A Ascensão Da Rainha - Vol.02 - A Resistencia Da Rainha - Rebecca Ross
A Ascensão Da Rainha - Vol.02 - A Resistencia Da Rainha - Rebecca Ross
A Ascensão Da Rainha - Vol.02 - A Resistencia Da Rainha - Rebecca Ross
Leonardo Alves
1ª edição
RIO DE JANEIRO
2022
EDITORA-EXECUTIVA REVISÃO
Rafaella Machado Renato Carvalho
COORDENADORA EDITORIAL DIAGRAMAÇÃO DA VERSÃO IMPRESSA
Stella Carneiro Abreu’s System
EQUIPE EDITORIAL CAPA
Juliana de Oliveira Renata Vidal
Isabel Rodrigues
TÍTULO ORIGINAL
Lígia Almeida
The Queen’s Resistance
Manoela Alves
PREPARAÇÃO
João Pedroso
R738r
Ross, Rebecca
A resistência da rainha [recurso eletrônico] / Rebecca Ross; tradução Leonardo
Alves. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Galera, 2022.
recurso digital
Produzido no Brasil
ISBN 978-65-5981-148-9
Personagens
Árvore genealógica da família Allenach
Árvore genealógica da família MacQuinn
Árvore genealógica da família Morgane
Árvore genealógica da família Kavanagh
—
1. A filha do inimigo — Brienna
2. Um rastro de sangue — Cartier
3. O recolhimento de queixas — Brienna
4. Os velozes nascem para a mais longa das noites — Cartier
5. Confissões à luz de velas — Brienna
6. A menina do manto azul — Cartier
7. Traga-me a fita dourada — Brienna
8. Cadê você, Aodhan? — Cartier
9. O gume afiado da verdade — Brienna
10. Órfão, não mais — Cartier
—
11. Meias-luas — Brienna
12. Parte amarga — Cartier
13. Dilemas noturnos — Brienna
14. Uma vez Lannon, sempre Lannon — Cartier
15. Irmãos e irmãs — Brienna
16. Cortem as cabeças — Cartier
17. Descobertas perigosas — Brienna
—
18. Siga a correnteza — Cartier
19. Ao sinal da meia-lua — Brienna
20. Uma princesa ensanguentada — Cartier
21. Lady MacQuinn — Brienna
22. Rosalie — Cartier
23. A fera — Brienna
—
24. Ultimato — Cartier
25. Derrota e esperança — Brienna
26. Filamentos ocultos — Cartier
27. Aço e pedra — Brienna
28. A torre sul — Cartier
29. Resistir — Brienna
30. Cadê você, Declan? — Cartier
—
31. Revelações — Brienna
32. O relato — Cartier
33. O dragão e o falcão — Brienna
34. Entre as trevas e a luz — Cartier
35. A rainha ascende — Brienna
36. O melhor da sua Casa — Cartier
37. Ao encontro da luz — Brienna
Agradecimentos
PERSONAGENS
OUTROS CITADOS
Allenach, o Sagaz
Kavanagh, o Brilhante
Burke, o Ancião
Lannon, o Impetuoso
Carran, o Corajoso
MacBran, o Misericordioso
Dermott, o Amado
MacCarey, o Justo
Dunn, o Sábio
MacFinley, o Pensativo
Fitzsimmons, o Gentil
MacQuinn, o Determinado
Halloran, o Decoroso
Morgane, o Veloz
A V O LTA
Outubro de 1566
1
A FILHA DO INIMIGO
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn
Brienna
UM RASTRO DE SANGUE
Território de lorde Morgane, castelo Brígh
Cartier
12 de janeiro de 1541
Kane,
O R E C O L H I M E N TO D E Q U E I X A S
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn
Brienna
O S V E L O Z E S N A S C E M PA R A A M A I S
LONGA DAS NOITES
Território de lorde Morgane, castelo Brígh
Cartier
Brienna
A última coisa que eu esperava era que uma das tecelãs viesse
bater na minha porta no fim do dia.
Eu havia conseguido anotar algumas queixas entre as mulheres
que tinham lutado comigo na batalha. Mas, depois de escutar a
conversa na tecelaria, não falei com mais ninguém. Passei o resto
do dia tentando parecer útil, tentando não comparar minha lista
humilde de queixas com o enorme tomo que Luc acumulara.
Estava mais do que disposta a ir para a cama depois do jantar.
Sentei-me diante da lareira com as meias de lã esticadas até os
joelhos e duas cartas deitadas sobre o colo. Uma era de Merei, mas
a outra era de Sean, meu meio-irmão, que eu deveria convencer a
formar uma aliança com Isolde Kavanagh. As duas chegaram à
tarde e me pegaram de surpresa: a de Merei, porque ela
provavelmente havia escrito um dia depois de sair de Maevana, e a
de Sean, porque foi completamente inesperada. A questão da
lealdade dos Allenach era uma preocupação constante na minha
cabeça, mas eu ainda não tinha decidido como lidar com ela. Então
por que será que Sean escreveu para mim por livre e espontânea
vontade?
9 de outubro de 1566,
Brienna
Sinto muito por escrever tão pouco
tempo depois da batalha, porque sei
que você ainda está tentando se
adaptar à nova casa e família. Mas
queria lhe agradecer — por ficar
comigo quando me feri, por me fazer
companhia apesar do que outras
pessoas poderiam pensar. Sua
coragem em desafiar nosso pai me
inspirou em muitos aspectos, e o
primeiro é que farei o possível para
redimir a Casa Allenach. Acredito
que haja pessoas boas aqui, mas
estou penando para descobrir um
jeito de eliminar a corrupção e a
crueldade que foram estimuladas
por décadas a fio. Acho que não sou
capaz de conseguir isso sozinho e
pensei se você estaria disposta a me
escrever, pelo menos por enquanto,
com algumas ideias e sugestões de
como devo começar a corrigir os
erros que esta Casa cometeu…
Escutei uma batida hesitante na porta. Levei um susto e me
apressei a dobrar a carta de meu irmão e escondê-la em um dos
meus livros.
Então, pelo visto, no que dizia respeito a meu irmão, não seria
muito difícil convencer os Allenach.
Guardei o sentimento de alívio ao abrir a porta e me espantei
quando vi uma jovem.
— Senhorita Brienna? — murmurou ela, e reconheci a voz.
Era doce, melodiosa e pertencia à pessoa que havia comentado
que eu era bonita quando ouvi a conversa na tecelaria.
— Pois não?
— Posso entrar?
Ela lançou um olhar pelo corredor, como se estivesse com medo
de alguém achá-la ali.
Dei um passo para trás, um convite tácito para que ela entrasse.
Fechei a porta em seguida, e fomos nos sentar diante da lareira,
lado a lado, constrangidas.
Com a boca torcida para o lado, a menina ficava revirando as
mãos pálidas e encarando o fogo. Tentei não olhar para ela. Era
magra e ossuda, tinha um cabelo louro fino, e seu rosto era
marcado por cicatrizes de varíola — pontinhos brancos como neve
sobre as bochechas.
Justo quando estava criando coragem para falar, ela virou os
olhos para mim e disse:
— Preciso pedir desculpa pelo que você ouviu hoje. Eu vi pela
janela quando você foi embora correndo. E me senti horrível, porque
você tinha ido atrás de nós, e estávamos falando de você daquele
jeito.
— Eu é que preciso pedir desculpa — falei. — Devia ter me
apresentado. Foi errado da minha parte ficar atrás da porta sem que
vocês soubessem.
Mas a menina balançou a cabeça.
— Não, senhorita. Isso não justifica nossas palavras.
Mas você foi a única a falar bem de mim, e é a única que veio
pedir perdão, pensei.
— Posso perguntar por que você foi nos ver hoje? — disse ela.
Hesitei antes de responder.
— Pode, lógico. Lorde MacQuinn pediu minha ajuda para
recolher as queixas do povo. Para levar ao julgamento dos Lannon
na semana que vem.
— Ah. — Ela parecia surpresa. Levou a mão até o cabelo e,
distraída, enrolou as pontas no dedo com uma expressão
ligeiramente franzida. — Tenho 16 anos, então Allenach foi o único
lorde que conheci. Mas as outras mulheres… elas lembram como
era antes de lorde MacQuinn fugir. A maioria das queixas delas é
contra lorde Allenach, não contra os Lannon.
Olhei para o fogo numa tentativa fraca de disfarçar o quanto
essa conversa me abalava.
— Mas você não é filha de Allenach — afirmou ela, e fui
obrigada a encará-la. — Você é filha de Davin MacQuinn. Sempre
pensei em você assim.
— Fico feliz de saber — falei. — Sei que para outras pessoas é
difícil me ver desse jeito.
Mais uma vez, fui tomada por um impulso covarde de fugir, sair
deste lugar, atravessar o canal e mergulhar em Valenia, onde
ninguém mais sabia quem era meu pai. Deixar para lá a ideia de
estabelecer uma Casa de Conhecimento aqui. Poderia fazer isso
facilmente em Valenia.
— Meu nome é Neeve — apresentou-se ela, depois de um
tempo, demonstrando estar disposta a fazer amizade comigo.
Meus olhos quase se encheram de lágrimas.
— É um prazer conhecê-la, Neeve.
— Não tenho nenhuma queixa para você anotar — confessou
ela. — Mas tem outra coisa. Queria saber se você poderia escrever
algumas lembranças minhas dos anos de trevas, para que um dia
eu possa transmitir para a minha filha. Quero que ela conheça a
história desta terra, que saiba como este lugar era antes da volta da
rainha.
Dei um sorriso.
— Eu ficaria muito feliz de fazer isso, Neeve. — Levantei-me
para pegar meus materiais de escrita e arrastei a escrivaninha até a
lareira. — O que você quer que eu registre?
— Acho que é melhor começar do começo. Meu nome é Neeve
MacQuinn. Sou filha da tecelã Lara e do toneleiro Ian, nascida na
primavera de 1550, o ano de tempestades e escuridão…
Comecei a transcrever, palavra por palavra, e fui transferindo as
lembranças dela para papel e tinta. Mergulhei em suas histórias,
pois desejava entender como havia sido a vida durante “os anos de
trevas”, que era como as pessoas ali chamavam o período da
ausência de Jourdain. E o que senti foi não apenas pesar, mas
também alívio, porque, embora Neeve tivesse sido privada de
algumas coisas, foi protegida de outras. Em nenhum momento lorde
Allenach a maltratara fisicamente, nem permitira que seus homens a
maltratassem. Na verdade, ele jamais olhara ou falara qualquer
coisa para ela. As mulheres e os homens mais velhos é que
receberam os piores castigos, para dobrá-los, aterrorizá-los,
subjugá-los, para fazê-los esquecer os MacQuinn.
— Acho que é melhor eu parar por enquanto — interrompeu ela,
depois de um tempo. — Já devo ter falado mais do que o suficiente
para você escrever.
Minha mão doía, e meu pescoço estava começando a ficar duro
de tanto me encurvar sobre a mesa. Percebi que ela falara por mais
de uma hora, e que tínhamos acumulado vinte páginas de sua vida.
Abaixei a pena, alonguei os dedos para trás e me atrevi a dizer:
— Neeve? Você quer aprender a ler e escrever?
Atônita, ela piscou.
— Ah, acho que eu não teria tempo, senhorita.
— Podemos arranjar tempo.
Neeve sorriu, como se eu tivesse acendido uma chama dentro
dela.
— Sim, quero sim, quero muito! Só que… — A alegria dela
murchou. — Podemos manter as aulas em segredo? Pelo menos
por enquanto?
Não posso negar que fiquei triste com o pedido, pois sabia que
ela não queria que outros descobrissem que estávamos passando
tempo juntas. Mas aí pensei de novo em formas de me provar para
os MacQuinn — eu precisava ter paciência, deixar que confiassem
em mim no próprio tempo — e sorri, juntando as folhas e
entregando para Neeve.
— Que tal começarmos amanhã à noite? Depois do jantar? E,
sim, podemos manter em segredo.
Neeve assentiu. Ela arregalou os olhos ao pegar as folhas,
observar minha escrita e acompanhar as linhas com a ponta do
dedo.
E, olhando para ela, não pude deixar de pensar no que eu havia
escutado de manhã. Acho que ela é parte valeniana, dissera uma
das tecelãs sobre mim. Elas me consideravam uma sulista ou uma
Allenach. Eu receava que isso sempre acabasse me isolando dos
MacQuinn, por mais que eu tentasse me provar.
— Neeve — falei, com uma ideia na cabeça. — Talvez você
possa me ensinar algo em troca.
Ela olhou para mim, espantada.
— Hã?
— Quero saber mais sobre os MacQuinn, suas crenças, seu
folclore, suas tradições.
Quero me tornar uma de vocês, quase implorei. Me ensine.
Graças a Cartier e seus ensinamentos na Casa Magnalia, eu já
possuía conhecimento teórico sobre a Casa MacQuinn. Conhecia a
parte da história que podia ser lida em volumes velhos e
empoeirados. A Casa recebeu a bênção do Determinado, seu
brasão era um falcão, as cores eram lavanda e dourado, e o povo
era respeitado como os tecelões mais habilidosos do reino. Mas o
que me faltava era o conhecimento do povo, as normas sociais dos
MacQuinn. Como eram os cortejos? Os casamentos? Os funerais?
Que tipo de comida serviam em festas de aniversário? Será que
tinham superstições? Como era a etiqueta?
— Não sei se sou a melhor pessoa para ensinar essas coisas —
respondeu Neeve, mas vi o quanto ela gostou de meu pedido.
— Que tal você me contar uma das suas tradições preferidas
dos MacQuinn? — sugeri.
Neeve ficou calada por um instante, até que um sorriso se abriu
em seus lábios.
— Você sabia que, se decidirmos nos casar com alguém de fora
da Casa MacQuinn, temos que escolher a pessoa com uma fita?
Fiquei intrigada na mesma hora.
— Uma fita?
— Talvez seja melhor dizer que a fita é que escolhe por nós —
disse Neeve. — É um teste, para que possamos determinar quem
fora da nossa Casa é digno.
Recostei-me na cadeira, à espera de mais.
— A tradição começou há muito tempo — disse Neeve. — Não
sei se você conhece nossas tapeçarias…
— Ouvi falar que os MacQuinn são conhecidos como os
melhores tecelões de Maevana.
— É. Tanto que começamos a esconder uma fita dourada nas
tramas das nossas tapeçarias. Uma tecelã habilidosa consegue
fazer a fita desaparecer no desenho, é muito difícil de achar.
— Então todas as tapeçarias dos MacQuinn têm uma fita
escondida? — perguntei, ainda muito confusa com o que isso tinha
a ver com a escolha de um parceiro.
O sorriso de Neeve se abriu ainda mais.
— É. E foi assim que a tradição começou. O primeiro lorde
MacQuinn tinha só uma filha, e ele a amava tanto que não
acreditava que nenhum homem, MacQuinn ou não, seria digno dela.
Então ele mandou as tecelãs esconderem uma fita em uma
tapeçaria que estavam fazendo, pois sabia que só o homem mais
dedicado e decidido a encontraria. Quando a filha do lorde atingiu a
maioridade, homens e mais homens vieram ao salão, desesperados
para conquistá-la. Mas lorde MacQuinn mandou trazerem a
tapeçaria, e sua filha desafiou os homens a lhe trazer a fita dourada
escondida na trama. E, homem após homem, ninguém achou.
Quando o vigésimo moço se apresentou, lorde MacQuinn achou que
o rapaz duraria só uma hora. Mas o homem ficou no salão por uma
hora, procurando, e uma hora virou duas, até que a noite deu lugar
ao amanhecer. Quando o sol raiou, o homem puxou a fita da
tapeçaria. Era um Burke, por incrível que pareça, e, mesmo assim,
lorde MacQuinn disse que ele mais do que merecia se casar com
sua filha, se ela quisesse.
— E ela quis? — perguntei.
— Evidente. E é por isso que, até hoje, nós da Casa MacQuinn
pensamos duas vezes antes de desafiar os Burke a qualquer
competição, porque eles são um pessoal bem teimoso.
Dei uma risada e o som inspirou Neeve a me acompanhar, e
acabamos enxugando os olhos na frente da lareira. Eu nem
conseguia lembrar da última vez que me sentira tão leve.
— Acho que gostei dessa tradição — comentei, depois de um
tempo.
— É. E você devia usá-la, se decidir escolher alguém fora da
Casa MacQuinn — declarou Neeve. — Quer dizer, a menos que o
elegante lorde Morgane já seja sua paquera secreta.
Meu sorriso cresceu, e senti o rosto esquentar. Ela
provavelmente percebeu na noite anterior, quando Cartier se
sentara ao meu lado no jantar. Neeve arqueou as sobrancelhas para
mim, esperando.
— Lorde Morgane é um velho amigo meu — revelei, por fim. —
Ele foi meu instrutor em Valenia.
— Para a paixão? — perguntou Neeve. — O que isso significa,
exatamente?
Comecei a explicar, e por dentro tive medo de que ela fosse
achar que o estudo de paixões era uma frivolidade. Mas Neeve
parecia ávida para saber, assim como eu estava em relação às
tradições deles. Eu teria continuado a conversa até tarde da noite se
não tivéssemos escutado vozes no corredor. Ela pareceu se
espantar com o som, lembrando que estava ali em meus aposentos
em segredo, e que já fazia bem mais de uma hora.
— Acho que é melhor eu ir embora — anunciou Neeve,
abraçando o maço de papel junto ao coração. — Antes que deem
pela minha falta.
Nós nos levantamos juntas, e tínhamos quase a mesma altura.
— Obrigada, senhorita, por escrever isto para mim — sussurrou
ela.
— Não tem de quê, Neeve. A gente se vê amanhã à noite,
então?
Ela assentiu com a cabeça e se esgueirou silenciosamente para
o corredor, como se fosse só uma sombra.
Meu corpo estava exausto, mas minha mente fervilhava com o
que havia acabado de acontecer, com tudo que Neeve me contara.
Eu sabia que, se me deitasse, o sono não ia chegar. Então joguei
mais uma tora no fogo e me sentei diante da lareira, ainda com a
mesa na minha frente, com papel, pena e tinta. Peguei a carta de
Merei e a abri com cuidado, rasgando o selo de cera de nota
musical sob a unha.
Querida Bri,
A M E N I N A D O M A N TO A Z U L
Território de lorde Morgane, castelo Brígh
Cartier
— Convidei lady e lorde Dermott para ficarem aqui semana que vem
— falei para Aileen certa manhã, enquanto o julgamento dos Lannon
se aproximava a cada dia.
— Lady e lorde Dermott? — repetiu Aileen, com uma voz
ligeiramente aguda demais para o meu gosto. — Aqui?
Nós dois olhamos para as janelas quebradas e os cômodos
vazios à nossa volta.
Eu havia escrito para os Dermott e os convidado a se hospedar
no castelo Brígh durante a viagem para o julgamento. E achei que
tinha calculado bem o tempo para terminar de restaurar o castelo
para receber visitas, assim como preparar meus planos para
convencê-los a anunciar publicamente uma aliança com a rainha.
Mas, pela expressão no rosto de Aileen… percebi que eu tinha dado
um passo maior do que as pernas.
— Desculpe — falei logo. — Sei que não estamos em condições
de receber visitas no momento.
Quis acrescentar: mas é que esta aliança precisa acontecer
rápido, mas, diante das sobrancelhas arqueadas de Aileen, engoli
as palavras antes que elas saíssem.
— Isso significa que você está me designando a intendente do
castelo? — perguntou, com um sorriso sutil nos olhos.
— Estou, Aileen.
— Então não se preocupe, lorde Aodhan — declarou ela,
tocando no meu braço. — Vamos deixar este castelo pronto em sete
dias.
À tarde, eu estava no escritório com o nobre Seamus, e nós dois
tentávamos decidir como consertar o buraco no telhado quando
Tomas entrou pulando em um pé só, com a outra perna, do pé
ferido, dobrada para trás.
— Milorde — disse o menino, puxando minha manga. — Tem…
— Garoto, não puxe a manga do lorde — censurou Seamus,
com delicadeza, e o rosto de Tomas ficou vermelho enquanto ele
pulava para trás e ficava a uma distância adequada.
— Não tem problema — falei, olhando para Tomas. O menino
tinha dado uma sumida nos últimos dois dias, como se estivesse
abalado pela quantidade de gente que havia agora no castelo. —
Vou terminar aqui, e depois conversamos.
Tomas fez que sim e saiu saltitando do escritório. Fiquei olhando
para ele e reparei que seus ombros estavam encurvados.
— Milorde Aodhan, você precisa ensinar jovens como ele a
respeitá-lo — sugeriu Seamus, suspirando. — Caso contrário, ele
sempre será impertinente.
— É, bom, até onde eu sei, ele é órfão — comentei. — E quero
que se sinta em casa conosco.
Seamus não falou nada. E me perguntei se era errado pensar
assim — eu não sabia nada sobre educação de crianças —, mas
não tinha tempo para ficar ponderando. Voltei ao assunto do
conserto do telhado e guardei Tomas em um canto da mente.
Meia hora depois, Seamus saiu para acompanhar a reforma da
cervejaria, a uns quinze minutos de viagem a cavalo, mas ainda
dentro da propriedade, depois de Aileen reclamar que “não
podemos receber lady e lorde Dermott aqui sem uma cerveja
decente”. Não dava para criticá-la por priorizar bebida acima de
camas e janelas de vidro, então saí do escritório em busca de
Tomas. O menino parecia desaparecer sempre que queria, sumindo
nas sombras e encontrando os melhores esconderijos.
Fui ao salão primeiro, onde algumas das mulheres trabalhavam
em uma mesa comprida, em volta de uma jarra de chá, costurando
cortinas e colchas para os aposentos de visitantes. Os risos delas
se calaram quando cheguei, e seus olhares se abrandaram
conforme eu me aproximava.
— Boa tarde. Viram Tomas? — perguntei. — Ele tem mais ou
menos esta altura e cabelo ruivo.
— Vimos, sim, lorde Aodhan — respondeu uma das mulheres,
empurrando uma agulha pelo tecido. — Ele está com a menina do
manto azul.
Brienna.
Fiquei espantado; foi como se meu coração estivesse amarrado
em um barbante e me puxasse só de pensar nela.
— Obrigado — agradeci, e saí às pressas do salão, ouvindo as
mulheres cochicharem atrás de mim quando cheguei ao pátio.
Dali, fui correndo para os estábulos, mas não vi sinal de Brienna.
Um dos cavalariços me informou de que ela havia acabado de
passar ali com Tomas, conversando sobre bolos de mel, então voltei
ao castelo pela cozinha, onde uma bandeja de bolos de mel esfriava
na janela, e deu para ver que faltavam dois…
Voltei para o escritório, com passos leves no chão de pedra, e
ouvi a voz de Brienna pairar pelo corredor conforme ela falava com
Tomas.
— Então eu comecei a cavar, bem embaixo da árvore.
— Com as mãos? — perguntou Tomas, ansioso.
— Não, bobinho. Com uma pá. Eu tinha guardado no bolso, e…
— No bolso? Vestidos têm bolso?
— Claro que têm. Você acha que as mulheres não precisam de
um lugar para esconder umas coisinhas?
— Acho que sim. O que aconteceu depois? — insistiu Tomas.
— Cavei até achar o medalhão.
Abri a porta levemente, quase hesitante quanto a interromper
esse momento. A porta rangeu, como tudo no castelo, alertando-os
para a minha chegada, e parei no limiar, olhando para eles.
Não havia móveis no escritório. Brienna e Tomas estavam
sentados no chão, debaixo de um círculo de luz do sol, com as
pernas esticadas para a frente e apoiados nas mãos atrás das
costas.
Brienna parou de falar quando olhou para mim.
— Eu tentei avisar, milorde! — disse Tomas, às pressas, como
se estivesse com medo de levar bronca. — A senhorita Brienna
chegou, mas você me mandou embora antes.
— Sim, e peço desculpa, Tomas — falei, juntando-me à roda
deles no chão. — Da próxima vez, vou prestar atenção.
— Você está doente, milorde? — O menino franziu a testa ao me
examinar. — Parece que está com febre.
Soltei uma risadinha e enxuguei a testa de novo.
— Não, não estou doente. Só andei pela propriedade inteira
atrás de vocês dois.
— Eu a trouxe aqui para você, milorde.
— Aham. Então eu devia ter esperado aqui. — Meus olhos se
voltaram automaticamente para Brienna.
O cabelo caía sobre os ombros, e seu rosto estava corado da
viagem, com um brilho nos olhos. O manto estava amarrado na
gola; o azul-escuro se expandia ao seu redor e refestelava na luz.
— Eu estava contando para Tomas a história de quando achei a
pedra — informou ela, com um tom divertido.
— E o que aconteceu depois? — insistiu Tomas, chamando a
atenção dela de novo.
— Bom, a Pedra do Anoitecer estava dentro do medalhão —
continuou Brienna. — E tive que escondê-la no meu… ahn, no meu
vestido.
— No bolso, você quer dizer? — sugeriu Tomas, apoiando o
queixo na palma da mão.
— É. Por aí.
Ela olhou de relance para mim, com um sorriso maroto.
— Como é a pedra? — perguntou ele.
— Parece uma pedra da lua grande.
— Já vi algumas pedras da lua — comentou o menino. — Que
mais?
— A Pedra do Anoitecer muda de cor. Acho que ela interpreta o
humor da pessoa que a usa.
— Mas só os Kavanagh conseguem usar sem o medalhão, né?
— É — concordou Brienna. — Ela queimaria pessoas como você
e eu.
Tomas finalmente se calou, refletindo sobre o que havíamos
falado. Meus olhos foram de novo para Brienna, e sugeri com um
tom suave:
— Tomas? Que tal você ir para a cozinha ver se a cozinheira
precisa de ajuda?
O menino grunhiu.
— Mas quero ouvir o resto da história da senhorita Brienna.
— Vai ter outro dia para histórias. Vá agora.
Tomas se levantou bufando e saiu aos pulos.
— Você devia arrumar uma muleta pequena antes que ele
arrebente os pontos que você deu — sugeriu Brienna. — Tive que
carregá-lo nas costas.
— Você o quê?
— Não fique tão surpreso, Cartier. O menino é pele e osso.
O silêncio entre nós se alongou. Senti uma pontada de culpa.
— Não sei de quem ele é — falei, enfim. — Eu o encontrei
algumas noites atrás. Acho que ele estava dormindo aqui.
— Talvez um dia ele diga de onde veio — respondeu Brienna.
Suspirei, apoiei-me nas mãos e olhei de novo para ela. Soou um
eco de algo batendo, seguido pelo grito distante da cozinheira. Ouvi
Tomas retrucar com outro grito atrevido e gemi.
— Não sei o que estou fazendo, Brienna. — Fechei os olhos,
sentindo de novo aquele peso. O peso da terra, o peso do povo, o
peso da aliança com Dermott, o peso do julgamento iminente.
Meses antes, eu jamais teria me imaginado nessa situação.
Brienna chegou mais perto; ouvi o sussurro de seu vestido,
senti-a cobrir o sol ao se sentar na minha frente e pôr as mãos nos
meus joelhos. Abri os olhos e vi a luz formar uma coroa nela, e por
um instante havia só nós dois no mundo, e mais ninguém.
— Não existe manual para isso — declarou Brienna. — Mas seu
povo se reuniu a sua volta, Cartier. São pessoas maravilhosas e
dedicadas. Ninguém espera que você tenha todas as respostas,
nem que assuma sua função hoje. Vai levar tempo.
Eu não sabia o que dizer, mas suas palavras me acalmaram.
Peguei as mãos dela nas minhas — palmas alinhadas, dedos
entrelaçados. Reparei nas manchas de tinta na mão direita.
— Você andou escrevendo, pelo visto.
Ela deu um sorriso melancólico.
— É. Jourdain me pediu para começar a juntar queixas.
Isso me pegou um pouco de surpresa. Parecia cedo demais para
compilar essas trevas. Tínhamos acabado de voltar para casa e
recuperar a vida que devíamos ter. Mas então lembrei que faltavam
meros dias para o julgamento. É evidente que eu também deveria
reunir as queixas do meu povo. E deveria redigir as minhas próprias.
Portanto, eu precisaria confrontar plenamente os detalhes do que
acontecera naquela noite. Porque, embora soubesse de parte da
verdade, eu não sabia tudo. Não sabia quem desferira o golpe letal
na minha irmã, nem a dimensão completa da violência cometida
contra o povo Morgane.
E tinha também a carta de minha mãe, que eu ainda mantinha
no bolso, sem saber como lidar com ela. Eu tinha sangue Lannon
nas veias; será que precisava reconhecer essa verdade, ou ocultá-
la?
Larguei esses pensamentos e vi que Brienna estava me
observando.
— Você já anotou muitas queixas? — perguntei.
— Luc juntou um belo calhamaço.
— E por que você não?
Ela desviou o olhar, e uma desconfiança sombria começou a
obscurecer minha mente.
— Brienna… fale.
— O que posso dizer, Cartier?
E ela deu um sorriso amarelo, do tipo que não alcançava os
olhos.
— Você nunca foi boa em teatro — lembrei.
— Não é nada, juro.
Ela tentou tirar as mãos das minhas, mas segurei com mais
força.
Se ela não ia falar, então eu falaria.
— O povo de Jourdain não está aceitando você bem.
Sabia que era verdade porque vi uma fagulha de dor em seus
olhos antes que ela a cobrisse com irritação.
— O que disseram para você, Brienna? — insisti, sentindo a
raiva crescer só de imaginar. — Foram grosseiros?
— Não. É o que eu devia ter esperado — rebateu ela, como se
quisesse defendê-los, como se a culpa fosse dela, como se ela
pudesse controlar as próprias origens.
— Jourdain sabe?
— Não. E peço que você não conte para ele, Cartier.
— Você não acha que seu pai deveria saber que o povo dele a
está ofendendo? Que o povo está ofendendo a filha dele?
— Ninguém está me ofendendo. E, se estivesse, eu não ia
querer que Jourdain soubesse. — Ela soltou minhas mãos, se
levantou e virou-se para a janela. — Ele já tem muito com que se
preocupar. E acho que você sabe como é.
Eu sabia. Porém, acima de tudo, queria que Brienna se sentisse
em casa aqui. Isso era quase a sombra de todos os meus outros
pensamentos — que ela fosse aceita, que fosse feliz. Queria que ela
recuperasse seu lar em Maevana, esta terra selvagem da qual ela e
eu só havíamos falado em nossas aulas. Metade de sua história
estava neste solo, e para mim não fazia a menor diferença o
território onde ela nascera.
Fiquei de pé e espanei a poeira das calças. Fui até ela devagar,
parando pouco atrás, só para conseguir sentir seu calor.
Continuamos em silêncio, contemplando a terra além do vidro
quebrado, as campinas, florestas e colinas que se tornavam
montanhas.
— Eles me consideram uma Allenach. Não uma MacQuinn —
confessou, em voz baixa. — Acham que ludibriei o lorde a me
adotar.
Fiquei arrasado ao vê-la admitir isso. Poderia ter falado inúmeras
coisas em resposta, principalmente que eu nunca a considerara
uma Allenach, que sempre a vira como a pessoa que ela era: filha
de Maevana e amiga querida da rainha. Mas contive minhas
palavras.
Finalmente ela se virou para mim e ergueu os olhos para encarar
os meus.
— Eles só precisam de um pouco mais de tempo — murmurou
ela. — Tempo para que a lembrança do meu pai de sangue se
dissipe, para que eu possa me provar para eles.
Ela tinha razão. Todos precisávamos de tempo — tempo para
nos acomodar, tempo para nos curar, tempo para descobrir quem
deveríamos ser.
E a única coisa que consegui dizer foi seu nome, como se fosse
uma prece:
— Brienna.
Minha mão subiu; meus dedos acompanharam a linha do maxilar
dela. Queria guardá-la na memória, explorar seus contornos e
curvas. Mas meus dedos pararam em seu queixo, inclinaram o rosto
dela para cima e vi o sol dançar em suas bochechas.
Brienna prendeu o fôlego, e abaixei o rosto para soltá-lo. Beijei-a
de leve uma vez, duas vezes, até que ela abriu a boca sob a minha
e descobri que estava tão sedenta quanto eu. De repente, minhas
mãos foram para seu cabelo, meus dedos se emaranharam nos fios
sedosos, perdidos no desejo de me entregar completamente.
— Cartier. — Ela tentou falar meu nome; sorvi o som de seus
lábios.
Senti as mãos dela subirem pelas minhas costas, agarrarem
minha camisa e a puxarem. Estava me alertando, porque agora eu
escutava o som alto de passos arrastados, perto da porta do
escritório.
Com esforço, me afastei dela, conseguindo respirar apenas o
suficiente para sussurrar:
— Você tem gosto de bolo de mel roubado, Brienna MacQuinn.
Ela sorriu, e seus olhos estavam rindo.
— O lorde do Veloz não deixa nada escapar, não é?
— Não quando o assunto é você.
Dei mais um beijo ousado nela, antes que quem quer que fosse
chegasse ao escritório, mas algo pontudo fez pressão na minha
perna. Surpreso, inclinei o corpo para trás e deslizei a mão até a
saia dela, até sua coxa. Senti o formato rígido de um punhal sob o
tecido e fitei seus olhos, sem dizer nada, mas extremamente
satisfeito por ela ter uma arma oculta.
— Sabe como é — comentou ela, gaguejando. Seu rosto corou.
— Nós, mulheres, não podemos esconder tudo nos bolsos, né?
7
T R A G A - M E A F I TA D O U R A D A
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn
Brienna
Cartier
Brienna
Cartier
MEIAS-LUAS
A caminho de Lyonesse, fronteira entre os territórios de MacQuinn e
Morgane
Brienna
PA R T E A M A R G A
Castelo real de Lyonesse, território de lorde Burke
Três dias para o julgamento
Cartier
DILEMAS NOTURNOS
Três dias para o julgamento
Brienna
Cartier
IRMÃOS E IRMÃS
Dois dias para o julgamento
Brienna
CORTEM AS CABEÇAS
Dia do julgamento
Cartier
D E S C O B E R TA S P E R I G O S A S
A noite após o julgamento
Brienna
SIGA A CORRENTEZA
Cartier
AO SINAL DA MEIA-LUA
Brienna
U M A P R I N C E S A E N S A N G U E N TA D A
Cartier
* * *
LADY MACQUINN
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn
Brienna
ROSALIE
Cidade real de Lyonesse, território de lorde Burke
Cartier
A FERA
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn
Brienna
U LT I M ATO
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn
Cartier
D E R R O TA E E S P E R A N Ç A
Brienna
F I L A M E N TO S O C U LTO S
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn
Cartier
Sete dias.
Tínhamos sete dias para descobrir onde Declan estava
mantendo Brienna em cativeiro. Porque não íamos entregar a Pedra
do Anoitecer.
Eu estava reunido com o círculo de confiança de Isolde, e
discutimos até tarde da noite: trocar ou não a pedra. Mas acabamos
chegando a um consenso: não podíamos confiar em Declan. Havia
grandes chances de ele nos enganar, de pegar a pedra e matar
Isolde e Brienna mesmo assim. O local que ele exigira — o ponto
onde a Floresta Mairenna e o Vale de Ossos se encontravam —
ficava em território Allenach, e eu não tinha a menor dúvida de que
Declan se abrigaria nas árvores, onde poderia esconder uma força
formidável atrás de si.
Havíamos decidido não negociar com ele desde o início do
levante, então não negociaríamos agora. Além do mais, abrir mão
da pedra para ele seria um gesto enorme de derrota, que fatalmente
levaria à nossa destruição.
Mesmo assim… eu queria trocar a pedra por Brienna. Queria
com tanta intensidade que tive que passar a maior parte da noite de
boca fechada.
Com o tempo, ficamos exaustos demais para continuar
planejando.
Jourdain providenciara aposentos de hóspedes para nós, mas
ninguém me impediu de voltar ao quarto de Brienna. Tirei as botas e
o manto, larguei-os pelo chão atrás de mim e me enfiei nas cobertas
frias dela, apoiando meu corpo no lugar onde ela estivera,
respirando a lembrança dela.
Como encontro você?
Fiz essa prece, repetidamente, até não restar em mim nada além
de ossos e uma vaga dor no peito, e me afundei em sonhos.
Eu a vi acompanhada da minha mãe e da minha irmã nas
campinas do castelo Brígh. Havia flores no cabelo dela, risos em
sua voz, e o sol brilhava com tanta intensidade que era difícil
distinguir seu rosto. Mas eu sabia que era Brienna, caminhando com
Líle e Ashling Morgane. Sabia porque conhecia de cor o jeito como
ela andava, como se mexia.
— Não perca as esperanças, Cartier — sussurrou ela para mim,
de repente nas minhas costas, envolvendo-me com os braços. —
Não chore por mim.
— Brienna. — Quando me virei para abraçá-la, ela se
transformou em luz e poeira, e tentei desesperadamente segurar o
vento, segurar a sombra dela no chão. — Brienna.
Falei o nome dela em voz alta e acordei sobressaltado.
Ainda estava escuro. E eu não tinha condições de ficar deitado
ali nem mais um instante e ponderar sobre o sonho que me disse
que Brienna estava mais próxima da minha mãe e da minha irmã do
que de mim.
Levantei-me e, inquieto, comecei a andar pelos corredores do
castelo. Fazia silêncio, e, depois de um tempo, perambulei até o
salão pouco iluminado. A bagunça que Jourdain fizera havia sido
arrumada: endireitaram as mesas e varreram o chão. Parei um
pouco na frente da lareira para sentir o calor das brasas, até que me
lembrei do nobre Liam.
Precisávamos que aquele homem se recuperasse
completamente, que acordasse e nos dissesse o que havia visto.
Oculto nas sombras, comecei a andar até o quarto de Liam
quando notei Thorn vir pelo outro lado do salão, com o rosto
grosseiro iluminado por uma vela. Vi o intendente entrar no quarto
de Liam e fechar a porta atrás de si sem fazer barulho.
Então nós dois pensamos a mesma coisa.
Fui até a porta e prendi a respiração ao aproximar a orelha da
madeira.
Ouvi um tumulto, um homem chiando.
Abri a porta de repente e vi o intendente empurrando um
travesseiro no rosto de Liam, e os pés do nobre, que estava quase
morrendo sufocado, tremiam.
— Thorn! O que você está fazendo? — gritei, indo na direção
dele.
Thorn se sobressaltou e arregalou os olhos ao me encarar. Ele
logo sacou um punhal, avançou para cima de mim, quase me
pegando de surpresa.
Por reflexo, bloqueei o golpe com o antebraço e empurrei Thorn
para o outro lado do quarto. Ele caiu na mesa lateral e derrubou os
equipamentos da curandeira. Vidros de ervas se espatifaram no
chão quando Thorn tentou se equilibrar, ainda com o punhal
brilhando na mão. Ele arreganhou os dentes tortos, e foi espantosa
a transformação daquele velho intendente ranzinza em um oponente
formidável. Segurei-o pelo pulso e torci seu braço até ele soltar um
grito de dor e seus dedos serem obrigados a largar a arma.
Derrubei-o no chão e me sentei em cima dele.
— Não sei de nada — atreveu-se a balbuciar.
Puxei a manga dele, revelando o sinal de meia-lua. Ele tremeu
de choque, por ver que eu sabia o que procurar, e ficou imóvel.
— Cadê ela? — perguntei.
— N-não sei.
— Não é essa a resposta que eu quero.
E quebrei o seu pulso.
Ele deu um berro que certamente acordaria o castelo. E eu só
conseguia pensar que havia acabado de quebrar os ossos frágeis
por trás daquela meia-lua, e que continuaria fazendo isso até ele
dizer onde Brienna estava.
— Cadê. Ela?
— Não sei para onde ele a levou! — gritou, gaguejando. — Por
favor, lorde Aodhan. Eu… eu realmente não sei!
— Quem a levou? — murmurei.
E quando ele balbuciou, sem conseguir articular as palavras,
dobrei o pulso quebrado para trás.
Ele deu outro grito, e dessa vez escutei vozes no corredor.
Jourdain se aproximava. Ele ia me impedir. Ia me arrancar de cima
do intendente. Então, peguei o outro pulso de Thorn e me preparei
para quebrá-lo também.
— Quem. A. Levou?
— O Chifre Vermelho! — exclamou Thorn. — O Chifre Vermelho
a levou. É só isso… é só isso que posso dizer.
Vi o quarto se iluminar com velas, ouvi a voz surpresa de
Jourdain e senti o chão tremer quando ele veio até mim.
Thorn chorava e exclamava “Lorde MacQuinn! Lorde
MacQuinn!”, como se eu o tivesse atacado, aquele covarde
asqueroso.
— Aodhan! Aodhan, pelos deuses! — declarou Jourdain,
tentando me tirar de cima do intendente.
Mas minha cabeça estava a mil. O Chifre Vermelho. Quem era o
Chifre Vermelho?
— Quem é o Chifre Vermelho, Thorn? — insisti.
A mão de Jourdain apertou mais meu ombro. Ele piscou e
encarou Thorn, como se o enxergasse sob uma luz diferente.
Luc entrou correndo no quarto, seguido de perto por Isolde. Eles
me cercaram e me encararam com olhos arregalados, até que virei
o pulso quebrado de Thorn para cima e revelei a meia-lua.
— Acabei de achar um rato.
Jourdain encarou Thorn por um instante, e diversas emoções
passaram por seu rosto. Por fim, com uma voz neutra, ele disse:
— Amarrem-no em uma cadeira.
Ficamos em volta dele, tentando extrair respostas. Achei que o
velho cederia, especialmente quando Jourdain ofereceu poupar sua
vida. Mas Thorn resistiu. Havia confessado o envolvimento do Chifre
Vermelho, mas suas revelações não passariam disso. O único jeito
de obrigá-lo a falar seria espancando-o, e Jourdain não queria saber
de violência.
— Quero que você ajude Luc e Sean a solucionar o mistério do
Chifre Vermelho — murmurou ele para mim. — Eles estão no
escritório, tentando entender.
Fiquei quieto por um instante. Jourdain continuou me olhando,
com uma expressão preocupada no rosto.
— Posso arrancar a resposta dele — falei. — Se você deixar.
— Não quero que você se transforme nisso, Aodhan.
Minha irritação foi às alturas, e respondi:
— A vida de Brienna depende disto, MacQuinn.
— Não se atreva a dizer para mim do que a vida da minha filha
depende — rosnou Jourdain, e sua compostura finalmente trepidou.
— Não aja como se fosse a única pessoa angustiada com ela.
Ao ver o tom de desdém de Jourdain comigo, pensei: estávamos
começando a nos voltar uns contra os outros. Estávamos exaustos,
arrasados, perdidos. Deveríamos entregar a pedra. Não deveríamos
entregar a pedra. Deveríamos entrar em acordo com Thorn.
Deveríamos espancar Thorn. Deveríamos puxar as mangas de todo
mundo. Não deveríamos invadir a privacidade de ninguém.
O que era certo, o que era errado?
Como resgataríamos Brienna se ficássemos com medo demais
de sujar as mãos?
Deixei Jourdain no corredor e fui para o escritório, onde Luc e
Sean estavam recurvados acima do mapa, com doces parcialmente
comidos em seus pratos de café da manhã, falando o que para mim
não fazia o menor sentido.
— Fale todos os vermelhos — disse Luc, mergulhando uma
pena na tinta e se preparando para escrever.
— Burke tem vermelho — começou Sean, examinando o mapa.
— MacFinley tem vermelho. Dermott, Kavanagh e… Fitzsimmons.
— Do que vocês estão falando? — perguntei, e eles pararam e
olharam para mim.
— Quais Casas têm a cor vermelha — respondeu Luc.
Fui até a mesa e me sentei com eles.
— Acho que cores de Casas são algo óbvio demais.
— Então o que você sugere? — retrucou Luc.
— Vocês estão no caminho certo, Luc — falei, com calma. — A
cor vermelha é relevante. Mas só vai ser relevante para a Casa à
qual o Chifre Vermelho pertence.
Luc jogou a pena na mesa.
— Então por que estamos fazendo isto? É perda de tempo!
Sem falar nada, Sean recolheu um punhado de anotações que
estavam reunindo. Dei uma olhada para ler, comentários sobre
chifres, berrantes, desenhos de berrantes, os vários significados por
trás das notas produzidas por cornetas. Trombetas, clarins e
sacabuxas. Só instrumentos. E claro que Luc pensaria em
instrumentos ao ouvir falar de chifres, já que ele era músico.
Mas não foi isso que imaginei.
E estava prestes a expressar meus pensamentos quando ouvi
um barulho no pátio, do lado de fora da janela.
— Pelos deuses — sussurrei, embaçando o vidro com minha
respiração.
— O que foi, Aodhan? — perguntou Luc, esquecendo a raiva de
mim.
Virei-me para ele.
— É Grainne Dermott.
* * *
AÇO E PEDRA
Território de lady Halloran, castelo Lerah
Brienna
A TO R R E S U L
A caminho do castelo Lerah, território de lorde MacQuinn
Cartier
RESISTIR
Território de lady Halloran, castelo Lerah
Brienna
Cartier
REVELAÇÕES
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn
Brienna
Cartier,
O R E L ATO
Território de lorde Burke, castelo real
Cartier
Parecia um sonho o dia que levei minha mãe de volta para as terras
de Morgane. Eu havia escrito uma carta para Aileen, a intendente,
para dar a notícia e pedir que ela mantivesse o povo calmo quando
eu chegasse. Mas, claro, eu devia ter imaginado que haveria uma
festa à nossa espera. Os Morgane, que não tinham reputação de
povo muito sentimental, se ajoelharam ao vê-la sair da carruagem.
Choraram, riram e tentaram pegar sua mão, o que certamente a
assustou. Deu para ver que minha mãe estava a um passo do
pânico, e tive que conduzir o povo para o salão e pedir que todos se
sentassem em silêncio às mesas, para que eu pudesse trazê-la até
eles. Até Ewan parecia emocionado, agarrado em mim até eu
mandá-lo ficar com Derry e os pedreiros.
— Diga se estiver sendo demais para você — sussurrei para
Líle, que continuava parada no pátio, olhando para o castelo Brígh.
O que será que estaria passando pela cabeça dela? Será que
estava pensando no meu pai, na minha irmã?
Ela falou comigo pela mão, uma longa e elegante série de
movimentos que eu ainda não entendia. Achei que estivesse
expressando a intensidade da situação, que não quisesse ver o
povo no salão.
— Posso levá-la para seus aposentos imediatamente — falei,
com delicadeza, mas ela balançou a cabeça e usou os dedos de
novo para formar palavras. — Quer ir para o salão, então?
Ela fez que sim, mas fiquei com a sensação de que eu ainda não
havia captado o cerne do que ela estava tentando dizer.
Peguei na mão dela e a levei para dentro de Brígh. Aileen nos
esperava no saguão, e ela quase não conseguia se conter ao ver
Líle.
Ela abaixou a cabeça e disse:
— Milady.
E percebi que ela estava se esforçando ao máximo para não
chorar.
Líle estendeu a mão, com um sorriso afetuoso para Aileen, e as
duas se abraçaram. Virei o rosto para lhes dar um momento de
privacidade.
Entramos juntos no salão, e os Morgane fizeram o possível para
continuar quietos e calmos. Mas todos ficaram imóveis ao vê-la e a
acompanharam com os olhos até o tablado, onde puxei minha
cadeira para ela se sentar à mesa.
Sentei-me ao lado da minha mãe e a observei cuidadosamente,
atento a qualquer inquietação. Mas ela só olhou para o salão, com
ternura e afeto no rosto ao reconhecer velhos amigos.
Ela gesticulou para mim que queria escrever.
Aileen saiu às pressas atrás de papel, pena e tinta antes que eu
sequer tivesse chance de me levantar da cadeira para buscar. A
intendente voltou logo depois e deixou tudo diante de Líle, e minha
mãe começou a escrever. Agora eu sabia por que a letra dela era
tão ruim. Ela era canhota, e Gilroy decepara sua mão esquerda.
Sem pressa, ela escreveu um parágrafo, empurrou a folha para mim
e indicou que eu devia ler.
Peguei o pergaminho, me levantei e obriguei minha voz a ficar
firme.
— “Aos Morgane. Estou cheia de alegria por vê-los de novo e
gostaria de expressar minha admiração por vocês, que resistiram a
um período tenebroso e se mantiveram fiéis a seu lorde. Não posso
falar com a boca, mas posso com a mão, e pretendo conversar com
cada um de vocês nos próximos dias. Mas só tenho um pedido a
fazer: não me tratem por lady. Não sou mais lady Morgane. Sou
apenas Líle.”
Abaixei o papel e engoli o nó que havia na minha garganta. Os
Morgane ergueram seus copos para ela, assentindo com a cabeça,
mas alguns ainda exibiam uma expressão confusa no rosto, como
se não conseguissem separar o título do nome.
E, de repente, entendi o que ela estivera tentando me dizer no
pátio.
Não sou mais lady Morgane. Sou apenas Líle.
Aodhan,
O D R A G Ã O E O FA L C Ã O
Castelo real de Lyonesse, território de lorde Burke
Novembro de 1566
Brienna
E N T R E A S T R E VA S E A L U Z
Mistwood, território de lorde Burke
Cartier
A RAINHA ASCENDE
Mistwood, território de lorde Burke
Brienna
Cartier
AO ENCONTRO DA LUZ
Território de lorde MacQuinn, castelo Fionn
Brienna
E foi mesmo.
Depois de um tempo, Ewan apareceu, corado e de olhos
arregalados, e percebi que viera correndo, com medo de perder a
comoção. Ele se sentou ao lado de Keela e ficou roendo as unhas, e
os irmãos observaram em silêncio enquanto Cartier procurava uma
fita que não queria ser encontrada.
Os MacQuinn também ficaram mais ou menos em silêncio. De
vez em quando começava uma conversa, mas ninguém saiu do
salão. Todo mundo observava o lorde do Veloz. Algumas pessoas
deitaram a cabeça na mesa e dormiram.
Com o tempo, fiquei cansada de continuar de pé e me sentei de
novo, e eu só imaginava o que Cartier estava sentindo, procurando
ali, diante de uma plateia imensa.
As janelas do leste estavam coloridas pelo sol nascente quando
Cartier finalmente encontrou a fita.
Não tirei os olhos dele em nenhum momento naquela noite, e vi
— quase sem respirar — quando seus dedos graciosos revelaram a
ponta da fita, quando ele puxou cuidadosamente até ela se soltar:
um fino brilho dourado.
Ele se virou para mim e, segurando a fita nas mãos, se ajoelhou
nos degraus do tablado.
— Antes que você decida — disse Cartier —, permita-me dizer
algumas palavras.
Luc, que antes roncava na cadeira, se empertigou. Assim como
Jourdain, que juntou os dedos e apoiou o queixo neles, tentando
disfarçar o sorriso que repuxava os cantos de sua boca.
Assenti com a voz presa no peito. Mas uma canção estava
brotando dentro de mim, uma canção que eu sabia que Cartier
também ouvia, porque seus olhos brilhavam quando ele me
encarou.
— Lembro do dia em que você me pediu para instruí-la como se
fosse ontem. Você queria se tornar mestra de conhecimento em
apenas três anos. E pensei: essa é uma garota que vai fazer algo da
vida, e quero ser a pessoa que a ajudará a conquistar esses
sonhos.
Ele parou, e fiquei com medo de que ele começasse a chorar,
porque eu também sentia minhas lágrimas se acumularem.
— No dia em que a deixei em Magnalia, quis lhe dizer quem eu
era, quis trazê-la comigo para Maevana. No entanto, não fui eu que
trouxe você. Você é que me trouxe para casa, Brienna.
Eu já estava chorando, não consegui segurar as lágrimas ao
escutá-lo.
— Eu amo o coração dentro de você — disse Cartier, sorrindo
entre as lágrimas. — Amo o espírito do qual você foi forjada,
Brienna MacQuinn. Se você fosse uma tempestade, eu me deitaria
para descansar sob sua chuva. Se fosse um rio, eu beberia de sua
correnteza. Se fosse um poema, eu jamais deixaria de ler seus
versos. Adoro a menina que você já foi e amo a mulher que você se
tornou. Case-se comigo. Lidere minhas terras e meu povo e me
tome para si.
Levantei-me e, rindo, chorando e sentindo que estava prestes a
desmoronar com tais palavras, enxuguei as lágrimas dos olhos. Mas
então respirei, me acalmei e olhei para ele, ainda ajoelhado à minha
espera, ainda segurando a fita dourada.
Parei diante dele. O salão estava em silêncio, um silêncio tão
intenso que achei que ninguém se atreveria a se mexer naquele
momento.
— Aodhan… Aodhan — sussurrei seu nome verdadeiro; explorei
a oscilação do som, e ele sorriu ao escutar.
Abaixei-me para aceitar a fita, para pegar suas mãos e fazê-lo se
levantar. Passei os dedos por seu cabelo e suspirei em seus lábios,
palavras que só ele ouviria.
— Eu te amo, Aodhan Morgane. Leve-me, pois sou sua.
Beijei-o diante do meu pai, meu irmão, minha irmã, meu povo.
Beijei-o diante de todos os olhos naquele salão. Gritos de vivas
ressoaram à nossa volta como uma névoa, até que senti a
comemoração percorrer meu corpo, até que ouvi os copos batendo
nas mesas, para propor um brinde à união dos Morgane e
MacQuinn, até que ouvi Keela gritar de felicidade e Ewan falar para
ela:
— Eu avisei! Avisei que ia acontecer!
E, quando a boca de Aodhan se abriu sob a minha, quando suas
mãos me apertaram para junto de si, esqueci todo mundo além dele.
Os sons, as vozes e os risos desapareceram até restarmos apenas
eu e Aodhan, compartilhando suspiros e carícias e semeando
promessas secretas que logo floresceriam entre nós.
Depois de um tempo, ele recuou para sussurrar junto a meus
lábios, para que só eu escutasse:
— Lady Morgane.
Sorri ao ouvir a beleza do nome. Pensei nas mulheres que o
haviam usado antes de mim — mães, esposas, irmãs.
E o tomei para mim.
A G R A D E C I M E N TO S
Site da autora:
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Goodreads da autora:
https://www.goodreads.com/author/show/14926516.Rebecca_Ross
Instagram da autora:
https://www.instagram.com/beccajross/
A ascensão da rainha (Vol. 1)
Ross, Rebecca
9786559810253
378 páginas
Morgan e Clara Grant são mãe e filha, mas não parecem ter muita
coisa em comum. Com personalidades incompatíveis e objetivos
divergentes, a convivência entre Morgan e Clara está cada dia mais
insustentável. A única pessoa capaz de criar um ambiente de paz é
Chris – marido de Morgan, pai de Clara, o porto seguro da família.
Mas essa paz é quebrada após um trágico acidente mudar
completamente a vida das duas. Novos segredos, ressentimentos e
mal-entendidos fazem com que as duas se afastem... será que ao
ponto de uma reaproximação se tornar improvável?
Vampiros podem não ser reais, mas eles são eternos e habitam
nossa imaginação por toda a eternidade. Eles somem, mas sempre
voltam para sugar sua atenção, afinal, vampiros nunca envelhecem!