arquitetos da Idade do Ferro, talharam o de argila sobre o solo e no remate das fissuras entre
xisto na realização de um sulco de fundação e três as pedras (Fig.4-b). Por cima desta camada, o supor-
buracos de poste, dois alinhados com o sulco e um, te da estrutura, conservou vários fragmentos cerâmi-
mais pequeno, externo à fissura antrópica. cos, de vasos, misturados num espesso depósito de
argila, com cerca de 10 cm de grossura (Fig.4-a).
3.2. Nível de circulação: A argila revelou-se bastante calcinada, de tonalida-
Definido o alinhamento da cabana, a preparação de avermelhada e em alguma zonas, escura, resul-
do piso interno foi de grande importância: permitiu tado do contato com o fogo. O recurso à fusão deste
conforto aos usuários; e revelou uma solução técnica nível de argila com os fragmentos cerâmicos, à se-
de maior interesse. melhança do que aconteceu no pavimento, ajudou
Um primeiro nível de terra argilosa, sobre o aflora- a consolidar o sedimento, mas, por outro lado, pos-
mento. E é nesta particularidade que identificamos sibilitou a circulação e (talvez) controlo do ar (e do
uma curiosa solução construtiva – por cima do pri- fogo) no interior da área de combustão.
meiro nível, composto de terra barrenta, reconhe- Era por cima deste nível de argila e cerâmica de-
cemos muitos fragmentos cerâmicos, de vasos, que- marcado por pedras, que a combustão, o fogo, de-
brados, no local, in situ (Fig.2). Sobre estes vasos: corria. No entanto, no exterior contíguo desta área,
uma espessa camada de argila (Fig.3), muito com- a identificação de núcleos de barro, diferentes do
primida e parcialmente cozinhada pelo calor prove- tradicional barro das paredes da cabana, sem nega-
niente de uma área de combustão. Além da cerâmi- tivos vegetais, blocos com rebordos e com manchas
ca verificou-se ainda a presença de alguns seixos do escuras e acinzentadas em resultado do contacto
rio nesta solução de construção. com o fogo (Fig.5), levam-nos a repensar como terá
Como o xisto é irregular e lasca facilmente, a utili- sido a parte superior da estrutura de combustão, ou
zação desta técnica permitiu: maior consistência do seja, o que está por cima do lume e deste espaço de-
pavimento; mais impermeabilização, os fragmen- limitado por pedras.
tos cerâmicos cozidos ajudam a conter a humidade Por um lado, poderia não existir nada, apenas as
e a drenar a sua acumulação, principalmente nesta chamas, com a simples função de aquecer e ilumi-
zona de encosta; e estabilidade do pavimento, face nar o espaço. Por outro lado, a identificação de vá-
à assimetria do afloramento rochoso. rios fragmentos cerâmicos com fuligem, indica-nos
Sobre este último, destacar no interior da cabana, a a proximidade dos recipientes ao calor, incitando a
identificação de dois níveis de pavimentação (Fig.3). produção alimentar, ou outra, no interior da cabana.
O primeiro, mais antigo, apenas construído com ar- Mas, os vários blocos de argila recolhidos com rebor-
gila, abateu perante a instabilidade dos níveis de do e tonalidade escurecida, impulsionaram a ideia
base, construídos apenas com terra na colmatação de que correspondem a um pequeno “forno” ou
dos orifícios do afloramento. A escorrência da água “recipiente para combustão” (Fig.5), possivelmente
na encosta, acelerou a erosão da terra e, consequen- móvel, principalmente tendo em atenção a sua con-
temente, levou ao abatimento do primeiro piso. figuração e semelhanças com outros identificados
O segundo pavimento, sobrepõem-se parcialmente em sítios da Idade do Ferro no território peninsular.
ao primeiro e já recorre à utilização de fragmentos ce- A existência deste recipiente/forno, implicava a sua
râmicos no suporte prévio à última camada de argila. posição na parte superior das pedras que delimitam
Os fragmentos cerâmicos recolhidos determinaram, a área de combustão, sendo aquecido por baixo e fa-
muitas colagens e tipologias da I Idade do Ferro. cilmente removido.
A análise realizada aos blocos de argila e a sua dis-
3.3 O fogo: posição no interior da cabana (Pernadas, Soares &
O espaço interno da cabana é ainda composto por Osório, 2023), impeliu que aquando do derrube das
uma área de combustão, relacionada com blocos de paredes da unidade doméstica, este “forno” tomba
barro, cerâmicas e carvões (Fig.4). para oeste e frente, fraturando-se totalmente no in-
510
ram para esta região e para este período cronológi- das e superfícies polidas e brunidas com inclusão de
co, na Beira Interior. motivos decorativos.
A maior percentagem de recipientes terá sofrido
4. SENTIDOS DA CABANA uma cozedura em ambiente irregular, oxidante/
redutor, verificável no predomínio das superfícies
Quando mencionamos o termo – cabana – inclinamo- acastanhadas/acinzentadas. Os perfis destes frag-
-nos a pensar em “some short of artificial structure, made mentos apontam para peças maioritariamente com
of relatively durable materials and fabricated by human formas abertas.
hands” (Ingold, 2004, p. 238). Mas, a cabana, é apenas A presença de decoração ocorre com menos fre-
uma parte, organizada em vários espaços, da comple- quência, destacando-se os motivos simples e geo-
xa definição que caracteriza a unidade doméstica. métricos, executados sob as técnicas da incisão,
A arqueologia dos espaços domésticos, o estudo das impressão, estampilha, brunimento e pintura que
características de cada elemento construído, num possibilitaram uma aproximação relativa à datação
processo que se inicia individual, mas, só resulta, na dos contextos com grande expressividade em para-
análise conjunta, representa a base para uma melhor lelismos e intersecções culturais. Caracterizam-se
compreensão das unidades familiares e dos atribu- todos por incorporarem o corpo da peça (pança ou
tos que as determinam. bojo) não existindo, até à data, decorações associa-
A análise técnica da construção e transformação das a bordos, fundos ou asas (Soares, 2019).
da cabana, tornou-se o ponto de partida para uma O elemento de fíbula, componente de adorno “pró-
aproximação à organização física do sítio e fun- prio para prender duas ou mais peças de vestuário”
cionalidade dos espaços, ou seja, os motivos para (Ponte, 2006, p.25) associada, muitas vezes, a um
entendermos a formação da unidade doméstica carácter utilitário, encontra-se nesta cabana articu-
e dos vários espaços que integra e que resultaram na lada com os níveis de ocupação do espaço domésti-
fundação, permanência, transformação, adaptação co, próxima da estrutura de combustão. Apesar de
e abandono. bastante fragmentada ainda preserva parte do arco,
A cabana identificada para a encosta sul do Castelo da mola e do fuzilhão (Ponte, 2019), e corresponde
do Sabugal, revelou-nos uma estrutura, cujos ele- a uma fíbula anular Hispânica do tipo Ponte 13d,
mentos recolhidos na intervenção, transmitem o bastante semelhante à identificada no Castelo de
cuidado em manter o interior da construção nivela- Alfaiates (Ponte, 2014, p.10) e datável entre meados
do e organizado, áreas bem definidas e manutenção. do século VI-IV a.C. (Ponte, 2006, p.187; 2019, p.36).
As marcas físicas deixadas no local e a matéria-prima Na variante dos líticos: pesos, bigornas, elementos
utilizada na preparação dos espaços, correspondem de percussão e de moagem, traduzem as pequenas
a uma etiqueta, no ambiente natural, um registo que ações desenvolvidas no interior da unidade domés-
danificou, mas bastante relevante à interpretação tica (Soares, 2019).
desta unidade doméstica. A comunidade que utilizou a cabana, evidencia um
Estes fatores aliados ao espólio arqueológico exuma- modo de vida agropecuário, com possível prática
do na área da cabana, possibilitaram firmar um pres- de tecelagem e/ou pesca, presente nos vários pesos
suposto de organização social da unidade doméstica. de rede/tear e cossoiro identificados. A estrutura,
carece de restos alimentares de origem animal, no
5. CULTURA MATERIAL entanto, esta ausência pode ser justificada pela lim-
peza do edifício e/ou pelo desconhecimento da ou-
O espólio cerâmico recolhido, permitiu o reconhe- tra metade da cabana, contudo, parece sugerir uma
cimento de várias formas, fundos, bordos, asas e presença continuada, mesmo que sazonal.
uma panóplia aceitável de elementos decorados e
dispares nos motivos apresentados (Fig.9). Frag- 6. CONCLUSÃO
mentos de pequeno/médio tamanho, constituídos
maioritariamente por bojos, compostos de pastas As soluções construtivas identificadas para esta ca-
com presença de mica e superfícies maioritariamen- bana, cuja reconstrução hipotética apresentamos
te alisadas e pontualmente cepilhadas. Destacam-se (Fig.10), não encontram paralelos relevantes nos
algumas produções mais cuidadas, pastas depura- sítios próximos da Beira Interior, consequência da
512
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(Ed.), Actas do IV Congresso de Arqueologia Peninsular, Faro,
Ensaio aos espaços domésticos no I milénio a.C. nas mar-
pp. 67-75.
gens do Côa, Sabucale, Sabugal, 10, pp. 36.”
514
Figura 3 – Pormenor do pavimento de argila no interior da cabana.
516
Figura 7 – Elemento de barro de cabana com negativos da componente vegetal.
518
CERCA DO CASTELO DE CHÃO DO TRIGO
(S. PEDRO DO ESTEVAL, PROENÇA-
-A-NOVA): RESULTADOS DE TRÊS
CAMPANHAS DE ESCAVAÇÕES (2017-2019)
Paulo Félix1
RESUMO
Apresentamos os resultados preliminares de três campanhas de escavações que decorreram no povoado fortifi-
cado da Segunda Idade do Ferro da Cerca do Castelo de Chão do Trigo. Este local de povoamento situa-se num
meandro da ribeira do Estevês, tributária da margem direita do rio Ocreza, no concelho de Proença-a-Nova.
Apesar da profunda destruição provocada pelas surribas realizadas nos últimos cem anos, são ainda distinguí-
veis restos de muralhas sobrepostas por estruturas murárias atuais. Nos trabalhos de escavação pudemos re-
gistar duas linhas de fortificação, bem como um paramento retilíneo que deverá corresponder a uma estrutura
habitacional. Entre os materiais recuperados, avultam as formas de cerâmica comum características deste pe-
ríodo, de recipientes com colo estreito e baixo e bordos muito salientes.
Palavras-chave: Proto-História; Idade do Ferro; Ocreza; Lusitanos.
ABSTRACT
IWe present the preliminary results of three campaigns of archaeological excavations that took place at Cerca
do Castelo de Chão do Trigo. This settlement, dated from the Late Iron Age, is placed in a meander of the
Estevês stream, a tributary of the right bank of the Ocreza, in the municipality of Proença-a-Nova. Despite the
extended destruction caused by deep ploughing done in the last centuries, we can observe vestiges of fortifica-
tion walls superimposed by modern structures. As a result of the excavations, we were able to record two lines
of fortifications, as well as a straight wall that should correspond to a housing structure. Among the recovered
materials, pottery is dominated by the most common forms and productions of this period.
Keywords: Protohistory; Iron Age; Ocreza; Lusitanians.
2. Está em preparação uma publicação mais extensa que recolherá de forma mais detalhada os resultados destas intervenções.
520
República e inícios do período imperial” (Ibid., p. 154). viamente como fazendo parte da muralha que cir-
Nas visitas que, pouco tempo depois, vários investi- cundava o povoado, bem como parte do espaço in-
gadores da Associação de Estudos do Alto Tejo rea- terno a esta (Figura 3). Dentro deste sector abriu-se,
lizaram à Cerca do Castelo (Henriques et al., 2016), inicialmente, um corte exploratório, cujos objetivos
recolheram-se algumas cerâmicas que são em tudo principais consistiam na recolha de informação so-
semelhantes às estudadas e publicadas anteriormen- bre as características estruturais e qual o nível de
te: formas bojudas de bordo saliente com secção ar- conservação da muralha. Pretendia-se, igualmen-
redondada ou quadrangular e colo pronunciado. As te, a documentação de estratigrafia e/ou estruturas
pastas apresentam-se grosseiras, mas relativamente construídas no espaço situado no interior do recin-
compactas, com predomínio de cozedura redutora to, em área confinante com o tardoz da muralha e
e fase de arrefecimento em ambiente oxidante. A noutra área localizada alguns metros mais acima.
modelação é maioritariamente manual, com ou sem Foi intervencionada uma área de 68 m2, alargada
recurso à técnica chamada de “torno lento”. em 2018 e 2019 para um total de 316 m2.
O povoado situa-se numa elevação quase totalmente A intervenção revelou, num primeiro momento,
envolvida pelo curso do ribeiro, sendo ainda visíveis materialidades que faziam parte do corpo estrutu-
restos de muralha sobrepostos por muro moderno, ral daquilo que veio a ser confirmada como a linha
num circuito contínuo nos sectores ocidental, seten- exterior de fortificação: clastos de diversos calibres,
trional e oriental. O único acesso que não implique a tendencialmente alongados, todos de rocha obtida
subida de declives muito abruptos situa-se a WSW, localmente (metapelitos e metagrauvaques), quer
onde um pequeno istmo faz a ligação entre cabeços por desbaste do substrato rochoso, quer por recolha
(Figura 2). É um claro exemplo de uma modalidade nas imediações, sobretudo junto dos cursos de água,
de povoamento muito divulgada durante a Segunda como o indica a presença frequente de clastos que
Idade do Ferro, neste caso inserido num território apresentam índices muito apreciáveis de arredonda-
que terá pertencido a um dos vários populi do étnico mento das arestas. Estes estavam presentes em prati-
lusitano (Alarcão, 2001). camente todas as classes granulométricas de calibre
seixo ou superior, mas observava-se a utilização pre-
4. RESULTADOS DA INTERVENÇÃO ferencial de grandes lajes de arestas arredondadas,
ARQUEOLÓGICA de litologia mais arenítica, como elementos de defi-
nição da estrutura da muralha. Esta apresentava uma
A intervenção foi planeada no contexto mais geral metodologia construtiva assente na aplicação de uma
da investigação do povoamento pré e proto-histórico técnica de cimentação da estrutura de amuralhamen-
nesta região entre rios, decidida em 2016 e concreti- to em caboucos que escavam o substrato rochoso em
zada no ano seguinte. As condições de conservação diversos patamares. Pese embora ainda não possa-
deste sítio arqueológico eram fonte de preocupação, mos confirmá-lo para além de todas as dúvidas, por-
por causa de todas as alterações que sofreu ao lon- que não procedemos a qualquer desmonte ao longo
go da sua história, particularmente nos anos mais destes três anos, cada um destes patamares aparenta-
recentes. Na mesma primavera de 2017, por ocasião va ter recebido um alicerce de clastos de diversos ta-
de uma visita preparatória, detetámos que se tinha manhos, imbricados entre si e cimentados com uma
realizado a abertura de um novo caminho que unia argamassa de argila amarela bastante coesa.
as extremidades ocidental e oriental através da en- Na planta da muralha surgem áreas em que o subs-
costa norte, pouco acima do hipotético nível de ar- trato rochoso já não comportava qualquer indício de
rasamento da muralha exterior. Se dúvidas ainda alicerce, enquanto outras, contíguas, o mostravam
subsistissem acerca da necessidade de começar a claramente (Figura 4). Não é de descartar a possibi-
investir aqui, rapidamente ficaram dissipadas. lidade de ter existido imbricação entre os elementos
As escavações incidiram inicialmente em dois sec- estruturais a cotas mais elevadas dentro do enchi-
tores de intervenção, designados Sector 1 e Sector 2, mento da muralha, hoje impossível de demonstrar
e esta estratégia manteve-se nas campanhas poste- no sector já escavado. Por outro lado, parece definir-
riores, com os naturais alargamentos em área. -se, entre duas áreas com elementos construídos,
O Sector 1 foi implantado na extremidade ocidental uma espécie de corredor que poderá corresponder
do cabeço e cobria uma área que identificámos pre- a vestígios de uma estreita passagem de acesso que
522
assentava sobre o arrasamento da muralha interior. da produção vidreira primária em contextos penin-
Trata-se, na nossa opinião, de forma que imita as sulares antes do último quartel do primeiro milénio
produções romano-republicanas de verniz negro, antes da nossa era, considerando-se todos os pro-
com inclusão de motivo decorativo de tradição cen- dutos de cronologia mais antiga como importações,
tro-peninsular, aqui chegada, com elevada probabili- sobretudo do Mediterrâneo Oriental, quer sob a for-
dade, no contexto das movimentações militares das ma de objetos acabados, quer de lingotes de pasta
tropas da República (Sousa et al., 2016-2017, p. 11). vítrea que sofreram posterior transformação local
Foram recolhidos alguns fragmentos de mós de ti- (Adroher, Sánchez y Caballero, 2005; Arruda et al.,
pologia rotativa manual. Com os dados de que dis- 2016, pp. 84-85), como nos testemunham os achados
pomos atualmente, os sistemas de moagem rotativa de peças com defeito de fabrico, entre outros restos
apenas terão surgido na transição entre os séculos VI materiais, registados no Porto do Sabugueiro (Arru-
e V antes da nossa era, expandindo-se a partir de um da et al., pp. 93-94). No entanto, as contas de colar
núcleo original centrado no mundo ibérico do nor- não são, regra geral, bons indicadores cronológicos,
deste da Península e sudeste de França para a zona sobretudo as de formas mais simples, anulares com
levantina, murciana e andaluza (Adroher e Molina, bordos arredondados, como as que já registámos na
2014; Alonso, 2015). No entanto, é plausível alguma Cerca do Castelo, já que parecem estar presentes em
ligação ao mundo colonial semítico, nomeadamente toda a diacronia correspondente à segunda metade
no ocidente, onde, segundo Carlos Fabião (2021, p. do primeiro milénio antes da nossa era sem qualquer
121), os exemplares de Santa Olaia poderão ser tão alteração morfológica. Quanto ao tipo de contextos,
antigos quanto o período compreendido entre o sé- aparecem na grande maioria dos contextos funerá-
culo VII e os inícios do século VI antes da nossa era. rios da Idade do Ferro do sul do país, surgindo quase
A presença deste instrumental em território hispâ- sempre, também, nos sítios de habitat, por vezes em
nico só se teria generalizado a partir do século III-II elevada quantidade, como na Cabeça de Vaiamon-
antes da nossa era (Alonso, 2015, p. 29), substituindo te, Monforte (Fabião, 2001a), nos Moinhos Velhos,
progressivamente a tradicional moagem em vaivém, Mafra (Caninas et al., 2006), ou no Porto do Sabu-
mas com convivência paralela com esta durante bas- gueiro, Salvaterra de Magos (Arruda et al., 2016).
tante tempo: não faltam exemplos da utilização das Sobre o fragmento de metal, em provável liga de co-
mós de vaivém em plena Idade do Ferro, quer na Pe- bre, com dois orifícios que, ao que julgamos, servi-
nínsula Ibérica, quer em território francês (Adroher riam para sujeição do cabo, não existem ainda dados
e Molina, 2014; Quesada, Kavanagh e Lanz, 2014; suficientes para avançarmos mais na sua caracteri-
Rodríguez Díaz et al., 2014; Alonso, 2015; Alonso e zação e atribuição funcional. Tendo em conside-
Frankel, 2017; Antunes, 2018; Fabião, 2021). ração as suas dimensões (46 mm de comprimento
Da Cerca do Castelo provêm três contas, duas ma- conservado por cerca de 11 mm de largura e menos
nufaturadas em vidro e uma terceira que, sem um de 1 mm de espessura), pensamos tratar-se da sec-
estudo de arqueometria que o comprove definitiva- ção anterior de uma pequena faca ou lâmina similar.
mente, aparenta ter sido obtida a partir do polimen- A ausência das restantes secções não nos possibili-
to de um fragmento de rocha metamórfica de cor ne- ta avançar qualquer tipo de tentativa de enquadra-
gra. Das outras contas, uma é em vidro translúcido mento tipológico.
amarelo-esverdeado, a outra em vidro azul cobalto.
Por seu turno, esta última é de reduzidas dimensões, 6. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO-AR-
verdadeira missanga, enquanto as outras duas são QUEOLÓGICO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
de tipologia anular. As contas de vidro e de outros
materiais são comuns nos contextos do Ferro Ple- O povoado fortificado da Cerca do Castelo do Chão
no/Tardio do meio-dia peninsular, sendo possível do Trigo é um exemplo com cabimento no Tipo
recuar-se a sua utilização, ainda que em números III – castros em espigão fluvial – de Luís Berrocal-
marginais, ao final da Idade do Bronze/inícios da -Rangel (1992, p. 128; 1994, p. 202). Este enquadra-
Idade do Ferro, tornando-se mais frequentes a par- mento é válido tanto para os critérios topográficos,
tir do segundo quartel do primeiro milénio antes da como cronológicos. Trata-se de uma modalidade de
nossa era (Arruda et al., 2016, p. 84). Aliás, não exis- ocupação sistemática de um território repetida em
tem ainda dados que suportem o estabelecimento várias paragens do quadrante sudoeste da Península
524
ancient milling systems in the Mediterranean. Revue Archéo-
escavados com ocupações confirmadas da “Segun- logique de l’Est. Dijon. 43:Supl., pp. 461-478.
da Idade do Ferro” são os níveis pré-romanos de
Seilium, Tomar (Ponte e Cruz, 2013), e o castro do ANTUNES, Ana Sofia (2018) – Moinhos de vaivém e girató-
rios da Azougada (Moura, Portugal): um contributo para o
Cabeço da Argemela, Fundão (Marques et al., 2011-
estudo da moagem no Alentejo interior em meados do I mi-
2012; Fernandes, 2013). Por conseguinte, estamos lénio a.C. Cira-Arqueologia. Vila Franca de Xira. 6, pp. 70-99.
diante de um panorama muito fragmentário e insu-
ficientemente conhecido. ARRUDA, Ana Margarida (1999-2000) – Los Fenicios en Por-
tugal: Fenicios y mundo indígena en el centro y sur de Portugal
Em jeito de conclusão ainda muito preliminar, con-
(siglos VIII-VI a.C.). Barcelona: Laboratorio de Arqueología
sideramos que o registo material recuperado até ao de la Universidad Pompeu Fabra de Barcelona (Cuadernos
momento na Cerca do Castelo de Chão do Trigo de Arqueología Mediterránea; 5-6).
é promissor, seja o de tipo estrutural ou o do âm-
ARRUDA, Ana Margarida (2005) – O 1º milénio a.n.e. no
bito da cultura material móvel. A continuidade da
Centro e no Sul de Portugal: leituras possíveis no início de
investigação implicará o alargamento da área in- um novo século. O Arqueólogo Português. Lisboa, Série IV, 23,
tervencionada, com privilégio de uma abordagem pp. 9-156.
espacial, mas sem descurar a obtenção de dados de
ARRUDA, Ana Margarida (2017) – A Idade do Ferro orientali-
natureza diacrónica. Do mesmo modo, as questões
zante no vale do Tejo: as duas margens de um mesmo rio. In
que ainda estão em aberto no que concerne ao sis- CELESTINO PÉREZ, Sebastián; RODRÍGUEZ GONZÁLEZ,
tema de fortificação, nomeadamente a dimensão e Esther, eds., Territorios comparados: los valles del Guadalquivir,
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bastiões, caminhos de ronda ou a localização dos ARRUDA, Ana Margarida; PEREIRA, Carlos; PIMENTA,
acessos ao interior do recinto, serão objeto de um João; SOUSA, Elisa; MENDES, Henrique; SOARES, Rui
investimento sustentado quando retomarmos as es- (2016) – As contas de vidro do Porto do Sabugueiro (Muge,
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528
Figura 2 – Implantação topográfica da Cerca do Castelo, com indicação dos sectores escavados em 2017-2019, a delineação
hipotética da base da linha exterior de muralha e a face externa da linha interior, detetada em 2019. A seta alaranjada define o
presumível acesso ao povoado por via terrestre (levantamento topográfico e georreferenciação: Hugo Pires; fonte cartográfica:
Google Satellite, elaboração própria em SIG).
Figura 4 – Vista da escavação da muralha externa, notando-se a existência de áreas com e sem clastos imbricados. (fotografias:
Paulo Félix).
530
Figura 5 – Registo simplificado do Sector 2 da Cerca do Castelo (levantamento topográfico e fotogramétrico: Hugo Pires; CRS:
PT-TM06/ETRS89; elaboração própria em SIG).
532
INSTRUMENTOS E ARTES DE PESCA NO
SÍTIO PROTO-HISTÓRICO DE SANTA OLAIA
(FIGUEIRA DA FOZ)
Sara Almeida1, Raquel Vilaça2, Isabel Pereira3
RESUMO
Pelo perfil cultural e histórico de intervenções, Santa Olaia é uma das estações proto-históricas de referência no
litoral atlântico. A natureza estuarina proporciona relevantes recursos alimentares, com reflexo no registo ar-
queológico, sendo, contudo, esta uma matéria ainda não explorada. Assim, este trabalho centra-se nos vestígios
ligados à pesca, nomeadamente no corpus instrumental pesqueiro recuperado nas diversas escavações.
Do acervo, destacam-se peças que evocam tradições pesqueiras ancestrais, juntamente com outras ligadas à
presença fenícia – marcas da genética cultural do sítio e do seu impacto regional. A dispersão dos artefactos é
igualmente sugestiva dos contextos deposicionais, sendo de destacar os indícios da reparação de redes junto à
porta da muralha e a possível amortização ritual de pesos no topo da colina.
Palavras-chave: Estuário do Mondego; Idade do Ferro; Instrumentos de pesca; Pesos de rede.
ABSTRACT
Due to its background, Santa Olaia is one of the protohistoric key stations on the Portuguese central coast. Its
estuarine nature provides relevant food resources, reflected in the archaeological record, but this is still an un-
explored subject. Thus, the present paper concerns the remains related to fishing, namely the corpus of fishing
instruments recovered on the site.
From the collection, pieces that refer to ancient fishing traditions stand out, along with others linked to the
Phoenician presence – imprints of the site’s cultural origins and of its regional reach. The dispersion of artefacts
is also suggestive of the depositional contexts, with evidence of the repair of nets near the wall gate and the pos-
sible ritual deposition of weights on the hilltop.
Key words: Mondego Estuary; Iron Age; Fishing tools; Net weights.
3. Directora aposentada do Museu Municipal Dr. Santos Rocha (Figueira da Foz) / [email protected]
534
alimentar. Daí que os anzóis sejam os instrumen- contextos mais esclarecedores, nomeadamente em
tos haliêuticos mais frequentes nos sítios costeiros, ambiente subaquático, se tenha vindo a fixar uma
apesar de despertarem pouca atenção face a outros proposta de seriação tipológica. Ainda assim há que
artefactos metálicos – tendência esbatida a partir ter presente o possível carácter polifuncional de al-
das propostas de classificação de anzóis da área do gumas destas peças que poderiam efectivamente ser
Estreito (Bernal, 2010; Vargas, 2011). utilizadas como pesos em actividades de diferente
Entre a colecção exumada em Santa Olaia contam- natureza (Bernal, 2008). Relativamente à colecção
-se dois anzóis de bronze, de distinto tamanho e ti- estudada os pesos encontram-se ordenados aten-
pologia e de diferente contexto. dendo à matéria-prima (pedra, cerâmica ou chumbo)
O exemplar mais pequeno (Fig. 2, nº 1) enquadra-se e processo de fabrico (ex professo ou reaproveitados).
no tipo de anzol simples (AI) de pequena dimensão
(2,5 a 4 cm de comprimento) de secção circular defi- 2.2.1. Pesos de chumbo
nido por Bernal (2010: 89 e 92), encontrando-se in- Da estação procedem quatro pesos de chumbo (ou
completo nas extremidades. Foi recolhido por San- chumbadas) de tipologia laminar enrolada. É um
tos Rocha no topo da colina, “nos pavimentos das tipo atestado em contextos peninsulares do séc. VI a
casas” (Rocha, 1905: 126). IV a.C. e que se vulgariza a partir de então.
O segundo (Fig. 2, nº 2) corresponde à tipologia de Dois correspondem a placas retangulares dobradas,
anzol simples de Bernal (2010). Distingue-se, con- com 29,8 e 24 gr respectivamente (fig. 2, nos 9 e 10).
tudo do anterior pela presença de arpão, secção Os outros dois são mais pequenos, de formato tubu-
quadrangular e tamanho, enquadrando-se na cate- lar, com 19 e 9 gr (fig. 2, nos 11 e 12). Essa distinção
goria de anzóis de média dimensão (4-8 cm). Proce- formal pode corresponder a diferentes aparelhos de
de da zona baixa do povoado, de um nível sidérico pesca. As peças maiores poderiam fixar-se a cabos
(de meados do I milénio) anterior à instalação dos de rede de pequena dimensão e as mais pequenas
fornos metalúrgicos identificados nesta zona (Fig. (enroladas, com núcleo central estreito) a um fio
1B). Apesar do bom estado de conservação a peça fino, logo à pesca à linha (de cana ou de aparelho)
não apresenta olhal e a haste mantem-se rectilínea, (Bernal, 2008: 202).
sem deformação pelo uso. Conjugando este aspecto No que toca ao contexto de recolha, uma peça pro-
ao facto de se reportar a uma área associada à pro- vém da base da encosta norte, duas do topo da co-
dução metalúrgica, considera-se a possibilidade de lina e a quarta não dispõe de informação (fig. 1 B e
estar inacabada, faltando concluir o olhal por ra- C). No topo do outeiro uma foi recuperada por San-
nhura ou martelamento. tos Rocha (fig. 2, nº 11) (Rocha, 1905-8: 331) e a outra
Estas peças correspondem ao modelo tipológico recolhida já nos anos 80 numa bolsa de plantio de
mais comum no registo arqueológico, com inúmeros oliveira (que perturbou os níveis da Idade do Ferro)
paralelos na fachada atlântica ocidental, destacan- (fig. 2, nº 9). Já a peça exumada na zona baixa da
do-se pela afinidade crono-cultural os exemplares estação, encontrava-se junto à parede de um forno
de Abul A (Mayet e Silva, 2000: fig. 46), Almaraz cerâmico (Fig. 2, nº 12).
(Valério et al. 2003) e da necrópole do Olival do Os registos mais antigos destas lâminas de chum-
Senhor dos Mártires (Gomes, 2021: Est. CXXXI). bo enroladas procedem de Cádis (Pinar Hondo), de
contextos datados de meados do séc. IV a finais do III
2.2. Pesos séc. a.C., ocorrendo igualmente em Cancho Roano,
Os pesos podem ser associados à pesca à linha e relacionadas, desta feita, com a pesca fluvial (Bernal,
cana, mas sobretudo à utilização de redes – termo 2008:200).
que engloba uma considerável diversidade tipológi-
ca de aparelhos. No entanto a invisibilidade do regis- 2.2.2. Pesos cilíndricos (de cerâmica)
to arqueológico limita o seu estudo aos respectivos Nos antigos territórios fenícios constata-se, a partir
lastros. Pelos desafios subjacentes esta tem sido uma de época púnica, a generalização de pesos em cerâ-
das categorias artefactuais mais negligenciadas no mica em diferentes tamanhos e modelos.
quadro dos estudos de materiais. A elevada falta de No lote estudado testemunha-se um formato peque-
consenso quanto à sua interpretação funcional leva no e cilíndrico, com perfuração longitudinal. Este
a que só paulatinamente, face à identificação de tipo de pesos sidéricos sofre uma descontinuidade
536
superficial, não é inteiramente segura uma cronolo- escavações recentes na plataforma superior, 32 % a
gia pré-romana, embora a mesma não deva ser des- recolhas antigas (possivelmente na mesma área) e
cartada. A peça maior (diâmetro de 9 cm) apresenta 54% procedem da zona baixa do povoado). O mapa
erosão superficial – sinal de possível uso (fig. 4, nº 7). de dispersão de achados ilustra sobretudo uma con-
A segunda com diâmetro de 8 cm possui pasta densa centração junto à entrada da muralha (fig. 1B).
e superfície polida (fig. 4, nº 6). Como seria espectável neste segmento pouco pa-
Acham-se paralelos pré-romanos na zona ibérica dronizado, documenta-se uma significativa varie-
em contextos do séc. IV e III a. C e no castillo de dade ao nível do formato, dimensão, peso e tipo de
Doña Blanca (Playa, 2005: 55; Vargas 2020c, vol. 2 suporte cerâmico (fig. 5). O material de suporte mais
nº 439 e 440, 470). frequente (65%) é a cerâmica comum, em produções
variadas (calcítica, micácea, ânforas). Igualmente
2.2.5. Pesos discóidais recortados (em cerâmica) recorrente é o uso de cerâmica cinzenta fina (29%)
Os pesos de cerâmica fabricados sobre fragmentos sendo residuais os fragmentos de cerâmica pintada
cortados e com um furo central têm uma longa tra- (5%) e manual (1%).
dição, encontrando-se atestados da Idade do Bronze As peças obedecem na maioria a um formato sub-
à Antiguidade tardia (Playa, 2005: 53; Bernal, 2008: -rectangular, registando-se igualmente o recorte
197). Contudo, a falta de estandardização e o cariz de romboidal e redondo. A maior parte dos indivíduos
objecto reutilizado levanta reservas quanto à inter- apresenta tamanho médio (6 a 7 cm por 4 a 5 cm),
pretação destas peças que podem facilmente deter ocorrendo esporadicamente um formato menor (4 x
um carácter polifuncional, como fusaiolas ou pesos. 3 cm) e um formato mais comprido com c. de 9 cm.
Se nalguns casos o contexto pode ajudar a esclarecer Outra diferença visível neste conjunto e que pode
a questão funcional, no presente caso não dispomos ter uma leitura, em termos da utilização, diz res-
de informação relevante, restando apenas recorrer peito ao tratamento das fracturas – 46% apresenta
aos aspectos morfométricos. Assim, entre o espólio facturas frescas com aresta viva, 32% fracturas mais
observado e exceptuando-se algumas peças que pela ou menos boleadas e 22% completamente boleadas.
reduzida dimensão poderão mais plausivelmente O último parâmetro será o peso que oscila entre 13 e
estar relacionadas com a fiação, apenas se identifi- 102 gr predominando as peças com c. de 40 gr.
ca um peso discóidal em cerâmica calcítica com 4,6 Dentre os paralelos para este aponta-se o peso rectan-
cm e 48 gr (fig. 4, nº 8). Entre os paralelos para este gular com cantos arredondados exumado em Abul A
exemplar refira-se o peso recolhido em Abul A (ho- (horizonte IC) (Mayet e Silva, 2000: fig. 28, 167).
rizonte IC/IIA) (Mayet e Silva, 2000: fig. 100, 190)
e o de Moinho da Atalaia Oeste (Sousa, 2014: 234). 2.2.7. Pesos de pedra tipo «doughnut»
Na península Ibérica o uso de pesos de pedra parece
2.2.6. Pesos de cerâmica com entalhes mais limitado do que os de cerâmica. Dentro destes
Assim como os pesos em pedra com entalhe, este é raro o tipo esférico com perfuração central, por ve-
tipo de objectos enquadra-se num sistema tradicio- zes designado de «doughnut» a que corresponde o
nal com ampla perduração que extravasa a Idade tipo P 15 de Bernal (2010: 103).
do Ferro (Playa, 2005: 53; Bernal, 2008, 188). Tal Na base da encosta norte na camada de destruição
como a categoria anterior este é um tipo de objectos da muralha recolheu-se um fragmento de peso em
reutilizado e propenso a múltiplas utilizações, me- anfibolito, muito polido que pesaria cerca de 230 gr
recendo um tratamento específico que contemple (fig 4, nº 9). Não sendo segura a cronologia pré-ro-
igualmente os dados relacionados com outras acti- mana da peça esta afigura-se como a mais provável,
vidades no povoado. alistando mais esta categoria ao role tipológico pre-
No estabelecimento de Santa Olaia é o tipo de peso sente na estação.
mais frequente (131) o que, aliás, havia já impres- Tal como referido, estes pesos são raros apontando-
sionado Mesquita de Figueiredo, como revelam -se o exemplo do museu de Ceuta (ibid.).
os esboços deixados num dos seus ‘Cadernos de
apontamentos’ (de 2 de Setembro de 1898), inédi- 2.2.8. Pesos de pedra com entalhes
to, comparando-os aí com os da Sé de Lisboa. Deste Este tipo de objectos inscreve-se num sistema tradi-
conjunto, 14% correspondem a peças exumadas nas cional, remontando a momentos muito anteriores à
538
para a rede de pesca as referências aludem a “corda bretudo em santuários costeiros no Mediterrâneo,
de esparto, linho branco e negro, cortiça, chumbo, e com reflexo no território peninsular como nos ca-
madeira de pinho, correias, pedra, papiro, corno, sos de La Algaida e Cancho Roano (Vargas, 2020b).
barca de seis remos, torno com pega, tambor, ferro, A deposição de anzóis, agulhas, pesos e âncoras
madeira e pez” (Eliano XII, 43, tradução de Rodri- como ex votos em edifícios religiosos será talvez a ex-
guez, 2006). Para a pesca de anzol Eliano refere a pressão mais comum, mas outros cenários se podem
utilização de crina de cavalo, cerdas de javali, tere- colocar como a recolha de utensílios na residência de
bintina, bronze, chumbo, cordas de esparto, penas, sacerdotes e oficiais de culto. O escasso conhecimen-
lãs, cortiça, madeiras, ferro, canas, juncos, cornos e to dos processos deposicionais em Santa Olaia debili-
pele de cabra e engodos com grãos de cevada (Ibid.). ta a solidez das interpretações propostas, que devem
Não podemos, pois, deixar de considerar toda esta ser encaradas com cautela. Assim a concentração de
panóplia como possível pano de fundo às actividades pesos num ambiente com aparente conotação ritual4,
desenroladas no I milénio no estuário do Mondego. como o que é admissível supor no planalto superior
Outro constrangimento à realização deste estudo, (fig. 1 C) poderá apontar, pois, para a conversão des-
prende-se com o diferente grau de fiabilidade da in- tes objectos utilitários em peças com significado reli-
formação disponível acerca da estação. Desde logo gioso por meio da sua eventual amortização.
as recolhas antigas não oferecem pormenores acer- Outro aspecto que ressalta desta análise é a varieda-
ca dos contextos deste lote. Acresce que a perturba- de morfotipológica dos artefactos. Como já vimos,
ção estratigráfica decorrente da diacronia ocupa- diversas condicionantes inviabilizam uma seriação
cional do sítio e os processos de destruição e erosão cronológica das categorias materiais identificadas.
comprometem, de igual modo, parte das recolhas Sublinha-se, contudo, a incorporação de modelos ti-
mais recentes. A inconsistência da informação dis- pológicos (e tecnológicos) vinculados a espaços fení-
ponível dificulta a compreensão global dos fenóme- cios e orientalizantes sobretudo a partir de época pú-
nos deposicionais. Ainda assim, a análise dos dados nica. Desde logo os anzóis e agulhas. Contudo o tipo
permite apontar algumas ideias e elencar pistas para mais ilustrativo desta conexão cultural é testemunha-
a interpretação dos fenómenos deposicionais. Em do pelos pesos cilíndricos que marcam presença nas
primeiro plano a distribuição dos itens evidencia a estações do baixo Mondego até meados do I milénio
sua omnipresença no povoado, tanto no topo como a.C. e inclusive a sua aparente disseminação para o
na base da encosta, surgindo em contextos de varia- vizinho estuário do Vouga. Sendo ainda sintomática
da natureza. A disseminação destes vestígios real- a sua ausência no Crasto de Soure – sítio que marca
ça a importância da pesca, sendo que a sua posição um corte como o mundo de tradição orientalizante.
pode sugerir diferentes leituras. Assim, a ocorrência A já referida multiplicidade tipológica parece indi-
deste espólio na zona baixa do povoado, uma área ciar igualmente a coexistência de diferentes práti-
ligada a actividades produtivas e de armazenamen- cas piscatórias sintomática de uma significativa es-
to, próxima da linha de água coaduna-se com a exis- pecialização ou multiculturalismo desta actividade
tência de espaços vocacionados para preparação, onde converge o emprego de um repertório variado,
manutenção e acondicionamento dos aparelhos e concebido tanto ex professo como com recurso ao
artes de pesca. A aglomeração de pesos nessa área oportunístico reaproveitamento de materiais.
e particularmente na proximidade da entrada no É sem surpresa pois que se constata a relevância da
sítio é sugestiva e parece apontar nesse sentido. Pa- pesca na estação e a influência dos modelos e téc-
rece haver inclusive uma concentração de lastros e nicas orientais no seu arsenal pesqueiro. Ficam,
de agulhas no exterior da muralha junto à entrada. contudo, por sondar aspectos ligados à organização
O amplo areal que se estendia no sopé da encosta político-social destas comunidades. Sabemos que
(Wahcsmann et al, 2009), prestava-se à montagem nalguns pontos do Mediterrâneo antigo, sobretudo
dos aparelhos e a proximidade da entrada encurtava
o esforço de transporte dos mesmos.
4. Aspecto a ser mais detalhadamente tratado no âmbito
Já a ocorrência deste material na zona alta pode ter
da dissertação de doutoramento em curso intitulada Dinâ-
um significado distinto. O achado de instrumental micas culturais na área de influência do Mondego o I milénio
pesqueiro noutro tipo de ambientes, nomeadamen- a.C. desenvolvida por uma de nós (SA) e supervisionada por
te em espaços votivos é um fenómeno corrente, so- outras (RV).
540
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542
Figura 2 – Artefactos metálicos. Agulhas (1 e 2); Anzois (3 a 8) e pesos de chumbo (9 a 12).
544
Figura 4 – Pesos em cerâmica (1 a 8) e anfibolito (9).
546
Pesos cilíndricos
Nº Prov. Diam. Ext x Long. Orifício Peso
(cm) (cm) (gr)
1 83 5 s/e 2,7 x 5,50 0,5 34
2 87 C. Artur 2, 4 x 5,3 0,6 30
3 89 1 1BW 2,1 x 4,6 0,9 15
4 89 1BW£ 1,9 x 5,9 0,7 19
5 89 1 3 2,4 x 4,5 fechado 20
6 92 II 3 2,3 x 5,1 0,7 30
7 S/E 2,5 x 5,5 0,7 32
8 S/E 2,6 x 4,3 0,8 23
9 S0 28 4 2,5 x 4,6 0,5 24
10 S1 11_5 2,5 x 5,7 0,8 -
11 S1 16_3 2,1 x 5,4 0,5 24
12 S1 17_1 1, 7 x 5,3 0,7 15
13 S1 17_5 1,9 x 5 0,7 17
14 S1 22_8 2 x 4,7 0,7 14
15 S1 23_1 0,7 -
16 S1 25_1 2,5 x 7 0,7 37
17 S1 27_6 1,7 x 4 0,7 12
18 S1 28_4 2,4 x 4,7 0,8 24
19 S1 31_3 2,4 x 4,6 0,6 25
20 S/E 2,2 x 5,3 0,7 26
21 1521 1,8 x? - -
22 1522 1,4 x? - -
23 1535 2 x 6,5 0,8 27
24 1538 2 x 5,8 0,6 25
25 1728 2,2 x 4,9 0,4 27
26 1804 2,3 x 5 0,5 26
27 8136 Fract. - -
28 105 2,2 x 6,3 0,8 28
29 142 2 x 5,2 0,8 23
30 cp 2,2 x 5,3 0,7 26
Pesos globulares
Nº Prov. Diam. Ext. x Long. Orifício Peso
(cm) (cm) (gr)
1 8303 4,5x 4 1 -
2 1679 3,7x3,4 0,4 30
3 8133 3,5 x 1,9 0,5 20
4 S1 21 3 3,7 x 1,9 0,7 25
5 S1 21 3 3,6 x 1,9 0,6 21
RESUMO
Recentes intervenções arqueológicas efectuadas no topo da colina do Castelo de São Jorge, em Lisboa, permiti-
ram recuperar um conjunto significativo de materiais associados à ocupação da segunda metade do 1º milénio
a.C. Entre estes, foi identificada uma peça particular, produzida em cerâmica cinzenta, que parece estar inspi-
rada em modelos de cerâmica ática de figuras vermelhas, mais concretamente nos krateres de sino, que chegam
ao território português durante a 1ª metade do século IV a.C. Trata-se de uma evidência singular no registo
artefactual pré-romano do Baixo Tejo, ainda que a influência dos protótipos gregos já tenha sido identificada
em outras morfologias nesta região centro atlântica. Salienta-se ainda a presença, na superfície interna do re-
cipiente, de um revestimento à base de calcite, provavelmente destinado à sua impermeabilização, sendo um
elemento relevante para discutir a sua funcionalidade.
Palavras-chave: Atlântico; Idade do Ferro; Cerâmica cinzenta; Cerâmica grega; Inspiração/emulação.
ABSTRACT
Recent archaeological excavations carried out at the top of the Castelo de São Jorge´s hill in Lisbon have led to
the recovery of a significant set of artifacts associated with the occupation of the area during the 2nd half of the
1st millennium BC. Among these findings is a vessel of gray ware that appears to have been inspired by models
of Attic red-figure pottery, specifically bell kraters, which arrived in the Portuguese territory during the 1st half
of the 4th century BC. This piece is unique evidence in the pre-Roman repertoire of the Lower Tagus, although
the influence of Greek prototypes has been previously identified in other morphologies in this central Atlantic
region. It is also worth noting the presence, on the inner surface of the container, of a calcite-based coating,
probably intended for sealing, which is a relevant element to discuss its functionality.
Keywords: Atlantic; Iron Age; Gray wares; Greek pottery; Inspiration/emulation.
2. https://orcid.org/0009-0009-6837-5670 / [email protected]
550
pertencente ao vaso de cerâmica cinzenta que deu alturas oscilam entre os 26 e os 35,75 cm e diâmetros
origem a este trabalho (U.E. [28/29]), e que permite máximos do corpo entre 21 e 27,5 cm, parece que a
estabelecer um terminus post quem a partir da primei- peça de Lisboa segue, grosso modo, as proporções
ra metade do século IV a.C. para a formação deste destas morfologias.
nível. Resta, por último, referir que estas realidades É, contudo, evidente que não se trata de uma re-
foram posteriormente cobertas por um sedimento produção fiel do modelo grego, sendo ainda assim
castanho (U.E. [13]), correspondendo ao último es- claramente inspirada nesta morfologia exógena. O
trato da Idade do Ferro identificado no sector (Sousa reconhecimento desta forma, e a sua associação
& Guerra, no prelo). aos protótipos do Mediterrâneo Oriental, só foi
possível graças ao excelente estado de conserva-
3. MORFOLOGIA E PRODUÇÃO ção da peça recolhida no Largo de Santa Cruz, e
em particular dos seus elementos de preensão. Assim,
A peça de cerâmica cinzenta recuperada no contex- não é impossível que alguns exemplares até agora
to anteriormente referido corresponde a um vaso classificados como o tipo 4Aa de cerâmica cinzenta
de perfil quase completo, com 26,25 cm de altura do estuário do Tejo (Sousa, 2021b) possam corres-
conservada. ponder também a vasos inspirados nos modelos
A sua base, com 12 cm, é convexa, suportando um helénicos, mas cuja classificação não é obtida devi-
corpo de tendência ovalada, que atinge o seu diâ- do ao estado de fragmentação das peças. Neste âm-
metro máximo, de 32,5 cm, na zona superior, junto bito, apenas a análise dos elementos de preensão
às asas. Tem ainda conservada a zona do colo, que poderá ser mais elucidativa.
é ligeiramente assinalado, anunciando um bordo A peça de Lisboa tem como paralelo mais próximo
exvertido, mas que infelizmente não se conservou. um recipiente recolhido no Castro de Chibanes, no
O aspecto que mais claramente remete para uma Baixo Sado, ainda que neste caso a sua produção se
influência helénica é a presença de duas asas hori- integre no grupo da cerâmica comum (Pimenta et
zontais, localizadas da zona superior do corpo. Têm al., 2019, p. 64). Este exemplar apresenta também
cerca de 8 cms de largura e 6 cms de comprimento, asas horizontais, neste caso com uma projeção mais
sendo a sua secção circular. orientada para cima, tendo um bordo exvertido, de
Considerando todos os aspectos morfológicos enun- secção simples, e um colo relativamente bem mar-
ciados, parece possível propor que se trate de uma cado. Atendendo às suas características morfológi-
peça inspirada nos protótipos dos krateres, e, mais cas e dimensões, é possível que corresponda, tam-
especificamente, dos krateres de sino do tipo 2 da bém neste caso, a um modelo inspirado nos krateres
Ágora de Atenas (Moore, 1997), ainda que não se de sino. Infelizmente, não se dispõem de dados so-
tenha procurado reproduzir as características da bre o seu contexto original, tendo sido recolhida nos
sua base. Com efeito, os modelos áticos exibem, por inícios do século XX por A. I. Marques da Costa, es-
norma, um estreitamento na zona inferior da peça, tando actualmente depositada no Museu Nacional
que se apoia numa base mais sólida, geralmente de de Arqueologia. Cabe, ainda assim, recordar que o
perfil anelar ou escalonado. Castro de Chibanes foi ocupado entre momentos
Outros dois aspectos que distanciam a peça de Lis- tardios da Idade do Ferro e o período romano-repu-
boa dos protótipos helénicos é a presença de um blicano (Pimenta et al., 2019).
colo, ainda que este seja apenas ligeiramente assina- Como foi anteriormente referido, a peça de Lisboa
lado, e a projecção dos elementos de preensão, que foi produzida em cerâmica cinzenta, tendo ambas
é mais horizontal e não orientada para cima, como as superfícies cuidadosamente polidas. A sua pasta
nos protótipos originais gregos. exibe um núcleo alaranjado, com partículas de mos-
De qualquer forma, gostaríamos de chamar a aten- covite, calcite e alguns quartzos.
ção para as proporções da peça de Lisboa, que não se Corresponde, muito provavelmente, a uma pro-
distanciam dos vasos que terão inspirado esta forma. dução local/regional tendo correspondência com
Com efeito, e atendendo às dimensões dos krateres o grupo II estabelecido para a Rua dos Correeiros
de sino de perfil completo conhecidos no território (Sousa, 2014, p. 131) e com a amostra G2 do Largo
português, todos eles procedentes da necrópole de de Santa Cruz do Castelo, que integrou um recente
Alcácer do Sal (Rouillard et al., 1988-1989), e cujas estudo arqueométrico (Ferreira et al., 2020).
552
nalidades primárias dos vasos em que se inspiram: produtos importados (Sousa, 2019). Ainda assim,
como já foi referido, as taças, nas suas múltiplas cabe destacar a recente identificação de uma ânfora
variantes, e os krateres são dois elementos funda- do tipo MGS IV no Noroeste Peninsular, em O Nei-
mentais do symposium grego, sendo utilizadas para xón (Sáez et al., 2019), que documenta, ainda que de
o consumo e a preparação do vinho. forma aparentemente esporádica, a presença de vi-
No Extremo Ocidente, os dados arqueológicos não nho grego na fachada atlântica, não sendo também
permitiram ainda documentar, de forma inequi- de excluir a eventual importação de vinho andaluz,
voca, que a importação desses vasos gregos tenha sendo este um dos conteúdos equacionados para
também implicado a mimetização dessas práticas, as ânforas de tipo Pellicer B/C (García Fernández,
ainda que tal cenário não seja, de todo, improvável. 2019, p. 143).
Com efeito, práticas análogas terão sido desenvolvi- Neste âmbito, cabe salientar uma das particularida-
das no território peninsular desde a introdução dos des identificadas na peça de cerâmica cinzenta do
produtos vinícolas pelas comunidades fenícias, em Largo de Santa Cruz, concretamente na película de
inícios do 1º milénio a.C. (McGovern, 2013), tendo fosfato de cálcio carbonatado.
permanecido como um produto indissociável das Infelizmente, não foi possível determinar se este
estratégias económicas e também das práticas vestígio esteve relacionado um qualquer fenómeno
sumptuárias e simbólicas das comunidades penin- pós-deposicional, com um eventual conteúdo ou
sulares (entre outros, Guerrero, 1995; Celestino função do recipiente, ou se se trata de um revesti-
Pérez & Zulueta de la Iglesia, 2004; Celestino & mento intencional.
Blánquez, 2013). Não é, portanto, de estranhar que, Ainda que a sua relação com um qualquer processo
durante a segunda metade do milénio, esses costu- pós deposicional não seja de excluir taxativamen-
mes tivessem adoptado/adaptado novas morfolo- te, atendendo que a peça ostenta também algumas
gias, desta vez associadas ao mundo helénico, e que concreções brancas na superfície externa e em al-
talvez tenham inclusive alterado e/ou inovado as gumas fracturas, esta possibilidade não nos parece
tradições pré-existentes. ser a mais provável. Com efeito, a película esbran-
Contudo, também é certo que as cerâmicas gregas quiçada visível na zona interior é consideravelmente
foram consideradas, no Extremo Ocidente, como mais espessa e regular, enquanto na zona externa as
objectos de prestígio, tendo sido incorporadas com manchas surgem de forma mais errática, parecendo
frequência nos horizontes funerários. Nestes casos, corresponder efectivamente a algum tipo de concre-
os krateres de sino são utilizados como urnas cinerá- ção, eventualmente também de natureza calcária.
rias, atendendo à realidade conhecida em Alcácer Por outro lado, estas evidências não surgem na outra
do Sal (Rouillard et al., 1988-1989; Gomes, 2021, p. peça de cerâmica manual recolhida no mesmo con-
372), sendo uma idêntica situação também equacio- texto, o que também dificulta admitir a relação com
nada para o Cerro Furado (Arruda & Lopes, 2012), processos pós-deposicionais.
para não referir outros casos da área andaluza e ibé- Sobre a segunda possibilidade elencada, cabe referir
rica (entre outros, Blánquez, 1995). As taças surgem que situações semelhantes foram já detectadas em
também em contextos funerários, sendo, neste caso, peças de cronologia posterior, especificamente de
mais difícil determinar a sua função exacta (oferen- época romana, tendo sido consideradas como depó-
da ou utilização como cobertura das urnas), pelo sitos resultantes de mineralizações secundárias rela-
menos nos contextos portugueses. cionadas com a fervura de líquidos, possivelmente
Ainda assim, estas mesmas formas surgem tam- de água (González Villaescusa et al., 2015). Apesar
bém em contextos de habitat e espaços religiosos, de ser uma hipótese interessante, cabe assinalar que,
sendo nestes horizontes que se pode equacionar a no caso da peça de Lisboa, não se identificam sinais
sua relação com o consumo de líquidos e, em parti- evidentes da sua exposição ao fogo, para além da sua
cular, do vinho. Focando especificamente o caso do morfologia não ser de todo adequada a essa função.
Baixo Tejo, convém recordar que o cultivo da vinha No que diz respeito à hipótese de se tratar de um re-
doméstica está documentado na região deste o sé- vestimento, o facto de a película estar documentada
culo VII a.C. (Leeuwaarden & Janssen, 1985), o que em toda a zona interna da peça, sempre com uma es-
permite equacionar que o vinho consumido seria pessura em torno a um milímetro, poderia suportar a
sobretudo de origem local, atendendo à escassez de possibilidade de se tratar de uma aplicação intencio-
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556
Figura 1 – Localização de Lisboa no actual território português (esquerda) e do Largo de Santa Cruz na Colina do Castelo de São
Jorge (segundo Pimenta 2005, modificado).
558
Figura 4 – Pormenores da asa e superfície interna do vaso de cerâmica cinzenta do Largo de Santa Cruz.
560
Figura 7 – Resultados da análise FTIR.
Figura 8 – Set de cerâmica cinzenta da fachada ocidental centro-atlântica para o consumo de líquidos (imagens adaptadas de
Cardoso et al. 2014; Arruda et al. 2002).
RESUMO
Nos últimos anos, o projecto Made in the Mediterranean tem vindo a sistematizar as importações mediterrâ-
neas documentadas na Idade do Ferro do Sul de Portugal. Neste contexto, tem-se prestado particular atenção
a elementos tradicionalmente menos estudados, com destaque para os objectos de adorno em vidro, faiança,
cornalina e âmbar, aos recipientes de substâncias aromáticas e, mais recentemente, às evidências indirectas de
produtos têxteis. A presente contribuição oferece uma síntese dos principais trabalhos realizados no contex-
to deste projecto, bem como de outros desenvolvimentos relevantes no estudo dessas categorias artefactuais
ocorridos nos últimos anos. Pretende-se assim estabelecer um breve estado da arte, bem como apontar vias
prioritárias de investigação no futuro.
Palavras-chave: Idade do Ferro; Consumo; Exotica; Objectos de adorno; Têxteis.
ABSTRACT
In the past few years, the Made in the Mediterranean project has been systematizing the Mediterranean imports
documented in Southern Portugal during the Iron Age. Particular attention has been given to traditionally ne-
glected types of material, namely adornment objects in glass, faience, carnelian and amber, containers for per-
fumes and, more recently, the indirect evidence related to textiles. This contribution offers a synthesis of the
work conducted in the framework of this project, as well as of other relevant developments in the study of the
aforementioned materials in the past few years. The goal is to establish a state of the art for such research, as
well as to point out some priority lines to explore in future research.
Keywords: Iron Age; Consumption; Exotica; Adornment objects; Textiles.
564
ou cosméticas inclui recipientes de tradição grega med glass vessels) integráveis no Grupo Mediterrâneo
arcaica, representados na Península Ibérica por dis- 1 (Feugère, 1989; Fabião, 2001; Gomes, no prelo a).
tintas produções, com destaque naturalmente para Um estudo recente dos padrões de consumo deste
os aryballoi e outros recipientes coríntios e para os tipo de recipientes a nível peninsular (Gomes no
seus congéneres produzidos na Grécia Oriental (v. prelo a), que procurou actualizar o panorama traça-
Domínguez & Sánchez, 2001, pp. 84-90), mas tam- do no clássico estudo de M. Feugère (1989), permitiu
bém para os aryballoi de faiança integráveis na tra- compreender que a distribuição destes recipientes
dição dos chamados “mixed-style faïence vessels”, oriundos do Egeu para Ocidente se operou através
de provável produção naucratita (v. Jiménez Ávila & das redes comerciais tanto gregas como púnicas.
Ortega Blanco, 2004, pp. 89-93, com bibliografia). São provavelmente estas últimas as responsáveis
No território português, e até ao momento, apenas pelos exemplares documentados até ao momento
se documentaram alguns escassos recipientes de no actual território nacional.
origem coríntia, nomeadamente em Castro Marim, A distribuição alcançada por estes contentores é
onde se recolheu um fragmento de olpe do Coríntio muito mais vasta que a dos seus predecessores,
Médio (Arruda et al., 2020, pp. 25-26), e na Quinta mas curiosamente apresenta uma geografia muito
do Almaraz (Almada), onde se recolheram fragmen- similar à da distribuição da cerâmica ática de figu-
tos de um aryballos e de outro possível olpe, também ras vermelhas e de verniz negro de época clássica
enquadráveis no Coríntio Médio (Ferreira, 2022, pp. (v. Domínguez & Sánchez, 2001; para o território
131-132, com bibliografia). português, v. tb. Ferreira, 2022). Não menos curio-
Estas peças poderão contextualizar-se num fluxo so é o facto de, tal como aquelas, desaparecerem
mais amplo de substâncias aromáticas de origem do registo arqueológico peninsular entre o segundo
grega durante a época arcaica que, não sendo quan- quartel e os meados do século IV a.n.e., deixando
titativamente maioritário, se encontra bem ates novamente um vazio difícil de suprir. Os sucedâ-
tado, como ficou dito, no território peninsular. Os neos destes recipientes dos Grupos Mediterrâneos
padrões de distribuição e consumo dos recipientes 2 e, mais tarde, 3 nunca chegaram a mitigar esse
desta categoria e seus conteúdos encontram-se vazio, sendo vestigial a sua presença no território
ainda em análise, mas num trabalho recente foi já peninsular, e no português em particular (Feugère,
possível estabelecer um panorama da sua distribui- 1989; Gomes, 2022a; no prelo a).
ção geográfica e da sua representatividade (Gomes, Vistas no seu conjunto, estas várias categorias de
2023a, Figs. 1 e 3). recipientes reflectem o dinamismo do processo his-
A estes recipientes das fases mais antigas da Idade tórico do período em apreço, mas também a procura
do Ferro poderão também acrescentar-se, como hi- sustentada de substâncias aromáticas, nomeada-
pótese, os unguentários de alabastro de pequenas mente importadas, ao longo de todo o período abor-
dimensões (cf. López Castro, 2006). No território dado. Esta constatação abre uma janela para a im-
português estas peças não são comuns, mas aos portância dessas substâncias para as comunidades
exemplares já conhecidos da Quinta do Almaraz locais, para as suas práticas sociais e religiosas, as
(Cardoso, 2004, Fig. 180) haveria agora a somar o suas fórmulas de representação e os seus regimes de
recentemente publicado unguentário de alabastro cuidados corporais.
da Azougada (Moura) (Antunes, 2016/2017). Não é
totalmente evidente se o consumo destas peças se 2.2. Contas e pendentes de cornalina
relaciona com os seus possíveis conteúdos ou com Outra categoria artefactual à qual até há pouco
o valor intrínseco dos recipientes, mas a primeira hi- tempo se tinha prestado uma atenção limitada (v.,
pótese não se deve descartar. contudo, Gonçalves et al., 2011; para a Península
O declínio da presença destas categorias de reci- Ibérica em geral, v. Martín de la Cruz, 2004) inclui
pientes, que coincide com o período de restrutura- um conjunto de objectos de adorno de cornalina.
ção da presença fenícia no Sul Peninsular durante o Na Península Ibérica, onde não se conhecem quais-
século VI a.n.e. (Gomes, 2023a), parece ter deixado quer fontes desta pedra semi-preciosa, as primeiras
um vazio que foi preenchido, a breve trecho, pela atestações de objectos realizados neste material não
chegada em quantidades apreciáveis de recipientes precedem os finais do II milénio a.n.e. (Martín de la
de vidro modelados sobre núcleo friável (core-for- Cruz, 2004; Gomes, 2021a).
566
se dedicou um recente estudo monográfico (Gomes, Outro desenvolvimento merecedor de atenção
2020b, com bibliografia) que permitiu estabelecer diz respeito à realização, nos últimos anos, dos
uma ordenação tipológica aberta e extensível que de primeiros estudos analíticos dedicados ao vidro
futuro se adaptará para incluir todo o material vítreo pré-romano do Sul português, e em particular às
do Sul português (Gomes, 2020b, Fig. 6). A operacio- contas de vidro. Os primeiros resultados obtidos
nalidade e a flexibilidade deste sistema classificatório para o notável conjunto da necrópole da Vinha das
foram recentemente testadas com sucesso através da Caliças 4 (Beja) (Costa et al., 2018; 2021; Lončarić,
sistematização tipológica das contas oculadas (Go- 2022) vieram reforçar o enorme potencial da análi-
mes, no prelo b). se interdisciplinar deste tipo de peças, assinalando
Mais pequeno, mas não por isso menos interessante, nomeadamente a existência de produtos realizados
é o conjunto da sepultura da Corte de Père Jacques com vidro de distintas procedências – concretamen-
(Aljezur), também recentemente analisado (Gomes, te levantino e egípcio (v. esp. Costa et al., 2021) – que
2021b). Actualmente encontram-se também avan- vem de encontro à hipótese de uma diversidade de
çados os estudos de outros conjuntos de referência, vias de aprovisionamento que confluem no Extremo
como o da necrópole da Fonte Santa (Ourique) (cf. Ocidente. Espera-se que no futuro próximo estes
Beirão, 1986; v. avanços deste estudo em Gomes, estudos pioneiros venham a ampliar-se com outros
2021c; no prelo b) e o de Cabeça de Vaiamonte (Mon- dados, procedentes deste e de outros sítios.
forte) (cf. Fabião, 2001), a que deveria somar-se no Significativamente menos estudadas que as suas
futuro o do também notável conjunto da Herdade congéneres de vidro, a presença de contas realiza-
do Gaio (Sines) (cf. Costa, 1967; 1972). das em faiança tem-se vindo a constatar com cada
Apesar de o estudo global das contas de vidro da vez maior frequência (Fig. 2). A abundância de con-
Idade do Ferro do Sul português se encontrar ainda tas de pequena dimensão produzidas neste material
em curso, a documentação já compulsada permite em várias necrópoles do século VI a.n.e. da região de
entrever algumas das particularidades e das linhas Beja e de Serpa (em Montinhos 6, Serpa – Soares et
de força do material em análise. Por exemplo, um al., 2016, Fig. 3; na Vinha das Caliças 4 – Arruda et
estudo recente permitiu reflectir sobre uma classe al., 2017, p. 212; em Palhais, Beja – Santos et al., 2017;
de peças que apresenta uma peculiar concentração e no Monte do Bolor, Beja – Soares et al., 2017, p. 285)
no Sul português e que não conta com paralelos nou- vem reforçar a identificação de peças neste mesmo
tras regiões do Sul peninsular, e que engloba contas material em conjuntos procedentes de escavações
de vidro de aparência negra, maioritariamente ocu- realizadas em datas mais recuadas, como o da ne-
ladas a branco (Gomes, 2021c; v. tb. Lončarić, 2022). crópole da Fonte Santa (Ourique) (cf. Beirão, 1986,
Este estudo permitiu confirmar a distribuição li- p. 71; materiais actualmente em estudo) e a da Her-
mitada deste tipo de peças, centrada no Baixo dade do Gaio (Silva & Gomes, 1992, Fig. 52), ao que
Alentejo e no interior algarvio, bem como a crono- tudo indica da mesma cronologia.
logia relativamente concentrada do seu uso, es- Esta categoria de objectos de adorno merece ainda
sencialmente centrada no século VI a.n.e. (Gomes, um estudo mais circunstanciado, que permita con-
2021c, pp. 134-136), Ambos estes factos diferenciam textualizar as ocorrências do Sul português com o
estas contas ‘negras’ das suas congéneres azuis- panorama global peninsular. Deve, contudo, sa-
-turquesa oculadas a branco e monocromas azuis ul- lientar-se que, tal como no caso do vidro, os últimos
tramarinas, mais difundidas e com períodos de uso anos assistiram também à publicação do primeiro
mais dilatados (Gomes no prelo c), aproximando-as estudo arqueométrico dedicado a este tipo de ma-
inversamente de outras tipologias minoritárias com terial, concretamente a peças procedentes uma vez
uma forte concentração nas mesmas regiões, como mais da Vinha das Caliças 4 (Costa et al., 2022), que,
as contas tubulares translúcidas ou esverdeadas além de confirmar a natureza da matéria-prima em
(Tipo 3.a da Fonte Velha de Bensafrim – v. Gomes, apreço e oferecer uma leitura da sua composição e
2020b, pp. 102-103). Tudo indica que estes grupos tecnologia produtiva, permitiu asseverar a sua ori-
mais raros e peculiares de peças marcarão a exis- gem levantina. Desejavelmente estes estudos pio-
tência de umas rotas de difusão e aprovisionamento neiros virão também a ser complementados por ou-
diferenciadas, mas também de uns padrões de gosto tros relativos aos restantes conjuntos mencionados
diversos mesmo à limitada escala regional. num futuro próximo.
568
período para o qual se dispõe de melhor informação, mas também avançar no sentido da sistematização
complementada também por estudos específicos da informação, com a constituição de mais e me-
que têm permitido delimitar a existência de padrões lhores sínteses de referência que estabeleçam as
de género mais ou menos claros na composição da coordenadas geográficas, cronológicas e mesmo,
indumentária (Gomes, no prelo e) que importaria nalguns casos, tipológicas das classes artefactuais
continuar a explorar no futuro. aqui abordadas.
Paradoxalmente, o estudo deste tipo de peças na óp- Por outro lado, parece imperativo dar continuidade
tica da sua relação com os componentes têxteis da in- ao impulso verificado nos últimos anos para a apli-
dumentária tem sido sistematicamente negligencia- cação de metodologias interdisciplinares de estudo.
do face a abordagens de teor mais crono-tipológico. A diversificação de análises arqueométricas como as
Um dos desafios de futuro para a melhor compreen- realizados nos estudos pioneiros acima referencia-
são destas peças passa pela sua reapreciação em fun- dos (Gonçalves et al., 2011; Costa et al., 2018; 2021;
ção dessa relação, estudando com maior atenção as 2022; Lončarić, 2022) deve igualmente considerar-se
suas características morfométricas, as suas marcas uma prioridade, sendo desejável que os resultados
de uso, os padrões de fragmentação, as suas even- dos mesmos se integrem de forma cada vez mais
tuais reparações, e também avaliando o seu poten- harmoniosa em modelos explicativos de corte histó-
cial de uso através de aproximações experimentais. rico e numa narrativa sobre as vivências e desenvol-
vimento das comunidades locais.
2.6. Bugigangas ou fontes históricas? Por último, e seguindo esta ideia, não pode também
Reflexões finais e perspectivas de estudo das deixar de se salientar a importância de continuar a
importações mediterrâneas do I milénio a.n.e. desenvolver a dimensão interpretativa do estudo
no Sul português destes materiais, que naturalmente não se esgo-
Frequentemente considerados como elementos me- ta na análise dos objectos em si mesmos. De facto,
nores, sem demasiado potencial informativo, os ma- foram já realizados alguns ensaios de interpretação
teriais considerados nas páginas precedentes têm- do significado destes materiais e das dinâmicas so-
-se vindo a revelar como fontes de grande interesse ciais e políticas que rodeiam o seu consumo (Gomes,
não só para a reconstrução e ilustração de narrativas 2022c; no prelo d) que demonstram que os usos e a
históricas de certo alcance, como sobretudo para a valorização social destas importações moldam e, si-
análise dos discursos de identidade, das práticas so- multaneamente, são moldados de forma muito clara
ciais e, em última análise, das economias políticas pela estrutura sociopolítica das comunidades sidéri-
das comunidades que os consumiram (v. Gomes, cas do Sul português numa dinâmica que importa
2022c; no prelo d). continuar a analisar.
Este avanço na investigação sobre estes materiais O objectivo último do estudo destes materiais deve,
tem sido possível graças a um crescente investimen- assim, ser o de construir uma narrativa histórica,
to em leituras que combinam uma visão integrada, mas ao mesmo tempo antropológica, que permita
a uma escala relativamente alargada, com aborda- aprofundar o conhecimento sobre as sociedades que
gens contextuais que valorizam o seu papel especí- os consumiram e a forma como a manipulação des-
fico em cada comunidade através das suas associa- tes (e outros) objectos lhes permitiu navegar as con-
ções a outros elementos de cultura material e aos junturas históricas em que viveram, construindo e
âmbitos concretos em que foram mobilizados e/ou projectando as suas agências, as suas opções sociais
amortizados. e políticas e, em última análise, as suas identidades
Se é certo que, como ficou patente nas páginas pre- culturais.
cedentes, essa linha de investigação tem já vindo a
dar frutos positivos, não deve contudo deixar de se BIBLIOGRAFIA
salientar uma vez mais que existe ainda uma larga ALMAGRO-GORBEA, Martín (2008) – Un tapiz fenicio en
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572
Figura 1 – Adornos de cornalina da Idade do Ferro do Sul de Portugal – distribuição e exemplares conhecidos (apud Gomes 2018,
com bibliografia original).
Figura 3 – Contas de âmbar da I Idade do Ferro do Sul de Portugal – distribuição e exemplos da Herdade do Gaio (Sines) (entre
outros materiais de adorno do mesmo sítio) (seg. Silva & Gomes 1992).
574
ARQUITETURAS ORIENTAIS EM
TERRA NA FRONTEIRA ATLÂNTICA:
NOVAS ABORDAGENS DO PROJETO
#BUILDINGINNEWLANDS
Marta Lorenzon1, Benjamín Cutillas-Victoria2, Elisa Sousa3, Ana Olaio4, Sara Almeida5, Sandra Guerra6
RESUMO
A presente contribuição apresenta os objetivos do projeto "Building in New Lands: Phoenician sustainable
architecture and environmental adaptation along the Mediterranean Sea”. Através deste projeto pretende-se
estudar os modos de relação cultural e de interação com o ambiente entre comunidades fenícias na primeira
metade do 1º milénio a.C., tendo como base a análise de materiais de construção em terra. Neste sentido, fo-
ram selecionados vários sítios com uma presença ou significativa influência fenícia em Portugal para, através
de uma metodologia interdisciplinar, analisar estes materiais de construção e explorar questões importantes
relacionadas com a aquisição de matérias-primas, opções de fabrico, tecnologia, organização do trabalho e evo-
lução arquitetónica em diferentes ambientes mediterrânicos ligados pela mesma tradição.
Palavras-chave: Fenícios; Colonização; Arquitetura em terra; Arqueometria; Interação cultural.
ABSTRACT
This paper presents the objectives of the project “Building in New Lands: Phoenician sustainable architecture
and environmental adaptation along the Mediterranean Sea”. Our research aims to study the modes of cultural
relationship and interaction with the environment among migrated Phoenician communities in the first half
of the 1st millennium BC through the analysis of earthen building materials. In this regard, we have selected
several sites with a significant Phoenician influence in Portugal for studying these building materials through
an interdisciplinary methodology. The acquired data will let us explore critical issues related to raw materi-
al acquisition, manufacturing options, technology, work organisation and architectural evolution in different
Mediterranean regions linked by the same tradition.
Keywords: Phoenicians; Colonisation; Earthen architecture; Archaeometry; Cultural interaction.
1. Centre of Excellence in Ancient Near Eastern Empires (ANEE). University of Helsinki; https://orcid.org/0000-0003-4747-5241
/ [email protected]
2. Ceramics and Composite Materials Research Group, INN, NCSR Demokritos / Grupo de Investigación en Arqueología (E041-
02). Universidad de Murcia / Centre of Excellence in Ancient Near Eastern Empires (ANEE), University of Helsinki; https://orcid.
org/0000-0002-6358-4176 / [email protected]
4. UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa / Fundação para a Ciência e a Tecnologia / https://orcid.org/0000-
0003-2356-2893 / [email protected]
6. https://orcid.org/0009-0009-6837-5670 / [email protected]
576
plexas, utilizando recursos naturais facilmente dis- ciplinares permite explorar certas questões como a
poníveis, sustentáveis e económicos, e que devem exploração do meio ambiente, os processos tecno-
ser avaliadas atendendo ao importante esforço exer- lógicos, os padrões arquitetónicos e a organização
cido por essas comunidades. do trabalho. Trata-se de uma abordagem inovadora
No entanto, a maior parte do trabalho sobre a arqui- para a disciplina arqueológica na Península Ibérica,
tetura de terra tem enfatizado os aspectos descritivos mas esta linha já está a ser desenvolvida com sucesso
(Dies 1994) em vez de investigar as práticas sociais noutros contextos do Próximo Oriente e do Mediter-
e tecnológicas que estão envolvidas no processo de râneo Oriental (ver, por exemplo, Goldberg, 1979;
construção. Para tentar alargar esta abordagem, este Nodarou et al., 2008; Homsher, 2012; Love, 2017;
projeto investiga a arquitetura fenícia em terra para Cammas, 2018; Lorenzon & Iacovou, 2019).
compreender os mecanismos criados para prosperar No projeto, criámos uma abordagem que combina
em regiões desconhecidas, tais como a aquisição de dados arqueológicos, geociências e informação so-
matérias-primas, projetos arquitetónicos centrados cial. A nossa metodologia interdisciplinar combina
nas alterações climáticas e o impacto de longa dura- técnicas arqueológicas tradicionais – Arqueologia da
ção nas comunidades para a construção e preserva- Construção – e geoarqueologia – Fluorescência de
ção das construções em terra. raios X convencional e portátil, difração de raios X,
Neste sentido, o nosso projeto tem quatro grandes microscopia eletrónica de varrimento, mineralogia
objetivos: ótica, granulometria, termogravimetria, análise ele-
– Compreender a seleção de áreas de captação mentar CHN, fitólitos, etc.
em novos ambientes: por exemplo, a seleção de O início do nosso trabalho em três grandes sítios
matérias-primas para os processos de fabrico fenícios em território português (Fig. 1) será a base
de materiais de construção em terra através da para começar a re-estudar e investigar a complexi-
análise das impressões digitais geoquímicas dos dade das construções em terra na fachada atlântica
materiais terrosos. da Península Ibérica durante a Primeira Idade do
– Investigar as escolhas tecnológicas e os proces- Ferro. Ainda assim, este projeto surge como uma
sos de organização do trabalho: tipologia do rede viva, pelo que esperamos estabelecer novas co-
trabalho, construção e alterações, propriedades laborações e relações fortes durante o seu desenvol-
mecânicas dos materiais de construção em ter- vimento e convidar outros colegas que possam estar
ra através da análise petrográfica e mecânica. interessados no tema a juntarem-se a esta iniciativa.
– Estudar as adaptações da arquitetura de terra: de-
senvolvimento de padrões tradicionais de arqui- 3. ESTUDOS DE CASO
tetura e construção com materiais de terra; paisa-
gens e adaptações climáticas combinando dados 3.1. Lisboa
petrográficos com resultados geoquímicos. A ocupação da Idade do Ferro em Lisboa foi docu-
– Divulgar os resultados da nossa investigação en- mentada, até à data, unicamente na colina do Cas-
tre o mundo académico através de publicações telo de São Jorge, elevação que proporciona ótimas
especializadas e a sociedade através de diferen- condições de visibilidade sobre a área circundante,
tes actividades de divulgação. e muito em particular em direcção ao rio Tejo. A ex-
No entanto, para extrair dados socioculturais dos tensão deste núcleo parece oscilar entre os 15 e os 20
materiais de construção em terra, estes têm de ser ha2 ao longo do primeiro milénio a.C., sendo uma si-
estudados através de uma abordagem interdisci- tuação praticamente ímpar no litoral português (Ar-
plinar. A combinação de métodos tradicionais e de ruda, 1999-2000; Sousa, 2014).
novas técnicas das ciências arqueológicas permitir- Apesar da grande densidade de vestígios materiais
-nos-á combinar dados quantitativos e qualitativos da Idade do Ferro que têm surgido nas várias inter-
para interpretar as interações homem-ambiente. venções preventivas realizadas nessa área, hoje ple-
Entre os materiais de construção em terra, os blocos namente urbanizada, a identificação e caracterização
de adobe destacam-se pela sua relativa abundância de elementos arquitetónicos é claramente deficitária.
nos sítios arqueológicos, e especificamente nos po- Devido à exiguidade dos espaços intervencionados,
voados fenícios, e pelas possibilidades de análise que e aos limites impostos pelas cotas de afectação dos
permitem. O seu exame através de técnicas interdis- projetos construtivos, na maioria dos casos em que se
578
mau estado de conservação não permita compreen- tivos sequenciais, associados a estruturas de planta
der, de momento, se se trata de construção em taipa rectangular “com pedras de pequena dimensão, ci-
ou adobe (Fig. 3). mentadas com argila” que considera serem embasa-
Além destes elementos, tem sido possível identificar mentos de “muros de adobos” (Rocha, 1905-1908,
outros componentes associados à construção, desta- pp. 319 e 320). A este respeito, descreve o derrube de
cando-se a recolha de fragmentos de barro com nega- um muro consolidado pela acção do fogo e com blo-
tivos de elementos vegetais. Realçamos, ainda, o re- cos ligados por argamassa esbranquiçada (Rocha,
conhecimento de alinhamentos de coloração branca 1905-1908, p. 320). Dever-se-ia precisamente a este
paralelos aos limites de alguns dos muros, bem como sistema construtivo o rápido aterro e preservação
a presença de três pisos em argila, com diferentes deste horizonte antigo.
graus de conservação (Olaio et al. 2023). Embora se Decorrida esta fase segue-se um período marcado
trate de um projeto recente, o conjunto dos elemen- pela destruição e abandono das ruínas (Almeida &
tos demonstra de forma muito evidente a profunda Vilaça, 2020). Só no último quartel do séc. XX, são
influência mediterrânea na construção, que quebrou retomadas as escavações por Isabel Pereira (1997,
por completo com os padrões construtivos existentes 2009). A arqueóloga irá realizar campanhas no topo
neste território em momentos precedentes. da colina com vista a avaliar o estado de preserva-
ção das realidades descritas por Santos Rocha. É,
3.3. Santa Olaia porém, na base da encosta norte que realizará ac-
Mais a norte, sensivelmente a meio da fachada oci- ções de maior alcance, face à construção de uma
dental atlântica, figura uma das estações ligada à ex- nova estrada sobre o sítio. Esta intervenção permitiu
pansão fenícia há mais tempo conhecida na Penín- ampliar a área conhecida do povoado e definir o seu
sula Ibérica – Santa Olaia. contorno setentrional, delimitado por uma estrutu-
Instalado num ambiente estuarino, sujeito a um forte ra perimetral com porta de entrada a NE. Esta zona
dinamismo geomorfológico, o sítio correspondia du- mais baixa surge associada sobretudo a actividades
rante o I milénio a.C. ao típico modelo de instalação produtivas, incluindo-se a significativa presença de
colonial numa ilha fluvial, próxima da margem direi- fornos de cal (Pereira, 2009, p. 70). No que respei-
ta do rio Mondego, com boas condições de abrigo, de ta ao desenho urbano, embora com distinto arranjo
navegabilidade e acesso franco ao oceano. Embora e em pior estado de conservação, observa-se aqui o
a linha de água se mantenha próxima do nível pré- mesmo esquema de edifícios retangulares com fun-
-romano (como se constata nas inundações cíclicas dações em alvenaria de pedra com ligante de terra.
de Inverno quando os campos submersos evocam Efectivamente, apesar da oscilação do nível freático,
a ampla baía fluvial antiga), o progressivo assorea- o alagamento e a elevada humidade nesta área difi-
mento do sistema deltaico converteu gradualmente cultarem a preservação dos vestígios, é igualmente
os ambientes aquáticos em férteis terraços fluviais. possível confirmar aqui a presença de técnicas de
A descoberta da estação remonta a meados do séc. construção em terra, quer na arquitetura doméstica,
XIX (Almeida et al., 2021, p. 67). É, contudo, com quer na própria construção da muralha.
António dos Santos Rocha que ganha protagonis-
mo no plano da arqueologia nos alvores do séc. XX 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
(Rocha, 1905-1908). Estas primeiras intervenções
exploratórias revelam desde logo a matriz oriental O projeto #BuildinginNewLands pretende abordar
do assentamento, não só no “exotismo” do espólio a análise de comunidades humanas proto-históricas
como nas características do edificado. que se instalam num novo ambiente e têm de adap-
As campanhas antigas incidem no planalto superior tar os seus modos de vida, tradições de construção
do outeiro, junto à capela com invocação a Santa e tecnologias aos recursos ambientais disponíveis.
Eulália. A sequência estratigráfica remonta ao neo- Um fenómeno transversal como a colonização fení-
lítico, assumindo maior expressão a proto-histórica, cia e púnica do Mediterrâneo ocidental e do litoral
à qual se sobrepõe a ocupação romana e medieval. Atlântico permitir-nos-á explorar a vasta gama de
Os níveis sidéricos destacam-se dos restantes pela respostas às alterações climáticas e à adaptação cul-
potência e estado de conservação. Para estes mo- tural que ocorreram em diferentes cenários e dife-
mentos, o arqueólogo reconhece três níveis constru- rentes situações coloniais.
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Figura 2 – Tijolos de adobe identificados durante as intervenções do Largo de Santa Cruz do Castelo (segundo Guerra & Sousa
2020).
582
Figura 3 – Exemplos de elementos arquitetónicos identificados na Quinta do Almaraz (Almada) referidos no texto.
584
FRUTOS, CULTIVOS E MADEIRA NO CASTRO
DE ALVARELHOS: A ARQUEOBOTÂNICA
DO PROJETO CAESAR
Catarina Sousa1, Filipe Vaz2*, Daniela Ferreira3, Rui Morais4, Rui Centeno5, João Tereso6
RESUMO
Três campanhas arqueológicas no Castro de Alvarelhos (Trofa) realizadas entre 2020 e 2022 no âmbito do pro-
jeto CAESAR, permitiram a identificação de vários contextos de ocupação e estruturas domésticas datadas de
entre o séc. II a.C. e os sécs. IV-V d.C. Foram recolhidas amostras sedimentares para análise arqueobotânica no
CIBIO-BIOPOLIS.
Neste estudo identificaram-se vários cultivos, entre os quais centeio, milho-miúdo, mas também evidências
de frutos silvestres como amoras e camarinha. Relativamente à madeira carbonizada analisada, os resultados
revelaram um conjunto pouco diverso de espécies no qual se destacaram carvalhos de folha caducifólio, giestas,
amieiros, castanheiros, aveleiras e freixos.
Os resultados obtidos irão ser apresentados no contexto das dinâmicas económicas e paleoambientais
conhecidas na região, partindo de estudos análogos.
Palavras-Chave: Idade do Ferro; Romanização; Castro de Alvarelhos; Arqueobotânica; Agricultura; Vegetação.
ABSTRACT
Three archaeological campaigns in the Castro of Alvarelhos (Trofa), from 2020 to 2022, made in the scope of
CAESAR project, led to the identification of several domestic structures from the 2nd cent. BC to the 4th-5th cent.
AD. Sediment samples meant for archaeobotanical analysis were recovered in these contexts and studied at
CIBIO-BIOPOLIS.
Its study revealed several crops such as rye and millet but also evidences of edible wild fruits such as black-
berries. The analysed charred wood was shown to be mostly from deciduous oak, leguminosae species, alder,
chestnut, hazel and ash.
This article will discuss these results in the scope of the economical and environmental dynamics already
known for the region.
Keywords: Iron Age; Roman Period; Castro de Alvarelhos; Archaeobotany; Agriculture; Vegetation.
3. FLUP – Faculdade de Letras da Universidade do Porto; CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Me-
mória (Unidade de i&D 4059 da FCT), Universidade do Porto / [email protected]
4. FLUP – Faculdade de Letras da Universidade do Porto; CECH – Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, Universidade de
Coimbra / [email protected]
5. FLUP – Faculdade de Letras da Universidade do Porto; CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Me-
mória (Unidade de i&D 4059 da FCT), Universidade do Porto / [email protected]
586
liza-se na área musealizada do Castro, junto à en- a macrorrestos recolhidos manualmente (Tab. 1).
trada Este do mesmo, nas proximidades de um dos Os contextos amostrados dizem respeito a duas
principais arrumamentos de época romana e de um áreas de escavação (Setor Norte e Sondagem 2),
recinto central de grandes dimensões. com evidências de diferentes fases de ocupação.
Na 2ª campanha do projeto CAESAR (2021), realiza- A mais antiga, no setor Norte, refere-se a quatro
ram-se igualmente trabalhos de acompanhamento unidades estratigráficas associadas a enchimentos
arqueológico das obras para a instalação da rede de estruturas negativas cujos conteúdos datavam
pública de abastecimento de águas, na rua de Sobre- do final da Idade do Ferro. Na Sondagem 2, foram
-Sá, na Zona Especial de Proteção do Castro de Al- recolhidas nove amostras de sedimento para estu-
varelhos. Neste âmbito, foram identificados contex- do arqueobotânico, provenientes de contextos bem
tos da Idade do Ferro, com abundantes fragmentos preservados, de cariz habitacional, associados a dis-
cerâmicos, incluindo vários exemplares de fabrico tintas épocas. Referente à transição da Era, foram
manual datáveis entre meados do século II a.C. e o recolhidas amostras (sedimentos e carvões de for-
século I a.C. Não obstante a estreita faixa de terreno ma manual) na vala de fundação de um muro e nos
intervencionada, correspondendo a uma vala com enchimentos de uma saibreira. Por último, e tam-
0.50 m de largura e 0.90 m de profundidade, numa bém na Sondagem 2, um outro conjunto de contex-
extensão de aproximadamente 4 m, foram identifi- tos da Antiguidade Tardia foi também amostrado,
cadas uma fossa e uma estrutura pétrea de grande associado a níveis de circulação e abandono de uma
espessura e funcionalidade ainda por determinar. unidade doméstica (Fig. 3).
Os dados resultantes dos últimos três anos de in- Como é notório, não se tratando de contextos pri-
vestigação do projeto CAESAR contribuíram para mários (i.e., estruturas de combustão onde o ma-
alterar o conhecimento arqueológico de Alvarelhos. terial carbonizado se encontra in situ) todos estes
Entre outros estudos (Morais, Centeno & Ferreira, correspondem a depósitos de natureza secundária
2023), destacamos os recentes resultados obtidos ou terciária, associados a pisos, compartimentos ou
através do varrimento aéreo a laser (LiDAR), ainda estruturas negativas, como fossas e valas.
em processamento (Morais, Centeno & Ferreira, no Depois de recolhidas, as amostras de sedimento
prelo), que parecem indicar que estamos perante foram transportadas para as instalações do CIBIO-
um povoado de grandes dimensões, circundado por -BIOPOLIS em Vairão, onde foram processadas
várias cintas de muralhas, com o seu núcleo ocupa- através de flutuação, usando para isso uma máquina
cional mais antigo na plataforma superior do Monte de flutuação tipo Siraf, com malhas de 0,5 mm.
Grande. A área musealizada do Castro, na platafor- Depois de obtidas e secas as frações leves (a com-
ma intermédia, aparenta assim corresponder a uma ponente carbonizada presente nas amostras sedi-
pequena parte de uma malha urbana consideravel- mentares), estas foram triadas com recurso a uma
mente mais vasta. Tratando-se de uma zona aplana- lupa binocular, primeiramente com vista à deteção e
da, esta plataforma adequa-se melhor à tendência identificação de material carpológico. O diagnóstico
de regularidade que caracteriza o urbanismo roma- taxonómico seguiu uma metodologia padronizada,
no, tendo sido amplamente ocupada e reformulada sendo efetuado por comparação com material vege-
ao longo das primeiras centúrias da nossa Era. tal atual, tendo-se usado as coleções de referência
Estes vestígios de ocupação antiga enquadram-se do CIBIO, atlas morfológicos e outras obras da es-
nas dinâmicas de apropriação do território que carac- pecialidade (e.g. Neef et al., 2012).
terizam a proto-história do noroeste peninsular, com Também o estudo antracológico seguiu procedi-
a edificação do povoado em altitude, ocupando uma mentos padronizados, com os fragmentos de carvão
posição estratégica na paisagem, com naturais condi- de dimensões superiores a 2 mm a serem secciona-
ções de defesa e de controlo do território envolvente. dos manualmente segundo as três secções de diag-
nóstico: transversal, radial e tangencial. A observa-
3. MATERIAIS E MÉTODOS ção foi realizada com recurso a uma lupa binocular
e microscópio ótico de luz refletida. O diagnóstico
Foram analisadas 13 amostras recolhidas durante as foi efetuado com recurso a atlas anatómicos (e.g.
escavações arqueológicas no Castro de Alvarelhos, Schweingruber, 1990; Vernet et al., 2001) tendo sido
dez correspondendo a amostras sedimentares e três também registadas diferentes características ana-
588
frutos silvestres e cultivados que não foram identifi- já conhecemos serem as tendências de recolha de
cados nas amostras estudadas. Embora só surjam nos madeira da região, já extensamente verificados nou-
níveis do século IV d.C., é expectável que também as tros sítios arqueológicos do noroeste peninsular (e.g.
uvas tivessem sido consumidas nas fases mais anti- Martin-Seijo, 2013; Vaz, 2020).
gas, dada a sua frequência em sítios do final da Idade A madeira de carvalhos – de longe a mais frequente
do Ferro e de Época Romana no Norte de Portugal e ubíqua neste estudo, dominaria o estrato arbóreo
(Tereso, 2012; 2020; Seabra et al., 2018; Teira-Brión, das florestas relativamente preservadas que ainda
2019). Pelos vestígios identificados, não é possível sa- existiriam na região nestas cronologias e seriam usa-
ber se seriam uvas silvestres ou domésticas. dos principalmente para construção de estruturas e
como fonte principal de combustível em lareiras,
4.2. Madeira fornos e outras estruturas de combustão (Figueiral,
No que concerne à componente antracológica, re- 1990; Vaz, 2020; Vaz et al., 2021) fundamentais para
ferente à madeira carbonizada identificada nestas a vida destas comunidades. Face à natureza dos
amostras, foram analisados 1318 fragmentos (Tab. contextos amostrados e à dimensão dos carvões em
3). Os resultados obtidos revelaram um conjunto causa, a extensa presença de fragmentos carboniza-
relativamente pouco diverso de espécies no qual dos desta espécie corresponderá com alguma proba-
se destacaram, pela sua quantidade, os carvalhos bilidade a estes usos.
de folha caducifólia (possivelmente Quercus robur) A presença de espécies como o amieiro, a aveleira
e pelo menos três tipos de Fabaceae (giestas, tojos, e o freixo (este em número reduzido para o que é co-
entre outras espécies). Surge igualmente com algum mum para a região) revelam a presença de florestas
destaque madeira de Alnus sp. (amieiro), Corylus sp. ripícolas nas imediações, podendo estar igualmente
(aveleira) e outros fragmentos cuja distinção anató- integradas nos carvalhais, graças à elevada humida-
mica é difícil de realizar (Alnus/Corylus). Os restan- de da região.
tes táxones são residuais: Erica sp. (urze), Frangula Por seu turno, as espécies arbustivas recolhidas em
alnus (sanguinho), Fraxinus sp. (freixo), Quercus giestais e outros matos, particularmente evidentes
suber (sobreiro) e apenas um fragmento de Pinus nos contextos amostrados mais antigos em Alvarelhos
pinaster (pinheiro-bravo). Cerca de 20% dos frag- (séc. II-I a.C.) poderiam ser empregues como cober-
mentos analisados encontrava-se em mau estado de tura de espaços domésticos, assim como na ignição e
preservação e não permitiram identificação taxonó- como combustível de lareiras e fornos. O aumento da
mica além da classe das Dicotiledóneas. extensão das áreas de giestais e matos arbustivos, que
No entanto, a análise detalhada dos resultados face se regista neste período, está diretamente relaciona-
aos contextos de proveniência demonstra algumas da com o impacto crescente das comunidades huma-
variantes que convém assinalar. Os níveis amostra- nas na vegetação e paisagem envolventes.
dos adscritos à Idade do Ferro revelaram-se os mais Entre as restantes espécies identificadas, e apesar
abundantes no conjunto e talvez também por isso, se ter verificado em apenas uma U.E., a presença de
os mais diversos. Proporcionalmente ao total ana- madeira de castanheiro é particularmente relevante
lisado, é neles onde se verifica a maioria dos frag- uma vez que reforça uma tendência já reiterada no
mentos de Fabaceae identificadas neste estudo. No noroeste peninsular: a sua presença no registo ar-
extremo oposto, é também de assinalar a presença queológico acontecer principalmente em fases mais
exclusiva de Castanea sativa (castanheiro) na U.E. recentes da ocupação romana, já em plena Antigui-
2012, referente ao piso de um espaço doméstico da dade Tardia (Magalhães, 2020; Vaz, 2020).
Antiguidade Tardia.
Pese embora não diretamente relacionados com 5. CONCLUSÕES
contextos estruturados de combustão, os vestígios
carbonizados identificados neste estudo deverão Este estudo arqueobotânico corresponde ao primei-
corresponder ao seu uso enquanto combustível nes- ro deste tipo na já na longa história de investigação
tas estruturas, tendo, após o seu abandono, incorpo- do sítio e deverá constituir-se como exemplo a seguir
rado a sequência sedimentar destas áreas. para outros projetos de investigação na arqueologia
À semelhança do referido para o conjunto carpoló- portuguesa, assim como em futuras campanhas em
gico, os dados antracológicos enquadram-se no que Alvarelhos.
micas económicas e ambientais da região, caracteri- FERREIRA, Daniela (2023) – Relatório de Progressos 3ª cam-
zadas pelo crescente impacto humano da paisagem panha – Intervenção Arqueológica Castro de Alvarelhos (2022).
e alargamento das áreas produtivas, relacionadas Projeto CAESAR – Castro de Alvarelhos (Trofa). Estudo Cientí-
fico do Registo Arqueológico. Porto. Versão policopiada – rela-
com atividades agro-silvo-pastoris entre a Idade do
tório técnico.
Ferro e a Antiguidade Tardia.
Não obstante estas conclusões, este tipo de análises FERREIRA, Daniela; FONSECA, Jorge (2021) – Relatório
exige um maior conjunto de dados, obtidos em múl- Preliminar 1ª campanha – Intervenção Arqueológica Castro
de Alvarelhos (2020). Projeto CAESAR – Castro de Alvarelhos
tiplas campanhas de trabalho, de modo a acumular
(Trofa). Estudo Científico do Registo Arqueológico. Porto. Ver-
informações mais substantivas que permitam tecer são policopiada – relatório técnico.
considerações e interpretações de maior alcance e
FERREIRA, Daniela; MORAIS, Rui & CENTENO, Rui
profundidade, cruzando perspetivas contextuais e
(2023) – Relatório Final do Projeto CAESAR – Castro de Alvare-
padrões gerais, caso estes existam. Neste sentido, a
lhos (Trofa). Estudo Científico do Registo Arqueológico. Porto.
continuação dos trabalhos no Castro de Alvarelhos Versão policopiada – relatório técnico.
e consequentemente das recolhas e estudos arqueo-
FIGUEIRAL, Isabel; SANCHES, Maria; CARDOSO, João
botânicos, poderão melhor potenciar o conjunto de
(2017) – Crasto de Palheiros (Murça, NE Portugal, 3rd – 1st mi-
dados que aqui ficam desde já disponibilizados. llennium BC): from archaeological remains to ordinary life.
Estudos do Quaternário 17, pp. 13-28.
AGRADECIMENTOS
LEITE, Margarida; SANCHES Maria; TERESO, João (2018)
– Cultivos da Idade do Ferro no Crasto de Palheiros: novos
Os autores gostariam de agradecer à Câmara Muni- dados carpológicos da Plataforma Inferior Leste. Cadernos
cipal da Trofa pelo financiamento das intervenções do GEEvH 7, pp. 40-68.
do Castro de Alvarelhos ao abrigo do Projeto CAE-
MAGALHÃES, Catarina (2020) – Achas na Fogueira: Estudo
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através do Programa «Apoio Financeiro Extraordi-
MARGUERIE, Dominique; HUNOT, Jean-Yves (2007) –
nário a Projetos de Investigação Plurianual em Ar-
Charcoal analysis and dendrology: data from archaeologi-
queologia 2021», através de concurso competitivo cal sites in north-western France. Journal of Archaeological
nacional. Science 34, pp. 1417-1433.
CS foi responsável pela conceção e estudo antra-
MARTÍN-SEIJO, Maria (2013) – A xestión do bosque e do mon-
cológico; FV foi responsável pela conceção, coor- te dende a Idade do Ferro a época romana no noroeste da penín-
denação, escrita do artigo; DF foi responsável pela sula Ibérica: consumo de combustibles e produción de manufac-
conceção, escrita e orientação das intervenções ar- turas en madeira. Tesis doctoral. Universidade de Santiago
queológicas; DF, RM e RC foram responsáveis pela de Compostela.
direção científica do Projeto CAESAR; JT foi res- MCPARLAND, Lesley; COLLINSON, Margaret; SCOTT,
ponsável pela escrita e estudo carpológico. Todos os Andrew; CAMPBELL, Gill; VEAL, Robin (2010) – Is vitrifi-
autores foram responsáveis pela revisão do artigo. O cation in charcoal a result of high temperature burning of
trabalho de FV e JT foi realizado no âmbito do pro- wood? Journal of Archaeological Science 37, pp. 2679-2687.
jeto B-ROMAN (PTDC/HAR-ARQ/4909/2020) fi- MORAIS, Rui; CENTENO, Rui S.; FERREIRA, Daniela
nanciado pela FCT através de fundos nacionais. (2023) – O castro de Alvarelhos (Trofa): Projeto CAESAR – Cas-
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590
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592
Figura 2 – Enquadramento da sondagem 2 na planta da área musealizada do Castro de Alvarelhos, com son-
dagens intervencionadas pelo projeto CAESAR em destaque. Autoria: Era Arqueologia.
Figura 3 – Pormenor da área intervencionada na sondagem 2, e indicação espacial das unidades estratigráfi-
cas de proveniência das amostras.
Tabela 1 – Inventário das amostras recolhidas e analisadas neste estudo arqueobotânico do castro de Alvarelhos.
594
Cronologia Séc. II-I a.C. Séc. I a.C. Séc. IV d.C.
Localização Setor Norte Sondagem 2
Volume – Litros 6 5 4 4 7 8,5 18,5 7
U.E. 2 8 102 202 2021 2011 2012 2030 Total
Poaceae (grão) 1 1 2 4
Poaceae (grão – frag.) 3 4 1 1 9
Poaceae (caule – frag.) 1 1
Polygonum aviculare (aquénio) 1 1
Polygonum lapathifolium (aquénio) 1 1
Rubus sp. (semente) 10 2 1 13
Rumex acetosella (aquénio) 1 1
Rumex crispus/obtusifolius (aquénio) 2 1 3
Rumex sp. (aquénio) 1 1
Silene sp. (semente) 1 1
Vicieae (semente) 6 1 4 1 12
Vitis vinifera (semente) 2 2
Indeterminado (espinho) 1 1
Indeterminado (fruto/semente) 1 1 1 1 4
Indeterminado (fruto/semente – frag.) 38 5 2 3 6 2 4 60
Total 98 35 61 34 33 8 8 9 286
Cronologia Séc. II-I a.C. Séc. I a.C. Séc. I d.C. Séc. IV d. C. Totais
Localização Setor Norte Sondagem 2
Volume (L) 6 5 4 4 7 manual manual 8,5 18,5 7
Taxon / UE 2 8 102 202 2021 2041 2006 2011 2012 2030 Total Total %
Alnus sp. 6 7 3 7 6 8 37 2,8
Alnus/Corylus 8 5 3 2 4 2 4 7 35 2,7
Castanea sativa 23 23 1,7
Corylus avellana 4 1 3 8 0,6
Erica sp. 2 3 5 0,4
Frangula alnus 2 2 1 5 0,4
Fraxinus sp. 3 3 0,2
Fabaceae 14 14 27 19 4 3 7 88 6,7
– Adenocarpus
Fabaceae tipo IV 16 5 8 23 8 8 5 5 78 5,9
Fabaceae tipo V 41 41 3,1
Pinus pinaster 1 1 0,1
Quercus sp. tipo 65 64 72 56 90 2 15 123 81 37 605 45,9
caducifólia
Quercus sp. 15 7 14 4 36 9 85 6,4
Quercus suber 1 1 2 4 0,3
Dicotiledónea 20 46 32 35 20 3 12 85 47 300 22,8
Total 150 136 150 150 150 14 23 150 245 150 1318 100
RESUMO
Em alguns sítios romanos do território português têm surgido machados polidos, todavia sem ter existido ocu-
pação pré-histórica nesses locais. Através de textos clássicos sabe-se que, na Antiguidade, esses artefactos eram
considerados cerauniae (“pedras de raio”), com a propriedade de proteger os seus possuidores dos raios das
trovoadas. Na Idade Moderna os machados polidos começam a ser compreendidos como utensílios de carácter
pré-histórico, mas a mentalidade popular continua a atribuir-lhe capacidades profiláticas até meados do século
passado. O autor aborda exemplos de machados polidos encontrados em sítios romanos como Conimbriga,
Vale do Junco, S. Miguel de Amêndoa e Tapada, estes três últimos em Mação. Alguns achados de cerauniae em
sítios proto-históricos pode significar que esta crença remonta à Idade do Ferro.
Palavras-chave: Machados polidos; Ceraunia; Pedra de raio.
ABSTRACT
In some Roman sites of the Portuguese territory there have appeared polished axes, however without a prehis-
toric settlement in those places. Through classical texts it is known that, during Antiquity, those artefacts were
considered as cerauniae (“thunderbolts”), with the capacity of protecting their owners from thunderstorms.
During Modern Age, polished axes start to be understood as tools of prehistoric character, but popular mental-
ity continues to attribute them prophylactic properties till the middle of last century. The author approaches
examples of polished axes found at Roman sites such as Conimbriga, Vale do Junco, S. Miguel de Amêndoa and
Tapada, these last three in Mação. Some findings of cerauniae at protohistoric sites may indicate that this belief
goes back to Iron Age.
Keywords: Polished axes; Ceraunia; Thunderstone.
1. Investigador do Instituto Terra e Memória / Centro de Geociências da Universidade de Coimbra / Professor Adjunto Convidado /
Instituto Politécnico de Tomar / [email protected]
600
2. INTERPRETAÇÕES DOS MACHADOS gens daqueles países servem-se de pedras do mes-
POLIDOS NA IDADE MODERNA mo tipo que as denominadas ceraunias, que talham
através de bater com elas em outras pedras (Cartai-
Verifica-se que na Idade Moderna, ou mesmo antes, lhac, 1889, p. 10).
as capacidades de proteção dos machados polidos Antoine de Jussieu possuía também alguns conheci-
contra as trovoadas são alargadas a outro tipo de mentos de geologia, o que lhe permitiu reconhecer
utensílio pré-histórico – as pontas de seta em sílex que a rocha a partir da qual alguns machados eram
– que a mentalidade popular considerava também elaborados não era original na região onde eles fo-
como pedras de raio. Todavia, o italiano Michele ram encontrados, significando que populações anti-
Mercati (1541-1593), médico do papa Clemente VIII gas os deveriam ter comercializado onde a matéria-
e diretor do jardim botânico do Vaticano, na sua obra -prima de que eram constituídos não se encontrava
Metallotheca vaticana, publicada postumamente ape- disponível (Goodrum, 2002, p. 262).
nas em 1717 (Saintyves, 1936, p. 45) faz a distinção Em 1734, Nicolas Mahudel (1673-1747), médico,
entre cerauniae em cunha (os machados polidos) e ce- antiquário e numismata, apresenta um trabalho se-
rauniae siliciosas, que interpreta corretamente como melhante na Academia das Inscrições e Belas Artes
pontas de flechas (Gaudant, 2007, p. 107-108) (Fig. de Paris, seguindo os argumentos apresentados an-
2), demonstrando um verdadeiro espírito científico. teriormente por Jussieu. Esta memória de Mahudel
Mais tarde, o prussiano Georg Andreas Helwing foi reformulada em 1737 e publicada apenas em 1740
(1666-1748), botânico e pastor luterano, publica a (Baudouin e Bonnemère, 1904, p. 546), sendo repro-
obra Lithographia Angerburgica, curiosamente no duzida integralmente por Ernest Théodore Hamy no
mesmo ano em que foi dada à estampa o trabalho princípio do século XX (Hamy, 1906, p. 251-259).
de Mercati. Desconhecemos se Helwing foi influen- Poucos anos mais tarde, o naturalista francês An-
ciado, ou não, pelas ideias deste autor, mas ao con- toine-Joseph Dezallier d’Argenville (1680-1765), na
trário de outros intelectuais da sua época, diz-se sua obra Histoire naturelle eclaircie (1742), argumenta
convencido que as pedras de raio são utensílios fa- que as cerauniae são pedras elaboradas pelo homem,
bricados pelo ser humano com pedras importadas constituindo armas e utensílios anteriores ao conhe-
de Angerburg,3 na Prússia Oriental (Gaudant, 2007, cimento do ferro (Goodrum, 2002, p. 263).
p. 110). Entretanto, como não tivemos acesso direto Todavia, ao longo do século XVIII existiam ainda
à obra de Helwing, não se torna claro se ele se refere algumas interpretações pouco claras no que se refe-
ao que Mercati designou por cerauniae siliciosas ou re à tipologia das denominadas pedras de raio, cujo
se às cerauniae em cunha. conceito era por vezes alargado às pontas de seta e
Considera-se que o médico e botânico francês An- a outro tipo de utensílios líticos. Esta situação levou
toine de Jussieu (1686-1758) foi o primeiro a inter- o antiquário britânico Samuel Pegge (1704-1796) a
pretar sem ambiguidade os machados polidos pré- lamentar-se perante a Society of Antiquaries do facto
-históricos como utensílios fabricados pelo homem de os seus colegas não terem cautela na distinção dos
em épocas remotas, tendo chegado a essa conclusão diversos tipos de artefactos levando a interpretações
através do exame de artefactos semelhantes trazidos erróneas dos mesmos (Pegge, 1773, p. 127-128).
das Antilhas e do Canadá por viajantes e explorado- Durante a Idade Moderna vários outros autores se
res. Numa pequena memória intitulada De l’origine pronunciaram sobre a interpretação das pedras de
et des usages de la pierre de foudre,4 apresentada em raio, com conclusões mais ou menos semelhantes,
1723 à Academia de Ciências de Paris (Simões, 1875, cuja listagem tornaria este texto demasiado longo.
p. 31; Hamy, 1906, p. 246-247), refere que os selva- Deste modo, indicamos apenas aqueles que contri-
buíram com conclusões de carácter mais rigoroso.
Entretanto, é importante ter em conta que na época
3. Esta cidade, cujo nome atual é Wegorzevo, está assim na
origem do nome da obra de Helwing.
em que estes naturalistas e antiquários escreveram
as suas obras ainda não existia a noção de um vas-
4. Por vezes, na bibliografia, esta obra é erradamente atri-
to período pré-histórico na vida humana. De facto,
buída a Bernard de Jussieu (1699-1777), irmão de Antoine e
também ele botânico, tal como o irmão mais novo, Joseph de
a linha cronológica da Bíblia, que não chegava aos
Jussieu (1704-1779). Cf. www.britannica.com/biography/ 6000 anos, ainda era a geralmente aceite. No que
Antoine-de-Jussieu diz respeito às cerauniae elas foram colecionadas
602
informando J. Leite de Vasconcelos (1919/1920, p. Carnac (Morbihan), duas na villa de Bapteste (Lot-
89-90) que dos encontrados na Mina dos Monges -et-Garonne), uma na villa de Touratte (Cher) e ou-
dois se perderam e que dos provenientes da Mina da tra num sítio romano próximo de Essertines (Vaud)
Carrasca quatro ficaram na posse de um tal António (Cartailhac, 1877, p. 73), entre outros exemplos.
Geraldes Vilas-Boas. Restam os desenhos que aque- Na obra de Maria Amélia Horta Pereira - Monumentos
le autor apresenta de alguns desses machados. Históricos do Concelho de Mação – há uma referência
Relativamente às cerauniae existentes em Conimbri- a dois machados polidos encontrados no espólio do
ga apenas duas se encontram expostas no Museu, na Dr. João Calado Rodrigues, etiquetados com a data
sala dedicada às religiões e crendices, sendo a me- de Outubro de 1950 (Pereira, 1970, p. 97-100), sen-
nor proveniente das escavações antigas e a maior do provenientes do Castelo Velho de Vale do Grou
das escavações Luso-Francesas (Fig. 3). (Envendos, Mação). Trata-se de um sítio de prová-
No que diz respeito às restantes “pedras de raio”, vel datação proto-histórica, de acesso difícil e ainda
encontram-se todas na reserva do Museu (Fig. 4). pouco estudado. O achado daqueles artefactos, cujo
Segundo informação pessoal do Doutor Virgílio Cor- paradeiro desconhecemos, não significa que o sítio
reia, nenhuma destas peças está publicada. A maté- tenha uma cronologia da Pré-história Recente, pois
ria-prima para a sua elaboração varia entre o anfibo- pode tratar-se de cerauniae, tendo eventualmente
lito, o grauvaque e o xisto anfibólico, tendo sido as existido uma ocupação do local no Período Romano.
peças recolhidas em diferentes áreas de Conimbriga: Interessantemente, há pouco mais de dez anos, foi
Forum, insulae, Casa dos Repuxos e Criptopórtico. identificada uma “pedra de raio” durante a escava-
Este facto vem na sequência da crença, por parte dos ção de uma cabana datada da II Idade do Ferro no
romanos, em como as cerauniae protegiam não só oppidum de Monte Bernorio (Palencia, Espanha)
pessoas mas também edifícios (Ofrim, 2019, p. 99). (Torres Martínez, Martínez Velasco e Luis Mariño,
O machado polido encontrado em Vale do Junco 2011-2012, p. 233-234). Como parece existir uma au-
(Fig. 5) foi recolhido pelo Sr. José Heitor Parente nos sência generalizada da utilização de machados poli-
anos 90 e oferecido por sua filha Ana Parente ao Nú- dos após a Idade do Bronze no registo arqueológico
cleo Museológico de Ortiga (Mação). Aquele sítio ar- da Península Ibérica (Idem, ibidem), o achado de
queológico dista apenas cerca de 2400 m da Anta da Monte Bernorio, juntamente com os exemplares do
Foz do Rio Frio, local onde possivelmente no Perío- Castelo Velho de Vale do Grou, pode significar que a
do Romano alguém o encontrou e conservou, dado crença nas cerauniae remonta à Idade do Ferro. Para
o apreço que naquela época era dado a estes objetos, além disso, anteriormente tinha sido descoberto um
conforme referido anteriormente. O artefacto en- machado polido em pedra verde na casa 47 do op-
contra-se fraturado na extremidade oposta ao gume, pidum de Bibracte (Borgonha, França), juntamente
tendo na atualidade 21 cm de comprimento e 6 cm com duas medalhas gaulesas e um dente de cavalo
de largura. (Bulliot, 1876, p. 215; Cartailhac, 1877, p. 73).
No território de Mação ocorreu um achado seme- A hipótese da crença nas pedras de raio remontar
lhante no sítio romano de A Tapada 2 (Batata, 2006, à Idade do Ferro tem ainda fundamentos de carác-
p.192), situado na Freguesia de Envendos, cujo para- ter linguístico, dado que, no dialeto bretão, o termo
deiro é atualmente desconhecido. francês “pierre de foudre” (pedra de raio) é tradu-
Ainda no concelho de Mação foram recolhidos dois zido por men-juru, palavra proveniente do céltico
machados polidos em S. Miguel de Amêndoa, um men-gurun (men, pedra; gurun, trovoada) (Baudouin
sítio com ocupação romana e Alto medieval. Um de- e Bonnemère, 1904, p. 497). Podemos acrescentar
les é de anfibolito, tendo 10,5cm de comprimento e que, na mitologia céltica, o deus supremo Taranis é
4,5cm de largura máxima (Fig. 6). O outro é de tipo aquele que atira os raios (Torres Martínez, Martínez
anfibólico, com 12cm de altura e 5,5cm de largura Velasco e Luis Mariño, 2011-2012, p. 238), tal como
máxima (Fig. 7). Encontram-se depositados na re- Zeus Keraunios na Grécia, Júpiter Tonans no mundo
serva do Museu de Arte Pré-histórica de Mação ten- romano e os seus equivalentes nórdicos Perkunas
do estado inéditos até à data. (Lituânia) e Ukko (Finlândia), também estes dois úl-
Em França, também têm surgido diversos macha- timos associados ao raio (Salo, 1990, p. 152).
dos polidos em sítios de cronologia romana, tendo Mas, acima de tudo, estas divindades são deuses do
sido identificada uma ceraunia na villa romana de céu, cuja influência na mentalidade das populações
604
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torio Veneto. 8, pp. 41-62. nia, vol. II. Lisboa: Imprensa Nacional.
606
Figura 2 – Pontas de seta reconhecidas como
tal por Mercati, mas consideradas como pedras
de raio pela cultura popular na Idade Moderna.
Autor: Gaudant, 2007.
608
Figura 6 – Outro machado polido descoberto em S. Miguel. Autor: Fernando Coimbra.
610
UNIDADES ORGANIZATIVAS E
POVOAMENTO NO EXTREMO OCIDENTAL
DA CIVITAS NORTE-LUSITANA DOS
INTERANNIENSES: UM ENSAIO
Armando Redentor1, Alexandre Canha2
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo geral a realização de uma análise de natureza ensaística sobre povoamento
e unidades organizativas antigas no setor ocidental da civitas que na Antiguidade teve capital na atual cidade de
Viseu, plausivelmente a dos Interannienses.
Palavras-chave: Povoamento; Unidades organizativas; Épocas pré-romana e romana; Norte da Lusitânia; Aná-
lise territorial SIG.
ABSTRACT
The general objective of this paper is to carry out an analysis of an essayistic type on the settlement and autoch-
thonous social units in the western sector of the civitas which in antiquity had its capital in the current city of
Viseu, plausibly that of the Interannienses.
Keywords: Settlement; Autochthonous social units; Pre-roman and roman periods; North of Lusitania; GIS
territorial analysis.
2. CEAACP / [email protected]
612
O referido terminus Augustalis, de época augustana, na, estando, assim, hoje deslocado na capela de São
e integrante de uma série que se reconhece no centro Bartolomeu de Guardão. É, deste modo, admissível
de Portugal e nas províncias de Salamanca e Ávila, que o território da ciuitas litoral pudesse adentrar-se
terá coincidido com linha de fronteira entre ciuitates mais para o interior, pelos relevos meridionais do
(Redentor e Carvalho, 2017, pp. 420-424). Não obs- Caramulo a sul da implantação do terminus. É um
tante, este terminus, tal como outro mais ocidental, território que, por exemplo, se encontrará integrado
localizado em Ul (Oliveira de Azeméis), encontra-se na diocese de Coimbra nos inícios da nacionalidade,
incompleto na sua parte final, onde figuraria a refe- estendida até às alturas ocidentais da serra da Frei-
rência às comunidades que o mesmo separaria. Re- ta, denotando, neste contexto, conexão com o litoral
lativamente ao de Ul (AE 1958 10; Cortés Bárcena, (cf. Morujão, 2010). Nesta perspetiva, o texto do ter-
2013, pp. 60-62, nº 10), o posicionamento geográfico minus poderá ter correspondido ao seguinte:
permite supor que estabeleceria a divisão entre os
Turduli Veteres e os Talabrigenses, isto é, entre as duas IMP(erator) CAESAR DIV[I F(ilius) AVGVSTVS
ciuitates litorais mais setentrionais, considerando o CO(n)S(ul)] / XIII TRIB(unicia) POTEST(ate)
posicionamento dos Paesures mais interior e imedia- [--- P(ater) P(atriae) TERMINVS] / AVGVST(alis)
to ao Douro (Redentor e Carvalho, 2017). INTER [TALABRIG(enses) ET INTERANN]/
Com este pressuposto, torna-se plausível que o ter- IE(n)SES Q(uintus) ARTIC(u)LEI[VS REGVLVS
minus de Guardão estabelecesse a divisão entre a LEG(atus) AVG(usti)] / CAVSA COGNIT[A ---]
ciuitas dos Interannienses e o espaço territorial atlân-
tico meridional aos Turduli Veteri, plausivelmente O Imperador César Augusto, filho do Divino, côn-
dos Talabrigenses, designação coletiva que é decal- sul pela décima terceira vez, no seu [---] poder
cada do topónimo Talabriga, mansio da via Olisipo- tribunício, pai da pátria. Término Augustal entre
-Bracara Augusta que antecede Lancobriga e cujo as- Talabrigenses e Interanienses. O legado Quinto Ar-
sentamento, possivelmente o Cabeço do Vouga, se ticuleio Régulo, conhecida a causa...
tem proposto como capital da ciuitas (Alarcão, 2004,
pp. 325-327) confinante, a sul, com a de Aeminium, A abreviatura do primeiro étnico tem paralelo nou-
cuja capital corresponde à atual Coimbra (Redentor tros termini augustanos, como no recentemente en-
e Carvalho, 2017, p. 419). contrado em Jarandilla de Vera entre [---]obri(genses)
A plausibilidade de o rio Mondego ter marcado a se- et Auile(n)s(es) (HEp 13, 242).
paração entre a ciuitas com sede em Viseu e a que
teve capital em Bobadela, Oliveira do Hospital, even- 3. UNIDADES ORGANIZATIVAS E O
tualmente associada aos Tapori (Redentor e Carva- TRIFINIVM DA SERRA DO CARAMULO
lho, 2017, p. 422), torna pouco plausível que estivesse
em causa na demarcação esta circunscrição. A data- O posicionamento de Vaz (1997, p. 334) relativamen-
ção do terminus é augustana, posterior a 2 a. C., mas te à justificação de um suposto nome latino para a
não é possível precisá-la, ainda que possivelmente circunscrição administrativa sediada em Viseu, com
se possa pensar numa aproximação aos meados da base na existência de uma série de etnias no territó-
primeira década d. C., considerando a cronologia rio que abrange, não se afigura robusto, desde logo
dos restantes conhecidos no Norte lusitano. Com- porque a forma étnica, Interannienses, terá origem
parativamente a estes outros, o texto documenta a autóctone (Guerra, 1998, pp. 459-460 e 463). Toda-
intervenção do legatus Augusti pro praetore Q. Articu- via, a epigrafia regional regista a presença de estru-
leius Regulus, o qual terá tido intervenção direta na turas sociais de nível suprafamiliar que decerto terão
solução de qualquer contenda que teve como objeto origem pré-romana e que poderemos designar de
limites territoriais a envolverem os Interannienses e unidades organizativas (González Rodríguez, 1986),
plausivelmente os Talabrigenses. A ocidente, a fron- as quais se afiguram ativas no quadro político-admi-
teira da ciuitas terá passado neste ponto da serrania nistrativo imposto por Roma. A inscrição de Lamas
do Caramulo e o terminus Augustalis figuraria junto de Moledo (Castro Daire), uma das poucas inscri-
a uma via secundária procedente de Viseu (Alarcão, ções extensas que são repositórios da língua lusitana
2006, p. 133) ou no limite confinal, que eventual- (MLH IV, L.2.1), apresenta, em contexto claramente
mente poderia associar-se à linha de festo caramula- votivo, precisamente uma dessas unidades organi-
614
não faz referência expressa a unidades organizativas 2022, II, p. 28) e 40. Cabeço do Aro (Silva, 2007: 161;
de nível superior como se verifica mais para o inte- Carvalho, 2013, p. 72), este já localizado na área do
rior lusitano: Gapeticorum gentilitatis, Oliva de Pla- maciço da Gralheira. Está-se perante arqueossítios
sencia, Cáceres / Capera (CIL II 804); gent(ilitate) que apresentam uma cultura material bastante po-
[---]ntobi(orum?), El Cerezo, Cáceres (HEp 2009, bre, caracterizada por cerâmicas de fabrico grossei-
77 = AE 2009, 540); gentilitas Polturiciorum, Alcains ro, sem decoração ou com motivos muito simples,
(HEp 2009, 559 = AE 2009, 512); gentil(itas) Aesurio- como entalhaduras nos bordos. Perante a ausência
rum, Monte de São Martinho, Castelo Branco (AE quase sistemática de escavações arqueológicas,
2003, 862 = AE 2004, 718, sendo preferível gentil. a desconhece-se como se articulavam e estruturavam
genti[s]); Talusicoru(m) gentilitatem et Gadarensium, os espaços habitacionais. Contudo, estes sítios cara-
lugar indeterminado da Lusitânia (AE 2017, 672). Os mulanos apresentam um traço morfológico comum,
dois registos mais ocidentais são os da Beira Interior materializado na existência de estruturas pétreas
e também neste contexto se encontra documenta- que delimitam perifericamente a área possivelmen-
da a organização em cognationes, bem expressa um te habitacional, caraterizadas por conformações
gentilício de plural associada a uma denominação frustes e irregulares, muitas vezes, talvez não mais
peregrina: Silo Angeiti f. Maguacu(m) (AE 2019, 664). que simples enrocamentos de pedras. Essas estru-
turas não surgem isoladas, mas em alinhamentos
4. O(S) POVOAMENTO(S) PRÉ-ROMANO duplos ou triplos, em que apenas a interior, por ve-
E ROMANO NO CONTEXTO CARAMULANO zes, encerra a perimetralidade, enquanto as outras
DO EXTREMO OCIDENTAL DA CIVITAS se dispõem nos arcos cardeais orientados para uma
COM CAPITALIDADE EM VISEU paisagem de proximidade.
Outro grupo de sítios implanta-se a altitudes mais
O setor caramulano revela duas grandes dimensões baixas, em zonas de vale ou de encosta, mas ocu-
fisiográficas, por um lado o relevo imponente da pró- pando geralmente pontos destacados na paisagem
pria serra do Caramulo, com orientação NE-SW, e e/ou dominando importantes cursos hídricos. Com
por outro um conjunto de vales correspondentes a base nas observações realizadas para a zona oriental
importantes linhas de água que genericamente se de Lafões, está-se perante sítios que revelam uma
dividem entre bacia do rio Vouga, a norte, e a bacia cultura material bastante mais diversificada, com
do Mondego, a sul, nas quais se incluem, os afluentes cerâmicas com melhores acabamentos e ricamente
Alfusqueiro, Águeda e Alcofra, da primeira, e Dão e ornamentadas, inseríveis no tipo Baiões/Santa Lu-
Cris, da segunda. Tanto as caraterísticas orográficas zia, a que se podem juntar outras, como as de sulcos
como hidrográficas condicionam e, de alguma for- brunidos. Do ponto de vista da sua morfologia, es-
ma, conferem distinção ao povoamento regional ao tes sítios parecem não revelar estruturas periféricas
longo do primeiro milénio a. C. como as supracitadas, pelo menos visíveis na atuali-
No que se refere aos primeiros séculos do milénio, dade, ainda que sejam mencionadas e, nalguns ca-
que genericamente podemos adscrever à Idade sos, documentadas, como nos povoados de N. Sra.
do Bronze Final e transição para a Idade do Ferro, da Guia (Silva, 1979; Kalb, 1978; Silva et al., 1984;
observam-se, de acordo com inferências recentes Vilaça, 2020, p. 306) e de Santa Luzia (Vaz, 1983).
(Canha, 2021; 2022), duas formas de ocupação do Para a Idade do Ferro, em concreto nas suas fases
espaço diferenciadas, espelhadas em registos de po- inicial e plena, os dados são muito limitados neste
voamento distintos. contexto da região de Lafões, mas é possível equa-
Uma corresponde a sítios de ambiente serrano ca- cionar um quadro de quase imperturbabilidade, em
ramulano como são os casos de: 1. Zibreiro, 2. Gra- que as transformações sociais praticamente inexis-
lheiro, 3. Outeiro do Castro, 4. Outeiro das Bouças tem e as económicas são muito limitadas. Parece
(Canha, 2021, pp. 105-111), 14. Guardão (Vaz, 1997, manter-se uma propensão para sociedades tenden-
p. 114), 8. Cabeço da Moura (Cardozo, 1976, pp. 207- cialmente horizontais, ainda que o foco económico
210; Mack, 2022, II, p. 32), 20. Chão Carvalho (Silva, passe a ser o controlo dos recursos de um território,
2007, p. 160; Queiroga, 2001, p. 30), 39. Cabeço de S. em detrimento de um controlo das redes de movi-
Domingos (Bento e Miranda, 1990; Carvalho, 2013, mento (Canha, 2022, pp. 291). Este cenário traduz-
p. 70), 42. Cabeço Murado (Leitão et al., 1995); Mack, -se quer na manutenção de ocupação de sítios pre-
616
uma atestação reduzida, mas agora também com xidade e baseia-se no princípio de que determinados
clara presença na Lusitânia, e para este exercício fa- fatores físicos influenciam o movimento humano,
zemos presentes as observações de M. C. González recorrendo-se à utilização de modelos computacio-
Rodríguez (1986 e 1994, p. 159-160) relativamente nais alicerçados no pressuposto de que tanto o decli-
a este tipo de unidades organizativas, ao considerar ve como as linhas de água condicionam a deslocação
o provável desprovimento de natureza política, con- no espaço (atrito/custo), numa relação de distância-
trariamente ao que supõe para as gentes, mas atri- -custo, o que se traduz num resultado de otimização
buindo aos seus membros vínculos de parentesco de caminhos. Para tal, o custo é medido através de
fictício, para além de outros de natureza territorial, uma fórmula de gasto de energia, traduzido em tem-
distanciando-se, assim, dos grupos que se baseiam po de marcha de acordo com as mencionadas duas
em relações de parentesco real, consanguíneo, com variáveis, praticamente imutáveis ao longo do tem-
expressão nos genitivos de plural ou cognationes. po. No respeitante aos mapas de densidade atinen-
Não existe, na realidade, uma métrica que possamos tes ao povoamento, não são mais que o resultado do
utilizar para a definição do território de unidades or- cálculo de zonas com maior concentração de assen-
ganizativas como estas. O caso dos Seareae poderá tamentos através de densidade de Kernel, acentuan-
ser de utilidade neste âmbito, considerando a sua lo- do áreas de maior convergência a partir de raios de
calização entre as encostas do alto em que se posicio- 5 km. Para o efeito, foram realizados três mapas de
na o trifinium do Cabeço Letreiro e o limite ocidental densidade distintos (fig. 2-4): um primeiro referen-
da ciuitas; a nordeste, será talvez de entender que um te ao povoamento da Idade do Bronze Final/Idade
curso hidrográfico como o do Vouga poderá ser sufi- do Ferro, tendo por base o pressuposto que, na re-
cientemente notável para essa função. Não obstante, gião, durante grande parte do I milénio a. C. não se
para a avaliação do território e do povoamento toma- assistiu a transformações sociais, económicas e ar-
ram-se também passos metodológicos baseados em quitetónicas de monta, ao intuir-se existir uma con-
ferramentas de análise SIG, com o fito de auxiliarem tinuidade (Canha, 2022, p. 359); outro concernente
este esforço ensaístico de atribuição de áreas geográ- ao final da Idade do Ferro e às mudanças que apa-
ficas a realidades sociais suprafamiliares. rentam ocorrer por esta altura, em que se incluem
As características naturais do território, à falta de novos amuralhamentos; um terceiro para abarcar
outra informação diferenciadora de carácter socio- todo o povoamento da época romana.
cultural – como a ergologia, por exemplo – perfei- Foi possível identificar vários fluxos de movimento
tamente sistematizada no estado atual do conheci- em direções diversas nesta parte do território, sendo
mento já adquirido, são importantes neste exercício, precisamente um dos mais consistentes o que per-
nomeadamente a orografia e a hidrografia. O relevo, corre a cumeada onde se encontra o Cabeço Letrei-
no caso concreto, foi um marcador claro, associado à ro, reforçando a sua importância como limite territo-
rede hidrográfica. Neste aspeto são de relevância não rial. Um outro que lhe é grosso modo perpendicular,
só as linhas de água per se, mas também as próprias com direção NO-SE, cruza-o precisamente no Cabe-
bacias indissociáveis da morfologia serrana, uma vez ço Letreiro e poderá auxiliar à separação territorial
que existiria na Antiguidade, e decerto nos tempos das outras duas unidades organizativas: os Aruoni
pré-romanos, uma noção profunda dessa realidade, estendidos até ao vale do Vouga e alcançando para o
dado que, como se deduz da inscrição do Cabeço Le- interior o rio Asnes e parte do rio Pavia; os Iacugontii,
treiro, se recorre à divisão de águas, no caso às bacias abaixo da referida linha de fluxo, alcançando possi-
do Mondego e Vouga, como forma de delimitação velmente o curso do Dão a nascente e tendo a poente
territorial. Aliás, toda a epigrafia confinal rupestre já o limite da ciuitas e as cumeadas em que se insere o
referida reforça a importância destes fatores. Cabeço Letreiro na divisão com os Seareae. Reforça-
A utilização de ferramentas básicas de análise SIG -se que esta linha de altura é coincidente com o re-
foi experimentada com vista aos objetivos. Em con- ferido importante fluxo de movimento com direção
creto, recorreu-se à determinação de fluxos de mo- NE-SO que segue as alturas do Caramulo e vai além
vimento potencial e a heatmaps relacionados com do curso do Vouga. Assim esboçados, afiguram-se
o povoamento. No que se refere aos fluxos de mo- territórios com áreas não discrepantes entre si e que
vimento (Fábrega-Álvarez e Parcero-Oubiña, 2007, mostram determinados paralelismos de povoamen-
p. 125), a sua determinação reveste alguma comple- to na fase pré-romana e romana.
618
Em jeito conclusivo será de sublinhar, apesar de CASTELO BRANCO, José B. Canais de Figueiredo (1849) –
tudo, a dificuldade que há em compaginar a infor- Differentes inscripções. In Actas das Sessões da Academia Real
mação epigráfica com a arqueológica em termos de das Sciencias de Lisboa. Lisboa: Academia Real das Sciencias
de Lisboa. vol. 1, pp. 385-395.
incidência territorial. Assim, os resultados esboça-
dos através deste ensaio devem ser olhados como CARDOZO, Mário (1976) – Apontamentos de Etnografia da
tal e não como propostas apodíticas de delimitação, Beira Alta. Revista de Guimarães. Guimarães. 86, pp. 187-226.
pois, desde logo, baseiam-se em pressupostos que CARVALHO, Pedro Cardoso; CARVALHO, Pedro Sobral;
nem sempre correspondem a um conhecimento su- PERPÉTUO, João (2022) – Vissaium, a cidade lusitana redes-
ficiente da realidade arqueológica. coberta. In NOGALES BASARRATE, Trinidad (ed.). Ciu-
dades Romanas de Hispania II / Cities of Roman Hispania II.
Apesar de as áreas territoriais debuxadas se afigu-
Hispania Antigua. Roma; Bristol: Museo Nacional de Arte
rarem potencialmente adaptáveis e compagináveis
Romano; L’erma di Bretschneider, pp. 393-412.
com uma espacialidade associável a unidades or-
ganizativas de natureza suprafamiliar como as que CARVALHO, Pedro Sobral (2013) – Proto-história: controlo,
domínio e poder. In Genius loci: o espírito do lugar. Sever do
afloram regionalmente, importa que haja ainda um
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incremento substancial ao nível dos dados, quer do
lado do registo epigráfico, quer do referente ao co- CORTÉS BÁRCENA, Carolina (2013) – Epigrafía en los confi-
nes de las ciudades romanas: los Termini Publici en Hispania,
nhecimento arqueológico dos povoados e da sua er-
Mauretania y Numidia. Roma: L’Erma di Bretschneider.
gologia, no sentido de potenciar um conhecimento
mais aproximado à realidade intrínseca de cada um, CURCHIN, Leonard (2007) – Toponyms of Lusitania: a Re-
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quer em termos de registo material, quer em termos
129-160.
de diacronia ocupacional.
Assim, sendo a natureza desta abordagem ensaísti- ENCARNAÇÃO, José d’ (2003) – Da ambiguidade e da cer-
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ca, as conclusões sobre um território e realidades so-
ciais ainda pouco conhecidos não podem galgar essa ENCARNAÇÃO, José d’ (2009) – Dos monumentos epigrá-
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620
Figura 1 – Norte da Lusitânia e a ciuitas dos Interannienses.
622
Figura 3 – Mapa de densidade de povoamento na Idade do Ferro/transição para a época romana e fluxos de movimento.
624
AS TERMAS ROMANAS DA QUINTA
DO ERVEDAL (CASTELO NOVO, FUNDÃO)
Joana Bizarro1
RESUMO
Os trabalhos arqueológicos que desde 2007 temos vindo a realizar na Quinta do Ervedal (Castelo Novo, Fun-
dão), na vertente sul da serra da Gardunha, revelaram dois edifícios termais de época romana, um dos quais
poderá ter tido uma utilização pública. A estação arqueológica, cuja totalidade dos vestígios se encontra longe
de ser conhecida, terá tido ocupação logo no início do século I d. C. e o seu abandonado, ainda que não nos seja
claro, nos inícios do século VI. O desenvolvimento dos trabalhos de escavação e as prospeções na envolvente,
levaram-nos a uma interpretação do sítio como eventual vicus, no entanto, subsistem ainda muitas dúvidas.
As Ruínas Romanas do Ervedal constituem um excecional ponto de referência na arqueologia da Beira Interior,
nos campos científico, identitário, didático e potencialmente turístico, que importa continuar a preservar e sal-
vaguardar. O projeto de investigação será retomado em 2024.
Palavras-chave: Termas romanas; Quinta do Ervedal; Vicus; Museu do Fundão.
ABSTRACT
The archaeological work that we have been carrying out since 2007 at Quinta do Ervedal (Castelo Novo, Fun-
dão), on the southern slope of Serra da Gardunha, revealed two thermal buildings from Roman times, one of
which may have been used by the public. The archaeological site, whose remains are far from being known,
would have been occupied right at the beginning of the 1st century AD. and its abandoned, although it is not
clear to us, at the beginning of the 6th century. The development of digs and the prospections in the surround-
ings led us to an interpretation of the site as a possible vicus, however, there are still many doubts. The Roman
Ruins of Ervedal constitute an exceptional point of reference in the archeology of Beira Interior, in the scientific,
identity, didactic and potentially touristic fields, which it is important to continue to preserve and safeguard.
The research project will restart in 2024.
Keywords: Roman baths; Quinta do Ervedal; Vicus; Museum.
23
O sítio romano da Quinta do Ervedal, que se encon- época romana, encontrados à superfície numa ex-
tra no sopé da vertente sul da Serra da Gardunha, tensão de cerca de 10 hectares, que motivaram o iní-
próximo da ribeira de Alpreade, foi referenciado cio das escavações arqueológicas3.
pela primeira vez por Francisco Tavares Proença Jú- Na perspetiva de estudarmos aprofundadamente e
nior, a propósito uma inscrição funerária romana aí de forma continuada um sítio, de significativas di-
identificada em 1892 (Proença, 1907: 178). Nos anos mensões, passível de ser valorizado, e que ao mesmo
30 do século passado é noticiada a descoberta de um tempo constituísse um campo de experiências didá-
depósito da idade do bronze final (Coffin, 1976)2. ticas do Museu Arqueológico Municipal do Fundão,
Nos anos 80, destaca-se a importância da Quinta do iniciamos o programa de escavações.
Ervedal com estação romana (Silva, 1986: 84). Na fase inicial dos trabalhos, foram realizadas son-
Seriam os abundantes vestígios arqueológicos de dagens de diagnóstico em diferenciados sectores.
2. Embora a localização do depósito de fundidor seja genericamente atribuído à Quinta do Ervedal, não terá ocorrido no mesmo local
dos vestígios romanos, mas numa área que lhe fica sobranceira, designada de Souto Escuro (Monteiro, 1978).
626
curativas, que justifiquem a sua existência (Pérez ficação, constituem-se como um excecional ponto
Losada, 2002: 50). Para já não excluímos nenhuma de referência na arqueologia da Beira Interior, nos
dessas possibilidades. campos científico, identitário, didático e potencial-
É também relevante o seu posicionamento geográ- mente turístico, que importa continuar a preservar
fico, no sopé da vertente sul da Gardunha5, numa e salvaguardar.
zona limítrofe do território da Civitas Igaeditanorum Relembramos a proximidade da Quinta do Ervedal
(Carvalho, 2007: 118) contribuindo, eventualmente, com Castelo Novo. No nosso entender, o arqueos-
para o controlo administrativo da região. sítio deverá integrar e acompanhar os processos de
Encontra-se numa área de cruzamento de vias anti- patrimonialização e turistificação da Aldeia Histó-
gas, certamente de origens romanas, que ligariam, rica que, de resto, constitui um dos pólos culturais
por um lado, as duas encostas da serra6, por outro, mais visitados do concelho. Este conjunto histórico
estabeleceriam uma ligação à Torre dos Namorados encontra-se classificado (CIP), abrangendo, sobre-
e daí para Idanha-a-Velha ou para norte. Uma estra- tudo, a malha urbana, para a qual foram estabeleci-
da, descendo da área do Ervedal poderia ligar-se à dos critérios de zonamento com diferentes graus de
grande via entre Idanha-a-Velha e Tomar, e daqui sensibilidade arqueológica. Outra das ferramentas
para Lisboa (Alarcão, 2013: 22). preventiva e que promove as boas práticas no âmbi-
Por sua vez, os trabalhos de prospeção comprovaram to da proteção, planeamento e gestão do território,
a densidade ocupacional da área envolvente, com a são as Cartas de Risco Arqueológico, projeto que
deteção de um conjunto considerável de estações ro- iniciámos em 2022, em parceria com a rede das Al-
manas, sobretudo casais e quintas7. deias Históricas de Portugal e que pretendemos que
Face às evidências arqueológicas escavadas e de- agregue a área do Ervedal. Por sua vez, a reativação
tetadas pela prospeção, associadas à implantação do núcleo museológico de Castelo Novo também
geográfica, é inegável a preponderância do Ervedal poderá constituir o ponto de partida para a vista às
sobre os demais núcleos rurais romanos dispersos, ruínas romanas.
identificados na vertente meridional da Gardunha. Os processos de investigação e escavação do ar-
No entanto, não podemos afirmar sem qualquer dú- queossítio ainda não estão esgotados, sendo um pro-
vida que corresponde a um vicus. Para isso, a epigra- jeto ao qual pretendemos dar continuidade.
fia8 seria essencial, como o é a continuidade dos tra- Nessa perspetiva, iremos iniciar em 2024 o novo pro-
balhos de escavação que nos poderão solucionarmos jeto de investigação: Estudo e Valorização das Ter-
estas e outras questões. mas Romanas da Quinta do Ervedal. Tendo em con-
As Ruínas Romanas do Ervedal, classificadas como ta a área já escavada e o conhecimento produzido,
Sítio de Interesse Público, depois de a Câmara Mu- estão reunidas condições para a melhor divulgação
nicipal ter desencadeado o procedimento de classi- deste património junto da comunidade. A continui-
dade dos trabalhos de conservação das estruturas,
5. Num dos seus pontos mais elevados encontra-se o povoa- bem como a elaboração de um programa museográ-
do proto-histórico da Senhora da Penha (Sarmento, 1883). fico, ainda que aberto ao desenvolvimento de futuras
6. Via que integra um conjunto de troços em vias de classifi- escavações, será fundamental para o efeito, refor-
cação como IIP. Nessa via foi identificada uma árula (Bizar- çando ao mesmo tempo a necessidade de prossecu-
ro et al, 2019, n.º701). ção das escavações. Incrementar diferentes linhas
7. Trabalhos realizados no âmbito dos PNTA: Arqueologia de investigação, como a geofísica, a hidrogeologia
do Concelho do Fundão (2006-2014), da responsabilidade da ou a arqueometria, também são um dos objetivos
signatária e de João Mendes Rosa. desse novo projeto.
8. A presença de elementos epigráficos diretamente associa-
dos ao arqueossítio não é significativa, registando-se apenas BIBLIOGRAFIA
uma inscrição funerária (Proença,1907: 178; Garcia, 1984:
ALARCÃO, Jorge de (2013) – A Beira Baixa: Terra tomada sem
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628
Figura 1 – Localização da Quinta do Ervedal.
630
Figura 3B – Material arqueológico recolhido durante escavação.
RESUMO
Em torno da ciuitas Igaeditanorum e enquadrado no projeto de investigação FCT IGAEDIS, iniciou-se em 2022 a
escavação arqueológica do sítio da Terra Grande (Idanha-a-Velha, Castelo Branco). Esta revelou a presença de
uma extensa área edificada em ambiente rural, apontando para uma cronologia entre os séc. I e II d.C. A cam-
panha incluiu a recolha de amostras sedimentares para estudo arqueobotânico também no âmbito do projeto
FCT B-ROMAN.
Este artigo foca-se na apresentação dos resultados arqueológicos preliminares e do estudo arqueobotânico des-
te sítio, enquadrando-os nas dinâmicas da paisagem rural do interior norte da Lusitânia, em especial ao nível
da vegetação, assinalando-se as permanências e as mudanças observadas nos primeiros tempos do Império.
Palavras-chave: Terra Grande; Civitas Igaeditanorum; Paisagem Agrária; Arqueobotânica.
ABSTRACT
In the scope of FCT project IGAEDIS, focussing on the agrarian landscapes around ciuitas Igaeditanorum, ar-
chaeological excavations were made in the rural settlement of Terra Grande (Idanha-a-Velha, Castelo Branco).
These revealed a building of substantial size whose material culture points to a chronology between the 1st and
2nd centuries AD. Several sediment samples were recovered to undergo archaeobotanical analysis in the scope
of the FCT project B-ROMAN.
This paper will present the first archaeological and archaeobotanical results from this rural settlement in the
framework of the dynamics that shaped the rural landscape and vegetation in the northern hinterland of Lusita-
nia among the changes observed in first centuries of the Empire.
Keywords: Terra Grande; Civitas Igaeditanorum; Agrarian Landscape; Archaeobotany.
1. CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares; FLUC – Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra / [email protected]
3. CIBIO-BIOPOLIS: Centro de Investigação em Recursos Genéticos e Biodiversidade, Laboratório Associado, Universidade do Por-
to Associado, Universidade do Porto; FCUP – Faculdade de Ciências da Universidade do Porto / [email protected]
5. CIBIO-BIOPOLIS – Centro de Investigação em Recursos Genéticos e Biodiversidade Laboratório Associado, Universidade do Por-
to; UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa; CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares; MHNUP – Museu
de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto / [email protected]
6. CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares; FLUC – Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra / [email protected]
7. CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares; FLUC – Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra / [email protected]
634
tiga: em 1996, no âmbito de um trabalho de seminá- terreno quando a irregularidade do mesmo assim o
rio de licenciatura em História variante Arqueolo- exigia. Em algumas sondagens registam-se indícios
gia (UC), realizado por Vítor Pedrosa; em 1998, no pontuais de remodelações ou reutilizações, concre-
âmbito da Carta Arqueológica de Idanha-a-Velha, tizadas por ações bem menos cuidadas, sendo estes
realizada por Joaquim Baptista; e em 2013, no âm- reveladores de outra(s) fase(s) de uso dos espaços.
bito de um estudo de Impacto Ambiental, realizado A estratigrafia é, na maior parte dos casos, simples,
por Pilar Reis. Alguma imprecisão na localização resultante, como veremos, de um tempo de ocupa-
destas concentrações e a diversidade de terminolo- ção relativamente curto deste espaço. O abandono
gias adotadas para classificá-las tipologicamente, do edifício está atestado por derrubes de parede e,
torna difícil distinguir nestes trabalhos as reloca- em alguns casos, abatimentos de telhados. Os ní-
lizações e os novos achados. Porém, em fevereiro e veis de circulação correspondem sempre, até agora,
março de 2022, a equipa do projeto IGAEDIS reali- a pavimentos de terra batida, com soleiras associa-
zou prospeções sistemáticas no local, relocalizando das, algumas ainda conservando restos do negati-
alguns dos sítios documentados e registando outros vo do ferro das trancas. Para além de uma lareira,
inéditos, procurando ainda uniformizar os critérios destaca-se num outro compartimento a presença de
de classificação tipológica dos sítios. Quanto ao sítio um possível forno cuja boca é composta por blocos
da Terra Grande, corresponde a uma relocalização – de granito paralelos e articulados com lateres. Deste
aparece referido na carta arqueológica de Idanha de forno, de funcionalidade específica ainda não deter-
1998 e entre os sítios relocalizados por Pilar Reis em minada, foi possível somente individualizar a referi-
2013, ainda que com outra designação, como Terra da boca da câmara de combustão, assim como a pró-
da Maria de Campos ou simplesmente Maria de pria área de combustão, revelada por uma grande
Campos; na Carta Militar de Portugal n.º 270 o local quantidade de carvões e cinzas depositados in situ
encontra-se entre os topónimos Serrinha e Queijeira sobre o seu lastro térreo (Fig. 3).
da Terra Grande; a parcela é ainda conhecida como Os materiais datáveis documentados não são abun-
Olival da Queijeira do Val. dantes, mas são suficientes para situar por agora
Entre junho e agosto de 2022 investigadores dos este núcleo rural no Alto Império. Todas as cerâ-
projetos IGAEDIS e B-Roman e estudantes da Uni- micas apontam nesse sentido, sendo de destacar a
versidade de Coimbra, efetuaram onze sondagens presença de TSI, TSSG e TSH, fabricos que nos dão
arqueológicas no sítio da Terra Grande (Fig. 2). Os uma baliza cronológica situada entre os inícios do
resultados individuais destas sondagens foram de- séc. I d.C. e, possivelmente, inícios do séc. II d.C.
siguais, mas podem globalmente ser considerados A ausência de TSH intermédia e TSHT ou mesmo de
muito promissores. Desta primeira campanha, foi TS Africana é reveladora de um abandono precoce
possível obter tanto uma primeira balizagem crono- do sítio ainda no séc. II d.C., e até numa fase inicial
lógica para a ocupação do sítio, como uma ideia ini- desta centúria, o que é historicamente relevante
cial sobre a extensão da área construída e a possível nestes contextos geográficos da Lusitânia. Todavia,
funcionalidade das partes que a constituem. como referimos, o registo estratigráfico observado
O edifício detetado revela uma extensão conside- em certos pontos parece indicar que este lugar terá
rável tendo sido registados vários compartimentos. sido reocupado, em parte, num período muito tar-
O tipo de construção documentado é simples, mas dio, provavelmente pós-romano, mas de cronologia
sólido, obedecendo aparentemente a princípios me- ainda indecifrada.
ramente funcionais sem particular sentido estético/ Um outro lugar, localizado a algumas centenas de
decorativo. As bases de parede identificadas mistu- metros, onde terá funcionado uma forja, escavado
ram o xisto e o granito (o encontro de ambas as ro- simultaneamente e também no âmbito do projeto
chas regista-se a uma centena de metros deste local) IGAEDIS, mas desta feita por uma equipa da Uni-
numa construção cuidada, desenhando-se em plano versidade Nova de Lisboa (liderada no terreno por
com a habitual regularidade e geometria romana. Tomás Cordero e Gabriel Souza), revelou uma ocu-
Os pisos são em terra batida e foram identificados pação centrada nos séc. VI/VII d.C.
em mau estado de conservação, verificando-se, em As características do edifício identificado na Terra
alguns casos, um nível de preparação que consis- Grande, aliadas às estruturas documentadas no in-
tia na deposição de terra com o intuito de nivelar o terior de alguns compartimentos, nomeadamente o
636
vação de cada um destes foi realizada com recurso a amostras recolhidas em contextos primários e se-
uma lupa binocular e microscópio ótico de luz refleti- cundários associados ao forno na sondagem 6 (vide
da com o objetivo de registar elementos anatómicos infra), as amostras das restantes sondagens refe-
característicos de cada espécie. Estas características rem-se a níveis de ocupação e abandono daqueles
foram comparadas às referenciadas em atlas anató- espaços. Não se tendo identificado evidências estra-
micos (e.g. Schweingruber, 1990) e à coleção de re- tigráficas de episódios de incêndios em larga escala,
ferência do CIBIO, de forma a conseguir a identifi- estes vestígios botânicos carbonizados serão prova-
cação de cada fragmento. Para além da identificação velmente resultado de limpezas de um número inde-
da espécie, foram também registadas características terminado de combustões realizados em estruturas
anatómicas ou alterações relacionadas com proces- de combustão ainda por identificar. Convém termos
sos tafonómicos, condições ambientais e a história em conta que a madeira e o seu uso como combus-
de vida da madeira e do carvão em questão (Margue- tível era um elemento fundamental no quotidiano
rie & Hunot, 2007; McParland et al., 2010; Moskal- de qualquer comunidade e que estas combustões,
-del Hoyo et al., 2010; Thery-Parisot & Henry, 2012). realizadas com uma grande multiplicidade de obje-
tivos, produziriam grandes quantidades de carvões
4. ARQUEOBOTÂNICA: RESULTADOS e cinzas que seriam descartados periodicamente.
E DISCUSSÃO Estes vestígios materiais acabariam por incorporar
os estratos de deposição secundária ou terciária (e.g.
a. Antracologia em lixeiras) ou até, através de processos pós-deposi-
Os resultados antracológicos revelaram um con- cionais, aqueles que colmatam os contextos domés-
junto substancial de material lenhoso carbonizado, ticos depois do seu abandono.
quer no que respeita à sua quantidade (totalizando Por oposição, as evidências antracológicas identifi-
2563 fragmentos analisados) quer quanto à diversi- cadas na sondagem 6 merecem um maior destaque
dade (21 táxones identificados) (Tab. 3). por se tratar de contextos primários, ou seja, estão
A análise geral dos resultados mostra uma grande vinculadas diretamente ao uso desta madeira como
concentração de táxones num conjunto relativa- combustível de um forno cuja função específica ca-
mente limitado. Quercus sp. – perenifólia (sobreiro, rece ainda de esclarecimento definitivo.
azinheira ou carrasco) constituiu, com larga mar- Não obstante apresentar sensivelmente os mesmos
gem, o táxon mais frequente, com 38,7% do total táxones, as amostras recolhidas neste contexto, face
identificado, e surge em todas as amostras recolhi- às identificadas nas restantes sondagens, apresen-
das. Segue-se o somatório dos quatro tipos de legu- tam diferentes proporções e características den-
minosas arbustivas (Fabaceae) identificadas (entre drológicas (Tab. 3, Fig. 4). Neste caso, verificou-se
as quais constam giestas e tojos) com 13,1% e Cistus uma muito maior prevalência do uso de madeira de
sp. (esteva) com 11,4%, também presentes em todos sobreiro/azinheira de grande calibre, demonstrado
os contextos amostrados. Embora com percentagens quer pela elevada percentagem de carvões com cur-
inferiores, destacam-se ainda as Erica australis/ar- vatura débil identificada neste táxon (Tab. 4), quer
borea (urze-vermelha/branca), com pouco mais de pela presença de fragmentos de casca carbonizada
5%, os Quercus sp. – caducifólio (carvalhos de folha (Tab. 3). A frequente presença de madeira de legu-
caduca – vide infra), com 4,6%, Olea europaea (oli- minosas é também evidente, especialmente nas
veira), com 3,4% e Pinus pinaster (pinheiro-bravo), unidades estratigráficas diretamente associadas aos
com 2,1%. Os restantes táxones identificados revela- níveis de utilização desta estrutura de combustão e,
ram percentagens totais significativamente menos contrariamente ao táxon anterior, estas demonstra-
expressivas, não ultrapassando 1%. ram curvaturas anelares fortes, indiciando o uso de
Estes dados gerais, quando cruzados com os contex- madeira de menor calibre (Tab. 4).
tos estratigráficos das amostras, dão-nos algumas Foi também nas unidades da sondagem 6 que se
indicações sobre o uso de madeira como combus- identificaram as principais concentrações de madei-
tível, sobre os processos pós-deposicionais e sobre ra carbonizada de oliveira e pinheiro-bravo, relati-
a paisagem em torno deste sítio arqueológico, não vamente raras nas restantes sondagens. Em sentido
obstante o carácter preliminar destes dados. contrário, os dois fragmentos de videira recolhidos
Como referido anteriormente, e com exceção das na sondagem 3 não se observaram em qualquer ou-
638
O mesmo podemos dizer dos dois fragmentos de Em causa parece estar uma área dedicada à trans-
madeira de videira (Vitis vinifera), assim como das formação e armazenamento de produtos agrícolas
suas sementes e pedicelo (vide infra), uma vez que de uma propriedade que nos parece pertencer a uma
esta espécie autóctone tem uma história semelhante villa. A validação desta interpretação poderá vir de
à da oliveira. novos elementos identificados nos trabalhos de es-
cavação previstos para o presente ano (2023).
b. Carpologia O conjunto de materiais datáveis recolhidos até ago-
Foram escassos os vestígios carpológicos recupera- ra é suficientemente homogéneo para localizar a sua
dos nas sondagens abertas na Terra Grande. Entre ocupação no tempo, circunscrevendo-se ao séc. I
estes contam-se escassos grãos de centeio (Secale ce- d.C., podendo prolongar-se até à Época de Trajano
reale), trigo de grão nu (Triticum aestivum/durum) e (ou primeira metade do séc. II), facto que, a confir-
de cereais indeterminados (Triticeae), a que se junta mar-se, é historicamente relevante. Uma reocupa-
um fragmento de ráquis de trigo (Tab. 6). ção pontual tardia parece também poder deduzir-se
É surpreendente a presença de centeio na sondagem das destruições e reformulações verificadas em es-
3, considerando que, embora introduzido provavel- truturas de certas sondagens assim como a presença
mente como uma infestante durante a Idade do Fer- de centeio.
ro no noroeste da Península Ibérica, não se encontra, No que concerne ao uso de madeira para combus-
de forma segura, em contextos Alto Imperiais, sen- tão, o estudo antracológico realizado nas amostras
do claro o cultivo do centeio apenas a partir do séc. sedimentares da Terra Grande revelou, em particu-
III (Seabra et al., 2023). Não obstante as datações até lar para os contextos associados ao forno (sondagem
à data apontarem exclusivamente para o séc. I e iní- 6), um padrão de utilização de madeira já frequente-
cios do séc. II d.C., é de admitir uma reocupação tar- mente identificado em estruturas de combustão da-
dia no sítio da Terra Grande, o que poderia explicar quele tipo. Teriam sido utilizadas espécies de porte
a situação. Mas outros cenários podem explicar esta arbustivo com alto poder calorífico, mas de rápida
descoberta, como por exemplo um possível uso agrí- ignição para iniciar a combustão (como as estevas,
cola deste espaço numa fase em que o sítio original urzes, tojos e giestas), às quais seriam adicionados
da Terra Grande estivesse já abandonado. troncos de maior calibre provenientes de espécies de
As leguminosas recuperadas pertencem principal- porte arbóreo, como o sobreiro e a azinheira.
mente a plantas silvestres, embora um fragmento A presença de resíduos de processamento de culti-
deverá ser de um cultivo (Vicia/Lathyrus/Pisum), a vos, incluindo palha, infestantes e escassos grãos
que somamos ainda escassas grainhas e pedicelos de cereais, poderá igualmente justificar-se com o
de uvas (Vitis vinifera). Os restantes vestígios cor- seu uso como combustível, embora sejam necessá-
respondem a diásporos de plantas silvestres, prova- rias as devidas reservas na interpretação de alguns
velmente infestantes, como a Sherardia arvensis e a vestígios concretos. A presença de grãos de centeio
Sillene galica, muito comuns na região, com exceção explica-se face ao contexto estratigráfico em que fo-
da cápsula de Cistus sp., que deverá ter sido carbo- ram encontrados, de pós-abandono do edifício Alto
nizada juntamente com a sua madeira, detetada no Imperial, posteriores ao séc. II.
estudo antracológico. No seu todo, os dados arqueobotânicos sugerem a
existência de uma paisagem diversificada, com bos-
5. CONCLUSÕES ques climatófilos e formações subseriais diversas,
assim como, certamente, extensas áreas agrícolas,
As onze sondagens levadas a cabo no sítio da Terra onde se cultivariam cereais, mas também, provavel-
Grande, permitiram detetar um conjunto de com- mente, oliveiras e vinha.
partimentos de um edifício extenso, simples e mar- O significado da presença de madeira de oliveira,
cadamente funcional. Não obstante o estado inicial assim como os 2 fragmentos de madeira, grainhas e
dos trabalhos arqueológicos e as dificuldades inter- pedicelos de videira, é promissor, em especial consi-
pretativas que daí resultam, foi já possível obter um derando a interpretação deste local como um espaço
conjunto de importantes informações sobre este nú- de caráter rural, eventualmente relacionado com a
cleo rural do Alto Império situado a poucos quilóme- transformação e armazenamento da produção agro-
tros da capital da civitas Igaeditanorum. pecuária. O registo de oliveira e de videira em pos-
640
PEDROSA, Vítor (1996) – Territórios teóricos de exploração
e a área de influência na Egitânia. Coimbra: IAFLUC (Semi-
nário de Arqueologia: trabalho académico policopiado).
642
Figura 2 – O núcleo rural da Terra Grande: sondagens arqueológicas.
Figura 3 – Forno identificado na sondagem 6: área de combustão, antes e depois da sua escavação.
Tabela 1 – Inventário das amostras recolhidas e analisadas neste estudo arqueobotânico do sítio da Terra Grande.
644
Malha 2 mm 1 mm 0,5 mm
Amosta Total (g) Triado (g) Total (g) Triado (g) Total (g) Triado (g)
49 6,13 3,13
52 Não aplicável 10,17 2,45
63 5,1 2,52
67 246,98 58,15 76,41 10,17 69,53 4,36
68 21,83 11,42 23,75 2,99
Não aplicável
70 41,3 9,46 43,58 2,88
Sondagem 2 3 4 5 6
Descrição Ab Pós-Ab Abandono Nat Oc Forno
Táxon / U.E. 4 3 4 7 8 3 7 8 11 22 18 23 24 20 25 26 30 Total % total
Alnus sp. 2 2 0,1
Arbutus unedo 3 4 2 2 4 15 0,6
Cistus sp. 3 18 16 18 15 20 5 5 50 68 9 6 10 5 39 10 1 298 11,6
Erica australis/
11 14 21 8 12 18 25 8 7 4 1 1 1 131 5,1
arborea
Erica scoparia/
2 4 1 1 8 0,3
umbellata
Erica sp. 1 1 2 0,1
Fabaceae 1 3 1 1 1 13 1 6 27 1,1
Fabaceae tipo I 1 1 2 0,1
Fabaceae tipo II 5 8 1 6 11 5 2 15 3 3 2 63 3 127 4,9
Fabaceae tipo III 3 5 1 2 2 7 3 3 6 32 1,2
Fabaceae tipo IV 2 1 1 4 4 5 5 117 10 149 5,8
Olea europaea 2 3 4 13 24 19 3 3 7 9 87 3,4
Pinus pinaster 2 1 1 1 28 4 7 5 1 3 53 2,1
Pinus pinea/
2 1 5 7 2 3 20 0,8
pinaster
Prunus sp. 1 1 2 4 0,2
Quercus sp. –
1 10 3 69 10 5 6 8 3 1 1 2 119 4,6
caducifólia
Quercus sp. –
4 51 10 30 4 43 2 23 113 54 34 4 52 112 224 110 121 991 38,6
perenifólia
Quercus sp. 17 1 3 5 16 8 7 12 3 2 10 13 2 19 118 4,6
Rhamnus/
3 2 5 0,2
Phillyrea
Rosaceae
1 1 2 4 0,2
Maloideae
Vitis vinifera 1 1 2 0,1
Dicotiledónea 31 20 17 14 25 46 33 12 60 21 18 13 14 8 22 5 2 361 14,1
Casca –
7 5 12 0,5
Dicotiledónea
Total 53 150 92 150 77 182 81 89 300 200 112 39 94 150 500 150 150 2569 100
Tabela 3 – Resultados antracológicos da primeira campanha de escavação do sítio da Tegra Grande (Idanha-a-Velha). Ab – aban-
dono. Oc – Ocupação.
Tabela 4 – Resultados absolutos da análise da curvatura anelar nos carvões dos táxones identificados mais representativos.
Sondagem 2 3 4 5 6
U.E. 4 3 4 7 8 3 7 8 11 18 22 20 23 24 25 26 30
total de
53 150 92 150 77 182 81 89 300 112 200 150 39 94 500 150 150
carvões / U.E.
Fissuras /
F V F V F V F V F V F V F V F V F V F V F V F V F V F V F V F V F V
Vitrificação
Cistus sp. 2 2 7 1 1 3 1 2 8 2 2 28 9 8 1 28 10 3 1 4 1 22 1 4 2 1
Erica australis/
2 7 4 1 5 5 1 1 4 1 7 3 5 1 6 2 3 2 5 2 1
arborea
Erica scoparia/
1 1 2 1 1
umbellata
Fabaceae 1 4 2 1 3 4 13 3 3 4 1 4 2 78 1 10
Olea europaea 1 1 14 6 1 1 1 1 2
Quercus sp.
2 1 5 2 1 1
– caducifólia
Quercus sp.
7 5 6 1 1 15 5 2 24 9 77 1 31 39
– perenifólia
Quercus sp. 2 3 3 2 3 2 1 1 1 4 1 3
Dicotiledónea 18 23 15 10 6 12 8 5 16 18 34 26 19 4 2 46 39 16 9 16 14 6 3 12 6 8 7 21 19 4 4 2 1
Tabela 5 – Resultados absolutos da presença de fissuras radiais e vitrificação nos carvões dos táxones identificados mais repre-
sentativos. F – Fissuras radiais. V – Vitrificação.
646
Amostra 45 48 51 49 53 52, 61 54 58 56, 57 60 63 59 65 68, 70 64
Sondagem 2 3 4 5 6
Descrição Ab Pós-Ab Abandono Nat Forno Oc Forno
U.E. 4 3 4 7 8 3 7 8 11 18 20 22 24 25 26 Total
Cereais (grãos)
Secale cereale 1 1 2
Secale cereale (frag.) 1 1
Triticum aestivum/
1 1
durum (frag.)
Triticeae 1 1
Triticeae (frag.) 1 1 1 2 1 5
Cereais (inflorescências)
Triticum aestivum/
1 1
durum (nó ráquis)
Leguminosas (sementes)
Vicia/Lathyrus/Pisum
1 1
(frag.)
Vicia/Lathyrus 1 1
Fabaceae tipo Trifolium 1 1 2
Fabaceae 1 1
Frutos
Vitis vinifera (semente) 1 1 1 2
Vitis vinifera (frag.
1 1 2
semente)
Vitis vinifera (pedicelo) 1 1
Outros
Asteraceae (aquénio) 1 1
Cistus sp. (frag. cápsula) 1 1
Rumex sp. (aquénio) 1 1 2
Sherardia arvensis
1 1
(mericarpo)
Silene gallica (frag.
1 1
cápsula)
Indeterminado (fruto/
3 1 1 2 1 1 9
semente)
Indeterminado (frag.
1 1 3 1 1 2 1 2 3 2 7 24
fruto/semente)
Total 1 11 4 2 1 2 1 1 7 4 5 6 3 12 2 60
Tabela 6 – Resultados carpológicos. As amostras não mencionadas revelaram-se estéreis a esta componente arqueobotânica.
RESUMO
Os fora construídos nas províncias ocidentais seguem frequentemente um modelo de planta quase idêntico,
composto a partir de três elementos principais: o templo, a praça e a basílica, denominado de “forum tripartido”.
Apesar da notável semelhança, limitações metodológicas e a exiguidade dos vestígios recuperados, geralmente
não permitem evidenciar esta matriz de desenho comum. Porém o recente incremento do número de edifícios
estudados e o desenvolvimento do desenho assistido por computador permitiram a realização de abordagens
inovadoras a partir da comparação sistemática dos vestígios. Deste modo a comunicação visa demonstrar, atra-
vés de uma leitura tipo-morfológica, como estes edifícios seguem um único esquema de proporções. Para este
efeito será analisado em detalhe o forum de Coimbra evidenciando uma composição semelhante a outros edi-
fícios como Évora ou Mérida.
Palavras-chave: Coimbra; Évora; Forum tripartido; Traçado Regulador; Tipo-morfologia.
ABSTRACT
The fora built in the western provinces often follow an almost identical plan model, composed of three main
elements: the temple, the square and the basilica, called the “tripartite forum”. Despite the notable similar-
ity, methodological limitations, and the scarcity of recovered remains, generally do not allow this matrix of
common design to be evident. However, the recent increase in the number of buildings studied and the devel-
opment of computer-assisted design allowed for innovative approaches based on the systematic comparison
of remains. Thus, the communication aims to demonstrate, through a typo-morphological reading, how these
buildings follow a single scheme of proportions. For this purpose, the Coimbra forum will be analysed in detail,
highlighting a composition similar to other buildings such as Évora or Mérida.
Keywords: Coimbra; Évora; Tripartite forum; Proportion System; Typo-morphology.
650
actualidade nunca era um objectivo fundamental e parte da estrutura do criptopórtico constituía a base de
estaria sempre em segundo plano, desde que não sustentação dos edifícios que integrariam o centro mo-
comprometesse a já mencionada coesão das formas numental, sendo como que o prolongamento das fun-
globais dos edifícios. No entanto, se alguns dos pro- dações desses mesmos edifícios…” (Carvalho, 1998).
blemas mencionados podem condicionar o estudo A proposta parte assim da planimetria do criptopór-
dos seus traçados reguladores em determinados tico para restituir a planta do forum seguindo a for-
edifícios, a análise dos mesmos a partir de leituras ma do extenso conjunto de galerias com aproxima-
formais comparativas ou tipo-morfológicas permite damente 37m x 64m, caracterizada por um espaço
reduzir consideravelmente a subjectividade inerente central rodeado por uma dupla galeria em U, na qual
à sua leitura. Esse tipo de análise destaca com clare- se destaca no lado Norte o um grande compartimen-
za as componentes de desenho, comuns e especificas to semicircular. Com base no desenho do criptopór-
a cada edifício, as variantes e invariantes, ou seja, as tico Pedro Carvalho propõe um forum de um modelo
regras fundamentais de composição, permitindo jus- fechado, com dois pisos de pórticos rodeando os três
tificar com maior segurança a configuração dos tra- lados de uma praça central aberta. No lado Norte,
çados reguladores como parte de um conjunto mais como já foi referido, o compartimento semicircular
amplo de regras de composição comuns. é entendido como a fundação da abside de uma pe-
O caso dos fora tripartidos, pela sua clareza formal e quena basílica de duas naves, situada sobre um dos
pela sua grande expressão territorial com vários edi- lados menores da praça (fig. 1).
fícios bem documentados, assume-se assim como Da reconstrução proposta por Pedro Carvalho resul-
um exemplo paradigmático da possibilidade de res- ta um edifício de dimensões relativamente modes-
gatar os traçados reguladores de uma determinada tas, sobretudo quando comparado a outros fora, e
tipologia arquitectónica através da utilização de do qual estão aparentemente ausentes um conjunto
uma metodologia de comparação sistemática, tipo- importante de outos compartimentos com as suas
-morfológica. funções, tais como o templo, a cúria, o aerarium ou
as tabernae. Por outro lado, a configuração espacial
3. O FORUM DE COIMBRA (UMA MUITO proposta é também relativamente excecional, com
BREVE SÍNTESE) poucos paralelos formais comparáveis noutros fora,
nomeadamente na configuração da basílica e na so-
O criptopórtico romano de Coimbra, foi inicialmen- breposição dupla dos pórticos.
te descoberto nos anos 30 por Virgílio Correia, tendo Porém, as escavações dirigidas por Pedro Carvalho
este sugerido a possibilidade de se tratar do emba- permitiram não só melhorar significativamente o
samento do forum da cidade, entre outras hipóteses. nosso conhecimento sobre a planta da estrutura,
O entendimento do criptopórtico como provável em- mas também compreender que a mesma (o cripto-
basamento do forum da cidade foi progressivamente pórtico e o forum a ele associado) resulta de duas
reforçado pelos achados que ao longo das décadas se grandes fases de construção: a primeira durante o
foram somando no espaço, entre os quais se desta- principado de Augusto (27 a.C. – 14 d.C.), e a segunda
cam vários bustos e numerosos entablamentos, bem durante o principado de Cláudio (41 – 54 d.C.). O pri-
como fustes de colunas e fragmentos de capitéis jó- meiro forum situar-se-ia no lado Este do Museu Ma-
nicos e coríntios, para além da evidente monumen- chado de Castro, sob a Igreja de S. João da Almedina
talidade da estrutura (Oleiro, 1955-1956). A realiza- e o actual Largo D. José Rodrigues, possuindo pro-
ção de um estudo mais aprofundado que permitisse vavelmente com uma ampla praça rodeada por pór-
a reconstrução da configuração deste forum seria po- ticos rematada na face Oeste por uma longa galeria
rém apenas realizada por Pedro Carvalho em 1998 semienterrada, ou seja, um criptopórtico que funcio-
(Carvalho, 1998), tendo este dirigido as escavações naria como muro de contenção da praça. O segundo
realizadas no monumento entre 1992 e 1998. momento, erguido no principado de Cláudio, resul-
Dada a natureza escassa e fragmentária da informa- taria na transformação completa desta galeria com
ção sobre a forma do forum de Coimbra, Pedro Car- a sua incorporação num novo e extenso conjunto de
valho aponta a planimetria do criptopórtico como galerias construídas que hoje reconhecemos. Pedro
uma peça fundamental para o entendimento do edi- Carvalho resolve estes dois momentos construtivos
fício. Como o autor refere: “Partindo do princípio que sugerindo que a um primeiro forum de Augusto se
652
ambos os fora, é possível expandir a análise em bus- in capturing the human condition: that we are all
ca outros exemplos da aplicação desta geometria. the same and yet unique.” (Wilson Jones, 2000).
Com base no hipotético traçado regulador identifi-
cado nos fora de Évora e Mérida procuramos com- 5. RECONTEXTUALIZAÇÃO DOS VESTÍGIOS
preender a abrangência deste hipotético desenho DO FORUM DE COIMBRA
noutros fora tripartidos existentes sobretudo nas
províncias ocidentais do império romano. Esta com- A comparação dos vestígios do criptopórtico de
paração sistemática, tipo-morfológica, permitiu Coimbra com fora tripartidos evidencia numa pri-
identificar para além dos casos e Évora e de Mérida, meira leitura um grande contraste entre a configu-
outros edifícios em que este traçado regulador apa- ração e a reduzida escala desta estrutura, sugerindo
rentemente coordena também a disposição geral que estamos perante um elemento de natureza to-
das diferentes componentes construídas, apesar da talmente distinta. No entanto, fazendo uma leitura
grande diversidade de escalas e detalhes construti- de detalhe esta comparação revela uma semelhança
vos. Casos como os do forum de Bavay (Gros, 1996), particularmente reveladora entre a as dimensões do
(Berger, 2012); Virunum (Luschin, 2003); Lugo (Gas- criptopórtico e as dimensões de várias basílicas ro-
cón, 2017); Trier (Cüppers, 1979); Paris (Busson & manas existentes nos fora tripartidos (fig. 6).
Robin, 2009); Saint-Bertrand-de-Comminges (Be- A esta peculiar semelhança de dimensões podemos
don et alii, 1988), (Ward-Perkins, 1970); Avenches ainda acrescentar a descoberta no local de uma ara
(Bossert & Fuchs, 1989), (Trunk, 1991); Feurs (Va- dedicada ao génio da basílica (Alarcão et alii, 2009),
lette & Guichard, 1991); Augst (Berger, 2012); Évora, ou ainda a existência de uma abside situada axial-
(Martins, 2023); Alba-la-Romaine (Dupraz, 2004); mente num dos lados menores do edifício. Este po-
Nîmes (Anderson, 2012); Tomar (Ponte, 2010); Pel- sicionamento é típico das basílicas romanas, sendo
tuinum (Bianchi, 2012), (Migliorati, 2011); Idanha-a- apenas invulgar a inexistência de outra abside no
-Velha (Carvalho, 2010b), (Mantas, 2009); e Zuglio lado oposto. Por outro lado, importa ainda destacar
(Donat, 2009), formam um subgrupo excepcional- a identificação de vários fragmentos de capitéis jó-
mente coeso de fora tripartidos, aparentemente de- nicos monumentais no local (Alarcão et alii, 2009),
senhados formalmente a partir do mesmo traçado que parece repetir um padrão comum aos espaços
regulador, predominantemente enraizados no prin- das basílicas dos fora de várias cidades, tais como
cipado de Augusto, e geograficamente prevalentes Évora - onde foi recuperado um capitel jónico, hoje
nas áreas da Lusitânia e Gália Transalpina, que po- exposto no Museu de Évora (Hauschild, 1997) -, Bra-
dem assim ser reconhecidos como um subgrupo dis- ga - com a descoberta de um capitel jónico no Largo
tinto de fora, talvez “forum Tripartido Pentagonal” Paulo Osório (Morais, 2010) - e Tomar onde foi tam-
(fig. 4 e 5). bém recuperado um capitel jónico nas escavações
O traçado regulador permitiu que estes fora tives- em torno da basílica do forum (Ponte, 2010). Parece-
sem uma notável aparência comum, independen- -nos, assim, possível considerar a hipótese de o crip-
temente do contexto ou escala, ao mesmo tempo topórtico de Coimbra constituir a fundação de uma
que detinham versatilidade e autonomia de design basílica romana, e não de um forum romano em si
suficientes para permitir que cada edifício possuísse mesmo. A hipótese de a estrutura ter suportado uma
uma identidade distinta e única. O hipotético traça- basílica sugere aliás uma evolução semelhante à que
do regulador comum desses edifícios pode, assim, ocorreu no vizinho forum de Condeixa-a-Velha em
destacar-se como um exemplo notável da dialética que também no período Claúdio foi acrescentada
entre as naturezas normativa versus empírica da uma basílica ao forum Augustano, talvez mimetizan-
arquitetura romana ou, como observa Mark Wilson do o que se passava na cidade vizinha de Coimbra.
Jones ao comentar o Palazzo Massimo de Baldassare Assumindo que o criptopórtico resulta da constru-
Peruzzi em Roma: ção de uma basílica durante o principado de Cláu-
dio comparámos os vestígios do criptopórtico com
“Here is a remarkable grasp of the dialogue be- o traçado regulador identificado nos fora de Évora e
tween rule and variety that is more than anything Mérida. Para o posicionamento e dimensionamento
the secret of the antique approach to design. Peru- do esquema geométrico utilizamos como referência
zzi appreciated that Roman architects succeeded a medida entre o eixo transversal do criptopórtico,
654
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656
Figura 2 – Identificação do traçado regulador dos fora de Évora e Mérida.
658
Figura 4 – Exemplos de fora tripartidos e comparação com o criptopórtico de Coimbra (1 – Coimbra; 2 – Mérida; 3 – Bavay;
4 – Virunum; 5 – Lugo; 6 – Trier; 7 – Paris; 8 – Saint-Bertrand-de-Comminges; 9 – Avenches; 10 – Feurs; 11 – Augst; 12 – Évora, 13
– Nîmes; 14 – Alba-la-Romaine; 15 – Nîmes, 16 – Tomar; 17 – Peltuinum; 18 – Idanha-a-Velha; 19 – Zuglio).
660
Figura 6 – Comparação entre o criptopórtico de Coimbra e as basílicas de Augst, Feurs, Nyon, Tomar e Évora.
662
Figura 8 – Reconstrução hipotética da planta original do forum de Coimbra sobre o tecido urbano contemporâneo.
RESUMO
Em 2012, no âmbito de uma intervenção arqueológica de salvamento e prevenção, realizaram-se trabalhos de
escavação no sítio do Antigo (Torre de Vilela, Coimbra) que permitiram recuperar alguma informação sobre o
local que era pouco conhecido. Complementarmente aos alinhamentos murais, destaca-se o aparecimento de
estruturas funerárias com espólio associado que possibilitam inferir um pouco mais sobre a sua cronologia de
ocupação. Recentemente, foi possível traçar com maior rigor a área de dispersão dos materiais arqueológicos
através da realização de trabalhos de prospecção.
Apresentam-se os resultados destes trabalhos e do estudo do espólio exumado que forneceram informação rele-
vante para discutir a tipologia e cronologia deste arqueossítio. Os elementos recuperados indicam que podemos
estar perante uma propriedade fundiária tipo villa que terá sido ocupada até aos finais do Baixo Império.
Palavras-chave: Lusitânia Romana; Civitas Aeminiensis; Povoamento rural romano; Sítio do Antigo (Torre de
Vilela-Coimbra); Villa (?).
ABSTRACT
In 2012, as part of an archaeological rescue and prevention work, excavation was carried out at the Antigo site
(Torre de Vilela, Coimbra), which allowed to recover some information about the site that was little known. In
addition to the mural alignments, we highlight the appearance of funerary structures with associated artifacts
that make it possible to infer a little more about their occupation chronology. Recently, it has been possible to
trace more accurately the area of dispersion of archaeological materials through prospecting works.
The results of these works and of the study of the exhumed remains are presented, which provided relevant
information to discuss the typology and chronology of this archaeological site. The elements recovered indicate
that we may be dealing with a villa type land property that would have been occupied until the end of the Later
Roman Empire.
Keywords: Roman Lusitania; Civitas Aeminiensis; Roman rural settlement; Site of Antigo (Torre de Vilela-
Coimbra); Villa (?).
1. O SÍTIO DO ANTIGO (TORRE DE VILELA, enquadrado por terras férteis, próximo da via roma-
COIMBRA) na que ligava Olisipo a Bracara Augusta. Neste local,
entre Vilela e Torre de Vilela, num espaço de 200m2,
O Sítio do Antigo, localizado no concelho do distrito Vergílio Correia (1940: 140) terá visto materiais de
de Coimbra (Fig. 1), outrora dentro dos limites ad- construção, designadamente, tijolos de coluna e cerâ-
ministrativos da civitas de Aeminium, era um lugar mica doméstica. Nos anos seguintes, pouco ou nada
3. Câmara Municipal de Cascais ( Trabalhos realizados no âmbito do exercício de funções na Câmara Municipal de Coimbra) / carmen.
[email protected]
666
apresentavam-se estendidos, paralelos ao tronco. As estimada entre os 18-20 anos (Ferembach, Schwi-
mãos e os pés encontram-se ausentes. Do ponto de detzky e Stloukal, 1980) obtida através da análise da
vista paleodemográfico, tendo em conta as medidas fusão epifisiária (Pereira, 2020).
possíveis de obter em campo e segundo o método de Da observação realizada, parece estarmos na pre-
comprimento dos ossos longos definido por Stloukal sença de uma incineração in situ, sem que tenham
e Hanáková (1978), estima-se que se esteja perante sido recolhidas todas as cinzas e onde o covacho que
uma criança com idade à morte entre os 5 / 6 anos, terá servido de bustum é coincidente com a sepultu-
embora não tenha sido possível obter a diagnose se- ra. A presença de cavilhas poderá indiciar a presença
xual (Pereira, 2020). de rogus ou pira funerária de madeira. Devido à es-
Encontrava-se espólio arqueológico associado a cassez de material osteológico humano, pressupõe-
este enterramento. Ressalva-se a presença de uma -se que após a cremação se possa ter recolhido parte
taça de cerâmica localizada aos pés do indivíduo, das cinzas para uma urna funerária. O espólio votivo
de vestígios de uma peça em vidro acima do ombro exumado, nomeadamente a cerâmica, não apresen-
direito, de um numisma sobre o ombro esquerdo, ta fuligem exterior ou indícios de ter sido queimada.
para além de cavilhas em ferro e um fragmento de Entre o mobiliário artefactual recolhido conta-se um
pescaz. A taça de cerâmica estava muito fragmen- numisma em bronze ilegível, um grampo em ferro,
tada tendo sido aplicados consolidantes para a sua uma taça em cerâmica (Fig. 5 – C), uma peça em vi-
exumação (Fig. 3-F) e apenas sendo possível deter- dro e uma lucerna.
minar que teria base côncava e pé anelar. Da mesma A lucerna com asa em fita, reservatório de parede
forma, a peça em vidro incolor, muito fragmentada, encurvada, orifício de alimentação no campo supe-
poderá corresponder ao fundo de unguentário com rior direito do disco, orla lisa de rebordo inclinado
base ligeiramente côncava (Fig. 4-B). Por sua vez, e separado do disco por uma moldura parece cor-
a presença de moeda junto ao indivíduo inumado responder ao tipo Dressel-Lamboglia 20. Apresenta
relaciona-se com a “deposição do óbolo para Caron- decoração moldada na parte interna do disco, repre-
te”. O numisma em bronze com banho de prata cor- sentando Hélios, em busto masculino nimbado de
responde a um denário de Ulpia Severina (mulher auréola radiada de 6 pontas. Estas peças surgem na
de Aureliano) cunhado em Roma entre 270-275 d.C. viragem do séc. I para o séc. II, mantendo-se em uso
(RIC V.1: 66) (Fig. 4-D). No anverso, com busto dia- durante toda a segunda centúria (Denauve, 1969:
demado para a direita, drapeado, pode ler-se SEVE- 165; Pereira, 2008: 71).
RINA AVG. No reverso, lê-se VENUS FELIX e pode A peça em vidro encontrava-se, de igual forma, muito
ver-se Vénus de pé orientada à esquerda, segurando fragmentada (Fig. 4-A), tendo sido possível reconsti-
ceptro vertical e maçã ou globo, com marca: --//∆ (4ª tuir a parte superior (Fig. 4-C). Parece corresponder
oficina de Roma). a um copo de paredes finas, em vidro transparente e
incolor, e pé anelar maciço. Poderá tratar-se da evo-
2.2. Sepultura 2 (sondagem 8) lução regional do copo com pé anelar tubular do tipo
Na sondagem 8 identificou-se uma estrutura em pe- Isings 109a ou da variante com pé anelar repuxado
dra calcária (Fig. 5, A-C), sem delimitação definida, (Isings 34), semelhantes a algumas peças que sur-
mas onde a quantidade de carvões conjuntamente gem em Braga em contextos baixo-imperiais entre
com a existência de fragmentos de ossos humanos os séculos III e IV (Cruz, 2009: 85, 90 e 91).
cremados e espólio votivo indiciam a presença de Foi ainda possível reconstituir a peça de cerâmica
um espaço utilizado para a cremação (Santos e Pe- comum que deverá integrar-se no grupo das cerâmi-
reira, 2014). O material osteológico encontrava-se cas laranjas finas cujo fabrico, de âmbito regional, é
disperso, sem qualquer conexão anatómica. O cál- muito conhecido em Aeminium (Silva, Fernández e
culo do NMI (número mínimo de indivíduos) seguiu Carvalho, 2015: 244-247) e em Conimbriga onde sur-
o método desenvolvido por Ubelaker (1974) com a ge nomeado como orangées fines (Alarcão, 1975: 93).
contabilização a partir de cada osso. Constata-se Este tipo de peças acaba por apresentar a cronologia
a presença de ossos humanos cremados de peque- das formas que imitam ou em que se inspiram, nor-
na dimensão tendo sido apenas possível identificar malmente peças de terra sigillata Hispânica Tardia.
uma extremidade de falange da mão e a extremida- Neste caso concreto, o perfil assemelha-se mais a
de de metatarso de adulto jovem com idade à morte uma tigela Drag. 37T (Fig. 5-D) com claros paralelos
668
lela6 afectaram uma zona com indicação, e posterior assinalada como “outra” estação romana, distin-
confirmação, de ocupação em época romana. Dos guindo-se claramente daquelas que garantidamente
vestígios estruturais registados apenas foi possível se apontam como villae (Alarcão, 2004: 137, mapa 1).
determinar a existência de três sepulturas que se De forma a superar esta lacuna programou-se uma
encontravam em mau estado de conservação. Os campanha de prospecção intensiva no local que cul-
restantes alinhamentos estruturais detectados cor- minou por certificar uma área de dispersão de ma-
responderão a outro tipo de construções difíceis de teriais (cerâmica de construção (tegulae e lateres) e
determinar. Vergílio Correia (1940: 140-141) havia doméstica) que supera os 6 hectares (Fig. 7). A área
já indicado a probabilidade da existência de uma ne- está densamente ocupada por casas de habitação e
crópole nesta zona. No entanto, os três espaços de alguns dos terrenos encontram-se vedados e são de
sepultamento identificados não são ainda suficien- difícil acesso. No entanto, por se tratar de terras la-
tes para poder caracterizá-la. Os resultados obtidos vradas regularmente, as condições de visibilidade
não são suficientes e não foi possível determinar, até são propícias e os materiais de época romana são
ao momento, a natureza, delimitação e organização bem visíveis à superfície numa extensão que se pro-
espacial do espaço funerário. No entanto, deveria longa até ao fundo do vale onde corre o rio dos For-
prolongar-se para os terrenos adjacentes, tendo em nos. Nesta zona mais baixa é perceptível a existên-
atenção os relatos dos populares que indicam a pre- cia de um alinhamento pétreo (possível muro) num
sença de material osteológico quando se construí- terreno onde se observam várias tegulae à superfície
ram algumas das habitações que agora são visíveis (Fig. 7). Em muitos destes terrenos é comum obser-
no local. Estes dados devem ser tidos em conta em var-se pequenos montículos constituídos de pedra
futuros trabalhos a realizar no espaço contíguo. calcária, por vezes afeiçoada. Esta área de 6,3ha de-
Apesar de alguns dados não serem concludentes, é verá ser mais extensa e prolongar-se para a área que
possível, ainda assim, extrair desta intervenção al- está a uma cota mais elevada (a SE) e para SO onde
gumas informações relevantes para a caracterização não foi possível estender a prospecção. Perante os
do sítio, nomeadamente, do ponto de vista da sua elementos recuperados, tendo em conta a fórmula
cronologia. As evidências funerárias comprovam a de J. Alarcão (1998: 95) e por comparação com ou-
coexistência das práticas funerárias de inumação e tros exemplos na área do baixo Mondego, pensamos
incineração com presença de bustum. Como expos- poder estar perante uma propriedade fundiária tipo
to, o mobiliário funerário recolhido nestas estruturas villa que terá sido ocupada até aos finais do Baixo
parece indicar um momento tardio de ocupação, Império. Esta sugestão reclama, porém, confirma-
adentro o período baixo-imperial e entre o séc. III ção no terreno através da prossecução da investiga-
e V d.C. ção que deveria passar pelo método clássico de esca-
Não obstante, nem as estruturas nem o material for- vação. Não se conhecem estruturas domésticas nem
neceram pistas claras acerca da tipologia deste sí- tão pouco urbana ornamenta. Contudo, o espólio
tio. Desde que é referido que surge indicado como exumado mostra que este sítio suburbano de Aemi-
“estação romana” sem que alguma vez tenha sido nium se encontrava plenamente integrado nas rotas
sugerida uma classificação tipológica mais asser- comerciais vigentes e que o seu proprietário teria al-
tiva. Como já foi referido, a primeira descrição de gum poder aquisitivo.
Vergílio Correia (1940: 140-141) foi, ao longo destes Estes dados, apesar de muito preliminares, devem
anos, várias vezes repetida sem que fosse atestada ser particularmente valorizados no quadro de um ter-
no local. Talvez por isso, a indicação de uma área de ritório cuja ocupação antiga é mal conhecida e onde
dispersão de materiais (apenas de construção e ce- abundam e persistem largos vazios de conhecimento.
râmica doméstica) por uma área indicada de 200m2
(idem) tenha levado vários autores a considerá-lo AGRADECIMENTOS
como um pequeno sítio utilizando, ambiguamente, a
tal expressão genérica de “estação romana”. Na obra Agradecemos a Miguel Munhós os trabalhos conser-
mais actual que reúne informação sobre o passado vação, restauro e fotos das colheres de prata; a José
romano do Baixo Mondego, o sítio do Antigo surge Ruivo a classificação do espólio numismático; a Sara
Almeida o desenho de algumas peças apresentadas;
6. Que não chegou a ser executado. a Manuel Matias a conservação e restauro de algu-
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93-97.
670
Figura 1 – Em cima: Localização do sítio do Antigo e sua relação com Aeminium. Em baixo: Localização do sítio do Antigo em
excerto da CMP 1:25000 n.º 230 e área de implantação do projecto de construção do Centro Desportivo de Torre de Vilela.
672
Figura 3 – Pormenor de algumas estruturas: A) sondagem 1; B) sondagem 2; C-D) sondagem 5; E) sondagem 7 (sepultura 1);
F ) trabalhos de consolidação de material cerâmico na sepultura 1.
674
Figura 5 – A-C) Sepultura 2 (sondagem 8); D) Taça recuperada na sepultura 2; E-F) Sepultura 3 (sondagem 9).
676
Figura 7 – Trabalhos de prospeção intensiva: área de dispersão de materiais.
RESUMO
O projecto em curso Conimbriga MMXX Avaliação do potencial científico e patrimonial do Vale Norte de Coním-
briga incide sobre todo o vale norte da cidade, englobando áreas tão relevantes como a denominada Casa dos
Repuxos, o Viaduto e o Anfiteatro. Neste texto pretende-se apresentar os resultados já obtidos no decurso deste
projecto, nomeadamente os novos dados obtidos na Fachada Norte da Casa dos Repuxos nas campanhas de es-
cavação de diagnóstico realizadas em 2021 e 2022. Para além da recuperação de parte da planta desta domus, até
agora desconhecida, tem sido possível constatar e perceber os seus ritmos de ocupação e caracterizar de forma
detalhada as existências estruturais, estratigráficas e materiais nesta parcela urbana.
Palavras-chave: Conímbriga; Arquitectura doméstica; Casa dos Repuxos; Fachada Norte.
ABSTRACT
Conímbriga MMXX – Evaluation of the scientific and heritage potential of the North Valley of Conímbriga is an ongo-
ing archaeological project that covers the whole northern valley of the roman city, encircling relevant areas such
as the Casa dos Repuxos, the Viaduct and the Amphitheater. Here, we present the results already obtained from
the exploratory excavations conducted in 2021 and 2022, namely, the new data obtained from the North façade
of Casa dos Repuxos. Beyond recovering part of the house plan of this domus, still undiscovered until now, it
was possible to identify and understand its occupation dynamics and to characterize in detail the structural,
stratigraphic, and material remains of this urban area.
Keywords: Conímbriga; Domestic Architecture; House of the fountains; Northern Facade.
1. A CASA DOS REPUXOS DE CONÍMBRIGA um pátio rectangular, sendo o nível inferior reserva-
do e aproveitado para a instalação de pequenas lojas
A denominada Casa dos Repuxos (Fig. 1) é um dos e oficinas. Durante a primeira metade do séc. II o
mais notáveis edifícios residenciais da cidade, reu- edifício sofre uma profunda remodelação. Grande
nindo já uma vasta historiografia (DGEMN 1948 parte do piso inferior é aterrado, sacrificando-se as
e 1964; Oleiro, 1992; Correia, 2013, entre outros). lojas e oficinas existentes (mantendo-se apenas as
Assume-se que aquilo que hoje é visível obedece a que se localizam no bloco sul) e instalando-se sobre
dois “programas” ou fases de construção distintas. este terrapleno a residência cujos restos são actual-
A construção original, datada dos inícios do séc. I, mente visíveis, onde o peristilo central, decorado
estendia-se por dois pisos (aproveitando o declive por caixotões ajardinados no implúvio e guarnecido
natural do terreno), respectivamente abertos para de mosaicos e jogos de água assume maior destaque
a Via (a sul) e para outro eixo viário desconhecido, (Fig. 1 – C e D). A casa terá sido abandonada ou de-
mas cuja existência é certa (a Norte). No piso supe- molida para construir a muralha do Baixo-Império.
rior o plano arquitectónico organiza-se em torno de Identificada ocasionalmente em 1907, foi escavada
680
e por forma a esclarecer as questões suscitadas pelo escadaria, em L, com c. de 1m de largura terá sido
desenrolar dos trabalhos. No final da campanha de originalmente aterrado com terra limpa (nível de
2022, tendo-se unido as duas zonas sondadas, con- obra) onde deveria assentar uma estrutura em ma-
tava-se com uma área total que perfazia cerca de deira, comprovando que esta fachada era composta,
175m2 (Figs. 2, 3 e 4-A). no mínimo, por dois pisos. O referido vão é atraves-
A área sondada confina directamente com a atual sado por uma canalização que encaminha as águas
Rua das Ruínas que se sobrepõe, literalmente, aos do interior da Casa para uma cloaca que, no exterior,
vestígios estruturais da área norte da Casa dos Re- encosta ao muro de fachada.
puxos. Por questões de segurança, esta situação nem Neste corredor, acedia-se, por uma porta com 0,80m
sempre autoriza que a zona de escavação se acomo- de largura (Fig. 4-D e E), ao compartimento 60 que
de aos limites definidos pelos compartimentos. conta com 2,90m de lado. Por enquanto, ainda não
As sondagens foram inicialmente implantadas em foi possível definir o seu limite sul. No entanto,
torno do único compartimento conhecido da zona percebe-se que este comunicará com outro espaço
norte da domus (Fig. 2). A galeria abobadada (Com- a nascente tendo em conta a presença de um outro
partimento 51) seria o corredor de acesso ao interior vão (com 1,20m de largura) neste perfil (Fig. 4 – C).
da casa por quem acedia através desta fachada nor- Adivinha-se a continuidade regular de novos com-
te. A referida entrada aparenta ter alguma monu- partimentos, aparentemente simétricos, ao longo da
mentalidade, sendo rematada por dois patamares zona de fachada ainda não intervencionada.
lajeados em calcário. Tendo como referência este Como foi já enunciado, toda a área sondada revela
vão, individualizam-se duas áreas distintas que se o profundo revolvimento da estratigrafia por ações
desenvolvem ao longo da frontaria da casa, quer pós-deposicionais. Apenas se identificou um único
para nascente (Compartimento 60) quer para poen- estrato em posição primária e de datação inequivo-
te (Compartimentos 59) deste acesso (Figs. 2 e 3). camente romana. Trata-se de uma camada pouco
espessa que se dispõe sobre o preparado (em arga-
3.1. Área nascente: compartimento 60 massa) de assentamento de um pavimento, prova-
Os trabalhos realizados na área nascente confirmam velmente em tijoleira, podendo tratar-se do nível de
a presença de estruturas de grande porte e bem con- abandono desta área da domus. Não forneceu espó-
servadas, mas que se encontram cobertas por níveis lio datável para além de alguns fragmentos em terra
muito revolvidos em tempos recentes. A estratigra- sigillata de fabrico sudgálico (Drag. 15/17) e hispâni-
fia primária terá sido perturbada pela abertura de co (Drag. 15/17 e uma taça decorada Drag. 37). Des-
valas e cortes, alguns efectuados nos finais do séc. taca-se a presença de numerosas tesselae e de alguns
XX. São muito pouco os estratos que não foram afec- núcleos ou restos de debitagem de mosaico, que as-
tados por estas acções. Para além disso, grande par- sociamos às obras de remodelação do edifício. Os
te da potência estratigráfica é artificial e correspon- dados recolhidos não são suficientes para avançar
de ao depósito de terras provenientes das anteriores com a datação de abandono desta zona que deverá,
escavações4 da parte visitável da Casa dos Repuxos. no entanto, ser posterior a meados do século II d.C.
Apesar da pequena extensão aberta, as novas estru-
turas permitem definir os limites de um novo com- 3.2. Área poente: compartimento 59
partimento e deixar entender como se encontrava A poente da entrada norte da Casa dos Repuxos
organizada esta parte do edifício (Figs. 3 e 4). Um (Compartimento 51), os trabalhos arqueológicos
corredor com 1m de largura dispõe-se por toda a revelaram a existência de um novo compartimento
frontaria desta área nascente, permitindo a comuni- (59), de planta irregular (sub-trapezoidal), com cer-
cação interna entre os vários aposentos da casa, in- ca de 50 m2 (Figs. 2 e 3). A sequência estratigráfica
cluindo o vão de escadas de acesso ao piso superior analisada permite distinguir três fases de ocupação
da casa e ao compartimento 60. O vão que define a deste espaço. O plano original do compartimento,
certamente contemporâneo da construção inicial da
domus durante o séc. I d.C., vai ser reformulado com
4. A recolha de duas moedas, uma de XX centavos e outra
de 50 centavos, ambas da República Portuguesa e datadas
a construção de um muro divisório (um 19) irregular
respectivamente de 1948 e 1968, vem comprovar a cronolo- com orientação E-W, que vai truncar e dividir o es-
gia recente destes testemunhos. paço em dois (Fig. 3, um19; Fig. 5). A natureza distin-
682
mento com cerca de 30m2 (6mx5m) que deverá fazer alargamento da área sondada para norte permitirá
parte de outro edifício que encosta àquele alçado esclarecer esta questão uma vez que também aqui a
(Fig. 3 e 6-A). Apesar das dúvidas relacionadas com canalização contemporânea rasgou todos os níveis
a sua planta e funcionalidade, é possível verificar a e estruturas de época romana e não deixa entender
existência de dois espaços que se desenvolvem a co- como se articulam e relacionam todos estes espaços.
tas desiguais, individualizados por um muro divisó-
rio que cruza (E-W) o compartimento. No mais alto, 4. NOTA FINAL
a sul, que confina com o muro de fachada da casa,
acedia-se por intermédio de uma soleira que dá para Os trabalhos arqueológicos apresentados vêm re-
um piso de circulação em terra batida onde se encon- forçar a relevância do diagnóstico desta importan-
tra uma pequena lareira constituída por duas fileiras te área da cidade e pôr em evidência o bom estado
de tijolo (ou tegulae?) que encosta à face sul do muro de conservação das estruturas identificadas. Em
divisório. A seu lado (a poente) é ainda possível cons- síntese, os dados recuperados vão, aos poucos, co-
tatar a presença da base de um grande pote/dolium, laborando para a obtenção da totalidade da planta
vestígios da última ocupação deste espaço (Fig. 6-B). da Casa dos Repuxos (Fig. 2) e acrescentando novas
O outro espaço, mais a norte encontra-se rebaixado informações relativamente aos ritmos de ocupação
c. 0,70m. A escavação desta área revelou uma cama- desta magnífica domus áulica.
da espessa de terra muito negra e fina, com muitos Foi possível definir o limite norte da casa, perce-
carvões e cinzas que se fez associar a um nível de bendo-se que o alçado da fachada era composto por
ocupação relacionado com uma atividade de com- dois pisos. O acesso ao interior do edifício fazia-se
bustão. De facto, o espaço setentrional do compar- por intermédio de uma galeria abobadada (Compar-
timento encontra-se ocupado por um pequeno forno timento 51). Esta entrada terá sido também alvo de
de câmara sub-retangular com c. 1,80m de compri- trabalhos de reestruturação e monumentalizada du-
mento (Fig. 6- A e C). Desta estrutura resta apenas rante a segunda fase de ocupação. A sequência cro-
aquilo que será a fornalha de combustão que se en- no-estratigráfica que tem vindo a ser delineada vem
contra pavimentada por tijoleira retangular. Encon- comprovar o faseamento já conhecido. A ocupação
tra-se em muito mau estado de conservação, não deste edifício cumpre um ciclo de vida curto que
sendo possível recuperar alguns pormenores da sua se inicia nos inícios do séc. I d.C. e termina no séc.
construção tais como a cobertura e a forma como se III d.C. O seu abandono definitivo será coincidente
efetuava a saída de ar quente. Para além de outros com os momentos que antecederam a construção da
fatores pós-deposicionais que terão sido responsá- muralha baixo-imperial (Ruivo, Correia, De Man,
veis pela degradação da parte superior da estrutura, 2021), cujo projecto terá motivado a sua demolição
pensamos que a construção em época contempo- (Fig. 1-A). Deverá assinalar-se que, até ao momento,
rânea de uma canalização que encosta ao muro se- não foi identificado espólio de datação tardia, nem
tentrional do compartimento (Fig. 6-D) terá sido o nos níveis mais superficiais de abandono, nomeada-
principal agente destruidor de todo o flanco norte mente as produções africanas de cerâmica de mesa
deste forno que parece, originalmente, desenvolver- (terra sigillata).
-se sobre aquele muro. No extremo oposto, é ainda Entre a construção e o seu abandono, encontra-se
visível a boca da fornalha com 0,50m de largura. Al- bem demarcada uma fase de profunda reformula-
guns tijolos que ainda se observam nas paredes do ção de toda a Casa durante a 1ª metade do séc. II
forno, fazem crer que a cobertura fosse construída (provavelmente durante o reinado de Adriano (Cor-
em arcaria de tijolo. Pelas suas características, acre- reia, 2013: 155). Enquanto a zona nobre da residência
ditamos estar na presença de um praefurnium cuja é agraciada com um novo programa construtivo que
funcionalidade ainda não é totalmente clara. A cha- inclui os célebres jogos de água do peristilo central,
ve para o esclarecimento desta questão encontra-se mas também a substituição dos painéis musivos des-
para lá dos limites da zona sondada. No perfil norte ta área e da envolvente, grande parte do piso inferior
da sondagem é visível a presença de um comparti- é aterrado. Este terrapleno tem especial incidência
mento com 1,20m de largura pavimentado com opus na zona norte da Casa. Para além de sacrificar al-
signinum (Fig. 6 – E) e que poderá relacionar-se com gumas lojas e oficinas, sabemos agora, que terá tido
o propósito daquela estrutura de combustão. Só o particular impacto igualmente nalguns comparti-
684
Figura 1 – A: Localização da Casa dos Repuxos na malha urbana de Conimbriga (adaptado de Alarcão e Étienne, 1977: Est. LII);
B: Localização da área de intervenção; C: Casa dos Repuxos após restauros, c. 1970 (© SIPA); D: Peristilo da Casa dos Repuxos
com cobertura (© Arlindo Homem, DGPC, 2021).
686
Figura 3 – Plano Final da área sondada, com indicação dos compartimentos e de algumas estruturas murais (© Sara Almeida).
688
Figura 5 – Compartimento 59 – a) vista E-W; b) vista W-E; c) alçado poente (1 – muro 17 (1ª fase); 2 – muro 19 (2ª fase); 3 – ue 22
(3ª fase); d) área sul do muro 19.
690
Figura 7 – Em cima: Trabalhos de limpeza de painéis de estuque pintado depositados no aterro do Compartimento 59. Em bai-
xo: pormenor de almofariz em mármore e de disco de lucerna decorado recuperados durante a escavação dos níveis de aterro
do Compartimento 59.
RESUMO
Ao abrigo de um protocolo firmado entre o Município de Condeixa e a Associação Ecomuseu de Condeixa, foi
financiado, entre 2019 e 2022 um conjunto de acções sob o signo da promoção da candidatura de Conímbriga a
Património Mundial da Unesco. Tendo como mote a precariedade estrutural em que se encontrava a Muralha
Alto-Imperial de Conímbriga, os trabalhos, de cariz multidisciplinar, procuraram a valorização dos troços ainda
intactos, através do registo, limpeza e conservação, mas também contribuir para o conhecimento deste monu-
mento, nomeadamente com prospecções geofísicas e escavações arqueológicas. No Verão de 2021, através da
aplicação destas últimas metodologias, foi possível identificar uma estrutura que interpretamos como sendo, a
Porta de Aeminium da Muralha Alto-Imperial.
Palavras-chave: Conímbriga; Unesco; Muralha Romana; GPRs.
ABSTRACT
Between 2019 and 2022, a set of actions was financed, through a protocol between CondeixaMunicipality and
the AssociaçãoEcomuseu de Condeixa, under the scope of the promotion of the application of Conímbriga-
toUnesco World Heritage list. Considering the structural weakness of the Imperial Wall, the multidisciplinary
works thatinvolvedrecord,clearing and cleaning, restoration and conservation, sought to value thestill intact
wall sections but also aimed to contribute to the knowledge of this monument, namely throughgeophysicalsur-
veysandarchaeological digs. In the summer of 2021, using these methodologies, we identified a structure that
we believe to be the Imperial wall Aeminium’s Gate.
Keywords: Conímbriga; Unesco; Roman Wall; GPR.
694
va. Não nos foi claro que as alvenarias mais antigas de detetar remotamente objetos, materiais e/ou es-
identificadas sejam vestígio da Muralha Alto-Impe- truturas independentemente da sua natureza, que
rial, embora a petrografia (local) utilizada na cons- estejam enterrados no solo ou sob uma estrutura/
trução seja análoga. Foram ainda abertas duas Son- matéria opaca, o que permite desta forma planificar
dagens de solo, no terreno que confina com o tardoz mais eficazmente trabalhos na área da Engenharia,
do chafariz, onde uma leitura do traçado hipotética Geotecnia, Arqueologia, Ambiente e Ordenamento,
da muralha, faz obviar a sua intercepção neste lu- Recursos Geológicos e Hidrogeológicos, Ciências
gar. Muito embora se tenha identificado um corte no Forenses, entre outras. Os métodos de Prospeção
substrato calcário que julgamos poder estar relacio- Geofísica são não intrusivos, não criando impactes
nado com a construção da Muralha, não se registou físicos na área onde decorrem esses trabalhos, pou-
evidência da estrutura, do que inferimos o desmonte pando assim tempo e recursos associados à minimi-
da muralha para aproveitamento da matéria-prima, zação desses impactes.
porventura já na segunda metade do Séc. XX. O estudo foi realizado em vários locais na aldeia de
Num outro troço, no fundo da Rua 22 de Junho, foi Condeixa-a-Velha, assinalados na figura x:
feita a limpeza da envolvência e da própria estrutura • A-1: Estacionamento da igreja;
murária, sendo este um dos seus vestígios mais bem • A-2: Terreno adjacente ao cemitério;
preservados e de evidente observação. O topónimo • A-3: Caminho e pátio de entrada para o cemité-
Rua 22 de Junho, vem substituir a denominação po- rio e igreja;
pular Rua da Muralha Augustana, plasmada, aliás, • A-4: Terreno do Sr. Orlando;
no painel de azulejo da autoria de Belmiro Pita, junto • A-5: Perfis isolados, Bloco 1;
ao cruzeiro. Isto acontece porque a orientação des- • A-6: Terreno Sr. Fernando Pita;
ta via é paralela à estrutura romana, sendo que boa • A-7: Perfis isolados, Bloco 2.
parte das casas actuais se alicerçam no tardoz, da (Figura 2)
Muralha Alto-Imperial. Esta evidência é observável
através dos quintais a que se acede pela Rua da Esco- 3. AQUISIÇÃO DE DADOS DE GPR
la, mas também no interior de algumas casas da Rua – TRABALHO DE CAMPO
22 de Junho. Foi feito por nós, com a generosidade
e confiança dos proprietários, um registo exaustivo A forma como os trabalhos decorreram e a metodo-
destes testemunhos, estando ao momento mapea- logia usada definiu-se em função do tempo disponí-
dos e fotografados, a quem em breve se acrescentará vel, acessos e área a prospectar:
o desenho à escala. 1. Percurso de reconhecimento pela área para en-
quadramento do contexto do trabalho e definir
2. INTERVENÇÃO DO MÉTODO GEOFÍSICO a melhor estratégia para orientação dos traba-
DE RADAR DE PENETRAÇÃO NO SOLO lhos a realizar;
(GPR) 2. Divisão estratégica da área total de estudo em
várias sub-áreas mais pequenas de modo a fa-
Adiada e condicionada pelo contexto pandémico cilitar o uso do GPR, contornar obstáculos exis-
vivido desde março de 2020, os trabalhos de campo tentes e tornar possível o estudo pretendido no
da prospeção geofísica decorreram nos dias 15 e 29 calendário definido;
de junho de 2021. Os trabalhos foram realizados de
forma estratégica em várias zonas da aldeia de Con- Marcação dos perfis no terreno com recurso a fita
deixa-a-Velha, com o principal objetivo de encontrar métrica, e marcação dos mesmo nos mapas para pos-
vestígios da muralha Alto Imperial de Conímbriga, terior georreferenciação quando não existiu a possi-
e, por conseguinte, delimitar o seu traçado de for- bilidade de usar o GPS durante a aquisição dos dados;
ma mais precisa. Ao mesmo tempo, também se pre- Aquisição dos perfis em cada uma das zonas defini-
tendeu perceber se essas mesmas zonas poderiam das (sem e com GPS incorporado).
ter a presença de outras estruturas subterrâneas de A partir dos trabalhos de campo de aquisição dos
natureza arqueológica, para além da estrutura an- vários perfis ortogonais, foi possível criar um mode-
teriormente referida.O GPR é um método geofísico lo de sliceviews em profundidade dessas zonas. Em
eletromagnético (EM) relativamente recente, capaz alguns casos onde a aquisição de perfis ortogonais
696
Planos à profundidade aparente de 2,00 metros fundidade), já que é espectável que estruturas atuais
(áreas A-1, A-3 e A-6) e 1,60 metros na área A-2: como estruturas de saneamento se encontrem a pro-
Na Figura 6 são visíveis algumas anomalias, assi- fundidades mais próximas da superfície (~0,5m a 1m
naladas a tracejado e com hexágonos vermelhos (?)). Desta forma, há que agregar a estes dados, se
estão assinaladas anomalias “falsas”, com algum possível, o traçado destas estruturas mais recentes,
alinhamento aparente. São anomalias mais ténues, para melhor perceber a correspondência destas ano-
mas que aparentam ter alguma continuidade, e que malias a um ou a outro tipo de estruturas.
á profundidade a que ocorrem podem ter interesse Na área A-2, em alguns pontos do terreno encon-
para a realização de uma sondagem arqueológica. tramos o calcário aflorante, e junto à estrutura ves-
Na mesma figura mantém-se visível a grande ano- tigial da muralha existente nesse terreno é possível
malia correspondente à zona do estacionamento observar marmitas e outras estruturas de cavidades
mais próxima da estrada de entrada para o adro do características de zonas calcárias com estruturas de
cemitério. Pela sua continuidade horizontal e verti- lápias preenchidas com terra/solo. Estas estruturas
cal poderá ser um bom local para igualmente se fa- podem apresentar anomalias semelhantes com as
zer algum tipo de sondagem. A anomalia correspon- que apresentam as estruturas antropogénicas que se
dente ao local dentro do adro da igreja, onde foi feita pretendem encontrar.
a última sondagem baseada nos resultados prelimi-
nares de radar, mantém-se representada, bem como 5. INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA
as anomalias junto à entrada do cemitério.
Já no terreno junto ao cemitério correspondente à A implantação da Sondagem 7, no adro da Igreja de
área de estudo A-2, a partir da profundidade de 1.60 S. Pedro, fundamenta-se nos resultados da prospe-
metros parece já não existir qualquer anomalia, sen- ção geofísica (Figueiredo, Carvalho, Duarte 2022),
do apenas notada uma muito ténue na zona onde a conjugados com a exequibilidade da intervenção,
muralha está à superfície. possibilitada pelo proprietário, Fábrica da Igreja de
Condeixa-a-Velha.
Planos à profundidade aparente de 2,5 metros Foi inicialmente escavado um quadrado com 2 x 2
(áreas A-1, A-3 e A-6) e 2,10 metros na área A-2: metros, sendo sucessivamente alargado para enqua-
A partir da profundidade desta última slice (Figura drar os vestígios postos a descoberto.
7), as anomalias atenuam-se, evidenciado que esta- Sob os aterros e depósitos de regularização moder-
mos no substrato rochoso/terroso. nos ficou logo evidente a robusta estrutura em al-
Na figura é visível a redução de anomalias de radar a venaria calcária identificada aquando da passagem
partir das profundidades representadas. do georadar.
Ainda assim é possível observar que existem ano- A estrutura [703] ocupa boa parte da Sondagem
malias ténues assinaladas por linhas pontilhadas na e é claramente a razão da assinatura identificada
zona do estacionamento e anomalias mais signifi- aquando das prospecções geofísicas. É constituída
cativas nos perfis da zona correspondente à entrada por alvenaria calcária e argamassa esbranquiçada.
do cemitério (A-3) na área do adro exterior do cemi- O seu plano constitui-se por um limite recto, a poen-
tério e em áreas adjacentes assinaladas por círculos te, com orientação aproximada S-N, sendo que a
pontilhadas. Também existe uma zona de anomalias face SE é formada por alçado em curva, que delimita
junto ao cruzeiro, no início do caminho de acesso à o pavimento [748], portanto uma zona de circulação.
entrada do cemitério. Distingue-se, paralela à face Poente, uma desconti-
A esta profundidade é admissível pensar que as ano- nuidade na estrutura, transversal ao seu comprimen-
malias presentes possam representar estruturas que to, que pode estar relacionada com algum pormenor
não são recentes. construtivo, ou até a delimitação de estruturas dis-
De acordo com o observado no terreno e resultados tintas, edificadas desfasadamente.
da escavação é admissível que algumas anomalias já Uma leitura comparativa do plano de [703], ainda
referidas anteriormente noutros pontos correspon- que só parcialmente posta a descoberto, permite-
dam a estruturas antropogénicas antigas, devido à -nos uma analogia com a estrutura conhecida como
sua configuração morfológica e profundidade apa- Porta de Selium, precisamente onde a via com acesso
rente a que se encontram (~1,50m a 2,00m de pro- à Tomar romana se abre para Conímbriga, rasgan-
698
como as do Alto do Calvário, Miranda do Corvo, ou musealizar o espaço, o que traz desafios evidentes
São Simão, Penela (Simões 2021; Vicente, Simões, para a manutenção e conservação das estruturas.
Mendes 2022). A área escavada será um local de constante acumu-
Sendo um espaço de cemitério paroquial, e à partida lação de resíduos e lixos, sujeita ao crescimento ace-
estar aqui enterrada a população natural, sem seg- lerado de espécies vegetais e atreita à acumulação e
mentação por sexo ou idade, a verdade é que as fai- retenção de água nos períodos de maior pluviosida-
xas etárias da adolescência e adultos jovens não têm de. Por si só ou conjugados, estes fatores contribuem
representação numérica, podendo indicar um filtro para a rápida deterioração dos elementos arqueoló-
metodológico, fruto da pequena área escavada (Car- gicos. Torna-se, assim, primordial tomar medidas
doso, 2003-04). para protegê-los e obter um equilíbrio físico-químico
Na diagnose sexual foi possível identificar 4 indiví- e mecânico que garanta a integridade estrutural das
duos femininos e 6 masculinos, este último grupo a construções colocadas a descoberto. Por outro lado,
ocupar as 3 sepulturas em alvenaria que exumamos. é necessário que as ações de proteção, consolidação
Apesar do estudo aplicado aos dados biométricos e e restauro promovam um acabamento homogéneo e
biopatológicos estaremos longe de uma efetiva re- harmonioso do conjunto escavado sem alterar nem
presentação da população, dado o baixo volume de perturbar a sua leitura histórica, estética e documen-
efetivos da amostra, tendo de nos limitar mais ao tal. As medidas de Conservação e Restauro a realizar
estudo de caso: passam por metodologias de consolidação das alve-
Sepultura 2 e 3 – Tratam-se de 2 fetos (+/-20 sema- narias, reassentamento e justaposição de unidades
nas) que se encontravam voltados um para o outro, e aplicação de argamassas, quer nos assentamentos
podendo na realidade estar inumados numa só se- quer no refechamento de juntas e vazios, e execu-
pultura coletiva. Pela forma da inumação, ignorando ção de capeamentos. Eventualmente, proceder ao
a canonicidade da orientação a este, a mesma dis- reenterramento de algumas estruturas arqueológi-
posição do corpo (mas em espelho e coincidência da cas que dificultam a interpretação da área escavada,
idade supomos serem gémeos, que não conseguiram designadamente algumas sepulturas que obliteram
sobreviver até ao fim da gestação, sendo enterrados e criam distúrbio na leitura arquitectónica do em-
juntos; (Figura 10) basamento da porta. Deve-se equacionar implantar
Os 3 indivíduos masculinos inumados nas sepulturas um sistema de drenagem naquele espaço confinado
em alvenaria, e o indivíduo masculino na redução da e, de certo modo, estanque.
sepultura 6, têm uma perda total da dentição, dois Os trabalhos a realizar deverão ter como prioridade
sendo da faixa etária dos “adultos plenos” e outros a consolidação e restauro dos elementos existen-
dois da faixa “idosos”. tes, segundo o princípio da intervenção mínima,
Melhores conclusões poderão ser alicerçadas se evitando-se tratamentos que modifiquem irrever-
num futuro for possível ampliar o número de efeti- sivelmente o conjunto do ponto de vista histórico-
vos desta amostra, que certamente nos deixará per- -artístico e arqueológico. A complexidade, especifi-
ceber um pouco melhor a vivência da população me- cidade, detalhe e rigor técnico da intervenção exige
dieval de Condeixa-a-Velha. execução exclusiva por especialistas de Conserva-
ção e Restauro de estruturas arqueológicas, com ca-
6. PERSPECTIVAS DE CONSERVAÇÃO, pacidade e autonomia para avaliar e analisar com
RESTAURO E DIVULGAÇÃO sentido crítico as situações apontadas e adequar, em
cada momento, as soluções prescritas. No mesmo
Parte da fundação da estrutura colocada a descober- sentido, estes trabalhos deverão ter acompanha-
to e as estruturas mortuárias que lhes estão sobre- mento arqueológico permanente.
jacentes encontram-se numa cota negativa de cerca Em suma, com vista a musealização do embasamen-
de 1 metro relativamente ao plano do terreiro envol- to da Porta de Aeminium daMuralha Alto-imperial,
vente da igreja de S. Pedro, em Condeixa-a-Velha. privilegiam-se as ações pouco intrusivas necessárias
As entidades envolvidas pela valorização da área ar- para mitigar e retardar alteração dos materiais líti-
queológica têm o desígnio de deixar a descoberto os cos, melhorar a sua resistência face aos agentes de
vestígios encontrados de modo a serem apreciadas degradação como objectivo de se conseguir uma vi-
pelos públicos e comunidade. Enfim, pretende-se são íntegra e uniforme do espaço arqueológico, res-
700
Figura 1 – Vista aérea em que se enquadra as ruínas de Conímbriga com a aldeia de Condeixa-a-Velha. Na parte inferior é visível
troço da muralha alto-imperial. Fotografia da autoria de Francisco Pedro.
Figura 2 – Localização da área de estudo e dos locais onde foi feita a prospecção com o GPR (Google Earth Pro, acedido em
14-03-2022). O círculo vermelho assinala a localização da Sondagem 7.
Figura 4 – Plano/ slice a uma profundidade aparente de 1,40 metros (áreas A-1, A-3 e A-6) e 0,40 metros na área A-2 (Google
Earth Pro, acedido em 14-03-2022). Anomalias eletromagnéticas assinaladas a tracejado e anomalias “falsas” com os hexágo-
nos. O círculo preto assinala a localização da Sondagem 7. Triângulo tracejado vermelho indicia a presença de uma possível
estrutura de origem antrópica.
702
Figura 5 – Radargrama correspondente ao perfil que cruza a zona A-3, a zona com a anomalia assinalada na figura 4 com o
triângulo pontilhado negro.
Figura 6 – Plano /slice a uma profundidade aparente de 2,00 metros (áreas A-1, A-3 e A-6) e 1.60 metros na área A-2 (Google
Earth Pro, acedido em 14-03-2022).Anomalias eletromagnéticas assinaladas a tracejado e anomalias “falsas” com os hexágo-
nos. O círculo preto assinala a localização da Sondagem 7. Triângulo tracejado vermelho indicia a presença de uma possível
estrutura de origem antrópica.
704
Figura 9 – Plano da Necrópole.
706
O SÍTIO ARQUEOLÓGICO DE SÃO SIMÃO,
PENELA
Sónia Vicente1, Flávio Simões2, Ana Luísa Mendes3
RESUMO
O Sítio Arqueológico de São Simão localiza-se no vale do rio Dueça, no concelho de Penela, Distrito de Coimbra.
Alvo de várias intervenções ao longo do século XX e XXI, revelou nestes últimos sete anos de investigação ar-
queológica, um elevado potencial de estudo e musealização.
A presença da villa romana testemunha a ocupação desde os finais do séc. II/III d.C, posteriormente reocupada
por uma população de cultura suevo-visigótica. Este espaço converteu-se num lugar de culto, acolhendo eremi-
tas e conventuais na idade média, necrópole e capela, na época moderna.
A longa diacronia do Sítio destaca-o dos demais espaços arqueológicos em investigação e abertos ao público,
oferecendo um forte testemunho das várias culturas que passaram por este território.
Palavras-chave: Villa romana; Pars urbana; Mosaicos; Idade média; Necrópole moderna.
ABSTRACT
The Archaeological Site of São Simão is placed in a valley, by the Dueça river, in Penela´s municipal territory. Aim
of several interventions along the XX and XXI centuries, as revealed a high potential of study and musealiza-
tion, especially in the last seven years.
The roman villa is the occupation’s testimony sense the II/III centuries, followed by swabian-visigothic culture’s
material evidence. Later, throughout the medieval age, this place was made a sacred floor with a hermitage’s
installation, afterwards occupied by Franciscans, and by a necropolis and a chapel, during the modern age.
The Site’s long diachrony highlights it from other archaeological places, with investigation and public visit, of-
fering a strong testimony of the several cultures that occupied this territory.
Keywords: Roman Villa; Pars urbana; Mosaics; Medieval Age; Modern necropolis.
2. Museu da Villa romana do Rabaçal / Associação de Amigos da Villa romana do Rabaçal / [email protected]
708
O triclinium (b), espaço nobre da casa, destinado às ferência a algo ou alguém que se quis ocultar.
refeições é, até à data, o compartimento identificado A proposta de interpretação da inscrição, realizada
com a maior área. Possui um mosaico central, mui- por José d’Encarnação, aponta para uma recomenda-
to destruído, mas que ainda conserva três moldu- ção na utilização do mosaico, através da expressão:
ras. Este seria, provavelmente, bastante elaborado
e ladeado por “tapetes” de mosaico de composição VTE(re) FE[LIX SINE] CALIGIS
mais simples. CATVR[O MARTI] DEO
Muitos dos compartimentos não têm, ainda, a fun-
ção atribuída. Contudo, o programa decorativo dos “Usa com felicidade, sem botas!”, recordando a ins-
mosaicos revela tratar-se de espaços de grande apa- crição de Torre de Palma, onde se recomenda o uso
rato que poderiam ser destinados a receber convi- de uma escova macia na limpeza do pavimento.
dados, espaços de lazer comum ou zonas privadas “Dedicado por Caturão ao deus Marte”, uma oferta
da habitação. do dono da Villa ao deus da guerra (?) e bastante ve-
A este, o compartimento d) e d’), de grandes dimen- nerado na Lusitânia.
sões, divide-se em duas áreas distintas, ambas pavi- O painel principal tem composição reticulada de
mentadas a mosaico policromo, cuja transição entre quadrados com estrela de oito losangos (Balmelle et
elas sugere ter sido bastante ornamentada. O painel al., 1985, p. 238). Ao centro, com uma barra de ondas,
principal da sala apresenta, ao centro, composição com fundo em degradé, emoldura uma composição
de meandro de cruz suástica, em dupla volta e volta central de círculos grandes e pequenos, alternados
invertida, policromo. O remate a oeste tem um pai- e entrelaçados, executados com trança de três fios,
nel com encanastrado, policromo. A este, um painel determinando um octógono irregular, côncavo, ao
com triângulos isósceles em redor de um quadrado, centro (Balmelle et al., 1985, pp. 272–273, 369). No
simulando as velas de um moinho (Balmele et al., interior do único círculo intacto, surge um florão for-
p. 30, 121, 212, 294). O painel central tem paralelo mado por quatro cálices bífidos com apêndices.
com o mosaico do oecus da Villa romana do Rabaçal. Separado por um degrau, identificámos um segundo
O mosaico (d’) apresenta composição ortogonal de pavimento muito destruído pelo atual muro do adro
meandro de suástica, de volta simples e quadrados, da capela. O mosaico, identificado em 2001 (Pessoa,
decorados com trevos de quatro folhas, alternando 2001), apresenta alguns elementos que nos permi-
na cor vermelha e amarela. Esta composição encon- tem fazer uma interpretação mais completa. Tem
tra paralelos no mosaico da Casa del Mitreo, em Mé- motivo circular, possivelmente, um nó de Salomão,
rida, Espanha (Freijeiro, 1978). seguido de duas barras de tesselas brancas e pretas;
A divisão (i) exibe apenas, uma pequena parte do na continuação do motivo insinua-se uma pelta.
pavimento em mosaico. Decorado com remate à pa- Existe, possivelmente, paralelo para este pavimento
rede com duas faixas a negro, uma delas denticula- em Santiago da Guarda, Portugal (Ribeiro, 2015).
da e uma roseta no canto. A restante área terá sido O compartimento (l), com hipocausto, tem acesso
destruída durante as obras no atual adro da capela. pela ala este do peristylium (g), contudo a estrutura
A oeste, identificámos dois dos compartimentos identificada, pertence a uma segunda fase de cons-
com decoração musiva mais exuberante, provavel- trução, onde ocorre o emparedamento da porta. A
mente, correspondentes a uma das últimas fases de anulação está relacionada com a construção do hipo-
remodelação da casa romana. O compartimento (j causto para uma sala aquecida ou para o caldarium
e j’) exibe duas áreas musivas distintas, separadas de um balneum romano.
por um degrau, de composição muito elaborada No compartimento (m) foi identificado apenas a
com uma paleta cromática muito variada. A entrada moldura de remate de um pavimento musivo que se
é feita pela ala oeste do peristylium (h), com soleira perspetiva identificar em futuras escavações.
(posteriormente emparedada) seguida por uma ins- O compartimento (n) é uma sala de grandes dimen-
crição com duas linhas de texto (Encarnação, Vicen- sões, com pavimento em opus signinum, com uma
te, 2019), voltadas para quem entrava nesta sala (Fig. abertura/porta monumental que dá acesso à ala oes-
6). No centro da inscrição surge uma grande lacuna, te do peristylium (h).
possivelmente associada ao desgaste da zona de O compartimento (o, o’ e o’’) é composto por três
passagem ou à destruição intencional, por fazer re- áreas distintas, umas das quais absidada, separadas
710
parietal, como acontece na zona mais antiga da habi- peristylium da villa – trata-se do embasamento de
tação, contudo, julgamos que terão sido rebocadas, uma estrutura de um edifício humilde, feito com pe-
mas com um material de menor qualidade. dra irregular da região, associado a um pavimento
Por fim, num período mais tardio, finais de século IV exterior, construído com material romano, tegulae e
d.C., testemunhamos a colmatação de diversas lacu- tijoleiras (Fig. 8). A segunda estrutura é identificada
nas com opus signinum de muito boa qualidade. É o como uma eira, feita com pedras talhadas, provavel-
caso dos mosaicos do compartimento (j), que apre- mente reutilizadas da villa (Vicente, 2020, 2021).
senta o centro do painel e a inscrição junto à soleira Dada a escassa cultura material nas unidades es-
da porta com uma boa área coberta com este mate- tratigráficas ligadas a estas duas estruturas é ainda
rial. Finalmente, e não muito longe deste período, a prematuro associá-las ao ermitério/convento Fran-
riqueza e opulência da casa, nos inícios do século V ciscano. Ainda assim, através da História Seráfica,
d.C, terá desaparecido e dado lugar a tempos de ca- de António Soledade (1750) sabemos que este con-
rência e reduzida capacidade financeira. Os investi- vento é formalizado no Ramo Observante em 1448,
mentos nos mosaicos revelam falta de mão de obra referindo o autor que Frei João Pombal, 1º Vigário
experiente ou capaz para executar as reparações ne- Provincial dos Observantes (Góis, 2009:102) passa
cessárias (Vicente, 2021). uma temporada no «[…] Convento de S. Francisco da
As reformas ao longo dos séculos terão sido motiva- Ribeyra do Ver […]» (Soledade, 1750, p.42). Esta es-
das por vontade dos seus proprietários, mas outras tadia deveu-se à missão de edificar cinco conventos
terão sido realizadas por necessidade, para solucio- dedicados à Regra Observante, com permissão ob-
nar problemas estruturais na habitação. tida em Bula Papal pelo Pontífice Eugénio IV (1431-
1447), depois de no ano anterior ter reunido Capítu-
4. OCUPAÇÃO MEDIEVAL E DE ÉPOCA lo em Alenquer (Rema, 2005; Góis, 2009). «[…] que
MODERNA naõ descançaraõ, alguns Frades devotos, antes que o Vi-
gario referido […] lhe assignasse aquelle lugar por hũ dos
Durante a Antiguidade Tardia, finais do século V sinco Conventos […]» (Soledade, 1750: 42;43) - isto é,
d.C. e início do século VI d.C., a pars urbana foi ocu- que o Vigário se decidisse por aquele lugar e que o
pada por novas gentes, povos com usos e costumes contasse como um dos autorizados pela Bula. Esta
diferentes da cultura romana, observando-se a reor- ação poderá coincidir com os movimentos políticos
ganização arquitetónica de algumas áreas da habita- internos que opunham Claustrais e Observantes nos
ção (Vicente, 2021). meados do século XV, com o primeiro a tentar ga-
A título de exemplo, o compartimento do triclinium nhar maior número de casas Franciscanas à sua cau-
sofreu grandes alterações com a construção de uma sa, assim como maior independência do movimento
parede com aparelho de talhe irregular e material rival (Teixeira, 2005).
inferior, assente diretamente sobre o mosaico, re- Relatando uma vida paupérrima e a ineficácia dos
duzindo em um terço a área do compartimento. Su- serviços monásticos, Soledade (1750) justifica o
pomos tratar-se de uma remodelação tardia da ocu- abandono do espaço, por parte da ordem Francis-
pação. Pelos resultados do georadar, feitos em 2018 cana, em 1460. A degradação da qualidade de vida
(Barraca, 2018), foi possível averiguar que também e do trabalho monástico poderá estar relacionada
a área sul do compartimento foi reduzida com ou- com a morte, em 1449, de Infante D. Pedro, Senhor
tra parede. de Penela que patrocinava generosamente a estadia
Envolto ainda em algumas incertezas, temos tam- Franciscana no sopé do Monte de Vez (Gois, 2009).
bém o testemunho documental de um eremitério Para trás, o oratório, e as celas vazias, são motivo de
em São Simão, com o primeiro documento, datado romaria por parte da população local, que vê no es-
de 1235, a associá-lo a um convento Franciscano. paço um terreno sagrado, rezando orações à estátua
Ao longo dos séculos, são referidos os dois espaços do padroeiro da ordem, São Francisco.
religiosos, com imprecisões e lacunas, mas sempre A Ordem Franciscana acabaria por vender a proprie-
associados ao lugar de São Simão. dade em 1581, na angariação de dinheiro para a cons-
Durante a presente investigação foram identificadas trução do Convento de São Francisco o Novo, em
duas estruturas que nos confirmam a reocupação na Penela (Gois, 2009). António Oliveira (1889) alvitra
Baixa Idade Média. A primeira encontra-se sobre o ter sido a família Cabral a realizar a compra, e que
712
A percentagem de não-adultos torna-a uma relevan- de Conimbriga, permitindo conhecer a dispersão da
te representação, comparável com Marialva (40%), construção em meio rural e a vida no campo. Conhe-
Fão (36%) e Miranda-do-Corvo (59,4%) (Simões, ce-se para já o nome de um dos proprietários da Vi-
2021), sendo ultrapassada por Serpa (~80%) (Cunha, lla, CATVRO, inferindo-se ainda a riqueza e poder
1994, 2001; Ferreira, 2005). económico da família, evidente na opulenta decora-
ção da habitação. Contudo, este não terá sido o úni-
6. CONSERVAÇÃO E SALVAGUARDA co proprietário. Terão existido outros que deixaram
DO SÍTIO ARQUEOLÓGICO a sua marca na edificação, refletindo o gosto estético
e poder económico de cada período.
A conservação in situ de estruturas arqueológicas é Os mosaicos da Villa levantam questões quanto à sua
considerada a alternativa mais adequada para evitar autoria. O panorama musivo repetido, aqui e ali, em
a descontextualização dos vestígios. Ao longo da in- Conimbriga, Rabaçal, Santiago da Guarda e, ainda,
vestigação, a intervenção in situ tem acompanhado em vários sítios da província da Lusitânia, colocam
o processo de escavação arqueológica no sentido diversas perguntas aos investigadores, entre elas
de minimizar os danos associados e permitir uma destacamos a origem dos seus criadores: seriam mo-
maior estabilidade aos vestígios que vão sendo colo- saicistas de oficinas itinerantes ou oficinas regionais?
cados a descoberto. Tratamentos, como a limpeza, Esta e outras questões deverão ser respondidas com
consolidação e remate das áreas de lacuna e limites a continuidade da investigação.
dos pavimentos, são ações consideradas prioritárias A localização da pars urbana, poderá ajudar na per-
e de urgência, como resposta imediata face às neces- ceção de uma das causas que motivou a destruição
sidades dos vestígios expostos (Fig. 10). deste espaço. Foi construída no leito de cheia do rio
O objetivo da nossa intervenção é assegurar a so- Dueça, tratando-se por isso de uma edificação vul-
brevivência e conservação das estruturas arqueoló- nerável, pois nos invernos mais perlongados e chu-
gicas, facilitando a melhor compreensão do espaço, vosos, seria frequente as águas galgarem as margens
proporcionando uma visão de conjunto, para estu- do rio, dando origem a inundações nos terrenos agrí-
do e fruição. Pretende-se devolver a estabilidade colas e consequentemente na habitação romana. Es-
estrutural das salas, restituindo a coesão das estru- tas inundações seriam e continuam a ser benéficas
turas e pavimentos, assim como devolver uma apa- para a atividade agrícola, no entanto, a conservação
rência semelhante ao aspeto original, assumindo as desta estrutura terá ficado comprometida. As vicis-
intervenções efetuadas ao longo das diferentes fa- situdes da ocupação desta villa ainda são pouco co-
ses de ocupação e a degradação natural produzida nhecidas, mas é-nos já possível afirmar que algumas
pelo passar do tempo, primando sempre pela míni- das reconstruções/remodelações ocorridas neste es-
ma intervenção. paço estarão intimamente ligadas à presença abun-
Os vestígios arqueológicos conservados in situ estão dante de água.
agora protegidos no interior de uma estrutura pro- A reocupação na antiguidade tardia e presença de
jetada para o efeito, preservando-os dos fatores de uma população com costumes diferentes aos dos
degradação externos, sendo a primeira exigência su- romanos, retiraram a opulência que em tempos se
prida ao nível do plano de conservação preventiva. observou, facilitando a degradação/destruição do sí-
A estrutura de proteção permite, ainda, o acesso ao tio. A adaptação de várias áreas da villa modificaram
público, a continuidade dos trabalhos de escavação a habitação, tirando-lhe o encanto e funcionalidade
arqueológica, estudo e manutenção. Esta medida de outrora.
pode e deve ser entendida como parte de uma estra- Após o abandono e desmoronamento do edifício, o
tégia global de valorização do património histórico espaço terá servido como chão consagrado por fran-
cultural, apoiada na investigação e conservação dos ciscanos, dando lugar a uma grande necrópole de
vestígios arqueológicos. época moderna (século XV-XVII), associada a uma
pequena capelinha com orago diferente ao que seria
7. CONCLUSÃO originalmente. O estudo antropológico, em curso,
dos indivíduos pode fornecer um alargado leque de
A Villa romana de São Simão vem acrescentar mais informações sobre as condições socioeconómicas
alguns dados à ocupação romana do vasto território da população nos finais da Época Medieval e início
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716
Figura 4 – Planta da pars urbana.
718
Figura 7 – Mosaicos do compartimento (o, o’, o’’). © Francisco Pedro.
720
Figura 10 – Trabalhos de conservação e restauro in situ.
RESUMO
O sítio arqueológico da Telhada, na freguesia de Vermoil (Pombal), começou por ser intervencionado no âmbito
do projecto de doutoramento de João Pedro Bernardes, que desenvolveu o PNTA/98 “A Civitas de Collipo – Po-
voamento, Metalurgia e Arqueomagnetismo”. Mais tarde, Maria Pilar dos Reis efectuou uma curta campanha
de limpeza e prospecção, em 2016. Classificado como vicus, ou mansio, tanto quanto conhecemos sem termas,
com ocupação identificada de finais do século I até, pelo menos, ao século V, este sítio revela-nos informação
sobre a ocupação rural do interior da civitas de Collipo, conforme assinalado em estudos já publicados. As estru-
turas arquitectónicas que se conhecem no local indicam um investimento significativo, existindo uma abside de
6,80 metros de diâmetro interno com pavimento em opus signinum.
Em estreita articulação com a Câmara Municipal de Pombal e a Junta de Freguesia de Vermoil, iniciaram-se em
2023 novas intervenções arqueológicas. Estas tiveram como objectivo principal uma primeira avaliação do sítio
arqueológico da Telhada, através de uma limpeza cuidada que permitiu expor e melhor compreender as estrutu-
ras previamente escavadas. Adicionalmente, procedeu-se ao estudo da documentação e espólio das escavações
antigas, procurando proporcionar uma interpretação e leitura do sítio à luz dos conhecimentos actuais. Esta pri-
meira abordagem pretende aferir o potencial deste monumento e qual a melhor forma de o valorizar, de modo
a que o sítio se torne acessível ao público.
Palavras-chave: Império Romano; Valorização; Arqueologia pública; Civitas de Collipo; Rota do Sicó.
ABSTRACT
The archaeological site of Telhada, in Vermoil (Pombal), began to be intervened as part of the doctoral project of
João Pedro Bernardes, who developed the PNTA/98 “A Civitas de Collipo – Povoamento, Metalurgia e Arqueo-
magnetismo”. Later, Maria Pilar dos Reis carried out a short cleaning and surveying campaign in 2016. Classi-
fied as a vicus, or mansio as far as we know without baths, with an occupation identified from the late 1st century
until the 5th century AD, this site reveals information about the rural occupation of the interior of the civitas of
Collipo, as pointed out in studies already published. The architectural structures known at the site indicate a
significant investment, and there is an apse of 6,80 meters paved in opus signinum.
In close collaboration with the Pombal Municipality and the Vermoil Parish, new archaeological interventions
began in 2023. These had as main objective an initial evaluation of the archaeological site of Telhada through
careful cleaning, which allowed to expose and better understand the previously excavated structures. In ad-
dition, the remains from previous excavations were studied in order to provide an interpretation of the site in
the light of current knowledge. This approach aims to assess the potential of this monument and how best to
enhance it, so that the site becomes accessible to the public.
Keywords: Roman Empire; Enhancement; Public archaeology; Civitas of Collipo; Sicó route.
3. SWAD / [email protected]
4. UAlg-CEAACP / [email protected]
724
das, estas tornam-se muitas vezes difíceis de inter- As estruturas quadrangular e absidal confirmam a
pretar dada a sua pequena potência estratigráfica, observação de Bernardes (2002:216) de que os sifões
mais evidente na chamada zona residencial. No que identificados estão alinhados e de que os pavimentos
corresponde às estruturas pavimentadas de opus sig- definidos em 2023 como U.E. [24] e U.E. [25] apre-
ninum, de acordo com Bernardes (2002:211) terão sentam uma pendente de escoamento para Oeste.
ambas sido cobertas por telhas resultantes do der- Segundo este investigador, a maioria do espólio re-
rube da cobertura. A lógica arquitectónica utilizada cuperado no interior da estrutura absidal correspon-
aponta para a contemporaneidade na construção de de a fragmentos cerâmicos de armazenagem e a um
ambos os espaços – a abside e a estrutura quadran- fragmento de coluna estriada com foculus, que foi in-
gular – estimando-se que terão sido erigidas no sé- terpretada como sendo um altar para pequenas liba-
culo IV. Esta ideia é suportada pela presença de uma ções. No exterior da abside, foram recuperados pelas
moeda de Constantino datada de 319 ou 320, encon- intervenções de João Pedro Bernardes e Maria Pilar
trada na camada de enchimento dos alicerces das dos Reis vários restos de animais domésticos e sel-
estruturas. No entanto, a construção destes edifícios vagens, além de conchas de ostra. Assim se justifica-
terá sido feita através do aproveitamento de estrutu- ria talvez a utilização destes espaços pavimentados
ras anteriores datadas do Alto Império, como indica- como zonas de refeição em que os dejectos seriam
do pela presença de algumas pedras reaproveitadas despejados para o chão, havendo a necessidade de o
– como aquela onde é visível um olheiro onde giraria limpar com frequência, daí a presença de sifões e a
o gonzo de uma porta na estrutura absidal – e dada inclinação do pavimento (Bernardes 2002).
a presença de alguns materiais fragmentados dessa Porém, dado o nosso acesso aos elementos faunísti-
cronologia (Bernardes 2002:213). cos recolhidos por Maria Pilar Reis, na sua interven-
Desta forma, Bernardes (2002:215) considera que ção de 2017, aquilo que verificamos é que todos os
existem estruturas que pertencem a duas fases restos são de grande dimensão. Fazendo a ressalva
constructivas distintas. A primeira fase é datada da que desconhecemos a proveniência exacta destes
segunda metade do século I e está essencialmente vestígios, mas assumindo que corresponderão à des-
representada na área residencial, o que é deduzido crição de Bernardes (2002) sobre a fauna recupera-
sobretudo pela presença de cerâmica cinzenta fina da no exterior da abside, aquilo que nos parece evi-
e terra sigillata datadas dos séculos I e II (Bernar- dente é que elementos desta dimensão – como, por
des 2002:215). De igual modo, aqueles muros que exemplo, mandíbulas completas de vaca (Bos tau-
Bernardes (2002:215) identifica como estando re- rus) – teriam dificuldades em serem escoados atra-
presentados nas quadrículas N4, N5, R4, R5 e que vés dos sifões correspondentes às nossas U.E.’s [31]
correspondem respectivamente às unidades estrati- e [32](Fig. 4). Adicionalmente, parece-nos que há
gráficas (U.E.’s) atribuídas em 2023 [12], [11], [23] e um grande investimento na criação de infraestrutu-
[24], foram originalmente interpretadas como sen- ras – como paredes, muros em abside e pavimentos
do restos de edifícios do Alto Império, com orien- em opus signinum – para uma utilização como apenas
tações distintas daqueles do Baixo Império, e que espaço de refeições.
terão sido demolidos e reaproveitados nas constru- Adicionalmente a presença do canal de água – defi-
ções do século IV. nido em 2023 como U.E. [16] – integrado nas cons-
Quanto ao tipo de função do edificado visível, parece truções da zona residencial, o altar de libações recu-
não haver dúvidas quanto à parte Este do sítio, onde perado no interior da abside, as estruturas absidal e
se encontram as fundações de uma área residencial, quadrangular e a proximidade do sítio arqueológico
nesta área onde se recolheu a maior parte de cerâmi- com a calçada romana que se encontra nas suas ime-
ca de “ir à mesa” (Bernardes, 2002:216). Além disso, diações e que ligaria Collipo a Conimbriga (Ferreira,
existem alguns elementos que parecem evidenciar 2010) podem sugerir outras potenciais utilizações.
a presença de compartimentos, dada a formação de
vários cantos de ângulos rectos, como por exemplo, 3. HIPÓTESES INTERPRETATIVAS DO SÍTIO
com as U.E.’s [2], [7], [8], [9]. Parece igualmente ARQUEOLÓGICO DA TELHADA
apoiar esta interpretação aquilo que se afigura como
uma potencial porta formada pelas U.E.’s [8], [14], Antes de mais é de referir que este sítio arqueológi-
[15], [18] e [20] (Fig. 4). co não deverá estar escavado na sua totalidade, pelo
726
deverá ser desenvolvida para que se possa valorizar CARDOSO, Guilherme e ENCARNAÇÃO, José d’ (1990) –
devidamente as Ruínas Romanas da Telhada. Para Cascais no tempo dos romanos. In Revista de Arqueologia.
já e quanto a nós, o sítio é de inegável valor patri- Lisboa. 1, p. 5974.
monial, podendo contribuir para uma melhor com- CORREIA, Virgílio Hipólito (2016) – A arquitetura do oci-
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Figura 2 – Levantamento do sítio arqueológico por drone em Abril de 2023. Autores: João Vidigal e Mariana Nabais.
728
Figura 3 – Levantamento topográfico do sítio arqueológico em Abril de 2023. Autores: João Vidigal e Mariana Nabais.
Figura 4 – Identificação das unidades estratigráficas do sítio arqueológico. Autores: João Vidigal e Mariana Nabais.
RESUMO
Ao longo das últimas décadas, o estudo e o comércio dos materiais de revestimento tem vindo a adquirir um
lugar de destaque na arqueologia romana peninsular e demonstrado a importância do comércio, circulação e
distribuição destes bens na Hispânia. Mais evidente nas restantes províncias, o estudo dos materiais de revesti-
mento na província da Lusitânia, especialmente no que respeita ao território nacional, encontra-se ainda numa
fase embrionária, circunscrito a escassos locais, na sua maioria resultante de intervenções antigas, depositadas
em fundos de museus e com fortes carências de documentação de referência. A publicação destes materiais é
igualmente reduzida face às incertezas da sua correta classificação e identificação, bem como pela falta de aná-
lises que permitam reconhecer a sua origem. A necessidade de sistematizar e caraterizar os diferentes materiais
de revestimento e litotipos presentes na arquitetura pública e privada da província da Lusitânia resultou no de-
senvolvimento do projeto Gorgona – Corpus de litotipos de revestimento ornamental da Lusitânia. O objetivo deste
projeto prende-se com a inventariação e classificação dos materiais de revestimento identificados no espaço
provincial, presentes em sítios arqueológicos, museus e/ou outros locais e rastrear a sua origem, peninsular e/
ou de importação, sob critérios tipificados, com vista a uma caracterização precisa. Pretende-se com esta comu-
nicação efetuar a apresentação do projeto, que resulta de uma iniciativa do Museu de Lisboa – Teatro Romano /
EGEAC em parceria com o LNEG / Museu Geológico e IST/UL – Museus de Geociências e beneficiando da
interdisciplinaridade entre a Arqueologia e a Geologia, numa análise histórica e analítica, por forma a criar um
corpus informativo de referência.
Palavras-chave: Opus Sectile; Lusitânia; Litotipos; Ornamentação.
ABSTRACT
Over the last few decades, the study and trade of stone coating materials has acquired a prominent place in
peninsular Roman archaeology, demonstrating the importance of trade, circulation, and distribution of these
materials in Hispania. Although more advanced in other provinces, its study in the province of Lusitania, espe-
cially with regard to the national territory, is still in an embryonic phase, limited to a few samples and places,
essentially associated to ancient surveys deposited in museum fund, with scarce reference documentation. The
bibliography on these materials is also rare due to the uncertainties of their correct classification and identifica-
tion, as well as the lack of analyses that allow their origin to be recognized. From the need to systematize and
characterize the different coating materials and lithotypes in public and private architecture in the province
of Lusitania the Gorgona project – Corpus of ornamental coating lithotypes in Lusitania was born. Its main
purpose is the inventory and classification of the coating materials identified in the provincial space in archaeo-
logical sites, museums and/or other spaces, while tracing their origins, local, Peninsular and/or import, under
typified criteria. The aim of this communication is to present the project led Museu de Lisboa – Teatro Romano /
EGEAC in partnership with LNEG / Museu Geológico and IST/UL – Museus de Geociências, benefiting from
the interdisciplinarity between Archaeology and Geology, in a historical and analytical analysis, to create an
informative corpus of reference.
Keywords: Opus Sectile; Lusitania; Lithotypes; Ornamentation.
732
e matérias ornamentais e a sua utilização na arqui- noroeste – sudeste definidas por quadrados inscritos
tetura pública e privada se encontra mais detalhado. em quadrados menores intercalados por molduras
Ficou igualmente clara a dificuldade da identifica- de retângulos e faixas de quadrados, divididos em
ção dos litotipos, baseada sobretudo em estudos quadrados menores, definindo uma composição em
comparativos com poucas ou quase nenhumas bases opus sectile – técnica de ornamentação arquitetónica
analíticas, dando azo a classificações por vezes in- que consiste no recobrimento de superfícies com
corretas, ou à integração em designações genéricas placas de mármore ou outros materiais pétreos, cor-
sem critérios de inventariação bem definidos. Mui- tados em formas geométricas, vegetais ou figuradas
tos destes materiais são fragmentos de reduzida di- (Fernandes, Grilo, 2019, p. 18).
mensão, oriundos de níveis de deposição secundária Os motivos geométricos mais complexos – padrão
e descontextualizados da sua função original, fato- modular 5 da tipologia de Pérez Olmedo (1996, p.
res que não auxiliam à sua identificação ou de uma 239, fig. 11) – dispõem-se em duas fiadas com uma
análise detalhada. orientação noroeste - sudeste. O restante pavimento
apresenta quadrados compostos por quadrados me-
3. A INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA E A nores no seu interior, igualmente delimitados por
COLEÇÃO DE LITÓTIPOS IDENTIFICADA placas retangulares.
É usual pavimentos em opus sectile possuírem zonas
Como mencionado a intervenção arqueológica em centrais mais ornamentadas que outras, constituin-
causa, em local muito próximo à entrada principal do o que se designa por emblemata. Estas duas fia-
nascente do monumento cénico (aditus maximus), das podem corresponder ao centro da composição,
permitiu a identificação do que interpretamos ser possibilitando, assim, desdobrar a composição para
um edifício de culto, em estreita associação ao pró- o lado poente do edifício. Deste modo, apesar de não
prio teatro. A fundamentação religiosa subjacente ter sido possível identificar os limites da estrutura,
a tais edifícios de espetáculo justifica a presença de alguns indícios possibilitaram a sua provável loca-
edifícios de culto nas suas proximidades, à seme- lização. Do mesmo modo, a ausência das originais
lhança do que ocorre em múltiplos casos, mencio- lajes de pedra, que terão composto o pavimento, não
nando tão somente a aula sacra do teatro de Mérida foi impeditivo nem para a reconstituição do padrão
ou com o templo de Apolo junto ao teatro de Marce- geométrico, nem do reconhecimento dos litótipos
lo, em Roma, quando não se presencia a sua inclusão aí empregues (Fig. 5). Para esta última situação con-
no interior do próprio edifício cénico, como ocorre e correu a presença de variados fragmentos de crustae,
apenas como ilustrativo, com o sacellum do teatro de certamente desperdícios de talhe, que foram reutili-
Mérida, o templo dedicado a Venus Victrix no teatro zados como elementos niveladores da colocação das
de Pompeu em Roma, ou ainda o caso paradigmáti- lajes do pavimento. Foi precisamente a análise de
co do santuário do teatro de Pietravairano em Itália. tais litótipos que possibilitou a identificação da sua
Na verdade, o que se identificou não foi o pavimento variedade e origem.
de opus sectile, antes um nivelamento de argamassa
extensível a toda a área intervencionada, apenas “re- 4. O CORPUS
cortado” pelas fundações do edifício atual, encon-
trando um desenvolvimento regular no qual eram Para colmatar as lacunas da investigação relativas a
bem visíveis os negativos deixados pelas placas de esta temática e potenciar uma leitura abrangente so-
revestimento na argamassa, ainda fresca aquando bre este tipo de pavimentos, mas simultaneamente
da sua colocação (Fig. 4). rigorosa, foi pensado e criado um sistema gerencia-
Em alguns locais estes negativos apresentavam-se dor de dados para os litotipos representados na pro-
bastante bem conservados (área sudoeste do atual víncia, com vista à determinação das suas origens e
imóvel), enquanto na parte nascente e norte eram o estudo das suas redes de circulação e comércio.
menos visíveis, ainda que tenha sido possível recu- Desde o início deste projeto se afigurou fundamen-
perar a reconstituição quase integral do padrão ori- tal que esta ferramenta de gestão de dados congre-
ginal. Estes negativos definiam um esquema com- gasse a informação arqueológica e geológica relativa
plexo, composto por duas faixas centrais orientadas aos materiais pétreos e de revestimento, conside-
734
– Sistema de Informação e Gestão Arqueológica da projeto de investigação. Deste intento nasceu a ima-
DGPC, e abertos em alguns campos específicos. gem que se mostra com diferentes aplicações (Fig. 7).
A importação e análise dos dados inseridos permiti- A designação do projeto toma o nome de “Górgona”,
rá quer o estabelecimento de consultas e buscas di- uma das três Medusas da mitologia grega, embora
retas sobre litotipos e/ou locais em específico, e pos- cada uma delas pudesse ser considerada como uma
teriormente, a construção de mapas de distribuição trindade ou forma tripla de tradição arreigadamente
dos diferentes materiais. antiga. Um dos atributos era o seu frondoso cabelo
que, segundo a lenda, foi transformado em serpen-
5. O ESTADO DA ARTE DO PROJETO tes quando a deusa Atena se enfureceu com ela de-
GÓRGONA vido à relação amorosa tida com o deus Poseidon.
Conta o mito que quem se atrevesse a olhar para a
O projeto Górgona encontra-se ainda em fase inicial, Górgona imediatamente se transformaria em pedra.
estando previsto para final do corrente ano o carre- As serpentes são, nesta apropriação da sua simbo-
gamento dos dados disponibilizados na bibliografia logia, entendidas como como tentáculos do conhe-
científica, aludindo-se às publicações originais onde cimento, que procuram novos e escondidos cami-
estes são referenciados pela primeira vez, bem como nhos na tentativa de obter mais informações. Por
a trabalhos mais recentes que têm permitido avan- outro lado, a faceta de tudo transformar em pedra
çar com novas classificações para alguns litotipos pareceu-nos extremamente curioso pois são precisa-
(Fernandes et al., em publicação). Estão atualmente mente os vestígios pétreos que nos interessam e que
referenciadas amostras do Teatro Romano e Rua da constituem o nosso campo de estudo.
Saudade, em Lisboa, da cidade romana de Conim-
briga, recolhidas nas escavações Luso-Francesas 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
(Alarcão, Étienne, 1977), da Casa dos Mosaicos em
Setúbal (Silva & Soares, 2018), Quinta das Longas, A apresentação do projeto Górgona à comunidade
Elvas (Nogales Bassarrate et al. 2004), Pisões, Beja, científica, é uma oportunidade de divulgar e promo-
(Couto, 2007), Ammaia (Taelman et al., 2012; Tael- ver a investigação sobre este tema, cujos dados pu-
man, 2014) e, por fim, Milreu (Teichner, 2008). Sa- blicados são ainda escassos e em fase embrionária.
liente-se, em relação a este último caso, a identifica- Por outro lado, a sensibilização de investigadores e
ção de um enorme conjunto de amostras líticas que instituições para esta matéria busca o desenvolvi-
se encontrava depositado no Museu Décio Thadeu, mento de parcerias com vista à obtenção de dados
atualmente Museus de Geociências do Instituto Su- de distribuição de largo espectro para a Lusitânia
perior Técnico e que se veio a confirmar ser prove- desde circuitos comerciais, redes de clientela e su-
niente de Milreu. cursais a ateliers especializados, bem como deter-
Estes são os locais referenciados bibliograficamen- minar cronologias para a circulação e comércio des-
te até ao momento, contando quase todos eles com tes bens.
amostras diversificadas. Não obstante, mesmo para Esta premissa apenas é viável com a inventariação e
alguns destes sítios arqueológicos, como o caso de classificação do maior número de amostras possível,
Conimbriga ou Pisões, não se encontra publicada alicerçada quer nos dados da bibliografia, dos fun-
a totalidade dos conjuntos conhecidos, sendo, por- dos de museus e das múltiplas intervenções arqueo-
tanto, uma imagem parcelar a que poderá para já lógicas, pelo que é também um repto à participação
ser fornecida. da comunidade científica no desenvolvimento desta
Em processo de introdução no Corpus, pretende-se ferramenta aberta e de divulgação pública que se
tentar junto dos depósitos e fundos de museus recu- pretende acessível a partir de qualquer repositório,
perar outras informações pertinentes além de, natu- suportada em critérios de classificação analítica.
ralmente, alargar o espectro de locais com presença Tal como outras ferramentas de inserção, gestão e
destes materiais. distribuição de dados e disponibilização online já
Paralelamente foi trabalhada a imagem deste projeto testadas e em funcionamento para alguns materiais
de investigação, tendo sido solicitado à empresa de arqueológicos, o paulatino alargamento do número
design “atelier-do-ver“, a criação de um grafismo e de amostras oriundas de diferentes locais, tipifica-
de um logotipo que corporalizasse a imagem deste das e classificadas permitirá estabelecer análises de
ALARCAO, Jorge de; ÉTIENNE, Robert (1977) – Fuilles de TAELMAN, Devi (2014) – Contribution to the use of marble
Conímbriga, La Architecture, vol. 1, Paris: Du Boccard. in Central-Lusitania in Roman times: The stone architectur-
al decoration of Ammaia (São Salvador da Aramenha, Portu-
COELHO, Catarina (2009)– Colaride: A Roman quarry at
gal), Archivo Español de Arqueología: 87, pp. 175-194.
the Municipium Olisiponensis. In NOGALES BASARRATE,
Trinidad and BELTRÁN, José (Coords.) Marmora Hispana: TAELMAN, Devi; VERMEULEN, Frank; De DAPPER, Mor-
Explotación y uso de los materiales pétreos en la Hispania Ro- gan and De PAEPE, Paul (2012) – The Stones of Ammaia: Use
mana, Roma, pp. 523-543. and Provenance, en GARCIA-MORENO, Anna G.; LAPU-
ENTE, Pilar y RODÀ, Isabel (Coords.), Interdisplinary Stud-
COUTO, Maria Bernardete (2007) – Balnevm da Villa Ro-
ies on Ancient Stone. Proceedings of the IX Association for the
mana de Pisões – Análise Formal e Funcional. Dissertação de
Study of Marbles and Other Stones in Antiquity (ASMOSIA)
Mestrado em História da Arte, Faculdade de Ciências So-
Conference (Tarragona 2009), Tarragona: pp. 117-126.
ciais e Humanas Universidade Nova de Lisboa. Lisboa.
TEICHNER, Felix (2008) – Zwischen Land und Meer – Entre
FERNANDES, Lídia (2017) – Soluções de pavimentação no
tierra y mar. Studien zur Architektur und Wirtschaftsweise län-
teatro romano de Lisboa, Debaixo dos Nossos Pés – Pavimentos
dlicher Siedlungen im Süden der römischen Provinz Lusitanien,
Históricos de Lisboa, Lisboa: Museu de Lisboa, pp. 100-103.
Studia Lusitana 3, Merida.
FERNANDES, Lídia; GRILO, Carolina (2019) – Um Templo
Romano junto ao Teatro de Felicitas Iulia Olisipo / Lisboa, Re-
vista Almadan, 2ª série: 22, Almada: pp. 16-22.
736
Figura 1 – Vista do Museu de Lisboa – Teatro Romano (sala de exposições de longa duração). Foto: José Avelar – Museu de Lisboa.
Figura 4 – Vista geral do nível de assentamento do pavimento com as crustae e os negativos do desenho do opus sectile. Foto:
José Avelar – Museu de Lisboa.
738
Figura 5 – Modelação 3D do pavimento em opus sectile do templo da Rua da Saudade 6 com os litotipos representados. Carlos
Cabral Loureiro – Museu de Lisboa.
Figura 6 – Página da base de dados em Access com o esquema relacional de alguns dos campos de preenchimento.
740
VILLA ROMANA DA HERDADE
DAS ARGAMASSAS. DELTA, MOTIVO
DE INSPIRAÇÃO SECULAR. DO MOSAICO
AO CAFÉ
Vítor Dias1, Joaquim Carvalho2, Cornelius Meyer3
RESUMO
A Villa romana da Herdade das Argamassas, localizada na freguesia de São João Baptista, concelho de Campo
Maior, regista interessantes potencialidades patrimoniais e proveitosa próximidade com o Centro de Ciência do
Café. O presente estudo enquadra-se no âmbito dos trabalhos arqueológicos desenvolvidos entre setembro de
2015 e setembro de 2016, cuja metodologia incluiu sondagens arqueológicas e prospeção geofísica.
Desde o início dos trabalhos, na sequência do contacto da entidade contratante Delta Ciência e Desenvolvi-
mento, que se pretendeu reavaliar a dimensão e o potencial científico-patrimonial e respetivo índice de preser-
vação/conservação das estruturas arqueológicas já escavadas em intervenções anteriores.
Apresentam-se neste contexto os resultados dos estudos sobre esta vila ainda numa fase embrionária do seu
conhecimento científico.
Palavras-chave: Vila romana; Mosaicos, Geofísica, Pars urbana, Musealização.
ABSTRACT
The Roman Villa “Herdade das Argamassas” located at São João Baptista, Campo Maior, in the proximity of the
Coffee Science Centre – Delta Science & Development, presents an enormous patrimonial potential. Here we
describe the main findings of the geophysical prospecting and archaeological surveys conducted at “Herdade
das Argamassas” between September 2015 and September 2016.
The archaeological work developed, sponsored by the Delta Science & Development Association, aimed at re-
assessing building volumetries, determining preservation/conservation indexes and evaluating the scientific-
heritage potential of the archaeological structures discovered in previous excavations. In this context, we pre-
sent the main results obtained on this Roman Villa, which is still at an early stage of scientific discovery.
Keywords: Roman Villa; Roman mosaics; Geophysics; Pars urbana; Musealization.
1. A VILLA ROMANA DA HERDADE DAS forme ficha existente no portal do arqueólogo, CNS
ARGAMASSAS. INTRODUÇÃO, OBJETIVOS, n.º 4427. Neste portal é possível visualizar a seguinte
METODOLOGIA E ENQUADRAMENTO descrição: «Este sítio romano consiste numa villa de
DOS TRABALHOS época romana imperial cujo espólio datante permite
estabelecer uma baliza cronológica muito lata que se
O sítio arqueológico da Herdade das Argamassas situa entre o séc. I e o séc. VI, embora a morfologia
localiza-se na freguesia de São João Baptista, con- e a riqueza decorativa de alguns compartimentos da
celho de Campo Maior, na Herdade com topónimo pars urbana indiciem uma cronologia tardia, centra-
idêntico, correspondendo a uma villa romana con- da no séc. IV/V».
742
gens de alta resolução em diferentes profundidades 2. RESULTADOS DOS TRABALHOS
do solo. O posicionamento e localização dos dados ARQUEOLÓGICOS
foi realizado pelo uso de um sistema DGPS. Utilizou-
-se uma base “rover” com antena Forsberg ReAct e A Villa romana da Herdade das Argamassas, locali-
receptores GNSS. Com a acoplagem de um sistema zada na proximidade da Delta Cafés, do Centro de
RTK e a utilização de pontos topográficos fixos na Ciência do Café e da Adega Mayor tem o acesso am-
área da Herdade das Argamassas a precisão absoluta plamente facilitado pela EN 371, que confronta com
ficou salvaguardada uma pequena margem de erro a unidade fabril de transformação do Café Delta.
de posicionamento relativo entre 2 a 20 cm apenas. O enquadramento fisiográfico é essencialmente flo-
A prospeção completa do sítio arqueológico permi- restal e agrícola apesar da proximidade da unidade
tiu a leitura e interpretação nos espaços localizados fabril. A paisagem demonstra diversidade geológica,
entre as oliveiras e avaliada através de prospeção modelada pela exploração florestal, essencialmente
magnética. Foi utilizado um equipamento móvel oliveira e vinha, assinalando proximidade com a ci-
com rodas para as medições magnéticas utilizando dade de Campo Maior (3500 m) e com a povoação
uma matriz de 6 a 8 gradiómetros fluxgate FEREX. de Nossa Senhora dos Degolados (3000 m).
Perfil de distância de 50 cm e o ponto de distância Apesar dos índices de afetação agrícola e florestal
em linha 5 cm. A aplicação desta metodologia permi- registados, os resultados são esclarecedores quanto
tiu a integração das ocorrências patrimoniais identi- ao elevado potencial patrimonial e científico do sí
ficadas nas sondagens arqueológicas de 2002. tio arqueológico.
A escavação arqueológica foi implementada no lo- Esta avaliação desenvolvida pelos autores consu-
cal confinado pelo compartimento do triclinium mou-se na realização de prospeção geofísica na
identificado na cartografia das escavações ante- área adjacente às anteriores sondagens arqueológi-
riores (2002/2003). O objetivo foi possibilitar uma cas desenvolvidas por diversas equipas. O trabalho
leitura arqueológica “open-area” de todo o com- de campo e consequente registo dos dados obtidos
partimento seguindo os conceitos definidos por pela equipa de Cornelius Meyer possibilitou verifi-
Philip Barker. Esta definição visou tentar recolher car a existência de diversas estruturas arqueológicas
o máximo de informação possível dos mosaicos já soterradas e determinar parcialmente a extensão e
parcialmente escavados perspetivando uma leitura possíveis limites da pars urbana, bem como de uni-
espacial e diacrónica. dades de apoio que provavelmente associadas à pars
Em relação à leitura estratigráfica foram seguidos os rustica ou mesmo à pars frumentária.
princípios estratigráficos de E. C. Harris, consistindo A metodologia aplicada possibilitou uma eficaz ava-
na remoção das unidades estratigráficas [UE’s] pela liação patrimonial do sítio arqueológico, ampliando
ordem inversa da sua deposição. a informação arquitetónica e espacial da Villa ro-
Esta estratégia global, que regeu a intervenção, teve mana da Herdade das Argamassas. Estes trabalhos
como objetivo principal a compreensão espacial e cumpriram o principal objetivo de (re)avaliação do
diacrónica das estruturas, com uma atenção priori- estado de conservação das estruturas e dos mosaicos
tária aos mosaicos e possíveis revestimentos parie- identificados em escavações anteriores.
tais, primando o geral sobre o particular e procuran- Os resultados alcançados com a prospeção geofísi-
do em todo o momento a inserção geo-histórica e ca permitiram validar a continuidade das estruturas
tipológica do registo, fazendo a relação com o regis- murais da propriedade agrícola romana, para além
to estratigráfico da própria escavação. das áreas escavadas nas sondagens arqueológicas.
Para além do registo fotográfico foram igualmen- Este registo comprovou o potencial arqueológico e
te realizados levantamento fotogramétrico e a sua patrimonial do sítio mesmo depois de ponderados
transformação em modelos tridimensionais. os impactes suscitados pela exploração florestal e
O espólio recolhido foi objeto de contabilização agrícola contemporânea. Os índices de conservação
geral e por UE, caracterização crono-tipológica e das estruturas murais foram desde o início da pre-
ilustração por fotografia ou desenho das peças mais sente intervenção uma questão de crucial importân-
importantes tendo sido acondicionado entre as ins- cia para avaliar a pertinência de desenvolver novas
talações da Delta Cafés e a Fundação Cidade Am- ações e estudos arqueológicos. A qualidade cientí-
maia, de acordo com a legislação em vigor. fica dos dados da prospeção geofísica e o índice de
744
saicos. Pelas características do registo arqueológico Identificados e ponderados os resultados arqueoló-
indiciarem a afetação mecânica desta área optou-se gicos e os impactes patrimoniais desenvolvidos pela
por confirmar esta possibilidade e sequência sedi- exploração agrícola e florestal, consagra esta equa-
mentar, somente numa fase posterior da investiga- ção de forma eloquente o interesse patrimonial da
ção do sítio. Villa romana da Herdade das Argamassas.
O compartimento em análise regista as seguintes Face ao exposto, considera-se pertinente tentar al-
dimensões, largura: 8,26 m limite exterior, 7,06 m li- cançar ilações sobre as diversas funcionalidades do
mite interior, comprimento: 10,13 m limite exterior, espaço romano rural, registar o método construtivo,
8,95 m limite interior. Somando a semicircunferên- matérias-primas utilizadas na edificação das estru-
cia da abside e respetivo raio: 4,20 m, prefaz o tricli- turas parietais preexistentes e desenvolver um pla-
nium no seu total cerca de 85 m2. no de trabalhos arqueológicos plurianual coerente
O compartimento está orientado no sentido W-E, com as necessidades e exigências do sítio com ob-
estando a entrada localizada a E. Segundo estas op- jetivos científicos.
ções construtivas a forma da abside projeta-se para Ponderando a realidade arqueológica conhecida até
W, no sentido oposto da semicúpula ou abóbada, ao momento, a natureza e características do local,
que certamente completaria o remate superior des- bem como o vasto potencial patrimonial e social,
te triclinium. considerámos que neste contexto se fundamenta a
continuação dos trabalhos científicos com o desen-
3. SIGNIFICADO DOS RESULTADOS volvimento de um (PIPA) Projeto de Investigação
Plurianual de Arqueologia.
Os resultados da geofísica permitiram atestar a Os objetivos dos primeiros trabalhos sempre foram
continuidade das estruturas murais da propriedade equacionar a pertinência de desenvolver e aprofun-
agrícola romana, para além das áreas já escavadas dar os estudos sobre esta vila romana ainda numa
anteriormente. A interpretação dos dados reforça a fase embrionária do seu conhecimento científico,
evidência de estarem as sondagens arqueológicas mas reveladora uma notável estrutura agrária de
localizadas sensivelmente ao centro de um gran- época romana com uma dimensão arquitetónica e
de complexo habitacional correspondente à pars patrimonial invejável. Apesar do PIPA ter sido apro-
urbana da propriedade rural romana. A escavação vado, vários motivos culminaram na impossibilidade
arqueológica integral do triclinium comprova a afe- de operacionalizar os trabalhos arqueológicos pre-
tação do mosaico e respetivos motivos geométricos vistos, facto que equacionamos retomar no futuro.
identificados na transição do século XX. Os interessantes e promissores resultados da pros-
Este registo reforça o potencial arqueológico e pa- peção geofísica aconselham a continuidade e apro-
trimonial do sítio, mesmo depois de ponderados fundamento dos trabalhos arqueológicos que impli-
os impactes suscitados pela exploração florestal e cariam a execução de diversas e multidisciplinares
agrícola. Os índices de conservação das estruturas fases de pesquisa. O projeto de investigação permiti-
arqueológicas foram desde o início da presente in- ria continuar as intervenções iniciadas em 1988, mas
tervenção uma questão de crucial importância para com uma abordagem integradora e continuada com
avaliar a pertinência de desenvolver novas ações e vista à conservação, valorização e divulgação da Vi-
estudos arqueológicos. A qualidade científica dos lla Romana da Herdade das Argamassas. Consuma-
dados da prospeção geofísica e o índice de conserva- do o presente ponto de situação é pertinente para o
ção dos painéis de mosaicos identificados nas inter- futuro planear um conjunto de intervenções inter-
venções anteriores, possibilitam validar o interesse disciplinares que harmonizem: prospeção geofísica,
patrimonial deste sítio arqueológico e simultanea- escavação arqueológica, conservação e restauro, es-
mente antever e projetar resultados que possibili- tudo de materiais e musealização digital.
tem a divulgação de conhecimento científico e con-
sequente fruição pública, aplicação e retorno social. 4. PERSPETIVAS DE FUTURO
Uma característica que se aproxima da visão holís-
tica do Senhor Comendador Rui Nabeiro, principal As perspetivas de futuro e potencialidades do sítio
mentor e obreiro da empresa Delta Cafés, fundada arqueológico são diversas, principalmente se asso-
em 1961 e integrada no Grupo Nabeiro. ciadas à coerência permitida pela ciência, os aromas
Espera-se deste modo contribuir para o desenvolvi- BRAZUNA, Sandra (2011) – A Villa da Herdade das Argamas-
mento da região e fomentar o diálogo com os diver- sas 1ºs resultados de um projecto em curso. In Arqueologia
746
do norte alentejano. Comunicações das 3ªs Jornadas, Lis-
boa, Edições Colibri/C. M. Fronteira, 2011. BA: Cong/0199.
748
Figura 2 – Aspeto geral dos trabalhos de limpeza e medições (Gnomon).
750
Figura 5 – Síntese da interpretação compósita dos dados de prospeção magnética (MAG) e de georadar (GPR níveis de profun-
didade entre os 40 e 100 cm).
752
Figura 8 – Fotogrametria do plano final do compartimento correspondente ao triclinium.
754
A ANTIGUIDADE TARDIA NO VALE
DO DOURO: O EXEMPLO DE TRÁS
DO CASTELO (VALE DE MIR,
PEGARINHOS, ALIJÓ)
Tony Silvino1, Pedro Pereira2, Rodolphe Nicot3, Laudine Robin4, Yannick Teyssonneyre5
RESUMO
A intervenção em Trás do Castelo (Vale de Mir, Pegarinhos, Alijó) permitiu a descoberta do elemento económi-
co de um estabelecimento rural, cujo estatuto continua como indeterminado (villa, aglomeração secundária?).
A construção inicial data do final do século I da nossa Era, com um primeiro abandono no final do século III.
Durante o século IV, o sítio foi re-ocupado, com a construção de novas estruturas, mas também com uma reo-
cupação de espaços do Alto Império.
As atividades desenvolvidas estão ligadas à exploração de recursos naturais, como a viti-vinicultura, a cerea-
licultura, pastorícia, etc. A ocupação tardo-antiga, que dura até ao início do século V, é também marcada pela
existência de, pelo menos, cinco depósitos numismáticos. Em 2022, a intervenção realizada permitiu descobrir
um conjunto de 1354 peças numismáticas, tanto em níveis de demolição como em níveis de solo. Este conjunto,
localizado em três espaços contíguos, estava acompanhado por uma quantidade impressionante de materiais
(objetos metálicos, de adorno, cerâmicos, com especial destaque para dolia, elementos em vidro, etc). A inter-
venção de 2023 permitiu enriquecer este conjunto de materiais. No entanto, as razões para este acumular de
materiais, muito distintos, num espaço tão limitado, coloca ainda diversas questões.
Palavras-chave: Antiguidade Tardia; Vale do Douro; Moedas; Objetos; Cerâmica.
ABSTRACT
The excavation of Trás do Castelo (Vale de Mir, Pegarinhos, Alijó) has allowed for the discovery of a production
area of a rural site, though of an undetermined type. The inicial construction dates back to the first century AD,
abandoned in the third century AD. During the forth century the site was once again occupied and new struc-
tures were built.
The economical activities present were related to wine making, cereal culture, husbandry, etc. The last occupa-
tion, that continues until at least the fifth century, is marked by the presence of at least five clusters of coins. In
2022, a total of 1350 coins were found, in both demolition and ground level contexts. This trove, located through
three different areas, was joined by an impressive and diverse group of objects, metallic, ornamental, ceramic
(specially dolia), glass, etc. The 2023 operation enabled the collection of the remaining materials. Nevertheless,
the reasons for this hoarding of very different materials, in such a limited space, still poses a number of questions.
Keywords: Late Antiquity; Douro Valley; Coins; Objects; Ceramics.
1. Service Archéologique de la Ville de Lyon (França), UMR 5138 ArAr e CITCEM / [email protected]
2. CITCEM / [email protected]
756
ço onde foram reutilizados vários elementos em con râmicas finas, as sigillatas hispânicas tardias (TSHT)
texto secundário. A função destes diversos elementos de proveniência do Vale do Douro são maioritárias.
não é clara nem, infelizmente, os materiais recolhi- As formas identificadas resumem-se a oito taças
dos nos seus interiores ou no seu entorno permitem Hisp. 4 (ou Hisp. 37T) (fig. 5, n° 1-2). Um exemplar
uma explicação simples para a sua funcionalidade. possui vestígios de linhas e de um engobe branco.
A ocupação tardia também se materializa pela reo- Foi também identificado um prato do tipo Hisp. 10.6
cupação de espaços. Este fenómeno é visível sobre- (Palol 4) (fig. 5, n° 3). Pela primeira vez, foi identifi-
tudo na zona Norte do sítio, mais precisamente em cada a presença de TS tardia Cinzenta (TSBTg) ori-
torno do lagar e da cave. Os elementos mais visíveis ginária de Braga no sítio. É uma produção com uma
são as peças cerâmicas, vítreas e, sobretudo, moe- pasta rica em mica e quartzo revestida com um en-
das. Na área a Norte do lagar foram identificados gobe cinzento mate, comum na Galiza e Noroeste
cinco pequenos conjuntos, dois no muro entre os peninsular (Morais, Fernandez, 2014 : 715). A forma
espaços 10 e 18, enquanto que os restantes três esta- identificada é uma taça com um estampilhado em
vam em diversas zonas do espaço 19, um num muro, colarinho com uma decoração de “pérolas” (fig. 5, n°
os outros dois no solo do espaço e no interior de uma 5). As peças cerâmicas de engobe branco foram tam-
estrutura negativa respetivamente (fig. 2). Estes últi- bém identificadas pela primeira vez no sítio, com
mos três conjuntos estavam associados a outros ma- fragmentos de um possível jarro (?) (fig. 5, n° 4) e o
teriais, sobretudo sob a forma de dolia, o que poderá fundo de uma pequena peça aberta. Estas produção,
apontar para um espaço de armazenamento, estan- também são originárias de Bracara Augusta (Delga-
do previstas análises analíticas para determinar os do e Morais, 2009 : 57). As cerâmicas cinzentas estão
seus conteúdos. A intervenção de 2022 permitiu a apenas representadas por um pote (fig. 5, n° 6).
descoberta de três espaços contíguos. Estavam co- Relativamente às cerâmicas comuns, as produções
bertos por uma camada de demolição que continha de pasta clara são mais abundantes, com uma série
uma grande quantidade de materiais. O espaço 20, é de formas dominadas pelos potes: pote com lábio
formado por muros grosseiros de blocos graníticos, oblíquo (fig. 5, n° 7), pote com lábio evasado, pote
sem materiais ligantes. O muro a Este foi construído com lábio amendoado vertical. As formas fechadas
sobre um muro do Alto-Império. São ainda visíveis são completadas por um pequeno cântaro e um jarro
traços de queima no solo e afloramento, demons- cuja origem provável poderá também ser Braga (Del-
trando possíveis zonas de habitat. Foi também en- gado e Morais 2009: 87). Ainda entre estas formas
terrado um dolium na zona Norte da estrutura. Aná- fechadas devemos constatar a presença de um frag-
lises analíticas feitas a uma raspagem do seu interior mento de pança com colarinho, pertencente a uma
pelo laboratório Nicolas Garnier não identificaram forma associada ao mel (Morais, 2011: 154) dos quais
nenhum tipo de produto, podendo tratar-se simples- pelo menos um tipo é conhecido em Braga (Delgado
mente de uma estrutura de acumulação de água. e Morais 2009 : 91, n° 293 a 295) (fig. 5, n° 9). Entre as
O nível de demolição que cobria esta área tinha uma formas abertas, contamos um prato de bordo curvo
grande quantidade de material no seu interior: ce- (fig. 5, n° 8) e uma tigela com lábio aberto. Estão ain-
râmicas, dolia, objecto metálicos, pesos, cossoiros, da presentes um pote com lábio extravasado em en-
mas, sobretudo, uma grande quantidade de moedas, gobe vermelho com decoração de rede (fig. 5, n° 10).
sucedendo o mesmo com o nível de solo em terra ba- As produções de pasta cinzenta contam com um pote
tida presente sob a camada de demolição. Os outros com lábio oblíquo e um segundo com bordo curvo.
dois espaços não foram alvo de intervenção comple- Entre os recipientes de armazenamento, de tipo do-
ta, tendo sido apenas removida parte da camada de lium, está presente uma grande quantidade de frag-
demolição, com uma constituição similar à que co- mentos. As tipologias identificadas no decurso do
bria o espaço 20. estudo destes materiais são as patentes na tipologia
lusitana (Quaresma et al. 2023). Num dos casos, sen-
4. OS ESPAÇOS 20, 21 E 22 do uma peça que se encontra nesta tipologia para o
mundo romano pleno, foi utilizada a tipologia cria-
4.1. A cerâmicas da para os recipientes de tipo dolium e talha do Sa-
O primeiro conjunto de materiais em análise pren- bor (Baez et al. 2016). No caso do espaço 20, foram
de-se com as cerâmicas. Dentro do universo de ce- identificados um número total de fragmentos (NTF)
758
devemos recordar o aparecimento do chocalho no 5. O ESPÓLIO NUMISMÁTICO
espaço 19 em 2021, tal como o chocalho de grandes
dimensões que apareceu em 2022 (fig. 7). Estas pe- As intervenções no sítio de Trás do Castelo nos úl-
ças ilustram dois tipos de gado, ovino e bovino. Estes timos anos foram extremamente prolíficas relati-
elementos apontam para a presença importante de vamente ao material numismático. Em 2022 foram
animais, ainda que as modalidades de produção e identificados um total de 1354 exemplares. A crono-
utilização dos mesmos ainda nos sejam complexas logia do conjunto estende-se desde o reino de Tibé-
a definir. No entanto, os chocalhos apontam para a rio até ao final do século IV, com uma moeda de Ar-
possível presença de animais de reprodução ou os cadius. A grande maioria do conjunto, cerca de 99%,
quais fosse necessário isolar. Devemos ainda assina- corresponde aos espaços 20, 21 e 22. O estudo aqui
lar a presença de uma faca, aparentemente utilizada desenvolvido não pretende ser exaustivo: um traba-
para abate de animais (fig. 8), o que contextualiza lho mais denso deverá ser empreendido posterior-
esta presença de animais no sítio para consumo. mente, quando os espaços tiverem sido escavados
No conjunto de materiais ligados à metalurgia, de- na sua integralidade. Nesta ótica, iremos enumerar
vemos assinalar os dois pequenos fragmentos do- e descrever rapidamente os diferentes conjuntos nu-
brados e martelados onde se podem observar mar- mismáticos que foram identificados no decurso das
cas de corte, sinal de uma reutilização, tal como o intervenções em Trás do Castelo.
fragmento disforme em liga de cobre do espaço 21 Dada a quantidade de material monetário desco-
demonstra. Este último objecto constitui um teste- berta e o carácter incompleto do conjunto, tendo em
munho discreto de uma possível produção de peque- conta que a zona não foi escavada até ao nível de solo,
nos objetos, ligados à reutilização de ligas metálicas. não foi possível terminar este estudo. Paralelamente,
Finalmente, o fragmento de pinça de forja, e mesmo a maioria das peças não permitem leitura imediata e
as pedras de amolar, integram-se perfeitamente necessitam de um trabalho, moroso, de limpeza.
nesta atividade metalúrgica. Os materiais que des- Foi possível realizar a limpeza de um total de 693
crevemos poderão também estar ligados aos ele- unidades: através da limpeza com um palito em
mentos de balança detetados no sítio, ainda que os bambu, foi possível remover sedimento suficiente
pesos da mesma não pudessem ultrapassar os 900 para obter leitura na maior parte dos casos. Em algu-
g. (fig. 7). Ainda que fosse possível uma outra utiliza- mas moedas, tendo em conta o nível de incrustação,
ção deste tipo de peça, de uma forma ou de outra, é foi necessária a limpeza com recurso a uma escova.
um elemento que denuncia a presença de uma ativi- Ainda que estas limpezas não alterem o estado do
dade mercantil. metal, a maioria dos numismas encontra- se num es-
Os elementos de adorno ampliam esta reflexão. Com tado extremamente frágil. Com o objectivo de evitar
a exceção de um pendente fragmentário, encontram- ao máximo alterações nas peças, as moedas foram
-se ilustrados sobretudo por contas de bracelete ou posteriormente colocadas em bolsas em papel acid-
colar que se repartem de forma homogénea entre os -free. No total, ainda serão tratadas cerca de outras
espaços 20 e 21. Foram identificadas dois tipos de co- 1200 moedas, uma vez que ainda não foi possível rea-
res, escura a castanha (5 objetos), e azuis (3 objetos). lizar uma observação detalhada de todos os materiais
A presença destas cores, tal como a variedade mor- e poderão existir peças coladas entre elas.
fológica de contas presentes, apontam, como vimos, Foi dada prioridade às moedas provindas de níveis
à época de ouro deste tipo de elementos neste perío- de revolvimento, constituídas por um pequeno con-
do na Europa continental. A sua presença em Trás do junto de três moedas em bronze do século II e um
Castelo assinala também a presença de indivíduos pequeno depósito de numismas, descoberto na mes-
ligados a modas observáveis em diversos centros ur- ma área onde foi recolhido o conjunto. Este é com-
banos do Império Romano. A presença de elementos posto maioritariamente por moedas de imitação de
de móveis (cinta de reforço e punho) e a asa de situla numismas constantinianos e, em menor quantiades,
apontam no mesmo sentido. Paralelamente, os ma- valentinianos. É interessante observar que entre os
teriais ligados às ferragens apontam para portas de numismas de imitação surgem ainda peças de pro-
grandes envergadura, tais como as chaves (fig. 8) e o dução oficial.
pitão de fixação. No espaço 20, foram recolhidas três moedas em bron-
ze do Alto Império: dois sestércios de Adriano e um
760
as do período constantiniano, que conta com 385 factos ligados à produção de metais nos mesmos
exemplares. Perante esta grande quantidade de imi- espaços onde surgiram as moedas: uma pinça de
tações, as moedas produzidas em ateliers imperiais forja, uma balança, pedras de amolar, fragmentos
representam uma quantidade ínfima, com 38 nu- de bronze e lingotes. Poderia ser este depósito de
mismas. Um lote de 84 peças foi classificado como moedas simplesmente uma reserva de matéria pri-
«incertas» devido a dúvidas sobre se as mesmas po- ma para uma forja próxima?
deriam fazer parte do lote de oficiais ou imitações. Em 2023, a intervenção não forneceu materiais que
As oficinas representadas neste conjunto são pouco permitam identificar produção de moedas na zona
representativas uma vez que as moedas foram sele- de Trás de Castelo. Paralelamente, não foram desco-
cionadas pelos seus reversos e segundo o seu estado bertos elementos que atribuam à zona em questão
geral de conservação. Assim, temos produções de um foco de recuperação e reciclagem de materiais
ateliers ocidentais, Trèves, Lyon e Roma (7 ex.), às metálicos, hipóteses que haviam sido colocadas
quais se juntam produções orientais de Nicomedia, em 2022.
Císica e Antioquia (5 ex.). Neste momento, tendo em conta as descobertas de
Em 2022, o facto de se ter descoberto uma quantida- 2023, poderemos estar perante um local com alguma
de tão grande de numerário colocou imediatamente evocação “ritual”, com a presença de três lucernas
uma série de questões, às quais esperávamos poder (duas das quais completas) e conjuntos monetários
dar resposta num futuro próximo, após a conclusão muito localizados, nos espaços 21a e 21b. Neste últi-
da fase de escavação da área onde as mesmas foram mo foram identificados e recolhidos seis conjuntos
descobertas. A presença de uma moeda oficial de distintos. O terceiro lote destes conjuntos, mais im-
Arcadius permite supor que este depósito datará, no portante quantitativamente do que os restantes, es-
mínimo, de um período entre o final do século IV e tava inserido numa peça cerâmica, uma terra sigilat-
início do século V. Todavia, poderá ser mais tardio, ta hispânica tardia, completa, mas fragmentada. Os
quando as mesmas já não seriam utilizadas, entre os restantes lotes são ainda de difícil explicação, mas
séculos V e VI? o facto de se tratarem de conjuntos relativamente
O sítio de Trás do Castelo poderá ter sido um centro pouco expressivos leva a considerar a hipótese de
de produção de moeda não oficial no final da Anti- se poder tratar de peças com um objectivo donativo,
guidade? Os indícios desta atividade não foram ain- num contexto ritual? No entanto, é ainda necessário
da descobertos, como por exemplo pela presença de um trabalho amplo de estudo dos materiais prove-
flancos metálicos virgens, como seria comum num nientes de Trás do Castelo, tal como o término da in-
local deste género (Pilon 2016: 132-145). No entanto, tervenção dos restantes espaços próximos, para po-
a não descoberta deste tipo de materiais coloca tam- dermos definir uma quadro mais coerente para estes
bém outras questões. depósitos e o seu contexto. Encontrar paralelos em
O conjunto de moedas recuperado na intervenção de Portugal para este caso será complexo. O trabalho
2022 é inegavelmente importante. No entanto, deve- minucioso de N. Conejo Delgado para a sua tese so-
mos referir a descoberta de outros cinco pequenos bre a parte meridional da Lusitânia (Delgado, 2019)
depósitos, com perfis similares, em 2015 (conjuntos 1 certamente poderá ajudar-nos a encontrar paralelos
e 2, Nicot 2021: 277-302) e 2021 (conjuntos 3 a 5, Nicot para processos de entesouramento no Vale do Douro
2021: 83-97) e para os quais ainda não conseguimos durante a Antiguidade e a Idade Média.
encontrar uma explicação fiável relativamente à sua
constituição e para a razão para a sua ocultação (em 6. CONCLUSÕES E PERSPECTIVAS
muros ou em buracos). O facto mais curioso prende-
-se com as suas quantidades: 22, 33, 5, 10 e 7 moedas, A intervenção de 2022 permitiu documentar me-
essencialmente imitações com alguns raros casos de lhor a ocupação tardia do habitat do sítio, sobretu-
espécimen oficiais. Estes conjuntos praticamente do através da descoberta de estruturas que foram
não possuíam algum valor. Qual seria o interesse de adossadas a edifícios do Alto Império. É o caso dos
esconder estas pequenas quantidades de numerário espaços 20, 21 e 22, com a construção de novas estru-
tendo em conta a quantidade de moedas descober- turas em áreas mais antigas. Embora estes espaços
tas este ano, numa zona muito próxima? não tenham sido integralmente alvo de intervenção,
Ao mesmo tempo, foram descobertos vários arte- a escavação permitiu conhecer parte das suas plan-
num contexto de depósito, num saco em fibras ve- CRUZ, Mário da (2012) – L’atelier des CTT à Bracara Augusta
getais e animais, e não disperso como caso de Trás (Braga, Portugal). Nouveau regard sur la production verrière
do Castelo. A presença de de um lote de materiais du nord-ouest hispanique », Bull. Afav, pp. 40-44.
metálicos não negligenciável deve também ser re- DELGADO, Manuela, MORAIS, Rui (2009) – Guia das cerâ-
ferido, onde se contam materiais relevantes para a micas de produção local de Bracara Augusta, Porto.
história económica rural do sítio. A sua presença e CONEJO DELGADO, Noé (2019) – Economía monetaria de
concentração levantam outras questões, tais como a las áreas rurales de la Lusitania romana. Tese de doutoramen-
de poder tratar-se de um atelier de reciclagem, algo to defendida na Faculdade de Letras da Universidade de Lis-
comum neste período e relativamente corrente no boa. Policopiada.
mundo romano. Finalmente, foi possível determi- MORAIS, Rui (2011) – A rota atlântica do mel bético e os con-
nar com maior segurança o período de abandono do textos de autarcia: vasa mellaria e colmeias em cerâmica. In
sítio, início do século V da nossa Era, devido tanto GONZALEZ AMADO, Susana (dir.), La ceramica en Galicia
de los castros a Sargadelos, actas del XIV congreso Anual, Aso-
às datações das moedas tal como da presença de
ciacion de ceramologia, del 2 a 4 de octubre de 2009, Museo
cerâmicas de importação, nomeadamente de Bra-
dos oleiros, Santra Cruz, Oleiros, A Coruna, pp. 73-86.
ga, confirmando as relações entre o Vale do Douro e
LEMOS, Francisco Sande (1993) – Povoamento Romano em
esta cidade que, neste momento, era capital de uma
Trás-os-Montes Oriental, Tese de doutoramento na especiali-
província eclesiástica. A campanha de 2023 permitiu
dade de Pré-História e História da Antiguidade, apresentada
a descoberta de novos elementos para uma reflexão à Universidade do Minho. Policopiada.
relativamente à natureza (ou diversas realidades) da
NICOT, Rodolphe (2021) – Deux dépôts tardo-antiques de la
ocupação tardo-antiga do sítio. Embora tenha sido
vallée du Douro: Vale de Mir (Pegarinhos, Alijo). Etude pré-
levantada a possibilidade de as últimas áreas inter- léminaire. In: NALDINHO, Sandra; SILVINO, Tony, Estudos
vencionadas (espaços 20 a 22) estarem ligadas a um em Homenagem ao Doutor Antonio do Nascimento Sa Coixão,
atelier de reciclagem de materiais, os indícios pode- Vila Nova de Foz Côa, pp. 277-302.
rão apontar para um local de culto. Esperamos, em NOLEN, Jeanette (1988) – Vidros de São Cucufate. In: Co-
breve, ter novos dados para abordar estas questões. nimbriga, XXVII, pp. 5-59.
762
SILVA, Armando Coelho (1986) – A Cultura Castreja, Porto.
764
Figura 3 – Testemunhos da ocupação da Anti
guidade Tardia (intervenção PIOHP 2012).
766
Figura 6 – Peso de tear e cossoiro.
768
Figura 9 – Lote de moedas durante a intervenção, em solo de terra batida, no espaço 20.
RESUMO
A arqueologia urbana lida com vários desafios, mas também inúmeras oportunidades, que poderíamos afirmar
atualmente de modo quase diário, muito embora estes possam ser muito variáveis de acordo com a cidade onde
é praticada. No caso de Braga, em 2023 completam-se 47 anos de atividade arqueológica sistemática, ligada ao
‘Projeto de Salvamento de Bracara Augusta’, que inclusivamente marcou o início da arqueologia urbana em Portu-
gal. Ao longo destas mais de 4 décadas, graças a uma forte cooperação institucional, e, paralelamente à experiên-
cia acumulada, tem sido produzido conhecimento muito substantivo sobre a evolução urbana de Braga desde a
época romana até à atualidade. Nesse sentido, a intenção desta comunicação, que usará para o efeito a análise das
intervenções arqueológicas realizadas nos lotes nºs 8 a 10 e da rua Nossa Senhora do Leite, com um intervalo de
quase 50 anos, é demonstrar, em última análise, como os resultados da cooperação científica potenciam o conhe-
cimento do subsolo das cidades, promovem a redução dos impactos e dos custos das intervenções arqueológicas,
contribuindo para a produção de novos patrimónios, e deste modo, para a sustentabilidade dos núcleos urbanos.
Palavras-chave: Arqueologia urbana; Desafios e Oportunidades; Braga; Arqueologia de Projeto.
ABSTRACT
Urban archaeology deals with several challenges, but also numerous opportunities, which we could say today
on an almost daily basis, although these can be very variable according to the city where it is practiced. In the
case of Braga, in 2023 it will be 47 years of systematic archaeological activity, linked to the ‘Bracara Augusta
Rescue Project’, which even marked the beginning of urban archaeology in Portugal. Throughout these more
than 4 decades, thanks to a strong institutional cooperation, and, in parallel to the accumulated experience, very
substantive knowledge has been produced on the urban evolution of Braga from Roman times to the present
day. In this sense, the intention of this article, which will use for this purpose the analysis of the archaeological
interventions carried out in lots 8 to 10 and of Rua Nossa Senhora do Leite, with an interval of almost 50 years,
is to demonstrate, ultimately, how the results of scientific cooperation enhance the knowledge of the subsoil of
cities, promote the reduction of impacts and costs of archaeological interventions, contributing to the produc-
tion of new cultural heritage, and thus to the sustainability of urban centers.
Keywords: Urban Archaeology; Challenges and Opportunities; Braga; Project Archaeology.
772
verificou no edifício da rua Nossa Senhora do Leite, da referida muralha romana, uma realizada sob uma
nºs 8-10. torre da Sé, conhecida como torre da Nossa Senhora
Em 2022, a Unidade de Arqueologia da Universidade da Glória, e outra sob o atual Museu da Sé, aquan-
do Minho (UAUM) foi solicitada a realizar uma inter- do das obras para a sua construção (Lemos, Leite &
venção num terreno privado localizado nos números Fontes, 2000).
8-10 da rua Nossa Senhora do Leite, em Braga. De Tendo por base os vestígios detetados nas interven-
modo a produzir um Plano de Trabalhos Arqueo- ções arqueológicas anteriores, demonstrados na fi-
lógicos (PTA), documento que integra o Pedido de gura 2, foi possível desenhar um plano de interven-
Autorização dos Trabalhos Arqueológicos (PATA), ção que minimizasse os impactos e diminuísse os
conforme estipulado no Regulamento de Trabalhos custos da obra. Assim, no edifício nºs 8-10 da rua
Arqueológicos (RTA – Decreto-Lei n.2 164/2014, Nossa Senhora do Leite a intervenção arqueológica
DR, 1.2 Série, Nº 213 de 4 de novembro) e no Des- começou com o acompanhamento dos trabalhos de
pacho Normativo n.2 18-A/2003 (DR, 12 série, 105, limpeza e demolição. Seguiram-se os ensaios geo-
7 de maio), procedeu-se à verificação da existência técnicos para analisar o solo e determinar a sua esta-
de anteriores trabalhos arqueológicos realizados na bilidade. Estes permitiram perceber que aos 2 m de
zona e à sua avaliação, bem como das condicionan- profundidade, por toda a área do lote, era identifica-
tes arqueológicas para aquela área da cidade. do um sinal de solo firme (figura 3). Esta informação
Verificou-se, efetivamente, que nos anos de 1983 a foi tida em linha de conta aquando da projeção das
2016 foram realizadas várias intervenções arqueo- seis sondagens arqueológicas a realizar, identifica-
lógicas nas imediações e na rua Nossa Senhora do das na figura 4. Estas tinham como objetivos a iden-
Leite, nomeadamente nos anos de 1983 e de 1984, tificação e o registo de eventuais vestígios arqueoló-
pela UAUM, que permitiram identificar os vestígios gicos que ainda pudessem permanecer soterrados
de uma estrutura porticada (Gaspar, 1985). Consta- no local, avaliar a possibilidade de execução de uma
tou-se, igualmente, que formam levados a cabo dois caixa de elevador e a colocação de uma grua na área
outros trabalhos arqueológicos no interior da Sé, edi- de pátio da antiga habitação que permitisse a execu-
fício que serve de fachada oeste à rua. Um realizado ção das obras previstas para o local.
em 1989, pelo antigo Serviço Regional de Arqueo- No decorrer da escavação nas referidas seis sonda-
logia da Zona Norte (SRAZN), e outro entre 1996 e gens começou a ser possível identificar e individua-
1998 pela UAUM, que possibilitaram a identificação lizar vários vestígios de ruínas, circunstância que le-
de um edifício de época romana com funções de vou à uma suspensão dos trabalhos. Nesta primeira
mercado e uma basílica paleocristã (Rodrigues, Alfe- fase, foi possível individualizar pavimentos em opus
nim & Lebre, 1990; Fontes, Lemos & Cruz, 1997-98). signinum revestidos com mosaicos com opus tessela-
Também em1992 haviam sido realizadas escavações tum, muros com vestígios de revestimento, cantos
no interior da Casa da Roda, situada no gaveto en- de estrutura, um fuste em mármore e uma calçada.
tre a Rua Nossa Senhora do Leite e a Rua de S. João Face aos resultados preliminares das sondagens foi
do Souto, da responsabilidade do antigo SRAZN necessário tomar decisões, uma vez que os resulta-
que permitiram identificar restos de uma habita- dos da sondagem 2 impossibilitavam a colocação da
ção, cujos pavimentos eram revestidos de mosaicos grua naquele local, como estava planeado, ao passo
(Abraços, 2019). Ainda, em 1996, o gabinete de ar- que a sondagem 1 permitia a colocação do elevador
queologia da Câmara Municipal de Braga realizou que estava igualmente projetado. Contudo, do ponto
trabalhos arqueológicos num edifício localizado nas de vista científico os vestígios identificados nas son-
imediações, conhecido por Frigideiras do Cantinho, dagens 4, 5 e 6 assinalavam um eventual prolonga-
que permitiram exumar vestígios pertencentes a mento dos dados provenientes da zona arqueológica
uma domus romana. Mais recentemente, em 2016, da Casa da Roda, anteriormente referida, designa-
num outro edifício situado nas proximidades, o edi- damente pavimentos em mosaico, elementos arqui-
fício nºs.18/22 da rua do Souto, a UAUM identificou tetónicos em mármore e muros revestidos com pin-
vestígios do caminho de ronda da muralha romana, tura (Figura 5).
construída no baixo-império (Fontes & Magalhães, As decisões a tomar implicavam consultar a tutela,
2019). Por fim, referir ainda duas intervenções ar- tendo sido realizada uma visita à zona arqueológica
queológicas que permitiram identificar dois torreões por membros da Direção Regional de Cultura Nor-
774
exemplo, um dos silhares romano documentado en- levância para o estudo das transformações urbanas
contra-se reaproveitado, provavelmente como altar, e arquitetónicas ocorridas nesta área da cidade, uma
devido à presença de um loculus para dispor relíquias. interpretação final carece de maior sustentação, o
Também uma coluna decorada em mármore identi- que esperamos vir a conseguir com o fim dos tra-
ficada, apresenta como elementos decorativos uma balhos de campo, com o resultado das datações ra-
roseta e uma flor de lis. Mencionar, ainda, uma peça diométricas e o tratamento completo dos dados que
excecional, em xisto, decorada a trepano, com moti- necessariamente terão de ser conjugados com os re-
vos vegetais, como ramos de uvas e aves. Estes mo- sultados obtidos ao longo de mais de quatro décadas
tivos decorativos, enquadrados no possível contexto de trabalhos arqueológicos em Braga.
cronológico, permitem uma determinada leitura, na Referir, por fim, que esta intervenção arqueológica,
qual, por exemplo, os cachos de uvas podem simboli- realizada na rua Nossa Senhora do Leite, lotes nº 8
zar a eucaristia, bem como a fertilidade, abundância e a 10, se situa nas proximidades da muralha baixo-
prosperidade, relacionando-se com a Igreja e os seus -imperial, da primeira basílica paleocristã conheci-
fiéis. No caso da roseta, podemos relacioná-la com a da, datada do século V, e da Sé medieval de Braga.
representação simbólica da rosa, e da estrela, simbo-
lizando o espírito divino, a iluminação que anuncia a 4. ARQUEOLOGIA URBANA: DESAFIOS
vinda de Cristo. Também a representação da flor-de- E PERSPETIVAS
-lis foi utilizada pelo cristianismo como símbolo da
pureza e da inocência, usada para indicar a alegria e a Os trabalhos arqueológicos realizados nos nºs 8/10
força da vida (Cornwell & Cornwell, 2009). da rua de Nossa Senhora do Leite permitem desde
A sustentar esta leitura, encontramos alguns parale- logo ressaltar a importância da cooperação institu-
lismos, nomeadamente a reutilização de aras e silha- cional na prática da arqueologia urbana e da arqueo-
res romanos no século VI ou a utilização de colunas logia preventiva, fundamental para o estudo e salva-
similares, em estruturas identificadas em Coimbra, guarda do património arqueológico, nomeadamente
Mérida e Idanha-a-Velha, datadas igualmente entre daquele que se encontra depositado no subsolo das
os séculos V e VII (Sastre Diego, 2013). cidades atuais, possibilitando a redução de impac-
Outro elemento importante para a leitura das ruínas tos, mas também dos custos das intervenções. Por
foi a identificação de uma estrutura em tijolo reves- oposição, a ineficácia das políticas liberalizantes no
tida de opus signinum e mosaico, que foi reduzida mercado de trabalho de arqueologia tem originado
numa segunda fase, com uma saída de água, próxi- a intervenção descoordenada de várias equipas no
ma do poço da casa moderna. Esta estrutura colhe meio urbano, a qual dificilmente se pode traduzir
paralelismo com um dos batistérios de Idanha-a-Ve- em conhecimento útil, ou no bem público, seja ele a
lha, datado do século V e VI por OSL (luminiscência conservação do património, ou o seu uso para bene-
opticamente estimulada) (Fernández Fernández et fício das comunidades e da economia.
al., 2019; Cordero Ruiz et al., 2020). Efetivamente, a cidade histórica deve ser perspeti-
Relativamente a esta estrutura, importa, igualmen- vada como um único sítio arqueológico, que se vai
te, salientar que os mosaicos se encontram excecio- conhecendo a partir das intervenções arqueológicas
nalmente conservados, apresentando uma decora- que nele se realizam. Em Braga, são múltiplas as si-
ção similar nas faixas laterais com a peça em xisto tuações em que por vezes decorrem décadas até que
anteriormente referida e representada na figura 7. se possa compreender e interpretar devidamente o
Por sua vez, um outro mosaico de uma sala? compar- significado das estruturas arquitetónicas, muitas ve-
timento? apresenta um losango central ladeado de zes escavadas sectorialmente e como tal difíceis de
hexágonos decorados com motivos vegetais. Neste compreender, sobretudo quando estamos perante
caso, é possível encontrar semelhanças com várias grandes edifícios. A cooperação entre as instituições
pinturas de edifícios religiosos identificados na Pe- é por isso indispensável para que a informação seja
nínsula Ibérica, como em St. Eulália de Boveda. Nes- tratada de forma integrada e possa contribuir para
te edifício as pinturas foram recentemente datadas o conhecimento da cidade e das suas mudanças ao
de 608 a 610 (Blanco-Rotea et al., 2009; Sanjurjo- longo do tempo.
-Sánchez et al., 2010). Nesse sentido, é imperativo que nos posicionemos
Apesar da particularidade destes dados e da sua re- a favor do estudo continuado das cidades, que deve
776
Portugal, tendo em linha de consideração particu- BIBLIOGRAFIA
larmente os contornos dos processos imobiliários e
ABRAÇOS, Fátima, ed. (2019) – O Corpus dos mosaicos ro-
o seu impacto na erosão dos subsolos urbanos, bem manos do Conventus Bracaraugustanus. Lisboa: Centro de
como o seu real contributo para o conhecimento da Históricos.
história das cidades.
BLANCO-ROTEA, Rebeca; BENAVIDES GARCÍA, Rosa;
SANJURJO SÁNCHEZ, Jorge; FERNÁNDEZ MOSQUERA,
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Daniel (2009) – Evolución constructiva de Santa Eulalia de
Bóveda (Lugo, Galicia). Arqueologia de la arquitectura. Ma-
São grandes os desafios, mas também são inúmeras drid/Vitoria. 6, pp. 149-198.
as oportunidades para a arqueologia urbana. É disso
CORDERO RUIZ, Tomas; TENTE, Catarina; CARVALHO,
exemplo, o caso de Braga, onde a prática continuada Pedro; CRISTÓVÃO, José; DIAS, Patrícia; FERNÁNDEZ
da arqueologia de projeto, iniciada em 1976, com a FERNÁNDEZ, Adolfo (2020) – Los baptisterios de Egitania
criação do Projeto de Estudo de Bracara Augusta e (Idanha-a-Velha, Portugal). Contexto arqueológico y cul-
a publicação do Decreto lei 640/76, tem permitido tural. Munibe Antropologia-Arkeologia. San Sebastián. 71, pp.
137.150.
desvendar uma cidade romana praticamente des-
conhecida até aos anos 70 do século passado, ape- CORNWELL, Hilarie; CORNWELL, James (2009) – Saints,
nas sumariamente referida nas fontes históricas da Signs and Symbols: The Symbolic Language of Christian Art.
Antiguidade. A originalidade deste projeto assentou New York: Morehouse Publishing.
desde logo por ser tutelado por uma instituição aca- FERNÁNDEZ FERNÁNDEZ, Adolfo; CARVALHO, Pedro;
démica, facto que lhe conferiu uma forte dimensão CRISTÓVÃO, José; SANJURJO SÁNCHEZ, Jorge; DIAS,
científica, objetivo que a Universidade do Minho, Patrícia (2019) – Dating the early Christian baptisteries from
através da sua unidade de arqueologia sempre pro- Idanha-a-Velha – the Suebi-Visigothic Egitania: stratigraphy,
radiocarbon and OSL. Archaeological and Anthropological
curou respeitar, e que atualmente conta com mais
Sciences. 11, pp. 5691-5704.
de 200 intervenções arqueológicas realizadas e cen-
tenas de publicações, situação inédita no quadro da FONTES, Luís, LEMOS, Francisco; CRUZ, Mário (1997-98)
arqueologia urbana portuguesa. – “Mais velho” que a Sé de Braga. Intervenção arqueológica
na catedral bracarense: notícia preliminar. Cadernos de Ar-
Porém, desde 1976 que, naturalmente, muitas coisas
queologia. Braga. Série II. 14-15, pp. 137-164.
se foram modificando neste Projeto, como a sua re-
nomeação deixa perceber, conhecendo atualmente FONTES, Luís; MAGALHÃES, Fernanda (2019) – Salvamen-
a designação de Projeto de Arqueologia de Braga. to de Bracara Augusta: projeto de remodelação e ampliação de
edifício na Rua do Souto nº 18-22 (União de Freguesias de Ma-
Topografia, Urbanismo e Arquitetura. Estamos efe-
ximinos, Sé e Cividade, Braga): relatório final. Braga: Unidade
tivamente perante um projeto mais ampliado em de Arqueologia da Universidade do Minho (Trabalhos de Ar-
termos cronológicos, circunstância que desde logo queologia da Universidade do Minho; Memória; 79).
abre novas problemáticas de investigação que en-
GASPAR, Alexandra (1985) – Escavações Arqueológicas na
volvem o conhecimento da cidade desde a época
Rua de N.ª S.ª do Leite. Cadernos de Arqueologia. Braga. Sé-
romana até à atualidade. Outra grande alteração foi rie II. 2, pp. 51-125.
a circunstância da Unidade de Arqueologia da Uni-
versidade do Minho, conjuntamente com o Gabinete LEMOS, Francisco; LEITE, José; FONTES, Luís (2000) – A
muralha de Bracara Augusta e a cerca medieval de Braga. In
de Arqueologia da Câmara Municipal de Braga dei-
FERNANDES, Isabel, ed. – Mil Anos de Fortificações na Penín-
xarem de ser as únicas entidades a realizar trabalhos sula Ibérica e no Magreb (500-1500): Actas do Simpósio sobre
arqueológicos na cidade de Braga, nomeadamente Castelos. Palmela: Edições Colibri, pp. 121-132.
no seu centro histórico.
MAGALHÃES, F. (2019) – A domus Romana no Noroeste Pe-
Mas, a cidade de Braga constitui um artefacto alta-
ninsular: Construção, Arquitetura e Sociabilidades. Braga: Uni-
mente complexo, acerca do qual sabemos muito, versidade do Minho (Tese de Doutoramento). https://hdl.
mas desconhecemos ainda mais, pelo que o seu es- handle.net/1822/64109.
tudo tem de continuar a beneficiar da prática con-
MARTINS, M.; RIBEIRO, J.; MAGALHÃES, F.; BRAGA, C.
tinuada de arqueologia urbana, que a cada dia nos
e RIBEIRO, M. (2017) – O espaço construído de Bracara Au-
permite desvendar um pouco mais do passado desta gusta no Alto Império, In Dopico Caínzos, M. e Villanueva
cidade, como se constitui exemplo o edifício da rua Acuña, M. (eds.), In Romanata, per Italiam fusa, in provin-
Nossa Senhora do Leite, nºs 8-10. cias manat. A cidade romana no noroeste: novas perspecti-
778
Figura 1 – Planta da cidade romana, muralha baixo imperial e muralha fernandina (Magalhães, 2019).
Figura 3 – Registo do acompanhamento dos trabalhos de limpeza, demolição e ensaios geotécnicos © UAUM.
780
Figura 4 – Localização das sondagens realizadas na rua Nossa Senhora do Leite, nºs 8-10 © UAUM.
Figura 5 – Perspetiva geral dos vestígios individualizados nas seis sondagens © UAUM.
Figura 7 – Silhar romano reaproveitado, coluna decorada em mármore e peça em xisto, decorada com motivos vegetais e aves
© UAUM.
782
Figura 8 – a) estrutura em tijolo revestida com opus signinum e mosaico © UAUM. b) batistério de Idanha a Velha (Cordero Ruiz
et al., 2020).
Figura 9 – a) pormenor dos mosaicos que foram identificados nas escavações ©UAUM. b) pinturas individualizadas em Santa
Eulalia de Bóveda (Lugo, Galiza) (Blanco-Rotea et al., 2009).
RESUMO
Apresentamos a proposta e primeiros resultados do projeto de revisitação, por uma equipa internacional, de um
sítio arqueológico invulgar do Norte de Portugal, o balneário medicinal romano de São Vicente (Penafiel), des-
coberto em 1901, preservado na íntegra por vontade do proprietário da estância termal em construção e desde
aquela data patente ao público, o qual também dispunha da excecional monografia publicada, em 1902, por José
Fortes, o arqueólogo que acompanhou os trabalhos.
Passado mais de um século, novos conhecimentos, tanto sobre termalismo romano como relativos à história
e arqueologia do território sul da Callaecia, vieram sublinhar problemas de interpretação pendentes, que uma
abordagem com metodologia e recursos técnicos hoje disponíveis tentará esclarecer, sempre que possível com
técnicas inovadoras e minimamente intrusivas.
Palavras-chave: Balneário medicinal romano; Principado e Antiguidade Tardia; Callaecia Bracarense; Termas
de São Vicente; Penafiel.
ABSTRACT
We present the proposal and first results of the revisitation project, by an international team, of an unusual
archaeological site in the north of Portugal, the Roman medicinal spa of São Vicente (Penafiel), discovered in
1901. The ruins were preserved by the owner of the spa under construction and since that time open to the
public, who also had the exceptional monograph published in 1902 by José Fortes, the archaeologist who ac-
companied the work.
More than a century later, new knowledge about Roman thermalism, history and archeology of the southern
territory of Callaecia came to underline outstanding interpretation problems, which an approach with new
methodology and technical resources will try to clarify, whenever possible using innovative and minimally in-
trusive techniques.
Keywords: Roman medicinal spa; Principate and Late Antiquity; Callaecia Bracarense; Termas de São Vicente;
Penafiel.
1. MIAS-UAM / [email protected]
2. CITCEM-FLUP / [email protected]
3. UAM / [email protected]
6. GEAAT-Uvigo / [email protected]
caminho natural que corresponde à estrada nacio- 8. Portugal DGMSG, 1930-1931, 2: 374: «Le groupe de S. Vi-
nal 106, entre a sede concelhia e o lugar de Entre- cente est constitué par deux sources et celle qui est actuel-
-os-Rios, importante cais sobre o rio Douro, outrora lement en exploitation émerge dans la station balnéaire ro-
maine même. L’autre source importante aussi jaillit dans la
via de intensa navegação inter-regional. As referidas
roche sousjacente aux boues accumulées près du balineum
termas distam dele apenas 3km (Fig. 1). romain. Le captage est parfait. La source de S. Vicente est
O subsolo é essencialmente constituído por granitos directement captée dans la roche et une petite galerie sou-
porfiróides (Medeiros, Pereira, Moreira 1980), nos terraine, à un mètre et demi du sol, y accède».
786
sementes e ossos reportada na publicação de 1902, tigo, pois reúne vários aspetos incomuns, nomeada-
pela quantidade de material cerâmico de cobertu- mente o de estar situado ao lado do manancial que
ra íntegro após o derrube, nomeadamente tégulas ainda hoje abastece as termas contemporâneas, ape-
e tijolos, e ainda pelo surpreendente estado de um sar de não apresentar uma configuração arquitetóni-
recipiente de bronze e chumbo encontrado in situ ca totalmente caraterística dos edifícios balneares
(González Soutelo & alii, no prelo 2). com águas mineromedicinais romanos. Concomi-
A ruína ficou à vista no parque do complexo ter- tantemente, não patenteia os elementos caraterís-
mal, para usufruição pública (Fig. 2), o que obrigou ticos de uma construção termal higiénica daquela
à construção, imediatamente após a descoberta e época e trata-se de um edifício individualizado, re-
para viabilização do novo balneário, de um muro lativamente isolado atendendo à falta de indícios
de contenção periférico, com gradeamento de ve- construtivos contíguos, argumento a considerar na
dação, dada a profundidade a que se encontra em discussão sobre a sua vocação exclusiva de estabe-
relação ao terreno envolvente. Algumas paredes do lecimento de banhos salutífero (de águas hipoter-
edifício romano foram então “reconstituídas” com mais), ou a possibilidade de, secundariamente, ter
material recuperado (até para o salvaguardar), mas propósitos higiénicos vinculados a uma função mais
todo o conjunto acabaria por ficar exposto aos ele- social e “pública” de serviço às populações próxi-
mentos atmosféricos pela inexistência de cobertura, mas, residentes em aldeias, casais ou outras entida-
incluindo os pisos (em tempos cobertos com godos des com níveis de ocupação sincrónicos, e mesmo às
do rio) e elementos do sistema de calefação, o que de sobranceiros castros como Monte Mozinho, com
os tem vindo a deteriorar fortemente. A continuada as quais necessariamente terá existido interação.
presença de água, em muito devido à cota relativa a Apesar desta não integração explícita em núcleos de
que se encontra o edifício romano, é outro fator de povoamento ou estruturas residenciais não se enca-
degradação, eventualmente desde tempos remotos. rar como definitório (González Soutelo, no prelo 1),
Descoberto e escavado há mais de um século, não é um fenómeno recorrente, sobretudo em Portugal,
foi objeto de novas intervenções arqueológicas nem que parece refletir-se em outros sítios termais roma-
de ações programadas para preservação e consolida- nos próximos, como as Caldas das Taipas (Guima-
ção, apenas mereceu limpezas regulares da respon- rães), de Vizela e as de Canaveses (Marco de Canave-
sabilidade dos proprietários e escassas tentativas de ses), com testemunhos arqueológicos significativos
manutenção/proteção, a contrastar com interferên- pendentes de revisão, mas que parecem mostrar
cias negativas, em particular as relacionadas com a uma natureza construtiva muito diferente (Vascon-
retenção e circulação de águas e efluentes. celos, 1903; Vasconcelos, 1935; Caldas, 1854; Frade,
1993 e 1997; Cachada, 2006; Erasún Cortés, 2010;
2. O BALNEÁRIO DE SÃO VICENTE FACE Queiroga, 2013). O tipo de água relaciona-o ainda
AOS BANHOS MEDICINAIS DO IMPÉRIO com os casos excecionais de Chaves (Aquae Flaviae)
e Caldas de Lafões/São Pedro do Sul, embora estas
Dentro do estudo dos edifícios de banhos com águas altamente termais (Carneiro, 2016 e 2017; Vaz & alii,
mineromedicinais de época romana, são muitos os 2015; Frade & Moreira, 1992; Mendes-Pinto & Reis,
aspetos que nos falta conhecer. Sem dúvida, esta- 2019 e 2021).
mos ante a origem de uma prática milenar que con- Nas Termas de São Vicente, encontramo-nos peran-
tinua a ser um setor fundamental para a sociedade, te um balneário de água fria (18,6ºC), sulfúrea, só-
a economia e o desenvolvimento de muitas regiões dica, bicarbonatada, fundamentalmente dedicado à
(González Soutelo, 2019). profilaxia e mitigação de doenças respiratórias e re-
Dentro do território português, o exemplo do bal- conhecido pelos tratamentos por inalação (Acciaiuo-
neário de São Vicente é especialmente interessante, li, 1940: 32, 1944, 1: 91; Cruz, 1992: 75). As mesmas
já que apresenta uma configuração singular, estava águas também foram usadas, bem como os seus lo-
em relativo bom estado de preservação no momento dos, em casos de dermatoses e doenças reumáticas.
do achado e tem um tamanho reduzido (±400m2), o Assim se justificaria a presença de fornos (dois prae-
que facilitou o reconhecimento de todo o conjunto. furnia) e meios técnicos para aquecimento (hipocaus-
Por outro lado, este estabelecimento assume rele- ta y concamerationes), indispensáveis para conseguir
vância arqueológica no contexto do termalismo an- uma temperatura aprazível no uso da água para ba-
788
o sítio, apesar da possibilidade de os resultados po- 3.2.3. Estudo de materiais
derem vir a padecer de qualidade limitada, dada a As vertentes de investigação planeadas em 2021 con-
exiguidade do espaço e, sobretudo, a constante pre- templavam também a revisão do espólio recolhido
sença de água em toda a área. em 1901, acervo depositado no Museu Municipal,
Para a prospeção geofísica, realizada a 13 de Outubro bem como o resultante dos atuais trabalhos (Fig. 6).
de 2022, foi utilizado um georadar 500 Mhz em solo, Foi dada primazia à excecional peça de bronze pro-
montagem backpack com odómetro; e na geomáti- cedente da sala I, relativamente à qual se levou a
ca, um laser scanner 3D e DGPS para a integração do cabo a análise da composição do metal e o estudo
projeto de Geofísica. de isótopos de chumbo que indiciem a procedência
Embora detetadas anomalias de caráter disperso, deste material (González Soutelo & alii, no prelo 1).
estas são pouco indicativas de presença arqueológi- Estas e outras análises ficaram a cargo do SECYR da
ca. Não obstante, algumas anomalias apontam para UAM, dada a sua especialização e capacidade para
o interesse de fazer pequenas sondagens nas salas indicar alternativas e opções técnicas.
D e C de Fortes, assim como na B, trabalho que es- No caso da mencionada peça, obtiveram-se cinco
peramos possa trazer novos dados para esclarecer a micro amostras de diferentes partes do recipiente
sua interpretação. para serem estudadas por EDX quantax EDS, no
Cabe igualmente destacar que obtivemos um levan- Laboratório de Microscopia Eletrónica de Varrimen-
tamento planimétrico 3D com uma enorme quanti- to, Emissão de Campo e Nanolitografía do SidI da
dade de pontos, o qual suportará a análise, contex- UAM. A finalidade era identificar a natureza do me-
tualização e representação de todos os elementos da tal constitutivo da peça, que mostrou ser realizada
estrutura do balneário, assim como gerou um docu- em bronze ternário com juntas de chumbo. Mais in-
mento permanente para futuras atuações sobre este formação, que está a ser obtida por outro tipo de téc-
monumento (Fig. 4). nicas, sublinha a excecionalidade da peça, tanto pela
preservação como preparação do metal, aspetos em
3.2.2. Levantamento planimétrico e proposta de processo de investigação específico. Para averiguar
volumetria 3D a procedência do metal, está a realizar-se a análise
Aquele registo foi enriquecido com os desenhos de isotópica, por Espectrometria de Massas com Plas-
planimetria e secções, e ainda com o levantamento ma de Acoplamento Indutivo (ICP-MS), a partir do
fotogramétrico de todo o conjunto, o que permitiu cálculo das proporções e relações entre os isótopos
gerar um modelo 3D do edifício e a otimização da estáveis de chumbo, de que aguardamos resultado.
malha. A partir dessa documentação, pudemos pla- Outro grupo de estudos centra-se na cerâmica re-
near e implantar adequadamente a intervenção de cuperada, tanto de construção como utensílios de
2022 e a próxima, de 2023, assim como discutir dife- mesa, cozinha e transporte. Por exemplo, iniciou-se
rentes propostas interpretativas (Fig. 5). um estudo petrográfico, ainda a decorrer, para co-
O estudo detalhado da planta deste edifício ficou a nhecer a composição e textura de pastas cerâmicas,
cargo da Arkeographos10, que desenhou os levan- o que poderá aportar informação sobre a origem e
tamentos planimétricos, assim como as secções de processo de fabrico. Escolheu-se uma amostra de
muros e outras estruturas de forma a poderem ser que se preparou lâmina delgada ou estratigráfica (em
analisadas em gabinete. Neste momento, está em ela- função do tipo de peça), a que se juntam as observa-
boração e discussão a proposta 3D do edifício, essen- ções em microscópio ótico e eletrónico (SEM-EDX,
cial não só nas estratégias de mediação e divulgação que inclui análise elementar por fluorescência de
do sítio arqueológico, mas também como ferramenta raios X), assim como a identificação da composição
de trabalho para avaliar as diferentes opções de inter- mineralógica mediante difração de raios X e/ou es-
pretação deste conjunto que estamos a ponderar. pectroscopia Raman.
Por último, prestou-se atenção à análise arqueobotâ-
nica e de datação de madeiras e outros macro restos
10. Estudos realizados principalmente por Juan Diego Car-
vegetais recuperados no balneário de São Vicente,
mona Barrero, que está a preparar a tese de doutoramento
na Universidad Autónoma de Madrid, sobre arquitetura e
tanto pelo interesse em conhecer a natureza destes
reconstrução 3D deste tipo de edifícios em época romana, materiais, como para obter datações complemen-
com a orientação de Silvia González Soutelo, IP do projeto. tares que apoiassem o enquadramento cronológico
790
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS celhio na longa diacronia, essencial para contextua-
lizar o balneário termal e o uso das águas nas mais
Na construção do projeto PIPA BAL-SAOVICENTE variadas épocas. Quando necessário, são solicitados
(2020-2023), apresentado em 2020 e aprovado no outros recursos humanos e materiais do município.
ano seguinte, tivemos em consideração múltiplos e A recolha de documentação arquivística, bibliográfi-
diversificados aspetos considerados relevantes para ca e de imagem está a decorrer paralelamente, me-
o aprofundamento e atualização do conhecimento recendo cuidado o registo de memória e valorização
sobre este monumento – o balneário medicinal ro- do sítio arqueológico junto da comunidade residen-
mano de São Vicente (Penafiel) –. Malgrado as restri- te na envolvente do estabelecimento, de antigos e
ções impostas pela situação sanitária internacional, atuais termalistas e dos seus colaboradores. Quere-
desde então pudemos desenvolver algum trabalho mos ainda destacar a disponibilidade que, há muitos
de campo e investigação laboratorial que começa a anos, tem sido manifestada pela família do primeiro
mostrar os seus frutos, apresentados em reuniões proprietário e construtor da estância termal contem-
internacionais da especialidade. porânea, aquele que, à sua custa, decidiu preservar
Nas tarefas realizadas no terreno, utilizaram-se di- na integra o balneário romano encontrado em 1901.
ferentes meios disponíveis para a obtenção de novos Contamos também com a benevolência do atual
dados, a partir da revisão planimétrica, arqueomé- proprietário e presidente da administração da em-
trica e arqueológica do sítio, procurando exercer re- presa Termas de São Vicente – Sociedade de Explo-
duzido impacto nas debilitadas estruturas, ou seja, ração Hidromineral S.A.
privilegiando sistemas analíticos e arqueométricos Já demos alguns passos significativos para um me-
não intrusivos, cujos resultados facilitem a compa- lhor conhecimento deste invulgar sítio arqueológico
rabilidade e a reutilização futura da informação co- que, contudo, continua a apresentar desafios de lei-
lhida (fotografia por drone, fotogrametria do sítio, tura e interpretação. Mas, a cada ano se avança um
registro milimétrico graças ao levantamento de da- pouco mais e esperamos que, após a campanha de
dos com lazer scanner 3D georreferenciado). As in- 2023 e a respetiva divulgação dos resultados, o inte-
tervenções de campo estão a ser sempre mínimas e resse da comunidade científica recrudesça, a par da
incidindo em áreas previamente escavadas, preven- responsabilidade patrimonial e da motivação para
do-se a imediata colmatação de forma a não causar preservar esta ruína centenária.
dano significativo à estrutura e imagem do monu-
mento, o que também é condição apresentada pelo BIBLIOGRAFIA
proprietário para conceder a sua autorização. ACCIAIUOLI, Luiz de Menezes (1940) – Esboço histórico das
Uma outra vertente da investigação concentra-se na águas minerais de Portugal. Lisboa: Sociedade de Geografia.
revisão do espólio exumado nas escavações de 1901,
ACCIAIUOLI, Luiz (1944) – Águas de Portugal minerais e de
primeiramente guardado no próprio balneário e mesa: história e bibliografia. Lisboa: Direcção-Geral de Minas
parcialmente exposto numa vitrina, desde 2004 de- e Serviços Geológicos.
positado no Museu Municipal de Penafiel. Eviden-
ALMEIDA, António d’ (1795) – Noticia de duas fontes mine-
temente, também serão estudados os materiais reu- raes. Academia das Ciências de Lisboa, série azul, ms 377,
nidos no decurso do presente projeto, futuramente nº 16.
entregues no mesmo museu. A este suporte logístico ALMEIDA, António d’ (1818) – Continuação das observa-
e técnico veio juntar-se a operacionalidade científica ções clinicas, e de notícias das águas de Entre-os-Rios no
dos laboratórios da Universidad Autonoma de Ma- anno de 1817. Jornal de Coimbra. Coimbra. 13:70, pp. 152-155.
drid e outros, no quadro do projeto internacional da CACHADA, Armindo (2006) – Caldelas: Caldas das Taipas
responsabilidade da investigadora principal, expo- das origens ao final do século XIX: monografia e roteiro turísti-
nenciado pela linha de apoio extraordinário faculta- co. Guimarães: Caldas das Taipas.
do pela DGPC, em 2021. CALDAS, J. J. da S. Pereira (1854) – Noticia topographica das
A interação com a atividade do referido Museu é Caldas das Taipas, no concelho de Guimarães. Braga: Typ.
bem mais alargada, não só pela integração dos seus d’António da Silva Santos.
colaboradores regulares na equipa, à qual aportam CAPELA, José Viriato, coord. (2009) – As freguesias do dis-
um conhecimento acumulado e bem documentado trito do Porto nas Memórias Paroquiais de 1758. Memórias,
ao nível micro espacial e da história do território con- história e património. Braga.
792
Figura 1 – Localização do balneário romano de São Vicente (Penafiel), no centro do fértil vale da ribeira da Camba (IGC,
fotografia aérea de1965; IGE, Carta Militar de Portugal, 1997, Folha 124 Marco de Canaveses).
794
Figura 3 – Planta do balneário romano de São Vicente (2021) e pormenor da intervenção realizada na sala I, de
onde foi retirado (1901) o recipiente de bronze (Fot. Silvia González Soutelo, planta Juan Diego Carmona).
796
Figura 5 – Ensaio para elaboração de proposta de volumetria do edifício do balneário romano de São Vicente (Juan Diego Carmona).
798
Figura 7 – Município de Penafiel: localização de sítios e ocorrências arqueológicas de época romana e da antiguidade tardia
(MMPNF, elaborado por H. Bernardo).
RESUMO
No presente artigo damos a conhecer novos dados relativos à ocupação tardo-antiga e alto-medieval da cidade
do Porto através da análise de um contexto estratigráfico selado da Casa do Infante. Este consiste num poço
abandonado, do qual se recolheu um conjunto cerâmico diversificado, com relativa homogeneidade cronológica.
Entre as diversas produções cerâmicas, identificou-se Terra Sigillata Africana da forma Hayes 52B, assim como
envases Late Roman Anfora 1. Associando-se estas importações a um copioso conjunto de cerâmica comum de
diversas procedências, atribui-se este contexto o ao 1º terço do século V.
A partir destes dados procuramos refletir acerca de como a cidade de Portucale se inseria na malha de relações
comerciais do Noroeste Peninsular no quadro da transição para o seu período Suevo-Visigótico.
Palavras-chave: Arqueologia Urbana; Contactos Comerciais; Período Suevo-Visigótico; Cerâmica Comum;
Terra Sigillata Tardia.
ABSTRACT
In this paper new data is presented, concerning the Late Antique and Early Medieval occupation of the city
of Porto through the analysis of a sealed stratigraphic context of “Casa do Infante”: an abandoned well, from
which a diversified ceramic assemblage, with fairly homogenous chronology, was retrieved.
Among the diverse ceramic productions, an African Red Slip Ware Hayes 52 bowl was identified, as well as Late
Roman 1 Amphorae. Through the association of these imports with a copious group of coarse wares of diverse
origins, this context was attributed to the first third of the 5th century.
On the basis of these data this paper strives to reflect on how the city of Portucale was inserted into the network
of commercial relations in the Peninsular Northwest on the eve of the transition to its Suevi-Visigothic period.
Keywords: Urban Archaeology; Commercial Contacts; Suebi-Visigothic Period; Coarse Ware; Late Roman
Slip Ware.
1. IEM – Instituto de Estudos Medievais; projeto CERPOR (CITCEM-CMP); Bolseiro de Doutoramento FCT com a ref. UI/BD/150927/
2021 / [email protected]
3. CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória; Arqueologia e Património, Lda. /
[email protected]
4. CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (UP); projeto CERPOR (CITCEM-CMP) /
[email protected]
802
consistentes os indícios, ainda que indiretos e tam- a uma casa quinhentista, conhecida pela Casa da Ja-
bém sem confirmação arqueológica até hoje (Silva, nela de Canto da Reboleira ou da Quinta da Aveleda,
2021, pp. 566-569). demolida por 1880-1887 para dar origem ao atual edi-
fício. A casa era então propriedade de Thomas Glas
2. O SÍTIO E O CONTEXTO Sandeman (Gomes & Teixeira, 2020-2021).
No âmbito das escavações arqueológicas que tive-
Como se disse, a identificação de expressivas ruínas ram lugar em momento prévio à obra de reabilitação
tardo-romanas nas escavações da Casa do Infante, do Arquivo Histórico Municipal instalado na Casa
constituiu, à época, absoluta novidade, sobretudo do Infante, realizou-se neste local uma primeira
por permitir a reconstituição planimétrica, ainda sondagem em setembro de 1994. Esta intervenção
que parcial, de uma residência urbana de certo des- identificou, sob o pavimento lajeado ainda em uso,
taque, um vasto edifício (Fig. 3) com vários compar- um aqueduto já desativado de grande dimensão em
timentos, datável dos séculos IV-V/VI, onde apare- alvenaria de pedra, com origem no ângulo NE da
ceram os primeiros pavimentos musivos do uicus casa, adossado à parede Oeste da Torre Sul da Alfân-
romano de Cale/Portucale (Gomes, 2011, 2019; Silva, dega Medieval e com sentido Norte/Sul. A constru-
2021, pp. 552-560). ção desta estrutura implicou o desaparecimento do
A reconstituição em planta das ruínas evidenciou arranque da vala de fundação da parede da Torre Sul
restos de várias construções romanas (Gomes, 2011, da Alfândega Medieval, mas também da estrutura
p. 838), sobressaindo um edifício de grandes dimen- superior de um poço que se viria a identificar como
sões, de orientação urbana significativamente diver- de época romana e que se posicionava imediata-
sa da medieval e moderna do quarteirão. Trata-se de mente sob as paredes laterais do referido aqueduto,
uma habitação de orientação NO./SE., com dimen- escavado no saibro de base (UE 8008).
sões visíveis de cerca de 24 por 20 metros, aparen- Os sedimentos no interior daquele poço viriam a
temente estruturada em torno de um pátio central ser escavados apenas em fevereiro de 2000 corres-
lajeado a granito, rodeado por quatro alas sensivel- pondendo-lhe as UE 9579 a 9583. O interior do poço
mente modulares (Idem, p. 839). Na ala norte deste foi escavado por Unidades Estratigráficas artificiais
edifício, dois dos compartimentos conservavam com 1 m de espessura até ao fundo do mesmo aos 4
restos de pavimentos forrados com mosaicos, cujo m (UE 9580, UE 9581, UE 9582, UE 9583). O enchi-
estudo iconográfico sugeriu uma datação entre a 2.ª mento é constituído por pedras, algumas com talhe
metade do século IV e a 1.ª da centúria seguinte (Go- romano, e abundante material de construção, do
mes, 2011, 2019). O edifício prolongava-se, para su- tipo tegula e imbrex, e de dolium. A grande maioria
deste, até perto da margem do rio Douro, possuindo do espólio foi identificada nas camadas mais profun-
nessa fachada, para vencer o desnível topográfico, das, o que nos sugere não ter havido remeximentos
vários pilares (Gomes, 2011, p. 839) que sugerem a de maior, correspondendo, portanto, a posição dos
existência de dois ou três pisos. materiais à sua deposição natural.
No período tardo-antigo, esta construção deverá ter
estado relacionada com funções de poder político ou 3. OS MATERIAIS CERÂMICOS
fiscal, como decorre do achado, durante as escava-
ções, de duas raras siliquae suevas em prata, cunha- Contabilizaram-se neste contexto 513 fragmentos
das por ordem do rei Requiário, entre os anos de 448 cerâmicos. Tal como já verificáramos em outros con-
e 456 (Mendes-Pinto, 1999, p. 413; Barroca, 2017, textos arqueológicos da cidade (Veloso, 2020; 2021),
pp. 36-38; Silva, 2017), e de um ponderal em bronze o espólio apresentava-se gravemente fragmentado.
(Barroca & Silva, no prelo). Isto não é surpreendente, visto tratar-se de um con-
O contexto agora estudado localiza-se no extremo texto urbano, numa área cuja ocupação intensiva
sudoeste da Casa do Infante, já no exterior do espaço implicou numerosos revolvimentos de terras e intru-
da Alfândega Medieval, mais propriamente a Poente sões no subsolo. Apenas nos foi possível discriminar
da Torre Sul. O local corresponde a uma casa de ga- 21 indivíduos neste conjunto. Por outras palavras,
veto da Rua da Alfândega com a Rua da Fonte Tauri- pouco mais de 4% dos fragmentos considerados nes-
na, onde teve sede o Comissariado para a Renovação te trabalho possibilitaram a identificação das suas
Urbana da Ribeira Barredo (CRUARB), a qual sucedeu formas originais (cf. Tabela 1).
804
ção no próximo capítulo. Para já bastará referir que 4. O CONTEXTO E RELAÇÕES COMERCIAIS
se individualizaram entre os seus 55 fragmentos um DA CIDADE
pote-panela e um potinho de reduzidas dimensões,
formas, aliás, paradigmáticas desta manufatura, des- A relativa uniformidade cronológica do espólio, alia-
tinadas às tarefas de cozinha e armazenamento. da ao facto de este surgir sobretudo nas unidades
A cerâmica comum constitui a maioria do conjunto estratigráficas de cota mais reduzida, sugere que o
cerâmico, mas, como referimos, acompanham-na ce processo de aterro terá sido, em toda a probabilida-
râmicas finas e de transporte. de, um acontecimento único, deliberado. Importa
O grupo das cerâmicas finas apresentava-se muito determinar, antes de mais, quando se terá proces-
fragmentado, o que dificulta a identificação das suas sado esta desativação. O indivíduo de terra sigillata
formas. Diferenciaram-se, sem que tenha sido pos- africana Hayes 52B, que atribuímos a finais do século
sível a sua reconstituição morfológica, 15 bojos de IV/princípios do século V, é um bom ponto de par-
cerâmica cinzenta fina e da chamada cerâmica bra- tida, mas será necessário articulá-lo com os outros
carense. Esta última demarca-se por ser executada materiais aqui considerados para que se obtenha
com pasta caulinítica muito depurada, de cor creme uma datação mais precisa.
claro, distinta das produções de Ucha/Prado, com No que diz respeito a outras mercadorias importa-
paredes finas e superfície revestida por um engobe das a longa distância, a terra sigillata é aqui acompa-
alaranjado ou salmão. Esta produção remonta pre- nhada pelos dois fragmentos de ânfora LRA 1. A sua
dominantemente ao Alto Império, razão pela qual presença é insipiente, mas não insignificante, uma
estranhamos a sua presença num conjunto, de outro vez que estes contentores, que serão predominantes
modo, bastante mais tardio. na segunda metade do século V e ao longo do século
Um elemento diretor bastante relevante para a inter- VI, fazem a sua primeira aparição no Noroeste Pe-
pretação deste contexto é um bordo de terra sigillata ninsular em princípios do século V.
africana, do tipo Hayes 52B, realizada em fabrico D1. Igualmente sugestiva é a presença, também em nú-
É uma pequena tigela com aba ligeiramente oblíqua. mero reduzido, das Cerâmicas Comuns Micáceas
Esta forma é característica do século IV, com sobre- de Tradição Indígena. Originalmente interpretadas
vivência em princípios do V. Sendo este um exem- como manufaturas locais do entorno de Vigo, sabe-
plar de maiores dimensões (Ø 22 cm), é provável -se hoje que tiveram uma difusão muito mais alar-
que seja uma forma tardia. Na face superior da aba, gada, não sendo consensual, todavia, a localização
preservou-se decoração aplicada, representando um do seu centro produtor. Apesar de estas poderem ser
zoomorfo. Ainda que a sua leitura não seja clara, e facilmente confundidas com as manufaturas castre-
parte da imagem se tenha fragmentado, parece-nos jas pré-romanas, as reflexões mais recentes fazem
representar um felino ou mastim numa possível ve- remontar a sua primeira aparição ao primeiro ter-
natio, tema já reconhecido por J. W. Hayes na sua ço do século V (Fernández Fernández e Bartolomé
obra de referência (Hayes, 1972, pp. 76-78) Abraira, 2016, pp. 96-100).
Se o conjunto de cerâmica fina era pouco represen- Posto isto, ainda que a longa vida de produção da
tativo, esta descrição é duplamente verdade para a forma Hayes 52 nos pudesse levar a recuar a datação
cerâmica de transporte. Com efeito, estes materiais do contexto a um momento mais precoce do Baixo
surgem no contexto arqueológico muito rolados, Império, a presença das ânforas orientais e das cerâ-
sem que seja fácil determinar a sua forma. Isolaram- micas micáceas obriga-nos a remetê-la, no mínimo,
-se, todavia, duas paredes de Late Roman Amphora ao primeiro terço do século V.
1. Este contentor, produzido na Cilícia e na ilha de O estudo dos demais envases aduz um outro ele-
Chipre, teve uma longa vida de produção, remon- mento importante a esta discussão: um terminus
tando os seus exemplares mais precoces a meados ante quem. Por volta das décadas centrais do século
do século III e prolongando-se até meados do sécu- V, observa-se no Noroeste Peninsular uma verdadei-
lo VII. O seu verdadeiro ímpeto de exportação para ra viragem no que diz respeito às técnicas de fabrico
Ocidente, contudo, regista-se a partir da segunda e acabamento da cerâmica comum. Envases tradi-
metade do século IV. cionalmente executados com cozedura oxidante
dão lugar a produções de cozedura redutora e aca-
bamentos cinzentos, como é o caso das chamadas
806
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808
Figura 1 – Intervenções arqueológicas com vestígios de época romana na área do centro histórico do Porto envolvente à Casa
do Infante (Silva, 2021).
810
Figura 3 – Um aspeto do poço romano, na altura da sua escavação, no ano de 2000. Autoria: CMP/AHMP/Projeto Arqueológico
da Casa do Infante.
812
Figura 5 – Grupos de fabrico de Cerâmica Comum: A – Cerâmica Comum Grosseira; B – Cerâmica Comum Fina; C – Cerâmica
Pintada; D – Cerâmica Comum Micácea de Tradição Indígena. Autoria: J. L. Veloso e M. Araújo/CMP/AHMP.
814
TRABALHOS ARQUEOLÓGICOS NO
PATARINHO (SANTA COMBA DÃO, VISEU):
CARACTERIZAÇÃO DE UMA PEQUENA
ÁREA DE PRODUÇÃO VINÍCOLA NO VALE
DO DÃO EM ÉPOCA ALTO-IMPERIAL
Pedro Matos1, João Losada2
RESUMO
Em escavações recentemente realizadas no sítio arqueológico Patarinho (Santa Comba Dão, Viseu), foram
descobertas as ruínas de um edifício romano integrado numa unidade de exploração agrícola. Em época alto-
-imperial, serviu exclusivamente como área de trabalho direcionada, principalmente, à vinicultura.
Ao contrário de sítios relacionados com escalas de produção intensiva, o estudo das pequenas e algo rudimenta-
res áreas de trabalho associadas à exploração rural no Período Romano está ainda em fase incipiente em Portugal,
sendo poucos os exemplos com os quais podemos estabelecer paralelos. Desta forma, através da apresentação
dos trabalhos realizados no Patarinho, esperamos contribuir para a construção de um corpo de dados científicos
com o qual, futuramente, seja possível definir alguns critérios para a classificação tipológica desses sítios.
Palavras-chave: Patarinho; Período Romano; Rio Dão; Escavação; Vinho.
ABSTRACT
Recently, archaeological excavations carried out at the site called Patarinho (Santa Comba Dão, Viseu), the ru-
ins of a roman building integrated into a farm unit were discovered. In early-imperial times, it served exclusively
as a work area, mainly dedicated to winemaking.
Unlike sites related to intensive production, the study of small work areas associated with rural exploitation in
the Roman Period is taking its first steps in Portugal, with few examples with which we can establish parallels.
Through the presentation of the works carried out in Patarinho, we hope to contribute to the construction of a
scientific data body with which, in the future, it will be possible to define some criteria for the typological clas-
sification of these sites.
Keywords: Patarinho; Roman Times; Dão River; Excavation; Wine.
816
reconstituição, iremos nos focar na estrutura locali- prensa rudimentar, se não mesmo o próprio calcato-
zada no Sector I, correspondente à cela vinaria, subli- rium do lagar (Figura 3B). As condições do terreno
nhando apenas os contextos do Sector II essenciais à não permitiram o avanço da escavação no lado leste
caracterização do sítio. do Sector I (Figura 3A), em ordem a ser obtido o re-
O edifício identificado no Sector II, a leste do an- gisto integral do edifício, entretanto, uma pequena
terior, localizado na plataforma inferior da encos- ravina na fraga desencoraja considerar o prolonga-
ta do Patarinho, passou por um severo processo de mento do edifício neste local.
destruição, deixando apenas vestígios pontuais da
sua configuração original a serem depreendidos de 3.2. Registo estratigráfico do Sector 1
alguns troços de alicerces e segmentos de valas de (cela vinaria)
fundação. Um dos seus compartimentos, com piso UE.1 – Depósito de preenchimento da área afetada
em opus caementicium, foi colmatado por uma vinha por antigas escavações4.
que penetrou a argamassa, conforme testemunhado UE.2 – Terra argilosa, em tonalidade vermelho ene-
pelos alinhamentos paralelos de covas das videiras, grecida (Munsel 2,5 YR 3/2), correspondente à cama-
dispostos no sentido NO-SE, seguindo a orientação da de aterro depositado sobre a rocha base para a
natural da vertente (Figura 3C). Foi possível definir construção da divisória do armazém. Continha frag-
dois pares de alinhamentos separados por cerca de mentos de cerâmicas de construção (tegulae e imbri-
2m. No mesmo alinhamento, as covas estão separa- ces), cerâmicas utilitárias de fabrico local e regional,
das pela distância correspondente a 1pé, com o es- destacando-se, neste caso, o grupo da cerâmica cin-
paço de 3pés entre linhas. Não foram identificados zenta fina polida como indicador cronológico.
vestígios de armações ou estacas, pelo que as videi- UE.3 – Vestígio de um possível derrube do telhado,
ras deveriam crescer sem amparo, no sistema de vi- localizado no lado externo do edifício, junto à facha-
tis prostata ou vitis bracchiata (ALARCÃO, 2004: 30) da sudoeste.
A abertura de um caminho com 2m de largura, que UE.4 – Terra compacta, castanho avermelhada
interligava vinha e cela vinaria, atravessou o edifício (Munsel 5 YR 6/3), identificada na metade sul do
arruinado do Sector II, deixando no lado sul algumas lado interno do armazém, abaixo da camada de re-
estruturas com vestígios de utilização até meados do volvimento, acima da UE.2. Corresponde ao nível
século IV3. que marca o abandono deste compartimento, pelo
menos enquanto armazém da cela vinaria. Entre as
3.1. Estruturas arqueológicas cerâmicas comuns destaca-se o conjunto de dolia
O edifício identificado no Sector I continha pelo me- no qual foi possível determinar o número mínimo
nos duas divisórias, designadamente, um compar- de quinze indivíduos. Acreditamos que os poucos
timento ortogonal com pouco mais de 50m2 onde fragmentos, muito rolados, de tegulae e imbrices en-
estaria um armazém, conectado no lado nordeste a contrados nesta unidade, assim como os nódulos de
um habitáculo de aproximadamente metade da sua argamassa serão vestígios residuais das camadas de
área, dentro do qual encontra-se um pequeno lagar, destruição que lhe sobrepunham, entretanto, des-
formado por um lacus de 1 x 1,8m, com paredes de truídas pelos trabalhos agrícolas. Estaria depositada
tijolos, forrado por uma tosca argamassa imper- sobre um nível de circulação interno, seguramente
meabilizante feita pela mistura de barro, gravilha em terra batida, que não foi possível identificar em
e cerâmica moída aplicada sobre uma camada de escavação. O seu indicador cronológico mais rele-
seixos rolados depositados sobre o substrato geoló- vante é um sestércio de meados do século II d.C.
gico. Junto à lateral leste do tanque há uma cavidade UE.5 – Terra solta, acinzentada (Munsel 7,5 R 7/0),
circular com 60cm de diâmetro, escavada na rocha localizada na área leste do Sector I, em zona de den-
base correspondente ao nível de circulação, onde so coberto vegetal. Embora profundamente afetada
estaria encaixado o suporte de um mecanismo de pelas raízes, esta área, posicionada junto ao desnível
natural entre os dois sectores de escavação, esteve
resguardada dos trabalhos agrícolas, pelo que não
3. MATOS, Pedro; CATARINO, Helena; SILVA; Ricardo Cos-
teira: “A Encosta do Patarinho (Santa Comba Dão, Viseu):
o contributo dos dolia para o enquadramento cronológico e 4. A pouco mais de uma década foram realizadas escava-
funcional do sítio” (no prelo). ções no Sector I.
818
3.3. Indicadores cronológicos e funcionais 4-7) registados na camada de abandono do armazém
do Sector I (UE.4), corroboram o terminus post quem estabeleci-
3.3.1. Nível de construção do armazém do pelo numisma de meados do século II d.C. antes
A cronologia de construção do compartimento do mencionado (Figura 5B). Deste conjunto foi possível
armazém foi determinada pelos materiais contidos distinguir quatro bordos que provavelmente perten-
na UE.2, correspondente à camada de nivelamento/ ciam à forma Drag.15/17, produzida entre os séculos
preparação do terreno para a implantação dos alicer- I-III d.C. nas olarias de Tritium Magallum (ROMERO
ces (UE.29). Para este efeito, destaca-se o conjunto CARNICERO e RUIZ MONTEZ, 2005. 189). Em Co-
formado pelas cerâmicas cinzentas finas polidas, nimbriga a datação dos pratos Drag. 15/17 foi inseri-
no qual foi possível reconstituir o bordo de três po- da entre os séculos I-II d.C. (MAYET, 1984: 182-183);
tinhos (Figura 4: 1-3). Trata-se de um fabrico carac- no forum de Aeminium foram datados, aproximada-
terístico de contextos datados no século I d.C, dos mente, na segunda metade do século II ou século III
quais mencionamos, por questão de proximidade, d.C. (SILVA, 2015: 147).
as cerâmicas documentadas nos níveis augustanos e No nível de colmatação do compartimento do lagar
claudianos do complexo forense de Aeminium (SIL- (UE.5) foi identificado um fragmento de Drag. 15/17
VA, 2015: 124-130). Em Conimbriga, os exemplares (Figura 4: 9), de perfil completo, com diâmetro de
de cerâmicas cinzentas finas polidas com decoração abertura mais acentuado em relação aos anterior-
brunida foram documentados em estratos da segun- mente descritos, característica que, segundo alguns
da metade do século I d.C. (ALARCÃO, 1974: 88). autores6, pode remeter a produções mais tardias
Outro importante indicador cronológico dessa ca- desta forma. Também neste nível foi identificado
mada de aterro está num exemplar de fíbula em um fragmento de taça lisa Drag. 27 (Figura 4: 10),
ómega (Figura 5A), também chamada anular roma- forma integrada numa das produções mais antigas
na. Corresponde ao tipo Ponte B51.1d, inserido entre das olarias de Tritium Magallum, sendo fabricada até
finais do século II a.C. e finais do século I d.C. de o século III d. C. (ROMERO CARNICERO e RUIZ
acordo com o quadro tipológico proposto por Salete MONTEZ, 2005. 189). Na Beira Alta, foi documen-
da Ponte (2004), segundo a qual este tipo de fíbula tada, por exemplo, na Póvoa de Mileu (Guarda), em
assinala “o intenso tráfego comercial e propagandís- contextos datados entre a segunda metade do século
tico entre a Hispânia e as outras comunidades extra- I d.C. e finais do século II d. C. (PEREIRA, CAMEJO
-peninsulares, através das vias terrestres e fluviais e MARQUES, 2012: 72-76).
dominadas pelos Romanos” (idem: 213). Em escava- No que se refere aos indicadores funcionais, o con-
ções realizadas no Castro de Santa Luzia, um povoa- junto dos dolia obtidos na UE.4 foi fator determinan-
do da Idade do Bronze localizado nos arredores de te na classificação do armazém. De modo geral, os
Viseu, foi encontrado um exemplar de fíbula anular fragmentos de dolia do Patarinho foram divididos
romana, interpretado pelos autores como vestígio em dois grupos, definidos a partir de critérios mor-
de “uma presença ocasional e acidental”, possivel- fológicos. O Tipo I é representado pelos recipientes
mente associada a um posto de vigilância romano de bordo reentrante, com pequenas variações nos
(PONTE e VAZ, 1989: 181-182). Refere-se ainda que, lábios, por norma arredondados. Estes podem apre-
na coleção de fíbulas obtidas no acampamento mili- sentar um discreto espessamento interno e moldu-
tar romano-republicano da Lomba do Canho (Arga- ra ou ressalto posicionado entre a base do bordo e
nil), cerca de 20km para sudeste do Patarinho, o tipo o arranque bojo, na parede externa, onde assentaria
anular romana é o segundo mais bem representado a tampa. Os diâmetros de abertura oscilam entre 26
(NUNES, FABIÃO e GUERRA, 1989: 410). e 38cm. O Tipo II corresponde a uma forma deno-
minada por alguns autores como “talhas” (BAEZ et
3.3.2. Camadas de abandono da cela vinaria al. 2016). Estas apresentam bordo extrovertido, com
Em decorrência da já mencionada vulnerabilidade maior variabilidade em relação ao nível dos lábios e
dos contextos arqueológicos, foi possível identificar à marcação do colo que, por vezes, está mesmo au-
apenas uma camada de abando e um nível de colma- sente nalguns exemplares cujos bordos foram redo-
tação sem vestígios de perturbações estratigráficas,
respetivamente, as UEs 4 e 5. 6. Consultar: FERNÁNDEZ GARCIA e RUIZ MONTES,
Os exemplares de terra sigillata hispania (Figura 4: 2005: 142 / PAZ PERALTA, 1991: 59.
820
externa retilínea, destoando assim dos demais exem- data e metadata (ibdem: 7), ou seja, dados subjetivos
plares deste grupo, que possuem bordos de perfil em e objetivos e a relação entre os dados utilizados e o
“s”. Numa tipologia elaborada por Tremoleda Trilla produto final, o qual, devido à inerente impossibili-
(2000: 105-108) para o estudo da cerâmica romana dade de se reconstituir seguramente o passado, aca-
no nordeste da Catalunha, este tipo específico de bor- ba por ser um objeto sempre em construção, sendo
do corresponderia a uma forma tradicional do século de suma importância a possibilidade de alteração
III d.C. Contudo, é necessário assinalar que as varia- frente a novas informações e perspectivas. Consi-
ções morfológicas dos bordos são uma característica derando o factor da subjetividade e objetividade dos
transversal a todas as tipologias de dolia, indepen- dados empregados no modelo, faz-se necessário dis-
dentemente das respetivas propostas cronológicas, criminar ambos os elementos de forma a garantir a
o que aconselha cautela na consideração de certos transparência da informação apresentada.
pormenores morfológicos como fatores indicado- Para a elaboração da presente reconstituição, foi ne-
res de cronologias relativas, sendo antes prioriza- cessário recorrer, para além dos dados já obtidos du-
do, idealmente, o contexto arqueológico do achado. rante a campanha, a outras fontes, como arqueologia
Desta forma, na ausência de vestígios que permitam experimental ou paralelos com outros sítios similares
datar o interface de abertura da cavidade em época para a elaboração total do modelo (Figura 7). Com
alto-imperial, a datação do dolium aqui inserido deve efeito, faz-se necessário discriminar os diversos ele-
acompanhar a proposta cronológica do seu depósito mentos presentes de modo a evitar impressões errô-
(UE.7), embora tenhamos de considerar a forte possi- neas. Invés de apresentar uma lista exaustiva, opta-
bilidade de implantação/utilização durante o funcio- mos por nos socorrer da elegante solução empregada
namento da cela vinaria. na reconstituição do templo de Évora (BARROS et al,
2019:21), graduando esses elementos por cores de
4. PROPOSTA E MÉTODOS DE acordo com a fonte utilizada (Figura 8), porém de
RECONSTITUIÇÃO 3D forma simplificada, para se adequar a natureza de
um sítio mais simples como a do Patarinho.
Concluída a escavação do Patarinho pensou-se que Por fim, resulta necessário justificar alguns aspectos
seria interessante realizar a confecção de um mo- em particular da reconstituição. Primeiro, conside-
delo em 3D, de modo a ilustrar uma proposta de re- rando os objetivos propostos, optou-se por utilizar
constituição da cela vinaria na sua forma original. o mínimo de elementos possível de moto a tornar a
Para a confecção dos modelos tridimensionais ago- leitura mais assertiva. O segundo ponto diz respeito
ra apresentados foi utilizado o software Blender 3D, aos aspectos naturais da reconstituição, nomeada-
atualmente na versão 3.5, para a criação da compo- mente a flora, que consiste em espécies autóctones
nente geométrica do projeto. As texturas utilizadas da região, e o relevo, sobre o qual optámos por ren-
nos objetos foram retiradas de bancos de dados onli- derizar apenas a área imediata ao edifício em fun-
ne que oferecem texturas para uma série de superfí- ção da ausência de um MDT com resolução razoável
cies de forma gratuita com licença livre, e, caso ne- para a área em questão (Figura 9). No futuro, caso
cessário, retocadas no programa de manipulação de seja feita a cobertura em Lidar da região, será possí-
imagens GIMP, em sua versão 2.1. Vale salientar que vel importar o terreno para o modelo com uma me-
tanto o Blender como o GIMP são softwares de có- lhor precisão.
digo livre, totalmente gratuitos e com ampla docu-
mentação disponível, fator importante por viabilizar 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
a inclusão dessas ferramentas dentro do processo ar-
queológico, uma realidade que até há pouco tempo Concluída a escavação em open area nos dois secto-
demandava maior investimento de recursos. res, foram então realizadas sondagens de diagnósti-
Reconhecendo o “perigo” de qualquer reconstituição co nas áreas adjacentes. Estes trabalhos permitiram
do passado e as subjetividades e incertezas inerentes aferir duas características essenciais no que diz res-
ao processo, conforme alerta Robert Barratt (2018b: peito à implantação das estruturas: primeiro, que os
3), fatores que muitas vezes acaba por levar a certas dois edifícios estão isolados, ou seja, na dinâmica da
“liberdades” em relação aos dados disponíveis, este unidade agrícola na qual se integrava, a encosta do
autor propõem então empregar os conceitos de para- Patarinho funcionaria principalmente como espaço
822
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ra Material. Pub. de la Casa de Velázquez. Madrid. estratigráfico”. In. Actas do Primeiro Colóquio Arqueológico
824
Figura 2 – Plano final da escavação.
A B
826
Figura 6 – Exemplares de dolia (Sector I).
828
Figura 9 – Proposta de reconstituição dos lados norte e poente (Sector I).
RESUMO
A villa da Quinta da Bolacha, localizada na Falagueira (Amadora), possui uma longa e complexa diacronia de
ocupação, que lhe confere singular importância no contexto da caracterização do ager de Olisipo.
A sua ocupação durante a Antiguidade Tardia é a que surge mais nitidamente na leitura estratigráfica, uma vez
que se sobrepôs às anteriores, promovendo uma profusa remodelação das áreas da villa.
O contexto 48, datado de meados do século V d.C., foi identificado no Setor I, no interior de um compartimento
da pars urbana, que terá funcionado como cozinha. O seu estudo pormenorizado, a partir da observação da sua
implantação, dos materiais arqueológicos e da análise arqueobotânica, permite acrescentar conhecimento para
as realidades cronológicas semelhantes existentes na Estremadura.
Palavras-chave: Olisipo; Antiguidade tardia; Villa; Arqueobotânica.
ABSTRACT
The villa of Quinta da Bolacha, located in Falagueira (Amadora), has a long and complex diachrony of occupa-
tion, which gives it a unique importance in the context of characterizing the Olisipo ager.
The Late Antiquity occupation is the one that appears most clearly in the stratigraphic reading, since it over-
lapped the previous ones, promoting a profuse remodeling of the villa areas.
Context 48, dating from the mid of the 5th century AD, was identified in Sector I, inside a compartment in the
pars urbana, which would have functioned as a kitchen. Its detailed study, from the observation of its implanta-
tion, of the archaeological materials and of the archaeobotanical analysis, allows us to add knowledge to the
similar chronological realities existing in Estremadura.
Keywords: Olisipo; Late antiquity; Villa; Archaeobotany.
1. A VILLA ROMANA DA QUINTA DA vação realizadas até à data, comprovaram uma in-
BOLACHA NO AGER OLISIPONENSIS tensa ocupação deste espaço entre os finais do século
III d.C. e o primeiro quartel do século VI d.C. (Miran-
A villa romana da Quinta da Bolacha, localiza-se na da e Encarnação, 1998; Encarnação e Dias, 2017; En-
freguesia da Falagueira – Venda Nova, e está classi- carnação & alli, 2018).
ficada como Sítio de Interesse Público desde 2012. Integrava administrativamente o território do muni-
Descoberta em 1979, as várias campanhas de esca- cipium de Fecilitas Iulia Olisipo (Lisboa), inserindo-
1. Câmara Municipal da Amadora / Departamento de Educação e Desenvolvimento Social/ Divisão de Intervenção Cultural/ Mu-
seu da Amadora / [email protected]
2. Câmara Municipal da Amadora / Departamento de Educação e Desenvolvimento Social/ Divisão de Intervenção Cultural/ Mu-
seu da Amadora / [email protected]
3. CIBIO-BIOPOLIS: Centro de Investigação em Recursos Genéticos e Biodiversidade, Laboratório Associado, Universidade do Por-
to; UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa; CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de
Coimbra / [email protected]
832
Das peças existentes para confeção de alimentos, passível de classificar como cozinha, a partir da aná-
destacam-se dois exemplares de almofariz, um frag- lise dos contextos estratigráficos que lhe estão asso-
mento do tipo Fulford 22, da Tunísia, datável do sé- ciados, nomeadamente, uma lareira, um conjunto de
culo V d.C., e um de produção local ou regional, com drenos, e do estudo do espólio arqueológico que foi
semelhanças ao tipo Rigoir 29, com cronologia seme- aí exumado, e que remete para o consumo e sobretu-
lhante (Quaresma & alli, 2021, p. 193-195). do para a confeção e armazenamento de alimentos.
Ainda, privilegiando os fabricos locais, e já numa ló- Do conjunto material recuperado, destacam-se as
gica de quebra com o consumo de produtos prove- produções em cerâmica terra sigillata africana D1,
nientes de áreas mais longínquas do império, os con- nomeadamente a forma Hayes 51B, os fragmentos de
tentores anfóricos encontrados na villa da Quinta da ânforas produzidos nos centros oleiros do Tejo/Sado,
Bolacha representam formas produzidas nos centros das formas 50 e 51C, para o transporte de preparados
oleiros do Tejo/Sado, nomeadamente as ânforas Al- piscícolas, as típicas formas de cerâmica comum de
magro 50 e 51C e Keay 78 (Quaresma & alli, 2021, produção local/regional, utilizadas para a confeção
p. 193-195). de alimentos e serviço de mesa, panelas, potes, pú-
Nos vidros, o padrão de consumo é similar ao que se caros, tigelas, taças, pratos, tampas, e um fragmento
encontra nos sítios com uma cronologia semelhante de almofariz com semelhanças ao tipo Rigoir 29, e re-
de ocupação, predominando a taça campanulada da sidualmente, as produções do Guadalquivir.
forma Isings 116, em verde oliva. Encontramos ainda
um fragmento de lucerna, de fabrico local regional, 2. ESTUDO ARQUEOBOTÂNICO
com afinidades com a forma Dressel 28 (Quaresma
& alli, 2021, p. 193-195). 2.1. Amostragem e métodos laboratoriais
Os numismas recuperados, revelam uma continui- Foram estudadas oito amostras sedimentares, as-
dade de utilização das cunhagens da segunda meta- sim como três conjuntos de macrorrestos vegetais
de do século III d.C., também em concordância com recolhidos manualmente durante a escavação do
o verificado noutros sítios contemporâneos do extre- depósito [48], nas quadrículas B 7-8, C 7-8 e D 7-8.
mo ocidente (Conejo, 2019a e 2019b; Quaresma & O volume das amostras era reduzido, variando en-
alli, 2021, p. 193-195). tre 0,1 L e 0,5 L, pelo que, embora algumas tenham
sido flutuadas manualmente, outras foram crivadas
1.2. O contexto 48 a água. Em ambas as situações, foram usados crivos
O contexto em análise foi escavado durante a cam- com malhas de 0,5 mm.
panha de trabalhos arqueológicos de 2000/2001. As frações leves e o material orgânico e inorgânico
Localizava-se no interior do compartimento da resultante das crivagens foram triados com recurso
pars urbana identificado no Setor I, constituindo-se a uma lupa binocular, de forma a detetar e identifi-
como um contexto tardio de ocupação da domus, car material carpológico. O diagnóstico taxonómico
enquadrando-se numa fase posterior à profusa re- foi efetuado por comparação com material vegetal
modelação da villa da Quinta da Bolacha, balizada atual, com recurso à coleção de referência do CIBIO
cronologicamente entre o primeiro e o último quar- e a atlas morfológicos (e.g. Anderberg, 1994; Neef &
tel do século V d.C. alli, 2012).
O mesmo, é contemporâneo dos contextos 18 e 45, Os fragmentos de carvão de dimensões superiores
um pavimento em argamassa e uma lareira, consti- a 2 mm foram seccionados manualmente segundo
tuída por várias tijoleiras. Estes estavam delimitados as três secções de diagnóstico: transversal, radial e
pelas paredes interiores que definem o comparti- tangencial. A observação foi realizada com recurso
mento, contextos 43 e 56, e sob um derrube de telhas, a uma lupa binocular e um microscópio ótico de luz
contexto 46, correspondente ao momento da queda refletida. O diagnóstico foi efetuado com recurso a
do telhado da casa, datando o abandono deste espa- atlas anatómicos (e.g. Schweingruber, 1990). Foram
ço habitacional em torno do final do século V d.C., ainda registadas características anatómicas e alte-
tendo-se identificado, posteriormente, apenas vestí- rações relacionadas com a história de vida de cada
gios relativos às ocupações marginais que terão ocor- árvore/arbusto e com a combustão (e.g. Marguerie
rido até meados do século VI d.C., sobre os derrubes. & Hunot, 2007).
Trata-se de um contexto habitacional de consumo,
834
e o facto de cada figo poder conter mais de 1500. As- rias campanhas de trabalhos arqueológicos que aí
sim, os 64 aquénios recuperados não só correspon- decorreram desde o final da década de 1970. A aten-
dem a um diminuto volume, como poderão inclusi- ta e cuidada intervenção de 2000/2001 revelou-nos
ve representar bem menos de um fruto. Pelo menos uma pars urbana que persistiu a uma longa diacronia
cinco destes encontravam-se agregados a um mate- de ocupação e a largos séculos de abandono, conser-
rial aparentemente orgânico, disforme, juntamente vando os vestígios que nos permitem, com recurso a
com uma semente de Rubus sp. (amora de silva ou uma equipa multidisciplinar, estudar pormenoriza-
framboesa) (Figura 6). A natureza deste conjunto damente, contextos que se revelam essenciais para a
de material agregado é desconhecida, sendo possí- compreensão dos usos deste espaço e caracterização
vel tratar-se de algum tipo de resto de comida que sócio-económica da população que o habitou e viveu
se carbonizou. em época romana.
Ainda que o figo possa advir de uma planta cultivada, O estudo do Contexto 48 é disso exemplo, conse-
a grande maioria dos táxones identificados corres- guindo, a partir dos vários contextos a ele associados
ponde sem margem para dúvidas a plantas silvestres e do espólio arqueológico, atribuir uma cronologia
sinantrópicas. Muitos destes táxones encontram- bastante fina, enquadrada na antiguidade tardia e
-se hoje em campos agrícolas como daninhas, em uma funcionalidade do espaço como cozinha, dados
baldios, margens de caminhos e outros ambientes que são complementados pelos resultados do estudo
ruderais. Entre estes encontra-se uma leguminosa, arqueobotânico.
provavelmente Retama sp. (Figura 5). As sementes Os cultivos identificados tanto carpologicamente
encontradas devem advir de plantas de Retama mo- como antracologicamente na villa da Quinta da Bo-
nosperma e/ou Retama sphaerocarpa, usualmente en- lacha são bastante comuns em contextos romanos e
contradas em terrenos arenosos e/ou perturbados e posteriores de toda a Península Ibérica (Peña-Cho-
matagais. Embora não tenham até ao momento sido carro & alli, 2019). Alguns, como a oliveira, a videira
recolhidos carvões de Fabaceae, é possível que es- e o trigo teriam uma importância económica, cultu-
tas sementes tenham sido incorporadas no contexto ral e até paisagística muito evidente. De resto, tanto
arqueológico juntamente com a madeira utilizada as plantas domésticas, como várias das silvestres,
como combustível. identificadas no estudo do depósito do Contexto 48
A presença de herbáceas, prováveis infestantes, po- traduzem uma paisagem antropizada, relacionada
derá resultar da utilização como combustível de resí- essencialmente com práticas produtivas.
duos de processamento de cultivos. Assim, os únicos Ainda assim, estes elementos forneceram informa-
vestígios de cereais domésticos encontrados, nomea- ções importantes sobre o uso de combustíveis na
damente dois pequenos fragmentos de inflorescên- estrutura doméstica encontrada em escavação. Efe-
cias (espigas) de trigo de grão nu (Triticum aestivum/ tivamente, uma variedade de madeiras e sementes
durum) (Figura 5) podem resultar exatamente desta atestam a diversidade de recursos disponíveis para
prática. Embora tenha sido recuperado um frag- este uso e permite sugerir a utilização de resíduos
mento de arista de aveia (Avena sp.), não é possível relacionados com práticas económicas importan-
distinguir espécies domésticas e silvestres de aveia tes. Por um lado, é possível que os habitantes deste
pela morfologia das suas aristas e, considerando a local estivessem a utilizar como combustível a ma-
abundância de daninhas no conjunto, é possível que deira resultante de atividades de gestão de oliveiras
advenha de uma das abundantes aveias silvestres. e videiras, como sugerem os dados do estudo antra-
cológico. Por outro lado, vestígios carpológicos de
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS infestantes, usualmente plantas herbáceas, assim
como de palha de trigo, difíceis de detetar no estudo
A villa romana da Quinta da Bolacha constitui-se antracológico, sugerem a queima de resíduos de pro-
como um sítio de suma importância para o estudo cessamento de cereais. Estas opções permitiriam,
do mundo rural romano do Ager de Olisipo. O pro- certamente, rentabilizar um conjunto de recursos
jeto de investigação pluridisciplinar em arqueologia disponíveis com regularidade, ou, pelo menos, sa-
“Povoamento em Época Romana da Amadora” que zonalmente, num estabelecimento agrícola como a
decorreu entre 2017 e 2021, possibilitou um novo villa da Quinta da Bolacha.
olhar sobre os espólios e registos de campo das vá-
836
Universidade Nova de Lisboa, 13 de Febbraio 2015). (Mediaeval
Sophia; 19), pp. 431-454.
838
Figura 3 – Planta geral do setor I da villa da Quinta da Bolacha, com representação da estrutura de lareira e dos drenos no inte-
rior do compartimento identificado como cozinha. © Museu da Amadora.
840
Figura 4 – Carvão de madeira de Olea europaea com fissuras radiais (setas a apontar
exemplos). Escala: 1 mm.
2 3
Figura 5 – Vestígios carpológicos: semente de Fabaceae tipo Retama (1), aquénio de Ficus
carica (2), fragmento de ráquis de Triticum aestivum/durum (3). Escalas: 1 mm.
842
OS MATERIAIS DO SÍTIO ROMANO DE EIRA
VELHA (MIRANDA DO CORVO) COMO
ÍNDICE CRONOLÓGICO DAS SUAS FASES
DE CONSTRUÇÃO
Inês Rasteiro1, Ricardo Costeira da Silva2, Rui Ramos3, Inês Simão4
RESUMO
Os trabalhos de natureza preventiva realizados no âmbito da empreitada da construção da Concessão do Pinhal
Interior (IC3) – Avelar/Condeixa (em 2011) colocaram a descoberto o sítio arqueológico de Eira Velha (Miranda
do Corvo, Coimbra). Para além da sua interpretação como estação viária, a escavação arqueológica permitiu
distinguir diversos momentos de construção associados à ocupação deste sítio em época romana e balizá-los,
genericamente, entre os meados do séc. I d.C. e os finais do séc. IV d.C.
Apresentam-se os resultados do recente estudo da cultura artefactual exumada que se foca, essencialmente,
num conjunto de materiais tidos como indicadores cronológicos e que permitem refletir acerca das fases de
construção e do respetivo ciclo de vida deste arqueossítio.
Palavras-chave: Lusitânia romana; Eira Velha (Miranda do Corvo); Estação viária; Fases de construção; Espó-
lio arqueológico.
ABSTRACT
The archaeological site of Eira Velha (Miranda do Corvo, Coimbra) was excavated under the construction of the
Concession of Pinhal Interior (IC3). Besides its interpretation as a Roman road station, it was possible to distin-
guish different construction phases related to the occupation of this site in Roman period and establish them,
chronologically, between the middle of the 1st century A.D. and the end of the 4th century A.D.
In this paper, we present the results of the recent study about the material culture exhumed during the archaeo-
logical excavation. Our contribution focuses, fundamentally, on a set of artifacts considered as chronological
indicators to consolidate the knowledge of the occupational dynamics in this archaeological site and its respec-
tive chronology.
Keywords: Roman Lusitania; Eira Velha (Miranda do Corvo); Roman road stations; Construction phases; Ar-
chaeological artifacts.
844
reconheceram-se algumas estruturas associadas a formal. No estudo e análise das restantes categorias
um lagar de produção de vinho tais como um lacus e de materiais, foram tidos em conta as várias obras e
um calcatorium (Fig. 2c). Por fim, estimava-se que a respetivos autores de referência. Todos os materiais
última fase de construção (Fase IV) (Fig. 2d) poderia foram inventariados por [u.e.] e consequentemente
corresponder a uma remodelação iniciada em finais contabilizados por categoria (Rasteiro, 2021: 12-15).
do séc. IV d.C. Apesar da fragmentação e mau estado
de conservação dos vestígios (idem: 67) os mesmos 3.1. Fase I
parecem apontar para o abandono das vias calceta- A primeira e mais antiga fase de construção (Fase I)
das durante este período. Esta terá sido a causa para foi balizada entre meados do séc. I d.C. e os inícios
o início do desmantelamento do sítio que sempre se do séc. II d.C. (cf. Fig. 1c). O conjunto artefactual as-
articulou em função destes alinhamentos viários. sociado a este momento construtivo é composto por
Como numa relação simbiótica, perdendo esta fun- cerâmica fina (TS), ânforas, fíbulas e alfinetes (Ras-
ção, o local desaparece, não voltando a ser ocupado. teiro, 2021: 21).
Muito embora se tenham, desde o início, definido A TS apresenta-se como a categoria preponderante
quatro fases construtivas, só a análise detalhada do no conjunto atribuído a esta fase. Contabilizou-se
material arqueológico exumado poderia refinar o um único indivíduo (NMI) de terra sigillata itálica
enquadramento cronológico preliminarmente avan- (TSI) correspondente ao prato convexo Conspectus 4
çado. (Fig. 3, n.º 1). Por sua vez, a terra sigillata sudgálica
(TSSG) encontra-se representada por um total de 22
3. OS MATERIAIS ARQUEOLÓGICOS COMO fragmentos aos quais correspondem 8 indivíduos
INDICADORES CRONOLÓGICOS DAS FASES (NMI): 2 pratos Drag. 15/17 (Fig. 3, n.º 2 e n.º 3), 1 pra-
DE CONSTRUÇÃO to Drag. 18 (Fig. 3, n.º 4), 4 taças Drag. 27 (Fig. 3, n.º
9 e n.º 10) e 1 indivíduo indeterminado. Mas será do
As materialidades, principais ferramentas de estudo conjunto de terra sigillata hispânica (TSH) analisa-
dos arqueólogos, conferem um conjunto de infor- do que provém o maior NMI identificados (18), dos
mações de natureza cronológica e económico-social quais 13 pertencem ao reportório das formas lisas: 6
facilitando a reconstituição das dinâmicas das socie- pratos Drag. 15/17, 6 taças Drag. 27 (Fig. 4, n.º 12), 1
dades do passado. Pretendeu-se pôr em confronto indivíduo da forma Drag. 35/36. Neste caso concre-
a proposta preliminar de faseamento apresentada to, contabilizaram-se 3 exemplares decorados, sen-
com a respetiva estratigrafia e com um conjunto de do apenas classificável uma taça Drag. 37 (Fig. 4, n.º
materiais que se destacam por fornecer cronologias 20, n.º 21 e n.º 22). Reconheceram-se duas marcas de
mais precisas – indicadores cronológicos. oleiro (Fig. 5, n.º 25 e n.º 31) associadas ao ceramista
De forma a reconstruir o “ciclo de vida” de cada uma Lvcivs Sempronivs que exerceu a sua actividade em
das estruturas que compõem cada um dos momen- Tritium laborando entre 70 d.C. a 100 d.C. (Mayet,
tos de construção e as suas etapas de fundação, ocu- 1973: 36-37). Este pode ser um dado decisivo para
pação e abandono foi necessário estabelecer alguns fixar o terminus post quem desta Fase I que não será
parâmetros metodológicos. Em primeiro lugar, foi anterior ao último quartel do séc. I d.C.
essencial definir o conjunto de materiais a conside- As ânforas fazem-se representar por uma ânfora vi-
rar. O conjunto selecionado é constituído, maiorita- nária Haltern 70 (Fig. 6, n.º 33 e n.º 35) e um con-
riamente, por cerâmica de importação – terra sigillata tentor piscícola Dressel 7-11 (Fig. 6, n.º 40), ambas
(TS) - e por outras categorias artefactuais, tais como, de produção bética. Assinala-se ainda a presença de
ânforas, fíbulas, aci crinalis, agulhas, elementos de uma fíbula integrada na tipologia Ponte B51.2A (Fig.
sítula e uma guarnição de freio. O estudo da terra 7, n.º 42), com ampla diacronia cronológica (Pon-
sigillata (TS) realizou-se com recurso à observação te, 2001: 460), e um alfinete em osso simples, sem
macroscópica e segundo os princípios de contabili- cabeça, mas com uma morfologia muito peculiar e
zação expressos pelo Protocolo de Beauvray (Arcelin motivos de decoração oculares e geométricos (Fig.
e Tuffreau-Libre, 1998). Neste caso, para a contagem 8, n.º 51).
do NMI foram considerados todos os fragmentos
que indiciavam forma (bordos) mas também outros 3.2. Fase II
elementos que denunciavam uma correspondência O segundo momento de construção do sítio (Fase II)
846
3.4. Fase IV (Fig. 9, n.º 72), particularmente sugestivo para este
Os testemunhos que foram integrados na Fase IV sítio a que se atribui a classificação de estação viá-
são pouco esclarecedores podendo mesmo ser em ria. Este tipo de objetos, para além de plasmarem
grande parte residuais e corresponder até a ocupa- a presença e importância do cavalo no quotidiano
ções anteriores. No entanto, foi possível indicar o deste tipo de lugares, parecem ter sido fabricados na
séc. IV d.C. como a data de término de utilização Hispânia ao longo do séc. IV-VI d. C. (Ripoll López e
das vias que em muito caracterizam as dinâmicas de Darder Lissón, 1994: 282) e podem apresentar várias
ocupação deste espaço (Ramos e Simão, s.d.: 93). configurações. Este objeto está fragmentado sendo
A TSSG está representada por 7 fragmentos sendo visíveis apenas dois raios aparentemente simétricos e
possível reconhecer 1 exemplar decorado (Fig. 4, desprovidos de decoração. O espaço que os circunda
n.º 18) de tipologia indeterminada. Ao par do que possui uma decoração composta por motivos vege-
vem sendo registado, o fabrico hispânico é nova- talistas que poderão ter sido efetuados por um buril
mente preponderante nesta amostra, registando-se e que se assemelham a ornamentos eucarísticos de
80 fragmentos que correspondem a 9 indivíduos cariz profano representativos de ramos de uvas. Pa-
(NMI): 1 prato da forma Hispânica 4 (Fig. 3, n.º 7), rece-nos viável a inclusão deste sujeito no Tipo II da
1 prato Drag. 36 (Fig. 4, n.º 17), 2 taças Drag. 24/25 tipologia de Palol Salellas (1953-1954: 283-288). Este
(Fig. 4, n.º 19), 1 taça Drag. 27 com um grafito (Fig. exemplar assemelha-se a um modelo procedente de
4, n.º 15) e 4 de forma indeterminados. Reconhece- Soria tido como um dos mais emblemáticos deste
-se a presença de um único exemplar de produção tipo (cf. Palol Salellas, 1950: 357, lamina CIX, n.º 4).
africana que deverá corresponder à forma Hayes 73 Do ponto de vista cronológico, estes elementos deve-
(Fig. 5, n.º 28). rão ser anteriores ao séc. VII d.C. coincidindo com o
As ânforas são residuais nesta fase, destacando-se aparecimento destas peças associadas aos ambientes
apenas a presença de um bocal da forma Dressel 2-4 litúrgicos hispânicos (Palol Salellas, 1953-1954: 288).
(Fig. 6, n.º 41).
Regista-se a presença de três tipologias distintas de 4. AS FASES DE CONSTRUÇÃO DO SÍTIO
fíbulas, nomeadamente o tipo Ponte B51.2A (Fig.7, DE EIRA VELHA: UMA NOVA PROPOSTA
n.º 48), o tipo Ponte 42.c (Fig. 7, n.º 50) e o tipo Pon- CRONOLÓGICA
te 42.a (Fig. 7, n.º 49). As fíbulas do tipo Ponte 42.a
representam uma das variantes das Fíbulas de Au- Os resultados apresentados têm por base o estudo
cissa, abundantes em época romana, e que divergem crono-estratigráfico do sítio de Eira Velha que cru-
de acordo com o estilo decorativo do arco (Ponte, zou os dados e interpretações resultantes dos traba-
2001: 412). O exemplar recolhido não tem decoração lhos de campo com a análise posterior dos materiais
ou botão no eixo e enquadra-se na cronologia gené- tidos como indicadores cronológicos. O estabeleci-
rica destes elementos que ronda os meados do séc. mento de novas cronologias resultou da análise dos
I e os inícios do séc. II (idem: 419), datação também níveis de fundação, de utilização e de destruição de
idêntica à outra variante detetada (tipo Ponte 42.c). cada uma das estruturas que caracterizam cada uma
Foi possível atribuir uma correspondência tipológica das 4 fases previamente estabelecidas. Com efeito,
a 2 alfinetes dos 7 inventariados com base na tipolo- o estudo realizado permite afinar a datação desse fa-
gia de Ávila França (1968: 62): o primeiro correspon- seamento (Fig. 10), continuando a persistir algumas
de a um alfinete em osso simples, de secção circular dúvidas que poderão eventualmente ser no futuro
com cabeça bicónica, encontrando-se fragmentado dissipadas com o alargamento da área sondada e a
e incompleto (Osso: A-I-1) (Fig. 8, n.º 54); o segundo intervenção das edificações que se expandem para
caracteriza-se por ser um alfinete em osso simples, além da zona de obra.
de secção circular, com a cabeça em forma de roca A 1ª fase de construção deste sítio deverá ter ocorrido
(Osso: A- XII) (Fig. 8, n.º 52). A esta fase também se em momento avançado (tendo em conta a presença
associa uma agulha (Fig. 8, n.º 67) de secção circular dos serviços hispânicos) mas ainda durante o séc. I
e uma cabeça espatulada, reconhecendo-se apenas d.C. É neste período que se levanta o edifício central
um orifício retangular (Ponte, 1978: 138-139). e se inicia a construção da via. Os dados disponíveis
Associado ao universo dos instrumenta equorum foi são ainda insuficientes para caracterizar convenien-
identificada um fragmento de guarnição de freio temente os ritmos desta etapa construtiva que será,
edifica-se uma nova estrutura habitacional e outras FRANÇA, E. Ávila (1968) – “Alfinetes de toucado romanos
ramificações viárias. A 3ª fase de ocupação (Fase de Conímbriga”, Conimbriga, 7, Instituto de Arqueologia da
III) representa o último momento construtivo deste Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, pp. 67-95.
arqueossítio. Este poderá ter tido início durante o HAYES, John (1972) – Late Roman Pottery. London: British
séc. III e perdurado até aos inícios do séc. V. As vias School at Rome.
são, uma vez mais, determinantes para a disposição
MAYET, Françoise (1973) – “Marques de potier sur le sigillée
das construções domésticas edificadas durante esta hispanique à Conimbriga”, Conimbriga, 12, Instituto de Ar-
fase e que demonstram com clareza o dinamismo da queologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coim-
apropriação deste espaço. A releitura dos dados da bra, pp. 5-73.
intervenção leva-nos a suprimir a existência de uma
MAYET, Françoise (1984) – Les céramiques sigillées hispa-
4ª fase de ocupação. Esta deverá antes equivaler ao niques: Contributión à l’histoire économique de la Péninsule Ibé-
hiato temporal em que decorreu o abandono do sítio rique sous l’Empire Romain, Volume I, Bordeaux: Pub. Cent.
e que estimamos que esteja enquadrado entre mea- Pierre Paris.
dos do séc. V d.C. e o início do séc. VI d.C., tendo
PALOL SALELLAS, Pedro (1950) – Bronces Hispanovisigodos
também em conta a presença de uma taça africana de origen Mediterraneo. I: Jarritos y Patenas Liturgicos, Edito-
Hayes 73 que tem como horizonte cronológico o pe- rial Consejo Superior, Barcelona.
ríodo entre 420-475 (Hayes, 1972: 123-124).
PALOL SALELLAS, Pedro (1953-1954) – “Bronces de arnés
Os dados supramencionados são essenciais para a
con representaciones zoomórficas”, In Ampurias, 15-16, Mu-
definição dos ritmos de ocupação do sítio de Eira Ve- seu d’Arqueologia de Catalunya, pp. 279-292.
lha. Esse foi, aliás, o principal objetivo deste texto,
PÉREZ DE DIOS, Verónica (2015) – “Nuevos apliques bron-
não nos imiscuindo na discussão acerca da categoria
cíneos de asa de sítula romanos con representación antro-
tipológica deste sítio como estação viária que tem pomorfa”, in Espacio Tiempo Y Forma. Serie I, Prehistoria Y
sido, porém, tratada noutros trabalhos (Ramos e Si- Arqueología, (7), pp. 257-270.
mão, 2012: 69-70; Rasteiro, no prelo). De qualquer
PESSOA, Miguel; RODRIGUES, Lino (2015) – “Casal Roma-
modo, a abordagem que se apresenta ao faseamen-
no de Eira-Velha, em Chão de Lamas: “Todos os Caminhos
to construtivo de Eira Velha representa o ponto de Vão Dar a Roma””, Al-Madan Online, IIª Série, 19 (Tomo
partida para averiguações futuras e complementares 2), Janeiro 2015. (Disponível em https://issuu.com/almadan/
ao conhecimento deste sítio. No futuro, dever-se-á docs/al-madanonline19_2).
aprofundar a reflexão sobre a integração e importân-
PINTO, António (2002) – Bronzes figurativos romanos de
cia do local na rede viária romana; complementar o Portugal. Fundação Calouste Gulbenkian; Fundação para a
estudo do restante espólio que integra o acervo exu- Ciência e a Tecnologia, Lisboa.
mado, sem esquecer a vertente de divulgação deste
PONTE, Salete da (1978) – “Instrumentos de fiação, tece-
sítio arqueológico que terá de passar, forçosamente,
lagem e costura de Conímbriga”, Conimbriga, 17, Instituto
por um plano de valorização patrimonial. de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, pp. 133-146.
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arqueológico do sítio romano de Eira Velha (Miranda do Cor-
vo): Indicadores cronológicos das fases de construção. Disserta-
ção de Mestrado em Arqueologia e Território apresentada à
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Figura 1 – a) Localização do sítio romano de Eira Velha no município de Miranda do Corvo; b) Vista aérea da intervenção de Eira
Velha; c) Sistematização cronológica dos momentos construtivos distinguidos na abordagem preliminar (Ramos e Simão, 2012).
850
Figura 3 – Cerâmica Fina (TS).
852
Figura 5 – Cerâmica Fina (TS).
854
Figura 7 – Fíbulas.
856
Figura 9 – Armelas de sítula e guarnição de freio.
Fase I 2ª metade do séc. I d.C. aos inícios Séc. I d.C.? a inícios do séc. II d.C.?
do séc. II d.C.
Fase II Séc. II d.C. a meados do séc. III d.C. Meados do séc. II d.C. aos inícios
dos séc. III d.C.
Fase III Finais do séc III d.C. ao séc. IV d.C. Séc. III d.C. ao início do séc. V d.C.
Abandono do sítio de Eira Velha (''Fase IV'') – Meados do séc. V d.C. ao séc. VI d.C.
Figura 10 – Quadro comparativo das propostas cronológicas apontadas para as diferentes fases de construção do sítio arqueo-
lógico de Eira Velha. Confronto com a nova proposta cronológica.
858
CERÂMICA DE IMPORTAÇÃO EM
TALABRIGA (CABEÇO DO VOUGA, ÁGUEDA)
Diana Marques1, Ricardo Costeira da Silva2
RESUMO
O presente texto ocupa-se do estudo da cerâmica de importação de época romana (terra sigillata, ânfora e cerâ-
mica de engobe vermelho pompeiano) recuperada entre 1996-2005 nas intervenções desenvolvidas na estação
arqueológica do Cabeço do Vouga (Águeda), que deverá corresponder à Talabriga mencionada por Plínio (HN 4,
113 e 116).
Através da análise concreta deste mobiliário artefactual procura-se perceber a importância e protagonismo eco-
nómico do lugar dada a sua proximidade privilegiada ao oceano e como isso poderá ter favorecido a existência
de redes comerciais dinâmicas. Com efeito, ao proporcionar uma conexão directa à rede de rotas marítimas,
esta posição estratégica terá certamente contribuído de forma decisiva para o processo de desenvolvimento
urbano desta capital de civitas.
Palavras-chave: Cabeço do Vouga (Águeda); Talabriga; Escavações de 1996-2005; Época romana; Cerâmica de
Importação; Rotas e dinâmicas comerciais.
ABSTRACT
This paper presents the study of Roman period imported ceramics (terra sigillata, amphora and pompeian red
ware) gathered between 1996-2005 in the interventions developed in the archaeological site of Cabeço do Vou-
ga (Águeda), which should correspond to the Talabriga mentioned by Plínio (HN 4, 113 and 116).
Through the concrete analysis of this artifactual furniture, we try to understand the importance and economic
protagonism of the place given its privileged proximity to the ocean and how this may have favored the existence
of dynamic commercial networks. In fact, by providing a direct connection to the network of maritime routes, this
strategic position certainly contributed decisively to the process of urban development of this capital of civitas.
Keywords: Cabeço do Vouga (Águeda); Talabriga; 1996-2005 excavations; Roman Period; Imported pottery;
Trade routes and dynamics.
1. CABEÇO DO VOUGA (ÁGUEDA) por outros que o tomam por quase certo (Alarcão,
E TALABRIGA 2018: 131, nota 25). Não cabe aqui aprofundar o histo-
rial crítico desta localização que tem sido detalhado
A estação arqueológica do Cabeço do Vouga – Sítio da por outros autores (Cf. a título de exemplo Alarcão,
Mina (Lamas do Vouga, Águeda) é um dos sítios mais 2004; Lopes, 1995; 2000a; 2000b), visto que para
enigmáticos da região do Baixo Vouga. Para esta si- tal faltam dados novos e relevantes. Efectivamente,
tuação contribuem várias vicissitudes e factores. a ausência de um plano integrado e continuado de
Uma das principais causas estará directamente vin- investigação arqueológica para o sítio desde 2005,
culada com a associação deste local à Talabriga men- pode ser visto como outro dos motivos das constan-
cionada por Plínio (HN 4, 113 e 116). Identificação tes interrogações que este local encerra. As estrutu-
controversa que, apesar de ser contestada por alguns ras expostas e o espólio recolhido em diversas inter-
(Mantas, 2012: 195), parece ser cada vez mais aceite venções continuam, em grande parte, por estudar.
860
tomado como prioridade e espírito de missão “recu- do espólio analisado. Nos relatórios, a par de lacunas
perar para a posterioridade” aquele legado. Assim, e omissões ao nível do registo das escavações (que
as primeiras campanhas tiveram como objectivo eventualmente se previa colmatar a posteriori), não
principal a limpeza e reconhecimento das estruturas se avança com interpretação para os pacotes estrati-
descobertas nos anos 40 com vista à sua consolida- gráficos e só muito raramente se apresenta a relação
ção e levantamento gráfico. Para tal, os trabalhos entre estratos e materiais.
cingiram-se à escavação de áreas já intervenciona- Dadas as limitações e condicionantes apresentadas,
das (incompletamente) nas campanhas pioneiras de optou-se por, neste primeiro trabalho, apresentar
Rocha Madail e M. de Castro Hipólito, à remoção de uma análise geral aos fragmentos de cerâmica im-
cobertos vegetais e de taludes de terra resultantes portada de época romana tendo em vista a classifi-
das escavações anteriores, à realização de estudos cação de fabricos, formas e tipologias presentes no
de diagnóstico para posterior aplicação de políticas local. A integração contextual mais fina de algumas
de conservação, restauro e reposição de estruturas, peças deverá ser testada, futuramente, em paralelo
para além de se revelar a preocupação pela aquisição com a interpretação das estruturas e respectiva co-
de novos lotes de terreno (por parte da autarquia) -relação com os níveis estratigráficos.
indispensáveis ao arranque e prossecução dos traba-
lhos futuros (Silva, 2002). Constata-se que os traba- 3. AS IMPORTAÇÕES DE CERÂMICA
lhos que conferem o real alargamento da escavação ROMANA EM TALABRIGA (CAMPANHAS
a novas áreas terão tido verdadeiramente início ape- DE 1996 A 2005)
nas na 5ª campanha, em 2000. Com efeito, cumpre
assinalar que daqueles primeiros anos apenas se A cerâmica de importação de época romana exuma-
recolheram cerca de 40 fragmentos de terra sigilla- da no Cabeço do Vouga é composta por baixela fina
ta e as poucas ânforas tidas em conta neste estudo de mesa (terra sigillata), algumas ânforas e cerâmi-
que, todavia, são provenientes de níveis superficiais, ca de engobe vermelho pompeiano. Paralelamente
revolvidos e secundários. Na verdade, a maioria do aos problemas de contextualização já mencionados,
espólio analisado neste trabalho foi exumado nas acrescem outros directamente relacionados com
campanhas entre 2000 a 2004 que se centraram no a localização de algumas peças. Depois de várias
que foi designado por sector I, que corresponde à vicissitudes, o espólio resultante das campanhas
metade norte-ocidental da plataforma artificial do modernas de escavação encontra-se depositado no
sítio da Mina (Silva, 2002: 24). Apesar de assumi- edifício (“Casa do Castelo”) onde se instalou o Fó-
rem sempre o principal intuito de complementar a rum Municipal da Juventude. Na documentação em
informação obtida em 1941, assinala-se uma muito arquivo constam os inventários gerais, organizados
favorável evolução em termos dos procedimentos por categorias de material. Nestas listagens inclui-
metodológicos. Verifica-se a preocupação em articu- -se pouco mais que a indicação da campanha e data
lar níveis estratigráficos com estruturas, embora da de recolha e proveniência estratigráfica. No entanto,
análise dos relatórios essa relação nem sempre seja constataram-se várias incongruências após o cruza-
óbvia. Define-se o enquadramento cronológico e mento destes dados com as peças ali depositadas,
cultural de algumas construções, mas não se justifica sobretudo ao nível da contabilização. Os inventários
essa interpretação, pois os materiais arqueológicos registam um número superior de fragmentos que
não chegaram a ser estudados de forma sistemática. não corresponde ao que é observado. Verificou-se
Efectivamente, são vários os constrangimentos3 que que peças com colagem mereceram um número de
impossibilitam, para já, uma cabal contextualização inventário individual por cada fragmento colado,
inflacionando a contagem final. Para além disso, ve-
rifica-se que algumas peças se encontram mal carac-
3. Talvez por esse motivo outros investigadores, que surgem terizadas. Por exemplo, na listagem correspondente
mencionados na documentação arquivada em planos, pré- às sigillatas fomos encontrar fragmentos de cerâmi-
-projectos e cartas de intenção como potenciais autores do
ca comum de laranja fina e até cerâmica de engobe
estudo desta coleção de materiais, nunca tenham efectiva-
mente apresentado o resultado dessa análise. Tentou-se,
vermelho. No entanto, mesmo atendendo a estas
por várias vezes, estabelecer o contacto com alguns destes situações, verifica-se a ausência de algumas (apesar
investigadores, embora nunca se tenha obtido resposta. de poucas) peças que, aliás, se encontram desenha-
862
Para além da já mencionada, identificaram-se mais Vechten que se propõe a respectiva cronologia (Po-
duas marcas que parecem sugerir uma ligeira prima- lak, 2000: 326). Conhecem-se várias marcas deste
zia dos produtos oriundos de Arezzo. Um dos fundos oleiro em diversos locais da Península Ibérica (Bel-
apresenta marca em cartela rectangular que se de- trán, 1990: 95). Na fachada norte atlântica encontra-
senvolve numa única linha, lendo-se [CVIR] (Fig. 4, -se registado, por exemplo, em Conímbriga (Delga-
n.º 1). Parece pertencer a C. Vibienus (2) (OCK, tipo do, Mayet e Alarcão, 1975: 126, n.º 338-342) e Braga
2373.29) cuja actividade se centra entre 1 e 40 d.C. (Delgado e Santos, 1984: 59, n.º 15).
Kenrick atribui a localização desta oficina a Arezzo, A observação macroscópica das características da
mas discute a existência de uma segunda oficina em pasta e do verniz dos fragmentos em estudo parece
Roma (OCK: 473). Por fim, num outro fundo surge a revelar, à semelhança do que ocorre noutros lugares
marca de Hilarus (OCK, tipo 953.2), oleiro da região do centro-norte da Lusitânia (cf. o caso de Coním-
do Centro de Itália e do Vale do Pó cujo período de briga (Delgado, Mayet e Alarcão, 1975: 69) e Aemi-
laboração se estima entre 20 a.C. e 10 d.C. A marca nium (Carvalho e Silva, 2021: 50), uma proveniência
quadrangular desenvolve-se em duas linhas (HIL/ exclusiva ou quase exclusiva das produções de La
ARVS), sendo apenas visível [(…)IL(…)/R(…)] (Fig. Graufesenque.
4, n.º 2).
3.1.3 Terra sigillata Hispânica
3.1.2 Terra sigillata sudgálica As produções hispânicas de terra sigillata estão re-
No caso específico das produções sudgálicas, da to- presentadas por 60 frag. dos quais apenas 8 permi-
talidade dos 18 fragmentos identificados apenas cin- tiram classificação tipológica. O conjunto revela a
co permitiram proceder a atribuição formal, repre- ocorrência de peças com pasta vermelha e vernizes
sentando exclusivamente formas lisas – três taças de boa qualidade – espesso, uniforme e brilhante,
Drag. 24/25 e dois pratos Drag. 18/31. provenientes em exclusivo de La Rioja. Regista-se
A forma Drag. 24/25 encontra-se bem representada somente a presença de formas lisas com uma ligeira
no conjunto estudado (Fig. 4, n.º 3). Os exempla- preponderância das taças (5 frag.) face aos pratos (3
res observados documentam a ampla variedade de frag.). Os perfis identificados correspondem às for-
perfis e diâmetros (que rondam os 10-11cm) carac- mas mais frequentes e difundidas, nomeadamente
terísticos desta taça hemisférica de protótipo itálico. da taça Drag. 27 (2 frag.) e do prato Drag. 15/17 (2
Esta forma, ao longo do seu relativamente extenso frag.). Estes fragmentos são de muito reduzida di-
período de produção (iniciada com Tibério), terá co- mensão, impossibilitando até a determinação do
nhecido poucas variações, ainda que se observe uma diâmetro. No primeiro caso a parede biconvexa e no
certa preferência, no final do séc. I, pelas peças com segundo a característica moldura interna, denun-
dimensões mais pequenas e mais encorpadas (Ge- ciam a sua tipologia. A forma mais representada é a
nin, 2007: 326). taça hemisférica Drag. 24/25 (3 frag.), com moldu-
Particularmente comuns são os pratos de perfil sim- ra externa bem marcada na parede e guilhoché no
ples classificados como Drag. 18 (18/31), ainda que exterior do bordo (Fig. 4, n.º 7). Refira-se, por fim, o
neste conjunto surjam muito fragmentados (Fig. 4, prato Drag. 36 que apresenta perfil completo (Fig. 4,
n.º 4). A produção desta forma, com múltiplas va- n.º 6). O prato com 17cm de diâmetro não apresen-
riantes, inscreve-se genericamente, uma vez mais, ta a típica decoração de barbotina de folhas de água
entre o reinado de Tibério e pelo menos os inícios sobre o bordo em aba. Sendo uma das formas com
do séc. II (Lutz, 1974: 35; Delgado, Mayet e Alarcão, mais sucesso no Mediterrâneo (Mayet, 1984: 73), o
1975: 93; Bourgeois e Mayet, 1991: 82 e 101-102; Ge- início da sua produção deverá acercar-se da mesma
nin, 2007: 332). datação das peças produzidas em época flaviana no
O lote em análise providenciou um único exemplar sul da Gália. Ao contrário da taça Drag. 35, o fabrico
de fundo com marca de oleiro onde se pode ler [OF deste modelo de prato pode prolongar-se até ao séc.
(…) CVN] (Fig. 4, n.º 5). Deverá tratar-se da assina- IV (Mezquíriz, 1985: 154-155). A presença destes ser-
tura do oleiro Secundus que conta com oficinas em viços testemunha que Talabriga continuava plena-
La Graufesenque e cuja actividade se centra entre mente integrada nos circuitos comerciais nos finais
65-90 d.C. (Polak, 2000: 325-327). É com base na se- do séc. I.
melhança do paralelo visível num prato Drag. 18 de
864
4. NOTA FINAL gica sobre duas importantes vias de penetração. Tal
como Conimbriga e Aeminium, situa-se, segundo o
A plataforma artificial do Cabeço da Mina (Fig. 1 e 2), Itinerário de Antonino, ao longo da estrada que liga
onde se concentraram os trabalhos de escavação até Olisipo a Bracara Augusta (Lopes 2000; Mantas 2012)
agora desenvolvidos, constitui apenas uma parcela e tem uma ligação e acesso privilegiado ao oceano.
do todo que constitui a estação arqueológica do Ca- O litoral e a área da foz do Vouga, tal como a do Mon-
beço do Vouga. Não são conhecidos os limites reais dego, sofreu grande alteração ao longo dos séculos,
da sua área construída, desconhecendo-se inclusiva- mas não é difícil de imaginar que esta relação com o
mente a existência de muralhas. Topograficamente, Atlântico tenha sido decisiva para Talabriga e favore-
se tivermos apenas em consideração a delimitação cido o conctacto e integração nas rotas marítimas. É
das duas plataformas com vestígios comprovados provável a existência de um porto em Cacia (Aveiro)
(Cabeço Redondo e Cabeço da Mina – Fig. 1), englo- que servisse este local (Alarcão, 2018: 239).
ba uma área de cerca de seis hectares. Sendo uma Os materiais apresentados põem em evidência a
extensão regular equiparada a oppida da região, não existência de um sistema comercial dinâmico, com
deixa de se afastar da área de outras cidades próxi- principal ímpeto em época augustana, sobressaindo
mas localizadas ao longo da faixa costeira como Co- o fulgor dos contactos com a Península Itálica. Pela
nimbriga e Aeminium que, durante o alto-império, se posição que ocupa, quer num enquadramento mais
aproximariam dos 20 hectares. Não obstante, como lato quer no contexto regional mais imediato entre
capital de civitas, Talabriga presidia um vasto territó- o Vouga e o Marnel, o sítio do cabeço do Vouga terá
rio (muito semelhante em termos espaciais a estas constituído um polo de desenvolvimento que im-
cidades), que se estendia desde Ul (a norte) até às porta continuar a averiguar em toda a sua amplitu-
imediações da Mealhada (a sul) e desde o oceano até de cronológico-cultural. Tendo em conta os vários
às proximidades da actual povoação de Benfeitas (a constrangimentos enunciados e que foram mode-
oriente) (Alarcão, 2004: 327). Todavia, sabemos que lando o rumo do trabalho apresentado, muito ficará
mais do que o aparato arquitectónico ou extensão ainda por deslindar. Optou-se por, neste primeiro
urbana, estas capitais de civitates se destacavam no ensaio, dar a conhecer a informação disponível e
quadro das respectivas unidades territoriais sobre- que se manteve inédita por tantos anos. Dada a rele-
tudo pelas actividades de natureza administrativa, vância do local, deixa-se uma última palavra de ex-
jurídica e mesmo religiosa que neles tinham lugar, pectativa e apreensão quanto ao rumo da sua futura
tal como se observa no interior norte da Lusitânia investigação, salvaguarda e valorização.
(Carvalho, 2010). De todo o modo, será importante
sublinhar que o conhecimento disponível sobre o sí- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
tio e estruturas do Cabeço do Vouga é ainda muito
AGUAROD OTAL, C. (1991) – Cerámica romana importada
parcelar. Ainda assim, parecem não restar muitas de cocina en la Tarraconense. Institución “Fernando el Cató-
dúvidas de estarmos na presença de um ambiente lico”, Zaragoza.
urbano, com construções públicas (possivelmente a
ALARCÃO, J.; DELGADO, M.; MAYET, F.; ALARCÃO, A.;
localização do forum) e outros elementos materiais
PONTE, S. (1976) – Fouilles de Conimbriga VI. Céramiques Di-
que normalmente surgem neste tipo de contextos, verses et Verres. Paris: Diffusion E. de Bocard.
evidenciando-se, por exemplo, os fragmentos de
ALARCÃO, Jorge de (2004) – “Notas de arqueologia, epigra-
estatuária em mármore (Silva, 2010: 55) e aqueles
fia e toponímia – I”, Revista Portuguesa de Arqueologia, 7/1,
que agora damos à estampa. Efectivamente, apesar pp. 317-342.
de não se contar com uma coleção muito numerosa
de itens importados, estes revelam que este territó- ALARCÃO, Jorge de (2018) – A Lusitânia e a Galécia: do séc. II
a.C. ao séc.VI d.C., Imprensa da Universidade, Coimbra.
rio se encontrava plenamente integrado nas grandes
rotas comerciais que atravessavam a faixa ociden- ARRUDA, A. M.; VIEGAS, C. (2002) – “As cerâmicas de “en-
tal da Península Ibérica. Estas rotas, por sua vez, gobe vermelho pompeiano” da Alcáçova de Santarém”. Re-
denunciam a existência de centros urbanos onde vista Portuguesa de Arqueologia. Lisboa. 5: 1, pp. 221-238.
as mercadorias chegavam para serem em seguida BELTRÁN, Miguel (1990) – Guía de la Ceramica Romana, Li-
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29, Águeda.
866
Figura 1 – Em cima: Localização da estação arqueológica do Cabeço do Vouga na fachada atlântica da Lusitânia. Em
baixo: Localização do Cabeço Redondo (1) e do Sítio da Mina (2) em imagem de satélite (© Google Earth).
868
Figura 3 – Terra Sigillata Itálica (© Arquivo da Câmara Municipal de Águeda e n.º 3 desenho de Sara Almeida).
870
Figura 5 – Cerâmica de engobe vermelho pompeiano (desenhos de Sara Almeida).
872
REVISÃO DOS OBJETOS PONDERAIS
RECUPERADOS NA ANTIGA CONIMBRIGA
(CONDEIXA-A-NOVA, COIMBRA)
Diego Barrios Rodríguez1, Cruces Blázquez Cerrato2
RESUMO
Os pesos, contrapesos, balanças e outros objetos relacionados com as operações de pesagem oferecem infor-
mações interessantes e extraordinárias sobre a organização socioeconómica e cultural das populações que os
fabricavam e utilizavam. Salvo raras exceções, o estudo destes objetos tem sido relegado para segundo plano na
investigação científica, onde, aliás, o contexto em que foram encontrados é geralmente ignorado. Por esta razão,
apresentamos aqui uma primeira análise dos testemunhos de peso da cidade romana de Conimbriga (Condeixa-
-a-Nova, Coimbra) com o objetivo de abordar a sua evolução e as suas características.
Palavras-chave: Lusitânia; Conimbriga; Atividades de pesagem; Pesos e balanças.
ABSTRACT
Weights, counterweights, scales and other parts related to weighing equipment provide interesting and extraor-
dinary information on the socio-economic and cultural organisation of the populations that produce and use
them. With a few exceptions, the study of these objects has been relegated to the background in scientific re-
search, where, moreover, the context in which they were found is usually ignored. For this reason, we present
here a first analysis of the ponderal testimonies from the Roman city of Conimbriga (Condeixa-a-Nova, Coim-
bra) in order to approach their evolution and characteristics.
Keywords: Lusitania; Conimbriga; Weighing activities; Weights and scales.
34
3. O primeiro autor (DBR) é investigador pré-doutorado ao abrigo de um contrato cofinanciado pela Junta de Castilla y León e pelo
Fundo Social Europeu (Ref. Orden edu/875/2021). A sua tese, dedicada a os “Sistemas de peso en la P. Ibérica durante la Antigüedad:
fuentes, instrumentos ponderales y contextos arqueológicos” e está a ser supervisionada pela Dra. C. Blázquez Cerrato.
5. Agradecemos ao Diretor do Museu Monográfico de Co- 6. O processo de identificação, documentação e revisão de re-
nimbriga, Dr. Vitor M.S. Dias, a autorização concedida para latórios foi desenvolvido graças à concessão de uma Bolsa de
a análise e documentação destes materiais. O nosso agra- Mobilidade para Estadias em Centros Estrangeiros da Escola
decimento especial vai também para D. Virgílio H. Correia, Doutoral da Universidad de Salamanca. Este financiamen-
Arqueólogo do Museu, pelas facilidades proporcionadas em to concedido a D. Barrios Rodriguez permitiu-lhe usufruir
todos os momentos, tanto no acesso aos objetos como aos de uma estadia de investigação de três meses na Unidade
respetivos relatórios de escavação. Agradecemos também à de Arqueologia da Universidade de Coimbra. Agradecemos
D.ª Margarida Amado, do Museu Romano de Portugal em à Prof.ª Dr.ª Raquel Vilaça, por ter aceite ser a orientadora
Sicó (PO.RO.S), Técnica Superior da Unidade de Gestão de responsável durante esta estadia e pelas facilidades propor-
Equipamentos Museológicos. cionadas para o desenvolvimento do nosso trabalho.
874
tes de 1962. Já nessa altura, esta investigadora notou É preciso dizer que as dimensões das balanças, por
que os pesos e contrapesos eram de bronze e outros si só, não permitem chegar a uma conclusão defi-
de chumbo, e que alguns eram anepígrafos, enquan- nitiva sobre o valor que podia ser pesado no siste-
to outros tinham marcas gravadas que examinou e ma romano. No entanto, esta informação pode ser
dividiu em diferentes categorias (Ponte, 1979: 127). obtida graças ao facto de a maior parte deles pos-
Por fim, apresenta um catálogo pormenorizado de suir uma escala que foi representada por linhas in-
todos os objetos estudados (Ponte, 1979: 129-132) e cisas que foram gravadas num dos braços. Assim,
os respetivos desenhos. A hipótese proposta neste por exemplo, um dos exemplares encontrados em
trabalho é a de que a relativa abundância destes ob- Conimbriga apresenta, para além destas marcas, a
jetos indica que a sua utilização na cidade deve ter indicação do valor correspondente, o que nos per-
sido frequente e que as suas pequenas dimensões mitiu verificar que era possível pesar até vinte librae
devem ter respondido a um interesse em dispor de (com a marca XX). As restantes armas que identi-
um instrumento de pesagem útil, rápido e portátil. ficámos entre as que dispunham de balança foram
relacionadas, pelas suas próprias dimensões e pelas
3.1. Balanças (Figura 2) dos contrapesos, com o peso de uma ou mais unciae
Um primeiro grupo de objetos relacionados com as (Ponte, 1979: 123-125).
atividades de pesagem é o das balanças, tanto as de O aspeto das librae recuperadas nas escavações de
braços iguais (librae) como as de braços assimétricos Conimbriga, embora com particularidades específi-
(staterae). O estudo destas peças tem-se reduzido, cas em cada peça, corresponde à descrição tradicio-
habitualmente, à sua observação do ponto de vista nal deste tipo de objectos: dois braços de dimensões
formal ou, por vezes, à verificação das inscrições que idênticas, na junção dos quais existe um feltro ou uma
possam conter (Chaves e Pliego, 2007: 242-243). Os perfuração que permite a sua suspensão; nas extre-
materiais deste tipo documentados em Conimbriga midades existem duas outras perfurações com anéis
destacam-se pela sua notável quantidade, o que faz para segurar as correntes de que pendem as placas.
com que, no momento em que escrevemos, seja a Em contrapartida, a morfologia das staterae é di-
maior concentração de achados em contexto urba- ferente consoante cada peça e a função que lhe é
no para o período romano na Península Ibérica. Esta atribuída, que pode incluir um peso móvel e uma ou
situação evidencia o relativo uso quotidiano de ins- mais perfurações para facilitar a suspensão de pratos
trumentos de pesagem durante o Império Romano, ou de contrapesos, etc.
em geral, e na Hispânia, em particular. Em Conimbriga não foi recuperada nenhuma libra
É verdade que o que foi recuperado são pratos, braço ou statera completa, pois são peças delicadas que so-
e cabos, a maior parte deles em estado fragmentário, freram com o uso frequente e a passagem do tempo.
mas ainda assim é possível calcular o número de es- Para além disso, como eram feitas de bronze, muitas
calas a que devem ter correspondido. Os achados des- delas terão certamente sofrido um processo de reci-
tas peças foram documentados em diferentes partes clagem. No entanto, nas colecções do Museu Mono-
do sítio, mas especialmente em áreas públicas como gráfico de Coimbra foi possível localizar diferentes
o criptopórtico do Forum Flaviano ou nas Thermae partes dos elementos que constituíam originalmen-
monumentais da cidade. As suas características de- te estes objectos.
monstraram que tanto as librae como as staterae eram
constantemente utilizadas, e a principal caraterísti- 3.1.1. Braços de balança
ca comum é o facto de serem todas feitas de bronze. S. da Ponte (1997: 124-125) já observou e examina-
A preferência pelo uso do bronze deve-se ao facto de, ram-nas de perto, uma vez que algumas apresentam
devido à sua maior dureza, ser muito mais difícil de marcas de valor junto aos entalhes que indicariam
manipular para efetuar modificações. Logicamente, o peso correspondente. Esta investigadora já tinha
esta é uma propriedade fundamental em objetos de- constatado a existência de nove braços provenientes
dicados ao controlo preciso de pesos. Além disso, este das antigas escavações, que examinou cuidadosa-
grupo de materiais caracteriza-se também pelo facto mente, observando já nessa altura que alguns deles
de todas as peças serem de pequenas dimensões; o apresentavam marcas de valor junto aos entalhes
diâmetro das placas é muito reduzido e a maioria dos que indicariam a calibração para o peso correspon-
braços não atinge os 20 cm de comprimento. dente. Ela considera que, com exceção do n.º 9, que
876
que identificou dois delas e às quais podemos agora tes formatos e eram fabricadas em diversos metais,
adicionar dois mais. consoante as fases a que pertenciam e os fins a que
De facto, são as próprias características formais des- se destinavam.
tas peças que nos levam a relacioná-las com as ba- Neste sentido, devemos destacar a presença, entre
lanças de Conimbriga, pois o seu aspeto é semelhan- os achados na cidade romana, de formas já existen-
te. São também de bronze e de pequenas dimensões, tes no mundo pré-romano, como a bitroncónica ou
atingindo no máximo 8 cm. Excecionalmente, algu- a discoidal (Poigt, 2022: 243-245, 284-287 e 311-313),
mas destas peças apresentam uma parte do fuste de- que atestam que continuavam a ser utilizadas duran-
corada com espirais. te o século I d. C. Ao mesmo tempo, novos formatos
estavam a ser utilizados em paralelo; um exemplo
3.2. Pesos desta utilização paralela são as finas peças discoidais
Publicações anteriores assinalaram também, entre com círculos concêntricos como elemento decorati-
os materiais provenientes das escavações em dife- vo, muito semelhantes às que também foram docu-
rentes pontos da cidade, a presença de objetos que mentadas no macellum de Iruña/Veleia, em Iruña de
podem ser considerados, de acordo com as suas Oca, na província de Álava (Aurrecochea-Fernán-
características, como pesos e contrapesos. Concre- dez, 2021: 7, fig. 5) e com um formato semelhante
tamente, S. da Ponte (1979: 131-132) inventariou até em Colonia Clunia Sulpicia, atualmente Coruña del
15 peças, em bronze, ferro e chumbo, de diferentes Conde, na província de Burgos.
formatos. Vamos agora comentá-las, diferenciando- A evolução dos ponderais completa-se com outros
-as de acordo com a sua finalidade. exemplares de forma retangular ou esférica trunca-
Um facto fundamental em relação aos pesos encon- da, alguns dos quais com uma inscrição gravada na
trados em Conimbriga é a quase ausência de infor- sua superfície indicando o seu valor, como é o caso
mação sobre o contexto em que foram encontrados do pondus de Conimbriga que ostenta a letra gamma
para mais de metade dos exemplares. Para além dis- (Γ). Estas marcas incluem as letras A, B ou S, o que
so, no caso daqueles para os quais foi possível identi- serviu de base para Palol (1949) considerar que estas
ficar a sua proveniência, há um grande grupo que foi peças eram exagia, ou seja, peças oficiais utilizadas
recuperado nos níveis correspondentes às últimas para verificar a exatidão das medições. Os diferentes
fases de ocupação do enclave, datados do período estudos deste investigador, que lhe permitiram reco-
tardio (Alarcão et al., 1979: 175-177). Apesar disso, lher numerosas peças deste tipo, situam-nas sempre
a morfologia, o peso e o metal utilizado no fabrico no período Baixo-Imperial (Palol, 1952); no entanto,
estas peças apontam para cronologias muito ante- os pondera com esta forma e estas marcas já eram
riores, sobretudo do Alto Império, sugerindo que utilizados no Império Romano a partir do século II
estes objetos chegaram a estes níveis com carácter d.C. como já foi referido por C. Corti (2001: 192) em
residual. Outra hipótese que se pode considerar é Mutina, a antiga Modena, em Itália.
a de que estes objetos foram utilizados durante um No que respeita à os pondera recuperados em Co-
longo período de tempo, o que permitiria reconhe- nimbriga, é de notar que, na maioria dos casos, são
cer práticas de pesagem ao longo do período romano divisores da libra, ou seja, são peças com pesos redu-
neste sítio. zidos, entre as quais se documentaram mesmo divi-
S. da Ponte (1997: 131-132 e est. 2, n.ºs 17-34) publi- sores da uncia. As únicas excepções são dois exem-
cou 18 pesos, para os quais dá os pormenores físicos plares com circa 324/327 g, que é o valor teórico da
e os desenhos correspondentes, embora não distin- libra no sistema de pesos romano.
ga quais são do tipo pondus e os do tipo aequipon- Quanto ao material em que foram fabricadas, verifi-
dium. Durante a revisão que efectuámos no Museu ca-se uma predominância do bronze sobre o chum-
Monográfico de Conimbriga identificámos um total bo. Se se combinarem estes dados com os que se
de 28 pesos de ambos os tipos. podem deduzir do peso, parece ser possível colocar
a hipótese de que estas peças eram utilizadas para
3.2.1. Pondera (Figura 4) pesar materiais em pequenas quantidades e devem
Referimo-nos agora aos pesos utilizados nas balan- corresponder a testemunhos de peso relacionados
ças de dois braços. Este tipo de peças, conhecidas com a avaliação de produtos de elevado valor, facto
em latim como pondus, apresentam-se em diferen- que já foi assinalado anteriormente. Em termos de
878
de Conimbriga, uma vez que há ainda uma série de LÓPEZ QUIROGA, Jorge (2013) – Conimbriga tardo-antigua
aspectos que necessitam de uma reflexão mais deta- y medieval: Excavaciones arqueológicas en la domus Tanci-
lhada, mas também de uma comparação pormenori- nus (2004-2008). (Condeixa-a-Velha, Portugal). Oxford:
Archaeopress.
zada com outros materiais semelhantes da Hispânia.
Só assim será possível reconhecer todos os factores PALOL, Pere de (1949) – Ponderales y exagia romano-bizan-
subjacentes à utilização deste tipo de objetos nesta tinos en España. Empúries: revista de món clàssic i antiguitat
tardana. Ampurias, 11, pp. 127-150.
esta notável cidade romana.
PALOL, Pere de (1952) – De Exagia, Noticias de nuevos pon-
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de Boccard.
880
Figura 2 – Componentes de uma balança de várias origens: 1. Elemento (aigina) para suspender a libra ou bilanx (comp. 80
mm); 2. Barra constituída por dois braços iguais (scopus) encimados por argolas (comp. 94 mm); 3-4. Par de pratos com orifícios
para serem presos por cadeias e pendurados nas argolas na extremidade da barra (diám. 31-38 mm respetivamente). 5. Pequeno
ponderal em bronze (peso: 8,4 g). Para tentar dar uma imagem do que poderia ter sido uma balança real, o tamanho das peças
foi combinado.
Figura 3 – Vários elementos que compõem as balanças, todos encontrados em Conimbriga: 1. Barra de uma libra; 2-4. Barras
de várias staterae com marcas gravadas; 5-7. Vários pratos (lances), alguns mais deteriorados e até dobrados; 8. Elemento de
suspensão para uma balança (aigina).
882
Figura 5 – Aequipondia de diversos materiais e formas encontrados no traçado urbano de Conimbriga (de acordo com S. da
Ponte, 1997: est. 2 y para os nossos números 2 fotografia tomada por D. Barrios Rodríguez).
RESUMO
O presente trabalho tem como objectivo principal desenvolver o conhecimento sobre os pesos de tear exuma-
dos nas intervenções arqueológicas no sítio das Almoínhas, intervencionado pelo Museu Municipal de Loures
(1995-2002) e pela empresa ERA-Arqueologia (2005/2006). Sito no actual concelho de Loures, tem uma ocupa-
ção comprovada entre o início do século II e a primeira metade do século VI d.C..
Trata-se de um sítio com uma arquitectura complexa, de diferentes funcionalidades, nomeadamente através
de um edifício habitacional, um edifício associado a possíveis trabalhos produtivos, uma área de lixeira, uma
área necropolar, parcialmente escavada e estudada, e três fornos de produção cerâmica, com os quais parte do
espólio em análise poderá estar relacionado (acumulações de materiais junto a estas estruturas).
Sobre o sítio de Almoínhas já se encontram estudados os conjuntos de cerâmicas finas e ânforas, os quais, alia-
dos a uma remontagem estratigráfica, permitem que actualmente exista uma crono-estratigrafia da ocupação
já bastante bem delineada.
Tendo em consideração os dados crono-estratigráficos do sítio, analisar-se-á este conjunto de pesos de tear,
constituído por algumas dezenas de exemplares, que se apresenta como inovador para o conhecimento do ager
de Olisipo, pelo seu conjunto de decorações e grafitos, temática praticamente desconhecida na bibliografia so-
bre a região.
Palavras-chave: Morfologia; Fabricos; Estratigrafia; Séculos I/II-VI d.C.
ABSTRACT
The main objective of the present work is to develop knowledge on the loom weights exhumed during the ar-
chaeological interventions at Almoínhas, which was intervened by Loures´ City Council Museum (1995-2002)
and by the company ERA-Arqueologia (2005/2006). Located in the present-day municipality of Loures, its oc-
cupation is dated between the beginning of the 2nd century and the first half of the 6th century AD.
This is a site with a complex architecture, from different functionalities, namely through a residential building,
a building associated with possible productive work, a rubbish dump area, a partially excavated and studied
necropolis area and three ceramic production kilns, to which part of the remains under analysis may be related
to (accumulations of materials next to these structures).
The sets of fine ceramics and amphorae from Almoínhas have already been studied, and, together with a strati-
graphic reassembly, allow for the existence of a well-defined chrono-stratigraphy of the occupation.
Taking into consideration the chronostratigraphic data of the site, we will analyse this set of loom weights, con-
stituted by some dozens of specimens, which presents itself as innovative for the knowledge of the Olisipo ager,
due to its set of decorations and graffiti, a theme practically unknown in the bibliography of the region.
Keywords: Morphology; Fabrics; Stratigraphy; 1st/2nd-6th c. AD.
1. Bolseiro FCT (2022.13166BD). Universitat Rovira i Virgili. CHAM – Centro de Humanidades. Universidade Nova de Lisboa. NOVA/
FCSH / [email protected]
886
evolução do sítio arqueológico, os pesos de tear estão tendo ficadas registadas enquanto indeterminadas.
presentes em seis das fases, com particular relevân- Cronologicamente, a leitura passível de ser efectua-
cia para a segunda metade do século III d.C. (250- da é relativamente reduzida, sendo de notar a repre-
300 d.C.) (fig. 5), uma fase já bem conhecida no sítio sentação do motivo com um círculo na fase de 500+
e que coincide com o pico do consumo e desenvolvi- d.C., no interior do espaço do núcleo Sul da Área 3,
mento arquitectónico dos espaços (Lopes, 2022). sendo a única evidência datável que poderá estar
O edifício habitacional da Área 1 é o local de maior num hipotético contexto de uso.
concentração de vestígios (19 NMI), ainda que a dis- Quanto aos três círculos, dois dos exemplares são
persão contextual e diacrónica seja muito elevada e provenientes de um contexto pouco claro ([102] –
por vezes de difícil interpretação, não havendo con- possível nível de descarte/entulho) na envolvente
centrações de materiais numa unidade estratigráfica dos fornos, sendo sugestiva a sua ligação com estas
ou compartimento. estruturas. O outro exemplar surge no desmonte do
Apenas no âmbito cronológico parece existir algu- muro [3028] do edifício Norte da Área 3, na fase de
ma coerência de dados, já que há três momentos de 500+ d.C., não sendo absolutamente claro pelo re-
destaque, nomeadamente o final do século II d.C., gisto da intervenção se este material poderia estar
momento em que aparentemente é concluída a imbricado no aparelho do muro, e assim pertencer às
construção do edifício da Área 1 (Lopes, 2022); mea- fases alto-imperiais do sítio, ou corresponder aos ní-
dos e a segunda metade do século III d.C.; e o final veis associados ao colapso e abandono da estrutura.
do século V d.C., quando o edifício é reocupado com
fenómenos de squatting (Lopes, 2022; Quaresma e 4. FABRICOS
Lopes, no prelo).
Para além destes dados, em termos espaciais, pode No que respeita aos fabricos identificados no con-
ser apontado o registo de três pesos de tear na U.E. junto de Almoínhas, determinou-se um total de cin-
102, referente a um contexto que, ainda que de di- co grupos, tendo o primeiro fabrico três subgrupos.
fícil interpretação, poderá corresponder a níveis de É possível caracterizar globalmente as produções
descarte associados aos fornos 1 e 2, cujo funciona- como dominantemente quartzíticas e de cozedura
mento está apontado para os séculos II-III d.C. (Bra- maioritariamente oxidante, onde o grupo 1 é larga-
zuna e Coelho, 2012; Lopes, 2022). mente dominante (87,5%).
Quanto aos grupos de fabrico podem ser descritos
3. GRAFITOS/ELEMENTOS DECORATIVOS como:
Grupo 1.1 – pasta pouco depurada com abun-
O conjunto de grafitos corresponde a um grupo limi- dantes ENP visíveis a olho nu. Presença de
tado de motivos, de onde se destaca a dominância abundante quartzo hialino e leitoso de pequena
do motivo de círculo no topo do peso, quer seja com e média dimensão, encontrando-se também
apenas um círculo (1 NMI – fig. 3, nº 12) ou um con- algum hialino sub-rolado. Alguns vacúolos, dis-
junto de três círculos (3 NMI – fig. 3, nº 3 a 6). persos, de formato tendencialmente redondo
Para além destes motivos, há um grafito, na face la- e pequena dimensão. Abundante moscovite,
teral, que grafa um possível numeral, X (fig. 3, nº 7), tendencialmente fina. Abundantes elementos
bem como um outro grafito, no topo (fig. 2, nº 1), que ferruginosos, de dimensão diversa. Presença
poderá ser interpretado enquanto VAL(erii), genti- ocasional de alguns ENP indeterminados, as-
lício bem conhecido no ager olisiponensis (Encarna- sim como de feldspatos.
ção, 1984). Grupo 1.2 – Abundante quartzo hialino e leitoso
É de notar que este grafito não é caso único de re- de pequena e média dimensão, encontrando-se
gisto de um gentilício no vale de Loures, nomeada- exemplares rolados bem distribuídos. Alguns
mente, registando-se um IVL(ii), no sítio de Unhos vacúolos dispersos de formato tendencialmente
(Silva e Santos, 2007), nome de família que é bem redondo e pequena dimensão. Abundante mos-
conhecido epigraficamente no território do vale de covite, tendencialmente fina. Presença ocasio-
Loures (Fernandes, 1998). nal de ENP indeterminados, assim como de fel-
A par disto, três outras evidências parecem apresen- dspatos. Destaca-se, a título individualizador, a
tar escrita cursiva, mas de difícil leitura, e, por tal, presença abundante de chamota.
888
uma aproximação à normalidade (p.-Value = 0,048), A altura, embora não tão evidente como a correlação
sem novos outliers. entre as duas larguras, apresenta uma certa correla-
As amostras existentes permitem-nos afirmar que ção com a largura máxima (r=0,624), embora dentro
provavelmente os pesos de tear teriam profundida- daquilo que se considera uma correlação moderada.
des de orifício entre os 27 mm e os 40 mm, com uma A correlação da altura com a largura mínima tem um
tendência à centralidade nos 35 mm com um desvio r demasiado baixo (r=0,481), o que permite afirmar
padrão de 3 mm. que a correlação não existe.
890
Figura 1 – Planta geral dos vestígios exumados no sítio romano de Almoínhas entre 1995 e 2007, estando assinalada, nas áreas
a amarelo, a zona das intervenções municipais (Lopes, 2022).
892
Figura 3 – Pesos de tear de Almoínhas. 7 – Peso 26, [3150], fabrico 1.1; 8 – Peso 14, [1015], fabrico 2; 9 – RO. 23854, [1493], fabrico
1.1; 10 – Peso 2, sem U.E., fabrico 2; 11 – RO. 22208, [1615], fabrico 1.1; 12 – Peso 16, [3054], fabrico 1.1.
894
Fase/Morfologia Quadrangular Rectangular Trapezoidal Ind. TOTAL
100+ - - 2 - 2
190/200+ - - 4 - 4
250-300 1 2 5 - 8
270-280/290+ - 2 1 - 3
300+ 1 - - - 1
Século III? - - 1 - 1
Século IV - - - 1 1
2ª metade século IV - 1 1 1 3
250 a 500+ - - 1 - 1
400+ - - 1 - 1
460+ - - 1 - 1
475+ 1 - - 1 2
500+ 2 - 1 - 3
525+ - - 1 - 1
Superfície - - 1 - 1
Ind. 2 2 10 1 15
TOTAL 7 7 30 4 48
Figura 5 – Relação entre morfologia dos pesos e distribuição na diacronia de ocupação de Almoínhas.
896
Figura 7 – Teste de normalidade à profundidade do orifício dos pesos de tear da colecção completa
(N=37) e da colecção sem outliers (N=34).
898
Figura 9 – Teste de normalidade à altura dos pesos de tear.
900
A TERRA SIGILLATA E A CERÂMICA
DE COZINHA AFRICANA NA CIDADE
DE LISBOA NO QUADRO DO COMÉRCIO
DO OCIDENTE PENINSULAR – O CASO
DO EDIFÍCIO DA ANTIGA SEDE DO BANCO
DE PORTUGAL
Ana Beatriz Santos1
RESUMO
Apresenta-se uma abordagem ao conjunto de terra sigillata e de cerâmica de cozinha africana exumado no de-
correr da intervenção arqueológica realizada no edifício da antiga Sede do Banco de Portugal.
Identificaram-se diversas categorias cerâmicas, com uma diacronia que se estende desde o final do séc. I a.C.
até finais do V/meados do séc. VI d.C., tais como a sigillata itálica, a sudgálica, a de imitação tipo Peñaflor, a
hispânica, a sigillata clara A, C e D, a hispânica tardia e a cerâmica de cozinha africana.
Este estudo permitiu observar padrões de consumo e de importação destas cerâmicas para a área de Lisboa,
assim como comparar os dados obtidos com as informações existentes para outros sítios de Olisipo e do actual
território português.
Palavras-chave: Terra sigillata; Lisboa; Romano; Cerâmica de Cozinha Africana; Olisipo.
ABSTRACT
We present the study of terra sigillata and African cooking ware recovered during the archaeological interven-
tion carried out in the building of the former Sede of Banco de Portugal.
Several ceramic categories were identified, from the late 1st century BC to the late 5th/mid 6th century AD, such
as the Italian sigillata, South Gaulish, the imitation type Peñaflor, Hispanic sigillata, African Red Slip A, C and D,
Late Hispanic sigillata and African cooking ware.
Based on the forms, fabrics and their chronological context, this study allowed the identification of patterns of
consumption and import of these ceramics to the area of Lisbon, and the comparison of the data with existing
information for other sites in the Lisbon area and the Portuguese territory.
Keywords: Terra sigillata; Lisbon; Roman; African Cooking Ware; Olisipo.
1. UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa, FLUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa /
[email protected]
902
(nº8), Ritt. 9 (nº13) e à taça/prato Drag. 35/36 (nº12). de La Graufesenque a exportar as suas peças. Neste
Estas formas encontram-se datadas genericamente centro produtor identificaram-se exemplares com a
entre os inícios do séc. I d.C. e os inícios do séc. II sua marca juntamente com os desperdícios perto de
(Passelac e Vernhet, 1993). um forno que foi utilizado entre 80 d.C. e 120/130
As formas decoradas são compostas por sete NMI, d.C. Apesar da difusão deste oleiro estar reconhe-
correspondendo às taças Drag. 29B e Drag. 37. Os cida em França, Inglaterra, Alemanha e Holanda,
exemplares de Drag. 29B ostentam guilhoché, sen- aparentemente até ao momento não se conheciam
do que o nº11 não conserva a restante composição exemplares na Hispânia de acordo com a base de da-
decorativa, e no nº20 a decoração encontra-se mui- dos Samian Research.
to desgastada, sendo possível identificar o que seria As primeiras sigillatas sudgálicas devem ter chegado
um círculo acompanhado de um festão. a esta área de Lisboa em torno da primeiras décadas
Um fragmento de bordo da forma Drag. 37 (nº21) do séc. I d.C., como comprova a existência das for-
apresenta uma decoração tremida, o que demonstra mas Ritt. 9 e Drag. 24/25. O estudo das formas lisas
uma moldagem mal conseguida, na qual se observa e decoradas, assim como das marcas de oleiro, indi-
uma linha de pérolas seguida de uma figura mitológi- ca-nos que a sua importação se distribuiu de forma
ca alada, idêntica ao motivo Apolo – APO 001 (Mees, relativamente regular sobretudo entre os meados do
2014), podendo este ser atribuído ao oleiro Sabinus i, séc. I d.C. e o primeiro quartel do séc. II d.C.
que laborou entre as décadas de 50 e 100 d.C. Verificamos que nos demais sítios da área de Lisboa
Existem mais 10 exemplares com decoração de for- existem duas formas comuns, a Drag. 18 e a Drag.
ma indeterminada (paredes e um fundo), datados 27, sendo estas igualmente as formas mais frequen-
entre o período de “esplendor” e de “transição” de tes nesses locais. A presença sistemática das mes-
La Graufesenque, ou seja, entre 40 e 80 d.C., como mas formas demostra o grande sucesso, em termos
comprovam os motivos presentes nas decorações. O comerciais, que estas tiveram, pois, os conjuntos
nº17 apresenta uma linha de óvulos intercalados por são muito desiguais do ponto de vista da formação
uma lingueta a terminar em roseta de sete pétalas das amostras.
com um pequeno ponto no centro da roseta. Esta de-
coração está associada ao oleiro Calvo e é das mais 3.1.3. Terra Sigillata Hispânica e de imitação tipo
comuns do séc. I (Dannell, Dickinson e Vernhet, Peñaflor (Fig. 5)
1998, p. 81). Já no nº14 observa-se a decoração de A amostra de sigillata hispânica é constituída por 274
uma ave, aparentemente dentro de um medalhão. fragmentos (87NMI), tendo sido identificadas duas
A peça nº18 apresenta folhas ladeadas por círculos. produções distintas: a de Tritium Magallum e a de An-
Os motivos presentes no nº15 parecem correspon- dújar; e ainda a sigillata de imitação tipo de Peñaflor.
der a uma composição de cruzes de Santo André A sigillata de imitação tipo Peñaflor teve vários cen-
intercaladas com um motivo que não foi possível tros produtores, alguns já comprovados arqueolo-
identificar. E por último, o nº19 possui duas linhas gicamente, como o sítio de Peñaflor (antiga Celti),
peroladas, divididas por uma moldura, seguidas de Isturgi e Colonia Patricia (Vázquez Paz e García Var-
motivos vegetais e de uma ave. gas, 2014, p. 301-321). A sua produção iniciou-se por
Na amostra estudada registaram-se ainda quatro volta da época tardo-republicana e pré-augustana
fragmentos marmoreados, tendo sido possível en- chegando ao séc. V, apresentando sobretudo formas
quadrar dois destes indivíduos nas formas Drag. que imitam formas itálicas e de engobe vermelho
35/36 e Ritt. 9. pompeiano. Registou-se somente um pequeno frag-
Contabilizaram-se duas marcas de oleiro, sen- mento de bordo (nº41) com este fabrico, que corres-
do identificado o oleiro somente numa (nº18) que ponde ao tipo III de Martinez, tipologia posterior-
apresenta cartela retangular onde se pode ler OF mente revista por Amores e Keay (1999), que imita
SENOV, sendo que a letra E se encontra retrógrada, os pratos de engobe de vermelho pompeiano.
correspondendo possivelmente ao oleiro Senoviri. Produzidas no centro de Tritium Magallum identi-
Segundo Polak (2000, p. 331), C. Cingius Senoviri (já ficaram-se 132 fragmentos. Já dentro da produção
registada na base de dados Samian research com o de Andújar distinguiram-se dois fabricos, que de-
ID 161820: Samian Research, C. Cingius Senoviri 7a, nominámos fabrico Andújar I (107 fragmentos) e II
http://www.rgzm.de/samian) foi dos últimos oleiros (14 fragmentos).
904
possui dois fabricos, o D1 (26 fragmentos) e o D2 nas (Paz Peralta, 2008, p. 506 e 507).
(sete indivíduos), que se subdividem em duas fases O seu fabrico assemelha-se às produções de Tritium
cada, às quais correspondem diferentes cronologias Magallum e do vale do Ebro, mais precisamente ao
e características de pastas e engobes, contudo, esta Conjunto A, Grupo 1 de Paz Peralta (2008, p. 498),
distinção não foi possível na maioria dos fragmentos. que tem uma cronologia entre o séc. III e a primeira
A amostra de sigillata clara D é composta por seis metade do IV.
formas diferentes e respetivas variantes: a Hayes 59 Somente conseguimos caracterizar tipologicamente
(nº55), a mais antiga, datada do primeiro quartel do um fragmento (nº40), identificado como os pratos
séc. V, a Hayes 61 (A e B) (nº53), a Hayes 67 (nº57), a das formas 8.9 a 8.11 (a forma 8.9 corresponde à for-
Hayes 76 (nº56), a Hayes 91 (C) (nº54) e a Hayes 99, ma Paz 83B, enquanto as 8.10 e 8.11 correspondem à
sendo as duas últimas as mais tardias da amostra, forma Palol 2), por serem as mais idênticas ao nosso
com cronologias dos finais do séc. V/meados do VI bordo, produzidas entre 450 e 500, que imitam as
d.C. Foi também contabilizado o fragmento nº58 de formas Hayes 61B ou 84 (Paz Peralta, 2008).
parede/fundo decorado por rosetas impressas, cor- Tal como no Banco de Portugal, também nos demais
respondentes ao estilo A (ii) datado do segundo/ter- sítios da área de Lisboa esta produção não se en-
ceiro quartel do séc. IV (Hayes, 1972), ladeadas por contra bem representada, ou não está ainda devida-
dois sulcos superiores e dois sulcos inferiores, cuja mente estudada. Assim, registou-se um fragmento
forma não conseguimos determinar. Estes motivos da forma Drag. 37 no NARC (Bugalhão, 2001), um
de rosetas ocorrem com frequência juntamente com outro exemplar da mesma forma no circo de Olisipo
motivos de folhas de palma e surgem habitualmente (Sepúlveda et alii, 2002) e 21 fragmentos desta pro-
em recipientes das formas Hayes 59, 61A e 67. dução na Praça da Figueira (Ribeiro, 2010).
Em síntese, a sigillata clara A poderá ter iniciado a
sua importação em torno a primeira metade do séc. 3.2. Cerâmica de Cozinha Africana (Fig. 6)
II. Posteriormente, a partir de meados desse século e A amostra de cerâmica de cozinha africana está re-
durante a primeira metade do séc. III, com o declínio presentada por 231 fragmentos (162 NMI). Foi pro-
das produções hispânicas e com a progressiva imposi- duzida em três fabricos diferentes: o A, derivado da
ção da sigillata clara A, esta deverá ter adquirido pre- sigillata clara A, com origem provável no norte da
dominância no consumo deste tipo de produtos em Tunísia; o fabrico B, que se distingue pelo polimento
Olisipo. No que concerne às sigillatas clara C e D, pos- em bandas, oriundo da Bizacena; e o fabrico C, mais
suímos amostras relativamente reduzidas. Isto pode especificamente C/A, com peças de bordo enegre-
ser indicador de uma menor atividade comercial e in- cido, com uma produção situada principalmente no
dustrial, assim como um menor consumo nesta área norte da Tunísia, (Bonifay, 2004).
específica da cidade a partir da segunda metade do Começou a ser produzida a partir do séc. I d.C., sen-
séc. III até meados do VI d.C., sendo inclusive ausen- do o seu apogeu em meados do séc. II d.C., quando
te neste conjunto a sigillata foceense tardia. surgiram novas formas que serviriam para conter lí-
No que respeita à sigillata norte africana não existe quidos, como jarras, púcaros e potes, assim como no-
ainda muita informação disponível que nos permita vas variantes das peças já existentes (Aquilué, 1995).
traçar o seu perfil de importação para outras áreas No espólio em estudo identificaram-se nove formas
de Lisboa. diferentes e as suas respetivas variantes, sendo as
mais comuns o tacho Hayes 197, seguida do prato/
3.1.5. Terra sigillata hispânica tardia (Fig. 5) tampa Hayes 196 e da caçoila Hayes 23B.
A sigillata hispânica tardia desta amostra é compos- O tacho Hayes 197 (nº63), produzido no fabrico C/A,
ta somente por dois fragmentos. está representado com 75 indivíduos. Apresenta três
Estas sigillatas surgem no séc. III/IV, chegando a sua variantes: a variante precoce, datada dos finais do
produção até inícios do séc. VI, e caracterizam-se séc. II, a variante clássica, com cronologia dos finais
por possuir pastas de menor qualidade, feitas com do séc. II e o III, e a variante tardia, dos finais do séc.
argilas mais grosseiras, cozidas a temperaturas mais III e inícios do IV, não tendo sido possível identificar
baixas, de cor rosa-alaranjadas, com vernizes laran- as variantes em alguns fragmentos (Bonifay, 2004;
jas, porosos, pouco aderentes e opacos, observando- Hayes, 1972).
-se grandes influências das produções norte africa- A evolução tipológica do prato/tampa Hayes 196
906
de cada categoria pelo número de anos em que de- dem corresponder a um momento de maior intensi-
correu a sua importação. Assim, para a sigillata itá- dade da atividade comercial e industrial nesta área
lica considerou-se um período de importação de 30 de Olisipo.
anos, para a sudgálica um período de 50 anos e para Não identificamos fragmentos de sigillata foceense,
a hispânica de 100 anos. mas a sua ausência não surpreende, pois a amostra
Como se pode observar no gráfico da figura 3, onde de sigillata clara D é também ela escassa. Esta me-
se compara o conjunto em estudo com Praça da Fi- nor representatividade de sigillata clara D, tal como
gueira e R. Augusta de acordo com esta estimativa, a já acontece na sigillata clara C, pode indicar uma
sigillata itálica é predominante no conjunto da Praça menor atividade comercial e industrial, assim como
da Figueira, seguindo-se o conjunto da Rua Augusta, um menor consumo desta a partir do séc. III até
sendo a sua representatividade no Banco de Portu- meados do séc. VI d.C. nesta área específica da cida-
gal bastante escassa. Isto explica-se com as diferen- de. Contudo, a informação existente sobre os ritmos
tes cronologias dos sítios, sendo a Praça da Figueira de desenvolvimento da atividade de transformação
ocupada ainda no séc. I a.C., a Rua Augusta não pos- de preparados piscícolas conhecida nesta área ribei-
suindo elementos anteriores à segunda década do rinha de Lisboa, mostra que as atividades perduram
séc. I a.C. (Silva, 2012), e o Banco de Portugal tendo até meados do séc. V/VI, o que parece contradizer
ocupação mais tardia. Nos restantes sítios apresen- estes dados. Assim, estes dados devem ser lidos com
tados esta cerâmica encontra-se presente, mas em a devida precaução e devem ser atestados com ou-
menor escala, sendo, contudo, no sítio em estudo tros estudos de áreas próximas que podem vir a con-
onde é menos comum. firmar, ou não, o que agora se observou.
No que concerne à sigillata sudgálica esta estimativa No que concerne à cerâmica de cozinha africana, ape-
revela dados bastante homogéneos nos conjuntos sar da fraca atenção que tem merecido em detrimen-
estudados, sendo novamente nos sítios da Praça da to de outras categorias (cerâmica finas ou ânforas),
Figueira e da Rua Augusta nos quais a representa- assinala-se a sua presença na área do teatro romano,
tividade desta categoria é maior. O mesmo já não na Rua dos Fanqueiros e no fundeadouro da Praça D.
ocorre com a sigillata hispânica que, apesar de con- Luís I (Fernandes, Sepúlveda e Antunes, 2012; Diogo
tinuar a ter uma presença significativa na Praça da e Trindade, 2000; Parreira e Macedo, 2013).
Figueira, tal não se verifica na Rua Augusta, sendo O sítio do Banco de Portugal seria muito possivel-
bastante maior a incidência de sigillata hispânica no mente uma zona próxima ao porto de Olisipo, ou um
Banco de Portugal. possível aterro programado (Mota e Martins, 2020)
Não foi possível efectuar cálculos das estimativas ou lixeira como recentemente propôs J. Ácero Pérez
de importação médias anuais para as sigillatas nor- (2020), sendo que os fragmentos estudados nos per-
te africanas, porém, verificou-se através da amostra mitem fornecer alguns elementos que poderão con-
de dados publicados do NARC (Bugalhão, 2001) tribuir para o conhecimento da antiga Olisipo, dos
que a existência de sigillatas norte africanas é maio- seus ritmos de consumo e importação, aspectos que
ritária. Também no fundeadouro da Praça de D. o estudo das ânforas já realizado (Filipe, 2019) tam-
Luís I (Parreira e Macedo, 2013), se encontra esta bém comprovam.
realidade, existindo inclusive imitações de sigillata Em síntese, Olisipo teria uma intensa atividade mer-
norte africana. cantil, sendo ponto de chegada, troca e redistribui-
No Banco de Portugal, a percentagem de sigillata ção de produtos alimentares e de cerâmicas para
clara A é de 31,48%, sendo a categoria mais abun- diferentes partes da Península Ibérica, quer por via
dante. Esta elevada percentagem indica que foi en- terrestre quer por via marítima.
tre os finais do séc. I d.C. e a primeira metade do
séc. III que esta área da cidade recebeu/utilizou e/ BIBLIOGRAFIA
ou descartou a maior parte deste tipo de cerâmica de ÁCERO PÉREZ, Jesus (2020) – A gestão dos resíduos na
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Figura 1 – A) Localização do sítio no quarteirão que ocupa; B) e C) Perfil estratigráfico onde se observam os Horizontes
sedimentares (gentilmente cedidas por Artur Rocha); D) Estado dos horizontes antes da limpeza do perfil (gentilmente
cedida por Artur Rocha).
Figura 2 – A) Gráfico da distribuição do total dos fragmentos das diferentes categorias de terra sigillata; B) Tabela com o Número
de fragmentos e o Número Mínimo de Indivíduos por categorias cerâmicas e fabricos.
910
Figura 3 – Gráfico Estimativa das quantidades médias anuais das diferentes categorias de terra sigillata recebida na área de Lisboa.
912
Figura 5 – Terra sigillata hispânica (22 ao 39); hispânica tardia (40); imitação tipo de Peñaflor (41); sigillata clara A (42 ao 48).
Formas lisas à escala 1:3 e decoradas à escala 1:2.
914
ANÁLISE (IM)POSSÍVEL DOS ESPÓLIOS
ARQUEOLÓGICOS DO SÍTIO
DO MASCARRO (CASTELO DE VIDE,
PORTUGAL)
Sílvia Monteiro Ricardo1
RESUMO
O sítio de Mascarro foi intervencionado arqueologicamente na década de 1980, mostrando essencialmente
parte de um torcularium romano e compartimentos domésticos alto-medievais. Ainda que limitados pela me-
todologia utilizada, verificamos que existe uma cultura material e uma cultura construtiva bastante distinta nos
vários setores que é apenas parcialmente conhecida.
Consideramos que para entender este complexo local, especialmente em termos de cronologias ocupacionais e
de abandono, é essencial verificar e analisar os materiais encontrados durante as escavações arqueológicas ou
os achados de prospeção.
Palavras-chave: Castelo de Vide; Povoamento rural; Cultura material; Torcularium; Estruturas Alto Medievais.
ABSTRACT
The site of Mascarro was archaeologically intervened in the 1980s, essentially showing part of a Roman torculari-
um and high-medieval domestic compartments. Although limited by the methodology used, we found that there
is a material culture and a constructive culture quite distinct in the various sectors that is only partially known.
We believe that to understand this complex site, especially in terms of occupational and abandonment chro-
nologies, it is essential to verify and analyze the materials found during archaeological excavations or prospect-
ing findings.
Keywords: Castelo de Vide; Rural settlement; Material culture; Torcularium; High Medieval structures.
CHAIA-UÉ / [email protected]
916
pulturas pois nem rasgam posteriormente o piso para 4. ANÁLISE DOS MATERIAIS POR SECTOR
“fixar” a caixa tumular (Ricardo, 2015, 2017). Porém
não é possível compreender a sua funcionalidade. 4.1. Sector A
Analisando a tipologia destas estruturas, apontamos Neste sector foram recolhidos 24 fragmentos de
para a presença de um espaço habitacional. cerâmica2, 7 fragmentos de vidro, 5 elementos me-
O sector E compreende dois muros de duplo para- tálicos e 15 numismas. Em termos espaciais foram
mento, com enchimento de pedra miúda, formando recolhidos preponderantemente numa área que
um ângulo recto. Este compartimento prolonga-se consideramos de circulação.
para Poente, contudo não está totalmente escavado. Dentro do conjunto cerâmico foi possível reconhe-
Por ora, é inexequível compreender como se arti- cer algumas formas: 3 dolia, 1 pote, 5 fragmentos
culavam com o restante conjunto edificado, assim de ânfora, 1 prato, 1 jarro\bilha, 1 panela\pote (Ver
como a tipologia das estruturas. Figura 3A/3B). Ou seja, um maior predomínio para
Por fim, o sector F localiza-se dentro de uma estru- cerâmica de transporte e armazenamento. As pastas
tura recente, de planta retangular edificada de pedra apresentam-se, maioritariamente, bem depuradas,
seca, sem cobertura, que corresponderia a um case- com colorações que variam entre o castanho e o la-
bre de apoio à construção da linha férrea. Localiza- ranja, isto é, um conjunto cerâmico homogéneo. Em
-se sobre uma vasta zona de derrubes, não tendo termos de cronologia, o prato de Terra Sigillata Afri-
sido possível caracterizar as estruturas identificadas cana Clara D1 com decoração estampada, é datável
no subsolo. dos finais do século IV inícios do V d.C. (Hayes, 1972,
p. 241) e a ânfora Almagro 51 C, de produção lusitana
3. METODOLOGIA datável entre o século III e o século V d.C. (Viegas,
Raposo, Pinto, 2016) (ver Figura 3A). Os restantes
A grande questão metodológica consiste em como materiais, por se tratar de cerâmica comum apenas
abordar materiais com um grau tecno-tipológico tão podemos afirmar que deverão corresponder a perío-
diferenciado resultantes de uma intervenção arqueo- do baixo-imperial ou tardio.
lógica em que os princípios básicos de estratigrafia Atendendo ao conjunto vítreo, o elevado estado de
arqueológica foram completamente olvidados. fragmentação impossibilitou reconhecer formas.
Face a este constrangimento, optamos por estudar Quanto às tonalidades dos vidros variam entre o
estes materiais como se os mesmos fossem resultan- branco, o amarelo e o verde. Trata-se, no entanto, de
tes de trabalhos de prospeção. um conjunto muito homogéneo que se pode balizar
Assim, o primeiro passo foi a construção de uma ta- entre os séculos III a IV d.C. (Ricardo, 2015).
bela por forma a quantificar os materiais pelos secto- Foram igualmente recolhidos alguns materiais em
res e respetivas quadrículas intervencionadas. Toda- suporte metálico (ver Figura 9C), trata-se sobretudo
via, nem todos os materiais possuíam indicação ou de elementos de adorno e algumas formas indeter-
descrição de proveniência. minadas, as quais é inviável reconhecer a funciona-
O segundo passo foi agrupar os materiais consoan- lidade. De igual modo, não se podem avançar cro-
te as suas características tipológicas: cerâmicas, vi- nologias, uma vez que não encontramos paralelos
dros, metais, numismas e líticos. Após esta fase pro- arqueológicos datáveis.
cedemos à análise possível de cada grupo, por forma Quanto ao conjunto numismático este é formado
a tentar identificar formas, tipologias, produções por exemplares de uso corrente, cunhados sobre
e cronologias. ligas de bronze (ver Figura 4), enquadrando-se em
Por fim, tentamos correlacionar os materiais com as perdas isoladas e não em contexto de entesoura-
estruturas identificadas, por forma a compreender mento. Insere-se numa baliza cronológica centrada
melhor a função das mesmas. nos meados do século IV. No entanto é necessário
Todos estes dados foram compilados em tabela pos- ressalvar que comummente estes se encontram em
sibilitando assim uma comparação entre sectores. circulação durante décadas posteriores, «A duração
de circulação de uma moeda varia em função de diver-
918
moeda e 3 elementos de fixação (ver Figura 7A). As do terreno, existem outros materiais de que também
pastas apresentam-se maioritariamente bem depu- se desconhece a sua proveniência exata. Todavia,
radas, com colorações que variam entre o castanho, face às suas características, englobamos também
o cinzento e o laranja. Trata-se de um conjunto ce- nesta análise.
râmico muito reduzido e heterogéneo que deverá Relativamente aos materiais completamente des-
corresponder a um momento baixo imperial ou até contextualizados das intervenções trata-se de um
mesmo da alta idade média. conjunto composto por 97 entradas de inventário.
Mais uma vez o conjunto vítreo apresenta elevado Reconhecem-se algumas formas quer no conjunto
estado de fragmentação o que impossibilitou reco- cerâmico (1 almofariz, 3 panela/pote, 4 taças, 4 do-
nhecerem-se formas (ver Figura 7B). Quanto às to- lium e 66 fragmentos indeterminados) (ver Figura
nalidades dos vidros variam desde o branco, o azul e 9A/9B) quer no conjunto vítreo (4 taças campanula-
o esverdeado. Trata-se de um conjunto homogéneo das Isings 116/) (ver Figura 9D). Os materiais cerâmi-
que se pode delimitar entre os séculos IV/ a V. d.C. cos aparentam, mais uma vez, corresponder a duas
Por fim, regista-se um numisma, de liga de cobre, fases cronológicas distintas, se tivermos em conta as
balizado em 351-361 d.C. (ver Figura 7C). pastas e as cozeduras. Já os vidros, também seguem a
Neste sector, a estrutura posta a descoberto, os mate- mesma premissa que o restante conjunto, formando
riais exumados e a correlação entre ambos não pos- um conjunto homogéneo datável do século IV-V.
sibilitam compreender a tipologia ou uso do espaço. Quanto aos restantes materiais, metálicos e líticos,
não permitem tecer mais considerações, uma vez
4.5. Sector F que as suas formas e tipologias são enquadráveis em
Por fim, neste sector foram recolhidos 26 fragmen- diferentes períodos cronológicos. Por fim, foi reco-
tos de cerâmica5, 1 fragmento de vidro e 11 elemen- lhido nas escavações de 1983, sem indicação do local
tos metálicos. exato, um capitel jónico liso de influência toscana,
Dentro do conjunto cerâmico reconheceram 2 pote/ datável do século I d.C., em suporte granítico (Fer-
bilha, 2 taças, 2 dolium, 1 asa, 1 taça/tigela, sendo a nandes, 2001, p. 115).
maioria impossível determinar a forma (ver Figura Relativamente aos materiais de prospeção e acha-
8A/8B). Foram também recolhidos 8 elementos me- dos furtuitos, como referido, foi através do achado
tálicos, especificamente elementos de fixação, dos de dois trientes visigodos (Almeida, 1971, Rodri-
quais 1 botão e outros elementos indeterminados, e gues, 1975) que o sítio foi reconhecido. Todavia, já
1 bordo de vidro. As pastas cerâmicas apresentam-se à época apenas se noticia um deles, um tremisse de
maioritariamente bem depuradas, com colorações Égica (687-702) cunhado em Toledo (Guedes, 2008,
que variam entre o castanho, o cinzento e o laranja. Martìn Viso, 2008), o qual se encontra em posse de
Trata-se de um conjunto cerâmico muito reduzido e privados (ver Figura 9 C). Igualmente, no mesmo
heterogéneo que deverá corresponder a um momen- período foi identificada uma ara votiva (Rodrigues,
to Baixo imperial e alto medieval. 1975)6, posteriormente relida e republicada (Encar-
Neste sector, não existe nenhum contexto estrutura- nação, 1984, p. 675). Datada do século I d.C., con-
do, mas sim uma vasta zona de derrubes, não tendo serva só a metade inferior, possibilitando apenas a
sido possível caracterizar estruturas identificadas no leitura de uma linha:
subsolo. Os materiais exumados e a correlação entre
ambos não possibilitam compreender a tipologia ou […] / [VS?] IVNII / IQALV [?] / ARI (?)
uso deste espaço. (Figura 8) A(nimo) L(ibens) V(otum) S(olvit)…
cumpriu de boa vontade a promessa.
4.6. Materiais de proveniência desconhecida
Para além da inexistência de estratigrafia, alguns
materiais de escavação também não possuem qual-
quer indicação do sector de proveniência. Por outro 6. Além destes achados, são ainda referidas a existência de
moedas romanas, pelo menos mais uma moeda visigoda,
lado, face às diferentes campanhas de prospeção, as-
uma fivela do século VI d.C., dolia decorados, tégulas e co-
sim como recolhas fortuitas feitas pelo proprietário lunas de cronologia romana (Rodrigues 1975: 189). Todavia
desconhece-se qualquer registo de todos estes materiais e o
5. Incluí cerâmica comum e de transporte. seu actual paradeiro.
É bastante usual que o estudo de materiais de esca- BRUN, Jean- Pierre (1986) – L’oléiculture antique en Provence:
vações antigas seja, no mínimo, complexo e, muitas Les huileries du département du Var. RANarb, supl. 15. París.
vezes, praticamente inexequível. Ainda mais nos ca- CAEIRO, José Olívio (1984) – A Necrópole da Azinhaga da
sos em que a metodologia dos trabalhos escasseia. Boa Morte- Castelo de Vide (I e II). Évora: Edição da Junta
Compreendem-se assim as “fragilidades” deste Distrital de Portalegre.
conjunto material do Mascarro, quando o número
CARNEIRO, André (2014) – Lugares, tempos e pessoas: Povoa-
de fragmentos sem contexto, ou de proveniência mento rural romano no Alto Alentejo. Imprensa da Universi-
desconhecida, predomina. Não obstante é possível dade de Coimbra. I. Coimbra.
tecerem-se algumas apreciações.
CARNEIRO, André (2016) – Mudança e continuidade no po-
Tendo em conta a análise dos materiais apontamos voamento rural no Alto Alentejo durante a Antiguidade Tar-
a inexequibilidade de compreender assentamentos, dia. In ENCARNAÇÃO, José d’, LOPES, Maria Conceição,
e em particular este sítio, apenas pela existência de CARVALHO, Pedro (ed.): A Lusitânia entre romanos e bárba-
vestígios materiais avulsos. Esta linha de investiga- ros. Coimbra, pp. 281-240.
ção é muito utilizada na Arqueologia Clássica (Alar- CARNEIRO, André (2017a) – O final das villae na Lusitânia
cão, 1998, Carneiro, 2014) para classificar e datar sí- Romana. O exemplo da Horta da Torre (Fronteira). URBS
tios, porém é redutora e enviesada. Esta premissa já REGIA, Nº2.
anteriormente foi demonstrada para outras regiões
CARNEIRO, André (2017b) – Nos limites do Império: dinâ-
portuguesas (Tente, 2017, p. 21). Ou seja, neste caso micas de povoamento na transição para a Antiguidade Tar-
quer a análise das estruturas como dos materiais não dia no Alto Alentejo. In TEIXEIRA, C., CARNEIRO, A. (ed.):
nos permite dizer se estamos perante uma villae, um Humanitas Supplementum. Arqueologia de Transição: entre o
mansio ou até um vicus. Somente que existem espa- mundo romano e a idade Média, pp. 39-64.
ços habitacionais e produtivos. ENCARNAÇÃO, José d’ (1984) – Inscrições romanas do con-
A análise dos materiais permitiu, genericamente, ventus pacensis subsídios para o estudo da romanização. Insti-
datar o sítio entre os séculos I a VIII d.C. Porém, se tuto de arqueologia da Faculdade de Letras. Coimbra.
atendermos apenas às estruturas e materiais prove- FERNANDES, Lídia (2001) – Capiteis romanos de Ammaia
nientes das intervenções arqueológicas, estas podem (S. Salvador de Aramenha – Marvão), O Arqueológo Português,
ser balizadas entre os séculos III a VIII d.C. É, no en- Série IV, 19, pp. 95-158.
920
GUEDES, César (2008) – Um triente de Égica em aquae fla- gião noroeste da Serra da Estrela». Em Arqueologia de Tran-
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Português de Museus e Museu Nacional de Arqueologia.
Letras da Universidade de Lisboa.
Lisboa.
Figura 2 – Planta final da escavação do Mascarro (1985) e respetiva distribuição quantitativa dos materiais por setor.
922
Figura 3 – Materiais do Setor A. A: Cerâmica romana; B: Cerâmica tardo-romana; C: Liga metálica.
924
Figura 5 - Materiais do Setor C. A: Cerâmica alto medieval; B: Vidros romanos/tardios; C: Liga metálica.
926
Figura 7 – Materiais do Setor E. A: Cerâmicas romanas; B: Vidros romanos; C: Moeda.
928
Figura 9 – Materiais sem contexto. A: Cerâmica romana; B: Cerâmica tardo-romana; C: Moeda (Triente visigodo) (Imagem
retirada de Rodrigues 1975); D: Vidros.
MA157 AE2, tipo Victoria Aug Magnêncio Imperador segurando Roma (A - //R.F.P) 350
Lib Romanor globo encimado por
águia e calcando
prisioneiro inclinado
para a frente
MA160 AE4, tipo Spes Reipublice Juliano (César) Indeterminado Indeterminada Constantinopla
(- -//CONS?), 355-361
MA163 AE3, tipo Fel Temp Constâncio II Indeterminado Arles (D -// 353-355
Reparatio (Cavaleiro SCON-)
derrubado)
MA168 AE3, tipo Fel Temp Constâncio II, Indeterminado Indeterminada 351-361.
Reparatio (Cavaleiro Constâncio Galo
derrubado) ou Juliano
MA171 AE3, tipo Fel Temp Constâncio II Cízico (•M• -// Indeterminada 355-361
Reparatio (Cavaleiro SMK[...])
derrubado)
930
RECONSTRUINDO A PAISAGEM URBANA
DE BRAGA DESDE A SUA FUNDAÇÃO
ATÉ À CIDADE MEDIEVAL: AS RUAS COMO
OBJETO DE ESTUDO
Letícia Ruela1, Fernanda Magalhães2, Maria do Carmo Ribeiro3
RESUMO
A malha urbana como objeto de estudo histórico proporciona a possibilidade de identificar os componentes
urbanos que sobreviveram à passagem do tempo e às mudanças contextuais que a cidade conheceu ao longo do
seu desenvolvimento. Por sua vez, as ruas, que compõem morfologicamente a cidade, condicionaram a origem
e as formas de desenvolvimento subsequentes de alguns dos outros componentes do plano urbano. Em Braga,
cidade de fundação romana, a malha urbana clássica foi sendo adaptada de forma diferenciada até à atualidade.
A proposta deste trabalho centra-se na metodologia de análise do sistema viário de Braga, desde a sua fundação
até à Baixa Idade Média, e pretende constituir um contributo para o conhecimento das transformações urbanas
ocorridas na paisagem urbana bracarense.
Palavras-chave: Cidade clássica; Idade Média; Ruas; Braga.
ABSTRACT
The urban fabric as an object of historical study provides the possibility of identifying the urban components
that have survived the passage of time and the contextual changes that the city has experienced throughout its
development. In turn, the streets, which morphologically compose the city, conditioned the origin and subse-
quent development of some of the other components of the urban plan. In Braga, a city of Roman foundation,
the classical urban fabric has been adapted in different ways until today. The proposal of this work focuses on
the methodology of analysing the road system of Braga, from its foundation to the Late Middle Ages, and aims to
be a contribution to the knowledge of the urban transformations that occurred in the urban landscape of Braga.
Keywords: Classical city; Middle Ages; Streets; Braga.
932
de medida pela cartografia e iconografia que repre- um troço da cerca fernandina (figura 3). Estes dados
senta a paisagem urbana de Braga, como se constitui permitem comprovar a morfologia urbana corres-
exemplo o conhecido Mapa de Braunio, produzido pondente ao lajeado do kardo maximus, bem como o
no século XVI (Martins e Ribeiro, 2013). posterior avanço do edificado sobre esse importante
Assim, este trabalho sobre o estudo da evolução da eixo viário romano, que aos poucos vai sendo reduzi-
morfologia urbana de Braga utiliza o acervo digital do devido às transformações urbanísticas tardo-an-
(2ArchIS), que armazena os dados dos trabalhos de tigas (Mendonça, 2019; Magalhães, 2019). Em con-
campo realizados pela Unidade de Arqueologia da trapartida, a construção das muralhas alto e baixo
Universidade do Minho (UAUM), nomeadamente os medievais alteram completamente a ocupação desse
registos dos trabalhos efetuados nas zonas arqueo- setor da antiga cidade romana, inutilizando parte dos
lógicas da rua do Alcaide nºs 18-20, do Seminário de arruamentos romanos, com exceção do kardo maxi-
Santiago e da rua Frei Caetano Brandão nºs 166-168, mus, que passa a ser reconhecido como rua Couto do
utilizados neste trabalho como casos de estudo (fi- Arvoredo, mas que mantém parte do traçado daquela
gura 1) (Botica et al., 2020; Magalhães,2019; Fontes importante artéria romana até finais do século XIX
et al., 2020; Mendonça, 2019). (Mendonça, 2019; Magalhães, 2019; Ribeiro, 2008;
Apesar das limitações inerentes à Arqueologia Ur- Martins e Ribeiro, 2013; Martins et al., 2017a).
bana, associadas ao diminuto número de evidências Da mesma forma, os elementos identificados na
correspondentes aos primeiros anos pós-fundacio- Zona Arqueológica do Seminário de Santiago com-
nais da cidade romana, as informações produzidas provam uma longa sequência ocupacional deste
a partir das intervenções desenvolvidas em Braga espaço urbano, traduzida sob diferentes formas (fi-
possibilitam um olhar abrangente sobre a morfolo- gura 4). No referente às estruturas viárias foi possí-
gia da cidade romana, que vem sendo aos poucos vel reconhecer os níveis de repavimentações de um
interpretada (Magalhães, 2019: Martins, 2009; Mar- decumanus em períodos tardios, indicando que um
tins e Ribeiro, 2013). Assim, as intervenções realiza- troço desse eixo de comunicação prosseguiria sendo
das entre 2017 e 2020 na rua do Alcaide, nºs 18-20, utilizado mesmo depois dos séculos VI e VII (Martins
permitiram individualizar um troço da estrutura de et al., 2017b). Quando avançamos para o urbanismo
drenagem implantada sob o alinhamento de um medieval e moderno, foi possível identificar vestí-
eixo viário romano que corria no sentido E/O (figura gios relativos a um arruamento formalizado sobre
2). O tipo de estrutura parece indicar que essa via de parte do alinhamento do decumanus, que poderia
comunicação corresponderia ao troço nascente do eventualmente corresponder ao tramo sul da rua de
decumanus maximus, que se dirigia para a Via XVII, Palhas, extinto em finais do século XIX. Esse eixo
responsável pela ligação entre Bracara Augusta e As- viário está referenciado no 1º Livro do Tombo do Ca-
turica Augusta (Ribeiro e Martins, 2016; Martins et bido (século XIV), e encontra-se representado nas
al., 2017a). Por outro lado, a conjugação do modelo fontes cartográficas e iconográficas dos séculos XVI
da cidade romana proposto com as fontes cartográ- e XIX (figuras 5 e 6) (Ribeiro, 2008).
ficas e iconográficas posteriores pode indicar que o Em contrapartida, a consulta de documentos históri-
troço poente do decumanus maximus corresponderia cos para o estudo da morfologia urbana enfrenta al-
parcialmente ao alinhamento da atual rua de S. Se- gumas dificuldades, apesar de possibilitar a inserção
bastião, um importante eixo de comunicação, que de novas perspetivas. Para estudar a evolução morfo-
funcionava como elo entre o forum e duas importan- lógica urbana de Braga existem disponíveis no Arqui-
tes vias, per loca marítima (Via XX) que se articulava vo Distrital algumas fontes documentais resultantes
com o litoral, e uma outra que desmembrava e se- dos registos administrativos relacionados com a Ar-
guia para sul, ligando-se à Via XVI, que seguia para quidiocese de Braga – como o Índice dos Prazos das
Olisipo, passando por Cale (Carvalho, 2008; Ribeiro Casas do Cabido (1406 – 1905) e o Índice dos Prazos
e Martins, 2016; Martins et al., 2017a). das Propriedades do Cabido (1465 – 1517). Documen-
Por outro lado, na Zona Arqueológica da rua Frei tos que arrolam os imóveis pertencentes ao Cabido,
Caetano Brandão nºs 166-168, intervencionada en- contendo dados relativos aos seus aspetos morfoló-
tre 2015 e 2016, foram identificados vestígios referen- gicos, tipológicos e geográficos, fornecendo informa-
tes a uma longa ocupação no setor noroeste do centro ções das características urbanas da cidade, nomeada-
histórico de Braga, desde arruamentos romanos até mente a toponímia de ruas e praças, os logradouros e
934
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Figura 2 – Registo da cloaca identificada na rua do Alcaide, nºs 18-20, e a sobreposição dos arruamentos modernos
nos eixos da cidade baixo imperial.
936
Figura 3 – Registo do lajeado do kardo maximus (© UAUM) e os eixos da cidade romana sobrepostos pelas estruturas
urbanas alto e baixo medievais na Zona Arqueológica da rua Frei Caetano Brandão nºs 166-168.
Figura 4 – Zona Arqueológica do Seminário de Santiago: planta interpretativa da sobreposição dos arruamentos baixo
medievais nos eixos da cidade romana e o registo do lajeado correspondente às repavimentações modernas (© UAUM).
938
Figura 7 – Mapa da Cidade de Braga Primas, por André Ribeiro Soares da Silva, século XVIII, à escala de
1:2000 © UAUM.
Figura 8 – Mapa elaborado a uma escala de 1:4000 por Belchior José Garcez e Miguel Baptista Maciel, século
XIX © UAUM.
940
A DINÂMICA VIÁRIA NO VALE DO
RABAGÃO: A VIA XVII E O CONTRIBUTO
DOS ITINERÁRIOS SECUNDÁRIOS
Bruno Dias1, Rebeca Blanco-Rotea2, Fernanda Magalhães3
RESUMO
A conquista romana do Noroeste Peninsular deve ser entendida como uma pequena parte de um processo com-
plexo conhecido como ‘Romanização’, que alterou significativamente a realidade socioeconómica dos territó-
rios conquistados, a própria conceção arquitetónica das cidades, mas também a forma como as mesmas comu-
nicavam entre si. Esta comunicação era feita através de uma rede viária organizada e estratificada com o intuito
de manter o controlo político e socioeconómico dos territórios conquistados, como terá sido o caso da via XVII
(Bracara Augusta – Asturica Augusta) que percorre a totalidade do vale do Rabagão, bem como outras áreas de
potencial mineralógico nas imediações. Porém, as vias secundárias parecem ter um papel promissor e relevante
na construção da paisagem deste vale.
Palavras-chave: Arqueologia da Paisagem; Vias secundárias; Via XVII; Sistemas de Informação Geográficos;
Rio Rabagão.
ABSTRACT
The Roman conquest of the Northwest Peninsula should be understood as a small part of a complex process
known as ‘Romanisation’, which significantly changed the socio-economic reality of the conquered territories,
the very architectural design of the cities, but also the way they communicated with each other. This communi-
cation was made through an organised and stratified road network in order to maintain the political and socio-
economic control in the conquered territories, as was the case with the Via XVII (Bracara Augusta – Asturica
Augusta), which runs through the entire Rabagão valley, along with other areas nearby with mineralogical po-
tential. However, the secondary routes seem to have a promising and relevant role in the construction of the
landscape of this valley.
Keywords: Landscape Archaeology; Secondary roads; Via XVII; Geographical Information Systems; Rabagão
valley.
942
estas paisagens e as suas mudanças (Costa García & georreferenciadas após as visitas aos locais
alli., 2016; Menéndez Blanco & alli., 2013). (Fase II).
A partir de outros modelos, já previamente testa- 4. Fase IV: Interpretação dos dados. Com estes
dos (Blanco-Rotea, 2015; 2022; Costa-García et al., dados permitiu-nos verificar a distorção ou sus-
2021), articulamos a proposta em cinco fases de aná- tentação das análises que estávamos a realizar,
lise, embora cada uma delas implique a utilização de mas também, de que forma poderíamos inter-
ferramentas distintas e a obtenção de dados de di- pretar as análises que não obtiveram os resulta-
ferentes naturezas. Todas as fases têm de trabalhar dos esperados.
reciprocamente, para que entre em concordância 5. Fase V: Compreensão da paisagem do Vale do
com a escala macro espacial escolhida (Mañana- Rabagão e a rede viária associada a partir dos
-Borrazás & alli., 2002: p. 16): dados identificados e das análises geoespaciais.
1. Fase I: Pesquisa e seleção de informações ar-
queológicas. Foi realizada uma procura exaus- 3. LOCALIZAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO
tiva de material bibliográfico, cartográfico e DA ZONA DE ESTUDO
fotográfico centrado no período cronológico
escolhido, tendo especial atenção à questão da O vale do Rabagão apresenta um conjunto de carac-
rede viária. Os dados recolhidos desta pesqui- terísticas naturais que nos permitiu estabelecer o
sa foram inseridos numa ficha de análise para espaço geográfico a analisar, numa área delimitada
cada elemento estudado desenhado no contex- a norte e oeste pela zona de influência das Serras
to do projeto. Após a aquisição de informações da Cerdeira, Facho, Ferronho, mas também através
sobre a materialidade dos elementos ligados ao do próprio rio Cávado. A sul as Serras do Barroso,
período histórico que nos interessa – miliários, Cabreira e Torrinheiras enquanto a este e nordeste
provável caminho viário, espólio encontrado, pela zona de influência do rio Beça [Figura 1]. Em-
posicionamentos dos locais – foram utilizados bora o destaque deste trabalho seja a rede viária na
os elementos arqueológicos relevantes para o área do vale do Rabagão, não podemos deixar de
projeto. Sendo que, sem ter atenção a essa prá- parte regiões vizinhas que tiveram influência na pla-
tica, ficamos sujeitos a que as análises realiza- nificação dessa rede viária nesta parte do território,
das nas fases seguintes não sejam consistentes, como a zona do vale do Beça, Terva e Cávado que se
como por exemplo, considerar erradamente situam nas imediações do Rabagão.
elementos fora da baliza cronológica utilizada Sendo o rio Rabagão um dos elementos centrais deste
(Parcero-Oubiña, 2000, pp. 33-35; Maciel, 2018, estudo, este congrega uma área de cerca de 248km2,
p. 35). Posteriormente a esse processo, inseri- com uma grande complexidade dendrítica fruto dos
mos os dados em ferramentas como o Quantu- acidentes geográficos existentes na região, por onde
mGIS, ArcGisPro e GoogleEarth. os afluentes deste rio se foram desenvolvendo ao
2. Fase II: Verificação das informações recolhi- longo do tempo. Esta realidade hidrológica, fez com
das em campo. Realização de visitas aos lo- que esta região tivesse um ambiente fértil e rico em
cais, viabilizando, complementado ou refutado, recursos naturais essenciais para a fixação destas co-
a informação que foi angariada anteriormente. munidades no território. Desde o final do I milénio
As visitas tiveram o foco na visualização de al- a.C. o Noroeste Peninsular (Martins, 1990; Parcero-
guns traçados das vias, povoados ou materiali- -Oubiña, 2000; Fonte, 2015; Fernándéz-Gotz, 2018;
dades posicionadas no território. Porém, é um Cruz, 2018), assiste a uma intensa ocupação no ter-
processo penoso porque muitos destes locais ritório com a implantação de inúmeros povoados
encontram-se com vegetação densa, o que difi- nas imediações de áreas de exploração de recursos
culta a sua análise. naturais (ouro, estanho, volframite), ou direcionadas
3. Fase III: Análises geo-espaciais. Após a fase para o controlo e defesa do território tendo em conta
anterior, com a informação angariada realiza- a disposição destes sítios em posições mais elevadas
ram-se diversas análises, tendo em considera- (Costa, 2006, p. 13; Fonte, 2007, pp. 68-70; Martins,
ção principalmente o cruzamento dos dados 2010, pp. 107-120). A via XVII que ligava Bracara Au-
obtidos através das cartas militares de 1961 e gusta a Asturica Augusta, ambas capitais de conventus,
bibliografias analisadas (Fase I) com os dados foi uma das primeiras vias do Noroeste Peninsular,
944
Fonte (2015), com o intuito de conseguir entender seguida acabaria de levar ao itinerário secundário já
como se implantava esta ramificação da via XVII. conhecido. Estas localizações não tiveram qualquer
Para tentar realizar uma apoximação de como se- influência no resultado do LPC, são apenas pontos
ria esta via secundária, desenvolvemos uma análise de referência. E como é possivel verificar, o cami-
Least Cost Path (LCP) no ArcGisPro (SIG). As análises nho realizado na análise, passa nas proximidades ou
de LCP podem ser entendidas, como um segmento exatamente nesses pontos. Sendo que, o único com
de reta com pelo menos dois pontos interligados a um desvio mais acentuado é na zona de esculca, mas
um algoritmo de custo – neste caso o de Toobler – es- Barradas (1956, p. 191) informa que a via não passa-
sencial para entender o esforço das comunidades ao ria exatamente neste local [figura 3]. Para comprovar
circularem pela topografia de um território. Sendo e analisar estes aspetos, desde a Arqueologia da Pai-
que, o algoritmo procurará o corredor de circulação sagem, visitamos o local e verificamos a existência
com o menor custo. Assim, as análises de LCP pro- de uma parte do traçado da dita via junto à ponte ro-
curam prever, e/ou greconstruir as vias de comuni- mana de Ormeche [figura 4]. O que faz com que as
cação dos territórios em análise. Simultanemante, possibilidades de passar uma via por esta zona, seja
juntamos elementos na tentativa de criar uma hipo- substancialmente maior. No entanto, destacamos
tese que justificasse o esforço das comunidades ao que o percurso inicial desta via é dificil de precisar.
circularem por este território, dando especial desta- Em primeiro lugar, devido às diversas fontes que se
que aos dados mineiros (Guimil-Fariña & Parcero- contradizem no que diz respeito ao ponto inicial, em
-Oubiña, 2015, p. 31-34). Contudo, no decorrer desta segundo lugar pela influência da albufeira da Venda
análise fomos encontrando diversas dificuldades no Nova no modelo digital de terreno, que barra o aces-
que diz respeito à localização do ponto inicial/final so à topografia desta área.
desta possivel via vicinali. Relativamente ao ponto Ao fazer uma análise dos dados mineiros inseridos,
inicial, Barradas (1956, p. 190), Capela (1995, p. 56) e fica percetível que esta via começava e terminava
Rodriguez Colmenero & alli. (2004, p . 113) referem em dois locais com forte atividade mineira, as mi-
que junto ao miliário de Cláudio I, situado nas ime- nas de Codeçoso e o complexo mineiro do vale su-
diações da ponte dos Três Olhais, poderia ser o pon- perior do rio Terva (Fontes & Alves, 2014; Fontes
to inicial desta ramificação (Figura 3), enquanto que, et al., 2015; Osório, 2018), respetivamente. Porém,
Fonte (2015, p. 312) indica que poderá partir desde embora em menor quantidade, também é possivel
a ponte do arco, o que não deixa de ser uma opção verificar atividade mineira na parte central deste
viável, embora tenhamos escolhido a ponte dos Três itinerário, como seria o caso da Mina do Alto da Ur-
Olhais. Relativamente ao ponto final, seria o local de reta ou as Minas de Carvalhelhos. Tendo em consi-
intercepção com a via principal, nas imediações de deração estes dados, aparentamente a planificação
Aquae Flaviae. Porém, visto que o próximo nó viário deste traçado secundário pode ter sido planificada
seria Aquae Flaviae, devemos perguntar, porque é incluindo os espaços de extração mineira na zona
que este local não foi escolhido? A razão desta esco- dos vales do Rabagão, Beça e Terva. Aliás, constata-
lha – embora também pudesse ser uma possibilidade -se essa particularidade no vale do Rabagão, onde se
(Fonte, 2015) – surge na particularidade que esta ra- verifica uma forte atividade mineira nas imediações
mificação não é destinguida (ate à data) como uma da via XVII, que percorria esse vale [figura 5]. Assim,
via militar, mas possivelmente uma via vicinali, sen- não parece descabido a disposição que esta possivél
do que, ambas são de cariz público e podem ser utili- via vicinali têm, tendo em consideração a minera-
zadas por diferentes entidades. De forma a reforçar ção desta zona, que muitas das vezes é referencia-
esta escolha, em Ulpianus 33 ad ed., o mesmo refere da como territoria mettalorum autónoma (Lemos &
que este tipo de via secundária começava e termina- Martins, 2010, p. 91-92). Embora não nos tenhamos
va em vias militares, ou em alguns casos poderiam alongado na questão das variantes por Arcos e Seara
até mesmo não ter saída. Tendo os pontos principais Velha, por não ser a questão fulcral desta análise, é
georeferênciados, Lereno Barradas (1956, p. 191) pertinente apontar levemente esta questão. Após a
informa que existam certos locais por onde este iti- bifurcação nas imediações do povoado central de S.
nerário passava, sendo estes: a ponte de Ormeche, Vicente da Chã – também com indicios de atividade
por Alturas de Barroso, nas imediações de uma serra mineira - verifica-se uma disposição muito especifi-
aclamada como Esculca, na zona de Sapiãos onde de ca da variante dos Arcos em direção á zona mineira
946
densidade populacional no decorrer da mesma no quitectura. CSIC. 14. E051: pp. 1-49 (doi:- http://dx.doi.org/
vale do Rabagão, independentemente do período 10.3989/arq.arqt.2017.007).
cronológico estabelecido, o que pode ditar que esta CAPELA, Martins (1995) – Miliários do Conventus Bracarau-
região tenha tido uma longa diacronia ocupacional, gustanus em Portugal. Terras de Bouro: Câmara municipal de
fruto dos recursos naturais essenciais para o estabe- Terras de Bouro, 3ªEd, pp. 56-117.
lecimento destas comunidades no território, e que COSTA, José (2006) – Povoamento e organização do território
constitui um espaço de comunicação importante. na Proto-História entre as Serras do Gerês, do Barroso e da Ca-
Ademais, a via XVII cruzava a totalidade do vale do breira: o caso do Baixo Rabagão. Porto: Faculdade de Letras
Rabagão encontrando-se dotada de um conjunto de da Universidade do Porto (Seminário de Projeto em Arqueo-
vias secundárias que interligavam outros espaços logia). CHECK.
de elevada importância socioeconómica, comos se- COSTA GARCÍA, José; FONTE, João; GAGO, Manuel
ria o nó viário de Aquae Flaviae e as áreas do com- (2019) – The Reassessment of the Roman Military Presence
plexo mineralógico do vale superior do rio Terva e in Galicia and Northern Portugal throuhj Digital Tools: Ar-
a zona do Alto da Raia, nas imediações da mansio- chaeologial Diversity And Historical Problems. https://doi.
org/10.5281/zenodo.3457524.
ne Aquis Querquennis que pertencia à via XVIII. De
facto, isto revela que houve um elevado interesse COSTA GARCÍA, José; FONTE, João; MENÉNDEZ BLAN-
das entidades romanas neste território e que poderá CO, Andrés; GONZÁLEZ ÁLVAREZ, David; GAGO MA-
RIÑO, Manuel; BLANCO-ROTEA, Rebeca; ÁLVAREZ MAR-
ter proporcionado que a via XVII e as suas variantes
TÍNEZ, Valentín (2016) – Roman military settlements in the
passassem de uma forma, praticamente obrigatória,
Northwest of the Iberian Peninsula. The contribution of his-
por estes territórios de grande capacidade mineral. torical and modern aerial photography, satellite imagery and
Assim, esta via terá sido um fator fulcral no desen- airborne LiDAR. AARGnews. 52, pp. 43-51.
volvimento desta região, pois forneceu a este terri-
COSTA GARCÍA, José; GONZÁLEZ ÁLVAREZ, David;
tório uma nova dinâmica num contexto económico, GAGO MARIÑO, Manuel; FONTE, João; GARCÍA-SÁN-
administrativo e populacional. CHEZ, Jesús; MENÉNDEZ BLANCO, Andrés; BLANCO-
Contudo, embora tenhamos analisado os traçados -ROTEA, Rebeca; ÁLVAREZ MARTÍNEZ, Valentín (2021)
destas vias secundárias consoante as tecnologias – Una década de investigación del colectivo RomanArmy.
geoespaciais, Least Cost Path, ainda é necessário eu: novedades y desafíos sobre la conquista romana del no-
roeste ibérico. In Actualidad de la investigación arqueológica
aprofundar mais esta análise e completá-la com tra-
en España III (2020-2021). Madrid: Museo Arqueológico Na-
balhos de campo (escavações e prospeções) e outras cional, pp. 153-170.
análises geoespaciais (dados LiDAR) que permitem
corroborar ou confirmar a hipótese em causa. Este CRIADO-BOADO, Felipe (1993) – Limites y Posibilidades
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conjunto de dados, tornam-se fundamentais para
afirmar com uma maior exatidão de como se desen- CRIADO-BOADO, Felipe (1999) – Del Terreno al Espacio:
volvia estes traçados e como ficaram afetados atra- planteamientos y perspectivas para la Arqueología del Pai-
vés das ações naturais e antrópicas desenvolvidas saje. CAPA. Santiago de Compostela. 6, pp. 1-90. CHECK
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MAÑANA BORRAZÁS, Patricia; BLANCO-ROTEA, Rebe-
ca; AYÁN VILA, Xurxo (2002) – Arqueotectura 1: Bases teórico-
948
Figura 1 – Delimitação do vale do Rabagão consoante as barreiras naturais.
Figura 2 – Posicionamento dos povoados nas imediações da via XVII e do rio Rabagão.
950
Figura 5 – Disposição das explorações mineiras nas imediações do traçado da via secundária pelas Alturas do Barroso, bem
como da via XVII e as vias secundárias associadas.
RESUMO
O sítio arqueológico de Monte dos Castelinhos é uma fundação de raiz, no contexto tardio de conquista romano
da província da Ulterior assumindo desde a sua génese uma posição geoestratégia de controlo de uma zona de
fronteira natural na península de Lisboa e baixo-Tejo.
Nos últimos anos, recentes trabalhos de prospeção e escavação revelaram uma importante fase de renovação
urbanística do sítio, com cronologias de inícios do Principado de Augusto, revelando um inegável cariz urbano
durante esta fase.
Tendo como objetivo a publicação sistemática do conjunto de evidências materiais e contextuais, associados a
este projeto de investigação, pretende-se com este trabalho trazer a público as leituras geofísicas aqui efetuadas.
As amplas leituras obtidas, permitem perspetivar as investigações futuras e levantam questões e problemáti-
cas inesperadas.
Palavras-chave: Povoamento; Urbanismo; Metodologia; Geofísica.
ABSTRACT
The archaeological site of Monte dos Castelinhos is a foundation from scratch, in the context of the late Roman
conquest of the province of Ulterior, assuming since its genesis a geostrategic position of control of a natural
border area on the peninsula of Lisbon and the lower Tagus.
In recent years, recent prospecting and excavation work has revealed an important phase of urban renewal on
the site with chronologies of the beginnings of the Principality of Augustus, revealing an undeniable urban na-
ture during this phase.
With the objective of systematically publishing the set of material and contextual evidence associated with this
research project, the aim of this work is to bring to the public the geophysical readings carried out here. The
broad readings obtained allow us to put future investigations in perspective and raise unexpected questions
and problems.
Keywords: Settlement; Urbanism; Methodology; Geophysics.
954
factos recuperados (numismas, terra sigillata de tipo momento numa vasta área de cerca de 7 hectares,
itálico, cerâmicas de paredes finas, lucernas e vasto permitem ampliar a visão sobre a área urbanizada de
conjunto de ânforas), permitem atribuir a sua cons- Monte dos Castelinhos, vindo sublinhar a relevância
trução aos inícios do Principado de Augusto (Pe- científica e patrimonial do sítio arqueológico e suas
reira, Pimenta e Mendes, 2021; Pimenta e Mendes, potencialidades futuras (Pereiro e Pimenta, 2021).
2022; Conejo Delgado e Pimenta, 2023). Centraremos a nossa análise na apresentação das
zonas de leitura 1, 2 e 5.
2. GEOFÍSICA A zona 1 corresponde ao topo do morro de Casteli-
nhos (figura 5). Nesta área o quadro de indagações
Na primeira fase do levantamento geofísico do sítio, prendia-se com a hipótese de tendo em conta a sua
foi efetuado como teste uma prospeção geofísica de morfologia aplanada, podermos estar perante uma
cerca de 2 hectares. O método escolhido para esta área condicionada pela existência de estruturas ar-
primeira fase foi o magnético tendo posteriormente queológicas. Uma vez que se tratava de uma área
sido utilizado o GPR. A metodologia de recolha de aberta, com poucos obstáculos físicos, marcaram-
dados e posterior interpretação orientaram-se pelas -se quadrados de 30x30m, divididos em 30 linhas
recomendações propostas pelo European Archaelo- de prospeção, totalizando uma leitura de 2700m2
gic Council (EAC Guidelines, 2015), Chartered Ins- de área. Contudo apesar das altas espectativas, os
titute of Archaeologists (IfA, 2002 e CIfA, 2014) e resultados vieram confirmar de alguma forma o que
Historic England (HE, 2016). nos tinha sido transmitido pelos proprietários do
Para o método magnmetico, foi utilizado um Bar- terreno. Ou seja, que toda a plataforma superior foi
tington 601/2 com dois sensores de 1 metro de com- profundamente afetada pelos trabalhos agrícolas ao
primento. Depois de recolhidos, os dados foram longo dos últimos séculos. Conquanto, observa-se
processados no software Geoplot 4.0 (Geoscan) e no canto inferior direito da área analisada a presen-
interpretados em ambiente SIG. ça de uma anomalia linear bem visível (a castanho)
Já no caso do Georradar, foi utilizado um modelo podendo corresponder a uma estrutura positiva do
ProEx, com antena blindada de 500MHz em mon- tipo muro/parede. Na zona central do magnetogra-
tagem RTC (Rought Terrain Cart) – (Daniels, 2000). ma são visíveis algumas anomalias lineares que po-
Foram adquiridos um total de 3 polígonos de geor- derão corresponder a estruturas arqueológicas, ain-
radar na zona 2, com aquisição de perfis paralelos da assim os dados não são suficientemente fortes.
equidistantes espaçados de 0,25m, com intervalos Robusto é o sinal de uma área de combustão (polígo-
de tiro (pulso eletromagnético de radar) a cada 2cm, no amarelo) nesta mesma zona. Por fim salienta-se
a profundidade máxima de alcance do sinal de 1,2m o canto superior esquerdo, onde, entre o conjunto
de profundidade estimada. de evidências, existem 3 anomalias semicirculares e
Em gabinete os dados foram processados no Refle- um alinhamento de estruturas negativas que podem
xW 2D v.9.0.2 onde, é removido o ruido de muita remeter para uma ocupação mais recuada do sítio
baixa frequência com algoritmo de mediana móvel possivelmente pré-histórica.
subtrativa, extração do tempo com max phase wra- A Zona 2 implanta-se na encosta de Castelinhos em
ping, aplicação de ganho no sinal, remoção da onda redor das áreas de Sondagem n.º 5 e 8 (figura 6).
direta (sinal back-groud) e aplicação de vários filtros Tendo em conta a existência de olival, decidiu-se
em cada radargrama. Os radargrama são então in- implantar quadrados de 10m de lado. Foram marca-
terpolados num bloco 3D do polígono de prospeção dos 36 quadrados, totalizando uma área de 3600m2.
georradar, onde são extraídas imagens em planta a A prospeção geofísica nesta zona teve como objetivo
diversas profundidades designadas de time-slices. verificar o estado de preservação das eventuais es-
A prospeção magnética desenvolveu-se em por cin- truturas arqueológicas aí existentes. Na Sondagem
co zonas, com objetivos e problemáticas autónomas. n.º 5 e 8, os trabalhos arqueológicos colocaram a
Num segundo momento, face aos resultados iniciais descoberto uma estratigrafia bem preservada asso-
ampliou-se esta leitura, em particular na área do ciada a estruturas arqueológicas correspondendo a
sopé do monte, tendo sido utilizado o GPR apenas dois momentos urbanísticos distintos. Um primeiro
na zona 2. datado de época romana republicana e outro relacio-
Os trabalhos de leitura geofísica realizados até ao nado com a reforma urbanística de Augusto.
956
-se de elementos que sustentam a interpretação de da que outras hipóteses sejam plausíveis, nomeada-
serem duas paredes paralelas com enchimento o que mente o facto de poderem ser estruturas de hospe-
seria compatível com estarmos perante uma rua, ou daria de apoio à própria via romana que aqui passava
estrada (figura 9, a verde). Segue paralelo ao lado e que poderia ladear estes edifícios…
interno da estrutura de contenção do rio. Recorde- O quarto conjunto de evidências nesta área estão as-
-se que uma das questões que sempre se prenderam sinalados a amarelo, zonas de forte intensidade de
com o estudo de Monte dos Castelinhos foi o da es- calor, podendo corresponder a fornos e/ou lareiras
trada romana entre Olisipo e Scallabis e a travessia (figura 9). O facto de algumas destas estruturas esta-
desta zona alagadiça (Pimenta e Mendes, 2012). Um rem enquadradas dentro dos conjuntos de urbanis-
dos objetivos desta ampla leitura na zona de várzea mo leva-nos a colocar a hipótese de podermos estar
no sopé do monte foi a da questão da existência de perante áreas de cariz oficinal.
vestígios da antiga estrada romana ou medieval que O quinto grupo de dados foi interpretado como sendo
ligassem à ponte medieval da Couraça que vemos anomalias do tipo estruturas negativas/fossas (figura
na imagem da figura 9. Tal infelizmente não ocorre, 9, a azul claro). Um dos elementos parece configurar
pelo menos não de forma clara. Contudo regista-se a delimitação de uma área de uma ampla cabana. Po-
os vestígios de outro caminho antigo, no centro da derá corresponder a uma cronologia mais recuada?
área prospetada (figura 9, a verde a atravessar o ter- Por últimos temos ainda diversos elementos de me-
reno em direção ao centro do terreno, onde é corta- tais dispersos pela área e assinalados com um ponto
do pelo adutor da EPAl. vermelho. Estes podem ser lixo contemporâneo ou
A terceira ordem de evidências são os indícios de de cronologias mais antigas.
fundações e estruturações positivas que parecem de
forma clara delimitar um urbanismo coerente e bem 3. COMENTÁRIO FINAL
estruturado (figura 9, a preto). Tal como já tinha sido
assinalado na primeira leitura nesta área encostado Os resultados obtidos até ao momento através das
ao morro de Castelinhos estas evidências encon- leituras geofísicas merecem-nos ainda um breve co-
tram-se assaz bem preservados numa vasta área. mentário e reflexão:
O alargar da malha de observação permite atestar Do ponto de vista metodológico e funcional, a sua
que este urbanismo se estende ao longo de mais de execução foi plena de sucesso, permitindo-nos face
250 metros. Destaca-se dois núcleos: um que segue aos seus resultados perspetivar e gerir o âmbito de
as orientações do urbanismo tardo republicano de futuras intervenções com um grau de conhecimento
Monte dos Castelinhos e que surge numa das extre- e rigor do sítio arqueológico que não possuíamos.
midades, revelando uma organização ortogonal que Apesar de estarmos a trabalhar há mais de 15 anos
parece respeitar o urbanismo geral do sítio, e uma sobre o sítio, os resultados das leituras não intru-
nova realidade que se constatou pela primeira vez sivas ora realizados tiveram o condão de atestar a
em 2021. Esta nova realidade corresponde a elemen- existência de potencialidade arqueológica e da pre-
tos que sustentam a existência de grandes edifícios sença de estruturas negativas e positivas em áreas
com distinta orientação, sendo possível registar pelo que não supúnhamos. Ou seja, os 10 hectares de
menos a presença de três espaços distintos (figura área ocupada que calculávamos, desde o primeiro
10). Que tipo de edifícios e qual a cronologia? Nesta momento, para este sítio arqueológico (Pimenta
fase é complexa uma resposta clara. Apenas futuros Mendes e Norton, 2008) vêm-se assim ampliados
trabalhos poderão responder a estas questões. À su- para cerca de 18 hectares.
perfície do terreno, nestas áreas apenas se regista Se a probabilidade da existência de urbanismo, bem
material romano, nomeadamente material de cons- preservado, nas proximidades das áreas já interven-
trução, tégulas e imbríces assim como cerâmicas fi- cionadas era provável, áreas ouve, em que, confes-
cas do tipo Terra Sigillata Gálica e Africana. Destaca- samos, nem nos nossos momentos mais otimistas
-se ainda a presença de fragmentos de mármore de supúnhamos que as estruturas positivas tivessem
revestimento e de elementos de mosaico (Pimenta, resistido às práticas agrícolas mais intensas. Ou seja,
2015). A dimensão das fundações, que parecem de- as leituras não intrusivas autorizam vislumbrar e
limitar o conjunto (no conjunto do meio leva a que corroborar a existência de um urbanismo ortogonal
possamos estar perante uma área de armazéns, ain- bem estruturado e acima de tudo bem preservado,
As amplas leituras obtidas permitem ainda levantar PEREIRA, Carlos; PIMENTA, João; MENDES, Henrique
questões e problemáticas inesperadas. Uma das mais (2021) – As lucernas romanas alto-imperiais de Monte dos
impactantes foram os resultados obtidos na zona 5, Castelinhos (Vila Franca de Xira, Portugal). Oppidum. N.º
17. Cuadernos de Investigación / IE Universidad: Unidad de
onde a complexidade das estruturas de contenção
Arqueología Segovia: 117-148.
do rio Grande da Pipa e a amplitude dos edifícios faz
supor a presença de uma trama urbana complexa e PEREIRO, Tiago; PIMENTA, João (2021) – Relatório Final
multifuncional estreitamente interligada com a via dos Trabalhos Arqueológicos. Prospecção Geofísica no sítio de
Monte dos Castelinhos CNS 3923 – Vila Franca de Xira. Era
romana Olisipo a Scallabis e a travessia do rio Grande
Arqueologia.
da Pipa. Todos estes elementos vêm reforçar a tese
da localização do topónimo Ierabriga mencionada PIMENTA, João (Coord.) (2013) – Catálogo Exposição Monte
nas fontes clássicas, e a sua identificação com a esta- dos Castelinhos (Castanheira do Ribatejo) Vila Franca de Xira
e a conquista romana no Vale do Tejo. Museu Nacional de Ar-
ção arqueológica de Monte dos Castelinhos (Pimen-
queologia e Museu Municipal de Vila Franca de Xira.
ta e Mendes, 2012, p. 61).
Por último, não podemos deixar de assinalar que PIMENTA, João (Coord.) (2015) – O Sítio Arqueológico de
Monte dos Castelinhos – Vila Franca de Xira- em busca de Iera-
os resultados obtidos pelo projeto de investigação
briga. Museu Municipal de Vila Franca de Xira.
estruturado em torno deste arqueossítio se vêm re-
forçados com estas novas leituras frisando a riqueza PIMENTA, João (2022) – Monte dos Castelinhos e as dinâmi-
científica e patrimonial de Monte dos Castelinhos, cas da conquista romana da Península de Lisboa e baixo Tejo.
Dissertação de Doutoramento apresentado à Faculdade de
que bem merece ser recompensada com a execução
Letras da Universidade de Lisboa. Policopiado.
de um projeto de classificação, proteção, valorização
e exploração museológica. PIMENTA, João.; MENDES, Henrique (2012) – Sobre o po-
Almeja-se assim, que no futuro próximo, estes resul- voamento romano ao longo da via de Olisipo a Scallabis. PI-
MENTA, J. (coord.) – De Olisipo a Ierabriga. A rede viária ro-
tados aqui apenas enunciados possam vir a ser con-
mana no vale do Tejo. Cira Arqueologia 1. Vila Franca de Xira:
firmados e escalpelizados com a realização de um Câmara Municipal: 41-64.
novo projeto de investigação em torno desta original
PIMENTA, João; MENDES, Henrique (2014) – Monte dos
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tro de Arqueologia da Universidade de Lisboa, pp. 127-142.
Figura 1 – Localização do Monte dos Castelinhos na península Ibérica em geral e no vale do Tejo em particular, com
a localização dos principais núcleos urbanos.
960
Figura 3 – Áreas alvo de prospeção geofísica.
Figura 6 – Zona 2 dos trabalhos de geofísica correspondendo à área de olival entre as Sondagem 8 e 5.
962
Figura 7 – Leitura com georadar na Zona 2 dos trabalhos, entre a Sondagem 8 e 5. Os vermelhos dados estruturais referentes
ao GPR.
964
LOCA SACRA: PARA UMA TOPOGRAFIA
DOS LUGARES SIMBÓLICOS NO ATUAL
ALENTEJO EM ÉPOCA ROMANA
António Diniz1
RESUMO
O tema da religiosidade, trabalhado do ponto de vista da arqueologia tem sido um tópico em ascensão. Em Por-
tugal, o início do século XX teve uma grande produção dentro deste tema. Contudo, o assunto teve menor foco
no século XXI, dentro dos estudos relacionados com o período romano.
Pretendemos refocalizar a investigação para a temática suprarreferida através de um levantamento da epigra-
fia e estatuária de sítios associados às práticas e ritos do “início da Romanização”. A fim de obter uma melhor
perceção do material no espaço ao longo do tempo, recorreu-se ao uso dos SIG. Neste contributo, expomos as
problemáticas enfrentadas, a cartografia e os resultados alcançados acerca da dinâmica votiva no nosso territó-
rio, e nas materialidades à época.
Palavras-chave: Cartografia Digital; Epigrafia; Indigenismos; Religiosidade; Romanidade.
ABSTRACT
Religiosity has been a topic on the rise when approached from the point of view of archaeology. The beginning
of the XX century had a great production within this theme in Portugal, but had less focus in the XXI century,
within the studies related to the Roman period.
We aim to refocus research on the aforementioned theme through a mapping of epigraphy and statuary from
sites associated with practices and rites of “early Romanisation”. In order to have a better perception of the ma-
terial in space over time, the use of GIS was resorted to. We present the problems faced, the cartography and the
results achieved regarding the votive dynamics in our territory and the materialities at the time.
Keywords: Digital Cartography; Epigraphy; Indigenism; Religiosity; Romanity.
966
são divindades relacionadas com a vida e saúde, até em estudo, variando, como já é possível confirmar,
mesmo com a fertilidade, mas também com a morte entre divindades indígenas, greco-latinas e orienta-
e o submundo (Vasconcelos, 1897-1913). Júpiter, ou lizantes (Figura 3).
IOM, o pai dos deuses latinos, também se manifes- Podemos estabelecer a diferença entre os espaços
ta no Santuário de Endovéllico. A presença de uma rurais e os espaços “urbanos”. Consideramos que
epígrafe ao pai tutelar do panteão romano no local existem 17 locais de culto situados em meio rural,
de culto dedicado ao deus tutelar do panteão indí- em contraste para quatro em meio urbano. Esta con-
gena ou lusitano, demonstra um bom exemplo do clusão partiu do número de epígrafes encontrado
sincretismo no mundo clássico. Ou seja, o proces- em cada contexto, realçando 102 encontradas em
so de aculturação ou assimilação das comunidades meio rural, incluindo o grande polo de São Miguel
através da religião, associando-as para fundir duas da Mota, para apenas 25 provenientes de meios ur-
realidades (Vasconcelos, 1897-1913). banos. O único membro ao qual se atribuiu a classi-
Também evidenciamos a presença de três epígra- ficação de “Outros “foi uma peça cuja proveniência
fes que podem revelar sincretismo com o deus dos se desconhece por estar integrada numa coleção pri-
bosques e da natureza latino, Silvano. Sublinhar que vada (Figura 4).
esta afirmação assenta no facto das epígrafes pre- Estes gráficos permitem-nos ter uma leitura sobre
servarem parte do nomen: SLV [… / …] ANUS; …] a ocupação do território, pois podemos comprovar
anus; e …]IANUS. Aqui, Cardim Ribeiro (2002, pp. uma clara preferência pelo meio rural para a implan-
721-766) afirma que o deus se assemelha mais a esta tação de espaços de culto. Contudo, o número de
divindade do que a qualquer outra, principalmen- peças em cada ponto é reduzido, como referido, por
te através da sua estatuária. Para este investigador, múltiplas razões. Em oposição, os espaços urbanos
grande parte das associações feitas por outros au- revelam uma maior variedade de divindades con-
tores não encaixam, na totalidade, com a realidade. centradas num espaço. Podemos relacionar esta in-
O material escultórico encontrado será mais facil- formação com dois fatores: primeiramente, os espa-
mente associado a Silvano, dada as suas represen- ços citadinos são locais de interação entre pessoas e
tações – normalmente desnudo, com uma pele de realidades; e em segundo lugar, no caso dos espaços
cabra e pés calçados – do que a outros deuses, como rurais poderiam tratar-se de centros de peregrinação,
Sucellus (Scarlet Lambrino), Apollo (Thomas Reine- também concentrando pessoas de várias origens.
sius) ou Cupido (Frade Bernardo de Brito) (Ribeiro, Em contraste, encontramos vários pontos foco de
2005, pp. 721-766). práticas religiosas em meio rural, de qualquer natu-
Podemos assumir que seria um espaço aberto ao cul- reza, apesar de, na sua maioria e como já referido,
to de qualquer divindade. Apesar do templo ter sido haver uma maior tendência indígena. Encontramos
erigido a uma determinada divindade, tratar-se-ia de pela paisagem cultos domésticos, associados a villae
um local sacralizado, passível de ser ponto de qual- ou a pequenos aglomerados urbanos, como são os
quer manifestação de devoção. Por outras palavras, casos de Bencatel e Azaruja. A par destes, temos
a partir do momento em que um espaço conectava o locais que, possivelmente, seriam dedicados pura-
mundo do Homem ao mundo dos deuses, qualquer mente a práticas religiosas, como são os casos de
culto era possível de se prestar, mesmo se o espaço São Miguel da Mota e Santana do Campo, ambos
“pertencesse” a outro deus (Rüpke, 2007, pp. 1-9). de características bastante itálicas, tendo em conta
Separando o material pela área dos concelhos, e não os vestígios arquitetónicos e materiais encontrados.
nos focando no polo de São Miguel da Mota, há uma O primeiro com o objetivo de aglomerar a população
maior intensidade de material epigráfico nas áreas local que prestava culto a Endovéllico, desviando do
envolventes aos concelhos de Évora e Beja. No lito- santuário proto-histórico que existe na região – San-
ral há uma menor intensidade do material em estu- tuário da Rocha da Mina. Relativamente a Santana
do, podendo dever-se aos fatores apresentados an- do Campo, apesar das escassas peças registadas, as
teriormente. Há também uma grande variedade de estruturas mantêm-se, fazendo atualmente parte
material epigráfico pela área em estudo, como já foi da igreja matriz e de outras habitações no seu redor
possível assistir, entre divindades indígenas, greco- (Schattner & alii, 2013).
-latinas e orientalizantes (Figura 2). Há também uma Focando nos dedicantes, apenas 24 epígrafes não
grande variedade de material epigráfico pela área apresentam dedicante ou o dedicante encontra-se
968
tante alterada desde a Antiguidade até aos dias de gia apresentada à Universidade de Aveiro sob orientação da
hoje, e a reutilização de peças ao longo dos séculos Prof. Doutora Maria do Rosário Azevedo e do Prof. Doutor
que procederam à ocupação romana. José Francisco Horta Pacheco dos Santos.
Verificamos que, observando os sítios no seu todo, e ARAÚJO, António (2013) – O Varisco do sector Sul de Por-
considerando o panorama geral, há uma relação di- tugal. In DIAS, Rui, ARAÚJO, António, TERRINHA, Pedro,
reta (na sua maioria) entre os locais de culto e a rede KULLBERG, José, eds. – Geologia de Portugal, Volume 1 – Geo-
logia Pré-mesozóica de Portugal. Lisboa: Escolar Editora, pp.
viária e de povoamento. Em muitos dos casos a dis-
139-144.
tância entre os sítios registados e locais identificados
como contextos habitacionais é bastante reduzida. BURROUGH, Peter A. (1986) – Principles of Geographic In-
Algo que se volta a repetir em relação a linhas de formation Systems for Land Resource Assessment: Monographs
on Soil and Resources Survey, 12. New York; Oxford Science
água, distando entre 1 a 5km.
Publications.
Não esquecendo que a religiosidade faz, ainda atual-
mente, e faria também na Antiguidade, parte da CARNEIRO, André (2010) – A cartografia dos cultos religio-
sos no Alto Alentejo em Época Romana: Uma leitura de Con-
vida quotidiana das comunidades, podemos apenas
junto. In HISPANIA ANTIQVA XXXIII-XXXIV. Universidad
supor que a paisagem religiosa em período romano
de Valladolid, pp.237-272;
seria mais populosa. Notamos, através da cartogra-
fia, que há muito espaços em branco, ainda por ve- CARNEIRO, André (2017) – As casas dos Deuses. A propósito
do templo romano de Santana de Campo. In Jornadas do Pa-
rificar a presença deste tipo de sítios ou expressões.
trimónio: A Arqueologia no Concelho de Arraiolos, pp. 85-100.
Apenas com mais investigação dentro da área e da
temática, bem como uma maior atenção nos mate- CASAROTTO, Anita; PELGROM, Jeremia; STEK, Tesse
(2017) – A systematic GIS-based analysis of the settlement
riais e contextos, podemos ter uma melhor perceção
developments in the landscape of Venusia in the Hellenistic-
de como seria a paisagem votiva destas comunida- Roman period. Archaeological and Antropological Sciences,
des do passado. pp. 735-753.
No entanto, podemos desde já atestar o pragmatis-
CHRISMAN, Nicholas (2002) – Exploring Geographic Infor-
mo e a capacidade enquanto ferramenta que são os
mation Systems. Nova York: John Wiley & Sons, Inc.
SIG, possibilitando para além do apresentado no pre-
sente estudo, um vasto e variado espectro de análise. CONOLLY, James; LAKE, Mark, (2006) – Geographical In-
formation Systems in Archaeology. Cambridge: Cambridge
Tendo certos recursos, como o revelo, a qualidade
University Press.
dos solos, as nascentes minerais, entre outros aspe-
tos físicos da paisagem, podemos prever a implan- CRAIG, William J.; HARRIS, Trevor M.; WEINER, Daniel
tação de sítios, averiguar a visibilidade que os locais (2002) – Community Participation and Geographyc Informa-
tion Systems. Londres e Nova York: Taylor & Francis.
em estudo têm na paisagem, ou se são possíveis de
avistar a partir da rede de povoamento. É, portanto, CUNHA, Pedro; MARTINS, António (2004) – Principais as-
um método em ascensão no mundo da investigação pectos geomorfológicos de Portugal central, sua relação com
o registo sedimentar e a importância do controlo tectónico.
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Figura 6 – Cronologia das epígrafes.
976
MOSAICOS DA ÁREA DE INFLUÊNCIA
DE PAX IVLIA
Maria de Fátima Abraços1, Licínia Wrench2
RESUMO
Neste trabalho apresentamos o estudo de um conjunto de mosaicos romanos das colecções do Museu Rainha
D. Leonor de Beja e do Museu de Arqueologia do Castelo de Vila Viçosa. Estes mosaicos são provenientes de
estações arqueológicas da área de influência de Pax Iulia, incluindo os desta cidade, trazidos na sua maioria
pela mão do arqueólogo Abel Viana. A análise que pretendemos fazer sobre o trabalho desenvolvido por este
arqueólogo no que respeita ao percurso do mosaico nas diferentes etapas – escavação, levantamento, restauro,
consolidação e exposição museológica – poderá servir como ensinamento, reflecção e discussão sobre a prática
destas diferentes fases às quais os mosaicos romanos podem estar sujeitos.
Palavras-chave: PAX IVLIA; Mosaicos romanos; Levantamento; Restauro; Musealização.
ABSTRACT
In this work we present the study of a set of Roman mosaics from the collections of the Museum Rainha D. Leo-
nor, Beja and the Museum of Archeology of the Castle of Vila Viçosa. These mosaics come from archaeological
sites in the area of influence of Pax Iulia, including those in this city, mostly brought by the hand of archaeologist
Abel Viana. The analysis that we intend to carry out on the work carried out by this archaeologist with regard to
the path of the mosaic in the different stages – excavation, survey, restoration, consolidation and museological
exhibition – may serve as teaching, reflection and discussion on the practice of these different stages to which
Roman mosaics may be subject.
Keywords: PAX IVLIA; Roman mosaics; Lifting; Restoration; Musealization.
2. APECMA / [email protected]
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cos. Foi feita a limpeza da estação e a definição de capazes de efectuar essa tarefa, desde que lha sai-
um percurso para visitantes. A estação passou a ter bam explicar. E a operação além de fácil, pode ser le-
um guarda permanente. Em 1987, foi feito o restauro vada a cabo com rapidez. Nenhum atraso apreciável
de mosaicos em suporte original: remate de lacunas aos trabalhos de lavoura em curso, ou outro prejuízo
com uma argamassa pobre e cobertos alguns pavi- de maior, pode ocasionar aos donos dos terrenos o
mentos com areia.5 consentimento para a extracção de mosaicos nas
suas propriedades”. (A. Viana, 1962, pp. 37-38).
1.3. Técnicas usadas no levantamento e consoli- Embora seja de apreciar a sistematização realizada
dação de alguns conjuntos de mosaicos na pri- por Abel Viana em três “variedades” de mosaicos,
meira metade do século XX sobretudo baseada nos temas e cores utilizados e
Para Abel Viana os mosaicos eram pavimentos for- na dimensão das tesselas, ela afigura-se assaz im-
mados de pequeninos cubos de pedras de diferentes precisa à luz dos actuais conhecimentos sobre as
cores, assentes em argamassa, compondo belos de- técnicas de assentamento e execução dos tesselatos.
senhos geométricos, figuras de flores frutos, peixes Também, depois de conhecermos a maioria dos le-
e outros animais, cenas mitológicas e da vida huma- vantamentos de mosaicos realizada nas diferentes
na. Em relação aos pavimentos musivos da região regiões do país, não podemos concordar com o cita-
de Beja, Abel Viana procurou distinguir variantes, do anteriormente. Estas operações devem ser feitas
segundo a técnica e estratégia de execução: por equipas especializadas, porque é um trabalho de
“Desta espécie de pavimentos ornamentados com difícil execução, que deve ser planeado e não deve
pequeninos cubos de pedra (tesselae), verificam-se ser realizado de modo rápido. Como exemplo de
três variedades, ou qualidades. A primeira apresen- adequados procedimentos, realizados ainda na pri-
ta uns cubozinhos maiores (…). Outra variedade é o meira metade do século XX, podemos referir o caso
pavimento de cubozinhos mais pequenos que os da do levantamento dos mosaicos de Torre de Palma
variedade anterior, nas cores de branco, castanho que teve lugar no ano de 1948.
claro, castanho escuro, cinzento escuro, preto pro- A descoberta em 1947 dos mosaicos desta Villa tor-
priamente dito – de pedra, e amarelo e azul de vidro. nou possível a vinda a Portugal de uma equipa de téc-
Nos pedaços recolhidos no Museu vê-se a parte in- nicos italianos do Opificio delle Pietre Dure, especia-
ferior do corpo desnudado de um personagem em lizada em restauro e conservação de mosaicos, para
atitude de correr, aparecendo por detrás, a pele de proceder ao levantamento, consolidação, restauro e
leão. Era uma excelente obra de mosaico e consti- sua colocação no Museu Etnológico Dr. Leite de Vas-
tuiria possivelmente a parte central (emblema, lhe concelos, actual Museu Nacional de Arqueologia.
chamavam os romanos) do pavimento composto Manuel Heleno, Director do Museu Etnológico7, di-
pelos cubozinhos maiores atrás apontado.6 A tercei- rigiu os trabalhos de escavação (1947-1956) e procu-
ra variedade, das três encontradas nesta cidade em rou obter autorização para fazer deslocar a Portugal
28 de Março findo, pertence à forma mais antiga do uma equipa de técnicos especialistas de restauro. Tal
mosaico italiano: o pavimento é formado por uma facto revela a grande preocupação deste arqueólogo
superfície de formigão muito fino (opus signinum), em acudir rapidamente aos mosaicos recém-des-
na qual se incrustaram cubozinhos (lapilli) de pedra, cobertos de modo a que uma equipa com formação
brancos e pretos, separados uns dos outros e alinha- adequada e muito especializada na técnica de levan-
dos de modo a comporem variados desenhos geo- tamento e assentamento de mosaicos colaborasse
métricos.” (A. Viana, 1958, p. 24). na execução das diferentes tarefas. M. Heleno dirige
Ainda, segundo este arqueólogo: “o levantamento um ofício ao Director Geral do Ensino e das Belas
desses pavimentos, para reconstituição num museu, Artes solicitando a autorização para o contrato de
é operação que está muito longe de ser difícil, e de
exigir operários especializados. Sabemos, por expe-
riência própria, que simples homens do campo são 7. Manuel Domingues Heleno Júnior (1894-1970) tomou
posse do cargo de conservador do Museu Etnológico a 13
de Agosto de 1921, tendo sido nomeado seu Director em 13
5. Informação Arqueológica, 9, 1994, p. 102.
de Agosto de 1930, cargo que desempenhou até ao limite de
6. Trata-se do fragmento de mosaico com a representação idade, em 11 de Novembro de 1964. (D.G., II série, nº 20, de
de Hércules, que Abel Viana não identifica. 25 de Janeiro de 1965).
980
desenhos, fotografias e levantamentos; bibliogra- redondo desenhado por tesselas pretas. O cabelo
fia; observações e datação. São suprimidas as encaracolado está cingido pela coroa de parras. A
entradas nas fichas dos mosaicos para as quais são barba e o bigode também são delimitados por tesse-
desconhecidas as informações. Os fragmentos de las pretas. A pupila e o contorno dos olhos são feitos
mosaico que registámos no Museu Rainha D. Leo- também por pequeníssimas tesselas pretas. O om-
nor e cujas fichas não constam do presente trabalho, bro e o braço direito estão inabilmente representa-
são provenientes dos seguintes sítios arqueológicos: dos, este um pouco afastado do corpo e ligeiramente
Mina de Algares, S. Salvador, Aljustrel, Beja, exis- dobrado com a mão que parece fechada. Pensamos
tindo vários fragmentos de mosaico deste sítio no que a reposição das tesselas, depois do levantamen-
MNA, nº inv. 15921, distribuídos por diferentes con- to do mosaico, não obedeceu à sua forma original,
tentores; Herdade da Calçada, Sta Clara do Loure- tendo o braço e o ombro ficado disformes. A pele de
do, Beja; Alcaçarias, N. Srª das Neves, Beja; Antigo leão de Nemeia, que cai do ombro esquerdo e segue
Largo do Duque em Beja; Horta do Pombal, Berin- junto às costas até aos pés, é tratada com tesselas
gel, Beja; Ponte de Lisboa, Beringel, Beja; Monte do castanhas, amarelas, vermelhas acastanhadas e o
Meio, S. Brissos, Beja: dois fragmentos decorados contorno feito por tesselas pretas.
com peltas, que poderão fazer parte do mosaico de A volumetria do corpo de Hércules é dada por fiadas
Pardais, no Museu de Vila Viçosa (F. Abraços, 2006, de tesselas vermelhas alaranjadas dispostas sobre o
Anexo I, pp. 347-349; 352; 357-358). vértice. A postura do herói parece um pouco camba-
Do Museu de Vila Viçosa apresentamos dois mo- leante, com a perna direita flectida quase em ângulo
saicos provenientes das estações arqueológicas de recto e a esquerda um pouco dobrada pelo joelho.
Pardais e Monte do Meio. Relativamente ao mosaico Uma sombra projectada para trás, no prolongamento
de Pardais, apontamos as referências anotadas por do calcanhar do pé esquerdo, está marcada por uma
Manuel Heleno em um dos Cadernos de Junho de fiada de tesselas. O pé direito é visto lateralmente,
1939 do Arquivo do Museu Nacional de Arqueologia encurvado, adaptando-se à extremidade da pele de
(AMNA). leão que lhe cai do ombro até ao nível do solo.
982
Nº de inventário: MRB.01447 Bibliografia
VASCONCELOS, 1903, p.163; PINTO, 1934, pp. 176-
Localização actual 177; VIANA, 1945, pp. 321-322; SÁ, 1959, pp. 62-63;
Museu Rainha D. Leonor, Beja ABRAÇOS, 2006, Anexo 1, pp. 353-354; MOURÃO,
2008.
Local do achado
Herdade do Montinho, Quintos, Beja Datação
Século IV (?)
Data do achado
1892
Nº de inventário: MRB.01422
Descrição
Fragmento de mosaico decorado com um peixe den- Localização actual
tro de um círculo Museu Rainha D. Leonor, Beja
Fotografia
Fig. 4
Datação Observações
Século IV? Desconhecemos a sua proveniência
984
Ilustração utilizada Nº de inventário: ARQ3855
Fotografia: © Museu Rainha D. Leonor
Localização actual
Fotografia Museu de Arqueologia do Castelo de Vila Viçosa.
(Fig. 6) Exposto no Museu
Parte conservada
Fragmento de mosaico com suporte original refor-
çado com cimento. Em bom estado. Foi restaurado
em 1996 por Manuel Henriques Santo, Condeixa‑a
‑Nova.
986
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS ser removido, tratado, guardado ou exposto em local
adequado. No entanto, há que ter sempre em consi-
Quanto ao levantamento e conservação de mosai- deração que cada caso é um caso, e que é necessário
cos realizados na primeira metade do século XX, é ponderar as diferentes opções de protecção, antes
de salientar o cuidado havido por Manuel Heleno de ser tomada qualquer decisão.
neste domínio, relativamente aos mosaicos da Villa
de Torre de Palma, bem como o de Abel Viana já na BIBLIOGRAFIA
década de cinquenta do século XX nos mosaicos que ABRAÇOS, Maria de Fátima (2005) – “Para a História da
apresentamos no catálogo relativo ao Museu Rainha conservação e restauro do mosaico romano em Portugal.
D. Leonor. Manuel Heleno e a equipa de restauro de mosaicos do Opi-
O novo método com a utilização do cimento, de- ficio delle Pietre Dure de Florença”. O Arqueólogo Português,
fendido pelos restauradores europeus, confirmado série IV, volume 23, Lisboa, pp. 414-435.
na Carta de Atenas e posto em prática pela equipa ABRAÇOS, Maria de Fátima (2006) – Para a História da con-
de Florença, foi-se revelando negativo. A oxidação servação e restauro do mosaico romano em Portugal. Vols. I-II-
dos ferros das estruturas internas do cimento provo- -III, Tese de Doutoramento. Faculdade de Letras da Univer-
sidade Clássica de Lisboa, Lisboa (exemplares policopiados).
cou a dilatação destes, o arqueamento das placas e,
consequentemente, o rebentamento da camada de ABRAÇOS, M. Fátima (2010) – “The team of Opificio delle
aderência das tesselas. A migração de sais solúveis Pietre Dure of Florence and the lifting, consolidation and
para a superfície dos mosaicos cobriu-os com uma restoration of mosaics of the Roman villa of Torre de Palma,
Portugal”. In Ravenna Musiva. Conservazione e Restauro del
película acinzentada de difícil remoção. Os efeitos
Mosaico Antico e Contemporaneo. Primo Convegno Interna-
térmicos provocaram o rebentamento do cimento e zionale. Ravenna 2009, pp. 187-206.
a deslocação das tesselas.
ALARCÃO, Jorge de (1988) – Roman Portugal. vols. I-II-III,
Perante estes resultados, este método foi sendo
Aris & Phillips Ltd – Warminster-England.
substituído, ao longo da década de sessenta, por
uma nova metodologia para o levantamento e ar- BELOTO, Carlos (1989) – Mosaicos romanos de Portugal, Tra-
balho fotocopiado, Condeixa.
mazenamento dos pavimentos musivos. A técnica
com cimento armado foi substituída por resinas e ERA Arqueologia, SA. (2019) – Estudo de impacte Patrimo-
optou-se, sempre que possível, pela preservação dos nial na Herdade de Fonte dos Frades. Prospeções Arqueoló-
gicas, Baleizão, Beja, pp. 31-34.
mosaicos in situ, o que permite o melhor entendi-
mento da sua inserção e envolvimento nas e pelas FERREIRA, V. (1964) – “Necrologia”, Revista de Guimarães,
estruturas arquitectónicas. Tem-se verificado, igual- LXXIV, pp. 172-176.
mente, uma evolução no campo da consolidação in LANCHA, Janine; ANDRÉ, Pierre (2000) – Corpus Mosaicos
situ, atribuindo-se uma maior atenção à estratigra- romanos de Portugal II, CONVENTVS PACENSIS 1, A villa de
fia e respeito pelos contextos arqueológicos. Têm-se Torre de Palma. Lisboa: IPM.
aplicado medidas e técnicas de conservação pre- LOPES, Maria da Conceição (2003) – A cidade Romana de
ventiva, conforme as recomendações da Carta de Beja. Percursos e debates acerca da “civitas” de PAX IVLIA.
Veneza (1964). A oficina de restauro de Conimbriga, Instituto de Arqueologia. Faculdade de Letras Universidade
que pôs em prática os processos mais modernos de de Coimbra.
restauro, conforme os conhecimentos e influências LOPES, Maria da Conceição (2003a) – A cidade Romana de
recebidos do estrangeiro, continua a sua tarefa ten- Beja. Percursos e debates acerca da “civitas” de PAX IVLIA.
tando responder aos diferentes pedidos de restauro Catálogo dos sítios. Instituto de Arqueologia. Faculdade de
de mosaicos de várias estações arqueológicas, no Letras Universidade de Coimbra.
sentido de consolidar e restaurar os mosaicos in situ MAIA, Maria Garcia; MAIA, Manuel (1974) – “Villa romana
ou por outro lado, consolidar ou substituir os antigos de D. Pedro (Beja), 1ª Campanha de escavações”, Actas das II
suportes de cimento armado por suportes sintéticos Jornadas Arqueológicas, Lisboa, vol. II, 1974.
e ligeiros. O mosaico só será removido se se encon- MOURÃO, Cátia (2008) – Mirabilia Aquarum. Motivos Aquá-
trar em muito mau estado de conservação, com as ticos em Mosaicos da Antiguidade no Território Português.
tesselas em desagregação e o sítio onde estiver in- EPAL, Empresa Portuguesa das Águas Livres, S.A., Lisboa.
serido for destruído. Neste caso, depois de se fazer a NOLEN, Jeannette (2004) – Roteiro de Arqueologia do Castelo
escavação das camadas subjacentes, o mosaico deve de Vila Viçosa, Fundação da Casa de Bragança, 1ª edição.
988
Figura 2 – Fragmento de mosaico decorado com nó de Sa
lomão. © Museu Rainha D. Leonor.
Figura 4 – Fragmento de mosaico decorado com motivos geométricos: trança de 3 cordões; linha de ogivas e linha de dentes de
serra. © Museu Rainha D. Leonor.
Figura 7 – Fragmento de mosaico policromo decorado com cabeça de Medusa. © Fundação Casa de Bragança, 2023.
990
Figura 8 – Fragmento de mosaico geométrico decorado com peltas e quadrifólios determinados por círculos secantes, com
florzinha ao centro. © Fundação Casa de Bragança, 2023.
RESUMO
No texto que se segue apresenta-se um breve enquadramento do projecto MARMORAT, uma investigação em
curso que pretende analisar o comércio de pedras ornamentais na Lusitânia romana, seguindo-se uma análise
de alguns dos dados obtidos até ao momento no decurso da investigação, em particular relativos à actividade
extractiva e à exploração de mármores no território actualmente português. Neste âmbito, são apresentados e
debatidos os resultados dos trabalhos arqueológicos desenvolvidos, até então, no Tanque dos Mouros, uma im-
portante e complexa estrutura hidráulica de época romana que estará associada à exploração de mármore no An-
ticlinal de Estremoz. Os dados obtidos permitem aventar hipóteses interessantes relativas à funcionalidade e ao
contexto desta estrutura, e salientam, concomitantemente, a necessidade de trabalhos arqueológicos adicionais.
Palavras-chave: Pedras ornamentais; Extracção; Tecnologia; Tanque dos Mouros; Época romana.
ABSTRACT
The following chapter provides a brief introduction to the MARMORAT project and the ongoing research that
aims to analyse the ornamental stone trade in Roman Lusitania, while also presenting some of the data ob-
tained thus far in this investigation, namely regarding the quarrying of marbles in what is now Portugal. In
particular, this paper analyses and debates the data resulting from the investigation undertaken at Tanque dos
Mouros, a complex hydraulic structure that might be related to marble quarrying in the Estremoz region. The
results obtained have allowed us to come forward with some interesting hypotheses regarding the structure’s
functionality and wider context, while also stressing for the necessity of further archaeological investigation.
Keywords: Ornamental stones; Quarrying; Technology; Tanque dos Mouros; Roman period.
994
evidências de tecnologia e mão-de–obra especiali- pode revelar aspectos importantes sobre as relações
zada, bem como as diferentes utilizações que o már- e padrões comerciais, nomeadamente rotas e meios
more teve durante este período (ex. arquitectura, de abastecimento (Taelman, 2014). Analisando es-
escultura, funerário, etc.). Por fim, uma análise de tes aspectos num período de várias transformações,
conjunto da evolução de todos estes factores ao lon- desde as reformas de Diocleciano à consolidação do
go do período de estudo, poderá permitir indagar, reino Visigodo, permite ainda descortinar importan-
numa perspectiva mais ampla, não apenas escolhas tes aspectos socioeconómicos e culturais. De acor-
estéticas como também aspectos socioeconómicos e do com Marano (2016), a crise do século III afetou
culturais dos consumidores da Lusitânia. particularmente o comércio e utilização de pedras
ornamentais, nomeadamente devido ao declínio
3. AS PEDRAS ORNAMENTAIS E A do evergetismo privado e da munificência publica
LUSITÂNIA: O ESTADO DA QUESTÃO dos centros urbanos. Não obstante, a diminuição da
oferta levou ao acréscimo do valor destes produtos,
O comércio de pedra em época romana, tal como de- nomeadamente do mármore, que se tornou um in-
finido por Russell (2013a), conta já com uma longa dicador não só de status social, mas até mesmo de
tradição de investigação a nível internacional (Ward- identidade romana nos séculos seguintes. Com efei-
-Perkins e Dodge, 1992). Contudo, verifica-se ainda to, no período tardo-antigo continua a documentar-
uma maior incidência destes estudos em contextos -se a utilização de mármore para fins ornamentais
alto-imperiais, quando o comércio e a utilização de em contextos urbanos, como se verifica em Mérida
pedras ornamentais atingiram o seu apogeu (Russe- (Cruz Villalón, 2015), mas observa-se também uma
ll, 2013a), sendo ainda escassos aqueles que anali- evidente expansão da utilização destes materiais em
sam o desenrolar das actividades relacionadas com contextos rurais, nomeadamente nas villae, muitas
a extracção, abastecimento ou mesmo utilização de das quais foram monumentalizadas durante este
materiais pétreos em contextos tardo-antigos (Ma- período (Chavarria Arnau, 2006). Com o desenvol-
rano, 2016). No âmbito da arqueologia portuguesa, vimento do cristianismo, o mármore foi também
o comércio de pedras ornamentais durante a épo- amplamente (re)utilizado em contextos funerários,
ca romana recebeu relativamente pouco interesse como Silveirona (Wolfram, 2011) e Mértola (Lo-
(Carneiro, 2019), verificando-se somente alguns tra- pes 2014), bem como em edifícios religiosos, como
balhos pontuais relativos à proveniência de alguns atestam os baptistérios de Torre de Palma e Idanha
mármores (por ex. Lopes et al., 2000; Maciel, Cabral (Cordero Ruiz et al., 2020) ou o complexo religioso
e Nunes, 2002). Este panorama tem, no entanto, vin- de Mértola (Lopes 2014). Neste período a espoliação
do a alterar-se na última década, com os trabalhos e reutilização de materiais lapídeos tornou-se uma
desenvolvidos em torno da cidade romana da Am- das características mais marcantes da paisagem ur-
maia (Taelman, 2014) e, mais recentemente, com os bana. Esta actividade tem sido alvo de vários estu-
estudos desenvolvidos sobre a exploração, comér- dos recentes (por ex. Mateos Cruz e Morán Sánchez,
cio (Carneiro, 2019), transporte e difusão (Moreira, 2020), no entanto, a forma como esses processos
2022; Trapero Fernández, Carneiro e Moreira 2023) ocorreram a nível local e regional continua pratica-
de mármore de Estremoz no período romano. mente desconhecido (Barker, 2019).
Desde a época de Augusto que diferentes tipos de Situada no extremo ocidental do mundo romano, a
pedras ornamentais eram exploradas, comercializa- Lusitânia estava distante de muitas das principais
das e utilizadas na Lusitânia, sobretudo para embe- fontes de pedras ornamentais exploradas na anti-
lezamento da arquitectura (Taelman, 2014), sendo guidade, contudo alguns dos estudos já efectuados
estas um elemento luxuoso e dispendioso que sim- atestam que a província se encontrava inserida nas
bolizava prosperidade, riqueza e poder económico rotas de longa distância que comercializavam este
(Fant, 1988). O abastecimento das grandes quanti- tipo de produtos (Maciel, Cabral e Nunes, 2002).
dades de mármore e outras pedras ornamentais, fre- Com efeito, o transporte de quantidades significati-
quentemente relacionados com grandes projectos vas de pedras ornamentais dispendiosas e de grande
de construção terá, certamente, tido um grande im- qualidade por todo o mediterrâneo está bem atesta-
pacto na economia regional e suprarregional. Assim, do pelo registo arqueológico sítios de todo o mundo
o estudo do comércio deste tipo de materiais pétreos romano mas, em particular, por diversos naufrágios,
996
de 1758, onde os párocos de Santa Maria e Santo An- alinhamento, que se encontra em boa medida soter-
dré referem que “Em pouca distancia deste templo rado ou destruído pela estrada, constata-se a corres-
se vem as ruinas de hum tanque, a que a tradição pondência deste com o limite noroeste do Tanque
chama dos Mouros, e he quadrado de bastante gran- dos Mouros observado na fotografia aérea histórica.
deza, e no groço de suas paredes alguas cazinhas Deste modo, parece corroborar-se a informação do
que mostrão serem os lugares aonde os romanos se século XVIII de que a planta desta estrutura seria de
despião para se banharem na agoa que lhe vinha por matriz quadrangular, medindo o seu interior cerca de
aquedutos suterraneos dos sítios onde está situada a 56x54m. A mesma análise cuidada no terreno permi-
cerca do convento dos Capuchos que fica pouco dis- te, contudo, confirmar as observações de Quintela,
tante do dito tanque como se mostra das ruinas deles Cardoso e Mascarenhas (1986) sobre a continuidade
(…)” e “Não longe desta igreja há hum famozo lago das estruturas norte da estrada, nomeadamente o
antíguo, que terá mais de quatrocentos passos de sir- que parece ser o prolongamento do muro nordeste.
cuito, e vinte e sinco palmos de alto, o vulgo lhe cha- Em termos de tipologias construtiva e morfológica,
ma o tanque dos Mouros (nome que o povo costuma este muro é em tudo idêntico ao que se observa a sul
dar a todo o edeficio cuja antiguidade se ignora) este da estrada e, embora seja visível por apenas alguns
lago é quadrado e alguns pensão serem banhos dos metros, o seu prolongamento deixa-se antever pelo
Romanos; porem, com serteza só se sabe que a agoa talude que da continuidade ao alinhamento, como
lhe vinha de huma fonte publica que o povo deu aos já foi observado anteriormente (Quintela, Cardoso
religiozos de Santo António que fica pouco distante e Mascarenhas, 1986). Com efeito, através da reali-
(…)” (Azevedo, 1898: 147). Bem patente nestas refe- zação de um levantamento fotogramétrico de toda
rências setecentistas, a antiguidade desta estrutura esta área e procedendo ao subsequente processa-
hidráulica foi, de certo modo, posta em causa por Es- mento de um Modelo Digital do Terreno (MDT) foi
panca (1975), que a considerou do século XIV. No en- possível identificar não só o referido talude em toda
tanto, já anteriormente Crespo (1956) havia defendi- a sua extensão como ainda outros dois que parecem
do que seria de origem romana, fazendo referência a formar parte da mesma estrutura, também de matriz
vários achados arqueológicos nesta área, sendo esta quadrangular (Fig. 2). Apesar de ter dimensões ligei-
cronologia confirmada no decurso de um levanta- ramente superiores, esta eventual estrutura parece
mento e analise mais detalha por parte de Quintela, ser, morfologicamente, muito semelhante à que se
Cardoso e Mascarenhas (1986). De acordo com estes situa a sul da estrada, notando-se, aliás, uma pro-
autores (1986: 135) o “tanque apresenta uma planta porção quase de 2:1, muito próxima à que Quintela,
rectangular, sendo apenas bem visível a sul da estra- Cardoso e Mascarenhas (1986) haviam assumido
da que o corta”, observando-se, no entanto, “do lado inicialmente para um tanque de planta rectangular.
norte da referida estrada, vestígios do prolongamen- Naturalmente, a falta de trabalhos arqueológicos
to dos muros orientais”, o que os levou a aventar que não permite ainda confirmar a existência desta es-
“o desenvolvimento inicial do tanque teria cerca de trutura, muito menos aferir tipologias e funcionali-
90m de comprimento por 45m de largura”. Esta des- dades, contudo as evidências sugerem, desde logo,
crição, contudo, não se coaduna com a que foi feita não um tanque rectangular mas a possível existência
pelos párocos locais no século XVIII, que, como refe- dois tanques contíguos.
rido acima, descrevem o tanque como sendo quadra- Tal como a antiguidade, também a funcionalida-
do. De facto, analisando a fotografia aérea histórica de hidráulica do Tanque dos Mouros está bem pa-
do voo USAF, datada de 1958, é possível observar tente das referências das Memorias Paroquiais de
que, numa fase anterior ao corte provocado pela já 1758 (Azevedo, 1898). Não só esta estrutura era já
mencionada construção da estrada N4, o Tanque referida precisamente como um tanque como ain-
dos Mouros apresentava uma planta quadrangular da se associa a banhos romanos. O abastecimento
(Fig. 1). Uma cuidada análise no terreno permitiu deste grande tanque fazia-se através de aqueductos
também identificar os vestígios de um alinhamento subterrâneos, provenientes “de huma fonte publica
cortado não só pela estrada a norte, mas também que o povo deu aos religiozos de Santo António que
pela criação de uma abertura que permite o acesso fica pouco distante” (Azevedo, 1898: 147). Espanca
de máquinas agrícolas ao interior do tanque (Fig. 3). (1975) sugere ainda que o tanque poderia ser tam-
Georreferenciando e projectando a continuidade do bém abastecido por um riacho vindo do baluarte de
998
Plínio não fornece mais detalhes sobre a técnica de tão inventivo como Dédalo que criou uma máquina
corte (Grewe, 2010). A serragem manual era, natu- movida por uma roda (Grewe 2010) e, de facto, na
ralmente, o método mais antigo e, muito provavel- representação que lha esta associada é possível ob-
mente, o mais comum. Um baixo-relevo de uma servar uma roda vertical, com o respectivo canal de
oficina de marmorarii, datado de época flávia, iden- abastecimento, a partir da qual se estende um eixo
tificado em Ostia (Fig. 4, A), oferece uma interessan- que apresenta, na outra extremidade, uma roda den-
te representação gráfica desta técnica, destacando- tada. Esta, por sua vez, conecta com uma terceira
-se não só a serra manual mas também a existência roda que, criando essencialmente uma engrenagem
de ânforas, uma delas cortada a meio, em frente ao de entrosga e carreto, faz mover dois conjuntos dis-
bloco de mármore, e que, seguindo a análise de Kes- tintos de serras verificais, representadas, em ambos
sener (2010), continha a mistura de água e areia que os casos, a cortar blocos de pedra. Embora o registo
seria colocada na fenda resultante da serração com o arqueológico local ou a inscrição do sarcófago não
instrumento que se observa por cima da ânfora, que permitam descortinar a eventual localização da ser-
consiste numa vara com uma espécie de colher numa ra e o seu contexto, é muito provável que estivesse
das extremidades. Esta técnica não seria, no entan- relacionada com a exploração dos mármores locais.
to, a única conhecida e utilizada no mundo romano, Mais relevante do que isso, a representação esque-
estando atestada, também, documental e arqueolo- mática atesta que esta tecnologia seria já conhecida
gicamente, a existência de engenhos hidráulicos de- no século III (Ritti, Grewe e Kessener 2007).
dicados ao corte de pedra. Com efeito, é amplamen- Havendo evidências, directas ou indirectas, para
te conhecida a referência de Ausónio, no seu poema este tipo de actividade em várias cidades do mundo
Mosella, datado c. 370 d.C., ao ruido incessante das romano, o corte de pedra não estava, no entanto,
marmora serras que se ouvia em ambas as margens limitado às oficinae marmorarii urbanas, documen-
do rio Erubris (actual Ruwer, Alemanha), à qual se tando-se, também, este tipo de trabalhos nas pedrei-
junta a referência pontual de Amiano Marcelino a ras (Kessener, 2010). Deste modo, analisados estes
serras mecânicas (Res Gestae XXIII, 4). Contudo, contextos, e estando o Tanque dos Mouros próximo
os detalhes técnicos relativos ao funcionamento a um possível vicus marmorarius e inserido numa
destes engenhos eram, até recentemente, desco- área de intensa actividade extractiva em época ro-
nhecidos, chegando mesmo, por exemplo, a ser co- mana, não se afigura, de todo, inverosímil colocar a
locada em causa da autenticidade da referência de hipótese das máquinas hidráulicas de produção de
Ausónio (Wilson, 2002). Este panorama começou a força motriz, já sugeridas por Quintela, Cardoso e
mudar com a descoberta de vestígios arqueológicos Mascarenhas (1986), estarem associadas, em parti-
directos e indirectos relacionados com este tipo de cular, a engenhos de corte de pedra, nomeadamen-
engenhos hidráulicos. Como evidência arqueoló- te, neste caso concreto, serras de mármore. Somente
gica directa estão os vestígios de máquinas de ser- a realização de trabalhos arqueológicos adicionais
rar pedra identificados em Gérasa (Seigne, 2002) e poderá confirmar esta hipótese, sobretudo a escava-
Éfeso (Mangartz, 2007). Segundo Kessener (2010), ção da área em torno dos contrafortes que apresen-
estas serras hidráulicas são muito semelhantes, tam septos e canais de abastecimento.
sendo que ambas se situavam em oficinas urbanas
e apresentam características morfológicas e tecno- 5. O QUE SE SEGUE?
lógicas muito similares, nomeadamente a utilização
de serras múltiplas e o facto de, aparentemente, não Ao invés de permitir respostas seguras, esta primeira
recorrerem a engrenagens (o equivalente a entrosga análise do Tanque dos Mouros e os trabalhos reali-
e carreto). Na evidência indirecta, destaca-se, sobre- zados até então, nomeadamente o levantamento
tudo, a representação esquemática de um engenho aerofotogramétrico, análise de cartografia antiga e
relativamente complexo identificado na tampa de fotografia aérea histórica, bem como as subsequen-
um sarcófago da necrópole norte de Hierápolis (ac- tes acções de verificação no terreno, resultaram num
tual Pumakkale, Turquia), datado da segunda meta- número ainda maior de questões em aberto. Deste
de do seculo III d. C. (Ritti, Grewe e Kessener, 2007). modo, esta grande estrutura hidráulica mantém um
A inscrição, que acompanha o baixo-relevo (Fig. 4, foco central na investigação em curso. A realiza-
B), descreve M. Aur. Ammianos como um sujeito ção de sondagens arqueológicas seria, sem dúvida,
1000
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Figura 1 – Localização do Tanque dos Mouros (1) e da Senhora dos Mártires (2) vista na fotografia aérea história do voo USAF
de 1958 (IgeoE/Gil Vilarinho).
1002
Figura 2 – Modelo Digital do Terreno (MDT) do Tanque dos Mouros. Note-se a eventual continuidade das estruturas no terreno
situado a norte da estrada N4 (Aquisição de dados: Gil Vilarinho, processamento: Mauro Correia).
1004
Figura 4 – A) Representação de uma oficina de marmorarii em Ostia, Itália (Olivanti, 2002: 499 apud Kessener, 2010) e B) ilus-
tração da tampa do sarcófago de Hierápolis (Autoria: T. Ritti, apud Kessener, 2010).
RESUMO
No decorrer do projeto de investigação ‘Escavação, estudo e musealização da Casa Romana do Castro de São
Domingos’ (Lousada, Portugal) foram identificadas, até ao momento, 26 sepulturas. Em nenhum dos 23 se-
pulcros escavados, incluindo três sepulcros identificados como pertencentes a indivíduos não-adultos, foram
encontrados ossos humanos preservados. Foi apenas recuperada uma fivela em bronze como espólio associado.
A arquitetura funerária permitiu identificar três fases distintas de enterramentos. A proximidade de vias é por
vezes apontada como condicionante para a localização das sepulturas. Através da análise de paralelos existen-
tes é proposta uma cronologia para utilização da necrópole entre a Antiguidade Tardia e a Alta Idade Média que
apenas futuras campanhas arqueológicas poderão ou não confirmar.
Palavras-chave: Idade do Ferro; Época Romana; Alta Idade Média; Necrópole; Sepulturas.
ABSTRACT
Twenty-six graves were identified within the research project ‘Excavation, study, and musealisation of the Casa
Romana do Castro de São Domingos’ (Lousada, Portugal). No human bones where recovered from any of those
tombs, although the length of at least three of them indicates that they would have belonged to non-adult indi-
viduals. The single asset recovered from these graves was a bronze buckle hoop. The funerary architecture of
the necropolis displayed three different types of graves. The proximity of roads is sometimes the main condi-
tion underlying the choice of the location of a necropolis. By analysing existing data regarding other similar
structures, it is possible to propose a chronology which established that this necropolis would have been in use
between the Late Antiquity and the Early Middle Ages.
Keywords: Iron Age; Roman period; Early Middle Ages; Graveyard; Burials.
1. Arqueológo. Coordenador do projeto de investigação “Escavação, estudo e musealização da Casa Romana do Castro de São Do-
mingos”/ [email protected].
3. Arqueólogo/Antropólogo. Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra, 3000-456 Coimbra, Portugal; Centro de
Investigação em Antropologia e Saúde (CIAS), Universidade de Coimbra / https://orcid.org/0000-0002-1596-5193.
1010
3. A ANTROPOLOGIA FUNERÁRIA ções tafonómicas que resultam na destruição muitas
E A AUSÊNCIA DE OSSOS HUMANOS vezes completa do material osteológico humano, tal
como é o caso da presente necrópole. Com efeito, e
Das vinte e seis sepulturas identificadas foram esca- para além de vários outros fatores, quer intrínsecos,
vadas vinte e três (nos 1 a 6 e 8 a 24). As sepulturas 9 e quer extrínsecos ao próprio osso, o pH do solo onde
10 têm organização trapezoidal que acompanharia, foram realizadas as inumações assume importância
genericamente, a forma do corpo humano, enquan- central na preservação óssea a longo termo na ne-
to as restantes apresentam forma subretangular. crópole da Casa Romana, como aliás é largamente
Estas últimas foram abertas diretamente no geoló- reconhecido noutros sítios arqueológicos para a área
gico natural, ainda que tenham afetado unidades e/ geográfica em estudo, onde não foram recuperados
ou níveis de ocupação cronologicamente atribuíveis ossos ou se encontravam muito mal preservados
à Idade do Ferro durante o processo de desaterro. (e.g., Santos et al., 2016, p. 17-33). O solo ácido é o
A base destes sepulcros corresponde, na sua gene- agente destrutivo mais comum do osso humano,
ralidade, ao substrato geológico, ainda que, na base atuando através da dissolução da matriz inorgânica
das sepulturas 1 (cabeceira), 3 (parte central e pés), de hidroxiapatite (Janaway & alii, 2009, p. 321). Para
4, 7 e 21 a 24 (na totalidade dos sepulcros) sejam per- além disso, assim que a ligação mineral proteica é
cetíveis unidades relacionadas com anteriores estru- quebrada, o osso torna-se vulnerável à dissolução
turas habitacionais circulares da Idade do Ferro. relacionada com outros fatores ambientais (Janaway
A secção das sepulturas intervencionadas apresenta & alii, 2009, p. 321). Tudo isto limitou sobremaneira
formato retangular com fundos planos e lados para- o estudo da população inumada na necrópole, uma
lelos erigidos com recurso a material litológico de vez que impediu qualquer tipo de análise posterior
granito e corneana de média a grande dimensão, em à escavação (e.g., avaliação do perfil biológico, data-
parte resultante do reaproveitamento de materiais ção por radiocarbono, paleodietas).
de estruturas da Idade do Ferro e de época Romana. Quanto ao espólio cerâmico exumado provém, em
Para além disso, algumas das sepulturas registam a exclusivo, dos depósitos de enchimento posteriores à
presença de material cerâmico de construção rea- inumação. Na realidade, em todos os sepulcros esca-
proveitado, nomeadamente tegulae. As sepulturas vados, presumivelmente individuais, é de notar a au-
2, 6, 12 e 13 ostentavam lajes da tampa de cobertura sência de oferendas e um total anonimato, em linha
também em granito e corneana, apesar de, no caso com o pensamento vigente na época alto-medieval
dos sepulcros 2 e 6, as tampas se encontrarem pre- em que a conceção coletiva de destino e de espaço
sentes apenas no último terço, junto aos pés, sinal cemiterial sagrado relativiza o espaço sepulcral indi-
evidente de violação. Nas restantes sepulturas, se vidual (Santos, 1992, p. 35; Branco e Vieira, 2008, p.
alguma vez existiram, todas as lajes da cobertura es- 142). Na realidade, para além de poder refletir as evi-
tavam já ausentes por completo. dentes violações dos sepulcros em período indeter-
Do interior das sepulturas escavadas não foram re- minado posterior às inumações, estará também as-
cuperados ossos humanos. Apesar disso, o compri- sociada ao próprio ritual cuja prática é relativamente
mento da maioria das sepulturas (n=23; 88,46%) evi- frequente em contextos funerários alto-medievais de
dencia terem sido destinadas muito provavelmente regiões mais interiores, em populações cujos poucos
a indivíduos adultos, enquanto pelo menos as sepul- recursos seriam utilizados na construção da estrutu-
turas 4, 8 e 17 (n=3; 11,54%) terão sido utilizadas para ra tumular (Martins, Lopes e Cardoso, 2014, p. 293).
inumação de não adultos. Todas as sepulturas da necrópole da Casa Romana
Finalizada a deposição do cadáver, a sua sepultura apresentam orientação canónica, apesar da maior
parece ter sido de seguida preenchida com sedi- parte exibir uma pequena variação para sudoeste-
mento – assim aparentam as tumulações com tam- -nordeste (sepulturas 1 a 8, 11 a 26). Nesse sentido,
pa ainda completa e que não tinham sido violadas. e tal como refere Mário Barroca (1987, p. 123), a
Nesse sentido, a decomposição dos tecidos mo- orientação de uma sepultura seria obtida tendo em
les e ósseos terá ocorrido em espaço preenchido. conta o nascer e o pôr-do-sol, pelo que é possível en-
Uma das principais razões para a total ausência de contrar enterramentos que, embora apresentando
restos humanos esqueletizados será a reconhecida uma orientação genérica oeste-este, revelem ligei-
acidez dos solos graníticos que aceleram as altera- ros desvios axiais com amplitudes máximas de 40º.
1012
cerca de metade do sepulcro, afetando particular- Romana, que sugere algum tipo de “supervisão”
mente a zona da cabeceira. Já na sepultura 12 foi eclesiástica, não prova, per si, a existência de uma
identificado um reaproveitamento de pedras, de- organização paroquial que aglutinasse, em torno de
signadamente na cabeceira, onde foi identificado um espaço cemiterial único, todos os enterramentos
um umbral de porta ou janela. Finalmente, nas se- (Vieira, 2004. p. 78). De facto, no Entre-Douro-e-
pulturas 18 e 21 verificamos a presença de apoio, na -Minho, mesmo considerando o pressuposto de que
zona da cabeceira e pés, para os indivíduos aqui se- uma aproximação ao espaço religioso facilitaria a
pultados. Estes apoios são formados por pedras de salvação da alma (Baumgartner, 2001, p. 116; Ten-
médias dimensões, dispostas de forma a sobrelevar te e Lourenço, 2002, p. 210), o enterramento à roda
a cabeça e os pés do inumado. Na primeira apenas dos templos paroquiais parece ter sido um fenómeno
subsiste a presença do apoio na zona da cabeceira, mais tardio que se tende a generalizar apenas no fi-
estando ausente toda a zona dos pés, em conse- nal da Alta Idade Média. Até lá, é possível que uma
quência das perturbações causadas pelo plantio em mesma paróquia possuísse diferentes espaços de
época Contemporânea que truncaram toda a parte enterramento ou um único, embora não obrigatoria-
terminal do sepulcro. mente localizado em torno do seu templo (Barroca,
Quanto à fase III, a derradeira época de ocupação da 1987, p. 129). Martins Sarmento (1999, p. 138) refere
necrópole, as sepulturas 9 e 10 são as mais recentes, que o castro de São Domingos retira o nome de uma
assentando sobre depósitos, que por sua vez se en- antiga capela que terá existido no topo do monte, de-
contram sobre as sepulturas 2, 6, 7, 11 e 12. dicada àquele orago. Na realidade, em nenhuma das
campanhas de escavação realizadas até ao momen-
5. PROPOSTA CRONOLÓGICA to foi identificado qualquer vestígio de um possível
templo. As escavações realizadas por outros investi-
A proximidade de vias é por vezes apontada como gadores no topo do castro de São Domingos (Pinto,
condicionante para a localização e orientação de se- 2008, pp. 45-63) também não confirmaram a assun-
pulturas rupestres, por exemplo, como era uso entre ção daquele autor e apenas identificaram vestígios
os romanos. O mesmo parece acontecer ainda ao mais antigos. Neste particular refira-se, todavia, a
longo da Idade Média (Barroca & Morais, 1983, p. descoberta, em 2012, de um sarcófago monolítico,
39). Sobretudo durante a época Romana, os espaços atualmente desaparecido, na base da vertente norte
funerários eram intencionalmente mantidos distan- do castro, na sequência de trabalhos de arroteamen-
ciados do mundo dos vivos, sendo destinados aos to para a atividade agrícola. É ainda de assinalar que
locais de trânsito e passagem. Este distanciamento a escolha do local de implantação da necrópole pare-
tem as suas raízes na conceção pagã da morte em ce ser também o resultado de um conhecimento pré-
que a coexistência do espírito com o cadáver no es- vio das condições naturais do local, nomeadamente
paço sepulcral poderia ter consequências funestas da sua componente geológica. Na verdade, todas
para os vivos (Barroca, 1987, p. 9). Pelo contrário, o as sepulturas intervencionadas localizam-se num
Cristianismo não obsta à proximidade dos mortos afloramento de corneanas pelíticas limitado a este e
com o habitat, no sentido em que, após a morte, a oeste por massas granitoides (Novais & alii, 2014, p.
alma deixa a vida terrena de forma a alcançar a eter- 212), cujas características de desagregação possibili-
nidade (Baumgartner, 2001, p. 116; Vieira, 2004, p. taram uma fácil abertura das sepulturas.
76). Contudo, esta alteração no quadro mental das Uma das grandes interrogações que resulta das cam-
primitivas comunidades cristãs foi um processo lon- panhas de escavação até agora realizadas (e que con-
go e lento. Os povos germânicos mantiveram o dis- tinua em aberto) é a do enquadramento cronológico
tanciamento entre as necrópoles e o espaço habita- da necrópole. Com base nas características formais
cional, pelo que esta fusão entre ambos os espaços de algumas das sepulturas na necrópole da Casa Ro-
apenas se generaliza na europa ocidental nos séculos mana é possível estabelecer paralelos com exempla-
VIII ou IX (Barroca, 1987, p. 12). Embora esta assun- res estudados em outras necrópoles intervenciona-
ção não invalide a sua estruturação em torno de um das em território nacional. É o caso dos sepulcros da
templo paroquial primitivo, à laia de tumulatio apud necrópole de Vale de Condes, em Alcoutim (Inácio,
ecclesiam (Aries, 2000, pp. 53-56), a verdade é que a 2010, p. 209), da necrópole de Vale dos Sinos, em
nítida intenção de organização da necrópole da Casa Mogadouro (Lemos & Marcos, 1984, p. 71-89), da
1014
parte das restantes sepulturas. Foi ainda identificado CARDOZO, Mário (1947) – Correspondência Epistolar entre
um muro que parece limitar a necrópole a sudeste. Emilio Hubner e Martins Sarmento (Arqueologia e Epigrafia),
A aparente ausência de vestígios materiais de um 1879 – 1899. Coligida e anotada por Mário Cardozo. Guima-
rães, Sociedade Martins Sarmento.
templo agregador em torno do qual se polarize a
necrópole não pode deixar de nos remeter, em hi- COSTA, A. C. (1706) – Corografia portugueza e descripçam
pótese, e considerando a fase atual dos trabalhos topografica do famoso Reyno de Portugal, com as noticias das
fundações das cidades, villas, & lugares, que contem; varões
arqueológicos ainda em curso, para um contexto de
illustres, gealogias das familias nobres, fundações de conventos,
tradição cemiterial em torno de uma via. Apesar do catalogos dos Bispos, antiguidades, maravilhas da natureza,
aparente silêncio dos dados arqueológicos, esta e edificios, & outras curiosas observaçoens. Tomo primeyro. Lis-
outras dúvidas que rodeiam a organização espacial, boa: na officina de Valentim da Costa Deslandes impressor
tipificação das arquiteturas funerárias e cronologia de Sua Magestade, & á sua custa impresso.
da necrópole apenas poderão obter clarificação em DIAS, Lino T. (1997) – Tongobriga. Lisboa: IPPAR/Ministério
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1016
Figura 1 – Localização do Castro de São Domingos (Cristelos, Lousada) (IGeoE, 1998).
1018
Figura 3 – Ortofotografia de parte da área correspondente à necrópole medieval identificada no castro de São Domingos.
Fotografia: João Fernando Teixeira Marques Silva.
1020
Figura 5 – Desenho das sepulturas 6 e 8 a 12 da necrópole medieval do castro de São Domingos, plano final.
1022
Figura 8 – Sepultura 9 da necrópole medieval do castro de São Domingos, plano final.
Figura 9 – Sepulturas 15, 22 e 23 da necrópole medieval do castro de São Domingos, plano final.
Tabela 1– Tipologias sepulcrais propostas por Ripoll (1996, pp. 219-224) para as quais foram encontrados paralelos na necrópole
medieval da Casa Romana do Castro de São Domingos.
1024
A TRANSFORMAÇÃO E APROPRIAÇÃO
DO ESPAÇO PELOS EDIFÍCIOS RURAIS,
ENTRE A ANTIGUIDADE TARDIA E A IDADE
MÉDIA, NO TROÇO MÉDIO DO VALE DO
GUADIANA (ALENTEJO, PORTUGAL)
João António Ferreira Marques1
RESUMO
Os edifícios podem ser caraterizados como objetos funcionais em que os materiais ou elementos são estrutu-
rados e organizados para que estes funcionem para uma determinada finalidade ou conjunto de finalidades.
Acresce a estes, a dimensão do estilo, constituída pela decoração, embelezamento ou mesmo modificações de
forma, que se tornam um meio pelo qual as identidades culturais são conhecidas e perpetuadas. Os edifícios
reúnem, assim, elementos de um objeto físico com uma certa forma, mas também criam e ordenam os volumes
de espaço vazio, resultando num padrão com significado cultural.
Os pequenos sítios e conjuntos rurais intervencionados em finais dos anos 90 do século XX no âmbito da mini-
mização de impactes da construção da Barragem de Alqueva contribuíram para o conhecimento do povoamen-
to rural na região submergida pelo seu regolfo, designadamente entre a Antiguidade Tardia e a Idade Média.
Os locais estudados apresentam diferentes orgânicas internas, com adaptabilidade e modelação às necessida-
des da comunidade e ao terreno.
A arqueologia doméstica é, assim, um meio essencial para identificar a organização espacial destas pequenas
unidades ou núcleos rurais, bem como para tipificar a respetiva arquitetura e identificar o uso social e relacioná-
-los com a respetiva identidade cultural.
Palavras-chave: Estruturas arqueológicas; Arqueologia Doméstica; Edifícios Rurais; Antiguidade Tardia;
Idade Média.
ABSTRACT
Buildings can be characterized as functional objects in which materials or elements are structured and organ-
ized so that they work for a particular purpose or set of purposes. Added to these, the dimension of style, consist-
ing of decoration, embellishment or even changes in shape, which become a means by which cultural identities
are known and perpetuated. Buildings thus bring together elements of a physical object with a certain shape, but
also create and order the volumes of empty space, resulting in a pattern with cultural significance.
The small sites and rural complexes intervened in the late 90s of the 20th century within the scope of minimiz-
ing the impacts of the construction of the Alqueva Dam, contributed to the knowledge of the rural settlement in
the region submerged by its regulf, namely between Late Antiquity and the Middle Ages. The locations studied
have different internal structures, with adaptability and modeling to the needs of the community and the terrain.
Domestic archeology is, therefore, an essential means of identifying the spatial organization of these small rural
units or nuclei, as well as typifying the respective architecture and identifying the social use and relating it to the
respective cultural identity.
Keywords: Archaeological Structures; Domestic Archeology; Rural Buildings; Late Antiquity; Middle Ages.
1. AAP – Associação dos Arqueólogos Portugueses; CEAACP – Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património /
[email protected]
1026
Idade Média (Quirós Castillo, 2011, p. 74). 3. OS SÍTIOS ESTUDADOS
As evidências arqueológicas parecem apontar para
um culminar na transformação das casas, na orga- Do conjunto de 17 sítios atribuídos ao período en-
nização espacial de âmbito doméstico e na mais ge- tre a Antiguidade Tardia e a Idade Média, a maioria
ral ordenação do povoamento rural ao redor de 711. encontrava-se muito destruída. As práticas agríco-
É difícil perceber, com os dados hoje existentes, se las, com lavras dos solos até à rocha base, levaram
este processo se iniciou no século VII fruto de ins- a constatar que, da existência de habitats, somente
tabilidades várias, ou se será resultado da conquis- restava o material que eventualmente constituiu os
ta islâmica ou, ainda, se resulta de uma mudança muros das estruturas, como pedras em quartzo e
económica ou social (Vigil-Escalera Guirado, 2011, xisto, e os restos, muito fragmentados e rolados, de
p. 199). cerâmica de construção e comum.
Durante os séculos VI e VII o território toledano Não foi assim possível identificar a organização e
esteve densamente ocupado por aldeias e granjas, funcionalidade em 11 dos seguintes locais: Espinha-
formando uma rede contínua de assentamentos es- ço 11, Monte Roncanito 13, Monte Roncão 13, Monte
táveis, sem vazios, que dará lugar durante o século Roncanito 18, Cabeçana 3, Monte Barbosa 5, Cabe-
VIII a uma trama descontínua de pequenos assenta- çana 7, Monte Musgos 3, Monte Roncanito 14, Mon-
mentos, que oferecem sequências de ocupação mais te Roncanito 2 e Monte Roncão 122.
curtas (Vigil-Escalera Guirado, 2011, pp. 197-198). Foram, pois, selecionados os remanescentes seis
Estes são dados que apontam para a concentração sítios, considerados como os mais relevantes da
populacional nas cidades, com êxodo rural, ou para amostra, quer devido ao razoável estado de conser-
um colapso demográfico. A peste, bem como as fo- vação das respetivas estruturas, quer aos indícios ou
mes que a antecederam nos séculos VII e VIII, terão à significância do espólio presente.
implicado alterações populacionais que levaram à Assim, aborda-se seguidamente a arquitetura de
rutura da força de trabalho rural, o que se traduziu Cabeçana 4, Espinhaço 7, Monte Roncanito 10, Es-
num grande número de leis regulatórias e compul- pinhaço 4, Monte Roncão 10 e Espinhaço 53.
sórias do trabalho agrícola, e em particular do tra- Pese embora a forte destruição causada no sítio
balho servil, que poderão ter resultado de uma crise Cabeçana 4 pelos trabalhos agrícolas, e a fraca po-
demográfica (Kulikowski, 2007, pp. 156-157). tência estratigráfica, foi possível identificar no lo-
No Baixo Alentejo, a única diferença real entre a cal dois núcleos de construção, certamente rela
arquitetura da casa de transição (séculos VII-VIII) cionados entre si.
e o modelo da casa islâmica (séculos XI-XII), é que O núcleo principal, em melhor estado de conser-
a planta desta última possui uma profundidade adi- vação, apresentava várias fases de construção. Na
cional, organizada a partir de um pátio de entrada. primeira etapa construtiva, traçaram-se os eixos
No período pós-medieval, as plantas refletem uma estruturantes do edifício que configuraram o núcleo
mudança radical na organização do espaço domésti- central, com um eixo de circulação em seu redor.
co, cujo acesso se faz pela cozinha, e em que a lareira Num momento posterior são construídos outros
é o coração da casa, num padrão típico da Europa ambientes, mediante o levantamento de muros jus-
Ocidental (Boone, 2001, pp. 117-118). tapostos e adossados, e o recurso a técnicas constru-
No meio rural medieval do centro peninsular, a casa tivas menos cuidadas. Não foram detetadas estru-
é muito mais do que o espaço contido pelas paredes
da habitação. Uma imagem recorrente é a ofereci- 2. Com o código nacional de sítio (CNS), respetivamen-
da pelas aldeias formadas por várias dessas unida- te: Espinhaço 11, CNS 16356; Monte Roncanito 13, CNS
des domésticas, justapostas, geralmente ao longo 16349; Monte Roncão 13, CNS 16362; Monte Roncanito
18, CNS 13619; Cabeçana 3, CNS 13614; Monte Barbosa 5,
da margem de um riacho, geralmente espaçadas
CNS 13590; Cabeçana 7, CNS 13602; Monte Musgos 3, CNS
por parcelas agrícolas, como no caso de El Pelícano 16374; Monte Roncanito 14, CNS 16367; Monte Roncanito
(Arroyomolinos), onde um denso conjunto de edifí- 2, CNS 13572; Monte Roncão 12, CNS 16355.
cios foi reconstruído ao longo de várias gerações no
3. Com o código nacional de sítio (CNS), respetivamente:
mesmo local entre o final do século V e finais do VI Cabeçana 4, CNS 13599; Espinhaço 7, CNS 16382; Monte
(Vigil-Escalera Guirado, 2015, pp. 197-198). Roncanito 10, CNS 13604; Espinhaço 4, 16350; Monte Ron-
cão 10, CNS 16348; Espinhaço 5, CNS 16358.
1028
Igualmente notória foi a ausência de qualquer evi- que, dada a topografia do terreno, seria a localiza-
dência de um nível de pavimento no interior da es- ção mais indicada em qualquer época para servir de
trutura, indiciando uma possível utilização do aflo- acesso ao habitat. Os vestígios encontrados sugerem
ramento rochoso como tal, ou a extrema destruição tratar-se de um edifício com vários compartimentos,
do local, marcada nas próprias estruturas, na ausên- dos quais só foi escavado um.
cia de outras construções domésticas e na escassez O Ambiente 1 que foi aqui posto a descoberto, pos-
de materiais cerâmicos recolhidos no seu interior. sui razoáveis dimensões, concentrando quase todo
A extrema destruição do local não permitiu a identi- o espólio encontrado no sítio. Corresponde a um
ficação do vão de acesso a este espaço, uma vez que espaço de planta retangular, com uma área de cerca
os alçados se encontravam conservados abaixo da de 13 m2 e uma orientação nordeste/sudoeste. A sua
cota das paredes, ao nível das fundações, fator re- delimitação era efetuada pelas já referidas estrutu-
forçado pela largura dos mesmos. ras, que se encontravam muito destruídas, sendo
Apesar da destruição verificada, o sítio em questão evidente o recurso à colocação de blocos pétreos
revela algum interesse, sobretudo pela estrutura de colmatados com terra argilosa e avermelhada nos
habitat detetada, bem como pelo diminuto e frag- muros divisórios sul e norte, e a presença da técnica
mentado espólio cerâmico exumado, com a presen- do paramento faceado com lajes de xisto dispostas
ça de um fragmento de tégula, que levaram a atri- verticalmente, ocasionalmente em cunha, com o in-
buir a este local uma cronologia imprecisa, entre os terior preenchido maioritariamente com terra (solu-
séculos VI e VIII. ção observada no muro oeste).
Saliente-se a proximidade deste sítio arqueológico Não foi identificado qualquer vão de acesso ao Am-
com os do Espinhaço 4, Espinhaço 5 e Espinhaço 11, biente 1, ainda que seja de supor que este fosse efe-
outros habitats alto-medievais que se implantaram tuado a partir do sector este, delimitado por um muro
junto da mesma linha de água secundária. muito destruído, que corresponderia ao seu fecho,
O sítio do Monte Roncanito 10 estendia-se por uma que se encontrava parcialmente coberto pelas terras
plataforma alongada onde se identificaram três nú- de enchimento/colmatação do sítio arqueológico.
cleos de ocupação simultânea. Dois destes, distan- Estas estruturas murárias assentavam diretamente
do entre si cerca de 130 m, apresentavam estrutu- sobre o afloramento rochoso, que aqui poderá ter
ras que sugerem a existência de duas construções funcionado como estrato nivelador ou pavimen-
independentes, mas que devem ter sido utilizadas to do Ambiente 1. Inserida nos muros deste espaço
contemporaneamente. encontrou-se uma mó em granito, indiciando a sua
As técnicas construtivas revelam uma variedade reutilização.
significativa de soluções, que passam pela utilização Este espaço integraria um complexo de maiores di-
da matéria-prima local, a pedra, mas com diversos mensões, como se depreende da continuação das
calibres, morfologias e em distintas disposições. estruturas murais, indiciando a presença de outros
Documenta-se tanto a utilização de blocos aproxi- espaços/ambientes a este, oeste e norte.
madamente quadrangulares, como de lajes verticais Dada a diversidade funcional, o espólio contribui para
faceando os muros, como a técnica do perpianho, to- afirmar o carácter habitacional da edificação, onde,
dos eles utilizando a terra como ligante. Isto permi- para além das habituais formas cerâmicas de armaze-
te afirmar a utilização em simultâneo de diferentes namento, se exumaram objetos de cozinha e de mesa,
opções e, consequentemente, o domínio destas. Em destacando-se um fragmento de candil, utensílio que
qualquer dos casos, os muros são embasados em va- imprime um certo requinte ao conjunto e evidencia
las de fundação abertas na rocha. A reduzida largura ligações com núcleos urbanos onde as trocas com ou-
dos compartimentos adequa-se ao modelo de co- tras áreas geográficas seriam frequentes. Trata-se es-
bertura com telha de meia-cana documentada nos sencialmente de produções de carácter regional com
derrubes. Os pavimentos receberam um reduzido cronologias atribuídas dos séculos IX-XI.
tratamento de regularização do afloramento xistoso. O Monte Roncanito 10 não seria apenas um habitat
O núcleo situado num dos extremos da plataforma isolado, mas, provavelmente, o centro habitacional
parece corresponder ao local principal de habitação. de uma quinta, um eventual complexo agropecuário
Neste sentido, acresce que a sua implantação é pró- de maior sofisticação arquitetónica.
xima dos eixos viários de comunicação existentes No habitat designado por Espinhaço 4, após a re-
1030
síveis vestígios de estruturas de pavimentação asso- 4. SÍNTESE FINAL E PERSPETIVAS
ciadas, como lajeados de xisto.
Estes contextos compunham, assim, uma realidade A transformação e apropriação do espaço pelos edi-
habitacional de dimensões mais alargadas, pontua- fícios rurais no troço médio do vale do Guadiana
da pela existência de silos/estruturas de armazena- envolve um conjunto de variáveis em que, não só
mento e interfaces negativos em áreas contíguas, os recursos naturais e as condições ecológicas, mas
que poderiam pertencer a um único complexo, com também a demografia e o sentimento de segurança,
presença de espaços abertos interiores, como pátios vão ser determinantes no conturbado período situa-
ou logradouros, ou de um eventual habitat com dis- do entre a Antiguidade Tardia e a Idade Média.
tintos espaços de utilização. A maioria dos sítios estudados localiza-se em rechãs
A diversidade formal e abundância do espólio reco- ou pequenas plataformas situadas nas zonas inter-
lhido atesta também este cariz habitacional do local, fluviais, junto a talvegues pouco pronunciados e,
destacando o Monte Roncão 10 como um habitat nalguns casos, em terraços fluviais ou junto a peque-
rural do período cristão, posterior à conquista no sé- nas várzeas abertas, o que denuncia um padrão de
culo XIII, revelando uma cultura material que con- ocupação baseado essencialmente na proximidade
sagra a singularidade do sítio neste contexto rural. dos tributários do rio Guadiana, principal recurso da
Os trabalhos arqueológicos no local designado área de estudo.
como Espinhaço 5 permitiram identificar uma única Dos dados observados, salienta-se que os grandes
edificação, aparentemente isolada, em que a técnica aspetos arquitetónicos conservados são essencial-
de construção da estrutura era similar aos já men- mente os elementos pétreos relativos às fundações
cionados habitats escavados de cronologias coevas. dos edifícios, onde o escasso espólio, proveniente
Esta estrutura foi construída com placas/lajes de de estratos revolvidos pelos trabalhos agrícolas, per-
xisto cravadas verticalmente no solo, em perpianho, mite ensaiar aproximações funcionais dos espaços e
com um enchimento de terras argilosas, encontran- atribuir cronologias aproximadas.
do-se conservada em uma a duas fiadas de pedra Em suma, em relação aos conjuntos edificados inter-
e numa largura de cerca de 0,60 m. Desconhece- vencionados, as técnicas construtivas não são mui-
-se como se processava a construção em altura, to sofisticadas e utilizam o material local: pedra de
se em pedra ou com recurso a adobe ou taipa. xisto, quartzo e terra, sendo as estruturas em taipa
O conjunto de muros detetados pertenciam a uma com alicerces em quartzo, ou em placas de xisto cra-
única estrutura, constituindo apenas um comparti- vadas no afloramento. Não obstante, a presença de
mento ou ambiente que foi possível delimitar na to- diferentes técnicas construtivas e as soluções arqui-
talidade. Este espaço apresentava planta retangular, tetónicas identificadas, por vezes, num mesmo local,
com cerca de 6 m por 3,3 m, com uma área aproxi- traduzem um claro domínio tecnológico das maté-
mada de 20 m2. rias-primas locais e uma adaptação socioeconómica
A compreensão dos processos pós-posicionais da ao território onde estas comunidades se inserem.
área da intervenção, onde o subsolo apresentava Quanto à organização e modelo do habitat, o conjun-
uma escassa potência, entre 0,10 m a 0,20 m de es- to das estações intervencionadas pode ser agrupado
pessura, explica a escassa conservação das estruturas em três tipos: montes, conjuntos formados por mo-
e dos níveis no seu interior, onde ainda foi observada radia e edificações de apoio para exploração agrícola
uma estrutura de combustão e uma pequena caixa de reduzida extensão, onde viveria ou uma família
constituída por pequenos blocos de xisto. Ainda no nuclear ou uma família alargada; casais, constituí-
seu interior, um estrato parece indicar a presença de dos por estruturas habitacionais dispersas no territó-
vestígios do derrube do telhado da estrutura, com- rio, em conexão com outras de natureza semelhante,
posto por telhas de meia cana. O espólio recolhido eventualmente organizadas em torno de um monte;
é muito pobre. Contudo, a presença de alguma loiça e, por último, as casas de apoio a trabalhos agrícolas,
de cozinha indicia tratar-se de um espaço de habita- destinadas a ocupações sazonais, de apoio à ativi-
ção rural, com escassas ligações com ambientes ur- dade agrícola e pecuária, ou para armazenamento e
banos, tendo-se apontado, devido às características abrigo temporário de colheitas e alfaias.
técnicas do vasilhame, para uma cronologia do final Esta distinção tipológica não corresponde a uma
da Idade Média, ou inícios do Período Moderno. evolução cronológica linear, mas antes a uma coe-
1032
riables materiales, consideracionessociales. Arqueología de
la Arquitectura. 2, pp. 287-291.
1034
Figura 4 – Cabeçana 4. Eventual pedra de soleira com orifício para o gonzo da porta.
RESUMO
O artigo analisa os vestígios materiais pós-romanos identificados nas villae do Alto Alentejo a partir de uma revi-
são crítica da documentação legada. Os trabalhos realizados consistiram na análise e sistematização dos dados
disponíveis nos processos de sítio/trabalho arqueológico, consultados no Arquivo de Arqueologia Portuguesa
(DGPC). Apresentam-se os resultados da análise de 12 sítios arqueológicos. Os dados obtidos são considerados
à luz da informação arqueológica recuperada nos estudos de povoamento rural alto-medieval neste mesmo ter-
ritório, inserindo-se num projeto de investigação mais abrangente. Consideramos que esta abordagem compa-
rativa permitirá uma caracterização mais aprofundada dos diferentes processos -económicos, sociais, culturais
e religiosos- inerentes à transformação das paisagens rurais no início da Alta Idade Média.
Palavras-chave: Alta Idade Média; Villa; Granja; Povoamento Rural.
ABSTRACT
The paper analyses the post-Roman material remains identified in the Alto Alentejo villas from a critical review
of the legacy data. The work carried out consisted in the analysis and systematization of the data available in the
archaeological site/work processes, consulted at the Portuguese Archaeology Archive (DGPC). We present the
results obtained so far in the analysis of 12 archaeological sites. The data obtained are considered in light of the
archaeological findings of rural early medieval settlements in this same territory, forming part of a broader re-
search project. We believe that this comparative approach will allow for a more in-depth characterization of the
different processes -economic, social, cultural, and religious- inherent in the transformation of rural landscapes
at the beginning of the Early Middle Ages.
Keywords: Early Middle Ages; Villa; Farmstead; Rural Settlements.
1038
começar por expor os motivos que justificam a es- arqueológicos interpretados como villae romanas,
colha de villae, e a não inclusão de outros elemen- localizados no Alto Alentejo, onde se documentaram
tos de povoamento romano conhecidos. O primeiro indícios materiais de utilização do espaço num mo-
prende-se ao facto de, no que respeita aos modelos mento posterior à desarticulação da estrutura admi-
de ocupação da paisagem rural romana, as villae nistrativa romana (Tabela 1, Figura 1). Esta consulta
são aquele que mais atenção tem recebido (Fabião, de processos foi realizada ao longo de três meses
2020, p. 452) e, consequentemente, com mais in- (entre Novembro de 2022 e Janeiro de 2023). Adicio-
formação disponível. O segundo prende-se com o nalmente, foram necessários 4 meses para sistemati-
alcance da abordagem, que surgindo no âmbito de zação, análise e interpretação dos dados recolhidos.
uma dissertação de mestrado teve necessariamen- Como se pode constatar pelas referências bibliográfi-
te de se cingir a um conjunto de dados adequado ao cas indicadas, uma parte destes sítios arqueológicos já
tempo disponível para a realização do trabalho. No tinha sido publicada. Não obstante, como sabemos, as
entanto, reconhecemos que numa próxima fase esta publicações científicas resultam necessariamente de
análise deverá englobar todos os pontos de povoa- um processo de seleção de informação, normalmente
mento conhecidos, analisando esta paisagem em aquela considerada mais relevante ou representativa
transformação como um todo. do contexto. Naturalmente que estes pontos de parti-
Os trabalhos para selecionar o objeto de estudo co- da podem influenciar a própria metodologia de esca-
meçaram pelo levantamento das referências biblio- vação e o processo de registo de realidades materiais.
gráficas sobre villae do Alto Alentejo em que tinham Sabemos que as decisões que se tomam num sítio
sido identificados contextos materiais pós-romanos arqueológico – desde a extensão da área a escavar, o
(Carneiro, 2014, pp. 252-266; 2016a; 2017; 2021 e porte das ferramentas utilizadas, a crivagem (ou não)
António, 2014, p. 10) resultando num total de 34 sí- das terras… – refletem hábitos de trabalho e priorida-
tios. Após esta seleção inicial foram consultados os des de investigação muitas vezes relacionadas com a
processos de sítio/trabalho arqueológico correspon- cronologia do sítio intervencionado.
dentes, disponíveis no Arquivo de Arqueologia Por- As próprias características dos vestígios arqueo-
tuguesa (DGPC), e bibliografia especifica para cada lógicos podem torná-los mais fáceis ou difíceis de
um destes sítios. identificar. No caso do tipo de estruturas documen-
Numa fase inicial da consulta de processos foi perce- tadas para a Alta Idade Média – muros de pedra
tível que um número dos sítios publicados como sen- seca, elementos em madeira e coberturas de colmo
do possíveis espaços de villae com indícios de ocu- – sabemos que, em terrenos com alto teor de acidez,
pação no período pós-romano resultavam de dados os macrorrestos vegetais só se preservam em con-
extraídos a partir de inventários de superfície e da- dições excecionais. O mais frequente é que destas
dos de prospeção por vezes pouco expressivos. Para estruturas subsistam apenas os buracos de poste
poder considerar estes sítios na presente análise se- e testemunhos ténues de paleosolos, associados a
ria necessário proceder a trabalhos de campo, tendo elementos de cultura material ainda considerados
em vista a relocalização e reavaliação dos vestígios. “pouco característicos”, em definitiva, materiali-
Optámos assim por numa primeira fase analisar de dades nem sempre fáceis de reconhecer durante
forma mais detalhada apenas os sítios arqueológicos o processo de escavação.
para os quais existia documentação arqueológica ex- Neste contexto, a opção por consultar os processos
pressiva em arquivo. Foram selecionados apenas os de sítio/trabalho prendia-se precisamente com a
sítios alvo de escavação arqueológica (em contexto possibilidade de aceder aos dados arqueológicos
tanto de investigação como de salvaguarda) e para os em bruto, incluindo a cartografia, as plantas das
quais os processos e/ou publicações continham in- intervenções, as fotografias, a listagens de espólio,
formação suficientemente detalhada para proporcio- as sequências estratigráficas… informação que não
nar uma análise eficaz. Paralelamente, optámos por transparece na maioria das publicações científicas.
não incluir nesta avaliação os sítios arqueológicos de A consulta dos processos permitiu realizar um levan-
Horta da Torre (Fronteira), Ferragial d’El Rei (Alter tamento exaustivo das materialidades associadas às
do Chão) e Torre de Palma (Monforte), por serem fases pós-romanas das villae, sendo esta informa-
alvo de projetos de investigação e trabalhos em cur- ção organizada e sistematizada informaticamente.
so. Face a estes critérios, foram selecionados 12 sítios O objetivo desta análise era identificar indícios ma-
1040
põem uma mudança de mentalidade associada ao se verificou uma lareira explicitamente registada no
conceito de ócio, vinculada também com a afirma- relatório (Brazuna, 2003, p. 28).
ção do cristianismo (Lewit, 2005, pp. 254-255). Por fim, definimos uma última categoria, que está
Sentimos necessidade de agrupar os fenómenos ob- vinculada ao surgimento de edifícios religiosos nas
servados nas villae em categorias, algo que já vários villae. Em contexto pós-romano, há que considerar o
autores têm vindo a fazer ao abordar este tema. As 4 impacto da cristianização na organização dos espa-
categorias que aqui utilizamos resultam de uma análi- ços e pessoas da Península Ibérica (Carneiro, 2021,
se comparada de bibliografia que procura sistematizar p. 199). O território muda, abandonando progressi-
os dados pós-romanos a diversas escalas, a ver, o Alto vamente os vetores estruturantes da paisagem rural
Alentejo (Carneiro, 2014; Carneiro, 2016a; Carneiro, romana e passando a organizar-se em torno da cria-
2017; Carneiro, 2021), a Península Ibérica (López Qui- ção de bispados e paróquias, cuja delimitação não é
roga & Rodríguez Martín, 2001; Chavarría, 2007) e o bem conhecida (Wolfram, 2011, p. 13). Esta conjetu-
ocidente europeu (Lewit, 2005; Dodd, 2021). ra denota-se também nas villae, com o surgimento
Passando à definição das categorias propriamente de espaços religiosos ex novo (Dodd, 2021, p. 5) e a
ditas, a primeira consiste na progressiva transfor- reconversão de espaços originalmente áulicos em
mação de espaços funcionais, tanto da pars urbana espaços de culto (López Quiroga & Rodríguez Mar-
como da pars rustica, em locais de sepultamento. tín, 2001, p. 142). Embora o exemplo mais conhecido
Este fenómeno começa por vezes com o apareci- para o Alto Alentejo surja na villa de Torre de Palma,
mento de espaços funerários que parecem começar não é o único caso para este território. Nota-se tam-
a desenvolver-se em torno das villae, chegando por bém o impacto desta nova mentalidade noutros sí-
vezes a cobrir a totalidade do espaço ou distribuin- tios, sendo talvez os exemplos mais claros o mosaico
do-se em pequenos núcleos de sepultamento (Lewit, com crismon da Quinta das Longas (Fabião, 2021, p.
2005, p. 252). Em muitos casos, as sepulturas são 470) ou o conjunto epigráfico recolhido em Silveiro-
construídas sobre as estruturas de época romana na (Wolfram, 2007).
que já estariam em desuso (em mais que uma situa- Porém, a definição destas categorias e o ensaio de
ção, os complexos termais) e reaproveitam elemen- nelas organizar os fenómenos documentados, apre-
tos pétreos na sua construção. Para esta categoria, as senta os seus problemas. Efetivamente, as tenta-
villae do Alto Alentejo que analisámos são ricas em tivas de organização deste tipo de dados por parte
exemplos, estando identificados espaços funerários dos autores citados e a diversas escalas, influencia
em 7 dos 12 sítios analisados. necessariamente novos esforços interpretativos.
A segunda caracteriza-se pela reutilização e/ou al- Consequentemente, é fácil cair no erro de procurar
terações às estruturas da villa. Nesta categoria inse- fazer com que os dados arqueológicos se adaptem às
rem-se os processos de mudança na funcionalidade categorias definidas, tal como as realidades arqueo-
dos espaços, mas também de reaproveitamento de lógicas das fases finais das villae foram em tempos
materiais para novas construções (López Quiroga & adaptadas às narrativas catastrofistas vigentes.
Rodríguez Martín, 2001, p. 144). Destacamos o caso Evidentemente é necessário conhecer outras rea-
do Monte das Argamassas em que se verificam am- lidades para avançar com uma abordagem, no en-
bas as instâncias identificadas nesta categoria. No tanto, há que o fazer conscientemente. Sabemos
ambiente 5/compartimento 5 foi registado um nicho que estas transformações respondem a fenómenos
do paramento dos muros que terá sido entaipado, altamente localizados, com ritmos e dinâmicas dis-
recorrendo a tijolos romanos (Brazuna, 2003, p. 22). pares nos territórios peninsulares. É por isso desa-
A terceira categoria das ocupações pós-romanas conselhável tentar definir uma explicação geral para
consiste no surgimento de novas estruturas que a transformação de que foi alvo a antiga paisagem
permitem reconhecer uma utilização doméstica de rural romana. Isto é algo que se verifica nas próprias
espaços que previamente teriam outro tipo de uso. villae, que frequentemente são abordadas desde
Aqui contabilizamos as novas estruturas de cariz uma perspetiva de abandono e decadência, po-
doméstico, como lareiras, cabanas e estruturas em rém conhecem-se instâncias de localidades, como
madeira, que surgem por vezes em cima dos pavi- no caso da região de Apúlia, em que as villae e vici
mentos de mosaico (Dodd, 2021, p. 5). Dos processos continuam em forte atividade, até aumentando em
que consultámos, apenas no Monte das Argamassas número (Chavarría, Lewit & Izdebski, 2019, p. 45).
1042
te a vestígios materiais alto-medievais (sepulturas Já sabemos que a ausência de materiais cerâmicos
escavadas na rocha, elementos cerâmicos…). Aqui, importados nestas centúrias, e a predominância das
cabe-nos destacar os sítios da Tapada das Guaritas cerâmicas de produção local, impossibilita aborda-
II e do Junçal, ambos em Castelo de Vide, que reve- gens cronológicas tradicionais centradas nestes ele-
lam a construção de novas estruturas de prensado, mentos de cultura material. Será necessário apostar
verdadeiros lagares de vara e parafuso, utilizados no por datações absolutas de materiais orgânicos, nos
século VII (Prata & Cuesta-Gómez, 2020). casos em que estes se conservem.
Para promover uma leitura renovada destes primei- Uma análise integrada implicará ainda, como já re-
ros séculos da Alta Idade Média, será necessário ferimos, considerar uma visão integradas das paisa-
conjugar o conhecimento sobre estes diferentes ti- gens rurais, e não apenas centrada nos sítios arqueo-
pos de vestígios, e promover novos diálogos, procu- lógicos com maior expressão. É necessário perceber
rando esbater tradições historiográficas. Como tive- qual é o destino dos outros espaços rurais romanos
mos oportunidade de apresentar neste texto, um dos que não os latifúndios e os seus edifícios aristocrá-
palcos mais profícuos para repensar as transforma- ticos, e para isso será necessário identificar e conhe-
ções deste período, são precisamente as antigas pro- cer esses vici e pagi de que nos falam as fontes, mas
priedades rurais romanas. Mas a comparação direta tão elusivos na sua materialidade.
entre dados de diferentes contextos nem sempre é
fácil, ou possível. BIBLIOGRAFIA
ANTÓNIO, Jorge (2010) – Villa Romana da Quinta do Pião.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Alter do Chão: Gabinete de Arqueologia da Câmara Munici-
pal de Alter do Chão. [policopiado].
Nesta primeira fase de aproximação ao legado do- ANTÓNIO, Jorge (2014) – A Villa Romana da Casa da Medu-
cumental das escavações nas villae do Alto Alente- sa. ALBERTERIVM. Alter do Chão. 1, pp. 10-21.
jo, apercebemo-nos de vários aspetos que podem
BRAZUNA, Sandra (2003) – Villa da Herdade das Argamas-
condicionar os dados que chegam a integrar o re- sas. Relatório dos Trabalhos Arqueológicos 2002/2003. Lis-
gisto arqueológico. Mas há mais alguns aspetos que boa: EraArqueologia, S.A. [policopiado].
gostaríamos de referir. Sendo as villae sítios cujos CARNEIRO, André (2010) – Em pars incerta. Estruturas e
vestígios se estendem por vários hectares, as áreas dependências agrícolas nas villae da Lusitânia. Conimbriga.
escavadas correspondem a percentagens pequenas Coimbra. 49, pp. 225-250.
daquele que seria o espaço total da propriedade. CARNEIRO, André (2014) – Povoamento rural no Alto Alen-
Adicionalmente, a maior parte das escavações leva- tejo em época romana. lugares tempos e pessoas. Vectores estru-
das a cabo nestes sítios, principalmente em contexto turantes durante o Império e Antiguidade Tardia. Coimbra:
Imprensa da Universidade de Coimbra.
de investigação, continuam a incidir fundamental-
mente nos edifícios da pars urbana, e em particular CARNEIRO, André (2016a) – Mudança e continuidade no
nos espaços de ócio e representação. A maioria das povoamento rural no Alto Alentejo durante a Antiguidade
Tardia. In D’ENCARNAÇÃO, José; LOPES, M. Conceição;
estruturas produtivas e os espaços de transformação
CARVALHO, Pedro C., eds. – A Lusitânia entre romanos e
conhecidos têm sido identificados no contexto das bárbaros. Mangualde: Faculdade de Letras da Universidade
intervenções de salvaguarda, e correspondem ainda de Coimbra, pp. 281-307.
a um número muito reduzido de vestígios. Assim, CARNEIRO, André (2016b) – Sítio Arqueológico de Monte
devemos reconhecer que os dados que temos nes- de São Francisco (Vale de Maceiras, Fronteira). Relatório fi-
te momento à nossa disposição sobre as fases pós- nal da intervenção de emergência realizada em Setembro de
-romanas da villae são condicionados por estas de- 2015. Fronteira. [policopiado].
cisões sobre que espaços intervencionar. Conhecer CARNEIRO, André (2017) – Nos limites do Império: dinâmi-
verdadeiramente as fases finais destes sítios, as suas cas de povoamento na transição para a Antiguidade Tardia
no Alto Alentejo. In TEIXEIRA, Cláudia; CARNEIRO, An-
transformações e possíveis reutilizações, só será
dré, eds. – Arqueologia da transição: entre o mundo romano e a
possível quando tivermos dados estratigráficos so- Idade Média. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coim-
bre os diferentes espaços das villae, e não apenas das bra, pp. 39-64.
suas áreas nobres. Outro problema em considerar os
CARNEIRO, André (2021) – Changing protagonists: Mana-
dados pós-romanos obtidos nestes sítios, é a dificul- ging economic activities in Late Antique Lusitania. Gérion.
dade em conseguir cronologias para estes contextos. Revista de História Antigua. Madrid. pp. 197-220.
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1046
O CASTELO DE VALE DE TRIGO (ALCÁCER
DO SAL): DADOS DAS INTERVENÇÕES
ARQUEOLÓGICAS
Marta Isabel Caetano Leitão1
RESUMO
O Castelo de Vale de Trigo trata-se de uma fortificação do Período Islâmico, implantada em dois cerros ele-
vados, no interior do território de Alcácer do Sal. O sítio arqueológico foi identificado pela autora do artigo,
em Maio de 2019, e entre Junho e Dezembro de 2020 efectuaram-se trabalhos de escavação arqueológica que
colocaram a descoberto parte da muralha que circundava o promontório Norte. O povoado associado situava-se
a cerca de 600 m daquele dispositivo defensivo e ali identificámos fragmentos de cerâmicas comuns islâmicas
com uma cronologia entre os séculos VIII e XII.
Palavras-chave: Arqueologia Medieval Islâmica; Território; Fortificações.
ABSTRACT
The Castle of Vale de Trigo is a fortification from the Islamic Period, situated on two elevated hills within the ter-
ritory of Alcácer do Sal. The archaeological site was identified by the author of the article in May 2019, and ex-
cavation works were carried out between June and December 2020, uncovering part of the wall that surrounded
the northern promontory. The associated village was located approximately 600 meters from that defensive
structure, where we identified fragments of common Islamic ceramics dating from the 8th to 12th centuries.
Key words: Islamic Medieval Archeology; Territory; Fortifications.
1. IAP – Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa; História, Territórios e Comunidades do Centro
de Ecologia Funcional – Ciência para as Pessoas e o Planeta da Universidade de Coimbra (HTC-CFE) / [email protected].
1048
Sondagem 4 nheiros, que terá arrasado parte da muralha na sua
Esta sondagem era também composta por uma úni- extremidade Norte, com maior incidência no troço
ca camada, com uma potência estratigráfica de 0,55 escavado no quadrado E2, onde ela inicia a inflexão.
m, constituída por terra, de cor castanha clara (7.5YR A muralha aqui possui uma espessura entre 0,90 m
7/2), com pedras, de pequena e média dimensão, e a 1,15 m. Pretendendo confirmar a inflexão da mura-
fragmentos de argamassa. A abertura daquela per- lha em direcção a Norte, à cota mais alta do cerro, e
mitiu a descoberta de troço melhor conservado da na esperança de encontrar troço melhor preservado,
extremidade Norte da muralha, achando-se na mes- alargou-se a escavação para os quadrados F2 e F3.
ma uma pedra de grande dimensão in situ, com 0,45
m de comprimento por 0,45 m de largura, bem como Sondagem 7
a continuidade da muralha em direcção a Poente. Procedeu-se à abertura de sondagem, com 2×2 m
Não obstante, apesar da descoberta do troço refe- de lado, tendo-se escavado, somente, até 0,32 m de
rido, a abertura desta sondagem comprovou o grau profundidade, junto da extremidade Sul, e 0,22 m,
de destruição de grande parte da estrutura devido junto da extremidade Norte, não havendo neces-
às raízes das árvores que se acham no topo daquela, sidade aqui de aprofundar até à base da estrutura,
bem como à abertura do rego, junto à extremidade uma vez que já se tinha realizado esse aprofunda-
Norte da muralha, para a plantação de pinheiros. mento nas sondagens anteriores, mas sim compro-
A escavação da sondagem terminou após ter-se al- var a sua inflexão em direcção a Norte. Verificou-se
cançado o afloramento rochoso onde aquela assenta. a existência de uma camada, constituída por terra,
A escavação prosseguiu para o quadrado D1, tendo de cor castanha clara (7.5YR 7/2), com pedras, de
como objectivo colocar à vista a restante parte da média e grande dimensão, e alguns fragmentos de
muralha, sobretudo a continuidade da sua extre argamassa. A abertura desta sondagem pôs a des-
midade Sul. coberto a continuidade da muralha e a sua clara in-
flexão em direcção a Norte, designadamente à zona
Sondagem 5 mais alta do cerro, onde se obtém larga amplitude
Abriu-se nova sondagem de 2×1 m, composta por visual da paisagem envolvente. Encontrou-se silhar
única camada, com uma potência estratigráfica de de pedra de grande dimensão derrubado, junto da
0,75 m, constituída por terra, de cor castanha clara extremidade Sul, com 0,95 m de comprimento por
(7.5YR 7/2), com pedras, de pequena e média di- 0,75 m de altura. O troço da muralha intervenciona-
mensão, e muitos fragmentos de argamassa. Através do possui uma espessura de 1,20 m.
da sua abertura foi possível verificar que a muralha
atinge naquela zona uma espessura conservada de 3. AS ESTRUTURAS DEFENSIVAS
1,60 m. A presença de vestígios da possível muralha
inflectindo em direcção a Norte, à parte mais eleva- Os trabalhos realizados no Castelo de Vale de Trigo
da do cerro, justificou a necessidade do alargamento permitiram concluir, até ao momento, que aquele sí-
da escavação para o quadrado E2, visando compro- tio correspondia a um ḥiṣn muçulmano com povoa-
var se de facto aquela seguia na respectiva direcção. ção associada nas proximidades. A fortificação era
composta por dois recintos, um situado a Norte, na
Sondagem 6 zona de cota mais alta, e outro no cerro Sul, edifica-
Abriu-se sondagem, com 2×2 m de lado, composta dos com silhares de pedra, preenchidos interiormen-
por única camada, com uma potência estratigráfica te por pedra miúda e argamassa. A área intervencio-
de 0,40 m, constituída por terra, de cor castanha nada de 24 m2 no sector 1, situado na extremidade
clara (7.5YR 7/2), com pedras, de pequena e média Sul do cerro Norte, permitiu identificar parte da mu-
dimensão, e alguns fragmentos de argamassa. O ralha, com uma espessura conservada entre 1,60 m e
alargamento da área de escavação permitiu colocar 1,85 m e uma altura de 0,75 m, que circundava todo o
à vista a continuidade da estrutura e parte de troço cerro Norte (Figs. 3 e 4). Aquela foi construída sobre
que começa a inflectir para Norte, acompanhando o substrato rochoso com silhares de pedra aparelha-
o contorno do próprio cerro. Porém, o troço inter- dos, de tamanho médio e grande, dispostos de forma
vencionado acha-se bastante arruinado devido, tal irregular, preenchidos por pedra miúda e argamassa.
como já mencionado, ao rego para plantação de pi- Os silhares de maiores dimensões foram colocados
1050
cor cinzenta (10R 6/1), homogénea e compacta, tal como exemplares exumados em Mértola, com
com elementos não plásticos de grão médio e fino. cronologia semelhante, e em Évora, com jarrinha
O diâmetro de boca é de 5,4 cm e a espessura da pa- (CMCS/302), datada dos séculos X-XI (Torres et
rede é de 1 mm. alli, 1991, pp. 501-502; Santos, 2016, pp. 65 do texto
· Jarro/Jarra (V.T/20/7) e 27 do inventário II; Leitão, 2017b, pp. 47 e 101). No
Fragmento correspondendo a porção de asa de jar- arrabalde Emiral de Córdova foram encontradas jar-
ro/jarra. Esta apresenta secção oval e perfil semicir- rinhas (nºs 85 e 88 da fig. 6), de bordo similar, deco-
cular. Foi fabricada a torno rápido e cozida em am- radas com traços pintados, de cor castanha e alaran-
biente oxidante. A pasta é de cor vermelha (2.5YR jada, datados dos séculos VIII-IX, assim como em
6/8), homogénea e compacta, com elementos não Jaén, designadamente em Peñaflor e Plaza de Cam-
plásticos de grão médio e fino. As superfícies foram bil, onde foram recolhidos exemplares equivalentes,
cobertas com engobe de cor alaranjada (5YR 6/8). A tipo 32, nº 13, com uma cronologia de meados do sé-
espessura da parede é de 1,1 cm. culo VIII e inícios do IX (Castillo Armenteros, 1998,
· Talha (V.T/20/8) pp. 100 e 116, fig. 52; Casal et alli, 2005, pp. 198 e 220).
Fragmento correspondendo a porção de bojo de ta- A jarrinha (V.T/20/2) apresenta paralelos com jar-
lha. Foi fabricada a torno rápido e cozida em ambien- rinhas, de bordo vertical e lábio espessado, tipo 8D
te redutor e oxidante. A pasta é pouco homogénea e (nº 2974), encontradas em Palmela em níveis cor-
compacta, com elementos não plásticos de grão fino, respondentes aos finais do século X e XI, achando-
médio e grosseiro. O núcleo e superfície interna são -se ainda alguns exemplares em camadas dos inícios
de cor vermelha (2.5YR 6/8), enquanto a superfície do século XII (Fernandes, 2004, p. 151; Araújo, 2013,
externa é de cor rosada (10R 7/4). As superfícies p. 60, estampa 59). Também em Mértola foi recolhi-
foram cobertas com engobe de cor alaranjada (5YR da jarrinha idêntica (CR/PT/0007), decorada com
7/6). A espessura da parede é de 8 mm e 1 cm. pintura, de cor branca, com uma cronologia no sé-
· Telha (V.T/20/10) culo X (Gómez Martínez, 2014, p. 393). Em Lisboa
Fragmento correspondendo a porção de telha de foi exumada jarrinha (4165), com bordo espessado
meia cana de corpo semicilíndrico. Foi fabricada ao interior, decorada com pintura de cor branca, em
manualmente e cozida em ambiente oxidante. A níveis dos séculos XI-XII, tal como no assentamento
pasta é de cor vermelha (2.5YR 6/8), pouco homo- de Funchais 6, em Beja, onde foram recolhidos jar-
génea e compacta, com elementos não plásticos de ros de bordos análogos, com diâmetros entre 8-12
grão médio e grosseiro. A superfície superior foi ali- cm, decorados com linhas horizontais, de cor bran-
sada e mostra três caneluras transversais realizadas ca, atribuídos aos séculos XI-XII (Bugalhão et alli,
digitalmente. A espessura da parede é de 1 cm. 2007, pp. 339 e 341; Cardoso, 2013, p. 45, estampa
XXIV, peça nº 66). Em Granada, designadamente
4.2. Paralelos em Sombrerete, apareceram jarrinhas de bordo si-
A jarrinha (V.T/20/1) tem semelhanças formais com milar, com uma cronologia nos séculos IX-X, assim
exemplares encontrados em Palmela, de tipo 8B (es- como em Jaén, tipo 7, nº 46, descobertas em vários
tampas 6, 13, 18, 24, 28, 33 e 44), com diâmetros de assentamentos e datadas do século IX (Castillo Ar-
bordo idênticos à peça em análise (V.T/20/1), entre menteros, 1998, pp. 97 e 116, fig. 50; Carvajal López,
os 9 e os 12 cm, com uma cronologia no século VIII até 2008, pp. 288; 428-429).
inícios do XI (Fernandes, 2004, p. 151; Araújo, 2013, A jarrinha (V.T/20/3) possui semelhanças formais
p. 58). Também no Algarve Oriental encontramos com exemplar (CMCS/81) descoberto em Évora,
jarrinhas similares, tipo 8A, de idêntica cronologia, datado dos séculos X-XI, assim como em Silves com
assim como em Silves, na camada 8, correspondente jarrinhas decoradas com pintura e exumadas em
aos séculos VIII-IX, onde foram exumados púcaros contextos dos séculos X-XI (Gomes, 2011, pp. 48;
com bordos análogos (Q3/C8-33 e Q3/C8-34) (Cata- 53-54; Santos, 2016, pp. 66 do texto e 37 do inventá-
rino, 1997/1998, pp. 778-780; Gomes, 2003, p. 492). rio II). Encontramos paralelos, igualmente, em Beja
Encontramos, igualmente, paralelos com jarrinhas com jarrinhas de diâmetros similares, entre 8-12 cm,
(AS/CC/93-97/1124; AS/CC/93-97/1131) descober- datadas dos séculos XI-XII (Cardoso, 2013, p. 45,
tas no Castelo de Alcácer, algumas decoradas com estampa XXIV, peça nº 67). O jarrinho ou jarrinha
pintura, de cor vermelha, datadas dos séculos IX-X, (V.T/20/5) apresenta paralelos com jarrinhas e jar-
1052
de Vale de Trigo, em Alcácer do Sal. Deste modo, reia, 2013, p. 74). Admite-se, deste modo, a possibili-
debruçando-nos sobre o caso de estudo em análi- dade de este ḥiṣn ter sido erguido após 875-876, por
se poderá, desta forma, o recinto Sul corresponder ordem de Muḥammad I, quando aquela família ber-
a uma fase mais antiga podendo, ou não, inserir-se bere se fixa em Alcácer, tendo como finalidade o con-
numa cronologia islâmica e, posteriormente, com trolo do território, face às ameaças dos vikings, mas
toda a instabilidade que se começa a vivenciar no também das forças berberes e muladís que constan-
decorrer do século IX, ter-se optado por construir temente se revoltavam contra o poder central (Fe-
um outro recinto no cerro Norte, o qual estrategica- lipe, 1997, pp. 90-91). Moedas Omíadas, cunhadas
mente estava melhor posicionado, possuindo uma nos reinados de ᶜAbd al-Raḥmān II e Muḥammad I,
forte pendendo na sua vertente precisamente orien- descobertas em Alcácer do Sal comprovam o domí-
tada a Norte, onde corria a ribeira de Vale de Trigo, nio do poder central de Córdova, logo após o pri-
usufruindo de uma excelente visibilidade naquela meiro ataque viking e mesmo antes da chegada dos
direcção, bem como do rio Sado, a Sul. Banū Dānis, naquele território ocidental. Ao mesmo
A construção daquela fortificação estaria assim re- tempo, a instalação de uma fortaleza naquele local
lacionada com a passagem de uma via ali próxima permitia um melhor controlo das populações que
que unia Alcácer aos territórios situados mais a Nor- habitavam o território, assim como da recolha de
te, como é o caso de Palmela e Lisboa, mas também impostos no seio das comunidades rurais.
Montemor-o-Novo, Évora e Badajoz. A necessidade Não obstante, apesar do exposto, só o prossegui-
de protecção e controlo destas vias terrestres permitia mento da investigação no local poderá contribuir
uma segura circulação de pessoas e mercadorias que com mais informações acerca da sua cronologia e
diariamente se deslocavam por aqueles caminhos até dos distintos hiatos de ocupação naquele espaço.
aos núcleos urbanos. A notória posição estratégica
do dispositivo militar permitia-lhe excelentes condi- BIBLIOGRAFIA
ções de defesa e controlo directo dos terrenos férteis,
ALMAGRO, Antonio (2008) – “La puerta califal del castillo
bem como da paisagem envolvente até ao rio Sado. de Gormaz”, Arqueología de la Arquitectura, nº 5, pp. 55-77.
Este aspecto é interessante, dado que, apesar de ser
ARAÚJO, João (2013) – A cerâmica islâmica do castelo de Pal-
um ḥiṣn que se situava no interior do território da
mela: análise tipológica e crono-estratigráfica dos materiais da
Kūra de Alcácer e cuja função primordial seria o con-
galeria 5. Tese de Mestrado em Arqueologia apresentada à
trolo da via terrestre, possuía também um papel fun- Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
damental na vigilância do curso fluvial, evidenciando,
BUGALHÃO, Jacinta; GOMES, Sofia; SOUSA, Maria João
deste modo, a importância que o rio teria na articula-
(2007) – “Consumo e utilização de recipientes cerâmicos
ção do povoamento em torno de al-Qaṣr, bem como no arrabalde ocidental da Lisboa islâmica (Núcleo Arqueo-
a necessidade do seu controlo no acesso à cidade. lógico da Rua dos Correeiros e Mandarim Chinês)”, Revista
A construção da fortificação implicou a mobiliza- Portuguesa de Arqueologia, vol. 10, nº 1, pp. 317-343.
ção de recursos e mão-de-obra especializada que só
CAPELA, Fábio; TEICHNER, Félix; HERMANN, Florian
um poder centralizado teria meios para o executar. (2020) – “Cerro do Castelo de Alferce (Monchique) um
O século IX foi marcado por uma série de revoltas emblemático sítio arqueológico”, Al-madan, II série (23),
dos berberes e muladís contra os Omíadas de Cór- Tomo I, pp. 35-49.
dova, bem como dos Abássidas contra estes últimos,
CARDOSO, Alberto (2013) – A Ocupação Rural Islâmica no
achando-se Alcácer no centro destes acontecimen- Baixo-Alentejo: os materiais do sítio dos Funchais 6 (Beringel).
tos, dada a sua relativa proximidade e relação com Tese de Mestrado em Arqueologia apresentada à Faculdade
Beja nos primeiros séculos da presença muçulmana de Letras da Universidade de Lisboa.
(Coelho, 2008, pp. 111-150).
CARVAJAL LÓPEZ, José (2008) – La cerámica de Madinat Il-
Para além disso, o século em questão foi igualmente bira (Atarfe) y el poblamiento altomedieval de la Veja de Grana-
marcado pelos ataques vikings que várias vezes des- da. Granada, Grupo de Investigación “Toponmia, Historia y
ceram o vale do Sado, fazendo com que os Omíadas Arqueología del Reino de Granada”/Ayuntamiento de Atarfe.
virassem as suas atenções para as zonas costeiras do
CASAL, Maria Teresa; CASTRO, Elena; LÓPEZ, Rosa; SA-
ocidente, sendo nesse contexto que se fixam em Al- LINAS, Elena (2005) – “Aproximación al estudio de la cerá-
cácer, em 875-876, os Banū Dānis, fiéis ao Emir de mica emiral del arrabal de Saqunda (Qurtuba, Córdoba) “,
Córdova (Makki e Corriente, 2001, pp. 317-318; Cor- Arqueología y Territorio Medieval, vol. 2, nº 2, pp. 189-235.
1054
Figura 1 – Localização do Castelo de Vale de Trigo (seg. a C.M.P., nº 468, Santa Susana, escala 1:25 000, S.C.E.P., 1988).
Figura 2 – Área de dispersão das estruturas, à superfície, do Castelo de Vale de Trigo (Google Earth).
1056
Figura 5 – Alçados Norte e Sul da muralha.
Figura 6 – 1. Troços de uma possível torre; 2. Vista geral da encosta Norte do cerro onde se implanta a provável estrutura
defensiva; 3. Derrubes de silhares de pedras junto à torre.
Figura 8 – Silhares de pedra e fragmentos de cerâmicas de construção visíveis, à superfície, no Povoado de Vale de Trigo.
1058
Figura 9 – Fragmentos de jarra e jarrinhas/jarrinhos islâmicos exumados no Povoado de Vale de Trigo.
1060
CONVENTO DE NOSSA SENHORA
DO CARMO DE MOURA, UM CONJUNTO
DE SILOS MEDIEVAIS ISLÂMICOS: DADOS
PRELIMINARES DE UMA DAS SONDAGENS
ARQUEOLÓGICAS DE DIAGNÓSTICO
Vanessa Gaspar1, Rute Silva2
RESUMO
Situada na margem esquerda do rio Guadiana, Moura goza de uma situação geográfica privilegiada. A proxi-
midade a importantes cursos de água possibilita a existência de terrenos férteis, propícios à agricultura. Esta
situação permitiu que comunidades humanas ocupassem este território desde tempos remotos.
Com uma forte ocupação árabe, a cidade foi conquistada em definitivo no século XIII, sendo entregue a defesa
deste território aos cavaleiros da Ordem do Hospital.
A fundação do Convento do Carmo surge desta necessidade de defesa.
As escavações realizadas até hoje revelaram uma necrópole medieval, contemporânea à utilização deste
convento, bem como uma ocupação anterior, como são exemplo os silos e as cerâmicas aqui apresentadas.
Palavras-chave: Arqueologia Urbana; Reabilitação do Património; Período Medieval Islâmico; Silos.
ABSTRACT
Located on the left side of the river Guadiana, Moura enjoys a privileged geographical situation. The proximity
to watercourses has given the city throughout history, access to fertile land. This situation allowed human com-
munities to occupy this territory since ancient times.
With a strong Arab occupation, the city was definitively conquered in the 13th century, with the defense of this
territory being handed over to the knights of the Hospital Order.
The foundation of Convento do Carmo arises from this defense need.
The excavations carried out to date have revealed a medieval necropolis, contemporary to the use of this con-
vent, as well as a previous occupation, such as the silos and ceramics shown here.
Keywords: Urban Archeology; Heritage Rehabilitation; Islamic Medieval Period; Silos.
1062
dos ditos castelos» (MACIAS e GASPAR, 2005: 10). do em Convento Eremítico da Província, em 1617.
Do mesmo modo, a Atalaia Magra (torre de vigia do Em 1495, funda-se um Convento na Vidigueira; em
século XIV), localizada junto ao caminho para Aro- 1526, o de Beja; em 1531, Évora e o de Coimbra, em
che, a curta distância de Moura e com contacto visual 1571. Vão-se sucedendo as fundações no continente
com o castelo, era destinada a avisar os habitantes da e ilhas (https://www.ordem-do-carmo.pt/).
fortificação no caso de eventuais ataques de Castela. Em 1565, Teresa de Jesus de Ávila reforma a Ordem
Mais tarde, no início do século XVI (1510), encontra- dos Carmelitas, em profunda decadência, fundan-
mos referência à presença de Francisco Arruda em do em Ávila o primeiro convento das Carmelitas
Moura «o dito pedreiro he paguo das primeiras duas Descalças, que exige uma vida de clausura e aus-
pagas e nom tem feitas nem acabadas as ditas obras teridade em que predominam as preces e as peni-
de Moura e Mourã; e em Moura tem menos que fa- tências. São João da Cruz, a partir de 1568, inicia
zer, mas em Mourã he casy tudo por fazer (…)» (MA- a reforma do ramo masculino da mesma Ordem
CIAS e GASPAR, 2005: 12). Este documento permite (GONZÁLEZ & alii., 2020: 9).
supor que a presença em Moura de Francisco Arruda Durante a expansão portuguesa no Brasil, a Ordem
seria para realizar obras de reparação no castelo me- do Carmo passou por um período de fortalecimento
dieval e não para uma verdadeira transformação da em Portugal. Em todas as casas da Ordem do Carmo
fortificação existente. surgiu, nesta época, uma preocupação com a consoli-
Torna-se evidente a necessidade de proteção deste dação material, visível na ampliação e renovação dos
território a quaisquer ameaças externas, ficando assim conventos já existentes e no enriquecimento das igre-
justificadas as obras de grande relevância feitas nas jas, acompanhando o fausto característico da época
diversas fortificações, reforçando-se de forma signi- dos Descobrimentos (GONZÁLEZ & alii, 2020: 9).
ficativa as estruturas defensivas do período islâmico. Ao longo do tempo, a ordem foi perdendo força: «De-
Em meados do século XIII, instala-se na cidade a pois de tanto florescimento na ordem e na provín-
Ordem do Carmo, de vital importância do ponto de cia, surgem dificuldades e percalços, que irão agravar-
vista espiritual e económico, sendo inequivocamen- se com o terramoto de 1755. Vários conventos são
te os principais proprietários agrícolas de Moura abalados, alguns destruídos, falecendo até alguns
(MACIAS, GASPAR e VALENTE, 2016: 28). frades carbonizados. Com isto, o fervor religioso
também começa a esmorecer. Tudo termina com
3. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO a extinção das ordens religiosas, ordenada por Joa-
DA ORDEM DO CARMO quim António de Aguiar, em 1834» (LOURENÇO,
2000/01: 295 apud GONZÁLEZ & alii, 2020: 9).
A Ordem do Carmo surgiu, no final do século XI, na Com o decreto de 28 de maio de 1834 e a consequente
região do Monte Carmelo, localizada nas proximi- extinção das ordens religiosas, as Ordens Primeiras
dades da cidade de Haifa, pertencente ao Estado de do Carmo (constituídas pelos membros do clero),
Israel. No século XIII, devido às perseguições islâ- despojadas dos seus bens, mudam-se para o Brasil,
micas, os religiosos migraram para o ocidente. enquanto que em Portugal algumas das proprieda-
A Ordem dos Carmelitas entra em Portugal no sé- des, não expropriadas pelo Estado, passaram para
culo XIII, como capelães dos militares de São João as Ordens Terceiras do Carmo (constituídas pelos
de Jerusalém, vindos da Terra Santa, com uma pri- membros leigos) (GONZÁLEZ & alii, 2020: 10).
meira fundação em Moura (c. 1251), e uma segunda, Alguns edifícios foram fechados, outros demolidos
mais relevante, por iniciativa de D. Nuno Álvares e, ainda, outros destinados aos mais diversos usos,
Pereira, o célebre Convento do Carmo, em Lisboa como quartéis, casas pias, escolas ou mesmo sede de
(https://www.ordem-do-carmo.pt/). propriedades agrícolas, extinguindo-se desta ma-
Em 1423, realiza-se o primeiro Capítulo Provincial neira a florescente Congregação de Nossa Senhora
em terras de Portugal, tendo sido eleito Provincial do Carmo de Portugal.
o Dr. Frei Afonso Leitão, ou de Alfama. Elaboraram-
-se os primeiros Estatutos, que foram aprovados por 4. CONVENTO DE NOSSA SENHORA
D. João I, em 1424. Em 1450, inicia-se a construção DO CARMO DE MOURA
do Convento de Colares, que só Frei Baltazar Lim-
po termina, em 1528. Este convento foi transforma- O Convento de Nossa Senhora do Carmo de Moura,
1064
de Moura, no âmbito do apoio municipal às obras foram exumados alguns materiais cerâmicos bem
de reabilitação de imóveis particulares no centro preservados, fragmentos pertencentes a peças de
histórico da cidade. grandes dimensões, bem como peças quase com-
pletas, como uma pequena jarra e um candil, bem
5. SONDAGEM ARQUEOLÓGICA DE como algumas frigideiras. Foram, igualmente, reti-
DIAGNÓSTICO – A ZONA 5 rados alguns materiais metálicos que se encontram
em tratamento de modo a fornecerem uma melhor
A Zona 5 surgiu no seguimento de alterações fei- leitura e, deste modo, uma proposta de datação. No
tas ao projeto. A área sobre a qual incide este tra- entanto, e depois de uma análise destes vestígios
balho, foi o local escolhido para a instalação de um cerâmicos, aponta-se como cronologia provável de
sistema de saneamento separativo para recolha de abandono desta estrutura negativa o século XIII.
águas pluviais. Foi aberta uma sondagem com 6,50 Este silo tem uma profundidade máxima de 1,83
m X 7,50 m (com uma área aproximada de 48 m2) e metros (cota de topo no bocal 156.22 / cota de fundo
foi proposta a sua escavação integral até aos 3,20 m 154.39), um diâmetro mínimo de 0,80 m e um diâ-
de profundidade. metro máximo de 1,82 m (figura 5).
Após a escavação de diferentes níveis de enchimen- Estas três estruturas negativas são morfologicamen-
to, sem quaisquer vestígios arqueológicos relevan- te semelhantes entre si, estando escavadas no subs-
tes, a cerca de 2,15 m de profundidade (à cota de trato rochoso e sem vestígios de impermeabilização
156,45) apareceram os níveis preservados, nomea- e com uma capacidade de armazenagem semelhan-
damente três silos escavados no substrato geológico, te, a oscilar entre os 2300 litros (Silo 1), os 2600 litros
calcário (figura 2). (Silo 2) e os 2400 litros (Silo 3).
O primeiro silo [011], sem tampa, estava escavado Face à cronologia proposta para os materiais exu-
na rocha e encontrava-se preenchido com a cama- mados nos diferentes silos escavados na Zona 5,
da [007], de onde foram exumadas cerâmicas va- colocamos a hipótese da realidade aqui deteta -
riadas, cujo estudo ainda em curso nos remete para da corresponder a num momento anterior à fun
um contexto fechado, com cronologias que apon- dação da primitiva Igreja e Convento de Nossa
tam para os séculos XII-XIII. De perfil troncocónico Senhora do Carmo.
e fundo plano, esta estrutura negativa apresenta a
profundidade máxima 1,75 metros (cota de topo no 6. CULTURA MATERIAL
bocal 156.20 /cota de fundo 154.45), um diâmetro Após a análise da amostragem do espólio cerâmico
mínimo de 0,54 m e um diâmetro máximo de 2,05 recolhido nos enchimentos dos silos 1 e 3 (figura 6),
m (figura 3). definimos como metodologia uma abordagem à for-
O segundo silo [008], apareceu depois de retirada ma das peças de acordo com quatro categorias fun-
a camada [005], desta vez com a tampa preservada cionais (SILVA, 2011: 36):
in Situ, à qual se atribuiu a unidade estratigráfica – Utensílios destinados ao armazenamento e trans-
[012]. As pedras que constituíam a tampa estavam à porte, ao qual pertencem: a talha, o pote, o peque-
cota de 156.12 e depois de retiradas, verificou-se que no pote e o cântaro;
este se encontrava vazio, sem qualquer sedimento – Utensílios de serviço de mesa, onde se inserem: a
ou cerâmicas. De perfil em tudo semelhante ao an- tigela, a taça, a jarrinha, o púcaro, o jarro, a bilha,
terior, troncocónico e fundo plano, esta estrutura a cantarinha/infusa e a garrafa;
negativa tem a profundidade máxima de 1,77 me- – Utensílios de utilização na cozinha: como a pane-
tros (cota de topo no bocal 156.02 / cota de fundo la, a caçoila e o alguidar;
154.25), um diâmetro mínimo de 0,44 m e um diâ- – Outros objetos de uso específico: lúdico (malha
metro máximo de 2,32 m (figura 4). de jogo), doméstico (tampas ou testos) e para ilu-
O terceiro silo [014] apareceu a poucos centímetros minação (candil).
de distância dos anteriores e, tal como o primeiro, Utilizou-se, igualmente, uma distinção de acordo com
não apresentava vestígios de tampa. Depois de reti- a decoração e técnicas de acabamento do conjunto
rados os seus sedimentos [009] (sedimento locali- em estudo. Identificaram-se diferentes tipos de téc-
zado ao nível da boca) e [013] (sedimento que cor- nicas decorativas, nomeadamente: aplicada, pintada,
respondia à quase totalidade do seu enchimento), aguada ou engobada, vidrada, brunida e caneluras.
1066
Catálogo Peça 5
Peça 1 Tipo – Caçoila
Tipo – Jarrinha Dimensões – 72 mm altura; 231 mm Ø bojo;
Dimensões – 102 mm altura; 89 mm Ø bordo; 135 mm Ø base
99 mm Ø bojo; 58 mm Ø base Morfologia – Peça com perfil completo, bordo intro-
Morfologia – Peça com perfil completo, bordo bolea- vertido diagonal, com sulco pronunciado (provavel-
do reto, colo cilíndrico vertical bem diferenciado do mente para assentar uma tampa), com duas asas de
bojo, globular. Com duas asas (perfil em “D”) que rolo (uma delas só o arranque), com carena acentua-
arrancam da parte superior do colo até meio do bojo, da e base plana
base plana Decoração – Engobada no interior, com vestígios de
Decoração – Inexistente engobe no exterior (aparentemente digitações não
Cronologia – XII intencionais)
Cronologia – XIII
Peça 2
Tipo – Tijela Peça 6
Dimensões – 42 mm altura; 160 mm Ø bordo; Tipo – Candil
58 mm Ø pé Dimensões – 58 mm altura;112 mm comprimento;
Morfologia – Peça com perfil completo, bordo extro- 74 mm largura; 32 mm Ø bordo
vertido boleado, corpo semi-esférico, pé anelar Morfologia – Peça com perfil completo, bordo bolea-
Decoração – Toda a peça revestida a vidrado mela- do, corpo fortemente carenado, base plana, asa de
do, no interior vidrado melado e manganês fita, bico com paredes planas e bem facetadas
Cronologia – XII-XIII Decoração – Vidrado melado
Cronologia – XII
Peça 3
Tipo – Bilha BIBLIOGRAFIA E WEBGRAFIA
Dimensões – 112 mm altura; 88 mm Ø bojo;
CAEIRO, Elsa (2005) – Os Conventos do termo de Évora. Dis-
62 mm Ø pé sertação de doutoramento em Urbanística y Ordenación del
Morfologia – Ausência de colo e bordo, corpo peri- Territorio. Universidade de Sevilha.
forme, base plana com pé diagonal. Com arranque Disponível em https://idus.us.es/handle/11441/15561.
de asa de rolo CARVALHOSA, A. Barros e CARVALHO, A.M. Galopim de
Decoração – Toda a peça revestida a vidrado verde (1970) – Carta Geológica de Portugal na escala 1:50000 – notí-
(diferentes tonalidades) com vestígios da presença cia explicativa da folha 43-B: Moura. Lisboa: Serviços Geoló-
de reflexos metálicos dourados. Caneluras horizon- gicos de Portugal.
tais na parte mais larga do bojo, junto ao colo as ca- COSTA, Augusto (2008) – Modelação matemática dos recur-
neluras são mais estreitas sos hídricos subterrâneos da região de Moura. Dissertação de
Cronologia – XII-XIII doutoramento em Ciências da Engenharia apresentada à
Universidade Técnica de Lisboa.
Disponível emhttp://hdl.handle.net/10400.9/1280.
Peça 4
Tipo – Panela GOMES, Rosa; GOMES, Mário (2001) – Palácio Almoada da
Dimensões – 145 mm altura; 216 mm Ø bojo; Alcáçova de Silves. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia.
125 mm Ø bordo; 131 mm Ø base GONZÁLEZ, Maria Teresa; MACHADO, Melissa; FI-
Morfologia – Peça de perfil completo, bordo vertical, GUEIRA, Nádia; BAPTISTA, Pedro (2020) – Convento de
biselado, corpo globular com arranque de duas asas Nossa Senhora do Carmo, Moura. Relatório Prévio. Lisboa:
verticais, possivelmente de fita, e base plana Arqueohoje.
Decoração – Decoração ao nível do bojo, com cane- LIMA, José Fragoso de (2003) – Elementos Históricos do con-
luras horizontais e vestígios de pintura a branco com celho de Moura. Moura: Câmara Municipal de Moura.
linhas verticais e oblíquas
MACIAS, Santiago (1993) – Moura na Baixa Idade Média:
Cronologia – XII-XIII elementos para um estudo histórico e arqueológico in Ar-
Observação – marcas de contacto com o fogo queologia Medieval. 2. Porto: Edições Afrontamento, pp.
127-157.
https://www.ordem-do-carmo.pt/.
1068
Figura 1 – Maquete Projeto de Reabilitação do Convento do Carmo de Moura; Imagem cedida pela empresa projetista Openbook.
1070
Figura 4 – Silo 2; Tampa e Perfil Sudoeste / Nordeste.
1072
Figura 6 – Silo 1; Pormenor do seu enchimento.
Figura 9 – Peça 4; Panela decorada com pintura a branco. Figura 10 – Peça 6; Candil em vidrado melado.
1074
POTES MELEIROS ISLÂMICOS –
CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA
IMPORTÂNCIA DO MEL NA IDADE MÉDIA
Rosa Varela Gomes1
RESUMO
Nas escavações arqueológicas que realizámos, na Ponta do Castelo (Aljezur) e em Silves, recolhemos potes de
cerâmica, quase completos e fragmentos de outros, que, sobretudo devido à sua morfologia e também pelas
temáticas decorativas, permitem considerá-los como contentores para mel. Estes, encontram antecedentes
peninsulares que remontam à II Idade do Ferro, mas esta categoria de recipiente, dada a sua funcionalidade,
manteve-se, embora com variantes, nomeadamente dimensionais, durante a Romanização, Idades Média e
Moderna. O seu uso prolongou-se até quase à actualidade, conforme indicam não poucos paralelos etnográficos.
Palavras-chave: Cerâmica; Mel; Século XII; Aljezur; Silves.
ABSTRACT
In the archaeological excavations that we carried out at Ponta do Castelo (Aljezur) and in Silves, we collected
ceramic pots, almost complete and fragments of others, which, mainly due to their morphology and also to the
decorative themes, allow us to consider them as containers for honey. These have peninsular antecedents that
date back to the Second Iron Age, but this category of container, given its functionality, remained, although
with variants, namely dimensional, during the Romanization, Middle and Modern Ages. Its use has lasted until
almost the present day, as indicated by many ethnographic parallels.
Keywords: Ceramic, Honey; 12th Century; Aljezur; Silves.
1. Instituto de Arqueologia e Paleociências; História, Territórios e Comunidades CFE -NOVA FCSH / [email protected]
1076
preenchidos na mesma cor e dispostos em série. Me- entre outros, exemplar encontrado avulso nos Arri-
dia 0,103 m de diâmetro no bordo e a espessura mé- fes do Poço, em Aljezur, cujo estudo permitiu atri-
dia das paredes é de 0,004 m. buir-lhe recuada cronologia (Gomes, 2007). Trata-
Foi identificado a norte de complexo de banhos do -se de recipientes que, dada a sua funcionalidade,
palácio principal da alcáçova, em sector de canali- se mantiveram, embora com algumas variantes for-
zações, próximo do local onde recolhemos frasco mais e decorativas, durante a Romanização, Idade
de vidro inteiro (CAST.SILV. Q74/C2-7) e parte de Média e Idade Moderna, prolongando-se o seu uso
taça (CAST.SILV. Q74/C2-8), também de vidro, que até quase à actualidade, conforme indicam paralelos
terão sido escondidos durante a conquista definitiva etnográficos (Delgado, 1996-1997, p. 160; Morais,
daquele espaço em 1248 (Gomes, 2003, pp. 292, 294). 2006, pp. 150, 152, 154, 155, fig. 1-12; Morais, 2014, pp.
Pote meleiro (AR.Q1/U.1/C3-1) – Fragmento cor- 97, 99; Silva e Ribeiro, 2006-2007, pp. 76, 77, 87).
respondente a porção do bordo e da parede do corpo, Muito embora, conforme referimos, sejam conhe-
que possivelmente teria forma troncocónica. O bor- cidos potes meleiros em contextos proto-históricos
do mostra rebordo ou ressalto, formando canaleto, e romanos, a sua presença em níveis islâmicos não
possuindo lábio de secção semicircular. Foi fabrica- tem sido, até agora, claramente assinalada. No en-
do com pasta homogénea e compacta, contendo ele- tanto, na informação literária sobre as funções das
mentos não plásticos, micáceos, de grão fino, assim cerâmicas islâmicas constante nos livros de culiná-
como quartzosos e calcários, de grão fino e, alguns, ria e nomeadamente no Fadālat al-jiwān, refere-se
de grão médio. O núcleo das paredes é de cor ver- o ma’sūl como sendo contentor para mel, mas cuja
melha (10R 5/8) e ambas superfícies oferecem agua- forma, não se especifica e, portanto, se desconhece
da de cor vermelha escura, algo acinzentada (5 YR (Rosselló-Bordoy, 1994, pp. 42, 45, 64).
4/2). A superfície exterior contém, sobre o rebordo, A forma e grandes dimensões dos potes da Ponta
pequenas incisões, dispostas em série, assim como do Castelo indicam que eles teriam sido utilizados
linha, também incisa, sobre o corpo e, ainda, decora- para armazenar e, possivelmente, transportar mel.
ção pintada de cor branca. Esta é constituída por qua- Também grande pote de que se exumou fragmento
tro linhas, sendo uma sobreposta ao bordo, outra no contendo perfil completo, no interior de silo islâmi-
rebordo, enquanto duas demarcam cartela, preen- co, durante acompanhamento arqueológico realiza-
chida por cordão com dois cabos, pintado naquela do em 2009, no Jardim das Portas do Sol na antiga
mesma cor. Media 0,050 m de diâmetro no bordo e a alcáçova de Santarém, seria muito semelhante aos
espessura média das paredes é de 0,004 m. exemplares de Aljezur (Silvério, 2012, pp. 2-5)3. Aque-
Foi identificado, sobre o substrato rochoso, junta- le possuía bordo, rebordo ou ressalto, formando ca-
mente com outros materiais pertencentes maiorita- naleto, asas e fundo plano, oferecendo decoração
riamente à fase final da permanência islâmica (Fig 4). incisa e pintada, constituída por motivos ondulados
pintados que intercalavam com linhas horizontais
2. AS FORMAS E O CONTEÚDO paralelas entre si e, sob o rebordo, incisão formando
ziguezague. Este pote, cuja cronologia foi atribuída
A principal característica dos fragmentos de potes ao século XII, teria tido possivelmente quatro asas,
meleiros que descrevemos, além de apresentarem eventualmente, para ser suspenso, quiçá para ajudar
distintas dimensões, reside em todos oferecerem à fixação da tampa ou facilitar o seu transporte.
acentuado rebordo ou ressalto, formando canaleto, Os grandes potes meleiros, da Ponta do Castelo e
sob o bordo. Este destinava-se a conter água, impe- de Santarém, diferenciam-se dos pequenos potes
dindo a entrada, nos recipientes, de insectos, atraí- meleiros, que identificámos na Zona da Arrochela,
dos pela presença do mel. Podiam ter tido tampa de em Silves, e na camada 2 do Castelo daquela cida-
fecho hermético, de cerâmica, de madeira ou mes- de, que seriam empregues para guardar pequenas
mo de cortiça, como era comum no Algarve até mea- quantidades de mel ou apresentá-lo à mesa, em
dos da passada centúria.
As características morfológicas dos dois potes iden-
3. Agradecemos ao Dr. Carlos Silvério ter-nos facultado a
tificados na Ponta do Castelo (Aljezur), maiores que sua tese de Mestrado em Conservação e Restauro, assim
os restantes, têm antecedentes peninsulares que re- como autorização para utilizar desenho da peça que restau-
montam à II Idade do Ferro, conforme documenta, rou, ali incluída.
1078
(Gil Zubillaga e Luezas Pascual, 2015, p. 41). Os tes- do, 1993, pp. 57, 58; Andrade, e Silva, 1993 pp. 24, 183;
temunhos de colmeias de cerâmica do Martinhal po- Marques e Ventura, 1990, pp. 48, 49; Martins, 2004,
dem resultar delas terem sido produzidas no local, a pp. 49, 50; Oliveira, Botão e Silva, 2004, pp. 84, 85).
par da fabricação anfórica, conforme foi já sugerido, Frei João de São José registou, no século XVI, que
mas é possível que sejam mais tardias e ali usadas então havia nas serras do Algarve, que se estendiam
quando a olaria tivesse sido abandonada. desde o Guadiana até ao mar oceano, da banda de
Para o autor clássico acima citado, as melhores poente, “… muitas silhas de colmeias de que se tira
colmeias seriam fabricadas em cortiça, dado que cada ano grande quantidade de mel e cera com que os
permitiam manter a temperatura no seu interior moradores destas partes, se nisto são solícitos, gran-
tanto de verão como de inverno, ou a partir de tron- jeiam bem sua vida” (Guerreiro e Magalhães, 1983,
cos de árvore escavados, desaconselhando o uso p. 127). Depreende-se desta passagem que na Serra
de colmeias de barro cozido (Almeida e Morín de Algarvia se praticava a apicultura em larga escala.
Pablos, 2012, p. 728). Segundo nos transmite Eduardo Sequeira (1900, p.
Desconhecemos, por ora, colmeias atribuídas à per- 196), no Norte dão o nome de silha ao colmeal cerca-
manência islâmica no actual território português, do de paredes circulares, enquanto no Sul chamam
possivelmente por terem sido destruídas, ou dada modernamente silha a cada fila de assentos dos cor-
a presença de sobreiros, a cortiça seria o material tiços no colmeal. Todavia, estes últimos poderiam
mais empregue naqueles artefactos, que aliás popu- ter sido cercados por paredes de pedra, ou muros
larmente são denominados cortiços, ainda usuais na apiários, cuja existência se tem vindo a estudar tanto
passada centúria. As suas dimensões rondavam os no Norte como no Centro da Península Ibérica.
0,55 m de altura e 0,30m de diâmetro, aí se produ- Aqueles recintos tinham como função proteger as
zindo, em média, meio litro de mel e um quilograma colmeias de predadores como os ursos, que o chei-
de cera, devendo ser dispostos em encostas voltadas ram a quilómetros de distância, e, também, impedir
para nascente, segundo consta no Tratado de Apicul- a entrada de estranhos que roubassem o mel (Dinis
tura de Eduardo Sequeira (1900, pp. 194-196). e Dinis, 2010; Correia, 2010; Henriques et alii, 2010;
Sabe-se que a apicultura terá continuado após a re- Rodrigues, 2010). De facto, a presença do urso seria
conquista cristã do sul peninsular, conforme docu- comum no actual território português, pelo menos
mentação literária sobre a produção de mel e de cera até ao século XV, dado que a carne daquele animal
em Múrcia, contribuindo, tal como ocorria durante a era tabelada (Marques, 1987, pp. 109, 464; 1993,
permanência muçulmana, para a economia local. A 161, 241). Justificava-se, por isso, a protecção das
instalação de colmeias, segundo nos é transmitido, colmeias, també no Sul, com cercas, muito embora
necessita de “…pouca mão de obra e escassa dedica- ainda não tenham sido devidamente estudadas.
ção”, integrando-se na exploração florestal (Peiró Os potes meleiros, para conter, guardar e transportar
Mateos, 1999, pp. 231, 232). mel, cujos fragmentos identificámos no assentamen-
Segundo Inês Eléxpuru (1994, p. 97), quando os to da Ponta do Castelo (Carrapateira, Aljezur), corro-
cristãos conquistaram Alicante encontraram nume- boram a continuidade da apicultura durante a perma-
rosas colmeias que protegeram, penalizando quem nência islâmica. O testemunho melhor conservado
as destruísse. (P.CAST. CA2/Q80/C2-1) oferece elaborada decora-
No caso português dispomos, apenas, de referência ção pintada, de cor vermelha, com carácter geométri-
na obra A Primeira Geografia do Ocidente de Idri- co, ocupando a quase totalidade da superfície exterior
si (século XII) (1999, p. 264) que menciona o mel, e de parte da asa, mostrando sob o rebordo motivo in-
como constituindo importante riqueza no território ciso. Este representa estrela de seis pontas, formado
de Alcácer do Sal, além de outros centros produtores por dois triângulos equiláteros entrecruzados, símbo-
no Sharq al-Andalus. lo polissémico e, portanto, com distintas interpreta-
No que respeita especificamente ao Algarve, co- ções civilizacionais. Não obstante, ele constitui para
nhece-se informação transmitida através dos forais muitas delas a “perfeição em potência” ou, segundo
afonsinos e manuelinos concedidos à região, res- Abu Ya’qub Sejestani (século X), corresponderia ao
petivamente por D. Afonso III (1266) e D. Manuel I número perfeito, cujo significado, se pode associar
(1504) que, embora similares aos de Lisboa e de Sil- à boa qualidade do conteúdo do recipiente – o mel
ves, mencionam o comércio da cera e do mel (Ama- (Chevalier e Gheerbrant, 1997, pp. 591-593).
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Figura 2 – Ponta do Castelo (Carrapateira, Aljezur), planta das estruturas identificadas, com a localização
das casas onde foram recolhidos os fragmentos de potes meleiros (lev. J. Gonçalves).
1082
Figura 3 – Potes meleiros identificados na Ponta do Castelo (Carrapateira, Aljezur) e na antiga alcáçova de Santarém (des. J.
Gonçalves e C. Silvério).
1084
LUXOS E SUPERSTIÇÕES – REGISTOS
DE ESPÓLIO FUNERÁRIO E OUTRAS
MATERIALIDADES NAS NECRÓPOLES
ISLÂMICAS NO GHARB AL-ANDALUS
Raquel Gonzaga1
RESUMO
No mundo islâmico, um muçulmano deve ser enterrado num simples covacho, envolto num sudário, posiciona-
do em decúbito lateral direito, orientado para a cidade de Meca e sem qualquer tipo de espólio funerário.
Os preceitos islâmicos são simples: qualquer tipo de hierarquização na morte ou aparato da vida mundana é
altamente reprovável. No entanto, no decorrer do estudo e inventariação das necrópoles islâmicas do actual
território português, verificou-se a existência de enterramentos que se fizeram acompanhar de objectos depo-
sitados de forma intencional. Alguns materiais serão indicativos de diferenciação na morte, outros terão uma
interpretação um pouco mais complexa. A identificação destes elementos suscita à investigação várias questões
sobre as práticas e as crenças das comunidades islâmicas que enterraram os seus mortos. Que significados estão
por de trás destes vestígios materiais? Estaremos perante superstições e tradições enraizadas relacionadas com
a visão da morte? Que aspectos sociais e simbólicos representam?
Palavras-chave: Gharb al-Andalus; Islão; Necrópoles; Espólio funerário; Heterodoxia.
ABSTRACT
According to Islam, a Muslim must be buried in a simple grave, wrapped in a shroud, position in his right lateral
decubitus facing the city of Mecca, buried without any grave goods. The divine indications were clear: any kind
of hierarchization in death or display of the earthly life was highly reprehensible. However, when we proceed
with the inventory of Islamic necropolises in the current Portuguese territory, we observe that some burials
were accompanied with grave goods. Some of these grave goods are indicative of hierarchization in death, oth-
ers have a slightly more complex interpretation. The identification of these objects leads us to several questions
related to the beliefs of the communities that buried their dead. What kind of meanings are behind these ob-
jects? Are we dealing with rooted superstitions and traditions connected with the understanding of death? What
social and symbolical aspects are represented?
Keywords: Gharb al-Andalus; Islam; Necropolis; Grave goods; Heterodoxy.
1086
As estruturas funerárias e o material osteológico 2.4. Necrópole Escola Secundária Diogo
encontravam-se muito afectados pela colocação de Gouveia (Beja)
de infraestruturas actuais, no entanto, foi possí- A actual Escola Secundária Diogo de Gouveia, em
vel registar um pequeno botão quadrangular em Beja, foi intervencionada no âmbito da arqueologia
quartzo no interior de uma das sepulturas (fig. 3) de salvaguarda. Neste local registaram-se várias rea-
(Boavida et all, 2013). lidades arqueológicas de diferentes enquadramentos
Segundo os arqueólogos responsáveis, este ornamen- cronológicos, porém, para a temática em concreto,
to é muito semelhante a um botão recolhido (embora importa-nos reportar aos enterramentos islâmicos.
sem associação directa a uma inumação) nas escava- Foram intervencionadas quase três centenas de es-
ções da necrópole moçárabe do Mosteiro de São Vi- queletos sendo que a larga maioria se registou dentro
cente de Fora (Cunha e Ferreira, 1998) (fig. 3). dos cânones de enterramento islâmico. Desta ampla
Embora morfologicamente distinto, identificou-se amostra apenas um dos inumados foi acompanhado
no almocavar de Lorca, em Espanha, um botão jun- de espólio funerário: este tinha um par de esporas
to da zona toráccica de um esqueleto que, ademais, nos seus calcanhares (fig. 4) (Martins e Santos, 2013).
ainda se conservavam alguns pedaços de tecido das Este artefacto aparentemente não tem paralelos
suas roupas (Ponce García, 2002). com os contextos funerários espanhóis. Até à data,
não foram encontradas esporas in situ e em associa-
2.3. Maqbara do castelo de Alcácer do Sal ção com o inumado.
Já é conhecida, desde meados do século XIX a uti- Esta peça da indumentária e de equipamento de ca-
lização deste espaço, a cerca de 50m a sudoeste da valeiro tem origens no período romano, nomeada-
alcáçova de Alcácer do Sal, como local de inumação mente as designadas esporas de espeto. Este tipo de
durante o domínio islâmico. esporas continua a ser utilizadas até ao século XVI,
José Leite de Vasconcelos recolheu várias lápides contudo, no âmbito medieval islâmico desenvol-
funerárias nesta encosta (Barceló e Labarta, 1987), vem-se as típicas esporas designadas acicates (Bar-
porém, apenas nos inícios dos anos 2000 foram exe- roca e Monteiro, 2000).
cutadas escavações e identificadas efectivamente as
inumações islâmicas. 2.5. Necrópole do sítio da Horta (Vila Nova
Dada a informação do sítio, este designa-se obje de Cacela)
ctivamente por Maqbara do castelo de Alcácer do O sítio da Horta, em Cacela, foi intervencionado nos
Sal, alusivo à palavra árabe de almocavar, ou seja, inícios do século XX por José de Leite Vasconcelos.
cemitério. Apesar de os esqueletos estarem em muito mau es-
Foram escavadas quatro inumações primárias, e se- tado de conservação, o investigador enquadrou-os
gundo a informação do Doutor João Faria, associado instintivamente como sendo de índole romana (Vas-
a um dos enterramentos do sexo masculino foi reco- concelos, 1900; Vasconcelos, 1903).
lhido um dente fóssil de tubarão (Carvalho, Faria e Não obstante, a recolha de uma candeia metálica no
Ferreira, 2004). interior de uma sepultura, que ele próprio designa
Trata-se de um artefacto invulgar com poucos ele- como “candeia arábica” (fig. 5), suscita-nos algumas
mentos descritivos e sem registo fotográfico. Dadas dúvidas em relação ao enquadramento romano dos
as lacunas informativas e face ao falecimento do enterramentos.
Doutor João Faria, a Doutora Marisol Ferreira gen- Infelizmente, deste sítio arqueológico restam-nos
tilmente averiguou no relatório de escavação entrou muito poucas informações. E da candeia metálica
em contacto com os restantes elementos da equipa chegou-nos apenas a ilustração de Leite de Vasconce-
arqueológica, e procurou ainda a existência deste los que representa figuras zoomórficas – três pássaros
artefacto em algum dos contentores da Câmara Mu- estilizados. A investigadora Eva-Maria von Kemnitz
nicipal de Alcácer do Sal. Infelizmente, não há mais defende que esta peça, com influências decorativas
informações nem se conhece o paradeiro do dente orientais, tratar-se-á de uma produção peninsular e
de tubarão. muito provavelmente local (Kemnitz, 1993/94).
Nada obstante, agradece-se todo o esforço por parte Com frequência registam-se candis no interior e nas
da Doutora Marisol na demanda do objecto. imediações de sepulturas islâmicas no actual territó-
rio espanhol. Entre os demais exemplo, destacam-se
1088
dente de tubarão da Maqbara do castelo de Alcácer No que diz respeito ao registo de recipientes cerâmi-
do Sal; o anel e a faca da Quinta da Boavista (Loulé); cos colocados junto dos inumados, tal como o regis-
e as esporas do esqueleto da Escola Secundária Dio- tado no almocavar de Santarém, instintivamente re-
go de Gouveia (Beja). Estes objectos acompanharam porta-nos aos banquetes funerários de rito romano
os mortos pela sua conotação íntima, mas, por outro e tardo-romano. Com poucos exemplos no contexto
lado, podem ser demonstrações de distinção social português, poderá parecer uma ideia talvez desca-
e económica, nomeadamente no que diz respeito ao bida. No entanto, são vários os paralelos e os regis-
anel recolhido no almocavar da Quinta da Boavista. tos de peças cerâmicas em Espanha, alguns com
No entanto, os anéis podem não só comportar atri- material faunístico no seu interior e, em particular,
buições de adorno, beleza e de distinção social, mas a identificação excepcional de um pote com uma
também podem ser elementos detentores de algum oferenda no interior de um ovo de galináceo (Galve
simbolismo, nomeadamente de união, compromis- Izquierdo e Benavente Serrano, 1989; Márquez Pérez,
so e de continuidade. 2002; Fierro, 2000; León Muñoz, 2008/09).
As esporas, identificadas na necrópole da Escola Ainda dentro do imaginário humano, a morte está
Secundária Diogo de Gouveia, correspondem a um associada à escuridão e os candis – à semelhança das
objecto particular e que pode ser interpretado como lucernas romanas – têm o propósito figurativo de ilu-
um elemento pessoal tendo um significado especial minar o caminho do falecido, neste caso, até Deus.
para o inumado, o qual, identificando-se em vida Os candis são utilizados nas orações nocturnas jun-
como cavaleiro, decidiu materializar essa identida- to aos sepulcros nos sete dias seguintes a inumação
de na sua sepultura. do defunto muçulmano (Fierro, 2000; León Muñoz,
Sob outra perspectiva, este objecto poderá ser inter- 2008/09). Quiçá, poderemos dizer que esta tradição
pretado como um elemento de cariz simbólico e ri- da luz ainda se mantém no mundo cristão até aos
tual. Estamos perante um indivíduo que foi enterra- nossos dias com a prática da utilização de velas nos
do com um par de esporas nos seus pés e facilmente cemitérios actuais.
antecipamos um contexto possivelmente bélico em Esta relação entre Deus e a luz não é de todo invul-
que o inumado terá enfrentado a morte nesse mes- gar sendo, frequentemente, referenciada em contí-
mo ambiente. nuas passagens no Alcorão, nomeadamente no capí-
Esta interpretação não é de todo inusitada, porque tulo XXIV, verso 35 “Allah é a luz dos céus e da terra.
dentro das rígidas normas islâmicas, onde prevalece O exemplo da Sua Luz é como o de um nicho, em que
a austeridade sepulcral, existe uma excepção no que há uma candeia; esta está num recipiente; e este é como
concerne ao enterramento de mártires. uma estrela brilhante. (…)” (Hayek, 2010).
Todos os mártires que pereciam no campo de bata- Por último, resta-nos mencionar a identificação de
lha em nome do Islão não necessitavam de passar numismas no interior de sepulcros islâmicos, que
por todos os rituais funerários. A lavagem dos cor- automaticamente nos alude à prática do pagamen-
pos– a ablução – e as respectivas orações não eram to do barqueiro Caronte de origem grega. Trata-se,
obrigatórias. Em suma, os mártires eram imediata- uma vez mais, de um excelente exemplo em como
mente enterrados com as suas roupas ensanguenta- um elemento de transacção monetária adquire um
das e, certamente, com os seus pertences (Chávet outro significado ritual.
Lozoya et all, 2006). Este objecto identificado no contexto português não
Assim consideramos que, de acordo com determina- se encontrava no interior da boca ou nas mãos do de-
das crenças das comunidades, os objectos adquirem funto e, mesmo no âmbito peninsular, é um achado
maior significado e sublevam-se de simbolismo. relativamente invulgar. Em Espanha temos apenas
Objectos inanimados obtêm nova conotação sim- paralelos na necrópole Roteros, em Valência, e num
bólica e nova função de protecção do seu possuidor. dos almocavares da cidade de Mérida (Alba, 2005;
Entre o espólio identificado no gharb al-Andalus, in- Pascual Pacheco e Serrano Marcos, 1996; Rodriguez
cluem-se também neste tipo de categorização sim- Palomo e Martín Escudero, 2022).
bólica a moeda e a panela do almocavar do Largo Na necrópole de Roteros foi recolhido um pequeno
Cândido dos Reis (Santarém), o candil da necrópole elemento metálico circular similar a uma moeda,
da Horta (Vila Nova de Cacela) e o talismã da necró- conquanto na maqbara de Mérida foram identifica-
pole da Comporta (Silves). dos claramente três bronze romanos em associação
dos inumados (Rodriguez Palomo e Martín Escude- CHÁVET LOZOYA, María; SÁNCHEZ GALLEGO, Rubén;
ro, 2022). PADIAL PÉREZ, Jorge (2006) – Ensayo de Rituales de En-
terramientoIslámicosen Al-Andalus. Anales de Prehistoria y
Alguns investigadores defendem que a presença
Arqueología. Múrcia. Vol. 22, pp. 149-161.
destes artefactos de teor simbólico poderá estar as-
sociada a determinados indivíduos que, devido à CHÁVET LOZOYA, María; SÁNCHEZ GALLEGO, Rubén
(2010) – Hallazgos Arqueológicos Inéditos en la Ciudad de
vida leviana que levavam na Terra, teriam dificulda- Lorca: Resultados de la Intervención Científica desarrola-
des em ascender ao Paraíso. Em suma, estes objec- daen el Entorno de la IglesiadelCarmen (Barrio de Gracia).
tos ajudariam a passagem dos defuntos para ‘o outro Clavis., Lorca, 6, pp. 9-31.
lado’ (Martínez Garcia et all, 1995). CUNHA, Armando Santinho; FERREIRA, Fernando E. Ro-
Independentemente da leitura interpretativa, este drigues (1998) – Vida e morte na época de D. Afonso Henriques.
tipo de espólio faz-nos lembrar práticas rituais ain- Hugin Editores, Lda.
da anteriores à adopção do Cristianismo, nomeada- DOMINGUES, José Garcia (1956) – Novos aspectos da Silves
mente de período tardo-romano. Estas pequenas evi- arábica: documentos e comentários. Vila Nova de Famalicão:
dências poderão ser reflexos de costumes e crenças Tipografia Minerva. Figura 5.
enraizadas nas populações autóctones que obstina- FIERRO, Maríbel (2000) – El espacio de los muertos: fetua-
damente insistiam em manter as suas tradições, in- sandalusíes sobre tumbas y cementerios. L’urbanisme dans
dependentemente da nova religião (cristianismo ou l’Occidentmusulman au MoyenÂge. Aspects juridiques. Ma-
drid. pp. 153-189.
islão) que ia sendo instaurada no contexto peninsular.
Aqueles que fizeram sepultar os seus entes queridos GALVE IZQUIERDO, Pilar; BENAVENTE SERRANO, José
quiseram transmitir os seus valores e crenças de for- (1989) – La necrópolisislámica de la Puerta de Toledo de Za-
ma abstracta mas materializada em objectos com ragoza. III Congreso de Arqueología Medieval Española. Ovie-
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Figura 2 – Panela encontrada in situ, no interior de um dos sepulcros, da necrópole do Largo Cândido dos Reis (Santarém)
(Matias, 2009).
Figura 3 – Abaixo, botão recolhido na Travessa das Capuchas (Santarém) (fotografia gentilmente cedida pela Doutora Tânia
Casimiro), e acima o paralelo identificado (Cunha e Ferreira, 1998).
Figura 5 – Ilustração de Leite de Vasconcelos do candil identificado no sítio da Horta, em Vila Nova de Cacela (Vasconcelos,
1900).
1094
Figura 6 – Anel identificado na necrópole da Quinta da Boavista (Loulé) (Luzia, 1999/00).
Figura 7 – Ponta de faca recolhida no almocavar da Quinta da Boavista (Loulé) (Luzia, 1999/00).
1096
A NECRÓPOLE ISLÂMICA DO RIBAT
DO ALTO DA VIGIA, SINTRA
Alexandre Gonçalves1, Helena Catarino2, Vânia Janeirinho3, Filipa Neto4, Ricardo Godinho5
RESUMO
O sítio arqueológico do Alto da Vigia localiza-se na foz da ribeira de Colares, junto à Praia das Maçãs, em Sintra.
No início do século XVI, provavelmente quando no local se abriam as fundações para um edifício de vigilância
da costa, terão sido identificados vestígios epigráficos do santuário imperial romano dedicado ao Sol, ao Oceano
e à Lua, que estariam reaproveitados em construções de época islâmica.
Desta última ocupação identificaram-se, até ao presente, vestígios de, pelo menos, três edifícios, dois perten-
centes a mesquitas, com respetivo mihrab, para além de diversos silos escavados na rocha e uma necrópole de
rito islâmico que aqui se apresenta.
Foram já escavadas cinco sepulturas, uma delas presumivelmente infantil, das quais apenas três conservavam
vestígios osteológicos humanos que revelaram enterramentos de homens adultos sepultados segundo os dita-
mes da fé islâmica.
Palavras-Chave: Almocávar; Maqbara; Sepultura islâmica; Ribāt; Sintra.
ABSTRACT
The archaeological site Alto da Vigia is located nearby the river mouth of Colares, next to Praia das Maçãs,
Sintra. Epigraphic remains from a roman imperial shrine dedicated to the Sun, Ocean and Moon were first iden-
tified in the early 16th century, most likely when a coastal surveillance shelter was being built for shore control.
Those remains were reused as construction materials in the later Muslim period.
At least three buildings were identified dating from the Muslim period at Alto da Vigia, of which two preserve
mihrabs. Several silos excavated on the bedrock and a Muslim burial site (which we report in this study) were
also identified.
Five graves of the burial site have been excavated. Only three still preserved osteological remains, which were
of males that were deposited according to the Muslim funerary rite.
Keywords: Muslim cemetery; Maqbara; Ribat; Sintra.
1098
3. ORGANIZAÇÃO, RITUAL Quanto à técnica de construção, os sepulcros do Alto
E ARQUITETURA FUNERÁRIA da Vigia obedecem ao mesmo modelo, apenas com
um caso ligeiramente divergente. De um modo ge-
A necrópole foi estruturada no amplo espaço aber- ral, conservam-se vestígios das duas partes que os
to delimitado a oeste pelos edifícios, não tendo sido compõem: a vala de inumação, onde foi depositado
ainda identificados os seus limites a sul e a nascente, o corpo em contacto com a terra, a que se sobrepõe a
uma vez que a continuidade deste tipo de evidências respetiva estrutura de sinalização.
naquelas direções assinala uma área funerária de O topo das sepulturas foi assinalado através de es-
maiores dimensões. truturas simples, com recurso a materiais disponí-
Apesar dos dados necessariamente preliminares veis no local – terra, argila e pedras –, recorrendo-se
sobre a organização do almocávar do Alto da Vigia, a blocos e calhaus para definir perímetros de plan-
considerando a reduzida área escavada, identifica- ta subretangular, posteriormente preenchidos por
ram-se já 10 prováveis sepulturas (intervencionadas terra com uma espessa camada de argila no topo.
nas campanhas de 2015, 2021 e 2022) que se concen- As suas dimensões são variáveis, mas nos casos em
tram junto dos dois edifícios com mihrab, contudo, que foi possível fazer essa observação registaram-
sem se apoiarem neles. -se comprimentos até 2,60 m, largura aproximada
As sepulturas foram alinhadas nordeste-sudoeste, de 1,20 m e uma expressão em altura entre 22 e 45
com ligeiras divergências em alguns casos que po- cm (conforme tabela da figura 7). Os blocos foram
derão estar relacionadas com a época do ano em que assentes diretamente sobre o piso de circulação ex-
se realizaram os rituais fúnebres, já que não parece terior ou sobre o pequeno monte de terra que integra
haver qualquer tipo de condicionantes, como a pre- já a estrutura de sinalização e que cobre o preenchi-
sença de outras estruturas, a impedir a sua correta mento da respetiva vala de inumação.
orientação. Aqueles elementos pétreos apresentam alguma di-
Não obstante a regular organização espacial destes versidade formal, recorrendo-se a lajes dispostas
contextos, que reflete planeamento na sua distribui- em cutelo e a blocos com forma mais irregular, todos
ção, verifica-se uma grande proximidade das estru- em bruto ou grosseiramente aparelhados. Porém,
turas de sinalização das sepulturas 1 e 7, ainda que nenhum deles parece ter sido disposto na estrutura
não seja absolutamente clara a relação diacrónica especificamente como elemento de sinalização ver-
entre ambas, como se verá adiante. Esta proximi- tical do tipo estela ou cipo6.
dade poderá refletir uma relação familiar, uma vez As estruturas de sinalização cobriam valas de inu-
que as dimensões da sepultura 7 fazem presumir o mação abertas na superfície de circulação do exte-
sepultamento de uma criança, não podendo excluir- rior da mesquita, atestando, assim, a diacronia entre
-se ser o desejo de proximidade aos edifícios religio- o uso daquele edifício e a construção das sepulturas
sos a determinar esta maior densidade dos enterra- escavadas no substrato geológico, quer calcário quer
mentos. Atente-se que a sepultura 7 foi implantada a de argila. Estas fossas são exíguas e têm o espaço
cerca de 1 metro da qibla do ambiente 4, reduzindo estritamente necessário à deposição do corpo, com
e condicionando o espaço de circulação e de acesso largura em redor de 20 a 30 cm e profundidade entre
àquele compartimento. 40 e 50 cm, dimensões que se encaixam no padrão
A mesquita já escavada constitui uma zona de transi- que tem sido reconhecido para este tipo de contex-
ção quanto ao uso e estruturação do espaço exterior, tos e que têm como principal objetivo garantir a po-
já que da zona do seu mihrab para sul se concentra sição do corpo na posição canónica (Gonzaga, 2018;
a área funerária e, no sentido oposto, para norte, Gomes e Gomes, 2019).
foram escavados os nove silos, observando-se uma
organização que deverá refletir a função específica 6. Deve referir-se aqui a recolha de uma pedra com forma
de cada um dos edifícios. Assim, o limite nordeste do paralelepipédica depositado no fundo do silo 13, localizado
almocávar parece assinalado pela sepultura 2, que a cerca de 5 m das sepulturas 2 e 8, e que, atendendo à sua
forma, poderá ter servido como elemento de sinalização
se sobrepõe parcialmente a um silo que se encon-
vertical de um enterramento, solução que tem paralelos em
traria então já desativado, que por sua vez assinala outras necrópoles, tais como da Arrifana, Aljezur (Gomes e
o termo sul destas estruturas de armazenamento es- Gomes, 2019), ou a da cidade de Vascos, Toledo (Izquierdo
cavadas na rocha. Benito, 2006).
1100
Sepultura 2 Sepultura 6
Conservavam-se apenas três das lajes que assinala- Junto do limite nascente da escavação, a sul da se-
vam a presença deste enterramento, duas do lado pultura 3, quatro lajes de calcário dispostas em cute-
oeste e uma no topo nordeste, com comprimento lo, com comprimentos entre 40 e 60 cm por cerca de
entre 20 e 60 cm por cerca de 15 cm de largura, ob- 10 cm de largura, e diversos blocos de formas irre-
servando-se ainda uma mancha de terra e da argila, gulares em torno de 15 cm, correspondem ao limite
com cerca de 2,60 m de comprimento por 80 cm de poente de uma provável estrutura funerária que se
largura, que cobria a vala de inumação escavada na prolonga para fora dos limites da escavação.
rocha calcária, no interior da qual se conservavam
vestígios do enterramento. Sepultura 8
A estrutura de sinalização é constituída por blocos e
Sepultura 3 calhaus que delimitam um perímetro aproximada-
Trata-se de uma estrutura composta por lajes dis- mente trapezoidal, ligeiramente mais largo no topo
postas em cutelo com dimensões muito variáveis, a sudoeste, local onde foi disposto um bloco ligeira-
maioria entre 35 e 50 cm e uma com 75 cm, com es- mente maior e com forma mais regular que os res-
pessuras em torno de 10 a 20 cm e por pequenos blo- tantes, ainda que provavelmente corresponda a um
cos de calcário com formas mais irregulares. Assen- elemento natural, ou seja, não parece ter sido apa-
tam no piso de circulação e delimitam um perímetro relhado para o efeito. Estes materiais pétreos apre-
trapezoidal, ligeiramente mais largo no topo nordes- sentam dimensões variadas, entre 20 e 50 cm, e as-
te onde uma das lajes se destaca pela grande quanti- sentam numa camada de argila que acompanha todo
dade de fósseis marinhos que lhe conferem um aspe- o comprimento da sepultura, mas que tem largura
to singular. O seu interior encontrava-se preenchido maior que o perímetro definido pelos blocos, prolon-
por argila que cobria as terras de preenchimento da gando-se para oeste numa extensão total de 1,20 m8.
vala de inumação, aberta no substrato calcário e con- Esta sepultura é, assim, constituída por uma vala
servando alguns vestígios esqueléticos. com 1,90 cm de comprimento e, pelo menos, 1,20 m
de largura, com degrau lateral na parede sudeste na
Sepultura 4 qual foi aberta uma fossa com 30 cm de largura para
No canto sudeste da área de escavação foi identifi- acomodar o corpo, posteriormente fechada a poente
cado um depósito constituído por nódulos de argila com recurso a elementos de cerâmica retangulares,
amarela, do qual são visíveis apenas 70 cm de com- semelhantes a tijoleiras dispostas na vertical9. Estas
primento e 1,10 m de largura máxima, uma vez que peças são pouco consistentes e apresentam um esta-
este contexto se prolonga sob os limites sul e nas- do de conservação bastante frágil, em consequência
cente da área aberta. A sua proximidade à superfí- das características da pasta utilizada e de uma coze-
cie, e a coincidência como uma área de caminho em dura muito rudimentar.
uso no início da intervenção, poderão explicar a não Do nicho lateral abobadado, que terá sido original-
conservação dos elementos pétreos que porventu- mente escavado na rocha para acolher o corpo, ape-
ra fariam parte da estrutura original e delimitavam nas se conservaram cerca de 20 cm em cada uma
aquela mancha de argila. das suas extremidades, junto dos pés e da cabeça. A
natureza pouco consistente do calcário naquela área
Sepultura 5 e a presença de uma bolsa natural de argila poderão
Um conjunto de quatro blocos de calcário dispos-
tos em cutelo, o maior deles com 50 cm de largura
por 10 cm de largura, indicam os limites nordeste,
8. Uma vez que esta estrutura funerária coincide com o cor-
poente e nascente de uma estrutura que conserva no
te nascente da área de escavação, não foi possível confirmar
seu interior um depósito com argila. Este, é observá- os limites desta mancha de argila.
vel numa extensão com largura máxima de 90 cm e
9. Tratam-se de peças alinhadas no comprimento da vala de
1,90 m de comprimento, prolongando-se sob o corte
inumação, com cerca de 50 cm de altura e 10 de largura. Fo-
sul da área de escavação, devendo corresponder à ram produzidas com pasta pouco plástica, com muita areia,
estrutura de sinalização de um enterramento. cozida de forma muito rudimentar, e por isso muito frágil ao
toque, apresentando problemas de conservação.
1102
islâmicos. Todavia não foi identificado qualquer mária com o crânio orientado para Sul e a face orien-
vestígio material de lençol ou mortalha. tada a Sudeste. Apesar da provável rotação dorsal do
O índice de conservação do esqueleto era pobre, ain- corpo após a sua deposição, o indivíduo terá sido ori-
da que conservava preservados ossos de várias re- ginalmente depositado em decúbito lateral direito.
giões anatómicas. De salientar que o crânio embora Embora os ossos estejam muito mal preservados e os
completo, encontrava-se muito fragilizado, pelo que membros inferiores estejam ausentes, a orientação
foi necessário proceder a trabalhos de conservação e da sepultura e do restante esqueleto presente indi-
de consolidação no local, de modo a minimizar e im- cam que estariam orientados para Norte. O braço di-
pedir a sua total fragmentação. Os agentes tafonómi- reito encontrava-se estendido e o esquerdo fletido a,
cos causadores deste estado de conservação foram de aproximadamente, 90º. Não apresentava qualquer
origem bio orgânica, nomeadamente raízes no solo, espólio associado. A sepultura não foi reutilizada.
ou a composição orgânica do mesmo (Micozzi, 1991). As articulações persistentes encontravam-se fecha-
Dada a fragilidade de conservação dos ossos huma- das (i.e., em continuidade anatómica direta) e as
nos na sepultura 2 não foi possível registar vestígios lábeis ligeiramente abertas (i.e., sem continuidade
de traços morfológicos do esqueleto, seja recorrendo anatómica direta resultante de movimento pós-de-
a medidas osteométricas ou à observação de caracte- posicional). Esta disposição das articulações é con-
rísticas não métricas, ou seja, os caracteres discretos. sistente com a inumação em mortalha (apesar de não
A diagnose sexual do indivíduo, proposta como sen- ter sido recuperado qualquer tecido) como expectá-
do masculino, baseia-se no aspeto medial do ramo vel nos ritos funerários islâmicos (Duday, 2006).
isquiopúbico direito (Bruzek, 2002), bem como a A análise paleobiológica encontra-se também condi-
observação morfológica que foi possível efetuar no cionada pelo pobre estado de preservação dos ossos.
crânio aquando da escavação. Não obstante, considerando que todas as epífises pre-
Quanto ao cálculo da estatura do indivíduo, tam- servadas se encontravam integralmente fundidas, o
bém o nível de conservação dos ossos inviabilizou indivíduo depositado nesta sepultura seria um adulto
a sua obtenção exata. Todavia, a observação do com mais de 25/30 anos de idade à morte (Schaefer
comprimento total do esqueleto no terreno apontou et al, 2008). As características morfológicas crania-
para uma estatura relativamente baixa para um in- nas são consistentes com o sexo masculino (Buiks-
divíduo do sexo masculino. tra e Ubelaker, 1994). Em termos paleopatológicos,
Em termos de estimativa de idade à morte, a obser- destaca-se a presença de patologia degenerativa não
vação da união de todas as epífises dos ossos obser- articular na coluna vertebral (i.e., espigas laminares
vadas, permitiram perceber que se tratava de um em vértebras torácicas), tártaro, cáries dentárias e
indivíduo adulto (Brothwell, 1981), provavelmente perda ante-mortem de dentição. Para além destas
com mais de 25/30 anos, uma vez que a fusão da ex- patologias já referidas, o crânio deste indivíduo apre-
tremidade esternal da clavícula estava já completa sentava um aspecto muito patológico com algumas
(Maclaughlin, 1990). A metamorfose da face da sín- zonas muito hipervascularizadas, tanto na tábua in-
fise púbica direita (Suchey e Brooks 1990, a observa- terna, como no díploe e afectando também a parte
ção das extremidades das costelas esternais (Iscan externa. A lesão encontra-se contida numa zona do
e Loth, 1989), e o facto de não se observarem quase crânio, na ligação do frontal com o parietal e no occi-
nenhumas alterações degenerativas no esqueleto, pital. É possível ver crescimento de osso novo poró-
corrobora esta hipótese e sugere tratar-se de um tico e lesões osteolíticas. Como diagnóstico diferen-
adulto relativamente jovem. cial podemos estar na presença de uma neoplasia,
Ao nível das patologias, o estado de conservação do por exemplo o mieloma múltiplo que afecta mais os
esqueleto não permitiu observar lesões graves do homens, no entanto também afecta a mandíbula, a
ponto de vista degenerativo, traumático, infecioso ou ulna, o rádio, a escápula, a clavícula (Strouhal, 1991)
oral. Também nenhum indicador de stress foi identi- e no caso deste enterramento nenhum destes ossos
ficado ou possível de observar. Deste modo a causa apresentava alterações, no entanto tirando as claví-
da morte do indivíduo foi impossível de determinar. culas os restantes ossos encontravam-se muito frag-
mentados o que pode ter dificultado esta observação
Sepultura 3 ou uma patologia infeciosa. No entanto as lesões en-
A sepultura 3 continha um indivíduo em posição pri- docranias podem ser muito inespecíficas, sendo por
1104
destinados ao estudo do Alcorão, acolhendo pessoas na mesma área se encontra também documentado
piedosas que vivem e são sepultados no local e que em necrópoles coevas identificadas em outros sítios
estará na génese de alguns sítios de rubut (Torres desta região, tais como no Telhal (Granja, Pombal e
Balbás, 1970, p. 237 e 240; Fierro, 2000, p. 186). Godinho, 2009) ou no Arneiro, em Cascais (Cardo-
Nos últimos anos assistimos em Portugal a um sig- so, Encarnação, Rodrigues e Pereira, 2022).
nificativo incremento do conhecimento sobre o De igual modo, também na Ponta da Atalaia as inu-
mundo funerário islâmico, grandemente decorren- mações se efetuaram em fossas com o espaço es-
te de ações de caráter preventivo, aspeto que natu- tritamente necessário à deposição dos corpos, em
ralmente se reflete depois no conhecimento produ- decubitus lateral direito e alinhados nordeste-su-
zido, não obstante terem aumentado o número de doeste, com a cara voltada a sudeste e sem espólio
publicações, destacando-se o trabalho de síntese de associado12. A sua sinalização é também relativa-
Raquel Gonzaga (2018). mente discreta, recorrendo-se a materiais disponí-
No caso específico da região de Lisboa encontram- veis no local para compor estruturas simples de ter-
-se mapeados nove destes espaços funerários (Gon- ra e pedra, ainda que no sítio do ribat da Arrifana se
zaga, 2018; Cardoso, Encarnação, Rodrigues e Pe- observe uma maior diversidade na sua composição,
reira, 2022), relacionados com a cidade e com o seu que poderá refletir diferenças de estatuto social dos
espaço rural, neste último caso por vezes podendo inumados, para além de terem sido identificados
ser associados aos respetivos núcleos habitacio- vários casos de lajes usadas como estela de sinali-
nais, ou encontrando-se mesmo implantados junto zação, duas delas contendo inscrição (Gomes e Go-
às ruínas de edifícios romanos, como se verifica no mes, 2019, p. 346 e 350).
Telhal, em Sintra (Ferreira, 2009; Granja, Pombal e Quanto à localização dos almocávares, importa des-
Godinho, 2009). tacar que no caso da Arrifana, na costa algarvia, este
É certo que, não obstante a necessidade de con- foi inicialmente estruturado dentro do espaço do
fronto com a realidade regional, conforme se viu, ribat, delimitado por um muro que, mais tarde, foi
o sepultamento em contexto de ribat pode assumir alargado para zona aparentemente mais periférica
algumas particularidades, desde logo pela maior e afastada da arriba e do espaço presumivelmente
proximidade com os espaços dos vivos e pela pos- de acesso mais condicionado. Ao invés, no Alto da
sível relação com a sepultura de um fundador ou Vigia, os enterramentos encontram-se numa área
homem piedoso. Assim, na análise dos contextos localizada no extremo da plataforma, separados da
do Alto da Vigia devemos prestar especial atenção arriba sobranceira ao mar apenas pelo conjunto de
ao único sítio com o qual é possível estabelecer esse edifícios descritos atrás, desconhecendo-se por en-
paralelismo na Península Ibérica, o ribat da Arrifa- quanto como seria delimitado aquele espaço a nas-
na, já que nas Dunas de Guardamar, o outro local cente, a norte ou a sul. Neste ponto, deve referir-se
desta tipologia escavado em solo peninsular, apesar que na área da necrópole, envolvidos pela duna que
da considerável área já intervencionada, não foram cobriu o sítio após o seu abandono, se registaram
ainda identificados vestígios de necrópole (Azuar alguns depósitos de telha e material de construção
Ruiz, 1989, p. 194). com características de derrube que poderão teste-
Com efeito, as sepulturas identificadas no sítio do munhar a presença de edifícios na área ainda soter-
Alto da Vigia encontram paralelos próximos na ne- rada a sudeste, que assim delimitariam este espaço
crópole do ribat da Arrifana (na Ponta da Atalaia, também a nascente.
Aljezur), desde logo na proximidade do espaço fune- Para além das similaridades já apontadas com o al-
rário com os edifícios religiosos, ou o sepultamento mocávar do ribat da Arrifana, podemos afirmar que,
de adultos e de crianças11 no mesmo espaço, este de um modo geral, as técnicas e gestos fúnebres re-
último aspeto relevante por testemunhar condições gistados no caso de Sintra não se diferenciam do pa-
particulares da vivência neste tipo de sítios onde se drão reconhecido para as necrópoles do Garb al-An-
acolheu também população mais jovem. Atente-se
que o sepultamento de homens, mulheres e crianças
12. Na Arrifana identificaram-se três sepulturas orientadas
norte-sul, portanto, divergentes do eixo canônico islâmico e
11. Na Arrifana documentou-se também a presença de en- interpretadas como possíveis evidências de enterramentos
terramentos de mulheres. de cristãos (Gomes e Gomes, 2019, p. 345).
mação de não adultos neste espaço. CATARINO, Helena (2004) – Breve sinopse sobre topóni-
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do sítio demonstrou, como se viu, uma diacronia en- CATARINO, Helena (1997-98) – O Algarve Oriental durante
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1106
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Figura 1 – Mapa da península de Lisboa e a sua localização na península Ibérica, com a implantação do Alto da Vigia e dos prin-
cipais sítios referidos no texto. 1) Alto da Vigia, 2) Horta do Pinheiro 5, 3) Xancra II, 4) Ribeira de São Domingos 1, 5) ribat da
Arrifana, 6) ribat das Dunas de Guardamar, 7) Colares, 8) Sintra, 9) Telhal, 10) Tapada do Inhaca, 11) Rossio Pelado, 12) Arneiro.
1108
Figura 2 – Planta dos vestígios de época romana e islâmica postos a descoberto no Alto da Vigia até 2022 com a indica-
ção da numeração dos contextos funerários.
1110
Figura 4 – Aspeto do topo das sepulturas 1 e 7 (a); pormenor da sequência de depósitos de preenchimento da sepultura 7
(b); e corte transversal das duas sepulturas após escavação.
1112
Figura 6 – Aspeto dos vestígios osteológicos humanos conservados nas sepulturas 2 (a), 3 (b) e 8 (c).
6 170 70
7 130 65 38 98 20 50 NO NO NO NO
8 225 130 22 190 30; 68 Indeterminado Adulto NO Patologia infeciosa: fémur
120 esquerdo.
Patologia oral: tártaro
subgengival
9 120 120
10 150 75
Figura 7 – Tabela síntese com principais dados sobre as estruturas funerárias e respetivos vestígio osteológicos humanos con-
servados. As medidas são indicadas em cm e NO refere-se a parâmetros e dados Não Observáveis.
1114
O INÉDITO PAVIMENTO CISTERCIENSE
DA CIDADE DE ÉVORA
Ricardo D’almeida Alves de Morais Sarmento1
RESUMO
No decorrer da intervenção arqueológica no antigo Paço dos Condes de Sortelha, em Évora, foram encontrados
vários fragmentos de um pavimento tardo-medieval de tipologia cisterciense.
A existência destes pavimentos é rara em Portugal, tendo sido identificados em Alcobaça, Leiria, Lisboa e Sintra.
Neste sentido os exemplares eborenses são os primeiros a serem encontrados a sul do rio Tejo.
O conjunto caracteriza-se por 47 fragmentos que protagonizam nove lajes de pavimento, não estando nenhuma
in situ. Tratam-se de peças com distintas formas e dimensões tendo à superfície vários vestígios de terem sido
cobertas por um engobe vermelho não vidrado.
Esta investigação pretende divulgar este conjunto fazendo uma análise comparativa em relação à sua cronolo-
gia, forma e contexto arquitectónico.
Palavras-chave: Pavimento; Cisterciense; Évora; Tardo-Medieval.
ABSTRACT
During the archaeological intervention in the former Paço dos Condes de Sortelha, in Évora, several fragments
of a late-medieval pavement of Cistercian typology were found.
The existence of these pavements is rare in Portugal, having been identified in Alcobaça, Leiria, Lisbon and
Sintra. In this sense, the examples from Évora are the first to be found south of the Tejo River.
The set is characterized by 47 fragments that feature nine floor slabs. These are pieces of different shapes and
sizes, with several traces of having been covered with an red engobe on the surface.
This investigation intends to investigate this set by making a comparative analysis in relation to its chronology,
form and architectural context.
Keywords: Floor; Cistercian; Évora; Middle Ages.
1116
Santiago que tem como orago o Apóstolo Sant’Iago, Referente aos séculos XVII e XVIII não existem in-
patrono da Reconquista (REI, 2012: 126) (Fig. 02). formações sobre alterações e acrescentos ao Paço.
Em 1418 D. João I (1357-1433) concede “um pedaço Em 1881 o edifício foi comprado por José Carlos Gou-
da cava da cerca velha”. Esse troço ficava no lado in- veia (1844-1908), à data presidente do Município,
terno da antiga muralha romana e entre a Porta Nova para aí instalar os Paços de Concelho. Infelizmente
e a antiga Porta do Talho do Mouro, sendo que esta esta adaptação resultou na profunda adulteração do
última foi renomeada para Porta D. Isabel durante o espaço e consecutiva destruição de praticamente to-
século XVI. Esta mudança de nome está associada à dos os elementos de valor artístico e arquitectónico
lenda de que neste palácio teria nascido a filha Isabel (ESPANCA, 1966: 250).
(1397-1471) de D. João I, motivo pelo qual se teria re-
nomeado antiga porta na muralha romana. 3. DESCRIÇÃO
No ano de 1450 Nuno Martins da Silveira (1390-1453)
recebe esta propriedade pelo Rei D. Afonso V (1432- O conjunto é composto por 47 fragmentos que pro-
1481) descrevendo como uma casa que foi “funda- tagonizam nove tijoleiras de diferentes dimensões
das onde chamam o castelo velho (…) que a dita torre e formatos. Em termos formais organizam-se se-
se mostra segundo sua feiçom se servir para o dito gundo três grupos, sendo o primeiro constituído por
castello e do castello para ella”. Esta nomenclatura tijoleiras de formato rectangular, o segundo grupo
de “castelo velho” está associada à existência de contém peças de formato triangular e finalmente o
uma grande torre militar que se encontra enquadra- último grupo é composto por uma peça de formato
da no Mosteiro do Salvador, aos vestígios da mura- trapezoidal (Fig. 03).
lha romana que na época ainda eram visíveis, e aos As tijoleiras rectangulares são constituídas por seis
vestígios das antigas termas romanas. A associação a exemplares, tendo uma dimensão de aproximada-
um antigo castelo foi reforçada com a construção de mente18 cm de largura por 22 cm de comprimento
uma torre com três andares construída sobre o an- e uma espessura de 2,5 cm. A pasta é de tonalida-
tigo Laconicum e aproveitando a estrutura romana. des claras com uma textura muito arenosa, apre-
Por volta deste período, ainda que não se saiba a data sentando como materiais não plásticos restos de
exacta da sua origem, existe a lenda de que este te- conchas trituradas, quartzo, sílica, entre outros e
ria sido o local onde teria vivido Quinto Sertório (122 denunciando como provável centro de produção a
a.C.-72 a.C.). André de Resende (1498-1572) muito zona de Lisboa ou Leiria. As arestas foram regula-
fez para ampliar esta lenda ao anunciar a “descober- rizadas manualmente, mas de forma cuidada. Uma
ta” de epigrafia que faria directa referência ao im- das tijoleiras apresenta uma coloração avermelhada
portante general romano. Apesar de se saber que as ao centro, tendo os limites da mesma com a mesma
referidas epigrafias foram uma falsificação da época, cor que as demais.
permanece a dúvida sobre se tiveram inspiração em A superfície apresenta-se muito desgastada pela
alguma peça original que aí tenha sido encontrada intensa utilização que sofreu, no entanto, conserva-
(BILOU, 2020: 64-68). -se em todas elas, em maior ou menor quantidade,
Com todo este conjunto de mitos, histórias, lendas vestígios do original engobe que foi aplicado sobre a
e vestígios arquitectónicos que remetiam para o pe- tijoleira. Este engobe é de coloração vermelha, não
ríodo romano não é de estranhar a intenção em criar era vidrado e apresenta sinais de ter sido aplicado
um “restauro” do lugar assumindo uma linguagem uniformemente sobre a tijoleira, bem como em al-
clássica. Nesse sentido em 12 de Março de 1529 co- gumas das laterais.
meçaram as grandes obras no Paço, do qual apenas No grupo das tijoleiras triangulares foram recolhi-
sobrevive a capela que ocupa o antigo Laconicum dos dois exemplares. O que se conserva em melhor
(CHICORRO, 1996: 59). Tendo mantido a planta estado de conservação tem uma dimensão de 12cm
circular e a volumetria original do espaço, foi cons- de altura por 8,5cm de largura na zona mais larga, já
truído um tecto em abóbada abatida polinervurada não se conservando nenhum dos cantos da mesma.
com várias mísulas e frisos ao gosto renascentista. É É a peça que conserva melhor o original engobe, es-
neste conjunto arquitectónico que estava inserido o tando ainda visível em toda a sua superfície. As la-
importante retábulo em mármore da autoria de Ni- terais foram regularizadas a bisel antes do processo
colau de Chanterene (1470-1551). de cozedura, demonstrando um grande cuidado na
1118
mamente desgastada, é possível observar nas fases os vários materiais recolhidos encontrava-se um
laterais que originalmente estavam cobertos por um conjunto de cinco tijoleiras vidradas a verde com
vidrado sem óxidos corantes conferindo-lhes um um formato triangular isósceles e com dimensões
efeito “envernizado”. de aproximadamente 25 cm de altura e cerca de cin-
Actualmente exposto no Núcleo Museológico, e ten- co centímetros de espessura. As faces laterais foram
do sido retirados do seu local original nas interven- regularizadas com recurso a bisel e a pasta utilizada
ções de 1930/50, existe um importante pavimento apresenta uma cor branca composta pela mistura de
medieval que tinha sido originalmente aplicado no barro e cal tendo vários nódulos calcários (TRIN-
Paço mandado construir por D. João I (Fig. 06). DADE, 2007: 206).
Em termos formais distingue-se bastante do exemplo As suas características morfológicas apontam para
anterior, existem quase 20 formatos diferentes de ti- peças de grande qualidade técnica e com visíveis se-
joleiras abrangendo formas simples com triângulos, melhanças com alguns exemplares de Alcobaça. Em
quadrados e rectângulos, até formas mais complexas termos cronológicos os dados arqueológicos apenas
como estrelas de várias pontas, alfradons recortados permitem confirmar que se tratam de peças anterio-
e trapézios. As dimensões variam entre os 5cm nas res às reformas que D. João I fez no palácio, ou seja,
peças mais pequenas e aproximadamente 15cm nas anteriores à primeira década do século XV.
maiores, tendo uma espessura de aproximadamente O último local no qual se identificou um pavimento
2cm. Em termos de tratamento de superfície todas as que se insere nesta tipologia é o caso da Sé de Lis-
peças estão cobertas por um vidrado com cores que boa. Na capela mandada erguer por Estevão Domin-
variam entre o roxo manganês, o verde cobre e o me- gues em 1305, localizada no claustro, conserva-se
lado férrico. (TRINDADE, 2007: 205). um pavimento constituído por tijoleiras quadradas
Em termos comparativos estes dois pavimentos não de 4cm de lado existindo umas maiores que apre-
aparentam partilhar a mesma cronologia, nem zona sentam 7cm de lado (MECO, 1993: 186). Em termos
de produção. No primeiro caso as tijoleiras apresen- cromáticos apresentam cores como o verde turque-
tam uma maior espessura bem como um tratamento sa, branco e manganês, não tendo nenhuma delas
de superfície muito mais simples e que em tudo se elementos decorativos (TRINDADE, 2007: 207). Em
aproxima do caso de Alcobaça. No segundo as pe- termos formais apresentam semelhanças com o pa-
ças tem uma pasta mais depurada, são mais finas e vimento da Igreja de Nossa Senhora da Pena em Lei-
apresentam já várias colorações de vidrado. A com- ria. A diferença substancial que existe entre ambas
posição também apresenta diferenças substanciais, é o vidrado aplicado sobre a chacota, sendo que ao
sendo que o pavimento da Igreja de Nossa Senhora contrário da Sé de Lisboa o pavimento de Leiria não
da Pena é formado apenas por tijoleiras com dois for- tem quaisquer vestígios de ter tido pigmentação.
matos distintos resultando em padrões de uma gran- Em conclusão a presença de tijoleiras que faziam
de simplicidade. No caso do pavimento do Paço D. parte de um pavimento de tipologia cisterciense em
João I existe uma maior variedade de formatos e for- Évora revela-se como um caso de suma importância
mas de combinação entre eles. As composições apre- para o tema pois trata-se do primeiro caso identifica-
sentam uma clara mistura entre a influência Gótica do tanto no Alentejo como a Sul do Rio Tejo.
e Islâmica, algo que remete muito para uma lógica
Mudéjar. Perante isto é de se supor que o pavimento 5. COMPOSIÇÃO
da Igreja de Nossa Senhora da Pena deverá ser con-
temporâneo da reconstrução do edifício devendo Mais do que uma simples noticia da descoberta de
datar de 1380/90, estando por isso associado às cam- um pavimento de tipologia cisterciense em Évora,
panhas arquitectónicas de D. João I, enquanto que o ou a relação geográfica que estabelece com os res-
pavimento do Paço deverá ser dos finais do século tantes casos conhecidos e a suma importância que
XV estando associado às campanhas de D. Manuel. isso acarreta, importa igualmente tentar compreen-
Durante a década de 80 foi realizada uma inter- der a sua composição e características decorativas.
venção arqueológica na actual bilheteira do Palácio Em termos de composição do pavimento muito pou-
Nacional de Sintra, tendo-se identificado três silos co se pode aprofundar pelo facto de não existir ne-
medievais que continham uma grande quantidade nhuma tijoleira in situ e terem sido todas exumadas
de materiais arquitectónicos no seu interior. Entre de contexto arqueológico. Ainda assim é importante
1120
de relevo combinados por um enchimento em engo- tectónicos associados ao local da descoberta, torna-
be vermelho. -se fundamental não só analisar as tijoleiras, como
tentar estabelecer relações de similaridade/dissimi-
6. CRONOLOGIA litude com os restantes exemplos de pavimentos c
istercienses em Portugal.
A análise cronológica do objecto de estudo depara- Em termos morfológicos uma importante informa-
-se com a problemática da inexistência de elemen- ção que foi possível recolher depois da montagem
tos que estejam conservados in situ e com a raridade dos vários fragmentos é as dimensões que as tijolei-
desta tipologia de pavimentos em Portugal. ras tinham. Estas medidas correspondem ao antigo
As primeiras indicações em termos de datação são Palmo, considerada a unidade-base, que foi utiliza-
provenientes do contexto em que as peças foram en- da durante a Idade Média e tendo sido substituída
contradas. Considerando que esta tipologia de pavi- através das reformas de D. Manuel I (1469-1521) que
mento é algo directamente relacionado com a arte ocorreram entre 1499 a 1504. Esta informação per-
cristã e que a cidade de Évora só foi reconquistada mite deduzir que se tratam de peças anteriores ao
em 1165 então não deverá ser anterior aos finais do final do século XV, algo coerente com esta tipologia
século XII (REI, 2012: 119). de tijoleiras e com a estratigrafia identificada (BAR-
No espaço em que foram encontradas as tijoleiras, ROCA, 1992: 54).
para além dos vestígios do Laconicum e da respecti- No campo do formato das tijoleiras o exemplo da ti-
va Capela renascentista, existem dois elementos que joleira em triangulo isósceles, com as suas arestas bi-
não se conectam com nenhuma destas funções. O seladas, permite criar relações de similaridade com
primeiro é um conjunto de duas portas góticas com outros locais. Este exemplar apresenta fortes simi-
arco em ogiva, sem imposta, que se encontram em laridades com o caso da Abadia de Alcobaça e com
lados opostos do espaço. Estas peças graníticas não as peças do Palácio Nacional de Sintra. No entanto a
apresentam elementos decorativos, mas demons- grande diferença encontra-se na técnica decorativa
tram um grande cuidado de execução, devendo ser utilizada, enquanto que em Alcobaça e Sintra as tijo-
datados entre o século XIV e XV. O segundo elemento leiras foram cobertas com um vidrado verde, no caso
é um fresco que se encontrava ocultado pelas portas Eborense foi aplicado apenas um engobe vermelho.
góticas e que foi descoberto nas obras de consolida- Esta diferença não é significativa do ponto de vista
ção e restauro em 2016. Contem uma representação cronológico pois ambas as técnicas eram utilizadas
geométrica, remetendo para o tema da heráldica, durante os séculos XIII e XIV.
consistindo numa faixa vertical subdividida em três No grupo das tijoleiras rectangulares, o seu forma-
faixas, estando pintadas a azul, branco e vermelho. to não permite fazer uma análise comparativa, da
Está aplicado directamente sobre o cunhal de um mesma forma que a técnica de figura impressa não
dos nichos do Laconicum denunciando que se trata- apresenta paralelismos conhecidos em Portugal. Em
rá de uma das primeiras, se não a primeira, grande termos cronológicos é importante referir que esta
intervenção arquitectónica no espaço. Importa ainda técnica, apesar de ter surgido em Inglaterra em 1230,
referir que terá de forçosamente ser anterior à colo- teve o seu grande desenvolvimento e utilização um
cação das portas em ogiva o que o coloca como uma pouco por toda a Europa durante o séc. XIV (TRIN-
obra provavelmente atribuível ao século XIV. DADE, 2007: 185).
Perante estes elementos, e aliado aos contextos es- Considerando todas as informações relativas tanto
tratigráficos identificados, parece poder-se resumir ao contexto arqueológico e arquitectónico em que
as várias fases construtivas daquele espaço em: cons- foram identificadas, parece ser plausível atribuir
trução das Termas Romanas e criação do Laconicum uma cronologia que estará algures durante o século
durante o início do séc. I d.C.; abandono do mesmo XIV. É igualmente possível deduzir que este pavi-
no séc. V; adaptação do espaço a função de habitabi- mento tivesse alguma relação com o fresco encon-
lidade durante os finais do séc. XII; dignificação do trado por detrás do arco em ogiva, pelo que deve
espaço e adição de elementos decorativos durante corresponder a uma campanha arquitectónica de
o séc. XIV; adaptação a capela privada do Paço com valorização do espaço que se registou nesse período.
projecto de total renovação do espaço no séc. XVI. Perante esta atribuição cronológica, e comparando
Tendo-se concluído a análise dos elementos arqui- tanto com os exemplares de Sintra, como com o caso
em Évora e os restantes exemplares conhecidos per- MARTINHO, Ana (2014) – “Mosteiro de Santa Maria de Al-
mitiu deduzir que se trata de um caso único a nível cobaça. Contributos para a história do restauro da Igreja e da
nacional por ser a primeira vez que se identificam Sacristia Nova (1850-1960)”, Várzea da Rainha Impressores,
tijoleiras em técnica de figura impressa. Em termos Óbidos.
geográficos foi ainda a primeira vez que se regista um MATTOSO, José (2014) – “D. Afonso Heniques”, Círculo de
pavimento de tipologia cisterciense a sul do Rio Tejo. Leitores e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expres-
Em termos cronológicos foi realizada uma relação são Portuguesa da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa.
entre o contexto arqueológico em que as peças fo-
1122
MECO, José (1993) – “O Azulejo em Portugal”, Publicações
Alfa, Lisboa.
1124
Figura 4 – Pavimento cisterciense no deambulatório do Mosteiro de Alcobaça.
Figura 7 – Representação das tijoleiras com marcação de vestígios dos elementos decorativos.
1126
Figura 8 – Esquema do alçado de parte do Laconicum no qual são assinaladas as várias fases construtivas.
RESUMO
A recolha de novas informações sobre a edificação da torre de Almedina, no âmbito de uma intervenção arqueo-
lógica de diagnóstico realizada no edifício n.º 37-39 da rua do Arco de Almedina/Pátio do Castilho, permite
acrescentar aos estudos conhecidos, uma interpretação arqueológica parietal do seu alçado Este. Um paramen-
to revelador de diferentes sequências construtivas, coetâneas com parte dos aparelhos existentes nos outros
alçados da torre e comuns às contíguas Torre da Contenda e de Anto, entre outros exemplos existentes no vale
do Mondego. Evidências que, conjuntamente com outros achados arqueológicos, permitem acrescentar novos
elementos ao debate em torno da fundação e evolução arquitetónica da torre.
Palavras-chave: Torre; Almedina; Coimbra; Arqueologia; Arquitetura.
ABSTRACT
The gathering of new information about Almedina Tower, obtained from a new archaeological approach at
building 37-39 of the Arco de Almedina/Pátio do Castilho street, permits new additions to the known stud-
ies. On its eastern wall, we can see several constructive sequences combined with archaeological remains that
make it possible to add new data to the discussion about the Almedina Tower foundation and its architectural
evolution.
Keywords: Tower; Almedina; Coimbra; Archaeology; Architecture.
1. Arqueóloga. Licenciada pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2003); Pós-Graduação em Arqueologia e Território,
variante de arqueogeografia, pela Faculdade de Letra da Universidade de Coimbra (2012); atual aluna de Mestrado em Arte e Patri-
mónio, Faculdade de Letra da Universidade de Coimbra.
1130
assinalaram estruturas edificadas, apenas camadas A base da torre dista do paramento da que hoje se
de colmatação detentoras de espólio cerâmico das vê no exterior, cerca de 1,10m e apresenta um per-
várias épocas, nomeadamente de uma moeda do fil escalonado, com uma altura mínima de 1,70m na
séc. IV, identificada nos primeiros níveis estratigrá- parte junto ao alçado Sul do edifício (Figura 3). Um
ficos e juntamente com espólio de época moderna recorte coberto com rebocos de cal e areia, caiado
e contemporânea. a branco, mascarando, o que se pode considerar, o
Com a remoção das camadas do século XX, imedia- topo da fundação da torre e cuja base, nesta parte,
tamente se observou o embasamento da torre e o seu fica por se saber qual a sua relação com o maciço
desalinhamento face ao paramento, evidenciando rochoso, por esta se encontrar tapada pela referida
uma rotação de 14 graus da atual posição. Uma es- camada de condenação e a qual se encontra por de-
trutura edificada em pedra calcária argamassada, de baixo da empena Sul do edifício, impossibilitando a
superfície irregular, fruto do saque de pedras de que sua remoção, tendo-se inclusive, feito uma sapata
foi alvo. Ação provavelmente incitada pelas constru- de cimento e pedra, de modo a evitar o colapso da
ções realizadas junto desta parede, cujos vestígios parede. Uma medida preventiva reversível aquando
poderão corresponder aos entalhes de antigas tra- da implementação do projeto de reabilitação, que
ves de madeira, sugerindo a presença de um antigo não só permitirá a visualização total da base da tor-
piso ou de uma cobertura de uma água, a qual não re, como uma melhor compreensão dos contextos
sabemos se contemporânea dos indícios arqueológi- arqueológicos remanescentes.
cos referentes a um patamar de circulação, disposto Dos estratos pertencentes aos horizontes medievais,
sob o nível de condenação composto por pedras de destaque para presença do antigo pavimento em que
médio volume, nódulos de argamassa e fragmentos se encontrou embutida a conduta de águas [05], co-
de material de construção misturados com cerâmica berto pela camada de abandono relacionável com a
comum medieval. Talvez o testemunho arqueológi- construção do edifício. Uma camada com materiais
co das construções constantes no tombo antigo da cerâmicos medievais (século XII) que colmatou um
cidade de 1532, onde se diz que tanto o arco como a patamar de circulação junto da base, assente sobre
torre se encontravam «[…] afogadas por prédios de outras terras que cobriram o estrato com materiais
habitação que já nessa data não seriam recentes […]» osteológicos humanos, associáveis à desaparecida
(Alarcão, 2008:225). igreja de Santa Cristina (século IX). Imediatamen-
Outra justificação para o desmonte da base da torre, te abaixo, dois níveis de terra que taparam a base da
poderá se relacionar com a construção do presente torre, encontrando-se um deles por debaixo do seu
edifício, que por motivos de nivelamento do pavi- alicerce. Ou seja, na parte em que foi possível visua-
mento e verticalização da sua parede Oeste (alçado lizar as pedras fundacionais da torre de Almedina,
da torre), terão desconstruído parte do embasamen- constatou-se que a torre se encontra, parcialmente,
to da torre, correspondendo as pedras constantes construída sobre terra. O que contraria este tipo de
na camada de condenação, ao saque efetuado e por construção militar e das outras torres existentes na
isso, debaixo do alçado Sul do edifício. A ser verdade, cidade, como é exemplo a torre de Anto (Temudo;
significa que as fundações do prédio são anteriores Silva, 2012). Situação que permitiu a descoberta de
ao período contemporâneo. Interpretação reforçada uma “galeria” subterrânea (Figura 4), disposta para-
pela natureza da camada que a cobriu e da qual se re- lelamente à passagem do Arco de Almedina e tam-
tirou fragmentos de tégula, ainda que saibamos que ponada a Sul pela escadaria de acesso sala da verea-
este tipo de material possa surgir em níveis arqueoló- ção4, construída depois de 1755 e que sabemos que
gicos medievais tardios. Por outro lado, os aparelhos substituiu uma anterior erguida em 1736 (Anjinho,
construtivos identificados nas sondagens parietais 2016:272). Um espaço posicionado no enfiamento da
realizadas no rés-do-chão do edifício, cronologica- pequena livraria alfarrabista existente por debaixo
mente, também não são esclarecedores, pois a sua da torre, somente dividida por uma parede meeira e
tipologia construtiva não engloba elementos sufi- com uma ocupação até ao século XX, a julgar pelos
cientes que nos permitam afirmar que se tratam de vestígios visíveis à superfície.
aparelhos construtivos medievais. No entanto, colo-
ca-se a possibilidade de serem reconstruções reali- 4. Escadaria exterior adossada ao alçado Sul da torre de
zadas no período moderno, com pedra aproveitada. Almedina (Figura 2).
1132
No extremo Sul, encontra-se tamponado pelo muro Na fachada orientada para a rua e fachada Sul, a
de suporte da escadaria de acesso à torre. Área com partir do primeiro andar, ainda que tipologicamen-
pouco mais de 3m de altura, sendo visível um arco te iguais, as alvenarias existentes compõem-se por
em abóbada, que se destaca da parede da torre (Fi- pedras calcárias de talhe irregular, colmatadas por
gura 6). Nesta parte são ainda visíveis vários nichos argamassas ricas em cal, contemporâneas das mo-
retangulares em ambos os flancos, que não se perce- dificações ocorridas no século XIX e responsáveis
beu a sua funcionalidade (Figura 7). Toda esta área pela aparência que o prédio ostenta.
encontra-se caiada a branco. Da picagem dos rebocos que ocultavam a parede da
torre, expôs-se o aparelho de pedra calcária dolo-
3. A PAREDE DA TORRE DE ALMEDINA E mítica, visível nas outras fachadas. Portanto, o apa-
AS NOVAS EVIDÊNCIAS DA ARQUEOLOGIA relho construtivo resultante das obras promovidas
DA ARQUITETURA na segunda metade do século XIII (Almeida, 2017:
1457), somente interrompido ao nível do segundo
Tendo como fundamento a identificação dos apare- andar do prédio, por um grande remendo posicio-
lhos construtivos existentes, a fim de compreender nado abaixo do patamar da varanda que assinala o
a orgânica evolutiva da construção e caracterização acesso à antiga sala da vereação. Uma emenda em
do edificado e sua relação com a torre de Almedina, alvenaria miúda, composta por pedra de pequeno
realizaram-se várias sondagens parietais de acordo porte, fragmentos de telha de canudo e tijolo rabo
com as metodologias preconizadas pela arqueologia de andorinha, colmatado por argamassa areno-
da arquitetura, distribuídas pelos vários pisos e com- sa de coloração acastanhada. Um arranjo que não
partimentos do edifício. sabemos se corresponde às obras desenvolvidas
Arquitetonicamente, o edifício apresenta uma lin- durante o reinado de D. João I ou no de D. Ma-
guagem geometrizante, de linhas simplistas, com nuel, a fim de dotar a torre de melhores condições
fachadas marcadas pela regularidade e forma re- à vereação e que lhe conferiram a aparência que
tangular dos vãos e respetivas cantarias em pedra de hoje ostenta; ou se das reformulações do século
Ançã, contendo ainda um óculo circular na fachada XVIII, justificadas pelo elevado estado de degra-
Sul e uma cornija em cantaria fingida no paramento dação em que se encontrava (Anjinho, 2016: 271).
orientado para a rua de acesso ao Pátio do Castilho. As operações de restauro e conservação efetuadas
É um edifício compartimentado por paredes em tabi- pela DGEMN nos anos de 1942/1945/1946 e 1953
que e escadarias em madeira adossadas às paredes. não intervieram na estrutura do edificado, assim
Apesar de demonstrar, à priori, elementos que per- como as obras realizadas pela Câmara Municipal
mitem assinalar uma cronologia enquadrável nas em 2000, a propósito da sua recuperação e adapta-
construções oitocentistas, acredita-se que a sua ção da casa anexa, a fim de se instalar o Núcleo da
edificação poderá ser mais antiga, justificada pela Cidade Muralhada, também não.
tipologia dos aparelhos construtivos constantes No mesmo paramento, mas no patamar abaixo,
nos seus alçados Norte e Sul. Nestes, as sondagens identificou-se um recorte de formato quadrangular,
revelaram alvenarias de pedra calcária ordenada, preenchido por argamassa, pedra calcária miúda
com fragmentos de cerâmica de construção (tijolo e fragmentos de tijolo rabo de andorinha; posicio-
rabo de andorinha e telha de canudo), colmatados nado no encontro da empena Sul do edifício com o
por argamassas saibrosas de tom amarelado. Um cunhal da torre (Figura 8), não visível do lado ex-
tipo de construção comum nas edificações de épo- terior da parede, mas alinhada pelo sulco diagonal
ca moderna e razão pela qual admite-se a possibili- que se vê escavado na sua fachada Sul, em direção
dade destes alçados serem os mais antigos, sendo à porta do adarve. Uma unidade estratigráfica que
ainda visível na parede Norte da casa, ao nível do acreditamos relacionar-se com a problemática do
rés-do-chão, pedras de talhe semelhante às exis- postigo do sineiro5.
tentes na base da torre desconstruída. Uma parede
que se acredita ser meeira com o edifício vizinho,
5. A primeira referência surge num documento de 1419 com
igualmente adossado à parede da torre e que sabe- o termo campenaryo. Um cargo que se manteve ativo até
mos contíguo, no século XV, às “casas de entrada na 1863, segundo o Relatório e Orçamento Municipal (França,
torre” (Anjinho, 2016:278). 2001:224, 228).
1134
XIII, o que não quer dizer que a torre seja desta épo- arco de Almedina da Figura 5 e que J. Alarcão classi-
ca. Mas, curioso é o facto de no paramento alvo de fica como uma alvenaria de silharia miúda, aventu-
apreciação, ser a tipologia que não só encosta ao rando a hipótese de se tratar do “aparelho incerto”
pano da muralha – letra B, como também cobre a atribuído por Vergílio Correia à torre pentagonal do
base da torre – letra C. castelo, erguida por D. Sancho (2008:231); não justi-
Se seguirmos a linha cronológica dos tempos his- ficando a sua presença no alçado oriental, apesar de
tóricos, quando Coimbra é reconquistada em 1064 teorizar se não pertencerá a um paramento da desa-
e entregue a D. Sesnando, a torre de Almedina já parecida igreja de Santa Cristina ou, aos edificados
existia. Fontes documentais pertencentes ao mos- da corte sesnandina, concluindo depois, com indica-
teiro de Lorvão atestam a existência da porta de ção da possibilidade das pedras constantes na base
Almedina em 933, a qual integrava um sistema de- se relacionarem com a primitiva porta de Almedina
fensivo sólido, descrevendo Ahmede Arrazi como (Ibid., 237). Uma construção em que as pedras apre-
“muito forte” (Almeida, 2017:1456). Certo é que a sentam semelhanças com as constantes no aparelho
reconquista só aconteceu ao fim de seis meses de da torre de Anto, de tipologia inserível no período
cerco (Barroca, 1991:101), o que significa que se en- anterior ao século IX e assente no paramento que
contrava bem protegida. Assumir o aparelho assina- se sabe contemporâneo do séc. IV (Temudo, Silva,
lado com a letra B como parte do pano da muralha 2013:973). Ora, partindo desta análise e sabendo a
parece-nos plausível se conjugarmos com a rotação possibilidade de a rotação da torre ter ocorrido no
da torre e tivermos em atenção a interpretação de J. século XII, questionamos se o “aparelho incerto”
Alarcão (2008: 223 e ss). Uma leitura para qual não – letra C, não será contemporâneo ou anterior a D.
só encontramos as evidências arquitetónicas, como Sesnando. Sabemos que Coimbra foi retomada em
podemos afirmar que a torre de Almedina seria mais 878 pelo Conde D. Hermegildo. Um período de vá-
pequena que a atual, justificando a presença de parte rias campanhas militares desencadeadas por D.
do paramento da muralha e a relação estratigráfica Afonso III e que permitiram fixar a fronteira ao longo
com a letra A e talvez entender assim, a passagem do do vale do Mondego, englobando sítios estratégicos
livro do Almoxarifado de 1395 quando afirma ter o como Montemor-o-Velho e Coimbra, contando-se
rei «[…] hua tenda com a dicta porta (a da Almedina) até ao ano mil, três fortificações, entre elas, o castelo
a qual foy tapada cando fezeram a torre nova da dicta de Soure (Barroca, 2004:184,186, 200). Um castelo
porta […]» (apud Almeida, 2017:1456). Citação que com o qual encontramos paralelos para a letra C e
reforça o teorizado por J. Alarcão quando refere a que sabemos ter sido conquistado por D. Sesnando,
criação da atual porta de Almedina, a qual implicou sendo-lhe atribuídos os muros Leste, Sul e Oeste,
a rotação da torre. Uma obra que o autor propõe ter como parte da estrutura sesnandina (Barroca, 1990-
acontecido entre 1116-1117 (2008:226). Data do últi- 91: 102, 105). Um tipo de construção que se observa
mo ataque almorávida, pelo que não se acredita nes- igualmente na vertente oposta à entrada do peque-
sa precisão cronológica, mas que certamente terá no castelo de Penela, entre outros pontos dos seus
sido durante o século XII. Uma cronologia que nos paramentos e que se sabe corresponderem às obras
remete para o período condal ou para os reinados promovidas por D. Sesnando (Ibid., 107 e 108). Pos-
da primeira dinastia. Uma rotação somente possível to isto, cremos ser seguro afirmar que o aparelho
por na sua base se encontrar um corpo edificado su- irregular corresponde ao período pós reconquista.
ficientemente sólido para aguentar essa alteração. Sendo, portanto, a base visível na passagem do arco,
Um raciocínio que justifica a relação estratigráfica por debaixo deste, anterior e muito provavelmente
entre o aparelho A e C, inserindo-se o primeiro nas contemporâneo da base da torre de Anto.
tipologias construtivas medievais, com silhares mais Paralelamente à leitura parietal, soma-se a presença
estreitos e de formato retangular, sugerindo um da “galeria” subterrânea. Uma estrutura que con-
aparelho em isódomo, o qual poderá marcar o ter- sideramos ser posterior à rotação da torre, ou seja,
ceiro momento de edificação da torre enquadrável após o século XII. Temporalidade na qual se alcan-
nos século XII-XIII. O que pressupõe que o aparelho çou um longo período de paz na cidade, possibilitan-
da letra C será anterior ao período condal. Constru- do a fixação de casarios ao longo dos panos da mu-
tivamente ostenta semelhanças com os aparelhos ralha/torres e de que é exemplo o assento de 1145,
existentes nos setores B dos alçados da passagem do onde consta que a sé possuía um forno acima da
1136
Figura 1 – Localização da torre de Almedina na cortina muralhada da cidade.
1138
Figura 3 – Base da torre de Almedina e o alçado da empena Sul do edifício com a marcação do perfil da base da torre.
1140
Figura 6 – “Galeria” subterrânea: a. Acesso e parede meeira; b. Muro de sustentação da escadaria de acesso à
câmara da vereação; c. Parede sul da torre de Almedina.
1142
Figura 9 – Levantamento do alçado Este da torre de Almedina.
RESUMO
Apresentam-se os resultados do estudo das unidades [2233] e [2236] da habitação 6 do bairro islâmico da Praça
da Figueira (Lisboa), correspondentes ao contexto de uso da cozinha. Pretende-se dar a conhecer as diferentes
formas e tipologias de cerâmica que compõem este conjunto maioritariamente enquadrado nos finais do século
XI e primeira metade do século XII, bem como reforçar algumas teorias em relação à cronologia e forma de
abandono do bairro.
Palavras-chave: Cerâmica islâmica; al-Ushbuna; Garb al-Andalus; Reconquista; Período Medieval.
ABSTRACT
This article presents the results of the study of the layers [2233] and [2236] identified in the house 6 of the islamic
neighborhood located in Praça da Figueira (Lisbon), which correspond to the context of usage of its kitchen.
We pretend to show the diferent forms and types of pottery that compose this group, mostly related to the end
of the eleventh century and first half of the twelfth century, as well as reinforce some theories concerning the
cronology and form of its abandonment.
Keywords: Islamic pottery; al-Ushbuna; Garb al-Andalus; Reconquista; Medieval Ages.
1. Mestrando em Arqueologia pela Faculdade de Ciência Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa /
[email protected]
1146
poderá ser suportado por alguns elementos cerâmi- exemplares. Destaca-se também a presença de dois
cos apresentados de seguida. indivíduos com decoração de corda seca parcial.
A cozinha da habitação 6 (figura 3) foi identificada
durante os trabalhos arqueológicos pelo facto de 3.2. Fabricos
apresentar um forno de argila (tannur), que já se en- Foi realizada uma análise macroescópica a todos os
contrava reduzido a massa informe de barro cozido. indivíduos identificados anteriormente, com vista a
Associados a esta estrutura encontravam-se os de- estabelecerem-se grupos de fabrico. A sua atribui-
pósitos [2233] e [2236], correspondentes à última fase ção teve em conta os seguintes critérios: presença,
de uso deste espaço. No canto desta divisão encon- tamanho e percentagem de elementos não plásticos;
trava-se uma mó de grandes dimensões. presença de quaisquer vácuos, fendas, fissuras ou
cavernas; cor (segundo a tabela Munsell, conjugada
3. A CERÂMICA com observação empírica), textura, tato e dureza da
pasta. Esta análise permitiu a criação de 9 fabricos
A quantificação cerâmica foi realizada com base no distintos, sendo 5 relativos a cerâmica com superfí-
modelo de número de fragmentos e número mínimo cies não vidradas, e os restantes 4 a vidradas.
de indivíduos (NMI). A contagem do número mínimo
de indivíduos teve em consideração os fragmentos de 3.2.1. Fabricos de produções não vidradas
bordo, fundo, carena, colo e asas. Em casos pontuais, O fabrico F1 corresponde ao fabrico mais presente
foram também considerados elementos relaciona- no conjunto, tendo sido identificado na esmagadora
dos com o fabrico ou decoração que permitiam dis- maioria dos indivíduos (87%). Apresenta uma tex-
tinguir e individualizar um fragmento dos restantes. tura geralmente homogénea e compacta, dura e de
Analisaram-se 199 fragmentos, tendo-se obtido um tato grosseiro. A tonalidade da fratura varia, geral-
número mínimo de 54 indivíduos. Estas unidades, mente, entras as cores laranja e castanho-claro, sen-
com destaque para a [2233], apresentavam peças do comum a atribuição das cores 5 YR 7/8 – reddish
com bom grau de preservação, tendo-se recolhido 6 yellow; 5 YR 8/4 – pink e 5YR 7/6 – reddish yellow aos
peças com perfil completo. indivíduos deste fabrico. Relativamente aos elemen-
tos não plásticos, o fabrico F1 carateriza-se pela pre-
3.1. Decoração sença frequente de mica prateada (moscovite), de
Relativamente à decoração, a quantificação aplica- pequena a grande dimensão, elementos quartzosos
da ao número total de fragmentos indica que cerca (quartzo translúcido e hialino) de pequena a grande
de 71% dos fragmentos se apresentavam sem qual- dimensão, geralmente frequentes, e elementos de
quer indício de decoração. A decoração mais fre- cerâmica moída pouco frequentes. É comum a pasta
quente correspondeu ao engobe, identificado em 24 apresentar alguns alvéolos, fissuras e até cavernas.
fragmentos, seguida da pintura a branco, presente Dada a elevada presença de mica e quartzo, concluí-
em 12 fragmentos. Esta foi utilizada num leque va- mos que este fabrico é de origem local/regional.
riado de motivos decorativos, geralmente geomé- O fabrico F2 possui uma textura densa (muito cali-
tricos, entre os quais se destacam as linhas verticais brada) e compacta, tato e dureza suave, e a sua pasta
e horizontais (muitas vezes em conjuntos de três), possui uma tonalidade entre o bege e o rosa-claro
ziguezagues, quadriculados e motivos radiais. A (2.5 YR 8/4 – pink). A análise macroescópica revelou
presença destas decorações, especialmente na ce- a presença pouco frequente de mica prateada e ele-
râmica de armazenamento de líquidos, é entendida mentos quartzosos, bem como presença frequente
por alguns autores como possuindo um caráter apo- de elementos ferromagnesianos. A percentagem de
tropaico, considerando a importância da água nos ENP´s é de 10%, e o seu tamanho pode variar entre
quotidianos destas comunidades (Gómez Martínez, os 0,5 e os 2 mm. Este fabrico encontra-se presente
Rafael e Macias, 2010, pp. 175-195). num fragmento de jarra/jarro/jarrita. Devido à pre-
Relativamente à decoração vidrada, esta foi iden- sença dos elementos ferromagnesianos acima refe-
tificada em 15 indivíduos (7,5 % dos fragmentos), e ridos, o fabrico será de origem exógena.
apenas nas formas de tigela, jarra/jarro/jarrita e O fabrico F3 é caraterizado por uma textura homo-
púcaro. A decoração monocromática foi a mais co- génea e compacta, dura e de tato ligeiramente gros-
mum, seguida da bicromática, identificada em dois seiro, tendo a sua fratura uma tonalidade bege (5 YR
1148
oval a arrancar diretamente do colo. Esta peça diz diâmetros de 26 e 27 cm, respetivamente), idênticas
respeito a uma tipologia de panela com uma crono- entre sim, possuindo vários motivos geométricos
logia mais avançada, cujo melhor exemplo bem da- pintados a branco. A análise das pastas sugere uma
tado equivale a um paralelo de Almada, correspon- origem local/regional, encontrando paralelos es-
dente a uma panela com pintura a branco, de lábio treitos no exemplar PF.00/1196-23 identificado na
aplanado com asa a arrancar do colo, encontrada Via F da Praça da Figueira (Pires, 2020, p. 55), com
associada a dinheiros de D. Sancho I, isto é, encer- a caçoila 3112 do tipo 3J de Palmela (Araújo, 2014, p.
rando uma cronologia necessariamente posterior a 43), e com as sertãs 31 e 32 provenientes da escava-
1185-1211 (Liberato & aliii, 2020, p. 6). ção da encosta de Sant´Ana, atribuíveis ao século
No que diz respeito ao fundo, todos os fragmentos de XII (Calado e Leitão, 2005, pp. 459-470).
panela identificados possuem fundo plano. Exemplo A tipologia 2 carateriza-se pelo seu bordo vertical
disso é o indivíduo PF.00/1008-503 (figura 6, nº 6), e lábio quadrangular, da qual faz parte o exemplar
que corresponde também à única panela com deco- PF.00/7188-07 (figura 7, nº 14). A peça possui um
ração de pintura a branco sobre engobe. bordo com 26 cm de diâmetro e apresenta brunido
na face interna e caneluras na face externa.
3.3.2. Caçoilas A tipologia 3, estabelecida a partir do indivíduo
As caçoilas, por seu turno, correspondem a formas PF.00/1008-2e (figura 7, nº 15), carateriza-se por
abertas, de corpo mais largo que alto, utilizadas na um bordo introvertido e lábio em aba plana. A tigela
confeção de fritos e guisados de peixe e carne. Tal identificada possui um diâmetro de 34 cm e apre-
como no caso das panelas, foram tidas em conta as senta caneluras e decoração vidrada a melado claro
marcas de fogo, pois as mesmas formas podem tan- na face externa e vidrado castanho na face interna.
to servir de caçoila como de tigela. O seu paralelo mais próximo diz respeito à taça ca-
A decoração mais frequente nas caçoilas correspon- renada do tipo A proveniente da Igreja de São Lou-
de ao brunido interno, presente em seis fragmen- renço, que apresenta vidrado de cor amarelada (Ro-
tos, um dos quais também com pintura a branco, drigues, 2019, p. 38).
e outro com engobe. A tipologia 4 de tigela apresenta bordo vertical e
Foram identificadas três morfologias, tendo em lábio em pequena aba, cujo único exemplar corres-
conta os mesmos critérios acima mencionados. ponde à peça 1008-310. Apresenta decoração vidra-
A tipologia 1, composta por seis indivíduos, corres- da de tom melado em ambas as faces e, tal como a
ponde a caçoilas de bordo introvertido e lábio arre- tigela anterior, é atribuível ao fabrico V1, sendo por
dondado, com ou sem espessamento. Deste conjun- isso de produção local/regional.
to, faz parte o exemplar PF.00/7188-101 (figura 6, nº Embora não utilizemos as caraterísticas dos fundos
7), de perfil completo, que apresenta corpo em calote para estabelecer tipologias, acreditamos que seja re-
esférica e fundo plano, com brunido na face interna. levante falar dos dois exemplares com superfície não
A tipologia 2 consiste em peças de bordo tendencial- vidrada identificados no conjunto. O primeiro, cor-
mente vertical, com lábio semicircular, e encontra- respondente ao indivíduo PF.00/1008-306 (figura
-se representado por um individuo (figura 6, nº 10). 7, nº 16), apresenta pé anelar alto e ligeiramente dia-
Por fim, a tipologia 3, que conta com apenas um in- gonal, moldurado. A análise da pasta indica que foi
dividuo, corresponde a caçoilas de bordo vertical e produzida local ou regionalmente (fabrico F1) e à su-
lábio quadrangular (figura 6, nº 11). perfície da pasta foi aplicada uma aguada, que acre-
ditemos que tenha como objetivo tornar a peça mais
3.4. Cerâmica de mesa clara, cuja tonalidade carateriza as peças importadas.
3.4.1. Tigelas Já o fundo PF.00/1008-302 (figura 7, nº 17) possui
As tigelas correspondem a formas abertas, de corpo um pé anelar baixo e vertical, muito espesso (0,8 cm).
semiesférico, utilizadas no consumo de alimentos.
Para este conjunto foram atribuídas quatro tipologias. 3.4.2. Jarras, jarros e jarritas
Na tipologia 1 temos apenas dois exemplares – os Nesta categoria optámos por incluir as formas de
indivíduos PF.00/1008-3a e PF.00/1008-36 (figura mesa cuja funcionalidade consiste no serviço e con-
7, nº 12-13) –, que apresentam bordo introvertido e sumo de líquidos. Segundo as normas do CIGA (Bu-
lábio arredondado. São duas grandes tigelas (com galhão & aliii, 2009, p. 461), jarras e jarros distin-
1150
rece corresponder a um elemento movente, objeto BIBLIOGRAFIA
que seria utilizado no processamento de alimentos,
ARAÚJO, João Gonçalves (2014) – A Cerâmica Islâmica do
através da moagem e trituração. Castelo de Palmela: Análise Tipológica e Crono-estratigráfica
dos Materiais da Galeria 5. Lisboa: Faculdade de Letras da
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Universidade de Lisboa.
Os contextos de cozinha da habitação 6 indicam LIBERATO, Marco & alii (2020) – Cerâmica de Tradição
também que a mesma terá tido ocupação mesmo Islâmica em Contexto Português. Séculos XII-XIV. In Medie-
após a conquista cristã de Lisboa, indo de encontro à valista, nº 30, p. 6.
ideia de um progressivo abandono do bairro. À eta- MAALOUF, Amin (1983) – As Cruzadas Vistas pelos Árabes.
pa final da dinâmica do local equivalerá o contexto Lisboa: Difel, pp. 11-12.
fechado da cozinha, onde marcam presença alguns MIRA, Duarte (2019) – A Arqueología de uma Casa Islâmica
objetos que encerram datações bem fixadas nos fi- do Extremo Ocidental do Gharb al-Andaluz: A Unidade Ha-
nais do séc. XII –inícios do séc. XIII. bitacional P/Q – 9/11 da Praça da Figueira (Lisboa). Lisboa:
As duas reformulações profundas de que foi alvo o Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
muro meeiro das duas habitações reforça a leitura Nova de Lisboa. Tese de Mestrado.
de uma mais longa ocupação de ambas no tempo. MUNSELL, Albert (1994) – MUNSELL Soil Color Chart.
Serão, de igual modo, significantes as dinâmicas Nova Iorque: New Windsor.
familiares do lugar que, nesta etapa final, justifi- NÚCLEO Arqueológico do Castelo de São Jorge (s.d.) – Cas-
caram o estabelecimento de uma ligação entre as telo de São Jorge. s.l..
duas unidades habitacionais, representando deste
RODRIGUES, Andreia (2019) – Nos Arrabaldes de al-Uxbuna:
modo um fenómeno de provável emparcelamento A Ocupação Islâmica no Sítio Arqueológico da Igreja de São
na última fase de uso. Lourenço (Mouraria, Lisboa). Lisboa: Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tese de
Mestrado, p. 38.
1152
Figura 2 – O bairro islâmico da Praça da Figueira, com as habitações 1 (direita) e
6 (esquerda) assinaladas a vermelho e verde, respetivamente.
Figura 4 – Quantificação dos fragmentos cerâmicos das unidades [2233] e [2236] (cozinha).
Não-vidrados Vidrados
12
10
1154
Figura 6 – Cerâmica de cozinha das unidades [2233] e [2236].
1156
Figura 8 – Cerâmica de armazenamento e objetos não-cerâmicos das unidades [2233] e [2236].
1158
O CONVENTO DE S. FRANCISCO
DE REAL NA DEFINIÇÃO DA PAISAGEM
MONÁSTICO-CONVENTUAL
DE BRAGA, ENTRE A IDADE MÉDIA
E A IDADE MODERNA
Francisco Andrade1
RESUMO
O convento de S. Francisco de Real, foi construído no séc. XVI, no local em que se considera ter sido cons-
truído o mausoléu/capela de S. Frutuoso. O sítio arqueológico foi alvo de diversas campanhas de trabalhos ar-
queológicos e reveste-se de particular importância para a compreensão da evolução dos conjuntos monástico-
-conventuais da região bracarense. A abordagem que efetuamos procurou uma aproximação, norteados pelo
aparato metodológico da Arqueologia da Paisagem e da Arquitetura, ao significado do surgimento do espaço
conventual e a sua relação com as dinâmicas de poder, entre o final da Idade Média e a Idade Moderna, na
região bracarense.
Palavras-chave: Convento; Arqueologia da Arquitetura; Arqueologia da Paisagem; Idade Média; Idade Moderna.
ABSTRACT
The convent of S. Francisco de Real, was built in the 16th century in the place where the mausoleum/chapel
of St. Fructuosus was located. The archaeological site, that has had several archaeological campaigns, is very
relevant for understandig the evolution of the monastic-conventual complexes in the region of Braga. The ap-
proach we carried out, use a set of methodologies of the Archaeology of Architecture and of the Landscape
Archaeology, to know the meaning of the instalation of the comunity, and the relation with the dynamics of
power, between the Late Middle Ages and the modern period, in the region of Braga.
Key words: Convent; Archaelogy of Architecture; Landcape Archaeology; Middle Ages; Modern Ages.
1160
de uma forma mais ou menos orgânica na zona con- (2020a, p. 30), o que nos parece ser condizente com
tígua ao mausoléu de S. Frutuoso, mas que respei- a sua conservação na generalidade.
tou, em grande medida, a preexistência. Os dados arqueológicos reforçam a interpretação
Pese embora a descrição do convento promovido da evolução arquitetónica que enunciámos nos pa-
por D. Diogo de Sousa pareça assumir a existência rágrafos anteriores. De facto, as estruturas que in-
de um claustro, muito provavelmente, na zona em terpretámos como sendo associáveis ao séc. XVI,
que se desenvolve o atual, a julgar pela relação es- que se desenvolviam de forma escalonada, encos-
tratigráfica que se identificou na área 3, efetuada em tam ao alicerce preexistente. Já as estruturas asso-
2015 e na zona contígua, que também foi interven- ciáveis ao séc. XVIII, que identificámos a norte e a
cionada (Fontes et al. 2020a, pp. 15-16), parece-nos sul do mausoléu, pressupuseram o total desmonte
que o atual arranjo terá sido de um momento imedia- do braço norte do mausoléu e de uma parte consi-
tamente posterior, eventualmente do séc. XVII, na derável do braço sul, parecendo, neste caso, ter-se
medida em que é anterior às remodelações que estão mantido parte do seu alicerce oeste.
associadas à igreja, que foi fundada em inícios do A entrada no conjunto monástico passou a ser feita
séc. XVIII e posterior às ruínas do séc. XVI que ante- através da galilé, como era comum nos conventos
riormente mencionamos (Fontes et al., 2020b, p. 21). franciscanos (Oliveira & Ferreira, 2015, pp. 38-43).
Parece-nos notório que o programa construtivo A orgânica do espaço conventual que se desenvolvia
consubstanciado pelo desenvolvimento da solução no sopé leste do outeiro onde se implantou o mau-
planimétrica que ainda está no presente edificado, soléu, apresenta uma ligeira torção relativamente ao
teve um impacto bastante maior do que as constru- mesmo (Oliveira & Ferreira, 2015, p. 45).
ções anteriores. Este facto pode-se ter ficado a dever à topografia do
Este projeto parece denotar uma intencionalidade de terreno, como já foi referido e à existência de edi-
um nível de circulação do espaço conventual mais uni- ficações anteriores, que continuaram a uso, como
forme, perdendo a área construída a sua caracterís parece ter sido o caso do mausoléu de S. Frutuoso,
tica escalonada identificada para o período anterior. provavelmente utilizado como espaço de culto.
Apesar do desmonte de parte do outeiro em que O convento renascentista, segundo os dados que
estava implantado o mausoléu de S. Frutuoso, pa- nos foi possível recolher das escavações arqueológi-
rece-nos que o mesmo ter-se-á ainda mantido em cas, era bastante modesto, perfeitamente adequado
grande parte, apesar das necessárias adaptações às reduzidas dimensões da preexistência no local.
que o seu provável uso como espaço de culto pode- A edificação promovida pelo arcebispo D. Rodrigo
rá ter pressuposto. de Moura Teles, terá rompido, em parte com esta
Será com as obras que se realizaram no convento, lógica construtiva renascentista.
a partir do séc. XVII, com especial destaque para as Mantendo-se as edificações mais a leste com a tor-
que se realizaram nos inícios do séc. XVIII, designa- ção que parece remontar ao conjunto renascentista,
damente com a construção da igreja de S. Francisco, a julgar pelas ruínas que foram identificadas na in-
que o mausoléu de S. Frutuoso terá conhecido uma tervenção do compartimento adaptado a adega para
destruição mais impactante, tendo sido absorvido apoio à exploração agrícola durante o uso do privado
pelo conjunto monástico quase na sua totalidade. (Fontes et. al., 2012, pp. 33-34), a adaptação e incor-
O impacto do conjunto monástico no mausoléu está poração do outeiro onde se implantou o mausoléu
bem patente das fotografias efetuadas no âmbito dos pressupôs um ajuste na orientação dos muros, de
trabalhos de restauro da Direção Geral dos Edifícios acordo com a orientação deste e um desmonte con-
e Monumentos Nacionais, no início do séc. XX. siderável do mesmo.
A descrição efetuada por João de Barros nos meados Este facto está bem patente na zona em que se de-
do séc. XVI, parece, numa primeira análise, indiciar senvolvia o corredor, que estabeleceu ligação en-
a existência de características planimétricas idênti- tre o claustro e a galilé, onde foi efetuado um corte
cas ao mausoléu, sendo referido que o “Mosteiro de quase vertical da rocha, tendo nesta zona, parte das
S. Fructuoso da ordem dos capuchos, cuia casa he de paredes sido constituídas, apenas, por revestimen-
maravilhosa feição, pequena, em cruz e tem pelo meio tos com tijolo.
vinte e duas columnas de mármore em que se susten- Na zona mais a zorte, as escavações arqueológicas
ta” (Barros, 1522-23, p. 59), citado por Fontes e al. permitiram a confirmação dos dados que a foto-
1162
A área rural nas imediações da cidade de Braga, na Apesar de se localizar na periferia imediata da cida-
Idade Média, possuía diversos conjuntos monásti- de de Braga ainda se localizava numa zona marca-
cos distribuídos de forma relativamente uniforme damente rural.
pelo território. Tal como referiram Oliveira & Ferreira (2015, p.
Este conjunto de instituições monásticas encon- 15), a implantação do convento foi profundamente
trava-se, na sua generalidade, associado a um po- influenciada pela passagem de um caminho de pe-
voamento de consideráveis dimensões e desem- regrinação nas proximidades e a preexistência do
penhava um papel importante na estruturação do mausoléu de S. Frutuoso.
território bracarense. Para além destas características acima enunciadas,
O conjunto mais assinalável deste período, em ter- a sua instalação foi, como já foi referido anterior-
mos territoriais e de influência económica era o mente, devedora da ação direta e da vontade do ar-
mosteiro de Tibães, que se localizava no centro de cebispo D. Diogo de Sousa.
um couto que englobava diversas paróquias e se de- Este espaço conventual, apesar de localizado em
senvolvia da zona leste da cidade até a rio Cávado. espaço rural, apresenta características territoriais
Durante o séc. XV, grande parte das instituições mo- distintas dos espaços monásticos de origem medie-
násticas foram reduzidas a igrejas paroquiais após va, como é o caso de Tibães. Tal como o espaço con-
um longo período de crise (Marques, 1988). O único ventual, a cerca também se apresenta de modestas
mosteiro de fundação medieval que subsistiu ao lon- dimensões, não sendo passível de providenciar mais
go da Idade Moderna foi, precisamente, o mosteiro rendimentos do que os de uma abastada proprieda-
de Tibães que, não só manteve praticamente intacta de rural minhota.
a sua área de influência territorial, como aumentou A influência da comunidade, pese embora possa ter
o seu estatuto, passando a “casa mãe” dos benediti- tido interesses patrimoniais, na zona limítrofe com a
nos de Portugal e do Brasil no séc. XVI. paróquia de Dume, circunscreveu-se essencialmen-
É precisamente no início do séc. XVI que o convento te à paróquia de Real, não possuindo uma dimensão
de S. Francisco de Real é fundado, tendo como seu territorial sequer semelhante a Tibães ou outros es-
principal impulsionador o arcebispo D. Diogo de paços monásticos congéneres que exerciam uma in-
Sousa, como já abordamos anteriormente. fluência direta sobre diversas freguesias e possuíam
A fundação de um espaço conventual neste local não propriedades em diversas regiões, muitas das vezes
terá sido seguramente aleatória. De facto, a genera- com distancias assinaláveis entre si.
lidade dos espaços conventuais fundados na Idade Efetivamente, estão em análise dois tipos distintos
Moderna, apresentam um cariz essencialmente de papeis de duas comunidades religiosas distintas,
urbano, praticamente todos pertencentes a ordens com diferentes representatividades territoriais.
mendicantes e tendo como principais impulsiona- Mosteiros como o de Tibães, possuem circunscrições
dores diversos arcebispos bracarenses, sendo o con- territoriais próprias, constituindo por si mesmas um
vento de S. Francisco, em conjunto com o convento domínio que se afigura de alguma forma “concor-
de Vilar de Frades, uma exceção. rente”, ao poder absoluto que o senhorio arquiepis-
No caso de Vilar de Frades, a comunidade de cóne- copal bracarense, desempenhava em toda a região.
gos seculares de S. João Evangelista, comummen Conventos como de S. Francisco não tinham esta
te conhecidos como Lóios, instala-se no espaço dimensão territorial que poderia constituir um
conventual medieval, tendo cessado a relação do constrangimento ao poder arquiepiscopal, apresar
espaço com a ordem de S. Bento (Erasun Cortés & de teoricamente as suas propriedades serem per-
Faure, 2020, p. 59). tença da Santa Sé, parecendo ter sido esta a princi-
A comunidade franciscana que se instalou em Real, pal condicionante à implantação das comunidades
não selecionou um local com uma ocupação de em meio urbano bracarense no período medievo
uma comunidade monástica durante a baixa Idade (Mattoso, 1982, p. 65).
Média. De facto, desde o retorno à esfera da arqui- Durante o período moderno, a postura da ar
diocese bracarense, no séc. XII, as referências que quidiocese de Braga, relativamente a este tipo de
temos do local durante o período medieval, men- comunidades parece ter-se alterado, passando a
cionam a sua existência enquanto paróquia (Costa, desempenhar um importante papel nos espaços
2000, p. 101). conventuais fundados.
tendo sido possível exumar vestígios enquadráveis FONTES, Luís; BRAGA, Cristina; ANDRADE, Francisco
nas principais fases construtivas do período moder- (2012) – Salvamento de Bracara Augusta “Convento de S.
no, documentadas pela historiografia franciscana Francisco de Real (Braga). Projeto de adaptação a Pousada
da Juventude. Relatório Final, Trabalhos Arqueológicos da
(Santiago & Costa, 1767). Apesar de não ter sido
UAUM /Memórias, 29, Braga: Unidade de Arqueologia da
possível a restituição planimétrica da totalidade das Universidade do Minho.
estruturas conventuais de distintas épocas, pude-
FONTES, Luís; BRAGA, Cristina; CUNHA, Armandino;
mos conhecer aspetos específicos das características
ANDRADE, Francisco (2014) – Salvamento de Bracara Au-
construtivas de cada período, que nos permitiram gusta “Convento de S. Francisco de Real (Braga). Relatório
uma aproximação ao edificado existente. Final, Trabalhos Arqueológicos da UAUM /Memórias, 49, Bra-
O estudo efetuado, também possibilitou a interpre- ga: Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho.
tação dos aspetos relacionados com a fundação do FONTES, Luís; ANDRADE, Francisco; PIMENTA, Mário;
convento e o âmbito da relação entre o poder arquie- CATALÃO, Sofia; MOREIRA, Luís (2020a) – Convento de S.
piscopal e a comunidade franciscana que se instalou Francisco. Projeto de instalação da Unidade de Arqueologia
no local, tendo-nos sido possível situá-lo no âmbito da Universidade dom Minho (campanha de 2015) Relatório
das dinâmicas territoriais e poderes na região braca- Final., Trabalhos Arqueológicos da UAUM /Memórias, 87, Bra-
ga: Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho.
rense entre a Idade Média e Moderna.
Este estudo pretendeu constituir o ponto de partida, FONTES, Luís; ANDRADE, Francisco; PIMENTA, Mário;
tendo como referência a intervenção plurianual que CATALÃO, Sofia; MOREIRA, Luís (2020b) – Convento de S.
Francisco. Projeto de instalação da Unidade de Arqueologia
temos desenvolvido no convento e constituir a ram-
da Universidade do Minho (campanha de 2016) Relatório de
pa de lançamento para um estudo mais aprofundado, Progresso, Trabalhos Arqueológicos da UAUM /Memórias, 92,
que pretende conhecer o papel das instituições reli- Braga: Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho.
giosas na estruturação da paisagem bracarense, per-
MARQUES, José (1988) – A Arquidiocese de Braga no século
mitindo um acréscimo de conhecimento e contribuir XV. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.
para a valorização de um património tão relevante
MATTOSO, José (1982) – O enquadramento social e econó-
como é o caso dos conjuntos monástico conventuais.
mico das primeiras fundações Franciscanas em Portugal, in
Colóquio Antoniano. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa.
1164
Figura 1– Modelo 3D do convento de S. Francisco de Real, durante os trabalhos de recuperação que estão a decorrer. © UAUM/
Francisco Andrade (base fotográfica Paulo Bernardes).
Figura 4 – Leitura interpretada de alçado sul do convento de S. Francisco (numeração romana indica século). © UAUM/
Francisco Andrade (base fotográfica Paulo Bernardes).
1166
Figura 5 – Mosteiros identificados na região de Braga, na Baixa Idade Média (4 – Mosteiro de Vilar de Frades 18
– Mosteiro de Adaúfe; 63 – Mosteiro de Lomar; 69 – Mosteiro de Tibães; 116 – Mosteiro de Vimieiro). © UAUM/
Francisco Andrade.
RESUMO
A conquista cristã medieval do território hoje português não foi possível sem o contributo das Ordens Militares.
A Ordem de Santiago, instalada em Alcácer do Sal, contribuiu para estabilizar a fronteira sul com os muçul-
manos. A escavação da Capela do Tesouro do Santuário do Senhor dos Mártires (Séc. XIII-XVI) revelou um
contexto funerário selecionado. Apresentam-se as considerações preliminares sobre essa intervenção. Os mé-
todos de escavação e avaliação paleodemográfica utilizados foram os comumente aceites. Identificaram-se 36
enterramentos em três áreas com distinta cronologia e paleodemografia. O ritual funerário, o espólio e a ava-
liação sumária da paleopatologia confirmam as fontes que referem a capela como um local de inumação dos
cavaleiros-monges, altos dirigentes da Ordem de Santiago, ou seja, um panteão.
Palavras-chave: Arqueologia Medieval; Bioarqueologia; Práticas funerárias; Ordens Militares; Equipamento
Militar.
ABSTRACT
“Faced with the cross lies the master”: preliminary results of the excavation of the pantheon of the Order of
Santiago (13th-16th centuries) located in the Sanctuary of Senhor dos Mártires (Alcácer do Sal)
The military orders played an indispensable role in the medieval Christian conquest of the Portuguese territory.
The Order of Santiago, established in Alcácer do Sal, was instrumental in safeguarding the south border with
the Muslims. The initial findings from the excavation of the Treasury Chapel (13th-16th centuries) at Senhor dos
Mártires Sanctuary are presented. Commonly accepted methods for excavation and analysis were used. A total
of 36 burials were found in three different areas, identified based on chronological and demographic factors.
The funerary ritual, the grave goods, and the analysis of the paleopathology support the idea that the Treasury
Chapel was used as a burial place for the knight-monks who were high leaders of the Order of Santiago, serving
as a pantheon.
Keywords: Medieval Archaeology; Bioarchaeology; Funeral practices; Military Orders; Military equipment.
2. University of Coimbra, Research Centre for Anthropology and Health, Department of Life Sciences, 3000-456 Coimbra,
Portugal / [email protected]
3. University of Coimbra, Research Centre for Anthropology and Health, Department of Life Sciences, 3000-456 Coimbra,
Portugal / [email protected]
1170
reya, mestre que foy desta Ordem de Samtiago. O qual gem 3, que pouco tempo depois foram alargadas de
jaz em huuma capella muito rasa” (Cunha, 2012). A modo a proceder a escavação em área aberta e se
terceira capela, Capela Maria de Resende, data da tornarem na Zona A e Zona B, três no exterior: Zona
primeira metade do século XV (Pereira, 2000) e foi C, Zona D e uma vala (Zona E) longitudinal às três
anexada a Poente da Capela dos Mestres (Figura capelas com cerca de 21 metros de comprimento e
2). Edificada por ordem de Maria de Resende, para 80 cm de largura (Figura 2). O espólio recolhido foi
sua sepultura e de seu marido, D. Diogo Pereira e seletivamente lavado, marcado, etiquetado, ensaca-
comendador-Mor da Ordem de Santiago (Cunha, do e contentorizado segundo a sua categoria. Todo
2012; Pereira, 2009), falecido em 1427. Do conjun- o espólio recolhido será colocado nas reservas do
to monumental fazia ainda parte a capela Martim Museu Municipal Pedro Nunes para futuros estudos.
Gomes Leitão, edificada em 1402 e entretanto de- Em campo, foram anotadas, na ficha de cada en-
molida (Figura 2) (Pereira, 2009). Quanto ao corpo terramento, informações relativas à preservação/
da igreja atual, é um templo relativamente modesto, representatividade do esqueleto, tafonomia, ritual
de vários estilos arquitetónicos que no século XVIII funerário (orientação, tipo de inumação, presença
substituiu a primitiva cabeceira gótica (Pereira, de caixão e/ou sudário), espólio e posicionamento
2020). Trabalhos de restauro foram efetuados no do enterramento.
Santuário nos inícios da década de 80 do século XX Em laboratório, procedeu-se à estimativa do perfil
pela DGEMN (IPA.00002151). biológico, nomeadamente sexo, idade à morte e es-
Devido ao abatimento do piso da Capela do Tesouro tatura. A estimativa da idade à morte foi efetuada
foi necessário proceder à sua remoção e à escavação através da análise da fusão das epífises (Cardoso,
do espaço. Deste modo foi possível aceder pela pri- 2008a, b; Ríos & Cardoso, 2009; Schaefer et al.,
meira vez ao contexto funerário presente na capela. 2009; Cardoso & Severino, 2010; Cardoso & Ríos,
Este trabalho pretende dar a conhecer os resultados 2011), calcificação e erupção dentárias (Ferembach
preliminares da intervenção arqueológica tanto na et al., 1980; Smith, 1991), comprimento das diáfises
dimensão da arqueologia de campo (utilização do (Scheuer & Black, 2000), bem como das alterações
espaço, cronologia e faseamento, espólio) como da degenerativas das superfícies articulares (Buisktra
bioarqueologia (práticas funerárias, caracterização & Ubelaker, 1994). Na estimativa sexual, utiliza-
paleodemográfica e paleopatológica). Embora o ram-se sempre que possível as características mor-
período da conquista cristã do território hoje por- fológicas do coxal (com a metodologia de Bruzek,
tuguês esteja historicamente razoavelmente bem 2002) ou, na sua ausência, do crânio (com a meto-
documentado, o modus vivendi e o modus mortis, dos dologia de Ferembach et al., 1980). Recorreu-se,
atores dessas contendas e posterior estabilização igualmente, à análise métrica dos ossos longos e dos
territorial são pouco conhecidos. pés segundo a metodologia de Wasterlain (2000),
para o úmero e para o fémur, e de Silva (1995) para
2. MATERIAL E MÉTODOS o tálus e calcâneo. A estimativa da estatura foi efe-
tuada com base nas fórmulas desenvolvidas em
A escavação arqueológica foi efetuada através de populações portuguesas, respetivamente em os-
procedimentos manuais até à cota de identificação sos longos e metatársicos, por Mendonça (2000) e
dos contextos funerários, utilizando os princípios Santos (2002). Os dados foram analisados através
metodológicos preconizados por Edward Harris de estatística descritiva com recurso ao programa
(1989). A cada unidade estratigráfica (U.E.) foi atri- IBM®SPSS®Statistics v.20.
buída uma numeração sequencial (de 1, camada Embora se tenham recolhido ossários no decorrer
superficial, até ao infinito). Procedeu-se ao seu des- do trabalho por motivos de extensão deste artigo
monte sucessivo seguindo os contornos naturais das apenas serão referidos de forma sucinta.
U.E., o que potencia a fiabilidade cronológica e estra-
tigráfica. Todas as U.E. foram alvo de registo gráfico 3. RESULTADOS PRELIMINARES DA
e fotográfico assim como de registo altimétrico. Este ESCAVAÇÃO NA CAPELA DO TESOURO
registo foi particularmente intenso nas U.E. relativas
aos níveis funerários. Inicialmente implantaram-se Após a abertura das sondagens e a escavação das
duas sondagens no interior, Sondagem 2 e Sonda- primeiras camadas (revolvidas) foram atingidos os
1172
torácica. Dentro da deposição em decúbito dorsal inumar vários enterramentos no pequeno espaço da
verificou-se alguma variabilidade na posição do capela levou a que os inumados anteriormente (já
crânio (sobre a base 55%, n=11; sobre a face direita esqueletizados) fossem “cortados”, tanto os enter-
20%, n=6; sobre a face esquerda 10%, n=2; remo- ramentos como os caixões e sepulturas, de modo a
bilizado 5%, n=1) e dos membros superiores (em inumar os enterramentos mais recentes. Os ossos
extensão 8,6%, n=2; fletidos-lombar 39,1%, n=9; provenientes dos enterramentos afetados seriam in-
fletidos-pélvis 30,4, n=7; fletidos-tórax 17,4%, n=4; tegrados em ossários ou mesmo nas terras de sedi-
fletidos indeterminado 4,3%, n=1). Os membros in- mento utilizadas para cobrir a necrópole. Esta prática
feriores encontravam-se fundamentalmente em ex- foi especialmente intensa e visível na Zona B. A Zona
tensão (79,5%, n=19; cruzados 12,5%, n=3; fletidos A parece ter sido relativamente poupada aos cortes
8,3%, n=2) e os pés paralelos um ao outro (77,3%, de sepulturas, sendo estes mais frequentes nos en-
n=17; cruzados 22,7%, n=5). terramentos mais recentes. Este tipo de gestão da
Foi possível estimar a estatura de 19 indivíduos adul- necrópole, com a utilização intensa do espaço fune-
tos, balizando-se entre os 145,98 cm e os 169,11 cm rário, sobretudo em termos de estratigrafia vertical,
(média: 158,9 ± 1,54 cm). visível na afetação de várias sepulturas por outras
Em termos de avaliação da saúde e doença, e ape- mais recentes, é relativamente comum em contex-
nas com os dados recolhidos no campo, 66,7% tos arqueológicos medievais portugueses, como no
(n=24) dos indivíduos inumados exibiam alterações Mosteiro de Santa Maria de Seiça e na Igreja Matriz
osteológicas sugestivas de patologia. As condições de Coruche (informação por publicar mas prove-
mais frequentemente detetadas foram as lesões niente das intervenções de uma das autoras – LMC –
proliferativas do periósteo presentes em 55,6% dos nesses locais), mas também noutros locais da Europa
indivíduos (n=20), seguindo-se, em ordem decres- Medieval (Craig-Atkins et al., 2019; Crangle, 2016).
cente de frequência, as lesões traumáticas (11,1%, A preservação insuficiente do material osteológi-
n=4), a patologia infeciosa e osteomielite (cada uma co identificado na Capela do Tesouro foi, sobretu-
com 2,8%, n=1). As condições degenerativas esta- do, causada por razões tafonómicas de cronologia
vam igualmente presentes, sendo notória a predo- recente. Verificou-se que a causa do abatimento
minância das alterações da entese, que afetaram 19 do chão da capela, que levou à sua escavação, foi a
(52,8%) dos inumados, face às osteoartroses, pre- enorme quantidade de raízes de plátanos – extrema-
sentes apenas em 16,7% (n=6) dos indivíduos. mente invasoras – que se estenderam a todo o nível
da necrópole. Estas mesmas raízes penetraram nos
4. DISCUSSÃO ossos, aos quais preferencialmente se encostavam,
fragilizando-os, abrindo fissuras de grande impacto
Quando se procuram séries antropológicas coevas, ou mesmo dissolvendo-os. De notar que as raízes
para comparação com a recuperada da Capela do também trazem um aporte extra de humidade para
Tesouro, o espólio osteológico humano recolhido o sedimento onde se encontravam os ossos (Alfsdot-
na escavação da necrópole em torno do Santuário ter, 2021; Knusel & Robb, 2016; Stooder, 2018).
do Senhor dos Mártires, no início do século XXI, Não foram identificados enterramentos duplos ou
reveste-se de especial interesse já que, pelo menos, múltiplos, sendo que, de um modo geral, as sepul-
o contexto identificado na Zona C, em 2022, seria o turas tinham uma forma oval ou retangular (neste
mesmo (CNS 130). Em complemento podem referir- caso essencialmente as que continham inumação
-se os militares da Ordem de Évora (futura Ordem em caixão). Todos os enterramentos foram esca-
de Avis) inumados no Museu de Évora (MacRoberts vados no sedimento, ainda que o substrato rochoso
et al., 2020; Santos et al., 1998; Santos & Umbelino, calcário e macio estivesse a pouca profundidade.
2007), os cavaleiros teutônicos identificados nas É percetível, aquando da inumação, que cada en-
escavações de São Vicente de Fora, em Lisboa, e os terramento foi alvo de um tratamento funerário
exumados no Castelo de Palmela, estes pertencen- individual e respeitoso. Esta realidade de inuma-
tes à Ordem de Santiago (CNS 14424). ções individuais, verificada também nos cavaleiros
O material osteológico encontrava-se longe das con- medievais da Ordem de Évora (MacRoberts et al.,
dições ideais de representatividade e preservação 2020; Santos et al., 1998; Santos & Umbelino, 2007)
(Martin et al., 2013). Essencialmente, a prática de ou nos de São Vicente de Fora (Rodrigues Ferreira,
1174
A Capela do Tesouro estava dividida em duas zonas 1983) ligadas aos mortos durante o cerco de Lisboa.
de utilização funerária distintas. A Zona A apresen- Também há referências a vários achados a nível na-
tava um menor número de enterramentos, sepul- cional (Cortés et al., 2008/2009; Rodrigues, 2021).
tados com cuidado, alguns apresentando vestígios Na Zona B existia um menor zelo com a gestão da
de caixão (como indiciam as madeiras e os muitos necrópole. O espólio encontrado era distinto do da
pregos recolhidos nas sepulturas). A presença de Zona A. Além de alfinetes sugestivos do uso de sudá-
numismas in situ em alguns enterramentos suge- rio, surgiram vários tipos de botões, tachas e outros
re a continuidade de uma prática pagã, na qual se objetos ligados ao vestuário. Estas seriam provavel-
pagava a Caronte o transporte na barca que fazia a mente pessoas com alguma ligação (por vezes, fami-
ligação entre o mundo dos vivos e dos mortos. Este liar) à Ordem de Santiago, ou da nobreza com algum
ritual, ainda que condenado pela Igreja, normaliza- estatuto social elevado (Pereira, 2009).
va a colocação de numismas nas mãos ou junto do Em ambas as zonas, os numismas revelam uma
corpo dos falecidos, assim como no sedimento das larga dispersão cronológica (séc. XIII-XVI) (Vaz et
sepulturas, por exemplo, dos militares participantes al., 1987/88), testemunhando a diacronia de utili-
na conquista medieval de Lisboa inumados no que zação da necrópole. As moedas, encaradas geral-
é hoje o mosteiro de S. Vicente de Fora (Rodrigues mente como um bom indicador cronológico em
Ferreira, 1983; Real, 1995; Pires, 2022), cavaleiros da contextos arqueológicos, requerem cautelas na sua
Ordem de Évora (MacRoberts et al., 2020; Santos et interpretação. É possível que numismas que já não
al., 1998; Santos & Umbelino, 2007) e Igreja de San- se encontrassem em circulação fossem escolhidos
ta Maria no Castelo de Palmela (Fernandes, 2004). para acompanhar o defunto.
Em termos de necrópoles medievais naturais, como Acerca da cerâmica, a coleção retirada da Cape-
acontece em ambas as necrópoles medievais cristãs la do Tesouro abrange uma cronologia que vai da
escavadas no âmbito do Pólis de Silves (Casimiro et época romana até à época moderna não tendo uma
al., 2004/2006), mas também na Necrópole do Lar- especial relação com os contextos funerários. Nas
go da Igreja em Sarilhos Grandes, onde foi encon- Zonas C e D (exterior da Igreja) surgiram também
trado um enterramento de uma criança com uma alguns enterramentos que confirmaram a existên-
moeda na mão (Pereira et al., 2007) ou na Necrópole cia de uma grande necrópole medieval na envol-
Medieval/Moderna de Arruda dos Vinhos onde se vente do edifício.
encontraram moedas junto aos esqueletos ou nas fa- O facto de os dados analisados parecerem atípi-
langes das mãos (Ferreira et al., 2013). cos pode simplesmente dever-se aos poucos con
Sobre as esporas em bronze encontradas no enterra- textos funerários medievais privilegiados que já fo-
mento nº19, estas indicam não só um cuidado voti- ram escavados e publicados e aos ainda menos co-
vo único nesta necrópole, e que parecem distinguir muns trabalhos sobre contextos de Panteão de
uma pessoa com uma alta posição dentro da Ordem, ordens militares.
como sugerem em si que este seria um cavaleiro.
Esporas in situ são bastante raras. Nas escavações 5. CONCLUSÕES
no interior do Museu de Évora foram identificados
seis pares de esporas em ferro numa necrópole (séc. Esta escavação revela dados importantes sobre o uso
XII/XIII) de cavaleiros da Ordem de Évora (Rodri- funerário do Santuário do Senhor dos Mártires, as-
gues, 2021; Santos et al., 1998; Santos & Umbelino, sim como informações sobre as práticas funerárias
2007). A avaliação do perfil paleopatológico destes das Ordens Militares ativas na época da conquista
indivíduos indica que estes exibiriam “Síndroma medieval cristã. Desconhecem-se até ao momento
de cavaleiro”, uma alteração nas inserções muscu- trabalhos arqueológicos de escavação de contextos
lares sugestiva da prática de cavalaria (Rodrigues, de Panteão de Ordens Militares sendo, portanto, di-
2021; Santos et al., 1998; Santos & Umbelino, 2007). fícil a interpretação de alguns dados sem a ajuda de
Apesar de serem em ferro, sem qualquer decoração, paralelismos. Concluídas estas escavações, será pos-
eram provenientes de um contexto semelhante ao sível obter informações importantes que ajudarão a
da Capela do Tesouro. Outro caso é o das esporas compreender não apenas a história da Alcácer, mas
douradas encontradas na escavação do cemitério também o início da história de Portugal, da Ordem
(Séc. XII) de S. Vicente de Fora (Rodrigues Ferreira, Militar de Santiago e dos cavaleiros medievais.
1176
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Figura 2 – Planta do Santuário do Senhor dos Mártires onde se assinalam a Capela do Tesouro (1), Capela dos Mestres (2),
Capela Maria de Resende (3), Capela Martim Gomes Leitão (4) e a igreja do Senhor dos Mártires (5). Também são visíveis as
zonas de escavação A, B, C e D assim como a implantação de vala longitudinal no exterior do Santuário.
1178
Figura 3– Vista geral da área de escavação no interior da Capela do Tesouro, onde se destacam a Zona A e Zona B, sendo as salas
divididas por um arco (foto Nix.atelier.da.fotografia).
Figura 4 – Vista de pormenor de alguns materiais identificados no sedimento da necrópole: moeda de D. Sebastião (séc. XVI) e
pulseira em vidro possivelmente da época romana.
Preservação / Representatividade
25
20
15
10
0
0 – 25 25 – 50 50 – 75 > 75
Preservação Representatividade
1180
PRODUÇÕES CERÂMICAS DA BRAGA
MEDIEVAL: CULTURA E AGÊNCIA MATERIAL
Diego Machado1, Manuela Martins2
RESUMO
O estudo da cerâmica é devedor de séculos de sistematizações e categorizações que buscaram identificar e pro-
duzir um quadro formal, tecnológico e decorativo de objetos provenientes de intervenções arqueológicas, capaz
de assegurar a sua datação e enquadrar os processos de fabrico. Contudo, pouca atenção foi dada à relação
entre os objetos e as pessoas, sejam os seus produtores ou consumidores, pouco se tendo avançado na com-
preensão do modo como os materiais interagem com os indivíduos e a sociedade. Com base nas novas abor-
dagens que nasceram do diálogo entre diversas áreas científicas, como a Antropologia, Semiótica, Psicologia,
Neurociências, e.g., procuraremos valorizar as produções cerâmicas medievais de Braga enquanto agentes so-
ciais, i.e., como um produto da interação entre pessoas, materiais e cultura.
Palavras-chave: Cerâmica; Braga; Agência; Cultura material.
ABSTRACT
The study of pottery is the result of centuries of systematization and categorization that sought to identify and
produce a formal, technological and decorative framework of objects from archaeological excavations able to
ensure dating and frame the manufacturing processes. However, little attention was paid to the relationship
between objects and people, whether their producers or consumers, making little progress in understanding the
way materials interact with individuals and the society. Based on the new approaches born from the dialogue
between different scientific areas, such as Anthropology, Semiotics, Psychology, Neurosciences, e.g., we will
seek to place value on the medieval ceramic productions of Braga as social agents, that is, as a product of the
interaction between people, materials and culture.
Keywords: Pottery; Braga; Agency; Material culture.
1182
Paralelamente, os estudos semióticos de matriz não- foi o antropólogo Alfred Gell, que definiu o conceito
-saussureana, nos quais a materialidade é conside- como a capacidade de provocar eventos causais, ou
rada um elemento que carrega parte dos processos seja, quando algo ou alguém promove a realização de
de atribuição de significados, ganharam fôlego em eventos que não são regulados por leis físicas ou na-
meados e finais do século XX, seja no âmbito da turais, preceituadas pelo sistema “causa-efeito”, mas
História da Arte, com Erwin Panofsky (1972; 2002), por meio de intenções ou desejo (1998, pp. 16-17). Ao
da Antropologia, com os contributos de Alfred Gell se afastar de uma perspetiva antropocêntrica, Gell
(1998), ou da Arqueologia, com destaque para a obra alarga a abrangência do conceito de agência para
Archaeological semiotics, de Robert Preucel (2006). além do fator intencional da consciência ou men-
A formulação de uma teoria da cultura material que te humana, reconhecendo o caráter recíproco entre
possibilite uma análise mais ampla das materialida- pessoas e objetos na capacidade de produzir eventos
des arqueológicas e forneça instrumentos de signifi- causais. A realidade material não é inerte, um mero
cação dos objetos exige uma abordagem que valorize produto da ação humana que modifica a realidade
os contributos provenientes de variadas áreas cientí- à sua volta de modo a facilitar a sua vida, mas é ela
ficas. A já datada dicotomia entre a mente e o corpo também constituinte dos traços mais intrínsecos
não encontra lugar nos recentes avanços das ciên- da sua consciência e identidade, pois os objetos são
cias, nos quais a compreensão humana passa pela va- igualmente possuidores de biografias culturais que
lorização das componentes psicológica, biológica e reiteradamente se apresentam aquando de sua pro-
social e a perceção do corpo, espaço e materialidades dução ou consumo (Riggins, 1994; Appadurai, 1986).
deixa de ser uma relação com o “outro”, mas a ver- O modo como os objetos se podem tornar agentes
dadeira constituição de “si”. A relação entre pessoas sociais é, entretanto, diferente dos humanos. Devi-
e objetos é definidora de indivíduos e sociedades e o do à necessidade de serem criados, os objetos po-
comportamento humano não necessariamente tem dem ser classificados como agentes secundários,
um papel de mediador entre pensamento e mate- por oposição à primazia ocupada por pessoas, sem
riais, pois a capacidade de agência mútua é um dos que isso signifique uma redução na sua capacidade
elementos que carateriza os modos como interagem. de agência. De facto, reside no estabelecimento de
redes entre diferentes entidades humanas e não-
3. AGÊNCIA: OS MATERIAIS COMO -humanas a possibilidade de se constituírem agen-
AGENTES SOCIAIS tes e pacientes através da ligação entre o processo
cognitivo e as estruturas espácio-temporais de dis-
O conceito de agência possui já uma longa tradição, tribuição de objetos no mundo artefactual, na rede
tendo sido largamente utilizado por investigadores que produz significados, na qual todos os objetos e
de áreas como a Psicologia, Direito, Estudos Cultu- pessoas se encontram (Gell, 1998).
rais e Arqueologia, entre outras. A sua versatilidade Uma teoria da cultura material necessita, por isso, de
constitui um importante instrumento de análise de ser capaz de articular as componentes pragmática e
um vasto conjunto de fenómenos e uma poderosa simbólica que todos os objetos possuem, ainda que
ferramenta para se compreender as sociedades e as em diferentes graus. Assim, pensar os artefactos a
relações entre os indivíduos. Trata-se da capacida- partir das ligações que estabelecem numa rede pode
de de realizar uma ação planeada, motivada a par- ser um caminho frutífero, que leva em conta a maté-
tir da intenção, crença ou desejo de quem a pratica ria e o signo, permitindo inferir diferentes assertivas
(Taylor, 1985). A partir da formação consciente do sobre as suas potencialidades, restrições físicas e as
poder de agência, o cérebro humano apropria-se do relações que estabelecem com as outras entidades.
corpo e do ambiente com o intuito de nele realizar
ações, que visam a sua modificação e a atribuição de 4. POTENCIALIDADES FÍSICAS E POSICIO-
sentido e significado ao seu mundo (Russell, 1996), NAMENTOS NA REDE: UMA ABORDAGEM
seja de maneira individual ou social, enquanto METODOLÓGICA
membro de um grupo, classe, comunidade ou socie-
dade (Bandura, 1997). A abordagem metodológica que aqui apresentamos
Um dos pensadores que mais refletiu sobre o fenó- vai de encontro à proposta por Carl Knappet, na obra
meno da agência na relação entre pessoas e objetos Thinking through material culture (2005), cujo objeti-
1184
As produções cerâmicas que abasteciam o mercado de grande destaque no seio da estrutura administra-
da cidade de Bracara, a partir do século IV, repre- tiva católica enquanto diocese metropolitana (Díaz
sentavam uma generosa variedade de objetos, bem Martínez, 2018; Silva, 2018). Essa mudança associa-
patente nos distintos fabricos presentes na cidade, -se igualmente à retração da rota atlântica, que abas-
que evidenciavam diferentes formas, acabamentos tecia os mercados setentrionais da Hispânia a partir
e decorações. Por sua vez, o pujante dinamismo co- do Mediterrâneo, desde o século I, bem como às gra-
mercial a nível regional e “global”, contribuía para dativas alterações das relações sociais e económicas
influenciar a produção local, inspirando a produção da cidade, resultante da diminuição do seu protago-
de imitações das peças importadas. No entanto, no nismo local, regional e peninsular.
espectro cronológico em avaliação neste trabalho Com efeito, a diversidade de peças, em especial as
podemos assinalar dois períodos diferenciados que produzidas localmente, vai gradativamente sofrer
sinalizam alterações nas produções e circulação das alterações, ao longo do século V, resultando, na
cerâmicas. O primeiro deles abrange o período entre centúria seguinte, num consumo menos diversifica-
os séculos IV-VI, que se inicia nos finais do século III, do, pois as produções de engobe vermelho e branco
com a promoção de Bracara a capital da província tendem a desaparecer até ao século VII, registando-
romana da Gallaecia, no reinado de Diocleciano, in- -se uma contração das importações que deixam pra-
cluindo ainda os séculos V e VI, que coincidem com ticamente de se verificar com a conquista árabe do
a fixação do reino suevo que termina em 585, com a norte de África, e posteriormente do sul da Penín-
anexação visigoda (Figura 2) (Martins & alii., 2018). sula Ibérica, na transição do VII para o VIII. Por sua
O século IV testemunha um grande dinamismo po- vez, o declínio das produções finas locais, carateri-
lítico e económico de Braga, enquanto local de re- zadas pelos fabricos em engobe vermelho e branco,
sidência de uma elite administrativa consumidora parece estar associado com a recuperação das ola-
de bens e produtos de qualidade, entre os quais se rias norte-africanas após os acordos que se terão fir-
incluiriam os objetos cerâmicos que chegavam aos mado entre os reinos ocidentais com Roma e Con-
mercados de Bracara. Com efeito, assinala-se uma stantinopla e com os vândalos, que possibilitaram a
forte presença de materiais importados, em espe- estabilidade no Mediterrâneo e a retoma das rotas
cial de sigillata hispânica e africana, na origem de comerciais. Desse modo, foram retomadas as im-
imitações de grande qualidade técnica, elaboradas portações das sigillatas africanas, o que pode estar
pelos oleiros da cidade, uma produção enquadrada na génese da queda nas produções bracarenses, que
no grupo I das chamadas cerâmicas cinzentas tar- perderam espaço no mercado regional (Fernández
dias (Fernández Fernández, 2018). São ainda co- Fernández, 2013; 2018)
nhecidas outras produções cerâmicas do século IV, Se, por um lado, assistimos ao gradativo declínio dos
representadas pelas cerâmicas de engobe branco e fabricos finos e, posteriormente, ao fim do comércio
vermelho, ambas de grande qualidade. As primeiras marítimo com os mercados mediterrânicos, por ou-
destinavam-se a uso à mesa, apresentando acaba- tro, fica patente a afirmação das cerâmicas cinzentas
mentos que recebiam polimento e um caraterístico tardias como a principal produção local, a única pro-
engobe branco que dá nome à produção. Por sua vez, dução do século VII. Esse fabrico recobria um gran-
as cerâmicas de engobe vermelho representam um de espectro formal e funcional, assim como tecnoló-
fabrico pouco depurado, com um acabamento carac- gico, tendo sido responsável pelo abastecimento dos
terizado por alisamento e aplicação de engobe rubro mercados da cidade e da região com recipientes de
(Delgado & Morais, 2009). cozinha, despensa e mesa, assim como para armaze-
Num segundo momento de evolução dos mercados namento. Como consequência o fabrico das cinzen-
bracarenses tardo antigos, a partir de 585, quando a tas tardias torna-se dominante no período medieval.
região passa a depender de Toledo (séculos VI/VII) Com efeito, a produção cerâmica bracarense entre
e até aos inícios do século VIII, percebe-se uma clara os séculos VIII-XI assinala a presença de alguns gru-
retração do dinamismo económico e comercial que pos técnicos e formais cuja tonalidade das pastas e
havia caracterizado o período anterior. Acreditamos qualidade dos acabamentos assinalam uma conti-
que esse fenómeno estará associado com a perda de nuidade dos fabricos tardios do período precedente,
importância política e militar de Bracara nos finais com uma variação cromática entre o cinza claro e o
do século VI, apesar da manutenção de seu estatuto negro, cozeduras redutoras, tratamentos bastante
1186
estudos analíticos confirmaram a origem desses ob- mazenamento de géneros alimentícios e líquidos em
jetos na referida região (Gaspar, 2000, pp. 81-85). oposição àqueles que teriam uma função de serviço
Não obstante, para além dessa semelhança acerca o de mesa pode simbolizar um hábito de consumo as-
fabrico, podemos assinalar uma contiguidade a nível sociado a práticas de partilha de alimentos e de co-
formal. As cerâmicas cinzentas tardias dividem-se mensalidade em grupo, na qual é deveras reduzida a
em dois grupos, que apresentam pastas com grande necessidade de pratos, tigelas, taças, copos, púcaros,
quantidade de elementos desengordurantes e colo- malgas ou demais loiças que configuram uma indivi-
ração cinzenta, cozidas em ambiente redutor, sendo dualidade mais expressiva à mesa.
a sua diferenciação feita a nível da técnica de fabri- Se retomarmos a análise comparativa entre os reci-
co, formas e acabamentos (Figuras 5 e 6). No grupo pientes que abasteciam os mercados bracarenses,
1 enquadram-se os objetos que revelam um maior entre os séculos V-VII e VIII-XI, percebemos que os
investimento, feitos ao torno e com uma variedade hábitos alimentares, que tentamos assinalar ante-
morfológica que imita ou se inspira em peças impor- riormente, adquirem um caráter de profunda trans-
tadas, representadas, sobretudo, por taças, tigelas e formação entre os dois períodos referidos. Com
pratos originalmente produzidas em terrae sigillatae efeito, os fabricos consumidos na cidade durante a
africanas, focenses e gálicas. Por sua vez, o grupo 2 Antiguidade Tardia incluem as cerâmicas cinzentas
carateriza-se por um quadro formal eminentemente tardias, os engobes vermelhos e brancos e as manu-
comum, no qual estão presentes recipientes fecha- faturas importadas, como terrae sigillatae africanas,
dos, como potes, bilhas e vasos de armazenagem, e hispânicas, gálicas e focenses. Para além da dife-
abertos, de que são exemplo as tigelas, pratos, tra- rença entre a diversidade de fabricos em circulação
vessas e tachos de asa interior, produzidos ao torno nos dois períodos, sobressai também uma maior
ou manualmente, através da técnica do rolo, apre- presença de objetos com funções ou usos distintos,
sentando paredes espessas e as superfícies apenas designadamente taças, cálices, jarros em engobe
alisadas ou escovadas, acabamento que, geralmen- branco, pratos, tigelas e taças em engobe vermelho,
te, restringe-se ao exterior da peça (Gaspar, 2000; bem como as já referidas cinzentas tardias do grupo
Delgado & Morais, 2009, p. 61). 1 e as formas originais que elas imitam, cujas formas
As relações de contiguidade da cerâmica comum apresentam sensivelmente a mesma variedade das
alto medieval que aludimos evidenciam-se em re- anteriores (Delgado & Morais, 2009). Esta variabili-
lação ao grupo 2 das cinzentas tardias, cuja expres- dade de produções contrasta com os singelos potes e
são se revela nas caraterísticas visuais, associadas às bilhas que dominam os níveis alto medievais.
formas e coloração das superfícies, mas também nas Assim, podemos considerar que ao longo do período
táteis, ambas revelando um acabamento pouco cui- tardo-antigo estaríamos diante de uma sociedade
dado e superfícies rugosas, podendo ainda ser esten- cujos hábitos à mesa são significativamente distin-
didas às técnicas de fabrico, ambiente de cozedura tos do período alto medieval, o que significa uma
e área de circulação, grosso modo, a região de Braga. profunda alteração do modo de conceber as relações
No que toca à “factoralidade”, ou seja, à análise que entre as pessoas e as práticas de comunhão desig-
leva em conta as relações do signo enquanto uma nadamente dos alimentos. Na verdade, a marca da
sinédoque, uma parte de um todo, salientamos individualidade perante os hábitos alimentares é
novamente o quadro morfológico recuperado dos deveras expressiva do contexto social e económico,
fabricos comuns dos inícios da Idade Média. Além refletindo, na microescala, o modo de vida e a con-
de reiterar a baixa variedade formal dos recipientes, ceção de práticas de comensalidade. Contudo, ao
devemos indicar a desproporcionalidade entre as alterarmos a escala de análise, ou passarmos de uma
formas reconhecidas. Os potes e bilhas represen- abordagem material para a superestrutura social,
tam cerca de 88% de todo o conjunto identificado vemos como as transformações nas relações entre
em Braga e Dume, enquanto os outros recipientes, pessoas e os recipientes cerâmicos utilizados na co-
designadamente vasos de armazenagem, tigelas, zinha, despensa e mesa, funcionam como uma siné-
pratos, travessas e tachos de asa interior, ficam re- doque do quadro geral da economia e das tensões
duzidos a, sensivelmente, 12% das peças consumi- políticas que estão a se desenrolar na cidade. Assim,
das (Fontes & Gaspar, 1997, p. 206). a passagem do mundo romano para o suevo apre-
A presença maioritária de objetos associados ao ar- senta traços de grande continuidade, muito mais
tramos os objetos que são socialmente produzidos DÍAZ MARTÍNEZ, Pablo (2018) – Requiario (448-456): Un
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Figura 1 – Representação da personagem “O Menino Maluquinho” (©Ziraldo).
1192
Figura 4 – Cerâmicas provenientes do castelo de Penafiel de Bastuço, séculos X-XI (Fontes & Gaspar, 1997, Est. 6).
1194
Figura 6 – Cerâmicas cinzentas tardias – grupo 2 (Fontes & Gaspar, 1997, Est. 3).
RESUMO
Campanhas arqueológicas na Alcáçova de Santarém durante as décadas de 1990 e 2000 revelaram um conjun-
to diversificado de contextos cuja cronologia se estende desde a Idade do Bronze até ao período Medieval. O
estudo arqueobotânico realizado sobre amostras provenientes de fossas com cronologias da Antiguidade Tardia
e Época Islâmica evidenciou um conjunto de abundantes macrorrestos, composto por múltiplos cereais, legu-
minosas, frutos e outras plantas de interesse económico, mas também madeira carbonizada de uma grande
diversidade de espécies. Estes resultados serão discutidos e comparados com outros estudos análogos de âmbi-
to regional e supra-regional e confrontados com fontes escritas islâmicas do al-Andalus, lançando novas luzes
sobre os recursos vegetais, hábitos de consumo e práticas agrícolas durante os períodos em análise.
Palavras-chave: Antiguidade Tardia; Período Islâmico; Alcáçova de Santarém; Arqueobotânica; Agricultura.
ABSTRACT
During the 1990’s and 2000’s, several excavations in Alcáçova de Santarém revealed extensive archaeologi-
cal evidences dated from the Bronze Age until the Medieval Period. The archaeobotanical analysis conducted
on samples recovered in pits dating from the Late Antiquity to the Islamic Period revealed an abundant set of
macroremains, composed of multiple cereals, pulses, fruits, and other plants of economic importance, as well
as charred wood from a large diversity of species. These results will be discussed and compared with analogous
studies at regional and supra-regional levels and will be contrasted with the Islamic written sources from the
al-Andalus, shedding new light on plant resources, food consumption, and agricultural practices, during the
periods under analysis.
Keywords: Late Antiquity; Islamic Period; Alcáçova de Santarém; Archaeobotany; Agriculture.
1. CIBIO-BIOPOLIS: Centro de Investigação em Recursos Genéticos e Biodiversidade, Laboratório Associado, Universidade do Porto /
[email protected]
2. FCUP – Faculdade de Ciências da Universidade do Porto; CIBIO-BIOPOLIS: Centro de Investigação em Recursos Genéticos e
Biodiversidade, Laboratório Associado, Universidade do Porto / [email protected]
3. CIBIO-BIOPOLIS: Centro de Investigação em Recursos Genéticos e Biodiversidade, Laboratório Associado, Universidade do Por-
to; UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa; CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de
Coimbra / [email protected]
4. UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa; FLUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa / c.viegas@
letras.ulisboa.pt / [email protected]
5. UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa; FLUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa / c.viegas@
letras.ulisboa.pt / [email protected]
1198
na Alcáçova de Santarém foram recolhidas amos- do Museu de História Natural da Universidade do
tras sedimentares para análises arqueobotânicas Porto (PO) e do CIBIO. A contabilização de unida-
em contextos de diferentes cronologias. Este estudo des e fragmentos seguiu metodologias padrão.
incide sobre 14 amostras recolhidas durante as cam-
panhas de 2000 e 2001, provenientes de oito unida- 3.2.2. Antracologia
des estratigráficas (U.E.) de duas áreas: viveiros do Cada fragmento de madeira carbonizada foi frag-
Jardim das Portas do Sol (Setor 1) e Restaurante das mentado manualmente de forma a obter as secções
Portas do Sol (Setor 2), separadas por poucos metros. transversal, radial e tangencial. A observação des-
Correspondem a um total de 98 litros de sedimen- tas, visando o diagnóstico taxonómico, foi feita com
to (Fig. 1, Tab. 1), processados no âmbito do projeto recurso a lupa binocular e microscópio ótico de luz
FCT B-Roman, através de uma máquina de flutua- refletida, bem como por comparação com atlas ana-
ção tipo Siraf, usando malhas de 0,5 mm. tómicos (e.g. Schweingruber, 1990) e a coleção de
Os contextos amostrados correspondem a camadas referência do CIBIO. Foram também identificadas
de enchimento de oito estruturas negativas, seis lo- características anatómicas ou alterações dendroló-
calizadas no Setor 2 e duas no Setor 1, abrangendo gicas passíveis de fornecer dados relativos à história
uma cronologia entre o Baixo-Império (séculos III- de vida da árvore ou arbusto e aos processos tafo-
-IV) e o Período Islâmico (séculos XII). O estabeleci- nómicos associados à sua carbonização (Marguerie
mento de um faseamento cronológico fino nem sem- & Hunot, 2007; McParland et al., 2010; Moskal-del
pre foi possível. Assim, tendo em conta a informação Hoyo et al., 2010; Thery-Parisot & Henry, 2012). Só
arqueológica obtida, as camadas foram adscritas a foram analisados fragmentos com dimensão supe-
quatro fases: Baixo-Império, Romano final/Islâmico rior a 2 mm.
inicial, Islâmico e Islâmico final. A mais antiga (Bai-
xo-Império) está representada por um maior núme- 4. RESULTADOS
ro destes contextos (n=4) e volume de sedimento (44
litros), enquanto as restantes são compostas apenas 4.1. Carpologia
por uma estrutura cada e apresentam, individual- O estudo carpológico revelou um conjunto com
mente, menor volume de sedimento analisado. abundantes e diversos macrorrestos vegetais, com-
posto por 9228 carporrestos, correspondendo a uma
3.2. Metodologia laboratorial densidade média de 94,2 unidades por litro de sedi-
3.2.1. Carpologia mento (Tab. 2A e 2B). Destes 9228 macrorrestos, 2561
A triagem das frações leves realizou-se com o au- estão carbonizados e 6667 mineralizados. Porém,
xílio de uma lupa binocular. A grande maioria das 6077 destes últimos correspondem a aquénios de
amostras analisadas (13 num total de 14) apresentou figo que, não só apresentam dimensões reduzidas,
frações leves volumosas, que foram, por isso, alvo totalizando um volume bem inferior, por exemplo,
de subamostragens (Tab. 1). Cada amostra foi divi- ao dos cereais encontrados (n=1547), como ainda
da em três frações de dimensão distinta usando uma podem advir de um número reduzido de figos, con-
coluna de crivos com malhas de 2 mm, 1 mm e 0,5 siderando que um só destes frutos pode conter até
mm. O conteúdo da malha 2 mm foi sempre analisa- 1500 aquénios (Renfrew, 1973).
do integralmente (Tab. 1). Nas amostras subamos- Os cereais encontram-se maioritariamente carbo-
tradas, os resultados apresentados correspondem nizados e correspondem principalmente a grãos. A
as extrapolações com base na relação entre o peso cevada (Hordeum vulgare) é dominante (n=479), se-
total e o peso triado em cada uma das malhas. Este guida do trigo de grão nu (Triticum aestivum/durum)
cálculo foi aplicado apenas a elementos unitários e (n=235). Os grãos de milho-miúdo (Panicum milia-
quando foram recolhidas pelo menos 10 unidades ceum) estão em menor número (n=97). A presença
por táxon e malha. de grãos de aveia (Avena sp.) e centeio (Secale cereale)
A identificação dos macrorrestos envolveu, sempre é esporádica e este último só surge mineralizado.
que necessário, a consulta de atlas e bibliografia de Dentro do grupo das inflorescências de cereal, ob-
referência (e.g. Jacomet, 2006; Neef, Cappers & serva-se novamente um domínio da cevada, tendo
Bekker, 2012), bem como a comparação com mate- sido recuperado um conjunto significativo de grãos
rial recente das coleções de referência do Herbário parcialmente ou integralmente vestidos, bem como
1200
do por isso sido remetidas para as Dicotiledóneas Os resultados deste estudo parecem sustentar esta
(18,5%). Em segundo plano, verifica-se a presença última ideia. Há uma grande quantidade de macror-
de madeira de Quercus sp. caducifólia (carvalhos de restos vegetais em diferentes estados de preserva-
folha caduca), com 9,1%, Olea europaea (oliveira), ção (carbonização/mineralização), sendo que a sua
com 7,7% e Salix sp. (salgueiro), com 5,7% do total conservação terá provavelmente origem em diferen-
analisado. Os restantes 22 táxones não ultrapassam tes eventos.
os 3,5% (16 deles verificaram-se inclusivamente No que respeita ao material carpológico carboniza-
abaixo dos 1%) e constituem, no total, cerca de 20% do, só grandes acumulações de vestígios carboniza-
do restante conjunto analisado. dos deverão relacionar-se com incêndios em estru-
No entanto, verifica-se que a presença abundante turas de armazenagem. Usualmente, as sementes e
de Fraxinus sp. e Quercus sp. perenifólia se mani- frutos correspondem a resíduos de origem diversa
festa principalmente devido à concentração destes (e.g. processamento de colheitas, atividades culiná-
táxones em contextos específicos. Apesar de ubíquo rias) queimados em lareiras e outros contextos do-
(só não foi identificado no silo 41 do Baixo-Império, mésticos, juntamente com o combustível lenhoso, e
U.E. 31), mais de metade dos carvões de freixo regis- depositados nas fossas aquando da limpeza das es-
tou-se nas U.E. 59 e 22. Situação semelhante aconte- truturas de combustão.
ce para o segundo caso, onde 124 dos 191 fragmentos Já o material mineralizado poderá ter uma origem
foram identificados no silo 54 (U.E. 22) da fase islâ- diferente. A mineralização consiste numa substi-
mica mais recente e outros 47 na U.E. 481, também tuição do material orgânico por minerais e fosfatos
islâmica. Nos restantes contextos, a presença deste precipitados do substrato envolvente, ocorrendo
táxon é praticamente residual. usualmente em ambientes muito orgânicos, com
No que concerne a outras características dendroló- abundantes resíduos de comida, fauna e excremen-
gicas registadas (e.g. presença de vitrificação e fissu- tos (Green, 1979; Murphy, 2014; Peña-Chocarro &
ras radiais), verificou-se uma forte concentração de Pérez-Jordà, 2019). Surgem, por isso, frequentemen-
carvões identificados como Dicotiledónea, dificul- te em latrinas e condutas de esgotos, como em níveis
tando a identificação destes fragmentos a um nível medievais de Évora (Coradeschi & alli, 2017).
taxonómico mais aprofundado. Não se verificaram Não obstante alguns elementos mineralizados po-
outros padrões passíveis de menção no escasso con- derem advir do uso das latrinas como lixeiras orgâ-
junto antracológico analisado. nicas domésticas, a maior parte dos vestígios mine-
ralizados encontrados pode mesmo ser evidências
5. DISCUSSÃO diretas de consumo humano. Os aquénios de figo,
são um caso paradigmático. O figo pode ser integral-
5.1. Contextos arqueológicos e preservação de mente ingerido, contudo o sistema digestivo huma-
macrorrestos vegetais no não processa completamente os aquénios, o que
Os macrorrestos vegetais identificados neste estudo leva a que estes estejam presentes nas fezes (Mur-
provêm de oito estruturas negativas com cronolo- phy, 2014). Uma vez que cada sicónio pode conter
gias entre o Baixo-Império (séculos III-IV) e o fim da mais de um milhar de aquénios, é possível que a sua
ocupação Islâmica (século XII) na Alcáçova de San- abundância nos contextos estudados esteja relacio-
tarém. Contudo, a interpretação destas fossas, dos nada com a sua inclusão em excrementos descarta-
respetivos depósitos e vestígios arqueobotânicos re- dos nas fossas.
quere cuidados. Uma vez que estas estruturas foram Conjuntos carpológicos com características seme-
preenchidas com sedimentos que correspondem a lhantes, demonstrando uma sobrerrepresentação
deposições secundárias e/ou terciárias (apud Schi- dos vestígios mineralizados e, em particular, de
ffer, 1996 e La Motta & Schiffer, 1999), não é possí- figo, bem como uma possível associação destes ao
vel detalhar, de forma segura, a sua origem e a cro- descarte de dejetos humanos, foram já observados
nologia. Apesar de um possível uso inicial das fossas em outros estudos carpológicos ibéricos, designada-
para armazenagem, estas terão sido posteriormente mente em fossas islâmicas do Nordeste Peninsular
utilizadas como lixeiras, incorporando diversos ma- (Alonso, 2005).
teriais, incluindo macrorrestos vegetais, oriundos, A esta realidade complexa, acresce o possível uso
possivelmente, de diferentes espaços e momentos. das fossas, pelo menos num momento inicial, para
1202
dem corresponder, por exemplo, a diferentes cou- Assim, mais que valorizar os resultados absolutos,
ves, ao nabo ou à mostarda, que também poderiam sujeitos aos efeitos de concentração atrás referidos,
ter usos diversos (e.g. condimento, óleo, medicina). é mais pertinente considerar a ubiquidade (ou seja,
O cultivo de várias destas plantas ocorreria, pos- o número de contextos em que cada um foi encon-
sivelmente, em hortas, contudo, e de modo seme- trado) de forma a perceber eventuais tendências de
lhante ao que foi descrito para a maioria dos frutos, o utilização da madeira neste sítio e ao longo da dia-
registo diminuto e a impossibilidade de atribuir de- cronia em causa.
signações detalhadas em alguns casos (e.g. Brassica/ No geral, verificamos uma grande continuidade na
Sinapis; cf. Daucus carota) não permitem clarificar o recoleção e uso de um alargado conjunto de espécies
papel destas plantas na Alcáçova de Santarém. neste período, como tinha sido de resto já evidencia-
De um modo geral, o estudo realizado permitiu de- do nos dados carpológicos. A madeira de Alnus sp.
tetar uma variedade de cultivos que seriam certa- (amieiro), Cistus sp. (esteva), Fraxinus sp. (freixo),
mente importantes na alimentação dos habitantes Olea europaea (oliveira), Quercus sp. caducifólia (car-
da Alcáçova de Santarém no Baixo-Império e Épo- valho de folha caduca), Quercus sp. perenifólia (so-
ca Islâmica, traduzindo igualmente a existência de breiro, azinheira), Rhamnus/Phillyrea (sanguinho/
searas, hortas e pomares, ainda que não se possa aderno), Salix sp. (salgueiro) e de Ulmus sp. (ulmei-
descartar que alguns chegassem por meio de trocas ro), foi registada recorrentemente em todo este ho-
comerciais. rizonte cronológico.
Assim, não se vislumbraram diferenças significati- Outro fator digno de menção é a notória concentra-
vas entre os níveis tardo-antigos e islâmicos. Inde- ção da presença de madeira de espécies de interes-
pendentemente do condicionamento de eventuais se económico nas fases mais recentes, adscritas ao
problemas tafonómicos, esta continuidade no re- período Islâmico e Islâmico Final, nomeadamente
gisto arqueobotânico foi já documentada à escala a nogueira (Juglans regia), cerejeira/ginjeira (Prunus
peninsular (Peña-Chocarro & alli, 2019). Efetiva- avium/cerasus) oliveira e a figueira (Ficus carica). Es-
mente, os dados carpológicos ibéricos, como em ou- tes dados corroboram também as evidências carpo-
tras regiões mediterrânicas, permitiram questionar lógicas carbonizadas e mineralizadas das mesmas
alguns aspetos do que foi designado revolução agrí- amostras, evidenciando não só a presença dos fru-
cola árabe (Watson, 1974) demonstrando que algu- tos mas também da madeira destas árvores no local,
mas das espécies tidas como introduções de época atestando que seriam cultivadas nas proximidades.
islâmica já seriam cultivadas em território ibéri- Do ponto de vista ecológico, esta grande diversidade
co anteriormente, como o trigo-duro, introduzido de espécies demonstra a recolha de madeira numa
no Neolítico antigo. Outras poderão afinal não ter relativa diversidade de ambientes, desde sobreirais/
tido qualquer relevância por cá neste período, em- azinhais onde se incluiriam grande parte dos táxones
bora pudessem ser relevantes em outros territórios identificados nos vários estratos arbóreos e subarbó-
mediterrânicos. Ainda assim, algumas mudanças reos, aos já referidos conjuntos de árvores cultiva-
seriam difíceis de detetar arqueologicamente, no- das. São também de assinalar os táxones referentes a
meadamente ao nível das técnicas agrícolas e até da contextos ecológicos mais húmidos, nomeadamente
introdução de novas variedades de cultivos, consi- o amieiro (Alnus sp.), a cana-comum (Arundo donax),
derando que nem as identificações arqueobotânicas o freixo, o salgueiro e o ulmeiro, que se concentra-
nem as parcas fontes escritas atingem esse nível ta- riam nas margens do rio Tejo, atendendo à sua proxi-
xonómico. midade face ao sítio. De salientar que a cana-comum
é uma espécie exótica introduzida em cronologia in-
5.3. A madeira carbonizada certa, hoje com comportamento invasor.
À semelhança do descrito para a componente carpo-
lógica, a reduzida quantidade e a natureza secundá- 6. CONCLUSÕES
ria ou terciária dos contextos aqui em causa limitam
decisivamente a profundidade e o tipo de interpre- As estruturas negativas analisadas na Alcáçova de
tações paleoetnobotânicas e paleoambientais passí- Santarém, cronologicamente enquadradas entre o
veis de se retirarem dos resultados do estudo antra- Baixo-Império e o Período Islâmico, revelaram uma
cológico. enorme diversidade e quantidade de macrorrestos
dade Tardia e o Período Islâmico ao nível de culti- ARRUDA, Ana Margarida; VIEGAS, Catarina (2002) –
vos, aqui evidenciada, confirma estudos anteriores A Alcáçova. In ARRUDA, Ana Margarida, VIEGAS, Cata-
que têm questionado alguns dos postulados do con- rina, ALMEIDA, Maria José, eds. – De Scallabis a Santarém.
ceito de revolução agrícola árabe. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, pp. 8-81.
No que concerne à madeira carbonizada identifica- ARRUDA, Ana Margarida; VIEGAS, Catarina; ALMEIDA,
da, e à semelhança do verificado para a componente Maria José, eds (2002) – De Scallabis a Santarém. Lisboa: Mu-
carpológica, verifica-se uma notória continuidade seu Nacional de Arqueologia.
na recolha e queima de lenha de um conjunto diver- ARRUDA, Ana Margarida; VIEGAS, Catarina; BARGÃO, Pa-
sificado de espécies durante estes períodos. Estas trícia (2006) – Ânforas lusitanas da Alcáçova de Santarém.
espécies terão sido recolhidas numa grande diver- Setúbal Arqueológica. 13, pp. 233-252.
sidade de ambientes, incluindo sobreirais/azinhais
BUGALHÃO, Jacinta; QUEIROZ, Paula (2005) – Testemu-
e bosques ripícolas provavelmente na orla do Tejo. nhos do consumo de frutos no período islâmico em Lisboa.
Nos contextos mais recentes verifica-se uma cres- In GÓMEZ MARTÍNEZ, S., ed. – Al-Ándalus Espaço de Mu-
cente presença de madeira proveniente de árvores dança. Balanço de 25 Anos de História e Arqueologia Medievais:
de fruto que estariam certamente a ser cultivadas na Homenagem a Juan Zozaya Stabel-Hansen. Mértola: Campo
Arqueológico de Mértola, pp. 195-212.
região. Pese embora os dados antracológicos obtidos
não tenham consigo prová-lo em função do reduzido COELHO, António Borges (2018) – Portugal na Espanha Ára-
conjunto amostrado, é possível que a queima de ma- be. Alfragide, Editoral Caminho.
1204
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1206
Figura 2 – C- Foto do perfil estratigráfico onde registaram as estruturas negativas de cronologia islâmica.
Subamostragens
1 mm 0,5 mm
Total Triado Total Triado
Fase Setor Contexto U.E. Amostra Vol. (L) (g) (g) (g) (g)
3 3
Fossa 41 (enchimento) 31
4 5 2,09 1,05
Fossa 63 (enchimento) 59 39 8 11,08 1,37
Baixo-Império
21 7 4,08 0,96
(séc. III-IV d.C.) Fossa 96 (enchimento) 93
2 22 7 n/a 7,02 0,87
11 7 3,87 0,99
Fossa 105 (enchimento) 98
12 7 5,42 1,29
Romano final / 38 10 4,07 0,99
Fossa 53 (enchimento) 38
Islâmico inicial 40 9 4 1
Islâmico 1 Fossa (enchimento) 481 47 9 29 4 25 2
1 8 11,16 1,65 8,67 0,59
Islâmico 2 Fossa 54 (enchimento) 22
2 9 13 6 10 1
Islâmico final (séc. 53 1 26 13 27 3
1 Fossa (enchimento) 473
XII d.C.) 55 8 14 3 17 1
Tabela 1 – Inventário das amostras recolhidas nas estruturas negativas dos contextos Baixo-Imperiais ao Período Islâmico da
Alcáçova de Santarém.
continua
1208
Romano
final /
Fase Baixo-Império Islâmico Islâmico final
Islâmico
inicial
Contexto Fossa 41 Fossa 63 Fossa 96 Fossa 105 Fossa 53 Fossa Fossa 54 Fossa
Setor 2 2 2 2 2 1 2 1
U.E. 31 59 93 98 38 481 22 473
Volume (L) 8 8 14 14 19 9 17 9
Preservação
(Carbonização/Mineralização) Car Min Car Min Car Min Car Min Car Min Car Min Car Min Car Min Total
Leguminosas (sementes)
Lens culinaris 4 1 5
Lathyrus sativus/cicera 3 2 5
Pisum sativum 1 2 3
Vicia faba 1 1 2
Vicia/Lathyrus/Pisum 1 1 2 2 3 9
Vicia/Lathyrus 1 1 9 27 38
Fabaceae – tipo Medicago 1 1 2 4
Fabaceae 1 1 1 1 1 1 6
Frutos
Corema album (semente) 1 1
Corylus avellana (frag. pericarpo) 1 1
Cucumis melo (semente) 28 1 29
Cucumis sp. (semente) 1 1
Ficus carica (aquénio) 1 3 1 11 2 5 10 919 1 1 2 57 2 5138 6153
Malus/Pyrus (semente) 2 1 3
Olea europaea (endocarpo) 5 5
Olea europaea (semente) 1 1
Rubus sp. (semente) 1 1 2 4
Vitis vinifera (semente) 11 21 2 14 48
Vitis vinifera (pedicelo) 2 40 2 44
Oleaginosas/fibrosas/condimentares
Brassica/Sinapis (semente) 15 1 129 1 35 4 5 5 1 6 34 1 30 267
Coriandrum sativum (mericarpo) 1 1
cf. Daucus carota (mericarpo) 1 1
Linum sp.(semente) 4 1 5
Outros
Amaranthaceae (semente) 1 1 2 4
Apiaceae (aquénio) 1 1 9 4 1 13 1 30
Asteraceae (cipsela) 5 2 2 6 15 6 1 6 6 49
Asteraceae – tipo
1 1 1 3
Chrysanthemum (cipsela)
Carex sp. (aquénio) 1 8 41 1 51
Cyperaceae (aquénio) 1 2 1 1 5
Caryophyllaceae (semente) 1 1 4 2 8
Chenopodium sp. (semente) 1 2 3
Corrigiola litoralis/telephiifolia
1 1 2
(aquénio)
Echium sp. (núcula) 1 4 3 1 1 1 1 12
Galium/Asperula (mericarpo) 2 1 3
Lamiaceae (núcula) 1 2 1 1 5
continua
1210
Fase Baixo-Império Romano final/ Islâmico Islâmico final
Islâmico inicial
Contexto Silo 41 Silo 63 Silo 96 Silo 105 Silo 53 Fossa Silo 54 Fossa
Setor 2 1 2 1
Vol. (L) 8 8 14 14 19 9 17 9
U.E. 31 59 93 98 38 481 22 473 Totais
Espécie / Amostra 3, 4 39 21, 22 11, 12 38, 40 47 1, 2 53, 55 Total Total %
Acer sp. 2 2 0,2
Alnus sp. 5 18 2 1 7 1 5 39 3,5
Arbutus unedo 3 2 5 3 13 1,2
Arundo donax 5 5 0,5
Cistus sp. 4 5 5 1 1 7 12 2 37 3,4
Erica scoparia/ 1 1 5 7 0,6
umbellata
Erica sp. 1 5 1 1 2 10 0,9
Ficus carica 1 1 0,1
Fraxinus sp. 92 10 2 13 34 83 9 243 22,1
Juglans regia 1 1 0,1
Fabaceae 3 3 1 7 0,6
Fabaceae tipo V 1 2 1 4 0,4
Olea europaea 1 3 1 7 17 45 11 85 7,7
Pinus pinaster 4 2 3 9 0,8
Pinus pinea/pinaster 1 1 2 4 0,4
Pistacia lentiscus 2 2 0,2
Prunus avium/ 2 2 0,2
cerasus
Prunus sp. 3 3 0,3
Quercus sp. 11 8 1 7 15 36 16 6 100 9,1
caducifólia
Quercus sp. 7 5 2 47 124 6 191 17,4
perenifólia
Quercus suber 1 2 3 0,3
Quercus sp. 1 3 5 4 2 3 18 1,6
Rhamnus/Phillyrea 1 1 1 2 16 2 4 27 2,5
Rosaceae 1 1 0,1
Maloideae
Salix sp. 3 30 4 13 5 6 2 63 5,7
Ulmus sp. 1 3 1 5 1 4 15 1,4
Tamarix sp. 4 4 0,4
Dicotiledónea 39 19 10 7 20 21 42 45 203 18,5
Totais 81 200 44 28 91 200 349 106 1099 100
RESUMO
No centro histórico de Benavente foram identificados contextos funerários durante o acompanhamento arqueo-
lógico da obra na atual Praça da República, local onde outrora se ergueram as Igrejas matrizes da vila. A necrópo-
le aqui identificada representa vários séculos de utilização, de onde se recuperaram 30 indivíduos, seis reduções,
três ossários, vários ossos dispersos e espólio arqueológico diverso. Esta amostra data do século XVII, cronologia
fundamentada através dos materiais recolhidos dos sedimentos de enchimento das sepulturas e sedimentos
envolventes em conjunto com o espólio funerário. Do total de espólio osteológico recuperado, o número mínimo
de indivíduos estimado é de 81, dos quais 77% (62/81) são adultos e 23% (19/81) não adultos.
Palavras-chave: Arqueologia Preventiva; Época Moderna; Antropologia.
ABSTRACT
Some funerary contexts were identified during the archaeological intervention done at the Praça da República,
in the historic centre of Benavente, where the town’s churches were once built. The necropolis identified here
represents several centuries of use, where 30 individuals, six reductions, three ossuary, several disarticulated
bones and diverse archaeological remains were recovered. This sample dates from the 17th century, a chronol-
ogy supported on the materials collected from the grave-filling sediments and surrounding sediments, in com-
bination with the funerary remains. Based on the recovered sample, the estimated minimum number of indi-
viduals is 81, of which 77% (62/81) are adults and 23% (19/81) are non-adults.
Keywords: Rescue Archaeology; Post-Medieval Period; Anthropology.
1216
mento clandestino, não levantou muitas questões jado algo compacto que corresponderá ao terraço
por se tratar de um não adulto (Pereira, 2018). pleistocénico de base, poderão ser medievais ou
No que diz respeito ao espólio associado aos enter- tardo-medievais.
ramentos, foram encontrados alfinetes de sudário, Durante a escavação foram detetadas diversas
principalmente na região torácica e abdominal, con- perturbações nas sepulturas, desde a própria reuti-
tas de rosário (Figura 1), dois pendentes, uma tacha, lização do espaço funerário como tal (Figura 2), até
um alfinete de lapela e objetos metálicos não iden- às fases posteriores, com a realização de obras de
tificados (o seu nível de degradação não permitiu diversa índole (Figura 3). A própria composição do
identificação de forma/uso). A presença destes obje- solo, caracterizado pela sua acidez, e, em alguns
tos é notada em contextos funerários cristãos, sensi- casos, a presença de flora, contribuíram para uma
velmente a partir do século XVII (Rafael et al., 2013; maior fragilidade dos ossos. A maioria das sepultu-
Aronsen et al., 2019). Este espólio estava associado a ras (73%; 22/30) sofreu cortes, quer por obras ou por
15 indivíduos, correspondendo a 75% (6/8) dos não outras inumações.
adultos e a cerca de 41% (9/22) dos adultos. Foram O método para calcular o ICA foi aplicado aos 30
também registados alguns materiais nos enchimen- indivíduos. A preservação da amostra é bastante
tos das sepulturas (não são considerados como es- diferencial, pois foram registados indivíduos com
pólio funerário), normalmente fragmentos de cerâ- valores de ICA acima de 61% (sete esqueletos), as-
mica de uso doméstico e de cerâmica de construção. sim como indivíduos com valores abaixo de 20%
O estudo do material arqueológico recolhido está (sete esqueletos). Estas diferenças podem dever-se
em processamento, mas pode-se, desde já, referir a diversas condições, como os próprios processos de
que, para além da cerâmica comum (cerâmica de decomposição e degradação óssea, que são únicos
pasta vermelha usualmente associada a funções de para cada indivíduo, as diferenças temporais e es-
armazenamento, transporte e cozinha), com formas paciais (em área e/ou profundidade), em conjunto
que, na sua maioria, são já do início da Época Moder- com todas as perturbações supracitadas (Janaway,
na (séculos XVI e XVII), conta-se com o potencial de Percival e Wilson, 2009; Ferreira, 2012; Barker, Ali-
definição cronológica das cerâmicas mais finas, es- cehajic e Naranjo, 2017). Em suma, todos os proces-
pecialmente as faianças. As que se encontram pre- sos tafonómicos ocorridos desde o sepultamento até
sentes no grande depósito que configura a necrópole ao momento da exumação e posterior acondicio-
e aparecem tanto fora dos preenchimentos de sepul- namento são fatores relevantes que condicionaram
turas, como dentro destas, pertencem a produções o estado do material ósseo e, consequentemente, a
que atualmente estão datadas dos períodos IV e V da recolha de dados e a interpretação de resultados.
categorização de Tânia Casimiro (2013; Casimiro et No que concerne aos dados biológicos, do total da
al., 2018), entre 1635 e 1700. São exemplares deco- amostra exumada foi possível estimar um núme-
rados a azul, normalmente de dois tons, sobre fundo ro mínimo de 81 indivíduos, dos quais 77% (62/81)
branco, com motivos de vários tipos (semicírculos são adultos e 23% (19/81) não adultos, distribuídos
concêntricos, linhas verticais, “rendas”, “aranhões”, por diferentes classes etárias (Figura 4). Foi possível
motivos fitomórficos, etc.), nos quais a utilização das realizar a diagnose sexual a 37% (30/81) da amostra,
demarcações e/ou realces a violeta de manganês é já em que 21% (17/81) são indivíduos femininos, 16%
bastante comum. (13/81) são masculinos e os restantes 63% (51/81)
A partir do exame destes achados e em conjunto são de sexo indeterminado (Figura 5).
com a análise do espólio arqueológico recolhido nos Dentro da amostra de esqueletos, os 30 indivíduos
enchimentos de sepulturas e sedimentos envolven- correspondem a um neonatal, três na primeira in
tes, pode-se dizer que estas inumações estariam as- fância, um na segunda infância, uma criança, dois
sociadas à igreja construída em época medieval, de- adolescentes, 19 adultos e três seniores. Quanto à
molida em 1680. Estas sepulturas, nomeadamente distribuição sexual, 12 são do sexo feminino, dez são
as que se situavam nas cotas mais elevadas, poderão masculinos e os restantes oito individuos são inde-
representar os últimos enterramentos realizados terminados, sendo que, destes últimos, seis corres-
no âmbito desta igreja e datarão, grosso modo, do pondem a indivíduos não adultos.
século XVII. Outros enterramentos, que cortaram No ossário nº 1, o NMI é de seis, que correspondem
de forma primária o depósito arenoargiloso alaran- a quatro indivíduos adultos e dois indivíduos não
1218
indeterminado, onde os ossos mais afetados foram ossos, dos quais cinco apresentavam porosidade e
ambos os fémures no ligamento capsular iliofemoral. formação óssea (um corresponde a não adulto) e oito
Nos ossos provenientes dos ossários, também fo- apresentavam estrias longitudinais. Estas alterações
ram registadas este tipo de alterações ósseas, onde coincidem com patologias não específicas, muitas
a contabilização dos ossos observados incidiu sobre vezes decorrentes de uma infeção ou trauma, onde
número máximo de fragmentos presentes com zona ocorrem processos inflamatórios do tecido ósseo,
articular, sem ser tido em conta o NMI. Na análise com presença de porosidade, formação de osso
da patologia articular degenerativa, o número total novo e estrias longitudinais (Roberts e Manches-
de ossos e/ou fragmentos registados foram dez, nos ter, 2010; White, Black e Folkens, 2012). Em termos
quais as vértebras são os ossos mais afetados. Nas gerais, esta alteração foi registada sobretudo nas
alterações das enteses, registaram-se um total de 30 tíbias (provenientes dos ossários), o que é coerente
ossos e/ou fragmentos, onde se verificou maior inci- com o que normalmente é descrito nas populações
dência na fíbula, tíbia, patela e clavícula. arqueológicas (Roberts e Manchester, 2010). Por
De um modo geral, verificou-se que os indivíduos outro lado, as doenças de índole infeciosa, para
adultos mais jovens do sexo feminino apresentavam além de serem difíceis de diagnosticar, muitas das
patologias degenerativas articulares (osteoartro- vezes quando ocorrem não permitem tempo de
se), enquanto no sexo masculino foi registada em sobrevivência suficiente para deixarem marcas nos
indivíduos mais velhos. Já a patologia degenerativa ossos (White e Folkens, 2005).
não articular foi observada principalmente nos adul- Foi ainda registada alteração óssea num frontal
tos do sexo masculino. Estas afetam, sobretudo, os (crânio nº 102 do ossário nº 2), que pode estar asso-
membros inferiores e a coluna vertebral, sendo es- ciada a um possível episódio traumático. Observou-
tas as estruturas que sustentam o peso corporal e a -se uma ligeira depressão de aspeto remodelado
locomoção. As alterações da entese foram registadas na margem supraorbital da órbita direita. Devido à
com alguma frequência nos membros superiores, o fragmentação do osso, surgiram algumas dúvidas
que pode traduzir-se na execução de atividades que quanto à classificação desta alteração como sendo
exigem agilidade, força e apoio. Estas patologias de um possível trauma ou alteração tafonómic. No in-
carácter degenerativo são esperadas com o enve- divíduo nº 27 foi observada a fusão do esterno, entre
lhecimento biológico, mas também com a prática o manúbrio com o corpo. Esta fusão pode não ser
de atividades físicas intensas e/ou contínuas, co- de origem patológica (no restante esqueleto não foi
muns nas populações pretéritas (Assis, 2007). As- identificada nenhuma alteração), podendo ser ape-
sim, pode colocar-se a hipótese de que as mulheres nas o resultado duma anomalia no seu desenvolvi-
jovens desempenhavam atividades quotidianas que mento (Barnes, 2008).
requeriam algum esforço por parte do sistema lo- Para o registo das hipoplasias do esmalte dentário
comotor. Já os homens executariam atividades de foram observados 358 dentes permanentes (72 dos
grande esforço muscular, tanto a nível dos membros ossários e reduções e 286 das sepulturas) e 38 deci
inferiores, como dos superiores, como o transporte duos (sepulturas).
de cargas pesadas, o que é reforçado pela presença A presença de hipoplasias de grau igual ou superior
de nódulos de Schmorl e osteófitos nas vértebras a 2 foi registada em apenas 20 dentes permanentes e
torácicas e lombares dos indivíduos mais velhos em nenhum dente decíduo. Destes, 11 dentes corres-
(Cunha, 1994). pondem a um indivíduo adulto feminino e os restan-
Também foram registadas alterações do periósteo tes oito dentes são dos ossários.
em dois indivíduos adultos (esqueletos nº 3 e nº 18). Quando se analisou a presença de hipoplasias quan-
No indivíduo nº 3, foi observada, na fíbula esquerda, to ao seu grau e tipo de dente, verificou-se que o
formação de osso novo e porosidade na face lateral dente mais afetado foi o incisivo central, como era
e posterior ao longo de toda a diáfise. No indivíduo de esperar, uma vez que a dentição anterior é a mais
nº 18, registou-se espessamento ósseo com alguma hipoplásica (Ortner, 2003; Lewis, 2007). A cribra or
porosidade em ambos os rádios (faces posteriores) e bitalia foi registada em apenas duas órbitas, classifi-
nas ulnas (todas as faces) nas porções distais. cadas com o grau 2, que corresponde a um indivíduo
Nos ossos dos ossários e das reduções também fo- não adulto presente no ossário nº 2.
ram identificadas alterações no periósteo em 13 Os indicadores de stress fisiológico não permitiram
da amostra ser pequeno, também poder ser interpre- ARONSEN, Gary, FEHREN-SCHMITZ, Lars, KRIGBAUM,
tado no sentido dos indivíduos analisados poderem John, KAMENOV, George, CONLOGUE, Gerald, WARIN-
ter tido acesso a melhores condições de vida, tal NER, Chirstina, OZGA, Andrew, SANKARANARAYANAN,
Krithivasan, GRIEGO, Anthony, DELUCA, Daniel, ECKLES,
como uma dieta mais variada e nutritiva, melhores
Howard, BYCZKLEWLCZ, Romuald, GRGURICH, Tania,
hábitos de higiene e, inclusive, acesso a cuidados de PELLETIER, Natalie, BROWNLEE, Sarah, MARICHA, Ana,
saúde, principalmente nas suas fases de crescimento WILLIAMSON, Kylie, TONOLKE, Yukiko, BELLANTONI,
e desenvolvimento. Nicholas (2019) – “The dead shall be raised”: Multidisci-
plinary analysis of human skeletons reveals complexity in
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 19th century immigrant socioeconomic history and iden-
tity in New Haven. PLOS ONE. 14:9, https://doi.org/10.1371/
journal.pone.0219279.
Resumidamente, o cemitério medieval e moderno
de Benavente localizava-se no espaço atualmente ASSIS, Sandra (2007) – A memória dos rios no quotidiano
dos homens: contributo de uma série osteológica proveniente
ocupado pela Praça da República. Informações mais
de Constância para o conhecimento dos padrões ocupacionais.
antigas sugeriam este cenário e testemunhos colhi-
Dissertação de Mestrado em Evolução e Biologia Huma-
dos, no período em que a intervenção foi realizada, na. Faculdade de Ciências e Tecnologias, Universidade de
apontavam para o aparecimento reiterado de ossos Coimbra.
humanos sempre que se efetuavam obras de instala-
AZEVEDO, Álvaro (1981) – Benavente: estudo histórico
ção de infraestruturas. ‑descritivo. Lisboa: Câmara Municipal de Benavente.
Esta pequena amostra apresenta, grosso modo,
BARNES, Ethne (2008) – Congenital Anomalies. In PINHA-
alguma variabilidade com indivíduos de todas as
SI, Ron, MAYS, Simon, eds. – Advances in Human Paleopa
faixas etárias presentes. A morte em adultos mais thology. West Sussex: John Wiley & Sons, Ltd, pp. 329-362.
jovens e crianças pode refletir condições de vida
BROOKS, Samantha, SUCHEY, Judy Myers (1990) – Skel-
menos favoráveis (Milner et al., 1989), podendo ser
etal age determination based on the pubis: a comparison of
resultado de causas diversas, em que os indivíduos
the Acsádi-Nemeskéri and Suchey-Brooks methods. Human
mais frágeis não conseguiram resistir às adversida- Evolution. 5:3, pp. 227-238.
des, muitas vezes em determinados períodos de cri-
BRUZEK, Jaroslav (2002) – A Method for Visual Determina-
se (Moreira, 2008; Rodrigues, 2008). Representam
tion of Sex, Using the Human Hip Bone. American Journal of
a parte da população menos resistente a condições Physical Anthropology, 117:2, pp. 157-168.
de vida mais duras, ou seja, a parte que não sobre-
BUIKSTRA, Jane, UBELAKER, Douglas, eds. (1994) – Stan
viveu. Por outro lado, a presença de indivíduos mais
dards for data collection from human skeletal remains. Fayette-
velhos demonstra a relativa resistência de alguns aos ville: Arkansas Archaeological Survey.
desafios da vida precária existente na Idade Média/
CARDOSO, Hugo (2005) – Patterns of Growth and Develop
Idade Moderna.
ment of the Human Skeleton and Dentition in Relation to En
Porém, é importante ressaltar o cuidado necessário
vironmental Quality: a Biocultural Analysis of a 20th Century
na interpretação desses dados, pois além de ser uma Sample of Portuguese Documented Subadult Skeletons. Hamil-
amostra muito pequena, a área sofreu muitas altera- ton (ON): McMaster University.
ções e não foi totalmente escavada. As conclusões e
CASIMIRO, Tânia Manuel (2013) – Faiança portuguesa: da
hipóteses apresentadas não são suficientes para ca- tação e evolução crono-estilística. Revista Portuguesa de Ar
racterizar esta população, mas ajudam a criar uma queologia.16, pp. 351-367.
ideia mais próxima de como era o quotidiano em Be-
CASIMIRO, Tânia Manuel, HENRIQUES, João Pedro, FILI-
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Tabela 1 – Resumo da Identificação, relações estratigráficas, fatores tafonómicos, resultado do ICA, localização e cronologia
dos contextos escavados.
1222
Continuação
Indivíduo nº 24 [6043] Sobre sep. 25, cortado por Solo ácido, 19% Zona D Século XVII
sep. 27 e vala compressão, corte
Indivíduo nº 25 [6046] Sob sep. 24, corta sep. 26 e Solo ácido, corte 38% Zona D Século XVII
cortado por sep. 27 e vala
Indivíduo nº 26 [6049] Cortado por sep. 25, 27 e vala Solo ácido, corte 13% Zona D Século XVII
Indivíduo nº 27 [6052] Corta sep. 24, 25, e 26 e cortado Solo ácido, corte 87% Zona D Século XVII
(desconhecido)
Indivíduo nº 28 [6076] Cortado por passeio antigo e Solo ácido, 30% Zona D Século XVII
outro (desconhecido) compressão, corte
Indivíduo nº 31 [6079] Corta redução 27 Solo ácido, 93% Zona D Século XVII
compressão (ligeira)
Indivíduo nº 34 [6092] – Solo ácido, 78% Zona D Século XVII
compressão (ligeira)
Indivíduo nº 35 [6100] Perturbado pela vala rega Solo ácido 59% Zona D Século XVII
Indivíduo nº 36 [8011] Cortado por alicerce Igreja e Solo ácido, 12% Zona A Século XVII
aterro compressão (ligeira),
corte
Indivíduo nº 37 [9010] Corta sep. 41 Solo ácido, 76% Zona A Século XVII
compressão (ligeira),
flora
Indivíduo nº 41 [9015] Cortado por sep. 37 e redução 37 Solo ácido, corte 34% Zona A Século XVII
Indivíduo nº 42 [9019] Perturbado pela sep. 6 e cortado Solo ácido, 31% Zona A Século XVII
(desconhecido) compressão (ligeira),
corte
Abreviaturas: U.E. – unidade estratigráfica; sep. – sepultura; ICA – Índice de Conservação Anatómica; NA – não aplicável
Continua
1224
Tabela 3 – Identificação, contexto funerário, NMI e dados biológicos dos ossários e reduções escavadas.
Figura 3 – Exemplo das perturbações sofridas pela realização de obras, colocação de tubos sem acompanhamento arqueológico
que cortou o indivíduo nº 10.
1226
Figura 4 – Distribuição de toda a amostra analisada pelas diferentes classes etárias.
Figura 5 – Resultado da diagnose sexual realizada no total da amostra, distribuída pelas classes etária.
RESUMO
Os edifícios n. 17 e 19 da Rua de Judiaria em Castelo de Vide foram alvo de um projeto de requalificação por parte
do Município, tendo como objetivo a sua reabilitação e fruição como espaço público de comércio e habitação.
Iniciados os trabalhos de Acompanhamento Arqueológico, foi necessário, dado os resultados obtidos, alterar a
metodologia para escavação integral das 3 salas que compunham o rés-de-chão. Em todas elas foram detetadas
estruturas negativas (silos e outros) e um tanque, que dadas as suas dimensões, construção, localização e presen-
ça de materiais como alfinetes de cabelo, poderão indiciar a presença de um Mikvá. O edifício em questão está lo-
calizado em frente da Sinagoga de Castelo de Vide e poderá tratar-se da eventual casa do Rabino do séc. XV/XVI.
Palavras-chave: Castelo de Vide; Judiaria; Mikvá.
ABSTRACT
The number 17 and 19 of Jewish Street in Castelo de Vide were the target of a requalification project by the
Municipality, aiming at their rehabilitation and enjoyment as a public space for commerce and housing. Once
the work of archaeological aonitoring began, it was necessary, given the results obtained, to change to the full
excavation of the 3 rooms that made up the ground floor. In all of them, negative structures (silos and another
storage systems) and a tank were detected, which given their dimensions, construction, location and presence
of materials such as hair pins, may indicate the presence of a Mikvah. The building in question is located in front
of the Synagogue of Castelo de Vide and may be the eventual house of the Rabbi of the century. XV/XVI.
Keywords: Castelo de Vide; Jewish; Mikvá.
1230
cave, é uma parede cega que encosta a um terreno vi- Ainda em fase de estudo e com resultado inconclu-
zinho, onde apenas o 2 piso se encontra desenterrado. sivos, consideramos que seria importante avançar
No exterior, a fachada principal apresenta 2 vãos, com os resultados preliminares da Sala 2, onde foi
um deles em ogiva com portal em pedra onde arran- identificado um tanque que poderá corresponder ao
cam impostas com arestas vivas e elementos vege- Mikvá9. (Figura 5)
tais. Possui duas janelas, sendo uma delas em pedra, O compartimento em causa é exíguo, possuindo cer-
apresentando um esgrafito (no seu interior possui ca de 5,50m2, com acesso por um vão de arco abati-
as famosas namoradeiras/conversadeiras típicas de do. A parede norte tem um pequeno compartimento
Castelo de Vide). que possuiria prateleiras.
Logo após a limpeza dos entulhos no interior do Os trabalhos iniciaram-se com a limpeza da sala,
imóvel detetou-se o abatimento do piso em lajes de libertando-a do lixo acumulado depositado direta-
xisto em dois pontos específicos da sala principal. mente sobre um piso em lajes de xisto, semelhante
A remoção do piso e da camada onde este assenta- a todos os compartimentos do rés-do chão. O piso
va, colocou a descoberto realidades arqueológicas assentava diretamente numa camada castanha-es-
nas três salas existentes. Na sala principal, também cura, heterogénea e desagregada, com fragmentos
denominada Sala 1, foram detetados pisos e 8 estru- de cerâmica de construção, alguma cerâmica co-
turas negativas (silos); na Sala 2 identificou-se um mum e pedras de diferentes dimensões. Removida
tanque e na Sala 3 um silo e 2 estruturas negativas de esta camada, identificámos outra também castanha-
retenção (?), cortadas pela colocação de uma parede -escura, compacta e com ossos de animais e alguma
que divide as duas salas. (Figura 3) cerâmica. Foi a remoção desta última que permitiu
O espólio arqueológico identificado nos silos é di- verificar o que seria um alinhamento em pedra de
versificado, verificando-se que todos os silos foram forma retangular. A sua escavação permitiu aferir a
abandonados e atulhados com lixo e material diver- existência de três camadas distintas. Em todas elas
so, dos quais destacamos fauna mamalógica, cerâmi- foram detetados materiais arqueológicos, dos quais
ca comum, cerâmica vidrada, faianças, porcelanas, destacamos cerâmica comum, nomeadamente frag-
escórias, alfinetes, agulhas, moedas e outros metais. mentos de grandes contentores (talhas e potes) e de
A estrutura de tanque identificada na Sala 2, dadas as construção (fragmentos do reboco do tanque e ou-
suas dimensões, construção, localização e a presen- tros), vidrada e faiança (em menor número do que
ça de materiais associados, nomeadamente alfinetes as restantes). Nos metais destacamos os alfinetes de
de cabelo, poderão indiciar a presença de um Mikvá. cabelo comuns em todas as camadas (Figura 6), um
(Figura 4) dedal e uma chave (Figura 7), um fecho de livro e um
Também no edifício identificado como sinagoga, que passador (Figura 8), escórias e outros ferros indeter-
se situa em frente a edifício alvo da nossa interven- minados. Detetamos nas duas últimas camadas de
ção, foram realizadas intervenções arqueológicas que enchimento do tanque, 18 numismas e do que foi
permitiram a identificação de silos escavados na ro- possível apurar pertencentes a D. Afonso V (1438-
cha, sendo que um deles apresentava vestígios de ter 1481). (Figura 9)
sido forrado com cortiça. Os diferentes níveis estra- O tanque (Mikvá?) detetado tem cerca de 2,5 x 0,80,
tigráficos observados na intervenção da sinagoga in- com uma profundidade de 1,5m. Para a sua constru-
diciam a existência de pelo menos três fases distintas ção terá sido escavada a rocha, tal como em todas as
de ocupação: uma mais antiga que remonta aos finais estruturas negativas detetadas na intervenção.
do século XIV; silos que estiveram em uso até meados Apesar de não ter sido possível ainda detetar a forma
do século XVI e outros com abandono mais tardio. de entrada e saída de água para a estrutura (será ne-
Os resultados preliminares da nossa intervenção
vêm de encontro aos verificados na intervenção da 9. Estrutura quadrangular ou retangular para reter água de
sinagoga de Castelo de Vide. Verificamos assim uma uma fonte natural ou da chuva, com o objetivo de ser pos-
sível um judeu/judia imergir totalmente para se purificar.
contemporaneidade dos estratos mais antigos (sé-
Esta limpeza espiritual é ordenada pela Torá às esposas ju-
culo XIV) e alterações no edifício durante os séculos
dias após o seu período menstrual, assim como é utilizado
XV e XVI (abandono e abertura de novos silos), coin- após o nascimento de um filho, pela conversão ao judaísmo
cidindo com o fim da liberdade de culto dos judeus ou outras ocasiões e celebrações importantes para a comu-
em Portugal. nidade judaica.
BIBLIOGRAFIA
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A. H. de Oliveira Marques), Lisboa, I.N.I.C., Centro de Estu-
dos Históricos da U.N.L, 1984.
1232
1233
3.81
.76
1.00m² TE
PG
.76
PG
.87
TM
.90
PG
PG TE
PG
Pi2
INST. SANIT.
1.25m² + 1.00m²
1.54
1.28
PG
TE
.65
.54
.60
.80
LOJA / CASA DE CHÁ (ENTRADA)
16.75m²
Pi1
ARRUMOS
PRC
PG
PRP
.77
TM
PG
Refrigerada
C C
Bancada
MLoiça
1.11
.38 .35
Pe1
Pe2
1.30 1.17 2.04 .68 .84
PISO TÉRREO A B
REVESTIMENTOS E ACABAMENTOS
PVM - Pavimento em reguado de madeira de castanho, 15mm TM - Teto - estrutura em madeira - vigas e barotes à vista
PRC - Paredes em reboco, reabilita cal acabamento, da "Secil" TE - Teto em gesso cartonado
ou equivalente com pintura à base de silicatos
P - Portas em madeira de castanho
PRP - Paredes em reboco e pintura a tinta aquosa
PG - Pavimento em lajetas de granito
PRE - Paredes em reboco e pintura a tinta de esmalte aquoso
NOTA: Sempre que se tratar de parede existente aplicar-sr-á no revestimento das paredes rebocos tipo "reabilita cal" ou equivalente
0 0,5 1m
1234
Figura 3 – Aspeto geral da fachada do edifício alvo de intervenção.
1236
Figura 6 – Plano final da Sala 2.
Figura 7 – Alfinetes de cabelo (U.E. 011 e U.E. 012). Figura 8 – Dedal da U.E.005.
Figura 11 – Sala 3.
1238
A COLEÇÃO DE ESTANHO DE ESPOSENDE 1
Elisa Maria Gomes da Torre e Frias-Bulhosa2
RESUMO
Este artigo aborda o estudo da coleção de objetos de metal da exposição «Patrimónios Emersos e Submersos –
Do Local ao Global», focando-se especialmente nos objetos de estanho. Esta coleção resulta do achado de uma
embarcação da Época Moderna naufragada. Através da inventariação dos objetos em estudo, desenvolveu-se
uma análise formal e funcional. Procura-se evidenciar o escasso estudo dedicado aos objetos de estanho em
Portugal, para além de dissecar as metodologias utilizadas internacionalmente e documentar a discrepância de
informação entre os diferentes contextos científicos que se têm dedicado ao tema.
Palavras-chave: Naufrágio; Objetos de estanho; Época Moderna; Belinho (Esposende).
ABSTRACT
This article addresses the study of the collection of metal objects of the exhibition «Patrimónios Emersos e Sub-
mersos – Do Local ao Global», focusing especially on pewter objects. This collection results from the discovery
of a Modern Period shipwreck. Through inventorying the objects under study, a formal and functional analysis
was developed. It seeks to highlight the scarce study dedicated to pewter objects in Portugal, besides dissecting
the methodologies used internationally and documenting the discrepancy of information between the different
scientific contexts that have been dedicated to the subject.
Keywords: Shipwreck; Pewter objects; Modern Age; Belinho (Esposende).
Após sucessivas tempestades, no inverno de 2014, lião da Barra, nos anos 90. Apesar de Portugal ter en-
reconheceu-se um importante sítio arqueológico su- riquecido com estes dois achados que contam com
baquático, situado na Praia de Belinho, em Esposen- um numeroso espólio de objetos em estanho, não se
de. Este achado constitui um importante conjunto manifestou entusiasmo suficiente para desenvolver
de madeiras, de objetos de metal, concreções fer- esta temática no contexto científico. Note-se que
rosas e pelouros em pedra, tendo estes sido arroja- apesar de haver muitos objetos de estanho preser-
dos à costa pelo mar ou mantendo-se ainda no meio vados de geração em geração, são escassos os ob-
subaquático, provenientes de um naufrágio que terá jetos anteriores a 1600 (NORTH, 1999, pp. 10, 33),
ocorrido há centenas de anos. uma vez que era comum a matéria ser fundida, para
Do seu acervo, destacam-se os objetos produzidos produção de um novo objeto (GOTELIPE-MILLER,
em estanho, uma vez que se trata do material pre- 1990, p. 8; NORTH, 1999, pp. 10, 33), os objetos se-
dominante do achado. Estes objetos foram muito rem remodelados e atualizados aos novos gostos
valorizados ao longo da nossa história, pois, até à e estilos (BURGESS, 1921, p. 61), ou simplesmente
contemporaneidade, seriam objetos presentes no descartados (GOTELIPE-MILLER, 1990, p. 8). Nes-
quotidiano de qualquer casa que fosse capaz de os te sentido, valoriza-se intensamente estes dois acha-
adquirir (REDMAN, 1903, p. 8). Contudo, no con- dos por possibilitarem o estudo de objetos intocados
texto científico português, trata-se de um âmbito durante séculos.
temático muito pouco explorado. Semelhante ao Entende-se que o domínio do estanho entre os ob-
achado de Belinho, destaca-se o achado de São Ju- jetos do quotidiano da Época Moderna floresceu
1. Esta publicação integra o trabalho desenvolvido no segundo ano do Mestrado em História da Arte, Património e Cultura Visual, na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, no contexto de um estágio curricular no Centro Interpretativo de São Lourenço, em
Esposende. O trabalho foi orientado pela Professora Doutora Ana Cristina Sousa e supervisionado pela Dra. Ana Paula Almeida, da
Câmara Municipal de Esposende.
2. [email protected] / [email protected]
1240
tos semelhantes produzidos aproximadamente em também nos fazem questionar essas mesmas balizas
1400 (NORTH, 1999, p. 54). Tal facto propõe a exis- temporais que limitam as características formais de
tência desta forma anterior à datação supracitada. um objeto. A seleção presente nas seguintes ima-
Relativamente à tipologia formal exposta na ima- gens é suficiente para comprovar que recorrente-
gem 2, lê-se que esta predomina, a partir do último mente vemos pratos de fundo em ônfalo posteriores
quartel do século XVII, especificamente após 1670 ao século XVI, além de se reconhecer uma variedade
(RAYMOND, 1949b, p. 111; BORNTRAEGER, 1950, de proporções para as abas, profundidade do covo e
p. 146; WEINSTEIN, 2011, p. 80). diâmetro dos pratos. As casas de bonecas, datadas
Neste ponto, confrontamo-nos com o primeiro im- dos séculos XVII e XVIII e integradas na imagem 3,
passe no processo de datação dos pratos achados esclarecem muito rapidamente sobre a convivência
em Belinho. Como poderá uma parte do achado ser das formas. Nas suas cozinhas, que refletem certa-
datada entre 1530 e 1670 e uma outra ser datada mente as cozinhas do seu tempo, encontram-se si-
posteriormente a 1670, quando todos eles são trans- multaneamente pratos rasos ou fundos, de aba curta
portados por uma mesma embarcação e, por isso, ou larga e com fundo em ônfalo ou raso.
paradoxalmente estarem todos eles no mesmo lugar Esclarecendo a necessidade de repensar as balizas
e ao mesmo tempo? A autora Brigadier enumera ce- temporais para já definidas, a autora Gotelipe-Miller
nários que possam justificar uma forma continuar a afirma:
existir fora do seu tempo dominante. Primeiramen- «Since the available dating schemes have been
te, afirma que alguns objetos poderiam ser utiliza- compiled from flatware survived in attics, or
dos durante meio século (BRIGADIER, 2002, pp. have been passed down through generations as
102-103). Para além disso, as preferências pessoais, keepsakes or “collector’s items”, it is felt that
tanto dos fabricantes como dos compradores, são these are biased towards the more remarkable
determinantes para as formas que são produzidas examples of pewter manufacture, and that ev-
independentemente do seu tempo (BRIGADIER, eryday utilitarian wares are not well represent-
2002, pp. 102-103). Este entendimento enquadra a ed. Indeed we may see a Shift in existing dating
sua afirmação «dating unmarked pewter based on horizons as more archaeological pewter is re-
shape is simply impossible» (BRIGADIER, 2002: covered.» (GOTELIPE-MILLER, 1990: 29).
103). Neste seguimento, depreende-se que a sobre-
categorização das formas e a datação dogmática dos 2. AS MARCAS NOS PRATOS DE ESTANHO
objetos de estanho da Época Moderna não são ade-
quadas à realidade de fabrico destes objetos, pelo Durante a investigação foram encontradas 54 mar-
que não é apropriado seguir escrupulosamente estas cas em pratos. Contudo, havendo um elevado núme-
balizas limítrofes. ro de objetos que não passaram ainda por interven-
Note-se que o achado de Belinho não é a única cole- ções de conservação e de restauro, reconhece-se que
ção de objetos que contesta a veracidade e a adequa- poderá haver mais marcas por detetar e que algumas
ção das balizas temporais que têm vindo a ser defi- poderão ser achadas somente após estas interven-
nidas. Também os objetos achados em Punta Cana, ções, à imagem do que aconteceu no achado de Pun-
tratados no relatório feito por ROBERTS (2013) e os ta Cana (ROBERTS, 2013, p. 5).
objetos achados em São Julião, estudados por CAS- O reconhecimento da tipologia das marcas foi difícil,
TRO (2000) e BRIGADIER (2002), confirmam a so- devido ao mau estado de conservação dos objetos e
brevivência das formas para lá das balizas que autores à irregularidade do material. Várias vezes se ques-
anteriores criaram. Após a análise das três publica- tionou se algum elemento seria de facto uma marca
ções, conclui-se que os autores reconheceram que as ou somente a textura anormal do estanho corroído,
formas dos pratos achados são tão válidas para mea- resultante da exposição à água do mar durante sé-
dos do século XVI como para o início do século XVII, culos. Reconhecendo-se uma marca, em alguns dos
confirmando a ideia de que as formas sobrevivem ao casos foi difícil compreender a sua forma. Não obs-
longo da Idade Moderna com muita consistência. tante, identificou-se duas tipologias. A mais comum
Em segundo, pinturas e esculturas da Época Moder- entre o achado é o martelo coroado, totalizando 44
na, que incluem representações de objetos do quoti- marcas. A segunda marca é irreconhecível, porém
diano de estanho, e objetos de estanho musealizados sugere ou uma rosa coroada, como foi proposto an-
1242
séculos? Como reconhecer o seu local de produção aparição da marca rosa coroada data de 1523, na An-
quando a sua propagação é tão ampla? tuérpia, atuando como marca de qualidade (GADD,
Quanto à sua datação, por comparação com marcas 1999, p. 8; WEINSTEIN, 2011, p. 191). A partir daí,
estudadas por outros autores, reconhece-se uma tornou-se uma marca de exportação para os obje-
semelhança formal com uma marca datada do sé- tos de estanho londrinos, talvez a favor da vontade
culo XVI, outra de meados do mesmo século e uma dos importadores e mercadores emigrantes (GADD,
última datada de 1638. Neste sentido, sugere-se a 1999, p. 8). De facto, não é claro qual dos dois valores
hipótese de a marca do achado de Belinho datar do terá sido associado primeiro à marca rosa coroada.
século XVI e primeira metade do século XVII. Quan- Contudo, um objeto marcado com esta seria tido
to ao seu contexto geográfico, as marcas expostas como de qualidade, uma vez que a marca rosa coroa-
na imagem acima são provenientes de Inglaterra, da ou significava qualidade ou que era de exportação
França, Países Baixos, Alemanha e Suíça, pelo que inglesa. Sendo que Inglaterra foi o maior produtor e
dificilmente se compreenderá em que contexto se exportador europeu, durante a Idade Moderna, os
enquadra a marca do achado de Belinho. seus produtos eram muito procurados.
Quanto à sua função, questiona-se se originalmen- Acrescenta-se, ainda, a hipótese de Weinstein, que
te não se trataria da marca de uma guilda inglesa diferencia a rosa coroada ladeada pelas iniciais do
(WEINSTEIN, 2011, pp. 45, 120, 135, 143, 166) e se, monarca como uma marca de exportação inglesa; a
somente mais tarde, lhe foi atribuído o valor de mar- rosa coroada ladeada pelas iniciais do autor do obje-
ca de qualidade. Também se levantou a hipótese de to como uma marca pessoal do produtor; e, por fim,
se tratar de uma marca de cidade ou de região dedi- a rosa coroada isolada como uma marca de qualida-
cada ao trabalho em estanho, sugestão proposta por de (WEINSTEIN, 2011, p. 187).
HAGNAUER (1948: 57). A proposta de a marca de Belinho corresponder a
uma letra capital surgiu na sequência da identifica-
2.2. A rosa coroada? Ou a letra capital? ção de uma marca correspondente a um H, no in-
A segunda marca reconhecida é de difícil interpreta- ventário NEISH, RICKETTS (2018, p. 30). Esta está
ção. A proposta feita anteriormente é que se trate de marcada num prato inglês datado de 1490 a 1530.
uma rosa coroada, marca muito comum no estanho A aproximação formal é notória. Infelizmente, ainda
da Idade Moderna. Contudo, devido ao elevado ní- não foi possível avançar mais com a hipótese, pois
vel de degradação de todos os exemplares achados, trata-se de uma semelhança formal única.
não se pode afirmá-lo com a devida certeza. Igual-
mente possível é a hipótese de se tratar de uma letra 3. AS ESCUDELAS DE ESTANHO
capital. Em todos os casos, a marca encontra-se pun-
cionada no reverso da aba, ao contrário das marcas Na seleção em estudo, identificaram-se três escu-
do martelo coroado analisadas anteriormente. delas de estanho. A função mais antiga conhecida
Após o levantamento de marcas rosa coroada com- para esta tipologia é a de servir comida semilíquida
preende-se que a estilização mais comum não se as- como caldos, sopas e papas (HAYWARD, MARS-
semelha à composição formal da marca achada em DEN, 2015, pp. 10, 11). Contudo, a escudela servia
Belinho. Comummente, a marca possui uma compo- muitos outros propósitos. Nas palavras de MICAHE-
sição circular, enquanto que, no achado de Belinho, LIS (1949a: 23), «It is probably quite true to say that
tal não ocorre. De qualquer modo, procurou-se saber porringers were, at times, used for all the purposes
mais sobre a marca rosa coroada. É comum esta ser indicated by their various appellations».
interpretada como uma marca de qualidade (RED- Partindo da metodologia aplicada no estudo de Hay-
MAN, 1903, p. 24; GADD, 1999, p. 8). Contudo, esta ward e Marsden, compreende-se que a análise for-
afirmação ainda é alvo de muita discussão. Alguns mal desta tipologia está muito compartimentada. Os
estudiosos defendem que a rosa coroada seria uma elementos de análise são o fundo do covo, as paredes
marca de exportação inglesa (REDMAN, 1903, p. 14; deste, as asas e, por fim, os brackets. Os brackets são
WEINSTEIN, 2011, p. 160), copiada, posteriormen- um elemento estrutural que reforça o ponto de liga-
te, pelos países do Norte da Europa enquanto marca ção entre as asas e o covo do objeto, encontrando-se
de qualidade (MASSÉ, 1910, p. 193; MASSÉ, 1921, pp. por baixo das asas. Neste sentido, reconhece-se que
140-141). Dois autores mencionam que a primeira uma das escudelas estudadas possui um covo de fun-
1244
to do rat-tail é anterior ao século XVII. Apesar de a facilmente descartado, o que contribuiu para a sobre-
informação bibliográfica ser corroborada pelos obje- vivência de menos exemplares musealizados. Para
tos levantados, esta informação pode, mesmo assim, além disso, por parte dos próprios equipamentos cul-
não ser válida. Um conjunto de cenários justifica o turais, poderá não ser um objeto muito privilegiado,
facto de não terem sido encontradas mais colheres levando a que seja mais difícil conseguir acesso a in-
formalmente semelhantes àquelas em estudo. Entre formação sobre esta tipologia.
eles, o descarte de objetos; a refundição destes, para
aproveitamento do metal, criação de novas peças e a 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
remodelação de objetos. Para além disso, é essencial
ter em conta que não é possível encontrar um núme- Face à falta de publicações científicas portuguesas
ro tão elevado de colheres musealizadas comparati- centradas na questão, a bibliografia estrangeira, es-
vamente aos restantes objetos. pecialmente inglesa, é fundamental para colmatar
Neste sentido, enfatiza-se que não se deve partir de as lacunas que envolvem o tema em análise tema.
uma pequena seleção de peças musealizadas para A Inglaterra é o país que mais produz e divulga in-
datar a evolução formal dos objetos, sem ter em con- formação científica sobre objetos de estanho. Para
sideração os variados e muito comuns cenários que além disso, valorizou-se publicações sobre achados
justifiquem o desaparecimento de uma tipologia for- de espólios de objetos de estanho, naufragados ou
mal a partir de um determinado período. escavados. Duas destas publicações tratam o achado
português de São Julião da Barra. Naturalmente, as
5. O BACIO DE ESTANHO publicações da equipa de investigação sobre o acha-
do de Belinho foram fundamentais para compreen-
Na seleção em estudo, integra-se um objeto classi- são da informação já produzida sobre a coleção em
ficado como um bacio. De facto, reconhece-se que estudo. Note-se que o seu âmbito não se particulari-
esta identificação é provável, uma vez que foram za nos objetos de estanho, abordando, de forma mais
achados objetos formalmente muito semelhantes. geral, a totalidade das tipologias e dos materiais do
Contudo, tendo em conta a sua dimensão, também achado de Belinho, sob a perspetiva da Arqueologia.
se reconhece a hipótese de se tratar de uma caneca Neste sentido, o contributo de uma perspetiva da
ou de um jarro. Devido ao seu estado de degradação, História da Arte, dos Estudos Patrimoniais e da Cul-
a tipologia não é facilmente reconhecível. tura Visual é inovadora.
Após se reconhecer que não existe bibliografia es- Privilegiando estas três perspetivas, a primeira fase
pecífica sobre bacios, as únicas fontes para o estudo metodológica consistiu na observação dos objetos
deste objeto foram representações imagéticas de em estudo e na análise da bibliografia levantada, de
objetos semelhantes e bacios musealizados formal- objetos musealizados e de representações de objetos
mente próximos. formalmente semelhantes às peças em estudo. Numa
Novamente, o levantamento imagético comprova segunda fase, confrontou-se estas quatro esferas de
a existência de várias formas muito idênticas, ao informação recolhida. Desta maneira, cumpriu-se
longo de vários séculos, com exemplares desde o sé- os principais objetivos da investigação: compreender
culo XVI até ao XVIII. Esta forma possui um corpo este conjunto de objetos patrimoniais, incluindo uma
oco, semelhante a um jarro, com uma ou duas asas. perspetiva da História da Arte, dos Estudos Patrimo-
Compreende-se que, tratando-se esta de uma forma niais e da Cultura Visual; criar um alicerce para uma
muito funcional, não houve necessidade de a alte- futura divulgação dos objetos; reconhecer a impor-
rar consideravelmente. Independentemente disso, tância deste achado e, por fim, promover o seu reco-
reconhece-se algumas variantes estruturais e for- nhecimento por parte da comunidade.
mais. Exemplificando, é possível encontrar bacios Face ao que foi apresentado ao longo do presente
modernos com tampa, com uma ou duas asas, mais texto, reconhece-se a inadaptação das balizas tem-
ou menos onduladas, num alargado leque material porais para já criadas, sustentadas sob preconceitos
que inclui cerâmica e outros metais. dogmáticos relativos às características formais dos
Infelizmente, uma vez que se trata de um objeto mui- objetos. Em segundo, confronta-se a inadequação
to mundano, não lhe deverá ter sido atribuída muita da informação conseguida através do estudo de uma
importância ou atenção. Tratar-se-ia de um objeto pequena seleção de objetos, sem ter em considera-
a sobrevivência de uma forma para lá do seu tempo BRIGADIER, Sarah (2002) – The artifact assemblage from the
dominante. Nesse sentido, evidencia-se a necessi- Pepper Wreck. Texas: Texas A&M University. Dissertação de
dade por criar novos alicerces teóricos para o estudo mestrado.
dos objetos de estanho. Por fim, reconhece-se como BURGESS, Fred (1921) – Silver: Pewter: Sheffield Plate. Lon-
essencial avançar no estudo das marcas de estanho, dres: George Routledge & Sons, LTD.
cultivando uma mais imediata e mais acessível par- CASTRO, Filipe (2000) – Pewter Plates from São Julião da
tilha de informação. Barra, a 17th century site at the mouth of the Tagus river, Lisbon,
Conclui-se que o presente tema apresenta um gran- Portugal. Texas: College Station.
de potencial e possui um leque de tópicos ainda into- GADD, Jan (1999) – The Crowned Rose as a secondary touch
cados, à escala nacional e internacional. Entre estes on pewter. The Journal of The Pewter Society. [S.l.]. Vol. XII. 2.
enumera-se a produção e importação de objetos de
GOTELIPE-MILLER, Shirley (1990) – Pewter and Pewterers
estanho em Portugal (ZELLER, 1985; BRIGADIER,
from Port Royal, Jamaica: Flatware before 1692. Texas: Texas
2002); o comércio deste tipo de objetos (HORNSBY, A&M University.
1981, P. 141), incluindo a relação entre a sua produ-
HAGNAUER, Maximilian (1948) – Touchmarks on swiss pew
ção, venda, transporte, exportação e importação; a
ter. The Bulletin – The Pewter Collectors’ Club of America. II. 3,
compreensão da produção de objetos de estanho a pp. 49-52.
partir da análise do espaço físico das oficinas que os
HAYWARD, Peter; MARSDEN, Mike (2015) – English Porrin
produziam (EGAN, 1996, p. 83) e, por fim, o lugar da
gers post-1650: Part 1. Journal of the Pewter Society. Outono.
mulher na produção de estanho (MASSÉ, 1910, pp.
53-54). Muitas poucas considerações foram feitas re- HAYWARD, Peter; MARSDEN, Mike (2016) – English Porrin
gers post-1650: Part 2. Journal of the Pewter Society. Primavera.
lativamente aos temas citados.
Especificamente no caso do achado de Belinho, re- HINTZE, Erwin (1921) – DIE DEUTSCHEN ZINNGIESSER
comenda-se fazer uma análise química dos objetos UND IHRE MARKEN BAND II: NÜRNBERGER ZINNGIES
achados, para melhor compreensão do seu contexto SER. Leipzig: Hiersemann.
geográfico de produção (WEINSTEIN, 2011, p. 24); HINTZE, Erwin (1931) – DIE DEUTSCHEN ZINNGIESSER
fazer uma limpeza de todos os objetos, pois, devido UND IHRE MARKEN BAND VII: SÜDDEUTSCHE ZINN
ao seu mau estado de conservação, algumas marcas GIESSER. Leipzig: Hiersemann.
poderão estar invisíveis (ROBERTS, 2013, p. 5). Rela- HOMER, Ronald (1980) – Base Metal Spoons. Antique Collect
tivamente a formas de divulgação do achado, consi- ing. Setembro, pp. 14-16.
dera-se o modelo de reconstrução e de recriação di- MASSÉ, H. (1910) – Pewter Plate. Londres: George Bell and
gitais em 3D, utilizado na musealização dos achados Sons.
do Mary Rose e do Vasa, inspiradores.
MASSÉ, H. (1915) – Chats on Old Pewter. Nova Iorque: Fred-
Por fim, recordando as contingências atuais que a erick A. Stokes Company publishers.
temática apresenta, reconhece-se que não foi obje-
MASSÉ, H. (1921) – The Pewter Collector: A Guide to English
tivo do presente trabalho apresentar respostas, mas
Pewter with some Reference to Foreign Work. Londres: Herbert
questionar o conhecimento para já divulgado e con-
Jenkins Limited.
frontar diferentes realidades, a fim de se sustentar
um futuro desenvolvimento do tema. MICHAELIS, Ronald (1949) – English Pewter Porringers: Part
I. Apollo. Julho, pp. 23-26.
BIBLIOGRAFIA CITADA NEISH, Patricia; RICKETTS, Carl (2018) – The Neish Pewter
Collection: A Catalogue by Patricia Neish. [S.l.]: Jane Darroch
ALMEIDA, Ana; CASTRO, Filipe; MONTEIRO, Alexandre; Riley.
MAGALHÃES, Ivone (2017) – O naufrágio quinhentista de Be
linho, Esposende: Resultados preliminares. Al-madan. Almada. NORTH, Anthony (1999) – Pewter at the Victoria and Albert
Série II. 21, pp. 80-95. Museum. Londres: V&A Publications.
BELL, Malcolm (1906) – Old Pewter. Londres: George Newnes PRICE, Hilton (1908) – Old Base Metal Spoons with Illustra
Limited. tions and Marks. Londres: B. T. Bastford, 94, High Holborn.
1246
RAYMOND, Percy (1949) – Influence of English on American
Pewter. The Bulletin – The Pewter Collectors’ Club of America.
II. 6, pp. 109-118.
Imagem 1 e 2 – Fotografias dos objetos ME.ARQ.SUB.0089 e ME.ARQ.SUB.0074, respetivamente. Diâmetro máximo (res-
petivamente): 24 e 22 cm; diâmetro interno (respetivamente): 13 e 14.6 cm; Largura da aba (respetivamente): 5.3 e 3.5 cm; peso
(respetivamente): 620 e 475 g. Números de inventário fotográfico: ME.ARQ.SUB.0089.IM (1) e ME.ARQ.SUB.0074.IM (1).
Fonte: fotografias da autora.
Imagem 6 – Esquema com o levantamento de representações de marcas do martelo coroado. Fonte: elaboração da autora, na
plataforma em-linha miro.
1248
Imagem 7 e 8 – Pormenor de fotografias dos objetos ME.ARQ.SUB.0188 e ME.ARQ.SUB.0091, respetivamente. Comprimento
da marca (respetivamente): 8 mm e 8mm; largura da marca (respetivamente): 8mm e 7mm. Número de inventário fotográfico:
ME.ARQ.SUB.0188.IM (6) e ME.ARQ.SUB.0091.IM (12). Fonte: fotografias da autora.
Imagem 9 – Esquema com o levantamento de representações de marcas da rosa coroada. Fonte: elaboração da autora, na pla-
taforma em-linha miro.
Imagem 10 e 11 – Fotografia dos objetos ME.ARQ.SUB.0006 e ME.ARQ.SUB.0337, respetivamente. Diâmetro do covo (respe-
tivamente): 14.4 cm e 16.5 cm; largura da aba (respetivamente): 6 cm e 3 cm; peso (respetivamente): 366 g e 416 g. Número de
inventário fotográfico: ME.ARQ.SUB.0006.IM (10) e ME.ARQ.SUB.0337.IM (13). Fonte: fotografias da autora.
Imagem 15 – Esquema com o levantamento de objetos musealizados e de imagens com representações de objetos formalmente
semelhantes à colher em estudo. Fonte: elaboração da autora, na plataforma em-linha miro.
1250
Imagem 16 – Fotografia do objeto ME.ARQ.SUB.0347. Altura: 14.5 cm; Comprimento da aba:
14.7 cm; peso do bacio: 1163 g; peso da asa: 152 g. Número de inventário fotográfico: ME.ARQ.
SUB.0347.IM (4). Fonte: fotografia da autora.
Imagem 17 – Esquema com o levantamento de objetos musealizados e de imagens com representações de objetos formalmente
semelhantes ao bacio estudo. Fonte: Elaboração da autora, na plataforma em-linha miro.
RESUMO
A descoberta de vestígios arqueológicos associados a uma produção vitivinícola do período Moderno, no âm-
bito de uma intervenção de salvaguarda, realizada na cidade de Aveiro, permite-nos inscrevê-la na história da
viticultura. Estudos em que o discurso arqueológico assume-se insuficiente, sobretudo a partir do período me-
dieval e que com a intervenção realizada em 2021, numa parcela urbana da rua do Gravito, possibilita a exposi-
ção de realidades ancestrais associadas ao cultivo da vinha, as quais, neste caso em particular, sobrevêm desde
o período medieval. Um espaço atualmente urbano que em tempos correspondeu às terras de lavradio referidas
no foral manuelino (1514) como zona de produção de vinho. Uma paisagem marcada pelo parcelário rural dis-
posto ao longo do principal eixo viário de saída para Norte.
Palavras-chave: Aveiro; Vitivinicultura; História; Período moderno; Medieval.
ABSTRACT
The discovery of archaeological remains associated with wine production from the Modern period, during a
preventive archaeological intervention carried out in the city of Aveiro, allows us to provide further insight on
the history of viti-viniculture for the area and period. From the medieval period forward there is little informa-
tion on this theme from archaeological sources. The intervention carried out in 2021, on an urban plot in Gravito
Street, allows for the description of ancestral realities associated with the vine cultivation. In this particular
case, the practice has existed since medieval times. A currently urban lot, once corresponded to the lands of
tillage, referred to as the fields of vine production on Manuel I Foral (1514). A landscape marked by rural parcels,
arranged along the main road on the way-out to the north.
Keywords: Aveiro; Viti-viniculture; History; Modern period; Medieval.
1. Arqueóloga / [email protected]
2. Arqueóloga / [email protected]
4. O projeto teve como objetivo a construção de um prédio novo, potenciado pela junção das duas parcelas, o que acarretou a demo-
lição da habitação unifamiliar existente no n.º 73 e a desconstrução parcial do edifício da parcela n.º 75 (conservando-se somente
a fachada orientada para a rua do Gravito). Um edifício de três pisos, construído no séc. XIX e que assentou parcialmente sobre as
estruturas do séc. XVII-XVIII.
1254
Sá, fundada no século XIII5 e à qual está associada Das informações paroquiais de Ílhavo de 1721 retira-
a Capela da Nossa Senhora da Alegria, igualmente -se que:
no alinhamento da atual rua de Sá, no seguimento
da rua do Gravito. Este foi um eixo onde se fixaram, «[...] os frutos da terra que os moradores recolhem
ao longo dos séculos XVI e XVII, casas imponentes, em mayor abundancia, são, milho, trigo, vinho;
com destaque para as constituídas pelos vãos e por- o que se infere de recolherem os Rendeiros dos di
tais trabalhados em cantaria de pedra calcária e es- zimos huns annos por outros de milho oito mil
cadarias encimadas por coruchéus sustentados por alqueyres, trigo dois mil e quinhentos alqueyres,
colunas de ordem dórica. vinho quinhentos ai mudes, que repartem com os
A partir do século XV são conhecidas diversas refe- Rendeyros da tersa do Cabido, e Quartas-Novas
rências a esta zona como espaço de cultivo (Mada- da Patriarchal. [...]» (Madahil, 1937:42).
hil, 1959; Gomes, 1875, 1899; Quadros, 1911-1916),
sendo inclusive mencionado a cultura de cereais e A tributação ao vinho era usual e uma das fontes de
vinha, ocupando os vinhedos uma área considerável rendimento da coroa e embora pouco se saiba sobre
(Silva, 1997:88). a quantidade produzida, certo é que não existem re-
Pelas cartas de aforamento e testamentárias conhe- ferências à sua falta como acontece em relação aos
cidas (Madahil, 1959), sabemos que os campos de cereais. Seria abundante ao ponto de ser comerciali-
lavradio, nomeadamente as vinhas, se encontravam zável, a julgar pelos incentivos à cultura de bacelos,
em torno do núcleo urbano, junto dos caminhos que ainda que nas cortes de 1417, os moradores alegassem
seguiam para Esgueira e Aradas, ainda que existam que não se mantinham a «a pam e vinho» (Silva, 1997:
referências à sua existência dentro do burgo. Porém, 89). À produção vinícola, a partir de 1756, foi lançado
sobre a atividade vitivinícola pouco se sabe, pois as um imposto real extra sobre cada quartilho de vinho
informações são parcas e generalistas, favorecendo atabernado, não só na vila como em toda a provedo-
interpretações conjecturais. ria de Aveiro. Dinheiros destinados aos trabalhos de
Das cartas de concessões do século XII do mostei- desassoreamento da barra (Amorim, 1996:569) e a
ro de Santa Cruz de Coimbra aos arrendatários de outras obras de utilidade pública, pelas quais a casa
Aveiro que plantassem vinha, as terras eram-lhes da câmara cobrava em forma de sisa por cada almude
aforadas por 1/7 da sua produção (Madahil, 1959: ou pipa de vinho (Madahil, 1959: 283-292).
39). Pelo foral de Ílhavo de 1514, sabemos que por A produção de vinho durante o século XVIII seria
cada carga de « [...] besta cavalar ou muar hu Real de notável, havendo uma forte vigilância sobre o vinho
seis ceptis o Real e por carga menor que e de asno meio e sua comercialização, sendo um dos bens mais co-
Real; e por costal e que hum homem pode trazer as cos mercializáveis. De acordo com os livros de registos
tas dous ceitis; e dy pera baixo quallquer camtidade em das mercadorias que circulavam pelo Consulado de
que se venderem se paguara hum çeiptill; e outro tamto Aveiro, o vinho surge a par com a sardinha, o limão,
se paguara quando se tirar pera fora porem quem das o azeite e a aguardente, ainda que uma parte da sua
dictas cousas [...]» (Madahil, 1938:188), nada acres- receita não era incluída nos registos por se encon-
centando ao assunto o foral de Aveiro de 1515, refe- trar isenta (sempre que seguia para portos nacio-
rindo somente, que a 15 de agosto, deveriam os ofi- nais, baldeação ou quando acompanhados de guias
ciais da câmara reunir com todos os que possuíam de fianças) (Amorim, 1996: 588-589). Ainda assim,
vinhas de modo a acertarem qual o dia do início das de acordo com a tabela de taxas aplicada no ano de
vindimas, ditando ainda «[...] quamto ao custume de 1780, sabemos que tanto o vinho tinto como a aguar-
nam Vydimarem senam em Sam Cibrão nam avemos dente pagava 200 réis por cada almude6. Valor rela-
por bõo por que nam Sam Smpre os temporais tam cer
tos que a Vindima se possa Começar Sempre em tal dia.
6. Embora estas medidas sejam mutáveis ao longo dos tem-
[...]» (Madahil, 1935:90).
pos, um almude de vinho seria nos dias de hoje, o equiva-
lente a sensívelmente 16,8 litros. Seabra Lopes, L. (2000)
«Medidas Portuguesas de Capacidade: duas Tradições Me-
5. Sobre este assunto ver NEVES, Francisco “A confraria dos trológicas em Confronto Durante a Idade Média», Revista
pescadores e mareantes de Aveiro (1200-1855), Aveiro, 1973. Portuguesa de História, 34, p. 535-632.
1256
nhecidos. No entanto, de acordo com os preceitos latada baixa [...]» (1875: 153). A plantação em valeira
dos tratados de agricultura clássicos de Columela referida pelo Visconde de Vila Maior seria, certa-
(De Agricola), Paládio (Tratado de Agricultura) ou mente, realizada em contínuo nos terrenos, através
Plínio (História Natural), que chegaram aos nossos de arado com tração animal. No entanto, nas zonas
dias e seguidos até há muito pouco tempo e particu- onde efectivamente eram plantadas as vinhas, de-
larmente durante a Idade Média, definem a prepara- pendendo dos terrenos, era normalmente necessá-
ção do solo para a plantação de vinha de três formas: ria a adição de estrumes e, as próprias plantas. Nes-
scrobes (abertura de fossas para vinhas isoladas, tam- sas zonas seria natural que se realizasse mergulha,
bém chamados no vernáculo popular de “covas”, so- de forma a aumentar a produção.
bretudo em territórios com solos com menor densi- A leitura dos textos sobre viticultura ao longo dos
dade de terra arável, onde o solo geológico está mais séculos permite apontar para a forte possibilidade
próximo do solo de circulação), sulci (abertura de das estruturas negativas, no caso em questão, se tra-
fossas oblongas, em trincheira, de forma a também tarem de covas para implantação de videiras, sobre-
ter a área pronta para realizar a técnica de “mergu- tudo se tivermos em conta outras intervenções onde
lha”) e pastinatio (a preparação em toda a área do este tipo de estruturas surgiram, de períodos ante-
solo para a plantação) (Pereira, 2017). No caso em riores, similares e posteriores (Monteil et al, 1999;
questão, é possível que a técnica de limpeza e prepa- Garcia et al, 2010 ou Rabasté et al, 2019) (Figura 6).
ração do solo em toda a área de plantação, pastina As primeiras edificações ocorreram durante a época
tio, tenha sido feita, embora haja poucos dados para Moderna (séculos XVI-XVIII). Construções que su-
suportar esta hipótese. No entanto, a utilização de gerem uma estratificação resultante dos diferentes
fossas e caixões é evidente. Columela (R.R. III, 13, usos e que se acredita serem coetâneos da explora-
4. Op cit. Pereira, 2017) refere a necessidade de rea- ção vitícola, nomeadamente, relacionadas com uma
lizar as fossas até seis pés de profundidade, cerca de hipotética área de transformação de tipo lagar.
178 cm, deixando a mesma distância entre as linhas Primeiramente, escavado no solo geológico, um
criadas pelo seu alinhamento. Este tipo de plantação grande covacho de forma sub-quadrangular asso-
continua a ser citado ao longo dos séculos (Serres, ciado a um buraco de poste, cuja função não se com-
1600: 244-245, 252-254), ainda que com variações, preendeu. Uma unidade estratigráfica parcialmente
sempre necessárias para a adaptação das técnicas escavada, por se encontrar fora da área de afetação
vitivinícolas aos diversos terrenos e diferentes cas- e sobre a qual foi construído um compartimento de
tas. São diversas as observações deste tipo de plan- grandes dimensões, que se estendia para além dos
tação em todo o mundo mediterrânico até quase à limites da parcela e cujo limite a Norte se encontra
atualidade. É exemplo o referido pelo Visconde de balizado pelo muro [711], o qual se relaciona com
Villamaior, quando distingue três formas de plantar o muro [710], que por sua vez se articula com uma
a vinha: lareira de canto – [709], edificada em tijolo e pedra
calcária (Figura 7). Uma grande divisão pavimenta-
«[...] à barra, que também se denomina agu da – [706], na qual se visualizam alguns sulcos que
lha, travella ou plantador; em covatos ou covas; sugerem a permanência de outros elementos, sobre
e à elfa ou em valleira. – Os dois primeiros são os quais não foi possível entender a sua funciona-
mais adequados à plantação em quadrado ou lidade. Um espaço que poderá ter correspondido a
em quincunce, e o último à plantação em filei- um armazém, mas cuja articulação com a plantação
ras. [...] Consiste elle na abertura de valleiras ao se desconhece, por se encontrar cortado pelas cons-
longo das linhaça previamente traçadas para fa- truções do presente. Adossado a este espaço amplo,
zer a plantação em fileiras. Em terreno regular identificaram-se mais duas unidades estruturais –
devem estas valleiras ter a largura media de 70 [733] e [733a], as quais formam dois compartimen-
centimetros, e uma profundidade de 50 centi- tos de funcionalidade desconhecida (Figura 7). Na
metros, ou pouco mais.» (1875: 151-154). sua proximidade, disposto a Norte e de relação di-
reta à zona do plantio, um compartimento de planta
O autor refere ainda que este é o tipo de plantação retangular, com cerca de 3,60m de largura, desco-
mais generalizada«[...] quer seja para deixar as ce- nhecendo-se a sua extensão total por este ter sido
pas isoladas [...] quer seja para as unir em cordões de cortado por edificações do século XIX/XX. Dentro
1258
midade com o campo da vinha, sem qualquer tipo de como hoje, o cultivo de outras espécies, nomeada-
barreira física, permite aferir a possibilidade do uso mente dos cereais, milho, hortícolas, etc.
vinícola do terreno no período moderno e tendo em Contíguo ao vinhedo, a presença de um compar-
consideração as várias referências à produção de vi- timento contendo no seu interior três negativos de
nho ao longo do século XVII e XVIII, havendo ainda três vasilhames cuja função apenas conseguimos su-
referências à sua existência no século XIX, acredita- por, reforça a continuidade do campo vinícola até ao
-se que o espaço foi campo de cultivo e plantação de período moderno. Um espaço estratigraficamente
vinha e que ambos os vestígios coexistiram. Parale- condenado por depósitos antrópicos contemporâ-
lamente, tendo em conta que o espaçamento entre neos, correlacionados com as edificações em adobe
as fileiras de vinhas teria que ser sempre superior a realizadas no século XIX/XX. Uma divisão que su-
1,5m, de forma a permitir os trabalhos de vitivinicul- pomos ser um dos espaços integrantes da adega e
tura e apesar desta equidistância não se verificar em naturalmente, próxima do campo.
toda a extensão do vinhedo, se tivermos em conta As dimensões das peças em madeira, das quais ape-
somente uma das tipologias, as mais alongadas, esse nas sobreviveram até nós os testemunhos em argi-
espaçamento, existe. Evidência que entra em desa- la, fornecem dados importantes para as dimensões
linho com as outras cavidades de menor dimensão, de barris e, potencialmente, tinas, durante a Idade
as quais, conjuntamente com outras, nos permite as- Média no território nacional, um tema que, de resto,
sinalar três momentos de plantação em toda a área, continua por explorar, ainda que, no panorama eu-
havendo inclusive algumas sobreposições, cortes ropeu, já tenha começado a ser abordado (Marlière,
parciais e ligeiras divergências quanto à orientação 2002, op cit in Pereira, 2017).
e forma. Realidade certamente relacionável com as Pouco podemos elaborar sobre o espaço onde as três
técnicas de plantação, sendo as mais pequenas inse- peças de madeira estariam: para além de apenas
ridas nas tipologias assinaladas por Rabasté (2019) uma pequena fracção deste espaço ter sobrevivido
e por isso, cronologicamente atribuíveis ao período na área intervencionada, os barris não estariam, cer-
medieval. Uma tipologia já identificada em outros tamente, em posição de utilização normal, deitados,
locais da cidade, nomeadamente em parcelas po- sendo mais provável estarmos perante peças que
sicionadas na sua proximidade (Temudo; Canha, simplesmente estavam a aguardar o seu transporte
2021) e nos terrenos da Agra do Castro (Aradas, para a área de vinificação.
Aveiro) (Baptista et al, 2021).
As fossas mais alongadas poderão ser coetâneas do 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
período Moderno e talvez o vestígio arqueológico
da plantação em valeira, facilitando assim o culti- A intervenção arqueológica na rua do Gravito per-
vo da vinha baixa. Uma tipologia visível a partir da mitiu documentar práticas vitivinícolas do período
margem esquerda do rio Vouga e que se prolongava Moderno, atestadas pelos vestígios arqueológicos
até às terras da Bairrada (Ribeiro, 1987:145). Muito das estruturas A, B e C, as quais, pelas característi-
próximo de Aveiro, nas vilas de Esgueira e Estarre- cas, corresponderão a tinas/dornas e/ou barris, en-
ja, as Memórias Paroquiais da segunda metade do contradas dentro de um compartimento que poderá
século XVIII referem a existência de “parreirais de corresponder a um dos espaços da adega. Elementos
pilares”, “varas para ramadas” e “madeira para par- que se correlacionam com uma extensa área de cul-
reirais” (Amorim, 1996:214). Situação que se acre- tivo onde se identificou várias fossas de plantação,
dita corresponder aos vestígios encontrados e não cuja tipologia sugere a existência de vinha. Cavida-
à vinha de enforcado, pois esta última teria de ser des escavadas no solo geológico, de formato oblon-
empregue em zonas abrigadas do vento, assim como go ou retangular, com várias dimensões e com uma
teria de se ancorar em árvores, as quais teriam de se orientação O-E. Uma organização que se coaduna
posicionar nas extremidades do campo. Aliás refira- com a plantação representada no mapa do século
-se que no presente, nos locais onde ainda se en- XVIII (Figura 3).
contram vinhas, é comum vermos vinha em latada, A tipologia das cavidades coloca algumas questões,
as quais delimitam os terrenos. Uma realidade que nomeadamente o facto de nas camadas antrópicas
sabemos que acontecia no passado, permitindo, tal que as preencheram ter-se recolhido materiais cerâ-
tais. No entanto, atendendo às sobreposições, cortes MADAHIL, A. Rocha (1938) – Forais do Distrito de Aveiro: O
parciais e ligeiras divergências quanto à orientação Foral de Ílhavo. In Revista do Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º
e forma, acreditamos que se estará perante vários 15, vol. IV, Aveiro, pp. 179-199.
momentos de plantação, correspondendo às formas MONTEIL, Martial, BARBERAN, Sébastien, PISKORZ, Mi-
mais alongadas ao período moderno. Uma interpre- chel, VIDAL, Laurent, BEL, Valérie e SAUVAGE, Laurent
tação baseada nos testemunhos arqueológicos que (1999) – Culture de la vigne et traces de plantation des IIe-
se conhecem para a época medieval. Ier s. av. J.-C. dans la proche campagne de Nîmes (Gard). In
Revue archéologique de Narbonnaise, tome 32. pp. 67-123; doi :
Apesar das dúvidas acerca de alguns dos contextos
https://doi.org/10.3406/ran.
arqueológicos, acreditamos que estes novos dados
são relevantes para os estudos sobre a vitivinicultu- PEREIRA, Pedro (2017) – O vinho na Lusitânia. Porto: Ed.
Afrontamento/CITCEM.
ra na época moderna e em particular, para o estu-
do deste tipo de produção na cidade de Aveiro. Um PEREIRA, Pedro (2021) – Não só da madeira se fez vinho: O
consumível que sabemos ter sido relevante na eco- Douro e Trás-os-Montes na Antiguidade Clássica. In Actas
nomia local. do II Colóquio Viário do Marão, povoamento e vias de comuni
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1260
Figura 1 – Localização da área de intervenção na cartografia da cidade. Fonte: CMA, SIG.
Figura 2 – Vila Nova, o caminho de Sá e conventos. A – Igreja de Vera Cruz, B – Convento do Carmo, C – Convento de Sá; I – Rua
de Sá. Fonte: Barreira, 1996.
1262
Figura 5 – Ortofotografia: plano geral da 2ª fase de escavação das cavidades de plantação.
1264
Figura 7 – Edificações da época Moderna e o
campo de cultivo.
1266
Figura 9 – Estruturas A, B, C e pormenor do alçado da estrutura A.
Figura 10 – “Senhor Arnaldo Souza’s Adegas at Celleirós in the Alto Douro”. Fonte: Viztelly, 1880: 66.
RESUMO
Os dados agora partilhados resultam da intervenção de Arqueologia Preventiva levada a cabo no âmbito da
construção de um edifício habitacional no centro de Aveiro. Com este artigo, procura-se ampliar o conhecimen-
to da atividade de produção oleira nesta cidade, atestada pelos vestígios da oficina que aqui laborou. Procura-
-se, ainda, enquadrar as dinâmicas de ocupação do espaço intra e extra-muralhado à luz dos resultados agora
recuperados do registo sedimentar desta parcela de chão de Aveiro.
Palavras-chave: Aveiro; Arqueologia Preventiva; Época Moderna; Produção oleira.
ABSTRACT
The data now shared result from the Preventive Archeology intervention carried out within the scope of the
construction of a building in Aveiro. The aim is to expand the knowledge of pottery production activity in Avei-
ro, attested by the remains of the workshop that operated here. Additionally, seeks to contextualize the dyna-
mics off occupation in and out of the city walls, in the light of the results now recovered from the layers of this
plot of ground in Aveiro.
Keywords: Aveiro; Preventive Archaeology; Modern Age; Pottery Production.
1. Arqueóloga / [email protected]
4. Esta junção de vários lotes resultou numa parcela rectangular, cuja largura ultrapassa o comprimento, confrontando com as duas
vias, a NE e a SO. Contudo, os lotes anteriores eram estreitos e alongados, apenas confrontando a fachada principal das habitações
com a via. Pensamos que numa primeira fase, a edificação se tenha dado no interior muralhado, com a fachada principal dos edifícios
virada para a Rua Nova, actual Capitão Sousa Pizarro. O fundo destes lotes estaria ocupado com os quintais, virados para a muralha.
Logo depois, alguns lotes no exterior da muralha, na Rua das Arribas, actual Homem de Cristo Filho, também foram urbanizados,
provavelmente no mesmo esquema, com o fundo dos lotes ocupados com quintais virados para a face exterior da muralha.
1270
da, meramente monumental, puramente defensivo, de fundação perfeitamente preservada, a estrutura
ou ambos, estamos perante uma estrutura que mar- teria aqui, originalmente, 3,20m de largura total.
cou este aglomerado populacional, determinou-lhe o Posto isto, consideramos estar perante a primeira
urbanismo, e os seus vestígios inserem-se na catego- fiada de pedras da base da muralha de Aveiro, da-
ria de património cultural que deve ser preservado. tada do séc. XVI, dado os materiais exumados dos
Como referido anteriormente, durante a execução depósitos que a antecedem datarem do século XVI,
dos trabalhos arqueológicos foram identificadas tendo, inclusive, sido recolhidos fragmentos de loiça
uma estrutura mural, à qual se atribuiu a u.e. 50, e vermelha de Aveiro. Estaremos perante o momento
a respectiva vala de fundação que percorriam todo da fundação ex novo da estrutura defensiva, ou pe-
o lote em estudo, no sentido NO-SE. Consideramos rante um momento de reabilitação, mais precisa-
tratar-se de parte do tramo da cerca da vila de Aveiro mente a da época de D. Manuel I? Infelizmente, os
entre a Porta de Rabães e a Porta das Arribas, para- dados obtidos não possibilitam a resposta cabal a
lelo à actual Rua Homem de Cristo Filho, embora esta questão. Contudo, relembramos que o pano de
mais recolhido em relação ao seu limite NE. muralha identificado nos n.os 49 e 51 da Rua Homem
Enquanto na zona NO do terreno, a estrutura mural de Cristo, foi datado dos séculos XV-XVI (GINJA,
[50] preservava 10,32m de comprimento máximo António, 2015).
(Figura 2), no topo SE, apenas se encontrava preser- Em relação ao aparelho, a estrutura mural [50]=[50a]
vada numa extensão máxima de 3,24m (designada era composta por silhares de margas levemente afei-
u.e. 50a). Nesta zona, a estrutura prolongava-se para çoados, fortemente agregados com argamassa de
SE, para o lote contíguo (Figura 3). areia e cal. Apesar de não se tratar de silhares de grés
A estrutura identificada foi sendo destruída6 (pensa- de Eirol (a pedra habitualmente associada à muralha
mos que em vários momentos, o primeiro dos quais aveirense), trata-se do mesmo aparelho identificado
pouco depois da sua construção), encontrando-se no que interpretamos como os vestígios da torre da
bastante afectada, não só a nível de altura (na maio- Porta de Rabães. As margas aqui utilizadas serão o
ria da sua extensão preservava, apenas, uma fiada de material extraído no Corgo, o calcário acinzentado
pedras), como na largura, apresentando um interfa- referido por Oudinot. Calculamos que a matéria-pri-
ce de destruição longitudinal, sensivelmente a meio ma empregue nos mais de 1000m de perímetro da
da sua largura original, preservando apenas a face cerca fosse variando, dependendo do material dis-
NE, que se caracterizava por ser bastante regular. ponível no momento da construção. Relativamente
Dada esta destruição, este tramo da cerca aveirense, ao método construtivo, os silhares assentavam numa
estrutura mural [50]=[50a], preservava apenas 50 a espessa camada de argamassa, com cerca de 8cm de
180cm de largura, apesar de, a inferir pela sua vala expressão, muito resistente. Estamos perante uma
fundação directa, visto que o solo – argilas naturais
– apresenta uma boa coesão e capacidade de carga,
6. Com o passar do tempo, a estrutura foi sofrendo altera-
tal como já registado nas duas intervenções arqueo-
ções, tendo mesmo sido utilizada como fonte de matéria-
-prima, daí o seu mau estado de conservação. Parte da
lógicas referidas.
destruição foi levada a cabo logo no séc. XVI, para permitir Foi, ainda, identificado, na zona Sul do lote, o que se
a circulação entre o exterior e o interior muralhado da vila, pensa ser vestígios de uma torre adossada à mura-
quando nesta zona se instalou um centro de produção oleira, lha. A partir da camada de argamassa identificada,
de cujos vestígios trataremos de seguida. Assim, foi aberta e interpretada como a preparação para a construção
uma passagem que terá ocorrido simultaneamente à destrui-
de um torreão, a estrutura aqui implantada teria,
ção do torreão que assentava na zona SSO do lote em estudo.
A abertura deste vão facilitou a circulação entre as diferen-
pelo menos, 4,70m de largura (sentido NE-SO), já
tes zonas da(s) oficina(s), assim como a fixação dos fornos que se prolongaria para SO, onde foi destruída pela
de olaria (altamente poluentes) no exterior da cerca da vila. construção da fachada principal da habitação con-
Esta passagem permitiu, também, o trânsito de carros de temporânea agora demolida. Dado estes vestígios,
bois, com matérias-primas e peças de cerâmica, por ex. consideramos estar perante a localização não só do
A última fase de destruição desta estrutura está datada do
pano de muralha, mas de um torreão que lhe adossa-
século XIX, indo ao encontro das fontes documentais: a de-
molição sistemática das muralhas teve início em 1806 e, em
va, como os retratados no séc. XVIII e referidos por
1808, já pouco restava (OUDINOT, José Reinaldo Rangel de Oudinot (2009).
Quadros, 2009: 233).
1272
por 2 muretes. Este acesso permitia a colocação de troncocónica, e cuja abertura destruiu parcialmente
combustível no interior da câmara e a posterior re- o interface onde aquela fora construída. O seu perfil
moção das cinzas (Figura 5). troncocónico facilitou o perfil troncocónico da câ-
A estrutura [38] foi construída numa fossa aberta no mara [100], muito mais estreita na base do que no
substrato geológico, de secção rectangular, a uma topo. A câmara de combustão [100] também foi mo-
cota negativa, método construtivo comum neste tipo delada em argila vermelha verde, que no topo se en-
de estruturas. contrava sustentada em grandes tijoleiras. A argila
O que restava da câmara de combustão [38] foi mo- foi, depois, exposta às altas temperaturas das suces-
delado em argila vermelha verde, que depois de sivas cozeduras adquirindo resistência, ficando mais
exposta às altas temperaturas das sucessivas coze- dura e estável. A face interior, exposta directamente
duras adquiriu resistência, ficando mais dura e es- ao fogo, apresentava uma cor cinzenta.
tável. A face interior, exposta directamente ao fogo, Das três câmaras de combustão identificadas neste
apresentava uma cor cinzenta. O forno de que fazia trabalho, a câmara [100] era a mais bem preservada,
parte terá sido construído quando o tramo da cerca mantendo o arranque de seis arcos que sustentariam
identificado, u.e. 50, ainda preservava a sua largura a grelha (i. é, o estrado perfurado por agulheiros) da
original. Assim, a cerca poderá ter servido como pa- câmara de cozedura (Figura 6). Verifica-se assim
rede posterior da construção que envolvia este forno. que, tal como na câmara [83], também na estrutu-
Em relação a essa estrutura, não foram identifica- ra [100] se identificou um momento de reparação,
dos muitos vestígios que se possam relacionar com neste caso na base. Como já registámos para aquela
a construção que protegia os fornos. Será que na sua estrutura, tratava-se de equipamentos sujeitos a um
maioria se trataria de estruturas provisórias, constru- forte desgaste.
ções leves de madeira, com fundação do tipo baldra- A câmara [100] foi condenada na 2.ª metade do séc.
me, que não deixou vestígios? XVII por um aterro que apresentava uma grande
Com os dados disponíveis, também não se conse- concentração de material de construção (como tijolo
guiu apurar se as câmaras de combustão [83] e [38] maciço), provavelmente proveniente da desconstru-
foram construídas simultaneamente ou se perten- ção da câmara de cozedura da qual já não tínhamos
ciam, sequer, à mesma oficina. Apenas sabemos vestígios. Alguns destes tijolos apresentavam faces
que foram abandonadas no séc. XVI, pelos materiais vitrificadas: tratava-se de uma fina camada de argila
exumados dos aterros que as condenaram. vitrificada de coloração esverdeada, originada pela
Numa segunda fase, quando o forno a que pertencia desestabilização da estrutura cristalina da argila em
a estrutura [38] já se encontrava desactivado, encon- contacto com as elevadas temperaturas que a câ-
trando-se esta câmara e o seu acesso parcialmente mara de cozedura atingia. No aterro foram, ainda,
aterrados, foi construído o forno ao qual pertencia a identificados fragmentos de telha de canudo, pro-
câmara de combustão [100]. Tal como a [38], tam- vavelmente provenientes da cobertura da estrutura
bém se tratava de uma estrutura de planta elíptica, na qual estava inserido o forno. Apresentava, ainda,
com o eixo maior orientado N-S, de perfil tronco- alta frequência de fragmentos da Cerâmica do Açú
cónico, estrangulado na base. No seu eixo maior, a car e de recipientes da designada loiça vermelha de
estrutura registava 2,40m de comprimento, e o seu Aveiro, assim como muitos fragmentos de peças dis-
eixo menor, (E-O), 1,90m. A base apresentava 1,63m cóides, que seriam de apoio à produção oleira. Fo-
de comprimento por 0,75m. A altura máxima pre- ram, ainda, exumados fragmentos de faiança do séc.
servada da câmara [100], a NE, era de 2m, sendo a XVII, que datam o depósito. Tirando estes últimos,
altura mínima conservada, a SO, de 0,75m. Visto que consideramos que estamos perante o descarte dos
a estrutura se desenvolvia para SO, para a actual Rua restos de produção da oficina que aqui funcionara
Homem de Cristo Filho (onde foi perturbada pela até então, assim como de alguns dos utensílios utili-
execução de várias infra-estruturas actuais, como zados na laboração da mesma.
gás e saneamento), a escavação integral da estrutura Em suma, o estudo destas três câmaras de combus-
que se encontrava preservada sob a via pública foi tão permitiu verificar que partilhavam um sistema
patrocinada pela Câmara Municipal de Aveiro. construtivo muito semelhante (inclusivamente a
Tal como a câmara [38], também a u.e. 100 foi cons- outras identificadas noutros pontos do país, como
truída numa fossa aberta no bedrock, mas de secção Lisboa): as as três estruturas identificadas foram
1274
lheiras para descarte do que restava da produção Também não podemos deixar de referir o facto de
que não entrou no circuito comercial, verificamos que as formas de açúcar foram a forma maioritária
que se tratavam de oficinas de barro vermelho. Tal do conjunto aferido como produzido neste local,
como outros locais já publicados, verificou-se que perfazendo 23,4% do total das peças estudadas.
estas oficinas de barro vermelho produziram tanto Para terminar, apesar da região de Aveiro surgir
peças de cerâmica comum de uso quotidiano como como um dos principais centros produtores da cerâ
de uso industrial. Contudo, apesar de terem uma mica do açúcar para as Canárias e a Madeira, nos séc.
produção diversificada, não se especializando num XVI-XVII (SOUSA, 2006: 14), e de se terem identifi-
só produto, a produção aqui aferida não apresentava cado várias destas peças, quer inteiras quer fragmen-
muita variedade. tos, em diferentes sítios espalhados pela cidade [e
Assim, pelo estudo do material exumado do aterro ria] de Aveiro, os fornos identificados neste trabalho,
que condenou a câmara de combustão [83], consi- cujos resultados agora se apresentam, constituem-se
deramos que a oficina à qual estava relacionada se como os primeiros equipamentos associados a este
dedicava à produção de loiça vermelha de Aveiro, tipo de produção dados à estampa. Consubstancia-
nomeadamente alguidares, cântaros e taças, peças -se, assim, Aveiro como centro produtor.
de higiene pessoal (bispotes), e, por fim, formas de Outra das formas inseridas na categoria de cerâmica
açúcar. Também a(s) oficina(s) relacionada(s) com de uso industrial são as formas discóides. Tratam-se
as câmaras [38] e [100] terá produzido tanto formas de peças utilizadas no auxílio da montagem no torno
de açúcar como loiça vermelha de Aveiro (neste e movimentação de várias peças durante o seu fabri-
caso pratos, tampas, taças e alguidares). Ou seja, no co, servindo como base (HENRIQUES, José, et alii,
caso de cerâmica doméstica de uso comum, estas 2019). São formas redondas, no nosso caso, de lábio
oficinas produziam, essencialmente, peças de ser- direito, arredondado ou biselado, e base plana, com
viço de mesa, de transporte e armazenamento de c. de 20mm de espessura, e diâmetro aferido entre
líquidos, e multifunções (os célebres alguidares da os 300mm e os 520mm. As peças em estudo apre-
veiro), em nada acrescentando às produções locais sentam caneluras na superfície exterior, junto ao
ou regionais já conhecidas e bem documentadas. bordo, a meio da peça, ou no seu centro. Estes ressal-
A novidade, aqui, é o facto de se encontrarem asso- tos tanto poderiam servir para facilitar a descolagem
ciadas ao centro onde foram produzidas. das peças cruas, como servir de bitola para diâme-
Na categoria de cerâmica industrial, a sub-categoria tros, levando à uniformização das peças produzidas.
maioritária é a chamada cerâmica do açúcar. Esta sub- Em relação aos discos identificados, temos, ainda,
-categoria engloba as peças (formas, sinos e porrões) a referir, o facto de algumas peças apresentarem
com afinidades tecnológicas, cuja função estava rela- grafitos, embora não se tenham conseguido desdo-
cionada com a produção açucareira e seus derivados. brar. Também na Mata da Machada há registo de um
Dentro desta, as únicas peças e fragmentos recolhi- exemplar grafitado, assim como no Museu Munici-
dos neste trabalho pertencem às chamadas Formas pal de Aveiro, que tem no seu espólio alguns discos
de Açúcar: moldes cónicos, com um furo no vértice, completos grafitados. Estes apresentam inscritos
e que entram no ciclo da produção do ‘ouro branco’ nomes e datas – tratar-se-á de nomes de oleiros, de
na fase da purga. Neste contexto, não podemos dei- forma a marcar / referenciar as peças produzidas?
xar de realçar a enorme variedade de morfologia de Serão os grafitos identificados no nosso conjunto,
bordos identificada, e que, pese embora a tentativa uma marca do oleiro a quem pertencia o disco, logo,
de enquadrar os fragmentos de formas de açúcar nos a peça produzida?
tipos conhecidos, a enorme variedade morfológica
reconhecida levaria a uma multiplicação de tipos e 5. CONCLUSÃO
subtipos de peças muito elevada, difícil de gerir, e
que não se convertia, necessariamente, em conhe- A intervenção de Arqueológica Preventiva cujos
cimento prático sobre o assunto: correspondem os resultados aqui se dão à estampa, permitiu a iden-
diferentes subtipos do Tipo I, por exemplo, a diferen- tificação de vestígios da cerca da vila de Aveiro, e
tes tamanhos de recipientes? A diferentes oleiros? A o registo de três fornos relacionados com a célebre
diferentes fases? A diferentes tentativas de produzir produção oleira aveirense (Figura 9). Estes consubs-
uma peça mais eficiente e/ou resistente? tanciam, assim, Aveiro, como centro produtor olei-
1276
ADERAV – Associação para o Estudo e Defesa do Patrimó- SOUSA, Élvio Duarte Martins (2006) – A Cerâmica do Açú-
nio Natural e Cultural da Região de Aveiro. car das cidades de Machico e do Funchal. Dados Históricos
e Arqueológicos para a Investigação da Tecnologia e Pro-
OUDINOT, José Reinaldo Rangel de Quadros (2009) – Avei dução do Açúcar em Portugal, in A Cerâmica do Açúcar em
ro: apontamentos históricos. Coord. Luís Miguel Capão Fili- Portugal na Época Moderna – Colecção “Mesa Redonda”. Lis-
pe; transc. introd. índices e rev. Carla Serôdio, Vânia Ramos. boa/Machico 1.
Câmara Municipal de Aveiro
Figura 1 – Proposta de implantação do traçado da muralha de Aveiro, sobre fotografia aérea da cidade (Fonte: Google earth). O
lote em estudo está indicado a amarelo.
Figura 3 – Vestígios da estrutura [50a] e da argamassa sobre a qual terá sido construído um torreão. Ao
fundo, negativo da muralha no prédio a SE.
1278
Figura 4 – Câmara de combustão [83], onde é visível o momento de reabilitação, no interior (topo esquerdo).
1280
Figura 8 – Conjunto de 4 fossas: dada a sua disposição, podemos estar perante uma zona de preparação da pasta para produção
oleira.
Figura 9 – Fotografia aérea do local, durante os trabalhos prévios de escavação arqueológica, em todo o lote a intervencionar.
1282
A CASA CORDOVIL: CONTRIBUTO
PARA O CONHECIMENTO DE ÉVORA
NO PERÍODO MODERNO
Leonor Rocha1
RESUMO
Os trabalhos arqueológicos desenvolvidos, entre os meses de Agosto e Dezembro de 2022, num edifício da Uni-
versidade de Évora, permitiu identificar um conjunto de estruturas e materiais arqueológicos balizados entre o
período moderno e o período contemporâneo. A Casa Cordovil é uma das antigas casas senhoriais da cidade de
Évora, localizada no lado Sudeste da cidade, nas imediações do Largo das Portas de Moura, entre a Cerca Velha
e a Cerca Nova.
Esta intervenção surgiu da necessidade da Universidade de Évora proceder a trabalhos de reabilitação e melho-
ramentos na Casa Cordovil, e teve duas vertentes, a de acompanhamento arqueológico e a escavação de um silo
identificado numa das valas abertas.
Palavras-chave: Évora; Época Moderna; Cultura material; Arqueologia Urbana.
ABSTRACT
The archaeological work carried out, between the months of August and December 2022, in a building at the
University of Évora, allowed the identification of a set of structures and materials dated between the modern
and contemporary periods. Casa Cordovil is one of the old manor houses in the city of Évora, located in the
southeast of the city, close to Largo das Portas de Moura, between Cerca Velha and Cerca Nova.
This intervention, which arose from the need for the University of Évora to carry out rehabilitation and improve-
ment work at Casa Cordovil, had two aspects, that of archaeological monitoring and the excavation of a silo
identified in one of the open trenches.
Keywords: Évora; Early Modern period; Material culture; Urban Archaeology.
2. Projeto: Obras de conservação II – fase da Casa Cordovil (Rua Dom Augusto Eduardo Nunes, 8/ largo das Portas de Moura 25 e 26/
Rua Dr. Augusto Eduardo Nunes, 7/ Rua Dr. Joaquim Henrique da Fonseca, 16 e 18 – Évora). Processo: Ex-DRE/2003/07-05/37050/
POP/100392 (C.S:211933).
1284
conduta a colocar nesta vala optou-se por não afetar infraestruturas na autarquia de Évora); ii) abertura
mais esta estrutura, tendo-se apenas recolhido ima- de uma vala para passagem do tubo de ligação e, iii)
gens a partir do exterior e posteriormente protegido abertura de uma caixa com cerca de 1,50m x 1,50m
com manta geotêxtil (Fig. 2: 1). Apenas o Silo 1, foi para colocação de anilha de junção (Fig. 4).
intervencionado no âmbito deste acompanhamento Em termos estratigráficos percebeu-se que, como se-
e cujos resultados se apresentam neste trabalho. ria expetável, se trata de uma área muito alterada por
A observação geral do corte da Vala 1 permitiu per- obras anteriores, para passagem de diferentes tipos
ceber que se tratava de uma área muito alterada, de infraestruturas (Rocha, 2023). Assim, sob a calça-
que foi sendo regularizada/ preenchida com entu- da com cubos de granito, que constitui o pavimento
lhos resultantes de diferentes obras, apresentando, atual desta rua, existe outro pavimento de calçada,
por vezes, bolsas com os sedimentos e materiais mais antigo, construído com pedras roladas.
(entulhos) muito soltos. Por esse motivo, os cortes Do ponto de vista patrimonial realça-se a identifica-
encontravam-se muito instáveis o que, conciliado ção de:
com a escassa largura da vala (0,50m), nos impediu 1) Uma conduta antiga que corre paralela à rua, no
de realizar desenhos dos mesmos. lado SE (Fig. 4 – Corte A), não afetada por esta
obra. Construída com tijolo burro e argamassa,
Vala 2 aparenta ter teto abobadado e fundo plano, com
A vala 2 desenvolve-se na continuidade da vala 1 (Fig. cerca de 0,50m de altura visível;
1), tendo sido aberta na rampa de acesso ao estacio- 2) No lado NE, que corresponde sensivelmente ao
namento da Casa Cordovil. Manteve a mesma largu- eixo da rua (Fig. 4 – Corte B), foram identificadas
ra de pá (0,50m) mas com uma profundidade muito diferentes realidades profundamente afetadas
menor, entre cerca de 0,40m/ 0,60m, uma vez que por obras anteriores (Fig. 7), destacando-se:
a pendente assegura o escoamento das águas até – restos de um segundo Silo, de que apenas se
ao coletor principal, localizado na rua Dr. Henrique consegue perceber um limite, escavado no aflo-
da Fonseca. Trata-se de uma área que apresentava ramento pouco compacto (igual ao registado no
pavimento em calçada de cubos de granito. A sua silo da Vala 1), que foi cortado pela passagem do
remoção permitiu identificar pavimentos e alicer- esgoto principal. Pelo que é percetível no negati-
ces de uma estrutura habitacional recente que terá vo conservado seria muito semelhante, em ter-
sido demolida para permitir a criação de um acesso mos de forma, ao Silo 1. Não se identificou qual-
à casa Cordovil, nos anos 80 do séc. XX. De salientar quer espólio que nos permitisse balizar a sua
que junto ao portão de entrada, junto à rua, o aflora- construção e utilização, que deve ser medieval
mento apresentava-se pouco compacto e a uma cota ou posterior;
superficial, logo abaixo do embasamento da calçada. – por cima deste silo 2 existia uma conduta
Em termos arqueológicos, estas estruturas não apre- (0,20m x 0,20m), de pedra e argamassa a envol-
sentavam qualquer interesse específico, tendo fica- ver um tubo de canalização, em cerâmica, com
do apenas registadas em fotografia e os cortes, em 7,5 cm de Ø. Esta estrutura também já tinha sido
fotogrametria (Fig. 3). cortada por obra anterior;
3) No lado NW, do lado da Casa Cordovil (Fig.
Coletor de Esgoto 4 – Corte C), seguia uma outra estrutura, com
O atual sistema de esgotos existente na cidade de 0,40m de largura e 0,20m de altura, construída
Évora é um sistema combinado, ou seja, para o mes- com tijolo burro e argamassa, que também en-
mo canal confluem as águas domésticas, sanitárias e volvia um tubo em cerâmica, com 7,5 cm de Ø
pluviais. No âmbito dos trabalhos em curso tornava- – conduta de água. Esta canalização foi cortada
-se necessário proceder à ligação da tubagem das no âmbito desta obra devido à necessidade de
águas pluviais, que vinha da Casa Cordovil, ao cole- fazer passar a tubagem;
tor público, localizado na rua Dr. Henrique da Fon- 4) No lado SW, para além da existência de um
seca (Fig. 4). afloramento muito desnivelado, fruto de cortes
Os trabalhos arqueológicos consistiram no acom- realizados por anteriores trabalhos, tínhamos o
panhamento de: i) procura do local de passagem restante espaço preenchido com entulhos, não
da conduta de esgoto (não existem plantas destas existindo estratigrafia arqueológica conservada.
1286
à existência de espólios completamente descontex- Dr. Henrique da Fonseca, onde se identificou o aflo-
tualizados. O único local preservado, e cuja escava- ramento sob o embasamento do atual pavimento e,
ção forneceu dados relevantes, foi, efetivamente, o na vala 1, onde temos o silo a cerca de 1m de profun-
Silo 1. Em relação ao espólio, temos assim duas si- didade, coberto por diferentes camadas de entulhos
tuações distintas: e sedimentos que, claramente, resultam de detritos
1) O existente no interior do silo que foi recolhido provenientes de obras anteriores.
e está a ser tratado no Laboratório de Arqueolo- Esta área, localizada dentro do perímetro amuralha-
gia Pinho Monteiro, no âmbito de uma tese de do, em época moderna, é referida em documentos
mestrado de Arqueologia (cerâmicas) e de um históricos, como uma zona de grande dinamismo
Seminário em Arqueologia (faunas). Generica- social entre os séc. XV e XVIII, uma vez que era
mente compreende, para além dos dois potes precisamente no Largo das Portas de Moura que,
já referidos (Fig. 5, 8), cerâmica comum (testos, por exemplo, “se publicavam as proclamações, con-
pote – Fig. 9, pratos, taças e outras formas ainda vocatórias e as pazes gerais do reino” (Espanca,
não determinadas), vidros e faianças – Fig. 10, 1966:142).
algumas peças em metal. Possuía também cerâ- Esta cronologia parece coincidir com a cultura ma-
mica de construção (tijolo burro e telha de meia terial existente dentro do silo 1, que se alinha com a
cana), que se concentrava, sobretudo, junto das informação prestada por T. Espanca sendo, por isso,
paredes, podendo funcionar como revestimen- a Casa Cordovil um local que, do ponto de vista ar-
to. Temos ainda a presença de faunas (também queológico, nos pode fornecer informações impor-
em fase de estudo específico), conchas de ostra tantes para a compreensão da dinâmica ocupacional
e outras de espécies mais pequenas (lingueirão? da cidade.
berbigão?) muito fragmentadas. Não foi reco- Infelizmente, pese embora exista a ideia geral de que
lhida nenhuma moeda, mas, a análise prelimi- “existem inúmeros locais onde apareceram silos” na
nar do conjunto recolhido aponta para uma uti- cidade de Évora, quando procuramos cruzar esta in-
lização entre os séc. XV-XVIII. formação com a existente no Portal do Arqueólogo,
2) O identificado na abertura de valas e caixa de verificamos que esta não se encontra documentada.
visita da Rua Dr. Henrique da Fonseca, o qual Efetivamente, se aplicarmos um filtro por tipologia
não foi recolhido por se tratar de material emi- “silo” + concelho “Évora” apenas existe registo de
nentemente constituído por entulhos e cerâmi- cinco locais, na maioria, dos casos com número in-
cas comuns de época recente, restos de cerâ- determinado de silos e informação complementar
micas de construção e comuns, onde se inclui muito deficitária (Cf. Quadro 1).
vidrados, vidros de garrafas, metal (parafusos, Os inúmeros problemas associados ao Portal do
pregos, pedaços de fios metálicos e indetermi- Arqueólogo, criado para gerir toda a informação ar-
nados) e algumas faunas. queológica nacional e auxiliar a investigação, têm
vindo a ser sistematicamente referidos pela signa-
5. CONCLUSÕES tária. Para além da sua não atualização desde, pelo
menos, os primeiros anos do século XXI, o facto dos
Os trabalhos de acompanhamento arqueológico Relatórios Técnico Científicos não serem públicos
realizados na área do Parque de Estacionamento, na impede que se consigam realizar trabalhos de siste-
rampa de acesso e na Rua Dr. Henrique da Fonseca, matização da informação. Damos como exemplo o
permitiram-nos perceber que a construção da Casa caso do Salão Central Eborense (CNS 17156), classi-
Cordovil, e as obras subsequentes, que este espaço ficado com a tipologia “Vestígios Diversos” que refe-
teve nos séculos seguintes provocaram alterações re a existência de silos na intervenção realizada em
significativas da topografia do terreno, existindo al- 2001/2002, mas não tem inserida qualquer informa-
guns locais em que o substrato geológico se encontra ção sobre os trabalhos realizados na década seguin-
à superfície (podendo ter sido cortado para nivelar te. Assim sendo, não obstante estarmos a tratar de
ruas e pavimentos de habitações) e outras, em que uma cidade Património da Humanidade, para con-
temos a presença de entulhos a nivelar, alteando os seguirmos produzir conhecimento cientifico temos
espaços. Exemplos destas situações foram regista- que, 1) verificar todos os sítios inseridos à procura de
das na área de transição da rampa de acesso/ Rua potencial informação; 2) realizar pedido de consulta
BIBLIOGRAFIA
AAVV (1959) – Número comemorativo do Quadricentenário
de Fundação da Universidade de Évora. Évora: Comissão
Municipal de Turismo.
1288
Figura 1 – Indicação das áreas com intervenção a nível do solo, por tipologias.
1290
Figura 4 – Esquema da caixa aberta na rua Dr. Henrique da Fonseca.
1292
Figura 8 – Potes que se encontravam no interior do Silo 1.
Quadro 1 – Lista de sítios com a tipologia Silo, no Portal do Arqueólogo (verificado a 1/5/2023).
1294
RECONSTRUIR A CIDADE: O PRÉ E O
PÓS-TERRAMOTO NA RUA DAS ESCOLAS
GERAIS, Nº 61 (LISBOA)
Susana Henriques1
RESUMO
Na Rua das Escolas Gerais nº 61 identificou-se três realidades arqueológicas que vão desde o século XVIII até
ao XIX. As mudanças funcionais e de organização espacial são características de uma grande urbe, mais ainda
quando aliadas a uma catástrofe como o terramoto de 1755. Onde se viu a oportunidade de melhorar o sistema
de saneamento e alargar as vias da cidade. Com o desenvolvimento da cidade do século XIX verifica-se a uma
maior urbanização e mais uma vez ao alargamento de vias que ainda remetiam para um urbanismo medieval.
Palavras-chave: Época Moderna; Urbanismo; Estrutura Hidráulica.
ABSTRACT
At Rua das Escolas Gerais nº 61 three archaeological realities were identified, spanning from the 18th to the
19th century. Functional and spatial organization changes are characteristic of a large city, even more so when
combined with a catastrophe such as the 1755 earthquake. In this there was the opportunity to improve the sani-
tation system and widen the city’s roads. With the development of the city in the 19th century, there is a greater
urbanization and, once again, the widening of roads that still invoke to a medieval urbanism.
Keywords: Post-medieval; Urbanism; Hydraulic Structure.
1. INTRODUÇÃO 2. O PRÉ-TERRAMOTO
1296
meabilização de uma argamassa cor-de-rosa, com- 4. SÉCULO XIX
pacta, de grão médio, com cal, cerâmica e quartzo.
Este reboco é aplicado no lado Oeste atá ao muro do Nos finais da centúria de 1800 é construído um edi-
saguão do Convento do Salvador, tendo uma espes- fício de cave e primeiro andar, a fachada virada para
sura de 10cm. Verificou-se que a abóboda arranca a Rua das Escolas Gerais apresenta um revestimen-
sobre três fiadas de tijoleira na horizontal, seguindo to azulejar com motivos vegetalistas inseridos numa
depois na posição vertical tijoleiras perpendiculares moldura a azul, com desenho ondulado a branco.
umas às outras. No lado Este foi identificada uma Esta cercadura envolve as cantarias dos vãos desta-
abertura para escoamento de águas de 12cm por cando-os. Os vãos da fachada são de lintel compos-
18cm de altura, provavelmente uma salvaguarda em tos por cantaria calcária, e ao todo estão presentes
casos de cheias ou de entupimentos. três. A entrada seria feita pela zona do logradouro
O fundo do caneiro é composto pelo assentamento (Fig. 8).
de uma argamassa branca, bastante compacta, com
cal, fragmentos de cerâmica, quartzo, seguida com a 5. DISCUSSÃO
deposição de tijoleira rectangular (entre duas a três
fiadas), argamassa e depois lajes de pedra calcária A identificação de um edifício pré-terramoto, englo-
com mais ou menos 3 cm de espessura. Com o des- bando três compartimentos, vêm trazer nova infor-
monte controlado constatou-se que divido à acen- mação sobre os arruamentos onde se insere. Este
tuada pendente foi efectuada uma quebra de água. edifício encostava ao afloramento geológico, seguin-
Apresenta um desnível de 80 cm entre as duas plata- do a encosta natural, estando a sua fachada virada
formas e foi construída por um bloco calcário único para a Rua de Guilherme Braga (antiga Rua da Cruz
com 15 cm de espessura, 80cm de altura e 90cm de do Mau).
largura. Após a queda de água a estrutura apresenta Em trabalhos de acompanhamento arqueológico
no seu interior uma altura máxima de 1,52m e no ex- neste arruamento para colocação de infraestruturas
terior de 1,82m. As paredes laterais têm uma altura de água foram identificadas as seguintes realidades:
de 90cm, antes do início do arranque da abóbada. muro de alvenaria com piso de tijoleira associada
A estrutura tem de comprimento 7,50m, com uma que assentam no afloramento geológico, atribuídos
inclinação de 30%. Aos 6,68m do seu comprimento a uma ocupação Séc. XVI/XVII, e um caneiro já com
apresenta uma queda com 3,65m em profundidade remodelações recentes de cronologia do Séc. XVIII
(do topo interno à base interna). A abertura da queda (https://arqueologia.patrimoniocultural.pt/ – C. S:
de água tem 82cm de largura por 88cm de compri- 36827). Podemos supor que as estruturas mais anti-
mento, construída por blocos de calcário quadran- gas correspondem ao R/C do edifício intervenciona-
gulares aparelhados (parede Sul), idênticos aos que do na Rua das Escolas Gerais e estarão ligadas aos
surgem na anterior da queda de água, com tijoleira e Compartimentos I e II. O que não parece descabido,
juntos com a mesma argamassa já descrita (Fig. 7). uma vez, que tradicionalmente os fogos dos séculos
Termina numa laje quadrangular de calcário e atra- XVII e XVIII tanto poderiam dispor-se em três com-
vessa a parede do Guilherme Braga, com remodela- partimentos em fila, ou como nos parece neste caso,
ções recentes em manilhas de grés. com um formato mais largo e curto, estando a cozi-
O caneiro continua pelo Largo do Salvador, estando nha e o quarto lado a lado (no tardoz) e comunicando
o mesmo já muito afectado por trabalhos de remo- com a sala (CALDAS, PINTO e ROSADO, 2014: 134
delação das infraestruturas localizadas no Largo de e 135). Seria um fogo por piso onde os compartimen-
São Salvador e Rua de Guilherme de Braga. Uma vez tos correspondem às funções primordiais na habita-
que esta estrutura ao momento de identificação es- ção: “estar/socializar, dormir e comer/confecionar a
tava coberta por manta geotêxtil, supomos que seja alimentação” (CALDAS, PINTO e ROSADO, 2014:
a mesma identificada aquando dos trabalhos de me- 135). O compartimento I claramente identifica-se
lhoramentos do saneamento e registado pelo acom- com a função de confeção de alimentos pela evidên-
panhamento arqueológico para a Rua de Guilherme cia da lareira. Supondo então que o compartimento
Braga nº 27 no ano de 2015 (https://arqueologia.pa- II seria o quarto, ambos no tardoz do edifício como
trimoniocultural.pt/ – C. S: 36827). se verifica nos prédios de rendimento desta época
(CALDAS, PINTO e ROSADO, 2014: 135).
1298
o pelouro das obras e o da saúde, que repartiriam pela primeira vez na cartografia de 1878 de Francis-
as funções e responsabilidades do bom funciona- co e César Goullard (https://websig.cm-lisboa.pt/).
mento do saneamento de Lisboa (BARROS, 2014a: Num novo plano de alinhamento da Rua das Escolas
107). Evidencia a importância do escoamento das Gerais, determinado pelo Decreto n.º 10, de 31 de
águas, podemos supor que o caneiro anterior ficou Dezembro de 1864, surge em 1876, o pagamento de
comprometido e que foi necessário a construção de uma indemnização, a Paulo Porfírio de Lima, de 100
um novo, que aproveitou a tragédia do terramoto ou réis referente à cedência de um terreno para o alar-
para criar algo de raiz (que seguindo para Norte em gamento da supra referida rua (EON, 2014). Aqui
linha recta continuará por baixo dos edifícios actuais assiste-se à alteração do muro do logradouro, confe-
até ao Convento de Santa Mónica); ou que o proble- rindo o aspecto que assume nos dias de hoje.
ma persistente das enxurradas na cidade de Lisboa,
levou a um melhor planeamento de forma a comba- 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
ter esta situação naquela zona da encosta oriental.
Uma vez, que o Cano da Portaria do Salvador era de Os trabalhos de foro arqueológico puseram em evi-
interesse público, pois recolhia águas de ruas, teria a dência três realidades ocupacionais na área inter-
sua manutenção e limpeza assegurada pela Câma- vencionada, destintas entre si, mas apontando para
ra, já no interior do convento seria da parte da igreja o carácter urbano. A organização espacial era ligei-
(BARROS, 2014b: 32 e 85). ramente diferente, verificamos que dois edifícios
Mas é interessante verificar que em época islâmica pré-terramoto nasciam na actual Rua de Guilherme
o Convento do Salvador seria o local do “bosque (!) Braga, antiga Rua da Cruz do Mau, um dos edifícios
de Alfugenra”, e que daqui correria uma pequena encostaria ao Convento do Salvador, cresciam em
ribeira NO-SE que acabaria na zona onde se viria a altura de pelo menos 3 pisos e foram construídos
construir o Chafariz de Dentro, onde nesta época juntos à encosta natural.
se situaria uma zona termal e um núcleo piscatório Seguidamente optou-se por ajardinar este espaço
(AMARO, 2003: 15). Poderemos então levantar uma murado, provavelmente, devido ao facto que por bai-
terceira hipótese, ou seja, que o ramal do Conven- xo da propriedade passava uma estrutura hidráulica
to de Santa Mónica poderia ter um segundo ramal, de grandes dimensões. E é interessante verificar que
uma conduta de segunda ordem como descrita por J. a construção de um novo edifício nos finais do sécu-
Bugalhão e A. Teixeira (BUGALHÃO E TEIXEIRA, lo XIX foi feita na extremidade oposta à localização
2015: 107), que terminaria no Convento do Salvador, do caneiro. Seria por conhecimento da dita estrutu-
e que desta forma poderia passar pela zona do logra- ra, ou simplesmente por motivos práticos seria mais
douro do nº61 da Rua das Escolas Gerais. Salienta- fácil contruir anexo ao edifício que já existiu a Este e
mos que os ramais principais tinham uma tendência evitando o saguão do Convento de S. Salvador.
ortogonal N-S/E-O e seguiam os arruamentos prin- Tal como no século XVIII assistiu-se a uma oportu-
cipais através da rede urbana existente (TEIXEIRA nidade de reordenar as vias, com o alargamento da
E BANHA DA SILVA, 2020: 16). Rua de Guilherme Braga, o mesmo acontece no sé-
Como verificado na planta de Filipe Folque esta culo XIX com a Rua das Escolas Gerais, proceden-
zona passou a ser uma zona ajardinada, parecendo do-se à compra de parte da propriedade do nº 61
ter várias divisões do espaço, provavelmente com das Escolas Gerais, mas também a expropriação em
socalcos. A destruição do edifício/s com o terramo- 1884, de parte do convento de São Salvador para a
to não levou a uma nova construção urbana. Talvez Câmara Municipal de Lisboa, e o restante edificado
o esforço centrou-se na reconstrução da igreja do (Convento e Igreja) passa para a Associação Protec-
Convento de São Salvador que terminou em 1762 tora de Meninas Pobres e Associação protectora de
(http://patrimoniocultural.cm-lisboa.pt/lxconven- Escolas Asilos para Rapazes Pobres (http://patrimo-
tos), na limpeza do arruamento e na consolidação niocultural.cm-lisboa.pt/lxconventos).
da encosta com a construção do paredão da Rua de Assiste-se a um palimpsesto funcional deste espaço,
Guilherme Braga. que foi regido pelas transformações necessárias a
Nos finais do século XIX o crescimento urbano e cada uma das épocas.
populacional levou a que houvesse necessidade de
contruir um novo edifício, surgindo representado
1300
Figura 2 – Lareira e Chaminé. Figura 3 – Fogão no interior da lareira.
Figura 6 – Vista de topo do caneiro, onde encosta ao Con Figura 7 – Término com uma queda de 3,60m do caneiro na
vento de S. Salvador. fachada tardoz.
1302
Figura 8 – Foto de Machado & Souza de 1900 da fachada do nº 61, onde também é visível
o muro do logradouro (fonte: Arquivo Municipal de Lisboa).
1304
LAZARETO, FORTALEZA E PRISÃO:
ARQUEOLOGIA DO PRESÍDIO DA TRAFARIA
(ALMADA)
Fabián Cuesta-Gómez1, Catarina Tente2, Sérgio Rosa3, André Teixeira4, Francisca Alves Cardoso5, Sílvia Casimiro6
RESUMO
As sondagens de diagnóstico efetuadas no âmbito do projeto de instalação do Instituto das Artes e Tecnologia
(Universidade NOVA de Lisboa) no Presídio da Trafaria revelaram novos dados para a interpretação da história
deste local. À primitiva área de quarentena definida no século XVI foram sendo acrescentadas novas funções
de caráter comercial, religioso, militar, fiscal e prisional, até à profunda remodelação do espaço já no século
XX, que implicou a construção das instalações do Presídio atualmente existente. Os vestígios desta evolução
histórica foram revelos no decurso dos trabalhos arqueológicos. A intervenção efetuada reforça a importância
de compreender os espaços urbanos e a sua evolução histórica e arquitetónica, de modo a desenhar e adaptar os
projetos de reabilitação.
Palavras-chave: Idade Moderna; Trafaria (Almada);Arqueologia preventiva;Reabilitação urbana e património;
Arquitetura militar.
ABSTRACT
The archaeological evaluation by test-pitting carried out as part of the project for the construction of the Institute
of Arts and Technology (NOVA University Lisbon) at the Prison of Trafaria revealed new data for the interpreta-
tion of the history of this place. The primitive quarantine area defined in the 16th century added new commercial,
religious, military, fiscal, and prison facilities, until the deep remodelling of the space which implied the con-
struction, already in the 20th century, of the existing Prison. A varied history which is revealed in the remains and
in the material culture documented during these works. This intervention reinforces the importance of under-
standing urban spaces and their historical and architectural evolution to design and adapt development projects.
Keywords: Modern period; Trafaria (Almada); Rescue archaeology; Heritage & urban development; Military
architecture.
5. Laboratório de Antropologia Biológica e Osteologia Humana (LABOH) – CRIA, NOVA FCSH; Laboratório Associado para a Inves-
tigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território (IN2PAST) / [email protected]
6. Instituto de Estudos Medievais (IEM) — NOVA FCSH; Laboratório de Antropologia Biológica e Osteologia Humana (LABOH) –
CRIA, NOVA FCSH; [email protected]
1306
anexos e articulados entre sim, vinculados às ativi- Bugio), de S. Sebastião (Torre Velha da Caparica,
dades económicas, sanitárias e político-militares de- no Porto Brandão) e com o próprio castelo/forte de
senvolvidas no local (Figura 2.1). Almada, além de várias baterias na vasta faixa do
O crescimento populacional na zona ribeirinha, a ne- areal da Golada (Santos, 2014, pp. 53-54). A sua im-
cessidade de atender aos agentes vinculados ao logar portância residia mais na proteção da praia ante um
de desimpedimento e àqueles que aqui faziam qua- possível desembarque inimigo que pudesse fazer
rentena forçada, bem como dar oportuna sepultura da Trafaria uma posição para o ataque a Lisboa ou a
a quem morria, fizeram com que o provedor-mor de Almada, que no seu apetrechamento como bastião
saúde considerasse conveniente construir um espaço artilhado, cuja eficácia histórica parece ter sido es-
religioso, obra iniciada em 1678. Segundo Leal (2014, cassa (Leal, 2014, pp. 94-95). A configuração do for-
pp. 46-47), a ermida foi reformada já em 1725 e, como te era bastante simples: de planta poligonal, acesso
consequência dos danos do sismo de 1755, em 1785. único no canto SO e com umas dimensões máximas
Nas fotografias de finais do século XIX e inícios do aproximadas de 65*30 m nos seus eixos E-O e N-S.
XX ainda é possível observar a estrutura exterior da O muro norte, onde se situaria a plataforma da ba-
pequena ermida – pelo menos após a sua última re- teria de artilharia, articulava-se organicamente com
paração de 1830-1831 –, com orientação canónica, o litoral, enquanto os muros ocidental e meridional
nave central, telhado de duas águas e duas pequenas eram de traçado reto, e o muro oriental foi levantado
torres sineiras laterais na fachada (Figura 2.3). No paralelo à base da arriba de Murfacém, servindo de
inquérito da Comissão dos Monumentos Nacionais parede de fundo aos edifícios do forte: paiol, quartel
(1896; PT/ANBA/ANBA/B/001/00016) indica-se a dos soldados da guarnição e a “Casa do Governador
ruína da ermida, na qual «parte das sepulturas da ca- com refeitório” (Figuras 1.3 e 2.2).
pella estão violadas, havendo ossadas (…) recolhidas Desde muito cedo na história do lazareto da Trafaria
n’um recanto», mas também de uma série de paneis – e praticamente até o fim de seu uso como estância
de azulejos “estilo D. João V” (com cenas figurativas, provisória para gentes com doenças suspeitas, arma-
principalmente bíblicas) que, «não sendo de conside- zém e fiscalização de fazendas e presídio temporário
rável valor, têm merecimento artístico e histórico»7. para os desterrados –, as queixas pela falta de espaço
Este foi um local designado para os enterramentos da e o mau estado das instalações foram constantes. A
população a partir de 1732 e, ainda que estes tenham primeira grande reforma, com desenho do sargento-
continuado provavelmente até 1829, a ermida terá -mor engenheiro Manuel do Couto, foi iniciada em
perdido a sua função após o traslado do lazareto para 1711-1714, facilitando a estruturação do espaço e in-
Porto Brandão, em 1815 (vid. infra). Os enterramen- tegrando as novas construções com a ermida e o for-
tos efetuavam-se no interior da ermida e no cemité- te já existentes. Em 1720 foi dada ordem para murar
rio a noroeste (Reis, Roupa & Cruz, 2013, p. 17), um o lazareto, não sem considerar antes se era possível
espaço murado, de planta quadrangular, junto à praia a sua deslocação – precisamente pelas deficientes
(atualmente imediatamente a sul da estação fluvial) condições do local – «mais para baixo da Trafaria,
(Figura 2.1), sem que se possa descartar a possibili- para a parte da Cabeça» (Oliveira, 1901, p. 432), pos-
dade de utilização de outros espaços intermédios em sibilidade de novo avaliada (e descartada) em 1800 e
épocas de crise de mortandade. 1831. Foram feitas novas obras a cargo do engenheiro
A construção de um forte na Trafaria foi considera- Carlos Mardel em 1743-1744, tanto no muro exterior
da necessária já desde a segunda metade do século como nos edifícios já existentes, e foi construída
XVI (F. de Hollanda, 1571 [1879], pp. 7 e 8; e PT/TT/ uma nova enfermaria. O sismo de 1 de novembro
MMCG/7D/000018), mas a obra só se veio a efe- de 1755 – e o maremoto dele derivado – terão causa-
tivar nos inícios da década de 1680. A sua posição do danos graves nos edifícios do forte e, sobretudo,
reforçou o sistema de defesa da entrada marítima do lazareto, porque num aviso de fevereiro de 1756
na cidade de Lisboa, conjugando-se na margem sul ordenou-se que continuassem a ser depositadas as
do Tejo com os fortes de São Lourenço (Torre do mercadorias no armazém do lazareto, apesar deste
se encontrar em ruína, estando também desmoro-
nado o do forte pela mesma causa. Este não tinha
7. Notícia «A capella da Trafaria», no Jornal O Século, 8 de
maio de 1896. sido reparado ainda «por ser preciso recolherem-se
1308
urbano da Trafaria, como por exemplo a galeria de com uma superfície total escavada de 124 m2, assim
betão paralela ao muro oeste do recinto, que canaliza como uma sondagem parietal no tramo de muro jun-
as águas pluviais (Figura 5). O Presídio foi desativado to ao rio (SP1) (Figura 1.3).
definitivamente como recinto penitenciário militar Todos os trabalhos de escavação foram executados
em 1981, passando a sua propriedade para a Câmara manualmente até à cota de afetação prevista no Pro-
de Almada em 2000. jeto preliminar ou até atingir o substrato geológico
rochoso na área delimitada (profundidades variá-
3. OS TRABALHOS ARQUEOLÓGICOS veis, entre ca. 0.90 e 1.60 m). A estratigrafia do local
REALIZADOS está condicionada por dois aspetos fundamentais:
por um lado, a própria configuração topográfica do
O objetivo principal dos trabalhos arqueológicos foi espaço, quase todo ele entre apenas 3 e 5 metros aci-
documentar a sucessão estratigráfica existente em ma do nível do rio, e geológica, que responde a uma
diferentes pontos do recinto do Presídio da Trafaria9, unidade base MIII (não atingida) datada do Miocé-
bem como averiguar o possível impacto do projeto de nico, designada por calcários de Entrecampos/Banco
reabilitação dos edifícios e de instalação de infraes- Real composta por biocalcarenitos castanhos amare-
truturas em vestígios arqueológicos preservados no lados, muito fossilíferos – em transgressão, na zona
subsolo. Os resultados obtidos iriam, deste modo, da Trafaria, para as argilas de Forno de Tijolo (MIVA) –,
determinar a eventual necessidade de proceder a e coberta por areias de dunas praticamente em toda
trabalhos de escavação arqueológica adicionais e/ a zona, dando lugar a aplanação litoral que decor-
ou de adequar o Projeto de Execução às realidades re juto a costa para oeste, já livre de arribas (Pais &
patrimoniais detetadas. alii, 2006; Freitas, coord., 2011, pp. 64 e ss.). Essas
Assim, as sondagens S.1 a S.6 programadas inicial- areias, com ocasionais camadas alternas de siltes e/
mente visaram áreas críticas do recinto do Presídio, ou argilas cinzentas-esverdeadas, constituem o solo
estimadas a partir da documentação e cartografia típico no local de intervenção por de baixo dos níveis
histórica conhecidas. As sondagens S.1, S.2 e S.6 de aterro que servem de base ao pavimento de cal-
localizaram-se no corredor Este, entre os Edifícios çada presente em todos os arruamentos do Presídio,
#4B e #6; a S.3 em frente da atual capela, e as son- como evidenciam as sondagens S.1 e S.7, sendo que
dagens S.4 e S.5 à volta do chamado “edifício das ce- nesta se observa também o afloramento de uma pla-
las”. Após os resultados obtidos nesta primeira etapa taforma de calcarenito amarelo, habitual nas zonas
(janeiro-fevereiro, 2022), e em articulação com a Tu- mais próximas à arriba (Figura 3.2). Por outro lado,
tela, foi considerado necessário realizar uma segun- devemos destacar as profundas alterações no es-
da série de 6 sondagens (S.6A a S.11; maio-junho, paço como consequência das obras de construção
2022). Com o intuito de complementar a informação do Presídio, especialmente em relação aos aterros,
conseguida nas sondagens S.2 e S.6, foram escava- fundações dos diferentes edifícios e instalações de
das as áreas adjacentes (sondagens S.8 e S.6A, respe- infraestruturas (abertura de numerosas valas para
tivamente); e para avaliar a viabilidade dos traçados esgotos, condutas e eletricidade), algumas destas
previstos para novas infraestruturas nas áreas cen- últimas já realizadas após o abandono do Presídio.
tral (entrada/jardim) e setentrional (corredor Norte) A identificação de remanescentes biológicos huma-
do recinto foram executadas as sondagens S.7, S.9, nos, isto é, elementos ósseos em deposições secun-
S.10 e S.11. No decurso dos três meses de trabalho dárias, nas sondagens S.3 e S.9 (que correspondem
de campo foram realizadas, portanto, um total de 12 a espaços interiores e exteriores da ermida de época
sondagens arqueológicas de diagnóstico no subsolo, moderna), exigiu a participação da equipa de bio
‑antropologia designada no Plano de Trabalhos especí-
fico (PTA) para a adequada salvaguarda e registo dos
9. Durante os trabalhos integraram a equipa técnica de cam- contextos reconhecidos. Os remanescentes biológi-
po – em diferentes momentos – os arqueólogos Inês Belém, cos humanos recolhidos foram transportados para o
Beatriz Calapez, Margarida Silva, Jorge Branco, Daniel Sar-
LABOH‑CRIA (NOVA FCSH), onde decorre o seu es-
dinha, João Coelho, João Cosme, dirigidos pelo arqueólogo
responsável Fabián Cuesta-Gómez, sendo a coordenação
tudo, nomeadamente a avaliação do perfil biológico e
dos trabalhos arqueológicos, bio-antropológicos e a gestão
de projeto realizada pelos signatários do presente trabalho.
1310
-borracha próxima. Após a remoção do piso de betão variado. No tramo central da nave única do edifício
e a camada de nivelamento com terras e descartes foi documentada uma sucessão de até três pavimen-
de talhe de paralelos de calçada existentes nos níveis tos argamassados que cobriam uma quádrupla com-
superiores, foram documentadas sucessivamente partimentação delimitada por estreitos muros (entre
três fases bem diferenciadas. Pelas fontes gráficas e 18 e 28 cm de largura) de alvenaria de tijolo e arga-
documentais consultadas, sabíamos da inexistência massa, em sentido longitudinal. Devem correspon-
de edificado nesta área pelo menos desde finais do der a uma segunda fase de uso deste espaço, sendo
século XVIII e, ainda que efetivamente não tenham que a primeira seria um soalho que cobriria os com-
sido identificadas estruturas murárias, foram do- partimentos retangulares intermurais e permitiria a
cumentados dois pavimentos argamassados, com sua abertura e fecho se, como parece lógico pensar
níveis de aterro intermédios que, após uma revisão pela sua configuração e profundidade, estes se tra-
preliminar dos materiais cerâmicos associados, se tarem de espaços destinados a enterramentos (Figu-
corresponderiam respetivamente a níveis de uso de ra 4). Foi parcialmente escavado um destes espaços
época contemporânea (segunda metade do século intermurais, já previamente afetado no processo de
XIX e inícios do XX) e de época moderna (século aterro desta área durante a construção do Presídio.
XVIII e inícios do XIX). Num estrato inferior a este Efetuou-se uma micro-sondagem de 60*55 cm, atin-
último pavimento, e só parcialmente localizado jun- gindo uma cota de 2.79 m a.n.m, documentando-se
to ao corte norte, foi identificado um alinhamento um estrato bastante homogéneo de terra limosa, de
de pequenos blocos de calcarenitos amarelos, com cor castanha-esverdeada, com um relevante núme-
orientação SO-NE, ao longo de ca. 80 cm (Figura ro de remanescentes ósseos humanos desarticula-
7.1). É difícil estabelecer uma interpretação segura dos, demonstrativos de vários estágios de desen-
com tão escassa materialidade, mas a sua disposição volvimento do tecido ósseo, indicando pertencer a
alinhada e a ausência de argamassa leva-nos a con- múltiplos indivíduos de idade adulta e não adulta.
siderar que poderia corresponder à base perimetral A desarticulação dos remanescentes sugere que se
de uma estrutura de habitação tipo cabana, construí- tratam de deposições secundárias, ou até mesmo
da em materiais perecíveis, e que, cronologicamen- terciárias, exemplificando a complexidade e uso
te, poderia datar-se na primeira etapa de utilização recorrente do espaço. Também foram recuperados
desta área do lazareto. No estrato associado foram alguns fragmentos ou lascas dispersas de madeira,
encontrados escassos materiais cerâmicos, um peso pequenas tachas em liga de cobre e em ferro e alguns
de rede e vários fragmentos de cachimbo de caulino. alfinetes, associados sem dúvida aos caixões e indu-
As sondagens S.3 e S.9 tinham o objetivo principal mentária utilizados nas deposições funerárias, mas
de comprovar o estado de preservação de eventuais que, dada a sua elevadíssima fragmentação, reforça
níveis correspondentes à ermida de época moder- a ideia de uma incorporação externa de terras ou
na, aqui situada na cartografia histórica (Figura 2.1). uma remoção muito acentuada dos níveis inferiores
A sua presença foi confirmada (na S.3) após a remo- das áreas de enterramento.
ção do piso de calçada e de camadas de nivelamen- A estratigrafia da S.9, situada imediatamente a poen-
to, logo aos 15-20 cm de profundidade, tratando-se te da ermida, encontra-se profundamente alterada
de um edifício de planta retangular e umas dimen- pelas obras de construção e instalação de diferen-
sões interiores relativamente pequenas, com aproxi- tes tipos de infraestruturas ao longo dos séculos XX
madamente 12 m de comprimento e 5 m de largura. e XXI, principalmente uma galeria em betão com
A zona oeste da sondagem corresponderia à fachada abobada em berço ligeiramente apontada, provavel-
da ermida e a sua porta de acesso, virada original- mente desenhada para canalizar a linha de água da
mente para o exterior do espaço do lazareto, docu- ribeira da Enxurrada (Figura 5). Estas obras afetaram
mentando-se um potente nível de enrocamento significativamente os níveis arqueológicos pré-exis-
(entre 65 e 75 cm de altura) com recurso a blocos de tentes, tendo sido possível, não obstante, identificar
calcarenito, que serviria de alicerce para esta facha- parte das fundações do muro que delimitava pelo
da. No interior, um nível térreo de pedra miúda e ar- sul a ermida de Nossa Senhora da Saúde, alguns (es-
gamassa de cal muito fina e compacta, com 7-10 cm cassos) depósitos de remanescentes biológicos hu-
de potência, serviria de base para a colocação de um manos desarticulados e alguns materiais cerâmicos
pavimento de lajes de forma retangular e tamanho inconexos, fruto dos aterros nesta zona do Presídio.
1312
uma menor largura) e que conforma o possível ângu- histórica do espaço. Os resultados obtidos foram de
lo SE de um edifício pré-existente, não documenta- grande relevância para compreender as diferentes
do previamente, que é amortizado aquando da cons- fases de ocupação deste espaço. As vastas obras de
trução do edificado registado nesta área nas plantas terraplanagem, nivelamento e reaproveitamento de
de 1793 e 1821 (Figura 7.3). A presença do muro N-S materiais construtivos para a edificação do estabe-
origina nesta área um estreito corredor – ou beco lecimento prisional contemporâneo afetaram pro-
–, tendo o espaço a nascente sido ocupado por um fundamente as construções prévias, mas, ao mesmo
comprido edifício de planta similar ao atual Edifí- tempo, preservaram os alicerces e fundações dos
cio #4A do Presídio (Figura 1.3). De facto, é provável edifícios que conformavam o complexo assistencial,
que este edifício contemporâneo reaproveite a plan- prisional e militar de época moderna. A leitura da
ta (ou inclusive parte do próprio volume) do edifício sua evolução, da integração arquitetónica do edi-
prévio de época moderna, sendo assim o único caso ficado e da cultura material recuperada permitem,
de continuidade do edificado aquando a construção assim, uma aproximação a um espaço necessário
do Presídio que, por norma, desmontou todas as es- para o quotidiano da região de Lisboa, mas ao mes-
truturas precedentes quase até a cota térrea. O final mo tempo esquecido e repudiado pela sua própria
deste beco seria o próprio muro meridional do forte, funcionalidade de lazareto e prisão. Neste trabalho
documentado na sondagem S.6/6A. apresentaram-se apenas aspetos mais destacados da
Por último, indicar que as sondagens S.4 e S.5, loca- intervenção arqueológica, integrando os resultados
lizadas respetivamente no tardoz e junto à entrada na história do local e a sua preservação com o projeto
oeste do “edifício das celas”, foram efetuadas pre- de recuperação e valorização de um imóvel emble-
ventivamente a uma futura reabilitação deste edifí- mático no território de Almada. A continuidade da
cio, no âmbito do protocolo com a Câmara Municipal investigação trará, seguramente, novos dados para a
de Almada. Na S.4, após a remoção de duas camadas interpretação deste espaço.
de nivelamento do terreno, foram documentados os
vestígios do que corresponderia às instalações sani- BIBLIOGRAFIA
tárias e o parlatório anexos a sul do edifício prisional,
ABREU, Laurinda (2018) – Epidemics, quarantine, and state
tal como aparece nas plantas do Presídio de 1910 e control in Portugal, 1750–1805. In CHIRCOP, John; MAR-
1933. Na S.5, pese à profunda afetação do terreno TÍNEZ, Francisco Javier, eds. – Mediterranean Quarantines,
pela presença de numerosas e sucessivas valas para 1750–1914. Space, identity, and power. Manchester: Manches-
infraestruturas contemporâneas, foi possível definir ter University Press, pp. 232-255.
um muro com orientação NO-SE, cujas característi- ALBERTO, Edite Martins; SERAFIM, Paula (2021) – The city
cas construtivas e dimensões (ca. 1 m de largura) pa- of Lisbon and the fight against epidemics. In ALBERTO,
recem relacioná-lo com as estruturas arquitetónicas Edite Martins; BANHA da SILVA, Rodrigo; TEIXEIRA, An-
de época moderna documentadas nas sondagens dré, eds. – All Saints Royal Hospital: Lisbon and Public Health.
S.2/S.8, S.7 e S.9. Estes dados permitem-nos supor Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa / Santa Casa da Mise-
ricórdia, pp. 615-625.
que se trata de parte do muro ocidental do edifício
identificado como «prisões» na planta do recinto de BUIKSTRA, Jane, coord. (2019) – Ortner’s identification of
1857(?), que apresenta um alpendre na sua fachada pathological conditions in human skeletal remains. Londres:
norte, aberta ao pátio do lazareto. Academic Press.
Figura 1 – 1) localização do Presídio da Trafaria na desembocadura do Tejo, excerto da Carta Militar – Folha 431 (Lisboa); 2)
ortofotografia do recinto prisional (Imagem: SNIG, escala 1:2000); 3) levantamento topográfico (C. M. Almada, Divisão de
Projetos), com localização das sondagens efetuadas e nomenclatura dos espaços referida no presente artigo.
1314
Figura 2 – 1) Planta do Lasareto da Trafaria / levantada em Janeiro de 1821 pelo Brigadeiro Graduado do Real Corpo d’Engenheiros
Pedro Folque (GEAEM / DIE: 2096-2-17-24); 2) alçado e planta do Forte da Trafaria [Folque, 1821?] (GEAEM / DIE: 2673-2-
23A-33); 3) Margem sul do Tejo (Trafaria). ca. 1908-1909; indicada no círculo amarelo, a ermida de Nª Sª da Saúde; [1] e [2]
Edifícios #4A e #4-sul do Presídio, já construídos; [3] pavilhão das Galeotas Reais; [4] provável muro original do forte (entrada
SO), parcialmente desmontado; [5] armazém (?), provável localização do cemitério associado ao lazareto (Imagem: Museu da
Marinha: PT/MM/MM:CF/014-008/01602).
Figura 4 – Sondagem 3, vista de oeste; em primeiro plano, enrocamento da fachada; segundo plano, pavimento argamassado
com negativos das lajes; ao fundo, espaços compartimentados mediante muretes de tijolo.
1316
Figura 5 – Sondagem 9, vista de SO. esq.) é visível a base do muro do edifício encostado a sul da ermida, cortado pela vala para
a instalação da galeria; dta.) boca da galeria na praia fluvial, canto exterior NO do Presídio.
Figura 6 – esq.) vertebras torácicas ilustrativas das várias fases de desenvolvimento, utilizadas na estimativa
da idade à morte; dta.) exemplos de alterações de natureza tafonómica: [a] fragmento de crânio de juvenil, [b1]
falange proximal de 1º metatársico e [d] metacárpico e falange distal de metacárpico de juvenis com marcas de
contacto com cobre; [b2] extremidade de costela com coloração preta, devido ao contacto com magnésio; [c]
fragmento de diáfise, com coloração avermelhada por contacto com ferro (Fotos: Lydia Narramore, 2023).
1318
CONHECER O QUOTIDIANO DO CASTELO
DE PALMELA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVIII
ATRAVÉS DOS ARTEFACTOS METÁLICOS
EM LIGA DE COBRE
Luís F. Pereira1
RESUMO
Entre 2018 e 2019 realizaram-se sondagens arqueológicas no Baluarte Sul do Castelo de Palmela revelando uma
ampla diacronia de ocupação humana com materialidades desde a Pré-História até ao Período Contemporâ-
neo. Foram recolhidos numerosos vestígios de materialidades quotidianas, nomeadamente cerâmicas, vidros,
restos faunísticos e metais, na qual se destaca um variado conjunto artefactual de peças em liga de cobre que
foram alvo do presente estudo. O estado de preservação das peças permitiram identificar funcionalidades e
tipologias que contribuem para o enriquecimento do estado de conhecimento sobre o quotidiano doméstico e
militar, sobre o vestuário, os adornos e outras materialidades pouco usuais no registo arqueológico do período
moderno no Castelo de Palmela.
Palavras-chave: Castelo de Palmela; Objectos metálicos; Quotidiano; Época Moderna.
ABSTRACT
Between 2018 and 2019, archaeological surveys were carried out in the Southern Bastion of Castelo de Palmela,
revealing a wide diachrony of human occupation with materialities from Prehistory to the Contemporary Pe-
riod. Numerous traces of everyday materials were collected, namely ceramics, glass, faunal remains and metals,
in which a varied artefactual set of pieces in copper alloy stands out, which were the subject of this study. The
state of preservation of the pieces made it possible to identify functionalities and typologies that contribute to
the enrichment of knowledge about domestic and military daily life, about clothing, adornments and other un-
usual materials in the archaeological record of the modern period at Castelo de Palmela.
Keywords: Castelo de Palmela; Metal objects; Everyday; Modern Period.
1320
logia compreendida entre finais do século XVIII e dade que deviam ter desempenhado. A forma mais
inícios do século XX e 299 peças de funções e tipo- simples consiste num círculo em metal de cobre fun-
logias distintas das quais 178 permitiram aferir uma dido (ou outro metal) com ou sem a barra/travessão
cronologia balizada entre os séculos XV e o XVIII. central, eventualmente utilizadas em calçado, como
Relacionados com vários aspectos do quotidiano, a fecho de cintos, chapéus e correias (Sousa 2011:485).
presente amostra em estudo totaliza 198 peças que Respeitante às formas, podem apresentar formatos
foram divididas por função, categoria e por tipo- circulares ou ovais, rectangulares, quadrangulares
logia. Desta forma, encontram-se seis grupos com ou em forma de D, podendo ser também peças deco-
funções e categorias distintas: objectos de uso pes- radas. A utilização de fivelas no vestuário, ou como
soal de vestuário (113) e de adorno (17), elementos de acessório, aparenta ter-se generalizado a partir do
mobiliário (26), objectos de uso doméstico (18), ob- século XVI com a produção em massa destas peças,
jectos sonoros (3) e um grupo de objectos indetermi- tornando-se mais variada e elaboradas nos séculos
nados (20) sem qualquer forma ou função possível seguintes. As peças de formato rectangular, ou sub-
de se reconhecer (gráfico 2). O estudo dos materiais -rectangular são conhecidos em contextos datáveis
compreendeu a análise de todos os objectos que se entre os séculos XVI ao XVII, com paralelos encon-
aqui se apresentam, distinguindo-os e definindo-os trados em Palmela (Fernandes e Carvalho 1993:69),
segundo a sua função, forma/funcionalidade e cate- na ilha da Madeira (Sousa 2011:485), Coimbra (Fa-
goria, atribuindo-se cronologias segundo a pesquisa releira 2014:43), para o castelo de Alenquer (Raposo
de paralelos, tendo por base contextos arqueológi- 2017:181). Quanto aos fuzilhões (figura 3 p – q) são
cos datáveis para o período em análise. pequenas peças que fariam parte de fivelas, fabrica-
Dentro do grupo do vestuário, os alfinetes são pre- das separadamente e posteriormente incorporadas
dominantes no registo, e juntamente com as agu- na peça, podendo apresentar um formato simples,
lhetas correspondem a materialidades geralmente cónico ou subcilíndrico ou de formato semi-trian-
presentes em contextos tardo-medieval e moderno, gular e decorado. Outros objectos associados ao
sensivelmente entre os séculos XV-XVI (figura 3a e vestuário são os ilhós, pequeno aro em liga de cobre,
3b) (Boavida 2009:75). Tratando-se de peças muito de formato circular que era preso à roupa e por onde
comuns no registo arqueológico, para estas cronolo- serviria para passar um fio ou cordão. São pequenas
gias, são também conhecidos em Palmela (Fernan- peças, com 1 cm de diâmetro, difícil de encontrar pa-
des e Carvalho 1997; Fernandes 2004; Fernandes ralelos para esta peça, talvez devido às suas peque-
e Santos 2008). As armações de arame (figura 3c) nas dimensões (por vezes inferior a 1 cm) o que torna
caracterizam-se por um fino fio de arame de cobre difícil a detecção durante a escavação arqueológica.
enrolado ou torcido, destinado ao uso feminino que Por associação crono-estratigráfica, os exemplares
seria presumivelmente utilizados em penteados. São que se recolheram enquadram-se entre os séculos
conhecidos alguns exemplares provenientes de con- XVI e XVII, no entanto carece de comparação com
textos balizados entre os séculos XVI e XVII na ilha outros contextos arqueológicos. Quanto aos botões,
da Madeira (Sousa 2011:490). Em escavação foram também se registaram um considerável número
identificadas dois arames enroladas cujas caracterís- deste tipo de objectos, a sua maioria de cronologias
ticas inserem-se nesta tipologia, tratando-se de duas posteriores ao século XVIII no entanto, registam-se
pequenas amostras, com um comprimento máximo dois botões semelhantes, de forma circular, convexo
de 2,1 cm. Os colchetes (figura 3 d – g) constam tam- no reverso e com a argola de fixação, datável a partir
bém no registo com quatro exemplares, com tama- da segunda metade do século XVI, um botão de pro-
nhos compreendidos entre o 1,7 cm e 3,8 cm de com- dução mais elaborada, com formato octogonal com
primento. São sistemas de preensão de vestuário, as faces polidas semelhante ao recolhido em Alhan-
concretamente fechos metálicos em formato de U, dra (Casimiro 2020:237) e em Coimbra (Fareleira
com as extremidades enroladas para dentro, crian- 2014:38), datado do século XVII.
do dois orifícios que serviriam para serem cozidos à Os objectos de adorno pessoal são constituídos por
roupa. São conhecidos alguns exemplares na ilha da uma corrente (pulseira?) em cobre, brincos, anéis,
Madeira para os contextos datados entre os séculos anilhas, firmal, alfinete, materialidades que teriam
XV e XVI (Sousa 2011:487). As fivelas (figura 3 n.º h uma funcionalidade estética, aliado a uma percepção
– o) destacam-se pela sua variedade de funcionali- de pertence pessoal (Fareleira 2014:20). Destaca‑se
1322
nificar que grande parte desses sedimentos foram litar, ficando por fim a ordem de Santiago delimitada
transportados do exterior do castelo, talvez dos ar- ao espaço conventual até à sua extinção.
rabaldes ou da própria vila de Palmela, e de alguma
área em específico poderá ter servido como antiga BIBLIOGRAFIA
lixeira urbana durante o período moderno, ou até te- BOAVIDA, Carlos (2009) – Castelo de Castelo Branco: Con
rem sido provenientes de uma outra construção con- tributo para o Estudo de uma Fortificação da Raia Beirã. Tese
temporânea à fortificação do castelo e entretanto de Mestrado em Arqueologia apresentada à Faculdade de
foram transportados para o castelo de Palmela para Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lis-
serem depositados como camadas de aterro/enchi- boa, Lisboa (policopiado).
através de paralelos existentes para os mesmos con- BOAVIDA, Carlos (2012) – “Evidências de Época Moderna
textos de ocupação e cronológico, balizando este no castelo de Castelo Branco (Portugal)” in Velhos e No-
conjunto desde finais do século XV até meados do vos Mundos – Estudos de Arqueologia Moderna 1; Lisboa:
CHAM/UNL e UAç, pp. 205-218.
XVIII. Tratam-se, na sua maioria de objectos de uso
quotidiano e que maior parte das vezes, dado as suas BOAVIDA, Carlos (2017) – “Dos objectos inúteis, esqueci-
reduzidas dimensões podem passar despercebidos dos ou perdidos. Os artefactos metálicos do Largo do Coreto
(Carnide, Lisboa)” in ARNAUD, J. M.; MARTINS, A. (edit.)
durante uma escavação arqueológica. A presença
Arqueologia em Portugal. 2017 – Estado da Questão. Lisboa:
dentro de um espaço militar de objectos de uso pes- Associação dos arqueólogos Portugueses, pp. 1821-1834.
soal para vestimentas e adornos utilizados pelo sexo
BOAVIDA, Carlos (2020) – Algumas considerações sobre es-
feminino levanta também a questão sobre a presen-
pólio não cerâmico recuperado no Largo de Jesus (Lisboa)
ça de mulheres em espaços utilizados por homens, in Arqueologia em Portugal. 2020 – Estado da Questão in AR-
quer tenham sido os freires santiaguistas ou milita- NAUD, J. M.; MARTINS, A. (edit.) Arqueologia em Portugal.
res. Se por um lado foram identificadas camadas de 2020 – Estado da Questão. Lisboa: Associação dos arqueólo-
aterro depositadas exclusivamente para aterro dos gos Portugueses, pp. 1801-1813.
pátios dos baluartes, em especial na área de implan- CASIMIRO, Tânia Manuel (2020) – Materialidades Quotidia-
tação da sondagem 4, o mesmo não se verificou nas nas de Idade Moderna em Alhandra. Os contextos arqueoló-
restantes sondagens (1 a 3) onde os estratos associa- gicos da escavação do Centro de Saúde, in Cira Arqueologia,
dos ao período compreendido entre o medieval e o número 7, Vila Franca de Xira: Museu Municipal Vila Franca
de Xira, pp. 233-245.
século XVIII ficaram preservados por baixo de um
piso de argamassa. Os arames de cabelo, os brincos e FARELEIRA, Luís (2014) – Estudo dos “Outros Materiais”,
pendentes com encaixes para suportarem pequenas provenientes do Museu Nacional de Machado de Castro. Dis-
sertação de mestrado em Arqueologia e Território apresen-
pedras ou vidro são elucidativos que se destinavam
tada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
ao uso feminino, e a sua presença poderá indicar que
– policopiada.
não foram utilizados dentro do castelo mas talvez
FERNANDES, Isabel Cristina F. (2004) – O Castelo de Palme
fora de muralhas, eventualmente na vila de Palmela.
la do islâmico ao cristão. Palmela: Edições Colibri e Câmara
Apesar deste contributo, o espólio analisado limita-
Municipal de Palmela.
-se a uma área do Castelo de Palmela cuja função foi
FERNANDES, Isabel Cristina; CARVALHO, António Rafael
exclusivamente militar o que não permite concluir
(1997) – Intervenção arqueológica na Rua de Nenhures (área
se estes objectos do quotidiano são comuns quer
urbana de Palmela). Setúbal Arqueológica 11/12. Setúbal: Mu-
na vida civil, religiosa ou militar, pois para tal será seu de Arqueologia e Etnografia, Assembleia Distrital de Se-
necessário uma análise e estudo sistemático da co- túbal, pp. 279-295.
lecção dos artefactos existente em depósito no Mu-
(1993) – Arqueologia em Palmela – 1988/92, Catálogo da ex-
seu Municipal de Palmela de modo a obter-se mais posição. Palmela.
dados sobre a organização e caracterização dos di-
FERNANDES, Isabel Cristina; SANTOS, Michelle Teixeira
ferentes espaços existentes no castelo uma vez que
(coord.) (2008) – Palmela Arqueológica: Espaços, Vivências,
para este período em questão, o Castelo de Palmela Poderes – Roteiro da Exposição. Catálogo da Exposição na
contou com a presença de freires de santiago da es- Igreja de Santiago – Castelo de Palmela; Palmela: Câmara Mu-
pada, coabitando gradualmente com a presença mi- nicipal de Palmela, Museu Municipal.
Gráfico 1 – Distribuição do espólio metálico por matéria‑ Gráfico 2 – Distribuição do espólio metálico em liga de cobre
-prima. por funcionalidades.
1324
Figura 1 – Localização geográfica do Castelo de Palmela e implantação da área de intervenção em planta 1:200 e em cartografia
de 1781.
1326
Figura 4 – Objectos de uso pessoal de adorno: a/b/c/d – brincos; e/f/g – brinco/pendente; h – anel; i – corrente; j – firmal; k –
alfinete. Fotos do autor.
1328
Figura 6 – Objectos domésticos: a/b/c/d – anilhas; e/f – arame enrolado; g – asa. Fotos do autor.
RESUMO
No decurso da intervenção arqueológica de diagnóstico realizada na Rua Edmond Bartissol, n.º 5-7, em Setúbal,
foi identificado um forno de produção cerâmica. De dimensão relativamente modesta e plano ovalado, encon-
trava-se conservado apenas ao nível da câmara de combustão, estando as suas paredes totalmente vitrificadas.
Das formas produzidas, que remetem para uma laboração situada entre os séculos XV e XVI, destaca-se, pela
quantidade, as designadas formas pão-de-açúcar. De sublinhar também a ocorrência frequente de peças sobre-
cozidas, algumas deformadas e com as faces vitrificadas.
A identificação deste forno reveste-se de particular importância na medida em que não era conhecido qualquer
centro oleiro deste período nesta zona da cidade, do mesmo modo que se desconhecia a produção das formas
pão-de-açúcar em Setúbal.
Palavras-chave: Produção oleira; Área urbana de Setúbal; Época Moderna; Pão-de-açúcar.
ABSTRACT
During the archaeological intervention at Rua Edmond Bartissol, nº 5-7, in Setúbal, a ceramic kiln was identi-
fied. Of this structure, of relatively modest size and oval plan, only the combustion chamber remained, its walls
being completely glazed.
Of the forms produced, which suggest a production between the 15th and 16th centuries, the so-called sugar
molds stand out for their quantity. Also noteworthy is the frequent occurrence of overcooked pieces, some de-
formed and with glazed surfaces.
The discovery of this kiln is of particular importance since no pottery center of this period was known in this
area of the city, just as the production of sugar molds in Setúbal was previously unknown.
Keywords: Ceramic production; Setúbal urban area; Modern Period; Sugar mold.
1. Município de Torres Novas; UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras /
[email protected]
1332
unidade [110] sugerem tratar-se de um nível de re- bordo com ressalto, possui também um fino sulco no
jeitados de produção depositados no fundo do forno. lábio. Neste conjunto, não foi recuperado nenhum
Estes materiais, em conjunto com os fragmentos de perfil completo, identificando-se apenas um fundo
tijolo que terão constituído a grelha da estrutura de com uma perfuração, característica neste tipo de pe-
combustão, terão sido utilizados para aterrar o forno. ças (Figuras 6 e 7).
As peças exumadas neste contexto apresentam o Formas semelhantes, com ressalto no bordo, foram
mesmo fabrico, caracterizado por uma pasta com- identificadas na olaria das Portas de Santo Antão,
pacta com presença abundante de inclusões de pe- em Lisboa, produção datada dos séculos XV-XVI
quena a média dimensão, maioritariamente quartzo (Cardoso et al., 2017: 1718-1727). Algumas dessas
hialino e caulinite, com muito rara presença de mi- apresentam igualmente o fino sulco no lábio. Relati-
cas. A pasta apresenta principalmente tons laranja vamente às formas com sulco no colo, encontramos
e avermelhados, resultante de uma cozedura oxi- paralelos na Mata da Machada (Silva, 2012: 129). Já
dante, por vezes de núcleo cinzento devido a uma em St. António da Charneca observam-se paralelos
cozedura redutora-oxidante. Estas características para os três grupos tipológicos aqui identificados
assemelham-se a outros fabricos identificados na re- (Barros, Cardoso e González, 2006: 17-19).
gião, nomeadamente no Barreiro (Silva, 2012: 21-25; As peças exumadas em Setúbal enquadram a pro-
Barros et al., 2012: 701-702) e em Vila Franca de Xira dução na tipologia de formas de pão-de-açúcar de
(Pires, 2021: 28-31), distinguindo-se das produções médias dimensões. Estas não apresentam diferen-
da cidade de Lisboa, caracterizadas pela abundância ças significativas, observando-se na generalidade
de inclusões micáceas. Porém, o fabrico identificado diâmetros com cerca de 18-20cm, tal como noutros
difere das produções do barreiro pela ausência de centros produtores. A fraca variação tipológica des-
inclusões óxido de ferro, sugerindo uma origem di- te tipo de peças deve-se ao esforço de padronização
ferente, provavelmente local, deste barro. da sua morfologia, pelo menos desde o reinado de
D. Afonso V (Silva, 2012: 28-86). De facto, também
4. AS FORMAS PRODUZIDAS na produção de Aveiro se observam tipologias seme-
lhantes (Morgado, Silva e Filipe, 2012: 711-715).
A forma mais abundante corresponde às designadas Para além da cerâmica industrial, esta estrutura con-
formas de açúcar ou pão-de-açúcar, recipiente cerâ- tinha igualmente cerâmica comum de uso quotidia-
mico de uso industrial utilizado na purga do açúcar, no, com o predomínio de panelas e testos. Ocorrem
que apresentam um perfil troncocónico, ostentando igualmente potes de bordo espessado, potinhos de
paredes relativamente grossas (Silva, 2012a: 73-77). paredes finas e decoração incisa, bilhas, estas repre-
Na região do Vale do Tejo, os testemunhos conhe- sentadas por asas de grande dimensão, mas também
cidos de produção de formas de pão-de-açúcar são por um bordo arredondado, bem como caçoilas, nes-
mais numerosos na Península de Setúbal, destacan- te caso apenas representadas por pegas triangulares
do-se a olaria da Mata da Machada (Carmona e San- e arredondadas. Da cerâmica de iluminação foram
tos, 2005) e St. António da Charneca (Barros, Car- recolhidas três candeias de bordo trilobado e câmara
doso e González, 2006), ambas no Barreiro. Porém, aberta, uma das quais completa.
esta produção não se restringe a essa zona, conhe- As panelas, caracterizadas por uma forma globular
cendo-se um forno de produção de pão-de-açúcar de asa vertical, enquadram-se nas tipologias de loiça
em Lisboa (Cardoso et al., 2017). de cozinha dos séculos XV-XVI na zona de Lisboa e
Em termos tipológicos, as formas de pão-de-açúcar estuário do Tejo (Barros et al., 2012: 702-706; Car-
exumadas neste contexto apresentam poucas dife- mona e Santos, 2005: 55-57; Correia, 2005/07: 72;
renças, caracterizando-se no geral por bordos direi- Fernandes e Carvalho, 1998: 215-235; Gaspar et al.,
tos de lábio arredondado. Ainda assim, estas formas 2009: 655-657; Cardoso e Rodrigues, 2008: 97-104;
podem separar-se em três grupos: bordo direito es- Pires, 2021: 28-44; Henriques et al., 2019: 110-119).
pessado exteriormente e com ressalto; bordo direi- Relativamente às restantes peças de cerâmica, no-
to com sulco no colo; e bordo extrovertido. O grupo meadamente as caçoilas de pega triangular, os tes-
mais representado corresponde às peças de bordo tos e as candeias, caracterizam-se por tipologias de
com ressalto, seguido pelas formas com sulco no longa utilização, identificadas em contextos desde o
colo. Destaca-se ainda uma peça que, apresentando século XIV até ao XVII (Pires, 2021: 31-44).
a mesma cronologia para este contexto (Figura 8). CORREIA, Miguel (2005/2007) – Um forno de produção ce-
râmica dos séculos XV-XVI, em Alcochete. Musa. Setúbal. 2,
5. NOTA FINAL pp. 67-73.
1334
Figura 1 – Localização do sítio na malha urbana de Setúbal.
1336
Figura 5 –A e B: perspectiva geral sobre a estrutura de combustão; C: Detalhe sobre a vitrificação das paredes do forno; D: Perfil
estratigráfico onde se podem observar os depósitos que colmatavam o interior do forno.
1338
Figura 7 – Formas pão-de-açúcar.
1340
A NECRÓPOLE DA IGREJA VELHA DO PERAL
(PROENÇA-A-NOVA)
Anabela Joaquinito1, Francisco Henriques2, Francisco Curate3, Carla Ribeiro4, Nuno Félix5, Fernando Robles Henriques6,
João Caninas7, Hugo Pires8, Paula Bivar de Sousa9, Carlos Neto de Carvalho10, Isabel Gaspar11, Pedro Fonseca12
RESUMO
A intervenção arqueológica na Igreja Velha do Peral, integrada no Campo Arqueológico de Proença-a-Nova
(CAPN 2021), teve como principais objetivos a elaboração da história deste templo, a partir de uma abordagem
arqueológica e antropológica, a sua reabilitação e valorização pública.
Durante a campanha de julho de 2021 foram realizadas catorze sondagens manuais de diagnóstico na nave da
igreja e duas sondagens na capela-mor, até à rocha matriz. Cinco indivíduos foram identificados e exumados,
três em sepulturas escavadas na rocha e in situ, um ossário, ossos espalhados por três covas e um acervo de ar-
tefactos de mais de 500 peças.
Palavras-chave: Igreja; Necrópole; Rituais funerários; Proença-a-Nova.
ABSTRACT
The archaeological intervention in the Igreja Velha do Peral (Peral Old Church) was integrated in the Archaeo-
logical Field Camp of Proença-a-Nova (CAPN 2021), and includes as the main goals, the elaboration of the his-
tory of this temple, from an archaeological and anthropological approach, its rehabilitation and conservation of
the ruin and public valorization.
During the campaign, in July 2021, fourteen diagnostic manual surveys excavations were carried out in the
church nave and two surveys excavations in the chancel, up to the bed rock. Five individuals were identified and
exhumed, three in graves excavated in the rock and in situ, an ossuary, scattered bones spread over three holes
and an artifactual collection of more than 500 pieces.
Keywords: Church; Necropolis; Funerary rituals; Proença-a-Nova.
8. Metamorphic / [email protected]
9. Associação de Estudos do Alto Tejo / Câmara Municipal de Idanha-a-Nova / Geopark Naturtejo Mundial da UNESCO / Escola de
Belas Artes de Lisboa / [email protected]
10. Associação de Estudos do Alto Tejo / Câmara Municipal de Idanha-a-Nova / Geopark Naturtejo Mundial da UNESCO /
[email protected]
1342
na essência, semelhantes: uma nave, com dois alta- tudo não há referência à Igreja Velha do Peral. (Fran-
res e duas ou três portas; a capela-mor com um altar cisco Henriques e Nuno Félix, Igreja Velha do Peral
e porta (s) de acesso às sacristias laterais (uma ou (Proença-a-Nova): notícia preliminar, inédito).
duas). O acesso à sacristia fazia-se exclusivamente
através da capela-mor. As igrejas representadas nes- 3. CARACTERIZAÇÃO DO EDIFICADO
te manuscrito, correspondentes ao atual concelho
de Proença-a-Nova, são a Igreja Matriz de Proença- Num primeiro momento, procedeu-se à construção
-a-Nova e as igrejas de Nossa Senhora da Conceição da capela-mor e da sacristia, a primeira orientada
(Sobrainho dos Gaios), de Nossa Senhora do Olival oeste-este, com um aparelho parietal em alvena-
(em Proença-a-Nova) e do Espírito Santo. ria de xisto e argamassa composta por argila local
A referência seguinte, datada de 1708, consta em A amassada com pedra miúda. As paredes possuem
Corografia Portugueza e Descripçam Topografica do 0,84m de espessura. Adjacente à parede este existia
Famoso Reyno de Portugal do padre António Carva- um altar, removido provavelmente no século XIX, e
lho da Costa. Na página 586, este autor afirma que um nicho também na parede este, que se encontrava
“o termo defta Villa [Proença-aNova] tem duas Fre- selado, com o mesmo tipo de construção.
guezias, que faõ a de S. Pedro do Ezteval, curado que A sacristia possui o mesmo tipo de aparelho parietal,
tem de renda dous mil reis, hum moyo de trigo, vinte com 0,60m de espessura, a mesma espessura das
almudes de vinho, & para a fabrica huma arroba de paredes da nave. Está coberta por um lajeado em
cera, & hum alqueire de azeite. A outra Freguezia xisto na totalidade do compartimento. A sua passa-
he da invocação de Santiago, & tem hum Cura com gem para a capela mor foi encerrada com o aparelho
a mefma renda”. Se a igreja em 1620 estava muito referido, estucado e pintado, de forma a ocultar o
danificada, como descrito, cerca de século e meio antigo acesso. (Figura 3)
depois a sorte não parece ser melhor. O pároco qua- A nave tem dois acessos, com a entrada principal, a
lifica-a como velha e mal reparada. oeste, e uma segunda entrada, a norte, ocultada pelo
O terceiro documento foi subscrito por Pedro Ro- entulho resultante do desmoronamento da parede,
lão (?), pároco de Peral, em 22 de outubro de 1759. e aberta aquando da implantação do segundo altar,
À data, a igreja pertencia ao Grão-Priorado do Crato dedicado a Nossa Senhora do Rosário. A construção
e era termo de Proença-a-Nova. Na resposta à quinta deste segundo altar, recuado, obrigou à reconstru-
pergunta do questionário, o manuscrito documenta ção da parte extrema da parede sul, provavelmente
que “a igreja desta freguesia é duma só nave muito para impedir que ficasse sobre as sepulturas. As pa-
velha / e mal reparada situada fora do lugar em um redes laterais apresentam vários orifícios retangu-
deserto / o seu orago é S. Tiago menor tem somente lares, que as atravessam. Como a igreja não possui
dois al / tares um do orago outro de Nossa Senhora do janelas, estas aberturas serviriam para o seu areja-
Rosário / não irmandades algumas tem”. A caracteri- mento, entrada de luz artificial e para assentar os
zação de 1759, nas Memórias Paroquiais, corresponde andaimes para a construção em altura. A parede sul
ao que ainda hoje podemos observar no local da Igre- assenta diretamente sobre o afloramento rochoso e
ja Velha do Peral. Está situada num ermo, tem uma a parede norte tem cerca de 0,30m de altura de fun-
única nave e dois altares (um na capela-mor outro no dação, com o mesmo aparelho.
lado da Epístola). Este documento regista a existên-
cia de uma capela, dedicada a São Pedro, junto à po- 4. TRABALHOS REALIZADOS
voação do Peral. Não se rejeita a hipótese da referida
capela se ter transformado na atual Igreja Matriz do As sondagens arqueológicas realizaram-se em dois
Peral. No seu interior conservam-se as imagens de setores, o setor 1, localizado na nave da igreja e o
São Pedro, de São Sebastião e de São Tiago. setor 2 na capela-mor, A intervenção no setor 1 foi
Na Monografia de Proença-a-Nova, o padre Manuel efetuada nas quadrículas I1, I2, I3, J1, J2, J3, J4, K1, K2,
Alves Catharino (1933) afirma que a freguesia do K3, K4 e N4, que foram integralmente escavadas e
Peral foi constituída no séc. XVI, pouco depois da distinguiram-se treze unidades estratigráficas.
criação da freguesia de São Pedro do Esteval em Adjacente à parede oeste da nave existia um monte
1554. Antes da autonomização, integravam ambas o de terra proveniente de remoção de terra e entulho
território da freguesia de Proença-a-Nova. Neste es- acumulado no interior da nave da igreja, limpeza
1344
objetos religiosos, como demostra o largo conjunto de preservação, muito fragmentado e incompleto.
recolhido. A quase totalidade do conjunto é forma- A sua extrema fragilidade não permitiu a recolha de
do por contas esféricas monocromas, provenientes nenhuma informação antropológica.
de Veneza, e datadas dos séc. XVII / XVIII, período
em que prosperam os centros de produção por toda 7.2. Indivíduo 2
a Europa, destacando-se os principais Veneza-Mu- Esqueleto de um indivíduo não adulto, bastante
rano, desde o século XVI, e Nuremberga, Boémia fragmentado e em razoável estado de preservação.
(República Checa) e Holanda (Harlem e Roterdão) Apresentando ossos bastante frágeis, a análise mé-
(Gonçalves, 2020, p. 1819). As de cor branca desig- trica só foi possível com os ossos ainda in situ. Atra-
navam-se de alaquecas ou olho de rola e as de cor vés das medidas do comprimento das diáfises dos
azul, olho de peixe. As contas opacas de cor negra úmeros e do fémur direito efetuadas, estima-se que
ou azul cobalto, são mais raras, tentando imitar ma- se trata de um perinato / recém-nascido de termo
teriais como azeviche ou pedras semipreciosas. Foi com 39 semanas (Carneiro et al, 2016).
identificada uma conta elíptica tubular, mais rara,
produzida com a técnica de vidro “esticado”. 7.3. Indivíduo 3
Os elementos de vestuário são raros, tendo-se iden- Esqueleto de um indivíduo adulto, bastante comple-
tificado um colchete em liga de cobre, exumado de to e relativamente bem preservado. Relativamen-
ossário, e dois botões, um em forma de cristal, em te a dados do perfil biológico estimou-se que é um
associação ao individuo 4, e um anel de criança, e indivíduo do sexo masculino (Buikstra e Ubelaker,
outro botão, recolhidos no processo de crivagem do 1994), apresenta uma estatura de 157,69 cm (Men-
entulho exterior. (Figura 7) donça, 2000) e estima-se que teria mais de 45 anos
na altura da sua morte (Brooks e Suchey, 1990; Bu-
7. ANÁLISE DO MATERIAL OSTEOLÓGICO ckberry e Chamberlain, 2002). O crânio apresenta
uma assimetria diagonal bastante acentuada que
A amostra osteológica proveniente da intervenção numa primeira análise é compatível com uma condi-
no interior da capela inclui cinco indivíduos, dos ção denominada de plagiocefalia (figura 8 a, b). Uma
quais quatro adultos e um não adulto, um pequeno das causas para esta deformação poderá ser a posi-
ossário e ainda um número elevado de ossos disper- ção em que foi colocada a criança durante o primeiro
sos. Os enterramentos individuais correspondem a ano de vida sendo os ossos que compõem o crânio
deposições primárias em que os indivíduos 1, 4 e 5 fo- bastante maleáveis (Sick Kids, 2022.p 2). Outra causa
ram inumados em sepulturas escavadas no substrato poderá ser a compressão exercida no meio uterino
geológico de filitos e os indivíduos 2 e 3 inumados em ou mesmo durante o nascimento (Schug, GR., 2020.
covas funerárias abertas diretamente no solo. Não p245-247). É de referir que o canal auditivo esquerdo
existem evidências de utilização de qualquer tipo de apresenta um ligeiro estreitamento e do mesmo lado
caixão, e os corpos poderão ter sido apenas amorta- o canal hipoglossal está aumentado. Muito provavel-
lhados com sudários ou as próprias vestes. Todos se mente a prevalência desta deformidade em idade
encontram inumados em decúbito dorsal e segun- adulta teria impacto ao nível da face dando ao indi-
do a orientação canónica cristã (a cabeça orientada víduo um aspeto assimétrico.
para oeste e os pés para este). Na coluna vertebral podemos observar que existe
Todos os esqueletos e ossos se encontram à guarda uma vértebra de transição entre as vértebras lomba-
do Município de Proença-a-Nova, tendo sido devi- res e as torácicas, e tanto esta como a T11 apresentam
damente limpos, acondicionados e inventariados fraturas de compressão do corpo vertebral em forma
por Carla Ribeiro (antropóloga) sob orientação de de cunha. Toda a coluna lombar se encontra fundida
Francisco Curate. Foi efetuada uma observação ma- e também está presente a sacralização da L5 (figura
croscópica e métrica de todos os ossos, bem como o 8 c, d). As vértebras C4 e C5 também se encontram
estudo do perfil biológico e a análise paleopatológica fundidas. Da vértebra T8 até à T12 podemos obser-
dos indivíduos. var a presença de nódulos de Schmorl na superfície
inferior do corpo vertebral. A patologia degenerativa
7.1. Indivíduo 1 articular está presente em toda a coluna, tanto nos
Esqueleto de um indivíduo adulto, em mau estado processos como no corpo das vértebras, apresen-
1346
diu sobretudo nos indivíduos que se encontravam GERVÁSIO, Ana Sofia (2002) – Relatório do Estudo de Im-
em deposição primária. Devido ao mau estado de pacte Ambiental – IC8 Proença-a-Nova/IP2. Inédito.
preservação da maioria deles, a informação acerca GONÇALVES, Gerardo Vidal (2011) – Relatório Final dos
da população que terá sido inumada na capela ficou Trabalhos Arqueológicos Subconcessão do Pinhal Interior,
condicionada. Seria imprescindível aumentar o nú- lote 7, IC8, lanço Proença-a-Nova – Perdigão (A23), Omni-
mero dos indivíduos a incluir no estudo para obter knos – Arqueologia e Valorização do Património Cultural,
Lda, inédito.
dados paleodemográficos mais completos. O caso
do indivíduo três é bastante interessante, sendo per- GONÇALVES, Joana; GOMES, Rosa Varela; GOMES, Mário
tinente e necessário um estudo mais aprofundado Varela (2020) – “Adereços de vidro, dos séculos XVI-XVIII,
com recurso a um diagnóstico diferencial. A análise procedentes do antigo Convento de Santana de Lisboa
(anéis, braceletes e contas),” Arqueologia em Portugal, 2020 –
com recurso a RX, TAC e ADN poderá trazer infor-
Estado da Questão, Associação dos Arqueólogos Portugueses.
mação relevante acerca das condições patológicas
do indivíduo e completar os dados obtidos até agora. HENRIQUES, Francisco, coord. (2021) – Proença-a-Nova:
Arqueologia e Património Construído. Associação e Estudos do
Alto Tejo: 231 p.
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Figura 3 – Levantamento fotogramétrico do edificado (realizado por Hugo Pires - MORPHIC).
1350
Figura 5 – Levantamento da sepultura 1 da capela mor e perfil estratigráfico da sepultura do indivíduo 1, localizada na nave.
1352
Figura 7 – Espólio proveniente da necrópole na nave da igreja (fotografias realizadas por Nuno Félix).
1354
U.E. Sector 1 – Nave da igreja
101 Camada sedimentar de muito baixa potência sob estrato vegetal disperso formado por gramíneas secas;
102 Sedimento areno-argiloso, de média compactação, de cor amarela, com elevada densidade de pedra xistosa de peque-
no calibre. Solo remexido superficialmente, devido à remoção de terras na área da necrópole; Densidade elevada de
material osteológico e arqueológico constituído por moedas, medalhas e contas;
103 Sedimento idêntico ao [102], porém com uma textura mais fina e material osteológico associado;
104 Afloramento em xisto alterado, a cerca de 2 a 10cm da superfície, sob a [102] e [103];
105 Covacho/sepultura escavado na rocha, com forma oblonga de diferentes tamanhos, para deposição de esqueletos in
situ ou reutilização como ossário;
106 Piso em argila argamassada, compacto, com material arqueológico incluso (ossos e contas), localiza-se na área este da
nave, com cerca de 15m2;
107 Parede estrutural norte e respetiva fundação, aparelho em alvenaria de xisto, sem reboco, com cerca de 0,60m de es-
pessura e a fundação com cerca de 0,30m de altura, assente sobre o afloramento [104];
108 Parede estrutural sul, construção em alvenaria de xisto, assenta diretamente sobre o afloramento rochoso. Possui orifí-
cios quadrangulares distribuídos em linha a cerca de 1,60m de altura;
109 Altar secundário (Sra. Rosário?) e plataforma adjacente, cobertos com lajetas de xisto, localizado na parede sul, cons-
trução em alvenaria de pedra com ligante em argila local e vestígios de reboco, tendo sido construído um anexo com
estrutura parietal especifica para alojar o altar, de forma a não se sobrepor às sepulturas e adossado a este à parede da
sacristia. Na parede oeste tem gravado um símbolo parcialmente coberto, do qual se vê uma figura retangular com a
extremidade de um triângulo invertido;
110 Antiga entrada aberta na parede norte, delimitada por duas lajes, com 1,30m de comprimento exterior e 1,10m de com-
primento interior e 0,62m de largura. As paredes laterais apresentam vestígios de reboco e localiza-se a 2,90m da en-
trada principal. Estava parcialmente soterrada pelo sedimento que cobria a igreja;
111 Placas de xisto sobre o [102], de fina espessura, algumas ainda mantêm alguma conexão com a localização das sepul-
turas, delimitando-as;
112 Sepulturas escavadas no sedimento, um esqueleto de bebé (quadricula N4) na U.E. [102] e uma cova aberta (quadricula
M4) posteriormente para deposição de esqueleto completo descoberto in situ;
113 Parede em alvenaria de xisto do altar [109], formando um ressalto exterior, com diferentes espessuras, entre 0,70m
na parede oeste e 0,40m na parede este, anexa à parede oeste da sacristia. Parede implantada em período posterior à
construção da nave.
201 Paredes estruturais em aparelho de alvenaria de xisto, preenchido com argamassa compacta de barro de cor laranja es-
cura amassado com pedra miúda. Com duas camadas interiores de reboco e uma espessura de 0,84m. Originalmente
sob um telhado de duas águas;
202 Antigo nicho na parede este, selado com entulho argamassado provavelmente proveniente de desabamento incluindo
argamassa e fragmentos de tijolos e tijoleiras. O seu interior ainda apresenta a sua forma circular com vestígios de
reboco. Localiza-se sobre o antigo altar da capela-mor, removido em época indeterminada;
203 Tampas de sepultura ou ossário em xisto, localizadas nas quadriculas CB1 e C3-4, com dimensões médias de
0,70x0,50x0,06m e orientação este-oeste;
204 Sedimento areno-argiloso amarelo, amassado, com densidade média de pedra de calibre médio e fragmentos de re-
boco e tijoleira;
205 Tijoleiras que preenchem o pavimento da entrada, com exceção das lajes em xisto adjacentes às paredes. Possuem as
dimensões de 0,25x0,13x0,03m e estão assentes sobre argamassa branca;
206 Tijoleiras sob a [205] que assenta sobre placa de xisto, de antigo pavimento, identificado quando da escavação da
sepultura 1;
207 Vestígios de piso amassado ou de assentamento da [206], compacto, argiloso composto por barro com pedra de pe-
queno calibre que rodeia a sepultura 1;
208 Sepultura ou covacho escavado no afloramento, com 1,40m de comprimento por 0,40m de largura. Aparenta afeiçoa-
mento semicircular na área da cabeça;
209 Afloramento xistoso sob a parede [201] e sob a tijoleira adjacente à parede sul [205];
210 Paredes divisórias em alvenaria de xisto, rebocadas em ambas as faces, e com aglutinante de argila local amassada.
Espessura de 0,64m;
212 Sedimento argiloso de cor castanha escura, mais compacto que o [204], remexido, com fragmentos de tijoleira, arga-
massa e reboco, elementos pétreos de pequeno e médio calibre e material arqueológico composto somente por uma
moeda e um prego e restos osteológicos constituídos por uma tíbia e dentes;
213 Sepultura nº2, covacho oblongo, de reduzida dimensão, com 1,05m de comprimento por 0,22m de largura;
214 Parede da sacristia, com o aparelho referido na [201], com cerca de 0,60m de espessura. Antiga porta selada, na pare-
de norte, e pintada para esconder a sua existência;
215 Piso da sacristia formado por lajes em xisto, cuidadosamente encaixadas sobre piso de argila amassada.
1356
A MATERIALIZAÇÃO DA MORTE EM
BUCELAS ENTRE OS SÉCULOS XV E XIX.
RITUAIS, SEMIÓTICA E SIMBOLOGIAS
Tânia Casimiro1, Dário Ramos Neves2, Inês Costa3, Florbela Estevão4, Nathalie Antunes-Ferreira5, Vanessa Filipe6
RESUMO
Entre Maio de 2018 e Dezembro de 2019 foi identificado e escavado um contexto cemiterial em Bucelas (Lou-
res), datado entre os séculos XV e XIX. Esta necrópole estaria possivelmente associada à Capela do Espírito
Santo, atualmente desaparecida. Muitas das histórias acerca deste sítio ainda estão por contar, sobretudo as
relacionadas com a cultura material associada às inumações. Os artefactos mais comuns são as contas, em osso
ou vidro, seguidas por alfinetes, fivelas, colchetes, botões e numismas, mas também pendentes, anéis, brincos
e pulseiras. Por que razão, num contexto religioso em que o cânone indicava que as exéquias deveriam ser des-
providas de materialidades, essas regras não foram cumpridas? E qual a importância económica, social, cultural
e simbólica destes objetos?
Palavras-chave: Necrópole; Artefactos; Simbologia; Exéquias.
ABSTRACT
Between May 2018 and December 2019, a cemeterial context was identified and excavated in Bucelas (Loures),
dating from the 15th to the 19th century. This cemetery may have been related to the once-existing Espirito Santo
Chapel. Many of the tales of this place and these people are yet to tell, especially the ones related to the material
culture associated with burials. The most frequent artefacts are bone and glass beads, pins, buckles, buttons,
coins, pendants, rings, and bracelets. Why were these rules challenged in a religious context, where people were
supposed to be buried with no items? And what is such artifacts’ social, cultural, and symbolic importance?
Keywords: Necropolis; Artefacts; Symbols; Burial rituals.
1358
-se, pois, entre os finais do século XIX e os inícios quatrocentista da Santíssima Trindade, dedicado à
do século XX, a uma importante modificação dessa chamada “descida do Espírito Santo”10, policroma-
zona central da vila de Bucelas. Se durante as épocas do, atualmente depositado no interior da matriz.
Medieval e Moderna o cemitério estava inserido no Este retábulo é também aludido no Dicionário Geo
núcleo da malha urbana, onde vivos e mortos “con- gráfico do Pe. Luís Cardoso como “(…) hum retabolo
viviam” partilhando o mesmo espaço simbólico, no de huma só pedra, com as Imagens do padre Eterno,
século XIX, a morte foi aqui, como em muitos outros Christo crufificado, o Espírito Santo, os doze Aposto-
lugares, afastada para a periferia ou limites da zona los, e dous Anjos com dous turíbulos, tudo da mesma
urbana, em defesa da salubridade pública e da ne- pedra: dentro da Capella mor está huma capellinha
cessidade de observação de normas sanitárias, atitu- com a Imagem de Christo cruxificado, muito mila-
de que se enquadrava nas preocupações higienistas grosa. Os moradores desta terra havendo falta de
dessa época. agua, sahem com ella em procissão. Junto desta Er-
Conhecendo a localização dos dois edifícios religio- mida está um Hospital donde se recolhem os pobres
sos, podemos afirmar que a área intervencionada mendicantes, e Religiosos passageiros, para huns,
encontrava-se num dos limites dessa grande zona e outros há camas determinadas: he administrado
que incluía os templos e os seus adros e mais próxi- pelo Juiz, e mais officiaes da Confraria do Espírito
ma do local da antiga Capela do Espírito Santo. To- Santo” (Cardoso, 1751:298). Esta imagem de Cristo
davia, considerando o caráter relativamente limita- Crucificado também se salvou e faz parte do conjun-
do da zona afetada pela obra e a informação coligida to das imagens sagradas da matriz de Bucelas.
durante os trabalhos arqueológicos, não podemos É sabido que tanto as confrarias como as irmanda-
delimitar com clareza os limites das áreas sepulcrais des do Espírito Santo desenvolveram uma ação as-
de ambos os templos, e se elas, em determinado mo- sistencial importante, nomeadamente assegurando
mento, se terão parcial ou totalmente sobreposto. o funcionamento de pequenos hospitais ou alberga-
Embora a Capela do Espírito Santo não exista na rias destinadas a peregrinos, religiosos ou pessoas
atualidade, conseguimos circunscrever aproxima- pobres. Junto à capela, numas casas anexas funcio-
damente o seu antigo local de implantação e co- nou um hospital, também designado nos documen-
nhecemos o imóvel demolido recorrendo a algumas tos como albergaria. O hospital de origem Medieval
fotografias antigas e a documentos (Figs. 2 e 3). Por recebia, no século XVI, além de religiosos e peregri-
conseguinte, o edifício apresentava uma galilé ras- nos, os doentes muitos pobres que aí acabavam por
gada nos três lados por arcos de volta perfeita, uma falecer como nos certificam alguns registos de óbi-
nave e um corpo mais pequeno correspondente à to desse período. Nos livros de registo de óbitos da
capela-mor. Há também uma breve descrição no co- paróquia de Bucelas, datados da segunda metade do
nhecido Guia de Portugal de Raul Proença que men- século XVI, existem referências a vários indivíduos
ciona o seguinte: “A ermida do Espírito Santo, onde que faleceram no citado hospital. No entanto, no sé-
está hoje o teatrinho da povoação, é um bom espéci- culo XVIII as Memórias Paroquiais mencionam que o
me das ermidas quinhentistas do termo de Lisboa, mesmo apenas servia à época de pousada a peregri-
com silhar de azulejos joalharia da transição do séc. nos, tendo perdido um pouco da sua função de assis-
XVI para o XVII. O teto da capela-mor (hoje palco) tência a doentes pobres.
é de abóboda polinervada do séc. XVI” (Proença, É possível que a origem do Hospital do Espírito San-
1924:475). to e respetiva ermida ou capela esteja numa “Albar-
Ora, a antiga capela após a instauração da Repúbli- garia pera pobres” criada por Gil Esteves Fariseu,
ca ficou fechada por algum tempo, como também cavaleiro e morador em Lisboa, em 1396. Este terá
aconteceu com a igreja matriz, mas ao contrário deixado em testamento uma Quintã que possuía em
desta última nunca mais reabriu com função reli- Bucelas para esse propósito (Mendes, 2018:126). Os
giosa. O imóvel foi ainda aproveitado como espaço
de recreio albergando um teatro amador. A falta de
10. Para mais informação sobre esta peça única e de grande
manutenção e a consequente deterioração do edifí- valor histórico-artístico sugerimos o artigo de Carla Varela
cio justificaram a sua demolição na segunda década Fernandes (2018) - Património deslocado: o antigo retábulo
do século XX. Da capela ainda subsiste um retábulo da capela do Espírito Santo de Bucelas, pp. 37-65.
1360
indivíduos do sexo masculino e a representatividade inumação de um indivíduo não-adulto (ESQ-39).
de todas as classes etárias, desde fetos a idosos. Nas O anel, de forma circular, possui uma conotação
inumações primárias a estimativa do sexo permitiu com o sentimento de continuidade e de eternidade,
identificar 59 indivíduos do sexo masculino, 33 do assim como de compromisso. Os anéis eram utiliza-
sexo feminino, registando-se seis casos de sexo in- dos para adornar os dedos das mãos, sendo por isso
determinado. Nas reduções ósseas registaram-se 22 relacionados à beleza e ao adorno, mas também ao
indivíduos do sexo masculino, 12 do sexo feminino e poder e à distinção. Eram manufaturados em diver-
23 foram classificados como sexo indeterminado de- sos materiais, sendo o mais frequente o metal. Nes-
vido à sua baixa representatividade óssea. Quanto te caso, o material utilizado foi o vidro negro (Roop,
à idade à morte, nas inumações primárias estão re- 2011, pp. 2-11). Os brincos serviam para adornar as
presentados 98 adultos e 59 não-adultos, enquanto orelhas, produzidos com uma grande diversidade de
nas reduções ósseas contabilizaram-se 57 adultos e materiais, formas e tamanhos. Poderiam recorrer à
21 não-adultos. No que concerne à estatura (com re- perfuração da orelha ou ter um sistema de mola.
ferência ao comprimento fisiológico do fémur) a mé- Nos objetos pessoais são ainda incluídos os elemen-
dia masculina é de 164,65 cm e a feminina 157,56 cm. tos de vestuário. Destes, foram identificados botões
Identificaram-se, igualmente alguns indivíduos com de punhos e botões em osso, associados a um indiví-
possíveis afinidades populacionais africanas. Por duo adulto jovem masculino (ESQ-13), e um colche-
fim, as alterações ósseas patológicas mais represen- te, associado a um indivíduo adulto maduro/idoso
tadas nesta amostra são as cáries, perda de dentes feminino (ESQ-12). Os botões são por norma objetos
ante mortem, lesões orais periapicais, condições in- de pequenas dimensões, com dois ou quatro furos,
feciosas não específicas, lesões nas áreas das enteses podendo aparentar diversas formas, sendo a mais
e fraturas (Antunes-Ferreira, 2022). comum e a do caso em estudo, a forma circular. Têm
como objetivo apertar vestuário, no entanto, o botão
4. OS OBJETOS QUE CONTAM HISTÓRIAS pode também ser um objeto estético. Com a mesma
finalidade que o botão, os colchetes são utilizados
A escavação do contexto cemiterial do Largo do Es- para fechar o vestuário, semelhantes a um gancho
pírito Santo, em Bucelas, revelou vários níveis de metálico, são presos numa argola ou colcheta.
inumações atribuíveis a diferentes sequências cro- Os objetos religiosos refletem a fé, a crença e os va-
nológicas, demonstrando, por isso, uma intensa ocu- lores espirituais, representando a sociedade onde
pação daquele espaço ao longo de algumas centúrias. estes valores estariam inseridos. No presente estudo
Enquanto as covas de sepultura abertas na Camada são interpretados como religiosos e necessariamen-
3 são datáveis de finais do século XVII a XIX, as que te artefactos ideotécnicos, segundo Binford (1962),
foram escavadas na Camada 4 correspondem a um os objetos relacionados com a religião católica cris-
nível anterior, atribuído, grosso modo, aos séculos tã, representados por rosários e terços e identifica-
XV-XVI. dos pelas contas que se encontravam associadas aos
A cultura material associada aos enterramentos per- indivíduos inumados.
mite desenvolver conhecimento não apenas sobre Na necrópole aqui estudada foram identificadas di-
os indivíduos inumados, mas igualmente sobre a versas contas. Uma das contas de terço foi exumada
comunidade onde estes se inserem. Neste caso em na mão direita de um feto (ESQ-7); outras duas num
específico, das 157 inumações primárias identifica- indivíduo jovem adulto do sexo masculino (ESQ-
das na necrópole da Capela do Espírito Santo, em 41), uma junto à escápula e na mão esquerda; outra
Bucelas, 30 permitiram a recolha de espólio, o que conta associada a um adulto maduro/idoso do sexo
corresponde a 19,1% do total (Tabela 1). feminino (ESQ-42); foram ainda identificadas con-
Nos objetos pessoais, ou seja, artefactos de utiliza- tas brancas na mão esquerda de um adulto maduro/
ção quotidiana ou ocasional, de carácter pessoal e idoso do sexo masculino (ESQ-16); e contas com di-
individual, enquadram-se ornamentos, adornos, versas cores, brancas, pretas e azuis na área direita
símbolos de poder ou de beleza (Portillo, et al., 1923- da região do tronco e na mão esquerda de um adulto
1998, p.104). Destes, foram encontrados um anel de maduro/idoso do sexo masculino (ESQ-11).
vidro e um par de brincos, ambos associados a uma As contas são objetos de adorno, podem apresentar
1362
na mão direita (ESQ-143) e num adulto do sexo fe- factual por sexo ou idade. Atendendo à sua função
minino maduro/idoso a moeda encontrava-se pró- prática, se excluímos os alfinetes, apenas 20 sepul-
xima da clavícula esquerda (ESQ-147). É de notar turas continham espólio. Dez correspondiam a adul-
que todas as faixas etárias se poderiam fazer acom- tos e dez a não-adultos, o que é muito curioso, aten-
panhar de moedas, assim como ambos os sexos. dendo ao facto de neste contexto social as crianças
Contudo foram identificadas mais moedas junto de e adolescentes serem enterradas exatamente com
indivíduos masculinos. os mesmos preceitos materiais, indicando que pos-
sivelmente não estaria associado à capacidade eco-
5. CONCLUSÃO nómica de os possuir. Ainda que o sexo seja difícil de
atribuir a não-adultos, relativamente às outras dez
A cultura material é “uma força criativa na constru- sepulturas com espólio, seis pertenciam a indiví-
ção de uma identidade cultural” tanto individual duos do sexo masculino com a identificação de con-
como de grupo, condicionada por estruturas men- tas e botões e quatro a indivíduos do sexo feminino.
tais (Facius, 2021, 171). Dito isto, os artefactos que É curioso notar, ainda que um estudo à larga escala
eram depositados nas sepulturas – à exceção dos alfi- necessitasse de ser realizado para aferir a genera-
netes – ainda que contrariando um cânone religioso lidade destas afirmações, que as sepulturas onde o
que manifestava que o morto deveria regressar à ter- pendente, os brincos e o anel foram identificados es-
ra despojado de bens materiais – também refletiam tão associados ao sexo feminino e os botões ao sexo
valores culturais. Eles personificam a relação depen- masculino. Não podemos inferir se isto pode signifi-
dente e de dependência dos agentes humanos e não car alguma relação com o género, mas o que pode-
humanos envolvidos e são fundamentais na relação mos dizer com certeza é que a presença de contas
com a própria morte. associadas a terços e rosários não conhece nenhuma
São objetos com um potencial de análise extraordi- preferência entre homens ou mulheres.
nário, pois fazem uma ponte entre o que era comum Enquanto o valor intrínseco destes objetos é baixo,
o suficiente para ser usado todos os dias e o que era o seu valor simbólico é enorme. São efetuados em
extraordinário o suficiente para ser depositado na metais tais como o cobre, em vidro e osso e acessível
sepultura. Neste sentido, objetos tais como brincos e à maior parte das pessoas. O seu valor não era eco-
anéis podem ser interpretados como algo que certos nómico, pelo que a sua presença nas sepulturas não
indivíduos usavam todos os dias, nunca retiravam parece marcar nenhuma diferenciação social com
e vistos como extensões do próprio corpo. Quan- base na riqueza. Talvez o único objeto com valor co-
tas pessoas não usam uma aliança a vida toda sem mercial fosse o pequeno relicário, no entanto, não
nunca a tirar? Aqueles brincos que foram colocados sabemos se aquele foi comprado por quem o possuía
desde que eramos tão novos que toda a construção ou adquirido através de algum processo oblativo.
da nossa identidade foi feita com a sua presença. Re- A análise de bens recuperados em sepultura, ape-
tirá-los significa, em alguns casos, perder parte da- sar do fascínio que tem em nos aproximar da mor-
quilo que define a nossa própria personalidade, pelo te e da forma como era pensada a existência após
que a sua presença no túmulo não era uma afronta a vida, tem de ser considerada como uma exceção.
aos cânones religiosos, mas a capacidade de enter- Como foi possível verificar, apenas 30 das sepultu-
rar a pessoa tal como ela era. ras de Bucelas continham espólio e se consideramos
No entanto, esta não nos parece ser a resposta para que grande parte desse espólio são apenas alfinetes,
todos os artefactos encontrados, nomeadamente algo que dificilmente poderá ser considerado como
aqueles com conotação religiosa, tais como os ro- um artefacto apotropaico, a presença de objetos está
sários/terços e o pequeno pendente relicário. Este longe de representar a regra. A excecionalidade da
é um tipo de materialidade diferente daquelas que sua presença faz-nos sempre questionar porquê. Tal-
aumentam a relação com o divino e neste caso tanto vez aquela menina com afinidades com populações
um objeto de valor individual como o reflexo de uma africanas (ESQ-39) sentisse que não precisava de se
identidade de grupo. integrar. Talvez os pais daquelas crianças quando
Ainda que tenham sido identificadas 30 sepulturas lhes puseram as moedas nas mãos não quisessem
com espólio associado, este número não nos permite arriscar e mesmo já não sabendo bem porquê sabe-
conclusões de maior monta sobre distribuição arte- riam que colocar moedas poderiam ajudá-los a en-
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1364
Nº Sexo Idade à morte Objeto/localização Camada
3 Feminino Adulto maduro/idoso Alfinete de mortalha associado ao crânio. Camada 4
5 Masculino Adulto maduro/idoso Fragmento de um objeto contendo cobre (indistinguível) junto Camada 4
ao osso parietal / temporal direito.
7 – Feto/Infante Conta de terço na mão direita. Camada 3
10 Masculino Adulto jovem Contas de pasta vítrea Camada 3
11 Masculino Adulto maduro/idoso Contas de pasta vítrea na área direita da região do tronco e na Camada 3
mão esquerda.
12 Feminino Adulto maduro/idoso Colchete macho identificado junto da 5ª vértebra lombar. Foi Camada 3
encontrado um colchete fêmea no sacro desarticulado que se
localizava do lado esquerdo do Indivíduo 11 e que pode perten-
cer ao Indivíduo 12.
13 Masculino Adulto jovem Botões de punho em ambas as áreas das articulações do pulso Camada 3
(ao nível do 1/3 distal dos rádios), botões em osso e cobre com
punções ao lado direito do osso ilíaco.
16 Masculino Adulto maduro/idoso Contas em osso de terço do lado direito do indivíduo. Várias Camada 3
foram localizadas na mão esquerda.
18 Masculino Adulto jovem Alfinete de mortalha junto à crista ilíaca direita. Camada 3
19 Masculino Adulto jovem Alfinete de mortalha na área interior da mandíbula. Camada 3
20 – Adolescente Alfinete de mortalha sobre o sacro. Camada 3
21 – Criança Fragmento de objeto contendo cobre junto da extremidade dis- Camada 4
tal. de rádio esquerdo e da 3ª vértebra lombar.
26 – Adolescente Argola pequena junto ao atlas (lado esquerdo) e outra aparente- Camada 3
mente de maior diâmetro, partida, do lado direito.
34 Masculino Adulto jovem Alfinete. Camada 4
38 – Infante Objeto indistinguível na base da sepultura, sob a região inferior Camada 4
das costas / área dos rins.
39 – Criança Alfinete de mortalha. Par de brincos tipo argola in situ e anel em Camada 4
vidro num dígito.
41 Masculino Adulto jovem Conta em osso junto da escápula esquerda e na mão esquerda. Camada 3
42 Feminino Adulto maduro/idoso Conta em osso Camada 3
54 – Criança Alfinete de mortalha encontrado entre a escápula e costelas Camada 4
esquerdas.
64 Feminino Adulto maduro/idoso Pendente contendo no seu interior dois fragmentos de papel que Camada 4
embrulham fragmentos de ossos.
79 – Infante Duas contas em osso Camada 4
79a
92 – Criança Moeda na mão direita. Camada 3
102 Masculino Adulto maduro/idoso Três alfinetes de mortalha junto ao crânio. Camada 4
106 – Criança Brinco junto ao crânio (lado direito). Camada 4
123 -– Criança Moeda na mão esquerda. Camada 4
124 – Adolescente Objeto irreconhecível contendo cobre junto à escápula esquerda. Camada 4
133 Feminino Adulto maduro/idoso Vidro negro Camada 4
143 – Adolescente Moeda junto à mão direita e encostada à mandíbula. Camada 4
147 Feminino Adulto maduro/idoso Moeda identificada ligeiramente acima do indivíduo, próxima Camada 4
da clavícula esquerda.
Figura 2 – Vista geral da antiga capela do Espírito Santo onde se pode observar a galilé e um dos acessos com escadaria, neste
caso para a atual Rua Marquês de Pombal. Fotografia dos inícios do século XX. (Centro de Documentação Braamcamp Freire /
Museu Municipal de Loures).
1366
Figura 3 – Vista do Largo do Espírito Santo onde ainda se pode observar o muro que
o delimitava, com um arco que permitia o acesso ao mesmo. Em primeiro plano, à
direita, parte das casas do antigo hospital e corpo da capela; em segundo plano, à es-
querda a igreja matriz. Fotografia dos inícios do século XX (Centro de Documentação
Braamcamp Freire| Museu Municipal de Loures).
1368
FICAM OS OSSOS E FICAM OS ANÉIS:
OBJETOS DE ADORNO E DE CRENÇA
RELIGIOSA DA NECRÓPOLE DO
CONVENTO DOS LÓIOS, LISBOA
João Miguez1, Marina Lourenço2
RESUMO
O antigo Convento dos Lóios situa-se numa plataforma da colina do castelo de São Jorge com uma vista privile-
giada sobre a cidade de Lisboa e o Rio Tejo, demonstrando uma ocupação humana desde tempos remotos até
aos dias de hoje.
As sondagens arqueológicas de subsolo permitiram confirmar a presença do edifício conventual e de parte da
sua Igreja. A escavação da necrópole revelou uma amostra que compreende 74 indivíduos, dez não adultos e 64
adultos de ambos os sexos que refletem diferentes tipos de alterações patológicas ósseas e dentárias. O espólio
que acompanhava estes indivíduos é um interessante conjunto de objetos maioritariamente de índole religioso,
onde se destaca a presença de um anel de ouro com a letra A impressa.
Palavras-chave: Espólio; Arqueologia; Perfil biológico; Antropologia; Lisboa.
ABSTRACT
On a platform on the hill of Saint Jorge Castle, we have the former Lóios Convent, with its imposing view over
the city and the Tejo River and an occupation spanning at least two millennia.
Archaeological surveys have enabled us to confirm that we can still see the conventual building and the ruins of
its former church today. The excavation of its necropolis revealed the presence of 74 individuals, of whom 10 are
non-adults and 64 are adults of both biological sexes, which reveal different types of bone and dental patholo-
gies. The artifacts that accompanied these individuals form an interesting set, most of them of religious nature,
and a gold ring with the letter “A” incised is the starting point of this study.
Keywords: Artifacts; Archaeology; Biological profile; Anthropology; Lisbon.
2. Universidade de Coimbra, Centro de Ecologia Funcional, Laboratório de Antropologia Forense, Departamento de Ciências da
Vida, Calçada Martim de Freitas, 3000-456 Coimbra, Portugal; Universidade de Coimbra, Centro de Investigação em Antropolo-
gia e Saúde, Departamento de Ciências da Vida, Calçada Martim de Freitas, 3000-456 Coimbra, Portugal; Era Arqueologia S.A. /
[email protected]
1370
tava para a banda do Limoeiro” tendo posteriormente na segunda metade do século XVII, primeira metade
ardido todo o dormitório, celeiros, adega, refeitório, do século XVIII (figura 3).
botica e livraria. Como resultado desta catástrofe A datação para esta fase da necrópole situar-se-á no
estima-se que tenham morrido cerca de 90 pessoas século XVI e primeira metade do século XVII. Estas
(Castro, 1763, pp. 236; Castilho, 1938, pp.248). datas são-nos dadas deste modo genérico pelas ins-
Os frades que sobreviveram mudaram-se imediata- crições nas lápides, nomeadamente 1595 e 1566 bem
mente para outro convento da mesma ordem que se como a remodelação da Igreja na segunda metade
situava em Xabregas, hoje conhecido como Conven- do século XVII.
to do Beato, tendo construído nas ruínas dos Lóios De facto, a escassez de materiais arqueológicos não
uma barraca no claustro e ainda uma capela com um permite precisar as datações e o faseamento dos vá-
só altar (Castro, 1763, pp. 236). rios enterramentos. De facto, somente num único
Em 1834, com a extinção das ordens religiosas, insta- depósito de enchimento de uma sepultura, foi possí-
lou-se neste edifício a 5ª Companhia da Guarda Mu- vel recolher fragmentos de cerâmica comum e faian-
nicipal de Lisboa, implicando necessariamente uma ça, cuja decoração aponta para a segunda metade do
remodelação do espaço e da sua funcionalidade. século XVI/primeira metade do século XVII.
Todo o conjunto foi sendo então alterado consoante Associados aos enterramentos foram recuperados
as necessidades, tendo sido descaracterizado ao lon- uma cruz, quatro medalhas com iconografia, quatro
go dos tempos. No entanto, só em 1883 se iniciaram terços e várias contas soltas em osso (figura 4). Não
os trabalhos de remodelação do edifício de modo a se observam diferenças relativamente ao tipo de
adaptá-lo à sua nova funcionalidade. Terá sido nes- espólio e o sexo dos indivíduos. Este conjunto é co-
ta altura que se construiu o grande edifício virado a mum em necrópoles conhecidas para este período,
Norte, que agora se destaca na paisagem e que terá como no Convento de Santana em Lisboa (Gomes &
obliterado restos da antiga Igreja, bem como remo- alii, 2022), no antigo Convento de Jesus em Lisboa
delado e transformado em casernas o grande edifí- (Cardoso, 2008) ou na Igreja da Misericórdia em
cio do convento virado a Sul. O edifício funcionou Almada (Dias &alii, 2017) entre outros. No entanto,
até há poucos anos como quartel do 5º Batalhão da nota-se nesta necrópole do Convento dos Lóios al-
GNR, tendo sido introduzidas novas alterações que guma pobreza quando comparando com alguns dos
descaracterizaram ainda mais o antigo convento. locais anteriores, ou ainda por exemplo com o con-
junto da necrópole de Mértola (Rafael & alii, 2015).
2. RESULTADOS Como apontamento, nota-se uma ausência de moe-
das colocadas nas mãos, fenómeno observado em
Os trabalhos arqueológicos por nós desenvolvidos algumas necrópoles deste período, como por exem-
na área do antigo convento, para a Era Arqueologia plo na necrópole medieval/moderna de Arruda dos
S.A., tiveram lugar ao longo de várias campanhas de Vinhos (Antunes-Ferreira & alii, 2013, pp. 1114), tra-
sondagens no decorrer dos anos 2017-2019. Foram dição de origem pagã que foi definitivamente encer-
realizadas uma série de sondagens arqueológicas rada com o Concílio de Trento (1545-1563).
de subsolo e parietais, que permitiram, entre vários Neste tópico o destaque recai sobre o indivíduo da
vestígios, confirmar a presença do edifício conven- sepultura 21, do sexo feminino, que consigo apresen-
tual e de parte da Igreja que a ele pertencia. tava objetos de adorno: um anel de ouro com a letra
As escavações arqueológicas permitiram obter uma “A” impressa, no indicador da mão esquerda e uma
visão da ocupação praticamente ininterrupta do es- pulseira com contas avermelhadas e pretas no pulso
paço desde pelo menos época romana até aos dias direito (figuras 5 a 7). Foram ainda recuperados pe-
de hoje, correspondendo a maioria dos vestígios à quenos elementos em ferro e osso que possivelmen-
ocupação conventual, nomeadamente, no caso que te estariam associados ao vestuário e uma moeda.
aqui nos ocupa, com a Igreja de Santo Elói e as suas
várias remodelações. 3. ANÁLISE ANTROPOLÓGICA
Destas várias fases e remodelações, concentramo-
-nos na fase a que corresponde a maioria dos enter- No total foram registadas 32 sepulturas, a maioria
ramentos observados, anteriores à igreja de planta seguia uma orientação que compreendia a cabeceira
oitavada cuja construção, como vimos, se centrou para Oeste e os pés para Este. Parte do chão da igreja
1372
modo estes objectos representariam “un rango den tavam ocupadas desta maneira, estariam a realizar
tro de la escala social (...) e, incluso, en el siglo XVII, una outro tipo de tarefas, de entre as quais, várias ligadas
profesión” (Lloret e Sanchis, 1999, pp. 16). à tecelagem, nomeadamente a fiação, coser e lavar
Quando conjugado o espólio com a informação re- tecidos (Phillips, 2003, pp. 111; Schaus, 2006, pp. 448;
lativa às lesões articulares degenerativas observadas Silva, 2021, pp. 146) e que poderiam realizar ao longo
nas mãos deste indivíduo, compatíveis com tarefas de toda a vida (Phillips, 2003, pp. 108). Estas tarefas
mecânicas de repetição ao longo dos anos como por parecem então ser coincidentes com as lesões acima
exemplo a tecelagem ou o bordar, algumas hipóte- referidas, sendo alguém que durante a sua vida terá
ses merecem ser mencionadas. Entre as quais o am- tido nas suas mãos uma das suas principais valências
biente que rodeava a Rainha D. Leonor (1458-1525). e atributos. O fato de ter sido inumada com um anel
Sabemos que foi pouco tempo depois de enviuvar de ouro de elevado valor económico, personalizada
do Rei D. João II que a Rainha D. Leonor, se mu- com a letra A – demonstra um importante estatuto
dou para Lisboa, mais concretamente para umas social, não sendo este, um objeto comum ou acessí-
casas defronte do Convento de Santo Elói (Guima- vel a qualquer pessoa.
rães Sá, 2011, pp. 174;), conhecidas como Paços de Apesar da fragilidade das premissas aqui aponta-
S. Bartolomeu, nos inícios do século XVI (Castilho, das, que assentam na dinâmica do contexto urbano
1938, pp. 92). A rainha tinha uma ligação muito forte do convento e na relação pessoal com os objetos de
com esta Igreja e convento, de tal modo que esta sua adorno, mais concretamente, o seu significado so-
casa tinha um passadiço em madeira que ligavam as cial, bem como a intenção da sua permanência após
duas (Castilho, 1938, pp.123 e seguintes) e o próprio a morte do indivíduo, impelem-nos a sugerir que
Francisco Santa Maria o refere na sua obra quando esta mulher poderá corresponder a uma das aias da
nos diz que “n’elle vinham assistir as pessoas Reaes aos Rainha D. Leonor, a quem terá dedicado a sua vida,
officios divinos(...) nomeadamente a Rainha D. Leonor, numa relação porventura muito próxima e duradou-
mulher d’el-Rei D. João II, a qual, das casas onde mora ra como por vezes acontecia (Silva, 2021, pp. 147) e
va, defronte de S. Bartholomeu, tinha passadiço para o cuja morada final foi a Igreja de enorme importância
convento” (1697, pp.438 e 439). Também importante na vida da sua rainha.
e curioso, parece a formulação de Júlio de Castilho
em relação à pequena Rua das Dama que sai do largo BIBLIOGRAFIA
dos Lóios. De facto, e como breve nota de rodapé,
ANDRADE, Manuel Ferreira de (1948) – A Freguesia de San
“havia nos paços antigos dos nossos reis uma parte se tiago. Lisboa: Oficinas gráficas da Câmara Municipal de
parada para habitação das damas de várias categorias, Lisboa.
que serviam as rainhas e infantas”, concluído que “te
ANTUNES-FERREIRA, Nathalie; CARDOSO, Guilherme;
nho eu para mim que é documento espedaçado esta ar SANTOS, Filipa (2013) – A necrópole medieval/moderno
queológica e pitoresca rua das Damas” (1938, pp.128). de Arruda dos Vinhos. In Arqueologia em Portugal – 150
Esta data em que aqui morou a Rainha é de modo anos. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, pp.
geral contemporânea com os enterramentos que te- 1111-1117.
mos vindo a tratar, que reportam ao período entre CARDOSO, João Luís (2008) – Resultados das escavações
o século XIV e a segunda metade do século XVII. arqueológicas realizadas no claustro do antigo Convento de
A datação da parte intervencionada da necrópole é Jesus (Academia das Ciências de Lisboa) entre Junho e De-
nos dada genericamente pelas lápides identificadas, zembro de 2004. Revista Portuguesa de Arqueologia. Lis-
1566 e a outra de 1595, sendo as primeiras inumações boa. Volume 11, número 1, pp. 259-284.
anteriores a estas sepulturas. CASTILHO, Júlio (1938) – Lisboa Antiga. Bairros Orientais.
A Rainha D. Leonor tem aqui, no que toca à necrópole 2ª edição revista e ampliada pelo autor e com anotações do
do Convento dos Lóios, um papel relevante pois leva- Eng. Augusto Vieira da Silva. Volume XI. Lisboa: S. Indus-
triais da C.M.L.
-nos então a levantar a hipótese do individuo da Se-
pultura 21, acima destacado, poder tratar-se de uma CASTRO, João Baptista de (1763) – Mappa de Portugal antigo
das suas aias. De facto, as aias da nobreza tinham e moderno. Tomo III. Lisboa: Off. de Francisco Luiz Ameno.
vários papeis importantes no lar, nomeadamente DIAS, Vanessa; CASIMIRO, Tânia Manuel; GONÇALVES,
no que toca à educação das crianças dos amos, bem Joana (2017) – Os bens terrenos da Igreja da Misericórdia
como fazer companhia aos mesmos. Quando não es- (Almada) – Séculos (XVI-XVIII) In Arqueologia em Portugal
RAFAEL, Lígia; PALMA, Maria de Fátima; FORTUNA, Rute; Lesões periapicais 2 5,6
RODRIGUES, Clara (2015) – Os elementos de adorno na ne- Periodontite 5 13,9
crópole medieval e moderna da alcáçova do castelo de Mér-
HLED 1 2,8
tola. In BRANCO, Gertrudes; ROCHA, Leonor; DUARTE,
Cidália; OLIVEIRA, Jorge de; BUENO RAMIRÉZ, Primitiva, Total 36 100
eds. – Arqueologia de Transição: O Mundo Funerário Actas do
II Congresso Internacional Sobre Arqueologia de Transição (29 Tabela 1 – Tipo de patologias observadas nos indivíduos in situ
de Abril a 1 de Maio 2013). Évora: CHAIA, pp. 258-271. da amostra total da necrópole do antigo convento dos Lóios.
1374
Figura 1 – Convento dos Lóios ao centro com o número 29, retirado de Civitates Orbis Terrarum,
1598, Georg Braun.
Figura 2 – Pormenor da vista de Lisboa com o convento dos Lóios no topo na obra de João Batista
Lavanha “Viagem da Catholica Real Magestade dei Rey D. Filipe II. N. S. ao Rev no de Portugal”
de 1622.
1376
Figura 5 – Pormenor do indivíduo [2237] da sepultura 21 in situ, onde observam as contas na zona do pulso
da mão direita e o anel no indicador da mão esquerda.
Figura 10 – Mãos do indivíduo [2237] da sepultura 21, onde se observa osteoartrose severa nos cárpicos, metacárpicos e falanges.
1378
“NÃO HA SEPULTURA ONDE SE NÃO
TENHAM ENTERRADO MAIS DE DEZ
CADÁVERES”: AS VALAS COMUNS DE
ÉPOCA MODERNA DA NECRÓPOLE DO
HOSPITAL DOS SOLDADOS (CASTELO
DE SÃO JORGE, LISBOA), UMA PRÁTICA
FUNERÁRIA DE RECURSO
Carina Leirião1, Liliana Matias de Carvalho2, Ana Amarante3, Susana Henriques4, Sofia N. Wasterlain5
RESUMO
Entre os séculos XVI e XVIII funcionaram na Rua do Recolhimento (Lisboa) um Hospital Militar e respetiva
necrópole, cuja terceira fase de utilização revelou 18 valas comuns com 69 enterramentos. Os dados de antropo-
logia funerária e paleodemografia foram analisados com o objetivo de perceber a relação entre este ritual fune-
rário e as “pestes” da época. Os indivíduos, compatíveis com uma população militar, estavam maioritariamente
inumados em valas com 3 e 4 enterramentos, em decúbito dorsal e orientação O-E/E-O. O espólio era escasso e
pessoal. Este ritual parece refletir uma adaptação ao espaço disponível de inumação face ao número de mortes
possivelmente causadas pelas “pestes” da época.
Palavras-chave: Práticas funerárias; Enterramentos atípicos; História da Saúde Pública; Epidemias; Hospital
Militar.
ABSTRACT
Between the 16th and 18th centuries, a Military Hospital and associated necropolis operated in Rua do Recol-
himento, Lisbon, whose third phase of use revealed 18 mass graves with 69 burials. Funerary anthropology
and paleodemography data were analysed to understand the relationship between burial traditions and the
“plagues” of the time. The individuals, compatible with a military population, were buried in trenches with 3
and 4 burials, in dorsal decubitus and W-E/E-W orientation. The funerary goods were sparse and personal. This
ritual seems to reflect an adaptation to the available burial space, given the number of deaths possibly caused
by the “plagues” of the time.
Keywords: Funeral practices; Atypical burials; History of Public Health; Epidemics; Military hospital.
1. University of Coimbra, Research Centre for Anthropology and Health, Department of Life Sciences, 3000-456 Coimbra, Portugal /
[email protected]
2. University of Coimbra, Research Centre for Anthropology and Health, Department of Life Sciences, 3000-456 Coimbra, Portugal /
[email protected]
3. University of Coimbra, Research Centre for Anthropology and Health, Department of Life Sciences, 3000-456 Coimbra, Portugal /
[email protected]
5. University of Coimbra, Research Centre for Anthropology and Health, Department of Life Sciences, 3000-456 Coimbra, Portugal /
[email protected]
1380
mias podem ter tido nos comportamentos funerá- critiva com recurso ao programa IBM®SPSS®Statistics
rios na Lisboa Moderna e na opção por enterramen- v.20. Complementarmente, foi realizada uma pes-
tos fora da norma, neste caso múltiplos, aliando à quisa bibliográfica sobre fontes de época acerca dos
informação proveniente da bioarqueologia as fontes surtos epidémicos e comportamentos funerários
bibliográficas de época. em Lisboa.
1382
não só um dos propósitos do uso de sudário (a inu- pultamento menos anónimo e mantinham alguma
mação do corpo nu e despojado) (Muiznieks, 2015; ordem no local funerário. A continuidade do uso do
Souquet-Leroy, 2015), como também a prática hospi- espaço como local de inumação, já depois do evento
talar, em que ao paciente era dada roupa própria do que deu origem ao número anormalmente elevado
estabelecimento (Sá, 2010). As pulseiras/correntes e concentrado de mortes da Fase 3, também poderá
localizavam-se maioritariamente do lado esquerdo, ter obrigado a alguma organização do local para uso
junto ao braço ou pulso, com exceção de uma cor- posterior. A alteração na orientação canónica (Este-
rente, que estaria junto ao tórax direito. Será difícil -Oeste/ Oeste-Este) servia provavelmente apenas o
não atribuir uma dimensão pessoal a estes objetos propósito de permitir intercalar melhor, num espaço
que, por alguma razão, não foram removidos do cor- limitado, as inumações umas sobre as outras.
po. A corrente junto ao tórax, assim como os botões, As crises de mortalidade, na Lisboa de época moder-
poderão estar relacionados com vestuário eventual- na, eram frequentes e de causas diversas (epidemias,
mente não removido, o que poderá sublinhar o ca- fome, guerra ou desastres naturais) (Barbosa & Go-
rácter urgente do ato de enterramento. dinho, 2001; Rodrigues, 1990). Numa consulta da
A Fase 3 da necrópole da Rua do Recolhimento não câmara de el-rei D. Filipe III em 1665, estava patente
é a única associada ao Hospital dos Soldados. A re- a preocupação com os surtos epidémicos que surgi-
lação entre estes dois espaços é anterior e ter-se-á ram em simultâneo com as campanhas da Guerra
mantido até ao terramoto de 1755. É bastante pro- da Restauração. Alerta-se que um pároco não tinha
vável, então, que os indivíduos inumados fossem espaço no adro da igreja para enterrar os soldados
tratados nesse hospital, como os militares ou pre- vindos da batalha de Vila Viçosa, vítimas de grande
sos da Cadeia do Limoeiro (Henriques et al., 2020). “mortandade”. No mesmo documento, também se
Note-se que embora a necrópole exiba seis fases de enunciava que embora as “doenças não são hoje de
utilização, apenas a Fase 3 apresentava valas com contágio” rapidamente a situação podia mudar, sen-
enterramentos múltiplos. Está-se assim perante um do necessário aplicar medidas de prevenção. Relem-
cemitério, local funerário consagrado, gerido pelo brava-se mais à frente que em 1663 haviam sido apli-
poder religioso ou secular, delimitado e com um cadas medidas de prevenção aos soldados franceses
carácter individual de inumação (Rugg, 2010) que que tinham vindo auxiliar nas fronteiras do Alentejo
ganhou uma nova (e pontual) faceta com a inuma- e que haviam entrado na cidade de Lisboa doentes.
ção múltipla numa mesma vala. Esta característica Uma dessas medidas era o seu tratamento no Hospi-
das inumações terá retirado individualidade aos en- tal de São João de Deus (Oliveira, 1891). Este hospi-
terramentos e acabado por criar uma disrupção na tal era então tido em conta (ou seria mesmo o local
ordem anterior do cemitério (Rugg, 2010). Ainda de maior relevância) para o tratamento dos soldados
assim, no caso da Rua do Recolhimento, o núme- doentes que entravam na cidade de Lisboa.
ro de inumados por vala é relativamente baixo (3 a Face ao aumento do número de doentes e conse-
4) e as valas seguem uma organização geométrica, quentemente de mortes era necessário estabelecer
por fileiras. Não é despiciendo supor que existisse medidas de combate à doença que, seguindo a ideia
um registo individual dos inumados em cada vala. da transmissão miasmática – pelo ar “putrefacto”,
Poder-se-á então dizer que num mesmo espaço fo- “infecto” – tinham uma preocupação com o afasta-
ram registados dois rituais funerários diferentes, ca- mento (a condução dos doentes para as “casas de
racterizando-se a Fase 3 por valas comuns. Tomando saúde” ou hospitais) e o isolamento das pessoas (ou
a definição de Rugg para as valas comuns6, a Fase 3 defuntos) portadores da doença (Cosme, 2017; Rijo,
apresentava algumas singularidades face a outras 2017; Rodrigues, 1990). Assim, tal como os vivos,
situações funerárias deste tipo que tornavam o se- e de modo a conter a “peste”, os mortos teriam de
ser inumados rapidamente e os seus bens – vestuá-
rio, por vezes o interior das casas - queimados (Rijo,
6. “Burial will be either side by side in long trenches, or one 2017). O levantamento bioarqueológico da disposi-
on the top of another in deep pit graves. There will be no
ção dos inumados aponta para que os enterramen-
individual markers, and it may be uncertain who is actually
buried there. As a consequence, the site will have minimal
tos ocorressem com recurso a um sudário ou lençol.
internal structure: finding the burial location of a particular Sendo assim, teria existido algum pudor (ou medo)
person will be impossible” (Rugg, 2010, pp. 268-269). em retirar dos defuntos o espólio mais pessoal?
1384
projeto com a referência UIDB/00283/2020. A coau- Doutoramento em História Das Ciências da Saúde. Lisboa:
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Figura 4 – Posicionamento do crânio nos enterramentos das valas comuns.
Figura 5 – Posicionamento dos membros superiores e inferiores nos enterramentos das va-
las comuns (anel interior – membros superiores; anel exterior – membros inferiores).
RESUMO
A interpretação das modificações post mortem que podem ocorrer num determinado ambiente de enterramento
e a listagem da presença de certos ossos e / ou regiões esqueléticas poderá auxiliar no desenvolvimento de mé-
todos de identificação que não estejam confinados a ossos que tendencialmente se conservam menos. A coleção
osteológica proveniente da Igreja da Misericórdia em Almada apresenta um estado razoável de conservação
(26,91%) e, no que toca à preservação, encontra-se incompleta e mal preservada (68.04%). As alterações tafonó-
micas são, na sua maioria, de origem antrópica sendo relevantes para compreender o impacto que os humanos
podem exercer sobre a preservação de uma coleção osteológica.
Palavras-chave: Tafonomia; Índice de Conservação Anatómica; Índice de Preservação geral;Medieval.
ABSTRACT
The interpretation of post-mortem modifications that may occur in a given burial environment and the listing of
the presence of certain bones and/or skeletal regions may assist in the development of identification methods
that are not confined to bones that tend to be less preserved. The osteological collection from the Misericórdia
Church in Almada presents a reasonable state of preservation (26.91%) and, as far as preservation is concerned,
it is incomplete and poorly preserved (68.04%). Taphonomic changes are mostly of anthropic origin and are
relevant to understand the impact that humans can have on the preservation of an osteological collection.
Keywords: Taphonomy; Anatomical Preservation Index; General Preservation Index; Medieval.
2. Universidade de Coimbra, Centro de Investigação em Antropologia e Saúde, Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de
Ciências e Tecnologia, Coimbra / [email protected]
1392
Os resultados relativos ao esqueleto apendicular (cla- 57,90% enquanto para adultos é 20,71%. Aplicando
vículas, escápulas, úmeros, rádios, ulnas, fémures, o teste U de Mann-Whitney a distribuição de IPA não
tíbias, fíbulas e patelas) são semelhantes aos do es- é igual nas categorias de idade, ou seja, neste caso
queleto axial e crânio, com muitos elementos ósseos específico os indivíduos não adultos apresentam-se
ausentes e, quando presentes, muito fragmentados. em melhor estado de conservação/preservação que
Os ossos da mão e do pé não foram recuperados na os indivíduos adultos. Tal como referido em cima,
maioria dos indivíduos. No entanto, o osso recupera- há uma distribuição não equilibrada entre as duas
do mais vezes foi o talus direito (45,8% completos), classes etárias.
seguido do esquerdo (37,5% completos) e o calcâneo No que toca ao IRO, no sexo feminino verifica-se
esquerdo (37,5% completos, 4,2% quase completos). uma média de 0,41 e no sexo masculino de 0,314.
Para além do método proposto por Garcia (2005/ Aplicando o teste U de Mann-Whitney conclui-se
2006), foi ainda calculado o IRO (em 21 dos 24 in- que a distribuição é igual nas categorias de idade, ou
divíduos da amostra), tendo-se obtido uma média seja, a nível estatístico não se verifica uma diferença
de 0,381. Este valor é um auxiliar na determinação significativa (significância 0,203).
do ICA e resulta num valor concreto sobre o estado Analisando a distribuição por parte anatómica (ta-
de conservação destas zonas anatómicas (Garcia, bela 7), e de acordo com as categorias estabelecidas
2005/2006). por Garcia (2005/2006) os resultados mostram que
A maioria dos ossos (>75%) observados nesta amos- o esqueleto apendicular é a mais bem conservado
tra não se encontram completos. (37, 67014), procedendo-lhe as extremidades com
36,72414 e o crânio e face com 34,3725. A parte ana-
3.2. Índice de Preservação Anatómico (IPA/API ) tómica menos conservada é o esqueleto axial com
A amostra estudada enquadra-se na Classe 3 (estado 32,1189. Apesar das diferenças, todos se encontram
razoável) do IPA, com valores de 26,91% (Tabela 3). na mesma classe de conservação (Classe 3 – Estado
No entanto, muitos indivíduos (n=9) encontram-se razoável), não apresentando uma diferença signifi-
em mau estado de preservação (Classe 1). Posto isto, cativa no ponto de vista estatístico.
é relevante referir que a avaliação foi condiciona-
da devido ao desaparecimento de alguns ossos que 3.3. Estado de preservação dos indivíduos – IPG
eram mencionados no relatório arqueológico. Para se proceder ao cálculo do Índice de Preserva-
Distribuindo os resultados por sexo (tabela 4), os re- ção Geral (IPG) foram avaliadas 29 zonas anatómi-
sultados IPA são aproximadamente 30,17% para o cas (tabela 8). O estudo desta zona demonstrou que
sexo feminino, e 17,9% para o sexo masculino. Dado os ossos que se encontram mais completos são as fí-
o valor da amostra ser muito reduzido, aplicou-se bulas: direita (50%) e a esquerda (33,33%). O estudo
o teste não paramétrico Teste U de Mann-Whitney. demonstra ainda que a região tem uma percentagem
Num teste de hipóteses, tem-se uma hipótese de maior de ausência é a face (83,3%).
partida (hipótese nula): não há diferenças entre os De um modo geral, a fim de compreender o estado de
grupos. Se o valor de p for maior que 0,5 não se rejei- preservação dos esqueletos somaram-se os valores
ta a hipótese nula. Desta forma, conclui-se que não do índice de cada indivíduo, obtidos na aplicação do
há diferença estatisticamente significativas entre os método de Ferreira (2012). O valor do índice indicou
sexos (p = 0.272). Relativamente ao IRO, conclui-se a baixa preservação da amostra, visto que a média foi
o mesmo, tendo o sexo feminino ,407 e masculi- 68,04 dando incompleto e mal preservado (tabela 9).
no,3144 (significância =,724). Quando se compara entre sexos, é possível verifi-
Relativamente a idade à morte, recorreu-se apenas car que em média o sexo masculino tem um IPG de
a dois grupos: adulto e não adulto. Procurou-se ape- 77,78 enquanto o feminino, 66,67. Tendo como base
nas determinar a idade à morte de não adultos, para o teste U de Mann-Whitney é possível concluir que a
diminuir a taxa de erro de observação (tabela 5). distribuição de IPG não é igual na categoria de sexo,
Para além disso, é importante referir que a amostra onde os esqueletos femininos se apresentam mais
de não adultos (n= 4) é relativamente pequena em bem preservadas que os masculinos. Este resultado
comparação com a dos adultos (n=20; o que pode- poderá estar enviesado dado o valor baixo da amos-
rá afetar os resultados). Contudo, é possível con- tra (tabela 10).
cluir que IPApara não adultos é aproximadamente Já por idade à morte verifica-se a mesma situação,
1394
fico a ação antrópica constituiu o fator tafonómico phonomic significance. Forensic Science International, 82:
mais relevante, tendo contribuído para destruição 129-140.
dos ossos (seja devido à reutilização do espaço fu- BELLO, Andrews (2006) – The Intrinsic Pattern of Preserva-
nerário ou da remodelação da igreja com abertura tion of Human Skeletons and its Influence on the Interpreta-
de valas). Verificou-se ainda a tendência de alguns tion of Funerary Behaviours
alguns ossos – nomeadamente o crânio – se preser-
BELLO, S.; THOMANN, A.; RABINO MASSA, E.; DU-
varem menos em média. Apesar da ausência de dife- TOUR, O. (2003) – Quantification de l’état de conservation
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Não-adulto - - 4 4
Adulto 9 6 5 20
Total 9 6 9 24
Tabela 1 – número de indivíduos por sexo biológico e idade à morte da amostra osteológica proveniente da
Igreja da Misericórdia em Almada.
>75%
Crânio 24 7 3 12,5
Mandíbula 24 10 5 20,83
Vértebras 72 37 9 12,5
Coxais 48 20 8 16,67
Clavículas 48 21 10 20,83
Úmeros 48 23 9 18,75
Rádios 48 20 6 12,5
Ulnas 48 20 9 18,75
Fémures 48 20 7 14,58
Tíbias 48 23 8 16,67
Fíbulas 48 21 11 22,92
Talus 48 25 21 43,75
Calcâneo 48 25 19 39,58
Tabela 2 – Número de ossos esperados vs. número de ossos presentes e percentagem de ossos completos
ou quase completos (>75%).
F 6 30,10 20,43
IPA%
M 9 17,91 11,36
F 5 0,41 0,26
IRO
M 8 0,31 0,26
Tabela 5 – Idade à morte dos indivíduos não adultos e o respetivo método utilizado para a
determinar.
IPA CRÂNIO e FACE IPAESQ APENDICULAR IPA ESQ. AXIAL IPA EXTREMIDADES
n 12 22 18 14
1400
Tipo de Osso / Região Ausente Ossos Presente e Osso Presente
Anatómica (n; %) Fragmentado (n; %) e Completo (n; %)
IPG 24 33 89 68,04
n Média
F 6 66,67
IPG
M 9 77,78
n Média
Adulto 20 72,6
1402
VARIABILIDADE FORMAL E PRODUTIVA
DA CERÂMICA MODERNA NA CIDADE
DE BRAGA: ESTUDO DE CASO
Lara Fernandes1, Manuela Martins2, Maria do Carmo Franco Ribeiro3
RESUMO
Os estudos realizados sobre as dinâmicas económicas de Portugal em época moderna, e em especial aqueles
que abordam os materiais cerâmicos, são ainda algo deficitários. Com efeito, os trabalhos realizados nas últi-
mas décadas, na sua maioria, dedicam-se à sistematização da produção de olarias e fábricas, ou ao consumo
desses objetos, seja em instituições políticas ou religiosas, seja a partir de intervenções parcelares realizadas em
centros urbanos.
Da mesma forma, a situação em Braga é semelhante, faltando um estudo sobre os processos económicos e so-
ciais em época moderna que realize uma síntese dos padrões de consumo do material cerâmico na efervescente
cidade pós-medieval. Assim procuramos com a investigação que temos vindo a realizar, dos materiais identifi-
cados em várias intervenções arqueológicas em Braga, colmatar este vazio.
Neste trabalho procuramos apresentar o material cerâmico de época moderna, identificado na escavação rea-
lizada pela Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, no edifício n.º 20-28 da rua Afonso Henriques
e n.º 1-3 da rua de Santo António das Travessas, através de uma abordagem tecnológica destes materiais, de
forma a realizar uma primeira abordagem da variabilidade formal e produtiva, entre os séculos XVI e XVIII, na
cidade de Braga, centrando-nos nas produções comuns e vidradas.
Palavras-chave: Época Moderna; Cerâmica; Economia.
ABSTRACT
The studies undertaken on the economic dynamics of Portugal in the modern period, and especially those deal-
ing with ceramic materials, are still somewhat lacking. In fact, most of the work carried out in recent decades
has been dedicated to systematising the production of the workshops and factories, or the consumption of these
objects, whether in political or religious institutions, or from piecemeal interventions in urban centres.
In the same way, the situation in Braga is similar, lacking a study of economic and social processes in the mod-
ern period that would synthesize the consumption patterns of pottery in the effervescent post-medieval city.
With the research we have been carrying out on materials identified in various archaeological interventions in
Braga, we have tried to fill this gap.
In this work we try to present the modern period pottery identified in the excavations made by the Archaeology
Unit of the University of Minho, in the building numbers 20-28 of the Afonso Henriques Street and numbers 1-3
of the Santo António das Travessas Street, through a technological approach of these materials, in order to make
a first approach to the formal and productive variability between the 16th and 18th centuries in the city of Braga,
focusing on common wares and glazed wares productions.
Keywords: Modern Period; Pottery; Economy.
1404
to nacional é ainda muito limitada. A análise destes de uma domus romana e trecho das cercas alto e bai-
materiais tem sido alvo de estudos muito pontuais xo medievais (na ex-escola da Sé, atual Junta de Fre-
referidos em relatórios de escavação, porém sem es- guesia da Sé) (Magalhães, 2019, p. 114), no chama-
tudo aprofundado, mas também de instituições, tais do quarteirão das Carvalheiras, foram identificadas
como o caso do Mosteiro de S. Martinho de Tibães. ruas que limitam um quarteirão integralmente cons-
Esta intervenção permitiu exumar um conjunto truído (Magalhães, 2019, p. 52) e por último, edifica-
avultado de cerâmica, cuja análise resultou no tra- ções romanas e medievais detetadas na rua de Santo
balho de Luís Fontes, Isabel Fernandes e Fernando António das Travessas (Lemos & Leite, 2000). As-
Castro (1998), no qual procuraram estudar as peças sim, entre os finais do ano de 2008 e inícios 2009,
de louça preta decoradas com moscovite, com base realizaram-se no lote de construção trabalhos de
na análise química das mesmas e o do cruzamento campo, assegurados pela Unidade de Arqueologia
com os contextos estratigráficos onde estas foram da Universidade do Minho, de forma a assegurar a
identificadas, datando estes recipientes entre a se- salvaguarda de possíveis vestígios arqueológicos. Os
gunda metade do século XVI e o século XVIII. trabalhos iniciaram-se pela realização de sondagens
A cidade de Braga conta com um longo período de prévias ao início do trabalho de construção, as quais
atuação a nível da arqueologia urbana, resultado do revelaram um conjunto de dados arqueológicos de
Projeto de Salvamento de Bracara Augusta, iniciado grande relevância para a caracterização das distin-
em 1976, e que perdura até à atualidade, no âmbito tas fases de ocupação do local, sendo que se verifi-
do Projeto de Investigação Plurianual de Arqueologia cou uma longa ocupação deste o período romano até
(PIPA) Projeto de Arqueologia de Braga, desenvolvi- ao contemporâneo.
do pela Unidade de Arqueologia da Universidade do A análise estratigráfica, a par dos materiais exuma-
Minho, o qual compreende mais de três centenas de dos, permitiu estabelecer diferentes fases de ocu-
intervenções arqueológicas no Centro Histórico de pação, sendo que do período romano, verificou-se
Braga e na periferia imediata da cidade. Os trabalhos a presença de muros e valas de fundação deste tipo
arqueológicos levados a cabo nestes últimos 47 anos de construções, assim como estruturas hidráulicas
de projeto, num extenso conjunto de zonas arqueoló- (Fase I), que são durante o Baixo Império (século III/
gicas, permitiram a obtenção de um enorme acervo IV) desativadas e substituídas por outras (Fase II).
de dados e materialidades, alguns dos quais profu- Da fase seguinte, conservam-se, apenas, os níveis
samente estudados, porém no panorama do estudo de derrube que sobrepõem as anteriores constru-
dos materiais cerâmicos de época moderna faltam ções. Não foi possível identificar estruturas, porém
estudos de síntese sobre as produções importadas e o material exumado destas camadas, permitiu datar
as regionais que possam fornecer um quadro evolu- esta fase da transição da Antiguidade Tardia para a
tivo dos contextos dos séculos XVI, XVII e XVIII de Idade Média (séc. V/X) (Fase III).
Braga e assim permitir abordar questões socioeconó- Para o período balizado entre os séculos XIII e XV
micas da cidade moderna. (Fase IV), apenas foi identificada uma conduta, com
função de drenagem de águas. Mau grado, nesta
3. ESTUDO DE CASO intervenção não foi possível distinguir edificações
medievais, tendo-se apenas verificado aterros com
A intervenção que será alvo de análise neste traba- materiais deste período, nomeadamente cerâmica
lho, realizou-se no edifício situado no gaveto da rua tipo “Sr.ª do Leite”.
D. Afonso Henriques nº 20-28, com a rua de Santo O período moderno é principiado na cidade de Bra-
António das Travessas nº 1-3, em Braga, resultado da ga, a partir do século XVI, com a intervenção do Ar-
intenção de instalação de uma unidade hoteleira no cebispo D. Diogo de Sousa. Neste momento, a cida-
local. Esta trata-se de uma área de grande potencia- de sofre novamente profundas alterações, marcadas
lidade arqueológica, estando localizada no Centro pela expansão desta para fora da área circunscrita
Histórico de Braga e em cujas proximidades, foram pela muralha, quebrando os limites definidos pela
anteriormente identificadas ruínas arqueológicas do estrutura defensiva. Este dignatário religioso alte-
período romano e medieval, tais como um trecho da rou o espaço interno da área amuralhada, através da
cloaca romana (no ex-Albergue Distrital, atual Bi- regularização e acrescento de novas ruas, criando
blioteca Lúcio Craveiro) (Torres, 2014, p. 31), parte na área extramuros, cinco campos, com localização
1406
ou seja, loiça de cozinha, loiça de mesa e loiça de ar- 16,4 cm, apresentando algumas destas uma super-
mazenamento e transporte. fície externa com marcas de utilização destas peças
sobre o fogo.
5. A CERÂMICA Destacamos dois fragmentos que surgem com for-
ma e temática decorativa semelhante, correspon-
Na Zona Arqueológica da rua D. Afonso Henriques dendo um deles a uma produção comum e outro a
nº 20-28 identificou-se um avultado conjunto cerâ- vidrada. Dizem respeito, a dois fundos planos, de
mico do período moderno presente em grandes ní- corpo troncocónico sendo um deles vidrado no inte-
veis de enchimento que dizem respeito ao processo rior. A superfície externa apresenta uma decoração
de renovação urbana quando se dá o alargamento da com linhas incisas onduladas, sendo que no caso
Travessa das Chagas. do fragmento vidrado acrescem duas linhas incisas,
Dentro deste conjunto, foi possível identificar obje- sendo uma delas sobreposta pela incisão ondular.
tos cerâmicos, de produção comum e vidrada, que Embora não seja possível identificar com precisão,
compõem três grupos de funcionalidade correspon- uma vez que os fragmentos são de reduzida dimen-
dendo a loiça de cozinha, loiça de mesa e loiça de ar- são, parece-nos tratar-se de fogareiros (Fig. 3), ten-
mazenamento e transporte. Embora, estes sejam os do em conta o diâmetro da base (17 cm no caso da
principais grupos de funcionalidade onde se incluem peça vidrada e 19 cm no fragmento de cerâmica co-
estes recipientes, devemos sempre considerar a pos- mum) e o formato do corpo inferior, porém estes não
sibilidade de múltiplas funcionalidades para estes apresentam marcas de utilização de fogo e os frag-
objetos, porém é certo que a grande maioria destes mentos não conservaram a possível abertura onde
foram produzidos na procura de oferecer uma fina- se depositam as brasas.
lidade principal que é aquela em que nos focaremos No que diz respeito à loiça vidrada (Fig. 4), esta
neste trabalho. diferencia-se da cerâmica comum por apresentar
superfícies vidradas com função de impermeabili-
5.1. Loiça de cozinha zação da superfície, especialmente interna, porém
Dentro do grupo de loiça de cozinha podemos des- nas quais identificamos formas idênticas às produ-
tacar um conjunto de produções comuns e vidradas ções comuns, como são exemplo os cântaros. Es-
que serviram para este propósito, destacando-se as tes, evidenciam recipientes de dimensões bastante
formas de cântaros, testos, panelas, alguidares, ser- variadas, com diâmetro do bordo que varia entre os
tãs e caçoilas. 20 e os 50 cm, de duas asas de secção fitiforme, que
No que diz respeito às produções comuns (Fig. 2) en- partem do bordo, sendo que no caso do exemplar de
contram-se os cântaros utilizados para servir e ar- maior dimensão se encontra decorado com aplica-
mazenar líquidos. Trata-se de recipientes fechados, ção plástica, formando linhas onduladas marcadas
de corpo ovoide e fundo plano, podendo apresentar na peça anteriormente, procedendo-se ao cozimento
ou não asas (Fig. 2b e 2a, respetivamente), que nas- a posteriori. As caçoilas vidradas identificadas nesta
cem do bordo e um gargalo relativamente fechado intervenção, sugerem pertencer ao tipo 1 referido no
formando um colo troncocónico invertido, na gran- trabalho realizado na Casa do Infante, no qual foram
de maioria reto com uma reduzida inclinação para identificadas, com características em tudo idênticas,
o exterior. Entre estes, observamos um conjunto de caçoilas em depósitos balizados entre o primeiro
objetos que diferem nas suas dimensões, variando o terço do séc. XVII e o terceiro quartel do séc. XVIII.
diâmetro do bordo entre os 14 e os 44 cm. Apresentam-se como formas abertas, com paredes
Por sua vez, as panelas correspondem a recipientes inclinadas para o exterior, exibindo alguns exempla-
de forma fechada, de corpo ovoide ou globular, que res marcas de utilização de fogo. Podem ou não apre-
podem ou não possuir asa (Fig. 2d e 2e). Apresentam sentar asa (Fig. 4a, 4b e 4c). Quando com asas, são
bordo extrovertido, por vezes com ligeira carena es- duas horizontais, de seção redonda (Fig. 4a) ou uma
trangulando a área do bordo, como forma de criar pega horizontal junto do bordo possuindo também
superfície para assentar os testos. Apresenta varia- um bico (Fig. 4b). O bordo é espessado com forma
ções de lábio, entre os quais se identificam panelas de sobarba com inclinação mais ou menos acentua-
de lábio arredondado, semicircular, triangular e afi- da para o interior, diferenciando-as assim do tipo 2,
lado. O diâmetro dos bordos varia entre os 12,4 e os em que os bordos são menos introvertidos (Barreira,
1408
Bracara Augusta. Deste centro podemos observar 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
loiça vermelha, preta (não se encontra representada
nas peças analisadas) e vidrada (Barreira, Dordio & O trabalho apresentado, representa o resultado da
Teixeira, 1998, p. 182). Em relação às produções co- análise do avultado conjunto cerâmico de época
muns de Prado, entre a loiça vermelha não vidrada, moderna, exumado no sítio arqueológico localizado
identificamos pastas vermelhas não vidradas, com no edifício situado no gaveto da rua D. Afonso Hen-
cerne de tonalidade acastanhada ou rosada e exte- riques nº 20-28, com a rua de Santo António das Tra-
rior de cor castanha ou bege. Esta produção apresen- vessas nº 1-3, em Braga.
ta formas como, os cântaros, panelas, testos e tigelas Embora estratigraficamente estes materiais se en-
e um possível fogareiro. Quanto à cerâmica vidra- contrassem em níveis de revolvimento, não deixa-
da, é representado por pastas claras, apresentando mos de os considerar como um importante contri-
fraturas de distintas tonalidades, entre as rosadas, buto para o conhecimento do consumo cerâmico na
beges, em alguns casos apresentando uma cor acin- cidade de Braga durante o período moderno, com
zentada junto da superfície externa. Exibem vidrado enfoque nas produções vidradas e comuns. Assim,
total essencialmente no interior e ocasionalmente procurámos realizar um estudo do ponto de vista
no exterior, sendo que a maioria dos recipientes ape- morfológico e decorativo, com o objetivo de apre-
nas apresentam na área do bordo. As tonalidades do sentar um modesto quadro tipológico com os reci-
vidrado variam entre o cinzento-esverdeado e tona- pientes identificados nesta intervenção.
lidades acastanhadas, resultado da presença de ferro No caso do espólio correspondente à produção co-
ou de concentração diferente de vidrado, apresen- mum, contamos com peças dos centros oleiros de
tando por vezes dupla coloração com aspeto mos- Prado e Aveiro/Ovar, sendo que estas predominam
queado, também presentes nos paralelos identifica- no espólio exumado integrando os grupos de loiça
dos na Casa do Infante (Barreira, Dordio & Teixeira, de mesa e de cozinha. Porém, quando comparado o
1998, p. 163). As formas desta produção, identifica- número de formas de cada um dos grupos, no que
das na intervenção em análise revelam recipientes diz respeito às loiças de cozinha há uma maior diver-
equivalentes a algumas formas comuns, tais como sidade nas formas de produção comum, sendo ge-
os cântaros, tigelas e testos, assim como um possível ralmente realizadas peças com fim utilitário de uso
fogareiro, evidenciando ainda alguidares, caçoilas, doméstico, como cântaros, panelas, testos e um fo-
sertãs, pratos, talhas e pucarinhos. gareiro. Apresentam grande variabilidade dimensio-
Um outro centro identificado diz respeito às olarias nal, estando representadas por recipientes de gran-
de Aveiro e Ovar, com a produção de louças ver- de, média e pequena dimensão. De notar que em
melhas, características pelas suas pastas vermelho- parte destas peças é possível identificar marcas de
-alaranjadas, por vezes com um tom acastanhado ou uso de fogo, evidenciando a utilização destas na pre-
de dupla coloração, com veio central de cor cinzenta paração de alimentos, mas também no aquecimento
e periferia castanho avermelhado, sendo salientada de espaços, como é o caso do fogareiro. Na loiça de
a superfície interna por um engobe vermelho ligei- mesa apresentamos essencialmente tigelas.
ramente mais escuro do que o da pasta ou levemente Relativamente às produções vidradas, observamos
acastanhado (Coelho, 2012, pp. 758-759). Apresenta a presença de recipientes provenientes do centro
uma decoração com linhas verticais, onduladas ou li- de Prado (os quais são a maioria) e exemplares de
nhas concêntricas, que resultam do acabamento bru- produções sevilhanas. As peças vidradas integram
nido dado a estas peças. Pode ainda apresentar por também o grupo de loiça de cozinha, com formas,
vezes decorações incisas ou impressas. Dentro deste tais como: cântaro, testo, caçoilas, sertãs e alguida-
grupo de produção foram identificados recipientes, res. De novo, parte destas apresentam áreas com
tais como, um cântaro (Fig. 2c) e tigelas (Fig. 5b). manchas negras resultado da utilização das mes-
Por último, surge um prato vidrado (Fig. 5a), possi- mas sobre fogo, principalmente no que se refere às
velmente de produção sevilhana. Apresenta uma caçoilas. Quanto às formas de mesa, integram este
pasta de cor bege clara, com elementos não plásticos grupo os pucarinhos, pratos e tigelas. Dentro desta
de pequena dimensão (finos) e dura e uma superfície produção, destacamos ainda as talhas, representan-
interna vidrada a verde-escuro, distinta das produ- do grandes recipientes utilizados no armazenamen-
ções locais e característica desta produção. to e transporte.
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1410
CARTOGRAFIA
Mapa da Cidade de Braga Primaz (século XVIII), 1755, na
escala aproximada de 1:2000, executado por André Ribeiro
Soares da Silva (original propriedade da Biblioteca Nacional
da Ajuda – cópia adquirida pela UAUM em suporte digital).
Figura 1 – Localização da intervenção no mapa de Braunio (1594), Mapa de Braga Primaz (1757), Mapa de Goullard (1883/84),
Planta da Cidade de Braga (finais séc. XIX) e Google Earth.
1412
Figura 4 – Exemplares de alguidares, testos, cântaros, sertãs e caçoilas em cerâmica vidrada.
1414
REPRESENTAÇÕES FEMININAS
NA FAIANÇA PORTUGUESA DE SANTA
CLARA-A-VELHA: DESIGUALDADE,
SUBALTERNIZAÇÃO, EMANCIPAÇÃO
Inês Almendra Castro1, Tânia Manuel Casimiro2, Ricardo Costeira da Silva3
RESUMO
Entre os séculos XVI e XVII as mulheres vão ser representadas na faiança portuguesa. Nessas representações
podemos conjeturar a sua existência enquanto agentes sociais, vítimas de subalternização, apagamento social
e desigualdade. As alusões mitológicas e religiosas apresentam a dualidade da sua natureza maléfica e do ideal
virtuoso que elas deveriam procurar atingir. As figurações “reais” mostram que eram valorizadas enquanto es-
posas, mães e “objeto” belo. Este artigo debate as representações femininas na faiança portuguesa recuperada
nas escavações arqueológicas do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha com dois principais objetivos: compreender
como é que estas mulheres eram vistas por aqueles que as representavam e tentar perceber o papel destes obje-
tos na vida das religiosas, enquanto forma de subalternização e/ou emancipação, e de ligação ao mundo exterior
e às suas identidades passadas.
Palavras-chave: Mosteiro de Santa Clara-a-Velha (Coimbra); Faiança; Representações Femininas; Desigual-
dades de género; Agência.
ABSTRACT
During the 16th and 17th centuries, women were subalterns and socially erased. These social agents are going to
be represented in Portuguese Faience as mythological characters, embodying the dualism between their ma-
lefic nature and the ideal of virtue, and as real characters reminding them of their social role, valued as wives,
mothers, and as “objects” of beauty. This paper aims to debate female representations in the Portuguese fa-
ience found in the Santa Clara-a-Velha Monastery with two main purposes: to comprehend how these women
were seen by the ones who depicted them and try to understand the role these objects played in the lives of the
women who lived inside the monastery as forms of subalternization and/or emancipation but also as a connec-
tion to the outside world.
Keywords: Santa a Clara-a-Velha Monastery; Faience; Female representations; Gender inequality; Agency.
1. NOVA-FCSH / [email protected]
1416
ração das condições de habitabilidade ditou o ine- bar tais preceitos e ao esforço da Igreja rapidamente
vitável abandono definitivo do espaço. Em 1677 as se juntou o da Coroa. Ao autocontrolo sobre os atos
clarissas foram transferidas para um novo mosteiro individuais adicionou-se então o disciplinamento
(de Santa Clara-a-Nova) construído no sobranceiro social (Braga, 2010: 308; Sá, 2011: 281, 290, 291; Sil-
Monte da Esperança, longe das cheias do Mondego. va, 2019: 368, 376; Trindade, 2014: p. 53, 63).
O conjunto monástico fica entregue aos sedimentos Conventos e mosteiro materializam então aquilo
até 1995 (Côrte-Real et al., 2002: 25), quando têm que Erving Goffman (1961) apelidou de “Instituição
início as obras de “Valorização da Igreja do Mosteiro Total” – um local de residência e trabalho para indi-
de Santa Clara-a-Velha de Coimbra” e os trabalhos víduos semelhantes que vivem em clausura. Nesse
arqueológicos correspondentes. A escavação des- sentido, a instituição é total ao criar uma barreira
te local, nomeadamente da área do claustro e suas social com o mundo exterior e um controlo total de
dependências, permitiu recuperar um numeroso e todos os aspetos da vivência dos indivíduos. Esta
variado espólio arqueológico constituído, essencial- vai ter a sua expressão por excelência na arquitetura
mente, por objetos representativos do quotidiano religiosa. A arquitetura é o reflexo inegável dos pre-
desta comunidade. Entre estes destacam-se várias ceitos de género, sendo a feminina uma adaptação
categorias de cerâmica e a faiança que aqui se re- do modelo masculino ao ideal da clausura, marcada
trata. Estes elementos foram recolhidos nos estra- por dispositivos arquitetónicos que asseguram a se-
tos mais próximos das estruturas (ibidem), sobre os paração entre o religioso e o secular, o masculino e
pavimentos bem conservados e que se constituem o feminino. Entre estes, paredes cegas, muros altos
como os níveis de abandono dos espaços que com- e robustos, gradeamento nas janelas e um controlo
põem este conjunto monástico. Esta ação de obli- rigoroso de entradas e saídas procuravam assegurar
teração terá sido aparentemente gradual, cruzando a inviolabilidade do espaço (Bajanca, 2014; Hernán-
os finais do séc. XVI e o séc. XVII (Côrte-Real et al., dez 2009; Jacquinet, 2015; Rocha, 2017; Silva, 2019;
2002: 29). Sá 2011; Teixeira, 2007, 2008).
Outro aspeto relevante é que os indivíduos chegam a
3. VIVÊNCIAS FEMININAS NAS CASAS estas instituições totais com uma cultura, vivências
RELIGIOSAS e quotidianos pré-existentes, sofrendo uma “desa-
prendizagem” ou uma “desaculturação” (Goffman,
O ingresso nas casas religiosas femininas raras vezes 1961: 12-14). O ingresso na vida religiosa implicava a
se devia a vocação, mas antes a pressões familiares perda do nome de batismo e a adoção de um outro e
e estratégias patrimoniais. Este era muitas vezes for- um ritual que incluía cortar os cabelos e vestir o há-
çado, pagando estas mulheres o preço da reprodução bito, e uma submissão aos votos religiosos (Sá, 2011:
social dos níveis de riqueza e do estatuto das suas fa- 276, 278). Marcava-se, teoricamente, um corte com
mílias. Deste modo, casamentos abaixo da condição a vida terrena e todos os bens deviam ser deixados
são substituídos pelo casamento com Cristo, onde o para trás com a mesma.
dote é mais baixo e o prestígio social elevado (Braga, Contudo, estas barreiras espaciais e sociais acabam
2010: 306; Sá, 2011: 279, 280, 290; Silva, 2019: 353- por não ser absolutas. A casa religiosa não deixava
356; Trindade, 2014: 62, 63). de ser um espaço de permeabilidade e negociações.
A vida conventual ou monástica era uma realidade O contacto com o mundo secular era mediado atra-
definida e rotineira composta por estudo, descanso, vés do locutório, da roda, e da portaria. O mirante
oração e trabalho, práticas devocionais que eram permitia o vislumbre do que era o mundo exterior,
vistas como uma forma de comunicação com o divi- um mundo que era em parte trazido para as celas, es-
no. Desenvolviam-se também atividades culturais e paços individuais mais protegidos de olhares indis-
de lazer como produção literária, por vezes altamen- cretos e do controlo masculino. Nestas, as religiosas
te criticada. O quotidiano era marcado pelas imposi- viviam uma vida que em muito se assemelhava à se-
ções e penas que configuravam nas Regras e Cons- cular. Reminiscente das casas de estrado, era nas ce-
tituições, que integravam uma cultura penitencial, las que familiares e amigas se reuniam, liam e escre-
e eram reflexo de uma sociedade patriarcal que as viam, conversavam, desenvolviam os seus lavoures
justificava com a “fraqueza” e “fragilidade” que atri- e passavam o seu tempo. Rodeadas dos seus objetos
buía ao feminino. O Concílio de Trento veio exacer- pessoais, muitas vezes luxuosos e, inclusive, impor-
1418
presentações femininas entre as moldadas/modela- como figuras mitológicas associadas tanto à mitolo-
das (num total de 19 peças) e as pintadas em pratos, gia clássica (2 fragmentos) como à mitologia cristã (1
taças e garrafas (15 peças), todas estas feitas sobre fragmento) (Fig. 3). As duas figuras mitológicas clás-
fundo branco e com azul, manganês e amarelo. sicas correspondem a duas Fortunas, inspiradas na
À primeira categoria correspondem as campainhas, iconografia renascentista da Fortuna Marítima que
representando o corpo feminino, e os frascos com segura uma vela e é responsável pela distribuição da
cabeças femininas. É bem possível que estes objetos boa sorte (Fig. 3 A-B). A outra imagem, de inspiração
fossem exclusivamente produzidos em Coimbra, vis- cristã, representa a Virgem sentada com o menino
to que a sua presença em outras zonas do país não se ao colo, também ela inspirada pelas inúmeras repre-
encontra, até ao momento, documentada. Já no que sentações que existiam desta cena (Fig. 3 C). Ainda
às representações femininas pintadas diz respeito, que não seja uma figura feminina, surge um quarto
estas são mais frequentes, ainda que não em número fragmento que deve ser considerado neste trabalho,
suficiente para serem consideradas uma produção pois retrata a figura de Adão, que pressupõe a exis-
de larga difusão. Estas dizem respeito, por norma, a tência de uma Eva (Fig. 3D). Estas representações
bustos ou figuras completas geralmente associadas são comuns na faiança portuguesa e aparecem fre-
a atividades que podem ir do lazer (música, dança, quentemente despidas, com uma folha a tapar os ge-
contemplação) a atividades económicas tais como a nitais e Eva a segurar uma maçã.
lavoura (Casimiro, 2021). Ainda na categoria das representações femininas
As representações femininas pintadas de Santa Cla- imaginadas surgem 12 garrafas e uma galheta mol-
ra surgem sob a forma de bustos ou simbolizando dadas/modeladas como se fossem figuras femininas
figuras mitológicas. Os bustos totalizam 15 peças (Fig. 4), muito estilizadas e que se distinguem sobre-
(Fig. 1). Nestes casos, as mulheres são representadas tudo pelo arranjo dos cabelos.
mostrando apenas a face, o pescoço, e a parte supe- Ainda que não se configurem como representações
rior dos ombros. Ainda que o realismo das represen- femininas, uma outra expressão presente na faian-
tações antropomórficas na faiança seja um assunto ça encontrada em Santa Clara-a-Velha, aporta para
que mereça um debate mais detalhado assente em a existência de mulheres. Trata-se dos recipientes
considerações estéticas, estas são as representações com os nomes das suas utilizadoras, nomeadamen-
que consideramos serem de mulheres reais. No en- te os seus nomes próprios (Fig. 5). Em Santa Clara
tanto, a verdade é que a maior parte destas surge identificámos 17 objetos com esta informação con-
num estilo quase caricatural. Quando observadas tendo os nomes Açucena, Ascenção, Elena Baptista
em detalhe é possível reparar que estas mulheres (2), Encarnação (4), Francisca, Iacinta, Iana, Maria,
apresentam características semelhantes entre si, Mariana, Marinha e Roza (2). Um destes nomes está
tais como os cabelos apanhados ou compostos numa ligado à categoria de Soror. A presença de nomes
espécie de toucado, e todas elas apresentam ao pes- femininos na faiança portuguesa não é incomum,
coço um colar que nos parece ser de contas (ou pé- sobretudo em casas religiosas, onde são usados para
rolas, ainda que as mesmas não sejam frequentes marcar a propriedade dos objetos (Parreira et al.,
nos contextos arqueológicos do século XVII). Num 2020), muito embora surgindo igualmente em am-
dos casos, este colar aparece associado ao que pare- bientes domésticos (Gaulton e Casimiro, 2014).
ce ser um pendente (Fig. 1-B). Apresentam ainda a
parte superior dos seus vestidos que revelam o colo 5. DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
exposto. Estas representações femininas “realistas”
são ainda representadas nas 5 campainhas em faian- Existem muitas possíveis interpretações para os ob-
ça identificadas (Fig. 2). Ainda que altamente estili- jetos com representações femininas encontrados
zadas, representam mulheres vestidas, ou despidas, em Santa Clara-a-Velha que não se esgotam neste
com os seios expostos (Fig. 2-B), com características trabalho. A primeira prende-se com a representação
possíveis de reconhecer em mulheres reais. propriamente dita destas mulheres. Enquanto algu-
Relativamente às demais representações femininas, mas são figuradas de forma realista (nomeadamente
e que poderemos considerar como mulheres imagi- a imagem da Virgem com o menino ou o corpo das
nadas, elas são diametralmente diferentes na me- Fortunas), a maior parte são representações femi-
dida em que mostram o que poderemos considerar ninas estilizadas, onde a mulher surge como um ser
1420
individual passava a ser coletivo, a distinção social BRAGA, Isabel Drumond (2010) – “Vaidades Nos Conven-
era trocada pelo anonimato, os laços com o mundo tos Femininos Ou Das Dificuldades Em Deixar a Vida Mun-
secular deviam ser cortados. E tudo isso nada mais dana (Séculos XVII-XVIII).” Revista de História Da Sociedade
e Da Cultura I. (10): 305–22.
é do que o preço a pagar pela reprodução social dos
níveis de riqueza e do estatuto das suas famílias, por BRAGA, Paulo Drumond (2008) – Casas de Deus ou Antros
uma escolha que nunca foi delas, apesar de ser sobre do Demónios? Homossexualidade Feminina em Mosteiros
e Conventos (Séculos XVI-XVIII). In.: SILVA, Carlos Guar-
elas, e que elas tiveram de aceitar. Será que a única
dado, Turres Veteras X – História do Sagrado e do Profano (pp.
opção é essa aceitação, essa submissão? Longe da
89-94). Torres Vedras: Câmara Municipal de Torres Vedras;
gaiola dourada original que é o lar, do domínio do Edições “Colibri” e Instituto de Estudos Regionais e do Mu-
pai e do marido, de uma existência dedicada a cui- nicipalismo “Alexandre Herculano”.
dar, a reproduzir e a educar; entre outras mulheres
BOURDIEU, Pierre (2020) – Habitus and Field: General Soci
e jovens que se encontram na mesma posição, e ology (1982-1983) (Vol. II).
agora letradas e educadas, não terão estas mulhe-
CASIMIRO, Tânia Manuel (2021) – What a delightful day.
res passado a aperceber-se do seu verdadeiro valor
Spare time representations in Portuguese pottery, in: Mate-
e poder de agência? O indivíduo tem capacidade de
jkova, K; Blazkova, G (eds.) Post-Medieval Pottery in the Spare
criar a sua própria identidade que pode reforçar as Time, Oxford: Archaeopress, pp. 119-128.
relações estruturais da sociedade ou contrariá-las.
CÔRTE-REAL, Artur; SANTOS, Paulo César; MOURÃO,
Neste contexto a faiança portuguesa surge também
Teresa; MACEDO, Francisco P. (2002) – “Intervenção no
como instrumento de resistência e como recetáculos Mosteiro de Santa Clara-a-Velha de Coimbra”. Revista Pa
do “eu” (Goffman, 1961: 54, 55). Estas peças não têm trimónio e Estudos. Caderno Conjuntos Monásticos – Interven
um significado fixo ou intrínseco, mas antes um que ções. Lisboa. 2: 23-32.
emerge das relações que se formam em seu redor e
CRUZ, Ana Sofia Ramos Morgado da (2018) – As Clarissas
da forma como são manipuladas. Esta materializa- da Ordem de Santa Clara: Alterações Tafonómicas de uma
ção do estruturalismo patriarcal torna-se paradoxal- Amostra Antropológica do Convento de Santa Clara-a-Velha
mente na forma de o combater, de agência, de cons- de Coimbra. Tese de Mestrado, Faculdade de Ciências e
trução de identidades, de ligação ao mundo secular. Tecnologia da Universidade de Coimbra, Departamento de
Ciências da Vida, Coimbra.
De facto, a “mulher” não nasce, é construída, e estes
objetos fazem parte dessa construção. CUNHA, Eugénia, FILY, Marie-Laure, CLISSON, Isabelle,
SANTOS, Ana Luísa, SILVA, Ana Maria, UMBELINO, Cláu-
AGRADECIMENTOS dia, CÉSAR, Paulo; CORTE-REAL, Artur, CRUBÉZY, Eric;
LUDES, Bertrand (2000) – Children at the Convent: Compa-
ring Historical Data, Morphology and DNA Extracted from
Agradecemos ao Museu do Mosteiro de Santa Clara- Ancient Tissues for Sex Diagnosis at Santa Clara-a-Velha
-a-Velha, na pessoa da sua coordenadora e dos seus (Coimbra, Portugal). Journal of Archaeological Science, 27 (10),
funcionários, o acesso aos materiais arqueológicos pp. 949-952.
aqui publicados.
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doi.org/10.22264/CLIO.ISSN2525-5649.2019.37.2.09.
1422
Figura 1 – Representações femininas de bustos.
1424
Figura 4 – Garrafas moldadas/modeladas com representações femininas.
1426
PODER, FAMÍLIA, REPRESENTAÇÃO:
A HERÁLDICA NA FAIANÇA DE SANTA
CLARA-A-VELHA
Danilo Cruz1, Tânia Casimiro2, Ricardo Costeira da Silva3
RESUMO
As intervenções arqueológicas realizadas no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha em Coimbra permitiram reunir um
conjunto vasto de objectos representativos do quotidiano daquela comunidade de clarissas, tais como uma das
mais significativas colecções de cerâmica do século XVII. A este nível sinaliza-se o lote de faiança portuguesa
constituído por milhares de fragmentos e onde consta iconografia variada. Entre os temas representados, desta-
ca-se um elevado número de recipientes com representações heráldicas. No presente texto, partindo da identi-
ficação dos diferentes brasões representados, apresenta-se uma reflexão centrada nas desigualdades socioecó-
nomicas entre as habitantes do mosteiro e discute-se a importância simbólica destes objectos no seu quotidiano.
Palavras-chave: Santa Clara-a-Velha; Faiança; Heráldica; Identidade; Representação.
ABSTRACT
The excavations in the Santa Clara-a-Velha Monastery in Coimbra resulted in a vast assemblage of objects con-
nected to the daily lives of the female community living under the rules of the St. Clare Order. A fundamen-
tal part of those objects corresponds to one of the most representative collections of 17th century ceramics in
Portugal, where a vast group of tin glaze ware exists. Among those ceramics a high number of vessels with the
representations of coats of arms. Based on those vessels we aim to discuss socio-economic bases for inequality
and distinctive behaviours.
Keywords: Santa Clara-a-Velha; Tin glaze ware: Heraldry; Identity; Representation.
1428
queológicas pertencentes ao piso inferior da igreja estar relacionados com o serviço do próprio conven-
e claustro maior (Côrte-Real et al., 2002). Paralela- to. Surgem igualmente quatro brasões associados
mente, permitiu recuperar um numeroso e variado à insígnia IHS, que sugere uma ligação directa aos
conjunto de objectos representativos do quotidiano jesuítas, ainda que possa ser apenas o monograma
desta comunidade. Os artefactos arqueológicos fo- para a Cristo.
ram recolhidos nos estratos mais próximos das es- Não obstante a quantidade elevada de brasões rela-
truturas (Côrte-Real et al., 2002: 25), sobre os pavi- cionados com ordens religiosas, os brasões familia-
mentos bem conservados e que se constituem como res são dos que mais se destacam devido à sua va-
os níveis de abandono dos espaços que compõem riedade. Foram identificados 112 brasões distintos
este conjunto monástico que terá ocorrido gradual- e ainda que não seja possível identificar a família
mente a partir dos finais do século XVI. A colecção referente a todos eles a maior parte é reconhecível.
de cerâmica, do século XVII, é uma das mais signifi- Aquilo que se convencionou chamar o brasão dos Sil-
cativas do país, ombreando com outras categorias de vas (mas que em boa verdade representava diversas
materiais como os vidros e objectos de adorno (Leal famílias tais como os Cerqueiras) corresponde a 34
e Santos, 2022; Lima et al., 2012). exemplares. Reconhecem-se por ter um leão ram-
pante no interior do escudo (Fig. 2 A, B). No entanto,
3. OS BRASÕES DE SANTA CLARA muitas outras famílias são reconhecidas tais como
Almeida, Lobo, Guedes, Vasconcelos, Coutinho,
A colecção da faiança decorada de Santa Clara cor- Albuquerque, Ataíde, Pereira, Castelo, Machado ou
responde a 1782 objectos. Entre estes identificamos Mascarenhas, entre outras (Figs. 2 e 3). Estes brasões
301 que podemos considerar como representações encontram-se pintados a azul ou azul e manganês e
heráldicas. Ainda que a maior parte dos objectos apresentam os escudos bem desenhados.
com brasões sejam pratos, surgem igualmente em Dentro desta categoria heráldica surge um tipo de
taças, caixas (das quais sobrevivem sobretudo as brasões que não possui um símbolo mas sim nomes
tampas), pias de água benta, jarros e garrafas. (Fig. 4). Estes podem ser nomes próprios, tais como
Estas são variadas e correspondem ao que podemos Maria ou Encarnação, ou sobrenomes, tal como um
classificar como heráldica pertencente a ordens reli- exemplar com Neves. Podem estar relacionados com
giosas, onde prevalece o brasão que tem uma relação famílias que adquiriam algum estatuto, mas que não
directa com Isabel de Aragão e que se torna quase possuíam uma simbologia própria e reconhecível.
um símbolo daquela casa religiosa. Corresponde a É muito curioso um tipo de decoração onde dentro
um brasão coroado cujo escudo se encontra dividido de um escudo brasonado surge a frase PER SIRVO A
verticalmente em duas partes. À esquerda as armas TODAS (Fig. 4 A). Julgamos que se tratava da louça
reais portuguesas e à direita as armas da Coroa de de uso comum, tal como a louça com as armas de Isa-
Aragão (Fig. 1 A, B, C, F). Apesar de os brasões reais, bel de Aragão, que podia ser utilizado por qualquer
tanto de reis como de rainhas serem conhecidos, até pessoa dentro do convento. São objectos curiosos
ao momento nenhum contexto em Portugal forneceu porque são a indicação que havia louça de uso par-
tantos exemplares com este tipo de representação ticular e louça de uso comum e que a sua utilização
heráldica. Apenas dois outros brasões nesta colecção poderia efectivamente estar relacionada com distin-
estão decorados com as armas reais portuguesas. ção familiar dentro do convento, talvez tentando de
No entanto, também surgem outros que podemos alguma forma minimizar a desigualdade social po-
conotar com outras ordens religiosas tais como a Or- movida através da pertença a determinada família.
dem de São Francisco, com uma relação directa com
Santa Clara, onde podemos identificar brasões com 4. OS BRASÕES E A RELEVÂNCIA
as cinco chagas de Cristo ou os braços de Cristo pre- DO SEU ESTUDO
gados (Fig. 1 D, E). Os brasões associados às ordens
religiosas tendem a ser frequentes em conventos e Um brasão reflecte identidade. Simplificando, cor-
mosteiros e conhecem-se a representação da Ordem respondem ao que podemos designar de logotipos,
de São Domingos ou São Bernardo (Parreira, 2020; ou marcas, pensados para serem reconhecidos ime-
Sebastian, 2015). Surgiram três brasões do que po- diatamente e associados a uma família, uma cidade,
demos chamar de heráldica episcopal, que podem a uma ordem religiosas (Šifta e Chromý, 2017). Mas
1430
da mesma forma e existissem diferentes dinâmicas MACEDO, Francisco Pato de (2016) – Santa Clara-a-Velha
baseadas no ranking familiar dentro do mosteiro, de Coimbra. Singular Mosteiro Mendicante. Lisboa: Caleidos-
que estes objectos apenas exacerbavam. cópio.
CÔRTE-REAL, Artur; SANTOS, Paulo César; MOURÃO, ŠIFTA, Miroslav; CHROMY, Pavel (2017) – The importance
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uma compreensão dos fundamentos histórico-antropológicos da
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1432
Figura 2 – Brasões familiares.
1434
Figura 4 – Brasões individuais e colectivos.
RESUMO
Em dezembro de 2005, foi conduzida uma intervenção arqueológica de emergência no imóvel com os números
12-14 do Beco do Espírito Santo, em Alfama, conduzida por uma equipa dos extintos Serviço de Arqueologia do
Museu da Cidade e Gabinete Técnico de Alfama (C.M.L.).
Na estratigrafia identificada, entre os depósitos mais antigos, registou-se uma U.E. muito rica em materiais de
diversas naturezas, que constituí uma relevante amostragem de meados a finais do século XVII, datada, na sua
essencia, através da faiança portuguesa. A identificação de um pequeno conjunto de recipientes em chacota
de faiança, de morfologias variadas, permite excluir a relação deste com contextos de produção, sugerindo-
-se assim, o seu descarte após o seu uso que, não se tratando, por certo, de um processo inédito em Lisboa,
registando-se paralelos datados do século XVII aos meados do século XVIII noutros pontos da cidade.
Palavras-chave: Arqueologia Moderna; Arqueologia Urbana; Cerâmica Moderna; Padrões Sociais de Consumo;
Arqueologia Hospitalar.
ABSTRACT
In December 2005 an archaeological excavation occurred in 12-14 Beco do Espírito Santo. Salvage archaeological
work was undertaken by a team of formers Archaeological Service of City Museum and Alfama Technical Office.
Stratigraphy included 19th and 20th centuries layers and, bellow them, two earlier ones, of which S.U. being rich
in organic materials, Portuguese Faience, Coarse Pottery, glass, bone and metal artefacts, a quite relevant set of
mid-late 17th century date, based on crono-stylistically features of Portuguese Faience. Amongst pottery, a small
but morphologically diversified set of sub products of Faiance fabric, unglazed vessels (“chacota”), were found.
Unrelated to pottery production contexts of discard, it means its day-to-day use, a phenomena with parallel in
other town spots of 17-18th century Lisbon, such as Beco das Barrelas, Rua dos Correeiros-Sondagem 14, Mer-
cado da Ribeira and SW Yard water well of Hospital Real de Todos-os-Santos.
Keywords: Early Modern Archaeology; Urban Archaeology; Early Modern Pottery; Social Patterns of Consump-
tion; Hospital Archaeology.
3. Departamento de História da NOVA-FCSH; Grupo de Arqueologia de Paisagens CHAM NOVA-FCSH; CAL – Centro de Arqueolo-
gia de Lisboa da CML/DMC/DPC / [email protected]
1438
ra anexa à ermida. Em data incerta, ulterior a 1645, nhas de obra executadas nos últimos anos do século
a Irmandade do Espírito Santo dos Pescadores e Ma- XVII. A esta iniciativa deverão também equivaler as
reantes do Alto de Alfama, com sede na Igreja de São estratigrafias idênticas/análogas, entretanto escava-
Miguel desde 1390, uniu-se à Irmandade de Nossa das no imóvel do Beco do Espírito Santo nºs 2-4/Rua
Senhora dos Remédios, originando a Confraria do dos Remédios nºs 1-3, em 2014 por Marina Pinto e Fi-
Espírito Santo e Nossa Senhora dos Remédios, com lipe Oliveira, e, em 2015-2016, por Anabela Castro,
compromisso assinado. Em 1651-1652, servindo-se ambas inéditas.
de uma doação feita por um mareante da sua casa
à Irmandade e Hospital, a confraria mandou cons- 3. O CONJUNTO DE CHACOTA DE FAIANÇA
truir junto da Ermida novo edifício para assistencial, DO BECO DO ESPÍRITO SANTO N.ºS 12-14
denominado Hospital do Espírito Santo ou de Nossa
Senhora dos Remédios, mantendo-o sob a alçada da A quantificação dos artefactos associados às unida-
Irmandade. A informação histórica disponível escla- des estratigráficas enquadráveis no final do século
rece que a Ermida e as casas da Confraria foram re- XVII foi feita sobre a sua totalidade, independente-
modeladas em 1694, quando se colocaram também mente da natureza dos materiais (cerâmica, vidro,
os painéis de azulejos na capela-mor e sacristia (Vale metal, cabedal e madeira). Os números são domi-
& Gomes, 1993; Oliveira, 2004). nados de forma ampla pelos restos elementos de
A observação arqueológica do remanescente do edi- calçado equivalentes a solas e tacões (em curso de
ficado permitiu constatar que em determinado mo- estudo pelo projeto VESTE, financiado pela FCT),
mento da vida do prédio com os n.ºs 12-14 este se ar- que supera os 200 NMI, pela faiança portuguesa,
ticulava pelas traseiras através de um saguão comum que atinge 68 NMI (Pinto, 2007), encontrando-se no
com a lateral traseira do templo, onde se encontra a extremo oposto os pequenos conjuntos de chacota a
sacristia, espaço hoje anulado. Esta característica era uso, 25 NMI, de vasculares em vidro, com seis NMI,
partilhada por dois outros edifícios da parte norte do as produções das olarias do Prado (Guimarães), tes-
quarteirão, que mostravam igualmente vãos e fenes- temunhadas por um característico mas único indivi-
trações para o dito saguão comum. Ora, estes vãos de duo de bordo de bilha poliansado, uma panóplia de
comunicação e/ou iluminação dos prédios com os nºs números reduzidos de objetos de vestuário em osso
2-4, 8-10 e 12-14 do Beco do Espírito Santo, formados e metal, um compasso de marear em liga de cobre,
por arcos e, num caso uma porta de comunicação em terracotas religiosas, cachimbos cerâmicos e boqui-
cantaria, articulavam com a lateral da sacristia os pi- lhas em osso/marfim de cachimbos de água (Nozes
sos térreos originais dos prédios pela parte acessível & alii, no prelo).
a partir da Rua dos Remédios, a sul, pelo que pelo A chacota a uso patenteada no Beco do Espírito
norte, pelo Beco do Espírito Santo, eram necessaria- Santo mostra uma muito acentuada variedade for-
mente caves, dado jazerem subterrâneos ao piso tér- mal, onde se incluem diversas tipologias de taças (8
reo da banda norte em virtude do desnível do terreno NMI), como um número mais elevado de pratos de
existente entre ambas as artérias. distintas configurações e tamanhos (14 NMI), a que
O conjunto dos vãos citados, como a porta e fresta se junta uma covilhete e um indivíduo indetermi-
lateral da Ermida, foram desativados e consequen- nado (1+1 NMI), este último considerado com base
temente entaipados em determinado momento, nas distintas características da pasta face ao restante
compondo um conjunto coerente de ações que, com do conjunto.
alta probabilidade, se julga equivaler à iniciativa de No âmbito das taças há a distinção entre a taça de
reforma das casas da Confraria documentada para bordo afilado e reto e base de pé em anel alto (1 NMI),
1694, datação por seu turno bastante compatível muito vinculada ainda aos respetivos protótipos da
com as características e o conteúdo do texto da “pla- porcelana chinesa, a taça/tigela de bordo ligeira-
ca foreira” antes mencionada. mente extrovertido (2 NMI) e a taça baixa de lábio
Deste modo, os contextos estratigráficos exumados em bisel (1 NMI).
arqueologicamente no Beco do Espírito Santo n.ºs A covilhete (1 NMI), o prato de parede extrovertida e
12-14 em 2005 equivalerão aos depósitos de colma- pé em ressalto (2 NMI) e o prato pequeno (2 NMI) es-
tação dos pisos em cave dos vários prédios da banda tão menos representados do que os pratos com bordo
norte do quarteirão, formados durante as campa- em aba, no caso de diâmetro médio (7 NMI), morfo-
1440
dio do Beco das Barrelas (13,68%), de novo em Al- GOODOLPHIM, José Cipriano da Costa (1897) – As Miseri-
fama, de igual modo contrastantes e aparentemente córdias de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional.
indiciadores das diferentes capacidades sociais e/ou NOZES, Cristina; SOUSA, Miguel Martins de; BARGÃO, An-
aquisitivas entre ambos os locais. dré; FERREIRA, Sara da Cruz; PIMENTA, João; SILVA, Ro-
De qualquer das formas, e em sentido diverso, a drigo Banha da; MIRANDA, Pedro (no prelo) – Objectos sin-
chacota de faiança a uso parece ter conhecido am- gulares seiscentistas do Beco do Espírito Santo (Santa Maria
Maior) e a expressão material dos pescadores e mareantes
pla difusão no espaço da cidade, pois para além dos
lisboetas de Alfama. In; NOZES, Cristina; LEITÃO, Vasco,
locais cotejados está assinalada no Hospital Real de
eds. – III Encontro de Arqueologia de Lisboa-Arqueologia na
Todos-os-Santos (em curso de estudo por um dos cidade (Teatro Aberto, 18 e 19 de novembro de 2021). Lisboa:
autores- AB), e atingiu os arredores da cidade, como CAL-Centro de Arqueologia de Lisboa/DPC/DMC/CML
documenta um exemplar encontrado no interior de
OLIVEIRA, Filipe Santos (2012) – Espólio de Idade Moder-
um poço de época Moderna escavado no Vale de na, proveniente do Beco das Barrelas, Alfama, Lisboa. Lisboa:
Alcântara (Batalha & Cardoso, 2013). Subproduto Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
oleiro comercializado em quantidades marginais, o Nova de Lisboa (Dissertação de Mestrado, policopiada).
fenómeno parece ter-se prolongado ao longo dos sé-
OLIVEIRA, Filipe Santos; SILVA, Rodrigo Banha da (2016)
culos XVII e XVIII. – Comercialização de subprodutos de fabrico de faiança: o caso
do Beco das Barrelas (Lisboa). In GOMES, Rosa Varela & Casi-
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CML. pp. 644-673.
1442
Figura 3 – Plano da intervenção arqueológica no Beco do Espírito Santo n.ºs 12-14.
1444
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE
OS ARTEFACTOS EM LIGAS METÁLICAS
DESCOBERTOS NO PALÁCIO SANT’ANNA
EM CARNIDE, LISBOA
Carlos Boavida1, Mário Monteiro2
RESUMO
Embora os vestígios da presença humana em Carnide sejam anteriores à Idade Média, foi nessa época que o
local se tornou importante por ser uma relevante área de produção de cereais na periferia da cidade de Lisboa.
Alvo de peregrinação no âmbito das festas da Senhora do Cabo, o movimento humano tornou-se ainda mais
presente após o Milagre da Luz (1463), que para o ali atraiu todo o tipo de gentes dando origem a grandes pro-
priedades. Erguido no século XVIII, mas com eventual origem anterior, o Palácio Sant’Anna, não foi excepção.
É propósito deste artigo dar a conhecer o conjunto de artefactos metálicos descobertos naquele palácio, durante
os trabalhos arqueológicos desenvolvidos pela EMERITA, entre 2010 e 2011.
Palavras-chave: Artefactos metálicos; Palácio Sant’Ana; Carnide; Lisboa.
ABSTRACT
Although the traces of human presence in Carnide predate the Middle Ages, it was at that time that the place
became important as it was a relevant cereal production area on the outskirts of the city of Lisbon. A target of
pilgrimage as part of the festivities of Senhora do Cabo, the human movement became even more present after
the Miracle of Light (1463), which attracted all kinds of people to the area, who creates several large properties.
Built in the 18th century, but eventual earlier, the Sant’Anna Palace was no exception to this action.
The purpose of this article is to make known the set of metallic artifacts discovered in that palace, during the
archaeological work carried out by EMERITA, between 2010 and 2011.
Keywords: Metallic artifacts; Sant’Ana Palace; Carnide; Lisbon.
1. ALGUNS DADOS HISTÓRICOS E ARQUEO- até meados do século XIX, era ocupada por extensas
LÓGICOS SOBRE O SÍTIO DE CARNIDE propriedades agrícolas (Caessa & Mota, 2013; 2014),
algumas na posse de importantes casas religiosas.
Embora sejam conhecidas evidências materiais da O sítio propriamente dito, era constituído por um
presença humana em cronologias mais antigas (Car- pequeno núcleo habitacional com a sua igreja paro-
doso & González, 2008; Cardoso & Monteiro, 2008; quial, além de uma fonte e uma ermida, que incluía
Monteiro & Cardoso, 2016; Cuesta-Gómez & Prata, ainda um rocio com um poço e várias covas de pao
2017; Batalha, Monteiro & Cardoso, 2020), as pri- (Caessa & Mota, 2016). A ermida, dedicada ao Es-
meiras referências documentais ao sítio de Carnide pírito Santo, era local de romaria no âmbito da pere-
remontam aos finais do século XII. Esta área, assim grinação do Círio de Nossa Senhora do Cabo desde
como grande parte da periferia da cidade de Lisboa 1437 (Boavida & Medici, 2018).
1446
Ao longo da sua história, o Palácio Sant’Anna, como TA, Lda. realizou escavações arqueológicas no edi-
muitas outras quintas nesta zona, teve vários pro- fício, tendo sido identificados vestígios desde época
prietários, tendo-se assim alterado em inúmeras Romana até à última ocupação do palácio, já no sé-
ocasiões a sua denominação, facto que torna com- culo XX. A recuperação do imóvel permitiu assim a
plicada a tarefa de encontrar dados históricos bem descoberta de contextos de várias épocas, entre os
documentados sobre o espaço existente. A desig- quais um pavimento em opus signinum, assim como
nação mais antiga advém da sua proximidade com um poço de fundação romana, para além de uma
o Largo da Praça, daí que o espaço tenha sido co- pequena área de necrópole islâmica (Curate, Perei-
nhecido como Quinta da Praça, mas também surge ra & Monteiro, 2016; Batalha, Monteiro & Cardoso,
referida como Quinta do Cónego, visto ter sido re- 2020). Integrado na sua fachada, emparedado in situ,
sidência, durante vários anos, de um monsenhor da foram identificados elementos de um grande portão
Patriarcal. Além do palácio, a quinta incluía outros do século XVI, o que poderá indicar que o palácio
edifícios, assim como uma extensa cerca. terá origens anteriores ao actual edifício.
Em setembro de 1755 faleceu aqui o Desembargador
do Paço, Francisco Croesbek de Carvalho. Este seria 3. OS OBJECTOS EM LIGAS METÁLICAS
sepultado na capela-mor da Igreja de São Louren- DESCOBERTOS
ço de Carnide, tal como sucedeu, após várias déca-
das de viuvez, com a sua mulher D. Clara da Cunha Nas escavações arqueológicas ocorridas no Palácio
Aboim em 1785 (Pereira, 1914/1916). Não tendo esta Sant’Anna foram recuperados um total de 51 objetos
senhora descendência, foram vários os que se recla- produzidos com recurso a ligas metálicas. Aquele
maram como seus herdeiros, dando origem a um conjunto incluí peças em ferro (38), ligas de cobre
complexo e longo processo judicial, no âmbito do (22) e chumbo (1).
qual toda a propriedade foi avaliada em 3:636$000 As condições tafonómicas dos contextos estratigráfi-
réis (Pereira, 1914/1916). cos em que tiveram lugar estes achados, assim como
Em 1788 todos esses bens foram finalmente arrema- a qualidade das ligas metálicas que os constituem,
tados publicamente por D. Maria Roza Caetano, viú- contribuíram para que alguns deles se encontrem
va de José de Bulhões, que ali passou a residir até ao em deficiente estado de conservação, nomeada-
seu falecimento em 1815. Por disposição testamentá- mente no que diz respeito aos artefactos produzidos
ria o seu caseiro, Manuel Lopes, herdou estes bens, em ferro, muito alterados e, na sua maioria, com fi-
que em 1821 vendeu a Gaspar Pessoa de Amorim nalidade difícil de identificar. A situação é distinta
(Pereira, 1914/1916). Os descendentes deste vende- em relação aos objectos fabricados em outras ligas
ram-no em 1871 ao Dr. José Ferreira de Sant'Anna, a metálicas, pois para quase todos os exemplares foi
quem se deve a actual designação do palácio (Perei- possível aferir a sua forma e função.
ra, 1914/1916). Uma vez que em muitos casos a forma e função dos
Em 1897 um violento incêndio destruiu parte signi- objectos metálicos se mantém praticamente inalte-
ficativa do imóvel, que foi então reconstruído e am- rada ao longo dos anos, quando não por séculos, a
pliado, incluindo um jardim romântico, na cerca da sua cronologia só poderá ser atribuída tendo em con-
antiga Quinta da Praça, ambos ainda bem visíveis na ta o contexto estratigráfico onde foram recolhidos,
carta topográfica de Lisboa da autoria de Júlio Silva assim como o espólio que lhe estava associado, no-
Pinto (1911), substituindo daquele último um dra- meadamente os numismas, que foram recuperados
goeiro com mais de 200 anos. O palácio permane- em número significativo em algumas das unidades
ceu na posse da família até 1932, sendo depois usado estratigráficas identificadas. Com excepção de um
para diversas funções (Batalha, Monteiro & Cardoso, botão de cobre, encontrado na Área 1, ainda durante
no prelo). o acompanhamento arqueológico ocorrido na pri-
Infelizmente, em 1985, outro incêndio voltou a des- meira fase da intervenção, todos os artefactos aqui
truir na totalidade o Palácio Sant'Anna, provocando tratados são provenientes da Área 4, a qual, além da
o seu abandono. Devoluto e em avançado estado de adega e da cozinha, incluía seis salas. A maioria deles
ruína, em 2010/2011, no âmbito da construção de um foram recolhidos nos dois primeiros daqueles com-
empreendimento habitacional, a empresa EMERI- partimentos e na Sala 4.
1448
Palácio Sant’Anna. Apesar de quase nenhum deles ofensivo, mas seria provavelmente usada no mastro
se encontrar completo, o que dificulta a percepção de uma bandeira ou estandarte. Foi encontrada no
sobre qual a estrutura em que estavam integrados, interior de um pote cerâmico.
pelas suas dimensões, a maioria terá pertencido a Foi recolhida também uma pequena ponta de bai-
elementos estruturais de possíveis tabiques ou da ar- nha de punhal (8D), peça bastante versátil e que po-
mação de um telhado (4A, 4B, 5B, 5G, 6A-6C, 6F, 6G, deria ser usada para diversas funções, como sucede
7B, 7D-7F). Alguns destes pregos foram encontrados igualmente com uma faca, cuja lâmina se conserva
em associação com pisos ou estruturas, mas não foi na totalidade (8B). Depois dos pregos e cavilhas,
possível perceber se estavam no seu local original. pela sua versatilidade, nomeadamente na prepara-
Pregos de maior dimensão podem corresponder a ção e consumo de alimentos, as facas são as peças
cavilhas (7H). Numismas da segunda dinastia, al- em ferro mais comuns em contextos arqueológicos
guns dos quais o estado de conservação só permitiu de Idade Moderna (Boavida, 2017b).
identificar o módulo, foram recuperados nos contex- Existe na colecção uma haste de ferro bastante longa
tos em que foram encontrados alguns destes pregos. que por ser aplanada em cunha numa das extremi-
Eventualmente associada também com a estrutu- dades e com cabeça destacada na outra, por bati-
ra de um telhado, foi recolhida uma meia cana em mento, pode indicar a sua utilização como escopro
chumbo, possivelmente usada para reparar alguma (8E), podendo estar relacionada com a construção
caleira (7G). Esta foi encontrada na mesma unida- de alguns dos edifícios que marcam o centro históri-
de estratigráfica que um espadim do reinado de D. co de Carnide. Uma outra peça, muito mais pequena
Afonso V (r. 1438-1481). e de formato sub-triangular, pode corresponder a
Um pequeno cravo (7C) pode ter permitido a fixação uma cunha (5A).
do forro de alguma cadeira ou ter integrado algum Não foi possível perceber qual seria a função de uma
padrão decorativo numa porta ou armário. De pro- bola maciço em ferro (6D), nem de um disco circular
vável peça de mobiliário poderá ser também a fecha- na mesma matéria (8A), sendo que este último esta-
dura encontrada (7A), embora não se possa ignorar va associado a vários ceitis de D. Afonso V.
que a mesma pode ter pertencido a uma porta. Uma
chave, recolhida num outro contexto é igualmente 6. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
em ferro (5C).
Sendo a zona de Carnide uma área acima de tudo ru- Apesar do dinamismo urbanístico provocado pelo
ral, não é de todo estranho que tenham sido recupe- Milagre da Luz, o sítio de Carnide, localizado na área
rados objectos relacionados com as actividades agrí- periférica de Lisboa, sempre passou historicamente
colas4, como seja uma chocalha (5E) e uma possível algo despercebido, exceptuando as festividades em
foice (8C). A dimensão da primeira, da qual se con- honra da Senhora da Luz que ainda hoje ali ocorrem.
serva também parte da pega, indica que seria usada Contudo, os trabalhos arqueológicos desenvolvidos
em gado vacum (Casqueira, 2009). Esta foi encon- naquele centro histórico nos últimos 15 anos, assim
trada nos estratos superiores dos sedimentos que como a investigação que daí tem advindo, têm per-
preenchiam um poço existente na área da cozinha. mitido demonstrar que talvez o sítio não seja assim
Sendo o cavalo ou o burro o principal animal de trac- tão periférico.
ção viária, não é estranha a presença de restos de Entre os achados, os silos do Largo do Coreto e
ferraduras nestes contextos (4C-4D). ruas adjacentes, pela sua quantidade e variedade
É de grande interesse, não só pela sua dimensão, de espólio que guardavam, foram efectivamente a
mas pelo seu estado de conservação, uma ponta de grande descoberta. Porém, foram os estudos sobre
lança em ferro (6E). Uma vez que se trata de uma aquele conjunto de estruturas negativas e sobre os
peça oca não faria parte de equipamento bélico artefactos ali recolhidos que têm dado a conhecer
as ligações interpessoais e institucionais das perso-
nalidades que criaram em Carnide inúmeras casas
4. Embora não seja possível afirmá-lo de forma inegável
e quintas de recreio. Embora muitos dados estejam
(pois não há informações concretas disponíveis sobre esse
aspeto), tendo em conta a vasta área abrangida pela cerca ainda por deslindar, como por exemplo onde se lo-
da antiga Quinta da Praça, é possível que nos seus terrenos calizava o Paço Real de Carnide ou a residência do
tenham decorrido várias atividades agrícolas. bispo de Lisboa, não há dúvida que o sítio de Carnide
que estragos se verificaram nos edifícios de carácter BATALHA, Luísa; MONTEIRO, Mário; CARDOSO, Gui-
civil. Tendo em conta as disputas relacionadas com lherme (no prelo) – “O Palácio Sant’Ana em Carnide: estru-
a posse da Quinta da Praça, certamente houve uma turas e cultura material entre o período Moderno e Contem-
porâneo” in Nozes, C.; Carvalhinhos, M.; Leitão, V. (coord.)
manutenção do edifício (ou edifícios) ali existentes,
III Encontro de Arqueologia de Lisboa – Arqueologia na Cidade.
apesar da lenta recuperação e reabilitação do espaço Lisboa: Centro de Arqueologia de Lisboa.
urbano envolvente, apenas concluída em meados do
BOAVIDA, Carlos (2017a) – “Dos objectos inúteis, perdidos
século XIX por iniciativa do Concelho de Belém.
ou esquecidos. Os artefactos metálicos do Largo do Coreto
Não deixa de ser interessante o facto de terem sido (Carnide, Lisboa)” in Arnaud, J. M.; Martins, A. (eds.) Ar-
encontrados no Palácio Sant’Anna muitos artefactos queologia em Portugal – 2017. Estado da Questão. Lisboa: As-
com afinidades formais e cronológicas com o espólio sociação dos Arqueólogos Portugueses, pp. 1821-1834.
recuperado no interior dos silos do Largo do Coreto, BOAVIDA, Carlos (2017b) – “Preparar, servir e comer: Vestí-
cuja área de concentração fica a oeste do edifício. É o gios arqueológicos metálicos do que se usava na cozinha e à
caso das fivelas e botões, da lâmina de faca, da pinta- mesa na Lisboa da Idade Moderna – abordagem preliminar”
1450
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C.; Melo, A. A.; Caessa, A.; Marques, A.; Cameira, I. (eds.) los XV e XVI do Largo do Jogo da Bola em Carnide, Lisboa”
1452
Figura 1 – A. Localização do Palácio Sant’Anna na planta topográfica de Lisboa de Júlio Silva Pinto (1911). B. Planta da área
da intervenção arqueológica no Palácio Sant’Anna. C/D. Vistas gerais do Palácio Sant’Ana antes (2009) e depois (2018) da
sua reabilitação no âmbito da qual teve lugar a intervenção arqueológica. Fotos Google Streetview.
1454
Figura 3 – Artefactos em ligas de cobre e madeira encontrados na Sala 5 (A-B), Sala 6 (C) e na Área 1. Todas as peças à mesma
escala. Fotos Carlos Boavida.
Figura 4 – Artefactos em ferro encontrados na Adega. Todas as peças à mesma escala. Fotos Carlos Boavida.
1456
Figura 6 – Artefactos em ferro encontrados na Sala 1 (A-C) e na Sala 3 (D-G). Todas as peças à mesma escala. Fotos Carlos
Boavida.
1458
Figura 8 – Artefactos em ferro encontrados na Sala 4. Todas as peças à mesma escala. Fotos Carlos Boavida.
RESUMO
O Palácio Almada-Carvalhais (M.N.) equivale a um importante espaço nobiliárquico lisboeta com origem em
1545, alvo de profundas remodelações que lhe configuram uma arquitetura essencialmente renascentista/bar-
roca. Em vários dos contextos exumados nos trabalhos arqueológicos foi recolhido um conjunto de 42 fragmen-
tos de cachimbos cerâmicos, executados em pastas caulíniticas, à época designados por «cachimbos de gêsso»,
e em “barro vermelho”, que sabemos hoje equivaler a uma produção seguramente lisboeta, para já documenta-
da arqueologicamente na encosta do Monte da Graça.
O balanço quantitativo do conjunto de cachimbos do Palácio Almada-Carvalhais mostra um grupo minoritário
de exemplares de produção lisboeta, por comparação com o número mais vasto daqueles em pastas cauliníticas,
estes seguramente elaborados em centros produtores britânicos e neerlandeses.
Procura-se enquadrar de um ponto de vista social a amostragem e tentando também construir de forma dia-
crónica uma leitura das dinâmicas aquisitivas lisboetas do objeto e do hábito de o fumar em Época Moderna.
Palavras-chave: Arqueologia Urbana; Arqueologia Moderna; Cachimbos Cerâmicos; Cultura do Tabaco.
ABSTRACT
Palácio Almada-Carvalhais (National Monument) is an important noble building from Lisbon, originated in
1545, after object of deep reforms that provided it a Renaissance and Baroque architecture. In the several ar-
chaeological contexts excavated a set of 42 sherds of clay tobacco pipes was collected, both caulinitic clay ones,
imported from Britain and the Netherlands, and red clay ones, 17th century Lisbon productions, for the moment
archaeological documented in the slope of Monte da Graça.
The quantitative bias of the set displays a predominance of imports.
The authors study the Palácio Almada-Carvalhais set trying to frame it socially and to evaluate local acquisition
dynamics of the object and therefore addressing smoking habits and Tobacco Culture in Lisbon during Early
Modern Age.
Keywords: Urban Archaeology; Early Modern Archaeology; Clay Tobacco Pipes; Tobacco Culture.
3. Departamento de História da NOVA-FCSH; Grupo de Arqueologia de Paisagens CHAM NOVA-FCSH; CAL-Centro de Arqueolo-
gia de Lisboa da CML/DMC/DPC. / [email protected]
1462
férico e de lábio curto ligeiramente extrovertido, Beco do Espírito Santo (Sousa & alii, 2023) e Rua
escudelas com ônfalo, escudelas de orelhas, formas do Terreiro do Trigo-espaço público (Sousa & alii,
vasculares associadas a vidrados transparente ama- 2020), qualquer deles em Alfama, a centúria de seis-
relo pálido e mosqueado, melado e castanho tam- centos parece ser o floruit destas elaborações lisboe-
bém mosqueado, verde pálido e verde-garrafa, para tas de cachimbos em “barro vermelho”. As cronolo-
além de trempes e de restos de argila cozida (Nunes, gias das estratigrafias lisboetas, são aliás sugestivas
2021, pp. 164-165). Estes elementos foram também de um fabrico situado entre o segundo quartel e o fim
encontrados por uma área dispersa que, para além do século XVII, como, morfologicamente, e a des-
das U.E. mencionadas da Sondagem 5, compreendia peito de uma aparente e elevada homogeneidade,
as U.E.s [5137], [5149], [5159], [5212], [5230], [5262] parece haver uma evolução ligeira na forma como
e [5328] da mesma unidade de escavação, e as U.E.s os fornilhos se modelaram (Silva & Teixeira, 2022,
[1175] (Sondagem 1), [3034], [3046], [3047], [3061], p. 128). Neste último sentido, os fornilhos do conjun-
[3085], [3096] (Sondagem 3) e [18079] (Sondagem to remeterão para as etapas iniciais e médias desta
18). Na sua globalidade, os tipos cerâmicos obser- produção lisboeta.
vados são associáveis a momentos situados entre o No que à morfologia específica dos exemplares res-
século XVI e os meados do século XVII, pelo mais, peita, o conjunto de hastes de cachimbo em “barro
e documentarão a produção oleira efetuada no pró- vermelho” preservados evidencia a enorme variabi-
prio local e/ou nas suas imediações. lidade morfológica, com diâmetros das hastes muito
Na zona interior da estrutura negativa se detetou, variáveis e dimensões dos canais internos completa-
no limite inferior da parte intervencionada, uma es- mente dissemelhantes, entre os 2,4 e os 6,1 mm, de
trutura em alvenaria que acompanhava a configura- máximo (conf. Figura 3).
ção subcircular ovalada da intrusão: os restos de um Nos mesmos contextos que documentam a produ-
forno. Das estratigrafias de enchimento e colmata- ção oleira que antes se mencionou se recolheram
ção desta estrutura provêm cinco fragmentos de ca- de igual modo oito fragmentos de haste de cachim-
chimbo em “barro vermelho” de produção lisboeta bo caulinítico: quatro provenientes da U.E. [1175],
(Est. 3, n.ºs 1-5), designadamente das U.E.s [5142] (1 da Sondagem 1 (um deles forçosamente resultante
exemplar.), [5151] (2 ex.), [5183] (1 ex.) e [5185] (1 ex.). de uma bioturbação oitocentista, pois ostenta mar-
A ausência de quaisquer outras evidências associá- ca incisa na haste do fabricante escocês W(illiam)
veis ao seu fabrico, como por exemplo exemplares [WH]ITE, ativo entre 1805 e 1891, e a indicação da
sobrecozidos, distorcidos, colados ou não acabados, origem do fabrico em GLAS[GOW]- conf. Gojak &
parece não apontar para se tratarem de vestígios de Stuart, 1999, p.39), um da parte mesial de haste da
produção no local ou nas suas imediações da área do U.E. [5151], um outro da U.E. [5137], ambas na Son-
Largo do Conde Barão. Em abono desta interpreta- dagem 5, dois outros na U.E. [3047], escavada na
ção, os fornilhos mostram sinais evidentes da quei- Sondagem 3. Embora o estado de conservação dos
ma feita no seu interior, e os canais interiores das exemplares não autorize maior precisão cronológi-
hastes também mostram vestígios de resíduos, pelo ca, as dimensões não são incompatíveis com uma
que se tratam de objetos usados, categoricamente. datação do século XVII e deverão documentar im-
Num outro sentido, o contributo do pequeno conjun- portações britânicas ou neerlandesas de seiscentos.
to dos cinco cachimbos em “barro vermelho” é de- Num outro sentido, vêm reforçar a leitura das cro-
cisivo para remeter a cronologia de formação deste nologias de formação que apontam para datas já
contexto já para o século XVII, pelo menos. De fato, seiscentistas para a formação dos contextos já antes
e em função dos dados estratigráficos muito consis- sugerida a propósito dos exemplares em “barro ver-
tentes proporcionados pelo estudo de Filipe Oliveira melho” com os quais estavam associados.
(2019) sobre os contextos de produção de cachim- A análise da estratigrafia e dos contextos observados
bos de “barro vermelho” exumados em Lisboa, na nas várias sondagens localizadas na área exterior do
Rua Damasceno Monteiro n.ºs 11-13, à Graça, mas palácio, na zona do antigo jardim, permite perceber
também dos contextos de consumo com finas cro- que este não apresentou sempre a mesma configu-
nologias antes dados a conhecer pelo mesmo autor ração, existindo sinais evidentes de que houve re-
do Beco das Barrelas n.º 12 (Oliveira, 2012), a que modelações importantes do espaço, nomeadamente
se acrescentam os dados daqueles identificados no caneiros desativados, sobreposições de estruturas
1464
28 fragmentos em barro caulinítico são com grande OLIVEIRA, Filipe Santos (2019) – Produção de cachimbos de
probabilidade resultado de ações no espaço desen- barro na Rua Damasceno Monteiro (Olarias de São Gens),
volvidas por personagens sociais ligados ao palácio, Lisboa – um contributo para o seu estudo. Apontamentos de
Arqueologia e Património, 13. Linda-a-Velha: Era-Arqueologia,
sendo originários da Grã Bretanha e dos Países Bai-
pp. 67-74.
xos. Nestes, a decoração impressa nas partes mesiais
de 6 denúncia uma proveniência segura neerlan- PINTO, Sandra (2018) – A Sixteenth-Century Draft Plan of
Lisbon’s Western Suburb. ImagoMundi The International
desa, não sendo possível adscrever a uma ou outra
Journal for the History of Cartography. Taylor & Francis. 70-1.
origem os restantes. De qualquer das formas, estes
pp. 27-51. (disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/
números ilustram de forma eloquente os câmbios full/10.1080/03085694.2018.1382101).
verificados na transição do século XVII para o XVIII,
SENOS, Nuno; CALDAS, J. V. (2018) – Licenciamento do Pro-
quando ocorre uma expansão e aumento exponen-
jecto de Arquitectura, Lisboa (texto policopiado).
cial da produção portuguesa do tabaco, como do
hábito em Lisboa do fumo por cachimbo e a conco- SIMÃO, Inês; PINTO, Marina; PIMENTA, João; FERREIRA,
Sara da Cruz; BARGÃO, André; SILVA, Rodrigo Banha da
mitante amplificação do volume de importações do
(2020) – Os Cachimbos dos Séculos XVII e XVIII do Palá-
objeto a partir dos principais centros produtores se-
cio Mesquitela e Convento dos Inglesinhos (Lisboa). In AR-
tentrionais europeus (Silva & Teixeira, 2022). NAUD, José Morais & MARTINS, Andrea, eds. – Arqueologia
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Cruz; SILVA, Rodrigo Banha da (No prelo) – Vidros, contas chimbos de gesso», de “barro vermelho” e chibuques de
de colar e cachimbos de um poço seiscentista na Rua das Lisboa: o consumo de tabaco numa capital europeia (século
Pedras Negras. In NOZES, Cristina; CARVALHINHOS, XVII a meados do século XVIII). Vestígios. Revista Latino-
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de 2023), resumos Lisboa: CAL-Centro de Arqueologia de handle.net/10362/142692).
Lisboa/DPC/DMC/CML.
1466
Ind. Contextuais Porção Dimensões (mm)
Decoração Extremidade Extremidade
Inv.º Produção Fornilho Haste Boq Marca Dimensão
U.E. Sond. 1 2
total
Forn. Ped. D M P sim não Ø h. Ø or. Ø h. Ø or.
4025 gesso 5136 5 x 43 7,8 3 7 1,9
4037 (1) gesso 1142 1 x 28 5,7 2,3 5,7 2,4
4037 (2) gesso 1142 1 x 29 5,5 2,2 5,1 2,25
4037 (3) gesso 1142 1 x 25 5,3 2,2 5,2 2,1
4028 gesso 1132 1 x 32 8 3,1 8,4 3
4054 gesso 3054 3 x 29 7 2,5 7,9 2,2
4034 gesso 5127 5 x x 17 6,1 2 6 1,9
4042 gesso 1142 1 x x 21 8,2 2,8 7,1 2,8
4029 gesso 18045 18 x 65 7,8 1,2 7,4 1,3
225 gesso 336 3 x x 41 6,3 1,9 6,4 2
4050 gesso 1165 1 x 63 9 3,3 8,5 2,9
4031 gesso 5065 5 x 49 6,7 ind. 6,6 Ind.
4047 gesso 1191 1 x 19 8,7 2,2 8,7 2,4
4046 gesso 1873 1 x 26 6,4 2,3 5,4 2,2
4044 (1) gesso 1138 1 x 33 6 2,5 5,3 2,4
4044 (2) gesso 1138 1 x 27 7 2,6 6,9 2,3
4044 (3) gesso 1138 1 x 35 6 2,2 5,8 1,8
4245 gesso 1177 1 x x 30 7 2,2 7,8 2,1
4055 gesso 3160 3 x x 35 5,5 2,1 5,4 2
4035 gesso 5159 5 x 62 6,4 2,8 6,1 2,1
4051 gesso 18070 18 x 36 9,6 2,8 9 2,7
4040 gesso 5137 5 x x 22 8,9 2,3 8,7 1,8
4036 gesso 4036 4 x 30 6,6 2,2 6,3 1,9
4049 (1) gesso 5151 5 x 32 9,65 2,8 9,8 2,6
4049 (2) gesso 5151 5 x x 32 6,5 3 5,6 2,7
4045 (1) gesso 3036/3047 3 x 32 4,9 1,8 5 2
4045 (2) gesso 3036/3047 3 x 24 7,9 2,5 6,9 2,4
4032 (1) gesso 1157 1 x x 32 4,3 2 4,2 2,3
4032 (2) gesso 1157 1 x 29 6 2 5,7 1,7
4030 (1) gesso 5062 5 x 33 6 1,4 6,5 1,4
4030 (2) gesso 5062 5 x 24 4,9 2,2 4,8 2
4048 (1) gesso 1168 1 x 41 5,4 2,2 5,1 2
4048 (2) gesso 1168 1 x 58 5,9 2 5,2 2
4048 (3) gesso 1168 1 x 41 5,4 2,6 5,7 2,1
4026 (1) gesso 1175 1 x 34 8,1 2 7,5 2,3
William
4026 (2) Glasgow 1175 1 x White 36 7,5 1,6 6,5 2
(1805-1891)
4026 (3) gesso 1175 1 x 17 5,7 2 5,5 2,3
4026 (4) gesso 1175 1 x x 60 5,5 2,5 4,8 2,9
4038 (1) Lisboa 5151 5 x x x isento 54 15,4 n.m. 11,9 2,9
4038 (2) Lisboa 5151 5 x x isento 30 9,9 6,2 11,2 6,6
4027 Lisboa 5190 5 x x isento 51 11,7 4,4 8,2 3,2
4039 Lisboa 5142 5 x x x isento 61 14,5 5,3 12,9 4
4041 Lisboa 5183 5 x x x isento 39 13,1 2,4 n.m. n.m.
4043 Lisboa 5185 5 x x x isento 33 14,3 4,1 n.m. n.m.
1468
TRÓIA FUMEGANTE. OS CACHIMBOS
CERÂMICOS MODERNOS DO SÍTIO
ARQUEOLÓGICO DE TRÓIA
Miguel Martins de Sousa1, Tânia Manuel Casimiro2, Filipa Araújo dos Santos3, Mariana Nabais4, Inês Vaz Pinto5
RESUMO
No ano de 2021 foram executados trabalhos arqueológicos, distribuídos por onze áreas distintas, no sítio ar-
queológico de Tróia. Deste modo, tornou-se possível identificar padrões quotidianos alusivos ao período pós-
-medieval, em complemento dos notáveis testemunhos romanos do local. Na intervenção arqueológica mencio-
nada, em particular em seis das áreas levantadas, foram recolhidos um total de 172 fragmentos que expressam,
pelo menos, 18 cachimbos oriundos de Inglaterra, dos Países Baixos e de uma produção nacional deste objeto.
A partir destes objetos, esta abordagem pretende, em primeira instância, apresentar esclarecidamente o con-
junto de cachimbos de Tróia, mas também aduzir este estudo arqueológico ao encontro de outras interpreta-
ções relacionadas com o fenómeno da “cultura do tabaco” durante os séculos XVII e XVIII.
Palavras-chave: Cachimbos de cerâmica; Arqueologia Moderna; Tróia; Hábitos de consumo; Cultura do tabaco.
ABSTRACT
In 2021, archaeological excavations were carried out in eleven different areas in the archaeological site of Tróia.
It was possible to identify aspects of the modus vivendi of Tróia during the early modern period, in addition to
the testimonies of the Roman occupation in the site. During the archaeological excavations, particularly in six
of the considered areas, 172 fragments were collected which express at least 18 clay pipes from British, Dutch,
and Portuguese productions. This paper aims to present the set of clay pipes from Tróia, discussing them within
other interpretations related to the “tobacco culture” phenomenon in Portugal during the 17th and 18th centuries.
Keywords: Clay smoking pipes; Early modern archaeology; Tróia; Consuming habits; Tobacco culture.
4. IPHES-CERCA – Institut Català de Paleoecologia Humana i Evolució Social; Universitat Rovira i Virgili, Departament d’Història i
Història de l’Art / UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa / [email protected]
5. Troia Resort / CEAACP – Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património da Universidade de Coimbra /
[email protected]
1470
santos, para os pescadores, assim da costa como do rio autor indica também a contagem de hastes distais
e bem os navegantes católicos que vem lançar aqui las- (junção da haste com o fornilho) para a aferição do
tros” (Capela; Matos; Castro, 2016, p. 847). Número Mínimo de Indivíduos (NMI), metodologia
que se adaptou tendo em consideração o fragmen-
2.1. Breve apontamento dos trabalhos to singular de produção nacional e o holandês com
arqueológicos de 2021 decoração barroca, tidos cada um como um indiví-
No ano de 2021, novos trabalhos arqueológicos fo- duo. Não se teve em consideração a relação cronoló-
ram desenvolvidos no âmbito de um estudo de im- gica do diâmetro do furo das hastes, uma vez que o
pacte ambiental, intervencionando-se 772 m2 distri- conjunto apresenta diversos elementos holandeses,
buídos por onze áreas distintas (Fig. 1), então pouco comprometendo possíveis análises neste parâmetro
conhecidas do ponto de vista arqueológico. Estas como denunciado previamente por Lauren K. Mc-
situam-se mais precisamente no extremo noroeste Millan (2016, pp. 83-87).
do sítio arqueológico romano, no entorno do Palácio Na investigação das produções inglesas recorreu-
Sottomayor, uma construção iniciada em 1923 (Cos- -se principalmente às estampas das tipologias de
ta, 1923/1924, p. 318); nas imediações de infraestru- cachimbos londrinos de David Atkinson e Adrian
turas construídas entre o século XIX e, mais precá- Oswald (1969), entre outros recursos digitais dispo-
rias, em 1974 (Pinto; Brum; Santos, 2022, p. 2); a sul níveis, como o sítio eletrónico do The National Pipe
da Capela de Nossa Senhora de Tróia e ao longo do Archive. Já nas produções holandesas a referência
caminho de acesso ao sítio arqueológico. principal foi a grande obra sobre os cachimbos de
A propósito dos trabalhos mencionados, foi nestes Gouda de Don H. Duco (2003), bem como os catálo-
que pela primeira vez se reportaram vestígios que gos eletrónicos disponíveis em goudapipes.nl e clay-
refletem uma nítida implantação nos séculos XVII pipes.nl, entre outras referências específicas, devida-
a XIX, particularmente nas áreas 5 e 6. Ademais, mente assinaladas.
foram recolhidos cachimbos: na Área 3, (escava-
da em conjunto com as áreas 1 e 2) onde apenas se 3.1. Cachimbos ingleses
identificou um fragmento de haste; na Área 5, com De acordo com os dados existentes, foi nas ilhas bri-
76 fragmentos de cachimbos de caulino e um outro tânicas que se iniciou a laboração massiva em mol-
fragmento de cachimbo de cerâmica vermelha; na des de duas peças de cachimbos cerâmicos a partir
Área 6, onde foram recuperados oito fragmentos de da década de 80 do século XVI, após uma utilização
cachimbos de caulino; na Área 7, com 70 fragmen- informal do tabaco pela comunidade marítima ao
tos de cachimbos de caulino; na Área 8, com e ape- longo do referido século (Taylor, 2022, p. 3).
nas oito fragmentos de hastes mesiais de caulino; e No sítio arqueológico de Tróia, recolheu-se um
na Área 9, onde somente se recolheram sete porções exemplar produzido entre 1708 e 1751 cujo interior
de hastes de caulino. da base do fornilho, praticamente sem paredes, se
encontra totalmente carbonizado (Fig. 3/1). Neste
3. OS CACHIMBOS DO SÍTIO exemplar, a haste ostenta a inscrição [...]OHN/[S]
ARQUEOLÓGICO DE TRÓIA TEP/HENS, trata-se de um elemento com defeito.
É de notar, para além da ausência do I para John, que
A coleção de cachimbos recuperados em Tróia cor- o S foi gravado posteriormente à impressão da mar-
responde a 172 fragmentos e encontra-se acentua- ca, denunciando erosão no molde utilizado. Este
damente fragmentada (tendo os elementos uma alude à família Stephens, detentora do monopólio da
média de 3,46 cm de comprimento), registando-se produção de cachimbos em Newport (ilha de Wight),
ainda numerosos exemplares com as superfícies durante a primeira metade do século XVIII, com pro-
roladas por erosão natural e/ou com as superfícies duções de Edward, Elizabeth, John (I), John (II) e Ri-
carbonizadas por utilização antrópica. chard, ainda que somente John (II) e Richard expor-
Por sua vez, na realização deste estudo aplicou-se o tassem os seus cachimbos (Higgins, 2017a, p. 168).
registo gráfico e/ou fotográfico dos fragmentos de Tal facto é, aliás, constatável através do estudo da
cachimbos com marcas de produtor e aqueles tidos coleção de cachimbos do Hospital da Confraria do
como mais destacáveis (Fig. 2), seguindo os pressu- Espírito Santo dos Pescadores e Mareantes de Se-
postos de orientação de David Higgins (2017b). Este simbra por Eduardo da Cunha Serrão, onde se reco-
1472
sendo o seu fabricante Pieter Thoen de Gouda, em (fabricados a partir de quatro moldes), estagnando
laboração entre 1686 e 1720, embora também se a sua produção em c. 1680. Adicionalmente, este ca-
reproduza a variação coroada por vários oleiros de chimbo terá sido adotado por vários marinheiros e
Gouda até ao final do século XVIII. soldados como adereço pessoal6.
A haste distal com decoração epigráfica identificada Ainda que bastante fragmentados, dois dos forni-
(Fig. 4/13), embora apenas com resquícios do forni- lhos recolhidos preservam integralmente as suas
lho, preserva parcialmente o nome de um dos maio- marcas de produtores originários de Gouda (Fig.
res comerciantes de tabaco de Amesterdão, FRANS 4/12 e 14), respetivamente a marca Trompet met Lint
VAN / [...]ELDE. Este facto relaciona-se com o pico (trompete com fita) produzida por Jacobus Jansz. de
da produção de tabaco entre 1670 e 1730 na capital Vrient (entre 1671 e 1709), surgindo também a va-
holandesa, proporcionando exportações em massa riação coroada aplicada por vários produtores entre
deste produto. Neste âmbito, os maiores detento- 1696 e 1788; e a referida como Hoed (chapéu). Ba-
res do monopólio da venda de tabaco como Frans lançando este dado com a tipologia do fornilho, este
van de Velde Sr, os seus filhos, Frans e Jacob, ou Jan poderá ter sido fabricado pelas oficinas de Cornelis
Georg Burgklij e Ertwijn Zapfenbergh passam a en- van Leeuwen (entre 1705 e 1749) e a sua viúva Lijs-
comendar a produção de cachimbos com os seus no- beth Geus (entre 1749 e 1753), ou de Hendrick Bos (a
mes gravados na haste (Lingen, 2013). Por sua vez, a partir de 1753).
restante decoração da haste supramencionada alude Seguindo a mesma metodologia, o fornilho integral-
à típica decoração impressa serrilhada das hastes de mente preservado (Fig. 4/16), cujo interior se en-
cachimbos holandeses, por vezes delimitadas por contra com uma camada acentuada de combustão,
linhas de círculos ou zigue-zagues (Fig. 4/15 e 17), conserva a marca Kartouw (canhão) produzida em
abundante entre os exemplares setecentistas. Me- Gouda por Leendert van Draaij (entre 1724 e 1730),
nos frequente é a haste distal com torção moldada o seu sucessor, Hendrik van der Draaij (entre 1730 e
e banda serrilhada em espiral (Fig. 4/18), fabricada 1746) e Hendrik de Nijs (entre 1749 e 1782). Todavia,
entre 1720 e 1750, ainda que também registada nou- é mais provável que este exemplar se reporte à pro-
tros pontos da margem norte do Sado, nomeada- dução do segundo produtor mencionado, uma vez
mente no referido de Sesimbra (Franco et al., 1984- que na lateral do pedúnculo parece surgir o negativo
1988, fig. 23) e na Antiga Gare Rodoviária de Setúbal do brasão de Gouda, tal como identificado no acom-
(Sousa, 2023, p. 328). panhamento da Marina de Tróia (Duarte; Tavares
O fragmento de haste distal decorada com impres- da Silva; Soares, 2014, p. 10), fator denunciativo de
são de duas linhas serrilhadas delimitadas por du- uma produção pós-1739.
plas linhas de pontos parece corresponder às hastes No geral, registaram-se 8 NMI de cachimbos holan-
decoradas holandesas do século XVII (Fig. 4/19). deses, destacáveis pela sua qualidade face ao gru-
Sem paralelo a nível nacional, recolheu-se um pe- po de cachimbos ingleses e com vários produtores
queno fragmento com decoração designada como identificados em Lisboa (Silva & Teixeira, 2022, p.
sendo de barroco tipo 3 (Fig. 4/20), o mais comum 120-122). Estes fazem alusão às oficinas de cachim-
de entre a categoria Barok, conhecido como “ca- bos seiscentistas e setecentistas de diversos oleiros
chimbo de Jonas”, devido ao relato bíblico entre o holandeses, maioritariamente de Gouda – nomea-
profeta Jonas e o peixe (ou baleia), ainda que estes damente Nanne Pietersz., Harmen Starre, Gerrit Si-
cachimbos estejam provavelmente ligados a uma monsz. Sandijck, Jan Cornelisz. Sorg, Pieter Thoen,
lenda de Sir Walter Raleigh que terá sido devorado Arij Jacobsz. Danens, Jacob Arijsz. Danens, Cornelis
por um crocodilo dado o excesso de tabaco consu- van Leeuwen, Lijsbeth Geus, Hendrick Bos, Hendrik
mido (Hissa & Lima, 2017, p. 258). Os cachimbos van der Draaij ou Hendrik de Nijs –proporcionando
de Jonas eram fabricados em Amsterdão, Gouda e também uma evidência de contactos com a família
Groningen, mas também noutros territórios euro- de comerciantes de tabaco Van de Velde, provenien-
peus como os atualmente ocupados pela Alemanha te de Amesterdão.
e e pela Dinamarca. Os mais antigos apresentam a
inscrição IONAS ANNO 1638 e, após os meados do 6. Jonas Koppen [Em linha]. Disponível em: https://www.
século, estes provêm maioritariamente de Gouda claypipes.nl/17e-eeuw/jonas/ [consult. 28/05/2023].
1474
tecentista (Fig. 4/16), duas são produções inglesas succede nas romarias [durante as festas de Nossa Se-
de entre c. 1680 e 1710 e c. 1690 e 1720 (Fig. 3/2 e 5, nhora da Tróia]” (Azevedo, 1898, p. 22) como suge-
respetivamente), para além de outra cuja produção re a iconografia do final do século XVIII e a maior
e cronologia não foi possível determinar (Fig. 5/22). concentração de cachimbos no entorno da área da
Nas realidades estratigráficas subsequentes, embo- provável hospedaria. Não obstante, os resultados
ra com fragmentos muito rolados, alguns elementos sugeridos requerem uma articulação com o restante
permitiram a identificação de testemunhos relevan- espólio exumado, o qual poderá comprometer ou in-
tes para a avaliação da sua utilização, como os dois tensificar alguns dos resultados apresentados.
fragmentos de haste proximal registados (Fig. 5/23 Neste âmbito, outros elementos transmitem o con-
e 25), os quais poderiam constituir um indício de tacto com a comunidade marítima do norte da Eu-
venda destes objetos pela falta de indícios de utili- ropa, como a frequência de lascas de sílex negro,
zação, no entanto parecem também associar-se ao resultado do deslastre de navios estrangeiros, dan-
deslastre de navios como a haste holandesa com do origem à contenda do “Paleolítico de Tróia” (Fer-
decoração seiscentista (Fig. 4/19). Adicionalmen- reira, 1956; 1967). Porém, também o sílex se pode
te, surgem também vários exemplares com evidên- relacionar com os cachimbos estudados, uma vez
cia de exposição direta ao fogo e um com marca de que esta matéria-prima era amplamente utilizada na
pressão dentária evidente (Fig. 5/24). Reconhece-se produção de fogo, portanto, indispensável aos adep-
assim um rácio de 0,14 cachimbos por m2 na Área 7 tos de cachimbar (Cessford, 2001, p. 91), como do-
ou, considerando apenas a área da Sondagem 1, um cumentado no século passado em território nacional
rácio de 0,28 cachimbos por m2, correspondendo (Moniz, 1963, pp. 136, 139).
este ao valor máximo registado no sítio. Por outro lado, ainda que os cachimbos da escavação
No geral, entre os 772 m2 intervencionados, os 18 de 2021 estejam no geral muito fragmentados e se
NMI de cachimbos traduzem-se assim num rácio de reportem muitas vezes a níveis de aterro, estes com-
0,022 cachimbos por m2, valor ligeiramente superior põem um ilustrativo conjunto de entre os meados do
aos contextos lisboetas do Beco das Barrelas (0,021/ século XVII e a primeira metade do século XVIII, al-
m2, Oliveira, 2012) e do Palácio dos Marques de Ma- cançando maior frequência entre 1700 e 1710 (Fig.
rialva (0,019/m2, Calado et al., 2013). Não obstante, 6). Este facto pode estar relacionado com a ordem
o presente conjunto revela uma utilização exaus- municipal de Setúbal para o deslastre nesta área, a
tiva e revolvimento dos elementos fumatórios sem partir de 1701, a perda progressiva da importância
testemunhos evidentes de se tratar de “mercadoria da "roda do sal" de Setúbal a que se assiste entre os
em trânsito”, como acontece noutros locais (Silva & finais do século XVIII a meados do século XIX (Amo-
Teixeira, 2022, p. 132). rim, 2008, p. 164) e/ou uma acentuada afetação
Por outro lado, a concentração de cachimbos no posterior, particularmente com o terramoto de 1755
eixo de implantação do acesso à possível hospedaria - com efeitos devastadores nesta área (Rebêlo et al.,
ou estalagem, depositados sucessivamente (na Área 2013), registando-se poucos cachimbos alusivos à dé-
5), e alusivos a produções já identificadas noutros es- cada de 1750 e nenhum nitidamente posterior a esta.
paços portugueses, permite o aumento de questões. Adicionalmente, esta coleção proporciona uma am-
Seriam todos provenientes do deslastre de navios pliação do corpus morfológico e decorativo destes
holandeses e ingleses? Poderiam alguns destes per- objetos a nível nacional. Ainda assim, subsiste o es-
tencer a estrangeiros ocasionalmente em visita de- casso reconhecimento internacional da realidade
vota à Capela de Nossa Senhora de Tróia? Estariam portuguesa nesta temática.
os cachimbos já disponíveis em determinados espa- Finalmente, se anteriormente aos trabalhos de 2021
ços comerciais das grandes vilas e cidades portuá- as evidências cronologicamente mais recentes se
rias portuguesas e seriam razoavelmente utilizados restringiam a “lixos modernos” (Magalhães, 2021, p.
pela comunidade piscatória? 81), os presentes vestígios da Tróia fumegante trou-
xeram novas integrações sociais, económicas, cultu-
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS rais e mais humanas para o sítio arqueológico entre
os séculos XVII e XVIII. Deste modo, para além do
Possivelmente os cachimbos podiam apenas acom- desenvolvimento das características morfológicas
panhar “o vinho correndo a jorros, como ainda hoje e descrição dos elementos singulares dos cachim-
1476
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Figura 1 – Localização das áreas intervencionadas no sítio arqueológico de Tróia em 2021. A: Estrada de acesso ao sítio arqueo-
lógico (Área 11), a cor-de-rosa (Google Earth, 2023); B: Distribuição das áreas de intervenção numeradas de 1 a 10, delimitadas
a preto, e das áreas escavas, a azul (base: ortofoto – THEIA, 2021). © THEIA.
1478
20 Haste mesial decorada de cachimbo de Dec. barroca (cachimbo Países Baixos, c.
5 1 [36]
(24414) caulino de Jonas) 1630-1680
21 Haste mesial de cachimbo de cerâmica Lisboa, Portugal, c.
5 1 [36] Superfície brunida
(24403) vermelha (Munsell: 10R 7/14) 1625-1700
22 Haste distal com arranque de fornilho Norte da Europa,
7 1 [13] –
(22739) de cachimbo de caulino séculos XVII-XVIII
23 Norte da Europa,
7 1 [19] Haste proximal de cachimbo de caulino –
(22773) séculos XVII-XVIII
Marca de utilização
24 Norte da Europa,
7 1 [35] Haste mesial de cachimbo de caulino (desgaste por pressão
(22778) séculos XVII-XVIII
dentária)
25 Norte da Europa,
7 1 [19] Haste proximal de cachimbo de caulino –
(22777) séculos XVII-XVIII
Figura 2 – Tabela de inventário dos cachimbos cerâmicos ilustrados. © Miguel Martins de Sousa.
1480
Figura 5 – Fragmentos de hastes destacáveis. © Miguel Martins de Sousa.
1482
UM COPO PARA MUITAS GARRAFAS.
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE UM
CONJUNTO DE VIDROS MODERNOS
E CONTEMPORÂNEOS ENCONTRADOS
NA PRAIA DA ALBURRICA (BARREIRO)
Carlos Boavida1; António González2
RESUMO
A praia da Alburrica integra um conjunto de pequenas enseadas constituídas por camadas de argilas protegi-
das por recife formado por ostras. Aqui existiram marinhas de sal em Época Romana, que foram reutilizadas
na Idade Média. Estas enseadas foram usadas depois como caldeiras para moinhos de maré, dos quais ainda
subsistem vestígios.
Nas últimas décadas, a ondulação provocada pela passagem dos catamarãs levou à erosão do recife e à formação
de uma extensa duna, dando origem à praia. Tal facto levou igualmente ao desgaste das argilas ali existentes,
trazendo para o areal fragmentos cerâmicos e líticos de várias cronologias, arrastados pelas marés, provenientes
de descartes ou naufrágios.
É objectivo deste trabalho dar a conhecer fragmentos de peças de vidro que ali foram recolhidos.
Palavras-chave: Vidros; Praia da Alburrica; Recife de ostras.
ABSTRACT
Alburrica Beach includes a set of small creeks formed by layers of clay protected by an oyster’s reef. Here there
were salt pans in Roman times, which were reused in the Middle Ages. These creeks were later used as lagoons
for tide mills of which some traces remain.
In recent decades, the swell caused by the passage of catamarans led to erosion of the reef and the formation of
an extensive dune, giving rise to the beach. This fact also led to the erosion of the existing clays, bringing to the
sand ceramic and lithic fragments of various chronologies, dragged by the tides, from discards or shipwrecks.
The objective of this work is to make known fragments of glass pieces that were also collected there.
Keywords: Glass objects; Alburrica beach; Oysters’ reef.
1. ALGUNS DADOS HISTÓRICOS ainda em Época Romana (González, Batalha & Car-
doso, 2021) (fig. 1B). Durante a Antiguidade Tardia
Situada numa pequena península entre a foz da ribei- a produção deste condimento terá diminuído subs-
ra de Coina e o rio Tejo, a praia da Alburrica integra tancialmente, sendo significativa novamente quan-
uma série de pequenas enseadas onde, aproveitan- do este voltou a ser essencial para a conservação de
do as espessas camadas de argilas de aluvião locais, alimentos no âmbito do comércio marítimo, como
protegidas por um recife formado por ostras, foram dão conta alguns documentos do século XIV (Matias,
construídas marinhas de sal, ao que tudo indica, 1997; Micael, 2011).
1. IAP/UNL – Instituto de Arqueologia e Paleciências da Universidade Nova de Lisboa / AAP – Associação dos Arqueólogos Portugueses /
[email protected]
1484
na área da Grande Lisboa, de onde têm sido dados -nas rapidamente. Com as movimentações provoca-
à estampa diversos exemplares (Ferreira, 1997; Fer- das pelos actuais barcos de carreira de Lisboa para o
reira & Fernandes, 2004; Medici, 2005; 2011; Boa- Barreiro, Montijo e Seixal tudo mudou e a ondulação
vida, 2017; Coutinho et al., 2017; Boavida & Medici, que provocam, utilizada já por amantes do surf, pro-
2018; Rocha, 2019), incluindo o local da antiga Real duz uma erosão que arrancou na praia de Alburrica
Fábrica de Vidros de Coina (Custódio, 2002). o recife de ostras que protegia os níveis antigos de
Foram recuperados exemplares também em outros argila e areias com fragmentos de ânforas e uma té-
locais do território nacional (Ferreira, 2012). gula, para além de imensos seixos, peças paleolíticas
As duas peças transparentes que integram este con- e um machado de anfibolito.
junto não mostram quaisquer evidências do pontel, Antes desses barcos atracarem no Barreiro, o nível
mas certamente aquele foi usado na sua execução, da superfície mostrava peças de cerâmica moder-
sendo depois o fundo regularizado. Trata-se de um nas, como faianças e porcelana chinesa, para além
fundo de garrafa ou frasco de formato cilíndrico e de vidros, pedaços de hulha e até ossos aparente-
com fundo quase plano (15) e de um fundo de copo mente humanos.
facetado (16). O vidro empregue em ambas parece Recolhidas na praia, desconhece-se qual seria o con-
ser de boa qualidade, pois não mostra quaisquer bo- texto original onde as garrafas aqui abordadas foram
lhas de ar ou inclusões. Sendo uma peça facetada, o consumidas, no entanto, tal não impossibilita a aná-
copo foi obviamente soprado em molde auxiliar. lise de outras questões.
Podemos concluir que a sua cronologia, tendo em
3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES conta que a produção deste tipo de garrafas de vidro
verde-escuro quase negro, sejam elas cilíndricas ou
Barcos de variadas dimensões transportaram cargas quadrangulares, principiou em Portugal nos inícios
de todos os tipos, incluindo lastro (seixos ou blocos do século XVIII, que estas, sendo de fabrico nacio-
informes de pedra) de inúmeras paragens e no retor- nal, não poderão ser anteriores a essa data. Se even-
no das viagens esses lastros construíram os quilóme- tualmente resultarem de trocas comerciais com ou-
tros de muros e muretas das salinas e dos moinhos tros países, não podemos ignorar que estas garrafas
de maré no concelho da Moita e Barreiro, onde a eram utilizadas na Inglaterra, assim como em outros
pedra local está quase ausente. Até mesmo as casas, países europeus, desde meados da centúria anterior.
os moinhos de vento e de maré estão cheios de pe- Por outro lado, visto que a produção destas se man-
dras de litologias variadas, basaltos, xistos, calcários teve ao longo dos dois séculos seguintes, até aos iní-
fossilíferos miocénicos, arenitos, etc. Tais aspectos cios do século XX, a sua cronologia nunca poderá ser
reflectem toda uma vida secular ligada aos barcos, posterior a esse limite.
à salicultura, à construção naval e à moagem que se Se considerarmos a provável origem portuguesa
foram desenvolvendo na grande baía interior onde destes exemplares, o facto de terem sido recolhidas
se encontram o Barreiro, o Montijo, a Moita, Alhos na foz na ribeira de Coina poderá eventualmente in-
Vedros e outras povoações. dicar que as mesmas terão sido produzidas na Real
Mas os “homens do mar” fazem a sua vida a bordo Fábrica de Vidros de Coina, cuja laboração teve lu-
e os objectos de vidro e cerâmica permitem cozinhar gar entre 1719-1747, apontando a cronologia destas
e guardar líquidos e comida a bordo. Evidentemente garrafas para a primeira metade do século XVIII.
que fogareiros, tachos, bilhas, cantis, garrafas e ou- A questão que fica em aberto, e que certamente não
tros objectos que se iam partindo a bordo, iam jun- será nunca possível responder, é se estas peças vie-
car os fundos lodosos e arenosos onde se juntavam a ram parar a este local em resultado do seu descarte
peças paleolíticas e machados de anfibolito como na por se terem partido durante o seu transporte, como
praia de Alburrica e na Ponta da Passadeira na Baixa referido, ou se terão sido para aqui arrastadas pelas
da Banheira, Moita. correntes e para aqui arrojadas na sequência de al-
É importante referir que as subidas e descidas das gum naufrágio.
marés neste golfo não produzem deslocação dos ob-
jectos porque são subidas lentas. Nas zonas atingi-
das pela corrente do Tejo a deslocação das peças é
muito rápida e as areias em movimento escondem-
Casimiro pelos esclarecimentos sobre diversos as- MATIAS, Joel Silva Ferreira (1997) – “As marinhas de sal do
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1486
Figura 1 – A. Vista geral do Estuário do Tejo com indicação dos locais da margem Sul onde têm sido recolhidos fragmentos de
garrafas (a vermelho a Praia da Alburrica); B. Vista geral da área da Praia da Alburrica, vendo-se as caldeiras dos antigos moi-
nhos de maré e as dunas que se têm formado em seu redor. Imagens Google Earth.
1488
Figura 3 – Vistas gerais da acumulação de cascas de ostras na zona da Praia da Alburrica. Fotos António González.
1490
Figura 5 – Vidros recolhidas na Praia da Alburrica. Garrafas cilíndricas. Desenhos Carlos Boavida.
1492
Figura 7 – Alguns dos vidros recolhidas na Praia da Alburrica. Fotos Carlos Boavida.
1494
A GRAN PRINCIPESSA DI TOSCANA,
UM NAUFRÁGIO DO SÉCULO XVII
NO CABO RASO (CASCAIS)
Sofia Simões Pereira1, Francisco Mendes2, Marco Freitas3
RESUMO
Informação histórica sobre acidentes marítimos no Cabo Raso destaca a perda do navio florentino a Gran Prin-
cipessa di Toscana, que ali naufragou em 1696, proveniente de Itália. Os vestígios deste navio foram identificados
na década de 1960, quando um conjunto de canhões de bronze foi descoberto por um mergulhador amador.
Nos anos que se seguiram o sítio arqueológico foi alvo de várias pilhagens. Posteriormente, na década de 1980
foram ali realizados trabalhos pioneiros de registo subaquático, promovidos pelo Museu do Mar de Cascais.
Este apresenta uma análise aos materiais recuperados no sítio. A cultura material é constituída maioritaria-
mente por peças de artilharia. A nível da vida a bordo destaca-se materiais de uso quotidiano do navio, como
instrumentos de navegação.
Palavras-chave: Arqueologia Marítima; Artilharia; Florença; Século XVII.
ABSTRACT
Historical information about maritime accidents at Cabo Raso highlights the loss of the Florentine ship the
Gran Principessa di Toscana, which sank there in 1696 from Italy. The remains of this ship were identified in the
1960s, when a set of bronze cannons was discovered by an amateur diver. In the years that followed, the ar-
chaeological site was the target of several lootings. Later, in the 1980s, pioneering underwater recording works
were carried out there, promoted by the Museu do Mar de Cascais.
This paper presents an analysis of the materials recovered at the site. The material culture consists mainly of
pieces of artillery. In terms of life on board, the most important materials are those used on a daily basis, such
as navigational instruments.
Keywords: Maritime Archaeology; Artillery; Florence; 17th century.
1. Mestranda em Arqueologia, Departamento de História, NOVA FCSH. Bolseira de Investigação, Centro de Humanidades (CHAM,
NOVA-FCSH) / [email protected]
2. Mestrando em Arqueologia, Departamento de História, NOVA FCSH. Bolseiro de Investigação, Centro de Humanidades (CHAM,
NOVA FCSH) / Investigador do Centro de Estudos de Arqueologia Moderna e Contemporânea (CEAM) / [email protected]
3. Mestrando em Arqueologia, Departamento de História, NOVA FCSH. Bolseiro de Investigação, Centro de Humanidades (CHAM,
NOVA FCSH) / [email protected]
1496
nada por Enseada Entre os Cabos por ser limitada Uma das colubrinas, tem um comprimento total de 2
pelo Cabo da Roca, a norte, e pelo Cabo Espichel, a m, e foi fundida em Florença. Apresenta duas inscri-
sul, e cortada pelo Rio Tejo (Freire, Bettencourt & ções latinas, das quais constam o nome do fundidor,
Fialho, 2012, p. 1). o nome do Príncipe e o ano de fundição. A primei-
Os dados disponíveis sobre o local do naufrágio são ra inscrição, gravada por cima do segundo reforço
escassos. Em 1993, João Pedro Cardoso efetuou o numa cartela com uma cruz de oito pontas, é FER
primeiro levantamento dos canhões. Em 2013, o Pro- (DINANDO) II HERTR (VRIAE) // MAG (NO) DVCE
jeto da Carta Arqueológica Subaquática de Cascais // MDCXXXXVII, correspondendo a: Fernando II,
(ProCASC) realizou um novo levantamento no local. quinto grão-duque da Etrúria, 1647. A segunda ins-
Os trabalhos arqueológicos foram realizados em for- crição aparece na cinta do primeiro reforço da colu-
ma de esboço, centrando-se na recolha de medidas, brina, do lado direito da orelha: OP (VS) IO (AN) NIS
orientação e profundidades dos canhões. Os dois MARIANE // CENNII FLOREN (TI) NI. Traduzido,
documentos permitem uma análise preliminar do lê-se: Obra de João Maria Cenni, florentino (fundi-
sítio arqueológico. O sítio do Cabo Raso apresenta dor) (Figura 2). A segunda colubrina foi recuperada
uma orientação Oeste-Este, sendo constituído por em 1980 e é semelhante à primeira, mas encontra-se
um conjunto de canhões e uma pequena concentra- erodida, o que dificulta a leitura da mesma (Ataná-
ção com um núcleo de ferro não identificado. A to- sio, 1981/1982, p. 14; Cardoso, 2013, p. 23).
pografia do sítio é variável. O outro tipo de artilharia encontrado no sítio ar-
Os artefactos encontram-se dispersos entre duas de- queológico são os canhões de retrocarga, no total 17,
pressões no fundo rochoso, numa longa e larga reen- dos quais 11 se encontram em coleções particulares.
trância da costa, o que lhe confere um especto de Estas armas de pequena dimensão, com um compri-
“baía”. É também possível observar a hidrodinâmica mento total de 1,06 m e de pequeno calibre, são car-
da paisagem, que se assemelha a um local de centri- regadas com câmaras em forma de caneca, nas quais
fugação. O primeiro caneiro virado a Oeste tem uma a pólvora e o projétil tinham sido previamente car-
profundidade de cerca de 5 metros, conservando a regados (Alves, 1994, p. 132; Ridella & alii, 2016, p.
maior parte dos canhões in situ, e é interrompido a 186). Numa destas armas, nota-se a marca de Ames-
meio por um afloramento rochoso. A norte da eleva- terdão, com os três XXX, que serve como prova de
ção existe uma laje inclinada que vai dos 5,7 m aos qualidade (Figura 3).
2,0 m de profundidade. Esta dá acesso ao segundo Um canhão de retrocarga e as respetivas câmaras
caneiro, que não apresenta grande sedimentação, semelhantes aos do Cabo Raso (o canhão também
levando a uma menor retenção de artefactos. Fora apresenta a marca de Amesterdão) foi recuperado
da “baía”, o cenário é de forte sedimentação (Freire do naufrágio do Slot ter Hooge, perdido em Porto San-
& Fialho, 2013b, pp. 30–31). No total, estavam in situ to, na Ilha da Madeira, em 1724 (Esmeraldo, 2022).
16 canhões, 15 de ferro e 1 de bronze (mais dois ca- Ainda relacionados com armamento recuperado no
nhões do que no registo de 1993). local, encontram-se dois canos de bacamarte (um
deles com a marca de Amesterdão) e cinco pelouros
3. OS ACHADOS de pedra (bala redonda, uma grande e quatro de pe-
queno calibre), meia balas de mosquete e várias ba-
Os artefactos recuperados do Cabo Raso são diver- las de chumbo.
sos, incluindo uma coleção de artilharia em bronze, Para além da artilharia, foram também recuperados
que constitui uma importante fonte de informação outros materiais do quotidiano do navio, como uma
sobre o naufrágio, e que neste caso foi essencial torneira de latão, dois sinos de bronze, dois castiçais
para a identificação do navio. A coleção é composta de cobre e seis pratos de estanho. Os pratos confir-
por 19 peças classificadas em dois grupos distintos: mam a datação do naufrágio por apresentarem o
as Colubrinas e os Canhões de Retrocarga (Alves, tipo de bordo largo (liso e sem decoração). Três de-
1994, p. 132). les apresentam marcas de fabrico diferentes, que
A Colubrina é um tipo de canhão com um cano re- ainda não foram identificadas. Foi também recupe-
lativamente longo em relação ao calibre da peça e, rada uma moldura em bronze, decorada em relevo
consequentemente, tem um maior alcance. Estas pe- com motivos fitomórficos e duas figuras de anjos
ças são carregadas pela boca (Salgado 2002-2006). (Figura 4).
1498
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Figura 2 – Modelo 3D da Colubrina 0032.04.01. Autor: Figura 3 – Modelo 3D do Canhão de Retrocarga 0032.04.03.
CHAM, 2023. Autor: CHAM, 2023.
1500
Figura 4 – Artefactos provenientes do sítio do Cabo Raso: sonda 0032.01.07, moldura 0032.08.01, e sino 0032.01.06. Autor:
Sofia Pereira, 2022.
1502
CONDIÇÕES AMBIENTAIS E CONTEXTO
ARQUEOLÓGICO NA MARGEM ESTUARINA
DE LISBOA: DADOS PRELIMINARES DA
SONDAGEM ESSENTIA (AV. 24 DE JULHO |
RUA DOM LUÍS I)
Margarida Silva1, Ana Maria Costa2, Maria da Conceição Freitas3, José Bettencourt4, Inês Mendes da Silva5, Tiago Nunes6,
Mónica Ponce7, Jacinta Bugalhão8
RESUMO
O projeto “Lisbon Stories” tem como objetivo o estudo da evolução paleoambiental da margem norte do estuário
do Tejo, para compreender a sua evolução natural, a contribuição antrópica e como foi utilizada em diferentes
períodos históricos, desde a Idade do Ferro até aos nossos dias. Neste trabalho, apresentam-se os resultados das
análises realizadas aos sedimentos de sete sondagens recolhidas durante uma escavação arqueológica realiza-
da em Lisboa – Avenida 24 de Julho, Boqueirão dos Ferreiros, Rua D. Luís I – Boavista 5 e Boavista 4 (Essentia)
(CNS 41345), que abrangem pelo menos os períodos romano, moderno e contemporâneo. Os dados prelimina-
res apontam para uma sedimentação em condições subtidais a intertidais baixos, de baixa energia, similares às
condições identificadas noutras sondagens estudadas nesta zona.
Palavras-chave: Geoarqueologia; Arqueologia Urbana; Evolução paleoambiental; Estuário do Tejo; Lisboa.
ABSTRACT
The Lisbon Stories project studies the paleoenvironmental evolution of the northern margin of the Tagus estu-
ary, to understand the natural evolution of this margin, the anthropic influence, and how it was used in different
chronological periods, since the Iron Age to present day. This paper discusses the results of the analyses per-
formed in sediments from 7 surveys gathered during an archaeological excavation located in Lisboa – Avenida
24 de Julho, Boqueirão dos Ferreiros, Rua D. Luís I – Boavista 5 e Boavista 4 (Essentia) (CNS 41345), that com-
prise at least the roman, modern and contemporary periods. Preliminary data points to sedimentation subtidal
to low intertidal in low energy environment, similar to the results already obtained in the area.
Keywords: Geoarchaeology; Urban Archaeology; Paleoenvironmental Evolution; Tagus Estuary; Lisbon.
1. Laboratório de Arqueociências (LARC)-DGPC; Departamento de Geologia, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa; IEM
– Instituto de Estudos Medievais; Calçada do Mirante à Ajuda, nº 10ª, 1300-418 Lisboa, Portugal / [email protected]
2. Laboratório de Arqueociências (LARC)-DGPC; BIOPOLIS-Cibio; IDL – Instituto Dom Luiz; IIIPC (Univ. Cantábria – Gobierno de
Cantábria/Santander), Calçada do Mirante à Ajuda, nº 10ª, 1300-418 Lisboa, Portugal / [email protected]
3. IDL – Instituto Dom Luiz; Departamento de Geologia, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, Campo Grande, 1749-016
Lisboa, Portugal / [email protected]
4. CHAM – Centro de Humanidades, NOVA FSCH, Av. De Berna 26, 1069-061 Lisboa, Portugal / [email protected]
5. ERA Arqueologia SA, Centro de História da Universidade de Lisboa Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa, Portugal /
[email protected]
6. ERA Arqueologia SA, Calçada de Santa Catarina 9C, 1495-705 Cruz Quebrada-Dafundo, Portugal / [email protected]
7. ERA Arqueologia SA, Calçada de Santa Catarina 9C, 1495-705 Cruz Quebrada-Dafundo, Portugal / [email protected]
8. Direção-Geral do Património Cultural (DGPC); UNIARQ – Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa; Palácio Nacional da
Ajuda, 1349-021 Lisboa, Portugal / [email protected]
1504
à praia que se desenvolve na baía da Boavista (Parrei- companhias de comércio portuguesas, a Compa-
ra e Macedo, 2013, p. 749; Quaresma, 2017, p. 1310). nhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778) e
O espólio apresenta uma concentração e disposição a Companhia de Pernambuco e Paraíba (1759-1777)
aleatórias, pelo que a deposição destes artefactos destinadas ao comércio Atlântico (Sarrazola, Bet-
deverá ter ocorrido de forma lenta, tratando-se de tencourt e Teixeira, 2014, p. 114; Bettencourt et al.,
uma zona de atividades navais de baixa profundida- 2018, p. 156; 2021, p. 438). O Boavista 5, navio identi-
de, onde os materiais seriam rejeitados e/ou deposi- ficado na obra em estudo, juntamente com os navios
tados durante operações portuárias ou arrastados da da obra contígua (Boavista 1 e Boavista 2, na Sede
zona de desembarcadouro (Fonseca, Bettencourt e Corporativa da EDP, CNS 36613), datados entre os
Quilhó, 2013, p. 1185; Costa et al., 2022, p. 26; Nunes séculos XVII-XVIII, são importantes marcos desta
et al., 2022, pp. 49-51). fase, uma vez que vários dados indicam que poderão
Todavia, nos séculos seguintes parece haver um hia- ter navegado para e pelos trópicos. Para além dos
tus em termos de vestígios arqueológicos nesta zona, Boavista 1 e 2 possuírem sobrecostado, uma peça
congruente com os indícios de regressão urbana a muito utilizada para navegação nos mares quentes
partir do século VI e até à baixa Idade Média, inicial- do Sul, os materiais arqueológicos associados a es-
mente para a colina do castelo e atual Baixa e, pos- tas embarcações (sementes de cacau, cocos com e
teriormente, para o perímetro da Cerca Fernandina sem decoração, contas de cornalina, entre outros)
(Costa et al., 2017, p. 766). Esta tendência prolonga- são exógenos, associados a climas tropicais ou a co-
-se até ao século XVI, altura em que se documenta mércio ultramarino (Bettencourt et al., 2018, p. 151;
uma maior intensificação do tráfego marítimo, com 2021, p. 438; Lopes, 2022, p. 317; Mendes da Silva,
a instalação de atividades náuticas nesta área (Men- 2022, p. 44, 45). Juntamente com os dados arqueo-
des da Silva, 2022, p. 42). A baía da Boavista formaria lógicos, também as fontes escritas e iconográficas
então uma zona de praia, marcada por um pequeno (Figura 2) nos indicam o forte caráter cosmopolita
tributário que iria desaguar no estuário ainda duran- de Lisboa, com a representação da chegada e parti-
te o século XVI (Costa et al., 2016, p. 96). da constante de embarcações variadas ao porto da
No século XVI, a praia da Boavista passa a ser re- Boavista, não só nacionais, mas também vindas de
servada para a reparação de navios, através de uma diversas partes da Europa e ultramar (Bettencourt
provisão régia, sendo que no século seguinte é cria- et al., 2018, p. 156; 2021, p. 438). O Boavista 4, uma
da a Junta do Comércio do Brasil, que ficaria sediada embarcação identificada sobre o Boavista 5 (CNS
nas suas imediações (Mendes da Silva, 2022, p. 42). 41345), separado deste por deposições aluvionares,
A zona passa então a funcionar como um importan- que datará de finais do século XVIII a inícios do sé-
te centro náutico destinado à construção e reparação culo XIX, é ainda uma representação a ter em conta
de navios dedicados ao comércio com o Brasil, onde desta fase altamente cosmopolita da cidade, embo-
foram estabelecidas várias infraestruturas relacio- ra já num momento de grande mudança: o início da
nadas com as práticas náuticas e comerciais (arma- industrialização da frente ribeirinha (Nunes et al.,
zéns, estaleiros, entre outras estruturas relacionadas 2022, p. 24).
com as atividades marítimas). Ao longo da praia Durante a intensa utilização da praia como espaço
também a Junta do Comércio construiu edificados portuário, ocorreram constantes despejos de lixo ur-
identificados em registos arqueológicos para auxi- bano na margem, o que acabou por levar à deteriora-
liar as atividades náuticas que aqui decorriam, como ção da qualidade ambiental da orla costeira (Nunes
seria o caso da grade de maré de 315 m2 identificada et al., 2022, p. 24; Macedo, 2017, p. 1917). Além disso,
na Praça D. Luís I (CNS 32983) (Sarrazola, Betten- devido à industrialização da região, foram construí-
court e Teixeira, 2014, p. 112). O complexo portuá- dos sucessivos aterros e, finalmente o grande Aterro
rio, agora ponto de paragem e passagem obrigatória, da Boavista, em meados do século XIX (Costa et al.,
detinha tanta importância que, no século XVII, teve 2021, p. 619), com o objetivo de ampliar a área útil
de ser implementado um sistema para a sua defesa, e regularizar a zona ribeirinha de Lisboa. Esta inter-
que se traduziu na construção do Forte de São Paulo venção urbana procurou também solucionar os pro-
e do Baluarte da Porta do Pó (CNS 32983) (Ferreira, blemas sanitários e eliminar focos de epidemias pro-
2015, p. 88; Mendes da Silva, 2022, p. 44). vocados pela insalubridade dos depósitos lodosos.
No século XVIII, esta praia tornou-se sede de outras Consequentemente, a área foi sendo artificializada
1506
foram pesadas e posteriormente submersas em água apresenta uma cronologia correlacionada com a
para se proceder à determinação da percentagem de ocupação da Idade do Ferro em Lisboa.
material grosseiro (> 63 µm; FG) e fino (< 63 µm; FF) Esta unidade não apresenta qualquer elemento an-
através da separação por via húmida, recorrendo a trópico visível.
um crivo de 63 µm. Os sedimentos foram classifica-
dos texturalmente com base na percentagem de ma- 4.2. Unidade 2
terial superior a 63 µm, segundo Flemming (2000). A unidade 2 (U2; Quadro 4) corresponde à restan-
A %CaCO3 foi determinada pelo método gasométri- te parte da sondagem Essentia 3 e à totalidade das
co, utilizando um calcímetro Eijkelkamp, segundo o sondagens Essentia 1470 e 1470.2, entre as profun-
protocolo estabelecido pelo fabricante. A %MO foi didades -8,5 m e -6,56 m NMM. Nesta unidade, os
determinada através do método da calcinação (Loss sedimentos são essencialmente constituídos por va-
On Ignition) utilizando o método adaptado de Kris- sas ou vasas ligeiramente arenosas, com uma varia-
tensen (1990). Para este parâmetro, o sedimento foi ção pouco acentuada de FG (1,6% = -6,66 m NMM;
classificado segundo Costa (1991). Para estabelecer 10,08% = -7,76 m NMM). Os valores de CaCO3 são
uma cronologia, foi selecionada uma amostra da inferiores aos da U1 e não apresentam grandes os-
base da sequência sedimentar para datação por ra- cilações (2,96% = -7,68 m NMM; 8,8% = -7,31 m
diocarbono. A datação foi realizada no laboratório NMM). Relativamente à %MO, todas as amostras
National André E. Lalonde AMS Facility | University apresentam níveis altos, sendo o valor médio 8,7%.
of Ottawa. A data convencional de 14C foi calibrada Em relação à SM, esta permanece relativamente
utilizando a curva de calibração IntCal20 (REIMER baixa, com variações entre os 2,4x10-5 SI aos -7,24 m
et al., 2020) e o software OxCal 4.4 (©Christopher NMM e os 29,4x10-5 SI aos -7,76 m NMM. Não foram
Bronk Ramsey). realizadas medições de SM para a Essentia 1470.2.
1508
progressivamente novo protagonismo situando-se, dos de outras sondagens recolhidas nas imediações e
até ao século XIX, no centro da atividade portuária analisadas no âmbito do projeto “Lisbon Stories”.
e comercial com o Atlântico, onde se fixaram com- As análises realizadas apontam para condições es-
panhias comerciais encarregues de reparar navios e tuarinas, em ambiente subtidal (base) a intertidal
de proceder ao transbordo de bens variados. O na- baixo (topo) de baixa energia. Para o topo, a taxa de
vio Boavista 5, entre as cotas -2 e -3 m NMM, acaba sedimentação parece aumentar, como resultado do
por selar os depósitos das unidades anteriores, si- uso antrópico intensivo da margem e do despejo de
tuando pelo menos a subunidade 3c em momentos lixos urbanos na praia da Boavista.
imediatamente anteriores ao seu abandono. Nesta Novas datações, a caracterização dos elementos
unidade nota-se uma significativa intensificação presentes na fração grosseira, e a análise isotópica
do uso da margem, com a ocorrência no sedimen- dos materiais orgânicos (em processamento), per-
to de sementes variadas, fragmentos de cerâmica e mitirão solidificar o modelo evolutivo proposto e
um fragmento de madeira com ca. 5 cm. O teor de contribuir para a caracterização deste espaço de in-
MO aumenta de forma gradual, culminando em ca. terface entre a terra e o estuário, utilizado em dife-
15%, provavelmente como resultado do aumento rentes períodos cronológicos.
de despejos de lixos urbanos documentados na re-
gião (Nunes et al., 2022, p. 24; Macedo et al., 2017, AGRADECIMENTOS
p. 1917). Também o aumento da FG a partir da U3
é coerente com os resultados obtidos em sondagens Este trabalho foi realizado ao abrigo do programa
recolhidas em obras contíguas (Sede da EDP, CNS extraordinário de estágios da administração dire-
36613; sondagem EDP1) onde o aumento de MO e ta e indireta do Estado “EstágiAP XXI”, na Divisão
a ocorrência de material antrópico documentam um do Património Arqueológico e das Arqueociências,
uso mais intenso da zona, culminando na transição Laboratório de Arqueociências e Departamento de
para um ambiente intertidal, com formação de uma Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade
praia (Costa et al., 2016). de Lisboa. O trabalho da equipa de geoarqueologia
A U4 (-2,45 a -1,88 m NMM) que se encontra entre foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tec-
os navios Boavista 5 e Boavista 4, apresenta a bali- nologia (FCT) I.P./MCTES, através de fundos nacio-
za cronológica mais bem definida, entre os séculos nais (PIDDAC) – UIDB/50019/2020 – IDL.
XVII-XIX. É também a unidade que apresenta a Gostaríamos ainda de agradecer a colaboração de
maior quantidade de indícios da presença huma- Vera Lopes por todo o apoio prestado na análise la-
na. Estes dados parecem apontar para uma taxa de boratorial dos sedimentos.
sedimentação mais elevada em comparação com Agradecemos de igual forma à Embaixada de Fran-
momentos anteriores, derivado do uso intenso da ça pela oportunidade de fotografar a vista para a an-
região e dos despejos feitos diretamente ao rio, re- tiga Baía da Boavista.
sultando na diminuição da coluna de água no local
e facilitando a acumulação de sedimentos lodosos e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
com elevado teor de matéria orgânica. Estes depó-
BETTENCOURT, Alexandre; RAMOS, Laudemira, eds.
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Figura 1 – Localização da área de estudo. Ortofotomapa de Lisboa, com a localização da Baía da Boavista; a obra em estudo
(CNS 41345) a laranja; a proposta da linha de costa para o período romano (Costa et al., 2020) e localizações aproximadas das
evidências arqueológicas mencionadas no texto. Evidências de estruturas portuárias e peças náuticas (CNS 36630) (Macedo
et al., 2017); Boavista 5 e Boavista 4 (CNS 41345) (Nunes et al., 2022; Lopes, 2022; Mendes da Silva, 2022; Bettencourt et al., no
prelo); Forte e Cais de S. Paulo (Ferreira, 2015); Boavista 1 e Boavista 2 (CNS 36613) (Bettencourt et al., 2021; Lopes, 2022); Grade
de Maré (CNS 32983) (Sarrazola, Bettencourt e Teixeira, 2014); Evidências do Fundeadouro romano (CNS 32983) (Nunes et al.,
2022; Parreira e Macedo, 2013; Quaresma, 2017). Mapa de Lisboa, QGIS versão 3.30.1.
Figura 3 – Vista atual da Baía da Boavista, tirada do Palácio Marquês de Abrantes, atual Embaixada de França. Fotografia © José
Vicente | Agência Calipo | 2023.
1512
Figura 4 – Localização das sondagens de sedimentos recolhidas (círculos pretos) e das sondagens geotécnicas (círculos verme-
lhos) realizadas na obra da Essentia (CNS 41345). Mapa de Lisboa, QGIS versão 3.30.1.
Figura 5 – Representação esquemática e aproximada do perfil de escavação, da localização das várias sondagens recolhidas e
dos diferentes vestígios identificados (Boavista 5, Boavista 4 e os níveis de cronologia romana representados por linhas a trace-
jado). Adaptado de TEIXEIRA DUARTE, 2018.
1514
Coordenadas Cotas
Referências Sistema PT-TM06-ETRS89 (metros NMM)
X Y Topo Base
Essentia Período Moderno 1 -88417,117 -106207,675 -1,87 -2,44
Essentia Período Moderno 2 -88419,319 -106207,285 -1,89 -2,46
Essentia 1 -88413,669 -106208,403 -3,05 -3,41
Essentia 2 -88414,346 -106208,676 -3,29 -4,27
Essentia 1470 -88436,070 -106249,892 -6,55 -7,37
Essentia 1470.2 -88436,044 -106249,885 -6,94 -7,69
Essentia 3 -88435,464 -106250,808 -7,75 -8,95
Coordenadas Cota
Referências Sistema PT-TM06-ETRS89 (metros NMM)
X Y Topo Base
Sond. 1/ PZ1 -88405,830 -106175,586 3,44 -16,00
Sond. 2/ PZ2 -88409,560 -106198,088 3,44 -8,77
Sond. 3/ PZ3 -88413,759 -106222,727 3,38 -11,73
Sond. 4/ PZ4 -88420,871 -106250,745 3,06 -16,79
Quadro 3 – Datação por radiocarbono, convencional e calibrada da base da sondagem Essentia 3 (-8,98 m NMM). A calibração foi
realizada utilizando a curva de calibração IntCal20 (REIMER et al., 2020) e o software OxCal 4.4 (©Christopher Bronk Ramsey).
Quadro 4 – Valores máximos, mínimos e médios dos indicadores analisados (SM, %FG, %MO, %CaCO3) nas sondagens Essentia,
com identificação das unidades sedimentológicas estabelecidas.
RESUMO
Entre os séculos XV e XIX, mais de 12 milhões de pessoas foram escravizadas no continente africano e trans-
portadas, na sua maioria, para as Américas. As condições ambientais dos locais de origem e destino dessas
pessoas foram alteradas devido ao abandono de terras no interior africano, ao incremento da produção agrícola
nas regiões de destino, e ao desenvolvimento de economias baseadas na exploração de trabalho escravizado.
A sondagem Cacheu1, recolhida junto a um dos mais importantes portos do tráfico transatlântico entre os sécu-
los XVI e XIX, revelou quatro unidades sedimentológicas com características distintas que retratam a evolução
ambiental do estuário de Cacheu. A datação por 14C de uma amostra da base da sequência sedimentar deter-
minará a sua cronologia. Estes resultados, aliados ao estudo dos materiais orgânicos contidos no sedimento,
permitirão reconstruir a evolução das condições ambientais no estuário e compreender a sua relação com o
colonialismo e o tráfico de pessoas escravizadas.
Palavras-chave: Sedimentologia; Geoarqueologia; Mudanças Ambientais; Escravatura.
ABSTRACT
Between the 15th and 19th centuries, more than 12 million people were enslaved in the African continent, and
most of them were transported to the Americas. The environmental conditions of the places of origin and des-
tination of these individuals were impacted by the abandonment of lands, increased agricultural production at
the destination points, and the development of slavery-based economies. The Cacheu1 core was collected near
one of the main ports in the transatlantic slave trade and revealed four sedimentological units. A sample from
the core’s base will be dated through 14C to determine the deposition period. These results, added to the study
of organic materials contained in the sediment, will allow to build the evolution of environmental conditions in
the estuarine area and understand its relation with colonialism and the trade in enslaved people.
Keywords: Sedimentology; Geoarchaeology; Environmental Changes; Slavery.
1. UNIARQ – Centro de Arqueologia, Universidade de Lisboa / Departamento de Geologia (DG), Faculdade de Ciências, Universidade
de Lisboa, Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa, Portugal / [email protected]
2. LARC – Laboratório de Arqueociências, DGPC – Direção-Geral do Património Cultural, Calçada do Mirante à Ajuda, 10A, 1300-418
Lisboa, Portugal / BIOPOLIS and Cibio / IDL – Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.
3. IDL – Instituto Dom Luiz / Departamento de Geologia (DG), Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, Campo Grande,
Edifício C6, Piso 3, 1749-016 Lisboa, Portugal.
4. UNIARQ – Centro de Arqueologia, Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa, Portugal / Department
of Archaeology, Durham University, UK.
1518
vasosa, com algumas intercalações de vasa arenosa classificado segundo Baize (1988) relativamente ao
e vasa por vezes laminada (fig. 4). Foi identificada teor em CaCO3.
a presença de conchas e fragmentos de concha (es-
sencialmente bivalves e alguns gastrópodes), macro 4. RESULTADOS
restos vegetais e, para o topo, algumas raízes em po-
sição vertical. Com base na variação em profundidade dos indica-
dores analisados, foram definidas 5 unidades distin-
3.2. Preparação de amostras para ensaios tas na sondagem Cacheu1.
laboratoriais A Unidade 1 (entre 376,5 e 237 cm abaixo do NMM;
No laboratório, as amostras foram secas em estufa 428 e 286 cm de profundidade) possui uma extensão
a 60ºC (amostras arenosas) ou liofilizadas (amos- de 1,42m e é constituída por vasa pouco arenosa,
tras vasosas). Para as análises subsequentes, foram vasa arenosa, areia vasosa e areia pouco vasosa, com
selecionadas 77 amostras que foram desagregadas e a FG a decrescer progressivamente da base para o
homogeneizadas com recurso a almofariz de porce- topo da unidade (fig. 5). Os valores de suscetibilida-
lana e pilão de borracha, de forma a não danificar os de magnética são baixos, variando entre -3,1 e 5,7 x
grãos nem outros materiais frágeis existentes. Poste- 10-5 SI (tabela 2). A %MO apresenta valores médios,
riormente, a amostra homogeneizada foi quarteada variando entre 0,9 e 7,0%, aumentando progressiva-
para a realização de análise textural e determinação mente para o topo da unidade (fig. 5; tabela 2). O teor
do teor em matéria orgânica total (%MO) e teor em em CaCO3 é maioritariamente baixo, no entanto,
carbonato de cálcio (%CaCO3). existem anomalias com teor moderado (fig. 5; tabe-
la 2). Macroscopicamente podemos observar frag-
3.3. Análise textural mentos de vegetais com laminações geralmente em
Para determinação das percentagens de fração fina posição horizontal, fragmentos de conchas e alguns
(FF; <63 µm) e fração grosseira (FG; >63 µm), recor- exemplares raros de conchas com 2 valvas.
reu-se à crivagem por via húmida com recurso a um A Unidade 2 (entre 237 e 156 cm abaixo do NMM;
crivo com malha de 63 µm. Os sedimentos foram 286 a 205 cm de profundidade) tem uma extensão de
classificados com base na percentagem de material 0,81 m e é composta por uma acumulação de con-
superior a 63 µm, segundo Flemming (2000). chas de bivalves (Cerastoderma, Scrobicularia), raros
gastrópodes (fragmentos, conchas inteiras e exem-
3.4. Suscetibilidades magnética plares com as duas valvas articuladas, com diferen-
A suscetibilidade magnética foi medida utilizando tes dimensões) numa matriz essencialmente vasosa,
o equipamento MS2 Magnetic susceptibility meter, por vezes com laminações de restos vegetais, e com
Bartington Instruments. A medição foi realizada de- uma componente arenosa mais proeminente na
pois de calibrado o sensor com um padrão de refe- base da unidade. A suscetibilidade magnética apre-
rência. Os resultados foram medidos em unidades senta valores negativos e positivos perto de 0, com
do Sistema Internacional (x10-5 SI). valor médio de 0,5 x 10-5 SI (fig. 5; tabela 2). O teor
em MO é médio, apresentando valor médio 2,9%.
3.5. Teor em Matéria Orgânica A base da unidade apresenta %MO mais elevadas
A %MO foi determinada por calcinação (Loss On Ig- (fig. 5). O teor em CaCO3 alcança os valores mais
nition) utilizando o método adaptado de Kristensen elevados de toda a sondagem apresentando um
(1990). Este procedimento implica uma queima de máximo de 34,5% (tabela 2) e valor médio de 17,4%
amostras em dois ciclos de 6h a 280ºC e 520ºC. Para indicando que a componente carbonatada desta uni-
este parâmetro, o sedimento foi classificado segun- dade é elevada a muito elevada.
do Costa (1991). A Unidade 3 (entre 156 e 88 cm abaixo do NMM; 205
e 139 cm de profundidade) possui uma extensão de
3.6. Calcimetria 0,68 m, é constituída exclusivamente por areia vaso-
A %CaCO3, que, neste caso, reflete o teor em bio- sa e apresenta valores de suscetibilidade magnética
clastos, foi determinada pelo método gasométrico entre -2,3 e 8,7 x 10-5 SI (tabela 2). O teor em MO é mé-
utilizando um calcímetro Eijkelkamp, seguindo o pro- dio, apresentando valores médios de 2,8%, enquanto
tocolo estabelecido pelo fabricante. O sedimento foi a %CaCO3 apresenta valores baixos com valor médio
1520
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FANDÉ, Morto B.; LIRA, Cristina P.; PENHA-LOPES, Gil P.
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Tropical. geochemistry 9, pp. 135-159.
Figura 1 – Localização geográfica de Cacheu, Guiné-Bissau. A – Localização no N de África e posição relativa ao sul da Europa;
B – localização na costa W africana; C – localização na margem sul do Rio Cacheu. Posicionam-se igualmente as sondagens de
sedimentos Cacheu1, Cacheu2 e Cacheu3 (realizada em ArcGis Pro).
Figura 3 – Extrato da Carta Geológica da República da Guiné-Bissau na escala 1:400000, editada em 2011 e respetiva legenda.
1522
Figura 4 – LOG da sondagem Cacheu1, realizado com base
na descrição macroscópica de campo.
Figura 5 – Variação em profundidade dos indicadores analisados (FG, SM, MO, CaCO3) e definição de unidades sedimentológicas.
Tabela 1 – Descrição sumária das sondagens recolhidas na margem do Rio Cacheu (sistema de coordenadas WGS84).
Tabela 2 – Resultados dos valores máximos, mínimos e médios dos parâmetros obtidos em cada unidade sedimentológica de-
finida na sondagem Cacheu1.
1524
EXTRAIR INFORMAÇÃO CULTURAL DE
MADEIRAS NÁUTICAS: UMA EXPERIÊNCIA
EM LISBOA
Francisco Mendes1, José Bettencourt2, Marco Freitas3, Sofia Simões Pereira4
RESUMO
O presente trabalho tem por principal objetivo o de extrair informação cultural de madeiras náuticas utilizando
uma metodologia simplificada e de fácil implementação. Utilizando o arquivo digital criado durante a escavação
e registo da embarcação Bom Sucesso 1, integralmente registada por fotogrametria e scanner 3D, estabelecemos
as principais características morfológicas da madeira a ter em conta e o tipo de informação que estas nos forne-
cem. Foi ainda tentada uma primeira abordagem dendro-arqueológica, com base na análise dos anéis da ma-
deira, permitindo estabelecer idades mínimas no momento do abate e o crescimento médio anual das árvores.
Palavras-chave: Arqueologia naval; Frente Ribeirinha; Lisboa; Séculos XVIII-XIX.
ABSTRACT
The main objective of this work is to extract cultural information from nautical timbers using a simplified and
easy-to-implement methodology. Using the digital archive created during the excavation and recording of the
Bom Sucesso 1 vessel, fully recorded by photogrammetry and 3D scanner, we established the main morphologi-
cal characteristics of the wood to be considered and the type of information they provide. A first dendro-archae-
ological approach was also attempted, based on the analysis of tree rings, allowing us to establish minimum ages
at the time of felling and the average annual growth of the trees.
Keywords: Nautical Archaeology; River front; Lisbon, 18th-19th centuries.
1. Mestrando em Arqueologia, Departamento de História, NOVA FCSH / Bolseiro de investigação, Centro de Humanidades (CHAM,
NOVA-FCSH) / [email protected]
2. Centro de Humanidades, (CHAM, NOVA-FCSH), Departamento de História, Universidade Nova de Lisboa / [email protected]
3. Mestrando em Arqueologia, Departamento de História, NOVA FCSH / Bolseiro de investigação, Centro de Humanidades (CHAM,
NOVA-FCSH) / Investigador do Centro de Estudos de Arqueologia Moderna e Contemporânea (CEAM) / [email protected]
4. Mestranda em Arqueologia, Departamento de História, NOVA FCSH / Bolseira de investigação, Centro de Humanidades (CHAM,
NOVA-FCSH) / [email protected]
1526
dual de madeiras náuticas estão há muito definidos de nós mortos (fig.3) recobertos pelo crescimento
e têm como objetivo a obtenção de dados que permi- da própria árvore, geralmente difíceis de identifi-
tam uma reconstituição das formas de cada madeira car, informam-nos sobre eventuais práticas de poda
à escala, incluindo aspetos como o tipo e padrão da (Martins, 2019, p.225).
pregadura, a forma e tipologia das escarvas, o posi-
cionamento e organização na estrutura do casco (Po- Fendas naturais
mey e Rieth, 2005; Steffy, 1994). Em algumas espécies folhosas, tradicionalmente
As técnicas de documentação evoluíram muito nas utilizadas na construção naval, como é exemplo o
últimas décadas, de um formato analógico 2D para carvalho, as fendas naturais abertas nas madeiras
um digital 3D (Van Damme et al., 2020). O registo pelos raios lenhosos são outra fonte de informação.
3D tem sido efetuado recorrendo à digitalização com Estas desenvolvem-se radialmente no tronco e ser-
scanner e/ou à fotogrametria, que permite obter mo- vem para transporte e armazenamento de nutrientes
delos tridimensionais de alta resolução. Seja qual for (Coutinho, 1999, p.11; Newsom, 2022, p.14), sendo
o método, o objetivo do registo individual das madei- por vezes aproveitadas, por exemplo, para a conver-
ras é documentar as peças nas suas várias faces. Para são do toro em tábuas.
facilitar a interpretação, a apresentação dos resulta- Esta é uma característica menos pronunciada nas
dos do registo individual inclui a vectorização com madeiras resinosas, onde as fendas são mais finas
o software CAD das linhas consideradas relevantes, (Coutinho, 1999, p.10), por vezes difíceis de detetar,
organizadas em várias camadas (Van Damme et al., como acontece nas madeiras da embarcação aqui
2020; Jones, 2013). estudada (fig.3).
Em condições ideais, a identificação e anotação das
características morfológicas da árvore deverá ser Grão
feita nesta fase, incluindo quatro características es- O grão da madeira indica a orientação do cresci-
senciais (fig.1) (Martins, 2019, p.222-228): mento dos troncos e ramos de uma árvore. Preferen-
cialmente, o corte das peças náuticas deverá acom-
Nós panhar o grão da madeira, evitando-se pontos de
Os nós da madeira são uma das principais fontes fragilização que surgem quando o corte é efetuado
de informação sobre um determinado tronco, mas contra o crescimento natural das árvores. O registo
também sobre as condições em que cresceu, e por do grão da madeira permite compreender a eficácia
conseguinte sobre as práticas de gestão florestal em do carpinteiro na escolha de um tronco a usar para
vigor (Martins, 2019, p.225). uma determinada peça. Assim, comparando a forma
Cada nó representa o arranque de um ramo. O pa- da peça finalizada com a direção do seu grão pode-
drão dos nós é por isso um dado importante na análi- mos documentar eventuais desvios e adaptações que
se de uma estrutura, permitindo inferir sobre a qua- tenham sido necessárias para a criação de uma deter-
lidade do aprovisionamento disponível no momento minada forma no casco (Martins, 2019, p.228).
de construção ou reparação de uma embarcação ou Os dados sobre o grão dão também informação so-
sobre as estratégias de gestão da floresta (Martins, bre o próprio crescimento da árvore. Por exemplo, a
2019, p.225). A presença de nós em grande número relação entre o grão e a posição da medula do tron-
introduz pontos fracos na estrutura, tornando em co permite caracterizar o declive do terreno onde a
princípio menos ideal para a construção naval. A au- árvore foi plantada, sendo que uma medula relati-
sência de nós está ligada ao crescimento de árvores vamente centrada corresponderá a uma árvore que
em florestas mais densas, onde a competição com cresceu em solos planos (Martins, 2019, p. 228; New-
outras árvores leva a um maior desenvolvimento som, 2002, p.84).
vertical antes de começar a criar a copa.
Há outras características dos nós que importam. Transição Alburno/Cerne
A dimensão dos anéis em torno de um nó, bem como A demarcação do câmbio entre as zonas correspon-
a sua inclinação dentro do tronco (fig.2), permitem dentes ao alburno e ao cerne são a última caracterís-
estabelecer a direção de crescimento da árvore, tica a ter em conta para tentar reconstituir a morfo-
atendendo aos mecanismos de reação do próprio logia da árvore original (Martins, 2019, p.240). Esta
tecido lenhoso (Newsom, 2022, p.84). A presença é uma característica que pode ser identificada de
1528
cha primeira ou esqueleto primeiro (Bettencourt e no dos 24 anos no momento do abate, notavelmente
Carvalho, 2020). abaixo dos 32 registados para o tabuado do fundo,
distribuindo-se entre os 11 atribuíveis à TB4E e os
3.2. O Forro Exterior 46 da TB7E. O crescimento das árvores empregues
Foram analisadas 22 das 30 tábuas do fundo conser- no fabrico deste conjunto é também notável já que
vadas (fig.5). Estas apresentam cumprimentos que radialmente este está em média na casa dos 5,4 mm/
chegam a atingir mais de 10,9 m, na T1E, indicador ano e verticalmente na dos 68 cm/ano.
da utilização de uma árvore de dimensões muito
significativas, já que para a obtenção de peças des- 3.3. Falsa-quilha
te tipo seria utilizado apenas o troço reto do tronco O conjunto de tábuas que compunham a falsa-qui-
abaixo do início da copa. lha, encontrada sob o tabuado do fundo, apresenta
A maioria das tábuas aproveita tanto o cerne como o um crescimento bastante mais rápido do que as res-
alburno. A sua conversão em corte tangencial dá ori- tantes peças que compõem o casco do Bom Sucesso
gem a pranchas que em 9, das 22, apresentam ainda 1. A peça de maior comprimento é o troço da falsa-
restos de medula, permitindo aferir, com base nes- -quilha composto pelas peças Q3 e R6, provenientes
tas 9 peças, que as árvores empregues no tabuado de uma árvore com pelo menos 8,52 m de crescimen-
teriam troncos com uma média de 27,4 cm de diâme- to direito contínuo.
tro. Esta representa a medida do diâmetro apenas O estudo dos seus anéis permitiu situar a idade míni-
do cerne e alburno, já que não foram encontrados ma do conjunto no momento do abate em torno dos
restos de casca em nenhuma destas tábuas, havendo 15 anos, contados na peça R6, sendo que a árvore
uma amplitude de medidas entre os 15,8 (T18W) e os que originou as peças Q2 e Q2.1 seriam um ano mais
36,8cm (TQ5). velha. O crescimento anual corresponderá a cerca
Os nós encontram-se espaçados a intervalos mais ou de 5,3 mm e 8,1 mm respetivamente. Foi-nos impos-
menos regulares e estavam distribuídos concentrica- sível obter leitura da peça Q1.
mente em torno dos troncos (fig.2). Foi possível iden-
tificar a presença de nós mortos (fig.3) em 14 indiví- 3.4. Estrutura de popa
duos e estabelecer ainda a direção de crescimento de A estrutura de popa do Bom Sucesso 1 representa tal-
praticamente todas as 22 tábuas. A distribuição des- vez o conjunto de mais difícil leitura no casco. Esta
tas no casco não aparenta seguir qualquer padrão, divide-se em 5 peças com códigos distintos. No en-
sendo apenas notável que todas as tábuas empre- tanto, as peças R2 e R3 são cada uma compostas por
gues na fiada central, que receberam a designação 3 troços de madeira claramente provenientes de ár-
de TQ (Tábua-Quilha), se encontram dispostas com vores distintas e a peça R/sID é composta por duas.
o seu crescimento na direção da popa, configuração De momento, é impossível perceber sequer se a ma-
partilhada para 14 dos 22 indivíduos. deira utilizada aqui corresponderá ao mesmo tipo
O estudo dos anéis de crescimento permitiu atribuir da utilizada no resto da embarcação. Na observação
idades mínimas no momento do abate das árvores dos seus anéis foram estabelecidas idades entre os
entre os 9 e os 63 anos, nos casos da T5E e T9W. 13 e os 40 anos para as árvores que lhe deram forma.
A média neste conjunto situa-se em torno dos 32 anos Em média, as árvores que originaram as peças deste
de idade, não muito longe da média dos 27 estabele- conjunto apresentam uma idade de 24 anos no mo-
cida para toda a embarcação. Foi possível também mento do abate e um crescimento médio de 4,5 mm/
estabelecer médias de crescimento na ordem dos ano, havendo, no entanto, valores entre os 1,6 e 6,2
3,2 milímetros anuais, compreendidos entre os 2,7 mm/ano.
mm da T2W e os 4,1 mm verificados na T1E. O cres-
cimento vertical aparenta situar-se em média por 3.5. Cavernas
volta dos 48,5 cm por ano, com base nas distâncias Em tudo similar às tábuas, este grupo apresenta em
entre os nós originários dos gomos de crescimento geral formas retas e conversão em esquadria sim-
(Gonçalves, 2010, p.9). ples, à exceção da caverna C23, que não apresenta
As tábuas que formam o bordo da embarcação des- vestígios de medula e aparenta ser fruto de uma con-
tacam-se das restantes por duas razões. Em primeiro versão em esquadria de dois.
lugar, a idade média deste conjunto situa-se em tor- A idade e crescimento médio anual das árvores uti-
1530
A conversão do tronco parece mostrar alguns pa- ribeirinha de Lisboa nos alvores do séc. XIX: estruturas por-
drões interessantes. As tábuas do forro foram cor- tuárias e primeiras notas sobre o barco do Bom Sucesso (BS1). In
tadas preferencialmente junto à medula, tendo por Actas do III Encontro de Arqueologia de Lisboa, CAL: Lisboa.
isso a maioria uma largura que aproveita o máximo BETTENCOURT, José e CARVALHO, Patrícia (2020) – Rela-
da largura original do tronco. Como vimos, 9 das tório preliminar dos trabalhos de registo e análise da embarca-
22 tábuas do fundo analisadas apresentam medula ção Bom Sucesso 1. CHAM – Centro de Humanides e Lisboa:
Neoépica, Lda.
e a maioria das outras está próximo. Nas tábuas do
bordo 4 de 10 apresentam medula. Já as escoas não POMEY, Patrice; RIETH, Eric (2005) – L’Archéologie navale.
apresentam qualquer evidencia de medula no seu Paris: Errance Editions.
conjunto; é provável que aproveitem a parte mais STEFFY, Richard (1994) – Wooden shipbuilding and the inter-
externa dos troncos, possivelmente até da mesma pretation of shipwrecks. College Station: Texas A&M Univer-
árvore onde se cortaram as tábuas do forro exterior. sity Press.
As cavernas foram cortadas com cuidado, em esqua- VAN DAMME, Thomas; AUER, Jens; DITTA, Massimiliano;
dria simples, com incorporação muito rara das su- GRABOWSKI, Michal e COUWENBERG, Marie (2020) –
perfícies originais nalgumas arestas. Contrariamen- The 3D annotated scans method: a new approach to ship tim-
te, os braços têm um corte pouco cuidado, chegando ber recording. Heritage Science 8. 75, 18p.
a preservar a casca nalguns casos; alguns foram cor- NEWSOM, Lee A. (2022) – Wood in Archaeology. Cambridge:
tados em esquadria de dois. Cambridge University Press.
Finalmente, e talvez a questão de ordem mais abran-
COUTINHO, Joana de Sousa (1999) – Materiais de Constru-
gente será a da gestão florestal de que testemunham ção I: Madeiras. Porto: Faculdade de Engenheria da Univer-
os nós das peças do Bom Sucesso 1. O crescimento li- sidade do Porto.
near necessário à obtenção das peças maiores regis-
MARTINS, Adolfo (2019) – Reconstructing Trees from Ship
tadas nesta embarcação necessitaria de intervenção
Timber Assemblages Using 3D Modelling Technology: Three-
humana. Por exemplo, o pinho marítimo, de rápido Dimensional Tree Reconstruction Based on Archaeological
crescimento, ganha formas curvas no seu estado na- Evidence. Tese de Doutoramento defendida na University of
tural6. A utilização de troncos com a qualidade ne- Wales Trinity Saint David: País de Gales.
cessária para a obtenção das peças agora estudadas PORCHERON, Manuel (2019) – Tracéologie du bois d’époque
parece apontar para a existência de práticas de sil- médiévale. Revue archéologique du Centre de la France 58. 28p.
vicultura, já que estas teriam de ser plantadas perto
GONÇALO, Nuno (2010) – Contributos para uma maior e
umas das outras (Martins, 2019, p.124) e provavel-
melhor utilização da madeira de pinho bravo em Portugal [Em
mente podadas (Martins, 2019, p.225). Esta é uma li- linha]. Dissertação de Mestrado defendida na Faculdade de
nha de investigação que gostaríamos de aprofundar. Engenharia da Universidade do Porto: Porto. Disponível em
WWW:<URL:https://web.fe.up.pt/~jmfaria/TesesOrienta-
BIBLIOGRAFIA das/MIEC/CesarGoncalvespdf/Contributos_madeira.pdf>.
BETTENCOURT, José; FONSECA, Cristóvão; SILVA, Tiago; DOMINGUEZ, Marta; RICH, Sarah; DALY Aoife; NAY-
CARVALHO, Patrícia; COELHO, Inês e LOPES, Gonçalo LING, Nigel; HANECA, Kristof (2018) – Selecting and Sam-
(2017) – Os Navios de época Modernos de Lisboa: balanço e pers- pling Shipwreck Timbers for Dendrochronological Research:
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RA, I. e SILVA, R.B. (eds.), I Encontro de Arqueologia de Lisboa: ology 48.1, pp. 231-244.
Uma cidade em escavação. Lisboa: CML, CAL, pp. 478-495.
Figura 2 – Detalhe da tábua T1E evidenciando os nós (verme- Figura 3 – Detalhe da tábua T1E evidenciando a presença
lho) que indicam a direção de crescimento da árvore de onde de nós mortos (vermelho) junto á fenda natural assinalada
é proveniente, é também evidente a diferença de coloração a preto, no local da medula do tronco. A laranja encontra-se
entre o cerne e o alburno divididos a laranja. a transição entre o cerne e o alburno.
1532
Figura 4 – Planta geral da embarcação Bom Sucesso 1 desenhada aquando da escavação.
Autoria de José Bettencourt e Patrícia Carvalho, 2020.
1534
FERRAMENTAS, CARPINTEIROS E
CALAFATES A BORDO DA FRAGATA SANTO
ANTÓNIO DE TANÁ (MOMBAÇA, 1697)
Patrícia Carvalho1, José Bettencourt2
RESUMO
Nos navios envolvidos em viagens transoceânicas do período moderno, a manutenção e reparação do casco
ou de outros equipamentos por oficiais mecânicos embarcados era essencial e a sua presença a bordo infere-se
no registo arqueológico através dos seus instrumentos. Este trabalho aborda as figuras do carpinteiro naval e
do calafate a partir de um conjunto de instrumentos recuperado na fragata Santo António de Taná, perdida em
Mombaça em 1697. Além do estudo material pretende-se refletir sobre a importância social destes oficiais na
logística naval no século XVII, incluindo a sua presença em vários pontos de apoio logístico ao longo da rota que
ligava Lisboa ao Oriente.
Palavras-chave: Carpinteiro; Calafate; Ferramentas; Santo António de Taná; Século XVII.
ABSTRACT
In the ships of the transoceanic voyages of the early-modern period, the maintenance and repair of the hull or
other equipments by mechanical officers on board was essential and their presence remains in the archaeologi-
cal record through their instruments. This paper addresses the figures of the carpenter and the caulker from a
group of instruments recovered from the frigate Santo António de Tanná, lost in Mombasa in 1697. Besides the
tools study, we aim to reflect on the social importance of these officers in the naval logistics in the 17th century,
including its presence at different logistical support points along the route that linked Lisbon to the East.
Keywords: Carpenter; Caulker; Tools; Santo António de Tanná; 17th century.
1. CHAM– Centro de Humanidades, Universidade NOVA de Lisboa; CONCHA-MSCA-RISE-2017-GA 777998; ERC Synergie 4-
OCEANS “Human History of Marine Life”; EU-H2020-GA No.[951649] / [email protected]
2. CHAM – Centro de Humanidades, Departamento de História, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa / [email protected]
1536
o lado utilizado para martelar, e outra tem secção de arco de pua (MH0464), ambos instrumentos de
triangular e pontiaguda. perfuração manual (Fig. 3).
Os berbequins correspondem a ferramentas em for-
3. CORTE ma de T, compostas por um cabo em madeira trans-
versal (MH0493 e MH1811) a uma broca em metal.
Nos instrumentos de corte incluíram-se os artefac- A mecânica consiste em rodar o cabo para que a bro-
tos com lâminas e gumes, utilizados para cortar, des- ca gire e, ao mesmo tempo, perfure a superfície. Estes
bastar ou regularizar superfícies em madeira. Entre instrumentos podem ter diferentes dimensões, para
estes objectos identificaram-se duas ferramentas perfurações com diâmetros distintos, por exemplo,
com utilizações diferentes: um machado (MH 6594) para colocação de pregaduras nos navios, em ma-
e uma enxó (MH 1206) (Fig. 2). Ambas as peças ti- deira, ou ferro. A dimensão do cabo é directamente
nham as lâminas em ferro e os cabos em madeira, proporcional ao tamanho da broca: quanto maior a
sendo o do machado oval e o da enxó de secção cir- broca, maior o cabo. Estes exemplares apresentam
cular. O machado foi recuperado do interior da caixa um orifício na parte central onde estaria a broca.
de madeira MH 1172. Este instrumento é muito comum em contextos ar-
Bluteau distingue-as da seguinte forma: ao machado queológicos de navios, embora com grande varie-
cabia cortar e fender paus, inferindo-se uma utiliza- dade formal, como os exemplares encontrados nos
ção mais bruta corroborada pela expressão “cousa- navios Mary Rose (Inglaterra, 1545) (Gardiner e Allen,
-feita ao machado”, ou seja, sem arte, grosseiramente 2005, pp. 299-301), La Natiére (França, século XVIII)
(Bluteau, vol. V, p. 234). Ao contrário, a enxó caracte- (L’Hour e Veyrat, 2001, Planche 16; L’Hour e Veyrat,
rizava-se por ter um cabo curto e uma chapa pouco 2003: Planche 14; L’Hour e Veyrat, 2004, Planche 15),
encurvada com a qual se tirava o grosso da madei- ou Mercure (Itália, 1812) (Beltrame, 2015, p. 425).
ra (Bluteau, vol. III, p. 168), sugerindo um trabalho O possível arco de pua (MH0464) conserva apenas
mais controlado. parte de uma pega, de pequenas dimensões, e sem
O machado MH 6594 corresponde a uma tipologia orifício para lâmina em metal, não sendo por isso de
muito comum, com paralelos no navio Elizabeth and excluir uma função diferente. Neste objecto a força
Mary (Canadá, 1690) (Bernier, 2008, p. 29) ou no na- motriz é aplicada manualmente sobre a pega, cujo
vio General Carleton (Ossowski, 2008, p. 430). Este movimento rotativo vai empurrando a lâmina, per-
instrumento poderia ser utilizado em múltiplos con- furando a madeira de forma lenta e controlada, mui-
textos, muito além da carpintaria naval, como em to útil quando se trata de aberturas pouco profundas.
tarefas quotidianas a bordo ou em actividades mili- O controle da direcção da perfuração é feito a partir
tares (Sullivan, 1986, pp. 40 e 46; Bryce, 1984, p. 33). da força aplicada na pega, normalmente redonda,
A enxó é um utensílio comum em conjuntos de ferra- que compõe a extremidade oposta à da broca.
mentas encontradas em contexto de naufrágio des- Bluteau, no seu vocabulário, não distingue de for-
de a antiguidade (Maragoudaki, 2017, pp. 240-241), ma clara estes instrumentos. A definição é ambígua
podendo ter outras funções além da sua utilização e refere-se ao termo de marceneiro no caso do ber-
em trabalhos de carpintaria. Este exemplar encontra bequim, ou de carpinteiro e marceneiro no caso da
paralelos em instrumentos recuperados no navio La pua, descrevendo apenas um objecto que roda, e que
Belle (Texas, 1686) (West, 2005, p. 83). ao mesmo tempo perfura (Bluteau, vol. II, p.106; vol.
VI p.806).
4. PERFURAÇÃO
5. PUNÇÃO
Nas ferramentas de perfuração incluem-se as que se
destinam a furar ou trespassar madeiras ou outras Os instrumentos de punção descrevem os artefactos
matérias-primas, de forma controlada. Na fragata, utilizados para entalhar, cinzelar, embutir e limpar
a existência destas ferramentas a bordo infere-se a ou estopar entre arestas, por exemplo, nas costuras
partir dos vestígios de cabos ou pegas, uma vez que das tábuas. Entre este tipo de instrumentos foram
não foi encontrado nenhum instrumento completo. identificadas algumas peças de escopro, em mau
Assim, foram identificados dois prováveis cabos de estado de conservação. Estas peças, produzidas em
berbequim (MH0493 e MH1811) e um possível cabo metal ou em madeira e metal, podem laborar em
1538
La Belle (Texas, 1686) (West, 2005), ou no navio Vasa e três tipos de berbequim (tres barrenas diferentes).6
(Estocolmo, 1628)4. O maço MH 1459, com uma cabeça mais alongada,
faz lembrar os maços de calafetagem, utilizados em
9. DISCUSSÃO estaleiros para introduzir a estopa entre as juntas das
tábuas, embora seja mais curto do que outras peças
A maioria das ferramentas identificadas na fragata com esta função documentados no navio Mary Rose
Santo António de Taná poderiam ser utilizadas por (Inglaterra, 1545) Gardiner e Allen, 2005), no navio
carpinteiros (ex: maço, martelo, machado, enxó, General Carleton (Polónia, 1785) (Ossowski, 2008)
escopro). Estas permitiriam a execução de grande ou no navio Mercure (Itália, 1812) (Beltrame, 2015),
parte das operações mais frequentes a bordo – corte por exemplo. Entre outras funções, os instrumentos
e substituição de peças danificadas ou desbaste de de limpeza e escovagem podem ter sido também
novas peças – embora não se possam excluir outras utilizados para brear o casco, ou seja, cobrir o forro
utilizações quotidianas a bordo devido à sua versa- exterior com breu ou outro betume protector para
tilidade. Por exemplo, o machado podia servir não evitar o desgaste das madeiras e a invasão pelo tare-
só para o corte de peças, como também para o corte do naval e outros bio organismos.
de lenha para alimentar os fogões a bordo. Apesar Os carpinteiros e calafates foram figuras essenciais
disto, alguns instrumentos são coerentes com a lis- na logística naval. A sua importância é evidenciada
ta dos materiais que os carpinteiros navais deviam na documentação de época moderna, que nos fala
levar consigo para laborar no estaleiro após a lei de dos aperfeiçoamentos técnicos na construção naval,
1613: a saber um machado (hacha em espanhol), na arte de navegar e em outras atividades de apoio
uma enxó de duas mãos (açuela de dos manos), goiva logístico. No caso português, este desenvolvimento
ou formão (gurbia?), três tipos de berbequim (bar- reflectiu-se na produção de regulamentos específi-
renos de tres suertes), martelo de orelhas (martillo de cos e de tratados que abordavam a concepção e os
orejas), maço ou malho (mandaria) e dois escopros processos de construção dos navios. Estas obras, en-
(dos escopros).5 Nota-se aqui a diversidade das téc- tre as quais destacamos o Livro da Fábrica das Naos
nicas que estes oficiais deveriam dominar, como o (Fernando de Oliveira, c.1580), o Livro Primeiro de
corte e o desbaste, essenciais para a transformação Architectura Naval (João Baptista Lavanha, c. 1607)
da madeira nas diferentes estruturas do navio: como e o Livro das Traças de Carpintaria (Manoel Fernan-
por exemplo, a quilha, as balizas e as tábuas; a per- des, c. de 1616), além de opções técnicas no proces-
furação das madeiras para ligação das peças entre so construtivo, abordavam temas como a escolha da
si, como por exemplo de pregaduras de diferentes matéria-prima, os tipos de pregadura ou de calafeta-
dimensões: cavilhas em madeira, pregos ou cavilhas gem para proteção dos cascos, havendo uma palavra
de metal; e também as ferramentas de percussão e ainda sobre a mão-de-obra envolvida nos trabalhos.
punção que laboram conjuntamente entre si, ou com João Baptista Lavanha referia a importância do ar-
outros instrumentos referidos. quitecto naval e da concepção do navio (Lavanha,
A lista dos instrumentos a bordo da Santo António de 1996, pp. 22-25); Fernando Oliveira destacava a figu-
Taná é também coerente com a actividade do cala- ra do carpinteiro (Oliveira, 1991, pp. 79-81) e o autor
fate de bordo, como se verifica através da lista dos do Livro das Traças de Carpintaria, carpinteiro naval,
instrumentos do calafate de estaleiro na documen- fez-se representar munido de um compasso e de uma
tação de 1613: a saber um maço (mallo), cinco ferros régua, instrumentos essenciais durante a concepção
(cinco ferros), goiva ou formão (gurbia), magujo (ma- e construção do navio (Fernandes, c. de 1616).
gujo), maço ou malho (mandaria), martelo de ore- A importância destes oficiais em Portugal durante os
lhas (martillo de orejas), faca (faca), estopa (estopa) séculos XVI e XVII ficou registada também nos regi-
mentos dos oficiais da navegação (Costa, 1989). Es-
tes regulamentos davam indicação da necessidade
4. Vasa Museum. Available at: https://www.vasamuseet.se/ de matricular os oficiais técnicos relacionados com
en/collections/search-the-collection-digitaltmuseum [As- a navegação, incluindo, além de outros, carpinteiros
sessed: 12-05-2023].
5. Veja-se o documento ANTT, Leis e Ordenações, Leis, 6. Veja-se o documento: ANTT, Leis e Ordenações, Leis,
maço 3, documento 24. maço 3, documento 24.
um mestre dos calafates, e da Ilha de Moçambique, BELTRAME, Carlo (2015) – A tool assemblage from the Brig
porto de escala de apoio às viagens entre o Índico e o Mercurio (1812): a caulker’s storeroom?. The International
Atlântico, onde se arrolavam um mestre dos carpin- Journal of Nautical Archaeology 44.2, pp. 423–450 https://doi.
org/10.1111/1095-9270.12107.
teiros e um calafate (Carvalho, 2008, pp. 168 e 170).
Com efeito, o carpinteiros e calafates foram uma das BENDIG, Charles D. (2020) – Ships’ Pumps: From Antiquity
figuras centrais no processo técnico de construção to the Early Modern Era. Journal of Maritime Archaeology 15,
pp. 185–207 https://doi.org/10.1007/s11457-020-09257-x.
de um navio, mas não só. A permanência no mar por
longos meses e o desgaste da embarcação ao longo BERNIER, Marc-André (2008) – L’épave du Elizabeth and
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Service d’archéologie subaquatique – Centre de service de
capazes de garantir a sua manutenção. Estes seriam
l’Ontario / Parcs Canada.
presença regular nas naus da Carreira, que faziam
a viagem para o Estado da Índia, ou nos navios que BLUTEAU, Rafael (1712-1728) – Vocabulario portuguez, e la-
tino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, botanico (...):
operavam no Índico. Na armada que em 1583 parte
autorizado com exemplos dos melhores escritores portu-
para a Ásia, o holandês Jan Huygen van Linschoten guezes , e latinos; e offerecido a El Rey de Portugal D. Joaõ V.
dá conta de dois carpinteiros e dois calafates a bordo Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesu. Lisboa:
do navio São Salvador, onde seguia, os quais ajuda- Officina de Pascoal da Sylva, 8 v; 2 Suplementos.
vam a dirigir os trabalhos (Linschoten, 1997, p. 75). BRYCE, Douglas (1984) – Weaponry from the Machault. An
A presença a bordo destes oficiais verificava-se tam- 18th-century French Frigate, Studies in Archaeology Architec-
bém noutros navios em transito entre o Atlântico e o ture and History. Otawa: Parks Canada.
Índico. Veja-se por exemplo, a bordo do navio fran- CARVALHO, Patrícia (2008) – Os Estaleiros na Índia Portu-
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1542
Figura 2 – Instrumentos de corte (imagens: INA).
1544
Figura 4 – Instrumentos de punção (imagens: INA).
1546
PAREDE 1, CARCAVELOS 12
E CARCAVELOS 13: TRÊS NAUFRÁGIOS
DA GUERRA PENINSULAR?
José Bettencourt1, Augusto Salgado2, António Fialho3, Jorge Freire4
RESUMO
A investigação efectuada no âmbito do SUNK permitiu identificar vários sítios, destacando-se três naufrágios
– Parede 1, Carcavelos 12 e Carcavelos 13 – que mostram características que apontam para o século XVIII ou
inícios do XIX e para uma utilização militar. Parede 1 surge como um tumulus, constituído por canhões e pelou-
ros de ferro, concrecionados, carga que ocuparia todo o porão do navio. Carcavelos 12 corresponde também a
uma carga militar constituída por caixas de madeira com pelouros em ferro, pelouros a granel e pelo menos seis
bocas de fogo em bronze de pequeno calibre. Carcavelos 13 mostra igualmente uma extensão concreção com
pelouros e pelo menos três canhões em ferro. Este artigo apresenta os resultados preliminares do seu estudo.
Palavras-chave: Tejo; Arqueologia Moderna; Arqueologia marítima; Gestão do património cultural.
ABSTRACT
The research carried out under SUNK identified several sites, including three shipwrecks – Parede 1, Carcavelos
12 and Carcavelos 13 – which show characteristics that point to a 18th or early 19th century chronology and to a
military use. Parede 1 appears as a tumulus, consisting of cannons and a cargo of round iron shots that would
occupy the entire hold of the ship. Carcavelos 12 also corresponds to a military cargo consisting of wooden boxes
with round iron shots, bulk round iron shots and at least six small-caliber bronze cannons. Carcavelos 13 also
shows an extensive concretion with round iron shots and at least three iron cannons. This paper presents the
preliminary results of their study.
Keywords: Tagus bar; Early modern archaeology; Maritime archaeology; Cultural heritage management.
1. CHAM e Departamento de História, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa, Lisboa, Portugal / [email protected]
2. Centro de Investigação Naval e Centro de História – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal /
[email protected]
1548
ras e alturas entre 20 e 30 cm. Nalgumas peças adivi- 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
nham-se duas pegas, uma em cada topo. A tampa se-
ria também em madeira, aparecendo deslocada em A identificação de Parede 1, Carcavelos 12 e Carcave-
alguns casos. Foi por isso possível observar o conteú- los 13 constitui uma descoberta inesperada. Apesar
do de algumas caixas, onde foram identificados pelo dos dados ainda parciais, a coerência tipológica e
menos dois calibres distintos – nalgumas caixas são cronológica destes três sítios é inegável. Os três pa-
visíveis 6 pelouros, que teriam aproximadamente 12 recem corresponder a navios mercantes ou de apoio
cm de diâmetro; noutras caixas o número de pelou- e operações militares. A sua perda terá ocorrido al-
ros é maior, entre 10 e 12, com um diâmetro inferior, gures entre o século XVIII ou inícios do XIX, sendo
de 8 a 9 cm. certo que Carcavelos 12 terá naufragado com grande
As seis bocas de fogo encontram-se sobre os pelou- probabilidade nas primeiras décadas do século XIX,
ros em ferro, concentradas na zona sudoeste do tu- posteriormente a 1806/1808, data de fabrico da boca
mulus. Pelo menos em dois casos é possível observar de fogo ali recuperada.
restos da carreta onde estavam montadas. Corres- Este é um período de grande instabilidade política
pondem todas a peças de pequeno calibre. Uma ob- na Península Ibérica, marcada pela Guerra Peninsu-
servação preliminar da peça CR12-21-001 (Fig. 5), lar (1807–1814), conflito entre o Império Francês e a
antes da limpeza, permitiu verificar que correspon- aliança do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda,
de a um canhão com 0,91 metros de comprimento do Império Espanhol e do Reino de Portugal pelo
funcional, de não mais de 3 libras, fundido em 1808 domínio da Península Ibérica, durante as Guerras
ou 1806 (o último número é difícil de ler) de fabri- Napoleónicas (Hall, 2004 e Telo, 2005). A provável
co britânico, ostentando o monograma de Jorge III relação destes naufrágios com aquele conflito, qua-
(1760 – 1820). O naufrágio deverá ter ocorrido no se certa no caso de Carcavelos 12, abre novas pers-
início do século XIX. pectivas de investigação sobre a dimensão marítima
do conflito, que incluiu guerra no mar, mas também
4. CARCAVELOS 13 uma dimensão logística de apoio às forças terrestres
muito relevante, onde Lisboa e as ilhas britânicas ti-
Carcavelos 13 também foi identificado no primeiro nham um lugar de destaque.
dia de trabalhos de 2022. O sítio é visível nos dados Durante os séculos XVIII e XIX, os comboios foram
de multifeixe como ligeira anomalia topográfica que uma parte fundamental da estratégia naval britâni-
se destaca de um fundo de areia. O sítio também ca, apesar da maioria dos historiadores centrarem os
está localizado em frente da Praia de Carcavelos, seus estudos nas grandes batalhas navais. Por nor-
apenas 65 m a noroeste de Carcavelos 12, o que não ma, quase todos os comboios britânicos que larga-
permite excluir a hipótese de se tratar de parte de vam da Inglaterra incluíam navios com destino a Lis-
um mesmo naufrágio. A profundidade encontra-se boa. Naturalmente, com o início das guerras contra
em redor dos 7,5 m (ao ZH). Os dados de multifei- França, e em especial após a Inglaterra ter colocado
xe não permitem detectar outros depósitos expostos os seus exércitos a confrontar Napoleão na Penínsu-
nas proximidades relacionáveis com este sítio. la Ibérica, o número de navios britânicos a pratica-
Os destroços deste contexto, para já menos expres- rem o porto de Lisboa aumentou significativamen-
sivos do que nos outros dois sítios aqui analisados, te (Knight, 2022). A utilização de Lisboa era já uma
estavam expostos apenas numa zona curta, de 11 m2, prática que vinha desde meados do século XVII, pois
com 5 metros no sentido este-oeste e 3,5 metros de a Royal Navy considerava a capital portuguesa uma
largura, no sentido sul-norte (Fig. 6). O contexto base ideal para as operações contra Espanha. Nesta
apresenta um pequeno tumulus com pelouros de altura, Lisboa, mesmo após a captura de Gibraltar
ferro a granel, numa organização que faz lembrar pelos ingleses em 1704, era a melhor base para as
a documentada em Parede 1. Observam-se ainda operações britânicas no Mediterrâneo. Lisboa servia
três canhões em ferro junto à areia. Os canhões, de também de ponto de reunião dos comboios de navios
modelos comuns no século XVIII, com cascavel em mercantes, antes de entrarem no Mediterrâneo.
botão, medem aproximadamente 2,35 m de compri- No entanto, apesar das excelentes condições que o
mento funcional. estuário oferecia, a navegação à entrada do Tejo era
condicionada por fortes correntes de maré e limita-
5. Poster apresentado no Congreso Iberoamericano de Arqueo- SOUSA, Ana Catarina (coord.) (2011) – Mafra na Guerra Pe-
logía Náutica y Subacuática (CIANYS 2021), que se realizou ninsular: a rota histórica das Linhas de Torres. Mafra: Câmara
em Cádiz entre 20 e 23 de Outubro de 2021. Municipal de Mafra.
1550
TELO, António José (2005) – A Península nas guerras globais
de 1792-1815. In Actas do congresso Guerra Peninsular. Novas
interpretações. Lisboa: Tribuna da História, pp. 300-318.
Figura 1 – Localização dos naufrágios Parede 1, Carcavelos 12 e Carcavelos 13, sobre cartografia OSM.
1552
Figura 4 – Carcavelos 12 – ortomosaico e modelo digital de superfícies de 2022 – orientação ao norte magnético (imagens: José
Bettencourt).
1554
ESTUDO ZOOARQUEOLÓGICO E
TAFONÓMICO DE UM SILO DE ÉPOCA
MODERNO-CONTEMPORÂNEA DA
CASA CORDOVIL, ÉVORA
Catarina Guinot1, Nelson J. Almeida2, Leonor Rocha3
RESUMO
Este artigo apresenta os resultados do estudo arqueofaunístico da escavação de um silo realizada em 2022 na
Casa Cordovil, em Évora. Trata-se de uma casa residencial de uma família nobre, residente em Évora, instalada
desde o século XVI. Identificou-se uma prevalência de mamíferos (essencialmente gado doméstico) e avifauna
(sobretudo galinha), sendo o grupo dos bivalves residual. Registaram-se indicadores tafonómicos, como marcas
de corte, marcas de mordida, alterações térmicas, entre outros. As informações sobre a exploração destes recur-
sos foram usadas para comparar os dados obtidos com outros coetâneos.
Palavras-chave: Período Moderno-Contemporâneo; Casa Cordovil; Zooarqueologia; Tafonomia; Silo.
ABSTRACT
This study presents the archaeofaunal assemblage recovered from a silo during the 2022 excavation at the Casa
Cordovil, in Évora. This site was a residential home of a noble family, resident in Évora, installed since the
16th century. We identified a majority of mammals (essentially domesticated) and birds (mostly chicken), while
bivalves are residual. Taphonomic indicators, such as cutmarks, tooth marks and thermal alterations, were re-
corded. The results obtained were compared with data from “contemporaneous” sites.
Keywords: Modern-Contemporary Period; Casa Cordovil; Zooarchaeology; Taphonomy; Silo.
2. Departamento de História, Universidade de Évora / UNIARQ, Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa / O Legado da Terra,
Cooperativa de Responsabilidade Limitada / [email protected]
3. Departamento de História, Universidade de Évora / CHAIA – Centro de História de Arte e Investigação Artística / [email protected]
1556
tecido ósseo) (Almeida, 2017 e referências citadas) apendicular, embora estes últimos sejam de valor
e medidas para a distinção entre a ação antrópica e diminuto, tanto no caso do NISP como do MNE.
de carnívoros, omnívoros e herbívoros osteófagos. O MNI das galinhas engloba um imaturo e quatro
As alterações térmicas foram identificadas diferen- adultos. Já a fauna malacológica recuperada na Casa
ciando a queima (Cáceres & alii, 2002) e a fervura Cordovil apresenta-se como vestigial de acordo com
(Greenfield & Beattie, 2017; Almeida, 2017). o NISP e MNE, com bivalves de ostras planas euro-
peias de diversas dimensões (MNI=3).
4. RESULTADOS
4.2. Tafonomia
4.1. Anatomia, Taxonomia e Idades de Abate A amostragem da Casa Cordovil traduz-se maiorita-
Os materiais arqueofaunísticos do Silo 1 da Casa riamente em ossos incompletos (86,6%), com uma
Cordovil (Tabelas 1 e 2) apresentam uma dinâmica pequena porção completa de falanges (13,4%; capri-
dominada por mamíferos (NISP 65,7%), com uma nos e bovinos) e ossos do esqueleto apendicular de
boa parte do conjunto de mamíferos a ser identifi- galinhas (fémures e ulnas em grande parte). No caso
cado taxonomicamente (NISP 31,4%). Comparecem do registo diafisário (Figura 2) de GP1, há um gran-
aves (NISP 18,3%), com uma presença de bivalves de destaque para os espécimes com L4 (70%) e S4
(NISP 1,3%) mais diminuta que os ossos indetermi- (91%) enquanto outras categorias de longitude e sec-
nados, mas que corresponderão sobretudo a ma- ção apresentam percentagens muito mais reduzidas.
míferos não identificados taxonomicamente (NISP Se adiante se observar o caso dos GP2-4, a realidade
14,7%). Ao observar o panorama geral de todos estes diverge, compreendendo percentagens mais ele-
restos, contámos com uma maior representação do vadas em L1 (43%) e L2 (17%) do que nas restantes
esqueleto apendicular face ao esqueleto axial, em- enquanto que, por outro lado, há um equilíbrio entre
bora se destaque a grande quantificação de costelas secções e um destaque de S4 (57%). A distribuição de
e vértebras. dados possibilitar-nos-á a conclusão de que os ossos
Dos mamíferos identificados, atestou-se uma pre- com maior completude se encontram em GP1, isto é,
dominância de porco, em especial de ossos do es- aves e (escassos) leporídeos. O contrário se afirma-
queleto apendicular. Identificaram-se quatro indi- rá para os GP2-4 que, embora mantenham um certo
víduos, nomeadamente um juvenil, um subadulto, equilíbrio entre longitudes e a secção, encontram-se
um juvenil/adulto e um adulto. O gado bovino e, bastante fraturados/fragmentados. Quando se fala
em menor escala, o caprino, encontram-se com um dos planos de fratura de GP1, conseguimos obser-
número elevado de NISP; no caso da vaca, com um var uma prevalência de delineação curva, com um
maior MNE de elementos axiais e ossos das extremi- ângulo predominantemente reto e superfície suave.
dades correspondentes a MNI=2 adultos e, no caso Agora, no caso dos GP2-4, observamos uma predo-
dos caprinos, com uma maior dispersão do esque- minância da delineação curva, com ângulos diversos
leto apendicular e metápodes. Dentro dos caprinos e superfície suave. Pela associação de planos de fra-
foi possível a identificação de uma cabra subadulta/ tura com delineação curva, ângulo oblíquo e superfí-
adulta e de uma ovelha infantil/juvenil através da cie suave poderemos pressupor, de um modo geral,
morfologia. Regista-se ainda um indivíduo perinatal que se verifica uma maior fracturação em estado
de ovelha/cabra, com uma biometria linear enqua- “fresco” dos restos que fragmentação.
drável na fase 3 de Martín & García-González (2015). Os principais indicadores tafonómicos de consumo
Os leporídeos são todos adultos e distribuem-se, encontram-se distribuídos, com alguma variedade,
maioritariamente, pela presença de coelho e de for- pela fauna do Silo 1 da Casa Cordovil (Tabela 3).
ma residual a lebre, ambos representados em MNE Dentro da fracturação antrópica (12,8%), encontra-
pelo esqueleto apendicular. O coelho compreen- mos diferentes indicadores como impactos (n=7),
de, por outro lado, a presença de alguns elementos estigmas (n=5), extrações corticais (n=3), lascas pa-
axiais cranianos. rasitas (n=1) e outros (n=23) associados a planos de
A avifauna destaca-se também na Casa Cordovil, fratura em fresco e a marcas de corte de processa-
com uma presença maioritária de galinha compara- mento de carcaças. Impactos encontram-se em os-
tivamente a outras espécies. A galinha, assim como sos do esqueleto apendicular de porcos, mamíferos e
o ganso e a perdiz, representam-se pelo esqueleto vacas, geralmente, em diáfises, com uma maior fre-
1558
a um canídeo, outras mais superficiais, assim como modo geral, as taxas identificadas no Silo 1 na Casa
a maioria dos indicadores de consumo em restos de Cordovil encontram-se identificados em outros sí-
avifauna, parecem dever-se a agentes antrópicos. tios arqueológicos, embora se dispersem em NISP ou
Esta inferência é também corroborada por outros fa- PoSACs (Parts of the skeleton always counted), como é
tores e comportamentos associados à fase nutritiva passível de ver na Tabela 4. É de salientar também a
de ambos. Isto verifica-se, sobretudo, em GP1 com presença de avifauna e fauna malacológica (Tabelas
a remoção de porções epifisárias para a obtenção de 4 e 5) em alguns destes conjuntos, que é coincidente
tutano, um comportamento tipicamente antrópico, com a realidade da Casa Cordovil, o que poderá ser
escasseando a fratura dos ossos longos nas suas diá- entendido como uma consecutiva aquisição ou cria-
fises, apesar de em alguns casos terem marcas de ção de aves em meio urbano, no período moderno-
corte em porções proximais e distais. -contemporâneo, e da aquisição de bivalves, no caso
Quanto aos processos de alterações térmicas (quei- de ostras, nos estuários mais próximos, sendo o caso
ma e fervura), parece verificar-se um favoritismo da Casa em Silves, do Largo do Coreto em Carnide,
pela galinha ou leporídeos em pratos de ensopados, do Palácio Centeno, Santa-Clara-a-Velha e dos ní-
guisados ou até mesmo de canja. Seria discutível veis modernos do Museu do Neo-Realismo de Vila
ainda inferir uma relação entre os humanos e um Franca de Xira (Davis, 2009; Detry & alii, 2014; De-
canídeo na medida em que os restos alimentares de try & alii, 2020; Detry & Pimenta, 2016-2017; Gomes
animais de maior porte, em vez de serem descarta- & alii, 1996; Moreno-García & Detry, 2010; Sousa &
dos automaticamente, seriam entregues para uma alii, 2017).
alimentação posterior destes animais. O caso do Silo 1 da casa Cordovil remete-nos para
Os dados de época moderno-contemporânea em uma preferência por galinha, porco e vaca, respetiva-
território português são, de um modo geral, carac- mente, que parece não ser uma realidade semelhan-
terísticos de uma investigação ainda escassa neste te aos outros sítios arqueológicos. A maioria destes
domínio. Esta realidade é moldada, provavelmente, compreende o gado bovino ou caprino como o mais
por uma prevalência de publicações de outros perío- comum, sendo residual a presença de porco ou ga-
dos cronológicos mais distantes, onde são aplicadas linha como um dos três mais presentes, com exce-
metodologias equivalentes às apresentadas neste ção do Mosteiro de Santa-Clara-a-Velha, o Terreiro
trabalho. Não só, mas também, a proximidade do do Real Monumento de Mafra e o Palácio Centeno,
período estudado com os dias atuais poderá equivo- caracterizados por valores elevados de porco. O Pa-
car um pensamento de equivalência de comporta- lácio Centeno, em Lisboa, será destes três o mais
mento humano dos dias de hoje, como tal, cessando passível de uma aproximação a nível percentual
a valência informativa extraída por métodos tafo- com os do Silo 1 da Casa Cordovil, devido à presen-
nómicos. Outro fator que poderá ter contribuído ça elevada de galinha. Também se poderá falar no
para esta realidade deve-se, inclusive, por serem caso do Largo do Coreto, em Carnide, e do Museu
sítios arqueológicos associados a um contexto de do Neo-Realismo, como exemplos de que, dentro da
obra, razão pela qual muitos restos faunísticos não avifauna, ocorre um evidente destaque da galinha.
são recuperados. Sobre o consumo de aves, neste período cronológi-
As publicações disponíveis para acesso refletem, no co, observa-se a existência de ganso e perdiz noutros
entanto, uma realidade deposicional em estruturas sítios arqueológicos, também em número diminuto,
negativas, sejam estas fossas ou silos, de armaze- como em Carnide.
namento ou descarte de excedentes dos residentes. Os elementos do esqueleto identificados nos con-
No entanto, este não é o único cenário compatível juntos mencionados, assim como o da Casa Cor-
com a maioria destes sítios, observando-se também dovil, compreendem uma maioria de elementos do
uma presença constante de locais residenciais as- esqueleto apendicular, com inclusão de metápodes.
sociados à presença de uma entidade elitista, indi- Diferenciam-se estes, no entanto, pela oclusão de
ciada, por vezes, pela própria origem etimológica do dados sobre a avifauna, como tal, só poderemos afe-
sítio arqueológico. rir esta relação de proximidade para com os espéci-
Numa análise comparativa entre a Casa Cordovil e mes de mamíferos. Observa-se, inclusive, em casos
outros dados arqueofaunísticos sobre as dinâmicas como a Casa de Silves, Carnide ou em Vila Franca
taxonómicas dos conjuntos observamos que, de um de Xira, uma presença maioritária de dentes de ca-
1560
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Figura 1 – Localização da Casa Cordovil na Carta Militar de Portugal (CMP 470) e na malha urbana de Évora (esquerda) e dos sí-
tios arqueológicos moderno-contemporâneos associados a conjuntos arqueofaunísticos referidos em texto (direita). Ortofotos
extraídas através do Google Earth (2015, 2017).
1562
Figura 2 – Histogramas de dispersão percentual (%). Topo: Categorias de Longitude (L) e Categorias de Secção (S) de registos
diafisários – GP1 n=43, GP2-4 n=21; base: delineação, ângulo e superfície de planos de fratura –GP1 n=153, GP2 n=129.
Figura 3 – Comparação (mm) da média e IC 95% obtidos de acordo com o tecido ósseo para: Canis lupus (Andrés & alii, 2012);
Canis familiaris (Delaney-Rivera & alii, 2009; Andrés & alii, 2012); Sus scrofa e Sus domesticus (Saladié, 2009); humanos Maasai
(Andrés & alii. 2012); humanos europeus (Saladié & alii, 2012); humanos (Delaney-Rivera & alii, 2009); Vulpes vulpes (Andrés &
alii, 2012) e Lynx pardinus (Rodríguez-Hidalgo & alii, 2013; Rodríguez-Hidalgo & alii, 2015).
1564
NSP % MNI % MNE %
Mammalia
Bos taurus 17 5,6 2 9,1 16 13,6
cf. Bos taurus 12 3,9 5 4,2
Sus domesticus 33 10,8 4 18,2 28 23,7
cf. Sus domesticus 1 0,3 1 0,8
Capra hircus 1 0,3 1 4,5 1 0,8
cf. Ovis aries 1 0,3 1 4,5 1 0,8
Ovis/Capra 13 4,2 1 4,5 12 10,2
Oryctolagus cuniculus 9 2,9 2 9,1 8 6,8
Lepus sp. 1 0,3 1 4,5 1 0,8
Leporidae 8 2,6 2 1,7
Mammalia ind. 105 34,3
Sub-total Mammalia 201 65,7 12 54,6 75 63,6
Aves
Gallus gallus domesticus 35 11,4 5 22,7 34 28,8
Galliforme 1 0,3 1 0,8
Anser anser 1 0,3 1 4,5 1 0,8
cf. Anser anser 1 0,3 1 0,8
Perdix perdix 1 0,3 1 4,5 1 0,8
cf. Perdix perdix 1 0,3 1 0,8
Aves ind. 16 5,2
Sub-total Aves 56 18,3 7 31,8 39 33,1
Bivalvia
Ostrea edulis 4 1,3 3 13,6 4 3,4
Sub-total Bivalvia 4 1,3 3 13,6 4 3,4
Sub-total identificados 261 85,3
Indeterminados
GP indeterminados 12 3,9
GP1 (<20kg) 23 7,5
GP 1/2 (<100kg) 9 2,9
GP 2 (20-100kg) 1 0,3
GP 3 (100-300kg) 0 0
GP 4 (>300kg) 0 0
Sub-total indeterminados 45 14,7
Total 306 100 22 100 118 100
Tabela 1 – Valores absolutos e percentuais da fauna identificada e indeterminada, de acordo com os valores do número de es-
pécimes (NSP).
Tabela 2 – Valores do número de espécimes identificados (NISP) e número mínimo de elementos (MNE) entre parêntesis, para
as principais espécies identificadas: B = Bos taurus+cf. Bos taurus; S = Sus domesticus+cf. Sus domesticus, CH = Capra hircus,
OA = cf. Ovis aries, O/C = Ovis/Capra, LE = Lepus sp., L = Leporidae, GD = Gallus gallus domesticus.
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MC FA FER QUE MD