A Ascensão Da Rainha - Vol.02 - A Resistencia Da Rainha - Rebecca Ross

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Tradução de

Leonardo Alves

1ª edição

RIO DE JANEIRO
2022
EDITORA-EXECUTIVA REVISÃO
Rafaella Machado Renato Carvalho
COORDENADORA EDITORIAL DIAGRAMAÇÃO DA VERSÃO IMPRESSA
Stella Carneiro Abreu’s System
EQUIPE EDITORIAL CAPA
Juliana de Oliveira Renata Vidal
Isabel Rodrigues
TÍTULO ORIGINAL
Lígia Almeida
The Queen’s Resistance
Manoela Alves
PREPARAÇÃO
João Pedroso

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

R738r

Ross, Rebecca
A resistência da rainha [recurso eletrônico] / Rebecca Ross; tradução Leonardo
Alves. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Galera, 2022.
recurso digital

Tradução de: The queen's resistance


Sequência de: A ascensão da rainha
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5981-148-9 (recurso eletrônico)

1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. I. Alves, Leonardo. II. Título.

22-76979 CDD: 813


CDU: 82-3(73)

Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária – CRB-7/6439

Copyright © 2018 by Rebecca Ross

Todos os direitos reservados.


Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.
Os direitos morais da autora foram assegurados.

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos


pela
EDITORA GALERA RECORD LTDA.
Rua Argentina, 120 – Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: (21) 2585-2000, que se reserva
a propriedade literária desta tradução.

Produzido no Brasil

ISBN 978-65-5981-148-9

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Para os meus avós —
Mark e Carol Deaton, e John e Barbara Wilson —,
que continuam me inspirando dia após dia.
SUMÁRIO

Personagens
Árvore genealógica da família Allenach
Árvore genealógica da família MacQuinn
Árvore genealógica da família Morgane
Árvore genealógica da família Kavanagh


1. A filha do inimigo — Brienna
2. Um rastro de sangue — Cartier
3. O recolhimento de queixas — Brienna
4. Os velozes nascem para a mais longa das noites — Cartier
5. Confissões à luz de velas — Brienna
6. A menina do manto azul — Cartier
7. Traga-me a fita dourada — Brienna
8. Cadê você, Aodhan? — Cartier
9. O gume afiado da verdade — Brienna
10. Órfão, não mais — Cartier


11. Meias-luas — Brienna
12. Parte amarga — Cartier
13. Dilemas noturnos — Brienna
14. Uma vez Lannon, sempre Lannon — Cartier
15. Irmãos e irmãs — Brienna
16. Cortem as cabeças — Cartier
17. Descobertas perigosas — Brienna


18. Siga a correnteza — Cartier
19. Ao sinal da meia-lua — Brienna
20. Uma princesa ensanguentada — Cartier
21. Lady MacQuinn — Brienna
22. Rosalie — Cartier
23. A fera — Brienna


24. Ultimato — Cartier
25. Derrota e esperança — Brienna
26. Filamentos ocultos — Cartier
27. Aço e pedra — Brienna
28. A torre sul — Cartier
29. Resistir — Brienna
30. Cadê você, Declan? — Cartier


31. Revelações — Brienna
32. O relato — Cartier
33. O dragão e o falcão — Brienna
34. Entre as trevas e a luz — Cartier
35. A rainha ascende — Brienna
36. O melhor da sua Casa — Cartier
37. Ao encontro da luz — Brienna

Agradecimentos
PERSONAGENS

CASA MACQUINN — O DETERMINADO

Brienna MacQuinn, mestra de conhecimento, filha adotiva do


lorde
Davin MacQuinn, lorde MacQuinn (antes Aldéric Jourdain)
Lucas MacQuinn, mestre de música, filho do lorde (antes Luc
Jourdain)
Neeve MacQuinn, tecelã
Betha MacQuinn, tecelã-chefe
Dillon MacQuinn, cavalariço
Liam O’Brian, nobre
Thorn MacQuinn, intendente do castelo
Phillip e Eamon, guardas
Isla MacQuinn, curandeira

CASA MORGANE — O VELOZ

Aodhan Morgane, mestre do conhecimento, lorde Morgane


(antes Cartier Évariste)
Seamus Morgane, nobre
Aileen Morgane, esposa de Seamus, intendente do castelo
Derry Morgane, pedreiro

CASA KAVANAGH — O BRILHANTE

Isolde Kavanagh, rainha de Maevana (antes Yseult Laurent)


Braden Kavanagh, pai da rainha (antes Hector Laurent)

CASA LANNON — O IMPETUOSO

Gilroy Lannon, ex-rei de Maevana


Oona Lannon, esposa de Gilroy Lannon
Declan Lannon, filho de Gilroy e Oona
Keela Lannon, filha de Declan
Ewan Lannon, filho de Declan

CASA HALLORAN — O DECOROSO

Treasa Halloran, lady Halloran


Pierce Halloran, filho mais novo da lady

CASA ALLENACH — O SAGAZ

Sean Allenach, lorde Allenach, meio-irmão de Brienna


Daley Allenach, criado do lorde
Liadan Allenach (irmã de Brendan Allenach), 1495-1516

CASA BURKE — O ANCIÃO

Derrick Burke, lorde Burke

CASA DERMOTT — O AMADO

Grainne Dermott, lady Dermott


Rowan Dermott, marido de Grainne Dermott

OUTROS CITADOS

Merei Labelle, mestra de música


Oriana DuBois, mestra de arte
Tristan Allenach
Tomas Hayden
Fergus Lannon
Patrick Lannon
Ashling Morgane
Líle Morgane
Sive MacQuinn

AS CATORZE CASAS DE MAEVANA

Allenach, o Sagaz
Kavanagh, o Brilhante
Burke, o Ancião
Lannon, o Impetuoso
Carran, o Corajoso
MacBran, o Misericordioso
Dermott, o Amado
MacCarey, o Justo
Dunn, o Sábio
MacFinley, o Pensativo
Fitzsimmons, o Gentil
MacQuinn, o Determinado
Halloran, o Decoroso
Morgane, o Veloz
A V O LTA
Outubro de 1566
1

A FILHA DO INIMIGO
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn

Brienna

O castelo fervilhava de risos e preparativos para o jantar quando eu


e Cartier entramos no salão com mantos azul-escuros nas costas e
a brisa da noite sacudindo nossos cabelos. Parei no centro do
espaço grandioso para admirar as tapeçarias penduradas, o arco
alto do teto que se fundia nas sombras turvas e as janelas com
mainel na parede leste. O fogo ardia em uma lareira de acabamento
polido, e as mulheres do castelo estavam dispondo as melhores
peças de estanho e prata nas mesas compridas. Como eu ainda era
uma pessoa desconhecida, não repararam em mim, então fiquei
observando um grupo de meninas decorar as colunas das mesas
com uma corrente de pinhas e flores vermelho-escuras. Um menino
corria atrás delas para acender uma cordilheira de velas,
visivelmente de olho em uma das garotas de cabelo castanho.
Por um instante, quase parecia que esse castelo e essas
pessoas nunca tinham passado pelas trevas e pela opressão do
reinado da família Lannon. No entanto, fiquei pensando nas feridas
que seus corações ainda guardavam e nas lembranças deixadas
por 25 anos de tirania do rei.
— Brienna.
Cartier parou com delicadeza ao meu lado. Ele se manteve a
uma distância segura de mim — um braço inteiro —, embora eu
ainda tivesse a memória de seu toque e do sabor de seus lábios nos
meus. Ficamos parados em silêncio, e eu sabia que ele também
estava admirando os clamores e a beleza rústica do ambiente. Que
ele ainda estava tentando se adaptar ao que nossas vidas estavam
prestes a se tornar agora que havíamos voltado aos domínios da
rainha de Maevana.
Eu era a filha adotiva de Davin MacQuinn — um lorde derrotado
que passara os últimos 25 anos escondido, e que finalmente voltara
para iluminar seu salão e recuperar seu povo.
E Cartier, meu antigo instrutor, era o lorde da Casa Morgane.
Lorde da Veloz — Aodhan Morgane.
Eu achava praticamente impossível chamá-lo assim. Era um
nome que, em todos os anos desde que o conheci no reino austral
de Valenia, quando fui sua pupila, e ele, meu professor, mestre de
conhecimento, eu jamais teria imaginado que ele possuiria.
Pensei no emaranhado que nossas vidas haviam se tornado,
desde o primeiro momento em que o vi e fui aceita na prestigiosa
Casa Magnalia, uma escola valeniana das cinco paixões da vida. Eu
havia deduzido que ele era valeniano — seu nome era valeniano, e
ele era versado em etiqueta e paixão e passara quase toda a vida
no reino do sul.
Contudo, ele era muito mais do que isso.
— Por que a demora?
Levei um susto, pega de surpresa por Jourdain, que apareceu no
meu campo de visão e me avaliou dos pés à cabeça, como se
esperasse que eu tivesse algum arranhão. O que quase cheguei a
achar engraçado, porque, três dias antes, havíamos participado de
uma batalha com Isolde Kavanagh, a legítima rainha de Maevana.
Eu vestira armadura, passara corante azul no rosto, trançara o
cabelo e brandira uma espada em nome de Isolde, sem saber se
sobreviveria à revolução. Mas eu lutara por ela, assim como Cartier
e Jourdain, e com ela para desafiar Gilroy Lannon, um homem que
jamais deveria ter sido rei destas terras. Unidos, nós o derrubamos
junto com sua família no decorrer de uma alvorada sangrenta, ainda
que vitoriosa.
E, agora, Jourdain agia como se eu tivesse corrido para mais
uma batalha. Só porque estava atrasada para o jantar.
Eu precisava me lembrar da necessidade de ser compreensiva.
Não estava acostumada a paparicos paternos — havia passado a
vida inteira sem saber quem era meu pai verdadeiro. E, ah, como eu
lamentava saber agora de quem eu descendia; expulsei o nome
dele da mente e tratei de me concentrar no homem diante de mim, o
homem que me adotara como filha meses atrás, quando unimos
nossos conhecimentos para tramar uma rebelião contra o rei
Lannon.
— Cartier e eu tínhamos muitos assuntos para conversar. E não
me venha com esse olhar, pai. Chegamos a tempo — falei, mas
meu rosto esquentou sob o escrutínio atento de Jourdain.
Quando ele dirigiu os olhos para Cartier, acho que entendeu.
Cartier e eu não tínhamos só “conversado”.
Foi irresistível a lembrança do momento em que estávamos eu e
Cartier no seu castelo decadente nas terras de Morgane, quando ele
finalmente me dera meu manto de paixão.
— Sim, bom, falei para você voltar antes de escurecer, Brienna
— disse Jourdain, e então se dirigiu a Cartier com um tom mais
brando: — Morgane. É gentileza sua vir participar de nosso
banquete comemorativo.
— Obrigado pelo convite, MacQuinn — respondeu Cartier,
abaixando a cabeça em sinal de respeito.
Foi estranho ouvir esses nomes serem pronunciados em voz
alta, pois eles não correspondiam às imagens que eu tinha na
mente. E, ainda que outros fossem começar a tratar Cartier como
lorde Aodhan Morgane, eu sempre pensaria nele como Cartier.
Além disso, ainda tinha Jourdain, meu patrono transformado em
pai. Quando eu o conhecera, dois meses antes, ele se apresentara
como Aldéric Jourdain, seu codinome valeniano. Mas, assim como
Cartier, ele era muito mais do que aquilo. Era lorde Davin MacQuinn,
o Determinado. E, ainda que outros fossem começar a tratá-lo
assim, eu o chamaria de “pai” e sempre pensaria nele como
Jourdain.
— Venham, vocês dois.
Jourdain nos levou para cima do tablado, onde a família do lorde
deveria sentar e jantar em uma mesa comprida.
Cartier piscou para mim quando Jourdain estava de costas para
nós, e tive que reprimir um sorriso de pura felicidade.
— Aí está você! — gritou Luc ao entrar no salão por uma das
portas laterais e me ver no tablado.
As meninas pararam de montar os arranjos de pinhas e flores e
cochicharam quando Luc passou por elas. Seu cabelo castanho-
escuro estava desarrumado, o que era comum, e seus olhos
brilhavam de alegria.
Ele se apressou pelos degraus do tablado e me envolveu em um
abraço, como se tivéssemos passado meses sem nos ver, embora
eu o tivesse visto naquela mesma tarde. Segurou meus ombros e
me virou de costas para ver os fios de prata costurados em meu
manto de paixão.
— Mestra Brienna — disse ele. Eu me virei de volta e ri, por
finalmente escutar o título associado ao meu nome. — É um belo
manto.
— É, bom, acho que esperei bastante para tê-lo — respondi,
sem conseguir evitar um olhar para Cartier.
— Qual é a constelação? — perguntou Luc. — Acho que sou
horrível em astronomia.
— É Aviana.
Eu agora era mestra de conhecimento, algo pelo qual havia
dedicado anos de esforço na Casa Magnalia para conquistar. E,
naquele instante, dentro do salão de Jourdain em Maevana, cercada
da família e amigos, com meu manto de paixão, e com Isolde
Kavanagh prestes a voltar ao trono do norte… era impossível me
sentir mais satisfeita.
Quando todos nós nos sentamos, fiquei observando Jourdain,
que segurava um cálice dourado nas mãos e tinha uma expressão
cuidadosamente reservada no rosto ao examinar as pessoas que
entravam para o jantar. O que será que ele estava sentindo depois
de finalmente voltar para casa, após aqueles 25 anos de terror, e
poder retomar sua função de lorde daquele povo?
Eu sabia a verdade de sua vida, tanto de seu passado maevano
quanto do valeniano.
Ele havia nascido nesse castelo como filho nobre de Maevana.
Herdara as terras e o povo de MacQuinn e lutara para protegê-lo ao
ser obrigado a servir ao terrível rei Gilroy Lannon. Eu sabia que
Jourdain presenciara cenas horríveis no salão do rei — vira homens
perderem mãos e pés por não conseguirem pagar integralmente os
tributos, vira idosos perderem um olho por fitar o rei por tempo
demais, escutara mulheres gritarem de cômodos distantes ao serem
espancadas, vira crianças serem açoitadas por fazer barulho
quando deviam ter ficado quietas. Eu vi, confessara Jourdain para
mim certa vez, empalidecido pela lembrança. Eu assistia àquilo
tudo, com medo de me opor.
Até que finalmente decidira se rebelar, destronar Gilroy Lannon,
restituir uma rainha legítima ao trono do norte e eliminar as trevas e
o terror que haviam se abatido sobre a antiga glória de Maevana.
Duas outras Casas maevanas se uniram à sua revolução
secreta: os Kavanagh, que tinham sido a única casa mágica de
Maevana, e os Morgane. Mas Maevana era uma terra com catorze
casas mais diversas impossível; cada uma tinha seus próprios
pontos fortes e fracos. Contudo, apenas três se atreveram a desafiar
o rei.
Acho que foi pela incerteza que a maioria dos lordes e ladies se
contiveram, afinal, havia dois artefatos preciosos desaparecidos: a
Pedra do Anoitecer, que concedia à casa Kavanagh seus poderes
mágicos, e o Cânone da Rainha, que era a lei que declarava que
nenhum rei jamais haveria de ocupar o trono de Maevana. Sem a
pedra e o Cânone, como a rebelião seria capaz de derrocar Gilroy
Lannon, que estava profundamente estabelecido no trono?
Mas, 25 anos antes, MacQuinn, Kavanagh e Morgane haviam se
unido e atacado o castelo real, preparados para a guerra. O sucesso
do golpe dependia de pegar Lannon de surpresa, o que foi
impossível quando lorde Allenach, meu pai biológico, descobriu a
existência da rebelião e a traiu.
Gilroy Lannon estava à espera de Jourdain e seus seguidores.
Ele atacou e matou as mulheres de cada família, ciente de que
isso aniquilaria a motivação dos lordes.
Mas o que Gilroy não esperava era que três das crianças
sobrevivessem: Luc. Isolde. Aodhan. E como sobreviveram, os três
lordes revoltosos fugiram com os filhos para o país vizinho de
Valenia.
Adotaram nomes e profissões valenianas; descartaram a língua
materna dairine em favor do chantal médio, o idioma valeniano;
enterraram suas espadas, seus brasões do norte e sua ira. Se
esconderam e criaram os filhos como valenianos.
Mas o que a maioria não sabia era que Jourdain nunca
abandonou os planos de voltar e destronar Lannon. Ele e os outros
dois lordes derrotados se encontravam uma vez por ano, sem
jamais perder as esperanças de que poderiam iniciar outro levante e
vencer.
Tinham Isolde Kavanagh, que estava destinada a se tornar
rainha.
Tinham o desejo e a vontade de se rebelar novamente.
Tinham a sabedoria dos anos, assim como a dolorosa lição do
primeiro fracasso.
No entanto, ainda lhes faltavam dois elementos cruciais: a Pedra
do Anoitecer e o Cânone da Rainha.
Foi aí que me juntei a eles, pois eu havia herdado lembranças de
um antepassado distante que enterrara a pedra mágica séculos
atrás. Se eu conseguisse recuperá-la, a magia voltaria aos
Kavanagh, e as outras casas maevanas talvez finalmente se
unissem a nossa revolução.
E foi exatamente o que fiz.
Tudo isso acontecera meras semanas atrás, mas parecia que
tinha sido havia muito mais tempo, como se eu estivesse vendo tudo
através de um vidro rachado — embora eu ainda sentisse os
hematomas e as dores da batalha e dos segredos e traições, da
verdade que descobri sobre minha própria linhagem maevana.
Suspirei, deixei meus devaneios se dissiparem e continuei
observando Jourdain, sentado à mesa.
Seu cabelo castanho-escuro estava amarrado com uma fita, o
que o fazia parecer valeniano, mas um aro repousava em sua
cabeça, um vislumbre de luz. Ele usava calças pretas simples e um
gibão de couro com um falcão dourado bordado na altura do peito, o
orgulhoso brasão de sua casa. Sua bochecha ainda brandia um
corte da batalha, mas se curava lentamente. Sinal do que havíamos
acabado de sofrer.
Jourdain lançou um olhar para dentro do cálice, e finalmente vi
— a fagulha de incerteza, a dúvida em relação a si mesmo, a
assombração de não ter valor nenhum —, então peguei uma taça de
sidra e puxei a cadeira ao seu lado, para me sentar com ele.
Eu havia crescido junto de outras cinco ardens na Casa
Magnalia, cinco meninas que tinham se tornado irmãs para mim.
Contudo, a experiência dos últimos meses cercada por homens fora
um profundo aprendizado sobre a natureza deles, ou,
principalmente, a fragilidade de seu coração e seu ego.
Não falei nada, a princípio, e ficamos observando as pessoas
trazerem bandejas de comida fumegante e as depositarem nas
mesas. Mesmo assim, comecei a reparar que uma boa quantidade
dos MacQuinn falavam em tons contidos, como se ainda tivessem
medo de que alguém os ouvisse. As roupas eram limpas, mas
esfarrapadas, e os rostos tinham marcas profundas do trabalho
pesado e das décadas sem sorrir. Alguns dos meninos estavam até
surrupiando pedaços de presunto da bandeja e enfiando nos bolsos,
como se estivessem acostumados a passar fome.
E levaria tempo para o medo desaparecer, para os homens, as
mulheres e as crianças desta terra se regenerarem e se
restabelecerem.
— Deve parecer até um sonho para você, não é, pai? —
sussurrei, enfim, para Jourdain, quando senti o peso de nosso
silêncio.
— Hmm. — O som preferido de Jourdain, que significava que ele
concordava em partes. — Em alguns momentos, parece. Até eu
procurar Sive e me dar conta de que ela não está mais aqui. Aí
parece realidade.
Sive, a esposa dele.
Eu não conseguia deixar de imaginar como ela devia ter sido,
uma mulher de coragem, valente, que cavalgou para a batalha
tantos anos atrás, que sacrificou a própria vida.
— Queria ter a conhecido — falei, e a tristeza invadiu meu
coração.
Eu conhecia esse sentimento; o desejo de ter uma mãe me
acompanhara por muitos anos.
Minha própria mãe era valeniana e morrera quando eu tinha 3
anos. Meu pai, por outro lado, era maevano. Às vezes, eu me sentia
dividida entre esses dois países: a paixão do sul, a espada do norte.
Eu queria fazer parte daqui, com Jourdain, com os MacQuinn, mas
quando pensava em meu sangue paterno, quando lembrava que
Brendan Allenach, tão lorde quanto traidor, era meu pai de sangue,
eu me perguntava se algum dia seria aceita aqui, neste castelo que
ele havia atormentado.
— E para você, Brienna, como está sendo? — perguntou
Jourdain.
Pensei por um instante, saboreando o calor dourado da fogueira
e a felicidade que crescia no povo de Jourdain à medida que a
concentração em volta das mesas aumentava. Ouvi a música que
Luc tocava no violino, melódica e agradável, provocando sorrisos
em homens, mulheres e crianças, e me inclinei na direção de
Jourdain, para apoiar a cabeça em seu ombro.
E dei a resposta que ele precisava ouvir, não a que eu sentia
plenamente até o momento:
— Parece que estou em casa.

Só me dei conta de como estava com fome quando a comida foi


servida: bandejas de carne assada e legumes salpicados de ervas,
pães amaciados com manteiga, frutas em conserva e pratos de
queijos fatiados com cascas de diversas cores. Enchi o prato com
mais comida do que jamais seria capaz de comer.
Enquanto Jourdain se ocupava falando com a sucessão de
homens e mulheres que subiam ao tablado para cumprimentá-lo
formalmente, Luc puxou a cadeira para ficar de frente para mim e
Cartier.
— Pois não? — perguntei, já que Luc ficou apenas sorrindo para
nós.
— Quero saber a verdade — disse ele.
— Que verdade, irmão?
Luc franziu a testa.
— De como vocês se conheceram! E o porquê de nunca terem
falado nada! Durante nossas reuniões de planejamento… Como é
que vocês não sabiam? Todo o resto do nosso grupo de rebeldes
acreditava que vocês não se conheciam.
Continuei encarando Luc, mas senti o olhar de Cartier se voltar
para mim.
— Nunca falamos nada porque um não sabia do envolvimento
do outro — respondi. — Nas reuniões de planejamento, você
chamava Cartier de Theo D’Aramitz. Eu não sabia quem era esse. E
quando você me chamou de Amadine Jourdain, Cartier não sabia
quem era essa. — Dei de ombros, mas ainda conseguia sentir o
choque da revelação, o momento impactante de quando percebi que
Cartier era lorde Morgane. — Um simples mal-entendido causado
por dois codinomes.
Um simples mal-entendido que poderia ter destruído toda a
missão para reaver o trono à rainha.
Como sabia onde meu antepassado enterrara a Pedra do
Anoitecer, fui enviada para Maevana, para recorrer à hospitalidade
de lorde Allenach, enquanto, em segredo, recuperava a pedra em
seu território. Além disso, o grupo rebelde de Jourdain havia
planejado para que lorde Morgane se disfarçasse de nobre
valeniano em visita ao castelo Damhan para a caçada de outono.
Sua missão verdadeira era preparar o povo para a volta da rainha.
— E quem foi que falou para você? — perguntei a Luc.
— Merei — respondeu meu irmão, tomando um pequeno gole de
cerveja para mascarar o carinho em seu tom de voz ao falar o nome
dela.
Merei, minha melhor amiga e companheira de quarto em
Magnalia, que se tornara apaixonada por música e que também
achara que Cartier era o que eu sempre havia imaginado: um
mestre valeniano de conhecimento.
— Aham — falei, deliciando-me com o fato de que era meu
irmão agora quem corava diante do meu escrutínio.
— Que foi? Ela me contou a verdade depois da batalha —
gaguejou Luc. — Merei falou: “Você sabia que lorde Morgane deu
aula para Brienna em Magnalia? E que a gente não fazia ideia de
que ele era um lorde maevano?”
— E assim… — comecei, mas fui interrompida por Jourdain, que
se levantou de repente.
O salão imediatamente ficou em silêncio, e todos os olhares se
voltaram para ele, que ergueu o cálice e contemplou seu povo por
alguns instantes.
— Eu queria dizer algumas palavras, agora que estou de volta —
começou ele. — É impossível descrever o que sinto por estar de
novo em meu lar, por me reencontrar com vocês. Durante os últimos
25 anos, pensei em vocês sempre que me levantava, e sempre que
me deitava à noite. Falei seus nomes na mente quando não
conseguia dormir, relembrando seus rostos e o som de suas vozes,
o talento de suas mãos, a alegria de sua amizade. — Jourdain fez
uma pausa, e vi lágrimas em seu rosto. — Agi errado quando os
abandonei naquela noite do primeiro levante. Eu devia ter resistido;
devia estar aqui quando Lannon chegou, à minha procura…
Um silêncio doloroso se abateu sobre o salão. Só se ouvia o
som de nossas respirações, o crepitar do fogo que ardia na lareira, o
gemido de uma criança no colo da mãe. Senti meu coração acelerar,
pois eu não esperava que ele fosse falar isso.
Olhei de relance para Luc, que tinha empalidecido. Nossos
olhares se cruzaram; nossas mentes se uniram quando pensamos,
os dois: O que fazemos? Devemos falar alguma coisa?
Eu estava a ponto de me levantar quando escutei os passos
firmes de um homem que se aproximava do tablado. Era Liam, um
dos nobres remanescentes de Jourdain, que havia escapado de
Maevana anos atrás para sair em busca de seu lorde derrotado e,
por fim, encontrara o esconderijo de Jourdain e entrara para nossa
revolução.
Nossa rebelião não poderia ter começado de verdade sem a
sabedoria de Liam. Eu o vi subir os degraus e apoiar a mão no
ombro de Jourdain.
— Milorde MacQuinn — disse o nobre. — Não há palavras que
descrevam o que sentimos ao vê-lo voltar a este salão. Falo por
todos quando digo que estamos em êxtase por estarmos juntos
novamente. Que pensávamos em você sempre que levantávamos e
sempre que deitávamos para dormir à noite. Que sonhamos com
este momento. E sabíamos que você um dia voltaria para nós.
Jourdain olhou para Liam, e vi a emoção crescer em meu pai.
Liam continuou.
— Lembro daquela noite terrível. Muitos de nós lembram.
Quando viemos até você neste mesmo salão após a batalha e
trouxemos seu garoto para seus braços. — Ele olhou para Luc, e o
amor em seus olhos quase me tirou o fôlego. — Você fugiu porque
nós pedimos e quisemos, lorde MacQuinn. Fugiu para proteger a
vida do seu filho, porque não suportaríamos perder vocês dois.
Luc se levantou e contornou a mesa até parar do outro lado de
Liam. O nobre apoiou a mão direita no ombro de meu irmão.
— Nós damos boas-vindas a vocês dois, milordes — disse Liam.
— E é uma honra voltar a servi-los.
O salão se encheu de vida quando todos se levantaram e
ergueram copos de cerveja e sidra. Cartier e eu também
levantamos, e estendi minha sidra para a luz, esperando para
brindar à saúde de meu pai e meu irmão.
— Ao lorde MacQuinn — começou o nobre Liam, mas Jourdain
se virou de repente para mim.
— Minha filha — murmurou ele, com a voz fraca, estendendo a
mão para mim.
Fiquei praticamente paralisada, de surpresa, e o salão se calou
quando todos olharam para mim.
— Esta é Brienna — disse Jourdain. — Minha filha adotiva. E eu
não teria voltado para casa sem ela.
De repente, fui tomada pelo medo de que a verdade do castelo
Damhan tivesse se espalhada — lorde Allenach tem uma filha.
Porque, na semana anterior, eu certamente havia me anunciado
como a filha há muito perdida de Allenach no salão dele. E, embora
eu não soubesse a dimensão do terror e da brutalidade que havia
acontecido nestas terras, com este povo, eu sabia que Brendan
Allenach traíra Jourdain e tomara seu povo e suas terras 25 anos
antes.
Eu era a filha do inimigo deles. Será que quando olhavam para
mim ainda viam uma sombra dele? Não sou mais uma Allenach.
Sou uma MacQuinn, insisti para mim mesma.
Fui para o lado de Jourdain e deixei que ele pegasse minha mão
e me puxasse para mais perto ainda, sob o calor de seu braço.
O nobre Liam sorriu para mim, com um pedido de desculpas nos
olhos, como se lamentasse não ter percebido minha presença. Ele
então ergueu o copo e disse:
— Aos MacQuinn.
O brinde estrepitou por todo o salão, afugentando as sombras e
alçando-se como luz até o teto.
Hesitei só por um instante antes de erguer minha sidra e beber.
Após o banquete, Cartier, Luc e eu fomos conduzidos por Jourdain
pela escadaria até o cômodo que, no passado, fora o escritório de
meu pai. Era uma câmara ampla com paredes entalhadas cheias de
estantes, e um chão de pedra recoberto de peles e tapetes que
abafavam nossos passos. Um candelabro de ferro pendia acima de
uma mesa decorada com um belo mosaico, quadrados de berilo,
topázio e lápis-lazúli, exibindo um falcão em voo. Uma das paredes
tinha um mapa grande de Maevana; passei um instante admirando-
o antes de me juntar aos homens na mesa.
— É hora de planejar a segunda fase da nossa revolução —
afirmou Jourdain, e reconheci a mesma centelha que havia visto
quando tramamos nossa volta a Maevana no salão de jantar da
casa dele em Valenia. Como aqueles dias agora pareciam
distantes… como se tivessem ocorrido em outra vida.
Na superfície, parecia que a parte mais difícil da revolução
estava encerrada. Mas, quando pensei em tudo que se estendia
diante de nós, a exaustão começou a se esgueirar pelas minhas
costas e pesar sobre meus ombros.
Ainda havia muita coisa que podia dar errado.
— Vamos começar enumerando nossos receios — sugeriu
Jourdain.
Estiquei a mão para pegar um pedaço novo de pergaminho, uma
pena e um frasco de tinta, preparando-me para escrever.
— Eu começo — ofereceu-se Luc. — O julgamento dos Lannon.
Escrevi Os Lannon no papel, e estremeci, como se o mero toque
da ponta da pena fosse capaz de invocá-los até nós.
— O julgamento é daqui a onze dias — informou Cartier.
— Então temos onze dias para decidir o destino deles? —
perguntou Luc.
— Não — respondeu Jourdain. — Não seremos nós a decidi-lo.
Isolde já anunciou que o povo de Maevana vai julgá-los.
Publicamente.
Escrevi isso, lembrando aquele acontecimento histórico de três
dias antes, quando Isolde entrara na sala do trono após a batalha,
suja de sangue, com o povo atrás de si. Ela retirara a coroa da
cabeça de Gilroy, batera várias vezes nele e o obrigara a rastejar ao
chão até cair prostrado aos seus pés. Eu jamais esqueceria aquele
momento glorioso, as batidas do meu coração quando percebi que o
trono maevano estava prestes a ser ocupado novamente por uma
rainha.
— Vamos armar um palanque nos campos do castelo, então,
para que todos possam assistir — disse Cartier. — Levamos um
Lannon de cada vez.
— E nossas queixas serão lidas em voz alta — acrescentou Luc.
— Não só as nossas, mas a de qualquer pessoa que quiser prestar
testemunho das transgressões dos Lannon. Precisamos avisar as
outras Casas, para elas levarem suas queixas ao julgamento.
— Se fizermos isso — alertou Jourdain —, o mais provável é que
toda a família Lannon seja executada.
— Toda a família Lannon precisa sofrer as consequências de
seus atos — ressaltou Cartier. — É assim que sempre foi feito no
norte. As lendas chamam isso de a “parte amarga” da justiça.
Sabia que ele tinha razão. Cartier havia me ensinado a história
de Maevana. Para minha sensibilidade valeniana, esse castigo
impiedoso parecia tenebroso e excessivo, mas eu sabia que isso
fora feito para evitar que o ressentimento crescesse nas famílias
nobres, para impor limites aos poderosos.
— Não esqueçamos — continuou Jourdain, como se tivesse lido
minha mente — que Lannon praticamente aniquilou a Casa
Kavanagh. Ele havia passado anos torturando pessoas inocentes.
Não gosto de presumir que a esposa de Lannon e o filho deles,
Declan, defendiam esses atos… Talvez eles tivessem medo demais
para protestar. Mas, até conseguirmos interrogá-los, acho que é o
único jeito. A família Lannon como um todo precisa ser castigada. —
Ele se calou, perdido em pensamentos. — Todo o apoio que
conseguirmos obter do público para Isolde é crucial, e precisa
acontecer rápido. Estamos vulneráveis enquanto o trono ficar vazio.
— As outras casas precisam jurar lealdade a ela publicamente
— falei.
— Precisam — concordou meu pai. — Mas, principalmente,
precisamos estabelecer alianças novas. Romper um juramento é
muito mais fácil do que romper uma aliança. Vamos rever as
alianças e rivalidades que já conhecemos, e isso nos dará uma ideia
de onde precisamos começar.
Escrevi antes Alianças entre Casas e criei uma coluna para
preencher. Como precisávamos considerar catorze Casas, eu sabia
que isso logo poderia virar um emaranhado caótico. Algumas das
alianças mais antigas eram o tipo de relacionamento que se formara
quando as tribos se tornaram Casas e receberam a bênção da
primeira rainha, Liadan, séculos atrás. E muitas eram alianças
estabelecidas através de casamentos e entre Casas vizinhas ou
contra inimigos em comum. Mas eu também sabia que o reinado de
Gilroy Lannon provavelmente havia corrompido algumas dessas
alianças, então não podíamos confiar exclusivamente no que já
acontecera.
— Quais Casas apoiam os Lannon? — perguntei.
— Halloran — informou Jourdain, depois de um instante.
— Carran — acrescentou Cartier.
Anotei esses nomes, ciente de que havia outra, uma última Casa
que dera pleno apoio aos Lannon durante a era de terror. Contudo,
os homens não iam falar dela; seu nome teria que sair da minha
própria boca.
— Allenach — murmurei, preparando-me para incluí-la na lista.
— Espere, Brienna — interrompeu Cartier, com delicadeza. —
Sim, lorde Allenach apoiou Lannon. Contudo, seu irmão, Sean,
herdou a Casa. E ele lutou ao nosso lado no campo de batalha.
— Meu meio-irmão, mas, sim. Sean Allenach prestou apoio a
Isolde, ainda que tenha sido no último segundo. Quer que eu
convença Sean a declarar publicamente apoio aos Kavanagh? —
perguntei, incerta sobre como abordar a questão.
— Quero — confirmou Jourdain. — Obter o apoio de Sean
Allenach é essencial.
Fiz que sim com a cabeça e anotei Allenach em um canto.
Falamos das outras alianças que conhecíamos:
Dunn — Fitzsimmons (pelo casamento)
MacFinley — MacBran — MacCarey (estende-se pela parte
norte de Maevana; aliança formada a partir de um antepassado em
comum)
Kavanagh — MacQuinn — Morgane
As Casas Burke e Dermott eram as únicas sem associações.
— Burke declarou apoio quando lutou conosco no campo —
falei, lembrando quando ele chegara com seus homens e mulheres
em nosso momento de fraqueza na batalha, quando achei que
poderíamos perder.
Lorde Burke mudara os rumos da batalha e nos dera aquele
último impulso de que precisávamos para derrotar Lannon e
Allenach.
— Vou ter uma conversa em particular com lorde e lady Burke —
anunciou Jourdain. — Não vejo motivo para não jurarem lealdade a
Isolde. Vou entrar em contato também com as outras Casas Mac.
— E vou convidar os Dermott — propôs Cartier. — Assim que eu
puser ordem na minha Casa.
— E talvez eu consiga conquistar a aliança de Dunn e
Fitzsimmons com um pouco de música, hein? — sugeriu Luc,
agitando as sobrancelhas.
Sorri para ele, para disfarçar o fato de que fui encarregada de
lidar com os Allenach. Eu poderia pensar nisso mais tarde, quando
tivesse um momento de privacidade para processar a série de
emoções que isso causava em mim.
— Agora, as rivalidades — prossegui.
Eu sabia de duas e tomei a liberdade de anotá-las:
MacQuinn x Allenach (disputa de fronteiras, ainda não resolvida)
MacCarey x Fitzsimmons (por acesso à baía)
— Quem mais? — perguntei, despejando estrelas de tinta com a
ponta da pena no papel.
— Halloran e Burke sempre se desentenderam — revelou
Jourdain. — Eles são concorrentes como fabricantes de produtos de
aço.
Acrescentei-os à lista. Certamente deveria haver outras
rivalidades. Era notório o espírito ardoroso e obstinado de Maevana.
Estava encarando minha lista, mas, pelo canto do olho, vi
Jourdain olhar para Cartier, que se mexeu ligeiramente na cadeira.
— Morgane e Lannon — murmurou ele, tão baixo que quase não
escutei.
Ergui os olhos para Cartier, mas ele não estava olhando para
mim. Seu olhar estava fixado em algo distante, algo que eu não via.
Morgane x Lannon, escrevi.
— Tenho outro receio — comentou Luc, rompendo o silêncio
pesado. — A magia dos Kavanagh voltou, já que a Pedra do
Anoitecer foi recuperada. Isso é algo que precisemos considerar
agora? Ou mais tarde, quem sabe, depois da coroação de Isolde?
Magia.
Acrescentei à lista, uma palavra singela que detinha tantas
possibilidades. Ficou evidente após a batalha que o dom de Isolde
para magia era a cura. Eu havia pendurado a pedra em seu
pescoço, e ela fora capaz de encostar em ferimentos e curá-los.
Fiquei me perguntando se ela sequer controlava sua magia de
alguma forma.
“Não estou”, confessara ela para mim. “Quem me dera ter
alguém para me instruir, um manual…”
Ela confidenciara para mim no dia seguinte à batalha.
“Se minha magia se descontrolar… quero que você jure que
esconderá a Pedra do Anoitecer. Não desejo brandir a magia para o
mal, e sim para o bem do povo”, sussurrara ela, e meu olhar recaíra
sobre a pedra apoiada em seu coração, com um brilho colorido. “E,
no momento, ainda há muito que não sei sobre ela. Não sei do que
sou capaz. Prometa-me, Brienna, que me vigiará.”
“Sua magia não vai se descontrolar, milady”, eu havia
respondido, também com um murmúrio, mas senti meu coração
doer diante da confissão dela.
Fora justamente por isso que a pedra tinha desaparecido 136
anos atrás. Não só porque meu antepassado, Tristan Allenach, se
revoltara por que a Casa Kavanagh era a única a possuir magia,
mas também porque temia o poder deles, especialmente quando
era usado em guerras. A magia de fato se descontrolava em
batalha, isso eu sabia, embora não compreendesse muito bem.
Eu tinha visto fragmentos desse fenômeno sob o filtro das
memórias que herdei de Tristan.
A última lembrança era de uma batalha mágica que acabara
muito mal. O céu quase partido ao meio, o tremor terrível da terra, o
modo sobrenatural como as armas se voltaram contra quem as
brandia. Tinha sido assustador, e eu compreendia, em parte, por
que Tristan decidira assassinar a rainha e tirar a pedra dela.
No entanto, eu não conseguia imaginar Isolde como uma rainha
que corromperia a magia, uma rainha que não fosse capaz de
controlar seus dons e seu poder.
— Brienna?
Levantei os olhos para Jourdain, sem saber quanto tempo eu
tinha passado sentada à mesa, em reminiscências. Os três homens
estavam olhando para mim, esperando.
— Você tem alguma opinião sobre a magia de Isolde? —
perguntou meu pai.
Pensei em contar a eles a conversa que tive com a rainha, mas
decidi guardar para mim os receios dela.
— A magia de Isolde privilegia a cura — falei. — Acho que não
precisamos temê-la. A história nos mostra que a magia dos
Kavanagh só se descontrolou em batalhas.
— Mas qual é o tamanho da Casa Kavanagh agora? —
perguntou meu irmão. — Quantos Kavanagh ainda existem? Será
que todos vão ter a mesma mentalidade de Isolde e do pai dela?
— Gilroy Lannon estava determinado a destruí-los, mais do que
qualquer outra Casa — declarou Jourdain. — Ele matava “um
Kavanagh por dia” no início de seu reinado, acusando-os falsamente
de crimes, como se fosse um esporte. — Um instante de silêncio e
pesar. — Não ficaria surpreso se só restasse um pequeno resquício
da Casa Kavanagh.
Nós quatros nos calamos, e fiquei olhando a luz da vela
tremeluzir sobre o mosaico de falcão, capturando o brilho das
pedras.
— Você acha que Lannon registrou os nomes deles? —
perguntou Cartier. — Eles deveriam ser lidos como queixas no
tribunal. O reino precisa saber quantas vidas ele tirou.
— Não sei — confessou Jourdain. — Sempre havia escribas na
sala do trono, mas sabe-se lá se Lannon permitia que registrassem
a verdade.
Mais silêncio, como se já não conseguíssemos encontrar
palavras para falar. Observei minha lista, ciente de que não
tínhamos criado nenhum plano concreto nessa noite, apesar de
parecer que, pelo menos, havíamos aberto uma porta.
— Devemos fazer uma reunião particular com Isolde quando
voltarmos a Lyonesse para o julgamento — sugeriu meu pai, enfim
rompendo o silêncio. — Podemos conversar mais com ela sobre a
magia, e sobre como ela prefere que as queixas sejam enunciadas.
— Concordo — disse Cartier.
Luc e eu assentimos com a cabeça.
— Acho que para esta noite já está bom — anunciou Jourdain,
levantando-se. Cartier, Luc e eu fizemos o mesmo, e nós quatro
formamos um círculo, com o rosto parcialmente iluminado pelas
chamas e parcialmente imerso em sombras. — Vou enviar uma
carta para Isolde e informá-la de nossas opiniões sobre o
julgamento, para que ela possa começar a reunir queixas em
Lyonesse. Também vou enviar missivas às outras Casas, para que
preparem suas queixas. Meu único pedido a vocês três agora é que
permaneçam alertas e vigilantes. Já planejamos uma rebelião antes:
sabemos o que esperar caso apoiadores dos Lannon se atrevam a
atrapalhar nossos planos de coroar Isolde.
— Você acha que teremos oposição?
— Acho.
Meu ânimo desabou com a resposta de Jourdain; eu imaginara
que todo maevano ficaria entusiasmado com a derrocada dos
Lannon. Mas, na verdade, provavelmente havia grupos que
conspirariam para deter nosso progresso. Pessoas com trevas no
coração que haviam amado e servido Gilroy Lannon.
— Estamos a um passo de restituir a rainha ao trono —
continuou meu pai. — A maior oposição certamente virá nas
próximas semanas.
— Penso o mesmo — concordou Cartier, com a mão parada
perto da minha. Não nos tocamos, mas eu sentia seu calor. — A
coroação de Isolde vai ser um dos maiores dias que estas terras já
viram. Mas a coroa na cabeça não a protegerá.
Jourdain olhou para mim, e eu sabia que ele estava me
imaginando no lugar dela, não como rainha, mas como uma mulher
com um alvo pintado nas costas.
A coroação de Isolde Kavanagh como a legítima rainha não era
o fim de nosso levante. Era apenas o começo.
2

UM RASTRO DE SANGUE
Território de lorde Morgane, castelo Brígh

Cartier

Houve uma época na minha vida em que acreditava que nunca


voltaria para Maevana. Não me lembrava do castelo onde tinha
nascido: não me lembrava das terras que haviam pertencido à
minha família por gerações, do povo que havia jurado lealdade a
mim quando minha mãe me segurara junto ao peito. O que eu
lembrava era de um reino de paixão, graça e beleza, um reino que
mais tarde descobri que não era meu, ainda que eu desejasse que
fosse, um reino que me abrigara e me protegera por 25 anos.
Valenia era minha por escolha.
Mas Maevana era minha por herança.
Cresci achando que meu nome era Theo D’Aramitz. Depois, me
atrevi a virar Cartier Évariste. Os dois nomes eram esconderijos,
escudos para um homem que não sabia onde deveria viver ou quem
deveria ser.
Esses eram meus pensamentos quando saí do castelo de
Jourdain bem depois da meia-noite.
— Você deveria passar a noite aqui, Morgane — sugeriu
Jourdain para mim, depois que nossa reunião de planejamento
terminou. Ele desceu a escada comigo, preocupado. — Por que
cavalgar tão tarde?
O que ele queria dizer era: Por que voltar para um castelo
decadente e dormir sozinho?
Não tive coragem de dizer que precisava ficar nas minhas
próprias terras essa noite; precisava dormir onde meu pai, minha
mãe e minha irmã outrora sonhavam. Precisava andar pelo castelo
que herdara, arruinado ou não, antes que meu povo começasse a
voltar.
Parei no saguão e estendi o braço para pegar meu manto de
paixão, minha bolsa de viagem e minha espada. Brienna estava lá,
esperando, com as portas abertas para a noite. Acho que ela sabia
do que eu precisava, porque olhou para Jourdain e murmurou:
— Vai ficar tudo bem, pai.
E Jourdain, felizmente, não insistiu, apenas me deu um tapinha
no braço e um gesto silencioso de despedida.
Já havia sido uma noite estranha, pensei, indo até onde Brienna
estava. Não esperara ouvir Jourdain expressar suas lamentações,
nem presenciar o primeiro passo para a retomada do orgulho dos
MacQuinn. Eu me sentia um impostor, e sobrecarregado sempre
que pensava em meu próprio retorno e reencontro.
Mas então Brienna sorriu para mim, e a brisa noturna brincou
com seu cabelo.
Como foi que você e eu chegamos a este ponto? Era isso que
eu queria perguntar, mas contive as palavras na boca enquanto ela
acariciava meu rosto.
— Eu a verei em breve — sussurrei, sem ousar beijá-la aqui, na
casa do pai dela, onde Jourdain muito provavelmente nos
observava.
Ela só meneou a cabeça e afastou a mão de mim.
Fui embora e, sob o céu abarrotado de estrelas, busquei meu
cavalo no estábulo.
Minhas terras ficavam a oeste das de Jourdain, e apenas alguns
quilômetros separavam nossos castelos, uma distância de cerca de
uma hora a cavalo. No caminho para o castelo Fionn naquela noite,
Brienna e eu havíamos encontrado uma trilha de veados que ligava
os dois territórios e decidimos seguir por ela, em vez de tomar a
estrada, embrenhando-nos por uma floresta, cruzando um riacho e,
por fim, percorrendo um caminho sinuoso até os campos.
Era uma rota mais longa, cheia de espinhos e galhos, mas, de
novo, optei por segui-la naquela noite.
Cavalguei pela trilha como se eu a tivesse usado incontáveis
vezes e segui o luar, o vento e a escuridão.
Eu já havia entrado nas minhas terras uma vez naquele dia.
Tinha chegado sozinho e andado com calma pelos corredores e
cômodos, arrancado ervas daninhas, corrido pela poeira e removido
teias de aranha, na esperança de conseguir lembrar de algo bom
sobre o castelo. Eu tinha um ano de idade quando meu pai fugira
comigo, mas minha esperança era que um fragmento da minha
família, uma semente da minha memória, tivesse perdurado no
lugar, uma prova de que eu merecia estar ali, mesmo depois de 25
anos de abandono. E, ao não conseguir me lembrar de nada — eu
era um estranho para aquelas paredes —, eu tinha me resignado a,
consumido pela tristeza, sentar no chão sujo do quarto dos meus
pais até ouvir Brienna chegar.
Apesar de tudo isso, o castelo ainda me pegava de surpresa.
No passado, o castelo Brígh fora uma bela propriedade. Meu pai
descrevera para mim com todos os detalhes anos atrás, quando
finalmente me contou a verdade sobre quem eu era. Acontece que
as descrições dele não correspondiam à aparência atual.
Diminuí o passo do cavalo até um trote conforme nos
aproximávamos. Meus olhos ardiam com o frio enquanto eu me
esforçava para ver a estrutura ao luar.
Era uma vastidão decadente de pedras cinzentas; o sopé da
montanha se erguia sem fim por trás, lançando sombras nos
andares e torreões mais altos. Algumas partes do telhado tinham
buracos, mas as paredes, felizmente, estavam intactas. A maioria
das janelas estava quebrada, e a fachada da frente havia sido
praticamente tomada por trepadeiras. O pátio tinha muitas ervas
daninhas e caules. Eu nunca havia visto um lugar tão abandonado.
Desmontei no meio do mato alto que batia na minha cintura e
continuei olhando para o castelo, com a sensação de que ele
também me encarava.
O que eu ia fazer com um lugar tão arrasado? Como o
reconstruiria?
Soltei os arreios do cavalo, deixei-o amarrado debaixo de um
carvalho, e comecei a caminhar pelo pátio, até parar no centro
descuidado da paisagem. Pisei em ramos, espinhos, capim e
calçadas quebradas. Era tudo meu, tanto as partes boas quanto as
ruins.
Percebi que, apesar da exaustão do corpo e do fato de serem
quase duas horas da madrugada, não estava com um pingo de
sono. Passei a fazer a primeira coisa que me ocorreu: arrancar
ervas daninhas. Trabalhei compulsivamente até me aquecer e
começar a suar sob o frio de outono, e então me ajoelhei.
Foi aí que vi.
Meus dedos puxaram um emaranhado de solidagos e
expuseram uma pedra comprida com alguma gravação na
superfície. Afastei o resto das raízes até conseguir distinguir as
letras, que brilhavam à luz das estrelas.
Declan.
Apoiei o peso do corpo nos calcanhares, mas meu olhar ficou
preso nesse nome.
O filho de Gilroy Lannon. O príncipe.
Ele estivera aqui naquela noite, então. Na noite do primeiro
levante fracassado, quando minha mãe foi morta na batalha, quando
minha irmã foi assassinada.
Ele estivera aqui.
E gravara o próprio nome nas pedras de meu lar, nas fundações
da minha família, como se, com isso, fosse estabelecer domínio
eterno sobre mim.
Recuei estremecido e me sentei de qualquer jeito, com a espada
na bainha chacoalhando ao meu lado, e com as mãos sujas de
terra.
Declan Lannon estava acorrentado, preso na masmorra real, e
seria levado a julgamento dali a onze dias. Ele receberia o que
merecia.
Contudo, isso não servia de consolo. Minha mãe e minha irmã
continuavam mortas. Meu castelo estava em ruínas. Meu povo se
dispersara. Até meu pai se fora; ele nunca teve a chance de voltar
para sua terra natal, pois morrera anos antes em Valenia.
Eu estava completamente sozinho.
De repente, um som interrompeu meus pensamentos. Era o
ruído de pedras rolando dentro do castelo. Meu olhar atento foi
atraído imediatamente para as janelas quebradas.
Em silêncio, fiquei de pé e embainhei minha espada. Avancei
pelo mato até as portas da entrada, que estavam penduradas,
quebradas nas dobradiças. Os pelos nos meus braços se
arrepiaram quando empurrei as portas de carvalho para abri-las
mais, sentindo nos dedos os detalhes esculpidos. Espiei as sombras
do saguão: as pedras no chão estavam rachadas e imundas, mas,
com o luar que entrava pelas janelas quebradas, vi as marcas de
pequenos pés descalços na sujeira.
As pegadas avançavam para o grande salão. Tive que forçar a
vista na penumbra para segui-las até a cozinha. Contornei as mesas
compridas abandonadas, a lareira fria, as paredes despidas dos
estandartes heráldicos e das tapeçarias. Obviamente, as pegadas
iam para a adega e para todos os armários em uma evidente busca
por comida. Ali havia barris vazios de cerveja que ainda exalavam
odor de malte, ervas antigas penduradas nas vigas em punhados
ressecados, uma família de cálices cravejados de joias
empoeiradas, algumas garrafas de vinho quebradas cujos cacos
espalhavam constelações brilhantes de vidro no chão. Uma mancha
de sangue, como se aqueles pés descalços tivessem pisado sem
querer em um caco de vidro.
Ajoelhei-me e encostei no sangue. Era recente.
O rastro me conduziu pela porta traseira da cozinha e para um
corredor estreito que dava no saguão dos fundos, onde a escada
dos empregados subia em uma espiral apertada até o segundo
andar. Atravessei uma cortina de teias de aranha e reprimi um
tremor quando finalmente terminei de subir os degraus.
O luar se infiltrava em partes do corredor, iluminando
amontoados de folhas que o vento tinha jogado pelas janelas
quebradas. Continuei seguindo o sangue, esmagando folhas com as
botas e chutando todas as pedras soltas. Estava exausto demais
para ser furtivo. Com certeza o dono das pegadas já sabia que eu
estava chegando.
Elas me conduziram até o quarto dos meus pais. O mesmíssimo
lugar onde eu estivera com Brienna horas antes, quando dera a ela
seu manto de paixão.
Suspirei e pus as mãos nas maçanetas. Empurrei-as
ligeiramente e espiei o interior escuro do quarto. Ainda dava para
ver o ponto onde Brienna e eu havíamos afastado a poeira do chão,
para admirar os azulejos coloridos. O quarto parecera morto até o
momento em que ela entrara, como se sua presença ali fizesse mais
sentido que a minha.
Entrei e fui prontamente atacado por um punhado de pequenas
pedras.
Girei o corpo e passei os olhos pelo cômodo até captar um
vislumbre de membros pálidos e um cabelo despenteado se
escondendo atrás de um guarda-roupa bambo.
— Não vou machucar você — falei em voz alta. — Venha. Vi que
seu pé está sangrando. Posso ajudar.
Dei alguns passos para me aproximar e parei, esperando a
pessoa reaparecer. Como não reapareceu, suspirei e dei mais um
passo.
— Meu nome é Cartier Évariste. — E franzi o cenho ao me dar
conta da naturalidade com que meu codinome valeniano tinha
saído.
Ainda nenhuma resposta.
Cheguei um pouco mais perto, quase na sombra atrás do
guarda-roupa…
— Quem é você? Oi?
Finalmente cheguei à parte de trás do móvel. E fui recebido por
mais pedras. Entraram grãos de areia nos meus olhos, mas não
antes que minha mão segurasse um bracinho magro. Senti
resistência, um grunhido raivoso, e me apressei a limpar a sujeira
dos olhos para ver um menino mirrado, de no máximo dez anos de
idade, com um punhado de sardas no rosto e cabelo ruivo caindo na
frente dos olhos.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei, tentando conter
a irritação.
O menino cuspiu na minha cara.
Precisei recorrer aos últimos vestígios da minha paciência para
limpar a saliva. Em seguida, olhei de novo para o garoto.
— Você está sozinho? Cadê seus pais?
O menino se preparou para cuspir de novo, mas o puxei de trás
do guarda-roupa e o fiz se sentar na cama quebrada. Suas roupas
eram esfarrapadas, ele estava descalço, e um dos pés ainda
sangrava. O menino não conseguiu disfarçar o sofrimento no rosto
quando apoiou o peso nele ao andar.
— Esse machucado é de hoje? — perguntei, ajoelhando-me
para levantar delicadamente o pé dele.
O menino chiou, mas me deixou examinar o ferimento. O caco
de vidro ainda estava no pé e produzia um fiapo constante de
sangue.
— Vai precisar de pontos — avisei. Soltei o tornozelo dele e
continuei ajoelhado, fitando seus dois olhos assustados. — Hmm.
Acho que sua mãe ou seu pai devem estar preocupados. Que tal me
dizer onde eles estão? Posso levá-lo até eles.
O menino virou o rosto e cruzou os braços finos.
Como eu desconfiava. Um órfão, escondido nas ruinas de Brígh.
— Bom, para a sua sorte, eu sei costurar ferimentos. — Fiquei
de pé e soltei minha bolsa de viagem do ombro. Achei minha
pederneira e acendi algumas das velas antigas do quarto e, em
seguida, peguei um cobertor de lã e minha sacola de suprimentos
médicos, que eu sempre carregava comigo. — Que tal você deitar
aqui e me deixar tratar esse pé?
O menino era teimoso, mas a dor deve tê-lo vencido pelo
cansaço. Ele se acomodou no cobertor de lã e arregalou os olhos
quando viu meu fórceps de metal.
Peguei meu frasco pequeno de ervas atordoantes e despejei o
que restava do conteúdo no meu frasco de água.
— Aqui. Beba. Vai ser bom para a dor.
O menino aceitou cautelosamente a mistura, cheirando-a como
se eu tivesse jogado veneno. Por fim, cedeu e bebeu, e esperei
pacientemente até as ervas começarem a fazer o efeito atenuante.
— Você tem nome? — perguntei, erguendo o pé ferido.
Ele ficou calado por um instante e, por fim, murmurou:
— Tomas.
— Esse nome é bom, é forte. — Comecei a extrair
cuidadosamente o vidro. Tomas fez uma careta, mas continuei
falando, para distraí-lo da dor. — Quando eu era pequeno, sempre
quis ter o mesmo nome do meu pai. Mas, em vez de Kane, me
chamaram de Aodhan. Acho que é um nome antigo da família.
— Mas você não falou que seu nome era… C-Cartier? — Tomas
se esforçou para pronunciar o nome valeniano, e finalmente terminei
de tirar o vidro.
— Falei. Tenho dois nomes.
— Por que um homem — Tomas fez outra careta quando
comecei a limpar a ferida — precisa de dois nomes?
— Às vezes é necessário, para sobreviver — respondi, e o
menino pareceu se dar por satisfeito, pois ficou quieto enquanto eu
começava a dar pontos.
Quando terminei, enfaixei cuidadosamente o pé de Tomas e lhe
dei uma maçã que tinha na bolsa. Enquanto ele comia, andei pelo
quarto, procurando algum pedaço de cobertor para eu dormir, pois o
ar gelado da noite entrava pelas janelas quebradas.
Passei pelas estantes dos meus pais, que ainda continham uma
enorme quantidade de volumes com capa de couro. Parei,
relembrando o amor do meu pai pelos livros. A maioria já estava
cheia de mofo, com as capas duras e retorcidas pela exposição às
intempéries. Mas um livro fino chamou minha atenção. Era simples
em comparação com os outros, cujas capas tinham iluminuras
sofisticadas, e havia uma folha saliente no alto. Pela minha
experiência, os livros mais discretos geralmente eram as melhores
fontes de conhecimento, então enfiei-o dentro do gibão antes que
Tomas visse.
Não achei nenhum outro cobertor, então acabei resolvendo me
sentar junto à parede, perto de uma das velas.
Tomas girou no cobertor, até ficar mais parecido com uma
lagarta do que com um menino, e olhou para mim com piscadelas
sonolentas.
— Você vai dormir apoiado na parede?
— Vou.
— Precisa do cobertor?
— Não.
Tomas bocejou e coçou o nariz.
— Você é o lorde deste castelo?
Fiquei surpreso com minha vontade de mentir. Minha voz parecia
estranha quando respondi:
— Sim. Sou.
— Vai me castigar por eu me esconder aqui?
Não soube como reagir a isso, e fiquei ponderando o fato de que
o menino achava que eu o castigaria por ter feito de tudo para
sobreviver.
— Sei que foi errado jogar pedras no seu rosto, milorde —
balbuciou Tomas, franzindo a testa de medo. — Mas, por favor…
por favor, não me machuque muito. Posso trabalhar para o senhor.
Prometo. Posso ser seu mensageiro, seu pajem ou seu cavalariço,
se o senhor quiser.
Eu não queria que ele me servisse. Queria que me desse
respostas. Queria perguntar: Quem é você? Quem são seus pais?
De onde você veio? Contudo, não tinha o direito de exigir isso dele.
Essas respostas seriam conquistadas com confiança e amizade.
— Acho que consigo arrumar alguma tarefa para você. E,
enquanto você estiver em minhas terras, vou protegê-lo, Tomas.
Tomas murmurou um suspiro agradecido e fechou os olhos. Não
demorou nem um minuto para começar a roncar.
Esperei um pouco antes de tirar o livro de dentro do gibão.
Folheei as páginas delicadamente e achei curioso que havia
pegado, por acaso, um livro de poesia. Estava imaginando se ele
havia pertencido a minha mãe, se ela segurara aquele volume e o
lera sob a janela anos antes, quando uma folha se soltou no meio
das outras. Estava dobrada, mas havia sinal de algo escrito à mão
nela.
Tirei o pergaminho e o deixei se desdobrar na mão. O papel era
delicado como asas.

12 de janeiro de 1541

Kane,

Eu sei que nós dois pensávamos


que seria para o bem de todos, mas
minha família não é confiável.
Enquanto você não estava aqui,
Oona veio me visitar. Acho que ela
está desconfiada de mim, do que
tenho ensinado a Declan em nossas
aulas. E vi Declan puxando Ashling
pelo cabelo no pátio. Você devia ter
visto a cara dele, como se estivesse
gostando do som do sofrimento
enquanto ela chorava. O que vejo
nele me assusta; acho que errei em
algo com ele, e ele não me respeita
mais. Como eu queria que fosse
diferente! Talvez até fosse, se ele
pudesse morar conosco em vez de
ficar com os pais em Lyonesse.
Oona, lógico, não ficou nem um
pouco surpresa com o
comportamento do filho. Ela se
limitou a vê-lo puxar nossa filha,
recusando-se a impedir, e disse: “Ele
é só um menino de onze anos. Vai
parar de fazer essas coisas quando
crescer, garanto.”
Não posso mais seguir com isso
— não vou usar nossa filha como
peça de jogo —, e sei que você
concordaria comigo. Pretendo viajar
até Lyonesse e desfazer a promessa
de casamento com Declan ao
amanhecer, pois eu é que preciso
fazer isto, não você. Vou levar
Seamus comigo.
Com amor,
Líle.
Tive que ler duas vezes até sentir a dor das palavras. Kane, meu
pai. Líle, minha mãe. E Ashling, minha irmã, prometida para Declan
Lannon. Ela tinha só 5 anos na época, pois essa carta foi escrita
meses antes do dia em que ela foi morta. O que meus pais tinham
pensado?
Eu sabia que os Lannon e os Morgane eram rivais.
Mas nunca imaginei que tinha começado com meus pais.
Minha família não é confiável, escrevera minha mãe.
Minha família.
Aproximei a carta da vela.
O que ela havia ensinado a Declan? O que vira nele?
Meu pai nunca revelou que minha mãe tinha pertencido à Casa
Lannon. Jamais soube da ascendência dela. Ele dissera que ela era
bonita. Que era linda; que era bondosa; que sua risada enchia
qualquer lugar de luz. O povo Morgane a amava. Ele a amava.
Voltei a dobrar a carta e a escondi no bolso, mas suas palavras
persistiam, ecoavam dentro de mim.
Minha mãe havia sido uma Lannon. E não consegui evitar o
pensamento…
Sou metade Lannon.
3

O R E C O L H I M E N TO D E Q U E I X A S
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn

Brienna

Acordei com o barulho de algo lá embaixo no salão. Arrastei-me


para fora da cama, atordoada por um instante. Não sabia onde
estava: Magnalia? Na casa de Jourdain? Foram as janelas, por
incrível que pareça, que me fizeram lembrar: eram estreitas e com
mainel, e atrás delas se via a famosa neblina de Maevana.
Vesti de qualquer jeito as roupas que tinha usado no dia anterior,
deslizei os dedos pelo cabelo enquanto descia a escada, e percebi
criados se calarem ao passarem por mim, observando-me com
olhos arregalados. Devo estar com uma cara horrível, pensei, até
que escutei os cochichos atrás:
— A filha de Brendan Allenach.
Essas palavras se cravaram em meu coração como uma faca.
Brendan Allenach teria me matado no campo de batalha se
Jourdain não o tivesse impedido. Eu ainda escutava a voz de
Allenach — Vou tomar de volta a vida que dei a ela —, como se ele
andasse em meu encalço, me assombrando.
Apertei o passo, seguindo o barulho, e descobri que o clamor era
inspirado pela música de Luc. Meu irmão estava de pé em cima de
uma mesa, tocando violino e provocando aplausos calorosos e
batidas de canecas entre os MacQuinn.
Fiquei observando por um tempo antes de me sentar sozinha à
mesa vazia do lorde para comer uma tigela de mingau. Dava para
ver o amor e a admiração no rosto dos MacQuinn que olhavam para
Luc, que o incentivavam até mesmo quando ele derrubou uma
caneca de cerveja. A música do meu irmão se espalhava por eles
como um bálsamo de cura.
Para além da comoção, do outro lado do salão, reparei em
Jourdain junto de seu intendente, um velho rabugento chamado
Thorn, certamente discutindo os planos para o dia. E comecei a
pensar em quais seriam os meus planos, nesse período estranho de
entres: entre o retorno à vida normal e o julgamento, entre um trono
vazio e a coroação de Isolde e, talvez acima de tudo, minha posição
entre arden e mestra. Eu havia sido uma estudante por sete anos;
agora, precisava decidir o que fazer com minha paixão.
Senti uma súbita saudade de Valenia.
Pensei na possibilidade de uma Casa de Paixão em Maevana.
Pelo que eu sabia, não havia nenhuma, visto que paixões eram um
sentimento valeniano. A maioria dos maevanos conhecia o conceito;
entretanto, eu receava que a postura em relação a isso tendesse
para o cinismo ou ceticismo, e realmente não dava para criticá-los.
Pais e mães precisaram se tornar mais preocupados em proteger a
vida de seus filhos e filhas. Ninguém tinha tempo para dedicar anos
da vida ao estudo de música, arte ou até mesmo das profundezas
do conhecimento.
Mas isso tudo mudaria com uma rainha como Isolde. Ela dava
imenso valor ao estudo. Eu sabia que ela desejava promover
reformas e aprendizado em Maevana e ver seu povo se
desenvolver.
E eu tinha minhas próprias ambições para cá, especialmente
iniciar uma Casa de Conhecimento e, quem sabe, convencer minha
melhor amiga, Merei, a vir e juntar sua paixão pela música a minha.
Imaginava-nos enchendo os cômodos deste castelo com músicas e
livros, assim como tínhamos feito em Magnalia como ardens.
Afastei minha tigela de mingau, levantei da mesa e voltei para o
quarto, ainda tomada de saudade.
Havia escolhido um aposento na parte leste do castelo, e a luz
da manhã estava começando a romper a neblina e aquecer minhas
janelas com tons rosados. Fui até minha mesa e observei os
materiais de escrita, algo que Jourdain providenciara para que eu
tivesse em abundância.
Escreva para mim sempre que sentir saudade, dissera Merei
para mim dias atrás, logo antes de sair de Maevana e voltar para
Valenia, para reencontrar seu patrono e sua trupe musical.
Então vou escrever todas as horas de todos os dias, eu
respondera, e, sim, fui ligeiramente dramática para fazê-la rir,
porque nós duas estávamos com os olhos cheios de lágrimas.
Decidi seguir o conselho de Merei.
Sentei-me à mesa e comecei a escrever para ela. Estava na
metade da carta quando Jourdain bateu à porta.
— Para quem você está escrevendo? — perguntou ele, depois
que o convidei a entrar.
— Merei. Você precisa de algo?
— Preciso. Pode vir comigo? — Ele me ofereceu o braço.
Apoiei a pena na mesa e o deixei me conduzir escada abaixo até
o pátio. O castelo Fionn era feito de pedras brancas no coração de
uma campina e contava com montanhas imponentes ao norte. A luz
da manhã cintilava nas paredes, como se fossem feitas de ossos,
quase iridescentes sob a geada derretida. Parei por um instante
para olhar para trás e admirá-lo antes que Jourdain me guiasse por
uma das trilhas da campina.
Nessie, minha wolfhound, encontrou a gente pouco depois e veio
trotando a nossa frente com a língua pra fora. A neblina finalmente
estava se dissipando, e vi os homens trabalhando em uma lavoura
vizinha; o vento trouxe fragmentos de suas cantorias e o chiado das
foices que ceifavam espigas.
— Espero que você tenha sido bem acolhida pelo meu povo —
comentou Jourdain depois de um tempo, como se tivesse deixado
para proferir esse tipo de coisa só quando estivéssemos longe do
castelo.
Sorri e respondi:
— Óbvio que fui, pai.
Lembrei dos cochichos que haviam me perseguido até o salão
acerca de meu verdadeiro pai. Contudo, não fui capaz de contar
para Jourdain.
— Ótimo — respondeu ele.
Continuamos andando em silêncio, até chegarmos a um rio sob
as árvores. Aquele parecia ser nosso lugar para conversar. No dia
anterior, ele me encontrara ali em meio ao limo e à correnteza e
revelara que havia se casado em segredo com sua esposa naquele
lugar verdejante, muito tempo atrás.
— Você teve mais alguma transição de memória, Brienna? —
perguntou ele.
Eu devia ter esperado essa pergunta, mas ainda assim fui pega
de surpresa.
— Não — respondi, olhando para o rio.
Pensei nas seis lembranças que eu havia herdado de Tristan
Allenach.
A primeira fora suscitada por um livro antigo de Cartier que, por
acaso, pertencera a Tristan mais de um século antes. Eu havia lido
o mesmo trecho que ele, o que criara um elo entre nós que nem o
tempo podia romper.
A experiência me deixara tão confusa que não compreendi
plenamente o que havia acontecido e, portanto, não contei para
ninguém.
Mas aconteceu de novo quando Merei tocara uma canção
inspirada em Maevana, e os sons ancestrais da melodia formaram
um elo sutil entre mim e Tristan de quando ele procurava um lugar
para esconder a pedra.
As seis lembranças dele vieram de forma tão aleatória que levei
um bom tempo até finalmente formular uma teoria de como e por
que aquilo estava acontecendo comigo. Memórias ancestrais não
eram um fenômeno muito raro; o próprio Cartier me falara disso uma
vez, da ideia de que todo mundo retém lembranças de nossos
antepassados, mas que só alguns indivíduos chegam a sentir
manifestações delas. Então, quando entendi que eu era uma das
pessoas, comecei a compreender melhor esses fenômenos.
Precisava haver um elo entre mim e Tristan através de algum
sentido. Eu precisava ver, tocar, ouvir algo ou sentir um gosto ou
cheiro que ele tivesse sentido.
O elo era o canal que nos unia. O mecanismo de tudo.
Quanto ao porquê… Cheguei à conclusão de que todas as
lembranças que ele passara para mim giravam em torno da Pedra
do Anoitecer, caso contrário, eu provavelmente teria herdado mais
memórias. Fora Tristan quem roubara a pedra, quem a escondera,
quem dera início ao declínio das rainhas maevanas, quem
provocara o adormecimento da magia. E eu estava destinada a
encontrar e recuperar a pedra, devolvê-la aos Kavanagh e permitir
que a magia florescesse novamente.
— Você acha que vai herdar mais alguma lembrança dele? —
perguntou Jourdain.
— Não — respondi depois de um tempo, tirando os olhos da
água para fitar a expressão preocupada dele. — Todas as
lembranças tinham a ver com a Pedra do Anoitecer. Que foi
encontrada e devolvida à rainha.
Mas Jourdain não pareceu se convencer, e, para ser sincera, eu
também não.
— Bom, vamos torcer para que as lembranças tenham acabado
— declarou Jourdain, pigarreando. Ele pôs a mão no bolso, o que
achei que fosse um hábito nervoso, mas então puxou um punhal
com bainha. — Quero que você ande com isto de novo — pediu ele,
estendendo a arma para mim.
Eu o reconheci. Era o mesmo punhal pequeno que ele me dera
antes de eu atravessar o canal para dar início a nossa revolução.
— Acha que preciso? — perguntei, aceitando-o, tocando com o
polegar na fivela que o prenderia junto a minha coxa.
Ele suspirou.
— Eu ficaria mais tranquilo se você andasse com ele, Brienna.
Ele franziu o cenho — de repente, ficou parecendo muito mais
velho sob aquela luz. Havia mais fios brancos em seu cabelo
castanho-avermelhado, as rugas na testa eram mais profundas, e
de repente eu é que fiquei preocupada de perdê-lo logo depois de
tê-lo ganho como pai.
— Sim, pai — concordei, guardando o punhal no bolso.
Achei que fosse só isso que ele precisava me dizer, e que
voltaríamos para o castelo. Mas Jourdain continuou parado diante
de mim, com os ombros banhados pela luz do sol, e senti que as
palavras não queriam sair.
Eu me preparei.
— Tem mais alguma coisa?
— Tem. As queixas. — Ele parou e respirou fundo. — Fui
informado hoje cedo de que uma grande parcela dos MacQuinn,
principalmente aqueles com menos de 25 anos, é analfabeta.
— Analfabeta? — repeti, em choque.
Jourdain ficou quieto, mas seus olhos continuaram fixos nos
meus. Até que entendi o motivo.
— Ah. Brendan Allenach os proibiu de estudar?
Ele fez que sim.
— Você me ajudaria muito se pudesse começar a recolher
queixas para o julgamento. Tenho medo de não conseguirmos reuni-
las e organizá-las a tempo. Pedi para Luc falar com os homens, e
pensei que talvez você poderia escrever pelas mulheres. Entendo
se você achar que isso é pedir demais e…
— Não é — interrompi-o delicadamente, sentindo sua
apreensão.
— Fiz um anúncio durante o café da manhã hoje para que meu
povo começasse a pensar em quaisquer queixas que tivesse, e se
queriam que fossem apresentadas no julgamento. Creio que
algumas pessoas vão se manter caladas, mas sei que outras vão
querer registrá-las.
Estendi a mão e peguei a dele.
— Farei tudo o que puder para ajudar, pai.
Ele levantou nossas mãos para beijar os nós dos meus dedos, e
fiquei comovida pelo gesto simples de afeto, algo que ainda não
tínhamos muito como pai e filha.
— Obrigado — murmurou ele, apoiando meus dedos na parte de
dentro de seu cotovelo.
Caminhamos lado a lado pela trilha de novo, e o castelo voltou a
aparecer em nosso campo de visão. Eu estava à vontade com o
silêncio entre nós — nenhum dos dois era muito de conversar —,
mas, de repente, Jourdain apontou para uma construção grande na
borda leste do terreno, e forcei os olhos para enxergar contra a luz
do sol.
— Aquela é a tecelaria — explicou ele, olhando para mim. — A
maioria das mulheres MacQuinn fica lá. É onde acho que você podia
começar.

Voltei ao castelo para buscar meus materiais de escrita e fiz o que


ele pediu. Minha mente fervilhava de pensamentos à medida que eu
percorria a trilha e me aproximava da tecelaria; o maior deles se
fixava no fato de que todos os MacQuinn jovens eram analfabetos, e
de como isso era uma tragédia. Lá estava eu, cheia de esperança
para começar uma Casa de Conhecimento entre eles, mas, na
realidade, seria necessário rever minhas táticas. Eu precisaria dar
aulas de leitura e escrita antes de qualquer tentativa de ensinar
paixões.
Parei no gramado diante da tecelaria. Era uma estrutura
retangular comprida feita de pedra, com teto de telhas e belas
janelas com filigranas. A parte dos fundos tinha uma vista
desimpedida para o vale lá embaixo, onde meninos pastoreavam
carneiros. A porta da frente estava entreaberta, mas não parecia
muito convidativa.
Respirei fundo, criei coragem e entrei em uma antecâmara. O
chão estava sujo de lama e cheio de botas, e as paredes,
abarrotadas de cachecóis e mantos esfarrapados.
Dava para ouvir as mulheres conversando lá dentro. Segui o
som das vozes por um corredor estreito e estava quase chegando
ao cômodo onde elas trabalhavam quando ouvi meu nome:
— O nome dela é Brienna, não Brianna — corrigiu uma das
mulheres. Parei imediatamente, pouco antes da entrada. — Acho
que ela é parte valeniana. Do lado materno.
— Então está explicado — retrucou a outra mulher, com um tom
mais ríspido.
O que está explicado? Senti a boca ficar seca.
— Ela é muito bonita — declarou uma voz adocicada.
— Você é muito boazinha, Neeve. Acha todo mundo bonito.
— Mas é verdade! Quem me dera ter um manto que nem o dela.
— Aquilo é um manto de paixão, querida. Você teria que ir
comprar um em Valenia.
— Não dá para comprar. A pessoa tem que ganhar.
Meu rosto corou por ficar escutando, mas eu não conseguia me
mexer.
— Bom, pelo menos ela não é parecida com ele — continuou a
de voz ríspida, falando com um tom de desprezo. — Acho que eu
nem conseguiria olhar para ela, se fosse.
— Ainda não acredito que lorde MacQuinn adotaria a filha de
Allenach! O inimigo dele! O que ele estava pensando?
— Ela o enganou. Só pode ser.
Houve um estrondo, como se algo tivesse caído sem querer,
seguido por uma praga exasperada. Escutei o som de passos se
aproximando e voltei às pressas pelo corredor, com a bolsa de
couro batendo na perna. Passei pela antecâmara enlameada e saí
pela porta.
Não chorei, mas meus olhos ardiam enquanto eu corria de volta
para o castelo.
O que foi que eu tinha imaginado? Que o povo de Jourdain
gostaria de mim logo de cara? Que eu me encaixaria nas tramas de
um lugar que havia sofrido enquanto eu prosperava do outro lado do
canal?
Quando entrei no pátio do castelo, comecei a me perguntar se
seria melhor ir embora para Valenia.
Comecei a acreditar que, talvez, eu não merecesse mesmo estar
ali.
4

O S V E L O Z E S N A S C E M PA R A A M A I S
LONGA DAS NOITES
Território de lorde Morgane, castelo Brígh

Cartier

Acordei sobressaltado, com torcicolo e as mãos doendo de frio.


Estava recostado na parede e a luz da manhã clareava o chão,
iluminando a poeira nas minhas botas. A alguns metros de distância,
meu cobertor de lã estava amarrotado e vazio. Pisquei e, aos
poucos, consegui me situar de novo.
Estava no quarto dos meus pais. E fazia um frio de gelar.
Passei as mãos pelo rosto e ouvi o som distante de batidas nas
portas da entrada. O eco de vida se deslocou pelo castelo como um
coração lembrando do ritmo dos batimentos.
Cambaleando, fiquei de pé. Será que Tomas havia escapulido no
meio da noite? Será que repensara a oferta para ficar aqui? Quando
estava no meio da escada quebrada que levava ao andar de baixo,
ouvi a voz do menino:
— Você está aqui para ver lorde Aodhan?
Parei. Ali, atrás das portas da entrada, estava Tomas, equilibrado
em um pé só, falando com um homem no batente. A luz era forte
demais para eu conseguir enxergar direito o visitante, mas não dava
para ficar parado e assimilar o momento.
— Ele está dormindo. Você terá que voltar mais tarde —
declarou Tomas, começando a fechar as portas, o que não teria
adiantado muito, já que elas estavam quase soltando das
dobradiças.
— Estou aqui, Tomas — falei, e mal reconheci minha própria
voz.
Desci o restante dos degraus, evitando as pedras quebradas.
Relutante, Tomas recuou e abriu mais as portas, fazendo-as
baterem na parede.
Havia um homem mais velho sob o sol, com o cabelo branco
preso em uma trança, o rosto muito enrugado, e as roupas, em
farrapos. Assim que nossos olhares se cruzaram, uma expressão de
espanto se instalou no rosto dele.
— Seamus Morgane — falei.
Eu o conhecia. Ele havia me segurado no colo quando eu era
pequeno; se ajoelhara diante de mim e me jurara lealdade. Meu pai
tinha falado dele inúmeras vezes, do homem que fora seu nobre de
maior confiança.
— Milorde Aodhan.
Em meio ao mato, ele se ajoelhou diante de mim.
— Não, não.
Peguei as mãos de Seamus e o fiz se levantar. Abracei-o,
dispensando qualquer formalidade. Senti as lágrimas sacudirem seu
corpo enquanto ele se apoiava em mim.
— Bem-vindo de volta, Seamus — falei, sorrindo.
Seamus se recompôs e se afastou, mantendo os dedos em
meus braços enquanto me observava, ligeiramente boquiaberto,
como se ainda não conseguisse acreditar que eu estava ali.
— Eu não… não acredito — murmurou ele, apertando-me com
mais força.
— Quer entrar? Acho que não tenho nada para comer ou beber,
senão ofereceria algo.
Antes que Seamus pudesse responder, ouvi um grito do pátio.
Levantei os olhos e vi uma mulher magra, também mais velha, com
o cabelo grisalho encaracolado que repousava em seus ombros
como uma nuvem, parada ao lado de uma carroça cheia de
provisões. Ela estava apertando uma ponta do avental de retalhos
na frente da boca, como se também tentasse reprimir o choro ao me
ver.
— Milorde — disse Seamus, vindo para o meu lado e
estendendo a mão para a mulher. — Esta é Aileen, minha esposa.
— Pelos deuses, olhe só para você! Como está crescido! —
exclamou Aileen, enxugando os olhos com o avental.
A senhora estendeu as mãos para mim, e me aproximei para
abraçá-la. Ela mal chegava à altura dos meus ombros, mas pegou
nos meus braços e me chacoalhou de leve, e só consegui rir.
Aileen me afastou um pouco, para olhar meu rosto e guardá-lo
na memória.
— Ah, sim — disse ela, fungando. — Você tem o porte de Kane.
Mas, olhe, Seamus! Ele tem as cores de Líle! Os olhos de Líle!
— É, amor. É o filho deles, afinal — respondeu Seamus, e Aileen
lhe deu um tapa.
— Ah, não me diga. E é o rapaz mais bonito que já vi.
Senti o rosto esquentar, constrangido com o estardalhaço.
Felizmente, fui resgatado por Seamus, que mudou de assunto para
questões mais práticas.
— Fomos os primeiros a chegar, milorde?
Assenti, e meu torcicolo reclamou.
— Foram. Já convoquei meu povo a voltar assim que puderem.
Mas acho que as condições do castelo estão piores do que eu havia
imaginado. Não tenho comida. Nem cobertores. Nem água. Não
tenho nada para oferecer.
— Não esperávamos que tivesse — disse Aileen, apontando
para a carroça. — Isto é um presente de lorde Burke. Fomos
mandados para servir a ele durante os anos de trevas. Felizmente,
ele foi bom para nós, para seu povo.
Andei até a carroça, para disfarçar meu emaranhado de
emoções. Havia fardos de cobertores e barbante, roupas novas,
recipientes de ferro forjado para cozinhar, barris de cerveja e sidra,
peças de queijo, sacas de maçãs, pernis dessecados. Havia
também um conjunto de baldes para tirar água do poço, e papel e
tinta para cartas.
— Minha dívida para com Burke é enorme, então — falei.
— Não, milorde — disse Seamus, apoiando a mão no meu
ombro. — Este é o primeiro dos pagamentos de Burke, por ter se
mantido em silêncio quando devia ter feito sua voz ser ouvida.
Olhei para Seamus, sem saber o que dizer.
— Venha! Vamos levar tudo para dentro e começar a botar
ordem no lugar — declarou Aileen, como se percebesse a tristeza
de meus pensamentos.
Nós três começamos a levar os barris e cestos para a cozinha, e
foi então que me dei conta de que Tomas sumira de novo. Estava
prestes a chamar seu nome quando ouvi outra batida nas portas.
— Lorde Aodhan! — Um jovem de cabelo escuro e rosto
sardento, com braços quase do tamanho da minha cintura, me
cumprimentou com um grande sorriso. — Meu nome é Derry, sou
seu pedreiro.
E assim a manhã seguiu.
À medida que o dia clareava, meu povo continuou chegando,
com quaisquer presentes que podiam trazer. Vieram mais dois de
meus nobres, com suas esposas, e também moleiros, fabricantes de
velas, tecelões, jardineiros, cervejeiros, cozinheiros, artesãos,
toneleiros, lavradores… Eles voltaram para mim rindo e chorando.
Alguns eu nunca tinha visto antes; outros, reconheci imediatamente
como os homens e as mulheres que haviam se juntado a mim na
batalha de dias antes nos campos do castelo. Só que agora traziam
famílias, filhos, avós, rebanhos. E minha mente se encheu com seus
nomes, e meus braços ficaram doloridos de tanto carregar
embrulhos de provisões até as despensas.
No fim da tarde, as mulheres estavam cuidando de limpar e
ajeitar o salão, e os homens haviam começado a tirar as ervas
daninhas e as trepadeiras do pátio, varrer os cacos de vidro e tirar
os móveis quebrados dos cômodos.
Eu estava saindo com os restos de uma cadeira quando vi Derry
parado de costas para mim no pátio, olhando para a pedra que tinha
o nome de Declan. Antes que tivesse chance de pensar no que
falar, o homem pegou um pé de cabra de ferro e arrancou-a
violentamente. Segurando-a virada para baixo, para que o nome
não aparecesse, ele assobiou para um dos meninos e a colocou em
suas mãos.
— Leve isto aqui para o atoleiro, do outro lado daquela mata ali
— disse Derry. — Não a vire, entendeu? Jogue no brejo assim
mesmo, virada para baixo.
O menino fez que sim e saiu correndo com a testa franzida,
segurando a pedra sem jeito.
Obriguei-me a continuar andando antes que Derry reparasse na
minha presença, e levei a cadeira até a fogueira. Mesmo assim,
continuei sentindo uma sombra sinistra se esgueirar por mim,
mesmo à luz do dia, na campina.
Parei diante da fogueira, com o castelo às minhas costas e uma
montanha de móveis quebrados esperando o fogo diante de mim.
Um sussurro veio trazido pelo vento frio e cortante das montanhas.
As palavras sinistras surgiram como um chiado nos murmúrios da
grama, como uma maldição nos rangidos dos carvalhos.
Cadê você, Aodhan?
Fechei os olhos e me concentrei no que era verdade, no que era
real… O ritmo da minha pulsação, a solidez da terra sob meus pés,
o som distante da voz das pessoas.
A voz veio de novo, jovem, porém cruel, acompanhada pelo
fedor de algo queimado, o cheiro dominante de dejetos.
Cadê você, Aodhan?
— Lorde Aodhan?
Abri os olhos e me virei, aliviado de ver Seamus chegar com
pedaços de uma banqueta. Ajudei-o a jogar os destroços no fosso, e
voltamos juntos em silêncio para o pátio, onde Derry já havia
preenchido o buraco de Declan com uma pedra nova, sem nome.
— Aileen estava procurando o senhor — informou Seamus,
enfim, conduzindo-me até o saguão.
Percebi que o lugar estava silencioso e vazio, e acompanhei o
nobre até o salão.
Já estavam todos reunidos, me esperando.
Dei um passo para dentro e parei, surpreso com a
transformação. Uma chama ardia na lareira, e as mesas compridas
estavam organizadas e postas com vasilhas diferentes de estanho e
madeira. Flores-de-corogan silvestres colhidas da campina tinham
sido usadas para formar uma guirlanda azul para as mesas. Velas
iluminavam bandejas de comida — principalmente pães, queijos e
legumes em conserva, mas alguém arrumara tempo para assar uns
cordeiros —, e o chão aos meus pés brilhava como uma moeda
polida. Mas o que realmente chamou minha atenção foi o estandarte
pendurado acima da cornija da lareira.
O brasão de Morgane. Era azul como um céu de verão, com um
cavalo cinza bordado no centro.
Eu estava cercado pelo meu povo no salão, olhando para o
símbolo que havia nascido para usar, o símbolo sob o qual minha
mãe e minha irmã tinham sido mortas, o símbolo que eu dera meu
sangue para despertar.
— Os velozes nascem para a mais longa das noites — começou
Seamus, e sua voz ressoou pelo salão. Eram palavras sagradas, o
lema de nossa Casa, e o vi se virar para mim e colocar um cálice de
prata com cerveja nas minhas mãos. — Pois serão eles os primeiros
a ver a luz.
Segurei o cálice e ative-me àquelas palavras, pois eu me sentia
como se estivesse caindo por um túnel comprido e não sabia
quando atingiria o fundo.
— Aos velozes! — gritou Derry, erguendo seu copo.
— A lorde Morgane — acrescentou Aileen, subindo em um dos
bancos para me ver por cima de todo mundo.
Eles ergueram os copos para mim, e eu ergui meu cálice para
eles.
Para manter as aparências, fingi estar calmo e alegre, e brindei à
saúde do salão. Mas, por dentro, eu tremia com o peso de tudo
aquilo.
Ouvi o sussurro de novo, erguendo-se das sombras nos cantos.
Ouvi por cima dos vivas e clamores do jantar, conforme me
conduziam ao tablado.
Cadê você, Aodhan?
Quem é você?, resmunguei internamente em resposta, e minha
mente estava tensa quando me sentei na cadeira.
O sussurro se dissipou, como se nunca tivesse existido. Será
que estava ouvindo coisas? Será que a exaustão estava começando
a me enlouquecer?
Mas, então, Aileen depositou uma costeleta de carneiro perfeita
em meu prato, e fiquei olhando os sumos vermelhos começarem a
brilhar. Foi então que eu soube.
Aquelas palavras haviam sido pronunciadas bem aqui, 25 anos
atrás. Foram proferidas pela pessoa que devassara o castelo em
busca da minha irmã, em busca de mim.
Declan Lannon.
5

CONFISSÕES À LUZ DE VELAS


Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn

Brienna

A última coisa que eu esperava era que uma das tecelãs viesse
bater na minha porta no fim do dia.
Eu havia conseguido anotar algumas queixas entre as mulheres
que tinham lutado comigo na batalha. Mas, depois de escutar a
conversa na tecelaria, não falei com mais ninguém. Passei o resto
do dia tentando parecer útil, tentando não comparar minha lista
humilde de queixas com o enorme tomo que Luc acumulara.
Estava mais do que disposta a ir para a cama depois do jantar.
Sentei-me diante da lareira com as meias de lã esticadas até os
joelhos e duas cartas deitadas sobre o colo. Uma era de Merei, mas
a outra era de Sean, meu meio-irmão, que eu deveria convencer a
formar uma aliança com Isolde Kavanagh. As duas chegaram à
tarde e me pegaram de surpresa: a de Merei, porque ela
provavelmente havia escrito um dia depois de sair de Maevana, e a
de Sean, porque foi completamente inesperada. A questão da
lealdade dos Allenach era uma preocupação constante na minha
cabeça, mas eu ainda não tinha decidido como lidar com ela. Então
por que será que Sean escreveu para mim por livre e espontânea
vontade?

9 de outubro de 1566,

Brienna
Sinto muito por escrever tão pouco
tempo depois da batalha, porque sei
que você ainda está tentando se
adaptar à nova casa e família. Mas
queria lhe agradecer — por ficar
comigo quando me feri, por me fazer
companhia apesar do que outras
pessoas poderiam pensar. Sua
coragem em desafiar nosso pai me
inspirou em muitos aspectos, e o
primeiro é que farei o possível para
redimir a Casa Allenach. Acredito
que haja pessoas boas aqui, mas
estou penando para descobrir um
jeito de eliminar a corrupção e a
crueldade que foram estimuladas
por décadas a fio. Acho que não sou
capaz de conseguir isso sozinho e
pensei se você estaria disposta a me
escrever, pelo menos por enquanto,
com algumas ideias e sugestões de
como devo começar a corrigir os
erros que esta Casa cometeu…
Escutei uma batida hesitante na porta. Levei um susto e me
apressei a dobrar a carta de meu irmão e escondê-la em um dos
meus livros.
Então, pelo visto, no que dizia respeito a meu irmão, não seria
muito difícil convencer os Allenach.
Guardei o sentimento de alívio ao abrir a porta e me espantei
quando vi uma jovem.
— Senhorita Brienna? — murmurou ela, e reconheci a voz.
Era doce, melodiosa e pertencia à pessoa que havia comentado
que eu era bonita quando ouvi a conversa na tecelaria.
— Pois não?
— Posso entrar?
Ela lançou um olhar pelo corredor, como se estivesse com medo
de alguém achá-la ali.
Dei um passo para trás, um convite tácito para que ela entrasse.
Fechei a porta em seguida, e fomos nos sentar diante da lareira,
lado a lado, constrangidas.
Com a boca torcida para o lado, a menina ficava revirando as
mãos pálidas e encarando o fogo. Tentei não olhar para ela. Era
magra e ossuda, tinha um cabelo louro fino, e seu rosto era
marcado por cicatrizes de varíola — pontinhos brancos como neve
sobre as bochechas.
Justo quando estava criando coragem para falar, ela virou os
olhos para mim e disse:
— Preciso pedir desculpa pelo que você ouviu hoje. Eu vi pela
janela quando você foi embora correndo. E me senti horrível, porque
você tinha ido atrás de nós, e estávamos falando de você daquele
jeito.
— Eu é que preciso pedir desculpa — falei. — Devia ter me
apresentado. Foi errado da minha parte ficar atrás da porta sem que
vocês soubessem.
Mas a menina balançou a cabeça.
— Não, senhorita. Isso não justifica nossas palavras.
Mas você foi a única a falar bem de mim, e é a única que veio
pedir perdão, pensei.
— Posso perguntar por que você foi nos ver hoje? — disse ela.
Hesitei antes de responder.
— Pode, lógico. Lorde MacQuinn pediu minha ajuda para
recolher as queixas do povo. Para levar ao julgamento dos Lannon
na semana que vem.
— Ah. — Ela parecia surpresa. Levou a mão até o cabelo e,
distraída, enrolou as pontas no dedo com uma expressão
ligeiramente franzida. — Tenho 16 anos, então Allenach foi o único
lorde que conheci. Mas as outras mulheres… elas lembram como
era antes de lorde MacQuinn fugir. A maioria das queixas delas é
contra lorde Allenach, não contra os Lannon.
Olhei para o fogo numa tentativa fraca de disfarçar o quanto
essa conversa me abalava.
— Mas você não é filha de Allenach — afirmou ela, e fui
obrigada a encará-la. — Você é filha de Davin MacQuinn. Sempre
pensei em você assim.
— Fico feliz de saber — falei. — Sei que para outras pessoas é
difícil me ver desse jeito.
Mais uma vez, fui tomada por um impulso covarde de fugir, sair
deste lugar, atravessar o canal e mergulhar em Valenia, onde
ninguém mais sabia quem era meu pai. Deixar para lá a ideia de
estabelecer uma Casa de Conhecimento aqui. Poderia fazer isso
facilmente em Valenia.
— Meu nome é Neeve — apresentou-se ela, depois de um
tempo, demonstrando estar disposta a fazer amizade comigo.
Meus olhos quase se encheram de lágrimas.
— É um prazer conhecê-la, Neeve.
— Não tenho nenhuma queixa para você anotar — confessou
ela. — Mas tem outra coisa. Queria saber se você poderia escrever
algumas lembranças minhas dos anos de trevas, para que um dia
eu possa transmitir para a minha filha. Quero que ela conheça a
história desta terra, que saiba como este lugar era antes da volta da
rainha.
Dei um sorriso.
— Eu ficaria muito feliz de fazer isso, Neeve. — Levantei-me
para pegar meus materiais de escrita e arrastei a escrivaninha até a
lareira. — O que você quer que eu registre?
— Acho que é melhor começar do começo. Meu nome é Neeve
MacQuinn. Sou filha da tecelã Lara e do toneleiro Ian, nascida na
primavera de 1550, o ano de tempestades e escuridão…
Comecei a transcrever, palavra por palavra, e fui transferindo as
lembranças dela para papel e tinta. Mergulhei em suas histórias,
pois desejava entender como havia sido a vida durante “os anos de
trevas”, que era como as pessoas ali chamavam o período da
ausência de Jourdain. E o que senti foi não apenas pesar, mas
também alívio, porque, embora Neeve tivesse sido privada de
algumas coisas, foi protegida de outras. Em nenhum momento lorde
Allenach a maltratara fisicamente, nem permitira que seus homens a
maltratassem. Na verdade, ele jamais olhara ou falara qualquer
coisa para ela. As mulheres e os homens mais velhos é que
receberam os piores castigos, para dobrá-los, aterrorizá-los,
subjugá-los, para fazê-los esquecer os MacQuinn.
— Acho que é melhor eu parar por enquanto — interrompeu ela,
depois de um tempo. — Já devo ter falado mais do que o suficiente
para você escrever.
Minha mão doía, e meu pescoço estava começando a ficar duro
de tanto me encurvar sobre a mesa. Percebi que ela falara por mais
de uma hora, e que tínhamos acumulado vinte páginas de sua vida.
Abaixei a pena, alonguei os dedos para trás e me atrevi a dizer:
— Neeve? Você quer aprender a ler e escrever?
Atônita, ela piscou.
— Ah, acho que eu não teria tempo, senhorita.
— Podemos arranjar tempo.
Neeve sorriu, como se eu tivesse acendido uma chama dentro
dela.
— Sim, quero sim, quero muito! Só que… — A alegria dela
murchou. — Podemos manter as aulas em segredo? Pelo menos
por enquanto?
Não posso negar que fiquei triste com o pedido, pois sabia que
ela não queria que outros descobrissem que estávamos passando
tempo juntas. Mas aí pensei de novo em formas de me provar para
os MacQuinn — eu precisava ter paciência, deixar que confiassem
em mim no próprio tempo — e sorri, juntando as folhas e
entregando para Neeve.
— Que tal começarmos amanhã à noite? Depois do jantar? E,
sim, podemos manter em segredo.
Neeve assentiu. Ela arregalou os olhos ao pegar as folhas,
observar minha escrita e acompanhar as linhas com a ponta do
dedo.
E, olhando para ela, não pude deixar de pensar no que eu havia
escutado de manhã. Acho que ela é parte valeniana, dissera uma
das tecelãs sobre mim. Elas me consideravam uma sulista ou uma
Allenach. Eu receava que isso sempre acabasse me isolando dos
MacQuinn, por mais que eu tentasse me provar.
— Neeve — falei, com uma ideia na cabeça. — Talvez você
possa me ensinar algo em troca.
Ela olhou para mim, espantada.
— Hã?
— Quero saber mais sobre os MacQuinn, suas crenças, seu
folclore, suas tradições.
Quero me tornar uma de vocês, quase implorei. Me ensine.
Graças a Cartier e seus ensinamentos na Casa Magnalia, eu já
possuía conhecimento teórico sobre a Casa MacQuinn. Conhecia a
parte da história que podia ser lida em volumes velhos e
empoeirados. A Casa recebeu a bênção do Determinado, seu
brasão era um falcão, as cores eram lavanda e dourado, e o povo
era respeitado como os tecelões mais habilidosos do reino. Mas o
que me faltava era o conhecimento do povo, as normas sociais dos
MacQuinn. Como eram os cortejos? Os casamentos? Os funerais?
Que tipo de comida serviam em festas de aniversário? Será que
tinham superstições? Como era a etiqueta?
— Não sei se sou a melhor pessoa para ensinar essas coisas —
respondeu Neeve, mas vi o quanto ela gostou de meu pedido.
— Que tal você me contar uma das suas tradições preferidas
dos MacQuinn? — sugeri.
Neeve ficou calada por um instante, até que um sorriso se abriu
em seus lábios.
— Você sabia que, se decidirmos nos casar com alguém de fora
da Casa MacQuinn, temos que escolher a pessoa com uma fita?
Fiquei intrigada na mesma hora.
— Uma fita?
— Talvez seja melhor dizer que a fita é que escolhe por nós —
disse Neeve. — É um teste, para que possamos determinar quem
fora da nossa Casa é digno.
Recostei-me na cadeira, à espera de mais.
— A tradição começou há muito tempo — disse Neeve. — Não
sei se você conhece nossas tapeçarias…
— Ouvi falar que os MacQuinn são conhecidos como os
melhores tecelões de Maevana.
— É. Tanto que começamos a esconder uma fita dourada nas
tramas das nossas tapeçarias. Uma tecelã habilidosa consegue
fazer a fita desaparecer no desenho, é muito difícil de achar.
— Então todas as tapeçarias dos MacQuinn têm uma fita
escondida? — perguntei, ainda muito confusa com o que isso tinha
a ver com a escolha de um parceiro.
O sorriso de Neeve se abriu ainda mais.
— É. E foi assim que a tradição começou. O primeiro lorde
MacQuinn tinha só uma filha, e ele a amava tanto que não
acreditava que nenhum homem, MacQuinn ou não, seria digno dela.
Então ele mandou as tecelãs esconderem uma fita em uma
tapeçaria que estavam fazendo, pois sabia que só o homem mais
dedicado e decidido a encontraria. Quando a filha do lorde atingiu a
maioridade, homens e mais homens vieram ao salão, desesperados
para conquistá-la. Mas lorde MacQuinn mandou trazerem a
tapeçaria, e sua filha desafiou os homens a lhe trazer a fita dourada
escondida na trama. E, homem após homem, ninguém achou.
Quando o vigésimo moço se apresentou, lorde MacQuinn achou que
o rapaz duraria só uma hora. Mas o homem ficou no salão por uma
hora, procurando, e uma hora virou duas, até que a noite deu lugar
ao amanhecer. Quando o sol raiou, o homem puxou a fita da
tapeçaria. Era um Burke, por incrível que pareça, e, mesmo assim,
lorde MacQuinn disse que ele mais do que merecia se casar com
sua filha, se ela quisesse.
— E ela quis? — perguntei.
— Evidente. E é por isso que, até hoje, nós da Casa MacQuinn
pensamos duas vezes antes de desafiar os Burke a qualquer
competição, porque eles são um pessoal bem teimoso.
Dei uma risada e o som inspirou Neeve a me acompanhar, e
acabamos enxugando os olhos na frente da lareira. Eu nem
conseguia lembrar da última vez que me sentira tão leve.
— Acho que gostei dessa tradição — comentei, depois de um
tempo.
— É. E você devia usá-la, se decidir escolher alguém fora da
Casa MacQuinn — declarou Neeve. — Quer dizer, a menos que o
elegante lorde Morgane já seja sua paquera secreta.
Meu sorriso cresceu, e senti o rosto esquentar. Ela
provavelmente percebeu na noite anterior, quando Cartier se
sentara ao meu lado no jantar. Neeve arqueou as sobrancelhas para
mim, esperando.
— Lorde Morgane é um velho amigo meu — revelei, por fim. —
Ele foi meu instrutor em Valenia.
— Para a paixão? — perguntou Neeve. — O que isso significa,
exatamente?
Comecei a explicar, e por dentro tive medo de que ela fosse
achar que o estudo de paixões era uma frivolidade. Mas Neeve
parecia ávida para saber, assim como eu estava em relação às
tradições deles. Eu teria continuado a conversa até tarde da noite se
não tivéssemos escutado vozes no corredor. Ela pareceu se
espantar com o som, lembrando que estava ali em meus aposentos
em segredo, e que já fazia bem mais de uma hora.
— Acho que é melhor eu ir embora — anunciou Neeve,
abraçando o maço de papel junto ao coração. — Antes que deem
pela minha falta.
Nós nos levantamos juntas, e tínhamos quase a mesma altura.
— Obrigada, senhorita, por escrever isto para mim — sussurrou
ela.
— Não tem de quê, Neeve. A gente se vê amanhã à noite,
então?
Ela assentiu com a cabeça e se esgueirou silenciosamente para
o corredor, como se fosse só uma sombra.
Meu corpo estava exausto, mas minha mente fervilhava com o
que havia acabado de acontecer, com tudo que Neeve me contara.
Eu sabia que, se me deitasse, o sono não ia chegar. Então joguei
mais uma tora no fogo e me sentei diante da lareira, ainda com a
mesa na minha frente, com papel, pena e tinta. Peguei a carta de
Merei e a abri com cuidado, rasgando o selo de cera de nota
musical sob a unha.

Querida Bri,

Sim, sei que você vai ficar surpresa


de receber esta carta tão cedo. Mas
não teve alguém que me disse que
“escreveria todas as horas de todos
os dias”? (Porque ainda estou
esperando aquela montanha de
cartas que você prometeu!)
Neste momento, estou sentada a
uma mesa torta de uma taverna
velha e cheia de goteira na idade de
Isotta, do lado do porto, e o cheiro é
de peixe, vinho e um perfume
horrível de homem. Talvez você
consiga sentir, se encostar o nariz
neste pergaminho — é muito forte.
Tem também um gato tigrado caolho
que não para de me encarar e fica
tentando lamber a gordura do meu
prato. Apesar de todo esse caos,
arrumei um tempinho antes da hora
marcada para eu encontrar minha
trupe, e quis escrever para você.
Desembarquei agora há pouco do
navio, e é difícil acreditar que acabei
de deixar você para trás em
Maevana como filha de um lorde, e
que eu a vi ainda ontem, que a
revolução para a qual você e Cartier
me levaram fez tudo que você
sonhava. Ah, Bri! Ah, se a gente
soubesse o que aconteceria depois
daquela noite no solstício de verão
há quatro meses, quando nós duas
estávamos com medo de não
sermos aprovadas na nossa paixão!
E como isso parece um passado
distante agora. Confesso que queria
que você e eu pudéssemos voltar
para Magnalia, só por um dia.
Lembranças antigas à parte, tenho
uma pequena novidade que acho
que você vai achar interessante.
Sabe como as tavernas atraem a
nata da sociedade? Bom, ouvi um
bocado dessa nata falando da
revolução em Maevana, da volta da
rainha Isolde ao trono e dos Lannon
acorrentados e à espera do
julgamento. (Tive que fazer muita
força para continuar quieta e beber
meu vinho.) Muita gente aqui acha
maravilhoso que uma rainha tenha
recuperado a coroa do norte, mas
alguns estão nervosos. Acho que o
receio é que os distúrbios se
alastrem para Valenia, que alguém
aqui se atreva a considerar um golpe
contra o rei Phillipe. Os valenianos
estão muito curiosos e vão ficar de
olho no norte nas próximas
semanas, ansiosos para ver como a
situação dos Lannon vai se resolver.
Escutei de tudo, desde decapitação
e tortura até obrigar todos os Lannon
a andar em cima de fogo até
morrerem queimados lentamente.
Conte o que acontecer de fato, e vou
mantendo você atualizada das
fofocas e novidades daqui do sul,
mas isso só me deixa com mais
saudade.
Preciso encerrar aqui, e você sabe
que vou fazer estas três perguntas
cruciais (então é bom você
responder todas!):
Primeira, como é o seu manto?
Segunda, Cartier beija bem?
Terceira, quando você pode vir
visitar Valenia?
Escreva logo!
Com amor,
Merei

PS: Ah! Quase esqueci. A partitura


nesta carta é para seu irmão. Ele me
pediu para mandar. Por favor,
entregue para ele com meus
cumprimentos! — M
Li a carta de novo e me alegrei. Peguei a carta que tinha
começado a escrever de manhã e resolvi refazer do zero. Perguntei
para Merei sobre a trupe dela, para onde iriam depois, para que tipo
de pessoas e festas ela havia tocado. Respondi às três perguntas
“cruciais” com o máximo possível de elegância — meu manto é
bonito, bordado com a constelação de Aviana; espero que eu possa
visitar Valenia em algum momento nos próximos meses, quando as
coisas se acalmarem aqui (prepare-se para me abrigar onde quer
que você esteja); Cartier beija muitíssimo bem — e, depois, falei das
queixas: que eu ainda estava com dificuldade para me enturmar,
que pensava tanto nela e em Valenia que era quase insuportável.
Antes que pudesse conter meus medos, escrevi-os tão
detalhadamente quanto se estivesse conversando com ela, como se
ela estivesse sentada aqui no quarto comigo.
Mas eu já sabia o que ela me diria:
Você é filha de Maevana. Foi forjada por canções antigas e
estrelas e aço.
Parei de escrever e fiquei encarando as palavras até a visão
ficar turva nos meus olhos cansados. No entanto, eu quase
conseguia escutar o eco da música de Merei, como se ela estivesse
tocando no corredor, como se eu ainda estivesse em Magnalia com
ela. Fechei os olhos, de novo com saudade de casa, mas então
escutei o chiado do fogo, os sons de risada pairando pelo corredor,
os uivos do vento do outro lado da janela, e pensei: Minha casa é
aqui. Minha família está aqui. E, um dia, vou ser parte daqui; um dia,
vou me sentir filha dos MacQuinn.
6

A M E N I N A D O M A N TO A Z U L
Território de lorde Morgane, castelo Brígh

Cartier

— Convidei lady e lorde Dermott para ficarem aqui semana que vem
— falei para Aileen certa manhã, enquanto o julgamento dos Lannon
se aproximava a cada dia.
— Lady e lorde Dermott? — repetiu Aileen, com uma voz
ligeiramente aguda demais para o meu gosto. — Aqui?
Nós dois olhamos para as janelas quebradas e os cômodos
vazios à nossa volta.
Eu havia escrito para os Dermott e os convidado a se hospedar
no castelo Brígh durante a viagem para o julgamento. E achei que
tinha calculado bem o tempo para terminar de restaurar o castelo
para receber visitas, assim como preparar meus planos para
convencê-los a anunciar publicamente uma aliança com a rainha.
Mas, pela expressão no rosto de Aileen… percebi que eu tinha dado
um passo maior do que as pernas.
— Desculpe — falei logo. — Sei que não estamos em condições
de receber visitas no momento.
Quis acrescentar: mas é que esta aliança precisa acontecer
rápido, mas, diante das sobrancelhas arqueadas de Aileen, engoli
as palavras antes que elas saíssem.
— Isso significa que você está me designando a intendente do
castelo? — perguntou, com um sorriso sutil nos olhos.
— Estou, Aileen.
— Então não se preocupe, lorde Aodhan — declarou ela,
tocando no meu braço. — Vamos deixar este castelo pronto em sete
dias.
À tarde, eu estava no escritório com o nobre Seamus, e nós dois
tentávamos decidir como consertar o buraco no telhado quando
Tomas entrou pulando em um pé só, com a outra perna, do pé
ferido, dobrada para trás.
— Milorde — disse o menino, puxando minha manga. — Tem…
— Garoto, não puxe a manga do lorde — censurou Seamus,
com delicadeza, e o rosto de Tomas ficou vermelho enquanto ele
pulava para trás e ficava a uma distância adequada.
— Não tem problema — falei, olhando para Tomas. O menino
tinha dado uma sumida nos últimos dois dias, como se estivesse
abalado pela quantidade de gente que havia agora no castelo. —
Vou terminar aqui, e depois conversamos.
Tomas fez que sim e saiu saltitando do escritório. Fiquei olhando
para ele e reparei que seus ombros estavam encurvados.
— Milorde Aodhan, você precisa ensinar jovens como ele a
respeitá-lo — sugeriu Seamus, suspirando. — Caso contrário, ele
sempre será impertinente.
— É, bom, até onde eu sei, ele é órfão — comentei. — E quero
que se sinta em casa conosco.
Seamus não falou nada. E me perguntei se era errado pensar
assim — eu não sabia nada sobre educação de crianças —, mas
não tinha tempo para ficar ponderando. Voltei ao assunto do
conserto do telhado e guardei Tomas em um canto da mente.
Meia hora depois, Seamus saiu para acompanhar a reforma da
cervejaria, a uns quinze minutos de viagem a cavalo, mas ainda
dentro da propriedade, depois de Aileen reclamar que “não
podemos receber lady e lorde Dermott aqui sem uma cerveja
decente”. Não dava para criticá-la por priorizar bebida acima de
camas e janelas de vidro, então saí do escritório em busca de
Tomas. O menino parecia desaparecer sempre que queria, sumindo
nas sombras e encontrando os melhores esconderijos.
Fui ao salão primeiro, onde algumas das mulheres trabalhavam
em uma mesa comprida, em volta de uma jarra de chá, costurando
cortinas e colchas para os aposentos de visitantes. Os risos delas
se calaram quando cheguei, e seus olhares se abrandaram
conforme eu me aproximava.
— Boa tarde. Viram Tomas? — perguntei. — Ele tem mais ou
menos esta altura e cabelo ruivo.
— Vimos, sim, lorde Aodhan — respondeu uma das mulheres,
empurrando uma agulha pelo tecido. — Ele está com a menina do
manto azul.
Brienna.
Fiquei espantado; foi como se meu coração estivesse amarrado
em um barbante e me puxasse só de pensar nela.
— Obrigado — agradeci, e saí às pressas do salão, ouvindo as
mulheres cochicharem atrás de mim quando cheguei ao pátio.
Dali, fui correndo para os estábulos, mas não vi sinal de Brienna.
Um dos cavalariços me informou de que ela havia acabado de
passar ali com Tomas, conversando sobre bolos de mel, então voltei
ao castelo pela cozinha, onde uma bandeja de bolos de mel esfriava
na janela, e deu para ver que faltavam dois…
Voltei para o escritório, com passos leves no chão de pedra, e
ouvi a voz de Brienna pairar pelo corredor conforme ela falava com
Tomas.
— Então eu comecei a cavar, bem embaixo da árvore.
— Com as mãos? — perguntou Tomas, ansioso.
— Não, bobinho. Com uma pá. Eu tinha guardado no bolso, e…
— No bolso? Vestidos têm bolso?
— Claro que têm. Você acha que as mulheres não precisam de
um lugar para esconder umas coisinhas?
— Acho que sim. O que aconteceu depois? — insistiu Tomas.
— Cavei até achar o medalhão.
Abri a porta levemente, quase hesitante quanto a interromper
esse momento. A porta rangeu, como tudo no castelo, alertando-os
para a minha chegada, e parei no limiar, olhando para eles.
Não havia móveis no escritório. Brienna e Tomas estavam
sentados no chão, debaixo de um círculo de luz do sol, com as
pernas esticadas para a frente e apoiados nas mãos atrás das
costas.
Brienna parou de falar quando olhou para mim.
— Eu tentei avisar, milorde! — disse Tomas, às pressas, como
se estivesse com medo de levar bronca. — A senhorita Brienna
chegou, mas você me mandou embora antes.
— Sim, e peço desculpa, Tomas — falei, juntando-me à roda
deles no chão. — Da próxima vez, vou prestar atenção.
— Você está doente, milorde? — O menino franziu a testa ao me
examinar. — Parece que está com febre.
Soltei uma risadinha e enxuguei a testa de novo.
— Não, não estou doente. Só andei pela propriedade inteira
atrás de vocês dois.
— Eu a trouxe aqui para você, milorde.
— Aham. Então eu devia ter esperado aqui. — Meus olhos se
voltaram automaticamente para Brienna.
O cabelo caía sobre os ombros, e seu rosto estava corado da
viagem, com um brilho nos olhos. O manto estava amarrado na
gola; o azul-escuro se expandia ao seu redor e refestelava na luz.
— Eu estava contando para Tomas a história de quando achei a
pedra — informou ela, com um tom divertido.
— E o que aconteceu depois? — insistiu Tomas, chamando a
atenção dela de novo.
— Bom, a Pedra do Anoitecer estava dentro do medalhão —
continuou Brienna. — E tive que escondê-la no meu… ahn, no meu
vestido.
— No bolso, você quer dizer? — sugeriu Tomas, apoiando o
queixo na palma da mão.
— É. Por aí.
Ela olhou de relance para mim, com um sorriso maroto.
— Como é a pedra? — perguntou ele.
— Parece uma pedra da lua grande.
— Já vi algumas pedras da lua — comentou o menino. — Que
mais?
— A Pedra do Anoitecer muda de cor. Acho que ela interpreta o
humor da pessoa que a usa.
— Mas só os Kavanagh conseguem usar sem o medalhão, né?
— É — concordou Brienna. — Ela queimaria pessoas como você
e eu.
Tomas finalmente se calou, refletindo sobre o que havíamos
falado. Meus olhos foram de novo para Brienna, e sugeri com um
tom suave:
— Tomas? Que tal você ir para a cozinha ver se a cozinheira
precisa de ajuda?
O menino grunhiu.
— Mas quero ouvir o resto da história da senhorita Brienna.
— Vai ter outro dia para histórias. Vá agora.
Tomas se levantou bufando e saiu aos pulos.
— Você devia arrumar uma muleta pequena antes que ele
arrebente os pontos que você deu — sugeriu Brienna. — Tive que
carregá-lo nas costas.
— Você o quê?
— Não fique tão surpreso, Cartier. O menino é pele e osso.
O silêncio entre nós se alongou. Senti uma pontada de culpa.
— Não sei de quem ele é — falei, enfim. — Eu o encontrei
algumas noites atrás. Acho que ele estava dormindo aqui.
— Talvez um dia ele diga de onde veio — respondeu Brienna.
Suspirei, apoiei-me nas mãos e olhei de novo para ela. Soou um
eco de algo batendo, seguido pelo grito distante da cozinheira. Ouvi
Tomas retrucar com outro grito atrevido e gemi.
— Não sei o que estou fazendo, Brienna. — Fechei os olhos,
sentindo de novo aquele peso. O peso da terra, o peso do povo, o
peso da aliança com Dermott, o peso do julgamento iminente.
Meses antes, eu jamais teria me imaginado nessa situação.
Brienna chegou mais perto; ouvi o sussurro de seu vestido,
senti-a cobrir o sol ao se sentar na minha frente e pôr as mãos nos
meus joelhos. Abri os olhos e vi a luz formar uma coroa nela, e por
um instante havia só nós dois no mundo, e mais ninguém.
— Não existe manual para isso — declarou Brienna. — Mas seu
povo se reuniu a sua volta, Cartier. São pessoas maravilhosas e
dedicadas. Ninguém espera que você tenha todas as respostas,
nem que assuma sua função hoje. Vai levar tempo.
Eu não sabia o que dizer, mas suas palavras me acalmaram.
Peguei as mãos dela nas minhas — palmas alinhadas, dedos
entrelaçados. Reparei nas manchas de tinta na mão direita.
— Você andou escrevendo, pelo visto.
Ela deu um sorriso melancólico.
— É. Jourdain me pediu para começar a juntar queixas.
Isso me pegou um pouco de surpresa. Parecia cedo demais para
compilar essas trevas. Tínhamos acabado de voltar para casa e
recuperar a vida que devíamos ter. Mas então lembrei que faltavam
meros dias para o julgamento. É evidente que eu também deveria
reunir as queixas do meu povo. E deveria redigir as minhas próprias.
Portanto, eu precisaria confrontar plenamente os detalhes do que
acontecera naquela noite. Porque, embora soubesse de parte da
verdade, eu não sabia tudo. Não sabia quem desferira o golpe letal
na minha irmã, nem a dimensão completa da violência cometida
contra o povo Morgane.
E tinha também a carta de minha mãe, que eu ainda mantinha
no bolso, sem saber como lidar com ela. Eu tinha sangue Lannon
nas veias; será que precisava reconhecer essa verdade, ou ocultá-
la?
Larguei esses pensamentos e vi que Brienna estava me
observando.
— Você já anotou muitas queixas? — perguntei.
— Luc juntou um belo calhamaço.
— E por que você não?
Ela desviou o olhar, e uma desconfiança sombria começou a
obscurecer minha mente.
— Brienna… fale.
— O que posso dizer, Cartier?
E ela deu um sorriso amarelo, do tipo que não alcançava os
olhos.
— Você nunca foi boa em teatro — lembrei.
— Não é nada, juro.
Ela tentou tirar as mãos das minhas, mas segurei com mais
força.
Se ela não ia falar, então eu falaria.
— O povo de Jourdain não está aceitando você bem.
Sabia que era verdade porque vi uma fagulha de dor em seus
olhos antes que ela a cobrisse com irritação.
— O que disseram para você, Brienna? — insisti, sentindo a
raiva crescer só de imaginar. — Foram grosseiros?
— Não. É o que eu devia ter esperado — rebateu ela, como se
quisesse defendê-los, como se a culpa fosse dela, como se ela
pudesse controlar as próprias origens.
— Jourdain sabe?
— Não. E peço que você não conte para ele, Cartier.
— Você não acha que seu pai deveria saber que o povo dele a
está ofendendo? Que o povo está ofendendo a filha dele?
— Ninguém está me ofendendo. E, se estivesse, eu não ia
querer que Jourdain soubesse. — Ela soltou minhas mãos, se
levantou e virou-se para a janela. — Ele já tem muito com que se
preocupar. E acho que você sabe como é.
Eu sabia. Porém, acima de tudo, queria que Brienna se sentisse
em casa aqui. Isso era quase a sombra de todos os meus outros
pensamentos — que ela fosse aceita, que fosse feliz. Queria que ela
recuperasse seu lar em Maevana, esta terra selvagem da qual ela e
eu só havíamos falado em nossas aulas. Metade de sua história
estava neste solo, e para mim não fazia a menor diferença o
território onde ela nascera.
Fiquei de pé e espanei a poeira das calças. Fui até ela devagar,
parando pouco atrás, só para conseguir sentir seu calor.
Continuamos em silêncio, contemplando a terra além do vidro
quebrado, as campinas, florestas e colinas que se tornavam
montanhas.
— Eles me consideram uma Allenach. Não uma MacQuinn —
confessou, em voz baixa. — Acham que ludibriei o lorde a me
adotar.
Fiquei arrasado ao vê-la admitir isso. Poderia ter falado inúmeras
coisas em resposta, principalmente que eu nunca a considerara
uma Allenach, que sempre a vira como a pessoa que ela era: filha
de Maevana e amiga querida da rainha. Mas contive minhas
palavras.
Finalmente ela se virou para mim e ergueu os olhos para encarar
os meus.
— Eles só precisam de um pouco mais de tempo — murmurou
ela. — Tempo para que a lembrança do meu pai de sangue se
dissipe, para que eu possa me provar para eles.
Ela tinha razão. Todos precisávamos de tempo — tempo para
nos acomodar, tempo para nos curar, tempo para descobrir quem
deveríamos ser.
E a única coisa que consegui dizer foi seu nome, como se fosse
uma prece:
— Brienna.
Minha mão subiu; meus dedos acompanharam a linha do maxilar
dela. Queria guardá-la na memória, explorar seus contornos e
curvas. Mas meus dedos pararam em seu queixo, inclinaram o rosto
dela para cima e vi o sol dançar em suas bochechas.
Brienna prendeu o fôlego, e abaixei o rosto para soltá-lo. Beijei-a
de leve uma vez, duas vezes, até que ela abriu a boca sob a minha
e descobri que estava tão sedenta quanto eu. De repente, minhas
mãos foram para seu cabelo, meus dedos se emaranharam nos fios
sedosos, perdidos no desejo de me entregar completamente.
— Cartier. — Ela tentou falar meu nome; sorvi o som de seus
lábios.
Senti as mãos dela subirem pelas minhas costas, agarrarem
minha camisa e a puxarem. Estava me alertando, porque agora eu
escutava o som alto de passos arrastados, perto da porta do
escritório.
Com esforço, me afastei dela, conseguindo respirar apenas o
suficiente para sussurrar:
— Você tem gosto de bolo de mel roubado, Brienna MacQuinn.
Ela sorriu, e seus olhos estavam rindo.
— O lorde do Veloz não deixa nada escapar, não é?
— Não quando o assunto é você.
Dei mais um beijo ousado nela, antes que quem quer que fosse
chegasse ao escritório, mas algo pontudo fez pressão na minha
perna. Surpreso, inclinei o corpo para trás e deslizei a mão até a
saia dela, até sua coxa. Senti o formato rígido de um punhal sob o
tecido e fitei seus olhos, sem dizer nada, mas extremamente
satisfeito por ela ter uma arma oculta.
— Sabe como é — comentou ela, gaguejando. Seu rosto corou.
— Nós, mulheres, não podemos esconder tudo nos bolsos, né?
7

T R A G A - M E A F I TA D O U R A D A
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn

Brienna

Eu não pretendia jantar no salão naquela noite, para preparar as


primeiras aulas de leitura de Neeve. Estava levando uma bandeja
com sopa e pão para meus aposentos, e refletindo sobre como a
tarde havia sido boa com minha visita a Cartier e seu povo, quando
Jourdain brotou das sombras na minha frente.
— Ai, meus santos, pai! — Quase derramei a comida em cima
do vestido. — Você devia saber que não pode me assustar assim!
— Aonde está indo? — perguntou ele, olhando para minha
bandeja com uma expressão intrigada.
— Para os meus aposentos — respondi. — Para onde mais eu
iria?
Jourdain tirou a bandeja das minhas mãos e entregou para um
criado que, por acaso, estava passando por ali.
— Eu ia comer aquilo.
Mas, aparentemente, Jourdain não escutou minha irritação. Ele
esperou o criado sumir na curva do corredor, pegou na minha mão,
me puxou até meus aposentos e fechou a porta atrás de nós.
— Temos um problema — revelou, enfim, com a voz rouca.
— Que tipo de problema, pai?
Tentei interpretar as rugas na testa dele, para me preparar para
qualquer coisa.
— Diga tudo o que você sabe sobre a Casa Halloran, Brienna.
Fiquei paralisada diante dele.
— Halloran? — Pigarreei, ainda surpreendida pelo pedido e
tentando lembrar tudo que Cartier me ensinara. — A rainha Liadan
lhes dera a bênção do Decoroso. São famosos por seus pomares e
produtos de aço, e suas espadas são as melhores de Maevana. As
cores são amarelo e azul-marinho; o brasão é um íbex dentro de um
círculo de zimbro. O território deles é conhecido como A Dobradiça
de Maevana, pois é o único que faz fronteira com sete territórios
vizinhos. Tinham uma forte e histórica aliança com os Dunn e os
Fitzsimmons, que foi rompida quando os Lannon tomaram o trono.
Desde então, juraram lealdade à Casa que detivesse todo o poder.
— Parei, sentindo de novo a limitação de meus conhecimentos
teóricos. — Posso listar a árvore genealógica deles, se é isso que
você quer. Até filhos e filhas bastardos.
— Então o nome Pierce Halloran deve significar algo para você
— disse Jourdain.
— Sim. Pierce Halloran é o filho mais novo dos três filhos de lady
Halloran. Por quê?
— Porque ele está aqui — responde ele praticamente num
grunhido.
Não consegui disfarçar minha surpresa.
— Pierce Halloran está aqui, em Fionn? Como pode?
Mas eu desconfiava. Os Lannon eram nossos prisioneiros. A
aliança com os Halloran tinha começado a ruir…
— Ele quer dar uma olhada em você.
— Ele quer olhar para mim?
— Quer se apresentar como pretendente — complementou
Jourdain, expressando-se à moda valeniana.
A princípio, a revelação foi um choque para mim. Mas o choque
se dissipou conforme eu começava a pensar estrategicamente.
— Ora, ele deve se achar muito esperto — afirmei, o que
felizmente atenuou a tensão que se acumulava em Jourdain.
— Então você entende o mesmo que eu a esse respeito? —
perguntou meu pai, relaxando os ombros um pouco.
— Lógico. — Cruzei os braços, olhando de relance para o fogo.
— Os Halloran ficaram na mesa dos Lannon por mais de cem anos.
Essa mesa acabou de virar. E fomos nós que a viramos. — Senti
Jourdain me observando, atento às minhas palavras. — Os Halloran
estão correndo atrás do prejuízo, e deviam mesmo. Estão querendo
uma aliança com a Casa mais forte.
— Certo, certo — concordou Jourdain, meneando a cabeça. — E
precisamos tomar muito cuidado, Brienna.
— Sim, concordo.
Parei um instante para andar pelo quarto, acariciando distraída
minhas tranças, enquanto organizava os pensamentos e costurava
um plano. Eu havia decidido começar a trançar meu cabelo, do jeito
que muitas mulheres MacQuinn faziam. Gostava de pensar nelas
como tranças de guerreira.
Quando parei diante de Jourdain novamente, vi um ligeiro sorriso
em seu rosto.
— Pelos deuses — exclamou ele, balançando a cabeça para
mim. — Nunca imaginei que ficaria tão feliz de ver esse brilho
malicioso nos seus olhos.
Sorri e coloquei a mão no coração, brincalhona.
— Ah, pai. Assim você me magoa. Por que você não ficaria feliz
de ouvir meus planos?
— Porque eles me deixam de cabelo branco, Brienna —
respondeu ele, com uma risadinha.
— Então talvez seja melhor você ouvir sentado.
Jourdain obedeceu, pegou a cadeira que Neeve havia usado na
noite anterior e me sentei ao seu lado, na minha poltrona preferida.
Estendemos as botas na direção do fogo.
— Certo, pai. Eis o que estou pensando: os Halloran estão
procurando um jeito de formar uma aliança conosco através do
casamento comigo. Não posso criticá-los pela tentativa. Tenho
certeza de que casamentos foram o instrumento dos Lannon
durante os últimos 25 anos. E o cenário político de Maevana está
mudando drasticamente. Os Halloran precisam se reformular para
conquistar alguma simpatia da rainha. O casamento é ao mesmo
tempo uma das maneiras mais fáceis e fortes de se estabelecer
uma nova aliança, e é por isso que Pierce apareceu à nossa porta.
— Brienna, por favor, não me diga que está pensando em aceitar
— reclamou Jourdain, cobrindo os olhos por um instante.
— Óbvio que não!
Jourdain abaixou a mão e soltou um suspiro de alívio.
— Que bom. Porque não sei o que pensar! O que eu mais
gostaria, acima de tudo, é cuspir nos presentes que Pierce trouxe e
despachá-lo de volta com um chute no traseiro. Mas você e eu
sabemos que não temos condições para algo tão impulsivo,
Brienna.
— Não temos — concordei. — Os Halloran querem se aliar a
nós. Devemos permitir?
Ficamos quietos, contemplando todas as possibilidades.
Fui a primeira a romper o silêncio.
— Faz pouco tempo que estávamos conversando sobre alianças
e rivalidades. Nós quatro nos sentamos e listamos as Casas que
precisavam ser conquistadas para Isolde. Ainda estamos tentando
decidir o que fazer com os Lannon, mas e a Casa Carran, e a Casa
Halloran? — Dei de ombros, sinalizando minha incerteza. — Quase
passo mal de pensar em deixá-las se unirem a nós. Elas
prosperaram durante os últimos 25 anos, enquanto uma parte
enorme do povo sofria. Mas, se as rejeitarmos… quais seriam as
consequências?
— É impossível saber ao certo — respondeu meu pai. — Minha
única certeza no momento é que não quero os Halloran em nossa
aliança. Não confio neles.
— Você acha que eles nos enganariam?
— Eu sei que nos enganariam.
Tamborilei os dedos nos joelhos, ansiosa.
— Então não podemos simplesmente rejeitá-los. Mas ainda
preciso dar uma resposta a Pierce Halloran.
Jourdain ficou olhando para mim, imóvel.
— Só peço, se você considerar o que digo como pai, que não
faça joguinhos com ele. Não faça nada que possa deixá-la em
perigo, filha.
— Eu jamais faria qualquer artimanha romântica com Pierce.
Mas, como falei, preciso lhe dar uma resposta.
— Você não pode dizer logo que está com Aodhan Morgane? —
perguntou Jourdain, de repente.
— Cartier precisa aparentar ser um lorde sem pontos fracos. —
Parecia quase cruel, mas as palavras pairaram no ar entre mim e
meu pai como uma verdade: as pessoas que amávamos eram
sempre um ponto fraco. — E o fato de que Cartier basicamente não
tem nada, nenhum parente vivo, nenhuma esposa ou filhos, o deixa
em uma posição superior à nossa neste jogo político.
Vi o olhar de Jourdain ficar perdido por um instante. Fiquei
preocupada que ele estivesse pensando em si mesmo, em Sive, sua
esposa, em como a perdera.
— Só quero que você seja feliz, Brienna — murmurou ele, enfim,
e essa confissão quase me apertou o coração.
Inclinei o corpo para segurar as mãos dele nas minhas.
— E agradeço por isso, pai. Depois do julgamento, depois que
Isolde for coroada e tivermos uma noção melhor de como tudo vai
ficar, Cartier e eu anunciaremos.
Jourdain meneou a cabeça, olhando para nossas mãos unidas.
— Então, filha. Que resposta você dará a Pierce Halloran hoje?
— A mesma que passarei a dar a qualquer homem de fora desta
Casa que deseje conquistar minha simpatia como pretendente.
Jourdain ficou quieto, assimilou minhas palavras e, aos poucos,
foi entendendo. Ele ergueu os olhos, encarou os meus e vi sua
surpresa.
— Ah, é? E qual vai ser? — Mas ele já sabia.
Um sorriso acalentou minha voz.
— Vou pedir para Pierce Halloran me trazer a fita dourada de
uma tapeçaria.

Toda a Casa MacQuinn apareceu para o jantar no salão naquela


noite.
Não havia praticamente nenhum espaço vago nas mesas, e o
vasto salão logo ficou abafado com o fogo da lareira, com a
respiração de muitas pessoas curiosas e com o fato de que eu
estava sentada ao lado de Pierce Halloran à mesa do lorde.
O sujeito era exatamente como o esperado: bonito de um jeito
ríspido e implacável e seus olhos brilhavam com uma languidez
enganosa. E, como logo percebi, ele gostava de dirigir aquele olhar
impiedoso para mim. Seguia as tranças no meu cabelo, o decote do
vestido, as curvas do meu corpo. Estava avaliando minha beleza
física, como se eu me limitasse a isso.
Você é um idiota, pensei durante o jantar, enquanto tomava um
gole de cerveja e seus olhos repousavam em mim mais uma vez.
Ele estava distraído demais para conceber a hipótese de que eu
pudesse tramar algo capaz de prejudicá-lo.
Sorri dentro do cálice, só por um instante.
— E o que você achou engraçado, Brienna MacQuinn? —
perguntou Pierce, ao perceber.
Abaixei a cerveja e olhei para ele.
— Ah, só lembrei que o costureiro vai fazer um vestido novo
para mim amanhã, com acabamento de pele na barra. Estou
animada para ver o projeto.
Luc, a algumas cadeiras de distância, bufou e logo tratou de
disfarçar batendo no peito, como se tivesse engasgado. Com as
sobrancelhas arqueadas, Pierce lançou um olhar para meu irmão.
Luc finalmente se acalmou, acenou um pedido de desculpa e Pierce
voltou a se concentrar em mim com um sorriso voraz.
— Adoraria vê-la vestida com peles brancas.
E começou um segundo acesso de tosse, dessa vez de
Jourdain, que estava do meu outro lado. Coitado do meu pai,
pensei, reparando nos dedos esbranquiçados por segurar o garfo
com força.
Jourdain me lançou um breve olhar, e vi uma faísca de
advertência em seus olhos. Eu estava manipulando Pierce bem
demais.
Estendi a mão para o prato de pão. Pierce fez o mesmo, e
nossos dedos se esbarraram.
— Deseja que eu corte mais uma fatia para você? — ofereceu
ele, com educação fingida, enquanto continuava de olho, é óbvio, no
meu decote.
Mas meus olhos estavam direcionados para outro lugar. A
manga dele tinha subido ligeiramente no pulso, e havia uma
tatuagem escura na pele clara, pouco acima das sombras azuladas
das veias. Parecia um D com o miolo preenchido. Algo estranho
para gravar permanentemente na pele.
— Quero, obrigada — falei, obrigando-me a desviar os olhos
antes que ele percebesse que eu tinha visto sua marca peculiar.
Pierce depositou uma fatia de pão de centeio no meu prato, e eu
sabia que estava quase na hora, que havia deixado o jantar se
prolongar demais.
— Posso perguntar por que veio nos visitar, Pierce Halloran?
Pierce tomou um gole demorado de cerveja. Vi o brilho do suor
em sua testa e tentei não me divertir com o fato de que ele mal
conseguia disfarçar a preocupação e o nervosismo.
— Eu lhe trouxe um presente — revelou ele, soltando o cálice.
Sua mão foi para o outro lado da mesa, onde duas espadas largas
repousavam no carvalho, dentro de bainhas douradas. Talvez
fossem duas das espadas mais bonitas que eu já vira na vida, e tive
que me conter ao máximo para não as tocar, para não
desembainhar uma delas. — Trouxe uma para seu pai também.
Jourdain não respondeu. Estava disfarçando muito mal a
irritação em relação a Pierce.
— E por que nos trouxe presentes tão magníficos? — perguntei,
sentindo o coração começar a acelerar.
Pelo canto do olho, vi que Neeve se levantou da mesa, seguida
por algumas das outras tecelãs. Estavam se preparando para trazer
a tapeçaria ao salão, como havíamos planejado.
Você consegue achar para mim uma tapeçaria cuja fita dourada
seja impossível de encontrar? eu perguntara a Neeve, depois de
conspirar com Jourdain.
Neeve parecera surpresa. Consigo, lógico. Você já vai precisar
da tapeçaria tão cedo, é?
Já, para o jantar de hoje.
— Espero conquistar sua simpatia, Brienna — respondeu Pierce,
finalmente me olhando nos olhos.
Eu apenas o encarei. Esse minuto se arrastou pelo que pareceu
um ano, e tentei não me retorcer de desconforto.
Pierce desviou o olhar primeiro, porque uma agitação estava
começando do outro lado do salão.
Não precisei olhar; sabia que as tecelãs traziam a tapeçaria, que
os homens estavam ajudando a pendurá-la para que fosse possível
ver os dois lados.
— E o que é isto? — perguntou Pierce, com um sorriso malicioso
nos cantos da boca. — Um presente para mim, Brienna?
Fiquei de pé para me colocar entre Pierce e a tapeçaria no
tablado e só percebi que estava tremendo quando andei até o outro
lado da mesa. Engoli em seco, nervosa de repente, e o salão foi
tomado por um silêncio opressor. Dava para sentir o peso de todos
os olhares se concentrando em mim. A tapeçaria que Neeve
escolhera era linda: uma donzela no centro de um jardim, com uma
espada apoiada nos joelhos, sentada em meio às flores, com o rosto
inclinado para o céu. Ela tinha uma auréola luminosa, como se fosse
abençoada pelos deuses. Neeve não podia ter escolhido uma
imagem mais adequada.
— Lorde Pierce — comecei. — Em primeiro lugar, permita-me
agradecer pelo esforço de vir até o castelo Fionn tão pouco tempo
após a batalha. É óbvio que você pensou em nós esta semana.
Pierce continuava sorrindo, mas seus olhos se fecharam em
mim.
— Não farei mais rodeios. Vim pedir sua mão, Brienna
MacQuinn, e conquistar sua simpatia como minha esposa. Você
aceita meu presente?
Pierce definitivamente havia trazido o melhor de sua casa,
pensei, resistindo ao impulso de admirar as espadas. Mesmo assim,
comparado ao aço das lâminas, a personalidade dele continuava
sendo enfadonha.
— Presumo que você não conheça uma das tradições de nossa
Casa — continuei.
— Que tradição? — resmungou Pierce.
— Que casamentos entre uma MacQuinn e alguém de outra
Casa demandam um desafio.
Pierce riu para disfarçar a inquietação.
— Tudo bem. Vou participar da brincadeira.
Pierce estava me tratando como criança. Ignorei o insulto e
lancei um olhar por cima do ombro para admirar a tapeçaria.
— Toda tapeçaria MacQuinn possui uma fita dourada que a
tecelã ocultou na trama. — Fiz uma pausa para sustentar o olhar frio
de Pierce. — Traga-me a fita dourada que se esconde nessa
tapeçaria e aceitarei sua espada, e lhe darei minha simpatia.
Pierce se levantou imediatamente, sacudindo a louça na mesa.
Pela arrogância da postura, ele achou que seria muito simples, que
conseguiria examinar o desenho complexo e encontrar a fita oculta.
Dei uma olhada em meu pai e meu irmão. Jourdain parecia feito
de pedra, com o rosto corado fixo em uma carranca e a mão
fechada ao lado do prato. Luc apenas revirou os olhos quando
Pierce passou, servindo-se de mais um cálice de cerveja e se
acomodando na cadeira, como se estivesse se preparando para um
grande entretenimento.
Pierce parou diante da tapeçaria e levou os dedos
imediatamente à auréola em torno do rosto e cabelo da donzela, o
lugar mais óbvio para esconder algo dourado. Contudo, cinco
minutos de observação se transformaram em dez, e dez, em trinta.
Pierce Halloran durou 45 minutos até, frustrado, jogar os braços
para o alto e desistir.
— Nenhum homem conseguiria achar essa fita — esbravejou
ele.
— Então sinto muito, mas não posso aceitar sua espada — falei.
Pierce me encarou boquiaberto; o choque deu lugar ao deboche
quando soou um estrondo súbito de aplausos. Metade do salão —
metade dos MacQuinn — estava comemorando, vibrando por mim.
— Então tudo bem — declarou Pierce, com uma calma
surpreendente na voz. Ele voltou ao tablado e recolheu as espadas
que trouxera. Mas então veio até mim e parou com o rosto
terrivelmente perto do meu. Dava para sentir o cheiro de alho em
seu hálito, e vi as veias injetadas em seus olhos quando ele
sussurrou: — Você vai se arrepender, Brienna MacQuinn.
Quis responder, murmurar outra ameaça. Mas ele se virou tão
rápido que não deu tempo e saiu às pressas do salão. Sua guarda
se levantou das mesas para segui-lo.
A empolgação arrefeceu, e os MacQuinn que haviam
comemorado se sentaram de novo e retomaram o jantar. Senti o
olhar de Neeve; olhei para ela e vi que ela sorria encantada. Tentei
sorrir também, mas uma mulher mais velha ao lado dela me olhava
com tanto desgosto que senti meu alívio murchar, deixando para
trás apenas frio e preocupação.
— Muito bem — murmurou Jourdain.
Eu me virei e vi meu pai parado sob minha sombra. Ele pegou
no meu cotovelo, como se sentisse que eu estava prestes a cair.
— Eu o ofendi imensamente — respondi, também com um
sussurro, e as palavras arranharam minha garganta. — Não sabia
que ele ficaria tão furioso.
— O que ele falou para você antes de ir embora? — perguntou
Jourdain.
— Nada importante — menti.
Não quis repetir a ameaça de Pierce.
— Bom, não se deixe abalar por ele — disse meu pai,
conduzindo-me de volta para minha cadeira. — Ele é só um
filhotinho com dentes de leite que acabou de perder o osso. Nós é
que temos poder aqui.
Rezei para que Jourdain tivesse razão. Porque eu não sabia se
havia acabado de pisar na cabeça ou na cauda da serpente.
8

CADÊ VOCÊ, AODHAN?


Território de lorde Morgane, castelo Brígh

Cartier

Era hora de escrever minhas queixas sobre os Lannon, mas eu não


sabia por onde começar.
Depois do jantar, retirei-me para meus aposentos, sentei à
escrivaninha de minha mãe — um dos poucos móveis que eu havia
insistido que fosse poupado durante o expurgo do castelo — e, de
pena na mão e com um frasco de tinta aberto a minha espera,
encarei uma folha de pergaminho em branco.
O quarto estava gelado. As janelas continuavam quebradas, pois
decidi repor as mais visíveis antes. Embora Derry tivesse coberto os
batentes com tábuas por enquanto, dava para ouvir o urro
incessante do vento. Eu sentia a brutalidade dos pisos de pedra, as
trevas que pareciam puxar meus tornozelos.
Sou metade Lannon. Como vou apresentar estas queixas?
— Lorde Aodhan.
Virei-me na cadeira, surpreso de ver Aileen com uma bandeja de
chá. Sequer havia escutado a batida na porta ou percebido a
entrada dela.
— Achei que você gostaria de algo quente — informou,
adiantando-se para depositar a bandeja perto de mim. — Parece
que o rei inverno está se adiantando ao príncipe outono hoje.
— Obrigado, Aileen.
Vi-a servir uma xícara para mim, e só então reparei que ela havia
trazido não só uma, mas duas xícaras.
Aileen pôs meu chá ao lado da página em branco, serviu uma
xícara para si e puxou um banco para se sentar.
— Não vou fingir que não sei o que você está tentando reunir,
milorde.
Dei um sorriso triste para ela.
— Então você deve saber por que é tão difícil para mim.
Ela me observou em silêncio, com rugas de agonia na testa.
— Sim. Você era só um bebê naquela noite, Aodhan. Como
poderia se lembrar?
— Desde que retornei ao castelo, acho que algumas lembranças
começaram a voltar.
— É?
— Lembro de algo queimando. Lembro que tinha alguém
gritando meu nome, me procurando. — Olhei os rejuntes entre as
pedras. — Cadê você, Aodhan?
Aileen ficou quieta.
Quando voltei a olhá-la, vi lágrimas em seus olhos. Mas ela não
ia chorar. Estava sofrendo de raiva, revivendo aquela noite horrível.
— Aileen… — murmurei. — Preciso que me diga as queixas dos
Morgane. Diga o que aconteceu na noite em que tudo mudou. —
Peguei a pena e a girei nos dedos. — Preciso saber como minha
irmã morreu.
— Seu pai nunca lhe disse, rapaz?
A referência ao meu pai abriu outra ferida. Já fazia quase oito
anos que ele tinha morrido, mas eu ainda sentia sua ausência como
se houvesse um buraco no meu corpo.
— Ele falou que minha mãe foi morta por Gilroy Lannon —
comecei, com uma voz vacilante. — Disse que o rei decepou a mão
dela na batalha e a arrastou para a sala do trono. Meu pai ainda
estava nos campos do castelo e não conseguiu alcançá-la antes
que o rei saísse com a cabeça dela cravada em uma estaca. Mas…
meu pai nunca contou como Ashling morreu. Talvez não soubesse
os detalhes. Ou talvez soubesse, mas teria sido uma tortura falar
disso.
Aileen ficou em silêncio por um instante enquanto eu mergulhava
a pena na tinta, à espera.
— Todos os nossos guerreiros tinham saído naquela noite —
começou ela, com a voz rouca. — Estavam com seu pai e sua mãe,
lutando nos campos do castelo. Até Seamus estava com seus pais.
Fiquei em Brígh para cuidar de você e da sua irmã.
Não escrevi. Ainda não. Continuei olhando para a folha, imóvel,
com medo de olhar para Aileen enquanto ouvia, enquanto
imaginava a lembrança.
— Não fomos alertados com muita antecedência — continuou.
— Até onde sabia, o golpe tinha sido um sucesso, e seus pais e os
guerreiros Morgane voltariam vitoriosos para casa. Estava sentada
neste mesmo quarto, perto do fogo; você dormia em meus braços.
Foi aí que escutei o barulho no pátio. Lois, uma das guerreiras, tinha
voltado. Estava sozinha, ferida e perdendo sangue, como se tivesse
consumido todas as forças para voltar, para me avisar. Assim que a
encontrei no saguão, ela caiu. Esconda as crianças, sussurrou para
mim. Esconda-as agora. Ela morreu no chão e me deixou aflita de
pânico. Pensei que tínhamos perdido, que milorde e milady tivessem
sucumbido, e que os Lannon agora viriam atrás de você e Ashling.
“Como você estava nos braços, pensei em te esconder primeiro.
Teria que esconder os dois em lugares diferentes, porque, se
encontrassem um, o outro continuaria em segurança. Então chamei
uma das outras criadas para buscar Ashling na cama. E fiquei ali,
enquanto o sangue de Lois se espalhava pelo chão, e olhei para o
seu rostinho adormecido e pensei… onde eu o escondo? Em que
lugar poderia deixar você, em que lugar os Lannon jamais
procurariam?
Aileen se calou por um instante. Meu coração martelava: ainda
não havia escrito uma palavra sequer, mas a tinta pingava na folha.
— Foi aí que Sorcha veio falar comigo — murmurou Aileen. —
Sorcha era uma curandeira. Ela provavelmente tinha ouvido Lois,
porque trouxe um molho de ervas e uma vela. “Deixe-o respirar
isto”, disse ela, queimando as ervas. “Vai fazê-lo continuar dormindo
por enquanto.” Então drogamos você, e eu o levei ao único lugar
que me ocorreu: o estábulo, o monte de esterco. Foi ali que te
coloquei. Cobri com sujeira e o escondi ali, certa de que não
olhariam um lugar daqueles.
O odor… o cheiro de dejetos… agora eu entendia. Levei a mão
ao rosto, com vontade de pedir silêncio, com medo de ouvir o resto.
— Quando corri de volta para o pátio, os Lannon já haviam
chegado — disse Aileen. — Eles provavelmente vieram para cá
primeiro, antes dos MacQuinn e dos Kavanagh. Lá estava Gilroy,
montado no cavalo, usando a coroa naquela cabeça desprezível, e
cercado por todos os seus homens com os rostos sujos de sangue,
tochas nas mãos e aço nas costas. E ao lado do pai estava Declan.
Era só um menino de apenas onze anos, e tinha vindo inúmeras
vezes ao castelo Brígh antes. Fora prometido em casamento para
sua irmã. Pensei que, com certeza, com certeza, eles teriam
piedade.
“Mas Gilroy olhou para Declan e disse: ‘Ache-os.’ E só consegui
ficar ali nas pedras, vendo Declan descer do cavalo e entrar no
castelo junto com um grupo de homens para procurar você e sua
irmã. Fiquei lá, com o rei de olho em mim. Não consegui me mexer;
só podia rezar para que Ashling estivesse tão bem escondida
quanto você. Aí os gritos e berros começaram a aumentar. Mesmo
assim… eu não conseguia me mexer.
A voz dela tremia tanto que eu mal escutava. Aileen abaixou a
xícara de chá, eu abaixei a pena, e fui me ajoelhar diante dela, para
segurar suas mãos.
— Você não precisa me contar — sussurrei, e as palavras
pareceram espinhos na minha garganta.
O rosto de Aileen estava molhado de lágrimas e ela o encostou
de leve no meu cabelo, e quase desatei a chorar com a delicadeza
do toque, sabendo que aquelas mãos haviam me escondido, haviam
salvado a minha vida.
— Declan achou sua irmã — murmurou ela, fechando os olhos,
com os dedos ainda em meu cabelo. — Vi quando a arrastaram
para o pátio. Ela estava soluçando, apavorada. Não consegui me
conter. Saí correndo até ela, para tirá-la de Declan. Um dos Lannon
deve ter me batido. Quando dei por mim, estava no chão, atordoada
e com o rosto ensanguentado. Vi que Gilroy tinha desmontado, e
que todos os Morgane haviam sido chamados para o pátio. Estava
escuro, mas lembro do rosto de todo mundo lá, todos imóveis,
calados e apavorados, esperando.
“O rei gritou: ‘Cadê Kane?’ Foi aí que me dei conta… Sua mãe
morreu no levante, mas seu pai sobreviveu. E Gilroy não sabia onde
ele estava.
“Isso me deu esperança, só um fiapo, de que talvez
passássemos vivos daquela noite. Até que o rei começou a
perguntar de você. ‘Já tenho a filha de Kane’, provocou Gilroy.
‘Agora tragam-me o filho e terei misericórdia.’ Ninguém acreditou em
nada do que aquele rei das trevas disse. ‘Onde vocês esconderam o
filho dele?’, insistiu. Só eu sabia onde você estava. E jamais falaria.
Ele poderia me trucidar e mesmo assim eu jamais revelaria onde o
tinha escondido. Então ele puxou sua irmã, mostrou-a para nós e
disse que quebraria cada osso do corpo dela até revelarmos o seu
paradeiro, o esconderijo de Kane.
Aileen abriu os olhos, e foi minha vez de fechar os meus. Minha
força se esfarelou. Inclinei o corpo para a frente, para cobrir o rosto,
como se fosse um menino, como se pudesse me esconder de novo.
— Vê-los torturar sua irmã foi o momento mais difícil da minha
vida — sussurrou ela. — Eu me odiei por ter falhado com ela, por
não a ter escondido a tempo. O rei mandou Declan começar. Gritei
para ele. Gritei que Declan não precisava fazer aquilo. Eu não
parava de pensar que ele era só um menino. Como um menino
podia ser tão cruel? Mas ele fez exatamente o que o pai mandou.
Declan Lannon pegou uma marreta e quebrou os ossos da sua irmã,
um por um, até ela morrer.
Não consegui segurar mais. Derramei as lágrimas que devem ter
se escondido dentro de mim a vida inteira. Minha irmã morreu para
que eu pudesse viver. Quem dera tivesse sido eu, pensei. Quem
dera eu tivesse sido encontrado e ela tivesse sobrevivido.
— Aodhan.
Aileen me chamou para fora da escuridão. Levantei a cabeça,
abri os olhos e olhei para ela.
— Você era minha única esperança — disse ela, enxugando as
lágrimas do meu rosto. — Você foi o único motivo pelo qual eu vivi
dia após dia nesses últimos anos, pelo qual não morri de desespero.
Eu sabia que você ia voltar. Seu pai teve que vir escondido para o
castelo depois que os Lannon foram embora naquela noite. Nunca
tinha visto um homem tão destroçado quanto seu pai quando
coloquei você nos braços dele e o obriguei a jurar que fugiria com
você. Não quis saber aonde Kane iria ou o que faria, apenas falei:
este bebê escapou dos Lannon por um triz e vai ser ele quem
voltará para destruir o reinado deles.
Balancei a cabeça para negar que era eu, mas Aileen segurou
meu rosto para me conter. Não havia mais lágrimas em seus olhos.
Não, o que havia era fogo, um ódio incandescente, e o senti se
alastrar para meu coração.
— Vou registrar todas as nossas queixas para você levar ao
julgamento — afirmou ela. — Depois que forem enunciadas, quero
que você olhe nos olhos de Declan Lannon e o amaldiçoe junto com
a Casa dele. Quero que você seja o começo do fim dele, a vingança
da sua mãe e da sua irmã.
Não jurei nada. Minha mãe não era uma Lannon, afinal? Eu
ainda tinha parentesco distante com eles? Não tive coragem de
perguntar para Aileen, de falar da carta de Líle que havia
encontrado. Mas minha anuência, minha vontade de fazer o que ela
queria, deve ter aparecido em meus olhos.
Eu ainda estava de joelhos no chão quando ouvi de novo nos
urros do vento:
Cadê você, Aodhan?
Desta vez, respondi à escuridão.
Estou aqui, Declan. E vou te pegar.
9

O GUME AFIADO DA VERDADE


Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn

Brienna

Na manhã seguinte, reuni meus materiais de escrita e voltei à


tecelaria.
Dessa vez, apareci na porta e bati no batente para anunciar
minha presença, observando o vasto salão de tecelagem e as
mulheres que já estavam concentradas no trabalho.
— Bom dia — cumprimentei, com o tom mais alegre possível.
Depois da noite anterior, as tecelãs certamente falariam de mim.
E eu havia decidido enfrentar essas conversas em vez de fugir
delas.
Devia haver umas sessenta mulheres ao todo, ocupadas com
tarefas diversas. Algumas estavam nos teares, encaixando tramas
para formar tapeçarias. Outras estavam em uma mesa, desenhando
a imagem que seria replicada com filamentos de tapeçaria. E outras
estavam fiando lã. Uma dessas era Neeve, sentada diante de uma
roca, sob um foco de luz da manhã que coloria seu cabelo com um
tom dourado. Reparei que seus olhos se iluminaram ao me ver, e o
sorriso que se insinuou em sua boca me disse que ela queria me
convidar a entrar no salão de tecelagem. Mas ela não se mexeu,
porque ao seu lado estava aquela mesma velha, a que olhara feio
para mim à noite, depois que Pierce fora embora.
— Podemos ajudá-la? — perguntou a mulher, com um tom
cuidadoso, mas não muito hospitaleiro.
Seu cabelo tinha uma mecha grisalha grande, e o rosto anguloso
estava com o cenho franzido. O único movimento dela foi colocar a
mão ressecada no ombro de Neeve, como se quisesse segurá-la ali.
Respirei fundo, enquanto meu dedo brincava com a tira da
minha bolsa de couro.
— Meu pai me pediu ajuda para reunir as queixas dos MacQuinn
para levar ao julgamento dos Lannon.
Ninguém falou nada, e comecei a entender que a mulher ao lado
de Neeve era a tecelã-chefe, e que eu não conseguiria entrar ali
sem sua permissão.
— Por que haveríamos de entregar nossas queixas a você? —
perguntou a mulher.
Fiquei sem palavras por um instante.
— Seja gentil com a moça, Betha — disse outra tecelã, de
cabelo branco trançado em forma de coroa, no outro lado do salão.
— Convém lembrar que ela é filha de lorde MacQuinn.
— E como isso foi acontecer, hein? — perguntou-me Betha. —
Lorde MacQuinn sabia de quem você era filha de verdade quando a
adotou?
Não falei nada e meu coração esmurrava o peito. Senti o calor
me subir até o rosto. Não queria dar nada além de honestidade para
o povo MacQuinn. No entanto, a resposta à pergunta de Betha
passaria a impressão de que eu havia enganado Jourdain. Porque
ele não sabia que eu era filha de Allenach quando me adotou, mas
eu também, não. Contudo, eu sabia que soaria vazio se falasse isso
para elas.
— Estou aqui para recolher queixas a pedido do meu pai —
repeti, com a voz tensa. — Vou me sentar ao lado da porta principal.
Quem quiser que eu redija pode falar comigo ali.
Evitei olhar para Neeve, com medo de que minha postura ruísse
se a olhasse, e voltei pelo corredor, passei pela antecâmara e saí na
porta principal para o sol da manhã. Encontrei uma banqueta, bem
abaixo das janelas, e me sentei, com as botas enfiadas no mato
alto.
Não sei quanto tempo esperei, sentindo o vento morder meu
rosto, com o manto de paixão bem enrolado em volta do corpo, a
pilha de papel sob uma pedra, tinta e pena a postos. Dava para
ouvir as mulheres conversando, palavras indecifráveis através do
vidro das janelas. Esperei até as sombras se alongarem, até não
conseguir mais sentir as mãos, e a verdade se cravou no meu
coração como um espinho.
Nenhuma delas veio me procurar.

As tecelãs não quiseram que eu registrasse suas queixas, então


fiquei chocada quando um dos cavalariços quis.
Ele veio falar comigo após o jantar, na trilha do estábulo, quando
saí para uma caminhada de fim de tarde com minha wolfhound.
— Senhorita Brienna? — O cavalariço parou diante de mim, alto
e magrelo, de cabelo escuro comprido trançado à moda tradicional
de Maevana. Não entendi por que ele parecia tão nervoso, até que
me dei conta de que seu olhar estava em Nessie, e ela começava a
rosnar.
— Sossega, Nessie — falei, e os rosnados diminuíram.
Nessie se sentou ao meu lado, e olhei de novo para o cavalariço.
— Sei o que você tem feito por Neeve — murmurou ele. —
Preciso agradecer por ensiná-la a ler, por escrever as memórias
dela.
Se ele sabe, Neeve deve ter decidido contar.
— Neeve é muito inteligente — declarei. — Fico feliz de ensinar
a ela tudo o que eu puder.
— Você poderia escrever algo para mim também?
O pedido me pegou desprevenida. A princípio, eu não sabia o
que dizer, e uma rajada de vento frio soprou entre nós, flertando
com a ponta do meu manto.
— Deixe para lá — disse ele, começando a se afastar.
— Seria uma honra escrever para você também — afirmei, e o
cavalariço parou. — Mas me pergunto por que você veio falar
comigo, não com meu irmão.
Ele se virou e me olhou de novo.
— Prefiro que você escreva para mim, senhorita.
Suas palavras me deixaram perplexa, mas assenti.
— Onde?
Ele apontou para um lado mais afastado na parede do estábulo,
de pedras grossas e cimento, onde havia uma porta estreita entre
duas janelas com dobradiça.
— Aquele é o quarto de selas. Não vai ter ninguém ali hoje à
noite. Pode me encontrar ali daqui a uma hora?
— Certamente.
Fomos cada um para um lado: ele voltou para o estábulo e eu
continuei indo para o castelo. Mas fiquei curiosa… por que ele quis
falar comigo e não com Luc?
Uma hora depois a noite já havia caído, e me encaminhei ao
quarto de selas, com os materiais de escrita guardados na bolsa de
couro. O cavalariço estava me esperando do lado de dentro, com
uma lanterna acesa em uma mesa torta a sua frente.
Ele se levantou quando entrei, e a porta rangeu ao se fechar
atrás de mim.
Depositei minha bolsa na mesa e me sentei na pilha de sacas de
grãos que ele tinha preparado para mim à guisa de cadeira, e
removi o papel, a tinta e a pena à luz trêmula da vela. Quando
estava pronta, olhei para ele do outro lado da mesa e, aspirando o
odor pungente de cavalos, couro e grãos, esperei.
— Não sei por onde começar — confessou ele, sentando-se de
novo.
— Talvez você possa começar com seu nome — sugeri.
— É Dillon. O mesmo nome do meu pai.
— Dillon MacQuinn?
— É — confirmou ele. — Nós sempre adotamos o mesmo
sobrenome do lorde.
Anotei a data, seguida do nome dele. Mais uma vez, Dillon
pareceu hesitar por algum motivo. Mas fiquei quieta, e deixei-o
organizar os pensamentos. Depois de um tempo, ele começou a
falar. E comecei a transcrever.

Meu nome é Dillon MacQuinn. Nasci no primeiro ano de trevas, um


ano depois de lorde MacQuinn fugir e lady MacQuinn ser morta. Não
me lembro de uma época em que Allenach não fosse o senhor do
nosso povo e das nossas terras. Mas sempre fui do estábulo, antes
mesmo de começar a andar, então ouvi muitas conversas, e sabia
como Allenach era.
Era bom para quem se ajoelhasse perante ele, quem o
elogiasse, quem seguisse cada ordem sua. Meu pai, o mestre de
cavalos do estábulo, era uma dessas pessoas. Quando Allenach
mandava comer, meu pai comia. Quando mandava chorar, meu pai
chorava. Quando mandava pular, meu pai pulava. E quando
mandou meu pai lhe entregar a esposa, ele obedeceu também.

Parei, tentando manter a mão firme. Por um instante, minha


garganta ficou tão apertada que achei que não conseguiria engolir, e
me dei conta de que eu tinha avaliado mal minha coragem. Eu
queria ajudar, anotar histórias e queixas, deixar o povo de Jourdain
expurgar da mente e do coração os anos de trevas. Mas isso… isso
só me fazia detestar ainda mais meu sangue.
— Senhorita Brienna — sussurrou Dillon.
Tive dificuldade para encará-lo, e meus olhos ardiam como se as
palavras que subiam do papel fossem fumaça.
— Prometo que a senhorita vai querer escutar o fim desta
história.
Respirei fundo. Precisava confiar nele, acreditar que havia algo
naquele relato que eu precisava escutar. Lentamente, molhei a pena
na tinta, pronta para voltar a escrever.

Minha mãe era bonita. Ela chamou a atenção de Allenach desde o


início, e meu pai ficou praticamente destruído ao saber que ela
estava sendo obrigada a ir para a cama do lorde. Eu tinha só 3
anos; não entendia por que não via mais minha mãe com tanta
frequência.
Ela serviu como amante do lorde por dois anos. Quando
Allenach percebeu que ela não estava engravidando, mandou matá-
la discretamente. Meu pai se foi pouco depois, um homem tão
destroçado que qualquer cura seria impossível.
Mas no ano de 1547 aconteceu algo estranho. Allenach passava
mais tempo em Damhan, a terra dele, e nos deixava em paz.
Nossas mulheres começaram a relaxar, achando que ele não as
escolheria. Corria o boato de que Allenach queria uma filha, mesmo
se fosse ilegítima. Porque ele só tinha dois filhos, e um lorde sem
filha é considerado seriamente amaldiçoado.
No outono seguinte, outro tipo de boato começou a circular.
Allenach teve uma filha com uma mulher valeniana chamada
Rosalie Paquet e pretendia reivindicar a menina como sua. Mas três
anos depois disso, deve ter dado alguma coisa errada com os
planos. Ele voltou para Fionn e escolheu outra mulher como
amante, determinado a ter sua própria filha.
Escolheu a mais bonita das tecelãs. Todos ficamos arrasados ao
vê-la ser levada por ele. Lara deu à luz uma criança. Sim, era uma
menina, o que Allenach tanto cobiçava. Mas a menininha contraiu
varíola quando tinha um ano de idade, e a doença marcou seu rosto
e ceifou a vida de Lara. A menininha devia ter morrido, devia ter
acompanhado Lara às fronteiras do reino, mas lutou para
sobreviver. Ela queria viver. E quando Allenach percebeu que sua
filha não ia morrer, mas que ostentaria as cicatrizes como um
estandarte orgulhoso, de repente passou a agir como se a menina
não fosse sua e deixou que as tecelãs a criassem.

Minha mão tremia. Eu não conseguia escrever mais, pois as


lágrimas turvavam minha visão.
Mas Dillon continuou falando. Ele falava para eu escutar, não
para escrever.
— As tecelãs a amavam e a adotaram como filha. Chamaram-na
de Neeve e decidiram, naquele momento, que jamais revelariam a
ela quem havia sido seu pai de sangue, que diriam a Neeve que o
pai dela tinha sido um bom toneleiro.
“E, mais uma vez, começamos a nos perguntar por que Allenach
deixou nossas mulheres em paz depois disso. Ele não encostou em
mais nenhuma após o nascimento de Neeve. Mas agora imagino o
motivo: nossas mulheres foram protegidas pela vida de outra
pessoa, pela promessa de outra filha ao sul do canal.
Dillon se levantou e se inclinou por cima da mesa para pegar
minhas mãos. Eu chorava como se tivesse sido apunhalada, como
se jamais fosse me recuperar.
Neeve era minha meia-irmã. Minha irmã.
— Sei que elas têm raiva de você agora, Brienna — sussurrou
Dillon. — Mas um dia, quando o tempo curar as feridas, vão amá-la
tanto quanto amam Neeve.
10

ÓRFÃO, NÃO MAIS


Território de lorde Morgane, castelo Brígh

Cartier

Lady e lorde Dermott chegaram pouco antes do anoitecer, com uma


guarda de sete homens. Eu não estava com a cabeça boa naquela
noite, depois do relato de Aileen, mas precisava selar uma aliança
para a rainha. Segui a rotina de lorde, na esperança de que isso
despertasse algo em mim: lavei-me no rio e deixei a barba intacta;
trancei o cabelo e pus o aro dourado na cabeça; vesti as roupas
novas que os costureiros haviam feito — calças pretas e gibão azul,
com um cavalo cinza bordado no peito; providenciei para que a
mesa no salão estivesse resplandecente com flores silvestres e
prataria polida, que um cordeiro fosse abatido e que um barril de
nossa melhor cerveja estivesse a postos.
Depois, esperei os Dermott no pátio.
Eis o que eu sabia sobre a Casa Dermott: eram reclusos e
evitavam as outras famílias nobres. Não tinham alianças, mas
tampouco rivalidades explícitas. Eram conhecidos por seus
minerais: as terras deles eram ricas em minas de sal e pedreiras.
Mas talvez o mais importante: era uma Casa regida por mulheres.
Eu conhecia a linhagem deles, e sempre uma menina era a
primogênita. E, em Maevana, eram os primogênitos que herdavam o
trono.
Desnecessário dizer que eu estava muito curioso para conhecer
a tal lady Grainne de Dermott e seu lorde consorte.
Ela entrou no pátio de Brígh cavalgando um cavalo de carga,
vestida com couro e veludo vermelho-escuro estampado com o
brasão da Casa — uma águia-pescadora com um grande sol
coroando a ponta das asas. Havia um boldrié atravessado no tórax
dela, sustentando uma espada larga na bainha em suas costas. O
cabelo escuro comprido estava enrolado sob o aro, e seus olhos me
contemplaram com um brilho cauteloso. Por um instante, apenas
nos encaramos — achei surpreendente a juventude dela, talvez
poucos anos mais nova do que eu —, e então seu marido parou a
seu lado.
— Então este é o lorde do Veloz que voltou dos mortos —
declarou Grainne, e finalmente ela sorriu, refletindo nos dentes os
últimos raios de luz do dia. — Preciso dizer, lorde Aodhan, que fico
grata pelo convite.
— É um prazer recebê-los aqui no castelo Brígh — respondi, e
quase me curvei em uma mesura, como teria feito em Valenia.
Mas Grainne desmontou, estendeu a mão e a apertei, um
cumprimento maevano típico.
— Meu marido, lorde Rowan — apresentou ela, virando-se para
o lorde parado ligeiramente às suas costas.
Estendi a mão para ele também.
— Por favor, venham para o salão — pedi, levando-os para o
calor e a luz da lareira.
O começo do jantar foi um pouco tímido. Não quis enchê-los de
perguntas pessoais, e parecia que eles também não. Mas quando
Aileen trouxe um bolo condimentado e chá quente, superei minha
polidez.
— Como sua Casa e seu povo têm passado ultimamente? —
perguntei.
— Quer dizer, como a Casa Dermott sobreviveu aos últimos 25
anos? — rebateu Grainne, com um tom mordaz. — Acabei de
herdar a Casa da minha falecida mãe, que se foi na primavera
passada. Ela era sábia e permaneceu fora da vista dos Lannon.
Nosso povo raramente saía de nosso território, e minha mãe só
frequentava a corte uma vez por temporada, sobretudo pelo fato de
ser mulher, e porque Gilroy ficava incomodado com sua presença.
Ela enviava sal e temperos e ele geralmente nos deixava em paz.
— Nossa posição no extremo norte ajudou — acrescentou
Rowan, lançando um olhar para a esposa. — A fortaleza dos
Lannon ficava ao sul, embora tivéssemos que lidar com os Halloran.
Grainne meneou a cabeça.
— É. Os Halloran foram nosso maior problema nas últimas
décadas, não os Lannon.
— O que os Halloran fizeram? — quis saber.
— Incursões, principalmente — respondeu ela. — Para eles era
fácil, já que dividimos uma fronteira. Roubavam gado de nossos
currais e comida de nossos armazéns. Incendiavam vilarejos se
resistíssemos. Em algumas ocasiões, estupraram nossas mulheres.
Houve alguns invernos em que chegamos à beira da fome.
Sobrevivemos a esses momentos graças aos MacCarey, que
compartilharam provisões conosco.
— Vocês e os MacCarey são próximos, então? — concluí, e
Grainne deu uma risadinha.
— Ah, lorde Aodhan, pode perguntar logo.
— Vocês têm uma aliança com eles?
— Temos — confirmou Grainne. — Uma aliança de apenas cinco
anos. Mas que não se romperá facilmente.
Será que ela estava tentando me dizer que talvez fosse difícil
formar uma aliança entre nossas Casas, já que os MacQuinn e os
MacCarey tinham um histórico de conflitos?
Ajeitei-me na cadeira e afastei meu prato de sobremesa.
— Jamais pediria que rompessem uma aliança que manteve
você e seu povo vivos, lady Grainne.
— Então o que você quer pedir, lorde Aodhan?
— Que jure lealdade publicamente a Isolde Kavanagh, que dê
seu apoio a ela como a legítima rainha deste reino.
Grainne se limitou a me encarar por um instante, mas havia um
sorriso nos cantos de seus lábios.
— Isolde Kavanagh. Como desejei ouvir o nome dela nos últimos
anos. — Grainne olhou para o marido, que a observava
cuidadosamente. Parecia que estavam conversando com a mente,
com os olhos. — Não posso jurar nada ainda, lorde Aodhan. — Ela
voltou a atenção para mim. — O que peço é uma conversa em
particular com Isolde Kavanagh. Depois declaro meu apoio, se
decidir oferecê-lo.
— Então vou providenciar para que você fale com a rainha.
— Você já a chama assim? — Seu tom não era de deboche,
apenas de curiosidade.
— Sempre a considerei assim — afirmei. — Até quando éramos
pequenos.
— E você confia nela e… na magia dela?
Estranhei a pergunta de Grainne.
— Confio minha vida a Isolde — declarei, sinceramente. — Mas,
se me permite a pergunta, por que a magia dela a preocupa?
Grainne não falou nada. Mas olhou de novo para Rowan.
A luz das velas bruxuleou, embora não corresse ar. As sombras
começaram a se arrastar pela mesa, como se estivessem ganhando
vida. Pelo canto do olho, vi a luz e a escuridão se entrelaçarem e se
moverem, como se estivessem dançando, e os pelos nos meus
braços se arrepiaram. Tive a sensação repentina de que os Dermott
estavam conversando com a mente. Havia uma corrente invisível
entre eles, e a única experiência comparável que eu conhecia foi o
momento em que Brienna pusera a Pedra do Anoitecer no pescoço
de Isolde, o momento em que a magia despertara.
— Talvez você pergunte sobre magia porque percebeu algo
peculiar nas últimas duas semanas — murmurei, e o olhar de
Grainne se virou para mim. — Que quando Isolde Kavanagh
começou a usar a Pedra do Anoitecer, você também sentiu algo.
Grainne riu, mas reparei que a mão de Rowan foi para a adaga
em seu cinto.
— Você sugere uma teoria absurda, lorde Aodhan — ponderou a
lady. — Uma que eu recomendaria que não fosse expressa tão
abertamente.
— Qual é a necessidade da recomendação? — questionei,
abrindo os braços. — Os Lannon estão presos.
— Mas os Lannon ainda não estão mortos — corrigiu Grainne, o
que me fez hesitar com apreensão. — E os Halloran continuam à
solta. Ouvi falar que estão tentando se juntar aos MacQuinn.
Grainne desviou os rumos da conversa tão rápido que não
consegui retomar o assunto da magia e minhas suspeitas de que os
Dermott talvez também tivessem algum vestígio. Mas eu sabia
exatamente o que ela havia insinuado. Jourdain me escrevera no
dia anterior e falara do desastroso pedido de casamento de Pierce
Halloran a Brienna.
— Os MacQuinn não vão se aliar aos Halloran — assegurei,
para tranquilizá-la.
— Então o que vai acontecer com os Halloran? Vão seguir
vivendo sob uma rainha, impunes?
Minha vontade era dizer você e eu queremos a mesma coisa.
Queríamos justiça, queríamos a proteção de uma rainha, queríamos
respostas a respeito da magia. No entanto, eu não podia prometer
isso para ela; ainda havia muitas incertezas no ar.
— O destino dos Halloran, assim como dos Carran e dos
Allenach, será decidido em breve. Após o julgamento dos Lannon —
informei.
Os olhos de Grainne se dirigiram ao salão, ao estandarte
Morgane acima da lareira. Ela ficou em silêncio por um instante,
então sussurrou:
— Lamento saber o quanto sua Casa sofreu.
Fiquei quieto e não pude deixar de pensar na minha irmã. Sentia
uma agonia sempre que me lembrava do fim de Ashling. Este
castelo, estas terras, tudo devia ter sido dela. Ashling teria sido igual
a Grainne: uma lady Morgane à frente da casa.
Grainne suspirou e olhou para mim, e sua mão foi até a de
Rowan por baixo da mesa, para afastá-la discretamente da adaga.
— Espero que você e seu povo consigam se restaurar
plenamente. — Ela se levantou antes que eu pudesse dar uma
resposta adequada. Rowan e eu nos levantamos juntos, e a luz das
velas trepidou. — Obrigada pelo jantar, lorde Aodhan. Estou exausta
da viagem. Acho que vamos nos recolher.
— Tudo bem.
Aileen se adiantou para acompanhar os Dermott a seus
aposentos.
— Até amanhã de manhã — despediu-se Grainne, tomando o
braço de Rowan.
— Boa noite para os dois.
Esperei um pouco e me retirei também para meus aposentos,
exausto e com a sensação de que não havia conseguido nada.
Tomas já estava lá, sentado no catre dele diante da lareira,
brincando com um baralho. O garoto havia insistido em dormir no
meu quarto, por mais que eu fosse categórico quanto a ele ficar
junto dos outros meninos. Ele não estava fazendo amizade com os
garotos Morgane, o que me preocupava um pouco.
— A senhorita Brienna está aqui? — perguntou ele, ansioso.
— Não, rapaz — respondi, desamarrando o gibão.
Desabei em cima da cadeira e grunhi enquanto tirava as botas.
— Você vai se casar com a senhorita Brienna?
Fiquei calado por um instante, tentando decidir como responder.
Tomas, obviamente, ficou impaciente.
— Vai, milorde?
— Talvez. Agora, caso você tenha esquecido, vou viajar para
Lyonesse amanhã. Não sei quando voltarei a Brígh, mas Aileen
disse que ficaria de olho em você.
Levantei o rosto e vi Tomas sentado na cama, olhando
emburrado para mim.
— Por que essa cara? — perguntei.
— Você falou que eu podia ir para Lyonesse também, milorde!
— Nunca prometi isso, Tomas.
— Prometeu, sim! Há três noites, durante o jantar.
Era preciso reconhecer que o menino sabia blefar. Tive um breve
momento de pânico pensando que talvez eu tivesse prometido, e
vasculhei a memória.
Mas aí pensei que, obviamente, eu não levaria uma criança em
uma viagem dessas, então o encarei.
— Não prometi. Preciso que você fique aqui, com Aileen e os
outros, e…
— Mas eu sou seu mensageiro, milorde! — protestou Tomas. —
Você não pode sair sem seu mensageiro.
Meu mensageiro segundo ele próprio. Suspirei, sentindo-me
derrotado em muitos aspectos, e fui me sentar na beira da cama.
— Um dia você vai ser meu mensageiro. Meu melhor
mensageiro, sem dúvida — falei, com delicadeza. — Mas seu pé
tem que cicatrizar, Tomas. Você não pode sair por aí realizando
tarefas para mim agora. Preciso que fique aqui, onde sei que você
estará em segurança.
O menino me encarou um pouco mais e, então, se enrolou no
cobertor e se largou no catre ruidoso, de costas para mim.
Meus deuses, não nasci para isso, pensei ao me deitar, puxando
as colchas até o queixo. Observei a dança da luz da lareira no teto e
tentei acalmar a mente.
— A senhorita Brienna vai estar em Lyonesse? — perguntou
Tomas, sonolento.
— Vai.
Silêncio. Só se ouviam os lamentos do vento atrás das janelas
bloqueadas e o crepitar do fogo, até que escutei Tomas se mexer no
catre.
— Ela ia terminar de me contar a história. — Ele bocejou. — De
quando achou a pedra.
— Prometo que ela vai contar o final, rapaz. Mas você precisa
esperar um pouco.
— Mas quando vou ver a senhorita Brienna de novo?
Fechei os olhos, tentando encontrar os últimos resquícios da
minha paciência.
— Você vai vê-la de novo muito em breve, Tomas. Agora vá
dormir.
O menino resmungou, mas, por fim, se calou. Não demorou para
eu escutar seus roncos ressoarem pelo quarto. E, para minha
surpresa, o som me consolou um pouco.

Meu dia começou cedo na manhã seguinte, com os preparativos


para a viagem a Lyonesse. Embalei minhas roupas, embrulhei as
queixas da Casa Morgane com uma capa de couro encerado
amarrado com um barbante e me vesti para o frio. Era pouco menos
de um dia de viagem até a cidade real, e providenciei para que
houvesse suprimentos em quantidade suficiente para mim e os
Dermott, que me cumprimentaram com sorrisos educados no salão.
— Gostaria de nos acompanhar no café da manhã, lorde
Aodhan? — perguntou Grainne, quando fui até eles à mesa.
Parecia que já estavam no meio da refeição, e parei nos degraus
do tablado, com a sensação de que eu era o visitante, e ela, a
anfitriã.
— Certamente — aceitei, apesar do nó no estomago. — Espero
que tenham dormido bem, sim?
Mas Grainne nem teve chance de responder. Senti um puxão
repentino na manga e vi o olhar dela descer do meu rosto para meu
cotovelo e seu sorriso se apagar.
Já sabia quem era. Olhei para baixo e vi Tomas ao meu lado,
apoiado na muleta de madeira que meu carpinteiro havia feito, com
um farnel pequeno pendurado no ombro.
— Vou com o senhor, milorde — insistiu o menino, com a voz
trêmula. — Você não pode me deixar para trás.
Meu coração amoleceu, e me ajoelhei para falar em voz baixa
com ele.
— Tomas, vou lhe dar uma ordem importante. Preciso que fique
aqui em Brígh para vigiar o castelo durante a minha ausência.
Ele já estava balançando a cabeça antes que as palavras
saíssem da minha boca, com o cabelo ruivo caído na frente dos
olhos.
— Não. Não, eu não posso ficar aqui.
— Por que, rapaz? Por que não pode ficar?
Tomas levantou o rosto e olhou para Grainne, finalmente
reparando nela. Ficou muito quieto e olhou para mim de novo.
— Por que sou seu mensageiro.
Eu estava ficando irritado com o comportamento dele, com a
incapacidade de me obedecer. Respirei fundo, tentando imaginar
qual seria o motivo da insistência, e perguntei:
— Alguém tratou você mal aqui, Tomas? Pode me falar, se for
isso. Vou resolver antes de viajar.
Tomas balançou a cabeça de novo, mas vi lágrimas em seus
olhos.
— Preciso ir com você.
— Pelo amor dos deuses, Tomas — sussurrei, sentindo a raiva
crescer. — Você não pode ir comigo desta vez. Entendeu?
Para minha desolação, Tomas desatou a chorar. Constrangido,
ele jogou a muleta em mim e foi embora antes que eu pudesse
impedi-lo.
Continuei ajoelhado um pouco mais, e então peguei a muleta e
fui me sentar ao lado de Grainne. Suspirei e me servi de uma xícara
de chá, tentando pensar em algo alegre para dizer aos Dermott, que
me observavam.
— Lorde Aodhan — disse Grainne, com a voz tão baixa que
quase não escutei. — Você não sabe quem é aquele menino?
Ainda irritado, despejei creme demais no meu chá.
— É um órfão que encontrei escondido no castelo. Peço
desculpa pelo comportamento dele.
Grainne ficou quieta. Seu silêncio me fez olhar para a expressão
de choque e terror em seu rosto.
— Ele não é órfão coisa nenhuma — murmurou Grainne. — Seu
nome é Ewan. Ele é filho de Declan Lannon.
O JULGAMENTO
11

MEIAS-LUAS
A caminho de Lyonesse, fronteira entre os territórios de MacQuinn e
Morgane

Brienna

— Por que Morgane está demorando?


A expiração impaciente de Jourdain se transformava em nuvens,
e a geada matinal ainda reluzia no chão enquanto esperávamos
Cartier e os Dermott. Eu estava montada na minha égua entre Luc e
meu pai, e nossos guardas, também montados, aguardavam a uma
distância respeitosa atrás de nós. Estávamos todos prontos,
pensando ansiosamente na viagem, no julgamento a nossa frente. E
conforme os minutos foram passando e continuamos parados sob
as árvores na fronteira entre MacQuinn e Morgane, meus receios
começaram a crescer. Cartier estava quase meia hora atrasado. E
ele nunca se atrasava.
— Combinamos de nos encontrar aqui, não combinamos? —
perguntou Jourdain, fazendo o cavalo avançar um pouco.
Jourdain olhou intrigado para a estrada que levava até o castelo
Brígh. Não dava para enxergar muito longe: a neblina ainda estava
cerrada, tremulando feito um véu ao amanhecer.
— Você acha que houve algum problema ontem à noite? —
perguntou Luc. — Com os Dermott?
Era a única explicação possível que me ocorria, e tentei engolir o
nó de medo que se formou na minha garganta.
Minha égua eriçou as orelhas.
Fiquei de olho na neblina, cheia de expectativa, e meu coração
se acelerou quando finalmente escutei o coro de cascos trotando na
estrada. Minha espada estava dentro da bainha nas minhas costas;
quase levei a mão ao cabo, mas Cartier emergiu da neblina antes, e
o aro dourado na testa dele refletiu o sol da manhã. Por um instante,
não o reconheci.
Seu cabelo louro-acinzentado estava trançado. O rosto, barbado.
Usava trajes de couro e peles em vez do manto de paixão. Parecia
frio como pedra, com uma expressão tão cuidadosamente
impassível que eu não fazia a menor ideia do que estaria sentindo
ou pensando.
Até que olhou para mim e vi algo relaxar só um pouco, um nó se
soltar, como se ele finalmente conseguisse respirar.
— Peço desculpas pelo atraso — disse ele, quando seu capão
parou.
Não tivemos chance de responder, pois os Dermott vinham logo
atrás.
O olhar de Grainne veio direto para mim, como se houvesse um
canal invisível entre nós.
— Estava ansiosa para conhecer a mulher que encontrou a
pedra — anunciou ela, com um sorriso.
Retribuí o sorriso.
— E eu estava ansiosa para conhecer a lady de Dermott.
— Vamos cavalgar juntas?
Assenti e alinhei minha égua com o impressionante cavalo de
carga dela. Jourdain estava falando algo, mas não cheguei a captar
as palavras; senti o olhar de Cartier e levantei o rosto para fitá-lo.
Eu queria perguntar: Por que se atrasou?
Ele deve ter visto a pergunta nos meus olhos, porque desviou o
olhar, como se não quisesse responder.
Começamos a viagem a um ritmo rigoroso estabelecido por
Jourdain. O bom de cavalgar rápido foi que não deu espaço para
conversa, então pude mergulhar completamente em meus
pensamentos.
Tentei imaginar algum motivo para a frieza de Cartier e quando
isso fez meu coração doer demais, recorri ao tema seguinte de
devaneios. Neeve.
Minha irmã. Tenho uma irmã.
Desde que Dillon revelara quem Neeve era, mal me senti a
mesma pessoa.
Quis pegar na mão dela, observá-la atentamente, escutar sua
voz. Porém, desde a revelação de Dillon, não tive chance de falar
com ela.
Pensei que talvez, de alguma forma, fosse melhor assim, para
que tivesse tempo de me acostumar com o fato de que eu era ligada
a Neeve através de Allenach, que Neeve era metade minha. E Dillon
insistira que eu não dissesse nada para ela.
No momento certo, vamos contar para ela que vocês são irmãs.
Vamos contar quem é o pai dela.
Depois de um tempo, diminuímos ao ritmo de um trote, para
nossos cavalos descansarem, e fiquei cavalgando a sós com lady
Grainne, ligeiramente atrás dos homens.
— Seu manto é lindo — elogiou Grainne, observando meu
manto de paixão.
— Obrigada.
Tentei pensar em algum elogio para retribuir, mas acabei
decidindo que seria melhor esperar para ver o que Grainne
realmente queria falar, porque ela havia usado um tom de voz baixo,
como se não quisesse que os homens nos escutassem.
— Você considera iniciar uma Casa de paixão aqui? No norte?
— perguntou ela quando Cartier deu uma olhada em mim por cima
do ombro.
— Tenho essa esperança — confessei, fitando os de Cartier
novamente antes que ele se virasse na sela. Cartier disse algo para
Rowan Dermott, que cavalgava a seu lado.
— Há quanto tempo você conhece lorde Aodhan?
— Oito anos — respondi.
— Então você o conhece há bastante tempo — comentou
Grainne. — E ele a ajudou a encontrar a Pedra do Anoitecer?
— Não.
Não estava disposta a revelar muito; ainda não sabia se Grainne
se uniria a nós, e isso me deixava ligeiramente nervosa, como se
alguma palavra que eu dissesse pudesse bandeá-la para um ou
outro lado.
Grainne sorriu, sentindo minha hesitação.
— Estou constrangendo-a. Não foi minha intenção. Só estou
curiosa para saber como vocês, rebeldes, se juntaram, para
conhecê-los melhor.
Respondi ao olhar dela com um sorriso.
— Milady não está me constrangendo. — Ajeitei-me na sela, já
com as pernas doloridas. — MacQuinn me adotou quando descobriu
que eu sabia o paradeiro da pedra. Luc se tornou meu irmão, e
parece que sempre fomos uma família. Lorde Aodhan foi meu
instrutor por alguns anos. Só descobri sua identidade verdadeira
algumas semanas atrás.
— Deve ter sido um choque e tanto — sugeriu Grainne, com um
tom bem-humorado.
Quase dei risada.
— Foi mesmo.
Ficamos em silêncio por um instante e a voz de Luc nos
alcançou enquanto ele narrava dramaticamente alguma história para
os homens.
— Só quero que você saiba — murmurou Grainne — que
qualquer mulher que debocha de Pierce Halloran se torna
imediatamente minha aliada.
A confissão me surpreendeu. Olhei de novo para ela, meu
coração se deliciando com a oferta de camaradagem, e agora eu é
que estava cheia de perguntas.
— Ah, você ficou sabendo. Você o conhece bem?
Grainne deu uma risadinha.
— Infelizmente. Ele e sua corja passaram os últimos anos
aterrorizando meu povo.
— Que horrível saber disso — respondi, com pesar. Hesitei,
lembrando as últimas palavras que Pierce me falou: Você vai se
arrepender. — Posso fazer uma pergunta? Ele é do tipo de homem
que se vinga?
Grainne ficou em silêncio por um tempo, até que voltou sua
atenção para mim e vi que não havia máscaras nem segundas
intenções entre nós, que ela me daria uma resposta sincera.
— Ele é um covarde. Nunca ataca sozinho, só quando tem
bastante companhia. Em muitas ocasiões, cheguei a pensar que
fosse um fantoche, e que talvez houvesse outro homem no
comando, dando as ordens, controlando-o. Porque ele não é a
criatura mais inteligente que já vi. Mas, dito isso, ele nunca esquece
uma ofensa.
Refleti sobre o que ela falou, e meu receio aumentou.
— Reparei em um sinal na parte interna do pulso dele.
— É — disse Grainne. — O sinal da meia-lua. É um símbolo de
apoio aos Lannon. Quem gravasse esse sinal permanentemente na
pele recebia a promessa de amizade de Gilroy, qualquer que fosse
sua Casa de origem. As pessoas ganhavam o sinal depois de
proferir um voto de lealdade. Esses são os seguidores mais fiéis do
rei.
E Pierce provavelmente era um deles. Senti um embrulho no
estômago.
— E se você analisar o brasão dos Halloran, Carran e Allenach
— Grainne fez uma pausa, e deduzi que ela sabia que eu era filha
ilegítima de Brendan Allenach —, eles fizeram um pequeno
acréscimo a seus brasões. É um pouco difícil de encontrar, fica
oculta nos floreios, mas garanto que, se prestar atenção, vai ver a
meia-lua. O jeito deles de proclamar lealdade sobretudo aos
Lannon, mais até do que a suas próprias Casas.
— Então talvez seja fácil identificar opositores da rainha —
murmurei. — É só arregaçar as mangas deles.
Grainne meneou a cabeça, com um brilho nos olhos escuros.
— Sim, Brienna MacQuinn. Eu começaria com esses, se o que
vocês temem é oposição a Isolde Kavanagh.
Nossos cavalos praticamente tinham parado na estrada.
Eu devia informações a ela em troca. Dava para sentir a dívida
no ar entre nós.
— Pergunte qualquer coisa — sussurrei. — E eu responderei.
Grainne não hesitou.
— A Pedra do Anoitecer. Ela queimou algum de vocês?
Ela estava se referindo à lenda de que a pedra queimava quem
não tivesse magia, a forma mais simples de testar se alguém era
Kavanagh.
— Eu a mantive dentro de um medalhão enquanto ela esteve
comigo, e mesmo assim senti o calor às vezes — revelei. —
Ninguém mais tentou tocar na pedra além de Isolde, então não
posso responder com certeza.
Grainne quis dizer outra coisa, mas fomos interrompidas por
Jourdain, que tinha trotado até nós para ver como estávamos.
— Miladies? Estamos prontos para seguir em frente?
— Certamente, lorde MacQuinn — respondeu Grainne, com um
tom suave e um sorriso. — Seguiremos seu ritmo.
Meu pai meneou a cabeça e olhou rapidamente para mim antes
de virar o cavalo.
— Quanto a Pierce Halloran — continuou Grainne, segurando as
rédeas à medida que nossos cavalos aceleravam para um trote.
Tive que instar minha égua a ir mais rápido, para acompanhar o
capão dela e para ouvir seu último conselho. — Tome cuidado,
Brienna.
12

PA R T E A M A R G A
Castelo real de Lyonesse, território de lorde Burke
Três dias para o julgamento

Cartier

Tomas era filho de Declan. O filho de Declan estava embaixo do


meu teto. Ou seja, eu estava — sem saber — abrigando um
Lannon.
Quando Grainne me disse a verdadeira identidade do menino,
eu me levantei de um salto da mesa para chamá-lo de volta, incerto
quanto ao que faria com a situação. Com ele. Mas Tomas — seu
nome verdadeiro era Ewan — desaparecera, mergulhara nas
sombras do castelo. Eu ficara tentado a revirar todos os móveis até
encontrá-lo, até falar com ele. Mas então percebi quem exatamente
eu estava imitando, como se o castelo estivesse amaldiçoado, e me
senti terrivelmente mal.
Cadê você, Ewan?
Deixei-o continuar escondido e fui procurar Aileen, pensando…
será que ela sabia? Será que sabia que o filho de Declan era meu
mensageiro? Sabia que o filho de Declan se apegara a mim?
— Você pode ficar de olho em Tomas enquanto eu estiver fora?
— pedi a ela, tentando parecer tranquilo.
— Sim, lorde Aodhan. Vou cuidar bem dele — respondeu. —
Não se preocupe.
Ah, definitivamente eu me preocuparia. Lá estava eu,
protegendo o filho de meu inimigo. Lá estava eu, afeiçoando-me ao
garoto, fingindo que ele era um dos meus, um pequeno órfão
Morgane que precisava de mim. Deixando-o dormir em meus
aposentos e comer à minha mesa, deixando-o me seguir feito uma
sombra. Lá estava eu gostando dele, quando ele devia estar
acorrentado com o resto de sua família, trancafiado nas masmorras
do castelo.
Meus deuses.
Aileen não sabia quem Ewan era. Deu para ver que não sabia. E
acho que ninguém do meu povo o reconheceu, provavelmente
porque todos os Morgane haviam permanecido na propriedade de
lorde Burke e nunca foram ao castelo real, onde teria sido possível
ver o neto do rei.
Mas Grainne Dermott certamente o reconhecera. E, agora, ela
detinha um segredo perigoso sobre mim, e eu não sabia se ela o
usaria para me destruir.
Fui direto para o escritório, para me sentar sozinho por um
instante. Ainda havia um buraco no telhado. Fiquei esparramado no
chão sujo, e continuei ali pelo máximo de tempo possível,
organizando os pensamentos. A honra me obrigava a proteger uma
criança que me pedira ajuda — que eu prometera proteger —, mas
tinha também a responsabilidade terrível de entregar Ewan, de levá-
lo para a masmorra e deixá-lo com a família, para que também
fosse julgado.
O que eu devia fazer?
Pesei as opções, considerando se devia mesmo levá-lo para
Lyonesse, como ele tanto queria, se devia entregá-lo nas mãos de
Isolde e falar: Aqui está. O príncipe Lannon desaparecido de quem
ninguém está falando. Acorrente-o junto ao pai.
Era isso que eu deveria fazer, era isso que um lorde Morgane
faria.
Mas eu não podia.
Se não o encontrar, não vai poder levá-lo.
Eu havia chamado os Dermott ao meu escritório. Mesmo que o
cômodo não tivesse móveis para se sentarem, nem fogo aceso na
lareira rachada, e que o céu estivesse à vista.
Grainne observara todos os pedaços quebrados do cômodo, os
pedaços que eu havia tentado esconder. Contudo, não falou nada
sobre os estragos, nem sobre Ewan. Ficou parada ao lado de
Rowan, olhou para mim, e esperou.
— Eu não sabia quem era ele — confessei, com a voz tensa.
— Eu sei, lorde Aodhan. — Achei que ela estivesse com pena de
mim, até que finalmente olhei para seu rosto e vi que seus olhos
tinham certa dose de compaixão. — Eu e Rowan não falaremos
nada. Vamos agir como se não o tivéssemos visto, se isso é o que
acha melhor para sua Casa.
Eu queria acreditar. Mas sabia que era bem possível que ela
estivesse guardando meu segredo sinistro para revelar em um
momento futuro, para me comprometer.
— Como posso confiar em vocês? — murmurei, ciente de que a
manhã estava passando, de que já devíamos estar na estrada, ao
encontro dos MacQuinn.
— Como alguém pode confiar em outras pessoas hoje em dia?
— rebateu ela. — Que minha palavra baste.
Não era a resposta que eu queria. Mas então me lembrei da
nossa conversa na noite anterior, quando ela se esquivara da minha
hipótese de que os Dermott haviam descoberto recentemente que
seu sangue detinha um resquício de magia. Era um palpite sem
fundamento, mas era a única garantia que eu tinha.
Foi um dia de viagem muito longo.
O tempo havia virado quando chegamos a Lyonesse. Uma
tempestade chegara do oeste no fim da tarde e estávamos todos
encharcados e taciturnos quando nos dirigimos ao castelo. A rua
virara quase um pântano por causa da chuva e da lama.
Meus olhos estavam em Brienna quando atravessamos os
portões do castelo e paramos no pátio real. Seu manto de paixão
estava sujo de lama, as tranças do longo cabelo castanho pingavam
com a água da chuva, e mesmo assim ela sorria, rindo com
Grainne.
Isolde estava debaixo do arco do pátio, enfrentando a chuva,
com um vestido verde simples e um cinto trançado de prata. A
Pedra do Anoitecer repousava em seu pescoço, luminosa sob a
tempestade, e o cabelo ruivo estava amarrado em diversas
trancinhas atrás da cabeça. Fiquei observando quando ela sorriu e
apertou a mão de Grainne e a de Rowan como se fosse uma velha
conhecida, não uma mulher prestes a ascender ao trono. Sua
postura tinha um ar de humildade e de mistério, o que me fez
lembrar como ela era na nossa infância, quando nós dois
descobrimos nossa verdadeira identidade, quando descobrimos que
eu era o herdeiro de Morgane e que ela estava destinada a se tornar
a rainha do norte.
Isolde fora uma criança tranquila e delicada, do tipo que
observava muito mais do que deixava transparecer. Do tipo que
ninguém desconfia que iria brandir aço. Por isso, logo ficamos
amigos e formamos uma tradição de ouvir escondidos a conversa
de nossos pais quando eles se reuniam em segredo uma vez por
ano e discutiam estratégias e planos para voltar a Maevana.
— Eles querem me transformar em rainha, Theo — sussurrara
Isolde para mim, apavorada.
Eu tinha onze anos, ela, treze, e estávamos dentro de um
armário, escutando os planos de nossos pais, a angústia deles por
nossa pátria perdida. Luc estava conosco também, obviamente,
morto de tédio e reclamando da poeira. Mas foi esse o momento em
que todos percebemos: se nossos pais tivessem sucesso, Isolde
seria rainha.
— Era para ter sido a minha irmã — continuara ela. — Não eu.
Era para Shea ser rainha.
A irmã mais velha dela, que morrera ao lado da mãe durante o
primeiro levante fracassado.
— Você vai ser a melhor rainha que o norte já viu — afirmei.
E ali estávamos, quinze anos depois, em terreno real, prestes a
coroá-la.
Isolde deve ter lido minha mente porque olhou para mim através
da chuva e sorriu.
— Não será bom para ninguém se você pegar um resfriado
nesta chuva, milady — aconselhei.
Isolde riu. A Pedra do Anoitecer tremulou com ondas cerúleas e
douradas, como se sentisse os balanços de seu divertimento.
— Você está esquecendo, Aodhan, que tenho a magia que
permite a cura.
— Esqueci nada — avisei, mas sorri quando cheguei ao seu
lado.
Seguimos na esteira dos outros, estalando as botas no piso
úmido.
— Como tem andado tudo por aqui? — perguntei em voz baixa,
enquanto adentrávamos o castelo, rumo à ala de visitantes.
— Calmo, embora mal tenha dado tempo de descansar —
informou a rainha, também em voz baixa, para que o som não se
propagasse. — Tenho notícias para compartilhar com todos.
Convoquei uma reunião, para depois de vocês se arrumarem.
Paramos ao chegar a uma bifurcação no corredor, com lampiões
pendurados em ganchos na parede. Dava para ouvir a voz dos
MacQuinn e dos Dermott se distanciando conforme eles avançavam
para seus respectivos aposentos.
— Lady Dermott solicitou uma conversa em particular com você
— murmurei, escutando a água da chuva pingar das minhas roupas.
— Eu sei — revelou Isolde. — Deu para ver nos olhos dela. Vou
providenciar para que tenhamos uma amanhã de manhã.
Queria dizer mais, mas me controlei, lembrando que havia
muitos ouvidos no castelo, que meus pensamentos não deveriam
ser enunciados nos corredores.
— Vá se cuidar, lorde Morgane — ordenou a rainha,
acrescentando com humor —, antes que você pegue um resfriado e
eu seja obrigada a curá-lo.
Dei uma risadinha, mas ofereci um gesto brincalhão de derrota e
segui às pressas pelo corredor até meus aposentos.
Isolde fora atenciosa; mandara já deixarem preparada uma
banheira para mim, e havia uma bandeja de comida à mesa. Tirei as
roupas encharcadas e me sentei na água morna, tentando pôr
ordem no emaranhado dos meus pensamentos. Ewan, certamente,
era o principal. Ainda não tinha decidido o que fazer com ele: se
contaria a Isolde que eu o estava abrigando ou não.
Havia me ocorrido uma teoria durante a viagem. Era óbvio que
Ewan escapara no dia do levante, provavelmente quando a batalha
começou. Fugira para o norte em busca de algum lugar seguro onde
se esconder. Chegara a Brígh e passara um ou dois dias lá, até eu
chegar e encontrá-lo.
Não achei que Ewan fosse culpado de nada além de tentar
sobreviver.
E não consegui imaginar como seria crescer como filho de
Declan, em uma família tão horrível. Ewan estava pele e osso, como
se tivesse passado dias sem um prato de comida, não estava? Será
que ficou com medo de mim, achando que receberia algum castigo
físico das minhas mãos?
Será que o protegi? Desafiei o pai dele e o acolhi como se fosse
meu? Será que eu conseguiria mesmo amar o filho do inimigo?
Lavei-me, saindo da água sem nenhum alívio quanto à minha
situação, e me vesti com o azul e prateado dos Morgane. Parei ao
lado da mesa e comi um bocado de frutas e pães, e só então me dei
conta: sob meus pés, em algum lugar nas profundezas deste castelo
de pedras antigas e cimento, os Lannon estavam dentro de celas
escuras, acorrentados, aguardando seu destino. Em algum lugar
abaixo dos meus pés, Declan estava respirando, esperando.
Não consegui mais comer.
Fiquei na frente da lareira e esperei até Brienna bater na minha
porta.
Luc e Jourdain estavam junto, caso contrário eu a teria puxado
para dentro do quarto e teria contado todos os meus problemas,
sem exceção. Teria implorado para que ela me dissesse o que fazer,
teria me curvado como se ela fosse fogo, e eu, ferro.
Brienna me encarou com um brilho estranho nos olhos quando
começamos a andar juntos pelo corredor e eu sabia que ela tinha
perguntas. E não tive sequer um instante para sussurrar em seu
ouvido, para pedir que fosse me ver à noite, porque Isolde e seu pai
nos aguardavam na câmara do conselho.
Jamais havia entrado naquele cômodo antes. Era uma câmara
octogonal sem janelas, o que a fazia parecer escura, até que reparei
que as paredes eram revestidas de um mosaico cintilante. As
pequenas pedras refletiam a luz das chamas, dando a impressão de
que as paredes respiravam, como se fossem escamas de um
dragão. Não consegui ver o teto, mas o cômodo parecia infinito,
como se subisse sem parar até as estrelas.
O mobiliário da sala era constituído apenas por uma mesa
redonda cercada de cadeiras. E, no centro da mesa, ardia um
círculo de fogo, para iluminar o rosto de todos os reunidos.
Sentei-me entre Brienna e Jourdain. Luc ficou do outro lado dela,
seguido por Isolde e o pai, Braden Kavanagh. Éramos o círculo
íntimo da rainha, seus conselheiros e defensores de maior
confiança.
— Preciso dizer que é muito bom revê-los, queridos amigos —
começou Isolde, com ternura. — Espero que as últimas duas
semanas tenham sido alegres, e que o retorno ao lar e o reencontro
com seu povo tenham sido o princípio de sua cura e restauração.
Acima de tudo, preciso expressar minha gratidão a cada um de
vocês por voltarem a Lyonesse, por serem meus olhos e meu apoio,
por me ajudarem a me preparar para o julgamento.
“Antes que eu comece com as notícias, queria que vocês
tivessem a chance de comunicar quaisquer receios ou ideias.”
Jourdain começou, resumindo nossos planos de assegurar
lealdade pública para Isolde, nossas conversas sobre alianças e
rivalidades, o que proporcionou uma transição perfeita para que eu
falasse dos Dermott.
— Acredito que lady Dermott vá apoiá-la — anunciei, olhando
para Isolde por cima das chamas. — Mas, para prepará-la para sua
conversa com ela amanhã… os Dermott sofreram muita
perseguição por parte dos Halloran.
— É o que eu temia — revelou Isolde, com um suspiro. —
Confesso que estou muito incerta quanto a como aplicar o devido
castigo aos seguidores dos Lannon.
— Falando nisso — disse Brienna —, fiz uma descoberta
durante a viagem para cá, graças a lady Grainne.
Dirigi minha atenção para ela. Eu ficara muito curioso quanto à
conversa das duas durante o trajeto.
— Seria possível trazer para cá o brasão das Casas Lannon,
Carran, Halloran e Allenach?
Isolde arqueou as sobrancelhas, surpresa.
— Sim. Eles estão pendurados na sala do trono.
Esperamos enquanto Isolde pedia que um criado trouxesse os
estandartes. Quando foram depositados na mesa, Brienna se
levantou, acompanhando o desenho bordado com a ponta do dedo.
O brasão da Casa ficava no centro — um lince para os Lannon, um
cervo saltitante para os Allenach, um íbex para os Halloran e um
esturjão para os Carran. Depois vinham os desenhos do escudo,
seguidos pela guirlanda típica de plantas entrelaçada com animais
menores.
— Aqui — sussurrou Brienna, quando seu dedo parou em
alguma coisa. Nós cinco nos levantamos e nos inclinamos por cima
da mesa para ver o que ela observava. — Todos eles têm o sinal,
como lady Grainne disse que teriam. Uma meia-lua.
Finalmente encontrei, escondida entre as flores do brasão dos
Halloran.
Brienna começou a nos falar de sua conversa com lady Grainne,
e só pude ficar encarando, maravilhado com a naturalidade com que
ela havia obtido essa informação.
— Isso é incrível — murmurou a rainha, estudando o brasão
Carran e encontrando a meia-lua oculta. — Não tenho palavras para
expressar como isso será vital para nós nos próximos dias.
— Você enfrentou alguma resistência, milady? — perguntei.
Era uma pergunta que todos tínhamos medo de fazer.
Brienna dobrou os estandartes e largou-os de qualquer jeito no
chão. Voltamos a nossos lugares e esperamos a rainha falar.
— Nada explícito — disse Isolde, e seu pai pegou sua mão. Ela
olhou para Braden, e vi tristeza nos olhos dos dois. — Descobri que
a Casa Kavanagh foi aniquilada por Gilroy Lannon. Creio que não
reste mais nenhum Kavanagh vivo.
Nosso ânimo murchou imediatamente e se afundou em tristeza.
Pelo canto do olho, vi Brienna cruzar as mãos no colo com tanta
força que seus dedos ficaram brancos.
— Isolde… — murmurou Jourdain.
— Foi uma verdade difícil de aceitar — interrompeu a rainha,
fechando os olhos por um instante. — Gilroy mantinha uma lista de
todas as vidas que tirava. São nomes demais. Pouco depois do
primeiro levante fracassado, o rei mandou soldados para o território
Kavanagh e incendiou a maioria das cidades e aldeias. Fui
informada de que só restaram cinzas e corpos carbonizados. Não
há mais nada. Mas minha única esperança é que talvez ainda haja
outros Kavanagh escondidos. E que, talvez, com o fim dos Lannon,
eles se apresentem e se juntem a mim e a meu pai.
Não pude deixar de pensar nos Dermott, nas minhas suspeitas
de que havia uma fagulha de Kavanagh neles. Mas não falei nada.
Era algo que cabia a Grainne compartilhar com a rainha, não a mim.
No entanto, isso me deu esperança de que ainda fosse possível
haver restauração para Isolde, seu pai e seu povo.
— Agora, o segundo assunto da pauta — disse Isolde. — Um
dos Lannon está desaparecido.
Jourdain se espantou ao meu lado.
— Qual?
— Ewan, o filho de Declan — respondeu Isolde. — Não
conseguimos recuperá-lo após o golpe.
— Ele é só um menino — disse Braden Kavanagh, quando a
filha se calou. — Acreditamos que esteja escondido em algum lugar
em Lyonesse.
Não, nem perto. Meu sangue martelava. Eu estava começando a
ficar zonzo, e meus pensamentos davam voltas e voltas. Fale, gritou
um deles, seguido por Calado. Então continuei lá, imóvel,
impassível.
— Foram feitos esforços para encontrá-lo? — perguntou Luc.
— Procuramos, mas muito discretamente — respondeu Isolde.
— Quando percebemos que faltava um Lannon, decidi que era
preciso manter a informação debaixo dos panos. É por isso que só
estou falando para vocês agora, porque não quis arriscar dar a
notícia nem sequer via carta. Ninguém além de nós precisa saber
que o neto está desaparecido, pois isso poderia servir de incentivo
para os partidários de Gilroy.
— Você confia nos criados daqui? — perguntou Jourdain. —
Alguém deu motivo para qualquer dúvida ou receio?
— Estabeleci uma guarda muito leal entre os homens e as
mulheres de lorde Burke — informou Isolde. — Uma enorme parcela
dos criados se apresentou e jurou lealdade a mim. Muitos também
ofereceram relatos, e, embora eu saiba que alguns talvez não sejam
totalmente verídicos, acho que todas as histórias que estão surgindo
batem. Todas comprovam que Gilroy Lannon oprimia o povo daqui
de forma brutal.
Nenhum de nós falou. E parecia que as trevas tinham nos
cercado.
— Tudo isso para dizer — continuou Isolde, olhando para
Brienna, como se sua força e coragem estivessem dentro dela —
que há uma lista imensa de queixas contra os Lannon como um
todo, não apenas ao antigo rei. Oona, a esposa dele, também tomou
parte em torturas e espancamentos, assim como o filho deles,
príncipe Declan. Meu pai e eu reunimos as queixas, assim como
todos vocês, e não tenho a menor dúvida de que essa lista
continuará crescendo à medida que mais pessoas se pronunciarem.
Não haverá esperança alguma para essa família.
— Milady está dizendo — comentou Jourdain, cuidadosamente
— que não será preciso submeter os Lannon a julgamento?
— Não, milorde — respondeu Isolde. — Eles passarão pelo ritual
do julgamento, para marcar seu fim e servir de exemplo de justiça.
Queremos nos distinguir como o encerramento das trevas dos
Lannon, como uma nova era de luz.
Fez-se silêncio na câmara. Foi Luc quem o rompeu.
— Eles passarão “pelo ritual”?
— A voz do povo é que precisa ser ouvida, não a minha —
informou a rainha. Seu rosto estava pálido feito osso. — E o povo já
decidiu o destino dos Lannon.
E eu sabia o que ela estava prestes a dizer. Sabia o que ia
acontecer, porque isso era história, era a “parte amarga”, como
diziam as antigas cantigas, era assim que se fazia em Maevana. Eu
não havia expressado o mesmo para Jourdain, Luc e Brienna
algumas noites antes, quando começamos a planejar a segunda
fase da nossa revolução?
Mesmo assim, eu estava consternado, à espera.
Havia uma chama sombria nos olhos de Isolde; era o encontro
da piedade com a justiça, 25 anos de clandestinidade, trevas e
terror. Vinte e cinco anos de mães e irmãs mortas, Casas e povos
destruídos, vidas que jamais voltariam.
Mas como as coisas começavam a se fragmentar quando o
inimigo não era apenas um nome, mas, sim, um rosto, uma voz, um
menininho ruivo…
Isolde olhou diretamente para mim, como se sentisse meu
conflito interior, como se sentisse que eu estava desmoronando
entre a vontade de lhe contar e a vontade de esconder o menino…
— A família Lannon inteira precisa ser executada.
13

DILEMAS NOTURNOS
Três dias para o julgamento

Brienna

Após o fim da reunião, Isolde me acompanhou de volta até meus


aposentos. Nós nos sentamos diante do fogo na lareira, escutando a
tempestade açoitar as janelas.
— Sei que você está cansada depois de viajar o dia inteiro,
então serei breve — apressou-se Isolde. — Mas eu estava ansiosa
para falar com você sobre algumas coisas. A coroação,
principalmente. Sei que estamos com toda a atenção voltada para o
julgamento, mas faltam só algumas semanas, e preciso de ajuda
para planejá-la.
— Certamente.
Peguei minha bolsa e tirei os materiais de escrita. Conforme a
rainha compartilhava suas ideias, eu as anotava e tentava organizá-
las. Cartier me dissera um dia que as rainhas de Maevana sempre
eram coroadas na floresta, e eu estava prestes a comentar isso
quando ouvi um estrondo do outro lado da janela. Isolde ficou tensa.
Meus aposentos eram divididos em dois cômodos: um para visitas,
que é onde estávamos, e um quarto de dormir, de onde veio o
barulho.
— O que foi isso?
Larguei o papel e a pena, me levantei da cadeira, e a batida
soou de novo, mais alta. Quase parecia como se alguém estivesse
tentando abrir a janela do quarto…
Peguei minha espada larga, que estava dentro da bainha, no
divã, e Isolde sacou um punhal da bota.
— Fique atrás de mim — sussurrei para Isolde quando ela se
levantou.
A rainha me seguiu para a escuridão do quarto, e nosso aço
refletiu o clarão de um relâmpago.
Vi imediatamente — a janela estava aberta, batendo com o vento
da tempestade, e chovia no peitoril e no chão. Havia alguém dentro
do quarto, dava para ouvir a respiração ofegante à medida que
adentrei mais no escuro. Quando outro relâmpago caiu, o clarão
prateado delineou um vulto pequeno agachado ao lado da cama,
bem na frente dos meus pés. Um menino de cabelo ruivo embolado.
— Tomas? — sussurrei, chocada.
— Senhorita Brienna! Por favor… por favor, não me mate.
Embainhei a espada imediatamente e estendi a mão para ele.
— Lady Isolde? Pode trazer uma luz para o quarto?
Isolde saiu para o cômodo adjacente e voltou com um
candelabro, lançando luz sobre o menino. Não falou nada enquanto
eu me apressava em trancar a janela e quase escorreguei no chão.
Parei para tentar enxergar sob a chuva e olhar para baixo pela
parede do castelo antes de fechar a janela de vidro com mainel
contra a tempestade.
— Por todos os santos, Tomas. Como foi que você escalou até
aqui em cima? — perguntei, virando-me para encará-lo.
Tomas, como seria de esperar, encarava Isolde, e a Pedra do
Anoitecer, que brilhava no peito dela.
— Tomas? — perguntei, e ele finalmente me ouviu e se virou
para me encarar com olhos injetados e arregalados. — Lorde
Aodhan sabe que você está aqui?
Tomas ficou imóvel. Por um instante, achei que fosse sair
correndo do quarto.
Aproximei-me devagar e tentei pegar sua mão. Ele era muito
magro, muito pequeno para a idade. Senti um aperto na garganta,
mas sorri, para ajudar a acalmá-lo.
— Que tal arranjarmos umas roupas secas para você? Acho
que, por enquanto, vai ter que ser uma das minhas camisas. Vai
parecer uma túnica em você. Pode ser?
Tomas observou as próprias roupas encharcadas e sujas de
lama. As roupas que Cartier lhe dera, o azul dos Morgane. Havia
pedaços de feno e flores secas grudados nele, como se o garoto
tivesse andado na traseira de uma carroça.
— Pode, senhorita Brienna.
— Que bom — falei, indo até o guarda-roupa.
Eu havia levado alguns vestidos, calças de seda, um par de
camisas de linho, meu manto e um gibão de couro com forro de lã.
Escolhi uma das camisas e levei para Tomas, colocando-a na cama.
— Quero que você vista esta. Lady Isolde e eu vamos esperar
do outro lado da porta.
Parecia que Tomas preferia definhar a usar minhas roupas. Mas,
felizmente, ele não criou caso. Fez que sim com a cabeça, relutante,
derrubando feno de suas roupas sujas.
— E você deve estar com fome, não? — perguntei. — O que
acha de uma tigela de sopa e um copo de sidra?
— Eu gostaria, mestra Brienna — disse Tomas.
— Ótimo. Venha falar conosco no outro cômodo quando estiver
pronto.
Isolde e eu saímos do quarto. Fechei a porta cuidadosamente
para que ele pudesse se trocar, e estava prestes a chamar um
criado para pedir uma bandeja de comida quando senti os dedos de
Isolde se fecharem em torno do meu braço e me puxarem para junto
dela.
— Brienna — murmurou ela. — Quem é esse menino?
Olhei para ela, e estávamos com o rosto quase colado um no
outro. E foi aí que vi: o olhar desconfiado, uma combinação de
incredulidade e desgosto.
— Não — respondi, também aos sussurros. — Não pode ser.
As peças começaram a se juntar, a se encaixar. Um órfão
escondido em Brígh. Cartier sem a menor noção da origem do
menino, de quem ele de fato era.
Mas Cartier não teria abrigado conscientemente um Lannon. Ele
não tinha como saber que Tomas era Ewan, que era o filho de
Declan.
Inspirei para falar isso, mas a maçaneta tremeu, e a rainha e eu
nos afastamos, revestindo nosso rosto com uma expressão de
neutralidade agradável, embora nosso coração trovejasse dentro do
peito.
Chamei um criado para pedir o jantar de Tomas e, quando me
virei de costas para a porta principal, ele já estava na antessala,
tentando disfarçar o andar manco.
— Você está machucado? — perguntou Isolde, reparando
também.
Tomas se sentou na beira do divã, sem responder.
Será que Isolde o curaria? Será que curaria por vontade própria
o filho de seu inimigo? A criança que, para sua frustração, havia
escapado e lhe tirado o sono?
Ela se ajoelhou diante dele.
— Posso olhar seu pé, Tomas?
Ele hesitou; o menino sabia exatamente quem ela era. Como
não saberia? A rainha que havia destronado sua família estava
ajoelhada na frente dele. Prendi a respiração e contive as palavras
que queria dizer para tranquilizá-lo e convencê-lo a confiar nela,
pois sabia que essa era uma decisão que ele precisava tomar por
conta própria.
Depois de um tempo, ele acabou cedendo e assentiu com a
cabeça.
Parei ao lado da lareira e vi Isolde tirar as botas dele e, com
delicadeza, avaliar com as mãos o corte no pé.
— Ah, parece que seus pontos arrebentaram — constatou a
rainha. — Está sangrando bastante. Posso curar isto para você,
Tomas.
— Você… como? — perguntou Tomas, franzindo o nariz. — Com
mais pontos?
— Com pontos, não. Com minha magia.
— Não. — Ele recuou levemente dela. — Não, não. Meu pai…
meu pai disse que magia é do mal.
Isolde ainda estava ajoelhada diante dele. Mas eu sabia que ela
sentiu o choque das palavras, como se ele tivesse jogado lama na
cara dela.
— Seu pai conhece muito de magia? — perguntou ela,
cuidadosamente.
Tomas cruzou os braços e olhou para mim, como se eu fosse
salvá-lo daquilo. Cheguei mais perto e me sentei ao lado dele no
divã, para segurar sua mão fria. Percebi que o sangue do pé dele
pingava no chão e tinha caído no vestido de Isolde.
— Algumas semanas atrás — comecei, com um tom gentil —, eu
também me feri. Machuquei meu braço. — Óbvio que não expliquei
que o machucado tinha sido causado por uma flecha disparada
contra mim por ordem de Gilroy Lannon no início da batalha do
nosso levante. — Isolde usou a magia dela para me curar. E sabe
de uma coisa? Não doeu nem um pouco. Foi como se o sol
estivesse batendo no meu braço. E fiquei muito grata, porque senão
meu braço ainda estaria fraco, e eu estaria sofrendo.
Tomas olhou para as roupas, minha camisa que quase descia
até seus joelhos. Havia alguns hematomas nas pernas dele,
sarando lentamente, e uma malha de cicatrizes na pele. Isolde
também viu, e o ressentimento que aparecera em seus olhos
momentos antes deu lugar à tristeza.
— Se milady me curar — disse Tomas, levantando o rosto para
me encarar —, vou ficar maculado?
— Não, de jeito nenhum — respondi, sem saber o que ele queria
dizer com “maculado”. — Mas, se você tem medo disso, olhe para
mim. Você acha que estou maculada?
Tomas balançou a cabeça.
— Não, senhorita. Eu gosto de você.
Sorri.
— E eu gosto de você, Tomas.
Ele mordeu o lábio e olhou de novo para Isolde.
— Eu… eu gostaria que você me curasse, milady.
Isolde estendeu as mãos, e Tomas apoiou cuidadosamente o
calcanhar nos dedos dela. Ele apertou minha mão com mais força.
Senti a tensão em seu corpo e a respiração se acelerar como uma
pequena pedra quicando na superfície da água quando ele viu
Isolde colocar a palma da mão na sola de seu pé. Tomas devia estar
esperando dor, porque Isolde abaixou as mãos e ele piscou,
surpreso.
— Já foi? — perguntou ele.
Isolde sorriu diante do espanto do menino.
— Já. Seu pé está curado.
Tomas me soltou e pegou o próprio pé, para virá-lo e examiná-lo.
Não havia qualquer sinal de sangue, nem de pontos. Restava
apenas uma cicatriz rosada como indicativo de que existira um
ferimento.
— Mas eu nem senti nada! — exclamou ele.
— Eu falei que não ia doer — ressaltei, prendendo uma mecha
do cabelo dele atrás da orelha.
Nós três ficamos em silêncio, eu e Tomas ainda sentados lado a
lado, Isolde ainda ajoelhada diante de nós e a tempestade ainda
urrando atrás das janelas. Enquanto Tomas continuava tocando o
próprio pé, maravilhado, Isolde e eu nos entreolhamos.
Queria saber o que ela estava pensando, o que ia fazer.
Isolde olhou para baixo, para as manchas de sangue no vestido,
e deixou transparecer um instante de confusão.
Não tínhamos certeza de que ele era o filho de Declan. No
entanto, algo no meu coração me dizia que era.
— Senhorita Brienna? — Tomas rompeu o silêncio. — Essa é a
pedra da qual você estava falando? A que você tirou de baixo de
uma árvore? — Ele apontou para a Pedra do Anoitecer, tímido, e
fiquei parcialmente aliviada pela distração.
— É. Essa mesma — confirmei, na mesma hora que alguém
bateu à porta.
Isolde se levantou antes que eu sequer pensasse em me mexer.
— Aposto que é a sua janta, Tomas — disse ela, com o tom mais
alegre possível, mas vi o alerta em seus olhos.
Seu olhar, quando andou até a porta, me disse: Não deixe
ninguém o ver.
— Venha cá, vamos para o quarto — murmurei para Tomas. —
Você pode comer na cama.
Levei-o despreocupadamente para o outro cômodo, fora de vista
da porta principal, e puxei um amontado de colchas.
— Mas é a sua cama — protestou ele.
— Vou dormir no outro cômodo. Vamos, Tomas. Para a cama.
Praticamente o levantei e o coloquei no colchão.
— Nunca dormi em uma cama tão grande — revelou ele, se
mexendo para todos os lados. — É tão macia!
Sua inocência quase me fez chorar. Tive vontade de perguntar
em que tipo de cama ele dormia antes. Se fora um príncipe, não
devia ter tido tudo do bom e do melhor?
Talvez estivéssemos enganadas. Talvez ele fosse mesmo só um
órfão sem nem uma gota de sangue Lannon no corpo.
Desejei ardentemente que essa fosse a verdade.
Isolde voltou segurando uma bandeja com sopa, pão com
manteiga e uma caneca metálica com sidra. Ela a depositou com
cuidado na frente de Tomas, e os olhos dele se arregalaram com o
tamanho generoso da porção. Ele começou a encher a boca,
concentrado demais na comida para prestar atenção em mim e
Isolde.
Segui a rainha para o cômodo adjacente, fora da vista de Tomas.
Paramos de frente uma para a outra. Isolde parecia uma chama,
com o cabelo castanho-avermelhado e a pedra reluzente, e eu
parecia uma sombra, com as tranças escuras e meu pavor
crescente.
— Preciso saber o que ele está fazendo aqui, se é mesmo quem
imaginamos — sussurrou Isolde. — Você pode tentar descobrir?
— Certamente — concordei.
— Você tem que mantê-lo escondido, Brienna. Se ele for
descoberto… serei obrigada a acorrentá-lo na masmorra.
Meneei a cabeça, mas uma ressalva se formou nos meus
pensamentos. Tratei de acalmar minha voz antes de perguntar:
— E Cartier?
Isolde suspirou, esfregando a testa.
— O que tem Aodhan?
— Cartier estava cuidando dele no castelo Brígh, achando que
era um órfão Morgane.
A rainha ficou em silêncio por um instante, com as mãos na
cintura, começando a se encurvar, como se eu tivesse acabado de
colocar um enorme peso sobre seus ombros.
— Ele se afeiçoou ao menino?
— Sim.
— Se você achar que Aodhan vai sofrer com minha decisão
final, não conte nada a ele.
Tentei imaginar como seria o julgamento, o que aconteceria.
Tentei imaginar o que Cartier faria se Tomas de repente fosse
levado ao palanque, depois de achar o tempo todo que o menino
estava em segurança em Brígh. Que Cartier teria que avaliar se
Tomas merecia viver, e mesmo assim não adiantaria se o povo de
Maevana quisesse que o menino fosse executado.
— Estou pedindo demais de você, Brienna? — perguntou a
rainha, com um sussurro gentil.
Olhei para ela.
— Não, milady.
Isolde tinha que ser prioridade. E eu tinha que apoiá-la, qualquer
que fosse sua decisão.
— Descubra a identidade do menino — pediu. — Hoje, se
possível. E me traga a verdade amanhã de manhã.
Assenti, abaixando a cabeça, com a mão no coração, para
demonstrar minha submissão total.
Mas Isolde tocou no meu rosto e segurou meu queixo com a
ponta dos dedos para que eu erguesse os olhos de novo para a luz,
para ela. Será que o reflexo da Pedra do Anoitecer aparecia em
meus olhos, em minha expressão?
— Confio mais em você, Brienna, do que em qualquer outra
pessoa.
A confissão me comoveu, mas engoli a emoção, deixei-a
repousar em algum lugar dentro de mim onde não se transformasse
em orgulho.
E então compreendi o que ela estava fazendo comigo: me
preparando, me tornando seu braço direito, sua conselheira, uma
função que Brendan Allenach antes exercera para Gilroy Lannon.
A ironia da situação toda me tirou o fôlego.
Os dedos de Isolde recuaram e ela foi embora, silenciosa e veloz
como os últimos raios de sol ao anoitecer.
Éramos só eu e Tomas agora, separados por um vasto oceano
de perguntas.
Tomas havia limpado a tigela de sopa e estava lambendo a
manteiga dos dedos quando voltei para o quarto com um segundo
candelabro. Sentei-me ao lado dele na beira da cama, ponderando
minhas perguntas.
— Você vai dizer para lorde Aodhan que estou aqui, senhorita?
— perguntou ele, com um tom grave.
Alisei a colcha amarrotada e acompanhei os fios com a ponta
dos dedos.
— Acho que preciso saber por que você está aqui, Tomas. —
Olhei para o garoto e esperei até ele olhar para mim. — Lorde
Aodhan com certeza mandou você ficar em Brígh. Então, agora,
estou tentando entender por que você veio para Lyonesse apesar
do que ele disse. Por que você escalou a parede de um castelo e se
enfiou por uma janela.
Ele ficou em silêncio, incapaz de me encarar.
Comecei a sentir o suor escorrer pelas minhas costas, mas não
tirei os olhos dele. Observei seu rosto e, aos poucos, fui
encontrando semelhanças com os Lannon. Tomas tinha cabelo
castanho-avermelhado, que não era comum, mas seus olhos eram
do mesmo azul-celeste de todos os Lannon que eu já havia
confrontado, e seus traços tinham um formato aristocrático.
O garoto estava prestes a falar quando ouvi uma batida distante
na porta. Sabia quem era e fiquei tão cheia de tristeza e desejo que
parecia haver uma batalha no meu coração.
— Tomas? — sussurrei. — Quero que você fique aqui. Não se
mexa. Não faça nenhum barulho, entendeu?
Ele só assentiu, com o rosto pálido.
Levantei-me da cama e fechei a porta do quarto atrás de mim.
Andei, trêmula, e a barra do meu vestido se arrastou pelo chão.
A porta rangeu na minha mão e abri só uma fresta, o ar frio dos
corredores subindo até meu rosto.
Era Cartier, com o ombro apoiado no batente, fitando meus
olhos, o rosto quase oculto nas sombras. Mas vi o brilho em seus
olhos, como brasas ardendo na escuridão ao me ver.
— Posso entrar? — perguntou ele.
Eu deveria falar para ele voltar depois. Deveria falar que estava
exausta. Deveria fazer qualquer coisa para impedi-lo de entrar em
meus aposentos.
Porém, pela posição dele, pelo jeito como respirava… era como
se ele estivesse ferido sob as roupas.
Abri bem a porta, e ele foi até a lareira, onde esperou eu fechar e
trancar a porta e me juntar a ele na luz.
— Está tudo bem com a rainha? — perguntou ele, analisando
meu rosto.
— Está.
Cartier me observou um pouco mais, como se a verdade fosse
mudar minha expressão.
Levantei a mão, devagar, e acariciei sua barba dourada com os
nós dos dedos, e me surpreendi com a aspereza.
— Você está bravo comigo? — sussurrei.
Cartier fechou os olhos, como se meu toque o machucasse.
— Como você pode pensar isso?
— Você mal olhou para mim a viagem inteira.
Os olhos de Cartier se abriram. Minha mão estava prestes a
descer, mas ele a pegou e a segurou junto ao rosto.
— Brienna. Eu mal consegui deixar de olhar para você. Por que
você acha que me obriguei a cavalgar na sua frente?
Cartier soltou minha mão. Seus dedos percorreram meu braço,
subiram até meu ombro e desceram, seguindo minhas costas até
parar na cintura. Eu ouvia a seda do vestido sussurrar sob seu
toque, e agora foi minha vez de fechar os olhos.
— Mas parece que você está avessa a olhar para mim agora —
observou ele.
— Não estou avessa — respondi, apenas com um murmúrio.
Mas meus olhos ainda estavam fechados, e eu ainda tremia com
o peso da noite. Cartier sentiu e seus dedos se abriram em minha
cintura, sobre minhas costelas.
— Brienna. Você está incomodada com alguma coisa?
— Por que você se atrasou hoje de manhã? — A pergunta saiu
feito uma flecha, muito mais brusca do que eu pretendia.
Como ele não falou nada, abri os olhos.
— Eu me atrasei — disse Cartier, e sua mão se afastou de mim
— porque finalmente descobri a quem Tomas pertence. E é por isso
que vim até você agora. Porque não consigo suportar isso sozinho.
Fiquei encarando-o boquiaberta, e meu coração deu uma
cambalhota. Era a última coisa que eu esperava que ele dissesse.
Finalmente entendi sua frieza, o vazio em seus olhos. Cartier
sabia que Tomas era um Lannon, que o havia escondido sem saber.
Eu não sabia se devia sentir alívio por Cartier estar ciente dessa
revelação fundamental.
— A quem ele pertence? — obriguei-me a perguntar, esfregando
o pescoço com a mão, como se pudesse acalmar minha pulsação
frenética.
Veio um estardalhaço de trás da porta do quarto, o som de uma
tigela caindo. Tomas devia estar escutando. Tive que engolir uma
praga pela complicação infeliz em que a noite havia se
transformado.
Cartier ficou tenso, e seus olhos foram para a porta.
Não pude fazer nada, e a sensação foi de que eu havia caído em
uma teia.
— A rainha ainda está aqui? — perguntou ele, com cuidado,
voltando a olhar para mim.
Não tive como mentir.
— Não.
— Quem está no seu quarto? — sussurrou Cartier.
O destino deve ter decidido que esse encontro precisava
acontecer. Respirei fundo e pus as mãos no peito dele. Senti seu
coração bater tão freneticamente quanto o meu. A mágoa dentro
dele — agora eu entendia, e me odiei, porque estava prestes a abri-
lo mais ainda.
— Você vai ficar bravo, Cartier — comecei. — Jure que não vai
expressar sua raiva, que vai ficar calmo.
As mãos dele eram como gelo ao pegarem meus dedos e os
afastarem de seu peito.
— Quem está no seu quarto, Brienna?
Não consegui responder com a voz. Entrelacei meus dedos nos
dele, levei-o ao quarto e abri a porta.
Lá estava Tomas, agachado no chão. Ele tinha tentado ir para a
janela, e a bandeja estava caída.
Cartier parou assim que o viu.
— Tomas?
— Milorde, por favor, não fique bravo comigo! — gaguejou
Tomas. — Tive que vir. Tentei falar que eu precisava vir, mas você
não quis escutar.
Arregalei os olhos para Tomas, para alertá-lo. Não era assim que
ele amoleceria o coração de Cartier. Os olhos de Tomas foram de
Cartier para mim, e de volta para Cartier, como se não soubesse
quem o salvaria.
E, embora eu percebesse a tensão de Cartier, o choque e a
raiva, ele deu um passo à frente, suspirou e se sentou na beira da
cama.
— Venha cá, garoto.
Tomas se arrastou de volta para a cama e se sentou ao lado de
Cartier, derrotado. Continuei parada à porta, como se estivesse no
meio de dois mundos diferentes prestes a colidir.
— Por que você precisava vir comigo? — perguntou Cartier,
delicadamente.
Tomas hesitou e disse:
— Porque sou seu mensageiro.
— Tem outro motivo, Tomas? Algo que você esteja com medo de
me contar?
— Nãããão.
Cartier se mexeu, e eu sabia que a situação era uma agonia
para ele.
— Tomas, quero que você confie em mim. Por favor, rapaz. Diga
a verdade para que eu saiba como ajudá-lo.
Tomas ficou quieto. Pegou a colcha com as mãos e murmurou:
— Mas você não vai mais gostar de mim.
— Tomas — repetiu Cartier, com tanta ternura que eu sabia que
as palavras eram dolorosas para ele —, nada do que você fizer
jamais me levaria a deixar de gostar de você.
— Ainda posso ser seu mensageiro se eu falar a verdade?
Cartier olhou para mim. Ele não sabia que Isolde estava ciente
da presença de Tomas. E, se respondesse que sim para o menino,
seria mentira. Cartier não tinha condições de garantir a vida de
Tomas, que era o que Tomas estava indiretamente pedindo. Mas se
Cartier dissesse que não, Tomas provavelmente não confidenciaria
a ele.
— Prometo, Tomas — afirmou ele, olhando para o garoto. Mal
consegui respirar ao vê-lo jurar. — Você sempre será meu
mensageiro, pelo tempo que quiser.
Cartier queria que Tomas vivesse, que fosse poupado no
julgamento.
E se ele me pedisse para esconder Tomas da rainha, eu teria
que me opor. Eu me sentia dividida entre os dois e precisei entrar de
vez no quarto e me sentar em uma cadeira, pois não conseguia ficar
de pé.
— Queria vir com você porque minha irmã está aqui —
confessou Tomas, com um sussurro.
— Sua irmã?
— É, milorde. Quando aconteceu a batalha, ele… quer dizer, eu
tentei falar para ela, pedir para ela vir comigo. Porque eu sabia que
talvez a gente corresse perigo. Nosso pai e nosso vô.
— Quem são seu pai e seu avô, Tomas? — perguntou Cartier.
Eu me preparei, sem falar nada, com as mãos nos braços da
cadeira, cravando as unhas na madeira.
— Meu vô é… era o rei — respondeu Tomas, cabisbaixo. — Meu
pai é o príncipe Declan. E meu nome não é Tomas. É Ewan.
Senti um calafrio e não consegui conter o arrepio. Ewan me
encarou com enormes olhos tristes.
— Você me odeia agora, senhorita Brienna?
Fiquei em pé, fui me sentar do outro lado dele, e peguei sua
mão.
— Não, nem um pouco, Ewan. Você é meu amigo, e acho que é
um menino corajoso.
Ewan pareceu se consolar e olhou de novo para Cartier.
— Minha irmã está na masmorra. Preciso soltá-la.
Cartier passou a mão pelo cabelo. Eu sabia que ele estava se
esforçando para manter a compostura, para ficar calmo. Seu maxilar
estava tenso, o que indicava que estava refletindo sobre suas
respostas.
— Como sua irmã se chama? — perguntei, delicadamente, para
dar um pouco mais de tempo para que Cartier preparasse uma
resposta.
— Keela. Ela é dois anos mais velha do que eu. E aposto que
Tomas pode ajudar, milorde.
— E quem é o verdadeiro Tomas, Ewan? — indagou Cartier.
— É um nobre do meu vô, mas ele sempre foi gentil comigo —
respondeu Ewan. — Foi ele que me ajudou a fugir durante a
batalha. Ele me deu umas moedas e me mandou ir para o castelo
Brígh, no norte, e falar que meu nome era o dele, para que ninguém
soubesse quem eu era de verdade.
— E onde eu encontro esse tal de Tomas?
Ewan encolheu os ombros.
— Não sei, milorde. Acho que ele pode ter morrido na batalha.
Troquei um olhar de receio com Cartier. Se o nobre Tomas tiver
lutado contra nós, realmente estava ou morto, ou na masmorra.
— Não posso prometer nada, Ewan — confessou Cartier, enfim,
com a voz tensa. — Sua irmã está presa na masmorra com o
restante da sua família. Não sei o que posso fazer…
— Por favor, milorde! — gritou Ewan. — Por favor, ajude minha
irmã! Não quero que ela seja morta!
— Shh. — Tentei acalmá-lo, mas Ewan se desvencilhou dos
meus braços e se ajoelhou diante de Cartier.
— Por favor, lorde Aodhan — suplicou ele. — Por favor. Nunca
mais eu lhe desobedeço se você a salvar.
Cartier pegou nos braços de Ewan e o fez se levantar. Ele deve
ter percebido que Ewan não estava mancando mais; olhou para o
pé descalço antes de se obrigar a fitar os olhos do menino.
— Nunca é bom fazer promessas que não podemos cumprir. E
embora eu não possa jurar, prometo que vou fazer o que puder para
salvar sua irmã. Desde que você me prometa que vai ficar nos meus
aposentos, escondido e quieto, Ewan. Ninguém pode saber que
você está aqui.
Ewan assentiu com um gesto veemente da cabeça.
— Prometo, milorde. Ninguém vai saber. Sou bom de me
esconder.
— É, eu sei. — Cartier suspirou. — Agora, já passou da sua hora
de dormir. Você precisa vir comigo para meus aposentos.
Nós três nos levantamos. E as perguntas deviam estar nítidas
nos meus olhos, porque Cartier pediu para Ewan sair do quarto por
um instante.
— Você acha que é melhor ele ficar nos seus aposentos? —
sussurrei, tentando disfarçar minha preocupação.
Queria confiar em Cartier, mas e se ele decidisse esconder
Ewan? O que eu falaria para Isolde?
— O que você acha, Brienna? — Cartier chegou perto de mim
para que pudesse aproximar os lábios e sussurrar diretamente no
meu ouvido. Sua voz aqueceu meu cabelo quando ele perguntou: —
A rainha sabe que ele está aqui, não é?
— Ela quer conversar comigo sobre ele amanhã de manhã —
respondi, também sussurrando. — Para confirmar quem ele é.
— Então deixe que eu faça isso, Brienna.
Inclinei o corpo para olhar nos olhos dele.
— Imagino que Isolde deve estar em conflito com a decisão hoje
— continuou Cartier, a voz um mero murmúrio. — O que fazer com
o filho de seu nêmese.
— E o que você faria?
Cartier me encarou por um instante e disse:
— Vou fazer o que quer que ela exija de mim. Isolde é minha
rainha. Mas quero ter a chance de falar com ela sobre isso, de
convencê-la a fazer o que acho melhor.
Eu não podia criticá-lo por isso, por querer a oportunidade de
conversar em particular com Isolde, de defender a vida de Ewan.
E também não pude impedir que meus olhos se enchessem de
lágrimas. Não sabia de onde elas vinham, talvez de um poço oculto
no meu coração, um poço que a situação com Ewan havia acabado
de cavar em mim.
Tentei me virar antes que Cartier percebesse, mas ele pegou
meu rosto e me segurou diante de si.
Uma lágrima escorreu pela minha bochecha. Cartier a beijou, e o
jeito como suas mãos acariciaram meu cabelo, o jeito como meu
coração começou a bater e soltar faíscas… Se não fosse por Ewan
no cômodo adjacente, não sei o que teria acontecido entre nós dois,
mas eu conseguia imaginar.
Quando ele olhou para mim, vi o mesmo em seus olhos, aquele
desejo insaciável de não ter nada além da noite entre nós e as
estrelas lá no alto, usando segredos como combustível para trazer o
amanhecer.
Mas a realidade foi como um jato de água fria no meu rosto. Pois
lá estávamos com uma criança Lannon entre nós, um julgamento
prestes a se abater sobre todos e incerteza a nossa frente.
Será que algum dia haveria tempo para nós dois?
— Boa noite, Cartier — sussurrei.
Ele saiu sem falar nada assim que teve certeza de que o
corredor estava vazio, com Ewan à sua sombra.
E, de repente, fiquei sozinha.
14

UMA VEZ LANNON, SEMPRE LANNON


Dois dias para o julgamento

Cartier

Não dormi naquela noite. Dei a cama para Ewan e me estendi no


divã, vendo o fogo minguar até restarem brasas, e pensando noite
adentro. Pensando no que eu diria para Isolde, em como a
convenceria a deixar que essa criança vivesse. E já não era apenas
Ewan; agora tinha Keela.
E só faltavam dois dias para o julgamento.
Quando o sol nasceu, eu já sabia que precisava falar com Isolde
e, depois, falar com Keela na masmorra.
Fui ver a rainha no meio da manhã, após providenciar uma tigela
de mingau e um livro que peguei na biblioteca para garantir que
Ewan continuasse nos meus aposentos.
— Mas não sei ler, milorde — reclamara Ewan, ao ver o livro
enorme.
As palavras dele me causaram tanta dor que foi como se o
garoto tivesse enfiado uma adaga na minha barriga.
— Então olhe para as ilustrações — eu respondera, saindo
imediatamente para não fazer mais nenhuma pergunta sobre a
infância de Ewan.
Seu pai espancava você, Ewan? Seu avô o fazia passar fome? É
por isso que você não gosta de ficar sozinho no escuro? É por isso
que ninguém o ensinou a ler?
Esperei para me reunir com Isolde no solário da rainha, um
cômodo que ainda estava no processo de ser expurgado da
presença dos Lannon. As paredes agora estavam vazias — antes
eram repletas de galhadas e cabeças de animais —, e me perguntei
se a rainha encomendaria tapeçarias das tecelãs de Jourdain para
decorá-las.
— Você queria falar comigo?
Virei-me e vi Isolde entrar no cômodo.
— Sim, milady.
— Acabei de ter outra reunião particular — disse a rainha,
aproximando-se mais alguns passos. — Com lady Grainne.
— Ah? E foi uma reunião boa?
Isolde sorriu.
— Foi.
— E ela aceitou apoiá-la plenamente?
— Na verdade, não falamos nada de apoio ou alianças.
— Sério?
Não consegui disfarçar a surpresa. E embora quisesse saber os
detalhes, eu não tinha esse direito, então não perguntei.
Mas quando olhei para Isolde, para a luz em seus olhos, vi a
chama dos segredos, o brilho reluzente de um dragão que cospe
fogo sobre suas montanhas de ouro. Talvez eu fosse descobrir a
verdade nos meses seguintes.
— Por favor, Aodhan, diga o que está pensando.
— Eu gostaria de pedir permissão para ir à masmorra e falar
com alguns dos Lannon.
O sorriso dela desapareceu.
— Posso perguntar com quais dos Lannon você pretende falar?
— Keela.
— A princesa? Eu mesma já tentei falar com ela, Aodhan. A
menina não quer falar.
— Ainda assim, eu gostaria de tentar — insisti. — Também
queria falar com um nobre Lannon chamado Tomas. Ele está na
masmorra?
— Sim, está preso.
Respirei fundo e reuni coragem para acrescentar:
— E preciso falar com Declan.
A rainha ficou em silêncio e olhou para a parede de janelas. A
tempestade finalmente havia passado, deixando para trás um sol
fraco e terra fofa, mas logo as nuvens se abririam e voltaríamos a
ver o céu.
Isolde andou devagar até as janelas, e o roxo de seu vestido se
refletia nas folhas inclinadas de vidro enquanto ela observava a
cidade de Lyonesse. Seu cabelo era de um tom ruivo mais escuro
que o de Ewan; ela o prendera em um laço simples para trás, e seus
cachos formavam um escudo em suas costas.
— Não quero decapitar Keela Lannon — revelou a rainha. — Ela
é apenas uma menina e está apavorada. Quero que ela viva, que se
cure, que se torne uma bela moça. Mas a verdade é que… o povo
vai exigir a cabeça de todos os Lannon. E se eu permitir que os
netos vivam, o que acontece se as sementes do descontentamento
crescerem entre eles, por serem os últimos da linhagem? Será que
outras Casas os acolherão? Ou vão odiá-los e rejeitá-los? Será que
vão encontrar algum lugar? Será que a raiva vai evoluir para algo
mais sinistro, que nos condenará a outra guerra daqui a décadas?
Quando ela se calou, fui para seu lado.
— Seus receios são válidos, milady — declarei. — Eu também
os tenho. Mas Keela é só uma criança. Ela não devia sustentar o
peso dos pecados dos pais e avós.
— Mas não é assim que se faz em Maevana? A eliminação de
famílias inteiras que se oponham à rainha? — questionou Isolde. —
A parte amarga?
— Contudo, você mesma disse, ontem, que queremos sair de
uma era de trevas; queremos que você nos conduza para a luz.
A rainha se manteve em silêncio.
— Isolde — falei, enfim, mas ela não olhou para mim. Seus
olhos estavam na cidade, então continuei: — Ewan Lannon está sob
meus cuidados. Ele é o menino que entrou pela janela de Brienna
ontem à noite.
— Sabia que era ele — sussurrou ela. — Percebi assim que o vi,
assim que o curei. — Ela fechou os olhos. — Sou fraca, Aodhan.
— Não é fraqueza querer curar uma criança ferida e protegê-la
do fardo pesado da maldade de suas famílias, Isolde — respondi. —
Keela e Ewan são inocentes.
Os olhos dela se abriram, trêmulos, e se fixaram em mim.
— Keela Lannon não é inocente, Aodhan.
As palavras dela me chocaram, e hesitei por um instante.
— Há uma lista de queixas contra ela — continuou a rainha. —
São esparsas em comparação com as queixas contra o pai e o avô,
mas não deixam de existir. Algumas das camareiras se
pronunciaram, disseram que foram castigadas cruelmente por
ordem dela.
— Aposto que ela foi coagida a fazer isso, Isolde — murmurei.
Mas minha incerteza persistiu como um hematoma.
— Ainda não sou rainha — murmurou Isolde, tão baixo que
quase não escutei. — E não quero presenciar o julgamento com
uma coroa, mas, sim, como integrante do povo. Quero comparecer
de igual para igual, lado a lado, quando o veredito for declarado.
Não quero que pareça que é a minha justiça. É a nossa justiça. —
Isolde começou a andar a esmo, com as mãos junto ao peito, como
se seu coração estivesse consumido por orações. — Por isso, se o
povo cobrar a cabeça de Keela, não tenho o poder de ignorá-lo. Ela
já está na masmorra; o povo a colocou lá, e não posso tirá-la.
Sabia que seria assim. Fiquei em silêncio, à espera, vendo-a
andar.
— Por isso — sussurrou Isolde, parando diante de mim. —
Quero que você abrigue e proteja Ewan Lannon. Mantenha-o
escondido até depois do julgamento. Quero que você o crie como se
fosse seu, como se fosse um Morgane. Quero que você o crie para
ser um homem bom.
— Você está me dando permissão?
Não foi uma surpresa completa para mim. Eu havia imaginado
que Isolde optaria pela piedade, mas não podia negar o fato de que
sempre achei sua presença imponente.
— Estou lhe dando permissão, Aodhan — confirmou ela. —
Como rainha de Maevana, vou dar um jeito de perdoá-lo. Enquanto
eu não for coroada, mantenha-o escondido e em segurança.
— Assim farei, milady — murmurei, levando a mão ao peito em
sinal de submissão.
— Darei ordem para que os guardas lhe franqueiem acesso à
masmorra — declarou. — Você pode falar com Keela e Tomas, e
também com Declan, mas preste atenção… — A rainha me
acompanhou até a porta e inclinou a cabeça, como se estivesse
revivendo uma lembrança sombria, uma que quisesse dissolver. —
Declan Lannon é terrivelmente habilidoso com as palavras. Não se
deixe abalar por ele.

Uma hora depois, eu estava adentrando as profundezas obscuras


do castelo.
O piso de pedra sob meus pés foi ficando mais e mais
escorregadio a cada passo, e tive a impressão de escutar um
distante rugido de água.
— Que barulho é esse? — perguntei.
— Tem um rio debaixo do castelo — respondeu Fechin, o chefe
dos guardas.
Respirei fundo e senti um vestígio distante de sal e névoa.
— Onde ele deságua?
— No mar. — Fechin olhou de relance por cima do ombro, para
meus olhos. — Durante anos, era assim que os Lannon se livravam
dos corpos esquartejados, desovando “na correnteza”.
Quase não registrei as palavras dele, de tão difíceis que eram de
compreender. Mas esses atos malignos haviam sido cometidos ali,
naqueles túneis, por anos. Eu me obriguei a ponderar essa verdade
à medida que me aproximava das celas dos Lannon.
Andamos mais, até o ruído do rio desaparecer, e o único som
era o das goteiras nas rachaduras acima de nós. E, então, ocorreu
outro barulho, tão estranho que achei que fosse imaginação minha.
Era um som de vassoura, deslizando constantemente, sem parar.
Finalmente encontrei a origem do som, de repente, como se
tivesse brotado da pedra diante de mim. Um vulto coberto com um
véu preto dos pés à cabeça, com o rosto oculto, varria o chão.
Quase atropelei a pessoa e tive que me esquivar para o lado para
evitar a colisão.
A pessoa parou, e um calafrio correu pela minha pele enquanto
minha tocha queimava a escuridão entre mim e ela.
— A varre-ossos — explicou Fechin, despreocupado. — Não vai
machucá-lo.
Resisti à tentação de dar uma última olhada na pessoa, e minha
pele ainda estava arrepiada. Fazia só meia hora que estava
andando pelos túneis, e já estava ansioso para sair dali. Esforcei-me
para me recompor enquanto o guarda parava diante de uma porta
estreita, com uma fresta inclinada a título de janela recoberta de
barras de ferro.
— Milady disse que você queria ver Keela Lannon primeiro,
certo?
Fechin encaixou sua tocha em um suporte e revirou o molho de
chaves.
— Isso.
Reparei que havia respingos de sangue nas paredes de pedra
calcária. Que o brilho no chão era mesmo de ossos, e que a
presença da vassoura nos túneis não era sem motivo.
Fechin destrancou a porta e a empurrou com o pé para abri-la
com um grunhido poeirento.
— Vou esperar aqui.
Meneei a cabeça e entrei na cela. A tocha trepidava em
uníssono com minha pulsação.
Não era um espaço amplo, mas havia um catre, vários
cobertores e uma mesa estreita decorada com uma pilha de livros e
uma fileira de velas. Uma menina estava de pé contra a parede,
com o cabelo e a pele claros mergulhados na escuridão, e olhos que
brilhavam de pânico ao me ver entrar na cela.
— Não tenha medo — falei, conforme Fechin fechava a porta
com um estrondo.
Keela correu até a mesa para arrancar uma das velas
parcialmente derretidas da madeira e brandiu a chama como se
fosse uma arma. Ela ofegava de medo, e parei, sentindo o coração
martelar.
— Keela, por favor. Estou aqui para ajudá-la.
Ela arreganhou os dentes, mas havia o brilho de lágrimas em
suas bochechas.
— Meu nome é Aodhan Morgane, e conheço seu irmãozinho,
Ewan — continuei, com um tom delicado. — Ele me pediu para vir
vê-la.
O som do nome do irmão a abrandou. Eu tinha esperança de
que isso servisse de ponto de contato entre nós e continuei falando,
com uma voz tão baixa que minhas palavras não passariam da
porta.
— Encontrei seu irmão no meu castelo. Acho que ele saiu de
Lyonesse durante a batalha, em busca de algum lugar seguro para
ficar. Ele me pediu para vir falar com você, Keela, para ver o que
podemos fazer para ajudá-la nos próximos dias. — Essa era minha
maior preocupação depois de descobrir que havia queixas contra
Keela. Precisava pensar em um jeito de fazê-la falar disso, para que
eu pudesse ajudá-la a formular uma resposta quando as queixas
fossem enunciadas diante de uma multidão furiosa. — Você
aceitaria falar comigo, Keela?
A menina ficou quieta.
Achei que estivesse pensando nas minhas palavras, até que ela
deu um grito que arrepiou os pelos nos meus braços.
— Mentiroso! Meu irmão morreu! Sai! — Keela arremessou a
vela. Eu me esquivei por pouco, e ela continuou gritando. — Sai!
Sai!
Não tive escolha.
Bati na porta, e Fechin abriu.
Parei do outro lado da porta de Keela, apoiado nas manchas de
sangue na parede, e a ouvi chorar. O som me revirou por dentro, o
fato de que aquela era a irmã de Ewan, de que ela estava presa no
escuro, de que ficou apavorada só de olhar para mim.
— Ela se comportou do mesmo jeito com a rainha — disse o
guarda. — Não a leve a mal.
As palavras não me consolaram.
Eu me sentia mal enquanto continuava seguindo o guarda pelo
túnel e o ar ficava cada vez mais abafado e rançoso.
Chegamos à cela do nobre Tomas. Mais uma vez, Fechin
destrancou a porta e entrei na cela, sem saber o que encontraria.
Essa estava relativamente limpa. Havia um homem velho
sentado no catre, com pés e mãos acorrentados, e ele olhava para
mim. Apesar da idade, o homem ainda tinha um porte largo e
robusto. Não havia emoção no rosto ou nos olhos, apenas dureza, e
era difícil olhar para ele. Seu cabelo louro estava quase totalmente
grisalho, escorrido e embolado nos ombros, e seu rosto estava
macilento, como se fosse mais um espectro do que um homem.
— Nobre Tomas?
Ele não falou nada. Senti que reservaria sua voz, que se
recusaria a falar comigo.
— Encontrei seu homônimo no meu castelo — continuei, em voz
baixa. — Um garoto ruivo.
Como eu esperava, a referência a Ewan provocou algum
movimento dentro dele. Sua boca continuava virada para baixo, mas
os olhos se abrandaram.
— Imagino que tenha mandado acorrentá-lo — resmungou o
nobre.
— Pelo contrário. Eu o escondi.
— Então o que quer comigo?
— Você é leal a Gilroy e Oona?
O velho nobre deu uma risadinha, cuspiu no chão entre nós e
cruzou os braços, fazendo as correntes retinirem.
— Eles arruinaram o nome Lannon. Arruinaram completamente.
Tive que disfarçar minha satisfação pelo desdém dele. E guardei
seu nome em um canto da mente como um aliado em potencial.
Talvez ele fosse um Lannon que poderíamos converter para nosso
lado, que pudesse nos ajudar a reconstruir. Se ele se importava com
Ewan e Keela a ponto de se arriscar na batalha para ajudar Ewan a
fugir, devia valer mais do que qualquer Lannon que eu conhecia.
Comecei a sair, mas a voz dele soou de novo.
— Você é filho de Líle.
A declaração me paralisou. Devagar, virei-me para olhar de novo
para ele, e seus olhos estavam fixos nos meus.
— Você não tem a menor ideia de quem eu sou, né? —
continuou Tomas.
Pensei na carta de minha mãe, na minha tentativa de reprimir a
verdade da revelação dela. Mas antes que pudesse responder, ele
falou de novo.
— Doce Líle Hayden. Ela era um raio de luz entre nós, uma flor
nascida no meio do gelo. Não fiquei surpreso quando Kane Morgane
a levou para suas terras, para coroá-la como lady.
— E você é o que dela? — retruquei.
Suas palavras me magoaram; eu não queria lembrar de meus
pais, pensar na minha perda.
Tomas respondeu com um sussurro grave:
— Tio.
Cambaleei para trás, incapaz de disfarçar meu espanto.
— Sou o último dos Hayden, o último da sua família no lado dos
Lannon — revelou Tomas com mais delicadeza, como se sentisse
minha agonia.
Desejei que não tivesse falado nada. Desejei não saber que ele
era um parente, que eu tinha um tio-avô acorrentado na masmorra
do castelo.
— Não posso soltá-lo — falei.
Mas minha mente já estava tentando achar um jeito — meu
coração era um traidor, ansioso para libertá-lo.
— Só peço que usem um toco e um machado novos comigo.
Que não sujem meu pescoço com o sangue deles.
Meneei a cabeça e saí, lutando para recuperar a compostura
enquanto esperava Fechin trancar a porta do nobre antes de me
levar à última parada. Pensei em voltar para a luz e esquecer
Declan. Minhas roupas estavam encharcadas de suor e eu me
sentia prestes a passar mal. Mas então escutei a voz do meu pai,
como se ele estivesse atrás de mim, como se dissesse: “Você é
Aodhan Morgane, herdeiro das terras e da Casa Morgane.”
Eu nunca tinha sido um Lannon.
Esse pensamento me equilibrou e pude seguir em frente.
Havia mais manchas de sangue seco nas paredes e no chão
quando chegamos à cela de Declan. Fechin destrancou a porta e,
por um instante, fiquei olhando para aquela entrada escancarada.
Estava prestes a atravessar o limiar e me encontrar cara a cara com
o príncipe que havia sido prometido em casamento para minha irmã,
o príncipe que esmagara os ossos dela. Que a assassinara.
Dessa vez, foi a voz de Aileen que soou, um sussurro na minha
mente. Quero que você olhe nos olhos de Declan e o amaldiçoe
junto com a Casa dele. Quero que você seja o começo do fim dele,
a vingança da sua mãe e da sua irmã.
Entrei na cela.
O cômodo estava vazio, mas os cantos estavam entulhados de
ossos e teias de aranha. Havia um catre onde o prisioneiro podia se
deitar e dormir, um cobertor, e um balde para dejetos. Um conjunto
de tochas acesas estava preso nas paredes, chiando. E acorrentado
na parede tanto pelas mãos quanto pelos pés, estava Declan
Lannon, com o cabelo acobreado embolado e ensebado na frente
da testa, um porte corpulento que fazia o catre parecer pequeno.
Uma barba cobria a parte de baixo de seu rosto, e um sorriso cruel
se abriu nela como uma lua crescente quando nossos olhares se
cruzaram.
Meu sangue gelou: ele me reconheceu, de alguma forma, assim
como o nobre Tomas. Declan sabia exatamente quem eu era.
Fiquei olhando para ele, que retribuiu o olhar. A escuridão entre
nós se agitou como uma criatura selvagem faminta, e meu único
poder para espantá-la era a tocha na minha mão e o fogo que se
acendeu no meu peito.
— Você é a cara dela — disse Declan, rompendo o silêncio.
Não pisquei, não me mexi, não respirei. Eu era uma estátua, um
homem esculpido em pedra que não sentia nada. Porém, uma voz
me disse: Ele está falando da sua mãe.
— Você tem o cabelo dela, os olhos — continuou o príncipe. —
Você herdou o que ela tinha de melhor. Mas talvez você já
soubesse, não? Que é metade Lannon.
Olhei para ele, o brilho azul de gelo em seus olhos, os fios louros
soltos de seu cabelo, o tom pálido de sua pele. Minha voz estava
desaparecida, então ele seguiu falando.
— Você e eu podíamos ser irmãos. Eu amava sua mãe quando
era pequeno. Eu a amava mais que à minha própria mãe. E,
antigamente, eu tinha inveja de você, por ser filho de Líle, e eu, não.
Por ela amá-lo mais do que a mim. — Declan se mexeu, mas o
príncipe não parecia nem um pouco desconfortável. — Você sabia
que ela foi minha professora, Aodhan?
Aodhan.
Quando ele disse meu nome, quando me identificou por
completo, encontrei minha voz na garganta, encravada como uma
farpa.
— Professora de quê, Declan?
O sorriso dele se aprofundou com a satisfação de ter me
provocado a conversar. Eu me detestei por aquilo, por querer saber
mais sobre ela, e por ter recorrido a ele para tal.
— Líle era pintora. Foi a única coisa que implorei para que meu
pai me deixasse aprender. A pintar.
Pensei na carta da minha mãe. Ela comentou que tinha dado
aulas para Declan…
Em nenhum momento meu pai contara que minha mãe fora
pintora.
— E por que as aulas pararam?
— Líle — respondeu Declan, e odiei o som que o nome dela fez
em sua língua. — Ela desfez a promessa de casamento entre mim e
sua irmã. Esse foi o começo do fim. Ela não confiava mais em mim.
Começou a duvidar de mim. Podia ver em seu rosto quando ela
olhava para mim, quando eu só queria pintar morte e sangue. — Ele
se calou e estalou as unhas repetidamente. O som preencheu a cela
como um relógio, era enlouquecedor. — E quando a pessoa que a
gente ama mais do que tudo no mundo tem medo da gente… é um
ponto de virada. Não dá para esquecer.
Eu não sabia o que dizer. Meu maxilar estava travado e a ira
bombeava uma pressão surda nas têmporas.
— Tentei falar para ela, obviamente — continuou Declan, com
uma voz que parecia fumaça. Eu não conseguia bloqueá-la; não
podia deixar de aspirá-la. — Falei para Líle que eu só estava
pintando o que via diariamente. Cabeças decepadas e línguas
cortadas. O método de governo que meu pai preferia usar. E o
método como meu pai estava me criando para ser. Achei que sua
mãe entenderia. Afinal, ela era da Casa Lannon, ela conhecia
nossas inclinações.
“E meu pai confiava em Líle. Ela era filha de seu nobre preferido,
Darragh Hayden, aquele bruto velho. Líle não vai nos trair, dizia ele.
Mas Gilroy esqueceu que, quando uma mulher se casa com um
lorde, ela adota um nome novo. Ela adota uma Casa nova, e sua
lealdade muda, quase como se ela jamais tivesse sido vinculada
pelo sangue. E como Kane de Morgane a idolatrava! Ele teria dado
tudo para mantê-la consigo, aposto!”
Declan finalmente se calou por tempo suficiente para eu
processar tudo que havia acabado de despejar.
— Imagino que o velho Kane esteja morto, não é? — perguntou
Declan.
Decidi ignorar a pergunta e falei:
— Onde estão os Hayden agora? — Eu já sabia onde estava um
Hayden: a algumas celas de distância.
Declan deu uma risadinha, com uma tosse úmida nos pulmões.
— Você adoraria saber, não é? Morreram, obviamente, exceto
um. O velho e leal Tomas. O irmão dele, seu avô, se amotinou
quando viu Líle se rebelar, quando viu aquela cabeça loura bonita
na estaca. Ele preferiu a filha ao rei. Existe um castigo especial para
um Lannon que trai a própria Casa.
Eu precisava ir embora. Já. Antes que a conversa se
aprofundasse mais, antes que eu perdesse a compostura. Comecei
a dar as costas para ele, a deixá-lo na escuridão.
— Onde sua babá escondeu você, Aodhan?
Meus pés empacaram no chão. Senti o sangue se esvair do
rosto quando fitei os olhos dele, aquele sorriso que parecia prata
fosca à luz das tochas.
— Revirei aquele castelo inteiro tentando encontrar você —
murmurou Declan. — Pensei muito nisso depois, em onde você se
escondeu naquela noite. Em como uma criancinha escapou de mim.
Cadê você, Aodhan?
As vozes se alinharam, ganharam definição. O pequeno Declan
e o velho Declan. Passado e Presente. O cheiro de ervas
queimadas, o eco distante de gritos, o odor frio de esterco, o choro
do meu pai. O cheiro úmido da cela, o amontoado de ossos, o fedor
dos dejetos no balde, o brilho nos olhos de Declan.
— Você adoraria descobrir, não adoraria? — provoquei.
Declan inclinou a cabeça para trás e riu ao ponto de eu achar
que morreria. E a sede de sangue deve ter brilhado no meu olhar,
porque ele voltou os olhos para mim e disse:
— É uma pena que não tenham escondido sua irmã tão bem
quanto esconderam você.
Não consegui me conter e levei a mão ao punhal oculto. A arma
aguardava nas minhas costas, sob a camisa. Saquei-a tão rápido
que Declan ficou momentaneamente surpreso e arqueou as
sobrancelhas, mas, por fim, sorriu ao ver a luz refletir no aço.
— Vamos lá. Pode me apunhalar até encher esta cela com o
meu sangue. Com certeza o povo de Maevana vai agradecer por
não terem que perder tempo pesando a minha vida.
Eu tremia, e o ar que respirava entrava e saía entre os dentes.
— Vamos, Aodhan — provocou Declan. — Mate-me. Eu mereço
morrer por suas mãos.
Dei um passo, mas não foi na direção dele, foi para a parede.
Isso chamou a atenção dele; eu estava andando e agindo de forma
inesperada.
Declan ficou em silêncio, vendo-me ir até a parede, pouco acima
do catre.
Segurei na ponta do punhal e comecei a gravar meu nome na
pedra.
Aodhan.
Declan teria que olhar para aquilo por pelo menos mais dois
dias. Meu nome entranhado na pedra de sua cela. Pouco além de
seu alcance.
Declan achou graça. Devia estar lembrando daquela noite em
que gravou seu nome na pedra do meu pátio, achando que isso
duraria mais que os Morgane.
E estava abrindo a boca para falar de novo, mas me virei e me
agachei, para disfarçar a força com que tremia. Olhei para Declan, e
dessa vez era eu quem sorria.
— Estou com seu filho, Declan.
Por essa ele não esperava.
Toda a bravura, todo o divertimento se desfez em seus olhos.
Declan me encarou, e agora ele é que tinha se transformado em
pedra.
— O que você vai fazer com ele?
— Pretendo ensiná-lo a ler e escrever — comecei, ganhando
firmeza na voz. — Pretendo ensiná-lo a brandir tanto palavras
quanto espadas, a respeitar e honrar tanto as mulheres quanto a
nova rainha. E vou criá-lo como filho. E ele condenará o homem que
o gerou, o sangue do qual ele descende. Ele apagará seu nome dos
registros históricos, fará sua terra produzir algo de bom depois de
ter virado podridão pura desde que você nasceu. E você passará a
ser uma marca distante na mente dele, algo em que ele talvez
pense de tempos em tempos, mas que não lembrará como pai,
porque você nunca o foi. Quando ele pensar no pai, pensará em
mim.
Acabei. A palavra final foi minha, a gravação final.
Levantei-me e, guardando o punhal e flexionando os dedos
enrijecidos, comecei a sair. Estava quase na porta da cela prestes a
pedir que fosse aberta, para sair dessa latrina, quando a voz de
Declan rachou a escuridão e veio em meu encalço:
— Você está esquecendo de uma coisa, Aodhan.
Parei, mas não me virei.
— Uma vez Lannon… sempre Lannon.
— É. Minha mãe era prova disso, não é?
Saí da cela, mas a risada e as palavras de Declan me
assombraram por muito tempo depois que voltei à luz.
15

IRMÃOS E IRMÃS
Dois dias para o julgamento

Brienna

— Sei que não vou a julgamento como os Lannon — disse Sean


Allenach enquanto caminhávamos juntos pelos jardins do castelo. —
Mas isso não significa que minha Casa não deva pagar pelo que
fez.
— Concordo — respondi, apreciando a luz matinal. — Sei que
quando o julgamento acabar, Isolde vai conversar com você sobre
compensações. Creio que ela pretenda fazer sua Casa pagar aos
MacQuinn pelos próximos 25 anos.
Sean meneou a cabeça.
— Vou fazer o que ela achar melhor.
Ficamos quietos, cada um perdido nos próprios pensamentos.
Sean nasceu três anos antes de mim. Brendan Allenach era pai
de nós dois, mas, além do nome e do sangue, eu estava
começando a perceber que o que mais tínhamos em comum era a
esperança quanto ao que nossa Casa corrupta poderia se tornar.
Esperança de que a Casa Allenach pudesse se redimir.
Fiquei aliviada quando Sean chegou à cidade real, tal qual havia
prometido à rainha depois que ela o curou no campo de batalha, e
veio me procurar imediatamente.
— Será que a rainha achará necessário levar os Allenach a
julgamento? — perguntou Sean, interrompendo meus pensamentos.
Se Brendan Allenach não tivesse sido morto por Jourdain na
batalha, a Casa Allenach certamente passaria por um julgamento
semelhante ao dos Lannon: Brendan Allenach teria sido executado.
E, embora Sean tivesse apoiado a rainha e insistido para que o pai
se rendesse na batalha, eu não tinha a menor dúvida de que Isolde
exigiria outro julgamento após a coroação, para os Allenach, Carran
e Halloran.
Mas eu não queria comentar isso ainda. Parei, no jardim que
definhara sob anos de descuido dos Lannon.
— Não serão exigidos só bens e dinheiro de você e do seu povo,
Sean. Você acertou quando me escreveu na semana passada: vai
precisar semear novas ideias na sua Casa, crenças que evoluirão
para bondade e caridade, não medo e violência.
Sean olhou para mim. Não éramos muito parecidos, exceto por
sermos ambos altos e magros, mas eu reconhecia um vínculo entre
nós, como acontece com todos os irmãos. E isso me fez pensar em
Neeve, que era tão irmã de Sean quanto minha. Será que ele sabia
dela? Um lado meu acreditava que ele não fazia a menor ideia de
que tinha outra meia-irmã, porque as tecelãs de Jourdain a haviam
protegido zelosamente ao longo dos anos. E um lado meu desejava
contar para ele que não éramos apenas dois, e sim três.
— Sim, concordo plenamente — respondeu Sean, com
delicadeza. — E que missão isso será, após a liderança do meu pai.
Sean parecia esgotado, e peguei sua mão.
— Vamos dar um passo de cada vez. Acho que fazer assim vai
ajudá-lo a encontrar homens e mulheres de confiança na sua Casa
que você possa designar como líderes — afirmei.
Sean sorriu.
— Será que posso pedir para você voltar e me ajudar?
— Sinto muito, Sean. Mas agora é melhor eu ficar com o meu
povo.
Não quis falar que eu precisava do máximo de distância possível
da Casa Allenach e de suas terras, que minha maior necessidade,
além de proteger e ajudar a rainha, era ficar com Jourdain e seu
povo.
— Entendo — assentiu ele, com um tom brando.
Abaixei os olhos para nossas mãos e para a barra das nossas
mangas. Sean estava vestido com o marrom e branco dos Allenach,
com o cervo saltitante bordado no peito. Porém, seus pulsos… Eu
odiava imaginar, mas e se meu irmão tivesse o sinal? E se ele
tivesse a tatuagem de meia-lua no pulso, pouco abaixo da manga?
Será que eu tinha direito de procurar?
— O que você está pensando em termos de lealdade? —
perguntei, em voz baixa.
Sean ergueu os olhos para mim.
— Pretendo jurar lealdade a Isolde antes da coroação.
— E seus nobres? Vão apoiá-lo com isso?
— Quatro deles vão. Não tenho tanta certeza quanto aos outros
três — respondeu ele. — Não ignoro o fato de que eles cochicham
sobre mim às minhas costas. Que certamente acreditam que sou
fraco. Eles acham que seria fácil me eliminar e substituir.
— Eles se atreveriam a tramar contra você, Sean? — perguntei,
com labaredas de raiva na voz.
— Não sei, Brienna. Não posso negar que todas as conversas
deles giram em torno da sua volta aos Allenach.
Fiquei sem palavras.
Sean me ofereceu um sorriso triste e apertou minha mão.
— Acho que eles consideram que você seja superior a mim,
porque foi a única filha de Brendan, e uma filha vale dez filhos. Mas
é mais do que isso… Enquanto você conspirava e destronava um
tirano, eu estava sentado em casa, no castelo Damhan, à toa, e
deixava meu pai pisotear o próprio povo.
— Então você precisa fazer alguma coisa, Sean — sugeri. — A
primeira medida que eu diria para você tomar é remover a meia-lua
do brasão dos Allenach.
— Que meia-lua?
Sean se limitou a piscar, perplexo, e me dei conta de que não
fazia a menor ideia do envolvimento do nosso pai.
Respirei fundo.
— Depois do julgamento, volte ao castelo Damhan — prossegui,
soltando a mão de Sean para que pudéssemos continuar a
caminhada. — Quero que você convoque seus sete nobres para o
salão diante do seu povo. Mande-os arregaçar as mangas e colocar
as mãos na mesa, viradas para cima. Se eles tiverem uma tatuagem
de meia-lua no pulso, dispense-os. E se todos os sete tiverem o
sinal, arrume sete nobres novos, sete homens ou mulheres que
sejam de confiança e que você respeite.
— Não sei se entendi — disse meu irmão. — Esse sinal de
meia-lua…?
— Representa lealdade aos Lannon.
Sean se calou, afogando-se em todas as ordens que eu estava
dando.
— Depois de passar seus nobres a limpo — continuei —, quero
que você convoque de novo todos os Allenach ao salão. Pegue seu
brasão e arranque o sinal da meia-lua. Queime-o. Encomende a
fabricação de um brasão novo sem aquilo. Diga ao seu povo que
você vai jurar lealdade a Isolde antes da coroação, e que espera
que eles façam o mesmo. Se eles tiverem algum receio a respeito
disso, que venham conversar com você. Você precisa escutá-los,
obviamente. Mas também seja firme caso eles se oponham à
rainha.
Sean deu uma risadinha. A princípio, achei que estava
debochando de mim, e levantei o rosto de repente para vê-lo. Ele
sorria e balançava a cabeça.
— Acho que meus nobres têm razão, irmã. Você é muito mais
apta para liderar nossa Casa do que eu.
— Com esse tipo de pensamento, você não vai longe, irmão —
respondi, e então falei com mais ternura: — Você vai ser mais lorde
do que Brendan Allenach jamais foi.
Estava prestes a perguntar mais sobre os nobres dele quando
Cartier nos encontrou nos campos, com a camisa manchada como
se tivesse se apoiado em uma parede suja, e o cabelo, ensebado e
embolado. Fiquei imediatamente preocupada. Ele deve ter tido uma
longa conversa com Isolde sobre Ewan, e deve ter ido mal.
— Você se incomoda se eu pegar Brienna emprestada um
momento? — perguntou Cartier a Sean.
— Não, nem um pouco. Tenho uma audiência com a rainha
mesmo — revelou meu irmão, abaixando a cabeça e me deixando
com Cartier, o vento e as nuvens.
— Algum problema? — perguntei. — O que Isolde falou?
Cartier pegou minha mão e começou a me afastar do espaço
aberto do jardim para uma sombra reservada.
— Isolde me encarregou de proteger Ewan. Tenho que mantê-lo
escondido até o fim do julgamento. — Cartier enfiou a mão no bolso
e retirou um pedaço de papel dobrado. Observei-o o abrir para
revelar uma linda ilustração de princesa. — Preciso lhe pedir algo,
Brienna.
— O que quer que eu faça?
Cartier olhou para a ilustração e, lentamente, a colocou nas
minhas mãos.
— Preciso que você vá conversar com Keela Lannon na
masmorra. Ewan arrancou esta folha de um livro, disse que o
lembrava da vez que Keela quis ser “princesa da montanha”. Ele
acha que, se essa mensagem for levada por você, ela vai confiar em
você e lhe dar ouvidos.
Examinei a ilustração. Era linda: a imagem de uma princesa
montada em um cavalo, com um falcão pousado no ombro.
— Devo ir agora? — perguntei, sentindo os olhos de Cartier no
meu rosto.
— Ainda não. Tem outra coisa.
Ele pegou na minha mão de novo e me conduziu de volta para a
ala de visitantes do castelo. Deixei-o me levar até seu quarto, e foi
ali que vi pela primeira vez a lista de queixas contra Keela.
— Recebi esta lista da rainha — disse ele quando nos sentamos
a uma mesa, tomamos uma jarra de chá, lemos e pensamos
estratégias para combater as acusações.
Eram graves, com datas específicas e nome dos autores de
cada uma das queixas. A grande maioria descrevia como Keela
dera ordem para flagelar camareiras e lhes raspar a cabeça. Ela
havia proibido seus criados de comer e os obrigara a fazer coisas
ridículas e humilhantes, como lamber leite do chão e rastejar feito
cachorros pelo castelo.
— Você acha que Keela fez essas coisas? — perguntei a Cartier,
de coração apertado.
Cartier ficou olhando a lista calado.
— Não. Acho que Declan Lannon a obrigou a cometer maldades.
E quando ela se recusava, ele a machucava. Então ela começou a
obedecer para sobreviver.
— Então como vamos lidar com isso?
— Brienna… aquela masmorra talvez seja o lugar mais sombrio
que já vi na vida. Keela estava apavorada e furiosa demais para
falar comigo. — Ele virou a lista de queixas e olhou para mim. — Se
você conseguir dar um jeito de acalmá-la, de convencê-la a confiar
em você, de explicar que existe uma chance de redenção, talvez
isso passe a segurança que ela precisa sentir para contar sua
história, e assim o povo a deixará viver. As pessoas precisam saber
que ela é igual a todo mundo, que sofreu muito a vida inteira por
causa do pai e do avô.
— Irei hoje à tarde — falei, apesar de não saber o que esperar,
apesar da dificuldade em assimilar tudo o que Cartier estava
tentando me dizer.
Algumas horas depois, encontrei Fechin, o chefe dos guardas, e
fui conduzida para as trevas da masmorra. Fui parar na cela fria e
escura de Keela, embaixo de léguas de pedra, que pareciam
espremer todo o ar para fora dos meus pulmões e a esperança do
coração. Foi lá que, enfim, compreendi as palavras de Cartier.
Não pude deixar de estremecer quando vi Keela correr para a
mesinha e pegar uma vela, como se a chama minúscula fosse
protegê-la.
— Você se incomoda se eu sentar? — perguntei, mas não
esperei resposta.
Abaixei-me no chão de pedra, cruzei as pernas e meu vestido se
espalhou ao meu redor. Estava com a ilustração de princesa no
bolso, e as palavras que Ewan queria que eu dissesse estavam
guardadas na memória.
— Sai — resmungou Keela.
— Meu nome é Brienna MacQuinn — comecei, em um tom
calmo, como se Keela e eu estivéssemos não em uma cela debaixo
da terra, mas, sim, sentadas em uma campina. — Mas nem sempre
fui MacQuinn. Antes, eu fazia parte de outra casa. Era filha de
Brendan Allenach.
Keela ficou imóvel.
— Lorde Allenach nunca teve filha.
— É, as pessoas achavam isso porque sou ilegítima. Filha de
uma mulher valeniana do outro lado do canal. — Inclinei a cabeça e
meu cabelo caiu sobre o ombro. — Quer ouvir minha história?
A cabeça de Keela estava a mil. Deu para ver pela maneira
como seus olhos iam de um lado para outro à medida que ela me
avaliava; pulavam para a porta, que estava fechada e trancada,
voltavam para mim, iam para o catre perto dela. Queria mostrar que
éramos iguais, que também nasci em uma casa opressora e cruel,
mas que nosso nome e nosso sangue não nos definem
completamente. Existem outras coisas mais profundas, como
crenças e escolhas, que são mais fortes.
E se Keela antigamente gostava da ideia de se tornar a princesa
da montanha, eu sabia que ela era uma sonhadora e adorava
histórias.
— Está bem — assentiu ela, aproximando-se do catre.
Comecei a contar da minha vida: perdi minha mãe quando tinha
3 anos, e meu avô me mandou para um orfanato com outro
sobrenome, porque tinha medo de que lorde Allenach me
encontrasse.
Contei de quando fiz dez anos e fui aceita na Casa Magnalia, e
que eu queria, mais do que tudo, me tornar uma paixão.
— Quantas paixões existem? — perguntou Keela, deixando a
vela de lado lentamente.
— Cinco — respondi, sorrindo. — Arte. Teatro. Música.
Sagacidade. Conhecimento.
— Você é qual?
— Sou mestra de conhecimento.
— Quem ensinou conhecimento para você?
Keela juntou os joelhos no peito e ali apoiou o queixo.
— Foi o mestre Cartier, que é mais conhecido como Aodhan de
Morgane.
Ela ficou quieta e observou o chão entre nós.
— Acho que ele tentou falar comigo hoje cedo.
— É, foi ele. Ele e eu queremos ajudar você, Keela.
— Como vocês podem me ajudar? — murmurou ela, com raiva.
— Meu avô é um homem horrível. Dizem que sou parecida de rosto
com ele, então, se eu viver, como é que outras pessoas vão
aguentar olhar para mim?
Meu coração se acelerou conforme eu a ouvia. Ela havia
pensado na possibilidade de sobreviver ao julgamento, havia
pensado em como seria odiada. E eu não podia mentir: levaria
tempo até os maevanos confiarem nela e a aceitarem, assim como
estava levando tempo para o povo de Jourdain me acolher
plenamente.
— Deixe-me terminar de contar minha história, Keela, e depois
podemos tentar responder a esses receios — pedi.
Contei das lembranças que herdei do meu antepassado, Tristan
Allenach, da traição, de quando ele roubou a Pedra do Anoitecer e
obrigou a magia a desaparecer, de quando assassinou a última
rainha de Maevana. Falei da revolução, de quando atravessei o
canal para recuperar a pedra, de quando Brendan Allenach, que
sabia que eu era sua filha, tentou me convencer a rejeitar meus
amigos e me unir a ele, a tomar a coroa para mim, com ele a meu
lado.
Isso prendeu a atenção dela, mais do que minha história com as
paixões, porque deu para ver que ela estava nos comparando. Ela e
eu, duas filhas que tentavam romper com suas Casas de sangue.
— Mas eu sempre vou ser uma Lannon — contestou ela. —
Sempre vou ser odiada, viva ou morta.
— Mas, Keela — respondi, delicadamente —, é apenas sangue
que compõe uma Casa? Ou são as crenças? O que é que mais une
as pessoas? O vermelho nas veias ou a chama no coração?
Ela estava balançando a cabeça, e lágrimas escorriam dos
olhos.
— Keela, quero que você viva. Seu irmão, Ewan, também quer.
— Tirei a ilustração do bolso, alisei o papel amassado e o coloquei
no chão. — Ele pediu para eu lhe dar isto, porque lembrou de
quando você queria se tornar princesa da montanha.
Ela começou a chorar, e, embora eu quisesse consolá-la,
continuei parada, com as pernas dormentes por causa da pedra
dura. Deixei que ela se levantasse e se arrastasse até o lugar onde
eu havia colocado o papel. Ela o pegou, enxugou as lágrimas dos
olhos e voltou ao catre para se sentar e admirar a ilustração.
— Ele não morreu? Meu pai falou que ele tinha morrido — disse
ela, depois de se acalmar. — Que a rainha nova tinha estraçalhado
ele.
— Ewan está muitíssimo vivo — respondi, odiando as mentiras
que o pai dela contara de propósito. — Aodhan Morgane e eu o
estamos protegendo, e também protegeríamos você.
— Mas o povo me odeia! — exclamou ela. — As pessoas
querem meu sangue. Querem o sangue de todos nós!
— Tem algum motivo para as pessoas quererem seu sangue,
Keela?
Ela parecia prestes a chorar de novo.
— Não. Tem. Não sei!
— Como era a vida de princesa no castelo para você?
Ela ficou quieta, mas senti que minha pergunta fora certeira.
— Batiam em você, Keela? Você era obrigada a fazer
maldades? — Parei, mas meu coração pulava. — Foi seu pai que
mandou você machucar as camareiras?
Com o rosto escondido na curva do braço, Keela começou a
chorar. Achei que a havia perdido, mas ela levantou a cabeça e
murmurou:
— Foi. Meu pai… meu pai me machucava se eu não as
machucasse. Ele me trancava no armário, onde era escuro e eu
ficava com fome. Parecia que eu passava dias lá dentro. Mas ele
falava que isso ia me deixar mais forte, que o pai dele tinha feito
isso com ele para ser indestrutível. Meu pai falava que não ia confiar
em mim se eu não fizesse exatamente o que ele mandasse.
Ao escutá-la, fiquei dividida entre a fome de justiça, a vontade de
ver o sangue correr depois de tudo o que os Lannon haviam feito e
o desejo ardoroso de piedade em relação a Keela Lannon. Porque
enxergava parte de mim nela, e eu tinha recebido misericórdia.
— É isso que você precisa falar para as pessoas quando for a
julgamento, Keela — murmurei, sofrendo por ela. — Você precisa
falar a verdade. Precisa falar como era sua vida como neta do rei
Lannon. E prometo que as pessoas vão ouvir, e algumas vão
perceber que você é como elas, que você quer o mesmo que elas
para Maevana.
Levantei-me e senti os pés formigarem. Keela me encarou com
olhos enormes, olhos quase idênticos aos de Ewan.
— O julgamento vai começar daqui a dois dias — anunciei. —
Vão levá-la para o palanque diante da cidade para responder às
perguntas do magistrado, para que o povo decida se você vai viver
ou morrer. Eu estarei na frente, e, se você sentir medo, quero que
olhe para mim e saiba que não está sozinha.
16

CORTEM AS CABEÇAS
Dia do julgamento

Cartier

Não havia uma nuvem sequer no céu no dia do julgamento.


Fui o primeiro lorde a chegar ao palanque naquela manhã, com
um aro dourado na cabeça e o cavalo cinza de Morgane bordado no
coração. Sentei-me na cadeira designada para mim e vi os campos
do castelo começarem a se encher de gente.
Olhei para a plataforma de madeira no centro do palanque, para
as sombras que já se aglomeravam em volta dele, onde Gilroy
Lannon, Oona Lannon, Declan Lannon e Keela Lannon subiriam dali
a algumas horas. Tentei imaginar Ewan ali entre eles, sangue de
seu sangue, ossos de seus ossos.
Uma vez Lannon, sempre Lannon.
Eu odiava aquelas palavras e a incerteza que Declan semeara
em minha cabeça.
Os outros lordes e ladies foram chegando gradualmente para
assumir seus lugares ao meu redor. Jourdain atravessou o palanque
com o cenho franzido, ocupou a cadeira ao meu lado, e nós dois
ficamos em um silêncio tenso, sentindo o coração bater à medida
que o julgamento se aproximava.
— Como você está? — murmurou Jourdain, por fim.
Mas minha voz se apagou nesse momento, até que vi Brienna.
Ela estava em pé ao lado de Luc na frente da multidão, com um
vestido cor de lavanda, a cor dos MacQuinn, e seu cabelo castanho
estava amarrado em uma coroa trançada. Nossos olhares se
encontraram ao mesmo tempo.
— Estou bem — respondi, e meus olhos continuaram nela.
Os campos do castelo já estavam abarrotados de gente quando
Isolde, seus guardas e o magistrado chegaram ao palanque.
Embora Isolde não usasse coroa, apenas um aro de ouro, como os
outros fidalgos, os lordes e as ladies se levantaram para ela — lady
Halloran e lorde Carran inclusive. Ela se sentou no meio dos
fidalgos reunidos como lady de Kavanagh, com visão direta da
plataforma. A Pedra do Anoitecer repousava junto a seu coração e
irradiava uma luz azul suave.
O magistrado, um homem idoso de barba branca que chegava
até o peito, parou diante da multidão e ergueu as mãos. O silêncio
que se abateu sobre as pessoas era pesado; minha testa começou
a suar, e me ajeitei na cadeira.
— Meu povo de Maevana — bradou o magistrado, lançando sua
voz à brisa. — Hoje viemos aplicar justiça ao homem que teve a
audácia de se chamar de rei.
No mesmo instante, gritos e vaias raivosas se inflamaram entre
as pessoas. O magistrado ergueu as mãos de novo, insistindo pelo
silêncio, e a multidão se aquietou.
— Cada membro da família Lannon será chamado a depor —
continuou ele. — Todos se colocarão perante vocês enquanto lerei a
lista de queixas contra eles. Essas queixas foram fornecidas por
aqueles dentre vocês que tiveram coragem de contar suas histórias.
Portanto, alguns de seus nomes serão lidos em voz alta, junto com
cada acusação, como prova de testemunho. Quando eu terminar,
cada um dos Lannon receberá a chance de falar, e depois vocês
terão o poder de julgá-los. Um punho erguido significa execução,
não o erguer representa misericórdia.
O magistrado olhou de relance por cima do ombro para Isolde.
Com o cabelo vermelho como sangue à luz do dia, Isolde
assentiu.
Sentia meu coração latejar no fundo do peito. Pensei no meu
pai, na minha mãe e na minha irmã naquele momento de silêncio.
O magistrado se virou e gritou:
— Tragam Gilroy Lannon.
O barulho que irrompeu da multidão foi ensurdecedor. Senti o
som vibrar pela madeira debaixo de mim, pelos meus dentes.
Observei Gilroy Lannon ser arrastado grosseiramente pelo
palanque, sob uma quantidade infinita de correntes.
O ex-rei estava em ruínas. O cabelo louro ensebado estava sujo
de sangue envelhecido — aparentemente, ele tentara, sem sucesso,
arrebentar a própria cabeça na parede da cela. Suas roupas
estavam sujas e exalavam o fedor da própria imundície, e ele mal
tinha forças para se manter de pé quando os guardas o puseram na
plataforma para encarar o povo.
Os gritos, as ofensas e a ira fervilhavam na multidão. Tive o
receio momentâneo de que as pessoas avançariam para o palanque
e o destruiriam violentamente. Até que o magistrado franziu a testa
e ergueu as mãos, e o povo obedeceu, a contragosto, ao pedido de
silêncio.
— Gilroy Lannon, você se encontra perante o povo de Maevana
para responder por uma vasta lista de queixas — anunciou o
magistrado, quando um menino pequeno trouxe um rolo grosso de
pergaminho.
Fiquei olhando, pasmo, quando o pergaminho aparentemente
interminável começou a se desenrolar e abrir-se pelo palanque. O
magistrado começou a ler, e sua voz se impôs aos murmúrios, ao
vento e aos golpes do meu coração.
— Gilroy Lannon, no dia 25 de maio do ano de 1541, você deu
ordem para que Brendan Allenach matasse cruelmente lady Sive
MacQuinn quando ela estava desarmada. Você em seguida
incendiou plantações dos MacQuinn e matou três dos nobres
MacQuinn, junto com suas famílias, enquanto eles dormiam à noite.
Sete dessas vidas eram crianças. Você deu ordens para que seus
homens estuprassem as mulheres de MacQuinn e que enforcassem
os homens que resistissem em defesa de suas esposas e filhas. Em
seguida, dispersou o povo MacQuinn e submeteu-o à autoridade
brutal de lorde Brendan Allenach. Esta queixa foi apresentada por
lorde Davin MacQuinn.
Olhei para Brienna, que mantinha uma expressão estoica no
rosto. Mas dava para ver que a raiva dela estava aumentando.
— No mesmo dia, você capturou lady Líle Morgan e lhe decepou
a mão. Você arrastou…
Obriguei-me a encarar Gilroy Lannon enquanto minha queixa era
lida. Lannon tremia, mas não de medo ou remorso. Estava rindo
quando o magistrado disse:
— Esta queixa vem de lorde Aodhan Morgane.
— MacQuinn e Morgane me desafiaram! Eles desafiaram o rei!
— gritou Lannon, e suas correntes tilintaram quando ele bateu a
mão na grade da plataforma. — Se rebelaram contra mim! Suas
mulheres mereceram o castigo que receberam!
Quando dei por mim, já tinha me levantado e estava prestes a
sacar minha arma oculta e avançar para cima de Gilroy Lannon.
Mas Jourdain foi mais rápido e pegou no meu braço, segurando-me
enquanto a multidão berrava, furiosa, com todos os punhos já
erguidos para o veredito.
— Cortem-lhe a cabeça!
A frase ribombou pelo povo como uma onda que quebrou sobre
o palanque e em mim.
Gilroy ainda ria quando se virou para olhar para trás, e cruzou o
campo de visão com o meu.
— Ah, se você soubesse, pequeno Morgane — chiou ele para
mim —, tudo o que eu fiz com a sua mãe.
Meu rosto se retorceu com agonia e fúria. Tinha mais, então.
Mais que eu não sabia. Essa possibilidade me apavorava desde que
eu havia ido falar com Declan na masmorra, e suas palavras ainda
estavam presas na minha mente. Existe um castigo especial para
um Lannon que trai a própria Casa.
— Amordacem-no! — demandou o magistrado, e dois dos
guardas subjugaram Gilroy Lannon e enfiaram um pano sujo na
boca dele.
E eu só conseguia pensar em uma coisa… O que mais será que
ele fizera com ela? O que mais ele fizera com minha mãe?
— Sente-se, rapaz — sussurrou Jourdain ao meu ouvido, já
quase sem conseguir me segurar mais. — Você não pode permitir
que esse homem o domine.
Assenti, tremendo. Estava perdendo o controle. Sabia que
Brienna estava olhando para mim, senti a atração de seu olhar. No
entanto, não tive forças para encará-la de volta.
Sentei-me de novo e fechei os olhos. A mão de Jourdain
continuou no meu braço, como um pai que tentava consolar o filho.
Mas meu pai estava morto. Minha família inteira estava morta.
Eu nunca tinha me sentido tão sozinho e confuso.
— No mesmo dia — continuou lendo o magistrado —, você
decapitou lady Eidis e Shea Kavanagh e esquartejou o corpo delas
para exibi-los no parapeito do castelo. Em seguida, você passou a
atacar e assassinar membros da Casa Kavanagh…
Levou mais uma hora para o magistrado ler todas as queixas
contra Gilroy Lannon. Mas quando finalmente chegou ao fim do
pergaminho, o povo já havia votado. Todos os lordes e ladies no
palanque estavam de punho erguido. Assim como quase todos os
espectadores na multidão.
— Gilroy Lannon — anunciou o magistrado, devolvendo o rolo
para o menino —, o povo de Maevana o julgou e o considerou em
falta. Você será executado por espada daqui a três dias. Que os
deuses tenham piedade de sua alma.
Os guardas levaram Gilroy Lannon embora. E ele não parou de
rir enquanto saía do palanque.
Oona, a esposa dele, veio em seguida.
Ela subiu a plataforma acorrentada, com o queixo erguido
altivamente, e seu cabelo ruivo tinha mechas grisalhas. Então foi
dali que Ewan herdou o cabelo.
A lista de queixas contra ela não era tão longa quanto a do
marido, mas ainda era grande, cheia de relatos de tortura,
espancamentos e queimaduras. Ao final, ela não teve nada para
dizer — era evidente que tinha orgulho demais para se rebaixar —,
e, mais uma vez, o povo e os fidalgos ao redor ergueram seus
punhos.
Oona morreria logo depois de Gilroy, por espada, dali a três dias.
Era quase meio-dia quando Declan Lannon foi levado à
plataforma.
Meu olhar cruzou com o do príncipe quando ele atravessou o
palanque acorrentado. Declan sorriu para mim. Não olhou para
nenhum dos outros fidalgos, nem mesmo para Isolde. Só para mim.
Meu medo se intensificou. Dava para ver nos olhos do príncipe
que ele estava tramando alguma coisa.
— Declan Lannon, você se encontra perante o povo de Maevana
para responder por uma vasta lista de queixas — começou o
magistrado, tomando o rolo de pergaminho do príncipe.
Era um documento extenso, reflexo do de seus pais. Enquanto
ouvia, minhas hipóteses se confirmaram: Declan gostava de
atormentar e manipular outras pessoas. Havia comandado a maioria
das torturas realizadas nas entranhas do castelo. Não era de
surpreender que ele parecesse tão à vontade na escuridão de sua
cela: estava acostumado com a masmorra.
— Você agora terá a oportunidade de falar, Declan de Lannon —
anunciou o magistrado, enxugando o suor da testa. — Para suplicar
por piedade ou explicar seus motivos.
Declan assentiu e começou a falar, em alto e bom som:
— Bom povo de Maevana, só vou dizer uma coisa antes de
vocês me despacharem para a morte. — Declan se calou por um
instante e virou as mãos para cima. — Cadê meu filho, Ewan?
Vocês o perderam? Ou será que um de vocês o abrigou? Será que
um de seus próprios lordes traiu a confiança de vocês para protegê-
lo?
E, nesse momento, Declan olhou para trás, exatamente para
mim.
Eu estava paralisado na cadeira, mas entendi o deboche, o
triunfo no rosto de Declan.
Se eu cair, você cai junto, Morgane.
A multidão começou a vaiar. Os lordes e as ladies sentados ao
meu redor começaram a murmurar furiosamente. Isolde e Grainne
encaravam Declan, impassivas.
— Magistrado — chamou Isolde, enfim, em um tom afiado como
uma lâmina. — Restitua a ordem a este julgamento.
O magistrado parecia confuso, olhando para mim e Declan.
Declan estava começando a abrir a boca, mas a multidão
gritava, bradava, erguia os punhos.
— Cortem-lhe a cabeça!
Os gritos do príncipe foram abafados pelos protestos, e o
magistrado se apressou a pronunciar a sentença de Declan, que foi
a mesma do pai e da mãe. Morte pela espada, dali a três dias.
Meu punho ainda estava no alto quando Declan foi removido do
palanque. E quando o olhar odioso do príncipe cruzou com o meu,
não me regozijei. Meus olhos, entretanto, fizeram-lhe uma
promessa.
Sua Casa há de virar pó.
E Declan entendeu. Ele rosnou e tropeçou nos degraus do
palanque e desapareceu castelo adentro com sua escolta armada.
Minha pulsação ainda estava acelerada quando trouxeram Keela
Lannon.
A multidão já estava exausta e esgotada, com pouca paciência.
E o ar ficou repleto de vaias quando ela subiu no palanque. Não
estava acorrentada, mas se encolheu quando os guardas a puseram
na plataforma, com o vestido imundo e o cabelo claro sujo.
Por trás, seu cabelo era da mesma cor do cabelo do avô.
Pressenti que aquilo não tomaria um rumo bom para ela. A garota
devia ter sido apresentada primeiro, antes de Gilroy, antes que a
longa lista de queixas contra sua família pudesse ser transferida
para ela.
— Keela Lannon — começou o magistrado, pigarreando
enquanto pegava uma folha de papel. A única folha de acusações
contra ela. — Você se encontra perante o povo de Maevana para
responder por uma lista de queixas.
Keela tremia, aterrorizada, e seus ombros estavam recurvados,
como se o que ela quisesse, mais do que tudo, fosse se dissolver.
Procurei Brienna, e meu coração foi ficando cada vez mais
apertado de preocupação.
Brienna ainda estava de pé na frente, de olhos arregalados ao
sentir o clima da multidão se afastar mais e mais da piedade.
— No dia 20 de dezembro do ano de 1563, você negou comida a
crianças pedintes nas ruas e, em vez de lhes dar pão, deu pedras
para que comessem.
— Eu não… Ele me obrigou. — Keela soluçou e cobriu o rosto
com as mãos enquanto o povo continuava vaiando.
— Keela, você precisa ficar em silêncio enquanto leio suas
queixas — avisou o magistrado. — Você terá sua vez de falar após
do fim da lista.
Ela continuou com o rosto coberto enquanto o magistrado lia.
— No dia 5 de fevereiro do ano de 1564, mandou açoitarem sua
camareira por pentear seu cabelo com força demais. No dia 18 de
março…
Keela chorou, e o povo só foi ficando mais barulhento e furioso.
O magistrado terminou de ler e, depois, perguntou para Keela se
ela queria se dirigir ao povo.
Era nesse momento que Keela precisava falar a verdade, se
defender.
Por favor, Keela, implorei mentalmente. Por favor, diga a
verdade.
No entanto, ela estava amuada e chorando, praticamente
incapaz de levantar a cabeça e enfrentar a ira da multidão.
Procurei Brienna de novo. Ela havia sido engolida pela agitação
do povo, até que, de repente, surgiu bem acima das outras pessoas,
apoiada nos ombros de Luc. Ela se ergueu para que Keela
conseguisse achá-la na multidão.
— Deixem-na falar! Deixem-na falar! — gritou Brienna, mas sua
voz foi soterrada pelos protestos.
Tive vontade de fechar os olhos, de me isolar do mundo, de
bloquear o que eu sabia que ia acontecer. Até que vi Keela
finalmente se endireitar, até que ela finalmente encontrou Brienna
na multidão.
— Meu vô me obrigava a fazer essas coisas — revelou ela, mas
sua voz ainda estava fraca demais. — Meu pai também. Eles… eles
me batiam se eu desobedecesse. Eles ameaçavam machucar meu
irmãozinho! Eles nos proibiam de comer se a gente se recusasse.
Prendiam a gente no escuro a noite toda…
— Mentira! — berrou uma mulher na multidão, o que reavivou as
vaias e os gritos.
— Cortem as cabeças! — O brado irrompeu junto com punhos
erguidos, como se as pessoas pudessem esmurrar o céu.
Um a um, os lordes e as ladies no palanque levantaram o punho
para aprovar a morte dela. Todos, menos quatro.
Morgane. MacQuinn. Kavanagh. Dermott.
Como era possível que as quatro Casas que mais haviam sofrido
sob os Lannon fossem as únicas a ter piedade de Keela?
Isolde, Grainne, Jourdain e eu estávamos sentados com as
mãos fechadas no colo. Pelo canto do olho, vi Isolde abaixar a
cabeça, triste com o veredito. E, na multidão, em meio a um mar de
punhos, estava Brienna, ainda nos ombros de Luc, com lágrimas
nos olhos.
— Keela Lannon — anunciou o magistrado, e até sua voz estava
carregada de decepção. — O povo de Maevana a julgou e a
considerou em falta. Você será executada por espada daqui a três
dias. Que os deuses tenham piedade de sua alma.
17

D E S C O B E R TA S P E R I G O S A S
A noite após o julgamento

Brienna

Estávamos sentados juntos nos aposentos de Jourdain naquela


noite — meu pai, meu irmão, Cartier e eu —, todos exaustos e
calados, tomando uma garrafa de vinho, abalados demais para
comer qualquer coisa.
Era difícil explicar como me senti depois de ouvir as queixas,
especialmente as feitas por MacQuinn e Morgane, das quais eu não
conhecia todos os detalhes. Acho que não havia palavras capazes
de descrever devidamente o quanto eu sofria por eles. E eu nem
imaginava como tinha sido escrevê-las e ouvi-las serem lidas diante
de centenas de testemunhas.
Era mais difícil ainda dizer o que senti quando vi o povo
condenar Keela à morte. Eu sabia que teria que presenciar sua
decapitação, e era uma luta para respirar sempre que eu imaginava
isso.
— Eis que o reinado dos Lannon chega a seu sangrento fim —
disse Jourdain, quando nosso silêncio ficou opressivo demais,
depois que o vinho acabou.
— Eis que eles caem — disse Luc, oferecendo um brinde com a
taça vazia, de joelho colado no meu, já que estávamos juntos no
divã.
Fitei os olhos de Cartier à luz das chamas. Estávamos pensando
e sentindo a mesma coisa.
Nem todos eles vão cair. Ainda tínhamos Ewan, que
protegeríamos, que criaríamos contra o pai e o avô dele.
— Mas, então, por que estou me sentindo como se tivéssemos
sido derrotados? — sussurrou Luc. — Por que isto não parece uma
vitória? Eu quero que eles morram. Quero causar o máximo possível
de dor neles. Decapitação é rápido demais. Quero vê-los sofrer. Mas
isso faz com que eu seja melhor do que eles?
— Você não tem nada a ver com eles, filho — murmurou
Jourdain.
Cartier apoiou os cotovelos nos joelhos e olhou para o chão.
Mas quando voltou a falar, sua voz estava firme:
— Os Lannon roubaram minha irmã e minha mãe. Nunca vou
saber como era o som da voz da minha irmã. Nunca vou saber
como é ser abraçado e amado pela minha mãe. Sempre vou sentir a
perda delas, como se uma parte minha tivesse desaparecido. No
entanto… minha própria mãe era uma Lannon. Ela era Líle Hayden,
filha de um nobre Lannon. — Ele olhou para Jourdain, para Luc,
para mim. Fiquei surpresa com a confissão. — Não acho que a
justiça, no momento, siga uma linha reta bem definida. Sofremos
com nossas perdas, mas o povo daqui também sofreu. Pelo amor
de todos os deuses, Keela Lannon, uma menina de doze anos que
sofreu maus-tratos do pai, está prestes a ser decapitada ao lado
dele porque as pessoas se recusam a escutá-la, se recusam a olhar
para ela, são incapazes de distingui-la dele.
Luc fungou para conter as lágrimas, mas estava calmo, ouvindo
Cartier. Assim como Jourdain, que o observava com um brilho nos
olhos.
— Se acho que Declan merece ser decapitado? — perguntou
Cartier, estendendo as mãos. — Não. Eu preferia ver todos os ossos
de Declan serem quebrados, um a um, lentamente, até ele morrer,
do mesmo jeito que fez com minha irmã. E não sinto remorso por
admitir isso. Mas talvez, mais do que o que eu sinto, o que eu quero,
precise me contentar sabendo que a justiça foi feita hoje. O povo
falou e decidiu o destino de uma família que finalmente foi
responsabilizada. Todos nós voltamos à nossa pátria. Nos próximos
dias, Isolde Kavanagh será coroada rainha. A única coisa que
podemos fazer, no momento é seguir em frente. Todos nós vamos
assistir à decapitação dos Lannon. Vamos coroar Isolde. E, depois,
vamos decidir o que fazer com um povo que agora está sem lorde e
lady.
As palavras de Cartier nos atingiram e voltamos a ficar em
silêncio. Ele era metade Lannon, mas isso não mudava a forma
como eu o via. Pois eu era metade Allenach. Nós dois vínhamos de
linhagens traiçoeiras. E se examinássemos mais a fundo nosso
coração, todos encontraríamos trevas dentro dele.

Dei um beijo no rosto de Jourdain e Luc, fiz um carinho delicado no


ombro de Cartier e fui para a cama pouco depois da meia-noite.
Meu corpo exigia que eu me deitasse e tentasse dormir, mas,
principalmente, eu queria escapar da realidade só por uma hora de
sonhos felizes.
Já estava cochilando quando ouvi a comoção no corredor.
Sentei-me e pisquei em meio à escuridão. Estava tentando sair
da cama quando minha porta particular se abriu de repente e Luc
apareceu.
— Rápido, irmã. A rainha convocou uma reunião nos aposentos
do nosso pai — avisou ele, apressando-se a acender minha vela.
Peguei minha espada e recuperei a voz ao sair atrás dele pelo
corredor, de arma desembainhada na mão e com a alça da camisola
caindo pelo ombro.
— O que foi? O que aconteceu?
Jourdain e Cartier estavam nos aposentos do meu pai,
esperando. Eu e Luc nos juntamos a eles, e tentei acalmar a
respiração.
Antes que eu pudesse formular mais alguma pergunta, Isolde
entrou no cômodo, ainda com o vestido que havia usado no
julgamento, com uma lanterna na mão, cercada por dois de seus
guardas. Sua expressão era grave, com um olhar terrivelmente
sombrio.
— Sinto muito por acordá-los — sussurrou ela para nós quatro,
em meio às sombras frias e à luz trêmula.
— O que aconteceu, Isolde? — perguntou Jourdain.
Isolde baixou os olhos para sua vela, como se não suportasse
olhar para nós.
— Declan e Keela Lannon fugiram da masmorra.
— O quê? — exclamou Luc, porque os demais tinham ficado
sem voz.
Isolde respondeu ao nosso espanto com um olhar enojado.
— Acredito que tenham fugido há uma hora. Ainda estão
foragidos.
— Como? — perguntou Jourdain.
Isolde não falou nada, mas olhou para Cartier, que olhou para
mim. Nossos pensamentos se alinharam como a lua ao cobrir o sol
e projetaram uma grande sombra entre nós.
Ewan.
Cartier se virou e saiu às pressas pelo corredor até sua porta.
Fui atrás dele em seus aposentos. Vi os cobertores e o travesseiro
embolados no divã, onde Cartier estava dormindo. E senti as mãos
frias como gelo ao segui-lo para o quarto, o cômodo onde Ewan
deveria estar escondido.
Lá estava ele, dormindo na cama. Pelo menos foi o que
imaginei, até que Cartier arrancou com violência os cobertores e
revelou um travesseiro posicionado estrategicamente no lugar onde
deveria estar o corpo de Ewan.
Fui até a janela, que estava aberta: a via de acesso original de
Ewan ao castelo. Não conseguia sentir as mãos, mas ouvi o som
metálico da espada que eu segurava caindo no chão. Passei por
cima do aço e olhei para a noite, para o céu salpicado de estrelas,
incluindo minha própria constelação.
— Não, não.
Era a voz de Cartier, a negação dolorosa de Cartier.
Era o som de meu próprio coração, de minha própria recusa em
acreditar. Devia haver alguma explicação. Devia ser um engano.
Mas cheguei à verdade primeiro.
Virei-me. E quando vi Cartier se prostrar de joelhos diante de
mim e apertar o volume de cobertores, reconheci o que acontecera.
Também me ajoelhei ao lado da espada caída, porque, de
repente, não consegui continuar de pé.
O que foi que fizemos?
— Brienna, Brienna…
Meu nome era a única coisa que Cartier conseguia sussurrar,
repetidamente, conforme a verdade nos soterrava.
Encarei-o nos olhos. Cartier estava paralisado, mas eu
fumegava.
Ewan Lannon nos enganara.
A ARMADILHA
18

SIGA A CORRENTEZA

Cartier

Foi impossível dormir naquela noite.


Depois que me dei conta de que havia sido enganado por uma
criança, Luc e Brienna começaram a explorar mapas da cidade para
examinar possíveis rotas de fuga, enquanto eu acompanhava a
rainha e Jourdain até a masmorra, armados com tochas e espadas,
seguidos de perto pelos guardas da rainha. Eu respirava com
dificuldade quando terminamos de percorrer os três andares, e o frio
no andar mais baixo da fortaleza era tão intenso que parecia que
tínhamos entrado em água congelante.
Isolde nos guiou rapidamente à cela de Keela. A porta estava
escancarada, e as velas ainda bruxuleavam na mesa. Olhei para o
espaço vazio, ainda incapaz de acreditar que aquilo havia
acontecido.
A rainha nos conduziu mais adiante, sem falar nada, até onde
dois guardas jaziam no próprio sangue, com a garganta cortada. De
jeito nenhum Ewan matara aqueles homens, fiquei repetindo para
mim mesmo. A porta também estava escancarada, como uma boca
paralisada durante um bocejo. Havia outros dois guardas mortos na
entrada, sobre um lago escuro de sangue.
Isolde se ajoelhou e tocou de leve o rosto pálido deles. Foi nesse
momento que escutei — um barulho fraco de correntes, um eco de
movimento dentro da cela de Declan.
A rainha também escutou e continuou ajoelhada, imóvel.
Levantei a mão, em um pedido silencioso para que ela esperasse,
peguei minha tocha e minha espada e entrei na cela.
Não podia negar que desejava fervorosamente que fosse Ewan.
Mesmo depois da dor da traição, eu queria que fosse ele.
O que encontrei foi uma pessoa vestida com véus pretos, de
rosto completamente coberto, com o pulso direito preso em um dos
grilhões de Declan, acorrentada à parede.
Parei e observei a pessoa, a varre-ossos, com genuína surpresa.
Por sua vez, a pessoa parou de se debater e aproximou os joelhos
do peito, como se fosse possível se encolher até desaparecer.
— Quem é essa? — perguntou Jourdain, chegando ao meu lado.
Esperei até Isolde entrar também na cela. Nós três formamos um
arco, olhando em silêncio para a pessoa.
— A varre-ossos — informei. — Vi você outro dia, nos túneis.
A pessoa não se mexeu. Mas reparei que o véu sobre seu rosto
subia e descia com a respiração nervosa.
Isolde embainhou a espada e se ajoelhou. Com uma voz suave,
perguntou:
— Você pode nos dizer o que aconteceu aqui? Como Declan
fugiu?
A pessoa ficou calada. Ela começou a se debater com o grilhão
e a puxar a mão direita com tanta força que vislumbrei o metal lhe
cortar a carne. Vi de relance uma pele clara quando a manga
balançou; sangue brotou no pulso. Ela era magra como Ewan. Sua
mão era fina e coberta de sujeira. A imagem me encheu de uma
angústia indescritível.
— Por favor. Precisamos da sua ajuda… — começou Isolde,
mas sua voz minguou. Ela olhou para mim e para Jourdain e disse:
— Peçam para meus guardas acharem a chave desta cela e
trazerem materiais de escrita.
Jourdain foi cumprir a ordem antes de mim, e, enquanto
esperávamos, olhei para meu nome gravado na parede, brilhando à
luz das tochas.
Aodhan.
Tive que afastar o olhar, como se meu próprio nome tivesse
causado aquele desastre, como se eu tivesse provocado tudo
aquilo.
E talvez tivesse mesmo, ao convencer Isolde a poupar Ewan.
Um dos guardas trouxe uma chave, um pedaço de pergaminho,
uma pena e um pequeno frasco de tinta, que entregou para a
rainha. Ainda de joelhos, Isolde se aproximou cuidadosamente da
varre-ossos.
— Vou soltar você — sussurrou a rainha. — Depois, preciso de
sua ajuda. Você pode escrever o que aconteceu hoje?
A pessoa fez um gesto brusco com a cabeça — foi um choque
para mim o fato de que ela não falava, de que Isolde já sabia
daquilo assim que entrara na cela.
Isolde se aproximou e enfiou a chave no grilhão. Percebi que
Jourdain ficou tenso, e pressenti que ele estava prestes a avançar,
que não confiava naquela pessoa. E eu sabia que qualquer mínimo
movimento brusco feito na direção dela arrebentaria esse frágil fio
de confiança. Segurei-o discretamente, instando-o a esperar, a
deixar Isolde cuidar da situação. Jourdain olhou para mim
praguejando com o olhar, mas continuou quieto e parado.
O grilhão se soltou e caiu, e a varre-ossos recuou um pouco,
como se a presença de Isolde fosse intimidadora.
— Você viu quem soltou Declan? — perguntou Isolde, abrindo o
frasco e mergulhando a pena na tinta.
A pessoa não se mexeu.
A rainha ofereceu-lhe a pena, colocando delicadamente o papel
diante da figura.
Essa pessoa não sabe de nada, pensei em falar. Precisamos
correr, já perdemos tempo demais aqui.
— Isolde… — Jourdain estava a um suspiro de expressar
exatamente o que eu pensava.
Mas Isolde o ignorou. Sua atenção estava completamente
voltada para a pessoa encoberta diante de nós.
Ela finalmente pegou a pena. Sua mão pingava sangue e tremia
conforme começava a escrever.
Esperei, forçando os olhos para tentar decifrar o que a pessoa
estava escrevendo. A letra era horrível — jamais conseguiríamos ler
aquele relato. Contudo, acabei embainhando a espada, me ajoelhei
e fui para o lado de Isolde, onde conseguiria enxergar melhor. Uma
a uma, devorei as palavras, devorei-as como se fosse minha última
refeição.
Ewan veio atrás da irmã. Ele me pediu para distrair os guardas
enquanto ele a soltava da cela. Já estava com a chave mestra, mas
não sei como a obteve. Fiz o que o garoto queria: distraí os guardas,
que estavam na cela de Declan prestes a servir o jantar dele. Mas
um dos guardas ficou desconfiado. Eles ouviram um barulho no
túnel — a porta de Keela. Saíram para investigar. Foi aí que vi
Fechin, o chefe dos guardas. Ele destrancou a porta de Declan e
entrou. Eu não sabia o que ele estava fazendo, até que os dois
saíram. Fechin soltou Declan e foi quando ele me viu, nas sombras.
Não consegui fugir. Ele me arrastou para dentro da cela e me
prendeu em seu lugar. Só escutei quando ele foi embora. Ouvi uma
briga, o som de corpos caindo no chão. Ouvi Ewan e Keela gritarem.
Ouvi Ewan berrar: “Eu sou Morgane agora!” Depois disso, ficou tudo
quieto. O silêncio durou um tempo, até que o segundo turno de
guardas chegou e descobriu que os prisioneiros tinham fugido.

Eu respirava com força quando terminei de ler o relato. Quase me


dobrei de alívio, minha força quase se derreteu, quando vi que Ewan
só tinha vindo atrás da irmã. Que Ewan não tivera participação na
fuga de Declan. Que Ewan me escolhera em detrimento do próprio
pai.
— Você faz alguma ideia de como Declan e as crianças fugiram
da masmorra? — perguntou Isolde. — Porque eles não passaram
pelos portões.
A pessoa mergulhou a pena na tinta e, vagarosamente,
escreveu: seguiram a correnteza.
— Seguiram a correnteza? — repetiu Isolde. — O que isso
significa?
— Tem um rio que corre por baixo do castelo e atravessa a
masmorra — expliquei, lembrando o som distante das águas que
havia escutado. Olhei para a varre-ossos e perguntei. — Você pode
nos levar até lá?
Ela assentiu e se levantou devagar.
Fomos conduzidos por um corredor, e por outro, e a passagem
foi ficando cada vez mais estreita e baixa. Até que deu em uma
caverna tão inesperada que podíamos ter pisado em falso na
beirada e caído na água. Paramos e estendemos as tochas para
iluminar. Vi que a pedra embaixo de mim estava manchada de preto,
com anos de sangue acumulado. E, adiante, estava o rio, correndo
pela escuridão. Não era largo, mas dava para ver que era profundo
e turbulento.
— Eles desceram com a correnteza — disse Isolde, incrédula. —
É possível sobreviver a isto?
— Se tem alguém capaz de sobreviver, é Declan. — Jourdain se
aproximou o máximo possível da borda.
— O rio vai levá-los até o mar — declarei, sentindo o coração
começar a martelar. — Precisamos ir para a orla. Já.
Virei-me e procurei a varre-ossos para agradecer por ter nos
guiado.
Mas não havia nada além de sombras e frio no ar vazio onde ela
outrora esteve.

As estrelas estavam começando a se dissipar na alvorada quando


Isolde, Jourdain, os guardas e eu chegamos ao litoral maevano. A
cidade de Lyonesse ocupava um cume, onde o mar encontrava a
terra. Durante séculos, as ondas haviam açoitado a pedra calcária
do paredão da orla, sempre tentando vencer, sem sucesso, a
grande muralha que mantinha os elementos da natureza afastados.
Era a muralha que protegia a cidade contra as profundezas. Mas o
rio subterrâneo levaria Declan direto para a baía, até o mar. Ele
fugiria por uma pequena brecha nesse paredão natural. Parecia
quase impossível, mas essa terra fora construída à base de desafios
e dificuldades intransponíveis. Ultimamente, nada me surpreenderia.
Meu maior medo era que Declan e as crianças tivessem seguido
a correnteza até a baía e imediatamente embarcado em um navio
no porto, e que fosse tarde demais para capturá-los. Eles poderiam
navegar para o oeste, até as terras gélidas de Grimhildor. Ou
poderiam ir para o sul, até Valenia ou Bandecca. Talvez nunca os
encontrássemos.
Vi o mesmo receio em Jourdain quando nos aproximamos do
porto, onde barcos e navios balançavam placidamente nos
atracadouros. Afinal, fora assim que ele e Luc haviam escapado 25
anos antes. Fora assim que Braden Kavanagh e Isolde haviam
escapado. Que meu pai e eu havíamos escapado. Um capitão
Burke deixara que nós seis embarcássemos enquanto Gilroy
Lannon nos caçava no norte, no centro de nossos territórios. Bastou
um homem corajoso e seu navio para conseguirmos a liberdade.
— Confira os registros de saída — murmurou Isolde para
Jourdain enquanto examinávamos o cais.
Parei e olhei para o horizonte. O sol nascente traçava um rastro
dourado no mar. A água estava tranquila naquela manhã, calma.
Não havia qualquer sinal de navio, nenhuma sombra distante de
mastros ou velas.
Virei meu olhar para o resto da baía. A maré estava baixa,
expondo a areia e a base do paredão de pedra calcária.
Comecei a andar até ele, rápido, mais rápido, até correr. Ouvi
Isolde gritar para mim, mas eu não podia tirar os olhos da areia, das
pegadas profundas, porque a maré estava subindo, começando a
cobri-las. Cheguei até elas e as marcas eram nítidas para mim.
Eram as pegadas de Ewan, eu tinha quase certeza. E havia outra
série de pegadas ao lado. Keela. E também as de Declan, como se
ele tivesse sido o último a sair da água. O príncipe era um homem
grande e, na pressa, havia esmagado a areia. Pelo visto, tinha
segurado e arrastado os filhos.
As pegadas não iam na direção do porto.
Parei de andar, minhas botas se afundaram na areia, e a água
começou a molhar meus tornozelos.
— Aodhan! — chamou Isolde.
Ouvi-a correr até mim em meio ao som das ondas.
Meus olhos seguiram as pegadas até o paredão. E subiram pela
pedra calcária, para a cidade no alto, que começava a acordar.
Isolde finalmente chegou ao meu lado, arfante, com o cabelo
bagunçado pelo vento.
— O que foi? O que descobriu?
Não podia dizer. Ainda não. Minha mente fervilhava com as
possibilidades, e segui as pegadas até o paredão, conforme a maré
já subia com uma rapidez preocupante. Achei uma fenda na pedra
para me segurar, e outra. Comecei a escalar o paredão, encaixando
os dedos e a ponta das botas em cada fresta.
Não me atrevi a subir mais, mas me segurei no paredão e
contemplei a altitude assustadora e as nuvens que cruzavam o céu.
Seria possível?
Soltei-me e pulei de volta para a areia e a água, sentindo um
impacto doloroso nos tornozelos. Andei até onde Isolde e seus
guardas aguardavam, e Jourdain veio correndo do porto para se
juntar a nós.
— Conferi os registros — disse Jourdain. — Nenhum navio
chegou ou saiu ontem à noite, milady.
— Eles não saíram de navio — anunciei.
— Então onde estão? — rebateu Jourdain.
Olhei de novo para a baía. A maré já engolira praticamente toda
a areia.
— A correnteza os trouxe até algum ponto aqui. Declan saiu da
água com as crianças e as arrastou até o paredão.
— O paredão? — Os olhos de Jourdain correram pela pedra. Ele
estava boquiaberto. — Você só pode estar brincando.
Mas Isolde continuou me encarando e acreditou em cada
palavra.
Ergui os olhos de novo, para o céu, para a cidade de Lyonesse,
para o castelo que repousava no topo da colina como um dragão
adormecido.
Aonde seu pai levaria vocês, Ewan?
O dia estava clareando. Declan provavelmente já teria
encontrado um esconderijo, até a escuridão permitir que ele se
deslocasse sem ser visto. Minha única esperança era que Ewan
desse um jeito de ser encontrado.
Eu sou Morgane agora…
— Declan escalou o paredão com as crianças nas costas —
falei, olhando para Isolde. — Ele está na cidade.
Não perdemos tempo. Voltamos às pressas para o castelo, e
minha mente se lançou para todos os lados. Eu estava tão distraído
que só me dei conta dos Halloran no pátio quando estávamos quase
em cima deles.
Lady Halloran e Pierce pareciam concentrados na própria
conversa até ela nos ver. Não havia como disfarçar nossa pressa e
o fato de que eu e a rainha estávamos ainda meio encharcados por
causa da busca na orla.
— Lady Kavanagh! — exclamou lady Halloran, vindo nos
interceptar no piso de pedra.
Ela estava vestida de dourado e azul-marinho, as cores de sua
casa, e seu vestido era tão trabalhado que conseguia até rivalizar
com a moda hiperbólica de Valenia.
— Lady Halloran — respondeu Isolde, educadamente, tentando
manter o passo acelerado.
— Aconteceu alguma coisa?
Isolde desacelerou, mas não foi para atender a lady Halloran, foi
para lançar um olhar para mim e Jourdain.
— Por que milady diria isso? — perguntou Isolde. — Lorde
MacQuinn, lorde Morgane e eu só saímos para tomar um ar antes
da reunião do conselho.
Ela estava indicando que um de nós fosse buscar Luc, Brienna e
o pai dela. E, pela maneira como Jourdain estava parado ao lado de
Isolde, olhando feio para lady Halloran, como se seus pés tivessem
fincado raízes no chão, entendi que eu deveria ir embora para
preparar o conselho.
Só que Pierce havia se aproximado para se juntar a nós. Não
consegui disfarçar minha antipatia por ele e tive que continuar ali um
pouco mais, para vigiá-lo. Seus olhos estavam fixos em Isolde, na
luz da Pedra do Anoitecer, mas ele deve ter sentido que eu o
encarava. Seus olhos se voltaram para mim quando ele parou ao
lado da mãe e ali permaneceram, avaliando o tamanho da ameaça
que eu representava. Provavelmente não passei a impressão de ser
perigoso, porque ele bufou, sorriu, e decidiu me ignorar e voltar a
encarar a rainha.
— Queria solicitar uma conversa em particular com milady —
pediu lady Halloran. — Talvez hoje, mais tarde? Quando você tiver
tempo?
— Sim, certamente, lady Halloran — respondeu Isolde. —
Podemos conversar em algum momento hoje à tarde, depois da
reunião do meu conselho. — Era mais uma indicação para mim, ela
estava ficando sem paciência, e dessa vez saí sem falar nada.
Fazia um silêncio preocupante no castelo. Havia guardas
armados em todos os cantos, mas o silêncio pesava no ar, uma
tentativa de manter a ordem e esconder o fato de que três Lannon
haviam fugido. Porém, com o tempo, a informação vazaria, e eu não
sabia como os fidalgos reagiriam à notícia. E tampouco sabia o que
os partidários dos Lannon fariam.
Estava apreensivo no caminho até os aposentos de Jourdain,
onde Brienna e Luc haviam ficado para estudar mapas da cidade e
traçar rotas de fuga em potencial que Declan poderia usar. Eles não
estavam mais lá, e parecia que já fazia algum tempo que o cômodo
ficara vazio, então fui aos aposentos dela e, depois, aos de Luc.
Não os encontrei, então voltei para o corredor e fui para o salão de
jantar, imaginando que talvez eles tivessem ido comer.
Topei com o pai de Isolde no caminho. Ele parecia exausto:
havia sombras arroxeadas ao redor de seus olhos, e o cabelo
branco ainda estava com as tranças do dia anterior. Sabia que ele
havia se ocupado com uma busca discreta pelo castelo atrás de
Fechin, o chefe dos guardas que parecia ter desaparecido, e alguns
guardas do castelo estavam ao redor, esperando a próxima ordem.
Braden Kavanagh inclinou a cabeça para mim, e vi a pergunta
cheia de esperança em sua expressão. Vocês os encontraram?
Balancei a cabeça.
— Reunião do conselho, imediatamente. Estou tentando achar
os MacQuinn.
— Estão na sala dos arquivos, um andar para baixo, na ala leste.
Meneei a cabeça, e fomos cada um para um lado: Braden, para
investigar as despensas; eu, a sala dos arquivos. Encontrei Luc e
Brienna sentados a uma mesa redonda, diante de tabelas, mapas e
documentos espalhados como se tivessem sido atingidos por uma
forte nevasca. Brienna continuava com a mesma camisola. Sua
trança já estava se desfazendo e ela escrevia algo que Luc falava.
Os dois ergueram os olhos quando entrei, com a mesma
esperança no rosto, de que eu houvesse chegado com uma boa
notícia. Fechei a porta, me aproximei deles e Brienna entendeu
minha expressão. Ela abaixou a pena, derrotada, e Luc sussurrou:
— Por favor, me diga que vocês os capturaram.
— Não.
Meu olhar saiu deles e foi para o arco aberto, uma passagem
que saía para uma colmeia de salas de depósito. Dava para ver
partes das estantes de arquivos, abarrotadas de pergaminhos,
tomos e registros tributários.
Brienna leu meus pensamentos de novo.
— Este cômodo é seguro.
— Tem certeza?
Ela me encarou.
— Tenho. Luc e eu somos as únicas pessoas aqui.
Puxei uma cadeira e me sentei de frente para eles, sem
perceber o tamanho do meu cansaço. Tirei um instante para
esfregar o rosto; ainda dava para sentir o cheiro da masmorra nas
palmas das mãos, aquela escuridão úmida e bolorenta.
Comecei a contar tudo: a varre-ossos, a correnteza subterrânea
e a busca na orla.
Brienna se recostou na cadeira, com uma mancha de tinta no
queixo, e disse:
— Então Ewan não traiu você, como imaginamos?
— Não — respondi, incapaz de disfarçar meu alívio. — Ele me
desobedeceu, o que é compreensível, para salvar a irmã depois que
não consegui fazê-lo. E acho que tanto ele quanto Keela estão
correndo sério perigo agora.
— Você acha que Declan faria mal a eles? — perguntou Luc,
horrorizado.
— Acho.
Inquieta, Brienna se remexeu na cadeira. Fiquei olhando quando
ela começou a organizar a papelada diante de si, e minha
curiosidade se inflamou.
— O que é isso?
— Bom — começou —, Luc e eu passamos a pensar como os
Lannon. Estávamos examinando os mapas, pensando: aonde
Declan iria? Se ele ainda estivesse na cidade, onde se esconderia?
Não sabíamos, obviamente. Mas isso nos fez pensar nos planos da
nossa revolução.
— Nós tínhamos refúgios — interveio Luc. — Residências e lojas
que sabíamos que nos abrigariam de última hora caso tivéssemos
algum problema.
— Exato — concordou Brienna. — E como sabemos que os
Lannon têm simpatizantes, o clã da meia-lua, imaginamos que
poderíamos tentar descobrir a localização deles, considerando que
Declan vá pedir ajuda.
— Mas como vocês descobriram essas localizações? —
perguntei.
— Esquadrinhar um mapa não basta — continuou Brienna. — E
não temos tempo de ir de porta em porta para investigar cada casa
de Lyonesse e procurar pulsos tatuados. Precisamos de algum fio
condutor. Luc e eu decidimos analisar os registros tributários de
Gilroy Lannon para ver com quem ele pegava leve. Acho que esse é
o jeito mais rápido de começar.
— Deixe-me dar uma olhada — murmurei, pegando a lista.
Eram onze estabelecimentos, incluindo tavernas, prateiros e um
açougue. Todos pertenciam a membros da casa Lannon, e quatro se
situavam na parte sul da cidade, onde eu achava que Declan estava
no momento. Meu coração começou a pular.
— Esses lugares todos ganharam isenções tributárias ridículas
— disse Brienna. — E acredito que seja por causa de algum acordo
com Gilroy.
Olhei para ela e para Luc.
— Isso é incrível. Precisamos conversar com Isolde e mostrar o
que vocês descobriram.
— Será que é melhor fazermos a reunião aqui, para
continuarmos examinando os registros? — sugeriu Brienna,
grunhindo ao se levantar. — Mas estou faminta. Não sei por quanto
tempo mais consigo planejar sem chá e comida.
— Que tal vocês arrumarem a mesa enquanto mando trazerem o
café da manhã? — disse Luc, indo para a porta. — E vou falar para
a rainha e meu pai virem para cá.
— Ótimo — assentiu Brienna antes de Luc sair.
Mas ela deixou a arrumação da mesa para mim, se espreguiçou
e foi para a única janela do cômodo inteiro, uma frestinha minúscula
de vidro. A luz do dia tocou no linho de sua camisola e a iluminou.
Quando olhei para ela, esqueci a lista que tinha na mão, esqueci até
que Declan Lannon existia.
Meu silêncio a fez se virar e olhar para mim. E não sei qual era a
expressão no meu rosto, mas ela veio e tocou meu cabelo.
— Está tudo bem? — sussurrou ela.
Retomei a tarefa de recolher a papelada e os documentos, e os
dedos dela se afastaram de mim.
— Vou ficar bem assim que resolvermos isto.
Brienna me observou por um instante, estendeu as mãos para a
mesa e ajudou a juntar os registros. Sua voz quase se fundiu ao
som dos papéis sendo recolhidos, mas a ouvi dizer:
— Vamos encontrá-los, Cartier. Não perca a esperança.
Dei um suspiro e desejei ter o mesmo otimismo.
Recostei-me na cadeira e olhei para ela, que estava de pé na
minha frente. Ainda havia um fiapo de luz do sol passando por sua
camisola e pintando seu cabelo de dourado. Brienna parecia uma
visão de outro mundo, como se não pertencesse a este lugar. Foi
angustiante, e baixei os olhos para o chão, onde os pés descalços
dela pisavam na pedra.
— Não está com frio? — sussurrei, só para conseguir engolir o
desejo que eu não me atrevia a expressar.
Ela sorriu, achando graça.
— Agora que você falou, estou, sim. Não tive tempo de pensar
nisso antes.
Brienna se sentou ao meu lado e estendi meu manto forrado de
pele em cima de suas pernas, e ficamos em um silêncio confortável
à espera dos outros.
O café da manhã chegou primeiro, e me dei por satisfeito com
uma xícara de chá, enquanto Brienna enchia o prato com queijo,
presunto curado e biscoitos. Ela já havia comido metade do prato
quando Isolde, Jourdain, Luc e Braden se juntaram a nós, gratos
pela comida. Estávamos todos cansados e acabados, mas aquela
refeição compartilhada deu uma chance de nos recuperarmos.
Fiquei escutando conforme Brienna e Luc explicavam a lista, que
deixou a rainha com uma aparência mais animada. Isolde a leu, e
abrimos um mapa para colocar uma moeda em cima de cada um
dos onze locais.
— Devíamos começar com os quatro estabelecimentos no sul —
sugeri. — Se Declan tiver mesmo escalado o paredão, ele entrou na
cidade em algum lugar nessa parte.
— Concordo — disse Brienna. — Acho que os lugares mais
prováveis são esta taverna ou este albergue. — Ela os indicou no
mapa. — Acho que dois de nós deveríamos nos infiltrar neles como
hóspedes e pintar uma meia-lua temporária no pulso só para o caso
de alguém perguntar. E provavelmente é melhor que sejamos Luc e
eu, já que vocês seriam reconhecidos logo.
— Não, de jeito nenhum — interveio Jourdain, quase antes de
Brienna terminar de falar. Ele estava com uma expressão pálida de
descontentamento, mas Brienna não exibiu qualquer sinal de que se
abalaria com a resistência. — Não quero que você se arrisque
nesses lugares perigosos, Brienna.
— E por acaso já não me arrisquei em lugares perigosos, pai? —
questionou ela.
Jourdain ficou quieto, como se estivesse avaliando possíveis
respostas e tentasse encontrar a que mais fosse capaz de dissuadi-
la. Depois de um tempo, ele murmurou:
— Todas as antigas lendas acabam do mesmo jeito, Brienna.
Assim que a heroína está a um passo da vitória, ela sucumbe.
Sempre. E aqui estamos, a um passo de colocar Isolde no trono.
Não quero ver um de nós morrer quando estamos prestes a vencer.
— Seu pai tem razão — falei, e Brienna virou os olhos para mim,
parcialmente fechados de inquietação. — Mas o pior já aconteceu,
MacQuinn. Declan Lannon está à solta nas ruas, e ele tem ajuda.
Esta situação tem potencial para fugir rapidamente do controle.
Precisamos cuidar disso agora, e da melhor forma possível.
— Então vamos mandar meus filhos para esses lugares
corruptos — disse Jourdain, ligeiramente sardônico. — E depois?
— Vamos sondá-los para ver se conseguimos encontrar Declan
— respondeu Luc.
— E como vão capturá-lo? — insistiu Jourdain, ainda bravo. — O
príncipe é um homem forte e poderoso. Escalou um paredão com
duas crianças nas costas, pelo amor dos deuses!
Isolde abaixou a xícara de chá, e todos olhamos para ela.
— MacQuinn e Morgane, posicionem forças de prontidão na
frente desses locais. Se Lucas e Brienna encontrarem Declan, eles
darão um sinal e vocês avançarão, preparados para capturá-lo.
Quero que ele seja capturado com vida e que as crianças não sejam
feridas.
— Que forças, milady? — perguntei. — A maioria dos nossos
homens e mulheres de combate voltou para casa.
— Vou conversar com lorde Burke — respondeu Isolde. — Ele
lutou conosco no dia do levante, deve ter uma boa quantidade de
homens e mulheres capazes, e talvez consiga guardar segredo
quanto ao motivo por que estou precisando.
— Outra questão quanto a capturar Declan — disse Braden
Kavanagh, que havia permanecido em silêncio até então. — Acho
que deveríamos usar uma flecha envenenada. Designar um arqueiro
com o único propósito de atirar na perna dele e deixá-lo
inconsciente. Assim, poderemos prendê-lo e transportá-lo.
— Acho sensato — concordou a rainha. — Aodhan, você
consegue encontrar um veneno capaz disso, de atordoar um
homem do tamanho de Declan sem matá-lo?
Assenti, mas estava incerto quanto ao tempo que tínhamos para
esse plano. Sentia uma urgência incessante de agir rápido, de vestir
minha armadura e sair imediatamente, antes que Declan tivesse
tempo de fazer algo.
— Vamos ter que esperar até o anoitecer — declarou Isolde,
para minha grande decepção. — Se nossos esforços se provarem
inúteis hoje, anunciarei amanhã o adiamento das execuções. Acima
de tudo, não quero que se espalhe a notícia da fuga de Declan,
então precisamos ser o mais discretos possível. A escuridão será
nossa maior aliada. Enquanto isso, Jourdain e eu vamos solicitar
combatentes a lorde Burke. Aodhan vai encontrar o veneno para a
flecha. Brienna e Luc vão se preparar para se infiltrar na taverna e
no albergue. Meu pai vai continuar a busca pelo guarda traidor da
masmorra. Faremos mais uma reunião nos meus aposentos
particulares com a desculpa de jantar, para não despertar suspeitas
entre os outros fidalgos.
Ficamos calados, assimilando as ordens.
— Estamos de acordo? — perguntou Isolde.
Um a um, pusemos a mão no peito para expressar submissão.
— Ótimo — disse a rainha, terminando de beber o chá. Ela
afastou dos olhos uma mecha solta do cabelo ruivo e apoiou as
palmas das mãos na mesa. — Então vamos nos preparar para hoje
à noite, e torcer para que, quando a lua nascer, Declan Lannon já
esteja de volta à masmorra.
19

AO SINAL DA MEIA-LUA

Brienna

Estava nervosa quando me aproximei da taverna com Luc naquela


noite, um prédio de alvenaria decadente atochado entre duas
cervejarias. O telhado era recoberto de líquen e musgo e as janelas
estreitas piscavam com a luz de velas quando eu e meu irmão
chegamos, com o manto preto amarrado em volta do pescoço e o
capuz puxado sobre a cabeça. Tínhamos pintado uma meia-lua
temporária na parte interna do pulso. Por ordem de Isolde, tínhamos
também dois punhais ocultos no corpo. Não podíamos entrar
desarmados na taverna ou no albergue, nem sacar nossas armas e
provocar comoção. Isso se desse para evitar.
A uma rua de distância, Jourdain e Cartier esperavam dentro de
uma carruagem coberta, com vista para a porta da taverna. E, a
uma rua deles, havia uma tropa de guerreiros Burke. Eles
esperariam para ver se Jourdain sinalizaria para avançar. E Jourdain
esperaria para ver se Luc e eu sinalizaríamos a presença de Declan,
mediante um ramo aceso de fogobelo.
Tanto Luc quanto eu levávamos um pequeno buquê de ervas no
bolso do gibão. Cartier escolhera essa planta específica porque era
altamente inflamável e soltava faíscas azuis ao pegar fogo. Seria
difícil os homens não verem caso precisássemos acendê-las na rua.
Resisti à tentação de olhar para a carruagem atrás de nós, de
onde eu sabia que meu pai e Cartier me observavam entrar. Luc
segurou meu braço, em apoio, e adentramos a taverna como se
fosse um lago barrento.
O lugar era mal iluminado, e o ar fedia a homens sujos e cerveja
barata derramada. As mesas espalhadas pelo espaço não
combinavam entre si, e havia homens jogando baralho e bebendo
de canecos. Eu era uma das poucas mulheres no recinto e me
sentei ao lado de Luc a uma mesa afastada. Nervosa, apoiei as
mãos no tampo grudento e, depois, abaixei-as para o colo.
Tínhamos chamado atenção. Não combinávamos com aquele
lugar e parecíamos suspeitos com o capuz ainda na cabeça.
— Abaixe o capuz — sussurrei para Luc, atrevendo-me a
abaixar o meu e revelar o rosto.
Havia tomado o cuidado de passar delineador nos olhos e pó de
arroz nas bochechas. Também tinha decidido desfazer minha trança
para deixar o cabelo cair pelo lado direito do rosto.
Luc me imitou e, em seguida, lentamente apoiou o queixo na
mão, com os olhos semiabertos, como se estivesse entediado. Mas
reparei que ele estava observando cada pessoa dentro da taverna.
Uma menina jovem nos trouxe uma cerveja azeda, e fingi beber
enquanto passava os olhos pelo lugar. Havia um homem enorme
atrás do balcão, apoiado na madeira polida, encarando-me com um
ar desconfiado.
A parte interna do pulso dele tinha uma tatuagem escura. Meu
coração disparou quando reconheci a meia-lua.
Minha hipótese estava certa. Aquele era um covil de Gilroy. Mas
se Declan estivesse ali, onde seria? A taverna era um único cômodo
amplo, com só uma porta de cantos arredondados nos fundos, que
dava para o que eu imaginava ser o porão.
O taverneiro me viu flagrou encarando a porta. Ele se virou e
mexeu os dedos no ar, como se fosse algum sinal ameaçador.
— Acho melhor irmos embora — sussurrei para Luc.
— Acho que você tem razão — concordou meu irmão, também
sussurrando, na mesma hora em que um sujeito alto e magrelo, com
uma cicatriz irregular na testa, se aproximou de nós.
— Casas? — perguntou o sujeito, apoiando os punhos na mesa
e trepidando nossos canecos cheios.
— Lannon — disse Luc, sem hesitar. — Como você.
Os olhos dele passaram por nós dois, mas se fixaram em mim.
— Vocês não parecem Lannon.
Tanto Luc quanto eu tínhamos cabelo escuro. Mas eu havia visto
tudo que era cor de cabelo na Casa Lannon, incluindo as madeixas
ruivas de Ewan e o cabelo acobreado de Declan.
— Só queríamos tomar uma — falei, estendendo a mão para
pegar minha cerveja de modo que minha manga subisse só um
pouquinho no braço. O começo da minha meia-lua apareceu, e os
olhos dele foram direto para lá, como um cachorro atrás de um
osso. — Mas podemos ir embora, se você preferir.
Ele sorriu para mim, com dentes amarelos e gengivas podres.
— Desculpe a grosseria. Nunca vimos vocês dois antes. E eu
conheço a maioria do nosso pessoal.
Para meu horror, ele puxou uma cadeira e se sentou conosco à
mesa. Luc se enrijeceu e senti o pé dele encostar no meu, em sinal
de advertência.
— Diga, vocês são do norte ou do sul? — perguntou ele,
acenando para a servente trazer um caneco.
Tive que me esforçar ao máximo para não olhar para Luc.
— Norte, óbvio.
Não soube dizer se isso satisfez nosso companheiro Lannon,
que continuou me encarando e ignorou Luc por completo.
— Devia ter imaginado. Vocês têm cara de ser do norte mesmo.
A menina trouxe a cerveja dele, o que me proporcionou um
instante de trégua de seu olhar. Mas ele voltou a fixar os olhos em
mim e, enquanto bebia, disse:
— Estão aqui por ordem do Chifre Vermelho?
Chifre Vermelho.... Chifre Vermelho...
Ponderei acerca do codinome estranho, tentando adivinhar a
quem ele se referia. Oona Lannon tinha cabelo ruivo, assim como
Ewan. Será que estava falando dela? Será que, de alguma forma,
ela estaria transmitindo mensagens de dentro da masmorra?
— Se bem que ele gosta de manter as bonitas por perto —
continuou o sujeito, contrariado.
Então Chifre Vermelho era um homem.
— Na verdade, ele não nos mandou aqui — arrisquei-me a dizer,
bebericando a cerveja para disfarçar a voz trêmula.
O pé de Luc pisou com mais força no meu. Ele queria ir embora
antes que fôssemos desmascarados.
— Ah, é? — Nosso amigo Lannon fungou e coçou a barba. —
Que surpresa. Estávamos esperando notícias dele. Achei que talvez
fossem vir de vocês.
Com certeza Chifre Vermelho não era Declan...
Mas se fosse, então Declan não estava ali.
De qualquer jeito, meus dotes teatrais estavam quase no limite.
Eu conseguia sentir o tremor no rosto pelo esforço de manter a
compostura.
— Sinto muito, mas não temos nenhuma mensagem. Só
queríamos apreciar uma cerveja com a nossa gente — disse Luc.
O Lannon lançou um olhar irritado para Luc e olhou para mim de
novo. A camisa embaixo do meu gibão já estava praticamente
encharcada de suor. Tentei armar alguma saída, algo que não
parecesse grosseiro...
O taverneiro assobiou, e o Lannon na nossa mesa se virou.
Outros gestos com as mãos entre eles, e então nosso amigo
asqueroso se virou de novo e disse:
— Ele quer saber o nome de vocês.
Luc tomou um gole demorado de cerveja para tentar ganhar
tempo enquanto inventava algum. O que significava que eu tinha
que falar...
— Rose — improvisei, adaptando o nome da minha mãe,
Rosalie. — E este é meu marido, Kirk.
Ao ouvir a palavra “marido”, o Lannon murchou um pouco,
perdendo interesse em mim.
— Bom, fique à vontade e aproveite a cerveja, Rose — disse ele.
— Esta rodada é por minha conta.
— Obrigada — agradeci, pensando que de jeito nenhum haveria
uma segunda rodada.
Ele levantou o caneco para mim e obriguei-me a levantar o meu,
para brindar com o dele, e nos forcei a ficar mais dez minutos ali.
— Está bem, vamos embora — sussurrei para Luc depois de
fingirmos relaxar.
Luc me acompanhou. Acenamos com a cabeça para nosso
amigo Lannon, que jogava baralho em uma das mesas, e cheguei
até a levantar a mão para o taverneiro, para exibir minha meia-lua.
Eu e Luc saímos para a cobertura da noite tremendo da cabeça
aos pés e só paramos quando fomos envolvidos pelas sombras.
— Meus deuses — balbuciou Luc, apoiando-se no edifício mais
próximo. — Como conseguiu nos tirar daquela?
— Estudei a paixão de teatro por um ano — confessei, também
com a voz fraca. Estava com dificuldade para recuperar o fôlego. —
Eu morria de medo de subir ao palco na época, mas preciso avisar
mestre Xavier e Abree que melhorei drasticamente.
Luc deu uma risadinha meio delirante.
Apoiei-me na parede ao lado dele e ri, encarando as pedras para
aliviar a tensão nos meus ossos.
— Certo — disse meu irmão depois de se acalmar. — Vamos
para o próximo?
O albergue não ficava longe, só a duas quadras dali, e tinha uma
aparência externa ainda menos convidativa. Parecia que se
afundava no chão. Luc e eu descemos por uma série de degraus
desgastados até a porta de entrada, que era vigiada por um homem
fortemente armado.
Mostrei o punho para ele. Meu coração pulava enquanto eu
esperava e o guarda erguia meu capuz para olhar meu rosto.
— Está armada? — perguntou, deslizando os olhos pelo meu
corpo.
Hesitei por um segundo demais. Se eu mentisse, ele saberia.
— Tenho. Dois punhais.
Ele estendeu a mão. Fiquei com a sensação de que ele só pedia
as armas de quem não reconhecia.
— Você bem que podia deixar minha mulher ficar com os
punhais — disse Luc, logo atrás de mim, soprando meu cabelo
devido à proximidade.
Sabia o que ele estava insinuando. Eu era uma mulher prestes a
entrar em uma taverna provavelmente lotada de homens bêbados.
Se alguém merecia continuar armada, era eu. E o guarda me
observou por mais um instante, mas, por fim, acabou cedendo. Ele
gesticulou com a cabeça para a porta e me deixou entrar.
Demorei-me na entrada, tentando absorver o máximo possível
de ar limpo antes de mergulhar em fumaça e miasma de cerveja. Vi
Luc exibir o pulso, mas, quando ia se juntar a mim, o guarda o
pegou pela gola e o segurou.
— Ou ela entra com as armas, ou entra com você. Os dois, não.
Olhei para Luc, que tentava se manter calmo, porque nós dois
sabíamos que Isolde nos dera uma ordem explícita de levar armas
ocultas.
Vi a preocupação dele aumentar quando falei:
— Não demoro, amor.
O guarda deu uma risadinha, achando graça por eu preferir
armas a um marido, e entrei na taverna antes que Luc estragasse
nosso disfarce.
O albergue era maior do que eu imaginava. O salão principal
dava acesso a outros cômodos, alguns deles fechados com cortinas
de contas e vidro colorido. Escutei o retinir de louça, risos e
fragmentos de vozes quando comecei a circular pelas mesas,
tentando decidir aonde ir, onde me sentar. Havia também mais
mulheres ali, e percebi que eu não estava usando roupas
adequadas. Eu mais parecia uma assassina do que uma das
clientes sentadas às mesas, com sedas decotadas e rendas pretas.
Algumas delas me notaram, mas só deram um sorriso de boas-
vindas para mim.
Fui até o bar, paguei uma moeda por um caneco de mais cerveja
nojenta, perambulei pelos cômodos e afastei uma cortina de contas.
Acabei escolhendo um banco de canto, de onde eu podia ver
facilmente dois cômodos adjacentes, e inclinei o corpo para
observar os ocupantes.
Não o reconheci imediatamente.
Ele estava de costas para mim, e com o cabelo castanho solto
grudado no rosto, quando se levantou de uma das mesas. Havia
uma bolsa de couro pendurada no ombro dele, que só me chamou a
atenção porque me fez pensar em Cartier, que tinha uma muito
parecida.
O homem se virou, varreu languidamente o salão com o olhar
até pousá-lo em mim. Tinha queixo fino e uma verruga no alto da
bochecha. Nossos olhares se cruzaram antes que eu pudesse cobrir
o rosto, antes que pudesse me esconder.
Ele ficou paralisado, me encarando através de fiapos de fumaça,
com os olhos arregalados de medo. Era o guarda que me conduzira
pela masmorra alguns dias antes quando fui falar com Keela
Lannon, o chefe dos guardas que transitara com facilidade e
conhecimento pela masmorra do castelo.
O traidor que soltara Declan.
Fechin.
Fiquei sentada feito uma estátua, com os nós dos dedos
brancos, e retribuí o olhar. Não consegui pensar em mais nada além
de sorrir e erguer meu caneco para ele, cumprimentando-o como se
fôssemos amigos.
O guarda quase sumiu, de tão rápido que correu.
Levantei-me de um salto e corri atrás dele, derrubando todo o
conteúdo do meu caneco quando contornei mesas e cadeiras e fui
de cômodo em cômodo. Vi o cabelo dele assim que se enfiou no
cômodo adjacente, e atravessei violentamente a cortina de contas
para segui-lo. A essa altura, eu já havia chamado atenção, mas só
consegui pensar nas armas, nos batimentos do meu coração e no
traidor que eu perseguia pelas veias profundas da taverna.
Meu lado impetuoso insistia que eu o seguisse antes de perder
seu rastro. Meu lado lógico implorava que eu me ativesse ao plano
original, que era sair da taverna e acender o fogobelo na rua, para
que Cartier e os homens de lorde Burke avançassem.
Nessa fração de segundo, escolhi a primeira opção, porque
sabia que Ewan e Keela estavam por perto.
Perdi Fechin de vista em um corredor estreito, com portas
fechadas e escuras esculpidas em ambos os lados. Respirando com
esforço, pus a mão nas costas para puxar um dos punhais. Meus
olhos examinaram cada uma das portas: algumas tinham luz
tremulando pelas frestas, mordiscando a escuridão.
Tremia com expectativa quando escutei o estrondo.
Segui o som até o cômodo no fim do corredor e abri a porta com
um chute.
Era um quarto pequeno, vazio. Havia uma cama estreita com
cobertores amarrotados e uma bandeja de comida pela metade.
Mas, acima de tudo, havia um pedaço de papel rasgado no chão.
Ajoelhei-me e o peguei. Era metade da ilustração de princesa, a
mesma que Ewan me pedira para dar a Keela na masmorra.
Tinham acabado de sair dali. Declan e as crianças. Sentia as
sombras persistentes que aquele homem projetara nas paredes,
sentia o sal do mar e a imundície da masmorra.
Havia uma janela, escancarada para a noite. As velas do
cômodo se sacudiram freneticamente com a ventania súbita.
Corri para ela e pulei para um beco estreito cheio de lixo e, na
pressa, quase torci o tornozelo. Meus olhos escrutinaram a
escuridão à direita, até que o escutei:
— Senhorita Brienna! — gritou Ewan, e virei a cabeça para a
esquerda bem a tempo de ver Declan delineado pelo luar, a poucos
metros de distância, carregando Ewan e Keela nos braços.
Meu olhar cruzou com o do príncipe quando ele parou. Declan
riu, tentando me provocar a segui-lo, e sumiu pela absoluta
escuridão de um dos becos transversais, deixando para mim um
rastro de gritos abafados de Ewan e soluços de Keela.
— Luc! — berrei, na esperança de que ele me ouvisse da frente
da taverna, e saí correndo atrás de Declan.
O príncipe era um homem grande e forte — eu não era burra de
achar que conseguiria desafiá-lo com meus punhais —, mas
certamente perderia velocidade por correr com duas crianças. Meu
único desejo era resgatar Keela e Ewan. Se Declan fugisse,
paciência.
Mas no calor da perseguição, eu esquecera de Fechin.
O guarda brotou da escuridão na minha frente e acertou meu
pescoço com o braço. Caí de costas, com a laringe dolorida e sem
ar nos pulmões.
Fechin parou diante de mim. Arfei, desesperada para respirar,
incapaz de falar, e ele se agachou e deslizou seu dedo imundo pelo
meu braço, expondo minha meia-lua já parcialmente borrada.
— Você é espertinha — disse ele. — Vamos tomar mais cuidado
com você na próxima vez.
Fechin se levantou para me largar no beco, mas esquecera que
eu tinha um punhal.
Avancei para o corpo dele, que se afastava, cravei a lâmina em
sua panturrilha, puxei a arma para baixo em um corte brutal e
rasguei o músculo até o osso. Ele gritou e girou, e retribuiu o favor
com a bota no meu rosto. Ouvi meu nariz rachar quando voei para
trás de novo, sentindo uma explosão de dor nas bochechas. Caí nas
pedras do calçamento, viscosas de terra e dejetos, e ali fiquei, sem
conseguir respirar fundo, engasgando com meu sangue.
— Brienna! Brienna!
Só me dei conta de que estava perdendo a consciência quando
Luc me sacudiu com tanta força que bati os dentes. Foi a dor no
nariz que me despertou.
Abri ligeiramente os olhos e tentei distinguir o rosto nervoso do
meu irmão no escuro.
— Cr... As crian...
Minha voz não passava de poeira na garganta. Luc me pegou
nos braços e começou a me carregar pelo beco até a carruagem
onde Jourdain e Cartier esperavam. Os solavancos dos passos dele
me deixaram com o estômago embrulhado, então fechei os olhos e
reprimi a vontade de vomitar em sua camisa.
— Brienna? Brienna, o que aconteceu? — murmurou Jourdain,
apoiando-me nos braços.
— Eu... — Mais uma vez minha voz saiu em um chiado de ar e
dor.
Estava caída ao lado do meu pai. Cartier tinha se ajoelhado
entre as minhas pernas dentro da carruagem e me encarava com
olhos impiedosamente obscuros. Nas mãos dele, havia meu
sangue.
— Foi Declan que fez isso? — murmurou Cartier.
Meneei a cabeça.
— Mas você o viu?
Fiz que sim e segurei na frente da camisa dele, para empurrá-lo,
para fazê-lo sair.
A carruagem não estava andando, continuávamos estacionados
no beco. E Cartier pôs as mãos sobre as minhas, porque entendeu
o que eu estava tentando dizer. Era ele que devia liderar os homens
de Burke, e dava para ouvi-los gritando conforme vasculhavam cada
rua sinuosa ao redor, em busca do príncipe, que, mais uma vez,
fugira.
— Leve-a de volta para o castelo — ordenou Cartier para
Jourdain, com uma voz ao mesmo tempo branda e ríspida.
Nunca o ouvira falar daquele jeito e estremeci ao vê-lo sair da
carruagem e Luc tomar seu lugar.
Assim que a carruagem começou a subida de volta para o
castelo, Jourdain rosnou para Luc:
— Achei que vocês tivessem recebido ordem para não atacar!
E Luc olhou para mim sem saber o que responder. Porque eu é
que havia contrariado as ordens.
— Brienna deve ter tido um bom motivo — insistiu Luc.
Quando chegamos ao pátio do castelo, Jourdain fervia e Luc
estava inquieto. Meu pai e meu irmão me seguiram até meu quarto,
e não perdi tempo. Ainda estava sem voz, aparentemente com a
laringe esmagada pelo braço de Fechin. Então, peguei meu frasco
de tinta e uma folha de papel e comecei a rabiscar furiosamente
minha explicação.
— Brienna — disse Jourdain, com um suspiro, ao terminar de ler.
Percebi que meu irmão finalmente compreendera por que eu
havia decidido me desviar do plano, mas também sabia que ele ia
remoer a frustração por horas.
Isolde irrompeu para dentro do quarto antes que Jourdain
pudesse estender a reprimenda.
— Para fora — ordenou para os homens.
Quando seus olhos irados se voltaram para mim, tive meu
primeiro momento de medo genuíno dela. Vi os homens saírem
rapidamente e me preparei para receber qualquer castigo.
Mas logo percebi que Isolde não tinha vindo para brigar comigo.
Estava ali para preparar um banho para mim e curar meu rosto
ferido.
Sentei-me na água morna e deixei a rainha lavar a sujeira das
tavernas da minha pele, a terra do meu cabelo e o sangue do meu
rosto. Foi comovente vê-la cuidar de mim e procurar ferimentos
enquanto me limpava. Com muita delicadeza, ela pegou no meu
nariz, e me retraí por reflexo, na expectativa de sentir dor. Mas a
magia era gentil, como o calor do sol no rosto, o roçar das asas de
uma libélula, um mergulho na fragrância de uma noite de verão. A
magia dela regenerou meu nariz, e só restou um pequeno calombo,
que eu mal conseguia sentir com os dedos quando, receosa, o
toquei.
— Onde mais ele machucou você? — perguntou ela,
derramando água nos meus ombros para enxaguar o sabão.
Apontei para a garganta. Isolde pôs as pontas dos dedos por
cima, e o nó doloroso que pressionava minhas cordas vocais se
desmanchou, deixando para trás um leve formigamento na laringe.
— Obrigada, milady — falei, rouca.
— Sua voz vai ficar fraca por alguns dias — respondeu Isolde,
ajudando-me a sair da banheira para me enrolar em uma toalha. —
Tente não falar muito.
Tive que travar o queixo para domar e aquietar minhas palavras,
mas sem sucesso. Porque eu queria falar para ela que o encontrara,
que Declan estava se escondendo em refúgios, exatamente como
tínhamos previsto. Que eu topara com Fechin.
Vesti uma camisola limpa e subi na cama enquanto relatava o
que havia acontecido, todos os detalhes, incluindo o codinome
Chifre Vermelho.
Ela ficou em silêncio depois, passando a ponta dos dedos pela
padronagem da minha colcha.
— Sinto muito — murmurei. — Eu não devia ter me desviado do
plano.
— Entendo suas intenções — respondeu Isolde, olhando nos
meus olhos. — Sinceramente, eu teria ficado tentada a fazer o
mesmo. Mas, para capturar Declan Lannon, precisamos ser
meticulosos. Precisamos agir com união. Você nunca devia ter
entrado sozinha naquela taverna. Eu sei que dei ordem para que
você e Luc permanecessem armados, mas teria sido melhor se você
tivesse se recusado a entrar. Não devia ter saído atrás de Declan
sozinha.
Recebi as reprimendas com o rosto vermelho e o olhar
arrependido. Meu consolo foi pensar no ferimento profundo que eu
infligira em Fechin. Era a única informação que podia oferecer no
momento.
— Deixei Fechin permanentemente manco. É bom fazer uma
busca em médicos e curandeiros das redondezas, porque ele deve
ter ido direto para algum.
— Pode deixar. — Isolde sorriu.
De repente, ela parecia exausta e esgotada. Será que a magia a
consumira? Será que o ato de curar outros a deixava fraca e
vulnerável?
Bateram na minha porta externa, e Jourdain apareceu no limiar
como uma nuvem de tempestade. De jeito nenhum seria possível
evitá-lo.
Seus olhos estavam rígidos até que me deitei de novo nos
travesseiros. Isolde se despediu de mim, e lhe agradeci enquanto
Jourdain tomava seu lugar ao meu lado, sentando-se na beira da
cama e pressionando o colchão com seu peso.
— Cartier já voltou? — perguntei, tentando disfarçar o tremor na
voz.
— Já.
E pela concisão desse “já”, entendi que não haviam recapturado
Declan. Abaixei a cabeça até ele falar de novo.
— Vou mandar você para casa, Brienna.
Olhei para ele, incrédula.
— Não quero voltar para casa.
— Eu sei. Mas quero você em segurança, filha. — Jourdain
sentiu minha desolação e pegou na minha mão. — E preciso que
você volte e seja lady MacQuinn para mim.
Essa era a última coisa que eu esperava ouvir dele.
— Pai — sussurrei. — Não posso fazer isso. Seu povo...
— Meu povo vai obedecer e seguir você, Brienna. Você é minha
filha.
Não queria discutir, mas também não conseguia imaginar voltar
para o castelo Fionn e tentar liderar um povo que me encarava com
eterna desconfiança.
Jourdain suspirou e passou a mão no cabelo castanho-
avermelhado.
— Recebi uma carta de Thorn hoje. Você se lembra dele?
— Seu intendente ranzinza.
— O próprio. Ele escreveu para perguntar se Luc podia voltar
para ajudá-lo a administrar alguns assuntos. Houve um problema
com uma das moças e Thorn está com um impasse. E acho que Luc
não é a pessoa certa para voltar para casa. É você, Brienna.
— Não faço a menor ideia de como ser uma lady MacQuinn —
protestei, gentilmente.
— Você vai aprender. — Uma resposta tão simples, tão típica
dos homens. Jourdain percebeu minha irritação, porque suspirou e
acrescentou: — Às vezes, se você não mergulhar de cabeça nas
coisas, não vai aprender nunca.
Era uma filosofia de ensino muito maevana essa noção de se
jogar em um rio violento para aprender a nadar. Em Valenia,
demorávamos para aprender uma habilidade nova. Por isso, cada
paixão levava em média sete anos para ser dominada.
— Você só está tentando me afastar — afirmei.
Jourdain franziu o cenho.
— Quando peço sua ajuda, minha filha, é porque preciso de
verdade. Se você cuidar desse problema com a moça, vai tirar um
peso enorme das minhas costas. Mas, além disso, te quero longe
desta confusão, te quero em segurança. Não suportaria se algo
acontecesse a você, Brienna. Perdi minha esposa nas mãos dos
Lannon. Não quero que aconteça o mesmo com minha filha.
Não tive resposta para aquilo.
Esse era o medo do meu pai desde que comecei a me envolver.
Se dependesse dele, eu jamais teria atravessado o canal até
Maevana para recuperar a Pedra do Anoitecer. Ele teria obtido meu
conhecimento e entregado para Luc, ainda que fosse só para me
manter longe dos perigos da rebelião.
E eu queria brigar, queria dizer que não era justo me prender
enquanto Luc continuava correndo atrás dos Lannon. Queria dizer
que ele precisava de mim, todos precisavam. E as palavras subiram,
bateram nos meus dentes, desesperadas e raivosas, forçando para
sair, mas então vi sua expressão relaxar, vi o brilho nos olhos. Ele
me olhava como se me amasse de verdade, me olhava como se eu
fosse sua filha de carne e osso, como se tivesse nascido MacQuinn,
como se houvesse partes de sua esposa em mim.
E isso era algo que eu desejara, algo que passara a vida toda
lamentando não ter, não era?
Naquele momento, decidi aceitar ser sua filha, deixá-lo me
proteger.
Naquele momento, decidi voltar como lady MacQuinn e fazer o
que ele queria.
— Tudo bem — assenti, em voz baixa. — Eu vou.
A decepção ainda doía, e fiquei olhando para baixo, até
Jourdain, cheio de amor, pegar no meu queixo e levantar meu rosto
para encará-lo.
— Quero que você saiba que tenho muito orgulho de você,
Brienna. Não existe nenhuma mulher em quem eu confiaria mais
para liderar meu povo durante minha ausência.
Assenti para ele acreditar que eu estava em paz com a situação.
Mas, por dentro, me sentia chateada por sair de Lyonesse, com
vergonha de ter frustrado os planos para a noite. Era uma honra que
Jourdain confiasse em mim a ponto de me conceder o poder de lady
MacQuinn, mas eu também estava apavorada ao imaginar as
expressões que me aguardavam quando o povo de Jourdain
descobrisse que ele me enviara de volta para liderá-los.
Jourdain me beijou nas bochechas, e esse gesto simples me fez
sentir tanta saudade de Valenia que tive que fechar os olhos para
conter as lágrimas. Ele se levantou e estava quase na porta quando
pigarreei e perguntei:
— Quando eu vou, pai?
Achei que teria pelo menos mais um ou dois dias ali. Mas então
ele me olhou por cima do ombro, e vi uma sombra de pesar em seu
rosto.
— Assim que o dia raiar, Brienna.
20

U M A P R I N C E S A E N S A N G U E N TA D A

Cartier

Eu estava parado nas sombras do corredor quando Jourdain saiu do


quarto de Brienna. Agora que minha raiva passara, exaustão era
tudo que me restava depois de ficar imundo e suado ao
esquadrinhar as ruas atrás de Declan em uma caçada que se
revelara inútil.
Tínhamos chegado tão perto. Tão perto de capturar o príncipe e
recuperar as crianças.
Era desconcertante pensar que ele havia escapulido por entre
nossos dedos.
Meu olhar bateu no de Jourdain. Ele não parecia surpreso de me
ver esperando ali.
— O que ela disse? — perguntei.
— Disse que vai voltar para casa, como pedi. Vai embora ao
amanhecer.
— Como você a convenceu?
— Meu intendente precisa de ajuda com uma das moças lá em
casa — respondeu Jourdain. — Em vez de mandar Luc, quero que
ela vá.
Depois do fracasso completo da noite, Jourdain me falara com
todas as letras que não queria Brienna em Lyonesse. Queria
mandá-la de volta para o castelo Fionn, onde ficaria em segurança.
E, ao escutá-lo falar, sabia que Brienna ficaria magoada e acharia
que a estávamos expulsando.
Além do mais, Brienna era a conspiradora nata do grupo. Eu lhe
ensinara tudo o que aprendera, desde história e poesia até o local
de todos os fluxos vitais de sangue no corpo. Mas não a ensinara a
conspirar, a movimentar peças em um tabuleiro, a formular
estratégias e artimanhas. Esse era o ponto forte dela, o cânone de
sua Casa de sangue, a bênção dos Allenach que os destacava das
outras.
Podia ter refutado Jourdain com argumentos fortes, falado que
fora Brienna quem descobrira os refúgios, quem descobrira o
significado por trás da meia-lua. Que Brienna, em essência, era o
cérebro por trás da revolução.
Podia ter lembrado Jourdain de tudo isso, mas resisti. Porque,
no fundo, queria que ela estivesse o mais longe possível de Declan
Lannon. Não queria que Declan Lannon soubesse o nome dela, que
olhasse seu rosto, que ouvisse o som de sua voz. Não queria que
ele soubesse sequer que ela existia.
E, assim, embora meu coração ficasse arrasado por mandar
Brienna para longe, aceitei a decisão de Jourdain e Luc, que
certamente concordou com a vontade do pai.
Continuei apoiado na parede, quase morto de cansaço — só
havia dormido algumas horas nos últimos dois dias.
— Vá dormir, rapaz — sugeriu Jourdain, com um tom gentil. —
Acordo você quando for a hora de ela sair.
Assenti. Já não sentia os pés quando fui para meu quarto e
fechei a porta.
Sentei-me na cama, a cama em que eu não havia dormido uma
vez sequer desde que chegara. Desci a cabeça até achar o
travesseiro e mergulhei em sonhos dolorosos com minha mãe e
minha irmã. Nunca soube como era a aparência delas porque a
única palavra que meu pai usara para descrevê-las era “linda”. Mas,
naquela noite, vi Líle e Ashling Morgane caminhando pelos campos
de Brígh e lançando risadas no vento da montanha. Vi-as como
seriam hoje, minha mãe com traços grisalhos no cabelo louro,
Ashling com pouco menos de 30 anos e cabelo escuro como nosso
pai.
Acordei ao amanhecer com lágrimas nos olhos e as chamas
reduzidas a cinzas.
Troquei de roupa, lavei o sonho dos olhos e alisei o cabelo com
os dedos enquanto ia atrás de Brienna.
Ela já havia saído do quarto e acabei encontrando-a no pátio
com os guardas de Jourdain, esperando trazerem sua égua do
estábulo. Assim que parei ao seu lado, percebi que ela não dormira
muito à noite. Seus olhos estavam injetados, e começavam a
aparecer hematomas no rosto e no pescoço por causa do embate
com Fechin.
— Eu sei — disse ela, reparando que eu tinha visto os
machucados. — Mas pelo menos meu nariz não está mais torto.
— Ainda dói? — perguntei.
— Não, graças a Isolde.
Forcei um sorriso para disfarçar o quanto os hematomas me
abalaram. Peguei na mão dela e a puxei para mim. Brienna se
aninhou no meu corpo, deu um suspiro e seus braços me
envolveram. Me afaguei nela, ela em mim, e meus dedos alisaram
seu cabelo sedoso e solto, os ombros sob o manto de paixão e a
curva suave de suas costas.
Senti suas palavras aquecerem minha camisa quando ela disse:
— Você concorda com ele? De me mandar embora?
Minha mão subiu até seu cabelo, para puxar delicadamente sua
cabeça para trás, para fazê-la olhar para mim.
— Não. Eu não teria mandado você para longe de mim.
— Então por que está me deixando ir embora? — sussurrou ela,
como se soubesse que eu havia sido complacente, como se
soubesse que eu tinha o poder de convencer Jourdain, mas não o
fizera. — Mesmo sabendo que eu deveria ficar.
Eu não podia responder, porque, se dissesse algo, traria à tona
meu maior receio, daria forma ao meu medo, revelaria as trevas do
meu coração que eu não queria que ela conhecesse.
Brienna me encarou com olhos inescrutáveis.
Por que será que aquilo parecia uma despedida tão sinistra?
Como se houvesse um rio prestes a desbocar entre nós?
Abaixei a cabeça, e meus lábios roçaram no canto dos dela. Não
devia beijá-la ali, no pátio, à vista de qualquer um. Não devia, mas
ela levou a boca até a minha. Me deu seu hálito e eu lhe dei o meu,
até meu coração bater contra suas mãos, até eu sentir que Brienna
havia engolido todos os meus segredos, todas aquelas noites que
passara em claro pensando nela, todas as manhãs em que
caminhara pelos campos de Brígh com os olhos virados para o
leste, para a trilha na floresta que ligava nossas terras, esperando
que ela aparecesse, que a distância entre nós encurtasse.
— Brienna.
O pai dela a chamou, com uma voz ríspida, para que nós dois
acordássemos.
Brienna se soltou de mim e se virou sem falar nada. Mas talvez
nem precisássemos mais de palavras. Observei a alvorada tocar as
estrelas de prata bordadas em seu manto. Brienna montou na égua
no meio do pátio. Liam O’Brian, nobre de Jourdain, e dois guardas
MacQuinn a acompanhariam até em casa.
Luc e Jourdain se aproximaram para se despedir. Brienna sorriu,
mas o sorriso não alcançou seus olhos. Ela segurou as rédeas, e
Jourdain lhe deu um tapinha de despedida no joelho.
Continuei parado no mesmo lugar quando ela saiu a trote do
pátio. Meus olhos a seguiram, sob a luz do sol, sob as sombras, até
ela sumir debaixo do arco de pedra.
Em nenhum momento ela olhou para mim.

* * *

Horas depois, eu estava sentado na câmara do conselho da rainha,


examinando o mapa de Lyonesse aberto na mesa. Éramos seis
reunidos para planejar a incursão seguinte: Isolde, seu pai,
Jourdain, Luc, lorde Derrick Burke e eu. Havíamos pulado o café da
manhã para examinar mais registros tributários dos Lannon e, à
tarde, tínhamos já mais quatro refúgios em potencial para Declan,
todos situados no quadrante sul da cidade, todos próximos da
taverna e do albergue que Brienna e Luc exploraram na noite
anterior.
A notícia havia, enfim, vazado: Declan Lannon escapara da
masmorra e estava escondido em Lyonesse. E Isolde fora obrigada
a decretar toque de recolher, suspender o funcionamento de lojas e
mercados, deixar os portões da cidade fechados e sob vigilância
pesada, pedir que os habitantes permanecessem em casa e
trancassem portas e janelas. Também avisara que os habitantes
deveriam esperar operações de busca em suas residências.
Além disso, anunciamos uma vultosa recompensa pela recaptura
de Declan Lannon. O valor seria o dobro se as crianças também
fossem levadas em segurança para a rainha. Imaginei que alguém
acharia irresistível a promessa de riqueza e trairia Declan. Mas,
conforme as horas passaram, vimos que, aparentemente, o clã da
meia-lua não se interessava por dinheiro.
Sentei e encarei o mapa enquanto tamborilava os dedos na
mesa e ponderava a respeito dos lugares que estávamos prestes a
investigar. Declan estivera no albergue. Mas para onde rastejaria
agora? Será que continuaria em movimento ou tentaria permanecer
em um lugar só? Por quanto tempo pretendia se esconder com duas
crianças? O que estava tentando fazer? Libertar a família inteira da
masmorra? Incitar uma rebelião contra Isolde? Será que ele era
mesmo o “Chifre Vermelho”?
Como se tivesse lido minha mente, lorde Burke perguntou, do
outro lado da mesa:
— O que ele quer?
— Isso ainda não sabemos — respondeu Isolde. — Declan
ainda não fez nenhuma demanda.
— Mas vai, mais cedo ou mais tarde — afirmou Jourdain. — Os
Lannon sempre fazem.
— Quaisquer que sejam as demandas dele — começou Isolde,
pigarreando —, não vamos atendê-las. Não negociamos com um
homem que promoveu terror e violência durante anos, que foi
julgado pelo povo e condenado à morte.
— Isso faz com que ele seja mais perigoso ainda, milady —
ressaltei. — No momento, ele não tem nada a perder.
Braden Kavanagh mexeu-se na cadeira e olhou para a filha com
um ar preocupado.
— Não seria surpresa se Declan preparasse uma armadilha para
capturar Isolde. Quero que ela permaneça sob proteção constante.
— Pai — reclamou Isolde, incapaz de disfarçar a impaciência. —
Já tenho uma guarda pessoal. Raramente consigo ficar sozinha.
— Sim, mas podemos confiar na sua guarda? — atreveu-se a
perguntar Jourdain.
Lorde Burke se inquietou. A guarda da rainha era composta por
homens e mulheres de sua Casa. Eles, de fato, haviam comprovado
lealdade, mas isso não anulava completamente o receio de que
alguns pudessem ser convencidos a nos trair.
— Esse chefe da guarda que traiu vocês — observou lorde
Burke. — Ele era Lannon, não Burke. E posso garantir que os
homens e as mulheres que forneci para sua guarda são de
confiança. Nenhum deles tem o sinal da meia-lua.
— E lhe agradeço por isso, lorde Burke — Isolde apressou-se
em dizer. — Suas mulheres e homens têm sido uma fonte tremenda
de apoio desde que voltamos.
Uma batida fraca e hesitante soou na porta da câmara do
conselho.
Isolde acenou com a cabeça para o pai, que tirou os marcadores
dos refúgios Lannon do mapa antes de atender.
Sean Allenach, constrangido, segurava um papel dobrado nas
mãos.
— Ah, Sean. Entre, por favor.
— Desculpe interromper — lamentou ele, entrando na sala —,
mas acho que tenho algo que pode ser útil, milady.
Sean ofereceu o papel e Isolde o pegou.
— Onde encontrou isto, lorde Sean?
Após ler o conteúdo, Isolde colocou lentamente na mesa o que
parecia ser uma carta muito curta escrita com uma caligrafia
angulosa.
— Lamento dizer que estava em posse do meu valete. A carta
está endereçada a ele. Não há nada que indique quem a escreveu.
— Que carta é essa? — perguntou Jourdain, e, pelo tom brusco,
percebi que ele confiava tão pouco em Sean Allenach quanto eu.
Isolde a fez circular pela mesa. Um a um, todos lemos. Fui o
último, e o que me chamou a atenção foi a última frase:
Dependendo do clima hoje, talvez tenhamos que adiar a reunião.
O D estava preenchido com tinta. Parecia uma meia-lua.
— Seu valete sabe que você pegou esta carta? — perguntou
Isolde.
— Não, milady.
— Onde está ele? O nome é Daley Allenach, não é? Onde Daley
está agora?
— Na cozinha do castelo, comendo com os criados — informou
Sean.
Troquei um olhar com Jourdain. Outro verme Lannon circulando
livremente pelo castelo.
Luc pegou uma folha de papel da pilha sob seu cotovelo para
copiar a carta, palavra por palavra, e devolveu a original para Sean.
— Sei que a maioria de vocês não confia em mim por causa do
meu pai — declarou Sean. — Mas fui sincero quando falei do meu
desejo de ajudar. Se houver qualquer coisa que possa fazer para
ajudá-los a capturar os Lannon, eu faço.
Braden Kavanagh parecia prestes a fazer um comentário
sarcástico, mas Isolde falou antes que o pai tivesse chance:
— Lorde Sean, você nos ajudaria muito se pudesse colocar esta
carta de volta entre os pertences do seu valete antes que ele dê
falta. Se houver mais correspondências, informe-nos imediatamente.
Enquanto isso, peço que registre em detalhes todas as atividades
de Daley Allenach, inclusive as que forem por ordem sua.
Sean assentiu, pôs a mão no peito e saiu, deixando-nos para
decifrar o que a estranha carta significava.
— Os asseclas dos Lannon estão trocando correspondências —
constatou Luc.
— E um deles é o valete de lorde Allenach — acrescentou
Braden. — O que isso revela em relação à confiança?
— Sean Allenach provou lealdade a mim — declarou a rainha. —
Ele desafiou o pai no dia do nosso levante para lutar por mim. Foi
atingido por uma espada para proteger a irmã. Eu não hesitaria em
pedir que ele se juntasse a este grupo se soubesse que a maioria
de vocês não se oporia veementemente.
Ficamos calados.
— Como eu imaginava — prosseguiu a rainha, com um tom
seco. — Agora, se os meias-luas estão trocando cartas, talvez isso
nos leve diretamente ao paradeiro de Declan. Não quero alertar
Daley Allenach ainda, mas talvez tenhamos que segui-lo se não
encontrarmos Declan em um dos refúgios hoje.
Peguei a cópia da carta de novo e passei os olhos pelo texto,
começando a ler nas entrelinhas.
— Estão empregando um código relativamente simples. “A
cerveja acabou” parece uma advertência em relação ao albergue e,
talvez, à taverna, já que nos revelamos em um deles ontem à noite.
“Pode trazer um pouco para mim amanhã de manhã com o
cordeiro?” é visivelmente um pedido para que Declan seja mantido
em um refúgio novo. Quanto ao clima... Não sei o que quer dizer.
Pode ser qualquer coisa, desde uma referência a nossa vigilância e
ao toque de recolher até o horário em que Declan pretende se
deslocar.
— O que significa que Declan não está escondido em um lugar
só — observou lorde Burke. — E ele vai ter que se deslocar à noite,
devido ao toque de recolher.
— O que significa que ele deve estar entocado agora —
acrescentou Luc, com um tom urgente. — Precisamos atacar. Já.
Isolde hesitou, e eu sabia que ela estava sentindo falta da
opinião de Brienna.
— Não quero nenhum desvio do plano — afirmou ela, olhando
para cada um de nós. — Lorde MacQuinn, você levará cinco
guerreiros ao costureiro. Lorde Burke, você levará seus cinco ao
ferreiro. Lorde Lucas, você levará seus cinco ao toneleiro. E lorde
Aodhan, você levará seus cinco ao açougueiro. Peçam para entrar,
investiguem o edifício e se Declan não estiver lá, saiam. Se estiver,
deem ordem para seus respectivos arqueiros dispararem a flecha
envenenada para derrubá-lo. A segurança de Ewan e Keela é
essencial, então tenham extremo cuidado ao tomar qualquer
decisão. Ai de quem voltar para mim com a notícia de que as
crianças se feriram por sua causa, mesmo que seja só um arranhão.
Esperei um instante, até suas ordens serem assimiladas, e então
falei:
— Milady? Gostaria de pedir que um dos meus cinco guerreiros
fosse um Lannon.
Todo mundo olhou para mim, incrédulo. Todo mundo menos
Isolde, que me observou intrigada.
— De qual Lannon você está falando, Aodhan?
— Eu gostaria de tirar o nobre Tomas Hayden da masmorra para
me ajudar nesta missão.
— Você enlouqueceu, Morgane? — exclamou lorde Burke. —
Como poderia confiar nele?
Apoiei-me na mesa.
— A questão é que pensar assim vai rachar este país ao meio.
Sim, não vou mentir: odeio os Lannon. Odeio tanto que às vezes
parece que meus ossos vão virar cinzas por causa disso. Mas
cheguei à conclusão de que não podemos tachar todos os Lannon
de Gilroy, Oona ou Declan. Há pessoas boas nessa Casa, gente
que sofreu muito. E precisamos nos aliar a elas para expurgar as
corruptas.
A sala foi tomada por um silêncio pesado.
— Se eu tirar Tomas Hayden da masmorra — começou Isolde
—, que garantia você me daria, Aodhan, de que ele vai segui-lo, de
que não vai traí-lo?
— Ele gosta muito de Ewan Lannon — respondi. — Foi graças a
ele que Ewan escapou no dia do levante. Acho que Tomas não
hesitaria nem por um segundo se tivesse que trair Declan para
salvar Ewan e Keela.
— Você não pode ter qualquer dúvida, rapaz — afirmou
Jourdain. — Não pode achar. Precisa saber.
Olhei para ele, tentando conter a irritação.
— Tomas Hayden é tio da minha mãe. É meu parente de
sangue. — Isso calou Jourdain. Quando me virei para Isolde, me
recompus e falei: — Traga-o da masmorra e me permita falar com
ele de novo. Se eu o considerar imprevisível demais, vou mandá-lo
de volta para a cela.
Isolde assentiu, e os outros homens se levantaram, um a um,
arrastando as cadeiras no chão de pedra. Saíram até ficarmos
apenas a rainha e eu, esperando os guardas trazerem Tomas
Hayden.
E quanto mais o tempo passava, mais eu me perguntava se
estava enganado, se estava prestes a cometer um erro irreversível.
Tomas foi trazido para a sala, sujo e apertando os olhos por
causa da claridade. Mas reconheceu nós dois e ficou muito calado,
de olho em Isolde.
— Você tem o sinal? — perguntei.
— Você vai ter que soltar minhas correntes para ver —
respondeu ele.
Levantei-me para pedir as chaves do guarda e soltei seus
grilhões eu mesmo, com o punhal a postos no cinto para o caso de
o nobre tentar me atacar. Mas quando as correntes caíram no chão,
ele se limitou a continuar parado, à espera da minha ordem.
— Mostre os pulsos.
Tomas obedeceu: puxou as mangas esfarrapadas e virou os
pulsos. Não tinham nada. Nenhum sinal de meia-lua, nem qualquer
tentativa de removê-la da pele.
— Sei que você deve ter escutado a comoção na masmorra
ontem — revelei, e ele apontou os olhos azuis leitosos para mim. —
Deve estar sabendo que Declan e Keela fugiram. Declan está à
solta em Lyonesse e está fazendo os próprios filhos praticamente de
reféns. Vou liderar um grupo de cinco guerreiros para sair atrás dele,
recapturá-lo e recuperar Ewan e Keela. Quero saber se você viria
comigo, se ofereceria ajuda para encontrá-los.
— E o que vocês vão fazer com Keela e Ewan quando os
pegarem? — perguntou Tomas. — Vão cortar suas cabeças fora,
logo depois da do pai?
— Nobre Tomas — disse Isolde, com paciência. — Compreendo
que você tem muito carinho pelas crianças. Prometo que farei de
tudo ao meu alcance para abrigá-las, protegê-las e descobrir uma
forma de perdoá-las.
— Por que você faria isso? — perguntou ele. — São os filhos do
seu inimigo.
— São crianças inocentes — corrigiu Isolde. — E me entristece
imensamente que Maevana como um todo tenha condenado Keela.
Tomas hesitou, aparentemente imerso em seus pensamentos.
— Sim, Gilroy, Oona e Declan Lannon destruíram tanto a minha
Casa quanto a da rainha — falei. — Mas sei que ele também
destruiu a sua, Tomas. Que vai levar muitos anos para os Lannon se
recuperarem.
Tomas me encarou, e vi a raiva e o remorso em seus olhos.
— Venha comigo à caça de Declan — pedi. — Contribua com
quaisquer conselhos ou sugestões que puder. Ajude-me a encontrar
Ewan e Keela.
— O que querem em troca? — murmurou ele, olhando para
Isolde.
— Jure lealdade a mim como sua rainha — respondeu Isolde. —
E o soltarei da masmorra para que você possa ajudar Aodhan.
Achei que ele precisaria de um instante para considerar as
opções. Então fiquei surpreso quando ele se ajoelhou
imediatamente, pôs a mão no peito e olhou para Isolde.
— Juro lealdade a ti, Isolde de Kavanagh. Não me curvarei a
ninguém mais, pois você é minha rainha.
Foi um juramento um tanto quanto simples, mas pareceu
genuíno. Isolde segurou as mãos dele e o fez se levantar. Com um
tom firme, disse para Tomas:
— Se nos trair, não o matarei. Você passará o resto de seus dias
preso na masmorra. Entendeu, Tomas Hayden?
Tomas olhou para ela.
— Entendi, milady. Mas não precisa temer qualquer traição da
minha parte.
Isolde meneou a cabeça.
— Muito bem. Podem ir se preparar para a missão.
Eu estava ansioso. Demais. Só conseguia pensar em capturar o
homem que havia me causado tanta angústia. Minha pulsação
acelerava quando Isolde ergueu a mão e nos fez parar.
— Só mais uma coisa. — Os olhos da rainha se fixaram nos
meus, sob as sombras e a luz das velas. — Quero que tragam
Declan para mim. Vivo.
Precisei me esforçar ao máximo para pôr a mão no peito e me
submeter completamente à ordem. Porque enquanto saía da
câmara do conselho, acompanhado de Tomas, deixei que a
confissão que fiz se inflasse na minha mente.
Não havia nada que eu quisesse mais do que ser o responsável
pelo fim sangrento de Declan Lannon.

Os quatro homens e mulheres da minha guarda me aguardavam em


meus aposentos. A armadura estava completa: espadas e armas
pendiam de seus cintos e o cabelo trançado estava amarrado para
não cair no rosto. Ficaram surpresos ao ver Tomas Hayden comigo,
mas obedeceram quando mandei trazerem uma armadura e uma
espada larga para ele. Vesti rapidamente meu peitoral e as
braçadeiras de couro, e meus dedos tremiam conforme apertavam
as correias.
Designei minha arqueira e reuni os cinco em uma roda para
explicar o plano.
Minutos depois, já estávamos saindo do castelo rumo às ruas
desertas.
O sol da tarde começava a descer por trás dos telhados e
lançava feixes dourados nas pedras de calçamento. Um vento frio
empurrava nuvens pelo céu e transportava a maresia da orla e a
fumaça das forjas. A brisa atingiu meu rosto e fez meus olhos
arderem quando me aproximei do açougue determinado.
Parei na frente do estabelecimento e o examinei. Tomas estava
ligeiramente atrás de mim, e me virei para perguntar:
— Você conhece esse lugar?
Ele meneou a cabeça.
Olhei de novo para o prédio. Estava fechado, em conformidade
com a ordem da rainha. Moscas circulavam em cima de poças de
sangue seco no chão, e os ganchos usados para exibir cortes de
carne tilintavam como sinos.
Dei um passo à frente, bati no batente da porta e esperei.
O açougueiro abriu um pouco a porta. Imerso na fresta de
sombras, ele era um homem alto com cabelo grisalho e sem vida.
Tinha o nariz torto, assim como os olhos, que piscavam para mim
como um roedor na luz.
— Estamos fechados.
Ele fez menção de fechar a porta, mas firmei o pé e segurei a
madeira.
— Podemos entrar? Você deve ter ouvido falar que todos os
cidadãos respeitáveis de Lyonesse estão dispostos a permitir
buscas em suas casas e comércios hoje.
— Tudo bem, mas minha mulher não está se sentindo bem… —
gaguejou o açougueiro, mas eu já havia forçado a entrada, seguido
por meus cinco guerreiros.
O ambiente principal estava escuro, e todas as janelas,
fechadas. O cheiro era de sangue e carne estragada. Pisei em algo
que fez um barulho estalado e resisti ao impulso de vomitar.
— Ilumine este espaço — demandei, e ouvi conforme o
açougueiro manuseava sem jeito as tábuas das janelas.
— Senhor... eu realmente não gostaria de ser incomodado hoje.
Minha mulher está doente, minhas filhas também, e essa busca
desnecessária só vai perturbá-las.
Ele abriu só um pouco as janelas para deixar um fio de luz
entrar.
Havia uma mesa comprida, encardida de sangue, e mais
ganchos pendurados nas vigas do teto. Uma bacia com água
morna, um bloco cravejado de facas, baldes cheios de entranhas e
ossos espalhados pelo chão.
Resisti à vontade de cobrir o nariz e me obriguei a respirar pela
boca. Segundo os registros, Gilroy Lannon não tributara esse lugar.
E eu não entendia por quê. Era como qualquer açougue, não tinha
nada de especial. Na verdade, tinha um aspecto quase asqueroso.
Já havia visto estabelecimentos muito mais limpos e organizados.
— Como o senhor pode ver, sou só um humilde açougueiro —
insistiu o homem, agitando as mãos nervosamente no ar. — Que tal
se eu mandar um pouco de carne para o castelo, para a futura
rainha? Ela gosta de cordeiro?
Cordeiro.
A palavra chamou minha atenção, a mesma palavra que fora
usada na carta que Sean nos mostrara.
Meu coração se acelerou enquanto avançava pelo espaço em
direção aos fundos. Meus guerreiros me acompanharam, quase
sem fazer ruído com as botas no piso desnivelado de madeira.
Todos respiravam com atenção, prontos para qualquer coisa. E
então vi algo estranho.
A princípio, achei que meus olhos estivessem enxergando
errado, porque havia algo se estendendo gradativamente pelo teto.
Trepadeiras com folhas murchas se espalhavam devagar, como se
tivessem adquirido consciência, como se estivessem desesperadas
para chamar minha atenção ao se abrir por cima da alvenaria.
— O que é isso? — sussurrou um dos meus homens, perplexo.
Eles também estavam vendo. Não era só minha imaginação.
— Senhor? Que tal umas costelas para acompanhar o cordeiro?
— O açougueiro não parava de falar, desesperado. — Aqui, veja!
Pode escolher à vontade!
Mas eu mal escutava sua voz porque estava observando as
trepadeiras, que cresciam na direção de uma passagem interna que
eu jamais teria percebido, coberta por um tecido imundo.
— É um encantamento — murmurei e, por um instante, fiquei
entre o fascínio e o medo diante daquilo, do filamento de magia que
ganhara vida. De onde ela vinha? Quem a operava?
Nesse momento, decidi seguir minha intuição, decidi confiar
nela.
— Senhor! Senhor, veja! Posso lhe dar um presunto também!
Afastei o tecido da passagem e revelei um corredor que levava
até uma escada em espiral. Ouvi uma agitação no alto, e as
trepadeiras continuaram se expandindo, uma trilha de madeira e
folhas para eu seguir.
— Flecha a postos — murmurei para minha arqueira.
Escutei-a pegar cuidadosamente a flecha envenenada na aljava,
e a corda do arco gemeu de leve em suas mãos.
Saquei a espada, e meus guerreiros fizeram o mesmo. Subimos
a escada. Foi uma tempestade de botas nos degraus, corações na
boca e gritos histéricos do açougueiro. As trepadeiras sumiram,
misturando-se às sombras. Fiquei preocupado ao vê-las
desaparecer.
O segundo andar consistia apenas em um corredor estreito com
seis portas, todas fechadas.
Com a arqueira de prontidão atrás de mim, fui até a primeira e a
arrombei com um chute.
Era um cômodo mal iluminado, sem janela. Mas havia algumas
velas, e uma menina tremia em uma cama, vestida com trapos.
Minha surpresa foi tanta que só percebi que ela estava acorrentada
à cama quando a ouvi gemer.
— Não me machuque. Por favor...
Chocado, fui para o cômodo seguinte. Chute, porta arrombada.
Outra menina, também acorrentada. E outra. Minha mente voava,
meu coração ardia com uma fúria que jamais sentira antes. Aquilo
não era apenas um açougue. Era um bordel clandestino.
No quarto cômodo, a menina estava agachada na cama,
preparada para me ver. Ela não gemeu nem se retraiu. O alívio em
seu rosto era evidente quando olhou para mim, como se estivesse
esperando que eu chegasse, arrombasse a porta e a encontrasse.
E então vi de novo as trepadeiras. Elas se enroscavam nos pés
da cama, rastejavam pelo chão como serpentes, reluziam com
escamas douradas. Parei pouco antes de pisar em uma e me dei
conta de que a planta estava prestes a se enrolar no meu tornozelo.
A magia, o encantamento, vinha dela.
Era uma Kavanagh. E, com lágrimas nos olhos, não consegui
respirar ao olhar para ela e ver que ela me encarava de volta.
— Aodhan Morgane? — sussurrou ela.
Fiquei imóvel na entrada, observando o cômodo degradado. E,
apesar da escuridão, senti a primeira fagulha de luz.
— Você me conhece? — perguntei.
— O menino falou que você viria.
Com a mão trêmula, ela ofereceu um pedaço de papel. Mais
uma vez, as trepadeiras recuaram nas sombras e me deixaram
entrar.
Me aproximei, receoso, e estendi o braço para pegar o
pergaminho de seus dedos. A folha se desdobrou na minha mão,
metade da ilustração da princesa, amassada e suja de sangue.
Sangue da menina. O pulso dela era uma grande ferida aberta em
volta do grilhão, como se tivesse passado anos tentando se soltar.
— O príncipe Declan esteve aqui com a garota e o menino —
murmurou ela. — Foi embora hoje cedo. Ao amanhecer. Não sei
para onde. Ele não me disse.
Achei que ia desmoronar. Minhas pernas tremiam quando
amassei a ilustração da princesa.
— Milorde — disse a arqueira, no corredor. — O açougueiro está
fugindo. Quer que o persigamos?
— Por favor — sussurrou a menina, chamando minha atenção
de novo. — Por favor, me ajude.
Engoli em seco e me esforcei para acalmar a voz e fazer minha
promessa:
— Juro que você terá minha proteção, e a da rainha. — Virei-me
para a arqueira, que havia guardado a flecha de volta na aljava. —
Solte estas mulheres. Quero que mandem trazer uma carruagem
coberta para levá-las imediatamente de volta para o castelo.
A arqueira assentiu com a cabeça quando passei por ela. Vi os
olhos de Tomas no corredor. Ele não parecia em choque diante
daquilo, mas sua expressão era de enorme tristeza e seus ombros
estavam caídos.
Com o maxilar dolorido de tanto conter minha ira, desci a
escada.
A porta da rua estava escancarada, e não havia sinal do
açougueiro.
Embainhei a espada ao sair sob a luz fraca do fim do dia e o
açoite do vento. Escutei o som de botas, olhei para a direita e vi o
açougueiro correndo.
Fui atrás dele, sem pressa. Precisava de tempo para me
acalmar, senão o mataria.
Ele lançou uma olhada desesperada para mim por cima do
ombro e logo tropeçou e caiu de cara na rua. Estava rastejando e
balbuciando quando o alcancei, erguendo as mãos sujas em gesto
de rendição.
— Por favor, milorde. Sou só um humilde açougueiro. Eu não
sabia... O rei me deu aquelas meninas.
Se eu não tivesse que seguir ordens, teria espancado aquele
sujeito até ele perder os sentidos. Em vez disso, agachei-me ao seu
lado. Com uma das mãos, peguei-o pelo pescoço, quase a ponto de
esganá-lo. Com a outra, arranquei a manga dele.
Lá estava. Uma tatuagem de meia-lua.
— O que vai fazer comigo? — gemeu ele, com o rosto vermelho.
Gostei de ver o medo em seus olhos quando ele me encarou.
Então abri um sorriso cruel e assustador.
— O que mais eu faria com um lixo que nem você? Vou levá-lo
perante a rainha.
21

LADY MACQUINN
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn

Brienna

Cheguei ao castelo Fionn encharcada por causa de uma


tempestade de fim de tarde, com os olhos roxos, nem um pouco
pronta para exercer o poder de lady MacQuinn. Sabia que estava
com uma aparência horrível quando os cascos da minha égua
pisotearam o pátio e Liam gritou ordens para os criados, que
olharam boquiabertos das portas, prepararem um banho e
acenderem uma lareira para a filha do lorde.
Dillon, o cavalariço, saiu correndo do estábulo para pegar minha
égua, com olhos arregalados de surpresa ao ver que era eu, e
apenas eu, que tinha voltado.
— Seu pai e seu irmão estão bem, senhorita Brienna? —
perguntou Dillon, conforme a chuva salpicava seu rosto, e percebi a
preocupação oculta por trás de suas palavras.
Uma preocupação que o povo de Jourdain sentiria
imediatamente ao me ver.
Nosso lorde já nos abandonou? Nosso lorde está bem? Nós o
perdemos logo depois de o recuperarmos?
— Sim, eles estão bem, Dillon. Meu pai me mandou para casa
em vez do meu irmão — respondi, desmontando.
Agradeci a minha escolta e atravessei as poças de lama e terra,
arrastando meu manto de paixão atrás de mim até entrar no saguão.
Thorn, rabugento como de costume, estava lá para me receber.
— Senhorita Brienna — saudou ele, arqueando as sobrancelhas
grisalhas em choque. — Não a esperávamos. Devo acender
também a lareira de lorde Lucas para a noite, ou será só a sua?
— Só a minha, Thorn. Obrigada.
— E quando devemos acender a lareira do lorde? Amanhã,
decerto? Visto que pedi especificamente que ele voltasse para lidar
com este... problema.
Thorn parecia chocado ao ver os hematomas do meu rosto, e
percebi que estava curioso para saber o que os causara.
— Nem amanhã, nem depois de amanhã — respondi com um
suspiro, desamarrando as cordas do meu manto. — Não espere que
ele ou meu pai voltem tão cedo. Provavelmente vai demorar mais
uma semana, no mínimo.
Comecei a subir a escada, e Thorn me seguiu.
— Ouvimos falar de problemas na cidade real — disse ele, ainda
tentando arrancar respostas de mim. — Que alguns Lannon
escaparam.
— Foi.
Eu já estava quase no quarto, ansiosa para me livrar de Thorn.
— Lorde MacQuinn está em perigo?
— Não. Nem lorde Lucas.
— Então por que milorde mandou você voltar? Não devia ter
ficado com ele? Pedi especificamente...
— Por lorde Lucas. Sim, já ouvi, Thorn — interrompi, cansada.
Finalmente, cheguei a minha porta e pus os dedos na maçaneta de
ferro. Parei e fitei os olhos astutos do intendente. — Seu lorde me
mandou no lugar de Luc. Sei que é uma surpresa para você e que,
como intendente, você está acostumado com as atividades do
castelo. Não vou atrapalhar ou interferir em seu trabalho, mas, de
todo modo, estou aqui por vontade do meu pai. Então, se houver
algum problema durante a ausência dele, venha me procurar.
Thorn comprimiu os lábios, abaixou a cabeça e recuou.
Suspirando, entrei no quarto.
As camareiras ainda estavam correndo para tentar acender o
fogo na lareira e esquentar água para meu banho. Uma das
meninas prendeu a respiração quando viu os hematomas que
manchavam meu rosto, e sorri ao pendurar meu manto no encosto
de uma cadeira.
— Não é tão grave quanto parece — avisei, na esperança de
acalmar os olhares de preocupação.
As meninas não falaram nada, só trabalharam mais rápido para
conseguir sair de meus aposentos. Enfim só, tirei as roupas,
mergulhei na água morna, fechei os olhos e fiquei escutando as
batidas da chuva nas janelas. O tempo se dissipou, como o vapor
que subia da minha pele, e pensei em Ewan, Keela e Cartier até
parecer que eu estava me afogando.
O que será que estava acontecendo em Lyonesse? Será que,
enquanto eu estava ali, sentada em uma banheira, Cartier e Luc e
Jourdain haviam encontrado Declan e as crianças? Pensei em
Isolde, em sua segurança e coroação. Pensei em meu lugar nessa
terra, uma filha de lorde que não pertencia direito a lugar nenhum.
Onde era meu lar? Será que aqui, no castelo Fionn, entre os
MacQuinn, que ainda não confiavam em mim? Em Lyonesse, ao
lado da rainha? Do outro lado do canal, em Valenia, onde eu
finalmente poderia estabelecer minha Casa de Conhecimento?
Pensei em Merei e tentei imaginar onde ela estava, como estava.
Pensei se deveria visitá-la.
— Senhorita Brienna!
Levei um susto e agitei a água, que tinha esfriado. Neeve estava
a poucos passos de distância, boquiaberta e horrorizada ao ver
meus hematomas. Eu sequer a ouvira entrar, tão perdida que estava
em pensamentos. E meu coração começou a pular ao vê-la, minha
irmã. Será que algum dia eu poderia contar para ela o que nós
éramos? Eu tinha tanta vontade quanto medo.
— Nenhuma das meninas ficou para ajudar com o banho? —
perguntou ela, ajoelhando-se ao lado da banheira.
— Não, mas não precisava. — E definitivamente eu não queria
que ela se sentisse na obrigação de me ajudar. Comecei a me
levantar, mas Neeve pegara a esponja da minha mão e passara a
limpar a sujeira das minhas unhas.
— Você quebrou o nariz, não foi? — murmurou ela, olhando para
mim.
Prendi a respiração, sem saber como responder.
— Não tem problema — sussurrei quando ela fez menção de
pegar minha outra mão. — Você não precisa me ajudar.
— Se é para você ser tratada como lady MacQuinn, como Liam
avisou todo mundo... — Ela começou a esfregar vigorosamente
minhas unhas, como se estivesse agitada. Eu me perguntei se era
por minha causa, até que ela continuou: — Então todos deveríamos
nos oferecer para servi-la em tudo que pudermos.
Tentei reclamar, mas minhas costas doíam, e eu estava com
torcicolo e vontade de chorar.
— Você não deveria estar na tecelaria, Neeve?
Ela afundou a esponja na água turva e pegou o sabão.
— Deveria, mas está uma confusão lá agora.
Franzi a testa.
— Como assim?
Como Neeve ficou quieta, virei-me na banheira e olhei para ela.
Senti um peso estranho e súbito no fundo do peito ao juntar as
peças. Jourdain alegara que havia um problema com uma das
meninas, o que eu havia tomado por mentira para me mandar para
casa. Mas então Dillon aparentara espanto ao me ver, e Thorn
parecera especialmente consternado, porque havia pedido que Luc
voltasse para resolver o que quer que fosse...
— O que aconteceu?
Neeve suspirou e concentrou a atenção nos cachos molhados
do meu cabelo.
— Você logo vai ficar sabendo.
— Por que não posso saber de você?
— Porque não gosto de fofoca.
Comprimi os lábios, até que ela sorriu para mim. Neeve era
bonita, com uma parte do cabelo solto da trança e olhos cor de
âmbar escuro. Mal reparei nas cicatrizes em seu rosto, nas
cicatrizes do pescoço, nas cicatrizes no dorso de suas mãos
enquanto ela me lavava, indícios de que lutara e vencera uma
doença que devia ter lhe ceifado a vida.
— Devo me preocupar? — perguntei, enquanto ela me ajudava a
sair da banheira e enrolava uma toalha no meu corpo.
— Não — respondeu Neeve, pegando um pente. — Mas vou só
dizer que a menina em questão está aliviada porque foi você que
voltou, não lorde Lucas.
A intuição de Jourdain, pensei. E fiquei admirada, em silêncio, ao
constatar que meu pai soubera instintivamente que deveria ter me
mandado no lugar do meu irmão.
— Andei treinando as letras enquanto você estava fora —
anunciou ela, cheia de orgulho, mudando de assunto.
Sorri e pedi para me contar mais. Fiquei sentada no banco
enquanto ela falava e desembaraçava meu cabelo, até deixá-lo liso
e caindo feito um manto de seda pelas minhas costas.
Neeve ajudou a me vestir, apertou as fitas nas costas do vestido
até eu acreditar que ele me sustentaria o bastante para aguentar até
o fim do dia. Trançou meu cabelo, e calcei as sandálias, cobri os
ombros com um xale e saí do quarto em busca de Thorn.
Não tive que procurar muito. Encontrei-o no escritório de
Jourdain, a minha espera.
Sentei-me na cadeira do meu pai, um pequeno trono esculpido
em carvalho e forrado com pele de carneiro.
— Com o que você precisa da minha ajuda, Thorn?
O intendente deu uma fungada e preferiu ficar em pé.
— Apenas preciso de orientação. Faz tempo que não temos que
lidar com uma situação destas.
— Muito bem. Qual é a situação?
Thorn não teve chance de explicar. As portas do escritório se
abriram de repente e Betha, a tecelã-chefe, molhada de chuva e
com o rosto vermelho, entrou. Ela bateu os olhos em mim, sentada
na cadeira de Jourdain, e imediatamente começou a balançar a
cabeça.
— Achei que lorde Lucas voltaria — declarou para Thorn.
— Lorde MacQuinn preferiu enviar a filha.
Betha me encarou e senti meu rosto esquentar.
— Em que posso ajudá-la, Betha? — indaguei.
— Não quero conversar com ela sobre isto — disse ela para
Thorn.
Thorn parecia constrangido.
— Acho que você precisa tratar com a senhorita Brienna, ou vai
ter que esperar até lorde MacQuinn voltar.
— Então eu espero. — Betha se virou para ir embora. Já estava
quase na porta quando uma menina apareceu nas sombras, parada
na frente dela. — Vamos, Neeve.
Achei que tinha ouvido errado, ou que houvesse outra Neeve.
Mas então vi o cabelo cor de creme da minha irmã e ouvi a cadência
doce da sua voz.
— Não, Betha — disse Neeve. — Quero trazer esta questão
para a senhorita Brienna.
Minha pulsação acelerou quando percebi que a menina em
questão era minha irmã. Engoli a surpresa quando Neeve entrou no
cômodo, retorcendo as mãos e vindo parar na minha frente com um
breve olhar nervoso.
Não sabia por que ela não dissera algo antes, quando foi aos
meus aposentos. E pensei que talvez quisesse, mas apenas
perdera a coragem.
— Neeve — falei, com um tom delicado. — Diga. O que
aconteceu?
Mais uma vez, parecia que as palavras tinham sumido, porque
ela abriu a boca, mas não saiu som algum.
— Ela está se recusando a trabalhar — disse Betha, com
decepção na voz. — Neeve sempre foi uma das minhas melhores
fiandeiras. Tem um talento natural e sua habilidade é uma inspiração
para as outras. Mas ela se recusou a trabalhar nessa última
semana. E agora algumas das outras meninas se juntaram a ela
nessa... “resistência”.
Não era nada do que eu esperava. Olhei para ela, incapaz de
disfarçar minha surpresa.
— Tem algum motivo para isso, Neeve?
Betha deu um grunhido, mas a ignorei e me concentrei apenas
na minha irmã.
— Tem, sim, senhorita Brienna. Um bom motivo — respondeu.
— É só teimosia sua, menina — retrucou Betha, mas, apesar do
conflito, deu para perceber, pelo tom de voz de Betha, o carinho
dela por Neeve. Até pela forma como olhava para a menina...
parecia que a dureza de Betha se abrandava. — Você está
dificultando a vida das outras fiandeiras, que agora precisam
trabalhar duas vezes mais para compensar.
— As outras fiandeiras também não deviam ter que fazer esse
trabalho — observou Neeve, com firmeza.
Ela não cederia, nem mesmo quando Betha a levou diante da
filha do lorde.
— Diga qual é o trabalho — pedi.
— É uma encomenda de tapeçaria — começou Neeve —, de
Pierce Halloran.
Só de ouvir o nome já fiquei tensa.
— E me recuso a contribuir — continuou minha irmã, com um
brilho de rebeldia nos olhos. — Me recuso a sequer encostar nela
pela maneira como ele tratou a senhorita na semana passada, se
achando superior.
Fiquei admirada por aquilo, por ela e sua resistência, por sua
devoção a mim. Será que, mesmo sem saber que era minha meia-
irmã, ela pressentia a familiaridade entre nós?
— E, embora eu compreenda, Neeve — disse Betha, com um
tom rigoroso —, você é jovem e não entende como suas ações vão
afetar toda a Casa MacQuinn.
— Por favor, Betha, explique seu raciocínio.
Betha disparou um olhar bravo para mim, como se desprezasse
minha ignorância.
— Se nos recusarmos a fazer essa tapeçaria que lorde Pierce
encomendou, nossa vida vai ficar muito difícil. Nos últimos 25 anos,
os Halloran foram nossa maior fonte de sustento.
— Sustento? — Meu pavor começou a crescer.
— É. Foi graças ao dinheiro deles que sobrevivemos. Não fosse
por eles, teríamos passado fome por causa de Brendan Allenach.
Lady Halloran tem um gosto muito extravagante e só compra nossas
peças de lã e linho para seu guarda-roupa. Suas encomendas nos
mantiveram ocupadas nas últimas décadas, e as de seus filhos
também, obviamente. Recusá-los de repente agora... Acho que vai
nos causar muitos problemas no futuro.
Esperei um instante para acalmar o coração e pensar na minha
resposta.
— Entendo sua preocupação, Betha. Mas Brendan Allenach se
foi. Davin MacQuinn voltou a ser seu lorde legítimo. E não
precisamos temer e nos submeter a gente como os Halloran. Não
temos aliança com eles e não precisamos nos sentir na obrigação
de agradá-los.
Betha deu uma risadinha, mas foi de puro desdém.
— Ah, viu só? Como você poderia entender? Você não faz a
menor ideia do que era a vida durante os anos de trevas, quando
todo dia eu acordava sem saber se veria o pôr do sol.
As palavras me comoveram. Betha tinha razão: eu não sabia.
Mas também queria que ela confiasse em mim, que compreendesse
que estávamos saindo dos anos de trevas.
— Podemos conversar a sós, Betha? — perguntei.
Ela olhou para mim com insolência, e achei que rejeitaria o
pedido, mas me surpreendeu ao acenar com a cabeça para Neeve.
Neeve e Thorn, de quem eu praticamente havia esquecido,
saíram e me deixaram a sós com Betha.
Ficamos em silêncio por um instante, ambas pouco à vontade.
Ouvi o fogo crepitar na lareira e olhei para a luz, tentando encontrar
o cabo da minha coragem para desembainhá-la das labaredas. Mas
antes que dissesse qualquer palavra, Betha falou:
— Neeve é minha neta — começou ela, deixando-me ainda mais
chocada com a confissão. — Ela é a única filha da minha Lara.
Então sempre vou fazer tudo que puder para protegê-la, porque, no
fim, não consegui proteger a mãe dela. E se para isso eu tiver que
obrigá-la a trabalhar na tapeçaria dos Halloran, será por amor, para
preservá-la. E peço que você insista para ela desistir dessa
resistência, dessa insensatez.
Fiquei calada, assimilando o pedido.
— Não quero que ela seja como você — murmurou a tecelã, as
palavras mais afiadas do que uma faca no meu corpo. — Não quero
que ela encha a cabeça com ideias grandiosas, que saia por aí
irritando certas pessoas.
— Não esqueça, Betha — falei, e graças aos deuses eu parecia
calma —, que Pierce veio até mim. Eu não fui até ele.
— E é isso que você não entende, Brienna! — Ela jogou as
mãos para o alto. — Não sei de onde exatamente você vem, mas é
óbvio que sempre pôde fazer o que quisesse sem enfrentar as
consequências. Aqui é… muito diferente.
— Então você quer que eu dê uma ordem a Neeve que vá contra
a consciência dela? — rebati. — Não acho certo, Betha.
Betha bufou, mas não falou nada. Será que estava levando o
que eu disse pelo menos um pouquinho em consideração? Levantei
da cadeira do meu pai e olhei para ela.
— Entendo seu medo — murmurei. — Odeio saber que você
passou por um período de tanta crueldade. Mas seu lorde voltou.
Sua rainha voltou. E ela é um raio de luz em meio à escuridão. E os
Halloran sabem disso e se estremecem sob essa luz, porque ela os
expõe. Você não pertence a eles. Jamais pertencerá. E se resistir a
eles agora, prometo que ficarei ao seu lado se houver retaliação.
Assim como meu pai, assim como meu irmão.
Betha me encarava com raiva, Mas vi um reflexo de lágrimas em
seus olhos, como se tivesse acolhido as palavras, como se as
sentisse se assentarem dentro de si.
— Acho que Pierce está testando vocês ao fazer essa
encomenda tão pouco tempo depois de ser constrangido por uma
de suas tapeçarias. Não tenho a menor dúvida de que está tentando
expressar poder, mesmo não tendo nenhum aqui — sussurrei. —
Então, você escolhe ficar com ele ou comigo?
Betha não respondeu.
Ela se virou, saiu do cômodo e bateu a porta atrás de si.
Mas continuei ali, sentada sozinha no escritório do meu pai até o
fogo começar a se apagar e a escuridão desabrochar através do
chão.

Só fiquei sabendo da novidade ao meio-dia do dia seguinte. Mas os


murmúrios começaram, brotando da tecelaria para os corredores do
castelo, estendendo-se de prédio em prédio, como uma raiz, até me
alcançar no porão, onde eu ajudava a cozinheira a pendurar ervas
para secar.
A tapeçaria de Pierce fora suspensa.
Sentada entre jarros de frutas em conserva, cestos de cebola e
batata, com ervas amassadas no meu avental, sorri com alegria
para as sombras.
22

ROSALIE
Cidade real de Lyonesse, território de lorde Burke

Cartier

Quando caiu a noite, me aproximei o máximo possível das estrelas,


nas ameias do castelo, e deixei o vento me atingir até borrar meus
pensamentos e queimar meu rosto de frio. A cidade de Lyonesse se
estendia abaixo de mim, como um rolo de pergaminho preenchido
por segredos obscuros e casas cintilantes à luz de velas.
Eu não havia encontrado Declan Lannon.
Jourdain tampouco. Nem Luc. Nem lorde Burke.
O príncipe não estivera escondido em nenhum dos quatro
refúgios que tínhamos investigado, e Tomas não conseguia pensar
em qual seria o destino seguinte de Declan.
Ele estava sempre um passo à frente.
Suspirei, preparando-me para ir até meus aposentos, quando
senti a presença de outra pessoa. Na escuridão, Isolde estava a
poucos passos de distância, também com os olhos fixados na
beleza da cidade abaixo de nós. Ela se aproximou, parou ao meu
lado e estendeu as mãos para se apoiar na amurada.
— Como estão as meninas? — perguntei.
— Curei o corpo delas o máximo que pude — respondeu Isolde.
— Estão descansando agora. — Ela se calou por um instante, e
percebi que havia algo mais. — Aodhan, todas aquelas seis jovens
são Kavanagh.
Já desconfiava. A garota que havia projetado a ilusão das
trepadeiras para me guiar... Eu sabia que ela era Kavanagh, que
fazia parte do povo de Isolde. Havia concluído que as outras cinco
também eram, e que talvez sua magia ainda estivesse oculta no
sangue, que ainda não tivesse vindo à tona.
— Foram elas que contaram? — perguntei, com a voz baixa.
— Não. Não precisaram — respondeu a rainha, com pesar. —
Soube no instante em que peguei em suas mãos. Senti o fogo
dentro delas, um fogo que quase se transformou em cinzas hoje.
Senti minha alma chamá-las, e as delas responderam. Cinco delas
estão alheias a isso. Acho que a magia emergirá aos poucos,
quando se sentirem seguras e conseguirem descansar. Seus pais e
familiares morreram. Gilroy deixou as meninas vivas para acorrentá-
las no bordel.
Fiquei enjoado ao lembrar a cena: o cheiro, a escuridão, o
sangue e as correntes. Quanto tempo aquelas meninas haviam
passado em cativeiro? Será que presenciaram o que acontecera
com suas famílias?
— Que os deuses tenham piedade, Isolde.
Depois de um instante de silêncio, ela murmurou:
— Sabia que minha Casa estava quase extinta, que Lannon a
perseguira deliberadamente nos últimos 25 anos. Esperava que
fosse levar algum tempo para encontrar meu povo, se é que
houvesse alguém ainda vivo. Mas o que não esperava era identificá-
lo só de pegar em suas mãos, só de tocar nelas.
Refleti sobre isso e lamentei não saber o que dizer para consolá-
la.
Isolde olhou para mim.
— Sei que você deve achar isso tudo estranho, mas meu pai e
eu ainda estamos debatendo teorias, frustrados com a falta de um
manual que possa nos ajudar a entender melhor as regras da
magia.
— Não é estranho, Isolde — respondi.
Isolde baixou o cenho, e percebi que o rumo de seus
pensamentos estava mudando.
— O açougueiro nos disse tudo, menos aonde Declan foi hoje de
manhã. Ele alega não saber qual é o próximo refúgio do príncipe,
mas que uma carroça veio ao depósito do açougue para transportar
os Lannon. E embora o que eu mais deseje é espancar e torturar
esse homem repugnante, não vou me transformar naquilo que estou
tentando expurgar deste castelo.
Continuei calado porque, se ela pedisse minha opinião nesse
momento, eu diria para espancar o açougueiro até ele falar. E eu
mal acreditava que podia haver essa vontade dentro de mim, depois
de ter crescido em Valenia, onde a justiça sempre era cuidadosa e
responsável.
— Você já se perguntou — começou Isolde, trêmula — por que
você, eu e Luc sobrevivemos, quando devíamos ter morrido, quando
nossos ossos deviam estar sob a relva junto com nossas mães e
irmãs? Você se odeia — continuou ela, com lágrimas descendo pelo
rosto — por ter sido criado em Valenia? Por ter recebido cuidado,
proteção e amor, por ter vivido em feliz ignorância enquanto nosso
povo vivia com medo e brutalidade? Por que, enquanto eu dormia
em uma cama quente e segura, aquelas meninas estavam
acorrentadas e eram maltratadas todas as noites? Por que,
enquanto eu reclamava de ter que aprender a ler e escrever, a
brandir uma espada, aquelas meninas tinham pavor de proferir uma
palavra sequer, por medo de surras e mutilações? — Isolde
enxugou as lágrimas, e seu cabelo se emaranhou no rosto. — Não
mereço ser rainha. Não mereço me sentar em um trono porque não
faço a menor ideia do que este povo sofreu. Eu não devia ter
sobrevivido ao dia de trevas.
Toquei delicadamente o ombro dela e a virei para mim.
— Houve um momento na minha vida em que pensei que jamais
atravessaria o canal, pensei que ficaria em Valenia e fingiria ser
Cartier Évariste, fingiria ser um mestre de conhecimento que não
tinha povo, nem Casa Morgane, nem mãe e irmã sepultadas em
uma campina do norte. — Parei de falar, porque me odiei nesse
momento. Odiei reconhecer que eu tentara viver a vida como bem
entendesse. — Mas não fiquei. Você não ficou. Reunimos as poucas
forças que tínhamos, atravessamos o canal e recuperamos estas
terras. Lutamos e sangramos. Sim, também fui ignorante e ingênuo.
Só entendi a gravidade das trevas e da corrupção hoje, quando
encontrei aquelas meninas. E se você e eu recuarmos agora, se
decidirmos desistir desta luta, mais meninas serão roubadas de
suas famílias e acorrentadas, e mais meninos serão educados para
ser cruéis.
Isolde finalmente olhou para mim.
— Você e eu precisamos seguir em frente — sussurrei. —
Precisamos continuar eliminando as trevas e a corrupção e
substituí-las por bondade e luz. Vai levar tempo. Vai demandar todo
o nosso coração e nossa vida, Isolde. Mas não podemos desejar ter
morrido. Apesar do que os santos e os deuses determinaram para
nós, não podemos desejar ser outras pessoas.
Isolde fechou os olhos, e eu não tinha como saber se ela estava
me xingando por dentro ou concordando comigo. Mas quando voltou
a olhar para mim, havia um brilho diferente em seu rosto, como se
minhas palavras a tivessem renovado.
Fui o primeiro a voltar para o calor do castelo, deixando Isolde
para lançar suas orações para as estrelas. E eu sabia o que me
aguardava: mais uma noite insone. Mais uma noite vasculhando os
registros tributários dos Lannon em uma busca desesperada por
outro lugar corrupto que atraísse Declan.

Dois dias se passaram, tomados por buscas e perseguições que


não deram em nada.
Havíamos investigado curandeiros e movimentações de
carroças, ainda tentando encontrar Fechin. Mas cada via que
seguíamos chegava a um fim que nos deixava sem respostas ou
pistas.
E cada dia que passava era mais um dia para Declan se
fortalecer.
Isolde foi obrigada a começar a prender pessoas. Qualquer um
que tivesse o sinal da meia-lua era levado à masmorra para ser
interrogado e detido até a captura de Declan.
Eu estava em um desses interrogatórios na masmorra com um
dos taverneiros, que teimava em não responder às perguntas,
quando Luc apareceu.
— Rápido, Morgane. Precisamos de você no conselho.
Entreguei o papel e a pena para um dos homens de Burke, para
que ele pudesse continuar o interrogatório, e subi com Luc a escada
sinuosa. Reparei que Luc avançava a uma velocidade extraordinária
e que seu cabelo estava arrepiado, como se ele tivesse passado os
dedos por entre as mechas.
— Temos uma pista? — perguntei, tentando acompanhar o
ritmo.
— O valete de Sean Allenach recebeu outra carta. Rápido, aqui
dentro.
Luc abriu a porta do conselho, onde o fogo ardia no centro da
mesa e os outros estavam reunidos.
O rosto de Sean estava estranhamente pálido quando ele olhou
para mim. Achei que fosse a iluminação, que as sombras
estivessem produzindo ilusões de ótica nele. Até que vi que
Jourdain estava com o rosto enfiado nas mãos, como se tivesse
perdido a determinação.
Meu primeiro medo foi que houvessem encontrado o corpo de
Ewan e Keela.
Olhei para Isolde, que estava imóvel feito uma estátua, e
perguntei:
— O que aconteceu? São as crianças?
Lorde Burke se limitou a me entregar a carta.

Não tivemos problemas, mas houve uma mudança de planos. O


escolhido supracitado não virá visitar no outono. Em seu lugar,
vamos receber Rosalie. Prepare-se para enviar bastante vinho e
pão.

Encolhi os ombros e li de novo.


— Certo. Por que isso deixou todo mundo nervoso?
Jourdain continuou sem se mexer, então olhei para Luc, mas ele
estava de costas para mim, virado para a parede. Nem mesmo
Isolde quis me olhar nos olhos, tampouco seu pai. Lorde Burke tirou
cuidadosamente a carta dos meus dedos enrijecidos, e fui obrigado
a me voltar para Sean Allenach.
— Sean?
— Achei que você soubesse — murmurou ele.
— Soubesse o quê? — retruquei, impaciente.
— Quem é Rosalie.
Comecei imediatamente a revirar na cabeça nomes, rostos e
pessoas que eu conhecera em Valenia, porque Rosalie era um
nome valeniano. Depois de um tempo, levantei as mãos, irritado, e
desisti.
— Não faço a menor ideia. Quem é?
Sean olhou rapidamente para Jourdain, que continuava imóvel.
Aos poucos, como se tivesse medo de mim, Sean me encarou e
sussurrou:
— Rosalie era o nome da mãe de Brienna.
A princípio, eu quis negar — Sean Allenach não sabia de nada
—, até que me dei conta de que eu é que não sabia o nome da mãe
de Brienna. E eu devia saber esse nome, devia saber quem dera
vida a ela, de quem ela sentia saudade, quem ela desejava lembrar.
Mas como Sean sabia?
Fiquei indignado, até que os filamentos da vida de Brienna
começaram a se entrelaçar na minha mente frenética.
Sean sabia o nome porque Rosalie já visitara o castelo Damhan.
Sean sabia porque Rosalie se apaixonara por Brendan Allenach.
Sean sabia porque Rosalie era a mulher com quem Brendan
Allenach quis se casar, porque ela engravidou de uma menina.
Em seu lugar, vamos receber Rosalie...
Rosalie era o codinome de Brienna.
— Não. — Minha negação foi tão veloz e dolorosa que apoiei a
mão na mesa para me equilibrar. Foi como se um osso estivesse
preso na minha garganta. — Não pode ser. Eles não podem estar se
referindo a Brienna.
— Aodhan... — disse Isolde, e foi em tom de consolação, como
se alguém tivesse morrido e ela quisesse expressar pêsames pela
minha perda.
— MacQuinn a mandou para Fionn, para ficar em segurança —
insisti, olhando para Jourdain.
Jourdain finalmente tirou as mãos do rosto e me encarou com
olhos inflamados.
— MacQuinn... — murmurei, mas minha voz se apagou, porque
naquele instante entendi o porquê de não conseguirmos encontrar
Declan Lannon. Era porque Declan Lannon não estava mais em
Lyonesse. Declan Lannon escapara da cidade na mesma manhã em
que Brienna saíra. E agora parecia que os meias-luas pretendiam
sequestrá-la.
— Sim — sussurrou Jourdain. — Eu a mandei para casa. Para
ficar em segurança.
Só que ela não estava em segurança. Se essa mensagem
roubada tivesse alguma verdade, ela era o novo alvo. E se Declan e
seus meias-luas a capturassem, tentariam usá-la para nos
chantagear, tentariam negociar a vida dela.
Meus pensamentos estavam indo para todos os lados: o que
Declan pediria em troca? Sua família? A liberdade? A rainha?
— Cadê Daley Allenach? — perguntei, concentrando a atenção
em Sean.
— Meu valete fugiu, lorde Aodhan — respondeu Sean, com um
tom pesaroso. — Ele sabe que peguei a correspondência dele.
Fiquei com vontade de esfregar a cara de Sean na parede.
— Você teve notícias de Brienna? — Virei-me para Jourdain. —
Ela chegou a Fionn?
— Recebi notícias ontem — respondeu Jourdain. — Ela chegou
bem.
Soltei um suspiro lento, achando que, se ela estava em casa,
então realmente estava em segurança. Estava em uma fortaleza
que no passado resistira a incursões e conflitos entre clãs. Cercada
de gente que odiava os Lannon. Era astuta, e era forte.
Mas ela não sabia. Não sabia que Declan escapara de
Lyonesse. Seria pega desprevenida: os meias-luas teriam que agir
de surpresa se quisessem capturá-la.
E ainda pior que isso, parecia que os meias-luas estavam
espalhados por todos os cantos, não apenas nas Casas Lannon,
Allenach, Halloran e Carran. E se algum MacQuinn fosse um meia-
lua disposto a traí-la?
Olhei para Jourdain, que retribuiu o olhar, e o espaço entre nós
se encheu de medo, ira e preocupação. Em um canto da mente eu
só ouvia a voz de Brienna, suas últimas palavras para mim: Por que
você está me deixando ir embora mesmo sabendo que eu devia
ficar?
Jourdain e eu havíamos cometido um erro grave ao mandá-la
para casa.
Se Declan conseguisse sequestrá-la, meu coração ficaria nas
mãos dele. Ele poderia me destruir, poderia me pedir qualquer
coisa, e eu daria sem hesitar.
Empurrei a mesa para me afastar e andei até a porta, incapaz de
falar, dominado pela vontade de sair correndo para Fionn e alcançá-
la antes de Declan.
— Aodhan. Aodhan, espere — demandou Isolde.
Parei com a mão nos puxadores de ferro das portas, respirando
perto da madeira.
— Brienna MacQuinn é uma das mulheres mais inteligentes que
eu conheço — continuou ela. — Se existe alguém capaz de escapar
das garras de Declan, é ela. De qualquer forma, é hora de agirmos.
Virei-me. Os outros haviam formado um círculo apertado e
estavam me esperando. Voltei para perto do fogo. Por fora, eu
estava calmo e frio, mas, por dentro, estava desmoronando. Caindo
aos pedaços.
— Declan Lannon pretende sequestrar Brienna, certamente para
usá-la como moeda de troca — declarou Isolde. — Se a capturar
antes de chegarmos ao castelo Fionn, vai pedir a minha vida em
troca da dela. Jurei que não negociaria com aquele homem, então
precisamos descobrir onde Lannon está escondido e resgatá-la o
mais rápido possível.
— Ele não a sequestrará em Fionn — contestou Jourdain. —
Não vai conseguir passar pelo meu pessoal.
Isolde meneou a cabeça.
— Claro, lorde MacQuinn.
Mas a rainha olhou para mim, e o mesmo pensamento passou
por nossa cabeça: Brienna tinha sangue Allenach. Os MacQuinn
ainda precisavam aceitá-la, mesmo se tratando da filha do lorde.
— Pai, peço que continue aqui em Lyonesse com lorde Burke,
para defender a cidade e vigiar os outros prisioneiros Lannon —
disse Isolde. — Lorde MacQuinn, lorde Aodhan, lorde Lucas e lorde
Sean cavalgarão comigo até o castelo Fionn imediatamente. A partir
de lá, começaremos a adquirir possíveis pistas do paradeiro de
Declan, mas desconfio que ele esteja se escondendo em um dos
territórios dos meias-luas.
A rainha olhou para nós e viu todos colocarmos a mão no peito.
Quando seus olhos pararam em mim, vi as chamas se atiçando
dentro dela, um fogo ancestral, como se ela fosse um dragão
recém-despertado. Um dragão prestes a alçar voo, encobrir a meia-
lua com as asas e espalhar o terror pelos céus.
Pus a mão no peito, senti os batimentos trêmulos do coração na
palma e deixei minha fúria crescer silenciosamente junto com a
dela.
23

A FERA
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn

Brienna

— Aconteceu um acidente, senhorita! — exclamou Thorn, entrando


de repente no escritório.
Fiquei tensa. Tirei os olhos dos livros-caixa de MacQuinn e vi
Thorn com o gibão sujo de sangue.
— De caça. Acho que dois homens morreram, e outro...
Pulei da cadeira, saí pelo corredor antes que ele conseguisse
terminar e segui a comoção no salão. Não sabia o que esperar, mas
minha determinação vacilou quando vi Liam chegar carregado e ser
colocado em uma mesa, com o rosto mutilado e uma flecha cravada
no lado direito do peito.
Os homens que o traziam sentiram a minha presença, se
viraram para mim e me encararam com olhos arregalados de
pânico. Então se afastaram para me deixar chegar perto, e pus os
dedos cuidadosamente no pescoço de Liam, onde uma pulsação
fraca persistia.
— Chamem Isla — murmurei, ciente de que precisaria da ajuda
da curandeira para tratar o ferimento. Enquanto uma das mulheres
saía às pressas para buscá-la, virei-me para os homens e falei: —
Ajudem-me a levá-lo para um quarto.
Erguemos Liam com cuidado e em sincronia, entramos em um
dos corredores e fomos para o quarto vazio mais próximo. Depois
que deitamos Liam com delicadeza na cama, tratei de cortar o gibão
e a camisa dele para expor o tronco e avaliar a posição da flecha.
Toquei de leve seu peito e apalpei as costelas. Parecia que a flecha
estava alojada na quarta costela. Seria difícil extraí-la. Havia
estudado ferimentos à flecha com Cartier quando era aluna e,
embora nunca tivesse tido a oportunidade de tratar um, sabia que
ferimentos no tórax eram quase sempre fatais se o pulmão fosse
afetado. Sabia também que era extremamente difícil extrair a ponta
da flecha que tivesse se cravado em um osso.
Em seguida, examinei o rosto, que parecia ter sido atingido por
um conjunto de garras. A pele da bochecha estava rasgada,
deixando os dentes visíveis. Senti o estômago revirar com a cena e
quase tive que desviar a vista.
— Preciso de água limpa, mel de rosas e muitas bandagens —
pedi a uma das mulheres que me acompanharam até o quarto. — E
mande as meninas acenderem esta lareira. Rápido, por favor.
Assim que a mulher saiu, gritando apelos urgentes pelo corredor,
voltei minha atenção para o homem que ajudara a trazer Liam e que
estava com os olhos escuros fixos em mim, à espera da minha
próxima ordem.
— O que aconteceu? — sussurrei.
— Senhorita, não sabemos. Os outros dois homens que estavam
com Liam morreram.
— Que homens?
— Phillip e Eamon.
Phillip e Eamon. Os dois guardas que haviam me acompanhado
na viagem de volta de Lyonesse.
Isla entrou no quarto, distraindo-me do choque. Eu a vira no
salão durante as refeições, mas nunca falara com ela antes. Era
uma mulher mais velha, com cabelo branco comprido e olhos da cor
do mar. Ela abaixou a bolsa e examinou os ferimentos de Liam.
Depois de um instante, olhou para mim e perguntou:
— Você é sensível a sangue?
— Não — respondi. — E sei tratar ferimentos.
A curandeira não disse nada, só pôs as mãos na bolsa. Fiquei
olhando conforme ela separava sondas pequenas de diversos
tamanhos, feitas de sabugueiro. Depois foi a pinça, lisa e estreita,
feita especificamente para extrair pontas de flecha.
Isla gesticulou para dois dos homens segurarem Liam. Não me
mexi — ainda não — e me limitei a observá-la tentar girar a haste da
flecha. A haste se recusou a girar e se quebrou de repente na mão.
— A ponta da flecha está cravada no osso — informou, jogando
a haste no fogo.
— Posso achá-la e extraí-la — afirmei, aproximando-me.
Trabalhei ao lado dela, enrolando tecido nas sondas e
mergulhando as pontas em mel de rosas. Isla pediu para os dois
homens que ficaram conosco no quarto continuarem segurando
Liam, um nos ombros, outro na cintura, e começamos a abrir
gradualmente o ferimento da flecha com as sondas. Eu já estava
encharcada de suor quando vi a ponta da flecha, um brilho escuro
de metal coberto de sangue, alojada numa costela de Liam.
Peguei a pinça e inseri a extremidade no ferimento até achar a
ponta da flecha. Subi ao lado dele na cama, firmei meu corpo e a
puxei. O metal se soltou e eu voei para longe, caí no chão e bati
com um estrondo na mesa. Mas levantei a pinça, e lá estava a ponta
da flecha.
Ah, se Cartier tivesse me visto fazer aquilo… Ficaria triste de ter
perdido.
Isla acenou brevemente com a cabeça para mim e se virou de
novo para Liam, para retirar as sondas e começar a limpar o
ferimento. Os dois homens continuavam segurando Liam, mas
abaixaram a cabeça para mim com um respeito que eu nunca vira
ou sentira antes.
Levantei-me, larguei a pinça e então entreguei a bandagem para
Isla enquanto segurava o vidro de mel.
— Temos que esperar para ver se o pulmão foi afetado — avisou
Isla, terminando de preparar o emplastro curativo. — Quanto ao
rosto... Vou ter que tentar recompô-lo. Você entende de ervas,
senhorita Brienna?
— Entendo. Do que precisa?
— Abrolhos — respondeu ela. — Cresce em partes da mata
leste, perto do rio.
— Vou colher um pouco.
Saí rapidamente do quarto, percorri o corredor e entrei no salão.
Não esperava ver uma multidão reunida, homens e mulheres
sentados em silêncio em volta das mesas, com expressões graves,
esperando notícias de Liam. Todo mundo se levantou quando entrei,
e parei de repente, sentindo os olhares no sangue em minhas mãos,
nas manchas no meu vestido e rosto. Thorn foi o único a vir falar
comigo.
— Ele morreu? — perguntou o intendente.
— Não. A flecha foi removida.
Continuei andando até o saguão, e os MacQuinn abriram
caminho para minha passagem. Mais uma vez, comecei a sentir
respeito ao andar entre eles conforme se afastavam para eu passar,
conforme seus olhos me acompanhavam. Percebi, nesse momento,
que estavam esperando ordens minhas.
Parei na porta e me perguntei que tipo de ordem eu deveria dar.
Girei nos calcanhares e estava a um suspiro de dizer que eles
deveriam tirar o resto do dia, que estava acontecendo algo nas
terras MacQuinn e que eu precisava tentar entender a situação,
quando Thorn roubou o momento.
— Voltem ao trabalho, todo mundo — ordenou o intendente, com
um tom brusco. — Não faz sentido perder o resto do dia.
Os homens e as mulheres começaram a sair do salão. Continuei
parada sob o arco, até Thorn olhar para mim.
— Precisamos conversar quando eu voltar, Thorn — falei.
Ele pareceu confuso com meu pedido, mas assentiu e disse:
— Claro, senhorita Brienna.
Fui para o saguão e peguei um cesto na saída. Era começo da
tarde, e o céu estava nublado. Parei por um instante para afastar o
cabelo do rosto e senti que estava começando a ficar com dor nas
costas.
— Senhorita Brienna!
Virei-me e vi Neeve correndo na minha direção, seguida por
Nessie, minha wolfhound, vindo alguns passos atrás dela e com a
língua de fora.
Neeve parou assim que viu o sangue em mim e levou as mãos
trêmulas à boca.
— Está tudo bem — tranquilizei-a. — Vou colher um pouco de
abrolhos.
Neeve engoliu o medo e abaixou as mãos.
— Eu sei onde cresce. Deixe-me ajudar.
Juntas, caminhamos um bocado depois de perder o castelo de
vista, onde a mata começava a ficar mais densa ao longo da
margem do rio. Dei meu punhal para Neeve, para que ela pudesse
cortar os abrolhos sem encostar nos espinhos, e trabalhamos em
silêncio e com pressa até encher o cesto.
Estava ajoelhada, lidando com uma flor teimosa, quando ouvi um
graveto se partir na floresta. Não teria dado importância, mas Nessie
começou a rosnar ao meu lado, eriçou os pelos da nuca e mostrou
os dentes.
— Nessie — sussurrei, mas olhei para as sombras da mata, para
o conjunto cerrado de arbustos e árvores.
Um calafrio de alerta percorreu minha coluna quando senti a
presença penetrante de olhos ocultos.
Alguém estava no meio daquela mata, observando-me.
Nessie começou a latir, latidos curtos e bravos, e deu mais um
passo em direção à mata.
Todos os pelos do meu corpo se arrepiaram, e me levantei aos
tropeços.
— Neeve? Neeve!
Minha irmã veio correndo para a clareira, chegando pela minha
esquerda. Tremi de alívio ao vê-la, ainda com o punhal na mão.
— O quê? O que foi? — Neeve ofegava e percebeu que Nessie
continuava rosnando e andando lentamente na direção das
sombras. — É a fera?
— Fera? — repeti.
— A fera que atacou Liam.
Olhei de novo para a floresta. Quis dizer que não era fera
nenhuma. Era um homem.
Pendurei o cesto com abrolhos em um dos braços e peguei
minha irmã com o outro.
— Vamos, precisamos voltar. Nessie? Nessie!
A cadela só resolveu obedecer quando entendeu que eu estava
me afastando do perigo. Nós três praticamente saímos correndo da
floresta para o campo aberto, sob o céu cinzento e áreas iluminadas
por raios de sol. Eu já estava sem fôlego quando chegamos ao
saguão do castelo.
— Você tem um punhal, Neeve? — perguntei quando ela tentou
me devolver a pequena arma.
— Não — respondeu ela. — Lorde Allenach nos proibia de ter
essas coisas.
— Bom, esse agora é seu. — Levantei a saia para desafivelar a
bainha presa na perna. Entreguei para ela e esperei até vê-la
prender na própria coxa e acomodar bem o punhal por baixo do
vestido. — Use-o sempre. E se alguém ameaçá-la, quero que corte
a pessoa aqui ou aqui. — Apontei para o pescoço dela e para a
axila.
Neeve arregalou os olhos, mas assentiu com a cabeça,
aceitando minha ordem.
— E você, senhorita?
— Vou pegar outra faca. — Toquei no braço dela e apertei de
leve, para tranquilizá-la. — Não vá a lugar nenhum sozinha, nem
sequer o trajeto entre a tecelaria e o castelo. Peça para alguém
acompanhá-la. Por favor.
— Por causa da fera?
— É.
Neeve se esforçava para conter o medo, para aparentar
coragem, mas dava para ver como estava pálida e preocupada.
Com delicadeza, puxei-a para mim e dei um beijo em sua testa. Ela
ficou paralisada pelo gesto afetuoso, e me censurei pelo
atrevimento. Não era assim que a lady MacQuinn se portaria, e
percebi que estava deixando Neeve confusa.
— Pode ir — murmurei, com um leve empurrãozinho, e Neeve
se afastou por um dos corredores, lançando um olhar com um brilho
sombrio para mim, como se estivesse começando a sentir os fios
invisíveis que nos ligavam.
Voltei ao quarto de Liam e entreguei à curandeira o cesto de
abrolhos. Trabalhamos juntas em silêncio, macerando as flores até
formar um pó fino, que ela misturou com mel para preparar um
creme. Isla havia recomposto o rosto de Liam durante minha
ausência, e a ajudei a aplicar a pomada nas fileiras de pontos do
nobre. Enquanto eu lavava as mãos, a curandeira cobriu
cuidadosamente o rosto dele com tiras limpas de tecido.
— Nenhuma fera causou estes ferimentos, senhorita Brienna —
observou a curandeira, com um tom sério.
— É, eu sei. — Eu respirava com dificuldade e lembrava da
sensação perturbadora de que havia alguém me observando do
meio do mato apenas uma hora antes. — Você se incomoda de ficar
aqui com ele por um tempo? Venho liberá-la ao pôr do sol.
— Claro, senhorita.
Isla assentiu, e saí imediatamente, pedindo para Thorn vir falar
comigo no escritório de Jourdain. Sentei-me na cadeira do meu pai
e o intendente parou diante de mim, inquieto.
— Imagino que você tenha obtido informações sobre o que
aconteceu hoje cedo enquanto eu ajudava a tratar Liam — declarei.
— Sim, senhorita. Liam saiu para caçar com Phillip e Eamon —
começou Thorn. — Não é algo incomum. Os três eram próximos e
caçaram juntos muitas vezes nas últimas três semanas. Liam voltou
a cavalo para o castelo, quase caindo da sela, atingido por uma
flecha e com o rosto mutilado. Os homens que ajudaram a trazer
Liam para o pátio disseram que ele só conseguiu murmurar uma
palavra. Fera. Falou isso duas vezes antes de perder os sentidos,
logo antes de a senhorita chegar. Enquanto você e Isla cuidavam
dele, despachei um batedor para procurar os outros dois. Foram
encontrados mortos na campina do norte, com o rosto também
mutilado, mas haviam sofrido ferimentos profundos no abdome.
Receio que... — Ele hesitou.
Esperei, com as sobrancelhas arqueadas.
— Receia o quê, Thorn?
Ele deu uma olhada nas manchas de sangue em mim e
suspirou.
— Receio que as entranhas deles tenham caído e se espalhado
pelo gramado.
Fiquei quieta por um instante, contemplando as sombras do
escritório. Era horrível saber que aqueles homens tinham morrido
com tamanha brutalidade. E apesar da minha vontade de murchar
de choque, eu sabia que não podia.
— Uma fera não devoraria os homens em vez de brincar com as
entranhas deles?
Thorn ficou calado, quase como se não tivesse pensado nisso.
— Além do mais, que tipo de fera dispara flechas, Thorn?
O intendente corou, indignado.
— Por que a senhorita está me perguntando essas coisas?
Como é que vou saber? Só estou contando o que descobri!
— E eu só estou conversando, para tentarmos solucionar esse
mistério terrível.
— Mistério? Não tem mistério aqui — rebateu ele. — Foi um
trágico acidente! A maioria dos homens achou que Eamon ou Phillip
tentou atirar na fera quando ela atacou, e que a flecha acertou Liam
por engano.
Pode ser, pensei. Mas algo não se encaixava. Recostei-me na
cadeira e pensei em como as coisas pareciam estranhas desde que
eu saíra de Lyonesse.
— Você está com as penas da flecha? — perguntou Thorn,
pegando-me de surpresa. — Se quiser entregá-la para mim, posso
dizer se é uma das nossas flechas ou se é de outra Casa.
Senti a esperança crescer, mas logo ela minguou quando
lembrei que a curandeira jogara a haste no fogo, irritada por ter
quebrado a flecha sem querer.
— Não. Não tenho as penas.
— Então não sei o que mais posso dizer, senhorita Brienna.
Além de lamentar profundamente que você tenha que lidar com isto.
Seu pai devia ter mandado lorde Lucas para casa.
Tive que reprimir minha irritação.
— Onde estão os corpos de Phillip e Eamon agora? — indaguei,
esfregando as têmporas doloridas.
— As esposas deles estão preparando-os para o enterro.
Tinha que ir atrás dessas esposas e ajudá-las com os
preparativos. Levantei-me e falei:
— Quero que você despache um grupo de guerreiros para
vasculhar os arredores, até os limites do território. Comece na mata
leste, onde crescem os abrolhos.
Ele franziu o cenho.
— Mas, senhorita... por quê?
— Por quê? — Quase dei risada. — Porque tem uma fera à solta
na propriedade, matando nossa gente.
— Então você quer que eu arrisque mais dos nossos para matá-
la? Provavelmente é um urso, e ele já deve ter fugido para sua
caverna. Já explorei e falei que só encontramos os corpos de Phillip
e Eamon.
— Thorn. Essa fera não é urso coisa nenhuma. É um homem.
Provavelmente um Halloran, que deve estar acompanhado por um
grupo de comparsas. Encontre-os e traga-os para mim. Entendeu?
— Halloran? — Thorn me encarou, boquiaberto. — Que
absurdo! Você está tentando começar uma guerra?
— Se eu estivesse tentando começar uma guerra, você não
precisaria perguntar. Já saberia — declarei, com frieza. — Agora vá
fazer o que estou pedindo e não teste o pouco que resta da minha
paciência.
Thorn saiu, ainda com aquela expressão de choque nos olhos,
como se não conseguisse acreditar nas minhas ordens.
Esperei até a porta se fechar e, com as pernas trêmulas, me
sentei de novo.
Tinha que ser os Halloran.
Pensei em Pierce, na humilhação dele, no fato de que nos
recusamos a produzir sua tapeçaria. Seria uma retaliação?
Tome cuidado, Brienna.
O aviso de Grainne ecoou novamente, e pensei nos anos que
ela e os Dermott haviam passado sujeitos às incursões dos
Halloran.
O que eu faria se Thorn trouxesse os Halloran? O que faria com
eles?
Não tinha a menor ideia. E talvez isso me assustasse mais do
que qualquer outra coisa.

Estava no quarto de Liam à noite, fervendo uma panela com ervas


para limpar o ar, quando Thorn me encontrou. O velho estava sujo
de lama e parecia exausto ao vir falar comigo.
— Não encontramos nada, senhorita Brienna. Nada além de
pássaros, esquilos e coelhos — relatou ele, sucintamente, como se
quisesse expressar: Bem que eu falei.
Levantei-me para encará-lo. Éramos só eu, ele e Liam no quarto.
Havia mandado Isla jantar e descansar um pouco.
Thorn olhou para Liam, ainda deitado na cama.
— Como ele está?
— Ainda respirando — respondi, mas meu tom era pesado.
Era como Isla e eu temíamos: Liam perdera os sentidos e
respirava com dificuldade. A curandeira duvidava de que ele fosse
sobreviver à noite.
Mas não contei para Thorn. Joguei outro ramo de hortelã-
pimenta na panela fervente, rezando para que as ervas limpassem
os pulmões do nobre, embora a respiração dele continuasse
enfraquecendo.
— Vá jantar, Thorn. Você já fez o bastante por hoje.
O intendente suspirou e saiu, e me sentei ao lado de Liam até
Isla voltar para me liberar.
Só me dei conta de quanto estava cansada quando saí para o
pátio da frente e assobiei para chamar Nessie.
Minha wolfhound apareceu prontamente, como se estivesse me
esperando. Levei-a para o quarto e a convidei a dormir na cama
comigo.
Enquanto ela se refestelava nas minhas cobertas, peguei minha
espada larga. Desembainhei a lâmina e a admirei antes de subir na
cama. Repousei a espada ao meu lado no colchão, com o cabo ao
alcance das mãos para uso imediato.
Por fim, deitei, cadela de um lado, aço do outro, e observei as
sombras que a luz da lareira produziam no teto.
Não lembro de adormecer. Devo ter pegado no sono aos
poucos, porque, quando dei por mim, Nessie estava rosnando.
Abri os olhos e, com o fogo reduzido a brasas, sorvi a escuridão.
Fiquei paralisada.
Nessie rosnou de novo, e foi aí que escutei. Uma batida fraca,
hesitante, na minha porta.
— Sossega, Nessie — reclamei, e ela se aquietou.
De espada na mão, saí da cama e comecei a andar lentamente
até a porta.
— Senhorita Brienna?
Era Thorn. Dei um suspiro de irritação, abri um pouco a porta, e
o intendente estava ali, com uma vela, esperando por mim.
— O que foi agora, Thorn?
— Tem uma pessoa que acho que você precisa ver — sussurrou
ele. — Rápido, venha comigo. Acho que tem a ver com o... ataque.
Thorn então olhou para trás de mim, onde Nessie continuava
rosnando. Seus olhos se arregalaram muito ligeiramente de
apreensão.
— Só um instante.
Fechei a porta para calçar as botas e amarrar meu manto de
paixão no pescoço. Prendi o boldrié da espada no peito e deixei a
arma se acomodar confortavelmente nas minhas costas, entre os
ombros, com o cabo para o alto e pronto para ser puxado.
Quando abri a porta de novo, Thorn esperava a alguns metros
de distância.
— Ela vai ficar com medo da cadela — sussurrou para mim, e
parei na porta.
— Ela?
— É. Uma das meninas disse que sabe algo sobre o ataque. Ela
quer falar com você.
Isso me surpreendeu, mas aceitei deixar Nessie no quarto,
apesar de seus resmungos.
Segui Thorn pelo castelo por corredores escuros e silenciosos.
Imaginei que me levaria até uma das despensas; então, quando
saímos para o pátio da frente, com as pedras e o musgo iluminados
pela lua, hesitei.
— Cadê essa menina? — perguntei, produzindo uma nuvem
com minha respiração. — E quem é ela?
Thorn se virou para mim. Parecia frágil e idoso naquele
momento.
— Está na tecelaria. Não consegui fazê-la mudar de ideia.
— Na tecelaria? — repeti.
Tive um instante de hesitação — aquilo parecia inusitado e
estranho —, mas então pensei na confiança que Jourdain tinha em
relação a Thorn, confiança suficiente para deixá-lo conduzir e
administrar os assuntos do castelo. Assim, aceitei segui-lo pela trilha
que descia a colina, em meio ao mato alto e úmido que se enrolava
em torno de nossas botas. O vento apagou a vela, então andamos
sob a lua e as estrelas.
Parei, sentindo um fio de medo apertar meu coração.
— Thorn?
O intendente parou e se virou. Pela expressão em seu rosto,
percebi que havia alguém atrás de mim e, antes que eu pudesse
sacar minha espada, senti a advertência de uma lâmina roçar meu
pescoço.
— Não se mexa, Brienna — sussurrou Pierce no meu ouvido.
Não me mexi. Mas meu coração se despedaçou.
— Por quê? — Foi só o que consegui dizer para Thorn, com a
garganta apertada pela traição.
— Queríamos Lucas — revelou Thorn. — Então pedi para Lucas
voltar. Mas seu pai fez a burrice de mandar você no lugar dele. Sinto
muito, Brienna. De verdade.
— Como foi capaz de trair seu próprio lorde? — murmurei, mas
então a verdade me atingiu como um soco no peito. Sabia
exatamente o que Thorn era. Fiquei até com vontade de rir de raiva
de mim mesma por não ter seguido meu próprio conselho.
Não tinha orientado Sean a arregaçar as mangas de seus sete
nobres para verificar se eles tinham o sinal?
Havia pensado que nenhum dos MacQuinn se alinhara aos
meias-luas. Mas que ingenuidade a minha imaginar que só algumas
Casas foram contaminadas pela corrupção.
O braço de Pierce apareceu ao lado da minha cintura. Senti-o
soltar o boldrié, e minha única arma se afastou do meu corpo. Ouvi
o aço atingir a grama, removido de mim.
— Meu pai vai matá-lo quando descobrir — afirmei, surpresa
com a calma da minha voz.
Thorn só balançou a cabeça.
— Lorde MacQuinn nunca vai saber.
Pierce me derrubou no chão e me enfiou um pano na boca
enquanto amarrava meus pulsos às minhas costas. Eu ainda via
Thorn, parado acima de mim, com as estrelas ardendo na noite ao
fundo. Vi Pierce lhe entregar uma bolsa de moedas, vi a manga de
Thorn deslizar quando ele estendeu a mão para pegá-la, vi a meia-
lua nitidamente tatuada no pulso.
— Você só vai receber o resto quando a troca for concluída com
sucesso — avisou Pierce.
Ele então arrancou meu manto de paixão. O frio correu pelo meu
corpo, e Thorn, relutante, pegou a veste como se o tecido azul fosse
mordê-lo.
Pierce me levantou do chão e me pendurou em cima do ombro
como se eu fosse um mero saco de grãos. Gritei, mas minha voz foi
abafada pela mordaça. Esperneei, tentando acertar uma joelhada
em sua barriga, e ele tropeçou. Caímos no chão e tentei rastejar
para longe, e cortei o joelho em uma pedra. Pierce me alcançou
antes que eu conseguisse levantar e me bateu no rosto. Minha visão
ficou turva, e a bochecha, doída. Respirei com dificuldade enquanto
ele me carregava para a floresta.
Ainda atordoada, tentei me situar. Estávamos em uma pequena
clareira, e havia uma carroça, com quatro dos homens de Pierce ao
redor, esperando, observando-me friamente. Dois tinham manchas
de sangue ressecado no gibão. Tive certeza de que era o sangue de
Phillip e Eamon e senti a bile subir até a garganta.
Vi Pierce puxar a lona da carroça.
Havia sacas de grãos na traseira. Mas havia algo mais: um
compartimento por baixo das sacas, bem disfarçado. Meu coração
pulou quando vi aquilo, quando entendi que Pierce estava prestes a
me enfiar na escuridão de um ataúde. Levantei-me com esforço,
desequilibrada por não poder usar as mãos, e comecei a correr
desesperadamente. Passei por dois urzedos até Pierce me alcançar,
enfiar os dedos no meu cabelo e me puxar de volta para seus
braços.
— Você é bem astuta mesmo — debochou ele. — Fechin me
avisou. Falou que seria difícil te pegar. Mas desta vez fui mais
esperto do que você, Brienna. — Pierce me levou de volta para a
carroça e me enfiou no compartimento secreto, acompanhado pelos
risos e vivas de seus homens. Em seguida, apoiou-se nele e olhou
para mim, com a cabeça inclinada, como se estivesse gostando de
me ver encolhida no espaço apertado. — O príncipe queria sangue
MacQuinn, não Allenach. Mas acho que você vai dar para o gasto.
Pierce mexeu em uma das sacas acima de mim. Ouvi um som
de vidro, e, antes que tivesse chance de reagir, ele apertou um pano
úmido contra o meu rosto, obrigando-me a aspirar os vapores de
algo azedo.
Resisti, recuando no compartimento, mas meus dedos
começaram a formigar e o mundo ficou lento. Estava quase
sucumbindo para o nada quando escutei Pierce falar:
— Sabe, se você não tivesse me humilhado diante da Casa do
seu pai, se tivesse decidido formar uma aliança comigo, os Halloran
teriam escolhido o seu lado. Teríamos largado os Lannon como se
fossem roupa suja. Você seria minha, e eu a teria protegido,
Brienna. Mas, agora, veja só. É engraçado como o poder vem e vai,
não é mesmo?
Pierce arrancou a mordaça da minha boca, e tentei gritar de
novo, mas minha voz estava sumindo. Só tive forças para murmurar:
— Para onde você está me levando?
— Para casa — respondeu ele, sorrindo. — Para o príncipe.
Pierce me prendeu na escuridão. Senti a carroça começar a se
mexer e tentei manter a consciência.
Meu último pensamento piscou logo antes de eu perder os
sentidos.
Estava prestes a ser entregue a Declan Lannon.
A REPRESÁLIA
24

U LT I M ATO
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn

Cartier

Assim que vi o castelo de Jourdain aparecer em meio à nevoa, eu


soube: Brienna não estava lá.
Parei o cavalo no pátio, logo atrás de Jourdain. Era tarde
demais, e mesmo assim Jourdain não percebeu.
Isolde veio com seu cavalo até o meu lado, o rosto manchado de
lama e chuva. Havíamos cavalgado a noite inteira, praticamente
sem parar, até chegar ao castelo Fionn. E ainda assim não
chegamos a tempo.
A rainha olhou para mim, indicando implicitamente que eu
deveria acompanhar Jourdain ao salão. Obedeci, sentindo um vazio
no peito ao desmontar, e segui Jourdain e Luc quando entraram
correndo no saguão.
O restante do nosso grupo — Sean, Isolde e os guardas dela —
entrou devagar, hesitante.
— Brienna? Brienna! — A voz de Jourdain ribombou pelo
castelo.
Os MacQuinn estavam reunidos, terminando o café da manhã. A
luz se esforçava até ali, onde o fogo ardia com força na lareira e
lançava um brilho fraco nos estandartes MacQuinn. As pessoas
estavam em grupos, com rostos pálidos e olhos abertos, solenes.
Uma menina jovem de cabelo dourado e cicatrizes no rosto chorava,
e seu sofrimento era o único som que rompia o silêncio tenso.
— Onde está minha filha? — perguntou Jourdain, e sua voz
estava tão assustadora como o estalo de uma árvore prestes a
rachar ao meio.
Por fim, o intendente deu um passo adiante. Vi-o abaixar a
cabeça e pôr a mão no peito.
— Milorde MacQuinn... lamento dizer...
— Onde está minha filha, Thorn? — repetiu Jourdain.
Thorn mostrou as mãos, viradas para cima, vazias, e balançou a
cabeça.
Jourdain meneou a cabeça, mas seu maxilar estava tenso. De
minha posição ao lado de Luc, vi Jourdain pegar a mesa mais
próxima e virá-la. A louça, as bandejas de comida, as bebidas…
tudo foi ao chão, derramando, batendo e quebrando.
— Eu a mandei para cá para ficar em segurança! — gritou ele.
— E vocês deixaram Declan Lannon capturá-la!
Jourdain virou outra mesa, e minha reticência finalmente cedeu
ao ver Jourdain perder o controle, ao ver a agonia no rosto do povo
dele.
Estendi a mão, peguei no braço de Jourdain e o conduzi pelas
pessoas até o tablado.
— Traga um pouco de vinho e pão — pedi ao intendente, que
parecia apavorado ao sair correndo para a cozinha.
Em seguida, obriguei Jourdain a se sentar na cadeira. Ele apoiou
a cabeça na mesa e foi perdendo as forças conforme o choque se
instalava.
Luc se sentou ao lado de Jourdain, pálido, mas estendeu a mão
para tocar no ombro do pai.
Isolde finalmente entrou no salão. O silêncio voltou quando os
MacQuinn olharam para a rainha encharcada e suja pela
tempestade. Mas ela entrou no salão com elegância, e andou até os
degraus do tablado.
Virou-se para os homens e mulheres, e fiquei pensando em
como ela se dirigiria a eles, se explodiria em chamas como Jourdain
ou se seria dura como gelo, como eu.
— Há quanto tempo Brienna MacQuinn desapareceu? —
perguntou Isolde, com uma voz gentil, para incentivar respostas.
— Ninguém a viu hoje cedo — respondeu uma mulher de cabelo
com mechas grisalhas cujo rosto exibia uma expressão severa,
como se já tivesse visto demais na vida. Seu braço estava em volta
da menina que chorava.
Hoje cedo.
Tinha sido por muito pouco então.
— Ela foi capturada durante a noite? Quem foi a última pessoa a
vê-la?
As pessoas começaram a murmurar em tons baixos e urgentes.
— Talvez a camareira? Quem foi que a atendeu ontem à noite?
— insistiu Isolde.
De novo, silêncio. Senti minhas mãos se fecharem em punhos.
— Milady, eu a mandei para o quarto.
Todos olhamos na direção de uma mulher idosa que estava ao
lado da concentração de gente. Seu avental estava sujo de sangue,
e havia remorso em seus olhos.
Jourdain finalmente levantou a cabeça para encará-la.
— Isla?
— Milorde MacQuinn — disse Isla, com a voz rouca. — Sua filha
me ajudou a tratar seu nobre ontem. Ela puxou uma flecha de uma
costela dele.
— Qual nobre? — perguntou Jourdain, tentando se levantar.
Firmei a mão no ombro dele para mantê-lo sentado. Aquele
intendente rabugento finalmente voltou com o vinho, então servi um
pouco para Jourdain e envolvi a base do cálice com seus dedos.
— Liam, milorde. Aconteceu um acidente de caça...
A história começou a se desenrolar. Jourdain só bebeu o vinho
quando o cutuquei, e foi só quando o rosto do lorde recuperou a cor
que o deixei se levantar para que nosso pequeno grupo seguisse
Isla até o quarto onde Liam respirava com dificuldade, inconsciente,
com os ferimentos cobertos de tecido.
— Você consegue curá-lo, Isolde? — perguntou Jourdain.
A rainha removeu cuidadosamente os tecidos para examinar os
ferimentos de Liam.
— Consigo. Mas parece que ele está com febre e uma infecção.
Minha magia precisará colocá-lo para dormir profundamente por
alguns dias, para eliminá-las do sangue.
Alguns dias? Não tínhamos sequer horas, pensei. Percebi que
Jourdain estava pensando exatamente a mesma coisa, mas conteve
as palavras.
— Por favor, milady. Cure-o.
Isolde arregaçou as mangas e pediu ajuda a Isla. Enquanto as
mulheres começavam a curar Liam, o restante de nós foi ver os dois
homens que haviam morrido no acidente. Eles ainda estavam sendo
preparados para o enterro, e os ferimentos eram abomináveis.
Luc soltou um palavrão, cobriu o nariz e desviou o olhar, mas eu
os observei e os reconheci. Eram os dois guardas que haviam
acompanhado Brienna na viagem de volta. Junto com Liam.
— Quero ver o quarto dela — falei abruptamente para Thorn,
que levou um susto com a rispidez da minha voz.
Jourdain assentiu, e seguimos o intendente escada acima até os
aposentos de Brienna.
A primeira coisa que percebi foi a cama. Estava desarrumada,
como se ela tivesse sido acordada no meio da noite. Em seguida, vi
pelo de cachorro. Ela deve ter dormido com sua wolfhound. Em meu
coração, o gelo começou a derreter e o pulso ficou mais intenso
enquanto eu olhava os pertences dela, imaginando-a deitada no
escuro e protegida apenas pela cadela.
— Onde está a cadela? — perguntei, olhando para Thorn.
— Receio que ninguém a tenha visto, milorde. Mas a cadela
costuma desaparecer de vez em quando.
Tive a suspeita horrível de que a cadela de Brienna talvez
estivesse morta.
— Ele entrou pela janela? — perguntou Sean.
Luc foi até uma das três janelas e olhou pelo vidro para o chão
distante lá embaixo.
— É bastante improvável. Não tem como descer de forma
segura por estas janelas.
Continuei andando pelo quarto, sentindo os olhos de Jourdain
me acompanharem.
Brienna, Brienna, por favor, mostre-me algum sinal. Meu coração
doía. Diga como posso encontrá-la.
Fui até o guarda-roupa e abri as portas. Deu para sentir o cheiro
do perfume dela: lavanda, baunilha e sol dos campos. Minhas mãos
tremiam quando examinei suas roupas.
— O manto de paixão dela não está aqui — murmurei, enfim. —
O que significa que ela saiu do quarto com alguma pessoa
conhecida. Alguém de confiança. — Virei-me para os homens. —
Ela foi traída, MacQuinn.
A cor se esvaiu do rosto de Jourdain quando ele se sentou na
beira da cama de Brienna.
Sean ainda analisava a impossibilidade das janelas, e Luc
continuava com o olhar perdido no meio do quarto. E lá estava
Thorn, retorcendo as mãos enquanto escutava.
Mandei o intendente sair do quarto e bati a porta grosseiramente
na cara dele. Voltei-me para o círculo íntimo, as únicas pessoas em
quem eu confiava. E, sim, estranhamente, isso agora incluía Sean.
— Alguém aqui é leal a Lannon? — sussurrou Luc.
Jourdain ficou quieto. Percebi que ele não sabia e não queria
especular com nomes.
— A curandeira? — sugeriu Sean.
— Não — negou Jourdain imediatamente. — Isla, não. Ela
sofreu muito nas mãos dos Lannon.
— Quem, então, MacQuinn? — insisti, com um tom brando.
— Esperem um pouco — disse Sean. — Continuamos pensando
que Declan veio aqui, que Brienna foi traída e posta diretamente nas
mãos de Declan. Mas ele agora é um fugitivo que precisa se
esconder.
Sean tinha razão. Todos tínhamos pensado em uma única
possibilidade.
— Venham — chamou Jourdain, gesticulando para o
acompanharmos. — Vamos ao meu escritório.
Nós o seguimos pelo corredor, e ele pediu que acendessem a
lareira e trouxessem bebida e comida. Assim que os criados saíram,
Jourdain arrancou o mapa de Maevana da parede e o estendeu
diante de nós.
— Vamos começar a pensar onde Declan se esconderia —
sugeriu ele, posicionando pedras de rio nos quatro cantos do mapa.
Nós quatro nos juntamos e o examinamos. Meus olhos foram
antes para o território de MacQuinn. As terras dele faziam fronteira
com outras seis: as montanhas dos Kavanagh, as campinas de
Morgane, os vales e morros de Allenach, as florestas de Lannon, os
pomares de Halloran e os rios de Burke.
— Os primeiros suspeitos — indicou Jourdain, apontando. —
Lannon. Carran. Halloran. Allenach.
Sean estava prestes a falar algo quando Isolde finalmente se
juntou a nós, com o rosto nitidamente pálido e esgotado, como se
sentisse dor. Será que a magia a debilitava? Porque parecia que
estava com enxaqueca.
— Curei os ferimentos de Liam, mas, como falei, ele
provavelmente vai dormir por mais alguns dias por causa da febre
— explicou ela, esfregando a têmpora ao olhar o mapa.
Jourdain contou nossa suspeita de que havia um MacQuinn
traidor, e ela franziu o cenho, com raiva.
— Deveríamos desconfiar da Casa Lannon, obviamente —
afirmou Isolde, olhando para o território de Lannon. — Declan
poderia se esconder em qualquer lugar nas próprias terras. E não
fica longe daqui, MacQuinn.
— Parece evidente demais — discordou Luc. — E os Allenach?
Sem ofensa, Sean, mas seu valete era um árduo meia-lua.
Sean assentiu com um gesto grave da cabeça.
— Sim. Temos razão de desconfiar do meu povo.
Luc se atreveu a perguntar:
— Desconfiamos de lorde Burke?
Pensei em lorde Burke, que recebera a ordem de ficar em
Lyonesse com o pai da rainha para vigiar os outros Lannon e manter
a ordem. Ele protegera meu povo o máximo possível nos últimos 25
anos e lutara ao nosso lado semanas atrás.
— Lorde Burke lutou e sangrou junto de nós — murmurou
Jourdain, e foi um alívio saber que ele pensava o mesmo que eu. —
E também jurou publicamente lealdade a Isolde. Não acho que nos
trairia.
Com isso, restavam os Halloran.
Passei os olhos pelo território deles.
— Qual é a distância daqui até o castelo Lerah, MacQuinn?
— Meio dia de viagem a cavalo — respondeu Jourdain. — Você
acha...
— É uma possibilidade muito boa — confirmei, seguindo o
raciocínio de Jourdain.
Fomos interrompidos por uma batida na porta. Jourdain
atravessou a sala para atender, e vi Thorn colocar um embrulho nas
mãos do lorde.
— Um dos cavalariços acabou de encontrar isto no estábulo,
milorde.
Jourdain pegou o embrulho, fechou a porta na cara de Thorn,
voltou para a mesa e rasgou o papel.
A primeira coisa que caiu foi uma carta pequena que repousou
na mesa, em cima do mapa.
Li a mensagem e a senti me atingir em cheio.

Brienna MacQuinn em troca da Pedra do Anoitecer, entregue por


Isolde Kavanagh, sozinha, daqui a sete dias, ao pôr do sol, onde a
Floresta Mairenna encontra o Vale dos Ossos.

O ultimato de Declan tinha, enfim, chegado.


Mas só acreditei nas palavras quando vi o que mais estava no
embrulho. Jourdain pegou nas mãos, ergueu para a luz, e
finalmente deixei o choque me devorar, finalmente deixei minha
compostura ruir.
— Não — murmurei.
Prostrei-me de joelhos e derramei o vinho das mãos, que se
espalhou como sangue pelo chão.
Eu havia escolhido para ela aquele tom de azul, aquelas
estrelas.
E naquele momento entendi o perigo terrível que ela corria:
Declan a torturaria quer aceitássemos a troca ou não, só porque eu
a amava. Ele a quebraria aos poucos, como havia feito com minha
irmã, só por minha causa.
Fechei os olhos para a luz, para o manto de paixão de Brienna
nas mãos trêmulas de Jourdain.
25

D E R R O TA E E S P E R A N Ç A

Brienna

Acordei devagar. Minha cabeça doía de rachar e minha boca estava


tão seca que chegava a doer. Eu precisava de água, de calor.
Ouvi o chiado frio e metálico de correntes e me dei conta de que
elas estavam se deslocando por minha causa, que havia um peso
nos meus pulsos quando os mexi por cima do peito.
Abri os olhos para as sombras e a iluminação fraca, para uma
pedra escura salpicada de sangue velho.
Alguém respirava, com força, perto de mim.
E eu estava deitada em algo que parecia estreito e fino. Um
catre de prisão.
— Finalmente, Brienna Allenach. Até que enfim você acordou.
Eu sabia que era a voz de Declan, pois era grave e rouca. Ele
parecia estar se divertindo, e me esforcei para engolir, para acalmar
o coração ao virar a cabeça e vê-lo sentado em uma banqueta perto
do meu catre, sorrindo para mim.
Seu cabelo cobreado estava preso de qualquer jeito atrás da
cabeça. A barba era densa, e havia feridas nos dedos dele e um
corte na testa. Ele cheirava a suor e parecia maltrapilho, quase
selvagem.
Levantei o corpo de repente, arrastando as correntes pelo chão.
Eu estava com os dois pulsos presos, e os tornozelos também. E,
então, reparei que estava acorrentada aos pés de ferro do catre.
Não falei nada, porque não queria aparentar medo na frente
dele. Então me afastei o máximo possível no meu leito apertado,
concentrei meus olhos nos dele e puxei as correntes como se
fossem filamentos de uma planta.
— Meu pupilo deu uma dose forte demais — explicou Declan,
esticando os braços musculosos. — Fiquei horas sentado aqui,
esperando você acordar.
Pupilo? Pierce Halloran era pupilo de Declan Lannon?
Senti um arrepio ao me dar conta de que eu estivera ali,
desacordada, enquanto ele me observava.
Ele leu meus pensamentos e abriu um sorriso para mim.
— Ah, sim. Não se preocupe. Não encostei em você.
— O que você quer comigo? — Minha voz estava rouca, fraca.
Declan pegou um copo de água, em uma mesa ao lado do meu
catre e o estendeu para mim. Não aceitei, e, depois de um tempo,
ele deu de ombros, bebeu, deixando a água escorrer em fios pela
barba.
— O que você acha que eu quero com você, Brienna MacQuinn?
— Eu sou Allenach ou MacQuinn para você? — perguntei.
— Você é as duas coisas. Allenach por sangue, MacQuinn por
opção. Confesso que acho sua decisão intrigante. Porque, por mais
que você corra, não dá para fugir do seu sangue, garota. Na
verdade, eu a trataria melhor se você se juntasse à Casa do seu pai
legítimo. Os Allenach e os Lannon sempre tiveram uma boa relação.
— O que você quer comigo? — repeti, impaciente.
Declan deixou o copo vazio de lado e esfregou as mãos
enormes.
— Muito tempo atrás, meu pai decidiu castigar as três Casas que
tentaram destroná-lo. Você conhece a história, claro, de quando os
Kavanagh, os Morgane e os MacQuinn tentaram se rebelar e
fracassaram. Apesar do fracasso do golpe, três crianças fidalgas
fugiram com seus pais covardes… Isolde. Lucas. Aodhan. Três
crianças que deviam ter morrido.
Mantive o maxilar travado e me obriguei a escutá-lo. Cerrei os
punhos com força e tratei de manter a calma.
— Seria impossível capturar Isolde agora, devido à guarda
constante. Assim como Aodhan, quando percebi a dimensão de sua
inteligência e raiva. Mas Lucas? Seria fácil, fácil. E eu sabia que, se
conseguisse capturar um dos três filhos sobreviventes, poderia pedir
o que quisesse.
Ele continuava sorrindo, saboreando minha circunstância de
desamparo e correntes.
— Você sabe qual é meu desejo, Brienna?
Esperei, sem interesse de fazer o jogo dele.
— Quero exatamente aquilo que você encontrou uma vez, aquilo
que descobriu — disse Declan. — Quero que Isolde Kavanagh me
entregue a Pedra do Anoitecer. Você acha isso difícil de acreditar?
Eu achava. De repente, não consegui respirar.
— Veja bem, Brienna, com o tempo, a magia nesta terra sempre
sucumbe à corrupção — prosseguiu ele. — Qualquer pessoa que
estude a história de Maevana sabe. Foi glorioso o dia em que a
pedra desapareceu e a última rainha morreu em batalha em 1430.
Foi uma era nobre para nós, porque, de uma hora para outra,
deixamos de ser governados por uma rainha instável e maculada.
Qualquer um poderia ascender ao trono, com ou sem magia, rainha
ou não.
Ele parou de falar e ficou me encarando. Eu tremia enquanto
tentava pensar em uma resposta, tentava entender.
— Preciso dizer — continuou ele, e minha vontade era barrar
sua voz. Quis cobrir as orelhas e fechar os olhos, pois as palavras
começaram a se cravar em mim como pequenos anzóis. — Achei
bem impressionante quando você e seu grupinho desconjuntado de
rebeldes se juntaram e lutaram semanas atrás. Ainda estou
impressionado com você, por ter achado a pedra, por ter enganado
o próprio pai para desenterrá-la no território dele. Meu filho não para
de falar disso para a irmã, da história de como você encontrou a
Pedra do Anoitecer, de que ela queimaria pessoas como você e eu
se encostássemos nela, de que você a manteve guardada no bolso
do seu vestido, de que ela irradia no pescoço de Isolde Kavanagh.
Fechei os olhos, incapaz de olhar para ele por mais um segundo
sequer.
Ele deu uma risadinha.
— Então pensei: Lucas não é a pessoa certa para esta troca. É
Brienna. A garota que descobriu uma pedra, a garota que trouxe a
magia e uma rainha de volta para esta terra.
— De que a pedra vai servir para você, Declan?
Fiquei aliviada de ver que minha voz saiu firme, que eu parecia
calma. Abri os olhos e o encarei.
— Não é óbvio, Brienna? — rebateu ele. — Isolde Kavanagh
perde influência e poder sem a pedra. Ela e o pai vão enfraquecer.
Mas, talvez mais que isso… terei o apoio do povo. Porque seu
grupo rebelde é arrogante demais para perceber, mas o povo tem
medo de magia. Não quer ser governado por ela. E, assim, eu serei
a pessoa que vai vencer esse medo, que dará ao povo o que ele
quer de fato.
— E o que ele quer?
— Um rei que escuta. Um rei que não tem nenhuma vantagem
injusta. Um rei que seja um deles, que tenha visão. E minha visão é
um novo reino, uma nova Maevana livre de magia e de Casas. Que
seja um só país, uma só Casa, uma família governante, um povo.
Ah, tinha tanta coisa que eu queria dizer em resposta. Queria
dizer que os únicos maevanos que temiam Isolde eram os meias-
luas, os maevanos que durante anos estiveram mancomunados
com a família Lannon. Que a magia não corrompera o país; a família
dele é que fizera isso. E que os únicos maevanos que o queriam no
trono eram os que tinham trevas no coração e na mente, que
desejavam os prazeres vis pelos quais Declan era conhecido. Mas,
talvez, mais do que todos esses pensamentos furiosos, era o rebate
àquela visão de uma Casa, uma família. Eu sabia exatamente como
ele pretendia executar essa visão: matando qualquer um que se
opusesse, eliminando Casas da mesma forma como Gilroy fizera
com os Kavanagh.
Quis gritar e esbravejar, mas engoli tudo, ciente de que, se o
irritasse, ele me torturaria. E eu precisava preservar minhas forças e
minha consciência para superá-lo.
Declan se levantou, intimidando-me com sua altura e
preenchendo a pequena cela feito uma montanha.
— Quero que Isolde Kavanagh me dê a pedra em troca de você.
Ela deve vir sozinha, ajoelhar-se diante de mim e entregá-la. E sei
que ela vai fazer isso. É só uma pedra, e sua vida é mais importante
para eles. Sei que MacQuinn gosta de você, como se vocês fossem
do mesmo sangue. Mas a pressão por sua liberdade não virá de
MacQuinn. Virá de Aodhan Morgane, o orgulhoso lorde do Veloz,
que acha que sabe de tudo. Porque o coração dele está nas suas
mãos. Porque ele perdeu a mãe e a irmã, então decidirá não perder
você.
Naquele momento, soube que Isolde jamais aceitaria essa troca,
independentemente do que Cartier quisesse. Não havia a menor
possibilidade de ela abrir mão da pedra por mim. Ela não negociaria
com Declan Lannon. E eu não queria que negociasse.
Respirei fundo, devagar. E me neguei a falar, a revelar meus
pensamentos. Porque eu precisava conseguir o máximo possível de
tempo para que Isolde e Cartier me resgatassem por conta própria.
Antes que Declan se desse conta da futilidade de seu plano e visse
que sua única opção era me matar.
— Se atenderem às minhas intenções, não vou machucá-la —
prometeu ele. — Mas, assim que começarem a tentar me derrotar…
digamos que você não vai sair desta cela do mesmo jeito que
entrou.
Não consegui disfarçar o estremecimento quando ele foi embora
e bateu a porta com barras de ferro atrás de si. Arrastei-me até o pé
do catre e vomitei até me sentir vazia e sentir um zumbido nos
ouvidos. Fiquei deitada de bruços, com a visão turva, esforçando-
me para manter a calma.
Meu maior desafio era tentar descobrir alguma forma de enviar
uma mensagem secreta para Jourdain e Cartier, para revelar onde
eu estava. A essa altura, eles provavelmente já sabiam que Declan
escapara de Lyonesse e que eu tinha desaparecido. Mas eu nem
sabia ao certo meu paradeiro. Eu acreditava que estavam me
mantendo na masmorra de castelo Lerah, nas garras dos Halloran,
mas não tinha certeza.
Pensei até me cansar e cheguei à conclusão de que não tinha
jeito. Então, refleti sobre minhas lembranças mais queridas, as que
se estabeleceram durante minha época na Casa Magnalia. Pensei
em Merei, na música dela, em nossas partidas de cheques e
marcas, e no fato de que ela sempre me vencia. Lembrei-me do
solstício de verão, quando estávamos em nossos aposentos,
incertas, mas ansiosas para saber como a noite acabaria, quando
éramos alunas no processo de nos tornarmos mestras. Pensei em
todas aquelas tardes que eu passara com Cartier na biblioteca,
quando ele parecia tão frio, indiferente e sério, e que eu finalmente o
desafiara a se equilibrar em uma cadeira com um livro na cabeça.
Lembrei a primeira vez que o ouvi rir, com o som se espalhando
como a luz do sol pela sala.
Devo ter cochilado, mas acordei com um barulho que ecoava
abaixo de mim. Vozes, cavalos, ferro batendo.
Levantei a cabeça para escutar melhor e me dei conta de que,
ao contrário do que tinha imaginado, eu não estava em uma
masmorra.
Estava em uma torre.
Alguma coisa rastejou pelo chão da minha cela. Achei que fosse
um rato, mas vi que era uma pedrinha. E escutei um pequeno e
adorado sussurro.
— Senhorita Brienna.
Sentei-me direito, e meu coração foi à boca quando vi Ewan do
outro lado das barras.
— Ewan? — murmurei, saindo do catre.
As correntes não eram muito compridas, e só consegui chegar
ao meio da cela, mas estiquei as mãos para ele, e ele fez o mesmo
para mim. O ar entre nós era delicado, e nossos dedos quase se
encostaram.
— Ewan, você está bem?
Incapaz de conter a emoção, comecei a chorar.
— Estou bem — disse ele, em meio às lágrimas, esfregando a
mão no rosto. — Sinto muito, senhorita. Odeio meu pai.
— Shh. — Tentei acalmá-lo, para ele se concentrar. — Preste
atenção, Ewan. Você sabe onde estamos?
— Castelo Lerah.
A sede dos Halloran.
— Keela está preocupada com você — sussurrou Ewan. — Ela
quer ajudar a te soltar, assim como você tentou protegê-la. A gente
acha que consegue pegar a chave do guarda amanhã à noite.
Um eco de vozes soou abaixo de nós outra vez.
— Tenho que ir embora — disse ele, e as lágrimas começaram a
se formar em seus olhos de novo.
— Haja o que houver com você e Keela — sussurrei —, tome
cuidado, Ewan. Por favor, não deixe ninguém pegar vocês.
— Não se preocupe comigo, senhorita Brienna.
Ele enfiou a mão no bolso, tirou uma maçã e a rolou pelo chão
para mim.
Abaixei-me, e minhas correntes tilintaram quando peguei a fruta
bem vermelha.
— Vou soltar você — prometeu Ewan, colocando a mão no peito.
Ele sorriu, revelando a falta de um dente, e foi embora.
Sentei-me no catre e levei a maçã ao nariz, aspirando a
expectativa.
E me atrevi a ter esperança, apesar da escuridão fria, das
correntes e dos ratos que guinchavam no canto da minha prisão.
Porque os filhos de Declan Lannon iam desafiá-lo para me libertar.
26

F I L A M E N TO S O C U LTO S
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn

Cartier

Sete dias.
Tínhamos sete dias para descobrir onde Declan estava
mantendo Brienna em cativeiro. Porque não íamos entregar a Pedra
do Anoitecer.
Eu estava reunido com o círculo de confiança de Isolde, e
discutimos até tarde da noite: trocar ou não a pedra. Mas acabamos
chegando a um consenso: não podíamos confiar em Declan. Havia
grandes chances de ele nos enganar, de pegar a pedra e matar
Isolde e Brienna mesmo assim. O local que ele exigira — o ponto
onde a Floresta Mairenna e o Vale de Ossos se encontravam —
ficava em território Allenach, e eu não tinha a menor dúvida de que
Declan se abrigaria nas árvores, onde poderia esconder uma força
formidável atrás de si.
Havíamos decidido não negociar com ele desde o início do
levante, então não negociaríamos agora. Além do mais, abrir mão
da pedra para ele seria um gesto enorme de derrota, que fatalmente
levaria à nossa destruição.
Mesmo assim… eu queria trocar a pedra por Brienna. Queria
com tanta intensidade que tive que passar a maior parte da noite de
boca fechada.
Com o tempo, ficamos exaustos demais para continuar
planejando.
Jourdain providenciara aposentos de hóspedes para nós, mas
ninguém me impediu de voltar ao quarto de Brienna. Tirei as botas e
o manto, larguei-os pelo chão atrás de mim e me enfiei nas cobertas
frias dela, apoiando meu corpo no lugar onde ela estivera,
respirando a lembrança dela.
Como encontro você?
Fiz essa prece, repetidamente, até não restar em mim nada além
de ossos e uma vaga dor no peito, e me afundei em sonhos.
Eu a vi acompanhada da minha mãe e da minha irmã nas
campinas do castelo Brígh. Havia flores no cabelo dela, risos em
sua voz, e o sol brilhava com tanta intensidade que era difícil
distinguir seu rosto. Mas eu sabia que era Brienna, caminhando com
Líle e Ashling Morgane. Sabia porque conhecia de cor o jeito como
ela andava, como se mexia.
— Não perca as esperanças, Cartier — sussurrou ela para mim,
de repente nas minhas costas, envolvendo-me com os braços. —
Não chore por mim.
— Brienna. — Quando me virei para abraçá-la, ela se
transformou em luz e poeira, e tentei desesperadamente segurar o
vento, segurar a sombra dela no chão. — Brienna.
Falei o nome dela em voz alta e acordei sobressaltado.
Ainda estava escuro. E eu não tinha condições de ficar deitado
ali nem mais um instante e ponderar sobre o sonho que me disse
que Brienna estava mais próxima da minha mãe e da minha irmã do
que de mim.
Levantei-me e, inquieto, comecei a andar pelos corredores do
castelo. Fazia silêncio, e, depois de um tempo, perambulei até o
salão pouco iluminado. A bagunça que Jourdain fizera havia sido
arrumada: endireitaram as mesas e varreram o chão. Parei um
pouco na frente da lareira para sentir o calor das brasas, até que me
lembrei do nobre Liam.
Precisávamos que aquele homem se recuperasse
completamente, que acordasse e nos dissesse o que havia visto.
Oculto nas sombras, comecei a andar até o quarto de Liam
quando notei Thorn vir pelo outro lado do salão, com o rosto
grosseiro iluminado por uma vela. Vi o intendente entrar no quarto
de Liam e fechar a porta atrás de si sem fazer barulho.
Então nós dois pensamos a mesma coisa.
Fui até a porta e prendi a respiração ao aproximar a orelha da
madeira.
Ouvi um tumulto, um homem chiando.
Abri a porta de repente e vi o intendente empurrando um
travesseiro no rosto de Liam, e os pés do nobre, que estava quase
morrendo sufocado, tremiam.
— Thorn! O que você está fazendo? — gritei, indo na direção
dele.
Thorn se sobressaltou e arregalou os olhos ao me encarar. Ele
logo sacou um punhal, avançou para cima de mim, quase me
pegando de surpresa.
Por reflexo, bloqueei o golpe com o antebraço e empurrei Thorn
para o outro lado do quarto. Ele caiu na mesa lateral e derrubou os
equipamentos da curandeira. Vidros de ervas se espatifaram no
chão quando Thorn tentou se equilibrar, ainda com o punhal
brilhando na mão. Ele arreganhou os dentes tortos, e foi espantosa
a transformação daquele velho intendente ranzinza em um oponente
formidável. Segurei-o pelo pulso e torci seu braço até ele soltar um
grito de dor e seus dedos serem obrigados a largar a arma.
Derrubei-o no chão e me sentei em cima dele.
— Não sei de nada — atreveu-se a balbuciar.
Puxei a manga dele, revelando o sinal de meia-lua. Ele tremeu
de choque, por ver que eu sabia o que procurar, e ficou imóvel.
— Cadê ela? — perguntei.
— N-não sei.
— Não é essa a resposta que eu quero.
E quebrei o seu pulso.
Ele deu um berro que certamente acordaria o castelo. E eu só
conseguia pensar que havia acabado de quebrar os ossos frágeis
por trás daquela meia-lua, e que continuaria fazendo isso até ele
dizer onde Brienna estava.
— Cadê. Ela?
— Não sei para onde ele a levou! — gritou, gaguejando. — Por
favor, lorde Aodhan. Eu… eu realmente não sei!
— Quem a levou? — murmurei.
E quando ele balbuciou, sem conseguir articular as palavras,
dobrei o pulso quebrado para trás.
Ele deu outro grito, e dessa vez escutei vozes no corredor.
Jourdain se aproximava. Ele ia me impedir. Ia me arrancar de cima
do intendente. Então, peguei o outro pulso de Thorn e me preparei
para quebrá-lo também.
— Quem. A. Levou?
— O Chifre Vermelho! — exclamou Thorn. — O Chifre Vermelho
a levou. É só isso… é só isso que posso dizer.
Vi o quarto se iluminar com velas, ouvi a voz surpresa de
Jourdain e senti o chão tremer quando ele veio até mim.
Thorn chorava e exclamava “Lorde MacQuinn! Lorde
MacQuinn!”, como se eu o tivesse atacado, aquele covarde
asqueroso.
— Aodhan! Aodhan, pelos deuses! — declarou Jourdain,
tentando me tirar de cima do intendente.
Mas minha cabeça estava a mil. O Chifre Vermelho. Quem era o
Chifre Vermelho?
— Quem é o Chifre Vermelho, Thorn? — insisti.
A mão de Jourdain apertou mais meu ombro. Ele piscou e
encarou Thorn, como se o enxergasse sob uma luz diferente.
Luc entrou correndo no quarto, seguido de perto por Isolde. Eles
me cercaram e me encararam com olhos arregalados, até que virei
o pulso quebrado de Thorn para cima e revelei a meia-lua.
— Acabei de achar um rato.
Jourdain encarou Thorn por um instante, e diversas emoções
passaram por seu rosto. Por fim, com uma voz neutra, ele disse:
— Amarrem-no em uma cadeira.
Ficamos em volta dele, tentando extrair respostas. Achei que o
velho cederia, especialmente quando Jourdain ofereceu poupar sua
vida. Mas Thorn resistiu. Havia confessado o envolvimento do Chifre
Vermelho, mas suas revelações não passariam disso. O único jeito
de obrigá-lo a falar seria espancando-o, e Jourdain não queria saber
de violência.
— Quero que você ajude Luc e Sean a solucionar o mistério do
Chifre Vermelho — murmurou ele para mim. — Eles estão no
escritório, tentando entender.
Fiquei quieto por um instante. Jourdain continuou me olhando,
com uma expressão preocupada no rosto.
— Posso arrancar a resposta dele — falei. — Se você deixar.
— Não quero que você se transforme nisso, Aodhan.
Minha irritação foi às alturas, e respondi:
— A vida de Brienna depende disto, MacQuinn.
— Não se atreva a dizer para mim do que a vida da minha filha
depende — rosnou Jourdain, e sua compostura finalmente trepidou.
— Não aja como se fosse a única pessoa angustiada com ela.
Ao ver o tom de desdém de Jourdain comigo, pensei: estávamos
começando a nos voltar uns contra os outros. Estávamos exaustos,
arrasados, perdidos. Deveríamos entregar a pedra. Não deveríamos
entregar a pedra. Deveríamos entrar em acordo com Thorn.
Deveríamos espancar Thorn. Deveríamos puxar as mangas de todo
mundo. Não deveríamos invadir a privacidade de ninguém.
O que era certo, o que era errado?
Como resgataríamos Brienna se ficássemos com medo demais
de sujar as mãos?
Deixei Jourdain no corredor e fui para o escritório, onde Luc e
Sean estavam recurvados acima do mapa, com doces parcialmente
comidos em seus pratos de café da manhã, falando o que para mim
não fazia o menor sentido.
— Fale todos os vermelhos — disse Luc, mergulhando uma
pena na tinta e se preparando para escrever.
— Burke tem vermelho — começou Sean, examinando o mapa.
— MacFinley tem vermelho. Dermott, Kavanagh e… Fitzsimmons.
— Do que vocês estão falando? — perguntei, e eles pararam e
olharam para mim.
— Quais Casas têm a cor vermelha — respondeu Luc.
Fui até a mesa e me sentei com eles.
— Acho que cores de Casas são algo óbvio demais.
— Então o que você sugere? — retrucou Luc.
— Vocês estão no caminho certo, Luc — falei, com calma. — A
cor vermelha é relevante. Mas só vai ser relevante para a Casa à
qual o Chifre Vermelho pertence.
Luc jogou a pena na mesa.
— Então por que estamos fazendo isto? É perda de tempo!
Sem falar nada, Sean recolheu um punhado de anotações que
estavam reunindo. Dei uma olhada para ler, comentários sobre
chifres, berrantes, desenhos de berrantes, os vários significados por
trás das notas produzidas por cornetas. Trombetas, clarins e
sacabuxas. Só instrumentos. E claro que Luc pensaria em
instrumentos ao ouvir falar de chifres, já que ele era músico.
Mas não foi isso que imaginei.
E estava prestes a expressar meus pensamentos quando ouvi
um barulho no pátio, do lado de fora da janela.
— Pelos deuses — sussurrei, embaçando o vidro com minha
respiração.
— O que foi, Aodhan? — perguntou Luc, esquecendo a raiva de
mim.
Virei-me para ele.
— É Grainne Dermott.

* * *

Nenhum de nós sabia o que esperar quando Grainne Dermott pediu


para conversar com a rainha e seus conselheiros no escritório de
Jourdain. Ela obviamente viera para cá às pressas, e não parou
para trocar as roupas sujas de lama da viagem antes de vir falar
conosco.
— Lady Grainne — disse Isolde em cumprimento, incapaz de
disfarçar a surpresa. — Espero que esteja tudo bem com você.
— Lady Isolde — disse Grainne, com um tom sem fôlego. —
Está tudo normal em Lyonesse, e falo isto para tranquilizá-la. Seu
pai está bem e continua cuidando do castelo e mantendo os Lannon
na masmorra. Vim porque ouvi uma notícia perturbadora.
— O que você ouviu? — perguntou Isolde.
— Que Brienna MacQuinn foi sequestrada.
Jourdain se remexeu.
— Onde você escutou essa história, lady Grainne?
Grainne olhou para Jourdain.
— A cidade real é um lugar cheio de boatos, lorde MacQuinn.
Não tive que circular muito pelas ruas e tavernas para ouvir esse.
Ficamos em silêncio. Será que Isolde esconderia a verdade?
— Parece que os boatos são verdadeiros — disse Grainne. —
Pois Brienna MacQuinn não está entre vocês.
— O que não significa que minha irmã foi sequestrada — disse
Luc, mas ele se calou quando Jourdain levantou a mão.
— É verdade, lady Grainne. Minha filha foi capturada durante a
noite. Ela não está conosco, e não sabemos qual é seu paradeiro
atual.
Grainne ficou em silêncio por um instante e, em seguida, falou
em tom grave:
— Lamento de coração. Eu gostaria que fosse apenas um boato.
— Ela suspirou e passou os dedos pelos cachos do cabelo. —
Vocês encontraram alguma pista?
Vi pelo canto do olho Jourdain observar Isolde. Ele estava se
perguntando se a rainha incluiria Grainne no grupo, e eu já sabia a
resposta antes que Isolde falasse.
— Sente-se conosco, Grainne — disse Isolde, indicando as
cadeiras em volta da mesa.
Enquanto Jourdain servia chá para todo mundo, ela começou a
contar para Grainne a sequência de acontecimentos até então.
Grainne escutou, com o corpo inclinado para a frente, de cotovelos
na mesa, deslizando distraída a ponta dos dedos na borda da
xícara.
— O Chifre Vermelho — disse ela, e deu uma risadinha. —
Deuses do céu. Só pode ser ele.
— Quem? — perguntou Jourdain.
— Pierce Halloran — respondeu Grainne.
O nome dele me atingiu feito uma flecha. E, quanto mais eu
ponderava, mais certeza tinha.
— Pierce Halloran? — retrucou Luc. — Aquele frouxo?
— Ele não é frouxo — corrigiu Grainne. — Ele passou os últimos
anos organizando incursões para aterrorizar meu povo. Brienna me
disse que ele tentou se aliar aos MacQuinn, e que ela acabou
constrangendo-o. Isso fez com que ela se tornasse um alvo; ele fará
o possível para desmoralizá-la. Mas, além disso, Pierce Halloran é
um meia-lua.
Nós nos limitamos a olhar para ela.
— Brienna não falou para vocês? — perguntou ela, olhando para
mim. — Durante nossa viagem para Lyonesse, ela me disse que viu
uma tatuagem de meia-lua no pulso de Pierce. E foi assim que
nossa conversa começou, foi por isso que expliquei para ela o
significado do símbolo. Porque eu queria que ela soubesse muito
bem do que Pierce é capaz.
Brienna não nos dissera que Pierce tinha o sinal. E eu não sabia
se foi por descuido, ou se ela estava tentando lidar com a ameaça
de Pierce por conta própria.— Mas por que Chifre Vermelho? —
perguntou Sean, franzindo o cenho. — Como ele obteve esse
nome?
Grainne sorriu.
— Você sabe qual é o brasão dos Halloran?
— O íbex… — disse Luc, e finalmente entendeu, todos
entendemos, que o chifre correspondia ao carneiro. — E eu
achando que era uma sacabuxa!
Grainne aguardou até ligarmos os pontos e juntarmos as peças
que ela havia acabado de fornecer. Esperou até Isolde encará-la e
disse:
— Lady Isolde. A Casa Dermott declarará publicamente apoio e
aliança com você. Também trarei os MacCarey para a aliança, o que
influenciará bastante as outras duas Casas Mac a seu favor.
Juraremos lealdade a você como nossa rainha. Mas peço apenas
que me permita liderar o ataque ao castelo Lerah.
Isolde aparentou desconforto. Mal reconheci sua voz quando
falou:
— Liderar um ataque contra outra Casa… Preciso ter certeza
absoluta, sem nenhuma sombra de dúvida, de que eles são
culpados.
— Milady não percebe? — murmurou Grainne, fervorosamente.
— Eles são culpados. Faz anos que são culpados, e estão tramando
para derrubá-la! Estão mantendo Brienna MacQuinn em cativeiro e,
provavelmente, abrigando Declan.
Isolde começou a andar em círculos. Havia uma energia
estranha entre as mulheres; parecia o momento antes de uma
tempestade, quente e frio ao mesmo tempo, ganhando força no
vento.
A rainha finalmente parou na frente da lareira e disse:
— Saiam todos. Por favor.
Começamos a andar para a porta, mas Isolde acrescentou:
— Aodhan, fique conosco.
Parei logo antes saída. Luc lançou um olhar nervoso para mim e
fechou a porta.
Virei-me, ainda perto da parede, e observei a rainha e Grainne
se encararem.
— Se eu permitir que você lidere o ataque, Grainne… —
começou Isolde, mas não terminou.
— Eu juro, Isolde. Não chegaria a esse ponto. Seria só pela
minha espada.
Essa conversa me deixou completamente perdido. E eu não
fazia a menor ideia de por que Isolde me pedira para ficar. Parecia
mesmo que a rainha havia se esquecido da minha existência, até
que olhou para mim e gesticulou para que eu me aproximasse.
A rainha olhou para Grainne, que não falou nada, mas tive a
sensação de que elas estavam conversando por telepatia. Os pelos
dos meus braços se eriçaram.
— Aodhan, Grainne é como eu — disse Isolde. — Ela tem
magia.
Olhei para Grainne, e ela comprimiu os lábios, como se
estivesse disfarçando um sorriso.
— Ele já sabe. Sentiu quando eu e Rowan nos hospedamos no
castelo Brígh.
— Ele não deixa passar muita coisa — disse Isolde, num
suspiro.
— Ainda estou aqui — avisei a elas, para dissipar a tensão. —
Mas não sei por que você me pediu para participar desta conversa.
A rainha se sentou na cadeira e cruzou as pernas.
— Porque quero seu conselho. Sobre o ataque. — Ela levantou
a xícara, mas não bebeu. Ficou apenas olhando para o chá, como
se as respostas fossem subir à superfície. — Grainne detém a
magia da mente. Ela pode falar sem palavras, com os pensamentos.
Ela tem medo de que minha magia se descontrole durante o
ataque.
Levei um susto quando a voz de Grainne soou na minha cabeça,
com tanta firmeza que foi como se ela tivesse falado. Olhei para ela,
e o suor começou a se formar na minha testa.
— A magia se corrompe em batalha — disse Isolde. — Sabemos
disso pela história, porque a última rainha guerreou com ela e quase
destruiu o mundo. E receio que ela possa fugir do controle se a
usarmos para marchar contra castelo Lerah.
— Milady — disse Grainne, esforçando-se ao máximo para
demonstrar paciência. — Eu tomaria a fortaleza com espada e
escudo. Não com magia. Nem sei como brandir magia em batalha.
Como conversamos antes, não temos os feitiços. O que poderia
fugir do controle?
Isolde não respondeu, mas percebi seu receio, sua
preocupação. Ela tinha razão de sentir isso; não dava para negar
que eu sentia o mesmo. Ainda havia muita coisa que não
conhecíamos sobre magia.
Mas se Brienna estivesse mesmo no castelo Lerah, eu não
hesitaria em pegar em armas e seguir Grainne até lá.
— É tão irônico — murmurou a rainha —, quase não dá para
acreditar que Declan queira trocar Brienna pela pedra. Semanas
atrás, pedi para Brienna me fiscalizar, para tirar a pedra de mim se
eu sucumbisse às trevas. E, agora que Brienna foi roubada de nós,
preciso decidir o que fazer com esta pedra.
Grainne e eu ficamos calados, sem saber o que dizer.
— Quer que outra pessoa segure a pedra durante o ataque? —
perguntei. — Eu poderia ficar com ela para você, do mesmo jeito
que Brienna fez com o medalhão de madeira. A magia adormeceria
por um tempo, até o conflito acabar.
— É, acho que seria sensato. Mas ainda não temos certeza da
culpa dos Halloran — continuou Isolde. — Por menos que eu goste
deles, não posso liderar um ataque sem provas. Não posso.
Aodhan, disse Grainne para mim. Aodhan, tranquilize-a. Caso
contrário, talvez nunca obtenhamos essa prova.
Não pude levantar os olhos para fitar Grainne, com medo de nós
dois nos unirmos na sede de sangue.
A rainha deu um suspiro cansado.
— Precisamos esperar até Liam acordar. Quando ele despertar
da cura, poderá nos dar a confirmação necessária.
Liam ainda levaria alguns dias para acordar. E íamos perder
tempo.
Mas consumi essas palavras, deixei-as caírem feito pedras no
meu estômago e levarem minha esperança junto.
Os dois dias seguintes foram uma agonia. O nobre Liam continuou
dormindo, e, embora a cor e a respiração dele melhorassem a cada
amanhecer, estávamos cada vez mais inquietos, recorrendo a
perambular pelo castelo, estudar o mapa e interrogar os MacQuinn
na esperança de que alguém tivesse visto algo que pudesse servir
de confirmação para Isolde.
Nossa prova finalmente chegou no fim da tarde.
Eu estava sentado com Thorn, tentando convencê-lo a falar,
quando Isolde apareceu na porta.
— Aodhan.
Virei-me. Como ela não falou nada, levantei-me, e saímos juntos
para o corredor.
— O nobre Liam acordou — sussurrou ela. — É como Grainne
desconfiava. Pierce Halloran e quatro homens dele foram os
culpados.
— Então temos justificativa — falei.
Com olhos escuros como obsidiana, a rainha meneou a cabeça.
— Vamos planejar o ataque.
Reunimos os outros às pressas e nos acomodamos decididos
em torno da mesa de Jourdain, com tigelas de cozido e uma garrafa
de vinho, e começamos a delinear nossos próximos passos.
Sean traçou um diagrama do castelo Lerah para estudarmos. Ele
havia visitado o castelo várias vezes com o pai e estudara a planta
quando era pequeno, porque, infelizmente, era uma das maiores e
mais antigas fortificações de toda Maevana.
Fiquei observando conforme ele desenhava quatro torres, a
guarita do portão, o campo interno, que era uma faixa de grama
entre a muralha interna e a externa, e o fosso, que seria nosso
maior desafio. Ele então identificou as torres — a sul era a prisão,
onde Brienna estaria, a leste era a torre do arsenal, e as torres norte
e oeste abrigavam os aposentos da família e de hóspedes, onde
provavelmente estariam Declan e as crianças.
— Conheço dois portões — explicou Sean. — O portão exterior
e o postigo ao norte. Só entrei na fortaleza pela ponte levadiça no
portão externo. Se entrarmos por aqui, vamos atravessar o campo
central, passar pela guarita do portão e chegar ao pátio. Aqui tem
um jardim, o estábulo, a capela, a padaria etc. O salão é aqui.
Sean suspirou, olhando para o mapa.
— Se Brienna estiver na torre da prisão… Bom, acho que,
passando pela primeira leva de guardas, daria para chegar à
amurada. Depois de resgatá-la, daria para descer a escada até o
campo interno, que vai estar cheio de gente, ou escalar a parede
para o campo central e talvez escapulir pelo postigo norte, ou até
pela torre do arsenal.
— Por que a torre do arsenal? — perguntou Isolde.
— Porque tem um conjunto de forjas aqui — respondeu Sean,
traçando uma linha com tinta no mapa. — Eles chamam de ala de
forjas. E forjas precisam de água, né? Tenho certeza quase absoluta
de que tem uma porta na muralha externa para o fosso, para que
aprendizes de ferreiro preguiçosos possam tirar água dali, em vez
de ir até o campo interno, onde fica o poço.
Ficamos em silêncio, refletindo sobre o conhecimento dele,
quando Sean de repente começou a rir, passando os dedos pelo
cabelo e deixando um rastro de tinta na têmpora.
— Pelos deuses. Claro. — Ele cruzou os braços e gesticulou
com a cabeça para o desenho do castelo. — O castelo Lerah é feito
de pedra vermelha. O Chifre Vermelho.
Nosso planejamento seguiu para o desafio mais crucial:
atravessar o fosso.
— Precisamos dar um jeito de abaixar a ponte levadiça — disse
Luc.
— As tecelãs. — A resposta súbita de Jourdain chamou nossa
atenção. — Minhas tecelãs fazem entregas mensais de lã e linho no
castelo Lerah.
— E já fizeram a deste mês? — perguntou Isolde. — Será que
estariam dispostas a conduzir a carroça para que possamos entrar
escondidos?
— Não tenho certeza. Vou perguntar a Betha.
Jourdain saiu rápido, e, durante sua ausência, continuamos
examinando o mapa e terminamos de jantar, esperando a volta dele
para retomar o planejamento.
Ele chegou dez minutos depois.
— Betha aceitou fazer a entrega. Disse que pode levar quatro de
nós na traseira da carroça.
— Quem de nós vai, então? — perguntou Luc.
— Acho que devíamos ir Aodhan, Lucas, Sean e eu na carroça
— disse a rainha. — Sean e Lucas ficarão responsáveis pela ponte
levadiça. Aodhan capturará Declan, e eu resgatarei Brienna.
Grainne, você e suas forças vão esperar aqui — ela apontou para
uma pequena floresta no mapa —, escondidos nesta mata, de onde
terão visão desimpedida da ponte. Jourdain e seus trinta guerreiros
e guerreiras vão esperar aqui — ela apontou para os pomares, na
área ao norte do castelo —, com uma carroça para transportar
Brienna e as duas crianças Lannon imediatamente de volta para
Fionn.
Estranhei a divisão, a decisão dela de resgatar Brienna e me
encarregar de Declan. Achei que seria o contrário e me perguntei se
ela estava reservando esse momento para mim, se estava me
dando permissão para matar Declan Lannon.
Nossos olhares se cruzaram, mas, naquele breve instante,
nossos pensamentos se alinharam. Ela estava mesmo me dando a
chance de concretizar minha vingança. E talvez houvesse algo
mais, algo relacionado a Brienna. Se Brienna tiver sido torturada, eu
seria capaz de retirá-la em segurança ou desmoronaria assim que a
visse?
Eu não sabia ao certo; realmente não conseguia sequer
conceber a possibilidade.
— Lorde MacQuinn — continuou a rainha, virando-se para
Jourdain. — Peço que você proteja a Pedra do Anoitecer durante o
ataque, deixe-a no medalhão que Brienna usou no passado e me
devolva ao final.
Ela já havia tratado disso com Jourdain. Percebi, porque ele não
parecia nada surpreso. Ele pôs a mão no peito, em obediência.
— Lady Grainne — disse Isolde, agora dirigindo ordens para a
mulher ao meu lado. — Estou lhe dando esta oportunidade de tomar
o castelo Lerah porque sei que seu povo sofreu muito pelas mãos
dos Halloran. Dito isso, só tenho um pedido a fazer. Se derramar
sangue, que seja apenas daqueles que a prejudicaram diretamente.
Proteja as mulheres e crianças Halloran e os homens inocentes, que
se verão no meio de uma batalha súbita.
Os olhos de Grainne brilharam à luz das chamas. Ela pôs a mão
no peito e disse:
— Eu juro, milady. Se alguém cair pela minha espada, será
Pierce Halloran e seus meias-luas. Mais ninguém.
A rainha meneou a cabeça.
— Lorde MacQuinn, você acha que suas tecelãs conseguiriam
nos fornecer trajes Halloran rápido? Poderia ser algo simples, como
xales azul-marinho e dourados, pois acho que as cores já vão nos
ajudar a passar despercebidos quando Aodhan e eu entrarmos no
castelo.
— Sim, milady — disse Jourdain. — Eu… — A porta do
escritório se abriu de repente, e todos levamos um susto.
Era uma jovem. Reconheci que era a que estava chorando no
salão no dia em que chegamos a Fionn.
O rosto estava corado, e os olhos, vermelhos. Havia fúria e
admiração em seu olhar quando ela se virou para Jourdain.
— Neeve? — Jourdain se levantou, perplexo. — O que foi,
menina?
— Milorde — murmurou Neeve, indo até Jourdain. Havia um
pergaminho em suas mãos, amassado junto ao peito. — Quero ser
uma das tecelãs que vão para castelo Lerah.
— Neeve, não posso permitir que vá — disse ele. — É perigoso
demais.
Neeve ficou calada e, depois, voltou o olhar para mim.
— Não estou pedindo para ir a Lerah — disse ela, trêmula. —
Estou avisando. Eu vou para Lerah, e vou tirar Brienna da torre.
Sustentei o olhar dela por um tempo, mas então meus olhos
desceram para as folhas nas mãos dela. Reconheci a letra de
Brienna. Só de ver aquilo, pareceu que tudo à minha volta ficou
lento, como se o tempo tivesse parado.
— Por que você precisa ir, Neeve? — murmurei, então me
levantei e me afastei da mesa, para chegar mais perto dela. Tentei
ler as palavras de Brienna, palavras que Neeve borrara com suas
lágrimas.
Ela começou a chorar.
Eu não sabia o que fazer nem como consolá-la. Jourdain parecia
confuso, e Isolde se levantou para ir até a menina. Mas antes que a
rainha a alcançasse, Neeve enxugou as lágrimas e, determinada,
olhou para mim de novo.
— Lorde Aodhan. — Neeve estendeu as folhas lentamente para
mim, sabendo o quanto eu desejava ler o que estava escrito. —
Brienna é minha irmã.
27

AÇO E PEDRA
Território de lady Halloran, castelo Lerah

Brienna

Passei quatro dias solitários na escuridão.


Os guardas me traziam uma tigela de sopa e um copo de água
de manhã e à noite, e era assim que eu sabia que tinham se
passado quatro dias. O resto do tempo, eu ficava imaginando se
Ewan e Keela haviam sido flagrados tentando roubar a chave e me
perguntando onde estavam Jourdain, Cartier, Isolde e Luc.
Acordei com o barulho nas minhas portas, e Declan Lannon
entrou na cela.
Arrastei-me para o mais longe possível dele no catre.
Declan ficou quieto, puxou o banquinho para chegar mais perto e
apoiou o corpo grande nele. Estava olhando para o chão, cofiando a
barba com um ar distraído, e foi assim que percebi que ele
descobrira que não haveria troca. Que estava prestes a me
machucar em retaliação.
— Minhas fontes afirmam que Isolde Kavanagh está no castelo
Fionn e não tomou nenhuma providência para me encontrar no vale
daqui a três dias — disse ele, enfim. Parecia nervoso, e a raiva em
seus olhos brilhava como uma estrela. — Isso significa que sua
rainha e seu pai pretendem me derrotar, Brienna.
Meu coração disparou. Eu não conseguia engolir, nem escutar
muita coisa além da voz dele.
— Não dá para ter certeza disso.
— Ah, dá sim. Dei sete dias para me encontrarem no Vale de
Ossos. Já deviam ter começado os preparativos para a viagem. —
Ele deslocou o peso do corpo, e o banquinho gemeu. — Falei que
não machucaria você se obedecessem. Mas estão tentando me
enganar. O problema, mocinha, é que nunca vão encontrá-la aqui.
Ou seja, posso ir com calma, mandar um dedo da sua mão um dia,
um dedo do pé no outro, talvez até a língua mais para a frente, para
ajudá-los a se decidir.
Estremeci.
— Mas talvez… talvez seja um erro arrancar sua língua fora. Se
você responder às minhas perguntas, talvez eu deixe você ficar com
ela.
Desesperada, fiquei pensando se minhas respostas me
permitiriam ganhar tempo, ou se ele só estava brincando comigo.
Mas se isso preservasse mesmo minha língua… Meneei a cabeça
de leve.
— Como você encontrou a pedra, garota? — indagou ele.
Parecia muito gentil e educado, nada a ver com o homem
deturpado que era.
Respondi honestamente:
— Meu antepassado.
Declan arqueou as sobrancelhas.
— Qual?
— Tristan Allenach. Eu… herdei as lembranças dele.
Minha boca estava tão seca que eu mal conseguia falar.
— Como? Como isso aconteceu? Você consegue fazer mais?
Aos poucos, contei das memórias ancestrais, dos vínculos que
precisei criar entre a minha época e a de Tristan. E que as únicas
lembranças que eu tinha dele eram relacionadas à Pedra do
Anoitecer.
Declan ouviu atentamente, ainda alisando a barba com a mão.
— Ah, Brienna, Brienna… Quanta inveja tenho de você!
Eu tremia, e não consegui disfarçar. O medo se cravara
profundamente no meu coração; não tinha como saber se esse
entusiasmo dele era bom ou ruim para mim. Era como se eu
estivesse sentada no fio da navalha, esperando para ver de que
lado eu cairia.
— Você descende de um dos maiores homens da nossa história
— continuou ele. — Tristan Allenach. O homem que roubou a Pedra
do Anoitecer e assassinou a última rainha.
— Ele era um traidor covarde — respondi.
Declan deu uma risadinha.
— Quem me dera poder convertê-la, Brienna. Fazê-la enxergar a
vida do outro lado e se juntar a mim.
Encarei-o com frieza.
— Não seria bom para você eu ficar ao seu lado. Afinal, sou
Allenach. Eu acabaria te destronando pela segunda vez.
Declan riu. Enquanto estava distraído, peguei minhas correntes
e me preparei para pular em cima dele e passá-la em volta de seu
pescoço. Mas ele foi mais rápido. Antes que eu pudesse pular, ele
me segurou pelo pescoço e me jogou contra a parede.
Atordoada, tentei respirar. Dava para sentir minha pulsação
latejar intensamente e diminuir sob aquela força de aço dele.
Ele ainda estava sorrindo para mim quando falou:
— Acho que estamos prontos para começar.
Ele me soltou, e deslizei pela parede até o chão, como se meus
ossos tivessem derretido. Eu respirava chiando, e minha garganta
ainda formigava por causa da pressão da mão dele.
Dois guardas entraram na minha cela, soltaram as correntes dos
meus pulsos, sem abrir os grilhões de ferro, e me arrastaram até o
centro do local. Prenderam cada grilhão em um gancho pendurado
no teto. Era alto o bastante para que eu conseguisse encostar as
pontas dos dedos dos pés no chão, mas não o bastante para me
oferecer qualquer alívio. Meus ombros começaram a doer, resistindo
à atração da gravidade, tentando não se deslocar.
Os dois guardas saíram, e, mais uma vez, fiquei sozinha com
Declan. Pensei em gritar, mas minha respiração não passava de
fracos suspiros.
Vi-o tirar uma adaga reluzente do cinto. Comecei a suar frio
quando olhei o aço e vi o reflexo da luz na lâmina.
Senti o pânico crescer enquanto tentava respirar. Tempo. Eu
precisava dar mais tempo a Jourdain e Cartier.
— Vamos começar com algo muito simples, Brienna — anunciou
Declan.
Sua voz ecoou nos meus ouvidos, como se minha alma já
estivesse saindo do meu corpo e despencando por um buraco
infinito.
Arfei quando ele agarrou um punhado do meu cabelo. Ele
começou a cortá-lo com gestos bruscos e dolorosos, e vi mechas
compridas caírem no chão. Ele foi bruto, me arranhando com a
lâmina algumas vezes, e senti o sangue escorrer pelo meu pescoço
e manchar minha camisola suja.
Ele estava na metade do processo quando fomos interrompidos
por um grito.
O som me atravessou. A princípio, achei que o grito tivesse
saído de mim mesma, até que Declan se virou. Era Keela, ajoelhada
na porta aberta da cela, chorando histericamente.
— Não! Pai, por favor, não machuca ela! Não machuca ela!
Declan rosnou.
— Keela. Esta mulher é nossa inimiga.
— Não, não é, não! — berrou Keela. — Por favor, por favor,
para, pai! Faço o que você quiser se você deixar ela em paz!
Declan foi até a filha, ajoelhou-se na frente dela e passou a mão
enorme pelo cabelo claro da menina. Ela tentou recuar, mas ele
pegou as mechas, do mesmo jeito que tinha feito comigo. E meu
coração bateu freneticamente, desesperado, furioso.
— Keela? — falei para ela, com uma voz que parecia aço na
forja, fortalecido pelos golpes da bigorna. — Keela, vai ficar tudo
bem. Seu pai só está cortando meu cabelo para não atrapalhar. Vai
crescer de novo.
Declan riu, e o som parecia serpentes subindo pelas minhas
pernas.
— Isso, Keela. Vai crescer de novo. Agora, saia daqui e volte
para o seu quarto, como uma boa filha. Senão, depois o cabelo que
vou cortar vai ser o seu.
Keela ainda soluçava quando se afastou devagar e foi embora
aos tropeços. Eu a vi sair correndo, e seu choro se dissipou
gradualmente nas sombras, no silêncio pesado da torre.
Declan se levantou e limpou meu sangue da lâmina. Enquanto
continuava cortando meu cabelo, começou a me contar história
atrás de história sobre sua infância, sobre crescer no castelo real,
sobre escolher a esposa por ser a mais bonita de todas as mulheres
de Maevana. Não prestei atenção; estava tentando me concentrar
em um plano novo, algum que me ajudasse a escapar. Porque eu
não tinha a menor dúvida de que Declan Lannon me mataria aos
poucos e mandaria pedaços do meu corpo para minha família e
meus amigos.
— Mandei tosarem o cabelo da minha mulher uma vez — disse
ele, quando terminou de cortar o meu. — Por ter me desafiado uma
noite.
Declan deu um passo para trás e inclinou a cabeça para admirar
sua obra. Ele não raspara minha cabeça, mas meu cabelo estava
brutalmente curto. A sensação era de que estava desigual e
irregular, e tive que me segurar para não chorar, para resistir a olhar
para meu cabelo, que agora estava encostando nos meus dedos
dos pés.
— Sei o que você deve estar pensando de mim — murmurou
ele. — Deve achar que sou feito de trevas, que não há nada de bom
em mim. Mas não fui sempre assim. Tem uma pessoa na minha vida
que me ensinou a amar os outros. Ela é a única cujo amor eu já
retribuí, mesmo que tenha que mantê-la presa, como você está
agora.
Por que você está me dizendo isso? Minha mente retumbava.
Desviei os olhos, mas Declan segurou meu rosto e me obrigou a
encará-lo.
— Você não se parece nem um pouco com ela, e ainda assim…
Por que será que estou pensando nela agora, ao olhar para você?
— sussurrou ele. — Ela é a única pessoa cuja vida implorei para ser
poupada.
Ele queria que eu perguntasse que mulher era essa. Como se,
ao dizer o nome, ele não fosse mais se sentir culpado pelo que
estava prestes a fazer comigo.
Travei o maxilar até sentir os dedos dele apertarem meu rosto
com mais força.
— Quem? — murmurei.
— Você devia saber — disse Declan. — Você ama o filho dela.
A princípio, achei que ele devia estar se referindo a outra
pessoa. Porque a mãe de Cartier estava morta.
— Líle Morgane morreu no primeiro levante, com lady Kavanagh
e lady MacQuinn.
Ele observou minha expressão e leu as marcas que se formaram
na minha testa.
— Eu tinha onze anos no dia do primeiro levante — revelou. —
Meu pai decepou a mão de Líle Morgane na batalha e a arrastou até
a sala do trono, onde ela seria decapitada nos degrau do trono. Mas
eu não aguentaria. Não aguentaria vê-lo matá-la, destruir a única
coisa boa da minha vida. Eu não ligava que ela havia se rebelado,
que havia traído a todos nós. Pulei para cima dela e implorei para
meu pai deixá-la viver.
Estava tremendo, sentindo o peso das palavras dele. Estava
prestes a vomitar…
— Por que está me dizendo isso? — murmurei.
— Porque a mãe de Aodhan Morgane não morreu. Ela está viva.
Sempre esteve viva, graças à minha misericórdia, minha bondade.
Ele me sacudiu, como se isso fosse me fazer acreditar.
Mas então me ocorreu… E se ele estivesse falando a verdade?
E se Líle Morgane estivesse viva? E se ela estivesse viva esse
tempo todo?
Cartier. Só de pensar nisso, na mãe dele, desmoronei.
— É mentira. Mentira — gritei, com lágrimas nos olhos.
— Então meu pai me arrancou de cima de Líle — continuou
Declan, ignorando minha resistência. — E me falou que, se ele a
deixasse viver, eu teria que mantê-la acorrentada. Teria que silenciá-
la, caso contrário a verdade se espalharia como um incêndio e os
Morgane voltariam a se rebelar. Ele a mandou para a masmorra e
arrancou sua língua, e decapitou outra mulher de cabelo claro em
seu lugar. Kane Morgane, aquele idiota, viu o cabelo louro na estaca
e achou que fosse Líle.
É mentira, mentira, mentira…
Essas eram as únicas palavras a que eu podia me aferrar. As
únicas palavras em que eu podia acreditar.
Declan sorriu para mim, e eu sabia que o fim estava próximo.
Isso tinha que acabar em algum momento.
— Você e Líle são parecidas. Vocês duas se rebelaram contra a
minha família. Vocês duas se esforçam muito para não ter medo de
mim.
Dei um gemido, tentando conter o choro no peito.
Ele assoprou a adaga, embaçou o aço e esfregou a lâmina em
seu gibão de couro.
— Não vou matar você, Brienna. Porque quero que Aodhan a
encontre. Mas quando ele olhar para seu rosto, vai ver a mãe nos
seus olhos. Vai saber onde ela está.
Gritei quando ele segurou meu queixo, quando me dei conta do
que ele estava prestes a fazer. Senti a lâmina cortar minha testa, ao
longo do cabelo acima da têmpora direita. Senti-o descer a ponta
lentamente, descer e descer, até a mandíbula, rasgando minha
bochecha. Ele evitou meu olho por um triz. Mas eu não conseguia
mais enxergar, porque o sangue escorria, e a dor se tornou uma
chama presa sob minha pele, queimando, queimando, queimando
com minha pulsação frenética. Qual seria o fim? Isso tinha que
acabar em algum momento.
— Ah, você era uma moça tão bonita, né? Que pena.
Abaixei a cabeça e vi sangue pingar continuamente no meu
cabelo cortado.
Declan estava falando, mas o som se dissolveu, como se
estivesse sendo esticado ao longo de centenas de anos.
Meus ouvidos estalaram. Balancei, tentando me equilibrar na
ponta dos pés, e a dor lancinante no meu rosto começou de novo. A
sensação era de que eu tinha levado um soco. Mas Declan não
havia encostado em mim; através do véu que cobria minha visão,
observei-o limpar o sangue da lâmina, guardá-la na bainha e dar um
passo para trás, para me encarar.
Encarei-o de volta, com a respiração fraca. Minha garganta
apertou, e senti mais uma vez uma dor tão insuportável que gritei.
Declan franziu o cenho, confuso com minha reação, e escutei
uma voz, desconhecida, distante, saída do passado.
— Onde você escondeu a pedra?
De novo, uma dor brutal, só que dessa vez foi no meu braço.
Alguém estava quebrando meu braço. Alguém que eu não via.
— Diga onde você escondeu a pedra, Allenach.
Mais dor, subindo pelas costas, e respirei ofegante, entendendo
o que estava acontecendo.
Eu estava fazendo a transição para uma lembrança de Tristan.
Deixei-me levar por ela porque eu estava assoberbada e troquei
uma câmara de tortura por outra.
Meu corpo se tornou o corpo de Tristan, e vi o mundo pelos
olhos dele, deixei sua pele repousar sobre a minha como se fosse
um véu.
— Cadê, Allenach? — perguntou um jovem alto e musculoso.
Ele estava parado diante de Tristan, com respingos de sangue
no gibão verde, um gibão verde com um lince estampado no peito.
Lannon.
— Você quer que eu quebre seu outro braço?
Tristan gemeu. Ele só enxergava por um olho, e sua boca se
encheu de sangue. Seus polegares haviam sido decepados, e o
braço direito estava quebrado. Também tinha certeza de que
metade das costelas estavam fraturadas.
— Fale, Allenach — continuou o príncipe Lannon, nitidamente
irritado. Quanto tempo fazia que ele estava sendo torturado? —
Fale, senão vai ficar muito, muito pior.
Ele deu uma risadinha, sabendo que havia guardado um
segredo desses por tanto tempo, que só agora o rei Lannon e seus
filhos descobriram que Tristan Allenach sabia onde a Pedra do
Anoitecer estava escondida.
— Está com medo, não é, rapaz? — perguntou Tristan, com
dificuldade, cuspindo fora sangue e alguns dentes. — Tem medo de
que a pedra seja encontrada, de que seu reinado acabe antes
mesmo de ter a chance de começar.
O rosto do príncipe Lannon se retorceu de fúria, e ele deu outro
soco em Tristan, arrancando mais dentes.
— Chega, Fergus — declarou o segundo filho Lannon, nas
sombras. — Você vai matar esse velhote antes de ele falar.
— Ele está debochando de mim, Patrick! — vociferou Fergus
Lannon.
— O que é mais importante para nosso pai? Seu orgulho ou a
localização da pedra?
Fergus fechou os punhos.
Patrick se levantou e se aproximou. Não era nem de perto tão
musculoso ou imponente de estatura quanto o herdeiro, mas seus
olhos reluziram um brilho sinistro e malicioso quando ele se
agachou para fitar o olhar turvo de Tristan.
— Sei que você é um homem idoso agora — disse Patrick. —
Não tem mais nada para você aqui. Você pôde viver com fartura,
sua mulher já morreu há muito tempo e seus filhos estão esperando
você morrer para pegar sua herança. — Ele parou de falar e inclinou
a cabeça para o lado. — Por que fez isso, afinal? Por que quis
esconder a pedra?
Ah, não havia nenhuma resposta simples a essa pergunta. No
passado, Tristan acreditava que tinha sido pelo bem do povo, para
evitar a devastação de uma guerra mágica. Mas, hoje em dia, ele
realmente não sabia. Talvez fosse ressentimento em relação aos
Kavanagh e à magia que a Casa podia usar. Talvez tenha sido só
para ver se seria possível realizar algo tão ousado, para ver se as
lendas dos Kavanagh eram verdadeiras. Para ver se a magia deles
realmente morreria sem a pedra.
Ele sorriu.
— Sei que vocês acham que eu vou dizer. Que, se quebrarem
todos os meus ossos, vou revelar onde a escondi. Bom, vocês já me
quebraram quase todo. Então, cheguem mais perto, rapazes.
Cheguem mais perto para que eu possa dizer.
O príncipe Fergus se abaixou imediatamente, mas Patrick, o
mais sábio, pegou no braço do irmão e o segurou.
— Podemos ouvir daqui, Allenach — afirmou ele.
Tristan deu uma risadinha e engasgou com o próprio sangue.
— Você é que devia ser o herdeiro, rapaz. Não Fergus.
Fergus pegou um porrete e quebrou o outro braço de Tristan
antes que Patrick pudesse impedi-lo.
A dor tirou o ar de Tristan e esmagou seu coração no fundo do
peito. Mas ele rangeu os poucos dentes que lhe restavam e se
obrigou a continuar acordado, pois ainda precisava falar mais uma
coisa para aquela corja Lannon.
— Não sou a única pessoa que sabe onde a pedra está —
revelou, respirando com dificuldade.
— Quem é esse outro homem, e onde ele está? — perguntou
Fergus.
Tristan sorriu.
— Não é um homem.
Fergus ficou imóvel, em choque. Mas Patrick deu uma risadinha,
nem um pouco surpreso.
— Então onde está essa mulher, Allenach? Diga, e talvez
deixemos você viver, e ela também.
Tristan inclinou a cabeça para trás e a apoiou na parede de
pedra da cela, onde passara a última semana. Sua visão estava
prestes a desaparecer, e ele se esforçou para inspirar só mais uma
vez.
— Que azar o de vocês… — Ele abaixou o queixo, e olhou pela
última vez para os rapazes Lannon, e disse suas últimas palavras:
— Porque ela ainda não nasceu.
28

A TO R R E S U L
A caminho do castelo Lerah, território de lorde MacQuinn

Cartier

Ao amanhecer, subi na traseira da carroça com Luc e Sean. Nós


nos deitamos um ao lado do outro e vimos Neeve e Betha
acumularem fardos de linho e lã em cima de nós até ficarmos
escondidos. Era apertado e desconfortável, e ficaríamos ali por
horas; eu já estava transpirando, e meu coração martelava
freneticamente. Respirei fundo para acalmar a mente e aliviar a
tensão do corpo.
Ia dar certo. Nossa missão não fracassaria.
Ouvi Neeve e Betha subirem no banco de condução; a carroça
começou a balançar e deslizar para a frente. Jourdain, Isolde e uma
pequena tropa de guerreiros MacQuinn nos seguiriam a uma
distância segura. E lady Grainne havia saído dois dias antes, para
reunir suas forças. Ao anoitecer, todos nos encontraríamos no
castelo Lerah.
Nenhum de nós falou nada, mas eu ouvia o som da respiração
dos outros conforme a carroça sacolejava manhã adentro. O silêncio
me deu a chance de refletir sobre a verdade a respeito de Neeve.
Relembrei as palavras de Brienna mais uma vez, do relato que ela
transcrevera para o cavalariço MacQuinn, do que Neeve, às
lagrimas, havia mostrado para nós. E, quando Allenach percebeu
que sua filha não ia morrer, mas que ostentaria as cicatrizes como
um estandarte orgulhoso, de repente ele passou a agir como se a
menina não fosse sua e deixou que as tecelãs a criassem.
Não dava para acreditar que Brienna tinha uma meia-irmã.
Contudo, ao olhar para Neeve, comecei a enxergar as semelhanças
entre elas. As duas mulheres haviam puxado à mãe e tinham o
mesmo sorriso, o mesmo formato de queixo. Andavam com a
mesma graciosidade lânguida.
E Sean… Sean quase desmaiara ao ler o relato. No intervalo de
um mês turbulento, ele perdera o pai e o irmão, ganhara o título de
lorde e descobrira que tinha duas irmãs. Ele chorou imediatamente
quando abraçou Neeve.
Era cerca de meio-dia quando a carroça parou de repente. Olhei
para Luc, que estava ao meu lado. Ele arregalou os olhos, com a
testa coberta de suor. Nós dois esperamos para descobrir por que
Betha parara a carroça…
— O que é isto? — perguntou um homem com a voz debochada.
— Somos tecelãs MacQuinn — respondeu Betha, com calma. —
Temos uma entrega para lady Halloran.
Outro homem falou. Não consegui distinguir o que disse, mas
sabia que não era bom.
— Por que precisam revistar a carroça? — perguntou Neeve,
com a voz alta o bastante para atravessar os tecidos, claramente
repetindo o que o homem dissera para nos alertar. — Nós
entregamos lã e linho todo mês.
Minha mão desceu devagar até a cintura, onde meu punhal
estava na bainha. Gesticulei com a cabeça para que Luc e Sean
fizessem o mesmo.
Deu para ouvir o som das botas se aproximando. Os fardos
começaram a se deslocar bem acima de mim e um raio de luz do sol
atingiu meu rosto. Avancei antes que o guarda Halloran me visse e
levei o punhal direto ao pescoço dele. O homem caiu para trás e
praguejou, mas eu o havia segurado e estava prendendo-o
enquanto Luc e Sean enfrentavam o outro. Eram só dois, e a
estrada à nossa volta estava vazia, mas meus braços se arrepiaram;
eu me sentia exposto.
— Rápido — falei. — Leve a carroça para as árvores, Betha.
Sean, pegue os cavalos dos Halloran.
Arrastei meu guarda Halloran para a floresta, e Luc me seguiu
com o outro.
Quando estávamos abrigados entre as árvores, amordaçamos e
amarramos os dois, sem saber o que fazer com eles.
Mas então pensei… Por que nos escondermos na carroça
quando dois de nós podíamos vestir as armaduras deles e usar
seus cavalos?
Luc pensou a mesma coisa, porque veio até mim e sussurrou:
— Devíamos entrar em Lerah a cavalo.
Antes que eu pudesse responder, Sean nocauteou os dois
guardas. Desafivelamos as armaduras deles, e Luc e eu nos
vestimos. Parecíamos Halloran, com túnicas azul-marinho, mantos
amarelos e armaduras bronze com um íbex gravado no peitoral.
— Luc e eu vamos bancar sua escolta — murmurei para as
mulheres ao enfiar o elmo do guarda na cabeça. — Assim que
chegarmos ao pátio do castelo, vamos ajudar Sean a sair
despercebido da carroça.
Betha assentiu e voltou para cima da carroça enquanto Neeve
escondia Sean sob os tecidos de novo. Luc e eu amarramos os
guardas desacordados nas árvores.
Nossa comitiva voltou para céu aberto e entrou na estrada. Tudo
foi muito rápido, questão de minutos. E apesar da minha vontade de
pedir para Betha acelerar a carroça, eu sabia que esse pequeno
atraso seria favorável para nós.
Chegamos à ponte levadiça de ferro do castelo Lerah ao pôr do
sol; o crepúsculo nos envolvia como um véu protetor quando
paramos diante da guarita do fosso.
Era exatamente como Sean descrevera: uma fortaleza
formidável em um cume, protegida por um fosso largo. Meus olhos
examinaram as quatro torres e se fixaram na do sul, a que estava
pintada de ouro pelo sol poente, a que detinha Brienna.
E, ao leste, lá longe, vi os pomares onde Isolde, Jourdain e suas
tropas aguardariam. Senti o cheiro da floresta atrás de mim, uma
mistura de carvalho, musgo e terra úmida. Resisti à tentação de me
virar e olhar para a mata, ciente de que lady Grainne e seus
guerreiros estavam escondidos nas sombras, observando,
esperando.
Um guarda apareceu na porta da guarita do fosso, de tocha na
mão, e olhou para nós. Neeve e Betha estavam com o cabelo
coberto por um xale, mas senti uma onda súbita de pânico.
O guarda voltou para dentro da guarita e fez um sinal para o
guarda do portão.
Vi a ponte levadiça descer, e as correntes de ferro tilintaram até
terminar de baixá-la, estendendo-a diante de nós como um convite
sinistro. Betha sacudiu as rédeas, e a carroça começou a sacolejar
sobre madeira e ferro. Luc e eu a acompanhamos, ao som oco dos
cascos de nossos cavalos, acima de água salpicada de estrelas.
Não me atrevi a sentir esperança. Ainda não. Nem sequer
depois que passamos da grade, que se erguia acima de nós como
os dentes enferrujados de um gigante. Nem sequer quando
passamos pela área gramada do campo central ou pela guarita do
portão. Não senti esperança nem quando Betha conduziu a carroça
para o campo interno, um pátio espaçoso iluminado por tochas.
Mais uma vez Sean estava certo em sua descrição: dava para
ver vagamente os jardins mais à frente; senti o cheiro de levedura
da padaria em algum ponto à direita. Ouvi o martelar de uma forja
distante, provavelmente ao leste, e o relincho de cavalos no
estábulo. Senti a altura das muralhas à nossa volta; pedra vermelha
recortada por portas arqueadas e janelinhas estreitas com mainel de
vidro reluzente.
Troquei um olhar com Luc e mal consegui distinguir os olhos do
meu parceiro à luz das tochas.
Ele desmontou antes, na mesma hora que o cavalariço saiu do
estábulo para pegar nossos cavalos. O estábulo ficava atrás de nós,
abrigado na base da torre sul. A torre da prisão. E estiquei o
pescoço para observá-la de novo, para avaliá-la.
— Vou pegar seu cavalo, senhor.
Deslizei para fora da sela, senti os joelhos latejarem com o
impacto e entreguei o cavalo para o rapaz. Neeve já havia descido
da carroça e estava se preparando para deslocar os tecidos de
modo a deixar que Sean saísse discretamente. Parei ao lado dela e
levantei um dos fardos. Sean caiu no piso de pedra sem fazer
barulho e enrolou um xale azul-marinho na cabeça para cobrir o
rosto.
— A torre sul é bem aqui, atrás de nós — murmurei para Neeve.
Neeve olhou por cima do meu ombro, sentindo de repente a
impossibilidade da situação. Ela estava prestes a invadir uma torre e
fugir com uma prisioneira.
— Você consegue? — perguntei.
— Consigo — respondeu ela, quase com rispidez.
— Rápido, peguem um fardo e vamos entrar — sussurrou Sean,
interrompendo-nos.
Ele e Betha já estavam com um rolo de lã nos braços. Neeve e
eu pegamos logo o tecido e seguimos Sean até um arco aberto bem
ao lado do estábulo.
Entramos em um corredor que ia da torre sul a leste, ao som
sibilante das tochas nos suportes de ferro. Eu precisava chegar até
o outro lado do castelo, nos corredores da parte oeste. Mas, quando
Sean e Luc saíram, a caminho da guarita do portão, não fui capaz
de abandonar Neeve e Betha.
— Você tem que ir, milorde — murmurou Neeve.
— Deixem-me ajudá-las a entrar na torre, pelo menos —
respondi.
Neeve parecia prestes a protestar.
— Rápido, tem alguém vindo.
Corremos atrapalhados para a porta mais próxima e entramos
nos fundos da padaria. A princípio, fiquei apavorado, achando que
tínhamos acabado de cometer um erro enorme, que nós três
revelaríamos nossa presença. Mas o cômodo estava vazio. Havia
uma mesa comprida coberta de farinha, massas de pão
fermentando em cima de uma pedra aquecida e prateleiras com
bacias de argila e sacos de farinha. Não tinha ninguém ali, mas
dava para ouvir o som de risos no cômodo adjacente.
Havia uma bandeja de bisnagas recém-assadas e untadas.
Coloquei meu fardo no chão, peguei uma travessa de madeira e pus
três bisnagas nela. Peguei também um pote pequeno de mel e uma
caneca de cerveja que alguém esquecera e os coloquei entre as
bisnagas.
— O que você está fazendo? — chiou Betha.
— Confie em mim — falei, abrindo de novo a porta para o
corredor.
Betha bufou e pegou o fardo de tecido que eu tinha largado, e
começamos a andar para o sul. Depois de um tempo, o corredor se
bifurcou, e um dos lados seguia por uma escadaria curva.
Com as mulheres à minha sombra, comecei a subir carregando
uma trêmula bandeja de jantar improvisado.
Chegamos ao patamar, que dava na passarela da amurada, tal
como Sean descrevera. A porta da torre devia estar próxima. Saí
para céu aberto e senti o fedor do estábulo abaixo de nós. O cheiro
de esterco me fez pensar que eu já havia sido escondido no meio
disso uma vez, que o monte de estrume salvara minha vida. Andei
até a beira da amurada, seguindo o fedor, e vi o monte de estrume
no campo central, a área entre os muros.
— Se tiverem que pular deste muro — falei para Neeve —,
tentem cair naquilo.
Neeve assentiu.
— E a porta está ali.
Ela apontou para a torre, onde havia uma porta com barras de
ferro embutida na parede recoberta de sombras. Não tinha nenhum
vigia, o que me surpreendeu. Até que vi um guarda patrulhando a
amurada, e ele logo chegaria em nós.
— Misericórdia — murmurou Betha, e achei que ela estivesse se
referindo ao guarda que se aproximava, mas então escutei o som de
pedrinhas soltas.
Olhei para cima na torre e vi ninguém menos que Keela Lannon
escalando a parede. Ela estava seguindo uma trepadeira que havia
rachado o cimento entre as pedras, subindo das ameias para a
única janela na parede da torre da prisão. E naquele instante eu
soube que Keela devia estar indo atrás de Brienna, que Keela era
um farol para nos guiar.
— É por ali que você entra — falei para Neeve. — Vá atrás dela,
rápido.
Neeve não hesitou. Jogou o tecido por cima do parapeito, até o
monte de estrume, e se apressou a seguir Keela. Foi Betha quem
emitiu uma exclamação de choque.
— Não vou conseguir escalar isso — declarou a tecelã, e seu
rosto corado empalideceu ao ver Neeve se esforçar para encaixar o
pé na primeira fresta.
— Não, então você precisa esperar aqui, para servir de distração
— falei, entregando-lhe a travessa de pães e pegando os fardos de
linho e lã dela.
Joguei os tecidos no monte de estrume, igual a Neeve, e vi
Betha se resignar a andar com a comida na direção do guarda.
Continuei nas sombras, observando Neeve escalar. Keela já havia
sumido pela janela, sem saber que estávamos ali, que a estávamos
seguindo.
Esperei até Neeve chegar ao batente de pedra e se puxar para
dentro do corredor da torre. Foi como se a janela a tivesse engolido,
até que vi seu rosto, pálido como a lua, quando ela apareceu e
acenou para mim.
Só então senti esperança, só então me mexi.
Entrei no corredor sul e o segui até o lado oeste do castelo.
Quando ouvi o estrondo familiar da ponte levadiça descendo,
comecei a correr, pisoteando as pedras com as botas, cortando as
sombras. Escutei os primeiros gritos de alarme e parei apenas para
olhar pela janela mais próxima, que dava vista para a ponte.
Ela estava totalmente abaixada, e Grainne e suas tropas
estavam vindo; o luar refletia em seus peitorais e as estrelas, nas
espadas. Eles andavam em silêncio; deslocavam-se como se
fossem um só, como uma serpente deslizando pela ponte levadiça.
Cheguei à torre oeste assim que a gritaria na guarita começou a
ficar mais alta. Deu para sentir nas pedras — o espanto, o tremor do
ataque que se concretizava.
Saquei minha espada e comecei a subir a escada da torre, à
procura de Declan Lannon.
29

RESISTIR
Território de lady Halloran, castelo Lerah

Brienna

— Senhorita? Senhorita Brienna, acorda. Por favor, por favor,


acorda.
Uma voz fraca e trêmula que eu queria segurar na mão,
proteger, ver desabrochar como uma rosa. Era a voz de uma
menina assustada, e suas palavras eram como a luz do sol
penetrando uma tempestade.
— Quero ver ela, Keela. Keela!
Uma resposta indignada, irritada, a voz de um menino
determinado e corajoso, palavras que eram como chuva caindo em
um rio.
— Não, Ewan. Não olha. Fica. Aí.
— Ela é minha lady, e posso fazer o que eu quiser.
Ouvi o som de botas se arrastando no chão, e então silêncio, um
silêncio sinistro e doloroso, um vazio onde me afundar. O menino
começou a chorar, chorar, chorar…
— Shh, vão escutar você, Ewan. Falei para você não olhar! —
Mas ela também começou a chorar.
— Ele matou ela! Ele matou ela! — gemeu o menino, com a voz
carregada de fúria.
— Não, irmão. Ela está viva. A gente tem que soltar ela antes
que o pai volte. A gente tem que esconder ela.
— Mas onde? Não tem lugar nenhum!
— Vou pegar a chave, e você procura um lugar para esconder
ela.
As vozes se dissiparam, e só escutei um zumbido, um chiado, o
som de algo que queria se dissolver na penumbra.
Quando abri os olhos, percebi que era o som da minha
respiração fraca e árdua.
Eu continuava pendurada pelos pulsos, por braços que eu não
sentia mais.
Pensei em Tristan, naquela última lembrança que ele me
transmitira e que ainda ecoava em meu coração, na nossa dor
ligada através dos séculos. Ele acreditara na maldição que a última
princesa Kavanagh lançara: que uma filha surgiria de sua linhagem
e roubaria suas lembranças; ele sabia que eu seria sua
descendente, que eu reverteria todos os seus erros.
Meus dedos se arrastaram no chão. Um punhado de cabelo. De
quem era esse cabelo? Era tão bonito, não devia ter sido cortado
daquele jeito.
E o sangue. Segui o rastro até a origem, do chão para minha
perna, para minha camisola, para a cavidade na minha clavícula
onde ele secara.
Era meu. Meu sangue.
Mexi o corpo, desesperada para sentir os braços, mas só
consegui esbarrar na lateral do rosto.
E me lembrei. O corte de uma lâmina. As palavras que Declan
havia cravado no meu ferimento… quero que Aodhan a veja. Mas,
quando ele olhar para seu rosto, vai ver a mãe nos seus olhos. Vai
saber onde ela está.
Ofeguei e me debati nas correntes até a dor no rosto trazer de
volta as estrelas cruéis, como se eu estivesse girando embaixo de
um céu repleto de constelações, turva e tonta. Eu queria aquela
névoa escura de novo, a inconsciência.
Líle Morgane morreu. Ele está mentindo para mim. Ela não pode
estar viva…
Mas era só em Líle Morgane que eu conseguia pensar.
Minha consciência flutuou e não sei quanto tempo se passou.
Quando escutei a porta de ferro se arrastar e abrir, levei um
susto e esbarrei no rosto de novo. A dor se propagou pelos meus
ossos e me fez engasgar, tossir e vomitar na frente da roupa.
Esperei ouvir a risada ameaçadora de Declan, sentir a dureza de
suas mãos enquanto ele decidia a próxima mutilação. Mas fui
envolvida por algo delicado. Senti alguém se alinhar
cuidadosamente a mim, com ternura. Mãos subiram pelos meus
braços, até o gancho.
— Estou aqui, irmã.
Abri os olhos. Neeve. Neeve estava com o corpo junto ao meu
para me equilibrar, enquanto suas mãos tentavam me soltar. Havia
lágrimas correndo por seu rosto, mas ela sorriu para mim.
Só podia ser um sonho.
— Neeve? — balbuciei. — Nunca sonhei com você antes.
— Não é sonho, irmã.
Neeve finalmente soltou os grilhões do gancho. Caí em cima
dela, e Keela apareceu, passando os braços em volta de nós duas.
Ficamos em círculo, e Neeve e Keela sustentavam meu peso.
Foi só nesse momento que me dei conta do que Neeve havia me
chamado.
Irmã.
— Quem contou para você? — murmurei, enquanto Keela se
ajoelhava para desprender as correntes nos meus tornozelos.
— Explico assim que chegarmos em casa — prometeu Neeve.
— Você consegue andar comigo?
Ela entrelaçou os dedos com os meus e puxou com delicadeza.
Tentei dar um passo.
— Acho que a gente precisa esconder ela. — disse Keela,
preocupada. — Meu pai sabe que tem alguma coisa errada. Ele vai
vir atrás dela.
— Não dá tempo. Temos que fugir — disse Neeve. — Brienna,
você consegue me seguir?
Tentei levantar a mão, sentir o ferimento no meu rosto. Neeve
pegou meus dedos rapidamente.
— Meu rosto, Neeve — sussurrei. Falar era difícil, porque cada
palavra repuxava minha bochecha. — Está muito…?
— Nada que lady Isolde não possa curar — respondeu Neeve
com firmeza.
Mas eu vi: o horror, a tristeza e a raiva nos olhos dela.
— Irmã — disse Neeve, percebendo meu desespero. Ela me
puxou para si. — Irmã, você precisa fugir comigo. Lady Isolde está
esperando atrás do pomar para levá-la para casa. Eu a guio até lá.
— Isolde?
— É. Está pronta?
Gesticulei com a cabeça e apertei a mão dela com força.
— Keela, pegue a outra mão dela — pediu Neeve, e senti os
dedinhos frios de Keela se entrelaçarem nos meus. — Segure-se
firme em mim, Brienna.
Deixei-as me tirarem da cela para o corredor. Eu estava tonta;
parecia que as paredes estavam começando a se apertar, a se
fechar em torno de nós, como se fossem uma criatura viva, com
escamas de dragão, inalando, expirando. Demos voltas e voltas,
descendo por um círculo pequeno.
Escutei um grito distante. E os gritos foram ficando mais
urgentes e altos, sons de dor.
— Acho que não vamos conseguir sair pela janela — constatou
Neeve. — Vamos ter que sair pela porta.
— Mas alguém pode ver a gente — sussurrou Keela.
Ficamos quietas, ouvindo os ruídos de uma batalha acontecendo
do outro lado das paredes.
— Acho que tem confusão suficiente para sairmos — continuou
Neeve. — Pode me dar as chaves, Keela?
— O que está acontecendo? — perguntou Keela, com a voz
trêmula, ao entregar o molho de chaves. — Vai começar uma
batalha? E o meu irmão? Não sei onde ele está. Era para ele me
encontrar no nosso quarto, para esconder ela.
— Lorde Aodhan vai encontrá-lo — respondeu Neeve. — Temos
que sair.
Depois de um instante de um doloroso silêncio, ela me arrastou
consigo, e arrastei Keela, ainda ligada à mão das duas.
Continuamos descendo, e minhas pernas tremiam. Senti a febre
deslizar plumas quentes no meu rosto e pescoço. Meus dentes
rangiam, e puxei a mão de Neeve.
— Neeve, eu… acho que não… consigo correr.
— Estamos quase chegando — avisou Neeve, puxando-me mais
rápido.
Chegamos ao saguão da torre, um cômodo simples. Tinha o
brasão dos Halloran na parede, a única cor naquele lugar
melancólico, e uma mesa com cadeira. O guarda que devia estar ali
tinha sumido, mas seu jantar parcialmente comido continuava no
prato.
— Prestem atenção: o plano é o seguinte — começou Neeve,
puxando nós duas para perto. — Vamos descer a escada da
amurada até o campo central. Assim, vamos evitar o pior da batalha.
Vamos correr pelo muro até a torre leste, onde ficam as forjas. Deve
ter uma entrada pequena lá para a gente sair para o fosso. — Ela
desenrolou o xale que estava amarrado em sua cintura e o colocou
delicadamente na minha cabeça. — É só me seguir, tudo bem,
irmã?
Assenti, embora não acreditasse que tinha forças para isso.
— Então vamos.
Ela se virou, foi até a porta e se esforçou para destrancar os
ferrolhos. A porta enfim se abriu, e imediatamente fomos recebidas
por um sopro de ar noturno e sons de dois homens lutando nas
ameias.
Por um instante, ficamos paralisadas na porta, vendo os
guerreiros trocarem golpes e bloqueios, um Halloran e um Dermott.
Só então entendi o que estava acontecendo: lady Grainne havia
liderado um ataque ao castelo.
Assim que essa esperança desabrochou no meu peito, o
Halloran enfiou a espada no Dermott, quase até o cabo.
— Rápido — pediu Neeve, como se tivesse sido despertada pela
morte iminente.
Ela me puxou antes que o Halloran pudesse nos impedir, e o
caos veio em nosso encalço enquanto ela tentava chegar à escada
da amurada. Havia um bando de guerreiros Halloran subindo,
saídos das sombras, de espada em mãos. Estavam vindo na nossa
direção, e Neeve parou de repente, fazendo com que Keela batesse
nas minhas costas.
— Rápido. Temos que pular — avisou minha irmã bruscamente,
voltando para a parede.
Não achei que ela estivesse falando sério. Ia fazer a gente se
jogar para a morte. Mas os guerreiros Halloran haviam emergido na
amurada como formigas saindo de um formigueiro; eles nos viram, e
dois começaram a correr em nossa direção.
Eu preferia pular a ser capturada de novo. Meu coração
martelava no peito quando subi nas ameias com Neeve, e Keela
resistiu atrás de nós.
— Confie em mim — pediu Neeve para a menina. — Temos que
pular juntas e cair no estrume lá embaixo.
Puxei Keela ao meu lado. Ela parecia apavorada, e eu queria
sorrir, mas percebi que meu rosto estava dormente.
— Agora — anunciou Neeve, em um sussurro, e pulamos como
se fôssemos meros filhotes de pássaro, abrindo as asinhas para o
vento.
A queda parecia não acabar nunca; a escuridão urrou no meu
rosto até que mergulhei no esterco, afundando até a cintura.
Porém, minha irmã não me deu tempo nem de recuperar o
fôlego. Ela já estava se arrastando para fora do estrume, puxando-
me junto, e puxei Keela.
— Fiquem à sombra da muralha — avisou, e tentei acompanhá-
la.
Estávamos na faixa gramada do campo central, que se
encontrava perturbadoramente vazio e tranquilo enquanto o conflito
se concentrava no núcleo da fortaleza.
Corremos ao longo da muralha interna à nossa esquerda,
seguindo a grama. Eu mal conseguia respirar, mal conseguia sentir
os pés. Minha irmã me arrastou, me fez continuar andando, senão
eu teria sucumbido. Chegamos à torre leste, que parecia muito mais
movimentada do que a torre da prisão.
Paramos nas sombras, olhamos para o alto e escutando os
Halloran que pareciam encher as ameias acima de nós.
— Por que estão todos aqui? — perguntei, reprimindo uma onda
de náusea súbita.
— Porque aqui é a torre do arsenal — respondeu Neeve. — E
não estou vendo a ala de forjas. Acho que Sean se enganou… Fica
dentro do castelo, não no campo central.
Ela se virou para mim e Keela.
— Quero que vocês duas fiquem aqui, nas sombras — ordenou
Neeve. — Eu vou…
Keela deu um grito de susto. Não tive forças para me virar e ver
o que era, mas Neeve comprimiu os olhos e suas narinas se
dilataram quando ela virou o rosto. Escutei: botas batendo na
grama, armaduras retinindo, chegando perto.
Não tínhamos onde nos esconder. Precisaríamos fugir correndo,
e eu mal conseguia ficar de pé.
Apoiei-me no muro, tremendo. Minha visão começou a ficar turva
e escura, mas Neeve parecia uma coluna de luz ao sacar um punhal
de baixo do vestido. O punhal que eu lhe dera. Com a arma
empunhada, ela se colocou diante de mim e Keela e esperou.
Mas não eram forças Halloran correndo pelo campo central.
Eram Dermott.
Neeve reconheceu o brasão da armadura ao mesmo tempo que
eu, e gritou para eles, desesperada.
— Por favor, podem nos ajudar a achar um jeito de sair da
muralha externa?
Uma guerreira Dermott diminuiu o passo ao reparar em nós. Não
sei se sabia quem éramos, mas apontou para a frente com a
espada.
— Continuem andando para o norte. Abrimos o postigo do norte
para os inocentes saírem.
Sem falar nada, Neeve e Keela pegaram minhas mãos. Era
difícil ficar de pé, manter os olhos abertos.
— Neeve, não consigo…
— Consegue, sim, Brienna — demandou Neeve, privando-me da
chance de me render. — Fique comigo.
Ela me segurava com dedos de ferro ao me arrastar atrás de si e
seguir os Dermott. Obriguei meus olhos a se manterem abertos. Os
guerreiros subiram a escada curva que levava às ameias do
arsenal, e continuamos pelo gramado, tentando alcançar essa
esperança remota do postigo aberto.
E a encontramos: uma pequena lacuna aberta na muralha
externa. Alguns Dermott estavam com o portão aberto, mas não
havia ponte. Só o espaço escuro da água do fosso.
— Vocês vão ter que atravessar a nado — disse um dos Dermott
após conferir se nossos pulsos tinham a meia-lua. Seus olhos então
pararam no meu rosto. — Se bem que, com esse ferimento… Ela
não devia entrar na água.
A expressão de Neeve foi de raiva súbita quando ela retrucou:
— Ela é minha irmã, e vou levá-la até a rainha para ser curada.
Então saia da frente.
O Dermott só ergueu as sobrancelhas e se afastou.
Mas, agora que estávamos ali, hesitamos ao olhar para a água.
A sensação era de que íamos pular de outro muro, só que, desta
vez, não dava para ver o fundo.
— Tem certeza de que lorde Aodhan vai achar meu irmão? —
perguntou Keela, retorcendo as mãos.
— Tenho — respondeu Neeve, mas sua voz pareceu vacilante.
— Vou entrar primeiro, aí Keela ajuda Brienna.
Minha irmã tentou descer com elegância, mas escorregou e caiu,
espalhando água para todos os lados. Vi a escuridão se fechar
sobre seu cabelo claro; vi quando ela rompeu a superfície ofegante
e tive certeza de que eu jamais conseguiria manter o rosto fora da
água.
Nem tentei entrar devagar. Pulei e deixei a água me envolver.
Meu rosto latejou e ardeu em resposta, e por um instante tive a
impressão de afundar, sem conseguir achar a superfície, até que
chutei Neeve. As mãos dela me puxaram com força, e cuspi,
engasguei e combati o impulso incessante de tocar minha ferida.
Nadamos na água escura e fria. A sensação era de que havia
léguas de segredos abaixo de nós, segredos que a qualquer
momento podiam emergir das profundezas e agarrar nossos
tornozelos. Pensei em Cartier enquanto me esforçava para nadar.
Neeve dissera que ele estava ali, que ia encontrar Ewan, mas,
quando pensei em Cartier, pensei na mãe dele, então tive que tirar
os dois da cabeça. As palavras de Declan ainda pesavam no meu
peito com tanta força que poderiam me empurrar até o fundo do
fosso.
Chegamos ao outro lado e, cravando os dedos na lama
encharcada, saímos da água. Neeve e Keela me puxaram até a
grama, porque não consegui subir sozinha. Gemi ao me arrastar no
chão; tudo que eu mais queria era me deitar e dormir.
— Estamos quase lá, Brienna — sussurrou Neeve. — Segure-se
em mim, irmã.
E, antes que eu pudesse cair, ela me ergueu de novo enquanto
minhas pernas bambeavam. Corremos juntas até a grama começar
a dar lugar a uma colina. Encontrei os últimos resquícios de força e
me obriguei a continuar botando um pé diante do outro, me obriguei
a chegar ao fim. Corremos até eu não escutar mais o caos e a fúria
que se agitavam no castelo atrás de mim, até as estrelas se
esconderem nos galhos de árvores e o fedor que se aferrava a mim
desaparecer sob o perfume adocicado de um pomar. Corremos até
nossa respiração ficar entrecortada e nossos pulmões queimarem,
até minha febre se instalar nas articulações e cada passo que eu
dava disparar uma dor lancinante pelas minhas costas.
Parecia que Neeve, Keela e eu corremos por anos.
E quase desabei, incapaz de continuar, quase insisti que minha
irmã me deixasse ficar no chão e dormir, quando o vi ao longe.
Ele estava parado em um campo, com a armadura iluminada
pela lua. E eu sabia que estava me esperando. Que estava
esperando para me levar para casa.
Neeve e Keela soltaram meus dedos devagar e desapareceram
ao ponto de eu me perguntar se elas sequer tinham existido.
Jourdain correu para mim ao mesmo tempo que corri para ele.
Ele ainda não viu meu rosto, pensei quando ele me abraçou,
quando seus braços me envolveram como uma corrente
inquebrantável e me sustentaram.
— Cheguei — murmurou meu pai, e eu sabia que ele estava
chorando ao acariciar meu cabelo cortado. — Seu pai chegou.
Quando ele segurou delicadamente meu queixo para ver por que
eu estava sangrando tanto, me retraí. Resisti, debatendo-me para
me livrar de seus braços, para me esconder.
— Não, não — gemi, lutando, apesar do amor com que ele me
segurava.
Eu não queria que ele olhasse para mim.
— O que foi? Ela está ferida? — Outra voz, que não reconheci.
— Brienna, Brienna, está tudo bem — sussurrou Jourdain, ainda
tentando me acalmar, encostando sem querer no meu ferimento
com os dedos quando me afastei.
A dor foi uma estrela que se explodiu na minha mente. Caí de
joelhos e vomitei.
— Achem a rainha!
— Onde ela está ferida?
— Chamem a carroça. Rápido!
As palavras pairavam acima de mim como urubus. Engatinhei
um pouco e tentei me fundir à grama. Mas Jourdain estava lá,
ajoelhado na minha frente. Minha única opção era inclinar o rosto
para cima, para a lua, para o olhar dele, e deixar o sangue pingar do
meu queixo.
Eu o vi assimilar a gravidade do meu ferimento.
E antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, antes que sua
fúria pudesse devorá-lo, usei o que restava das minhas forças para
levantar a mão, segurar na manga dele e dar uma ordem expressa.
— Pai… pai, me leva para casa.
30

CADÊ VOCÊ, DECLAN?


Território de lady Halloran, castelo Lerah

Cartier

Esta seria a última vez que eu caçaria Declan Lannon.


Subi a torre oeste com essa promessa presa entre os dentes.
Abri todas as portas que encontrei — a maioria estava destrancada
e cedeu facilmente à minha mão. E eu sabia que ele devia estar em
algum lugar nessa torre oeste, porque cada cômodo que eu abria
estava escuro, mas mobiliado, aposentos de hóspedes cobertos de
lençóis para proteger contra a poeira.
Quanto mais eu subia, mais ansioso ficava, procurando,
buscando. A essa altura, os estrépitos no campo interno eram
evidentes, até mesmo de dentro da torre de pedra. Declan devia
saber que havia algo errado, e presumi que ele fugiria.
Meu único consolo era que a única saída dessa torre era
descendo, e eu a estava conquistando, degrau a degrau. Em algum
momento, Declan e eu nos encontraríamos.
Cadê você, Declan?
Finalmente, abri uma porta que deu para um cômodo iluminado.
Uma biblioteca. Havia várias velas iluminando o espaço, e vi livros
espalhados em uma das mesas, com um prato de bolinhos perto.
Alguém estivera ali recentemente, dava para sentir, e me perguntei
se teria sido Ewan. Eu ia avançar mais pelo cômodo quando escutei
um estrondo vindo do alto. Uma porta batida. Murmúrio distante de
vozes.
Sabia que era ele. E continuei a subida, sem emitir ruído algum,
acompanhando a curva da escada, avançando pela escuridão e
pela luz das tochas, já respirando com esforço. Eu sentia a
queimação nas pernas, a dor e exaustão nos músculos, mas respirei
fundo e me mantive calmo e alerta.
Ele teria a vantagem da força, mas eu teria a vantagem da
surpresa.
As vozes estavam aumentando. Eu já estava quase chegando.
Mais uma porta se abriu e bateu, causando um tremor nas pedras.
Cheguei a um patamar. Era redondo, com o chão decorado por
um mosaico que cintilava à luz das tochas. Havia três portas
arqueadas, todas fechadas, mas ouvi o zunzum de vozes urgentes.
Ele estava escondido atrás de qual?
Comecei a me dirigir para a porta da esquerda e estava na
metade do caminho quando a porta do meio se escancarou de
repente.
Declan me viu e parou bruscamente, estreitando os olhos ao me
encarar.
Ele não me reconheceu, claro. Eu estava com uma armadura
Halloran, ainda com o elmo na cabeça.
— O que você quer? — perguntou o príncipe para mim,
rispidamente. — Cadê minha escolta?
Levantei a mão lentamente para tirar o elmo. Revelei meu rosto
e deixei o elmo de latão cair no chão, produzindo um barulho opaco
entre nós.
Declan se limitou a olhar para mim, como se eu tivesse acabado
de brotar do brilho do mosaico, como se eu tivesse conjurado minha
presença ali.
Ele se recuperou do choque e deu uma risadinha.
— Ah, Aodhan. Finalmente você me alcançou.
Com o olhar fixo no dele, dei um passo em sua direção. Vi o
tremor na bochecha, o ligeiro movimento do corpo. Ele estava
prestes a sair correndo.
— Era questão de tempo — falei, dando mais um passo. — Foi
só seguir o rastro fedorento que você deixou. — E parei, porque
precisava dizer isto antes que ele fugisse de mim: — Quero quebrar
cada osso do seu corpo, Declan Lannon. Mas não vou, porque sou
muito melhor do que você. Mas saiba o seguinte: quando eu cravar
minha espada no seu coração, será em nome da minha irmã. Em
nome da minha mãe. Em nome dos Morgane.
Declan sorriu.
— Quer saber o que aconteceu de verdade naquela noite,
Aodhan? Na noite em que sua irmã morreu?
Não dê ouvidos a ele, bradou minha alma, mas continuei parado,
esperando-o prosseguir.
— Sim, meu pai me deu uma ordem — disse Declan, baixando a
voz para um tom grave e rouco. — Ele me mandou começar a
quebrar os ossos da sua irmã, primeiro nas mãos. Peguei a marreta,
mas não consegui. Não fui capaz de obedecer, porque sua irmã
estava olhando para mim, chorando. Então meu pai falou: “Você já
implorou por uma vida, então agora precisa tomar outra, para
mostrar que é forte.” Ele envolveu minha mão com a dele e quebrou
os ossos da sua irmã através de mim. E foi nesse momento que
minha alma se estilhaçou, ao vê-la morrer.
É mentira, pensei, quase freneticamente. Aileen me contara
outra história. Ela não dissera que Gilroy segurara a mão de Declan
e controlara os golpes.
— Quando encontrei sua irmã escondida dentro de um armário
— continuou ele —, não achei que meu pai a torturaria. Então foi por
isso que a levei até ele. Porque achei que íamos levar Ashling para
o castelo, para ela morar conosco, para ser criada como uma
Lannon. Se eu soubesse que ele a mataria, a teria mantido
escondida.
Declan estava tentando me confundir, tentando enfraquecer
minha determinação. E estava começando a conseguir. Senti o cabo
da espada escorregar na minha mão por causa do suor.
— Sim, eu sou a escuridão da sua lua, Aodhan — disse Declan,
agora com o controle total da nossa interação. — Sou a noite da sua
alvorada, os espinhos da sua rosa. Você e eu estamos ligados,
como irmãos, por meio dela. E ela está viva graças a mim. Quero
que você saiba disso antes de me matar. Ela está viva porque eu a
amo.
De quem ele estava falando? Brienna?
Eu já havia suportado o bastante. Não escutaria mais nada
daquele veneno.
Ele recuou de repente para seus aposentos e tentou fechar a
porta entre nós. Mas a segurei com o pé, a abri com um chute e vi a
madeira ir para a frente e acertar o rosto de Declan.
O príncipe cambaleou para trás; o primeiro a sangrar, com um
corte no lábio. Ele estendeu a mão para recuperar o equilíbrio em
uma mesa redonda de mármore, onde estivera comendo antes. As
louças trepidaram, uma taça de vinho entornou; mas o momento de
surpresa de Declan passou. Ele deu uma risadinha, e esse som
despertou as trevas dentro de mim.
Eu estava tão concentrado nele que quase não vi. Pelo canto do
olho, percebi um raio de luz em aço, uma espada vindo na minha
direção.
Girei o corpo, furioso por ter que desviar minha atenção do
príncipe. Bloqueei a lâmina com a minha bem a tempo de evitar que
ela atravessasse a parte de baixo do meu abdome e empurrei o
novo adversário para a parede.
Era Fechin.
Ele arregalou os olhos, ao sentir o impacto da minha defesa, ao
se dar conta de que era eu. Nervoso, o guarda se esforçou para
recuperar a compostura, mas avancei para cima dele e o desarmei
com facilidade.
Peguei Fechin pelo cabelo e falei:
— Sabe o que eu faço com homens que cometem a estupidez
de quebrar o nariz de Brienna MacQuinn?
— Milorde — gaguejou ele, engasgando de medo como sempre
acontecia quando essa gente era capturada. — Não fui eu.
Cuspi na cara dele e enfiei minha espada em sua barriga. Ele
tremeu, e seus olhos perderam o foco quando puxei a arma e o
deixei cair no chão.
Quando ergui o olhar, o cômodo estava vazio.
O espaço era dividido por três degraus: um lado dava para a
varanda, cujas portas duplas ainda estavam trancadas, e o vidro,
embaçado pela noite fria. Mas o outro lado tinha uma parede com
quatro portas arqueadas, todas abertas para a escuridão.
Peguei um candelabro da mesa de jantar. Armado com espada e
luz, fui para a primeira porta, forçando os olhos a enxergar no
escuro.
— Cadê você, Declan? — provoquei, com passos lentos,
calculados. — Venha me enfrentar. Não me diga que está com
medo do pequeno Aodhan Morgane, o menino que escapou de seus
dedos ao se esconder num monte de estrume.
Entrei no primeiro cômodo, apesar da escuridão, com a espada
a postos e a luz no alto para não turvar minha visão.
Era um quarto, cheio de bonecas de palha e fitas emboladas no
chão. Tinha sido o quarto de Keela. E estava vazio.
Recuei em silêncio, segui para outra porta e entrei.
O silêncio pesado foi rompido por um gemido, e minha atenção
se aguçou. Meu olhar atravessou o cômodo até ver Declan sentado
em um banquinho de Ewan, com um punhal apontado para o
pescoço do menino.
Ewan tremia violentamente, e seus olhos brilhavam de medo
quando ele olhou para mim.
Meu coração quase se partiu naquele instante. Tive que me
esforçar para me acalmar, para manter a compostura. Mas um
pedaço da minha confiança se quebrou; senti o primeiro vislumbre
de perda, de que talvez eu não conseguisse garantir uma saída
segura para mim e para Ewan naquele confronto.
— Não dê nem mais um passo, Morgane — avisou Declan.
Não me mexi. Só respirei, fitando Ewan, tentando reconfortá-lo
com meus olhos.
— Largue a espada e a luz, Aodhan — disse o príncipe. —
Senão corto a garganta do menino.
Engoli em seco, tentando disfarçar meu tremor. Jamais
imaginara que entregaria minhas armas a ele, que as deixaria a
seus pés, que ele me derrotaria. Mas eu só conseguia pensar que
precisava manter Ewan são e salvo, e eu não tinha a menor dúvida
de que Declan cortaria a garganta do próprio filho.
— Você mataria alguém do seu próprio sangue? — perguntei,
tentando ganhar tempo.
— Ah, mas ele não é mais meu — disse Declan, sardônico. — A
última notícia que eu tive é que Ewan era um Morgane. Não é isso?
Ele segurou o menino com mais força, e Ewan se retraiu.
Quis gritar para Declan: Por favor, por favor. Solte o menino.
— Fiz uma pergunta, Ewan — insistiu Declan. — De que Casa
você é?
— Eu… eu… sou… sou… Lan… Lannon.
Declan sorriu para mim.
— Ah. Ouviu, Aodhan?
— Ewan, você sabia que minha mãe era Lannon? — falei, com
um tom calmo, tentando transmitir um pouco de coragem, para ele
se preparar para correr. — Sou metade Lannon, metade Morgane. E
você também pode ser, se quiser.
— Não fale de Líle — retrucou Declan para mim, e a ira de sua
reação me espantou.
— Que tal soltar Ewan — respondi —, para que você e eu
possamos finalmente acabar com este conflito, Declan?
— Não me provoque, Aodhan. Largue a espada e a luz e vá até
a parede.
Eu não tinha escolha. Abaixei o candelabro e a espada até o
chão. Enquanto recuava para a parede, pensei no que fazer. Eu
ainda tinha o punhal escondido nas costas, mas não sabia se
conseguiria sacá-lo rápido o bastante para usar contra uma espada
longa na mão de Declan.
— Pegue a espada dele, menino — disse Declan, empurrando
Ewan para a frente.
Ewan tropeçou, e sua bota esquerda saiu do pé. Mas ele a
abandonou e engatinhou até onde eu deixara minha espada. O que
eu mais queria era que o menino olhasse para mim, que visse a
ordem nos meus olhos.
Traga a espada para mim, Ewan. Não para ele.
Mas Ewan estava choramingando ao pegar no cabo; a espada
era pesada demais para ele. A ponta da arma se arrastou no chão
quando ele voltou puxando-a para Declan e espalhando umas
bolinhas de gude com que provavelmente brincara horas antes.
— Ah, bom menino — disse Declan, pegando minha espada. —
Então você é mesmo Lannon, Ewan. Vá se sentar na cama. Vou
mostrar como é que se mata um homem.
— Pai, pai, por favor, não — disse Ewan, aos soluços.
— Pare de chorar! Você é pior que sua irmã.
Ewan obedeceu logo, sentou-se na cama e cobriu o rosto com
as mãos.
Respirei pausadamente, absorvendo o máximo possível de ar
para me preparar. Mas meus olhos não desgrudaram do rosto de
Declan nem por um instante.
— Tentei avisar, Aodhan — continuou Declan, levantando-se,
com sua altura impressionante. Ele era uma cabeça inteira mais alto
do que eu. — Uma vez Lannon, sempre Lannon. Incluindo sua mãe.
Não reagi; ignorei a provocação, ciente de que Declan atacaria
assim que eu falasse, assim que abaixasse a guarda para
responder.
— Como você me achou aqui? — continuou tagarelando o
príncipe.
De novo, não respondi. Comecei a contar os passos que teria
que dar para chegar àquele banquinho…
— Eu queria poder presenciar — murmurou Declan, finalmente
parando a um passo de mim. As sombras cobriam seu rosto,
retorcendo-se feito espectros. — O momento em que você vir o que
fiz com Brienna.
Ele sabia meu ponto fraco.
E minha força rachou. Não consegui respirar, e a agonia me
preencheu como água quando meu maior medo se tornou realidade.
Ele havia torturado Brienna.
Consegui dar um pulo por puro reflexo quando Declan atacou
com a espada. O príncipe me acertou na lateral do corpo, em uma
fresta no meu peitoral. Mas nem senti a fisgada da lâmina; meus
olhos estavam concentrados no que havia diante de mim: as
bolinhas no chão, a bota descartada de Ewan. O banco, o banco, o
banco…
Peguei-o e girei, usando-o como escudo quando Declan tentou
me acertar de novo. a espada cortou as pernas de madeira do
assento, e ele se despedaçou. Mas finalmente encontrei minha voz
por tempo suficiente para gritar:
— Corra, Ewan!
Porque, mesmo no meio daquela luta, eu não queria que Ewan
me visse matar seu pai.
— Ewan, fique! — rebateu Declan, mas o menino já havia
disparado para fora do quarto.
Fiquei em êxtase ao ver a fúria no rosto de Declan. Peguei um
fragmento de madeira e cravei na coxa de Declan, em uma tentativa
de cortar sua artéria. Com isso, pude me esquivar e sair correndo do
quarto de volta para o cômodo principal.
Praticamente pulei os degraus até onde estava o corpo de
Fechin, e minhas mãos tremiam quando peguei a espada longa do
guarda. Virei bem a tempo de não ser atingido pela garrafa que
Declan jogou em mim. Ela se espatifou na parede e espalhou vidro
e vinho pelo chão. Os cacos se quebraram sob minhas botas
quando reagi, virando a mesa e esparramando a comida e as louças
aos pés de Declan.
Ele deu um chute furioso para afastá-la, e nos encontramos no
meio do cômodo, com o choque das espadas.
Bloqueei golpe atrás de golpe, aos guinchos do aço. Estava
ficando fraco, dava para sentir, a exaustão parecia uma corda
amarrada nos meus tornozelos, me segurando. Continuei na
defensiva, tentando fazer Declan recuar na direção dos degraus.
Minhas mãos ficaram dormentes, e finalmente senti o corte no corpo
e percebi que havia deixado um rastro de sangue atrás de mim.
Declan não esqueceu os degraus como eu queria. Ele os subiu,
com aquele pedaço rachado de madeira ainda preso na coxa.
Nosso sangue se misturando no chão a cada volta e ataque, volta e
defesa, girando como a Terra em torno do Sol. Enfim parti para a
ofensiva e acertei um corte no ombro dele.
Declan deu um urro, e voltei para a defensiva, tentando me
proteger contra os golpes rápidos e firmes dele. Pensei: Este reino
não tem espaço para nós dois. Eu não poderia viver em um lugar
onde homens como Declan prosperavam.
Será eu, ou será ele. E essa promessa me manteve de pé, me
manteve em movimento, me manteve bloqueando pelo tempo
necessário até o momento que eu esperava.
Finalmente chegou: uma brecha estreita quando Declan
tropeçou, quando Declan abaixou a guarda.
E me lancei para aproveitar esse momento. Cravei a espada
nele, afundei o aço no peito do príncipe. Escutei o estalo de osso e
o trovão de um coração atravessado, Declan gritou, e a espada dele
rebateu no meu peitoral e caiu de seus dedos.
Mas eu ainda não havia terminado. Pensei na minha mãe, nas
mechas prateadas que seu cabelo devia ter, na risada que os olhos
dela deviam exibir. Pensei na minha irmã, na terra que ela devia ter
herdado, nos sorrisos que devíamos ter compartilhado. E pensei em
Brienna, na outra metade da minha alma. Brienna.
Agarrei a camisa de Declan e o joguei nas portas da varanda. O
vidro se arrebentou em centenas de pedaços iridescentes; estrelas,
sonhos e vidas desfeitas que jamais existiriam por causa daquele
homem e sua família.
Declan ficou caído de costas na escuridão, coberto de vidro e
sangue, arfando.
Parei diante dele, vendo sua vida começar a desaparecer, até
restar apenas um brilho fraco em seus olhos brutos. O príncipe fez
uma careta, e bolhas de sangue se formaram entre seus dentes
quando ele tentou falar.
Agachei-me ao lado dele e, inundando sua voz com a minha,
falei mais alto:
— Cai a Casa Lannon. De impetuosos já não tem mais nada. Na
verdade, nunca tiveram. Eram covardes e serão transformados em
pó; serão repudiados. E os filhos de Declan Lannon se tornarão
Morgane. Uma vez Lannon? Nunca mais. Seus descendentes se
tornarão justamente aquilo que o velho Gilroy tentou destruir, sem
sucesso. Porque a luz sempre supera a escuridão.
Declan engasgou. Parecia que estava tentando dizer “Pergunte
a ela”, mas as palavras se esfacelaram em sua boca.
Ele morreu assim, com uma espada no coração, com os olhos
em mim, com palavras quase ditas na garganta.
Levantei-me devagar. Meu ferimento latejava; tinha vidro enfiado
nos meus joelhos. Todos os músculos doíam quando voltei
cambaleando para dentro.
A agitação estava arrefecendo em mim, deixando para trás uma
vontade em brasas, e o que eu queria era desabar.
— Lorde Aodhan.
Ergui o rosto e vi Ewan parado no meio da louça espalhada, no
meio dos ossos da refeição interrompida.
— Ewan — sussurrei, e o menino começou a chorar
sofridamente.
Ajoelhei-me e abri os braços. Ewan correu para mim, envolveu-
me com seus bracinhos finos e afundou o rosto no meu pescoço.
— Eu faço qualquer coisa, lorde Aodhan — disse ele, aos
soluços, palavras quase incoerentes. — Por favor, por favor, só não
me manda embora! Deixa eu ficar com você.
Senti meus olhos arderem com as lágrimas ao ouvir a súplica
desesperada de Ewan. Ao ver que ele achava que não merecia
viver comigo, que tinha medo de que eu não o aceitasse. Abracei-o
até seu choro perder força e, depois, me levantei, segurando-o nos
braços.
— Ewan — falei, sorrindo sob minhas próprias lágrimas
silenciosas. — Você pode ficar comigo pelo tempo que quiser. E vou
lhe pagar para ser meu mensageiro.
Ewan enxugou as bochechas e o nariz catarrento na manga.
— Sério, milorde? E minha irmã?
— Keela também.
Ele sorriu para mim, brilhando como o sol.
E, com ele nos braços, saímos daquele cômodo sangrento.
LADY MORGANE
31

REVELAÇÕES
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn

Brienna

Eu só lembrava de alguns instantes da viagem de volta para casa.


Lembrava-me de Jourdain me abraçando na caçamba de uma
carroça, do som de sua respiração indo e vindo conforme ele
rezava.
Lembrava-me de Neeve ao meu lado, da cadência musical de
sua voz conforme ela solfejava e me mantinha acordada.
Lembrava-me da voz de Isolde, ao mesmo tempo brusca e
determinada conforme examinava meu ferimento à luz de uma vela.
Vai demandar um pouco de tempo. Ela precisa ficar em um lugar
tranquilo e limpo onde possa relaxar. Precisamos levá-la rápido para
casa.
Eram minhas três fronteiras — pai, irmã, rainha. A certa altura,
percebi que adormeci na curva do braço de Jourdain, com o lado
bom do rosto apoiado em seu peito, seu coração, porque a dor
voltou com força e estava insuportável de novo.
— Ela está pegando no sono. Devo acordá-la? — perguntou
Neeve, preocupada.
Ela soava muito distante, mas eu ainda sentia o toque amoroso
de seus dedos na minha mão.
— Não — respondeu Isolde. — Deixe-a dormir.
Quando acordei de vez, eu estava deitada na minha cama, e a
luz do sol entrava pelas janelas. Eu estava limpa, debaixo de uma
colcha macia, e livre do fedor e do sangue que cobriam meu corpo.
Mas, acima de tudo, eu sentia o rosto enfaixado.
Mexi o corpo, devagar, com medo. Levantei a mão para tocar no
tecido que revestia minha bochecha direita.
— Bom dia.
Virei e me surpreendi ao ver Isolde sentada ao meu lado. A luz
do sol transformava o cabelo castanho dela em cachos de fogo
manso, e ela sorria, com pequenas rugas no canto dos olhos.
— Está com sede?
Ela se levantou da cadeira para me servir um copo de água.
Depois, com muito cuidado, sentou-se ao meu lado na cama, apoiou
alguns travesseiros nas minhas costas e me ajudou a sentar.
Bebi três copos de água até sentir a voz começar a voltar.
— O que aconteceu no castelo Lerah?
— Bom, depois que curei Liam, planejamos um ataque contra os
Halloran. — Ela me contou os detalhes: como o plano se formou,
como lady Grainne liderou a ofensiva, como Cartier, Sean, Luc,
Neeve e Betha se infiltraram disfarçados na fortaleza. — Os meias-
luas Halloran foram extirpados pela espada dos Dermott. Pierce
tombou. Fechin e Declan Lannon também.
Levei um instante para assimilar a notícia. Pierce e Declan
mortos. Não consegui conter o arrepio que me invadiu só de pensar
neles, e Isolde pôs a mão em cima da minha.
— Eles não vão machucar você, nem ninguém, Brienna. Nunca
mais.
Segurando as lágrimas, assenti.
— E Ewan e Keela?
— As crianças estão em segurança. Keela está aqui no castelo
Fionn, com Neeve, e Ewan está com Aodhan em Brígh.
— E os MacQuinn estão tratando Keela bem? — perguntei, com
medo de como a receberiam.
— Estão. Lorde MacQuinn deixou muito claro que as crianças
salvaram sua vida. Por ordem minha, Keela agora é protegida dos
MacQuinn, e Ewan, dos Morgane. Há provas suficientes para que as
duas crianças possam ser exoneradas.
— E Thorn? — insisti. — Ele é um meia-lua.
— Aodhan descobriu — respondeu Isolde. — No momento,
Thorn está preso, mas também será executado.
Ficamos caladas, e ouvi sons vindo do salão, sons domésticos.
Risos e gritos de alegria e pratos retinindo. No entanto, eu não
conseguia relaxar. Tentei me afundar mais nos travesseiros,
desfrutar a luz do sol, mas havia uma melodia inquieta no meu
sangue que eu não tinha como ignorar.
Eu sabia o que era esse espinho no meu espírito. Sabia que era
a incerteza em relação à mãe de Cartier.
— Brienna? Está sentindo alguma dor? — perguntou Isolde,
franzindo o cenho em sinal preocupação.
— Não, milady.
Pensei em contar para ela. Talvez a inquietação diminuísse se
eu relatasse as palavras que Declan me dissera. Talvez eu
conseguisse confirmar; Isolde me diria que Declan havia mentido
para me abalar mais ainda, para lançar uma sombra de
desconfiança na minha mente. Que Declan me manipulara para
causar mais dor em Cartier. Porque, se eu contasse para Cartier, se
lhe dissesse o que Declan me falara, Cartier praticamente
enlouqueceria. Ele não descansaria enquanto não encontrasse Líle
Morgane. E, se Líle estivesse morta, ficaria perseguindo um
fantasma.
— Bom, se você sentir qualquer desconforto, por menor que
seja, me avise — avisou a rainha, com ternura. — Levou três dias
para minha magia curar você por completo. Imagino que esteja com
bastante fome.
Sorri, o que na mesma hora me lembrou do meu ferimento. Senti
um repuxo estranho na bochecha, e eu sabia que devia ser da
cicatriz sob o tecido.
— Estou faminta.
Escutei um choramingo de repente e franzi a testa. Inclinei o
corpo para fora da cama e vi Nessie deitada no chão ao meu lado,
piscando para mim.
— Ah, é — disse Isolde. — Nós a encontramos trancada e com
uma focinheira dentro de uma das antigas despensas.
Convidei Nessie para cima da cama, aliviada por Thorn não a ter
machucado. Ela se enrolou ao meu lado, tímida, como se soubesse
que eu ainda estava me recuperando.
— Agora, deixe-me pedir seu café da manhã — disse Isolde,
levantando-se. — Se bem que acho que seu irmão já comentou que
queria ser o primeiro a vê-la quando você acordasse. Vou mandá-lo
trazer mingau e chá.
— Obrigada — sussurrei, e Isolde sorriu para mim antes de sair
dos meus aposentos.
Esperei um pouco, com a visão ligeiramente turva ao observar
meu quarto, acariciando distraída o pelo de Nessie. Mas, na minha
cômoda, vi meu espelho de mão.
Saí da cama com cuidado e senti as pernas formigarem. Era
estranho andar, sentir a superfície lisa e fria do chão sob meus pés.
Fui sem pressa e cheguei à cômoda com uma semente de
preocupação na barriga.
Eu queria me olhar, mas também não queria.
Depois de um tempo, desenrolei a faixa na minha cabeça,
segurei no cabo do espelho e o levantei para o rosto.
Isolde fizera o possível para me curar, para recompor meu rosto
dilacerado. Mas havia uma cicatriz, uma linha rosa pálida, que
descia da testa ao queixo. E meu cabelo. Desaparecera, arrancado
em cortes violentos.
Desviei o olhar. Mas meus olhos foram atraídos por meu novo
reflexo, e voltei a me observar.
Quero que Aodhan a encontre. Mas, quando ele olhar para seu
rosto, vai ver a mãe nos seus olhos. Vai saber onde ela está.
Abaixei o espelho e senti o coração palpitar.
O que Declan quisera dizer? Será que estava só tentando me
angustiar, me afastar de Cartier? Será que achava mesmo que
podia cortar meu rosto e fazer eu me esconder, que meu valor se
baseava só nesse tipo de coisa?
Fiquei furiosa por ele ter envenenado minha mente. Peguei meu
espelho e o bati no canto da cômoda. Ele se despedaçou todo em
fragmentos que refletiam a luz ao cair e espalhavam prismas até o
chão.
Senti certa dose de alívio ao quebrá-lo, como se fosse apenas o
início de tudo que eu precisava quebrar para enxergar. Porque eu
me via sem ele, não uma menina que fora acorrentada, tosada e
mutilada, mas sim uma mulher que sobrevivera.
Estava calma quando peguei a bandagem e reenfaixei o rosto.
Depois, ajoelhei-me no chão, recolhi os cacos, e os escondi na
gaveta quando ouvi meu irmão batendo na porta.
Fui atender e o recebi com um sorriso, como se fosse um dia
qualquer. Porque eu não queria pena; não queria choro nem
tristeza.
Luc trazia uma bandeja com mingau e chá, e fiquei grata de ver
que não veio com melancolia, preocupação ou choradeira para cima
de mim.
— Falaram que você estava faminta e que talvez estourasse
uma guerra se eu não trouxesse comida — disse ele, brincalhão, e
gesticulei aos risos para que entrasse.
Nós nos sentamos nas cadeiras na frente da lareira, e meu
estômago roncou tão alto que ele deu uma risadinha ao me servir
uma xícara de chá. Enquanto comia mingau com mel e tentava me
acostumar à tensão estranha da cicatriz cada vez que abria a boca,
meu irmão me contou tudo de novo. Reparei que o relato tinha
bastante exagero, especialmente quando ele descreveu a aventura
de abaixar a ponte levadiça do castelo Lerah, mas não liguei. Só
aproveitei.
— Aí você derrubou quatro guardas Halloran com um golpe
poderoso de espada — falei, com emoção. — Depois, passou por
cima da montanha de corpos para pegar na alavanca de ferro e
baixar a ponte. Extraordinário, Luc.
Ele corou até a ponta das orelhas.
— Está bem, assim fica parecendo que sou um guerreiro
poderoso, quando não passo de um reles músico.
— E por que não pode ser as duas coisas, irmão?
Luc olhou para mim, sorrindo. E lá estava, a primeira fagulha de
emoção em seus olhos ao me observar.
Não chore, supliquei mentalmente. Por favor, não chore por mim.
Outra batida soou na porta e interrompeu o momento. Luc deu
um tapinha no meu joelho e, fungando para engolir as lágrimas, se
levantou para atender. Ouvi a voz de Isolde, um murmúrio grave, e
Luc sussurrou em resposta.
Já estava servindo minha terceira xícara de chá quando Luc
voltou para se sentar ao meu lado.
— O que foi? — perguntei.
— Era Isolde — disse Luc. — Aodhan Morgane está aqui. Ele
gostaria de te ver.
Fiquei paralisada, incerta.
— Ah. — Meu coração começou a doer de tanta vontade que eu
tinha de ver Cartier. No entanto, eu ainda não havia convencido
minha cabeça. Não havia decidido o que diria para ele, se é que
devia dizer alguma coisa. Não queria perturbar a paz dele, propagar
o veneno de Declan. Eu precisava de mais um dia, talvez mais, para
descobrir que rumo seguir. Então, falei: — Acho que preciso
descansar hoje.
Luc não esperava por essa. Ele arqueou as sobrancelhas, mas
se apressou a assentir com a cabeça.
— Tudo bem. Vou falar para ele voltar amanhã.
Meu irmão se levantou da cadeira antes que eu pudesse impedi-
lo, antes que eu pudesse dizer que provavelmente também evitaria
ver Cartier no dia seguinte. Eu não queria que ele viesse todos os
dias, ansioso para me ver, e tivesse que voltar enquanto eu tentava
decidir o que devia lhe dizer.
Levantei-me e fui até minha escrivaninha, e peguei pergaminho,
pena e tinta. Fiz uma carta concisa, mas parecia que meu coração
todo se partiu nas palavras que escrevi.

Cartier,

Acho que preciso de mais alguns


dias para me recuperar. Aviso
quando estiver pronta para ver você.
— Brienna
Esperei quatro dias até finalmente mandar chamá-lo.
Era o meio da manhã, e Keela e Neeve estavam comigo nos
meus aposentos, as três sentadas em volta de um livro de antigas
lendas maevanas, treinando a habilidade de leitura de Neeve. Isolde
ficara satisfeita com a evolução da minha cura e voltara a Lyonesse
para acompanhar os preparativos da execução dos Lannon. Eu não
esperava que Cartier chegasse tão rápido depois que enviei meu
convite, que ele largasse tudo que estivesse fazendo no castelo
Brígh para vir me ver. Mas ele largou.
Ele me pegou desprevenida e veio direto para meu quarto.
Nós três levamos um susto quando ele apareceu de repente,
com o impacto inusitado da porta na parede, e então Neeve e Keela
se levantaram, saíram sem falar nada e fecharam a porta atrás de
si.
Eu continuava sentada à mesa, com o livro aberto sob meus
dedos, sentindo o coração pular ao vê-lo.
Cartier parou à luz do sol dentro do quarto e olhou para mim
como se tivéssemos passado anos, não semanas, sem nos ver. Seu
cabelo estava solto e embolado — havia até algumas folhas avulsas
presas, como se ele tivesse voado pela floresta que separava
nossas terras, como se nada pudesse mantê-lo longe de mim. Seu
rosto estava vermelho por causa do frio, e seus olhos… seus olhos
se fixaram nos meus, me examinaram.
Eu ainda estava com a faixa na cabeça. Ele ainda não tinha
como ver a cicatriz, e eu sabia que precisava mostrar, que precisava
dizer tudo que Declan me falara. Que eu não podia esconder isso
dele, mesmo que fosse mentira.
Tentando acalmar a respiração, levantei-me. Mas eu tinha a
sensação de que estava prestes a desmoronar, que ia pegar uma
adaga e cravar no coração dele.
— Cartier, eu… desculpe por ter demorado tanto para chamar.
— Brienna. — Ele disse apenas meu nome, mas expressou
muito mais que isso.
Abaixei os olhos para as folhas e os livros na minha frente,
tentando lembrar o discurso que eu havia preparado. As palavras
exatas que queria dizer.
Ouvi os passos dele se aproximarem. E eu sabia que, se ele
tocasse em mim, eu desabaria completamente.
— Declan me falou uma coisa quando eu estava presa.
Essas palavras o fizeram parar, embora sua sombra tentasse
alcançar a minha no chão.
Olhe para ele, demandou meu coração. Você precisa olhar para
ele.
Levantei o rosto e olhei.
Cartier estava me encarando; ele não tirara os olhos de mim
nem por um segundo. E, por um instante, repousei no azul de seus
olhos, um azul que rivalizava com o do céu.
— Declan me disse que sua mãe está viva, Cartier — sussurrei,
e a revelação finalmente desabrochou na minha voz e me libertou
de sua prisão. — Ele falou que, no primeiro levante fracassado,
Gilroy Lannon decepou a mão dela e a arrastou até a sala do trono.
E, antes que o rei pudesse decapitá-la, Declan se jogou em cima de
Líle para salvar sua vida. Ele implorou para que o pai a poupasse,
porque… ele amava sua mãe como se fosse um filho.
Cartier continuou me olhando com uma intensidade tão grande
que poderia ter me feito ficar prostrada de joelhos.
— Então Gilroy poupou a vida da sua mãe — prossegui, com a
voz trêmula. — Ele a prendeu na masmorra e decapitou outra
mulher de cabelo claro, para colocar a cabeça dela no pátio.
Cartier ainda não dissera nada. Era como se eu o tivesse
enfeitiçado, como se o tivesse transformado em pedra.
— E Declan… Declan me disse… — Não consegui falar. As
palavras se derreteram, e segurei o encosto da minha cadeira.
— O que mais ele disse? — perguntou Cartier, com a voz firme.
Respirei fundo, como se fosse possível esconder essa última
revelação no meio dos pulmões. Mas eu não conseguia mais
segurar.
— Logo antes de cortar meu rosto, Declan me disse que queria
que você me encontrasse. Mas que, quando olhasse para meu
rosto, visse sua mãe nos meus olhos. Que saberia onde ela está.
Vi minhas palavras atingirem-no como flechas. Ele finalmente
baixou a guarda; seu rosto estava marcado pela agonia. E pensei:
Isso vai nos destruir. Vai destruí-lo. Mas, em seguida, as rugas na
testa dele relaxaram, como se ele respirasse pela primeira vez,
como se tivesse descoberto algo, visto uma luz que eu não
percebia…
— Brienna. — Ele murmurou meu nome de novo, como se fosse
uma oração, como se estivesse pegando fogo por dentro.
Meu coração se partiu quando o vi se virar, andar até a porta e
parar no batente. Ele voltou para mim e empurrou a cadeira para
tirá-la do caminho, para que não tivesse nada entre nós.
Ele não me dera nem tempo para tirar a faixa da cabeça, para
mostrar minha cicatriz.
Segurou meu rosto delicadamente com as mãos e me beijou; um
toque macio de lábios.
E se foi. Saiu do meu quarto e deixou a porta aberta. Ouvi o som
de seus passos, correndo, descendo às pressas a escada até o piso
de baixo. Andei até a janela, olhei pelo vidro e o vi sair no pátio e,
ansioso, pedir o cavalo.
Quis chamá-lo para mim, perguntar o que ele descobrira.
Deve ser verdade, pensei, tremendo. Declan não mentiu.
E quando Cartier montou seu cavalo, fiquei olhando-o ir embora.
Não para oeste, rumo a seu castelo. Ele foi para o sul. Para
Lyonesse.
32

O R E L ATO
Território de lorde Burke, castelo real

Cartier

Cavalguei noite adentro. Fui rasgando o vento com os dentes e


seguindo o som dos cascos do cavalo com o coração. Não pode
ser, pensei, mas cheguei em Lyonesse sob o olhar das estrelas e da
lua, que me guiavam com sua luz prateada.
Os portões do castelo estavam trancados. Esmurrei-os e bati os
nós dos dedos até a pele rachar e sujar de sangue a madeira e o
ferro. Mas não parei, só quando um dos homens de Burke olhou de
cima da atalaia.
— O que foi? Vá dormir, seu bêbado — reclamou o homem
comigo. — Os portões não abrem à noite.
— É Aodhan Morgane. Abram os portões.
O homem estava com uma tocha na mão, mas vi seu rosto
quando ele olhou para mim, tentando enxergar meu brasão sob o
luar. Ele sumiu para dentro da atalaia, e os portões se abriram um
pouco, só o bastante para eu e meu cavalo passarmos.
Cavalguei até o pátio, desmontei e deixei meu cavalo sozinho no
piso de pedra, já que todos os cavalariços estavam dormindo. Fui
até as portas principais, que também estavam trancadas, e as
esmurrei.
Minha sensação foi de ter passado uma eternidade batendo até
a portinhola se abrir e o intendente do castelo olhar para mim, à luz
de uma vela, com evidente irritação.
— O que foi?
— Abra as portas — demandei.
— Não abrimos as portas à…
— Abra já as portas, senão pedirei para a rainha dispensá-lo
imediatamente.
O intendente ficou pálido ao me reconhecer de repente.
— Peço desculpas, lorde Morgane. Só um momento, por favor.
As portas foram destrancadas. Entrei às pressas no castelo e
segui pelos corredores que me levariam à entrada da masmorra.
Estava vigiada por dois guardas Burke, e fiz o mesmo pedido pela
terceira vez.
— Abram as portas e me deixem passar.
— Não podemos, lorde Morgane — disse um dos homens. —
Apenas a rainha pode permitir qualquer acesso à masmorra.
Eles tinham razão. Havíamos estabelecido essa regra após a
fuga de Declan. Então, virei-me e fui até a escada, subi de dois em
dois degraus e segui o corredor do andar de cima até chegar aos
aposentos da rainha. A porta dela estava fortemente vigiada, claro,
e não consegui nem me aproximar para bater.
— Acordem-na — pedi, desesperado. — Acordem a rainha para
mim.
— Lorde Morgane — disse uma das mulheres, mantendo-me
afastado. — A rainha está exausta. Pode esperar até amanhã?
— Não, não posso esperar. Acordem Isolde. — Eu estava quase
gritando, na esperança de que ela me escutasse. — Cavalguei a
noite toda e preciso vê-la.
— Lorde Morgane, acalme-se, caso contrário teremos que
acompanhá-lo…
— Deixem-no passar.
A voz de Isolde interrompeu a comoção, e todos nos viramos
para ela, que estava na porta. Ela segurava uma vela, estava
enrolada em um xale e realmente parecia exausta. Os guardas se
afastaram e me permitiram falar com a rainha.
— Isolde, preciso que você me autorize o acesso à masmorra —
sussurrei.
Ela definitivamente não esperava que eu fizesse tal pedido.
Piscou, abriu a boca para falar, fechou-a de novo. E percebi que ela
não exigiria respostas. Ela confiava em mim, seu amigo mais antigo.
O amigo que se sentara com ela dentro de um armário em outro
reino, segurara sua mão e dissera que ela seria a melhor rainha do
norte.
Ela assentiu com a cabeça e me acompanhou até as portas da
masmorra, com a luz da vela dançando em seu rosto, e deu a
ordem aos guardas.
— Deixem Aodhan entrar na masmorra e esperem até ele voltar.
O guarda pôs a mão no peito, pegou as chaves e começou a
destrancar as portas.
De repente, eu tremia, incapaz de respirar com calma.
Isolde deve ter ouvido. Ela estendeu a mão e apertou a minha —
seus dedos quentes se juntaram aos meus. Ela me soltou, e segui o
guarda masmorra adentro. Pegamos uma tocha cada um nos
suportes do saguão e começamos a descer.
Senti o frio intenso da masmorra e a escuridão que se erguia à
minha volta.
— Vou aguardá-lo aqui, milorde — disse o guarda, quando
chegamos ao pé da escada.
Assenti, comecei a andar pelos túneis e fui lançando com a
tocha uma luz inquieta nas paredes. Eu estava fadado a me perder;
não sabia me orientar ali, mas continuei avançando mesmo assim.
Não demorou e eu já estava tão exausto que precisei parar e me
apoiar na parede. Fechei os olhos e pensei, pela primeira vez, que
talvez estivesse enganado. Talvez Declan tivesse mentido para me
provocar mais ainda.
Mas então escutei, ao longe: o som de uma vassoura.
Afastei-me da parede e segui o ruído. Ele enfraqueceu, e
aumentou, ecoando pelas paredes de pedra, e tive dificuldade para
situá-lo. Quando achei que havia me perdido completamente, que
estava andando em círculos, vi uma luz bruxuleando na entrada de
um dos corredores.
Segui essa luz e cheguei a um túnel que estava iluminado por
algumas tochas em suportes de ferro.
E lá estava: a varre-ossos.
Vi a pessoa ir com a vassoura até um punhado de ossos de
roedores e varrê-los. O véu preto tremulou com o movimento; ela
ainda não tinha me visto.
Então falei seu nome, como se eu o tivesse conjurado após 25
anos de trevas.
— Líle.
A pessoa parou, ficou imóvel. E então endireitou o corpo e se
virou para mim.
Não sei o que eu esperava, agora que aquele momento chegara.
Mas eu não esperava que a pessoa se virasse e começasse a
sair mancando.
Não devia ser ela. Declan me enganara; tinha, por fim, me
destruído. Escutei suas palavras na mente, embaralhando minha
cabeça. Você e eu estamos ligados, como irmãos, por meio dela. E
ela está viva graças a mim. Quero que você saiba disso antes de
me matar. Ela está viva porque eu a amo.
E meu coração começou a bater freneticamente e subir até a
boca quando voltei a falar:
— Mãe.
A pessoa parou. Vi aquela mão direita, a que estivera
acorrentada na cela de Declan, subir até a parede, para se
equilibrar.
Fui até ela, sussurrando de novo, e de novo.
— Mãe.
Um som abafado emergiu dela, sob o véu. Ela estava chorando.
Estendi as mãos e os braços, ansioso para que ela os
preenchesse. Ela continuou junto à parede, mas sua mão agora
estava erguida, repousando no rosto coberto.
— É Aodhan — sussurrei. — Seu filho.
E vou esperar o tempo que for de braços abertos, pensei. Vou
esperar aqui até ela se sentir pronta para vir para eles.
A varre-ossos deu esse primeiro passo na minha direção.
Estendeu a mão para a minha, e nossos dedos se entrelaçaram, se
cruzaram. Ela veio para meus braços, e a abracei junto ao coração.
Senti uma rigidez de cicatrizes em suas costas por baixo do véu.
Senti a magreza dela. Foi isso que fez minhas lágrimas se
acumularem.
Ela se deixou apoiar no meu abraço, e vi sua mão subir, segurar
uma parte do véu e puxá-lo.
Meu pai tinha razão. Líle Morgane era linda.
Seu cabelo era sedoso, da cor de grãos, e descia até a clavícula,
com o brilho de alguns fios prateados. Os olhos eram de um azul
impactante. A pele era clara, quase translúcida de tantos anos
passados na masmorra. Havia cicatrizes compridas na bochecha,
na testa, e eu sabia que tinham sido feitas por Declan.
A mão dela subiu de novo e fez movimentos graciosos. Percebi
que eram letras. Ela estava soletrando meu nome.
Aodhan, gesticulou ela.
E pensei: Declan pode tê-la mantido viva em cativeiro, e Gilroy
pode ter decepado sua mão e a espancado, mas nenhum dos dois a
privou de sua voz ou sua força.
Aodhan, gesticulou ela de novo, sorrindo para mim.
Puxei-a para mim e chorei em seu cabelo.

Parecia um sonho o dia que levei minha mãe de volta para as terras
de Morgane. Eu havia escrito uma carta para Aileen, a intendente,
para dar a notícia e pedir que ela mantivesse o povo calmo quando
eu chegasse. Mas, claro, eu devia ter imaginado que haveria uma
festa à nossa espera. Os Morgane, que não tinham reputação de
povo muito sentimental, se ajoelharam ao vê-la sair da carruagem.
Choraram, riram e tentaram pegar sua mão, o que certamente a
assustou. Deu para ver que minha mãe estava a um passo do
pânico, e tive que conduzir o povo para o salão e pedir que todos se
sentassem em silêncio às mesas, para que eu pudesse trazê-la até
eles. Até Ewan parecia emocionado, agarrado em mim até eu
mandá-lo ficar com Derry e os pedreiros.
— Diga se estiver sendo demais para você — sussurrei para
Líle, que continuava parada no pátio, olhando para o castelo Brígh.
O que será que estaria passando pela cabeça dela? Será que
estava pensando no meu pai, na minha irmã?
Ela falou comigo pela mão, uma longa e elegante série de
movimentos que eu ainda não entendia. Achei que estivesse
expressando a intensidade da situação, que não quisesse ver o
povo no salão.
— Posso levá-la para seus aposentos imediatamente — falei,
com delicadeza, mas ela balançou a cabeça e usou os dedos de
novo para formar palavras. — Quer ir para o salão, então?
Ela fez que sim, mas fiquei com a sensação de que eu ainda não
havia captado o cerne do que ela estava tentando dizer.
Peguei na mão dela e a levei para dentro de Brígh. Aileen nos
esperava no saguão, e ela quase não conseguia se conter ao ver
Líle.
Ela abaixou a cabeça e disse:
— Milady.
E percebi que ela estava se esforçando ao máximo para não
chorar.
Líle estendeu a mão, com um sorriso afetuoso para Aileen, e as
duas se abraçaram. Virei o rosto para lhes dar um momento de
privacidade.
Entramos juntos no salão, e os Morgane fizeram o possível para
continuar quietos e calmos. Mas todos ficaram imóveis ao vê-la e a
acompanharam com os olhos até o tablado, onde puxei minha
cadeira para ela se sentar à mesa.
Sentei-me ao lado da minha mãe e a observei cuidadosamente,
atento a qualquer inquietação. Mas ela só olhou para o salão, com
ternura e afeto no rosto ao reconhecer velhos amigos.
Ela gesticulou para mim que queria escrever.
Aileen saiu às pressas atrás de papel, pena e tinta antes que eu
sequer tivesse chance de me levantar da cadeira para buscar. A
intendente voltou logo depois e deixou tudo diante de Líle, e minha
mãe começou a escrever. Agora eu sabia por que a letra dela era
tão ruim. Ela era canhota, e Gilroy decepara sua mão esquerda.
Sem pressa, ela escreveu um parágrafo, empurrou a folha para mim
e indicou que eu devia ler.
Peguei o pergaminho, me levantei e obriguei minha voz a ficar
firme.
— “Aos Morgane. Estou cheia de alegria por vê-los de novo e
gostaria de expressar minha admiração por vocês, que resistiram a
um período tenebroso e se mantiveram fiéis a seu lorde. Não posso
falar com a boca, mas posso com a mão, e pretendo conversar com
cada um de vocês nos próximos dias. Mas só tenho um pedido a
fazer: não me tratem por lady. Não sou mais lady Morgane. Sou
apenas Líle.”
Abaixei o papel e engoli o nó que havia na minha garganta. Os
Morgane ergueram seus copos para ela, assentindo com a cabeça,
mas alguns ainda exibiam uma expressão confusa no rosto, como
se não conseguissem separar o título do nome.
E, de repente, entendi o que ela estivera tentando me dizer no
pátio.
Não sou mais lady Morgane. Sou apenas Líle.

A semana seguinte foi uma sucessão de desafios e pequenas


vitórias.
Eu queria colocar minha mãe em seus aposentos de novo — os
que ela usara com meu pai. Mas ela não quis nem pisar lá.
Preferiu os aposentos de Ashling. As paredes onde ela pintara
um bosque mágico; as paredes que haviam abrigado sua filha.
Aileen e eu tratamos de mobiliar o espaço, que havia sido limpo e
esvaziado desde que restauramos Brígh. Pedi para meu carpinteiro
construir uma bela cama, e Aileen botou as mulheres para encher
um colchão de penas rapidamente. Mandamos fazer roupas para
minha mãe, penduramos cortinas nas janelas e estendemos tapetes
e peles de carneiro no chão. Enchi as prateleiras de livros e abasteci
a escrivaninha com todo papel, tinta e penas que ela quisesse.
Líle ficou satisfeita com os aposentos, e eu não saberia explicar
o tamanho do meu alívio por isso.
Mas então Aileen veio a mim certa manhã e disse:
— Lorde Aodhan, sua mãe não está dormindo na cama. Está
dormindo no chão, perto da lareira.
E isso me comoveu. Claro, Líle passara os últimos 25 anos
dormindo no chão.
— Deixe-a dormir onde ela quiser, Aileen.
— Mas, milorde, não posso…
Só peguei no braço dela e dei um apertão, para lembrá-la de que
não compreendíamos — talvez nunca fôssemos compreender —
tudo que minha mãe havia suportado. Se Líle quisesse usar véu de
novo e dormir no chão, então era o que eu queria também.
O desafio seguinte foi que Líle queria trabalhar. Queria varrer,
queria limpar, queria arrancar ervas daninhas na horta, sovar massa
com os padeiros, escovar cavalos com os cavalariços. Usava
roupas simples, cobria o cabelo com um xale, dispensava os
melhores vestidos que Aileen havia costurado para ela e trabalhava
ao lado dos Morgane. Na primeira vez que isso aconteceu, as
mulheres que limpavam o salão vieram em pânico falar comigo.
— Ela quer varrer, tirar teias de aranha e limpar a cinza das
lareiras — dissera uma delas para mim, retorcendo as mãos. — Não
podemos permitir uma coisa dessas. Ela é nossa lady.
— Ela é Líle, e, se ela quer trabalhar lado a lado com vocês,
deixem e a acolham — respondi, torcendo para não extravasar
minha irritação.
A partir daí, vi minha mãe começar a trabalhar assim que
acordava e só parar quando o sol se punha, e ela trabalhava tanto
que poderia superar qualquer um do meu povo. Eu desconfiava que,
ao se matar de trabalhar, ela não tinha tempo ou energia para
remoer certas coisas.
Mais uma vez, ela me comoveu. Comoveu todos nós.
Porém, minha maior surpresa deve ter sido Ewan. Ele se apegou
a ela, e vice-versa, e a seguia para todos os lados, aprendendo a
língua de sinais antes de todo mundo. Minha mãe vai ensiná-lo a
trabalhar, pensei com humor, ao ver Ewan andar atrás dela com a
pá de lixo, com uma pilha de lençóis limpos e com as roupas sujas
de farinha.
Naquela primeira semana, ela só quis comer pão e queijo. Não
quis carne, nem muita cerveja. Ficou muito animada de tomar chá
de novo, com mel e um pouquinho de creme. Percebi que só seria
possível passar tempo com ela à noite, quando eu levava uma
bandeja de chá para seus aposentos, e nós dois nos sentávamos —
no chão, obviamente — diante da lareira para apreciar o fogo e
tomar chá. Porque a realidade era que… éramos completos
desconhecidos um para o outro. Eu não sabia nada dela, e ela,
nada de mim.
Foi em uma noite dessas que ela me deu algumas folhas de
papel, cheias de sua escrita.
— Quer que eu leia agora? — perguntei.
Não. Espere.
Assenti, deixei as folhas de lado e apreciei o resto do chá com
ela. Mas, em um canto da mente, eu sabia que devia estar em
Lyonesse nesse dia, para assistir à execução dos Lannon. Que
Gilroy e Oona haviam sido levados de manhã ao cadafalso perante
a rainha, os fidalgos e o povo, para se ajoelhar e perder a cabeça.
Fui o único lorde a não comparecer. Isolde me dissera para não
ir, para ficar em casa com minha mãe. E fiquei, porque eu não
conseguia conceber a ideia de sair. Mas minha preocupação era o
fato de que Ewan e Keela ainda precisavam ser perdoados, e eu
não estava lá para prestar testemunho a favor das crianças.
Brienna vai depor em nome delas, escrevera Isolde para mim.
Vai declarar que Ewan e Keela a salvaram.
Tirei os Lannon da cabeça e falei:
— Existe um motivo por que eu sabia onde você estava, mãe. O
nome dela é Brienna.
Líle pôs a mão em cima do meu coração. Ah, ela percebeu. Ou
talvez tenha escutado no meu tom de voz quando falei o nome de
Brienna.
— É, meu coração é dela. É a filha adotiva de Davin MacQuinn.
E o nome dele fez os olhos dela marejarem. Ela sorriu e
gesticulou: Quero vê-lo e conhecê-la.
— Eles vão à coroação de Isolde — respondi. — Quer vir comigo
e com os Morgane e comemorar conosco?
Refleti sobre as cartas que eu havia escrito para Jourdain e
Brienna para dar a notícia de que minha mãe estava viva. E, apesar
da vontade de vir vê-la, eles compreenderam que ela ainda
precisava de tempo para se reaproximar dos Morgane primeiro.
Sim, vou com você.
Sorri e dei um beijo no rosto dela, pensando… como eu
aguentaria ver todas as pessoas do meu coração reunidas, juntas?
Saí dos aposentos da minha mãe depois que terminamos o chá
e levei comigo as folhas que ela me dera. Ewan já estava dormindo
nos meus aposentos e roncava em seu catre diante da lareira. Ele
trabalhara muito durante o dia, seguindo Líle com os pedreiros.
Então me sentei em silêncio à escrivaninha, com as folhas de
Líle. Eu sabia que era o relato dela, uma parte de sua história.
Hesitei por um instante, amarrotei o papel entre os dedos e banhei a
carta com a luz de velas. Estava quase com medo de ler, mas então
pensei: Se Líle está pronta para contar, preciso estar pronto para
ouvir.

Aodhan,

Sei que você deve estar cheio de


perguntas, perguntas sobre como
sobrevivi à batalha do levante e ao
meu período em cativeiro. Antes,
quero que você saiba que não teve
um dia que eu não pensasse em
você, seu pai e Ashling. Você e sua
irmã sempre estiveram no meu
coração, mesmo quando eu estava
no escuro e achava que nunca mais
os veria.
Talvez outra noite eu possa
escrever sobre coisas mais felizes,
como o dia em que vocês nasceram
e o fato de que sua irmã adorava
arranjar confusão para você. Mas,
por enquanto, deixe-me voltar 25
anos.
Durante a batalha, seu pai e eu
fomos separados. Eu estava à frente
de uma falange de guerreiros, e no
meio de um mar de Allenach e
Lannon, e Gilroy Lannon veio até
mim e decepou minha mão. Minha
espada foi junto. Ele me jogou em
cima de seu cavalo, voltou comigo
para o pátio e me arrastou para a
sala do trono. Eu sabia o que ele ia
fazer. Como eu tinha nascido
Lannon, ele queria me transformar
em exemplo e me decapitar no
degrau do trono.
Eu estava sentindo muita dor e,
apesar dos nossos esforços, sabia
que íamos perder a batalha. Mesmo
assim, quando me ajoelhei, quando
esperei a espada dele descer no
meu pescoço… eu queria viver.
Queria viver para você e Ashling, e,
sim, para seu pai, que eu amava.
Mas, do meio das trevas, saiu
Declan. Das trevas saiu a voz dele,
gritando para o pai me poupar, me
deixar viver. Aí ele se deitou em
cima de mim e disse que, se Gilroy
quisesse me matar, teria que matá-lo
também.
Mas talvez eu precise falar mais
sobre Declan.
Quando Declan tinha 7 anos, me
pediu para ensiná-lo a pintar. Ele
havia visto um pouco da minha arte
e queria aprender. O pai dele,
obviamente, achava que arte era
perda de tempo. Mas reconheci a
importância desse acordo, pois
poderia afastar Declan do castelo,
onde eu sabia que uma imensa
maldade estava se desenvolvendo
sob Gilroy e Oona. Eu poderia tentar
proteger o futuro rei, criá-lo para se
tornar um homem bom, diferente do
pai. Mas, obviamente, Gilroy queria
algo em troca. Queria que, como
sinal de lealdade aos Lannon, eu
prometesse Ashling em casamento a
Declan. Ashling tinha só 1 ano, e
fiquei horrorizada com a ideia. Mas
aí seu pai me disse: “Se você puder
ensinar Declan a pintar, poderá
moldar o futuro rei. E nossa filha
será rainha ao lado dele.”
Então concordei.
Declan veio e passou muitas
semanas por ano conosco,
aprendendo a pintar. E, embora eu
tivesse passado a amá-lo como filho,
comecei a enxergar as trevas nele.
Pouco a pouco, ano após ano, ele
foi se tornando cada vez mais bruto
e violento, e percebi que não seria
possível salvá-lo. Não conseguiria
redimi-lo. Fiquei desesperada, por
ter fracassado de alguma forma, e
mesmo assim ele ainda me amava.
Estava tentando ser bom, por mim.
Mas, em pouco tempo, meu medo
não era só por ele, era também
medo dele.
Rompi a promessa de casamento.
E seu pai e eu começamos a
planejar um golpe, porque já
havíamos presenciado o bastante de
Gilroy e Oona. O resto da história
você já conhece.
Então, na sala do trono, Declan
suplicou pela minha vida.
Incrivelmente, Gilroy aceitou. Ele
me mandou para o último andar da
masmorra, e lá fiquei acorrentada,
por meses, em agonia. Ele esperou
meu pulso cicatrizar e cortou minha
língua fora, para que eu não
pudesse falar mais. O primeiro ano
foi o mais difícil. Parecia que a dor
não ia diminuir nunca, e eu só
conseguia pensar se seu pai havia
sobrevivido, se você e Ashling
estavam bem. Eu não sabia de nada
e não podia perguntar aos guardas o
que havia acontecido.
Mas um dos guardas teve dó de
mim. Sim, ele era um Lannon, mas
gostava de mim. Ele me trazia as
melhores comidas, a água mais
limpa, ervas para ajudar a me curar.
Ele me contou o que aconteceu
depois do golpe fracassado. Disse
que você e seu pai tinham escapado
com Davin, Lucas, Braden e Isolde.
Que o povo Morgane fora entregue a
lorde Burke. Que meu pai, um nobre
Lannon, tentara incitar uma segunda
revolta, sem sucesso, e que Gilroy
destruíra minha família inteira pouco
depois. E chorei ao saber disso —
da morte da minha família —, mas
também ao saber que você e seu pai
haviam sobrevivido. Isso me deu a
esperança necessária para continuar
viva, para tramar. Eu desafiaria os
Lannon com minha vida e estaria
pronta quando você e seu pai
voltassem.
Fiquei presa na cela da masmorra
por cinco anos. Declan vinha me
visitar com frequência. Não tenho
nem como descrever o quanto essas
visitas eram tristes e horríveis, não
porque ele fosse cruel comigo, mas
porque eu sabia que ele estava se
distanciando mais e mais, que toda
bondade e virtude que eu tentara
semear havia definhado e morrido.
Ele insistia que eu abandonasse
meu sobrenome Morgane, que eu
renegasse completamente minha
Casa e seu pai, porque, se fizesse
isso, ele poderia me tirar da
masmorra. Poderia achar um lugar
para mim no castelo.
Ao longo de um mês, ele veio
quase todos os dias à minha cela e
esperou que eu escrevesse que
renegava.
E, como eu me recusava, ele foi
ficando cada vez mais frustrado
comigo. “Você não quer viver, Líle?”,
gritava ele comigo. “Não quer viver
com conforto? Posso protegê-la.
Posso lhe dar uma vida muito
melhor que esta.”
Mesmo assim, me recusei a abrir
mão do nome Morgane.
Então ele parou de me visitar, e
isso pareceu ter durado um ano.
Nesse período, o guarda Lannon
tentou me ajudar a fugir. Ele me
falou do rio subterrâneo que
desembocava na baía. Tramamos e
planejamos, e, quando chegou o dia,
ele me tirou da cela e me levou rumo
ao rio. Mas é difícil escapar de uma
masmorra administrada pelos
Lannon. Fomos descobertos
justamente por Oona. Ela sempre
me odiara, porque sabia que Declan
me amava mais. Ela mandou me
açoitarem, e o guarda foi torturado
até a morte.
Eu estava de novo na cela, em
absoluta agonia, quando Declan
voltou a me visitar. Ele não sabia
que eu tentara fugir, que eu tinha
sido açoitada quase até a morte por
ordem da mãe dele. “Quer que eu a
mate?”, perguntou ele, com tanta
calma que achei que fosse
brincadeira. Mas Declan falou sério.
Ele tinha apenas 16 anos e teria
matado a própria mãe por mim. Esse
é o nível da maldade e corrupção
daquela família.
Ele me tirou da masmorra e me
colocou em seus aposentos
pessoais para eu me recuperar.
Acho que sua esperança era que eu
abandonasse o nome Morgane,
agora que estava me recuperando
com conforto. Ele tinha medo —
todos os Lannon tinham — de que
você e seu pai, Kane, Davin e
Lucas, Braden e Isolde voltassem
para se vingar. E Declan queria ter
certeza de que eu daria preferência
a ele em vez de você, caso vocês
voltassem.
Eu não podia dar essa certeza, e
isso o deixou furioso. Ele mutilou
meu rosto e me mandou de volta
para a masmorra. Passei cinco anos
sem falar com outro ser humano.
Era só eu na escuridão.
E odeio escrever isto, mas esses
cinco anos, por fim, destruíram o
que sobrara de mim. Já fazia dez
anos que eu era prisioneira. Se você
voltasse para Maevana, Aodhan,
teria apenas 11 anos. E comecei a
rezar para que Kane o mantivesse
longe destas trevas, que o criasse
em um ambiente seguro e bom. E
talvez até que Kane tivesse se
casado de novo, achando que eu
tinha morrido, e assim você seria
criado com o amor de outra mulher.
Pensei tanto nisso que comecei a
acreditar.
Quando Declan finalmente veio me
ver de novo, já era homem, e eu
estava destruída. Abri mão do nome
Morgane. Quis adotar o sobrenome
Hayden, mas Declan disse que
todos os Hayden tinham morrido e
que eu precisava ser Lannon.
Virei Líle Lannon.
Declan me cobriu de véus e me
levou ao castelo para servir como
camareira de sua esposa. Ninguém
além dele, Gilroy e Oona sabia
quem eu era de verdade. E as
coisas correram bem por alguns
anos — eu mantinha a cabeça baixa
e não falava nada, então eles quase
não reparavam mais em mim —,
mas aí Declan começou a bater na
esposa. Confrontei-o, falei que sabia
que ele não era de fazer aquilo. E
Declan só deu risada, como se eu
tivesse ficado maluca. Foi mais difícil
ainda porque Keela e Ewan já
haviam nascido e eram só crianças.
Eu não tinha como proteger eles três
— a esposa de Declan, o filho e a
filha. Quando a esposa dele morreu,
Declan me mandou de volta para a
masmorra. Acho que ele imaginava
que eu tentaria fugir com seus filhos.
Ele me deixou presa em uma cela
por um ano e, depois, decidiu me
soltar, para varrer os ossos nos
túneis. Foi quando parei de
acompanhar a passagem do tempo.
Eu não sabia que dia era, que ano,
qual a minha idade. Quando enfim
aconteceu o golpe e os Lannon
foram presos… eu não soube o que
fazer. Tinha passado tanto tempo em
cativeiro que continuei varrendo
ossos, morrendo de medo de tentar
passar das portas da masmorra e
subir para a luz.
E de repente vi você, Aodhan.
Você e eu finalmente nos
esbarramos nos túneis, e achei que
meu coração fosse explodir. Eu
sabia que era você. Ainda assim,
tinha medo demais de me revelar,
até mesmo quando Declan me
acorrentou na cela dele e me viu de
novo, com Davin e a rainha. Estava
envergonhada por ter abandonado
meu nome. Não sabia o que era
melhor para você, então fiquei no
mesmo lugar, naqueles túneis, na
escuridão.
Até que você voltou para mim. E
sempre vou me perguntar por que
você voltou, como soube que era eu.
Um dia, quero ouvir sua história,
saber de todos os anos que perdi. E
quero conhecer o lugar onde seu pai
o criou; quero ver os lugares que
você viu e as pessoas que você
conheceu e amou. Quero que me
conte como vocês planejaram voltar
para Maevana e colocar Isolde no
trono.
Mas, por enquanto, acho que
basta dizer que amo você. Amo
você, Aodhan, meu filho, meu
coração. E estou muito feliz por você
ter voltado para me tirar da
escuridão.
33

O D R A G Ã O E O FA L C Ã O
Castelo real de Lyonesse, território de lorde Burke
Novembro de 1566

Brienna

— Já falou com Aodhan?


A pergunta de Isolde me fez encará-la. Estávamos sentadas no
solário dela no castelo, com todos os arquivos antigos, planejando a
coroação para a semana seguinte. E eu não queria revelar que
estava sobrecarregada e distraída, porque todo mundo estava
exausto. Mas era inegável que eu não parava de pensar em Cartier
e na mãe dele, em Keela e Ewan, na minha recuperação.
Já não estava mais com a faixa na cabeça. Decidi descartá-la
oficialmente no dia anterior, na execução dos Lannon. Com o rosto à
mostra, eu vira Gilroy e Oona se ajoelharem e serem decapitados
no cadafalso. Sentira a luz do sol, o vento, o olhar de centenas de
pessoas contemplando minha cicatriz. Mas isso não me impedira de
me apresentar ao povo de Lyonesse para defender o perdão de
Ewan e Keela.
Meu rosto era esse agora. Era uma prova maior que minhas
palavras do que eu havia sofrido. E foi um alívio para mim quando o
povo o viu — quando me viu —, meus irmãos, minha irmã, meu pai,
todos os fidalgos do reino. Todos menos Cartier, pois ele não viera
para a execução.
Eu não o via desde o dia em que lhe contei sobre sua mãe,
quase duas semanas antes. E eu não podia negar, apesar da
coragem que eu encontrava a cada dia. Ele não havia visto minha
cicatriz.
— Só por carta — respondi. — Ele disse que a mãe está indo
bem.
— Que bom saber — afirmou Isolde, calando-se.
Ela havia conhecido Líle Morgane. A rainha esperara Cartier
voltar da masmorra naquela noite. Isolde fora uma das primeiras a
falar com ela, a abraçá-la.
Queria perguntar mais sobre Líle, mas as palavras eram
pesadas demais para sair. E embora parecesse que Isolde
conseguia ler meus pensamentos — ela sabia que eu estava
preocupada com a ideia de rever Cartier —, resolvi voltar minha
atenção para a coroação de novo.
Isolde queria que a cerimônia fosse como a das rainhas que a
antecederam — uma comemoração entremeada de tradição —, mas
queria também que fosse iluminada pelo progresso. Maevana
estava emergindo de um período muito sombrio, então tentei anotar
todas as ideias de Isolde e me perguntei como eu realizaria aquilo
tudo para ela em apenas sete dias.
— Queremos o que mais? — perguntei, pegando a pena de
novo.
— Precisa ter música, sem dúvida — afirmou Isolde. — Muita
dança e muita comida.
— Acho que é para todo mundo contribuir com comida — falei,
vasculhando os documentos antigos que, por milagre, haviam
sobrevivido ao reinado de Gilroy. — Ah, sim. Diz aqui que cada
Casa traz seu melhor prato.
— Então isso precisa ser incluído no convite — orientou a
rainha.
Convites. Claro, pensei, procurando nos arquivos para ver se eu
achava algum modelo antigo.
— Quero que os convites sejam lindos — declarou Isolde, com
um tom quase sonhador. — Precisam ser traçados por calígrafos,
com tinta vermelha e dourada.
Santos do céu, pensei. Como é que eu ia executar isso tudo?
Será que havia algum calígrafo em Maevana? Será que Gilroy
permitira a existência de algo tão belo?
— Muito bem, milady. Verei o que posso fazer — respondi. —
Quer convidar todas as Casas?
Isolde me olhou de esguelha.
— Quer dizer se quero convidar os Lannon e os Halloran?
Quero. Eles fazem parte do reino, apesar do que os líderes das
Casas fizeram.
Terminei de anotar a lista imensa de afazeres e, como Isolde
ficou quieta, levantei o rosto e vi que ela havia colocado uma
caixinha na minha frente.
— O que é isto? — perguntei, cansada de surpresas.
Era uma caixinha de madeira, com belos detalhes entalhados.
Abri cuidadosamente e vi um broche de prata dentro, repousando
em um veludo vermelho. Era moldado como um dragão e um falcão,
um virado para o oeste, o outro, para o leste, encostando as asas. A
princípio, não entendi o significado, mas então olhei para Isolde e vi
que ela estava sorrindo para mim.
— Quero que saibam que minha ascensão conta com uma
conselheira — falou. — E essa pessoa é você, Brienna, se você
aceitar.
Fiquei sem palavras. Só consegui alisar a beleza daquilo com
meu polegar. O dragão era ela, a rainha Kavanagh. Mas o falcão era
eu, a filha de MacQuinn.
— E então, cara amiga — murmurou Isolde. — O que me diz?
Prendi o broche na minha camisa, pouco acima do coração.
— Digo que ascendamos.
Isolde sorriu, e fiquei surpresa de ver que ela parecia mesmo
aliviada.
— Que bom. Sei que já despejei muita coisa em cima de você
por um dia. Mas tem uma surpresa à sua espera nos seus
aposentos.
— Ah, Isolde. Não gosto de surpresas.
— Você vai gostar desta — garantiu ela, tirando a lista das
minhas mãos e levando-me até a porta. — E chega de trabalho por
hoje.
Olhei para ela, intrigada, mas me deixei ser levada para fora do
solário.
Meus aposentos não eram longe, e andei devagar até lá,
tentando imaginar qual seria a surpresa. Abri a porta quase com
medo e passei os olhos pela minha sala de visitas.
— Brienna!
Merei veio para cima de mim antes que eu tivesse chance de
piscar. Ela passou os braços ao meu redor e apertou com tanta
força que dei uma gargalhada enquanto tentava continuar de pé.
— Como foi que ela trouxe você sem eu saber? — exclamei,
afastando-me para ver o rosto de Merei, com as mãos afundadas
em seu manto de paixão roxo.
— A rainha é mágica, né? — disse Merei, com os olhos cheios
de lágrimas. — Ah, Bri, senti tanta saudade! E você vai me fazer
chorar.
— Não chore — pedi rapidamente, mas minha garganta já havia
se fechado ao vê-la. Merei estava vendo o que eu era agora, com
cicatriz, sem cabelo, e, ainda assim, eu me sentia mais forte do que
nunca. — Eu sei. Já estive melhor.
— Você está linda, Brienna. — Ela me abraçou de novo, e
ficamos um instante só agarradas até os cachos dela entrarem na
minha boca e eu pisar em seus pés. — Mas não sou a única
surpresa para você.
— Mer — falei, meio em súplica, meio em advertência, enquanto
ela ia alegre até a porta do meu quarto. — Você sabe que eu odeio
surpresas.
— E é por isso que decidimos surpreender você — disse Merei,
sorridente. Ela parou com a mão na porta, de propósito prolongando
o momento. — Está pronta?
Ela nem esperou minha resposta. Abriu a porta, e Oriana saiu de
repente. Deixei escapar um grito de alegria ao abraçá-la, e nós três
ficamos em uma roda, com os braços em volta uma da outra, testas
coladas, irmãs reunidas. Eu havia passado sete anos da minha vida
com elas na Casa Magnalia. Merei estudara a paixão de música,
Oriana, a paixão de arte, e eu, a paixão de conhecimento. E, ao vê-
las agora… chorei mesmo. Abracei-as e chorei, ao me dar conta do
tamanho da saudade. Nossas lágrimas se transformaram em risos,
e Oriana nos levou até minha lareira, onde uma garrafa de vinho
valeniano nos aguardava com três cálices de prata.
— Vocês duas precisam me contar por que estão aqui — pedi,
enquanto Oriana servia cada cálice. — E por quanto tempo vou
poder aproveitá-las.
— Estamos aqui para comemorar a ascensão de uma rainha —
respondeu Merei.
— E — acrescentou Oriana, lançando um olhar para Merei —
falaram que você precisava arranjar músicos e calígrafos para a
coroação. Estamos aqui para ajudar, Brienna. Sabemos que somos
valenianas, mas queremos compartilhar este momento com você e
Maevana.
Não consegui disfarçar a felicidade. Eu irradiava alegria quando
brindamos à rainha, quando brindamos à nossa fraternidade e
nossas paixões. Ficamos sentadas diante da lareira conversando
por horas, como se fôssemos imunes à passagem do tempo. Oriana
me falou da Casa de paixão onde ela lecionava agora, e de seus
pupilos terríveis e maravilhosos, e Merei me falou de sua trupe, dos
lugares onde se apresentara recentemente e das cidades lindas que
havia visto.
A rainha trouxe pessoalmente o jantar aos meus aposentos, e
nós quatro conversamos sobre Valenia, nossas lembranças mais
felizes e os dias empolgantes que nos aguardavam. Não dava para
pedir uma noite mais deliciosa, comendo com as pessoas que eu
mais amava, minhas amigas de infância e minha futura rainha.
Isolde e eu cruzamos os olhos por cima da mesa.
Discretamente, ela ergueu o cálice para mim. E eu sabia que ela
havia chamado Merei e Oriana por minha causa, não para a
coroação. Ela trouxera minhas irmãs de paixão porque sabia que eu
precisava vê-las, que meu coração seria revigorado por elas.
Pensei nos dias à nossa frente, dias que construiríamos com
nossas mãos, mentes e palavras, dias que, sem dúvida, seriam
incertos, difíceis e lindos, tudo ao mesmo tempo.
Sob a luz da lareira, Isolde bebeu à minha saúde, e eu, à dela. O
dragão e o falcão.
34

E N T R E A S T R E VA S E A L U Z
Mistwood, território de lorde Burke

Cartier

O dia da coroação de Isolde chegou quando as últimas folhas de


outono, rubras, douradas e marrons, caíram.
Eu estava de costas para o vento, no campo que se estendia do
castelo real até Mistwood, o mesmo lugar onde havíamos combatido
no dia do levante, poucas semanas antes. Vi as mesas sendo
dispostas no gramado, em preparo para o grande banquete
comemorativo. As meninas aprontavam as mesas com prataria
polida, rios de velas brancas e pétalas de flores silvestres de fim de
outono. Os meninos já haviam delimitado uma área do gramado
para os jogos, e as mulheres traziam seus melhores pratos
enquanto os homens cuidavam das fogueiras e assavam em
espetos leitões e aves recém-depenadas.
O ar vibrava de empolgação, com fragrância de fumaça, cravos
moídos e flores colhidas, pois Maevana estava prestes a ganhar
uma rainha após décadas de trevas e de reis inúteis.
E todos trouxemos algo, fosse um pão, queijo, um barril de
cerveja ou uma bacia de ameixas. Todo mundo se vestiu com as
cores ou o brasão de suas Casas, transformando o campo em uma
tapeçaria colorida, tecida pela luz, que começava a ir embora.
Olhei para o gibão que eu usava, azul como centáurea. Pela
trigésima vez, alisei as marcas amarrotadas nas minhas roupas, as
marcas no meu coração, e tentei me distrair com um grupo de
garotos que brincavam para ver quem conseguia lançar mais longe.
Mas não conseguia deixar de procurá-la, procurar a lavanda e o
falcão dourado dos MacQuinn que eu sabia que ela usaria.
— Milorde! Milorde, olha só! — gritou Ewan, e sorri pela feliz
distração. Vi Ewan arremessar suas três bolas, não tão longe
quanto os outros garotos, mas ainda impressionante para o
tamanho pequeno dele. — Viu isso, lorde Aodhan?
Bati palmas e fui imediatamente esquecido no meio do
entusiasmo de Ewan de se mostrar para um grupo de meninas que
se reunira para assistir.
Voltei a me misturar à multidão, onde a maioria das pessoas
estava ajudando com arranjos de comida de última hora. Vi o
pedreiro Derry rindo, já tendo experimentado a cerveja e a sidra. E
lá estavam minha mãe e Aileen, espanando umas folhas caídas de
cima dos pratos já postos. E Seamus, ocupado na fogueira do
churrasco, enxugando o suor da testa. E Cook, tentando decidir
onde colocar suas batatas temperadas e tartaletes de maçã.
Sorri ao vê-los.
Pelo canto do olho, vi Jourdain com lavanda e ouro, afastado,
hesitante. Ele estava esperando no campo, observando minha mãe.
E lembrei que ele havia planejado uma revolução com ela, que fora
um fracasso e que o fizera passar 25 anos acreditando que ela
havia morrido.
Líle sentiu o olhar e levantou o rosto. Vi seu rosto se iluminar de
alegria quando ela o reconheceu, quando foi até ele. Eles se
abraçaram, aos risos e às lágrimas.
Virei-me para dar-lhes privacidade.
E então pensei: Se Jourdain está aqui, Brienna deve estar por
perto.
Eu não a via desde a manhã em que ela me chamara ao castelo
Fionn, a manhã em que me contara sobre minha mãe. O cabelo de
Brienna tinha sido cortado, seu rosto estava enfaixado, e a pele,
pálida e cheia de hematomas. Meu coração se partiu ao vê-la. O
que será que ela havia suportado, e por que não consegui encontrá-
la mais rápido?
Lembrei que eu havia esperado dias até ela me chamar, que
havia caminhado pelos corredores e campos de Brígh, angustiado
de preocupação sem saber por que ela não queria me ver. E aí,
quando me chamou para Fionn, fui correndo, ansioso para abraçá-
la, e ela mantivera aquela distância entre nós com a voz e os olhos.
Não queria meu toque. E eu ainda não sabia se era por causa do
que estava prestes a me contar, ou se era por que de repente queria
distância de mim.
Andei até a floresta, passando entre grupos de gente e entre as
árvores, à procura dela. Eu sabia que estava quase na hora; era o
pôr do sol. E a tradição devia ser mantida: as rainhas sempre eram
coroadas em Mistwood ao pôr do sol.
Eu estava no meio de um grupo de Burke quando as flautas
começaram a soar, para chamar as pessoas ao bosque e prepará-
las para a chegada da rainha.
E foi nesse momento que finalmente a vi.
Brienna estava sob um imenso carvalho. Usava um vestido da
cor do amanhecer, um roxo que ficava entre a escuridão e a luz. A
Pedra do Anoitecer pendia da corrente em seus dedos, e uma coroa
de flores silvestres repousava em sua cabeça. Ela não estava com
seu manto de paixão, mas eu também não, pois tínhamos decidido
representar apenas Maevana nessa noite.
Vi a cicatriz que ocupava o lado direito do rosto dela, uma
cicatriz que eu sabia que batia com a que havia no meu espírito.
Contudo, quanto mais a olhava, mais a cicatriz desaparecia, pois
Brienna me consumia por completo.
Mentalizei para que ela olhasse na minha direção, para que me
encontrasse no meio do povo.
E ela quase me viu; seus olhos estavam passando pela luz das
chamas quando senti lorde Burke tocar no meu ombro.
— Morgane! Achei que você estaria com seu pessoal.
— Ah, é, pois é.
Olhei para ele, quase sem saber onde eu estava. Ele deve ter
percebido que eu só tinha olhos para Brienna, porque sorriu e disse:
— Você deve estar cheio orgulho dela. Se bem que a posição
dela na hierarquia é muito superior à sua, rapaz.
E tive vontade de perguntar a que ele se referia, mas então
reparei no broche prateado no peito de Brienna, brilhando como
uma estrela cadente e proclamando o que ela era.
Foi então que me dei conta, e soltei um breve suspiro.
Brienna era a conselheira da rainha.
35

A RAINHA ASCENDE
Mistwood, território de lorde Burke

Brienna

A luz começava a ir embora, as sombras começavam a se abrandar,


e eu sabia que a rainha chegaria logo. Admirei a floresta à nossa
volta, aquelas árvores antigas que tinham abrigado a coroação da
rainha séculos atrás. Havia lanternas penduradas nos galhos que
derramavam uma luz calorosa em nossos ombros. O ar tinha um
aroma fresco e adocicado. Grinaldas de flores iam de árvore em
árvore como teias de aranha.
Continuei esperando-a, parada sob o carvalho, junto do
magistrado.
Fechei os olhos por um instante, para acalmar a mente. Em
muitos sentidos, essa noite parecia o solstício de verão cinco meses
antes, a noite em que eu conquistaria uma paixão e ganharia um
patrono. E, naquela noite, dera tudo errado; nada saíra conforme o
planejado.
Mas aquela noite havia inspirado esta, pois, se não fosse meu
fracasso, eu não estaria aqui agora.
Abri minhas pálpebras, e levei o olhar direto para onde meu
pessoal estava reunido. Neeve, Sean, Keela, Ewan, Oriana, Merei e
Luc. Eles estavam conversando, rindo e aproveitando o momento. E
meu coração se encheu de alegria ao vê-los: éramos uma família.
Mas onde estava meu pai? Onde estava Cartier? Não dava para
negar que eu estava ansiosa para vê-lo. Para que ele me visse.
Assim que pensei isso, vi Jourdain atravessando a multidão com
uma mulher ao seu lado. Eu sabia quem era ela. Era Líle Morgane.
Porque Cartier era a cara dela, aquela elegância esguia como uma
espiga de trigo, cabelo claro e olhos tão azuis que pareciam
queimar.
Não tive tempo de refletir sobre ela, pois as flautas começaram a
tocar e Isolde e Braden finalmente chegaram, como se tivessem
sido trazidos por magia. Isolde nunca estivera tão linda, tão radiante.
Não consegui tirar os olhos dela enquanto ela e o pai vieram até
mim e o magistrado.
— Isolde, filha de Braden e Eilis Kavanagh, você se encontra
diante de nós para ascender ao trono de Maevana — disse o
magistrado, e, embora sua voz fosse idosa e cansada, o som
reverberou pela mata. — Você aceita este título?
— Aceito, senhor — respondeu Isolde, firme, sem hesitar.
— Ao receber esta coroa — comecei a recitar o juramento
ancestral —, você reconhece que sua vida não mais lhe pertence,
que está casada com esta terra, com seu povo, que sua única
responsabilidade é protegê-los e servi-los, defendê-los e honrá-los
e, acima de tudo, garantir que a magia que você cria seja voltada
para o bem, não para o mal. Você aceita este juramento?
— Aceito, milady.
— Os lordes e as ladies das Casas e os homens e as mulheres
de Maevana se reúnem aqui esta noite para testemunhar seu
juramento — continuou o magistrado. — Em troca, juramos servi-la,
honrá-la, ajoelhar apenas diante de ti e de mais ninguém e acreditar
que suas decisões são pelo bem desta terra. Juramos proteger sua
vida com a nossa e resguardar a vida de seus futuros filhos e filhas.
O magistrado parou, incapaz de disfarçar o sorriso.
— Venha, minha filha, e ajoelhe-se diante de nós.
Isolde soltou o pai e apoiou os joelhos entre as raízes na terra.
Primeiro era a pedra.
Tive o cuidado de levantar o colar pela corrente e ergui a Pedra
do Anoitecer no alto para que todo mundo visse. Em seguida,
pendurei-a no pescoço da rainha, escutei o murmúrio de quando a
Pedra do Anoitecer se ajustou, vi-a repousar sobre o coração de
Isolde. Ela não a queimou, pois Isolde detinha a chama em seu
sangue. Em vez disso, a pedra brilhou para ela e vibrou com cores
iridescentes. Vi a luz dela nas minhas mãos, uma dança de
carmesim, turquesa e âmbar nos meus dedos, refletindo no meu
vestido, e fiquei maravilhada diante da pedra, da rainha do norte, da
minha amiga.
Depois vinha a coroa.
O magistrado a ergueu para que a luz das velas beijasse os
diamantes. E a colocou cuidadosamente na cabeça de Isolde; a
prata cintilava como estrelas entre seus cachos castanhos.
Por fim, o manto.
O capitão da guarda de Isolde se apresentou com o manto real
dobrado no braço — veludo vermelho e dourado adornado com fios
pretos, pérolas e aventurinas. O guerreiro o colocou sobre os
ombros dela, e senti o cheiro do incenso nele: cravo, cardamomo e
baunilha, um aroma ao mesmo tempo picante e adocicado. O manto
era uma bela representação de dragão para a rainha usar na corte.
— Ascenda, rainha Isolde da Casa Kavanagh — proclamei,
virando as mãos para o alto, as palmas para cima.
Isolde se levantou, como se estivesse se erguendo das sombras,
das brumas.
As flautas e os tambores começaram a tocar uma melodia
alegre, e Braden Kavanagh deu um passo para trás, ciente de que
Isolde não pertencia mais a ele: ela pertencia a nós.
Isolde olhou diretamente para mim. Um sorriso iluminou seu
rosto; e o meu era um reflexo do dela. Quando se virou, demos
vivas, erguemos vozes e mãos, e meninos e meninas jogaram flores
pelo chão à sua frente. As seis meninas Kavanagh de Isolde — as
meninas que Cartier encontrara no açougue — cercaram-na,
vestidas de vermelho e preto, as cores da Casa delas. E fiquei cheia
de alegria ao ver seus sorrisos largos, as flores em seu cabelo e o
carinho que tinham pela rainha. Isolde as declarara suas irmãs:
sempre teriam um lugar no castelo, ao lado dela. E eu estava
ansiosa para ver a magia das meninas começar a aflorar.
Fiquei mais um instante entre as raízes do carvalho, desfrutando
o entusiasmo, o esplendor daquele momento. Jourdain veio para
perto de mim e apoiou as mãos nos meus ombros enquanto Isolde
caminhava entre as árvores, arrastando o longo manto pelo chão
atrás de si.
— Nunca imaginei que veria este dia — murmurou meu pai, e
senti a emoção em sua voz.
Achei que ele estivesse falando só de Isolde, mas me
surpreendeu quando deu um beijo no meu cabelo e disse:
— Tenho muito orgulho de você, Brienna.
Pus a mão em cima da dele e pensei naquele momento em que
havíamos nos conhecido, quando eu desconfiara dele, quando ele
ficara intrigado com minhas lembranças ancestrais, quando
decidimos confiar um no outro e tramar a volta da rainha. Eu jamais
teria imaginado que seria a responsável por participar de sua
coroação, que proclamaria seu juramento ancestral, que seria seu
braço direito. Isso me enchia de espanto e arrebatamento.
— Tenho uma velha amiga que eu gostaria que você
conhecesse — sussurrou Jourdain, apertando meus ombros.
Virei-me e vi Líle se aproximar. Ela sorriu para mim, e achei que
eu fosse chorar ao finalmente encontrá-la.
Eu não sabia o que dizer, até que percebi… não havia palavras
para aquilo. Então a abracei, deixei que me envolvesse e, pela
primeira vez na vida, entendi o que era ser abraçada por uma mãe.
Delicadamente, ela recuou para pôr a mão na minha cicatriz,
como se soubesse que minha dor lhe trouxera alegria. Éramos o
reflexo uma da outra; eu ria e chorava ao mesmo tempo. E, quando
minhas lágrimas desceram, ela as enxugou com ternura.
Não sei quanto tempo passamos ali, mas de repente me dei
conta da luz que desaparecia. Jourdain ainda estava ao nosso lado,
mas todo o resto já havia saído da floresta para o campo, e dava
para ouvir os tambores batendo ao longe.
— Vamos, queridas. A comemoração nos aguarda — chamou
Jourdain, estendendo os braços para nos acompanhar.
Apoiei meus dedos no cotovelo dele, e Líle pegou seu outro
braço. Caminhamos juntos, meu pai, a mãe de Cartier e eu. Logo
antes de chegarmos ao campo, olhei para Jourdain e disse:
— Isso tudo parece um sonho, pai.
Ele se limitou a sorrir para mim e sussurrar:
— Então que não acordemos nunca.
36

O MELHOR DA SUA CASA


Mistwood, território de lorde Burke

Cartier

O banquete começou oficialmente, e foi uma correria até a fogueira


do churrasco e as mesas de comida. Eu ainda estava entre os
Burke e, em vez de lutar contra a correnteza, andei com eles para o
campo. As primeiras estrelas haviam vencido o crepúsculo, e parei
por um instante, olhando para elas, até que um grupo de garotos
esbarrou em mim. Comecei a circular entre as mesas e fui passando
pelas aglomerações de gente tentando encher pratos e vislumbrar
Isolde.
Procurei Brienna; tentei encontrar seu vestido lavanda, tentei
captar sua graciosidade no meio dos festejos. Mas não havia sinal
dela. E, quanto mais eu a procurava, mais ficava preocupado.
Fui adentrando gradativamente o centro do campo, sentindo
como se estivesse flutuando em um mar de gente desconhecida, até
que vi Brienna com Merei, ambas segurando fitas compridas. Merei
percebeu meu olhar antes e olhou para mim por cima do ombro de
Brienna. Ela olhou de novo para Brienna, mas era evidente que
Merei estava inventando um motivo para se afastar. Ela apontou
para alguma coisa, sumiu na multidão e deixou Brienna sozinha.
Avancei, ciente de que talvez essa fosse minha única chance de
falar com ela.
Brienna permaneceu parada. Mas Merei deve ter falado que eu
estava chegando, pois parecia que Brienna tinha parado de respirar
ao sentir minha aproximação. E, ao contrário do que eu esperava,
ela não se virou para mim. Continuou de costas, o que só aumentou
meu receio de que ela estivera me evitando.
— Brienna.
Ela finalmente se virou para ficar de frente para mim, e seus
olhos reluziam com a claridade das chamas. Por um instante, ela
não falou nada. Seus olhos pousaram nos meus e logo se
afastaram, distraídos por algum convidado que estava por perto.
Mas reparei que ela estava inclinando o rosto para esconder
parcialmente a cicatriz de mim. Como se estivesse com medo de
que eu visse.
Meu coração pesou, e eu é que fiquei sem palavras.
— Lorde Morgane — disse ela, ainda distraída.
Lorde Morgane. Nada de Cartier. Nem sequer Aodhan.
Ela estava mantendo uma distância entre nós, e tentei não me
deixar abalar.
— Você viu a coroação de Isolde? — acrescentou ela, às
pressas, e me dei conta de que Brienna estava tão nervosa quanto
eu. — Procurei você.
— Eu estava lá. Vi você pronunciar o juramento. — Esperei até
ela olhar para mim de novo. Aos poucos, ela ergueu os olhos para
os meus. O broche prateado em seu peito refletiu a luz. Sorri,
incapaz de disfarçar meu orgulho, minha admiração. — Conselheira
da rainha.
Um sorriso alegrou seu rosto. A beleza dela era quase
insuportável.
— Ah, é. Eu ia escrever para contar, mas… tem sido bastante
corrido por aqui.
— Imagino. Mas espero que você tenha conseguido aproveitar a
estada em Lyonesse.
Conversamos sobre os últimos dias e semanas. Brienna me
falou das execuções, do perdão para Ewan e Keela, do
planejamento. E falei rapidamente da volta de Líle. Em alguns
aspectos, parecia que Brienna e eu tínhamos passado anos
afastados. Aconteceu muita coisa desde a última vez que nos
vimos. Mas quanto mais conversávamos, mais ela relaxava, mais
sorria.
— E o que é isto? — perguntei, apontando para a fita que
continuava em suas mãos.
— Eu estava procurando um parceiro.
Ela olhou para a multidão, como se estivesse prestes a escolher
uma pessoa desconhecida qualquer.
— Parceiro para quê?
— Um jogo que você odiaria, Cartier.
Ela virou o rosto de novo para mim, mas só para me lançar um
olhar debochado que indicava que ela me conhecia muito bem.
— Que tal a gente descobrir? — desafiei.
— Tudo bem. — Brienna começou a andar, e fui atrás, como se
já estivesse amarrado a ela. Ela olhou para mim por cima do ombro
e disse: — Mas eu avisei.
Ela me levou até o gramado de jogo. E vi, horrorizado, que era
um daqueles jogos de corrida, em que duas pessoas eram
amarradas pelo tornozelo, forçadas a correr em volta de barris de
cerveja e bancar uns belos idiotas.
Brienna tinha razão. Por dentro, detestei a ideia, mas não me
esquivei e não me afastei. Nem quando ela inclinou a testa para
mim, esperando que eu protestasse.
Merei apareceu, corada e sorridente, com a coroa de flores no
cabelo começando a cair.
— Rápido, vocês dois! — exclamou ela antes de correr pelo
campo, de onde Luc gesticulava com impaciência.
Peguei a fita e me ajoelhei. Brienna levantou a barra do vestido,
para que eu pudesse amarrar a fita em nossos tornozelos. Dei um
nó forte, de modo que nada o desmanchasse. E, quando me
levantei, ela sorriu para mim, como se soubesse no que eu estava
pensando. Ela me envolveu com o braço, e andamos
desajeitadamente até a linha de largada.
Paramos ao lado de Luc e Merei, Oriana e Neeve, Ewan e
Keela, todos aparentemente empolgados com a perspectiva da
corrida de três pernas. Observei os barris pelos quais devíamos
correr, contrariado, até que Brienna murmurou:
— O que você me dá se nós ganharmos?
Meus olhos foram para os dela. Mas não tive tempo de
responder. A corrida começou, e nós fomos os últimos a sair. Mas
Brienna e eu éramos equilibrados; alcançamos Ewan e Keela e
fomos atrás de Luc e Merei. Neeve e Oriana estavam na frente, para
surpresa de ninguém. Mas algum idiota tinha colocado o terceiro
barril em uma parte inclinada do terreno, e enfiei o pé em um
buraco. Perdi o equilíbrio e levei Brienna junto. Capotamos barranco
abaixo para as sombras em uma confusão azul e cor de lavanda de
braços e pernas.
Ouvi algum rasgo embaixo dos meus joelhos. Meti as mãos na
terra para nos segurar, com Brienna embaixo de mim, e tentei
recuperar o fôlego, tentei enxergar o rosto dela à luz das estrelas.
— Brienna?
Ela tremia. Achei que tivesse se machucado, até que me dei
conta de que estava rindo. Me deixei cair por cima dela e senti sua
risada se alastrar para o meu peito, até que meus olhos ficaram
cheios de lágrimas e eu não lembrava a última vez que me sentira
tão feliz.
— Acho que rasguei seu vestido.
— Não tem problema.
Ela suspirou e olhou para mim.
Por um instante, ficamos imóveis, mas dava para senti-la
suspirando junto a mim. Ela então inclinou o rosto de novo, para
esconder a cicatriz nas sombras.
Delicadamente, peguei no queixo dela e voltei seus olhos para
mim.
— Brienna, você é linda.
E quis me prostrar para ela. Quis conhecê-la, explorá-la. Quis
ser amado por ela. Quis ouvi-la dizer meu nome no escuro.
Mas esperei. Esperei até ela levantar a mão, até tocar em mim.
Os dedos dela acariciaram meu rosto e se enrolaram lentamente no
meu cabelo.
Beijei-a, e seus lábios eram frios e doces sob os meus. Ela me
abraçou, e escutei de algum lugar distante as músicas e as risadas
da festa. Eu sentia a terra tremer com as danças, sentia o cheiro de
fogo e de flores silvestres, mas só havia eu e ela deitados na grama,
banhados pelas estrelas.
Ouvi um ronco súbito.
Afastei-me, olhei para Brienna, e vi que ela estava tentando não
rir de novo. E eu teria ficado arrasado se não tivesse me dado conta
de que o ronco vinha do estômago dela.
— Desculpe — sussurrou ela. — Mas é que não como nada
desde que amanheceu.
Me limitei a sorrir, levantar e ajudá-la a ficar de pé. Brienna
espanou pedaços de grama do vestido, e vi que eu realmente havia
rasgado a saia. Desfiz o nó da nossa fita e voltamos para a luz,
onde havia começado outra rodada de corrida.
Nossos amigos nos esperavam perto da barraca de cerveja;
Oriana e Neeve tinham vencido, e Ewan estava com uma tromba
por causa disso, até que o levantei nas costas e fomos todos fazer
nossos pratos nas mesas de comida.
— Preciso achar Líle — falei para Brienna depois que saímos da
fila.
— Ela está com Jourdain — respondeu Brienna.
Ela então me levou até uma mesa comprida, onde vi minha mãe
sentada ao lado de Jourdain. E ao lado dela estava o nobre Tomas.
E, do outro lado de Tomas, estava Sean.
Meus olhos correram pela mesa, pelas pessoas reunidas ali.
MacQuinn. Lannon. Morgane. Allenach. Valenianos. Até alguns
Dermott. Pessoas que antes eram inimigas compartilhando pão e
brindando juntas.
Sentei-me de frente para minha mãe, sorri para ela, escutei as
conversas e os risos que soavam pela mesa. E pensei: Era isso que
eu desejava. É isso que a rainha traz para nossa terra, nosso povo.
Brienna estava ao meu lado, concentrada na conversa com
Oriana e Merei, quando Ewan puxou sua manga. E eu não podia
brigar com ele, não em uma noite assim. Fiquei observando pelo
canto do olho quando ele perguntou:
— Senhorita Brienna? Quer dançar comigo?
Brienna se levantou antes que eu tivesse chance de respirar e
saiu correndo com Ewan para o campo de dança. E metade da
mesa foi junto, incapaz de resistir ao canto de sereia das flautas e
dos tambores. Virei-me no banco para olhar, e, no meio de toda a
profusão de cores e movimento, meus olhos não saíram dela.
— Minha irmã é muito bonita, né? — disse Neeve, sentando-se
ao meu lado.
— É.
Neeve e eu continuamos assistindo em um silêncio confortável.
Ela então sussurrou:
— Um conselho, lorde Aodhan.
Olhei para ela, intrigado.
Neeve se levantou, mas, com um brilho espirituoso no rosto,
olhou para mim antes de ir se juntar à dança.
— É bom você lembrar que minha irmã é MacQuinn.
Só fui compreender suas palavras bem depois da meia-noite, já
nos meus aposentos no castelo. Estava me preparando para dormir
quando achei algo no bolso. Devagar, tirei de dentro a fita que havia
me amarrado a Brienna.
Foi aí que entendi.
Pensei nos Morgane; pensei no melhor da minha Casa.
Pensei em Brienna, a única filha de um lorde.
Ela era MacQuinn. E só havia um jeito de provar que eu a
merecia.
37

AO ENCONTRO DA LUZ
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn

Brienna

Quinze dias depois da coroação de Isolde, decidi que era hora de


escrever minha história. Porque em algumas manhãs, ao acordar no
castelo Fionn, e em algumas noites, ao acompanhar Isolde na sala
do trono, eu me perguntava como tudo aquilo tinha acontecido.
Sentei-me em meus aposentos em gloriosa solidão, empurrei a
mesa até as janelas e comecei a dar forma ao meu passado, com
tinta no papel, página após página, começando com meu avô e
passando pelas meninas da Casa Magnalia com quem eu havia
crescido, e que amava como irmãs.
Escrevi sobre o mestre Cartier, e o medo que tínhamos dele,
porque ele nunca sorria, até o dia em que o obriguei a se equilibrar
em cima de uma cadeira comigo, o dia em que o escutei rir pela
primeira vez.
Eu estava quase no momento em que conheci Jourdain e fiquei
sabendo da revolução, e a neve já começava a cair do outro lado da
janela, quando Luc bateu na minha porta.
— Jantar, irmã.
E me dei conta de que eu tinha passado o dia todo sem comer,
então abaixei a pena, tentei limpar a tinta dos dedos e andei até o
salão.
Jourdain sorriu ao me ver, e me sentei à esquerda dele,
enquanto Luc se sentou à sua direita. Keela se sentou com as
tecelãs, acomodada ao lado de Neeve.
Pensei no amor que eu sentia por esse lugar e por essas
pessoas e me servi uma taça de sidra.
De repente, as portas do salão se abriram e Cartier entrou em
cima do cavalo mais lindo que eu já vira.
Não sei o que me surpreendeu mais: a ousadia de entrar a
cavalo no salão de Jourdain ou o fato de que estava olhando para
mim e mais ninguém.
Esqueci que eu estava servindo a sidra e minha taça
transbordou.
Ele pegou todo mundo de surpresa. Percebi, porque meu pai
estava tão chocado quanto eu, e Luc estava boquiaberto. Neeve era
a única que não parecia perplexa. Minha irmã tentava disfarçar um
sorriso por trás dos dedos.
Cartier trouxe o cavalo até os degraus do tablado e parou ali,
com o manto de paixão pendurado às costas como se fosse um
pedaço tirado do céu, cintilando com a neve, de rosto corado pela
viagem e os olhos fixos em mim.
— Morgane? — gaguejou Jourdain, o primeiro que se recuperou
do momento.
Só então Cartier olhou para meu pai.
— Vim me oferecer como pretendente para Brienna MacQuinn.
Trago o melhor da minha casa, um cavalo Morgane, criado para
resistência e velocidade, caso ela aceite minha proposta.
Meu coração dançava, pulava e palpitava.
Jourdain se virou para mim, de olhos arregalados.
— Filha?
E eu sabia que precisava impor a Cartier o desafio impossível.
Devagar, levantei-me da cadeira e olhei para Cartier.
Ele retribuiu meu olhar; vi a chama ardendo dentro dele, vi que
ele faria aquilo do meu jeito porque queria, que procuraria pelo
tempo que fosse até achar a fita dourada.
— Tragam a tapeçaria, por favor — falei, e fiquei olhando as
tecelãs saírem para buscá-la.
Elas voltaram ao salão com a infame tapeçaria, e os homens se
esforçaram para pendurá-la pelos quatro cantos, para que os dois
lados estivessem visíveis.
Dillon se ofereceu para levar o cavalo até o estábulo e Cartier
ficou ali, esperando pacientemente até que o tapete estivesse
erguido. Cada par de olhos no recinto o encarava.
Ele olhou para mim, e eu olhei para ele.
— Em toda tapeçaria MacQuinn há uma fita dourada escondida
entre as tramas pela tecelã — falei para ele. — Traga-me a fita
dourada que se esconde nessa tapeçaria, e aceitarei seu cavalo.
Cartier abaixou a cabeça, se posicionou diante da tapeçaria e a
examinou metodicamente a partir do canto inferior direito.
Trinta minutos se passaram. E uma hora. Mas Cartier não se
apressou. Foi com calma, e, quando percebeu isso, Jourdain se
recostou na cadeira e gesticulou para seu novo intendente.
— Traga mais cerveja e uma fornada de bolos de mel. A noite
vai ser longa.

E foi mesmo.
Depois de um tempo, Ewan apareceu, corado e de olhos
arregalados, e percebi que viera correndo, com medo de perder a
comoção. Ele se sentou ao lado de Keela e ficou roendo as unhas, e
os irmãos observaram em silêncio enquanto Cartier procurava uma
fita que não queria ser encontrada.
Os MacQuinn também ficaram mais ou menos em silêncio. De
vez em quando começava uma conversa, mas ninguém saiu do
salão. Todo mundo observava o lorde do Veloz. Algumas pessoas
deitaram a cabeça na mesa e dormiram.
Com o tempo, fiquei cansada de continuar de pé e me sentei de
novo, e eu só imaginava o que Cartier estava sentindo, procurando
ali, diante de uma plateia imensa.
As janelas do leste estavam coloridas pelo sol nascente quando
Cartier finalmente encontrou a fita.
Não tirei os olhos dele em nenhum momento naquela noite, e vi
— quase sem respirar — quando seus dedos graciosos revelaram a
ponta da fita, quando ele puxou cuidadosamente até ela se soltar:
um fino brilho dourado.
Ele se virou para mim e, segurando a fita nas mãos, se ajoelhou
nos degraus do tablado.
— Antes que você decida — disse Cartier —, permita-me dizer
algumas palavras.
Luc, que antes roncava na cadeira, se empertigou. Assim como
Jourdain, que juntou os dedos e apoiou o queixo neles, tentando
disfarçar o sorriso que repuxava os cantos de sua boca.
Assenti com a voz presa no peito. Mas uma canção estava
brotando dentro de mim, uma canção que eu sabia que Cartier
também ouvia, porque seus olhos brilhavam quando ele me
encarou.
— Lembro do dia em que você me pediu para instruí-la como se
fosse ontem. Você queria se tornar mestra de conhecimento em
apenas três anos. E pensei: essa é uma garota que vai fazer algo da
vida, e quero ser a pessoa que a ajudará a conquistar esses
sonhos.
Ele parou, e fiquei com medo de que ele começasse a chorar,
porque eu também sentia minhas lágrimas se acumularem.
— No dia em que a deixei em Magnalia, quis lhe dizer quem eu
era, quis trazê-la comigo para Maevana. No entanto, não fui eu que
trouxe você. Você é que me trouxe para casa, Brienna.
Eu já estava chorando, não consegui segurar as lágrimas ao
escutá-lo.
— Eu amo o coração dentro de você — disse Cartier, sorrindo
entre as lágrimas. — Amo o espírito do qual você foi forjada,
Brienna MacQuinn. Se você fosse uma tempestade, eu me deitaria
para descansar sob sua chuva. Se fosse um rio, eu beberia de sua
correnteza. Se fosse um poema, eu jamais deixaria de ler seus
versos. Adoro a menina que você já foi e amo a mulher que você se
tornou. Case-se comigo. Lidere minhas terras e meu povo e me
tome para si.
Levantei-me e, rindo, chorando e sentindo que estava prestes a
desmoronar com tais palavras, enxuguei as lágrimas dos olhos. Mas
então respirei, me acalmei e olhei para ele, ainda ajoelhado à minha
espera, ainda segurando a fita dourada.
Parei diante dele. O salão estava em silêncio, um silêncio tão
intenso que achei que ninguém se atreveria a se mexer naquele
momento.
— Aodhan… Aodhan — sussurrei seu nome verdadeiro; explorei
a oscilação do som, e ele sorriu ao escutar.
Abaixei-me para aceitar a fita, para pegar suas mãos e fazê-lo se
levantar. Passei os dedos por seu cabelo e suspirei em seus lábios,
palavras que só ele ouviria.
— Eu te amo, Aodhan Morgane. Leve-me, pois sou sua.
Beijei-o diante do meu pai, meu irmão, minha irmã, meu povo.
Beijei-o diante de todos os olhos naquele salão. Gritos de vivas
ressoaram à nossa volta como uma névoa, até que senti a
comemoração percorrer meu corpo, até que ouvi os copos batendo
nas mesas, para propor um brinde à união dos Morgane e
MacQuinn, até que ouvi Keela gritar de felicidade e Ewan falar para
ela:
— Eu avisei! Avisei que ia acontecer!
E, quando a boca de Aodhan se abriu sob a minha, quando suas
mãos me apertaram para junto de si, esqueci todo mundo além dele.
Os sons, as vozes e os risos desapareceram até restarmos apenas
eu e Aodhan, compartilhando suspiros e carícias e semeando
promessas secretas que logo floresceriam entre nós.
Depois de um tempo, ele recuou para sussurrar junto a meus
lábios, para que só eu escutasse:
— Lady Morgane.
Sorri ao ouvir a beleza do nome. Pensei nas mulheres que o
haviam usado antes de mim — mães, esposas, irmãs.
E o tomei para mim.
A G R A D E C I M E N TO S

A escrita desta continuação foi uma experiência mágica, mas


desafiadora, e teria sido impossível sem o amor e apoio de muita
gente.
Em primeiro lugar, Suzie Townsend, minha agente incrível.
Suzie, você mudou a minha vida com um e-mail lá em 2015. Às
vezes nem consigo acreditar: agora tenho dois livros publicados
graças a você. Obrigada pelo amor e pela paixão que dedicou às
minhas histórias, por estar ao meu lado para me guiar por altos e
baixos, e por me ajudar a realizar um sonho de infância.
À equipe da New Leaf Literary — Kathleen, Mia, Veronica,
Cassandra, Joanna, Pouya e Hilary. É uma bênção enorme contar
com um grupo tão espetacular! Obrigada por toda a magia que
vocês criaram para A resistência da rainha nos Estados Unidos e no
exterior. E também a Sara, por ter lido o primeiro rascunho desta
continuação, e a Jackie e Danielle, por me acolherem com carinho
na família New Leaf.
A Karen Chaplin, minha editora maravilhosa. Você elevou minha
escrita a outro patamar, e agradeço muito pelo tempo e pelo amor
que você investiu nos meus livros. Obrigada por mergulhar de
cabeça no meu mundo e me ajudar a burilá-lo até ele brilhar. E
obrigada também pela sugestão de escrever Cartier na primeira
pessoa. Só passei a achar que seria capaz disso quando você
acreditou que eu era.
Rosemary Brosnan, obrigada por amar esta história e acreditar
nela desde o início. É uma honra fazer parte da sua equipe incrível,
e não tenho palavras para agradecer toda a orientação e ajuda.
Muito obrigada a todo mundo na HarperTeen que ajudou a
transformar meus livros em coisas lindas: Bria Ragin, pelas
observações e sugestões maravilhosas, Gina Rizzo, por todas as
oportunidades incríveis que me deu em entrevistas e viagens,
Aurora Parlagreco, por criar não apenas uma, mas capas
absolutamente deslumbrantes que ainda fazem meus olhos
marejarem, à equipe de vendas (obrigada por me ajudar a dar o
título do primeiro livro!), à equipe de publicidade, à de marketing, à
de design, e meus editores de produção. É uma grande honra
contar com sua experiência e ajuda para trazer meus livros à vida.
E, ainda, um abraço enorme e cheio de gratidão a Epic Reads, por
todo amor, e pelas fotos e vídeos que vocês criaram e
compartilharam com os leitores.
Obrigada a Jonathan Barkat, por tirar fotos tão lindas para
minhas capas, e a Virginia Allyn, pela ilustração da sobrecapa e por
criar o belo mapa do meu mundo.
Aly Hosch, o que seria de mim sem você? Obrigada por tirar
minha foto de autora e me deixar bonita apesar da garoa. Seu
entusiasmo pelos meus livros tem sido um raio de luz. Obrigada por
me ajudar a divulgar A resistência da rainha e por estar ao meu lado
durante toda esta aventura editorial.
Deanna Washington — fiz questão de colocar alguns
“candelabros” neste livro só por sua causa. Mas, sinceramente, sua
amizade inspirou muitos elementos da minha escrita. Obrigada por
ler o rascunho inicial, por estar ao meu lado em espírito mesmo
quando estamos separadas por um oceano. Você me aperfeiçoa e
me fortalece.
Bri Cavallaro e Alex Monir, minhas duas colegas de turnê da
Epic Reads! Fico muito feliz de poder sair em turnê com vocês duas.
Obrigada por todo o incentivo, pela amizade e pelos conselhos que
vocês me deram no meu ano de estreia. Victoria Aveyard, obrigada
por me deixar acompanhá-la em duas de suas incríveis paradas na
turnê de Tempestade de guerra, por fazer amizade comigo e
compartilhar da minha empolgação de autora estreante. Você é uma
inspiração para mim. Heather Lyons, fiquei tão feliz por você ter me
procurado! Obrigada pela amizade e pelo incentivo para que eu
escrevesse.
Muitas blogueiras maravilhosas elogiaram meus livros desde o
início. Um obrigada de coração para Bridget em Dark Faerie Tales e
Kristen em My Friends Are Fiction. Seu amor por A resistência da
rainha e suas fotos lindas são muito importantes para mim. Heather
em Velaris Reads — minha primeiríssima fã, que encontrei por
acaso no est de 2017. Heather, não tenho palavras para
agradecer todo seu amor e apoio.
Aos meus leitores: obrigada! É uma grande honra ter fãs tão
incríveis. Seus e-mails e suas mensagens lindas, os
#bookstagrams, seus cosplays, suas tatuagens e fanarts são o que
me dão força.
Minha família, acima de tudo, foi meu chão durante todo esse
processo. Mamãe e papai, obrigada por me ensinar a amar histórias
e me estimular a sonhar e escrever desde cedo. Aos meus irmãos e
irmãs, obrigada por ler rascunhos e compartilhar do meu
entusiasmo: Caleb, Gabe, Ruth, Mary e Luke. Agradeço
especialmente a Ted e Joy, meus sogros, e ao clã Ross. Aos meus
avós, tias, tios e primos. Todos vocês me deram apoio, e não tenho
palavras para agradecer.
Ao Pai do Céu, obrigada por me conceder o amor pelas palavras
e colocar todas essas pessoas incríveis na trajetória dos meus
livros. O meu cálice transborda. Soli Deo Gloria.
A Sierra, por me obrigar a fazer intervalos durante a escrita para
sair em passeios muito necessários. E também por tantos
arremessos de frisbee — a epifania para esta continuação
aconteceu quando eu estava sentada na varanda dos fundos,
jogando um frisbee para você. Por incrível que pareça.
E a Bem, por sonhar ao meu lado, por acreditar em mim, por me
ajudar a alcançar prazos e lançamentos, por ler meus rascunhos
bagunçados, por construir uma parede de estantes de livros para
mim. Amo você.
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços de
Imprensa S.A.
A resistência da rainha

Site da autora:
https://rebeccarossauthor.com/

Goodreads da autora:
https://www.goodreads.com/author/show/14926516.Rebecca_Ross

Instagram da autora:
https://www.instagram.com/beccajross/
A ascensão da rainha (Vol. 1)
Ross, Rebecca
9786559810253
378 páginas

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Uma rainha deve subir ao trono. Cabe a ela decidir quem.

Brienna desejava apenas duas coisas: dominar a paixão de


conhecimento e ser escolhida por um patrono. Os anos que passou
em Magnalia, uma das mais renomadas instituições de Valenia,
deveriam tê-la preparado para isso. Enquanto a maioria das
aprendizes nasce com o dom e a herança para se dedicar a uma
das cinco paixões – arte, música, teatro, sagacidade e
conhecimento –, a jovem órfã penou até encontrar seu caminho no
conhecimento, mas talvez seus estudos não tenham sido
suficientes.

Quando o fracasso parece incontornável, um senhor cheio de


segredos oferece a Brienna seu patrocínio. Ela aceita com
relutância, suspeita de suas intenções, e acaba envolvida em uma
conspiração perigosa para derrubar o rei de Maevana – o reino rival
de Valenia – e reconduzir a rainha legítima, e sua magia, ao trono.
Na iminência de uma guerra, Brienna, que é maevana por parte de
pai, deverá escolher a quem será leal: ao seu sangue ou à sua
paixão?

O primeiro livro de uma nova e emocionante trilogia de fantasia, A


ascensão da rainha vai encantar fãs de romances históricos com
magia e ação. Uma protagonista feminina forte, que descobre o
próprio valor e luta para recuperar aquilo que é seu por direito,
aprendendo que, quando se trata de poder, devemos tomar cuidado
em quem depositamos a confiança.

Rebecca Ross constrói com habilidade e maestria um universo


encantandor e fascinante, em que a magia é o coração da
sociedade e suas rígidas regras determinam o futuro de todos. A
ascensão de uma nova rainha ao poder irá abalar as estruturas dos
reinos e colocar em xeque alianças e tratados.

"Uma expansiva fantasia com empoderamento feminino. Difícil parar


de ler. Entregue essa estreia mágica a leitores que amam Academia
de Princesas, de Shannon Hale, ou a série Trono de vidro, de Sarah
J. Maas." - School Library Journal

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Box Colleen Hoover
Hoover, Colleen
9786559811533
1408 páginas

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Colleen Hoover atingiu a marca de um milhão de exemplares


vendidos no Brasil! Em comemoração, quatro de seus livros
ganharam lindas e novas capas e foram reunidos em um box
igualmente especial.

Após se tornar um fenômeno nas redes sociais, Collen Hoover ou


CoHo como é conhecida pelos fãs se firmou também como uma das
autoras mais vendidas do país. Seu estilo de romance apresenta
tramas ricas, complexas e com personagens que estão longe de
serem perfeitos, e conquistou milhares de leitores, permitindo que
Colleen ocupasse várias posições nas listas de best-sellers mais
importantes do Brasil, com três, quatro e até mais livros,
simultaneamente.

Confira os títulos escolhidos para compor a edição especial ilustrada


por Gabriella Gouveia (@gabriella.gouveia) designer carioca,
especialista em estampas, com clientes como O Botícário, Cian
candle e Hábitos que mudam:

É assim que acaba

Lily, uma jovem que se mudou de uma cidadezinha do Maine para


Boston, se formou em marketing e abriu a própria floricultura. Em
um dos terraços da nova cidade, ela conhece Ryle, um
neurocirurgião confiante, teimoso e talvez até um pouco arrogante,
com uma grande aversão a relacionamentos, mas que se sente
muito atraído por ela. Quando os dois se apaixonam, Lily se vê no
meio de um relacionamento turbulento que não é o que ela
esperava.

Todas as suas imperfeições

Quinn e Graham se conheceram no pior dia de suas vidas. Meses


após o "primeiro encontro", o casal se esbarra novamente. Graham
está convencido de que são almas gêmeas. Quinn jamais se sentiu
dessa forma antes. A intensidade do sentimento os assusta, mas
eles mergulham de cabeça mesmo assim. Tudo parece bom demais
para ser verdade. Até Quinn querer a única coisa que parece
impossível: ser mãe. Ela não pode engravidar. Ele não é um
candidato para adoção por conta de um erro do passado. O impasse
ameça colocar em risco toda a sua felicidade.

Se não fosse você

Morgan e Clara Grant são mãe e filha, mas não parecem ter muita
coisa em comum. Com personalidades incompatíveis e objetivos
divergentes, a convivência entre Morgan e Clara está cada dia mais
insustentável. A única pessoa capaz de criar um ambiente de paz é
Chris – marido de Morgan, pai de Clara, o porto seguro da família.
Mas essa paz é quebrada após um trágico acidente mudar
completamente a vida das duas. Novos segredos, ressentimentos e
mal-entendidos fazem com que as duas se afastem... será que ao
ponto de uma reaproximação se tornar improvável?

O lado feio do amor

Quando Tate Collins se muda para o apartamento do irmão, não


imagina estar prestes a viver um relacionamento em que o sexo
parece ser o único objetivo. Mas Miles Archer seduz Tate com seu
jeito misterioso e físico perfeito. O que os dois sentem não é amor à
primeira vista, mas uma atração incontrolável. Sem conseguir
resistir, Tate se entrega. Miles, no entanto, impõe duas regras: sem
perguntas sobre o passado e sem esperanças para o futuro. Ela
promete não se apaixonar, mas quando percebe, já ultrapassou
todos os limites e descobre que nenhuma regra é capaz de controlar
o amor e o desejo.

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Uma segunda chance
Hoover, Colleen
9786559811656
368 páginas

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Será que todos merecem uma segunda chance? É o que mais


deseja Kenna Rowan, na luta para recuperar os pedaços
estilhaçados de sua antiga vida após um trágico acidente ter
colocado tudo a perder. Uma segunda chance é o tão esperado
novo romance de Colleen Hoover, CoHo para os íntimos, autora
fenômeno de vendas, que já ultrapassou a marca de 1 milhão de
exemplares vendidos no Brasil.

Depois de passar cinco anos na prisão após um trágico acidente,


Kenna Rowan retorna à cidade onde tudo deu errado, esperando
poder viver ao lado da filha pequena. Mas agora os abismos criados
por Kenna parecem instransponíveis. Todos ao redor da sua filha
estão determinados a rejeitar Kenna, não importa o quanto ela tente
provar que mudou.

A única pessoa que não a ignora é Ledger Ward, dono de um bar e


um dos poucos elos que ainda lhe resta com a criança. Porém, se
os moradores da cidade desconfiarem de que Ledger vem se
tornando importante na vida de Kenna, ambos correrão o risco de
perder tudo o que mais importa para eles.

Com pontos de vista alternados entre os dois personagens, Uma


segunda chance explora o quanto julgamentos apressados
baseados em informações que podem não ser verdadeiras tem o
potencial de acabar com a vida das pessoas.
"Como sempre, a autora criou personagens fascinantes que são
magnéticos e atraem o leitor. Além da questão do luto, a história
também explora com inteligência assuntos como culpa, redenção e
perdão." - Kirkus Reviews

"Uma obra-prima tocante sobre perda e esperança, luto e redenção,


e da cura através do poder do amor." - Pop Sugar

"Hoover vai fundo na questão do luto e da culpa para criar uma


história multifacetada de redenção com personagens que brigam tão
intensamente quanto amam." - Publishers Weekly

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É assim que acaba
Hoover, Colleen
9788501113498
368 páginas

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Da autora das séries Slammed e Hopeless. Um romance sobre as


escolhas corretas nas situações mais difíceis. As coisas não foram
sempre fáceis para Lily, mas isso nunca a impediu de conquistar a
vida tão sonhada. Ela percorreu um longo caminho desde a infância,
em uma cidadezinha no Maine: se formou em marketing, mudou
para Boston e abriu a própria loja. Então, quando se sente atraída
por um lindo neurocirurgião chamado Ryle Kincaid, tudo parece
perfeito demais para ser verdade. Ryle é confiante, teimoso, talvez
até um pouco arrogante e se sente atraído por Lily. Porém, sua
grande aversão a relacionamentos é perturbadora. Além de estar
sobrecarregada com as questões sobre seu novo relacionamento,
Lily não consegue tirar Atlas Corrigan da cabeça — seu primeiro
amor e a ligação com o passado que ela deixou para trás. Ele era
seu protetor, alguém com quem tinha grande afinidade. Quando
Atlas reaparece de repente, tudo que Lily construiu com Ryle fica
em risco. Com um livro ousado e extremamente pessoal, Colleen
Hoover conta uma história arrasadora, mas também inovadora, que
não tem medo de discutir temas como abuso e violência doméstica.
Uma narrativa inesquecível sobre um amor que custa caro demais.
Compre agora e leia
Vampiros nunca envelhecem
Ahmed, Samira
9786559811625
266 páginas

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Onze histórias vampirescas inéditas contadas por algumas das mais


importantes vozes da literatura jovem.

Neste livro, editado por Zoraida Córdova e Natalie C. Parker, você


encontrará histórias sobre vampiros stalkers das redes sociais,
vampiros rebeldes famintos por mais do que apenas sangue,
vampiros ansiosos para debutar — e para arranjar sua primeira
vítima —, vampiros que não apenas saíram de seus caixões, mas
também do armário. Prepare-se para conhecer também outras
criaturas ousadas, impactantes, perigosas, deliciosas, sinistras,
icônicas e poderosas da noite.

Bem-vindos à evolução dos vampiros — e a uma revolução nas


páginas.

Vampiros nunca envelhecem traz histórias de autores best-sellers e


aclamados, incluindo Samira Ahmed, Dhonielle Clayton, Zoraida
Córdova e Natalie C. Parker, Tessa Gratton, Heidi Heilig, Julie
Murphy, Mark Oshiro, Rebecca Roanhorse, Laura Ruby, Kayla
Whale e V.E. Schwab, autora de A vida invisível de Addie LaRue,
cujo conto será adaptado para uma série que está em produção
pela Netflix.

Em "Primeira Morte", de V. E. Schwab, a vampira Juliette está à


espreita de Calliope, uma menina de seu colégio a quem ela não
consegue resistir, e acaba decidindo que ela será sua primeira
vítima, sem saber que Calliope é uma caçadora de seres
sobrenaturais, assim como sua família inteira.

Prepare o seu pescoço!

Vampiros podem não ser reais, mas eles são eternos e habitam
nossa imaginação por toda a eternidade. Eles somem, mas sempre
voltam para sugar sua atenção, afinal, vampiros nunca envelhecem!

"Fãs de vampiros, cravem seus dentes nesta coleção satisfatória."


— Kirkus Reviews

"Esta coletânea quebra barreiras com onze histórias saborosas que


superam antigos padrões, apresentando protagonistas
interseccionalmente diversos." — Publishers Weekly

"Com humor sombrio e narrativas convincentes, esta antologia


convida os leitores a reconsiderar o que sabem sobre vampiros. As
histórias são janelas pequenas e bem trabalhadas em vários
mundos vampíricos que vão deixar os leitores querendo mais. Fãs
de paranormal cravarão seus dentes neste livro." — School Library
Journal

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