20 Anos Sem Milton Santos

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 81

Vinte anos sem Milton Santos:

o Brasil continua a ser um país distorcido


EDITORA DO IFBA – EDIFBA

Luzia Matos Mota


Reitora

Ivanildo Antônio dos Santos


Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação

Andréia Santos Ribeiro Silva


Coordenadora Geral

Zunéia de Jesus Barros Reis


Assistente de Coordenação

Carmen Asfora e Silva Freire


Secretária Executiva

Conselho Editorial

Titulares
Celso Eduardo Brito
Deise Danielle Neves Dias Piau
Durval de Almeida Souza
Fabrício Menezes Ramos
Guillermo Alberto Lopez
Jeferson Gabriel da Encarnação Coutinho
Manoel Nunes Cavalcanti Junior
Mariana Rocha Santos Costa
Tereza Kelly Gomes Carneiro

Suplentes
Adriana Vieira dos Santos
Catarina Ferreira Silveira
Eliana Evangelista Batista
Flávio de Ligório Silva
Maurício Andrade Nascimento
Valter de Carvalho Dias
INSTITUTO FEDERAL DA BAHIA

Sebastião Cerqueira Neto. (Org.)

Vinte anos sem Milton Santos:


o Brasil continua a ser um país distorcido

EDIFBA
Salvador
2023
©2023, Direitos desta edição cedidos à EDIFBA.

CAPA
LEOMIR COSTA DE OLIVEIRA
REVISÃO
VIVIANE SILVA DOS SANTOS
PROJETO GRÁFICO
SIMONE DE PAULA LOPES

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Sistema Integrado de Bibliotecas SIB-IFBA

I123v Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia.


Vinte anos sem Milton Santos: o Brasil continua a ser um país
distorcido / Sebastião Cerqueira Neto. (Org.). - Salvador: EDIFBA, 2022.
104 p.

e-ISBN: 978-65-88985-12-0
ISBN (versão impressa)

1. Revisão bibliográfica-Milton Santos. 2. Ciência. 3. Interesses -


-mercado. 4. Pandemia. I. IFBA. II. EDIFBA.

CDU:013(911.3)
Elaboração da ficha catalográfica pelas Bibliotecárias do SIB-IFBA
Andréia Ribeiro - CRB-5/1466 e Rita Fonseca CRB-5/1474

Editora Filiada à
Vinte anos sem Milton Santos:
e o Brasil continua a ser um país distorcido

Sebastião Cerqueira Neto (org.)


José André Ribeiro
Leonardo Thompson da Silva
Ricardo Almeida Cunha
Ricardo Rodrigues Mendes

Prefácio 1
Prof. Dr. João Luís de Jesus Fernandes – Geógrafo da Universidade de Coimbra

Prefácio 2
Prof.ª Dra. Suely Regina Del Grossi – Geógrafa aposentada pela Universidade Federal de Uberlândia

Salvador – BA
2023
Agradecimentos

Ao Instituto Federal da Bahia que, por meio da EDIFBA, nos proporciona a oportunidade de
divulgar os resultados das nossas pesquisas em todas as áreas do conhecimento. No caso desta obra,
na área de Ciências Humanas.
Sumário

1 Apresentação....................................................................................................................................9

2 Como Milton Santos explicaria o Brasil neste momento de pandemia?.........................................12

3 A ciência e a tecnologia na visão de Milton Santos.........................................................................22

4 O trabalho do geógrafo frente ao sistema do Comitê de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de

Ética em Pesquisa: uma proposta de discussão...................................................................................32

5 É preciso matar Milton Santos! Por quê?........................................................................................47

6 A ditadura militar e a negação da mobilidade de nossos intelectuais: o caso de Josué de Castro...57

7 Territórios de espera, um não-lugar de esperança?..........................................................................64

8 Considerações finais: As ideias de Milton Santos vão continuar florescendo.................................71


Prefácio 1

O nosso percurso é feito por cruzamentos e ciclos que se fecham. O primeiro encontro
com Milton Santos ocorreu no final da década de 80, no então Instituto de Estudos Geográficos da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Estudante da licenciatura em Geografia, lemos e analisámos o livro “As Cidades dos
Países Subdesenvolvidos”. Recém-chegados ao ensino superior, na época ainda com poucas viagens
fora de Portugal e de uma escassa área fronteiriça de Espanha, esta obra foi uma descoberta e uma in-
dagação sobre um mundo urbano desconhecido em rápida transformação, marcado por desequilíbrios
estruturais, fragmentações, desigualdades e injustiças espaciais.
Foi num dos corredores deste mesmo Instituto, hoje denominado Departamento de Geo-
grafia e Turismo, que em 2015 ocorreu o nosso primeiro encontro com Sebastião Cerqueira Neto. A
proximidade pessoal e também a afinidade científica foram imediatas.
Naquela ocasião, Cerqueira Neto brindou-nos com a oferta de uma obra entusiasmante,
“Do isolamento regional à globalização: Contradições sobre o desenvolvimento do Extremo Sul da
Bahia”, um trabalho revelador das suas preocupações científicas, humanas e sociais, também atraves-
sado pelo pensamento e pelas geografias de Milton Santos.
É impossível traduzir em poucas palavras as ideias de fundo que encontrámos nessa obra
e que se revelam agora neste seu novo livro. Talvez tudo se possa sintetizar nesta ideia: A globaliza-
ção é um processo complexo com efeitos territoriais muito heterogéneos e potencialmente fragiliza-
dores para as populações mais frágeis e vulneráveis.
Nesse sentido, a obra que Sebastião Cerqueira Neto aqui nos coloca à disposição, orga-
nizada por ocasião dos 20 anos da morte de Milton Santos, não surge como fruto do acaso. É, sim, o
resultado de um longo processo de maturação intelectual, de trabalho de equipa e de experiências de
terreno.
Entretanto, nas nossas caminhadas científicas e nas experiências vividas em muitos lu-
gares do planeta, fomos sempre encontrando e reencontrando o pensamento e os questionamentos de
Milton Santos, que Cerqueira Neto agora nos lembra e reaviva.
Em 2015, na licenciatura em Geografia na Universidade de Coimbra, foi criada a unidade
curricular Geografia da Globalização e Desenvolvimento, na qual foram matriciais a biografia, o per-
curso e as obras do geógrafo baiano nascido em 1926.
O livro “Por uma outra globalização” foi uma referência num conjunto de matérias que
discutiram as desigualdades, as contradições, as relações assimétricas de poder, as territorialidades
múltiplas e as geografias da injustiça que acompanharam um processo no qual, como esta obra nos
recorda, o capital parece sobrepor-se à condição humana.
O presente livro, organizado por Sebastião Cerqueira Neto com textos do próprio e/ou
com a colaboração de outros atores, é um entrelaçamento de todas estas questões.
As perspectivas são variadas, os pontos de vista muito díspares, mas existe um fluxo
contínuo de ideias e questionamentos que une todo o conjunto – Milton Santos continua a ser uma
referência e o Brasil é um fecundo laboratório de análise territorial.
5
O trabalho, agora publicado, não esquece um tema, talvez o grande tema da contempo-
raneidade – a pandemia. Também não sabemos o que nos diria Milton Santos neste momento, mas
conseguimos conjecturar o questionamento do geógrafo sobre a difícil relação entre os interesses do
mercado e a defesa da saúde pública, sobretudo em países, como o Brasil, nos quais a capacidade de
confinamento e o risco de exposição ao vírus se revelaram social e espacialmente assimétricos.
Esse distanciamento em relação a comunidades humanas que se vão tornando mais opa-
cas é também discutido a propósito da ciência e da tecnologia, que Milton Santos já antecipava como
um domínio de inovação distanciada e pouco sensível aos respetivos efeitos sociais.
É na sequência dessa preocupação que a obra de Cerqueira Neto questiona um sistema de
apoio desequilibrado à investigação científica que, sendo apontado ao Brasil, se revela uma tendência
generalizada. Neste modelo, o domínio das humanidades e das ciências sociais parte em desvanta-
gem relativamente a outras áreas do saber, sobretudo aquelas categorizadas no conhecimento técnico,
exato e laboratorial.
Talvez por tudo isso se denunciem riscos epistemológicos como o esquecimento de Mil-
ton Santos e dos autores, como Josué de Castro, que o antecederam e colocaram as pessoas e a socie-
dade humana no centro das suas preocupações.
Como se deduz pela leitura desta obra, o empobrecimento analítico e reflexivo pode não
passar apenas pelo apagamento dos intelectuais, mas acontece também pela omissão do trabalho de
campo, uma aproximação metodológica fundamental para perceber, na sua maior amplitude, as con-
tradições do sistema.
Sem este pisar do solo não se retirarão da sombra territorialidades opacas como as expe-
rienciadas pelas populações migrantes nos tempos suspensos dos denominados territórios de espera.
Aqui, em campos formais ou informais de trânsito mais ou menos prolongado, em cartografias como
o norte de África e o sul da Europa, materializam-se as assimetrias e as linhas abissais tão caras ao
pensamento de Milton Santos e às preocupações demonstradas por Cerqueira Neto, que dedica um
capítulo a este tema.
O livro que temos agora em mãos é, por tudo isto, um trabalho que nos questiona, que nos
recupera e resgata para uma imprescindível trajetória de pensamento crítico.
Os tempos presentes dão-nos sinais evidentes que a tendência de fundo é a concentração
do poder económico e político. Este facto confere atualidade e relevância aos trabalhos que não se
ficam pelas águas superficiais de um rio. Este quadro de polarização exige análises que não se limitem
ao diagnóstico dos sintomas, mas que vão mais longe, à raiz dos problemas.
Revisitar Milton Santos, com os olhos do século XXI e a sagacidade destes autores, é uma
experiência aliciante que muito nos ajuda a compreender o mundo contemporâneo.
Por todos os seus méritos, esta obra organizada por Sebastião Cerqueira Neto passará a
ser de consulta e citação obrigatórias.

Prof. Dr. João Luís Jesus Fernandes


Professor do Departamento de Geografia e Turismo da Universidade de Coimbra - Portugal

6
Prefácio 2

Não é tarefa fácil escrever e apresentar Sebastião Cerqueira Neto, organizador e autor
dessa obra que presta homenagem à Milton Santos. Difícil porque, meu olhar sobre o autor é para
além do científico, mas, sobretudo de afetividade e admiração.
O relato que aqui escrevo é o avesso das relações entre orientador e orientando, mostrando
que é possível estabelecer relações de amizade no transcorrer da pesquisa. Não sou capaz, portanto, de
fazer uma apresentação técnica com o rigor da ciência, senão uma apresentação subjetiva.
Sebastião me enche de orgulho e me faz voltar no fim da década de 90, quando o conheci
no início do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia. Te-
nho na memória o jovem Sebastião recém-chegado da Universidade Estadual do Tocantins, cheio de
sonhos, ávido de conhecimento e com grande empenho no estudo. O que eu tinha para oferecer a esse
jovem? Como professora, também estava sonhando e disposta a enfrentar a nova realidade, ou seja,
os primeiros passos de orientação na pós-graduação stricto sensu.
Na época, minha linha e pesquisa se associava à geomorfologia urbana, mas estava aberta
a outras especialidades, especialmente por acreditar na capacidade da ciência geográfica em oferecer
subsídios ao território em estudos regionais.
Nos primeiros colóquios de orientação ao Sebastião, propus a apresentação de produtos
técnicos próprios da geografia física e cartográfica. Percebi então, um pequeno hiato nessa sua forma-
ção específica. No entanto, o que faltava ali, sobrava na aptidão pela leitura, encantamento por Milton
Santos e o amor à sua terra natal: Nanuque.
Aí estavam os principais ingredientes da pesquisa!
Deixei de lado o interesse por uma pesquisa técnica e propus um estudo geográfico aos
moldes regionais clássicos franceses como uma contribuição à sua terra natal. A partir daí, Sebastião
começou a me trazer o material coletado: fotos, reportagens, histórias, bibliografias regionais; a cada
informação, também me apaixonava por essas Minas Gerais que eu pouco conhecia.
Sebastião queria compreender cada vez mais a paisagem da sua Nanuque e, especialmen-
te, as mazelas da sociedade ali existente: a exploração das madeireiras, as mudanças antrópicas e os
impactos na navegação fluvial regional, as populações indígenas...
Posso afirmar que sua busca continuou incessante: do mestrado para o doutorado e ao pós-
-doutorado. A cada nova publicação, nos engrandece com conhecimento e interpretação da realidade,
sem perder a humildade e o comprometimento com a ciência.
Aprendi muito com o Sebastião. Conheci as outras Gerais e o sul da Bahia através de suas
publicações. Ao longo desses anos, embora não temos encontrado fisicamente, tenho sua presença
constante.
Durante o seu período do mestrado, Sebastião tornou-se um agregado na minha família e
ele nunca se esqueceu disso. Sempre com o carinho, comunicava cada passo de seu sucesso acadêmi-
co. As notícias sempre vinham carregadas de muito entusiasmo: “Professora, passei no doutorado...
Professora, meu livro foi publicado... vou fazer pós-doutorado com Boaventura Santos...”. Essas

7
notícias proporcionavam alegria e admiração a mim e ao meu saudoso esposo João Michelotto, que
também sempre o incentivou.
Por fim, esse livro vem coroar um trabalho iniciado e amadurecido há muitos anos.
Se pudesse acessar a transcendência, entregaria pessoalmente o trabalho do Sebastião ao
Professor Milton Santos e diria que a árvore do conhecimento gera frutos especiais como essa obra.
Em poucas palavras, deixo aqui minha admiração e respeito ao amigo e eterno aluno Se-
bastião Cerqueira Neto.

Prof.ª Dra. Suely Regina Del Grossi


Geógrafa aposentada da Universidade Federal de Uberlândia

8
Apresentação

No ano de 2021, completou-se 20 anos da morte física do geógrafo baiano Milton Santos,
ganhador do Prêmio Vautrin Lud (que é a mais alta honraria na área de Geografia). Contudo, sua obra
parece não só possuir ainda uma atual relevância teórico-metodológica, como também o seu olhar
crítico consegue penetrar a fundo nos nossos atuais dilemas “geográficos”. Por isso, a proposta do
compêndio de artigos que agora apresentamos ao leitor se caracteriza não somente como uma home-
nagem ao pensamento crítico de um dos geógrafos mais relevantes do mundo, mas sobretudo como
uma tentativa de aplicação dos elementos críticos que compõem sua obra. Nem precisamos relembrar
que Milton Santos foi um intelectual que esteve à frente do seu tempo, principalmente quando anteci-
pou o que poderia estar por vir nos dilemas político-sociais do Brasil e do mundo, caso sucumbissem
ao processo de globalização, cujo mote de ação nada mais é do que alçar o capital a uma escala hierár-
quica acima do ser humano. Como se sabe, a perversidade social da globalização neoliberal se conso-
lidou, tornando-se hegemônica, fenômeno já sutilmente delineado na analítica de Milton Santos. No
Brasil, especificamente, podemos percebê-la sobretudo neste que decorre da pandemia da COVID-19
de 2020, que, na sua fase mais aguda, ou mesmo agora, depois da vacinação, escancarou elementos
de uma dicotomia sutil entre economia e vida. Como observamos no desenrolar dos acontecimentos
atuais, a vida foi colocada de maneira vil, abaixo dos apelos constantes da economia. Além disso,
até na esfera científica se prevaleceu as hierarquias, de qualificar ou quantificar a importância de
uma determinada área, em detrimento das outras, já que as próprias estratificações epistêmicas so-
brevalorizam os ditames do mercado. Neste contexto, as Ciências Humanas ainda são vistas como
subciências, frente às ciências que se dedicam a produzir para um mercado que busca se salvar a todo
custo das limitações impostas pela pandemia. E o mais grave: no Brasil, o que se observa é não só a
continuidade na produção territórios opacos, mas um aumento expressivo dos problemas que tornam
cada vez maior o número de homens e mulheres lentos.
Desse modo, amparados e, ao mesmo tempo, comungando com a indignação da obra de
Milton Santos diante dessa dinâmica desigual perversa, implantada nos territórios nas suas diferentes
escalas, reunimos aqui neste livro alguns artigos e ensaios curtos (tanto já publicados em revistas
científicas e revistos, assim como outros ainda inéditos) com o intuito de exercitar reflexões atuais a
partir do espectro teórico da obra miltoniana.
O primeiro texto intitulado “Como Milton Santos explicaria o Brasil neste momento de
Pandemia?”1 é um esforço no sentido de tentar interpretar como o pensador analisaria o efeito da pan-
demia pelos territórios. Certamente, é impossível transcrever literalmente como Milton Santos iria
analisar o cenário de pandemia provocada pela Covid-19. Não teríamos como adivinhar ou prever a
sua reação, tanto como intelectual, quanto ser humano. Todavia, para quem conhece a obra de Milton
Santos e a sua postura crítica diante de crises, é possível sinalizar que ele diria que ainda vivemos num
país distorcido e repleto de espaços divididos. Indubitavelmente ele mostraria com indignação como,
mesmo diante de uma emergência sanitária incomum, continua a se seguir um modelo administrativo
que replica estrangeirismos, cujas ações descoladas de nossas características sociais, ambientais e
1 Artigo que terá publicação no ano de 2022 na Revista Interespaço, da Universidade Federal do Maranhão.
9
econômicas, estampam um mimetismo que não consegue dar conta das necessidades peculiares da
população brasileira. Para tanto, o trabalho selecionou parte do pensamento de Milton Santos com o
objetivo de produzir uma reflexão que contribua para decodificar a dinâmica atual imposta ao terri-
tório pela Covid-19, e mostrando a necessidade de se pensar num reordenamento político-adminis-
trativo do Brasil. Afinal, como nos ensinou o geógrafo, a crítica só tem relevância se apresentarmos
uma proposta para reverter o que está posto como modelo equívoco de gerenciamento do território.
No segundo texto, “A ciência e a tecnologia na visão de Milton Santos”2, coloca-se o
resultado de uma pesquisa que foi desenvolvida em conjunto com uma bolsista do Programa Institu-
cional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), na qual o principal objetivo foi apontar o papel das
ciências e, ao mesmo tempo, mostrar como os resultados de projetos desenvolvidos nas instituições
públicas de ensino não chegam para o uso em massa da população, seja no campo da medicina ou
em produtos que visem mitigar o uso de elementos naturais. Não é fácil produzir críticas sobre um
tema que parece ser incontestável para grande parte da sociedade mundial. Certamente, o desenvol-
vimento da ciência e da tecnologia não é acessível a todos os povos do planeta da mesma forma e
com a mesma velocidade. Entre todas as suas análises, Milton Santos foi um dos maiores críticos do
desenvolvimento da tecnologia e da ciência como atividades desconectadas dos problemas sociais.
Neste trabalho, procurou-se explicitar a necessidade de repensar os caminhos da ciência brasileira,
pois, num mundo onde a ciência e a tecnologia são partes integrantes do desenvolvimento do país,
torna-se fundamental compreender quais são os seus fins e objetivos.
No terceiro texto, “O trabalho do geógrafo frente ao sistema do Comitê de Ética em Pes-
quisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa: uma proposta de discussão”, aborda-se a equidade
entre as ciências no que se refere à exigência de um projeto que tem como característica principal
o contato com pessoas e tal como ele deve ser submetido ao sistema CEP/CONEP. O texto, voltado
para as Ciências Humanas, mostra o quanto um pesquisador é exigido num processo que sempre
foi natural, sobretudo nas pesquisas de campo; isto é, o contato com as pessoas. Uma das principais
características do pesquisador que se dedica a estudar a dinâmica do território é o seu intenso traba-
lho de campo. A imersão no território e o contato com as comunidades participantes da pesquisa são
fundamentais para uma análise que tem como objetivo principal colocar em relevo a diversidade terri-
torial e os abismos socioeconômicos existentes num país. Entretanto, as resoluções da Comissão Na-
cional de Ética em Pesquisa (CONEP) estabelecem regras que comprometem o relacionamento entre
o pesquisador e o território, sobrepondo uma metodologia de pesquisa. A frieza dessas resoluções,
com certeza, inibe a produção de pesquisas relevantes. Este texto pretende colaborar numa reflexão
que coloca em debate a metodologia científica nas pesquisas da Geografia Humana e as resoluções da
CONEP, sobretudo a Resolução 510, que é direcionada para as Ciências Humanas e Sociais.
Em É preciso matar Milton Santos! Por quê? apresenta-se um ensaio que narra experiên-
cia de um professor em uma banca de defesa de tese, na qual um dos componentes proferiu a seguinte
frase: “é preciso matar Milton Santos”. Diante da perplexidade gerada pela frase, ainda mais em um
contexto acadêmico, pensamos que é sempre necessário expor, nos mais diversos contextos, qual a
importância da contribuição de Milton Santos para a Geografia, desde a escala local até a global, bem
como para o campo das ciências humanas como um todo. Por isso, vislumbramos que a obra de Mil-
ton Santos não se restringe a um fenômeno de referências para trabalhos acadêmicos, mas se constitui

2 Publicado pelo organizador originalmente na Revista Geotextos vol. 13, n. 2, dezembro 2017.
10
como uma forma de pensamento vivo, que contribui metodologicamente para que possamos enfrentar
criticamente as nossas mazelas políticas e sociais. Neste sentido, a frase foi o mote que incentivou a
escrita deste breve ensaio, que busca mostrar o quanto os pesquisadores brasileiros devem estar aten-
tos para as novas formas de colonização, inclusive através da proposição da “morte” dos intelectuais
que se dedicam a decifrar a dinâmica do terceiro mundo.
No quinto capítulo, “A ditadura militar e a negação da mobilidade de nossos intelectuais:
o caso de Josué de Castro”3, propõe-se a abordar a obra de Josué de Castro, que aparece aqui como
um ponto de consonância com o pensamento de Milton Santos. Como se sabe, Milton Santos nutria
uma admiração pela capacidade de clarividência presente, tantos nos trabalhos científicos, quanto nas
análises críticas de Josué de Castro, nas quais ele elaborou um diagnóstico sobre a dinâmica do terri-
tório, nas diversas escalas: regional, nacional e global. Nas obras “Geografia da Fome e Geopolítica
da Fome”, Josué de Castro expõe o pior mal que pode atingir uma sociedade: a fome. Para além do
caráter científico, esses dois livros também podem ser considerados como canais de denúncia contra
o modelo político e de governança que caracteriza o capitalismo global, que promove a miséria e
ameaça a condição alimentar de milhares de pessoas no planeta. Por conseguinte, este texto não se
resume a uma exposição das ideias apresentadas nessas obras, mas é uma forma de relatar a atuação
político-social de Josué de Castro enquanto médico, geógrafo, político, diplomata, tendo como base o
documentário “Josué de Castro: cidadão do mundo” (1994), no qual percebemos, que, assim como a
maioria dos intelectuais brasileiros, Josué de Castro foi forçado a deixar o Brasil no período da dita-
dura militar no país; o que, de modo algum, impediu que a sua força intelectual resistisse à arbitrarie-
dade política e ultrapassasse as barreiras geográficas, sendo, por isso, uma forma de pensamento livre.
No sexto capítulo, “Territórios de espera, um não-lugar de esperança?” fez-se uma aná-
lise do artigo “Território se espera e o fluxo recente de migrantes clandestinos na Europa. O caso
particular do Campo de Jungle, em Calais (França)” produzido pelo geógrafo português João Luís
Fernandes. O objetivo é mostrar, a partir do texto de Fernandes, como as migrações de pessoas é um
tema inquietante para a Geografia, que se esforça para interpretar as causas dessa dinâmica, cujos
diversos vetores promovem sua ocorrência. Para Fernandes, a situação humanitária no acampamento
da cidade de Calais, denominado “selva”, mostra qual é o tipo de risco que as pessoas assumem ao
se arriscaram a entrar de forma clandestina no continente europeu, particularmente. Como se sabe, os
territórios de espera podem estar presentes por toda a parte do mundo, em diferentes configurações.
Por isso, Fernandes nos leva a pensar na existência de um não-lugar como um território de esperança,
principalmente na busca de uma vida melhor. Em consonância com isso, vemos como Milton Santos
foi um dos intelectuais de alcance global que corajosamente elaborou críticas severas no que tange
aos povos que foram espoliados no período das grandes colonizações e que nunca puderam pleitear
uma moradia digna nos países que os colonizaram. Neste sentido, a reflexão proposta pelo Fernandes
se alinha com o pensamento crítico de Milton Santos, no que se refere às dificuldades que os pobres
no mundo todo têm para ultrapassar os limites territoriais em busca do “paraíso”.
No último texto do livro, “As ideias de Milton Santos vão continuar florescendo”, os pes-
quisadores do Grupo de Pesquisa Observatório Milton Santos, mostram porque vale a pena e porque
é preciso continuar desenvolvendo pesquisas através do legado intelectual e do pensamento de Milton
Santos.

3 Texto publicado na Revista Geoliterart/USP em 2021.


11
Como Milton Santos explicaria o Brasil neste momento de pandemia?

Sebastião Cerqueira-Neto4
Leonardo Thompson da Silva5
José André Ribeiro6

Introdução

Desde que deixou de ser estigmatizada como uma ciência inútil, caracterizada dessa for-
ma injusta por ser ministrada de forma “decoreba” e, portanto, desinteressante para os alunos, a Ge-
ografia é reconhecidamente uma ciência que contribui para explicar o mundo em que vivemos. Por
isso, a Geografia está atenta com a propagação do coronavírus pelo território brasileiro e mundial,
contribuindo, sobretudo, oferecendo análises da dinâmica territorial a partir do alastramento do vírus.
Essa pandemia desorganizou os territórios de tal modo que será impossível prevê suas
consequências futuras. Por outro lado, é possível que essa crise possa nos conduzir para outros mo-
delos de reorganização dos territórios que são desorganizados desde a sua origem, explícito na falta
de planejamento, até a dinâmica caótica do presente. Neste sentido, não tem como dissociar o caos
que estamos vivendo no Brasil do comportamento dos políticos brasileiros em todas as escalas de
governança.
Neste cenário de pandemia, a Geografia se apresenta como uma ciência que pode colabo-
rar em várias frentes de trabalho e pesquisas como, por exemplo, no apoio tecnológico através do uso
de ferramentas que ajudam a mapear os focos da pandemia, na análise de vetores ambientais que con-
tribuem para entender a dinâmica do vírus pelo território, e na elaboração de um pensamento crítico
sobre o comportamento político, econômico e solidário nos diferentes lugares em relação a pandemia.
E é neste último ponto que este ensaio se esforça para colaborar aplicando alguns dos pensamentos de
Milton Santos para o cenário de crise vivido no território nacional.

O mimetismo como método e comportamento político

A dificuldade de construir modelos próprios de análise faz do Brasil um país que, cul-
turalmente, sempre adotou modelos externos. Isso pode ser comprovado na nossa história desde os
modelos de governança – adoções de ideologias políticas/partidárias – passando pelo comportamento
de uma elite que sempre se comportou como europeus ou norte-americanos; e culminando, nos dias
atuais, adotando medidas alheias no combate a pandemia. Importante salientar que a adoção de me-
didas diferentes passa diretamente por um alinhamento político que nossos governantes em todas as
escalas (federal, estadual e municipal) têm com governantes de outras nações.
No livro A pobreza urbana (2013), ao questionar os métodos para se definir um estágio de
pobreza utilizando baseado apenas na estatística, Milton Santos aponta problemas quando se faz um

4 Doutor em Geografia. Professor no Instituto Federal da Bahia/Campus Porto Seguro


5 Doutor em Geografia. Professor no Instituto Federal da Bahia/Campus Porto Seguro
6 Doutor em Filosofia. Professor no Instituto Federal da Bahia/Campus Porto Seguro
12
estudo desse tipo através da analogia dos lugares. Concordando com o autor (2013, p.14) ao afirmar
que:

Frequentemente, o trabalho desenvolve-se com material mal selecionado e interpretado


erroneamente, visto que a elaboração das estatísticas é feita obedecendo a uma transferência
de conceitos elaborados para a Europa ou América do Norte e aplicados nos países
subdesenvolvidos.

Colocando essa crítica de Milton Santos dentro da dinâmica de combate à pandemia no


Brasil é possível compreender que: 1) não desenvolvemos métodos próprios para a gestão de crises
com essa dimensão, pois somos dependentes de métodos exógenos que invariavelmente são inefica-
zes para características geográficas/demográficas diferentes. 2) por diversos fatores, sobretudo, no
que tange uma política para o desenvolvimento da ciência somos subdesenvolvidos; e o caminho
mais fácil é copiar, imitar.
E os pobres na pandemia? Essa pergunta é fundamental para nós, brasileiros, devido à ca-
racterística socioeconômica da nossa população; são milhares de pobres, seres humanos vivendo em
situação de miséria que sequer acessam os equipamentos de saúde, mormente, nas grandes cidades.
A pobreza não é abstrata. Ela é tão concreta que é definida através de meios matemáticos. Contudo,
a pobreza não é uma situação que deve ser tratada de forma homogênea, isto é, ser avaliada somente
embasada numa renda que sirva para caracterizar a pobreza em todas as partes do mundo. “Já se ten-
tou também estabelecer um limiar estatístico exato da pobreza, tomando como referência, por exem-
plo, salários e horas de trabalho” (SANTOS, 2013, p.17). Certamente que o grau de compromisso de
bem-estar social que o governante imprime ao território é um vetor que vai influenciar na vida dos
pobres.
Evidentemente que “a pobreza existe em toda a parte, mas sua definição é relativa a uma
determinada sociedade” (SANTOS, 2013, p.18). Os pobres no Brasil são desamparados durante toda
a sua vida. São alijados da educação, sem moradias dignas, o subemprego ou a mendicância são suas
fontes de renda, a sua segurança depende quase exclusivamente de uma ação divina. Quem vive na
miséria no Brasil tem sua moradia construída com papelão, materiais achados nos lixões, sequer
tem dinheiro para comprar sabonete para a higiene pessoal. São pessoas que não têm como solicitar
auxílio emergencial, pois a tecnologia é algo muito distante para elas. Como essas pessoas podem se
proteger da Covid-19? Como estabelecer lockdown em comunidades carentes que vivem da relação
de proximidade com o outro, numa solidariedade que é a base da sua sobrevivência?
Assim, a pobreza no Brasil não é igual a pobreza que existe em países desenvolvidos eco-
nômica e tecnologicamente. Inclusive, os pobres nos países produtores de tecnologia receberão va-
cinas contra a Covid-19 antes dos pobres no Brasil. Portanto, “a pobreza não é apenas uma categoria
econômica, mas também uma categoria política acima de tudo. Estamos lidando com um problema
social” (SANTOS, 2013, p.18).
Existem ações contra a Covid-19 que podem e devem ser aplicadas a todas as pessoas
em qualquer parte do mundo. Entretanto, cada lugar é único. No Brasil, as diversidades ambiental,
urbana, cultural e socioeconômica exigem dos governantes planejamentos diferenciados. Por exem-
plo: em determinados lugares, os pobres deveriam ser vacinados como prioridade. Mas, optamos por
seguir um protocolo exógeno.

13
O texto “O homem dos riscos e o homem lento e a teorização sobre o risco epidemiológi-
co em tempos de globalização”, de Gil Sevalho (2012), apresenta um debate a concepção de homem
lento, de Milton Santos, e sua relação com os riscos epidemiológicos onde vivem, sobretudo, nos
lugares opacos das grandes cidades que são caracterizados pela falta de políticas de educação, saúde
pública de qualidade, saneamento básico; isto é, são pessoas que vivem no seu cotidiano expostas ao
risco de se contaminarem por qualquer tipo de doença.
Por outro lado, não aplicamos o mimetismo inspirado nos países desenvolvidos no que
concerne ao auxílio financeiro aos pobres. O auxílio emergencial proposto pelo Governo Federal
para o mês de abril de 2021 varia entre R$175,00 a 375,00. Ao convertermos o valor maior do au-
xílio emergencial em dólar (R$5,55 cotação em 12 de março de 2021) teremos, aproximadamente,
U$68,00 por mês que, divididos em 30 dias, chega-se a um valor de U$2,26. De acordo com a Pes-
quisa de Orçamentos Familiares realizada entre 2017 e 2018 são consideradas pessoas abaixo da linha
da pobreza aquelas que vivem com R$5,50/dia7. Se compararmos o valor de R$175,00, a crueldade
com os pobres será ainda maior. Se adaptarmos a crítica que Milton Santos elabora sobre o papel da
analogia e da comparação nos trabalhos de Geografia para este texto veremos que:

O método comparativo, tanto quanto o da analogia, procura agrupar os diversos fenômenos


segundo sua natureza e definir as relações entre eles. Esse método não é suficiente, pois
a comparação se faz apenas entre as manifestações objetivas de uma multiplicidade de
interações de natureza múltipla. E não basta querer alcançar as causas profundas desses
resultados aparentes. Na realidade, a atenção do pesquisador deve ater-se inicialmente à
pesquisa dessas causas. (SANTOS, 1991, p.15).

Para estabelecer uma analogia com um país europeu, que não seja considerado desenvol-
vido e com a economia abaixo que a brasileira, adotamos os dados do auxílio social em Portugal. No
país que foi nossa metrópole nos tempos de colonização, o pobre receberá 189 euros, que convertidos
ao câmbio do dia 12 de março de 2021, chega-se a um valor de R$1.255,00. Os críticos poderão apon-
tar a dimensão territorial e o quantitativo populacional entre os países para justificar que Portugal tem
condições econômicas de fornecer um valor sete vezes maior que o Brasil oferece aos seus pobres.
Certamente que esse viés não pode ser descartado, contudo, o Brasil sempre tem frequentado as 15
primeiras posições no ranking da economia mundial, enquanto que Portugal está sempre abaixo do
trigésimo.
Segundo Milton Santos (2013, p. 24) “é frequente imputar-se a pobreza, e, sobretudo a
pobreza urbana, ao crescimento demográfico”. Ora, se o Brasil é um país abarrotado de pobres não
podemos dizer que isso seja um fenômeno de ordem natural, mas um processo histórico e contínuo
do modelo administrativo implantado por prefeitos, governadores, presidentes da república e demais
políticos que integram todo o sistema de governança que são negligentes no acompanhamento do
crescimento da pobreza no país.
Dessa forma, a política brasileira copia modelos externos de acordo a sua percepção de
mundo, seguindo uma lógica própria que procura em políticas alheias um caminho que solucione,
ainda que momentaneamente, questões que são estruturais e particulares da nossa cultura, da nossa
dinâmica, com as nossas características ambientais. Quando Milton Santos (2013, p.14) diz que “o
peso das ideias feitas, a leio do mínimo esforço, o prestígio do exemplo, tudo contribui para manter

7 https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-11/2018-121-dos-brasileiros-viviam-abaixo-da-linha-de%20
pobreza. Acesso em 13/03/2021.
14
um instrumento de pesquisa baseado em ideias preconcebidas”, uma crítica à falta de identidade em
algumas pesquisas, o mesmo também pode ser aplicado para a maioria dos nossos governantes.
Quando Donald Trump minimizou a gravidade do vírus, que estava ultrapassando todas
as fronteiras entre continentes, países e cidades, sua preocupação foi com a hegemonia norte-america-
na. No Brasil, quando Jair Bolsonaro replica o mesmo comportamento político/econômico de Donald
Trump para a sociedade brasileira, significa aflorar a nossa condição histórica de uma triste caricatura
por tentarmos igualar aos Estados Unidos.
Outrossim, este comportamento do presidente da República é característica da face per-
versa do processo de globalização instalado nos países pobres que se recusam a sua origem cultural
e rejeitam pensar de forma endógena. E, “a globalização mata a noção de solidariedade, devolve o
homem à condição primitiva do cada um por si e, como se voltássemos a ser animais da selva, reduz
as noções de moralidade pública e particular a um quase nada” (SANTOS, 2000, p. 65).
Afinal, qual governo brasileiro tentou promover um desenvolvimento descolado do modo
norte-americano ou europeu? Não por acaso Eduardo Galeano vai perguntar: até quando iremos nos
comportar como papagaios ou macacos?8 Ele se referia à condição da América Latina copiar os
exemplos de economia que valorizava o consumismo. As palavras de Galeano são corroboradas numa
análise de Milton Santos sobre a gestão de Fernando Henrique Cardoso no período de 1994 a 2002:
“é a primeira vez que alguns países, entre os quais o Brasil, decidem se alienar completamente da
condução do seu próprio destino” (SANTOS, 2002, p. 43). Neste ponto pode-se dizer que Bolsonaro
e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso adotaram políticas externas semelhantes, haja vista a
subserviência do presidente ao governo presidencial norte-americano.
Outrossim, apoiadores do Partido dos Trabalhadores em governos anteriores pediam a
saída do Fundo Monetário Internacional (FMI) do Brasil, mas, assim que Lula assume o poder há uma
política de quitar a dívida com o FMI, inclusive, depois fazendo do Brasil um país credor do mesmo
FMI. Também pode ser considerada uma política de subserviência. Portanto, independentemente da
coloração partidária, o Brasil, em diferentes graus, foi subserviente aos Estados Unidos.
Apesar da Covid-19 afetar diretamente a saúde das pessoas, a maior preocupação do go-
verno federal foi com a saúde do mercado financeiro. Ao negligenciar as informações científicas que
classificaram a Covid-19 como um vírus altamente letal e de rápida propagação pelo espaço, presi-
dentes, primeiros-ministros e prefeitos não tiveram como objetivo principal tranquilizar a sociedade,
mas, de proteger ao máximo a economia. Daí, Milton Santos (2002, p. 93) afirma que “a única crise
que se deseja afastar é a crise financeira, não qualquer outra”. Ao tentar calar o médico Li Wenliang,
a China pensou em não parar suas exportações, ao não aderir à campanha para que Milão entrasse em
lockdown, o prefeito Giuseppe Sala se preocupou em não parar um dos maiores centros de negócios
do mundo.
O Brasil poderia ter tido um cenário mais ameno na pandemia, mas preferiu seguir líderes
políticos de outros países, de outras cidades que são os centros da economia mundial, continuando
numa política imitativa, demonstrando uma grande limitação de compreender o seu próprio território,
portanto, cultivando um olhar distorcido do papel do Brasil no cenário mundial.

8 Esta indagação está na fala de Eduardo Galeano dentro do documentário “Encontro com Milton Santos: o mundo global
visto do lado de cá” de Sylvio Tendler, 2006.
15
Um país distorcido e dividido

Em telejornais, em rodas de conversa no cotidiano das cidades, um questionamento sem-


pre está presente: seremos diferentes depois da pandemia, num sentido do bem? Ao observarmos
comportamentos amorais e antiéticos registrados pela imprensa, não seria absurdo que grande parte
da população brasileira se desiludisse com o nosso futuro. Compras superfaturadas de equipamentos,
empresas diminuindo a produção para aumentar os preços de equipamentos de segurança na saúde,
desvios de verbas em plena pandemia, vacinas falsamente aplicadas, a politização bipolar da pande-
mia, são exemplos que fomentam a produção de lugares individualizados num um país cada vez mais
divido. Esses desvios de conduta servem para caracterizar o comportamento de todos os brasileiros?
Certamente que não. Entretanto, a dimensão que eles alcançam através dos meios de comunicação
provocam indignação na sociedade bem como no meio intelectual.
Quando Milton Santos tratou o Brasil como um país distorcido, sua crítica central estava
num comportamento imitativo, sobretudo, por parte de uma elite econômica, política e acadêmica.
Esse tipo de conduta trouxe sérios problemas para a “elaboração dos pensamentos brasileiro e lati-
no-americano e em nossa própria visão de nós mesmos e do continente” (SANTOS, 2002, p. 51). A
questão maior se encontra em que tipo de cópia queremos ser dos europeus ou dos norte-americanos
(SANTOS e SILVEIRA, 2000). Não haveria problema algum se copiássemos a mesma política de
investimentos que alguns países da Europa e os Estados Unidos destinam para o desenvolvimento
científico que passam, necessariamente, pela consolidação de uma educação de base. Se adotássemos
esse tipo de mimetismo, com certeza, teríamos uma vacina brasileira para o combate a Covid-19.
Recebemos uma educação escolar que nos ensinava a estudar a China e a Rússia de forma
caricata ou como vilões. Uma visão deturpada sob uma ideologia eurocentrista e, principalmente,
norte-americana que contou, entre tantos vetores, com uma grande colaboração da indústria cinema-
tográfica norte-americana. Nessa pandemia, estes dois países estão na linha de frente no que se refere
à produção de vacinas contra a Covid-19, e o Brasil altamente dependente de insumos e da própria
vacina de origem chinesa e de origem russa. A nossa posição de inferioridade no combate à Covid-19
é também fruto da perda contínua da capacidade de pensar o nosso território, o mundo, com um olhar
próprio.
A dependência de conceitos alheios nos custou muito caro na busca para construir um
caminho próprio para o nosso desenvolvimento interno. Replicamos nas relações entre os estados o
mesmo modelo de relação em escala mundial entre os países, isto é, a divisão entre os espaços que
mandam e os espaços que obedecem (SANTOS e SILVEIRA, 2005), uma hierarquia que ficou mais
explícita nessa pandemia. O estado de São Paulo, maior centro econômico do país, se tornou também
o centro de embate político entre o governador João Dória e o presidente Jair Bolsonaro e, ao mesmo
tempo, o modelo de combate a pandemia.
Nos outros estados as capitais ditam da dinâmica econômica e o comportamento social
que deve ser empregado para as cidades do interior. Portanto, um paradigma de organização políti-
co-administrativa análoga à relação metrópole e colônia. Não se trata aqui de acirrar a relação entre
ricos e pobres, mas de encontrar um caminho que haja uma diminuição do fosso que existe entre eles.
Mesmo porque “num mesmo lugar, os elementos de modernização que correspondem à evolução
mundial não realizam seu impacto ao mesmo tempo” (SANTOS, 1991, p.109). Por outro lado, a

16
bipolaridade política, que é limitante para um pensamento amplo, é uma das causas que emperram o
Brasil ser um país mais solidário, não caridoso.
Diferentes dos países desenvolvidos, no Brasil “nem a existência de redes é garantia de
difusão homogênea dos fatores, nem a vida sistêmica exclui a hierarquia” (SANTOS e SILVEIRA,
2005, p. 264). A hierarquia dos lugares é uma lógica imposta pelo capital que propiciará a ocorrência
de lugares luminosos como também o contrário, os lugares opacos geralmente em maior quantidade.
Essa dicotomia entre os lugares ajuda a explicar o porquê da sociedade não está equitativamente
distribuída pelo espaço, pois, a distribuição desigual é também “o resultado de uma seletividade his-
tórica e geográfica, que é sinônimo de necessidade” (SANTOS, 2012, p.61). Via de regra, as pessoas
procuram os lugares mais luminosos para se estabelecerem.
Logo, se espera que os governantes utilizem dos seus recursos financeiros gerados pe-
los impostos arrecadados, privatizações etc. para aumentar e construir novas redes que atendam,
mormente, as sociedades que moram nos lugares opacos. O pós-pandemia deveria gerar atitudes
governamentais como essa, reconhecendo a hierarquia, mas propiciando um cenário de solidariedade
nacional.

Vivemos numa natureza hostil?

Certamente que para os povos tradicionais, a natureza é sempre parte da sua vida, nunca
uma dicotomia ao modo de vida. Para a maioria da população mundial que vive nas cidades, a chuva
pode ser um transtorno, a seca pode diminuir a capacidade de produção, o vulcão pode fazer desapa-
recer uma cidade. Cientificamente, há uma infinidade de estudos que abordam a relação do homem
com a natureza, algumas enveredam pela interatividade e outras focam no antagonismo. Para este
tópico foi resgatado o texto “1992: a redescoberta da natureza”, do professor Dr. Milton Santos.
É comum quando há catástrofes que têm como causa um dos elementos da natureza dizer-
-se que a natureza está revidando. De acordo com Milton Santos (1992, p.96), “a história do homem
sobre a Terra é uma história de ruptura progressiva entre o homem e seu entorno. [...] o homem se
descobre como indivíduo e inicia a mecanização do planeta, armando-se de novos instrumentos para
tentar dominá-lo”. Dessa forma, há um sufocamento dos elementos naturais que se muito tensionados
poderão modificar suas dinâmicas como, por exemplo, o avanço do mar e aquecimento global.
O que tem a ver isso com a disseminação da Covid-19? Se consideramos que o planeta é
um grande organismo, então o aparecimento de doenças até então desconhecidas, pode significar tam-
bém uma resposta da natureza. Afinal, se confirmar que o morcego é principal transmissor do vírus,
ele também é parte da natureza aprisionada pelo homem. Para Milton Santos (1992, p.100), “como a
inovação é permanente, todos os dias acordamos um pouco mais ignorantes e indefesos”; o que justi-
fica essa tensão mundial entre os países causada por essa pandemia, pois cada vez mais a diplomacia
é comprometida por posições radicais e que nos torna mais ignorantes; e uma corrida dos laboratórios
de todo o mundo procurando uma vacina para diminuir nossa condição de seres indefesos.
Portanto, não há uma natureza hostil, mesmo porque hostilidade é uma característica que
aparece nos seres humanos. Vivemos cada vez mais num mundo artificializado que utiliza o discurso
do conforto humano, da maior quantidade de produção de alimentos, da tecnologia comercial como a
única saída para o desenvolvimento. Entretanto, estamos nos afastando do outro, perdendo a capaci-
dade de comunicação e de solidariedade, vivendo em territórios num estágio de confinamento, ainda
17
que não houvesse essa pandemia. Afinal, a urbanização nas cidades é dividida em guetos, condomí-
nios, favelas, centro, periferia onde os muros visíveis e invisíveis dividem as áreas de confinamento.

A pandemia e a crise no/do território

Diretamente o trabalho do geógrafo não tem interferência no combate e ou controle da


Covid-19. Por outro lado, cabe à Geografia elaborar reflexões que contribuam para a compreensão da
dinâmica política e econômica, sobretudo, no seu país. No Brasil, diversos periódicos científicos na
área de Geografia lançaram dossiês objetivando reunir uma diversidade de análises perpassando por
diferentes vieses de pensamento proporcionando uma gama de leitura que os geógrafos realizaram
concernente aos impactos da pandemia no território nacional.
E ainda que essa crise seja de dimensão mundial a análise do geógrafo deve se pautar
pelas características sociais, econômicas, culturais e ambientais de cada lugar. Daí, Milton Santos
(1991, p.33) sugere que devemos “propor uma geografia dos países desenvolvidos em oposição a
uma geografia dos países industrializados”. Por isso, mesmo que as medidas de combate tenham uma
tendência de unificação global, é imprescindível que o Brasil pense nas suas particularidades para que
os danos, principalmente, humanos sejam minimizados.
Dentro da imensa pluralidade da análise que Milton Santos desenvolveu sobre as dinâmi-
cas dos territórios, sublinho um tema que é muito caro para nas minhas pesquisas e que pode ser am-
plificado num debate brasileiro nestes tempos de pandemia: “um reordenamento global para o Brasil”
(SANTOS, 2002, p.32). É preciso também que o país discuta a possibilidades de uma reorganização
político-administrativa, um assunto que causa muito desconforto, sobretudo, para governantes que
enxergam os Estados como parte de suas propriedades privadas.
Portanto, os governadores não são democráticos quando são chamados a discutir o ta-
manho do território do Estado que governa, e o que isso pode implicar numa gestão que acentua as
desigualdades. Por exemplo, no território da Bahia (567.295 km²) cabe uma França (543.965 km²),
dentro da Bahia cabem quase 26 estados do tamanho de Sergipe (21.910 km²). É impossível governar
com uma equidade, dentro de uma proposta de justiça espacial, e o mais grave: não há a construção
de redes que interligam os lugares opacos com os lugares luminosos.
Neste contexto, podem-se juntar ao estado da Bahia, o Amazonas que ocupa mais de 18%
do território brasileiro e Minas Gerais, com mais de 850 municípios. Essa configuração contribui para
o isolamento de algumas regiões e ao mesmo tempo mantêm um centro privilegiado e dominador
(capitais e grandes cidades). Mas o debate outra vez esbarra em algumas ideias economistas, que
produzem um antagonismo entre economia versus democracia do território na formação de novos
estados. Para Souza (1998, p. 25):

A questão da espacialidade, da territorialidade brasileira, é sempre deixada de lado nas


discussões políticas brasileiras e nas formulações dos Planos e Políticas Públicas. [...] o viés
economicista, que há duzentos anos dominas a elaboração das políticas econômicas e sociais,
no entanto, impede esse tipo de análise e consideração.

Essa análise da Professora Maria Adélia Souza cabe perfeitamente para essa reflexão em
tempos de pandemia, pois não houve uma política seja de tratamento observando os fatores locais ou
regionais, ao contrário, permaneceu a política da centralidade seja nas formas de tratamento ou nas

18
formas de prevenção. A Dinâmica da Covid-19 mostra que essa centralidade serve, sobretudo, para
conquista de objetivos políticos no que se refere a ampliação de poder de um determinado partido ou
de suas coligações. Para Milton Santos, tudo isso tem a ver com o pacto territorial, que para ele “não
se forma somente de arranjos eleitorais, nem da repartição geográfica dos impostos e das jurisdições
administrativas, mas, sobretudo do conteúdo político e social que as fronteiras incluem para tornar
mais adequado o exercício da cidadania” (SANTOS, 2002, p.34).
É fundamental avançarmos neste tema, pois a atual configuração político-administrativa
do Brasil não contempla as necessidades de territórios tão desiguais dentro de um mesmo país. “O
processo de globalização e fragmentação implicam territórios diversos que se constituem, especial-
mente neste fim de século, em geografias das desigualdades” (SOUZA, 1988, p.21); e no Brasil, a
pandemia contribuiu ainda mais para o afloramento das desigualdades, mormente, aquelas de caráter
econômico e social, com predominância dos lugares opacos habitados por homens lentos.
A pandemia mostrou como as pequenas cidades carentes de infraestrutura na saúde sofre-
ram para atender seus enfermos mais graves. Mesmo antes da pandemia do Covid-19, uma gama de
análise geográfica já apontava que “muitas áreas de nosso vasto país vivem praticamente à míngua de
cuidados da parte dos respectivos estados” (SANTOS, 2002, p.32). Não são raros estudos que apon-
tam para um caminho de reordenamento do território brasileiro. Este também é o desejo de vários
políticos em diferentes estados brasileiros; e aqui pode estar uma grande repulsa para que o reordena-
mento seja olhado com mais atenção, pois os projetos dos políticos, em sua maioria, apresentam um
desejo ávido pela continuidade do poder através da formação de outras unidades federais.
Certamente que, num breve ensaio como se propõe a ser este texto, não vamos reduzir a
discussão do reordenamento territorial do Brasil através da pandemia. Por outro lado, esse cenário
pandêmico afeta todo o território econômica e socialmente causando crises em diversos setores da
sociedade. Sendo assim, a atual crise sanitária que vivemos não pode ser dissociada do trabalho do
geógrafo, inclusive, sobre o tema do reordenamento. De acordo com Milton Santos (2002):

De um ponto de vista social, que aqui nos interessa, é evidente que em imensas regiões ainda
desarticuladas, ou que já nascem desintegradas e onde o exercício da cidadania se tornou
impossível, tanto sob o ângulo político-eleitoral, como sob o ângulo do acesso aos bens e
serviços indispensáveis a uma vida decente, a criação de novos Estados em muitos casos
criará as condições para uma acessibilidade política. (SANTOS, 2002, p.33).

A criação de novos Estados não garantirá uma governança justa, que o povo seja atendido
na totalidade de suas necessidades para viver no completo bem-estar social, por outro lado, cresce a
proximidade entre o povo e os governantes e consequentemente as reivindicações serão mais ampli-
ficadas. A mesma análise pode ser aplicada para a emancipação de distritos que desejam se tornarem
municípios, contudo, existem distritos, principalmente aqueles que abrigam comunidades tradicio-
nais que vivem completamente alijados do desenvolvimento da sede.
É preciso reconhecer que “a descentralização não apenas formal ou funcional, mas es-
trutural, pode e deve ser um instrumento de democracia política e social” (SANTOS, 2002, p.33).
Não foi a pandemia que provocou essa reflexão, a fragilidade de governança nos estados brasileiros,
sobretudo os maiores em dimensões territoriais e populacionais é uma enfermidade histórica. Nunca
houve um atendimento equitativo para as necessidades das pessoas que vivem nos lugares opacos; lu-
gares opacos que também fazem parte das grandes cidades. A dinâmica da Covid-19 passa a ser mais
19
um vetor para que os geógrafos que se dedicam a estudar o reordenamento territorial não desistam
na elaboração de proposições para o território brasileiro, ainda que as oposições ao reordenamento
ocupem maior espaço na mídia bem como na academia.

Considerações finais

O comportamento de governantes municipais e estaduais bem como o do presidente da


república indica que não há expectativas de que o país sairá mais unido, fortalecido dessa crise. A
maioria dos nossos políticos não apresenta projetos explícitos para diminuir a pobreza, não tem proje-
to para a melhoria da educação e ciência do país, ainda que a pandemia tenha mostrado a importância
da ciência para o desenvolvimento de um país. O que há são ações isoladas numa determinada região
ou pontualmente numa cidade, mas, no âmbito da totalidade do território nacional, estamos longe de
uma proposta que tenta estreitar ou suprimir as linhas abissais (SANTOS, B.S., 2008) que segregam
e, por conseguinte, excluem a maioria da população do acesso as condições básicas de viver com
bem-estar social.
O contraditório que se apresenta neste momento de pandemia é que os políticos cobram
da população um comportamento que não lhe foi dado, sobretudo, através do acesso à educação, na
possibilidade de uma formação crítica do cidadão em relação ao território que habita. Do mesmo
modo, a nossa classe política, em sua maioria, apresenta desvios de conduta ética, de distanciamento
dos anseios da população, logo, perde sua legitimidade no que concerne ao desejar que o povo confie
nas suas posturas, também neste momento pandêmico.
Geralmente, a ideologia de governo em países do terceiro mundo não é original, pois
sempre é copiada de um país com o qual tem uma relação de subserviência, ou ainda tentam copiar
modelos gestão e de economia totalmente desconexo da realidade local. E isto independe de colora-
ção partidária, passa muito mais pelo comportamento, pelo caráter do governante. E esses mesmos
países ou blocos econômicos, em pleno século XXI, que assumem posturas análogas à relação metró-
pole versus colônia, em que subjugam os países subdesenvolvidos às suas conveniências econômicas,
agora são os mesmo que cobram um comportamento exemplar de combate a pandemia em sociedades
que historicamente foram espoliadas por eles.
Provavelmente se fosse perguntado qual a seria a saída para o Brasil, Milton Santos não
teria uma resposta pronta, pois era um homem do pensar. Seria preciso buscar em sua obra para en-
tender o que ele pensava do sobre a dinâmica global, sobre o Brasil e o sobre o papel do Brasil em
relação ao mundo. Mas isso parece ser irrelevante para o mundo da política brasileira, haja vista que
esse meio é composto basicamente por homens e mulheres do fazer, do imediatismo.
Discursos políticos estéreis, a continuidade da privatização dos bens sociais, territórios
administrados politicamente por empresários, a depreciação dos servidores públicos em todos os
níveis de governança, educação e ciência negligenciadas, políticos com baixo nível de formação
escolar, a indiferença com o alastramento da pobreza, o privilégio substituindo o direito nas relações
do cotidiano, a persistência da centralidade dos investimentos em detrimento dos lugares opacos, a
crítica pela crítica no lugar da análise são alguns dos sinais que indicam a permanência do Brasil no
grupo dos países do Terceiro Mundo onde o trabalho do geógrafo é uma oposição constante ao que
está estabelecido pelo pensamento distorcido de uma pequena elite que comanda o país, sobretudo,
na política e na economia.
20
Referências bibliográficas

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2ªed. São
Paulo: Cortez, 2008.SANTOS, Milton. Pobreza urbana. 3ª ed. São Paulo: EDUSP, 2013.
SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5ª ed. São Paulo: EDUSP, 2012.
SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI.
7ª.ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. SANTOS, Milton. O país distorcido: o Brasil, a
globalização e a cidadania. Organização, apresentação e notas de Wagner Costa Ribeiro; ensaios
de Carlos Walter Porto Gonçalves. São Paulo: Publifolha, 2002. SANTOS, Milton. Por uma outra
globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de janeiro: Record, 2000.
SANTOS, Milton. 1992: a redescoberta da natureza. Revista Estudos Avançados. USP/SP, N.06,
vol. 14, 1992. SANTOS, Milton. O trabalho do geógrafo no terceiro mundo. 3ª.ed. São Paulo:
Hucitec, 1991. SEVALHO, Gil. O “homem dos riscos” e o “homem lento” e a teorização sobre o risco
epidemiológico em tempos de globalização. Revista Interface. vol.16. nº40. pp.07-20, 2012.
SOUZA, Maria Adélia. Geografias da desigualdade: globalização e fragmentação. In: SANTOS,
Milton; SOUZA, Maria Adélia; SILVEIRA, Maria Laura (orgs.). Território: globalização e
fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1998.

21
A ciência e a tecnologia na visão de Milton Santos

Sebastião Cerqueira-Neto
Camilla Jardim P. dos Santos9

Introdução

Certamente que as produções científicas e tecnológicas têm como objetivo inicial servir à
sociedade, independentemente da área do conhecimento em que foram concebidas; sobretudo, quan-
do as pesquisas são produzidas no interior das instituições públicas. Entretanto, também é verdade
que as grandes empresas estão sempre monitorando as produções dos institutos, das universidades,
centros de pesquisas em busca de produtos que possam fazer parte do seu rol de comercialização, tan-
to no mercado interno quanto externo. E quando as produções científicas e tecnológicas passam para
o controle das grandes empresas, elas perdem seu caráter inicial, que é o de servir a sociedade. Dentro
da construção de uma crítica entre as produções acadêmicas e a influência delas para o bem-estar da
sociedade se destaca a posição contundente e humanística do professor Milton Santos; e, é através de
parte do seu pensamento no qual repousa a estrutura desse artigo.
Evidentemente que o nosso país produziu grandes intelectuais que, inclusive, contribu-
íram com seus pensamentos em outros países através de atividades acadêmicas e outros poucos em
assessorias políticas. A efervescência intelectual brasileira fora do país se deu em grande parte ao fato
de que a grande parte de nossos pensadores foi obrigada a se exilar devido ao regime militar tentar
cercear a produção de um pensamento que o contrariava. A impossibilidade de um florescimento e
disseminação da intelectualidade brasileira no território brasileiro causou enormes cicatrizes na nossa
capacidade de produzir análises críticas que perduram por esse século XXI. Isso ajuda a compreender
porque Milton Santos dizia que o Brasil nunca teve a cultura de ouvir uma crítica. Mas, passado o
regime militar, o país continua com dificuldades em produzir e disseminar um pensamento crítico,
pois, o ato de filosofar no Brasil ainda é visto como algo sem valor para a sociedade, e muito menos
para o mercado, principalmente o mercado editorial.
A biografia de Milton Santos, bem como o conjunto da sua obra são fontes inesgotáveis
para aqueles que desejam conhecer a criticidade inegociável de um geógrafo e intelectual. Aprofun-
dar nas ideias do Milton se justifica por sua grande contribuição não somente para a ciência geográfi-
ca, mas por sua amplitude nas análises dos problemas sociais, culturais, econômicos não dissociados
do espaço, e não raras análises atreladas às questões sobre o desenvolvimento tecnológico e científico
do Brasil e no mundo. Decerto que, por essa capacidade de pensar, o Brasil e o mundo, de forma
crítica, atraiu a atenção estudiosos para além do campo da Geografia, como por exemplo, no artigo
O “homem dos riscos” e o “homem lento” e a teorização sobre o risco epidemiológico em tempos
de globalização, de 2012, do pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Gil Sevalho, que
utilizou o conceito de homem lento proposto por Milton Santos. Nas áreas do conhecimento que se
dedicam aos estudos da dinâmica socioespacial, Milton Santos é quase um consenso nas referências
teóricas. Certamente, que aqueles que utilizam seus textos estão à procura de visão humanística para
9 Egressa do Curso Técnico do IFBA/Campus Porto Seguro
22
suas análises, tendo em vista que para Milton Santos a sociedade, sobretudo os que habitam os lugares
opacos, são o centro de suas preocupações acadêmicas.
Para além de suas análises sobre os espaços, Milton Santos não deixava de produzir se-
veras críticas sobre a ciência, a universidade, o papel da intelectualidade brasileira e sobre como a
tecnologia deveria estar a serviço da humanidade. Num dos seus discursos Milton Santos foi enfático
ao dizer que o homem levou quase dois séculos para aprimorar e criar técnicas, mas estas evoluções
tecnológicas não estavam acessíveis à maioria da sociedade. E aqui, neste pensamento de Milton, se
encontra a maior inspiração para a construção dessa reflexão.
Dessa forma, a pesquisa sublinhou alguns dos pensamentos de Milton Santos garimpando
frases retiradas de palestras, debates, de artigos e de livros nos quais ele abordava a produção cientí-
fica e tecnológica e suas funções para, a partir daí produzir análises.
Portanto, é uma pesquisa caracterizada pela compilação, um compêndio, de críticas ela-
boradas pelo reconhecido geógrafo e pensador brasileiro, compilação essa realizada em grande parte
pela bolsista. Inicialmente, foram utilizados dois vídeos em que Milton Santos é protagonista: uma
entrevista no Programa Roda Viva da TV Cultura no ano de 1997 e o documentário produzido por
Sílvio Tendler, em 2006, intitulado “Encontro com Milton Santos: o mundo global visto do lado de
cá”. Ainda que esses dois vídeos tenham como foco a crítica sobre a globalização, Milton não deixa
de inserir o avanço da ciência e da tecnologia, e com razão, tendo em vista que o processo de globa-
lização é intrínseco a esses avanços produzidos em diversas partes do mundo. Numa entrevista ao
programa de televisão “Passando a Limpo com Boris Casoy”, Milton fala da expansão e peso que a
ciência adquiriu ao longo dos tempos, havendo posteriormente uma união entre a ciência e técnica
e uso dessas pelo mercado. Portanto, sugerindo um roteiro histórico sobre o encontro da evolução
técnica-científica com o mercado que vai ter rebatimento na história do presente.
No que se refere ao uso de sua obra, livros como “O país distorcido: o Brasil, a globali-
zação e a cidadania”, “Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal” e
“O trabalho do geógrafo no terceiro mundo”; sendo o primeiro uma compilação de artigos que ele
escreveu na Folha de São Paulo, e nos outros dois ele aborda questões globais do espaço, porém não
deixando de incluir alguma questão sobre os ambientes de pesquisa, como sua análise sobre “A uni-
versidade e a ordem atual das coisas” presente no segundo livro citado acima, por fim, “Técnica, Es-
paço, Tempo: Globalização e meio técnico-científico informacional” e “A Natureza do Espaço. Téc-
nica e Tempo. Razão e Emoção”. Decerto que não será possível alcançar todos os meios onde Milton
Santos falou ou escreveu sobre ciência, tecnologia e sociedade. Dessa forma, o papel desse texto se
insere como uma contribuição para o alargamento do pensamento de Milton Santos, especificamente
no que tange ao uso das ciências, das técnicas, do papel da universidade e dos centros de pesquisas.

Milton e a universidade: um discurso duro?

Neste tópico foi resgatado um trecho do discurso proferido por ocasião da concessão do
Título de Doutor Honoris Causa, conferido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 24 de
setembro de 1999. Segundo Milton Santos, a universidade perdeu o seu foco e o seu papel diante da
sociedade, e como a universidade se tornou um centro de produção totalmente desvirtuada do seu
caráter original, passando a ser imediatista com a finalidade de servir ao mercado. De acordo com
Milton (1999),
23
Nos dias atuais, é praticamente comum, quase em toda parte, a perda progressiva, pelas
Universidades, da meta do conhecimento genuíno, o que contribui para despojar a instituição
universitária de sua principal razão de ser. Os sábios, as corporações de sábios, assim como
as produções de um saber desinteressadas e verdadeiras acabam se tornando coisa rara,
quando a ciência, como serviço às coisas, matou a filosofia como serviço ao homem. O sábio
é substituído pelo erudito, o cientista pelo mero pesquisador, o intelectual pelo profissional,
se a grande preocupação não é mais o encontro e o ensino da verdade, em todas as suas
formas, mas uma atividade parcelada, dominada por um objetivo imediato ou orientada para
um aspecto redutor da realidade.

Alguns podem interpretar esta reflexão de Milton sobre o papel da universidade e sua di-
nâmica no que se refere à produção como se fosse algo quase que religioso, no sentido de uma pureza
acadêmica, de uma academia voltada para servir a sociedade. Por outro lado, o que a sociedade espera
do que é produzido intramuros das nossas instituições de ensino, pesquisa e extensão, senão algo em
seu benefício? Ou será que nossos centros de pesquisas ainda são redutos de uma casta privilegiada
e que deseja apenas manter o status de semideuses perante grande parte da sociedade brasileira, que
por característica é carente em diversos índices de análises?
Para Milton (1999), a universidade estava sendo chamada:

A realizar uma produção comercial do saber, um conhecimento adredemente planejado


como um valor de troca, destinado desde a sua concepção (que é inspirada, cada vez menos,
nas Universidades e cada vez mais nas grandes firmas) a criação de um valor mercantil. O
conhecimento assim produzido é uma mercadoria, sujeito à lei do valor econômico.

Ao fazermos uma analogia entre a relação do processo de globalização e o Brasil, na visão


de Milton, com a relação que as universidades e institutos de pesquisa do Brasil têm com as grandes
empresas é possível afirmar que os nossos ambientes de pesquisas deixaram que as grandes empresas
entrassem no meio sem questionar quais malefícios poderiam causar ao trabalho de pesquisadores e,
por conseguinte, o fim de suas pesquisas. É uma parceria, que por vários motivos, mas mormente o
financeiro, põe de joelhos nossos pesquisadores diante do poderio econômico de grandes empresas.
Talvez a questão econômica explique os níveis de hierarquização dos cursos dentro das
nossas universidades e institutos de pesquisa; não é por mero acaso que os cursos superiores estão
divididos tal qual as classes sociais, isto é, cursos de elite e os cursos chamados de segunda e terceira
classe. Para Milton Santos, “ao mesmo tempo em que as disciplinas chamadas científicas afundam
num imediatismo confrangedor ou numa futurologia cega, as ciências sociais e humanas são subal-
ternizadas, reduzidas a um papel de justificação ou de codificação de uma interpretação unilateral da
sociedade”. E, isso implica no direcionamento de editais das agências de fomento, na distribuição de
bolsas de pesquisa e, sobretudo, nas parcerias que grandes empresas fazem com alguns núcleos de
pesquisas nas universidades, geralmente, com pesquisas que visem atender ao mercado. Isso também
explicaria o porquê de ser tão raro o interesse de grandes empresas ou fundações em financiar pesqui-
sas nas áreas de humanas.
Ainda em relação a esse discurso do Milton e à dinâmica das nossas universidades, ele
sugere que o Brasil “deveria, pois, se orientar principalmente na direção do estudo das suas próprias
realidades sociais como um todo”. É o que ele vai chamar de uma produção de teorias indígenas
(Programa Roda Viva, 1997), isto é, uma produção através dos nossos olhares. Evidentemente que
Milton Santos valorizava a produção, inovação de técnicas, haja vista que ele defendia que o desen-
volvimento de um lugar passava, impreterivelmente, pela presença de pessoas com capacidade téc-

24
nica, portanto, ele reconhecia o valor das técnicas, da tecnologia e da ciência. A grande questão para
ele sobre esse tema estava no fato de que o Estado, como produtor de ciência e tecnologia, permitia
que os pesquisadores fossem cooptados pelas grandes empresas; o que consequentemente descarac-
terizaria o papel maior da ciência. Assim, tudo o que a universidade produziria para a melhoria da
sociedade acabava por receber um valor que, por sua vez, não era acessível aos menos privilegiados
economicamente.
Evidentemente que quando uma universidade assume este tipo de linha na condução de
suas pesquisas significa que, de certa forma, ela hierarquiza as produções cientificas. Para Milton
Santos (1994, p.09):

Num mundo em que o papel das tecnociências se torna avassalador, um duplo movimento
tende a se instalar. De um lado, as disciplinas incumbidas de encontrar soluções técnicas, as
reclamadas soluções práticas, recebem prestígio de empresários, políticos e administradores
e desse modo obtêm recursos abundantes para exercer seu trabalho. Basta uma rápida visita
às diferentes Faculdades e Institutos, para constatar a disparidade dos meios (instalações,
material, recursos humanos) segundo a natureza mais ou menos mercantil e pragmática
do labor desenvolvido. De outro lado, o prestígio gerado pelo processo de racionalização
perversa da Universidade é o melhor passaporte para os postos de comando.

Talvez contribua para explicar o fato de que as ciências do pensar são consideradas, mor-
mente, de menor expressão. Daí a maioria absoluta dos principais cargos administrativos nas univer-
sidades, nos institutos e nas agências de fomento do país ser ocupados por acadêmicos que têm mais
habilidades no trato com o mercado; o que não significa uma crítica a esses acadêmicos. A crítica deve
ser direcionada para o comportamento de nossas universidades que não se atentam, ainda no século
XXI, para “o velho partage colonial com que as nações centrais buscam reforçar sua hegemonia, à
saída de cada crise internacional, e às custas dos países periféricos” (SANTOS, 2002, p.19). É possí-
vel sim que a universidade e institutos de pesquisas tenham essa visão crítica, entretanto, a situação
de conforto e a sedução do capital são tão vigorosos que acabam por limitarem as tecnologias a um
número reduzido de pessoas e de nações.

Tecnologias para o ser humano: o custo

Para que a análise de Milton Santos sobre a produção científica nas universidades e nos
institutos não seja apenas tomada como uma abstração, foram selecionados alguns exemplos de in-
ventos que têm por finalidade contribuir com o bem-estar da sociedade em diversas áreas do conheci-
mento, mas, por conta do elevado custo, tornaram-se quase que inacessíveis à maioria da população
brasileira.
Em 2011, o Jornal Estadão, no seu caderno de ciência, numa matéria da Fernanda Bas-
sette, publicou que o coração artificial, de produção genuinamente brasileira, iria ser testado em seres
humanos. O invento teria um custo de 60 mil reais, uma diferença de 540 mil reais para o produto
importado10. No Portal Terra, dia 23 de julho de 2013, a notícia da sua sessão de ciência era: “Brasil
vai implantar primeiro coração artificial infantil 100% nacional”. O projeto desenvolvido no Instituto
do Coração (INCOR) contava com o apoio e financiamento de outras instituições, como a Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). Ainda na matéria do site, o médico Marcelo Jatene diz que “Um

10 Disponível em: http://ciencia.estadao.com.br/. Acesso em: 31 mar. 2017.


25
dos grandes problemas em usar esse aparelho já disponível no mercado mundial é o financiamento.
As famílias são muito pobres, não têm condições de pagar por isso. Nem todas as instituições têm
possibilidade de arcar com a despesa”11. O interessante é que, mesmo o projeto tendo participação de
duas agências públicas de pesquisa, uma estadual e outra federal, e mesmo a equipe de pesquisadores
conseguindo abaixar sensivelmente o preço do invento, a tecnologia empregada na construção do
coração artificial não conseguirá chegar à população mais carente.
Ainda na área da medicina, o outro exemplo vem das próteses de alta tecnologia. Segun-
do o site “deficienteciente.com.br”, produtos de última geração, um joelho hidráulico custa de 15 a
19 mil dólares, e uma mão com sensores varia de 28 a 72 mil reais. Segundo Vera Garcia (autora da
matéria publicada no referido site), menos de 3% dos deficientes físicos brasileiros têm acesso a esta
alta tecnologia, num universo de 24,5 milhões de pessoas portadoras de deficiência12.
Se buscar exemplos de tecnologias que ajudam no meio ambiente, o panorama não muda.
Uma torneira com sensor pode custar de 105 a 270 reais, um sistema de energia solar para residência
começa com um custo a partir de 20 mil reais. Decerto que as pessoas de baixa renda não poderão
utilizar desses sistemas em suas casas. Num país como o Brasil mesmo tecnologias ditas populares,
como os telefones celulares, não são tão simples de serem adquiridas, não raro grande parte da po-
pulação tem que recorrer a parcelamentos financeiros para ter essa tecnologia. Evidentemente que
este texto não tem a pretensão se abranger todas as situações onde a tecnologia é ainda inacessível
a grande parte da sociedade, portanto, os exemplos citados são apenas para tornar dar concretude ao
pensamento Milton Santos sobe a produção de ciência e seu uso pela sociedade.
Certamente que a maior parte das produções científicas e tecnológicas tem como objetivo
inicial a melhoria na qualidade de vida das pessoas, independentemente da área do conhecimento
em que foram concebidas, sobretudo quando as pesquisas são produzidas no interior das instituições
públicas. Entretanto, também é verdade que as grandes empresas estão sempre monitorando as pro-
duções dos institutos, das universidades, centros de pesquisas em busca de produtos que possam fazer
parte do seu rol de comercialização, tanto no mercado interno quanto externo. E quando as produ-
ções científicas e tecnológicas passam para o controle das grandes empresas, elas perdem seu caráter
inicial, que é o de servir a sociedade; e se as ciências perdem esse caráter, não há o porquê da sua
existência. E, segundo Milton Santos (1988, p.07), “quando a ciência se deixa claramente cooptar por
uma tecnologia cujos objetivos são mais econômicos que sociais, ela se torna tributária dos interesses
da produção e dos produtores hegemônicos e renuncia a toda vocação de servir a sociedade”. Portan-
to, seria totalmente aceitável que a população passasse a questionar o destino dos seus impostos para
a universidade.
A uma diversidade tecnológica no Brasil e no mundo que poderia acabar ou diminuir
substancialmente as dificuldades pelas quais grande parte da população do planeta são submetidas;
dificuldades para se alimentar, para se locomover, para fazer o uso da água, para morar, e tantas outras
que por sua infinidade seria impossível mapeá-las. No entanto, pelo fato de que o dinheiro tenha se
tornado o centro do mundo, resolver os grandes problemas da humanidade tem um custo que poucos
podem pagar.
Por outro lado, percebe-se que há uma contradição no que concerne a produção científica
e a missão das nossas instituições públicas, por exemplo, no Instituto Federal da Bahia (IFBA), onde
11 Disponível em: https://noticias.terra.com.br/. Acesso em: 31 mar. 2017.
12 Disponível em: http://www.deficienteciente.com.br/. Acesso em: 31 mar. 2017.
26
foi desenvolvida a pesquisa teórica que deu origem a esse artigo, uma instituição que tem como foco
principal incentivar os seus alunos e professores em direção ao desenvolvimento de tecnologias, seja
no ensino médio ou superior, a sua missão é a de “promover a formação do cidadão histórico-críti-
co, oferecendo ensino, pesquisa e extensão com qualidade socialmente referenciada, objetivando o
desenvolvimento sustentável do país” (IFBA, 2017)13. Esta frase deve fazer parte da maior parte de
nossas instituições; contudo, apenas parte dessa missão recebe uma atenção especial. Mesmo que os
Institutos Federais e outros centros de pesquisa tenham por característica uma formação mais tecni-
cista isso não deve ser entendido como apêndices de grandes empresas, o que justificaria suas existên-
cias e expansão no território nacional. Daí a importância de inserir e sempre que possível reativar nas
instituições públicas a discussão sobre para quem se está produzindo tecnologia, com qual objetivo
está se fazendo ciência nos campi, pois só assim se completaria a missão da instituição.
Uma das grandes dúvidas de Milton Santos sobre a evolução das técnicas centrava na
possibilidade de uso das mesmas, pois o homem, na sua infinita capacidade de criação, oferece uma
gama de técnicas que sequer é alcança a maior parte da sociedade. Igualmente, é importante perce-
ber como será o uso dessas técnicas, isto é, quais os seus fins. Para Milton (2006), “as técnicas são
implantadas nas sociedades e nos territórios a partir de uma política, hoje a política das empresas
globais, amanhã a partir da política dos estados impulsionados pelas nações”. Sendo assim, o uso das
técnicas também é seletivo, haja vista que os países escolhem quais devem ser utilizadas num dado
momento histórico e num dado espaço.
Por fim, é perfeitamente compreensível quando Milton (2006) dizia que “as grandes em-
presas são esse centro frouxo do mundo e que se distanciando de uma relação mais obrigatória com
os territórios, acaba por lhes permitir uma ação sem responsabilidade social, moral, sobretudo, e é
por isso que se desorganiza os territórios tanto socialmente quanto moralmente.” Ainda que esta frase
tenha sido utilizada sobre assuntos que tratam da dinâmica do território, ela pode ser adaptada para
esta reflexão a partir da ideia de que as grandes empresas, em sua maioria, não têm responsabilidade
social e tampouco moral com o território que por sua vez não pode ser dissociado da população que
nele vive. Portanto, esse tipo de empresa quando consegue seduzir a ciência as consequências para a
sociedade, no que tange ao seu bem-estar, são severamente comprometidas.

Vivemos num período técnico-científico?

Todo esse desenvolvimento tecnológico que a humanidade assiste (na verdade poucos
desfrutam da chamada tecnologia de ponta, a maioria só admira ou deseja) faz crer que seja impos-
sível uma dinâmica humana sem a presença da tecnologia. Na edição de 1988 do livro “Metamor-
foses do espaço habitado”, Milton Santos propõe a seguinte reflexão: será que vivemos mesmo num
período técnico-científico? Para ele “é possível discordar quanto à denominação e às características
do atual período histórico” (SANTOS, 1988, p.07). Certamente que se o mundo for pensado a partir
daqueles que produzem e que consomem, com frequência, as inovações do mercado tecnológico é
compreensível que se aceite a caracterização desse período como uma era tecnológica, todavia, “nada
é mais difícil que definir o presente” (SANTOS, 1988, p.07). Por isso, também, é perfeitamente acei-
tável que as pessoas que vivem as agruras da seca no Brasil, na África Subsaariana ou aquelas que
estão abandonadas vagando pelas ruas dos grandes centros comerciais do mundo, ou ainda o grande
13 Disponível em: https://cutt.ly/2XrDCCC. Acesso em: 21 jul. 2017.
27
contingente de pessoas que são submetidas às imensas filas nos sistemas de saúde e de educação para
que sejam atendidas; para essas pessoas o período presente nada tem a ver com tecnológico. Pode-se
questionar que a solução dessas causas faça parte das obrigações do Estado, certamente. Entretanto,
quantos Estados têm a possibilidade de acesso às tecnologias em benefício da sociedade? O que é a
relação de transferência de tecnologia entre as nações se não uma troca comercial? De acordo com
Milton Santos (1988, p.07), não há como negar a existência de uma:

Concentração e centralização da economia e do poder político, cultura de massa, cientificização


da burocracia, centralização agravada das decisões e da informação, tudo isso forma a base
de um acirramento das desigualdades entre países e entre classes sociais, assim como da
opressão e desintegração do indivíduo. Desse modo se compreende que haja correspondência
entre sociedade global e crise global. É igualmente compreensível, mas lamentável, que esse
movimento geral tenha atingido a própria atividade científica.

A grande questão posta nessa reflexão não se concentra numa proibição ou ruptura das
universidades, dos institutos de ciência e tecnologia com as grandes empresas, pois isso é benéfico
para o desenvolvimento tecnológico e cientifico, mas está numa relação perversa que passa pela coop-
tação de cientistas por parte das grandes empresas e, por outro lado, na submissão das instituições de
pesquisas, sobretudo as públicas em relação à sua produção ser direcionada para atender as demandas
do mercado. Se Milton Santos dizia que era difícil definir o presente, e há uma concordância por parte
dessa reflexão, talvez seja porque a partir do momento em que se generaliza a dinâmica mundial sob
somente um olhar torna-se difícil a compreensão do todo em razão das desigualdades estabelecidas,
sejam elas de ordem natural ou por interferência do homem.
Portanto, não é prudente generalizar a ideia de que a evolução da ciência e da tecnologia
está em todos os lugares, muito menos realizar comparações entre países ou mesmo entre a popula-
ção de um país. Para Milton Santos (1991, p.18) “é da refutação do método de analogia que se pode
esperar uma compreensão clara dos problemas fundamentais dos países subdesenvolvidos, princi-
palmente se quisermos dar uma contribuição, por pequena que seja, para a solução”. Essa crítica de
Milton está inserida numa análise sobre métodos do trabalho em Geografia, e orienta como se deve
tratar das particularidades de cada território; a produção de ciência e tecnologia também deve levar
em conta diferentes vetores que caracterizam um dado território. Por outro lado, é importante lembrar
que não utilizamos todas as técnicas que estão aí inventadas, ou mesmo as que estão por vir. Sendo
assim, não se pode falar num mundo técnico-científico; isso só é possível se limitarmos a visão de
mundo a partir das grandes potências ou de um pequeno grupo da sociedade mundial que tem acesso
as constantes inovações tecnológicas.
Contudo, independentemente do período em que vivemos o ponto fundamental é enten-
der que todos estamos inseridos num território. A tecnologia, que promove tantos avanços que hoje
estão presentes na vida de pessoas que podem ter acesso a ela, criou também um território, o território
virtual ou o ciberespaço (termo criado em 1984 por Willian Gibson). Entretanto, o território físico
continua sendo o palco todas as ciências coletam, testam ou aplicam os resultados de suas pesquisas.
Portanto, ainda que grande parte de nossas instituições de pesquisas sejam tratadas como ilhas dentro
das cidades, elas são parte do território em sua totalidade.

28
Teorias indígenas

Milton Santos era contundente ao afirmar que para entrarmos num processo de desco-
lonização era preciso que aprendêssemos a olhar com os nossos próprios olhos, isto é, construir um
pensamento endógeno, um pensamento a partir da nossa realidade. Assim, numa de suas falas no
Programa Roda Viva da TV Cultura em 1997, ele sugeriu que o Brasil construísse teorias indígenas.
Para Milton, teríamos que parar de copiar a Europa ou os Estados Unidos, mas pensarmos em como
produzir propostas endógenas para o desenvolvimento, e que este fosse apresentado aos países cen-
trais como uma proposta possível. Assim, as teorias indígenas não seriam propriamente algo ligado às
ações de nações indígenas, mas uma referência a nossa origem enquanto povo brasileiro.
Infelizmente, um pensamento genuinamente brasileiro acaba sendo sufocado por diversos
setores da economia, da política, da mídia etc. Aliás, não é novidade no Brasil que a intelectualidade
brasileira tenha sido sempre sufocada, seja no período da ditadura militar ou mesmo no período da
República ou democrático, como o que vivemos atualmente. Para exemplificar esse repúdio ao pensa-
mento intelectual brasileiro, basta revisitar a biografia de Josué de Castro, de Darcy Ribeiro, de Celso
Furtado, do próprio Milton Santos, a de Paulo Freire; apenas para citar alguns com os quais meus es-
tudos têm afinidades. Ainda hoje nas salas de aulas os alunos são levados a pensar através de autores
estrangeiros; porém, a crítica não se encerra sobre uma questão de xenofobismo intelectual, mas pelo
uso excessivo de referências que são, em sua grande parte, alheias à realidade brasileira. Assim, até
os dias atuais, são adotados, de forma perene em nossas escolas, autores, sobretudo, europeus que são
seguidos quase como se fossem uma seita.
Provavelmente, Milton Santos não elaborou essa crítica sobre como forma de menospre-
zar as contribuições que o Velho Continente deu à sociedade mundial, muito menos um xenofobis-
mo, mesmo porque Milton e outros citados neste texto viveram parte do seu exílio lecionando em
universidades e convivendo com intelectuais europeus. Sendo assim, não será a posição geográfica a
determinante para se adquirir ou produzir um pensamento ético e crítico sobre as grandes diferenças
entre os povos.
Talvez, a ideia é que o Brasil buscasse uma forma de se desenvolver e compreender o
mundo a partir das nossas características sejam elas culturais, econômicas ou intelectuais para que
também o país possa oferecer ao mundo outras vias e formas de se pensar o meio ambiente, a educa-
ção, a política, a economia e tudo que envolve o bem-estar social. Enfim, que o Brasil buscasse uma
identidade quanto à formulação de um desenvolvimento próprio.
Certamente que a construção de teorias indígenas é um processo longo, afinal, pode-se
dizer que grande parte dos setores que comandam o país é neocolonizada. Não por acaso a nossa edu-
cação tenta seguir modelos estrangeiros, seja na forma de ingresso nas escolas e universidades, seja
na forma de avaliação, seja nas propostas de reforma do ensino. Outras formas de copiar o chamado
Norte estão presentes em outros setores, mormente, em todos que afetam o bem-estar social e o meio
ambiente, no entanto, limitaremos essa reflexão no âmbito do tema central proposto para análise.
E na formação de teorias indígenas o papel do intelectual é fundamental, sobretudo, o
intelectual vigoroso através de suas ideias, que não se preocupa se suas análises serão bem aceitas ou
muito contestadas, que compreenda que existe um tempo para que suas reflexões floresçam e possam
dar frutos, que seja um intelectual comprometido, mormente, com as questões sociais e que por isso

29
não se preocupe em agradar algum lado da política; mesmo porque, de acordo com Milton Santos, o
principal papel do intelectual é produzir o desconforto. E, evidentemente que formular teorias indíge-
nas num país como o Brasil, que persegue cegamente a categoria de potência, significa efetivamente
causar desconfortos na política, na economia e também dentro das nossas universidades e institutos
de pesquisas, justamente porque ainda há uma dificuldade de se libertar de modelos alheios.
Teorias indígenas podem ser compreendidas como provocações são colocadas à mesa para
o debate pelo seu principal pensador como uma forma de libertação do colonialismo, especialmente o
europeu, que a América Latina, a África e uma parte da Ásia sofreram no transcorrer de suas trajetó-
rias históricas. Todavia, o colonialismo não se apagou por completo, ainda é possível encontrar seus
resquícios em formas mais “suaves” de exploração, com outras roupagens, inclusive pode ser perce-
bido em alguns discursos acadêmicos, que reafirmam um panorama do chamado neocolonialismo.

Considerações finais

Milton Santos não escreveu um livro ou artigo sobre o papel da ciência no Brasil, o tema
era abordado em seus escritos, sempre que possível, dentro de uma análise sobre a Geografia enquan-
to ciência. Dessa forma, o que se tentou fazer neste texto foi um esforço de reunir o máximo de frases
onde Milton citava a ciência, a universidade e institutos de pesquisas, para se construir uma crítica
e, ao mesmo tempo, reforçar o seu pensamento sobre o papel dessas instâncias promotoras de inova-
ções, bem como a crítica da relação do Estado com a ciência e a cooptação da ciência pelas grandes
empresas. Em todas essas conexões as análises de Milton sempre direcionavam sua preocupação para
o bem-estar da sociedade, sobretudo, aquela que vive nos lugares opacos; para ele era essencial que
a ciência estivesse a serviço da humanidade. Em uma de suas falas que aparecem no documentário
sobre a globalização vista do lado de cá, Milton expressou da seguinte forma o seu descontentamento
com os rumos que a ciência e a tecnologia teriam tomados: “Nunca na história da humanidade houve
condições técnicas e científicas tão adequadas a construir um mundo da dignidade humana, apenas
essas condições foram expropriadas por um punhado de empresas que decidiram construir um mundo
perverso, cabe a nós fazer dessas condições materiais, a condição material da produção de uma outra
política.” Pode-se perceber que, ao mesmo tempo em que Milton era severo no seu discurso com
relação ao caminho pelo qual a ciência se enveredou, isto é, o caminho do capital, Milton sinalizava
com a esperança de que poderia e teria que haver uma mudança.
Evidentemente que é preciso haver parcerias entre os centros públicos de pesquisas com
a iniciativa privada. A questão é se esses centros têm força e se deseja impor perante a brutalidade
do capital o seu papel principal, isto é, de colocar em primeiro lugar o homem, principalmente os
homens lentos que vivem em lugares opacos e que estão separados por linhas abissais tão alargadas.
Não se deve esquecer que os institutos e universidades públicas são parte do Estado, portanto, sua
função é intrínseca com a promoção do bem-estar social.
Certamente que Milton não era uma unanimidade, nem essa era sua perseguição acadê-
mica, fazia questão de dizer que não pertencia a nenhum grupo de qualquer ordem política, religio-
sa, inclusive, nem grupos de intelectuais. Isso não fazia de Milton um imparcial, ao contrário, era
totalmente parcial no que se referia a pensar o território global pelo lado humanista. Seus estudos
e suas críticas sempre estavam ao lado dos homens lentos, e acreditava que a revolução só poderia
ser feita por aqueles que sabem viver na escassez. No entanto, essa revolução, que significa a saída
30
ou o desmanche dos lugares opacos, deve ter a colaboração de quem foi privilegiado, sobretudo, os
privilegiados com estudos gratuitos e com bolsas de pesquisas recebidas através do Estado, pois, um
dia corre-se o risco de que a ciência, a universidade, os institutos sejam questionados porque que os
resultados de pesquisas que têm fomento de origem pública não são convertidos para a sociedade.

Referências

SANTOS, Milton. O país distorcido. GONÇALVES, Carlos Walter Porto (org.). São Paulo:
Publifolha, 2002. SANTOS, Milton. O trabalho do geógrafo no terceiro mundo. 3ª.ed. São Paulo:
Hucitec, 1991. SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1988.
SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e meio técnico-científico informacional,
Hucitec, São Paulo, 1994. SANTOS, Milton. Discurso proferido por ocasião da concessão do
Título de Doutor Honoris

Causa, conferido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro no dia 24 de setembro de 1999.

31
O trabalho do geógrafo frente ao sistema do Comitê de Ética em Pesquisa/
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa: uma proposta de discussão

Sebastião Cerqueira-Neto
Ricardo Rodrigues Mendes14
Ricardo Almeida Cunha15

Introdução

Em qualquer curso de graduação, de todas as áreas do conhecimento, a disciplina de


Metodologia da Pesquisa é um componente obrigatório ao longo da formação do graduando. Às
vezes essa disciplina aparece por mais de um semestre na composição curricular. Uma infinidade de
referências bibliográficas dá suporte para o professor dessa disciplina que, na verdade, é sempre a
porta de entrada para o início de uma caminhada acadêmica na pesquisa, tendo em vista que a maioria
dos cursos opta pela entra de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), um artigo ou mesmo um
produto. Todas essas opções, obrigatoriamente, devem apresentar um roteiro metodológico. E a me-
todologia, o uso de técnicas, é o que caracteriza um estudo científico. Logo no primeiro capítulo do
seu livro “Metodologia do Trabalho Cientifico”, Severino (2000, p.23) alerta ao estudante que entrou
recentemente na universidade que este estará “diante de exigências específicas para a continuidade
de sua vida de estudos”. Portanto, antes de qualquer aprofundamento sobre a discussão de uma meto-
dologia, o autor se preocupa em apontar para um novo comportamento que o graduando deverá ter, o
que garantirá o sucesso na academia.
Para Eco (2000), a cientificidade está num estudo que se debruça sobre um objeto reco-
nhecível e definido de tal maneira que seja reconhecível igualmente pelos outros; que seja algo que
ainda não foi dito ou rever sob uma ótica diferente do que já se disse; deve ser útil aos demais e for-
necer elementos para a verificação e a contestação das hipóteses apresentadas. Dentre os requisitos
que um pesquisador deve ter, Steffan (1999, p.17) dirá que é essencial que esteja disposto a “utilizar
o método e a ética científica; deve ter preparação metodológica para o seu emprego correto; e deve
contar com os recursos necessários para levar a indagação até o fim”. Ao fazer a leitura desses três
autores, que escreveram sobre aspectos principais de uma pesquisa acadêmica, o leitor não irá en-
contrar nenhuma sugestão que o graduando terá que se ater as normas de uma Comissão de Ética em
Pesquisa, mesmo porque se aprende ética tanto no ambiente familiar quanto na formação acadêmica.
Ao analisar a Resolução 510 que rege a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CO-
NEP) e os Conselhos de Ética em Pesquisa (CEPs), um documento com capítulos e tópicos com uma
escrita repetitiva e cansativo de se ler. É um documento em formato de uma bula, uma cartilha que se
expressa pelo cuidado com pessoas e comunidades participantes de uma pesquisa. Porém, seu objeti-
vo maior é ditar o “bom comportamento” do pesquisador. Mas, o pesquisador precisa de uma cartilha
com essa função? E o papel da universidade e dos institutos federais ou de qualquer outra escola neste
14 Doutorando em Difusão do Conhecimento (UFBA-UNEB-IFBA-UEFS). Professor do IFBA/Campus Porto Seguro
15 Doutorando em Estado e Sociedade – PPGES/UFSB. Professor do IFBA/Campus Porto Seguro

32
contexto? Neste sentido, este artigo tentará argumentar o quanto pode se tornar limitante o papel do
pesquisador em Ciências Humanas no seu trabalho de campo, mormente, na Geografia ou qualquer
área que se dedica aos estudos da dinâmica de um determinado território, dinâmica essa dada pelas
ações naturais e pelas intervenções humanas.
O descontentamento com as normativas impostas aos pesquisadores pelos CEPs e pela
CONEP não é algo inédito, é possível encontrar textos de antropólogos, de educadores que colocam
em causa a atuação dessas instâncias no controle da ação dos pesquisadores, principalmente, no que
se refere ao trabalho de campo, parte essencial no trabalho do geógrafo. Por isso, se faz necessário
cada vez mais elaborar reflexões sobre uma relação na qual os pesquisadores são obrigados a pensar
nos trâmites burocráticos da pesquisa, a pensar numa proposição metodológica que assegure a quali-
dade de sua pesquisa.

CONEP: a Resolução 510/2016

São vários os documentos que regem a dinâmica da CONEP, sendo assim, esta análise
vai se ater na Resolução 510 de 07 de abril de 2016 que trata das normas aplicáveis a pesquisas em
Ciências Humanas e Sociais. Esta resolução possui dez páginas nas quais possui um texto, por vezes,
repetitivo nos seus objetivos e genérico quando se compara com o texto da Resolução 466 de 12 de
dezembro de 2012. As duas resoluções são assinadas por ministros da saúde, cada um em sua época.
Portanto, a CONEP está sobre a tutela do Ministério da Saúde do Brasil, o que pode dificultar uma
compreensão da essência do trabalho de campo, por exemplo, de um geógrafo. De acordo com Cam-
pos (2020, p.07),

O levantamento feito no SciELO revelou a existência de 1133 artigos publicados na literatura


lusófona e hispânica a partir de 2005 nos quais é citada como palavra-chave a expressão
ética na pesquisa. Entre esses artigos, 738 (65,13%) são provenientes da área das ciências
da saúde, compreendendo as áreas da medicina, enfermagem, reabilitação, saúde pública,
políticas e gerenciamento de serviços de saúde. Encontram-se também 385 artigos da área
de ciências humanas e sociais (educação, ética, ciências sociais, psicologia, sociologia),
compreendendo 33,98% dos trabalhos. Os demais trabalhos se dispersam em áreas como
biologia, engenharia, 46 linguística, letras e artes, química.

No parágrafo único (Quadro 1), da Resolução 510 são listadas pesquisas que não serão
registradas nem avaliadas pelo sistema CEP/CONEP.

Quadro 1. Tipo de pesquisa que não necessitam ser submetidas à CONEP


Pesquisas
De opinião pública com participantes não identificados
Que utilize informações de acesso público nos termos da Lei nº12.527 de 18/11/2011
Que utilize informações de domínio público
Censitária
Com banco de dados, cujas informações são agregadas, sem possibilidade de identificação
individual
Realizada exclusivamente com textos científicos para revisão da literatura científica
Objetiva o aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na
prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito
Atividade realizada com o intuito exclusivamente de educação, ensino ou treinamento sem
finalidade de pesquisa científica, de alunos de graduação, de curso técnico, ou de profissionais em
especialização
Fonte: Elaborado pelo autor, 2020.
33
Os tipos de pesquisas listadas no Quadro 1 não são de especificidade das Ciências Huma-
nas, são para todas as áreas do conhecimento e, é uma relação de práticas que são obvias para qual-
quer professor que leciona a disciplina de metodologia da pesquisa. Em seguida, a Resolução 510, no
parágrafo 1º diz que os Trabalhos de Conclusão de Curso, monografias e similares deverão apresentar
o protocolo de pesquisa no sistema CEP/CONEP. Com experiência na docência de vários cursos su-
periores, é possível afirmar que se todos os alunos tivessem que inserir seus projetos para a apreciação
no CEP/CONEP dificilmente conseguiriam graduar, pois o tempo de retorno do parecer do CEP/CO-
NEP pode perdurar por mais de seis meses, o que significa um semestre de um curso superior.
As faculdades espalhadas por todo interior do Brasil têm um papel fundamental de levar
cursos superiores onde o Estado não consegue chegar, e todas elas pedem o Trabalho de Conclusão
de Curso (TCC). Principalmente, cursos de Pedagogia e Letras nos quais o TCC é um estudo de caso
das escolas localizadas no perímetro urbano e rural, não terão interesse em inserir seus projetos na
CONEP; são alunos/professores que fazem parte do território desde que nasceram, logo, não compre-
enderam o porquê de tantas regras para desenvolver uma pesquisa onde o principal objetivo é estar
em sala de aula amparados teórico e metodologicamente para exercer seus novos conhecimentos
junto aos seus alunos.
No capítulo I que trata dos termos e definições, há 26 termos com suas definições, seme-
lhante a um glossário. O texto apresenta definições de uma série vocábulos e situações com as quais
o pesquisador pode se deparar ao longo da pesquisa. Listar todos seria contraproducente para esta
análise, mas, alguns termos chamam a atenção tendo em vista que muitos são parte intrínseca ao com-
portamento ético de um pesquisador nas Ciências Humanas, tais como, “danos material e imaterial”;
“discriminação”; “estigmatização”; “preconceito”. Seria imaginável que qualquer pesquisador que se
interessa por uma comunidade tenha a intensão de causar esses danos, ao contrário, esses termos são
rechaçados na área de Humanas bem como se acredita em todas as outras áreas do conhecimento. Mas
isso se aprende na universidade, portanto, precede a Resolução 510. Outro ponto é:
A carta Conep reconhece a ética como “pluralista, mutável, podendo ser analisada de diversas
maneiras, por diferentes focos e ângulos e através de variadas linhas filosóficas”. Porém,
afirma uma “essência” unificadora dessa ética que reside no interesse comum pelo respeito à
dignidade do ser humano participante de pesquisa. A questão que surge aqui é não só quem
define, mas também como se define a dignidade humana e sua compatibilidade com práticas
específicas da ciência? (FONSECA, 2015, 360).

A crítica que Fonseca (2015) elabora sobre a carta da CONEP coloca esse órgão como
se o mesmo se comportasse como um Supremo Tribunal Federal, capaz de decidir sobre a vida das
pessoas, neste caso, a vida dos pesquisadores e das comunidades pesquisadas.
No capítulo II, que trata dos princípios éticos das pesquisas em Ciências Humanas e
Sociais, o artigo 3º apresenta dez incisos que é uma mistura do óbvio, no que concerne ao comporta-
mento de qualquer pesquisador comprometido com a ética, e um contraponto aos incisos presentes no
capítulo I, como expresso no Quadro 2.

34
Quadro 2. Norteamento ético para os pesquisadores

Sugestão de comportamento para os Contraponto


pesquisadores
Reconhecimento da liberdade e autonomia de A liberdade científica e acadêmica é compatível
todos os envolvidos no processo de pesquisa, com limitações burocráticas?
inclusive da liberdade científica e acadêmica
Defesa dos direitos humanos e recusa do Não se aplica apenas a pesquisadores da área
arbítrio e do autoritarismo nas relações que de humanas.
envolvem os processos de pesquisa
Respeito aos valores culturais, sociais, morais Cabe a qualquer cidadão. Esses valores são em
e religiosos, bem como aos hábitos e costumes, grande parte vetores que estimulam a pesquisa
dos participantes das pesquisas. na área de humanas.
Empenho na ampliação e consolidação da Quando a pesquisa se dedica a um grupo os
democracia por meio da socialização da pesquisadores têm como meta apresentar
produção de conhecimento resultante da os resultados. Numa população maior, a
pesquisa, inclusive em formato acessível ao publicação de um artigo é uma das maneiras
grupo ou população que foi pesquisada de democratizar o resultado da pesquisa.
Recusa de todas as formas de preconceito, Seria um paradoxo um pesquisador na área
incentivando o respeito à diversidade, de humanas adotar um comportamento
à participação de indivíduos e grupos preconceituoso, sendo que o mesmo irá
vulneráveis e discriminados e às diferenças pesquisar a dinâmica de grupos geralmente
dos processos de pesquisa. discriminados.
Garantia de assentimento ou consentimento Está na definição de termos no capítulo 1.
dos participantes das pesquisas, esclarecidos
sobre seu sentido e implicações
Garantia da confidencialidade das Está na definição de termos no capítulo 1.
informações, da privacidade dos participantes
e da proteção de sua identidade, inclusive do
uso de sua imagem e voz
Garantia da não utilização, por parte do Defender as comunidades pesquisadas sempre
pesquisador, das informações obtidas em foi parte da conduta do pesquisador.
pesquisa em prejuízo dos seus participantes
Compromisso de todos os envolvidos na Condição abordada amiúde tanto no capítulo 1
pesquisa de não criar, manter ou ampliar as quanto no capítulo 2 da Resolução 510.
situações de risco ou vulnerabilidade para
indivíduos e coletividades, nem acentuar o
estigma, o preconceito ou a discriminação
Compromisso de propiciar assistência a Caso isso aconteça o pesquisador já será um
eventuais danos materiais e imateriais, réu num processo.
decorrentes da participação na pesquisa,
conforme o caso sempre e enquanto necessário

Fonte: Elaborado pelo autor, 2020.

No que se refere ao comportamento ético que todo pesquisador de qualquer área científica
deve ter, como está expresso na Resolução 510, se aprende na universidade, no desenvolvimento in-
telectual e científico que só o contato com a pesquisa pode proporcionar. Portanto, o pesquisador não
vai aprender ser ético a partir da resolução citada aqui, mas a partir da sua vivência com a pesquisa,
que começa mesmo antes da universidade, por exemplo, nos institutos federais onde há uma grande
demanda para a iniciação científica. A Resolução 510 é um documento enfadonho, pois no capítulo
35
onde trata da definição de termos, a própria definição já se configura num alerta para o comportamen-
to do pesquisador diante da sua pesquisa.
O assentimento livre e esclarecido é um documento que mereceu um capítulo especial na
Resolução 510. Se trata da anuência do participante da pesquisa depois que o pesquisador responsável
explicar a “natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos e potenciais benefícios e riscos” (CONEP,
2016, p.02). O capítulo 3 desta resolução possui nove artigos e duas sessões, mas o que chama a
atenção é o parágrafo 1º do artigo 5º que sugere ao pesquisador “evitar modalidades excessivamente
formais, num clima de mútua confiança, assegurando uma comunicação plena e interativa” (CONEP,
2016, p.05). Nos parece ser uma contradição, visto que essa resolução impõe aos pesquisadores da
área de humanas um comportamento altamente formal desde a concepção do projeto até o julgamento
pela CONEP, para depois chegar até aos territórios pesquisados.
Outro ponto da Resolução 510 que chama a atenção é o que se refere ao julgamento
ético do projeto por parte do sistema CEP/CONEP. O artigo 26 do capítulo 5 diz que a análise ética
dos projetos “só poderá ocorrer nos Comitês de Ética em Pesquisa que comportarem representação
equânime de membros das Ciências Humanas e Sociais, devendo os relatores serem escolhidos dentre
os membros qualificados nessa área de conhecimento” (CONEP, 2016, p.09). Ao ter acesso a lista
(Quadro 3) de membros titulares da CONEP tem-se a seguinte configuração:

Quadro 3.Formação dos membros da CONEP com mandatos até 2023


Formação Quantidade
Direito 01
Medicina 06
Ciências Sociais 02
Psicologia 01
Fonoaudiologia 01
Ciências Biológicas 01
Antropologia 01
História 01
Fisioterapia 01
Geografia 01
Saúde Coletiva 01
Engenharia Química 01
Filosofia 01
Farmácia 01

Fonte: Elaborado pelo autor, 2020.

Dos 21 membros titulares, sente são das áreas da Ciências Humanas e Sociais. Sendo que,
os membros com formação em Ciências Sociais têm pós-graduação em Saúde Pública e Antropolo-
gia da Saúde. O membro com formação em História tem suas pesquisas voltadas para a História da
Saúde; o membro com formação em Filosofia tem sua atividade acadêmica dentro de uma escola de
enfermagem; e o membro formado em Geografia, minha área de formação, tem pós-graduação em
Biotecnologia e Biodiversidade. É importante salientar que a Geografia possui diversas ramificações

36
e, certamente, que um geógrafo da área física terá dificuldades teóricas e metodológicas para avaliar
um projeto na área de humanas e vice-versa.
Certamente que a equidade (Quadro 3) entre as ciências dentro da composição da CONEP
não está sendo privilegiada. O que se tem é uma prevalência nas áreas da medicina e da saúde, o que
pode ser explicado pelo motivo de que a CONEP esteja “hospedada” no site do Conselho Nacional
de Saúde. Outro equívoco na Resolução 510 é agregar num mesmo documento normas que regem a
dinâmica burocrática de um projeto de pesquisa envolvendo as áreas de Ciências Humanas e Sociais;
são duas áreas diferentes que podem ou não se “conversar” num projeto interdisciplinar, assim como
a Geografia pode construir uma “ponte” com a Química sem se tenha nenhuma compatibilidade em
métodos e técnicas de pesquisa, mas, que se encontram, por exemplo, para uma análise de solo em as-
sentamentos rurais. Ademais, toda ciência pode ser considerada humana e social, tendo em vista que
o objetivo maior de todas as áreas do conhecimento é produzir pesquisas que melhorem a qualidade
de vida de uma determinada sociedade. Mas, objetivamente, como um conselho ou uma comissão li-
mitada em número e formação acadêmica poderá julgar a diversidade de pesquisas onde o ser humano
é o maior motivo da sua concepção?

Josué de Castro e Milton Santos seriam reprovados pela CONEP

Certamente que Josué de Castro, caso tivesse que submeter sua pesquisa aos trâmites bu-
rocráticos do sistema CEP/CONEP, ele desistiria de escrever sua obra prima e o Brasil perderia uma
referência acadêmica no que se refere ao estudo da fome no país. Ao identificar em campo que não
havia raquitismo na Amazônia, mas uma grande incidência da cárie dentária nas populações urbanas
e menor incidência nas populações rurais e o déficit de cálcio, Josué de Castro (1984) precisou estar
próximo a essas populações e conquistar a amizade para poder realizar o levantamento desses dados,
sem que houvesse qualquer burocracia entre pesquisador e participantes tampouco uma relação de
violação dos direitos do povo amazônico.
Este estudo mostrava que apesar de todos os investimentos na Amazônia, ela continuava
a ser “uma região marginal no conjunto da economia nacional [...] o que só pode se explicar pela falta
de capacidade e de idoneidade dos dirigentes” (CASTRO, 1984, p.104). Nos dias atuais, certamente,
que a Amazônia apresenta outra configuração espacial diferente quando estudada por Josué de Castro,
contudo, outros problemas de ordem ambiental, social, econômico continuam a perdurar por falta da
presença do governo, sobretudo, na pesquisa e a violência instalada na luta pela terra.
No Nordeste açucareiro, Josué de Castro analisou o comportamento dos senhores de en-
genho em relação a suas terras para explicar parte da fome na região. “Homens com um ciúme de suas
terras maior do que de suas mulheres e horrorizados com o perigo de que estas terras se rebaixassem
devassamento a produzir qualquer outra coisa que não fosse cana” (JOSUÉ DE CASTRO, 1984, p.
126). Ao colocar um elemento extremamente comportamental na sua análise geográfica, Josué de
Castro, perpassa pela observação em campo, no território pesquisado adotando uma postura que não
consta em nenhum manual de pesquisa. Ademais,

Pesquisar não se restringe a absorver técnicas e pô-las em prática. O cultivo da capacidade


imaginadora separa o técnico do pesquisador; somente a engenhosidade saberá promover a
associação de coisas, que não poderíamos sequer intentar pudessem um dia se compor, num
dado cenário social (OLIVEIRA, 1998, p.19).

37
Em sua análise sobre o Sertão Nordestino, Josué de Castro utiliza de estudos e relatos
realizados por escritores como Rachel de Queirós, Clodomiro Pereira e outros tantos para compre-
ender como se instala a fome no Sertão em períodos severos de seca, “e de suas consequências mais
marcantes para o estado físico e mental dessa gente, sobre sua vida orgânica e sobre sua vida cultu-
ral” (JOSUÉ DE CASTRO, 1984, p. 209). A Geografia da Fome é um trabalho árduo de geografia,
pois em cada região estudada Josué de Castro relata as características físicas regionais e elabora uma
análise crítica da vida social, cultural e econômica através de imersão nos territórios e da leitura de
relatos, em muitos casos, descomprometidos com o rigor científico, porém carregados de informações
necessárias para que Josué de Castro pudesse nos deixar essa obra tão atual, seja no seu contexto so-
cial quanto no contexto da dinâmica de uma pesquisa.
Com exceção de sua tese de doutorado intitulada “O Centro da cidade de Salvador”, Mil-
ton Santos se dedicou a uma análise de caráter muito mais global que local. Isso não quer dizer que
ele negligenciava o local, mesmo porque é na dinâmica local que vamos encontrar as singularidades
de cada território. O conjunto dessas singularidades forma essa enorme diversidade que caracteriza
física e socialmente o planeta. A vivência de Milton Santos em outros países, nos mais diferentes con-
tinentes, permitiu que o mesmo pudesse elaborar reflexões sobre a dinâmica espacial, o que é inerente
ao trabalho de geógrafo.
Para Milton Santos (1991, p.38) “nossas hipóteses de trabalho, a exemplo de nossas con-
clusões, serão de uma maneira ou de outra marcadas pela nossa visão do mundo”, portanto, o resul-
tado de uma pesquisa sobre um dado território acaba por ser uma leitura pessoal do pesquisador. E
se o resultado pode contrariar alguns órgãos oficiais ou mesmo a comunidade pesquisada isso não
pode ser entendido como uma ação antiética ou que vá causar danos a uma cultura. Caso contrário,
o pesquisador perde totalmente o seu caráter de liberdade de pesquisa e de interpretação dos fatos e
de dados coletados em campo. Mesmo para alguém que tenha uma formação superior, porém, que
desconhece a essência do trabalho do geógrafo humano é difícil compreender que,

A ciência geográfica é o estudo desse movimento do real pela perspectiva de sua têmporo-
espacialidade. Tomada assim, tem o compromisso com o todo. Porque tem em mentea
qualidade e as diferentes relações entre os entes. A composição múltipla das determinações
estabelecidas nas relações fundantes do ser do ente. (MARTINS, 2020, p.25).

Como Milton Santos iria propor um caminho de análise crítica ao processo de globaliza-
ção senão estivesse imerso em vários territórios, participando da vida das comunidades? Não consta
em seus relatos a inserção de documentos, formulários em alguma comissão de ética em pesquisa.
Ao dizer que “a Geografia brasileira, no século XXI, em sua pluralidade, deve se questionar sobre os
usos que serão feitos dos conhecimentos que produz. Dessa forma, pode (ou não) evitar a produção de
ausências e se comprometer em evidenciar emergências de sujeitos e territórios” Paula (2019, p.109)
demonstra o quanto o geógrafo brasileiro é maduro enquanto o seu papel nas Ciências Humanas.

A pesquisa na Geografia: o rigor metodológico

Este tópico é um fragmento de parte da metodologia de uma tese de doutorado intitulada


“Do isolamento regional à globalização: contradições sobre o desenvolvimento do Extremo Sul da
Bahia” no qual foram compilados pensamentos de geógrafos sobre diversas questões no que concerne

38
a pesquisa geográfica, sobretudo, na Geografia Humana com o objetivo de mostrar, sobretudo, à CO-
NEP que a Geografia é uma ciência que pauta pelo rigor metodológico em suas pesquisas.
A íntima relação que a Geografia tem com as ciências humanas e naturais exige um rigor
metodológico no sentido de não produzir mais fissuras dentro da própria Geografia, o que poderia
cair no velho discurso da tradicional postura dicotômica. O papel do geógrafo se encontra na análise
espacial, e esta não deve ser fragmentada nem tampouco apenas ser descritiva. Mesmo com toda a
diversidade de variáveis inesgotáveis num estudo geográfico, das inter-relações que a Geografia tem
com outras ciências, é preciso evitar as armadilhas do ecumenismo e valorizar a visão do geógrafo,
ainda que saibamos que “a Geografia não é um departamento isolado do conhecimento cientifico”
(ANDRADE, 1998, p.23).
Discutindo algumas questões sobre a Geografia, tais como para que ela serve e os seus
métodos, Moreira (1994, p.60) dirá que “durante longo tempo a geografia foi definida como uma
descrição da paisagem. Sua tarefa consistia em apreender a morfologia do espaço”. Este pensamento
originado do nascimento da Geografia como ciência na Alemanha, foi modificado através de uma
nova proposição fundada na França. Nesta tese as duas correntes, ou as duas contribuições, estão
presentes. Pois, se de um lado a crítica é o que mais marca o nosso estudo, por outro, no trabalho de
campo não há como ignorar a importância do primeiro ato, que é de enxergar e automaticamente co-
meça a elaborar um mapa mental dos elementos naturais da paisagem, das construções, do ambiente
como um todo.
A não ser que seja uma compilação de ideias, o contato visual é parte necessária para que
depois se possa investigar a relação entre a comunidade e o meio em que vive. Por isso, Silva (2004,
p.23) reconhece a importância do olhar para o geógrafo quando ela diz que “a visão é o sentido fun-
damental para o pesquisador geográfico e é o olhar do senso-comum que indaga o que a reflexão me-
diata vai responder”. O que é a pesquisa geográfica senão a percepção sobre a dinâmica que o homem
e a natureza provocam na construção de um território?
A Geografia é uma ciência que abrange uma amplitude de análise talvez nunca alcançada
por outra. Suas correntes, suas ramificações, sua utilização por outras ciências fez com que o geógrafo
se lançasse (ou foi lançado?) num universo de análises infinitas, e isto refletiu na quantidade imensa
de meios utilizados por ele para se chegar até alcançar um objetivo final. Se por um lado não consegue
fechar num método único, por outro, há a compensação de se poder testar inúmeras combinações,
justamente porque tanto a sociedade como a Geografia são dinâmicas. Barros (2003), corrobora com
a constante renovação da Geografia para atender novos vetores que exigem outras interpretações para
se compreender a dinâmica espacial.

As inovações são vistas não como cronológica e sucessivamente excludentes, mas sim como
propostas que são recuperadas, transformadas em seus significados, aplicações e objetivos,
submetidas à crítica e reatualizadas enquanto o tempo que traz novas circunstâncias
acadêmicas, culturais, sociais, tecnológicas, etc. decorre, e que por fim formam o quadro
conceitual e teórico complexo da Geografia. (BARROS, 2003, p.07).

Outra possibilidade que a Geografia oferece, é que dentro do seu conjunto de estudo, sem-
pre que precisar pode-se recorrer ao auxílio de pesquisadores de diferentes áreas, sejam aqueles que
se dedicam à parte física ou a social do espaço. Ao contrário de algumas ciências que simplesmente
enterram suas teorias e métodos por estes não servirem as exigências atuais, uma prática normal na di-

39
nâmica científica, onde os novos pesquisadores aceitam com facilidade e rapidez novos métodos e os
pesquisadores mais antigos “tendem a reagir ou só aceitar à medida que se fundamentam, chegando
a convencer-se da necessidade da mudança” (MONTEIRO, 1976, p.73), a Geografia consegue unir a
modernidade com a tradição em suas análises.
É importante perceber que se há condições para elaboração de críticas e novas teorias
sobre o que está se estudando é porque alguém, no passado, organizou uma primeira proposta. E,
ainda que utilize os métodos considerados ultrapassados, com o objetivo de refutá-los, eles continuam
sendo referências a partir do momento em são citados na pesquisa. Seria impossível enumerar todos
os teóricos que ao longo da história das ciências ofereceram suas contribuições para que houvesse
maior entendimento da dinâmica do espaço, por isso a opção em compilar algumas ideias que dão
sustentação na condução do procedimento metodológico numa pesquisa em Geografia.
Em “Geografia e Filosofia”, Eliseu Sposito (2004) apresenta algumas contradições teóri-
co-metodológicas dentro das ciências, mais especificamente ligadas à Geografia. Uma das discussões
mais frutíferas sobre a dialética que há entre as correntes de pensamento é relatada sob as ideias de
Popper e Feyerabend, em que o autor coloca em evidência o paradoxo filosófico de uma pesquisa
científica. O primeiro seria, segundo Sposito (2004, p.49), o “pilar do neopositivismo” que privilegia
a linguagem matemática, prima pelo uso da razão e se opõe a experiências vividas, por exemplo.
É uma linguagem que Steffan (1999, p.102) chamará de linguagem artificial “com termos, regras e
definições feitas especificamente para excluir ambiguidades semânticas e contradições sintáticas ou
lógicas”. Enquanto que o segundo propõe uma visão metodológica, totalmente, contrária à visão do
seu outro colega filósofo. Feyerabend tenta demonstrar “que o rigor metodológico é muito mais um
problema que um caminho para a produção científica” (SPOSITO, 2004, p.50). Por esta óptica, uma
metodologia rígida não contemplaria as diversidades de análises onde cada pesquisador, em sua área
do conhecimento, produziria sobre o mundo em que vive.
Os métodos são elaborados, substituídos, utilizados e pensados de acordo com as con-
dições de trabalho que o objeto de estudo requer e no momento histórico ao qual ele está inserido.
Portanto, todas as contribuições metodológicas têm a sua importância. Nesta discussão talvez o que
seja consenso entre dos pesquisadores esteja no fato de que

Nos períodos revolucionários do desenvolvimento de suas disciplinas e nos conflitos que


os caracterizam, têm recorrido à história e à filosofia da ciência como meio de resolução ou
classificação dos seus problemas metodológicos. (MONTEIRO, 1976, p.71).

Andrade (1998) sugere que para a pesquisa geográfica tentar alcançar a perfeição em suas
análises, ela não poderia abrir mão dos cinco princípios formulados por Humboldt, Ritter, Ratzel e
Brunhes (quadro 04). Se, por um lado, essas formulações agrupadas demonstram a evolução da pes-
quisa geográfica, numa visão mais ampla pode-se dizer que nenhuma delas, aplicadas isoladamente
consegue realizar o trabalho do geógrafo. São, portanto, complementares uma das outras.

40
Quadro 4.Compilações dos primeiros procedimentos dos estudos geográficos

Observar os fatos e
Alexander Von Humboldt procurar as causas que os
Princípio de Causalidade
(1769-1859) determinaram. Estabelecer a
relação de causa e efeito.
Depois que delimitar a área
de estudo deve-se fazer a
Karl Ritter
Princípio da Geografia Geral analogia desta com outras,
(1779-1859)
verificando diferenças e
semelhanças entre elas.
Para estudar uma área deve-
se procurar localizá-la e
Friedrich Ratzel
Princípio da Extensão estabelecer os seus limites,
(1844-1904)
usar mapas disponíveis e
conhecer a área de estudo.
Os fatores físicos e humanos
elaboram as paisagens em
conjunto, não isoladamente. É
uma ação integrada. Perceber
Princípio da Conexidade e Jean Brunhes
que o espaço está sempre se
Atividade (1869-1930)
reorganizando, em constante
transformação em decorrência
da ação contínua de vários
fatores.

Fonte: Elaborado pelo autor com informação de ANDRADE, M.C., 1998.

Os procedimentos metodológicos apresentados anteriormente formam nos dias atuais


parte de um conjunto de métodos que está à disposição da Geografia para fazer uso quando lhe
convier. Ainda que cada ciência tenha o seu próprio método, no entanto, “não exclui ou impede o
intercâmbio dos vários métodos entre as diferentes ciências” (MENDONÇA, 1998, p.40). Na mesma
linha de raciocínio, Moreira (1994, p.61) afirma que “o método geográfico é uma combinação de ou-
tros tantos métodos, como o método comparativo, o método taxonômico (classificação) e o método
quantitativo”. Uma situação que pode ser confortável, pois o pesquisador é levado a crer que tem um
leque de métodos a sua disposição, mas também desgastante se ficar limitado a algum deles, tendo
em vista que o uso de um único método geraria grandes questionamentos no trabalho de um geógrafo.
Sabe-se que o método é o principal elemento que caracteriza a pesquisa científica, no en-
tanto, o mesmo “não se constitui em unanimidade na ciência” (SPOSITO, 2004, p.48). Contudo, há
uma tendência, quase que consensual, em aplicar o procedimento dialético, que parte:

De uma visão processual sobre os fenômenos e sobre os seus reflexos nas ideias, em
permanente estado de movimento, de transformação. Nesta dinâmica são destacadas as
contradições mediantes, por exemplo, a negação de uma proposição e a negação desta
proposição (SILVA; SILVA, 1986, p.16).

Na formulação de uma tese geográfica o pesquisador não tem a possibilidade de realizar


experimentações, combinações e dosagens entre elementos diferentes utilizando equipamentos num
ambiente fechado para tentar chegar a uma fórmula perfeita. O que se faz é elaborar hipóteses ini-
ciais, mas que comumente são modificadas ao longo da pesquisa em virtude da mobilidade, que é a

41
principal característica do objeto de estudo da Geografia, o espaço. Uma mobilidade que está se pro-
cessando numa velocidade tão intensa que dificulta o estabelecimento de uma teoria sobre a dinâmica
de uma sociedade no espaço em que habita.
Logo, o trabalho do geógrafo em campo é altamente dinâmico, não se espera que o pro-
jeto inicial não seja modificado ao longo da pesquisa, novos métodos no decorrer da pesquisa podem
ser aplicados para coleta de dados em campo, não se espera que a pesquisa seja congelada até a sua
conclusão. Portanto, é incongruente o trabalho do geógrafo humano com atualizações de formulários
em comissões de ética em pesquisa. A metodologia científica e a ética que se aprende na universidade
combinadas com a experiência adquirida com a convivência na pesquisa, com certeza, dão conta de
formar pesquisadores competentes e éticos, sobretudo, na Geografia Humana.

CONEP: uma receita para se acabar com a ciência

Não como após ler a Resolução 510 da CONEP e não pensar no “ABC da ciencidiologia”
de Mário Bunge (1980). As resoluções propostas pela CONEP aliada a um governo que constante-
mente nega a ciência nos parecem uma combinação explosiva para extinguir a ciência, ou pelo menos
o desejo de fazê-la; é como se fosse um processo para esterilizar a criatividade dos pesquisadores.
Passados 40 anos da sua publicação, o texto de Bunge é tão atual e pertinente ao que “prega” a CO-
NEP e ao momento político que estamos vivendo no país, mormente, no que se refere a educação,
ciência e pesquisa, que se torna fundamental resgatá-lo.

1) Sobre manter um povo em um estado de subdesenvolvimento biológico: Segundo


Bunge (1980, p.127) para que isso aconteça “basta assegurar que o povo consuma
menos de 70g de proteínas por dia. [...] Nestas condições é difícil que surjam novos
jovens com curiosidade científica”. Aqui lembramos a pesquisa de Josué de Castro,
Geografia da Fome, que denunciou a fome, principalmente, em três regiões brasileiras:
a Amazônia, o Nordeste Açucareiro e o Sertão. Curiosamente, essas regiões continuam
como periferias quando o assunto é ciência e pesquisa.
2) Eliminar todos os intelectuais rebeldes: certamente que “não é necessário eliminar
todos eles, só os inconformistas. Os outros, os cordatos, deverão ser usados” (BUNGE,
1980, p.127). No Brasil ser intelectual não é uma tarefa fácil, nem no passado
tampouco nos dias atuais. Não por acaso muitos dos nossos intelectuais tiveram que
se exilarem, e neste século XXI os influenciadores digitais substituem o pensamento
crítico e sufocam o afloramento de jovens que tentam ser intelectuais.
3) Manter um regime socioeconômico que exija que todo mundo se ocupe somente com
a subsistência. Para Bunge (1980, p.128) “a ciência só pode florescer quando sobra
tempo para pensar em problemas que não se referem às necessidades imediatas”. O
que dizer da maioria das nossas crianças que vão à escola com o objetivo principal de
se alimentarem! Não teremos pesquisadores num cenário desses.
4) Rebaixar a remuneração dos pesquisadores científicos. Primeiramente, que no
Brasil, dentro das universidades e nos institutos federais, não há a remuneração de
pesquisador. Todos somos professores. Talvez por isso Bunge (1980, p.128) irá dizer
que nós seremos “sempre considerados amadores ao invés de profissionais”.
42
5) Restringir drasticamente as liberdades públicas, a começar pelas liberdades de
pesquisa, de informação, de crítica e de ensino. Uma cartilha, tal qual a da CONEP,
que obriga a todo pesquisador seguir um roteiro que engessa a criatividade e que
sugere uma relação fria do pesquisador com uma comunidade é no fundo demarcar
“os limites da ciência em oposição ao poder limitado da fé cega” (BUNGE, 1980,
p.129).
6) Submeter as ideias, todas elas, a um controle rigoroso. Para Bunge (1980, p.129)
governos anticiência têm a tendência de criar órgãos de controle intelectual como, por
exemplo, uma “Direção Nacional de Vigilância Intelectual, como parte do Conselho
Nacional de Segurança”. Ainda que a redação da Resolução 510 da CONEP se esforce
para ter um texto que seja um contributo para a comunidade científica, seu objetivo
maior é controlar as ações do pesquisador.
7) Por fim, obrigar os pesquisadores a se transformarem em administradores. Se não
bastasse as agências de fomentos tornar os pesquisadores em técnicos em contabilidade
ou em administração, no que se refere aos escassos recursos para a pesquisa no
Brasil, os CEPs e a CONEP se configuram em mais uma preocupação burocrática do
pesquisador.

CONEP e CEPs: repensar suas funções

É preciso compreender que a maior quantidade de pesquisa no Brasil são realizadas den-
tro das universidades e dos institutos federais, portanto, são professores e professoras que assumem
uma postura de pesquisador (a), na maioria das vezes sem bolsas de pesquisa, muito comum, sobre-
tudo, nas Ciências Humanas, e sem remuneração para tal atividade, se esforçam para fazer pesquisa
num país em que a pesquisa nunca foi uma prioridade; basta nos atermos na chamada “fuga de cére-
bros” que acontece a muitas décadas. Portanto, quando a CONEP impõe regras para pesquisadores há
um equívoco, pois, na verdade estão tolhendo professores, que fizeram concurso para lecionar, não
para ser pesquisadores. Ainda que tentem colocar o tripé – ensino, pesquisa e extensão como ativida-
de do professor, é uma pequena porção de professor que se aventura a fazer pesquisa dentro de suas
instituições.
Críticas aos CEPs e, por conseguinte à CONEP não são recentes, mas pouco divulgadas.
Na Antropologia, por exemplo, Fonseca (2015, p.359) relata que:

Antropólogos – no hemisfério sul tanto quanto no norte – têm sido enérgicos na confrontação
ao modelo CEP. Os múltiplos volumes de reflexão sobre os CEPs apontam para críticas
semelhantes de colegas em outras áreas das ciências humanas: a afirmação da especificidade de
problemas éticos na área de pesquisas humanas, o rechaço ao paradigma biomédico aplicado
de maneira uniforme a todas as áreas disciplinares, o repensar do termo de consentimento, etc.

Essa paridade no que concerne ao protocolo de pesquisa entre as diferentes áreas do


conhecimento é contraproducente para as Ciências Humanas, haja vista que cada ciência tem sua
singularidade. Um geógrafo não vai introduzir uma seringa ou mesmo lesionar psicologicamente um
membro de uma comunidade tradicional ou mesmo toda a comunidade. Ora, não há registros de que
Darcy Ribeiro, Josué de Castro, Milton Santos, Florestam Fernandes, Celso Frutado, Paulo Freire,
apenas para citar alguns dos clássicos da nossa Ciências Humanas, tenham molestado físico e men-
43
talmente alguma comunidade onde realizaram suas pesquisas. Em 1998, Paulo de Salles Oliveira já
alertava para o fato de que:

O estudo de metodologia em ciências humanas necessitaria ser cuidadoso e zelar para que
homens concretos, sujeitos e objetos de suas indagações, não fossem mutilados ou, então,
não se tornassem objetos mortos nas mãos de cientistas dispostos a fazer da ciência outro
poderoso instrumento de dominação (OLIVEIRA, 1998, p.24).

E, ainda que fosse um pesquisador das áreas das Ciências Médicas, numa pesquisa de
campo, este teria naturalmente um comportamento ético sabendo que o seu maior objetivo é realizar
uma pesquisa que indiquem um melhor caminho, por exemplo, na busca de uma vacina ou de um me-
dicamento. Utilizando como justificativa para proteger algumas comunidades tradicionais, sobretudo,
os indígenas, membros de CEPs sem formação na área de humanas tomam como exemplo o caso
do livro “Darkiness in El Dourado16” (Trevas no Eldorado) para homogeneizar o comportamento de
todos os antropólogos. É um equívoco produzir regras, resoluções, partindo de apenas um caso nega-
tivo para aplicar um comportamento standard para todos os pesquisadores, principalmente, quando
os redatores dessas resoluções são pesquisadores. Ademais, sobre este livro, há críticas severas pela
grande maioria dos antropólogos, seja no Brasil ou no exterior.
Ao externar uma grande preocupação com as comunidades tradicionais, a CONEP e os
CEPs poderiam deixar reservadas algumas cadeiras nos seus conselhos para serem ocupadas por in-
dígenas, quilombolas, ribeirinhos, ciganos etc. Ao construir este cenário de oposição entre pesquisa-
dores e comunidades tradicionais, o sistema CEP/CONEP presta um desserviço a um trabalho árduo
de conexão entre os saberes tradicionais e o conhecimento acadêmico.
Apenas a sugestão que Oliveira (1998) escreveu é o bastante para que o pesquisador com-
preenda o seu papel, portanto, a Resolução 510 da CONEP é obsoleta e de existência inexplicável,
tendo em vista que, reafirmando, o comportamento do futuro pesquisador é forjado nas faculdades,
universidades e institutos federais.
Grande parte das nossas referências na Geografia, que podem ser encontradas também em
obras literárias, como, por exemplo, Grande Sertão Veredas, tiveram no campo suas maiores fontes de
pesquisa. É possível que os novos geógrafos se utilizem de outros métodos que o excluam do traba-
lho de campo para produzir um projeto ou desenvolver suas pesquisas. Ainda que a Geografia tenha
na tecnologia uma aliada nos seus estudos, entretanto, a falta do trabalho de campo poderá levar ao
risco é que sua pesquisa fique comprometida, sobretudo, na fidedignidade da dinâmica territorial que
envolve compreender a relação das comunidades com o seu território bem como com a totalidade do
território onde está inserida.
Talvez este tema não seja tão relevante para geógrafos que não vão mais a campo por
vários motivos, mas é preciso pensar nos milhares de futuros geógrafos que virão, pois a Geografia
não vai acabar enquanto ciência, mesmo com tantas tentativas de enterrá-la, seja considerando ciência
inútil ou diminuindo verbas para suas pesquisas. As aulas de campo na faculdade de Geografia são
parte da grande motivação que os jovens ao entrarem para esta ciência. Em campo, em sala de aula o
futuro geógrafo aprende com seus professores a manusear equipamentos, aplicar métodos e técnicas
de pesquisa, e, principalmente, adquirir uma postura ética perante as comunidades e seus territórios.
16 Livro publicado pelo jornalista Patrick Tierney em que acusa NapoleonChagnon e James Neel, antropólogo e medico,
respectivamente, de introduzir uma vacina perigosa nos ianomâmis da Venezuela. Texto de uma matéria publicada pelo
Jornal Folha de São Paulo em 18/11/2000 pelo jornalista Álvaro Pereira Júnior.
44
Neste sentido, a Resolução 510 da CONEP é desnecessária e ainda atinge diretamente a
função do professor, que para além da docência, incentiva seus alunos para o caminho da pesquisa. As
escolas, especialmente, as universidades e os institutos federais não seriam capazes de dar uma for-
mação ética em pesquisa? A CONEP e os CEPs nos seus formatos são mais um daqueles dispositivos
que visam comprometer a atuação dos professores, onde a preocupação é sempre com a burocracia
e não com o aprimoramento de suas ações efetivas como, por exemplo, aulas, pesquisas, iniciação a
pesquisa, extensão.
Mesmo quando tenta apresentar alguma “colaboração” metodológica, em prol da pesqui-
sa ou da proteção das pessoas participantes da pesquisa, a resolução da CONEP é dúbia. Vejamos:
no capítulo V que trata do procedimento de análise ética no sistema CEP/CONEP, o parágrafo 1º diz
que a avaliação científica dos aspectos teóricos dos projetos submetidos a essa resolução compete às
instâncias acadêmicas específicas, tais como comissões acadêmicas de pesquisa, bancas de pós-gra-
duação, instituições de fomento à pesquisa, dentre outros.
Não cabe ao Sistema CEP/CONEP a análise do desenho metodológico em si. E no pará-
grafo 2º do mesmo capítulo diz que, a avaliação a ser realizada pelo Sistema CEP/CONEP incidirá
somente sobre os procedimentos metodológicos que impliquem em riscos aos participantes. Conclui-
-se que num primeiro momento o sistema CEP/CONEP não irá interferir nos aspectos teóricos (o que
seria óbvio) nem no desenho metodológico, por outro lado, o sistema CEP/CONEP se resguarda no
direito de interferir na metodologia da pesquisa caso esta venha significar um risco aos participantes.
Seria interessante e altamente pedagógico que a CONEP e os CEPs explicitassem quais tipos de ris-
cos, por exemplo, uma pesquisa geográfica poderia causar aos seus participantes.

Considerações finais

Que a vida acadêmica, sobretudo, na pesquisa seja regida pela dialética que é própria
da sua dinâmica, em todas as áreas do conhecimento. Que o trabalho do professor/pesquisador seja
suficiente na condução da confecção de um projeto de pesquisa. Que as bancas de TCC, mestrado e
doutorado tenham a liberdade de julgar a metodologia e o teor ético da pesquisa.
Que todo intelectual do território, não somente o geógrafo, tenha a liberdade de realizar
suas pesquisas através do contato humanista, que é próprio da sua formação, e que sempre norteou
sua presença nos diferentes territórios culturais. O geógrafo quando vai a campo sua imersão se dá
em lugares como um pequeno bar, com a dona da pensão, com a presidente da associação local, com
políticos locais, com líderes religiosos locais, na pracinha do distrito onde as pessoas se reúnem para
conversar, com o menino que vendo picolé, com o morador mais velho da vila, com o cacique, com
o pajé, e com uma infinidade de atores e variáveis que nenhuma resolução conseguirá abarcar no que
se refere a mecanizar o comportamento do geógrafo e a natureza.

Referências

ANDRADE, Manuel Correia de. Geografia econômica. São Paulo: Atlas, 1998.
BARROS, Nilson Crocia. Ensaio sobre renovações recentes na Geografia Humana. Mercator –
Revista de Geografia da UFC, ano 02, número 04, 2003

45
CAMPOS, Regina Helena de Freitas. A pesquisa em ciências humanas, ciências sociais e educação:
questões éticas suscitadas pela regulamentação brasileira. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 46,
e217224, 2020. CASTRO, Josué de. Geografia da fome. Rio de Janeiro: Edições Antares, 1984.
CERQUEIRA NETO, Sebastião Pinheiro Gonçalves de. Do isolamento regional à globalização:
contradiçõessobre o desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia. Tese (Doutorado em Geografia)
–Núcleo de Pós-Graduação em Geografia, Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa,
Universidade Federalde Sergipe. São Cristóvão, 2009.
CONEP.http://conselho.saude.gov.br/images/comissoes/conep/documentos/NORMAS-
RESOLUCOES/Resoluo_n_510_-_2016_-_Cincias_Humanas_e_Sociais.pdf. Acesso em
14/06/2020. BUNGE, Mário. Ciência e desenvolvimento. Tradução: Cláudia R. Junqueira. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP.
ECO, Umberto. Como se faz uma tese. Tradução: Gilson C.C de Souza. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2000. FONSECA, Cláudia. Situando os comitês de ética em pesquisa: o sistema
CEP (Brasil) em perspectiva. Horiz. Antropol. [online]. 2015, vol.21, n.44, pp.333-369.
MARTINS, E. R. Dimensões do geográfico: da quantidade à qualidade, do ente ao ser. Geousp –
Espaço e Tempo(On-line), v. 24, n. 1, p. 8-26, abr. 2020 MENDONÇA, Francisco. Geografia
física: ciência humana? 6ª.ed. São Paulo: Contexto, 1998. MONTEIRO, Carlos A. F. Teoria e clima
urbano. São Paulo: IGEO-USP. Tese (Livre-Docência), 1976.
MOREIRA, Ruy. O que é geografia. 14ª.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. OLIVEIRA, Paulo de Salles
(org.). Metodologia das Ciências Humanas. São Paulo: Hucitec, 1998. PAULA, C. Q. Geografias das
ausências e geografias das emergências. Geousp – Espaço e Tempo (Online), v. 23, n. 1, p. 095-111,
abr. 2019. SANTOS, Milton. O trabalho do geógrafo no terceiro mundo. 3ª.ed. São Paulo: Hucitec,
1991. SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 21ª.ed. São Paulo: Cortez,
2000. SILVA, Barbara-Christine N.; SILVA, Sylvio B.M. Elaboração de projetos de pesquisa
em geografia. Salvador: Editora UFBA, 1986.
SILVA, LenyraRique da. Do senso-comum à geografia científica. São Paulo: Contexto, 2004.
SPOSITO, Maria E. Beltrão. Capitalismo e urbanização. São Paulo: Contexto, 1994. STEFFAN,
Heinz Dieterich. Novo guia para a pesquisa científica. Tradução: Eliete Ávila Wolff. Blumenau:
FURB, 1999.

46
É preciso matar Milton Santos! Por quê?

Sebastião Cerqueira-Neto
Leonardo Thompson da Silva

Introdução

A biografia de Milton Santos bem como o conjunto da sua obra são objetos de estudos
intermináveis, justificados por sua grande contribuição não somente a ciência geográfica, mas por sua
amplitude nas análises dos problemas sociais, culturais, econômicos e espaciais em todas as escalas.
A sua capacidade de pensar o Brasil e o mundo, tendo em vista que ele viveu e trabalhou em diversos
países, propiciou que ele elaborasse um pensamento crítico que ultrapassou os muros da Geografia e
ganhou o respeito em outras ciências, sobretudo, aquelas que se dedicam a elaborar estudos sobre a
dinâmica do global colocando o humanismo como norteador de suas análises.
Para além de suas análises sobre os espaços, Milton Santos não deixava de produzir seve-
ras críticas sobre a ciência, a universidade, o papel da intelectualidade brasileira. Milton Santos teve
sua formação acadêmica inicial em Direito e depois se dedicou a entender o território brasileiro e
global, portanto, como ele mesmo se intitulava, um geógrafo. Porém, Milton Santos foi mais que um
geógrafo, foi um pensador na amplitude da palavra, que conseguia realizar conexões sobre território,
política, ciência, técnica e desenvolvimento.
O Brasil precisa conhecer seus pensadores. Pode-se dizer que, de maneira geral, nomes
como, Josué de Castro, Celso Furtado, Darcy Ribeiro e Milton Santos ainda estão no anonimato ou
mesmo “mortos”, inclusive, nos diferentes níveis de ensino bem como na sociedade em geral, pois
ainda se valoriza pensadores estrangeiros para compreender a dinâmica do nosso povo.
Portanto, há uma necessidade urgente do resgate dos pensadores brasileiros, sobretudo,
porque é fundamental entender que nós temos nossas próprias referências no que se refere a pensar
o Brasil e mundo. Por isso, este texto tem como escopo não deixar que enterrem as ideias de um dos
mais importantes pensadores brasileiros; Milton Santos, que em 2021 completará 20 anos de sua au-
sência física entre nós.
Assim, este texto é uma reflexão a partir de uma percepção pessoal de caráter empírico
sobre a nossa condição de permanentes colonizados; no passado fisicamente e nos dias atuais, inte-
lectualmente. Por isso, essa reflexão também se configura numa proposta de saída dessa condição de
repetidores de pensamentos produzidos no norte e passarmos a produzirmos teorias endógenas ou
indígenas, como afirmava Milton Santos. Certamente que há muitas pesquisas, textos, reflexões nessa
direção, e este texto pretende fazer parte desse rol de indignados com o neocolonialismo intelectual
que não se constrange em continuar sua devassa nos lugares do sul.

47
Como nossos intelectuais são mortos?

Político e academicamente grande parte dos nossos intelectuais já está enterrada, seja na
forma literal ou metaforicamente. Certamente que não darei conta de colocar neste debate todos os
intelectuais que contribuíram com suas obras para a formação crítica do território brasileiro, sendo
assim, listei alguns deles que utilizo nas minhas pesquisas em Geografia.
Josué de Castro morreu no exílio, morreu por depressão em não poder voltar ao Brasil.
Ainda morto, o regime militar tentou proibir a chegada do seu corpo ao país. Nas universidades bra-
sileiras as obras de Josué de Castro foram sepultadas impedindo que a construção de pensamento
crítico endógeno pudesse florescer. Através da “Geografia da Fome” estudou, denunciou e propôs
saídas para um dos maiores problemas que aflige o país ainda nos dias atuais. Josué de Castro, desde
a década de 40, denunciou o desmatamento criminoso nos biomas da Mata Atlântica e Floresta Ama-
zônica, causando grande desconforto aos “coronéis” que comandavam politicamente o semiárido e o
Nordeste açucareiro. O laboratório das pesquisas iniciais de Josué de Castro foram os manguezais e
as palafitas de Recife, portanto, dava visibilidade aos invisíveis; se interessou por aqueles que a polí-
tica e a academia desprezavam.
Celso Furtado, que pensou o desenvolvimento do Nordeste brasileiro fora do discurso
da seca, também teve as suas ideias sepultadas na academia e no meio político. Ao propor uma nova
dinâmica econômica para o semiárido pautada no investimento da educação, tecnologia e atração de
empresas, Celso Furtado foi ignorado e suas ideias sufocadas por aqueles que imputavam ao baixo
regime hidrológico da região a condição de miséria eterna dos povos que vivem na caatinga.
Paulo Freire e Anísio Teixeira têm suas ideias combatidas, reprimidas até os dias atuais,
sobretudo, pelo governo bolsonaro. Por outro lado, os governos anteriores, não souberam aplicar di-
daticamente as propostas desses dois pensadores brasileiros. Tanto as chamadas direita e a esquerda
brasileiras, apenas personalizaram a imagem de Paulo Freire e Anísio Teixeira; isto é, se concentra-
ram somente em elaborar a crítica pela crítica dentro de um embate política, porém, sem que nenhum
dos dois lados oferecesse um discurso técnico na direção de apoio ou repressão aos métodos propos-
tos por Paulo Freire e Anísio Teixeira.
Quando Paulo Freire disse que era um “professor a favor da decência contra o despudor, a
favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra
a ditadura de direita ou de esquerda”, penso que a direita e tampouco a esquerda conseguiram inter-
pretá-lo, provavelmente porque ambas correntes possuem limites teóricos e metodológicos para in-
terpretar o mundo haja vista que só caminham numa única direção. Tanto a direita quanto a esquerda
correm o risco de produzirem críticas estéreis se pensarem de forma unilateral. Daí a dificuldade em
elaborar uma análise, pois, a análise depende de uma visão ampliada e de entendimento da totalidade
do território.
Ainda neste contexto, outra referência é o Professor Darcy Ribeiro que, para além dos
seus estudos sobre a origem do Brasil através da sua imersão em vários territórios indígenas, contri-
buiu pedagógica e teoricamente com a fundação da Universidade de Brasília, e atuou como consultor
acadêmico na Universidade do Chile no Governo Salvador Allende. Uma das principais críticas ela-
boradas por Darcy Ribeiro está na subserviência acadêmica que nós brasileiros temos diante de pen-
sadores e universidades estrangeiras. Para Darcy Ribeiro teríamos que nos concentrar na produção

48
de um pensamento endógeno, é o que Milton Santos vai chamar de teorias indígenas17, não produzir
um pensamento baseado numa cultura europeia visto que a Europa não estava interessada em nossas
pesquisas. Ele cita o exemplo da França18, que não precisaria e tampouco estaria interessada em nos-
sos estudos sobre a sua cultura.

Somente a política sepulta nossos intelectuais?

Sempre ouvimos falar que a política não caminha de mãos dadas com a academia. Essa
dicotomia é uma meia verdade. O enterro das ideias dos pensadores citados no tópico anterior não foi
feito apenas por um ato de governo. Com raras exceções, tanto no regime militar quanto no democrá-
tico houve e ainda há um apoio, certamente que velado, a supressão de textos, livros, vídeos que con-
têm pensamentos brasileiros genuínos. Por um caminho inverso observa-se19 que uma grande parte
dos professores, sobretudo, nas Ciências Humanas, planeja e repete ao longo dos anos suas atividades
escolares baseadas nas ideias de Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim.
Milton Santos, que foi um dedicado a estudar as ideias de Marx, falava que seria um gran-
de risco ser um ortodoxo do pensamento do filosofo prussiano; um comportamento assim poderia ser
semelhante a participar de uma seita. Não há nenhum problema em trabalhar com os textos de Marx,
Weber, Durkheim, Sartre, Élisée Reclus, La Blache, Boaventura de Sousa Santos, por exemplo. Mas,
negligenciar, omitir, suprimir, negar o pensamento de Milton Santos, Josué de Castro, Celso Furtado,
Darcy Ribeiro, Paulo Freire, Anísio Teixeira, Raimundo Faoro, Florestan Fernandes, no mínimo é
uma postura de quem ainda se sente colonizado academicamente em pleno século XXI ou incapaz
de “traduzir” os nossos intelectuais para a realidade brasileira, ou ainda, prefere fazer parte de uma
intelectualidade estrangeira como forma de obter um status em sua carreira acadêmica. Normalmente,
poucos professores no ensino médio no Brasil dominam a língua alemã, e, portanto, se amparam em
traduções.
Neste sentindo, é possível afirmar que não há uma dualidade entre política e academia. O
que há são preferências políticas partidárias, seja esquerda ou direita, como norteamento em algumas
atividades acadêmicas. Evidentemente que a academia também é um ambiente político, no entanto, o
problema pode estar na reprodução do comportamento de políticos profissionais, sobretudo, quando
se trata da conduta ética, e que são questionados por nós professores. Assim, ao reproduzirmos com-
portamentos políticos semelhantes ao da vida dos partidos políticos dentro do ambiente acadêmico
criamos um cenário de total desconstrução da dicotomia entre política e academia, e provocando
frustração e desânimo por parte de alguns professores e pesquisadores com a educação e ciência
brasileiras.
A expressão “fuga de cérebros”, um comportamento que muitos pesquisadores brasileiros
adotaram e adotam, seja por falta de verba para pesquisas ou pela perseguição política, não se confi-
gurou apenas num êxodo científico, acadêmico, mas também a morte física e intelectual de grandes
pesquisadores que não suportaram viver sob uma política do medo, mormente, no período do regime
militar. Outrossim, porque não conseguiram conviver com colegas que fazem das agências de fomen-
to à pesquisa lugares impermeáveis, mormente, para jovens pesquisadores. Basta observar os requi-
17 Teorias indígenas foi um termo que Milton Santos utilizou para definir o que seria um pensamento próprio construído
a partir dos intelectuais brasileiros. A fala foi feita quando entrevistado pelo Programa Roda Viva da TV Cultura.
18 No documentário sobre a vida de Josué de Castro, Darcy Ribeiro faz essa crítica.
19 Um olhar empírico baseado em experiências pessoais em escolas de ensino médio e no Instituto Federal da Bahia.
49
sitos para se conseguir uma bolsa de pesquisa no Brasil, bem como as condições que cada comitê de
assessoramento impõe para se alcançar ou mudar de nível na função de pesquisador.
Não por acaso o Professor Miguel Nicolelis, numa de suas entrevistas, disse que dificil-
mente Albert Einstein conseguiria chegar pesquisador A1, pois não orientou em cursos de mestrado
ou de doutorado. Suzana Herculano-Houzel20 afirmou no Programa Roda Viva da TV Cultura que
fazer pesquisa no Brasil era um péssimo negócio, principalmente, porque no país não havia a profis-
são pesquisador ou cientista; ela também faz uma crítica no que se refere à existência de uma classe
privilegiada da ciência brasileira que dificulta o florescimento de novos bolsistas/pesquisadores. Um
cenário acadêmico que nos faz lembrar os grupos impermeáveis que Milton Santos detectou em algu-
mas universidades onde lecionou. Coincidentemente os Professores/pesquisadores Miguel Nicolelis
e Suzana Houzel desenvolveram suas pesquisas em outros países, inclusive, contando com o auxílio
das agências dos países onde estavam radicados.
Na discussão sobre as mudanças climáticas também vamos encontrar a intolerância com
os céticos. O professor Luiz Carlos Molion, que contesta veementemente a teoria de que o homem é
responsável pelo aquecimento global, recebe várias críticas e até mesmo é desprestigiado pela acade-
mia e por grande parte da mídia que repercute os estudos do Painel Intergovernamental para estudos
de Mudanças Climáticas. Nessa questão, não se trata de dizer que o professor Molion esteja certo ou
equivocado, mas, o que chama a atenção é como a grande parte da academia não consegue aceitar uma
palavra contrária. Aliás, se aprende na academia que a dialética, o contraditório, a falta de consenso
são características contidas num trabalho acadêmico independentemente da área de conhecimento.
Assim, acredito que tanto Nicolelis, Houzel e Molion, para citar exemplos de pesqui-
sadores que estão vivos, fazem parte de uma lista para ser “soterrados” cientificamente por colegas
brasileiros. Portanto, os algozes da ciência não estão somente dentro de uma ideologia política, mas,
estão dentro dos laboratórios, nas agências de fomento, nas universidades, nos institutos federais.
O ativismo, que não é ingênuo, que está presente em todas as colorações partidárias, está
substituindo a leitura, a política e também deseja matar os intelectuais. Os atos físicos, xingamentos,
palavras grosseiras ganham maior visibilidade do que palavras críticas elaboradas a partir de pesqui-
sas acadêmicas. Mas, qual ativista pode falar sobre a fome e compreender suas causas tão bem como
demonstraram os estudos de Josué de Castro? Este geógrafo recifense produziu o mapa da fome do
Brasil sem dissociar as questões ambientais, o desenvolvimento econômico e a política.
Na questão da Amazônia Bertha Becker elaborou diversos estudos para o desenvolvi-
mento dessa região através do uso racional21 dos elementos naturais. Infelizmente as autoridades
brasileiras, ao longo dos governos, não escutaram a professora. Bertha Becker sobre a ocupação da
Amazônia com o apoio da ciência brasileira? No ano de 2005, Bertha Becker concede uma entrevis-
ta22 à Revista Desafios e Desenvolvimento onde sugere alguns caminhos para o desenvolvimento da
Amazônia, sobretudo, partindo da diferenciação entre preservação e conservação. Para Becker (2005,
p.11) “a região amazônica não pode ser encarada como algo único. É um caldeirão de diferenças so-
ciais [...] o nível de aspirações se elevou enormemente para todos os atores sociais daquela região”;
isto significa dizer que a Amazônia não deveria ser vista somente através do seu patrimônio natural.
20 Entrevista de Suzana Houze ao Programa Roda Viva disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VVMHrWallRc.
Acesso em: 17 jan. 2020.
21 A Geografia sempre se utilizou da expressão “uso racional”, que foi substituída nos dias atuais pela palavra
“sustentabilidade” que tem um apelo mais comercial para vender livros.
22 Entrevista realizada por Maysa Provedello.
50
Para esta geógrafa o movimento ambientalista foi muito importante, contudo, na Amazônia os seus
moradores “desejam fazer parte da nação como qualquer outro cidadão” (2005, p.13). Em outras pa-
lavras, superar o preservacionismo e aplicar conceitos do conservacionismo.
Por que os estudos de Darcy Ribeiro sobre as etnias indígenas foram ignorados pelos
sucessivos governos brasileiros no que se refere a uma política indigenista? Talvez porque nunca
reconhecemos nos indígenas seres humanos que fazem parte do mesmo território em que vivemos, o
Brasil. Para Cristovam Buarque (2000, p.376) “a cada momento da história do país, um tipo de divi-
são surge, inviabilizando a construção de uma nação de compatriotas, incluídos no mesmo projeto de
desenvolvimento. O território descoberto quinhentos anos atrás completa seu quinto centenário sem
ter se transformado em uma nação”. Isto ajuda a explicar o porquê da nossa dificuldade em compre-
ender que vivemos num único território.
Na economia, em 1979, Milton Santos já publicava “O espaço dividido: os dois circuitos
da economia urbana em países subdesenvolvidos”. E o que os governos brasileiros aproveitaram
dessa pesquisa para atuar na urbanização e compreender a economia de nossas cidades? Ao contrá-
rio sempre promoveram programas de desenvolvimento generalistas sem observar as características
locais e regionais.
Como último exemplo, temos o professor Ignacy Sachs, que trabalha no Brasil a bastante
tempo, em 1981 publicou “Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir” onde sugere um crescimento
econômico que contemple tanto as necessidades da sociedade quanto a proteção ambiental. Listadas
estas referências pode-se chegar à conclusão de que não há nada de novo em termos de se desejar um
cenário de bem comum social.
Todos os “gritos” que ouvimos hoje em prol de uma sociedade mais justa, com políticas
públicas para o meio ambiente, desenvolvimento territorial respeitando as diversidades, já foram
dissecados amiúde por Milton Santos e outros pesquisadores brasileiros citados ou não neste texto.
A liberdade de expressão é um direito indiscutível em qualquer sociedade que tenha a democracia
como o norte da sua vida social e política. Isto que significa que todas as pessoas podem falar sobre
qualquer assunto. Contudo, um país que deseja atingir um nível de desenvolvimento não deve trocar
o que se divulga nas redes sociais (em 280 caracteres) por livros, por artigos científicos ou pelas vozes
das comunidades tradicionais.

Mas, porque “matar” Milton Santos?

Para tentar responder a esta pergunta deixarei de lado o fato de que Milton Santos era
negro, nascido na Bahia, portanto, nordestino. Sendo assim, seria indelicado imputar ao colega que
usou essa expressão uma postura que pudesse refletir qualquer tipo de preconceito, mesmo porque
penso que o colega fez uma crítica a grande presença de Milton Santos, nas referências das pesquisas
em Geografia aqui no Brasil, era como se os brasileiros, nessa área, só conhecessem Milton Santos.
Provavelmente essa percepção ocorreu porque o professor europeu estava inserido num
ambiente acadêmico onde Milton Santos deixou um grande legado, portanto era “normal” o convívio
com a imagem de Milton Santos nas paredes, nas bancas de livros, nas placas colocadas em espaços
em homenagem ao geógrafo brasileiro etc. Logo, o que posso conjecturar sobre a expressão “matar
Milton Santos” seria pelo colega estar enfadonho com tantos trabalhos resultantes da semente que
Milton Santos plantou em seus escritos, suas palestras, por incontáveis premiações.
51
Não tenho competências técnicas e metodologias para explicar porque temos que matar
Milton Santos, mas tentarei aqui defender porque ele deve viver e porque suas ideias, seus pensamen-
tos ainda necessitam de aprofundamentos em nossos estudos.
Entre tantas pesquisas que poderiam justificar a presença e o espalhamento do pensa-
mento de Milton Santos escolhi um livro publicado em 2009 que foi organizado pelos professores
Maria Auxiliadora da Silva e Rubens Toledo Junior com o título “Encontro com o pensamento de
Milton Santos: o homem e sua obra”. O livro reúne dezessete artigos de onde extraí alguns trechos
que colaboram para que Milton Santos seja indispensável, sobretudo, tendo a Geografia como ciência
que contribui para compreender o mundo em que vivemos. Poderia buscar em outras fontes como
congressos, dossiês, artigos e outros livros que homenagearam o professor Milton Santos, mas, seria
difícil condensar todos num artigo. Por isso, a opção por um livro organizado por professores da Uni-
versidade Federal da Bahia, onde Milton Santos deixou um legado que ainda está para ser totalmente
explorado.
O primeiro texto “Os desafios da geografia e a contribuição da obra de Milton Santos:
originalidades e rigores teóricos e epistemológicos,” de Maria Adélia Aparecida de Souza, mostra a
importância de Milton Santos quando propõe a análise do território a partir do meio técnico, científico
e informacional que revoluciona a Geografia brasileira e a Geografia mundial. Para Maria Adélia, a
Geografia deve estar “a serviço da humanidade” e complementa “é sobre essa Geografia que eu con-
vido todos a pensar e a discutir. Uma “Geografia Nova”, como queria Milton Santos, ou uma “Geo-
grafia Renovada” (2009, p.44).
Em “Expansão da agricultura moderna no cerrado brasileiro: pistas para uma análise te-
órica”, escrito por Júlia Adão Bernardes, a autora tem por objetivo mostrar “a importância do aporte
conceitual e teórico do professor Milton Santos e de como ele pode ser traduzido em pesquisas con-
cretas, evidenciando a existência de uma vertente teórica na Geografia que procura trazer o espaço
para o clube dos debates em torno dos principais problemas da vida contemporânea” (2009, p.47).
O professor Fernando Conceição em “Milton Santos: ser intelectual e negro” mostra que
Milton Santos sempre “ressaltou a sua independência intelectual frente a quaisquer posições que sig-
nificassem a tomada de partido por motivos circunstanciais” (2009, p.65). Mais adiante, Conceição
diz que “Milton Santos jamais se negou como homem e como negro, se constituiu em exemplo espe-
cial de rigor intelectual” (2009, p.69).
Ao escrever “A ideia de paisagem na obra de Milton Santos”, Maria Ângela F.P. Leite
traz em seu parágrafo inicial uma das principais características do geógrafo brasileiro. Para Leite,
Milton Santos ser preocupava em entender os “problemas que cercam a cultura, o papel do intelectual
e seu compromisso social na atualidade esteve sempre estreitamente relacionada com sua busca pela
interpretação dos processos técnicos” (2009, p.93). Ao final do seu artigo, Leite homenageia Milton
Santos dizendo que o maior tributo que poderíamos fazer a este intelectual seria “apontar a influência
que seu pensamento e suas propostas podem vir a ter sobre os rumos de outras áreas do conhecimento
que, a exemplo da Geografia, também se ocupam do espaço” (2009, p.102).
O artigo de Sandro Correia intitulado “As contra-racionalidades e os serviços públicos
na periferia, na ótica de Milton Santos” mostra um dos objetos principais da preocupação de Milton
Santos, a extrema desigualdade socioeconômica e territorial do país. Correia atenta para o fato de que
“o futuro das cidades pertence aos pobres, porque eles sabem viver na escassez. Os pobres criam con-

52
tra-racionalidades no sistema dominante e [...] criam alternativas que combatem a ação exploradora
do capital” (2009, p.154).
Em “Por um novo humanismo na universidade nova: inspiração de Milton Santos” Na-
omar de Almeida Filho vai buscar na obra “Por uma geografia nova” “elementos estruturantes da
conjuntura conceitual contemporânea ou, nos seus termos, da ideologia do mundo moderno” (2009,
p.180) que vão inspirá-lo a construir o projeto pedagógico da Universidade Federal do Sul da Bahia23.
Ao pensar em um novo modelo de universidade, o professor Naomar destaca o seguinte pensamento
de Milton Santos: “A burocracia dentro da universidade tem a tendência de dar mais importância aos
meios do que aos fins, de privilegiar o resultado ao invés do conjunto” (2009, p.182).
Priorizamos esses seis artigos por entender que cada um deles apresenta diferentes facetas
do pensamento de Milton Santos, desde a concepção histórica e o papel da Geografia até a arquitetura
teórica de uma universidade. Os artigos corroboram com a ideia de que ainda não podemos “matar
Milton Santos”. Então, vejamos. No primeiro artigo, sublinhei abordagem da proposta da teoria do
meio técnico-científico-informacional, que demonstra o quanto Milton Santos estava antenado com
as tecnologias que estariam por vir para transformar o território.
É importante ressaltar que Milton Santos não conviveu com esse turbilhão de informa-
ções e desinformações presente na diversidade de redes sociais. Penso que se estivesse vivo Milton
Santos continuaria a dizer que não nos comunicamos, apenas há troca de informações com muitos
ruídos; ruídos que na nossa modernidade se configuraram como notícias falsas.
No segundo texto, a Geografia agrária se ampara nos conceitos de Milton Santos e mostra
o quanto suas ideias se tornam concretas no campo. Milton Santos fazia uma crítica ao intenso pro-
cesso de urbanização e o risco de comprometer um projeto de reforma agrária no país e a diminuição
de alimentos para abastecer a sociedade; o que acabou acontecendo.
Terceiro texto traz a questão racial e mostra como Milton Santos se comportou perante
essa questão sem comprometer o seu desenvolvimento acadêmico e sem se vender por discursos di-
cotômicos no que concerne a questão. Nessa questão, o que interessava ao Milton Santos era saber o
que o país queria fazer com seus negros, isto é, oferecer apenas paliativos ou apresentar um projeto
explícito de política pública para uma verdadeira inserção dos negros?
O quarto texto mostra a preocupação que Milton tinha no que se refere ao papel do inte-
lectual, mormente, aquele dedicado a estudar a dinâmica de um dado território. Quinto texto, fala da
principal inspiração nas pesquisas de Milton, os pobres. E no sexto texto, exalta a modernidade de
Milton Santos, para o pensamento da criação de uma universidade brasileira em 2013.
Portanto, Milton Santos está e estará presente por muito tempo nas referências de mo-
nografias, dissertações de mestrado, teses de doutorado, artigos, livros, documentários, quanto estes
estiverem abordando a dinâmica do território em todas as escalas de análise. A questão racial não foi
resolvida, a relação da tecnologia com o território também carece de estudos, o papel do intelectual
que estudo o território deverá ser ampliado em suas análises, a concepção de formação acadêmica que
queremos para o nosso país ainda é incipiente. Logo, o pensamento de Milton Santos está na vanguar-
da, especialmente, pela sua clarividência, característica que fazia dele um homem capaz de traçar uma
perspectiva para o futuro baseado na dinâmica do tempo presente.

23 Em 5 de Junho, a Presidenta Dilma Rousseff sancionou-o como Lei 12.818/2013, criando a UNIVERSIDADE
FEDERAL DO SUL DA BAHIA, com Reitoria em Itabuna e campi em Teixeira de Freitas e Porto Seguro.
53
Contudo, se ainda quiserem “matar” Milton Santos apresento algumas motivações que
possam justificar esse crime acadêmico. Então, matem Milton Santos porque ele:
- Se configura como um risco para a direita que não consegue interpretar ou acha suas
ideias ultrapassadas;
- É um risco para grande parte da esquerda que mal consegue ler as orelhas dos livros de
Milton Santos, e pensam que os intelectuais brasileiros escreveram para ela;
- Um intelectual que não optou pela esquerda ou pela direita. Optou pelo povo, sobretudo,
pelos indivíduos lentos que habitam os lugares opacos;
- Um intelectual que privilegia e enxerga os pobres como potenciais vetores de revolução.
Enxergava, por exemplo, o rap como uma cultura e um modo de se fazer política;
- Propõe causar desconforto entre setores poderosos da sociedade;
- Um negro que aprofundou na questão do negro no Brasil, porém, não se alinhando a
movimentos negros. Aliás, Milton Santos sempre abria suas palestras dizendo que não
falava em nome de nenhuma organização;
- Não se amparava em nenhum tipo de credo e tampouco gostava de pertencer a grupos;
- Não se configura como um intelectual populista que deseja arrebanhar seguidores;
- Um pensador que elabora críticas sobre a hierarquização das ciências no Brasil;
- Um geógrafo que contesta a Geografia que se ampara em métodos de outras ciências,
sobretudo, as ciências duras para se garantir no rol das ciências;
- Um pensador que desperta ciúmes acadêmicos entre seus pares;
- Defende categoricamente que não vivemos numa aldeia global no sentido de humani-
zação;
- Um pesquisador do “Terceiro Mundo” que deixou textos que permitem alagar a análise
sobre a dinâmica do planeta, sobretudo, através do processo de globalização;
- Que tem coragem de se indignar quando alguns historiadores da Geografia afirmam que
o filósofo alemão Emmanuel Kant foi o primeiro catedrático de Geografia do mundo24;
- Um dos primeiros intelectuais a criticar o processo de globalização, enquanto a maioria
via na globalização o único meio de uma sociedade sair do subdesenvolvimento;
Seria impossível elencar todos os motivos que levariam a alguém cometer o assassinato
acadêmico de Milton Santos, porém, esses 15 pontos podem servir como justificativas
plausíveis para tal ato.

Conclusão: pela continuidade do florescimento das ideias

Primeiramente, devo agradecer ao pequeno deslize que o colega de banca teve ao proferir
a frase “devemos matar Milton Santos”. Suas palavras foram a fonte de inspiração para produzir essa
reflexão e que, de certa forma, contribuiu para a produção de mais um texto sobre Milton Santos. Não
posso precisar se esta frase fatídica tem a ver com uma postura neocolonial. Mas, o que diriam de um
professor brasileiro que, ao participar de uma defesa de tese de doutorado na Europa dissesse ao dou-
torando que o mesmo deveria “matar Karl Marx” ou qualquer outro intelectual que ajudou a construir
o pensamento crítico do seu país? No mínimo, seria cobrado por uma postura mais diplomática, que
fosse elegante, sobretudo, pelo convite recebido para participar de uma banca de tese.
24 Esta crítica está na entrevista que Milton Santos concedeu a Revista Veja em novembro de 1994.
54
A segurança nas palavras e o tom debochado que este colega de banca pronunciou a frase
demonstrou um total desrespeito tanto com o doutorando quanto com a figura do professor Milton
Santos. Não teve um comportamento didático-pedagógico ou mesmo uma crítica ao método ou as
teorias utilizadas na tese. Aliás, a única crítica foi em direção à presença, para ele, “exacerbada” de
Milton Santos na tese.
Por outro lado, não foi só o colega europeu que tem o desejo de “matar” Milton Santos,
muitos brasileiros, com certeza, seriam cúmplices para tal tarefa. Vivemos num país onde as pessoas
ao ler uma coluna de jornal, um post num Twitter ou ao assistir a um vídeo na internet se conside-
ram informadas e capazes de compreender o mundo. Nessa carona, muitos pseudos intelectuais se
aproveitaram, bem como aqueles que desejam fazer parte do establishment, para construir um capital
econômico e político. A nossa tradição em que os livros são caros e de difícil acesso a maior parte
da nossa sociedade também contribuiu para este cenário que exclui os intelectuais do cotidiano do
brasileiro.
Milton Santos dizia que o Brasil era um país que nunca teve a cultura de se ouvir uma
palavra crítica25. O resultado é que se antes os governos teriam que sufocar, matar, inclusive fisica-
mente, os intelectuais. Nos dias atuais são obrigados a lidar com todo tipo de ativismo, que além de
causar desconforto, e a depender do grau de amplitude, modificam a dinâmica de uma cidade, de um
estado ou de um país. Movimentos estes que alguns vão considerar benéficos e outros vão considerar
maléficos, balburdia; isso irá depender em que posição se está na política partidária.
Ainda que tentem negar, há no Brasil uma hierarquia dentro da classe de professores, uma
hierarquia não apenas sancionada pelo título acadêmico, mas produzida por grande parte da acade-
mia, pelo grau de excelência da instituição ao qual determinado professor está inserido, pelo Qualis
de uma revista na qual se faz uma publicação, pela localização geográfica de uma instituição etc.
É preciso que cultivemos as ideias (sementes) de Milton Santos, sobretudo, para o Bra-
sil. Sua crítica as dinâmicas política e científica no país refletem, muitas vezes, de forma negativa e
perversa, em pesquisadores brasileiros que tentam questionar o sistema. A sua frase de que o Brasil
nunca teve uma cultura de ouvir uma palavra crítica pode ser a explicação para tanto assassinato
intelectual, político e físico em nossas universidades e em nossos institutos até hoje em nosso país.
A força do intelectual reside na sua capacidade de ser resiliente até que um dia haja um conjunto de
forças que vêm de baixo para produzir uma revolução tanto no cotidiano das cidades quanto na dinâ-
mica dos nossos ambientes de ensino e de produção científica.

Referências bibliográficas

BECKER, Berta. Não basta preservar a floresta. Revista Desafios do Desenvolvimento. Ano 2,
nº12. Brasília: IPEA, 2005. BUARQUE, Cristovam. Nordeste: quinhentos anos de descoberta.
In: SACHS, I.; WILHEIM, J.; PINHEIRO, P.S. Brasil: um século de transformações. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001. P.370-393. JOSUÉ DE CASTRO: cidadão do mundo.
Direção de Silvio Tendler. Produção de Adolfo
Lachtermacher. Documentário. Rio de Janeiro: UERJ VÍDEO, 1994. VHS (52 min). Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=fQrwW1sjHyI. Acesso em: 30 out. 2013.

25 Frase dita no documentário “A globalização vista do lado de cá” produzido por Sylvio Tendler.
55
O POVO BRASILEIRO. Direção de Isa Grinspum Ferraz. Produção Executiva: Zita Carvalhosa.
Documentário sobre o pensamento de Darcy Ribeiro. Paulus Vídeo, 2000. 2 DVDs (280 min).
RODA VIVA. “Entrevista com Milton Santos”. TV Cultura. 1997. 1 DVD (85 min).
SANTOS, Milton. O mundo não existe. Revista Veja. Editora Abril, edição 1366, ano 27, nº46. São
Paulo-SP, 1994. Entrevista concedida por Milton Santos à Revista Veja em 16 nov.1994.
SANTOS,Milton. Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá.
Documentário. Direção: Sylvio Tendler. Produção: Caliban Produções Cinematográficas. 2006. 1
DVD (90 min). SILVA, Maria Auxiliadora da; TOLEDO JUNIOR, Rubens (orgs.). Encontro com o
pensamento de Milton Santos: o homem e sua obra. Salvador: EDUFBA, 2009.

56
A ditadura militar e a negação da mobilidade de nossos intelectuais: o
caso de Josué de Castro

Sebastião Cerqueira-Neto
Leonardo Thompson da Silva
José André Ribeiro

Introdução

Ao fazer um resgate das ideias que Josué de Castro (1908 – 1973) disseminou em busca
de um mundo melhor pode-se chegar a conclusão de que houve poucas mudanças, sobretudo, no com-
portamento daqueles que comandam a economia mundial. A geopolítica, que é baseada nas relações
entre os países, que era praticada na época de Josué de Castro mudou. O mundo deixou de ser bipolar,
houve a dissolução da antiga União Soviética, o nascimento de diversas nações, o aparecimento de
outros protagonistas na chamada Nova Ordem Mundial etc. Porém, o que não mudou foi a falta de
sensibilidade, o desprezo pela solidariedade mundial.
A fome e a miséria continuam assolando grande parte da sociedade planetária; as grandes
empresas passaram a ter um papel mais importante que os Estados; os blocos econômicos são apenas
para cuidar e proteger a economia, o povo se tornou algo secundário; os recursos naturais e as comu-
nidades tradicionais sendo suprimidos por grandes projetos econômicos.
O Brasil, que no século XXI continua sendo uma triste caricatura dos Estados Unidos,
onde a elite econômica e parte da academia se comportam como europeias, perdeu a oportunidade
de compreender e ouvir os intelectuais brasileiros, entre eles Josué de Castro para encontrar o seu
caminho para sair do subdesenvolvimento, sobretudo, o subdesenvolvimento humano que nada tem
a ver com o desenvolvimento econômico. Isto quer dizer que, mesmo o Brasil frequentando a lista
dos 20 países mais ricos do mundo o seu subdesenvolvimento humano é muito mais representativo.
Esse texto pretende elaborar uma reflexão com o viés humanista que caracteriza Josué de
Castro enquanto pesquisador e enquanto um homem preocupado com seu país, principalmente, com
os pobres. Josué de Castro nos deixa uma lição, a de que ser um humanista não deve ser atrelado a
uma ideologia partidária, esquerda ou direita, é apenas praticar um comportamento solidário que deve
estar presente desde a escala local até a global.
Mesmo com todas as limitações de movimento pelo território nacional impostas pelo re-
gime militar, provocando a sua saída do Brasil, Josué de Castro foi um forte nos seus ideais. Se isso
pode ter lhe custado a vida, morrendo acometido pela depressão por não poder voltar ao Brasil, Josué
de Castro deixou um legado, sobretudo, de como políticos, poderosos deveriam olhar para os pobres
dos seus países. Josué só pôde voltar ao Brasil num caixão e mesmo assim o regime militar fez de
tudo para que ele fosse enterrado no Brasil.
A produção dessa reflexão se apoia exclusivamente no documentário “Josué de Castro:
citizen of the world” (1994) e objetiva fundamentalmente propor uma análise sobre o sufocamento

57
do pensamento crítico empregado por uma política ditatorial e pela elite econômica sob o discurso de
evitar a implantação do comunismo no Brasil. Entretanto, foi uma justificativa vazia, sem nexo, e que
provocou o êxodo forçado de grande parte dos nossos intelectuais. Infelizmente, por essas ações, o
Brasil se tornou um país avesso a palavras críticas com sequelas vistas nos dias atuais para a ciência
brasileira como, atraso científico, cortes nas verbas para educação e a negação da ciência. Se por um
lado o Brasil de 1964 contribuiu para a morte física de Josué de Castro, por outro, o seu pensamento
continua irrigando, semeando e florescendo em busca de um país com menos miseráveis.
O documentário mostra o começo da vida acadêmica de Josué de Castro que vai da medi-
cina até a Geografia. Sua preocupação com os pobres que viviam nos manguezais do Recife, mangue-
zais que para o autor lhe ensinou muitas coisas que a universidade não havia lhe apresentado. Josué de
Castro conviveu com pessoas com várias formações diferentes, o que contribuiu decisivamente para
sua postura diplomática e política dentro e fora do país.
Silvio Tendler, nesse documentário, para além de apresentar Josué de Castro, sobretudo
para os brasileiros (por mais paradoxo que possa parecer), promove um olhar crítico sobre a impor-
tância de conhecermos nossos intelectuais e passarmos a pensar o Brasil e o mundo com um olhar de
quem vive no terceiro mundo, e isto significa um dos caminhos para nos descolonizar.

Um pouco de Josué de Castro

As diversas formações acadêmicas de Josué de Castro foram secundárias diante da sua


postura frente aos problemas sociais. Ele foi, sobretudo, um humanista, um perseguidor para as reso-
luções das questões da fome e da paz. Em 1935, produziu um estudo sobre as condições de vida dos
trabalhadores no Recife, gerando um documento importante para criar o salário mínimo no Brasil.
O interessante é que nos dias atuais o salário mínimo se tornou muito mais uma bandeira política,
motivo para embates políticos, do que propriamente uma discussão voltada para o bem-estar dos
trabalhadores.
É possível que intelectuais como Josué de Castro devam ser enterrados pelos políticos
brasileiros, pois seriam incapazes intelectual e moralmente de contestar duas ideias. Olhariam no es-
pelho e viriam a suas mediocridades enquanto políticos frente a Josué de Castro. Neste sentido, tanto
o regime militar quanto os políticos que se julgam defensores dos pobres têm o mesmo comportamen-
to, a inveja por não conseguirem ser um Josué de Castro.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, há uma grande confluência global no
sentido de encontrar um caminho para a paz. Josué de Castro está sempre presente nas reuniões para
a discussão de um mundo melhor. Se fizermos um exercício mental, qual seria nosso representante
político numa mesa mundial em que pudesse colaborar com ações que combatessem a fome, a guerra
no mundo? Teríamos que pensar numa pessoa culta que fosse uma referência intelectual respeitada
no mundo e que fosse, acima de tudo, respeitado em escala global; isso tudo, sem se preocupar em ser
uma celebridade mundial. Nos dias atuais, encontrar no Brasil um político com essas características
é praticamente impossível. Para quem não sabe, Josué de Castro foi deputado federal por um partido
de esquerda. Ao olharmos para a composição do nosso atual Congresso Nacional dificilmente vamos
encontrar políticos com a formação de Josué de Castro. Seria angustiante para a grande parte da nossa
classe política conviver com uma espécie de político da qual Josué de Castro pertencia.

58
Para além da sua formação acadêmica, Josué de Castro conviveu com pessoas de dife-
rentes formações, com diversos setores da sociedade, isso explica sua grande capacidade em dialogar
com os contrários, possui uma diplomacia invejável. No documentário várias lideranças de movimen-
tos sociais do campo, da igreja católica e da academia fizeram questão de prestar depoimentos sobre
as contribuições de Josué de Castro na luta contra a miséria e na busca de um país mais crítico sobre
o seu papel diante do mundo.
Apenas para citar alguns brasileiros, Jorge Amado, dizia que Josué era um grande brasi-
leiro devotado à sua pátria, ao seu povo e aos pobres. Nos dias atuais ser patriota parece que adquiriu
outra conotação, sobretudo, pejorativa.
Darcy Ribeiro dizia que Josué era o homem mais inteligente que conheceu. Percebam a
humildade de Darcy Ribeiro! Para Darcy Ribeiro poucas pessoas no país têm a ideia da importância
de Josué. Por isso, este texto tenta contribuir para que o que contribui para este texto seja mais uma
via para que as pessoas, neste século XXI, conheça um pouco de um intelectual que sonhou e lutou
por um Brasil melhor.
Francisco Julião, fundador da liga camponesa no Brasil, dizia que Josué resolveu a se
dedicar a ciência para descobrir como resolver o problema da fome. Dom Helder Câmara ficou fas-
cinado pela luta e o conhecimento que Josué de Castro tinha sobre a questão da fome no Brasil e no
mundo. Herbert José de Souza (Betinho) falava que foi Josué de Castro que deu o status científico e
político da fome. Esse pequeno rol mostra o quanto essas convivências foram importantes para Josué
de Castro, e o quanto na sua época os diálogos eram mais frutíferos.
A competição voraz que é ensinada desde os ciclos iniciais de educação até o nível su-
perior nos afastou a possibilidade de convivermos com a diversidade, não uma especificidade de
diversidade, mas, a diversidade em sua totalidade que é a característica do nosso planeta. Contraria-
mente nos dias atuais, somos “educados” para conviver com aqueles que fazem parte da nossa classe
de curso, da nossa classe socioeconômica. A construção de relações feita dentro de grupos não nos
limita apenas na dificuldade numérica de pessoas, mas nos torna limitados para conhecer a poesia, as
religiosidades, outras literaturas, a dinâmica da sociedade pelo território, e de ampliar nossas relações
através do convívio com os mais diferentes pensamentos.

Nada mudou! Pessimismo ou a procura de um caminho?

As primeiras imagens que abrem o documentário “Cidadão do Mundo” mostram as pes-


soas vivendo nos e dos lixões, na época (1995), a quantidade de pobres equivalia aproximadamente
ao atual número da população atual na Índia. Nesse período, 40 milhões de morriam de fome no mun-
do. Pessoas vivendo embaixo das marquises e viadutos também mostram como a população pobre
do Brasil vivia. Ao fazermos uma pequena rota pelas grandes cidades brasileiras vamos ver a mesma
paisagem de pobreza e miséria que o documentário registrou. O mais agravante nos dias atuais é que
esse cenário deixou de ser uma exclusividade das grandes cidades e agora faz parte da paisagem de ci-
dades médias. Isso nos mostra que o abismo que separa os pobres dos ricos continuou sendo alargado.
Josué de Castro foi quem denunciou, através de seus estudos, da sua atuação como médi-
co, enquanto geógrafo, essa situação de miséria do país. Contudo, Josué de Castro não ficou apenas
na denúncia, como muitos fazem hoje um ativismo puramente partidário, mas, propôs soluções para
o problema da fome no Brasil. Dizia Josué de Castro: “todo extraordinário progresso do mundo pode
59
estar comprometido por causa do problema da fome mundial. A tomada de consciência deste proble-
ma pode conduzir os povos famintos à revolta. Em 20 anos, ou teremos a catástrofe provocada pela
fome mundial ou teremos a abundância para todos. Pois, dispomos de recursos naturais, técnicos e
financeiros suficientes para resolver esse problema”. A clarividência de Josué de Castro nos mostrou,
infelizmente, que os governantes, sobretudo, dos países ricos optaram pela continuidade do flagelo da
fome. No Brasil que sempre se constituiu, sobretudo, politicamente, numa caricatura imperfeita dos
Estados Unidos, o caminho seguido foi o mesmo, a miséria do povo apenas como um penduricalho
nos discursos políticos de todos os matizes.
O cenário de fome que Josué de Castro estudou a partir dos manguezais de Recife também
estava presente no semiárido e na região açucareira do Nordeste. A fome e a miséria eram as mesmas,
porém, com origens diferentes, mas, com semelhanças de perversidade na sua implantação. A fome,
como Josué de Castro percebeu, não tem nada a ver com as características geográficas do lugar, mas,
com o comportamento político e econômica de quem dirige os destinos, sobretudo, das cidades.
Os pobres, a fome e a miséria já estão em todas as cidades brasileiras, independentemente
da sua dimensão populacional. Neste século XXI, o flagelo da fome está debaixo das marquises, nas
praças, nas portas dos restaurantes, das escolas; enfim, não frente de todos nós. Certamente que se
os nossos políticos tivessem a humildade, na época, de ouvir e colocar em prática as ideias de Josué
de Castro possivelmente o número de pessoas vivendo na miséria seria em quantidade bem menor
do que temos hoje. O que não mudou foi o comportamento dos nossos políticos, pois, ainda que se
renovem as câmaras municipais, as assembleias legislativas estaduais, o Congresso Federal, não se
vê projetos para acabar com a miséria do país. Vemos uma preocupação em salvar a economia, o
que necessariamente não significa interesse em desmanchar as linhas de pobreza existentes em cada
território.

A fuga de um cérebro privilegiado

O êxodo de pesquisadores, intelectuais brasileiros para outros países não é uma migração
desse século, tão pouco da política do presidente Jair Bolsonaro, este apenas aprofunda um poço exis-
tente na cultura política do país, que é não valorizar a educação e, por conseguinte, a ciência. O golpe
militar que forçou Josué de Castro, e tantos outros intelectuais, ir para o exílio na França data de 1964
ajuda a explicar um pouco do contexto histórico da chamada fuga de cérebros do Brasil.
Mas, como o homem franzino, educado, médico, foi tão temido pelo regime militar sem
sequer ter pegado numa arma? Através do documentário que é a fonte inspiradora dessa resenha va-
mos listar alguns indícios.
Josué de Castro ouvia e convivia com os pobres, sendo os manguezais do Recife seu pri-
meiro laboratório para compreender a miséria de sua cidade através da vida dos homens e mulheres
que viviam como caranguejos, enterrados na lama em busca de alimentos. Resultados de pesquisas
que denunciam a fome e a miséria são ignoradas ou mesmo sufocadas por governos autoritários, e
mesmo em alguns governos ditos democráticos. Dessa forma, os estudos de Josué de Castro incomo-
davam o governo da época.
No semiárido e no nordeste açucareiro, Josué de Castro percebeu que não eram as ca-
racterísticas geográficas do mangue no Recife que produzia a fome. Ao estudar as áreas de grandes
plantações de cana-de-açúcar no Nordeste ele compreendeu que tanto a cana como o homem eram
60
esmagados; e certamente que ao denunciar a condição degradante desses trabalhadores, moradores,
nessas regiões caracterizadas historicamente pelo coronelismo, Josué de Castro se tornaria uma pes-
soa não grata na vida do país.
Como no regime militar, claro que apoiado por muitos civis da elite econômica, o Brasil
teria que ser visto num modo ufanista, mormente, exaltando as belezas naturais, não seria permitido
aflorar pensamentos críticos que pudessem “estragar” a imagem do país. Por isso, a fome era um tema
proibido. Logo, o livro “A geografia da fome” deveria ser banido das bibliotecas, das universidades,
assim como o seu autor deveria desaparecer do território brasileiro. Contudo, Josué de Castro conse-
guiu, sem os recursos midiáticos de hoje, mostrar que uma grande quantidade de brasileiros passava
fome, e isso despertou a ira dos governantes e das elites da época, pois, Josué de Castro mostrava que
o fenômeno da fome estava intrinsecamente ligado aos latifúndios e falta de uma política de distri-
buição de renda.
A vida pública de Josué de Castro e a sua defesa intransigente dos pobres sempre incomo-
daram os poderosos. Em 1939, no governo Vargas, dirige o Serviço de Alimentação da Previdência
Social. Em 1952, se torna presidente da FAO, órgão das Nações Unidas para a Alimentação e Agri-
cultura e em 1954, é eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) pelo estado de
Pernambuco. Em 1958, é reeleito o deputado mais votado do Nordeste, contando com o apoio dos
socialistas, comunistas e cristãos. Todavia, Josué de Castro deixava claro que não seria nem o capi-
talismo tampouco o socialismo que acabaria com a fome no Brasil e no mundo. Ele morreu sem nos
apontar outro caminho.
Nos Governos de Jango e Juscelino Kubitschek quase se tornou ministro da Agricultura,
porém seus próprios companheiros de partidos fizeram o de Judas “queimando” Josué de Castro. No
documentário, Darcy Ribeiro mostra como a mediocridade dos colegas de partido não deixou que
Josué de Castro assumisse o ministério com o qual era o mais capaz brasileiro para tal atividade na
época. Na verdade, foi o sentimento de inveja que guiou a atitude dos líderes do Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB). E certamente que entre os invejosos estavam representantes das oligarquias que
temiam e sabiam que Josué de Castro proporia o aumento de cultivo de produtos fundamentais para a
segurança alimentar da sociedade mais carente, bem como um projeto audacioso de reforma agrária
com a preocupação da preservação dos recursos naturais. São questões que não faziam parte da polí-
tica nacional bem como um desejo da elite econômica.
Os adversários políticos batizaram Josué de Castro como o “Josué da Fome”. Algo seme-
lhante que fizeram com o professor Cristovam Buarque nas eleições presidenciais em 2006, quando
grande parte da imprensa o denominou jocosamente de o “candidato da educação”. Como se matar a
fome das pessoas ou querer tornar um país com mais educação fosse algum tipo de defeito moral ou
determinar que a pessoa seja limitada em seus pensamentos sobre a política nacional.
Se hoje, com toda nossa liberdade de expressão, ministrando aulas de forma crítica sobre
a dinâmica do país, às vezes somos vencidos pelas ações de governos que limitam os gastos com a
educação, que fazem cortes na saúde, e por que não dizer de comportamentos autoritários dentro
das universidades e instituto, imaginemos o quanto Josué de Castro resistiu! Evidentemente que os
fatores elencados neste tópico foram preponderantes para que Josué de Castro deixasse o Brasil, ou
fugisse do país para viver um pouco mais.

61
Contra a bipolaridade, a favor da pluralidade

Josué de Castro foi um militante, ou nos dias atuais, ativista. Porém, um ativista produ-
tivo, pois não se limitava ao denuncismo, mas apontava caminhos possíveis para uma solução dos
problemas, principalmente, na questão da fome e da desigualdade econômica. Mas, optamos por não
rotulá-lo como se ele pertencesse a alguma ideologia política e fosse contrário a outra, pois Josué de
Castro não escreveu ou discursou para agradar a um partido político ou para alguma ideologia radical.
Tanto é verdade que ele desagradou pessoas de vários partidos políticos, inclusive, o dele. Ele pensou
no bem-estar social e isso não está atrelado a nenhuma coloração política, depende do caráter, da
moral de quem se guia pela ética e pela solidariedade.
Josué de Castro nos seus discursos internacionais sempre caminhou contra a bipolarida-
de, não aceitava um mundo dividido em dois lados – capitalismo versus comunismo. Aliás, nos dias
atuais, somos massacrados mentalmente, quase nos é obrigado a escolher um dos dois lados, como
se houvesse apenas dois caminhos. Neste sentido, os dois lados estão equivocados, pois se tornam
limitantes a partir do momento que só enxergam um único caminho para um mundo melhor, o seu. Se
quisermos oferecer outras propostas temos que resistir bravamente a esse assédio, do mesmo modo
como se comportou Josué de Castro. Talvez, por isso Josué de Castro, em 1955, tenha recebido da
Assembleia Mundial da Paz o prêmio Internacional da Paz de Ciências. Ao receber o prêmio Josué de
Castro disse que os ingredientes da paz são o pão e o amor. Infelizmente, no Brasil e como na maioria
dos outros países, esses ingredientes não fazem parte do cardápio das políticas públicas.
Sua desilusão também foi imensa no exterior. Josué de Castro se via impotente ao não
conseguir convencer as grandes potências se envolverem num grande projeto para acabar com a fome
no mundo. Daí ele, num discurso inflamado, chamou esses países de hipócritas, pois faziam discursos
caridosos mais não desejavam realmente enfrentar a questão. E se há uma questão é porque o pro-
blema não foi resolvido. Em pleno século XXI buscamos a solução dessa questão em escalas local,
regional, nacional e global.

Conclusão

Se fisicamente Josué de Castro teve sua mobilidade dificultada por seus detratores disse-
minados nos governos, nos partidos políticos e na elite econômica, suas ideias e ideais continuam cir-
culando pelo planeta transgredindo qualquer barreira geográfica. Na música, por exemplo, o saudoso
Chico Science (1966 – 1997) criador do Movimento Manguebeat se inspirou em Josué para escrever
músicas que estão eternizadas em diversas mídias, uma delas: “Ô Josué nunca vi tamanha desgraça,
quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”26. Ainda que com muita dificuldade as instituições de
ensino voltam a falar de Josué de Castro em diversos cursos, e revistas como a Cronos (da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Note/UFRN) e a Estudos Avançados (da Universidade de São Paulo/
USP) publicaram dossiê sobre esse importante médico, sociólogo, geógrafo e intelectual brasileiro.
Mesmo distante do Brasil, no exílio na França, a independência e ousadia de Josué de
Castro incomodava o governo militar. Na França lecionou na Sorbonne e na Universidade de Paris.
Nunca parou de procurar caminhos para acabar com a fome, denunciou o colonialismo econômico, o

26 Frase contida na letra da música Da lama ao caos homônima do primeiro álbum da banda Chico Science e Nação
Zumbi, lançado em 1994 pelo selo Chaos, da Sony Music.
62
desrespeito pelo ser humano e ao meio ambiente. Propôs transformar a economia de guerra em econo-
mia de paz e utilizar a poupança do desarmamento parcial em desenvolvimento pacífico e igualitário.
Aqui no Brasil, sem a presença de Josué de Castro a ditadura ainda queria controlá-lo,
retirando todos os seus livros das universidades e tendo seu nome censurado, e seu passaporte sempre
negado para voltar ao Brasil. Aqui, mais um mecanismo de controlar a mobilidade física de Josué
pelo território nacional.
Mesmo com toda a resistência moral e intelectual, Josué de Castro não conseguiria passar
ileso pelas atrocidades do regime militar, o primeiro problema patológico é a depressão que o ataca
de maneira irreversível, como relata vários amigos em depoimentos para o documentário resenhado
neste texto. A depressão levaria à morte um dos maiores intelectuais do Brasil. Assim, covardemente,
o Brasil de 1964 tentava apagar a imagem, as ideias e os ideais de Josué de Castro.
Assim como Josué de Castro, outros intelectuais pensaram um Brasil e um mundo me-
lhor como, por exemplo, Milton Santos, Celso Furtado, Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes. Esses
podem ser chamados de ideias, não entraram para a política com finalidades escusas, não traíram seus
pensamentos, não desejou holofotes, não financiaram filmes ou documentários como forma de ganhar
visibilidade, não impuseram a ditadura do pensamento unilateral, foram torturados e não desejaram
ser heróis nacionais, morreram com as vidas financeiras modestas, vida de professores. Porém, eram
temidos pela força crítica das suas reflexões.
O Governo Militar de 1964 é responsável não somente pela expulsão física dos “nossos
cérebros”, mas da mutilação intelectual que fez com que o Brasil se tornasse um país repugnante ao
pensamento crítico. A construção de uma intelectualidade brasileira foi reprimida. Esta é uma dívida
que deve ser cobrada e que pode ser amortizada com maior destinação de verba para as pesquisas nas
áreas de humanas, pois, se a ciência brasileira sofre perseguição por alguns governos autoritários,
certamente, que a área de humanas é a mais sabotada.
É fundamental que as políticas para a ciência no Brasil possibilitem o resgate das ideias
de nossos intelectuais, como as de Josué de Castro. E que novos intelectuais floresçam fazendo com
que a cultura do pensar seja parte integradora no desenvolvimento do país.

Referências

JOSUÉ DE CASTRO: cidadão do mundo. Direção de Silvio Tendler. Produção de Adolfo


Lachtermacher. Documentário. Rio de Janeiro: UERJ VÍDEO, 1994. VHS (52 min). Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=fQrwW1sjHyI. Acesso em: 30 out. 2013.

63
Territórios de espera, um não-lugar de esperança?

Sebastião Cerqueira-Neto

O território e seus diferentes entendimentos27

Almeida (2005, p.104) faz uma crítica quanto ao uso do conceito de território dizendo que
este se tornou “um termo bastante banalizado, sendo empregado, às vezes, por pura comodidade de
linguagem, com o sentido de espaço ou de região”. De acordo com Machado (1997, p.20), a polisse-
mia existente no conceito de território “é fruto da própria dificuldade de conceituação que os termos
apresentam, não apenas no âmbito da ciência geográfica, mas também em outros domínios de saber”.
Essas críticas de Almeida (2005) e Machado (1997) chamam a atenção para o rigor que, principal-
mente, os geógrafos devem ter como o uso do conceito, mas também nos mostra que o território não
é propriedade de nenhuma ciência. Daí a diversidade do seu emprego em outras ciências.
Mesmo dentro da Geografia essa diversidade está presente. Haesbaert (2002) apresenta
algumas possibilidades do uso do território combinadas por diferentes vertentes de análise: a) terri-
tório numa posição materialista: território e natureza; b) território numa perspectiva idealista: terri-
tório e cultura; c) território e integração entre diferentes dimensões sociais; d) território e história; e)
território: sentido absoluto e relacional. Portanto, poderíamos questionar é se a Geografia não ficou
banalizada! Por exemplo: a geografia disso, a geografia daquilo, a geografia do... etc. Pois, é próprio
da análise territorial o uso de múltiplos vetores que o caracteriza.
O território abordado por Sposito (2004) é dividido em duas possibilidades de compreen-
são: uma que privilegia o sistema de redes, voltada para a velocidade, conexidade e a instantaneidade
das informações e da comunicação, em que há o desaparecimento das barreiras físicas da Geografia.
Quanto à segunda possibilidade, está ligada ao cotidiano dos indivíduos, com escalas bem reduzidas
como, por exemplo, a casa, a rua, o ambiente de trabalho. Por esta via de análise, há um dessecamento
do território para tentar entender a sua totalidade.
Gupta e Ferguson (2000, p.47) mostram que o território físico utilizado como pano de
fundo para diferença cultural se aprimorou para outros vetores da sua existência “como classe, gê-
nero, raça e sexualidade, e estão disponíveis de forma diferenciada aos que se encontra em locais
diferentes do campo do poder”. Diferenciando espaço de território, Raffestin (1993, p.143) diz que “o
território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático
(ator que realiza um programa) em qualquer nível”. Silva e Silva (2003) entendem o território como
uma “organização social”, por apresentar na sua essência elementos culturais que contribuem para a
identificação do mesmo.
No entendimento de Gonçalves (1995, p.311), o território é “originalmente um conceito
jurídico-político torna-se um conceito-chave para os geógrafos”. De acordo com Machado (1997,
p.24) “o conceito de território se origina dentro das ciências naturais, na botânica e na zoologia, as

27 Os tópicos que abordam conceitualmente o território e o lugar são fragmentos de artigo Intitulado “Teoria e conceitos
aplicados no estudo sobre o Extremo Sul da Bahia publicado na Revista Entre-Lugar, Dourados, MS, ano 2, n. 4, p.
95-121, 2º semestre de 2011
64
quais designam território como área de disseminação de espécies vegetais ou animais”. Politicamen-
te, Moraes (2002, p.198) espera “a construção de um Brasil mais democrático onde o território seja,
de fato, um bem comum, um patrimônio nacional apropriado em benefício do conjunto da nação”.
Portanto, a contribuição desses teóricos corrobora com a ideia de que o território pode
ser utilizado tanto como palco das ações humanas como para a dinâmica para a flora e fauna. E essa
diversidade na sua aplicação não se constitui necessariamente num prejuízo para a compreensão da
análise geográfica. Dessa forma, o território de espera se apresenta como mais uma alternativa de aná-
lise a partir da vivência do pesquisador português João Luís Fernandes frente à dinâmica migratória
de pessoas em direção ao continente europeu.

O lugar, um conceito diverso

Para se chegar à proposição principal dessa reflexão, que é estabelecer uma analogia dos
territórios de espera com o não lugar é necessário trazer uma compilação sobre alguns conceitos sobre
o que é o lugar.
Para o conceito de lugar, buscou-se em Milton Santos (1996) a sua ideia de que a cidade
representa o lugar de liberdade para aqueles que acabaram de sair da escravidão e é também um lugar
revolucionário, pois na cidade se concentra a explosão de tecnologia e do conhecimento. A cidade se
torna, então, um lugar construído cheio de simbolismo que reflete a economia, a sociedade e a cultura
que se pratica no seu interior. De acordo com Nelson Fernandes (2004, p.55) “quando pensamos nos
sentidos mais profundos para a cidade, podemos dizer que os homens a construíram para fazer seus
rituais e festas”. Ainda se pode encontrar em vários lugares no Brasil este sentimento puro que Fer-
nandes relata sobre uma das funções da cidade, contudo, a cidade de hoje representa a modernidade,
a busca pelo trabalho, o aperfeiçoamento dos estudos, melhor atendimento para a saúde.
O filósofo e sociólogo Henri Lefebvre (1999) chamará a rua de lugar, um lugar de en-
contros, da prática teatral, da mistura, do comércio, enfim das relações. Para o geógrafo Yi-Fu Tuan
(1983) o lugar é um mundo de significado organizado. Neste pensamento, o autor não tem a intenção
de fazer uma analogia entre o local e o global, mas dar ao lugar o adjetivo de mundo, uma abstração
impossível de ser mensurada. Então, ao mesmo tempo em que o quarto de uma casa pode ser consi-
derado como uma pequena parte dela, ele pode ser para alguém capaz de abrigar um mundo repleto
de significados.
A cidade, independentemente de sua dimensão territorial e demográfica, representa o con-
forto e as necessidades da sociedade que nela habita. Segundo o sociólogo espanhol Manuel Castells
(2003, p.515),

Lugares não são necessariamente comunidades, embora possam contribuir para sua formação.
Todavia, a vida dos habitantes é marcada por suas características, portanto são, na verdade,
lugares bons ou ruins dependendo do julgamento de valor do que seja uma vida boa.

A definição de Castells contrapõe à ideia de que o lugar é sempre perfeito, quase um


paraíso onde as pessoas desejam viver. O lugar pode receber outras denominações, que podem ser
verificadas no próprio Yi-Fu Tuan (1983) como o lar e suas repartições, os acampamentos nômades,
ou ainda qualquer ponto do planeta onde existe uma sociedade ou não, como um território desértico

65
gelado ou tórrido, o campo, o bairro etc. A definição de lugar entendida por Ana Fani Carlos (1996,
p.29) tem, intrinsecamente, o sentido de efervescência e transformação social quando ela diz que, ele

É produto das relações humanas, entre homem e natureza, tecido por relações sociais que
se realizam do plano do vivido, o que garante a construção de uma rede de significados e
sentidos que são tecidos pela história e cultura civilizadora produzindo a identidade, posto
que é aí que o homem se reconhece porque é o lugar da vida.

Na obra “A (re) invenção do lugar: os rosados e o país de Mossoró”, José Felipe (2001,
p.40) traduz o lugar como “uma construção histórica, formando por sucessivas camadas de significa-
ções, um espaço íntimo de pertencimento, marcado pela memória e pela vivência que chegam às prá-
ticas cotidianas e se enraízam”. Logo, são nas cidades, nas aldeias indígenas, nos quilombolas onde
estão os níveis mais altos de sentimento de pertencimento ao lugar. Outrossim, o território também
vai conter características que identificam um dado lugar. Assim, território e lugar adquirem significa-
dos semelhantes, principalmente, no que tange ao pertencimento.

O território de espera(nça)

No caso da reflexão proposta pelo professor Dr. João Fernandes, para além da questão de
Calais, ela se expande para outra proposição do uso de um conceito muito caro para a Geografia, o
território. Conceito este que pode ser abordado por diferentes vetores como, por exemplo, político,
cultural, turístico, religioso, da criminalidade. Mas, o que seria esse território de espera?
A primeira identificação do que seja um território de espera, João Fernandes vai buscar no
geógrafo francês Alain Musset que relatou a precariedade das embarcações que partiam para o Porto
de Lampedusa, porta de entrada dos migrantes através da Itália. De acordo com Fernandes (2019),
essas embarcações são um território de espera em movimento, inclusive, com hierarquia socioeconô-
mica tendo em vista que os imigrantes sírios ocupavam os melhores lugares frente aos “deslocados
da África Subsaariana” (FERNANDES, 2019).
No continente, isto é, em terra firme, Fernandes (2019) entende que o aparecimento dos
territórios de espera está ligado a posição da Europa em “proteger” seus territórios dos migrantes.
Dessa forma, os territórios de espera adquiriram uma característica quanto ao tempo de duração de
sua existência; “alguns efêmeros e de rápido desaparecimento, outros mais perenes e duráveis” (FER-
NANDES, 2019, p.160).
Assim como na ilha de Lampedusa, a Ilha de Lesbos também foi um território de espera.
Nessa ilha grega, Fernandes (2019, p.161) relata que “parte da população migrante ficou retida, por
um longo período de espera, em lugares demarcados. Nestes campos (de retenção ou detenção?)”.
Seja na forma de retenção ou detenção sempre haverá constrangimentos para quem está numa posição
desprivilegiada como no caso dos migrantes. Não se trata aqui de santificar os migrantes, mas de se
fazer uma análise do processo que os motivou para sair dos seus países e buscar a Europa como espa-
ço de vida melhor. Alguns desses motivos podem ser de ordem interna (perseguição política, guerra
civil), mas outros podem estas no comportamento colonizador que alguns países da Europa tiveram
em diversas partes do mundo.
Assim, o surgimento dos territórios de espera pode ser entendido como mais um vetor de
uma crise que pode ter no seu âmago a preservação de uma divisão socioeconômica produzido por
linhas abissais que são contestadas cotidianamente no ato de migrantes em busca da Europa. Neste
66
sentido, os territórios de espera foram fabricados, não são de ordem natural do espaço geográfico. O
natural seria a não existência dos territórios de espera, que, na sua essência, significa para os migran-
tes um território de esperança para entrar no “paraíso” chamado Europa.

O território de espera é um na-lugar?

Em 1994 o antropólogo francês Marc Augé escreveu “Não-lugares: introdução a uma


antropologia da supermordenidade”, uma obra que é utilizada também nas análises das dinâmicas
territoriais por parte dos geógrafos, sobretudo, aqueles que utilizam o viés cultural para decodificar
o território.
O exercício intelectual que propomos aqui é estabelecer uma conexão com o conceito
de território de espera proposto por João Fernandes e o conceito de não-lugar para entendermos as
características dos lugares, territórios de espera dos migrantes.
A primeira analogia estabelecida entre esses dois conceitos está no fato de que tanto os
territórios de espera quanto os não-lugares se caracterizam por serem lugares transitórios e de passa-
gens como, por exemplo, “rodoviárias, aeroportos ou estações de trem, ou os templos de consumo da
cultura contemporânea, os shopping centers e hipermercados” (REIS, 2013, p.137). Num cotidiano
de pessoas que vivem numa certa normalidade das coisas, certamente que essa comparação seria
esdrúxula, pois, estes equipamentos citados por Reis (2013) são para ser frequentados de maneira
espontânea pela sociedade.
Entretanto, ao retomarmos a Alain Musset citado por João Fernandes (2019) no que se
refere a uma embarcação ser um território de espera, nos dias atuais equipamentos como aeroportos
e rodoviárias, não-lugares, são utilizados como territórios de espera por tempo indeterminado. Por
exemplo, na América Latina a crise na Venezuela fez com que centenas de migrantes passassem
a utilizar rodoviárias como territórios de espera, principalmente, em Manaus, capital do estado do
Amazonas no ano de 2019. No filme “O Terminal”, de 2004, estrelado por Tom Hanks que vive a per-
sonagem Viktor Navorski, retrata a vida de um cidadão que fica impossibilitado a voltar ao seu país
por uma grave crise política e acaba por fazer do aeroporto sua moradia provisória.
Outra característica que aproxima os territórios de espera com os não-lugares está não-
-relação de afetividade ou de identidade com o lugar, portanto, não proporcionando estabelecer um
vínculo cultural. Ora, evidentemente que uma pessoa ou uma família não vai desejar se enraizar
culturalmente em “áreas urbanas, como solos livres debaixo dos viadutos ou de escadarias, espaços
em redor das estações do metropolitano, em áreas ajardinadas, praças ou vias de circulação” (FER-
NANDES, 2019, p.162), ou mesmo em rodoviárias e aeroportos. Como também estar num campo
de triagem, numa pequena ilha amontoados em acampamentos não oferece condições para que uma
pessoa crie vínculos. Logo, “os não lugares se caracterizam por serem locais dessimbolizados, não
identitários e com os quais os sujeitos, em geral, não estabelecem nenhum tipo de vínculo relacional
enquanto os ocupam” (REIS, 2013, p.140).

Os muros como símbolos de uma globalização perversa

A construção de muros para separar os pobres dos ricos, os desejáveis dos indesejáveis,
sempre foi uma solução encontrada por impérios, e na história moderna pelos países ricos, como for-

67
ma de não se dividir as riquezas. O muro como símbolo excludente nos dias atuais é construído tanto
de forma concreta como abstrata; e ele é um equipamento amplamente utilizado pelo lado perverso
da globalização.
Por exemplo, se um senegalês não possui condições financeiras para comprar uma passa-
gem de forma lícita para ir à Europa isso se configura numa barreira, num muro. Se nos são exigidos
vistos em passaportes para nos deslocarmos pelo território a que chamamos de aldeia global, então é
uma falácia que todos têm o direito de se locomover. É preciso superar a ideia de que vivemos numa
democracia planetária para tentarmos derrubarmos os muros.
Vejamos o que João Fernandes (2019) relata no seu texto sobre o erguimento de barreiras
contra os migrantes: Estados europeus levaram também ao reforço securitário das respectivas fron-
teiras. Nos anos 1990 se haviam levantado vedações em Ceuta e Melilla, para blindar o enclave espa-
nhol no norte de África. A Hungria ergueu barreiras nos limites que a separam da Croácia e da Sérvia.
À revelia dos Acordos de Schengen, a Áustria reforçou a sua fronteira com a Eslovênia, construindo
um muro e postos de controlo em Spielfeld. O mesmo ocorreu na Grécia, na fronteira com a Turquia,
junto à aldeia de Nea Vyssa onde se construiu uma vedação coroada por um reforço suplementar de
arame farpado. Também na fronteira entre a Macedônia e o espaço nacional grego se procedeu ao
esforço policial e securitário, fazendo da aldeia grega de Idomeni um território de espera e contenção
que travou a viagem dos refugiados para norte.
Esses exemplos elencados por João Fernandes não podem ser analisados friamente do
ponto de vista de proteção de fronteiras, mas serve para compreender de que o humanismo está longe
de ser uma metodologia para se achar um caminho para as relações humanas. Cercas feitas com arame
farpado são para isolar animais no campo (fazenda ou quinta) e muros são normalmente para isolar
bandidos em presídios. Não me parece prudente que os países centrais, que comandam a economia
mundial (ou seria comandados pelo capitalismo perverso?), tratem os migrantes análogos a animais
ou bandidos.
Certamente que os nacionalistas vão colocar em questão: mas, e a proteção do nosso
território? Deixaremos que pessoas andem livremente por nossos territórios? Evidentemente que não
se pode esperar de um mundo comandado pelo dinheiro em seu estado puro que adotem posturas
humanistas. Mas poderíamos perguntar por que não se exige passaporte para a circulação do dinheiro
pelo mundo? Inclusive o dinheiro ilícito está presente em todos os territórios nas suas mais variadas
formas.
De acordo com João Fernandes (2019, p.164) existe uma “linha de tensão entre quem de-
safia um poder (migrantes em espera) e quem o exerce (as autoridades policiais)”. Sendo assim, não
resta outra alternativa senão os migrantes, mormente, pobres transgredirem as barreiras geográficas,
físicas ou abstratas como forma de tentar participar de um desenvolvimento que se deu a partir da
espoliação de colonizadores nos seus países de origem.
Ao ultrapassar os muros e pensar ter chegados ao paraíso os migrantes com a mínima ou
nenhuma condição financeira para se abrigar decentemente passam a se instalar nas cidades, sobre-
tudo, nos não-lugares como viadutos, escadarias, jardins, praças (FERNANDES, 2019). Passam de
uma situação de invisibilidade nos seus países e se tornam visíveis mundialmente, desde a ocupação
do seu primeiro território de espera.

68
Afinal, quando os migrantes passam a ocupar os espaços públicos em cidades como Pa-
ris, Atenas e Roma a repercussão é global. “Estes acampamentos improvisados transportaram para
as ruas de algumas cidades da Europa, imagens que os cidadãos europeus apenas viam à distância,
através dos meios de comunicação social” (FERNANDES, 2019, p.162). Este novo cenário cria-
do pelos migrantes na paisagem de cidades mundialmente conhecidas causa na elite capitalista um
grande constrangimento político e põe em causa muitas questões sobre os processos que fazem desse
mundo em que vivemos tão desigual, repleto de barreiras que brotam como flores no campo a todo o
momento.

Considerações finais

Certamente que a reflexão que o professor João Fernandes nos apresenta sobre os territó-
rios de espera instiga a pensarmos na quantidade desses territórios que foram construídos por todo o
planeta, nos países, nos estados e nas cidades.
Em princípio, falar em território de espera no Brasil não haveria nenhum sentido se nos
limitássemos a entender o território de espera apenas sob a óptica da dinâmica de migrantes africanos,
asiáticos, latino americanos que tentam desesperadamente viver na Europa. Mas, se entendermos o
território de espera como um lugar ou não-lugar inóspito no que concerne ao tratamento geralmente
preconceituoso destinado aos migrantes é possível encontramos esse tipo de território no Brasil.
No Brasil, há o caso histórico do êxodo de pessoas que moram no semiárido em direção
ao sudeste do país em busca de uma melhor qualidade de vida (trabalho, saúde, educação). Essa
migração é tão forçada quanto esperançosa como acontece com os casos que aparecem no artigo do
João Luís Fernandes. Assim, não teríamos os territórios de espera no Brasil, pois, não se trata de uma
transgressão de fronteira internacional. Entretanto, o preconceito, a violência, os assédios moral e
sexual vão estar presentes nesse processo migratório dos brasileiros oriundos da região mais seca do
Nordeste em direção à região Sudeste, sobretudo, para a cidade de São Paulo e que nos dias atuais
esse cenário é réplica em todas as grandes cidades brasileiras onde os territórios de espera são as fa-
velas, bairros não planejados, as ruas onde vivem os sem-teto e nas margens das rodovias próximas
as cidades onde estão os sem-teto.
Portanto, se os territórios de espera podem ser compreendidos como um não-lugar onde
os pobres aguardam a abertura de uma passagem para alcançar o paraíso, uma vida mais próspera,
então, o Brasil é um país cheio de territórios de espera tendo em vista que nossa população é consti-
tuída em sua maioria de pessoas que vivem nos lugares opacos, lugares da pobreza que esperam viver
em lugares luminosos e participarem do banquete do desenvolvimento proposto pela globalização.
Globalização que, na sua face mais perversa, é a causadora do aumento da pobreza mundial e, por
conseguinte pelo surgimento dos territórios de espera.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Maria Geralda. Fronteiras, territórios e territorialidades. Revista da ANPEGE. n.2,


2005. p.102-114. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução: Roneide Venâncio
Majer. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

69
CARLOS, Ana Fani A. O lugar no/do mundo. São Paulo: Hucitec, 1996. FERNANDES, João
Luís. Os territórios de espera e o fluxo recente de migrantes clandestinos na Europa.
O caso particular do campo Jungle, em Calais (França). In: Pina, Helena; Martins,
Felisbela, orgs. - The Overarching Issues of the European Space: a strategic (re)positioning of
environmental and socio-cultural problems? Porto, Fac. Letras Univ. Porto, 2019. pp. 155-169.
FERNANDES, Nelson da N. A cidade, a festa e a cultura popular. Revista Geographia / Depto.
De Geografia da Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, ano VI, n°11, Dezembro de
2004. p.55-61. FELIPE, José Lacerda. A (re) invenção do lugar: os rosados e o país do Mossoró.
Revista Território. Rio de Janeiro, ano VI, n°10, pp.33-49. jan/jun, 2001. GONÇALVES, Carlos W.
P. Formação sócio-espacial e questão ambiental no Brasil. In BECKER, Berta (et al.) Geografia e
meio ambiente no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1995. p.309-333. GUPTA, Akhil e FERGUNSON,
James. Mais além da cultura: espaço, identidade e política da diferença. In: ARANTES,
Antônio A.,(org.). O espaço da diferença. Campinas (SP): Papirus, 2000. p. 30-47.
HAESBAERT, Rogério. Concepções de território para entender a desterritorialização. Território
Territórios/Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPGEO-UFF/AGB. Niterói. 2002.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Tradução: Sérgio Martins. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
MACHADO, Mônica S. Geografia e epistemologia: um passeio pelos conceitos de espaço, território
e territorialidade. GEO UERJ, n.1. Rio de Janeiro: Departamento de Geografia da UERJ, 1997.
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. Tradução: Maria C. França. São Paulo: Ática,
1993. REIS, Breno M. S. Pensando o espaço, o lugar e o não lugar em Certeau e Augé:
perspectivas de análise a partir da interação simbólica no Foursquare. Revista Contemporânea.
UERJ. nº21, vol. 01, 2013. pp. 136-148. SILVA, Sylvio C.B.M. e SILVA, Barbara-Christine N.
Estudos sobre globalização, território e Bahia. Salvador: UFBA, 2003.
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1996. SPOSITO, Eliseu
S. Geografia e filosofia: contribuição para o ensino do pensamento geográfico. São Paulo: UNESP,
2004. TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução: Lívia de Oliveira. São
Paulo: Difel, 1983.

70
Considerações finais: As ideias de Milton Santos vão continuar florescendo

Sebastião Cerqueira-Neto
Leonardo Thompson da Silva
José André Ribeiro
Ricardo Rodrigues Mendes
Ricardo Almeida Cunha

As biografias de Milton Santos, assim como suas proposições de compreender a dinâmica


dos territórios, foram e são objetos de estudos intermináveis. A atração pelo pensamento e pela figura
do geógrafo se justifica devido ao fato dele tratar a análise territorial combinando diversos fatores. É
isso que faz com que sua contribuição não tenha ficado confinada somente à ciência geográfica. A sua
capacidade de pensar o Brasil e o mundo de forma crítica, já que viveu e trabalhou em diversos países
e continentes, fez com que seus conceitos ultrapassassem a Geografia e ganhasse respaldo em outras
áreas do conhecimento, sobretudo aquelas que se dedicam a elaborar estudos sobre a dinâmica global,
colocando o humanismo como norteador de suas análises.
O compêndio apresentado neste livro mostra claramente como o pensamento de Milton
Santos pode estar presente em diferentes análises, nas mais diversas temáticas. Ao tentar apresentar
uma conclusão única, diante dessa diversidade, apegamo-nos a três questões que são fundamentais
para Milton Santos: ser negro e intelectual no Brasil, a miséria social da sociedade global e a globa-
lização.
Em primeiro lugar, destaca-se a questão racial, sobretudo no ambiente acadêmico. Mes-
mo tendo atingido notoriedade acadêmica, Milton Santos sabia como ninguém que a cor da sua pele,
às vezes, “falava” mais alto que sua representatividade conceitual. Nota-se esse diagnóstico quando
ele anuncia que “é difícil ser negro e intelectual no Brasil”, demonstrando como é intensa a luta da
pessoa negra no cotidiano do trabalho, especialmente na vida acadêmica. No programa Roda Viva da
TV Cultura, de 1997, ele disse o quanto foi laboriosa a sua aceitação, por exemplo, na Universidade
de São Paulo. Por isso, para além de suas análises sobre os espaços, ele não deixava de produzir se-
veras críticas sobre a academia, a universidade e o papel da intelectualidade brasileira na constituição
de um racismo sutilizado no Brasil, que dificulta certos acessos e espaços de representatividade para
as pessoas negras. Ele naturalmente não poderia fugir desse assunto, tendo em vista que sendo negro,
nascido no interior da Bahia, soube como ninguém analisar essa luta da pessoa negra para se represen-
tar na universidade, fixar-se no ambiente acadêmico e atingir certos espaços de privilégio das elites.
Certamente, gostaríamos de destacar que, mesmo diante de sua popularidade, as ideias de
Milton Santos ainda não alcançaram todo o potencial de influência que poderiam atingir, dentro e fora
da academia, assim como acontece com a obra de outros intelectuais negros, como Abdias do Nas-
cimento, Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Jurema Werneck etc. O fato das ideias desses intelectuais
não atingirem um amplo espectro de alcance acadêmico mostra certa relutância nas elites acadêmicas
de romperem com a hegemonia do pensamento eurocentrado, ainda mais quando temos em muitos
departamentos de nossas universidades uma visão totalmente neocolonialista, que coloca intelectuais

71
da envergadura teórica de Milton Santos em lugares opacos, sem estabelecer um meio de difusão da
sua obra e pensamento, tal como se observa com o trato feito com autores europeus.
Para além disso, é interessante notar como, enquanto muitos pesquisadores se dedicaram
a estudar o desenvolvimento, Milton Santos se debruçou na tarefa de decodificar o subdesenvolvi-
mento o que, de fato, mostra um viés acadêmico mais específico, que culmina em uma crítica voraz
do modo como se estabelece a causa visível do subdesenvolvimento: a relação de exploração dos
países ricos sobre os países pobres.
É na percepção desse caráter diverso do paralelo desenvolvimento/subdesenvolvimento,
que o geógrafo nos estampa os seguimentos da desigualdade, que se dá entre metrópoles e “colônias”
e pode ser também delineada dentro de um mesmo país, de um mesmo estado ou até mesmo de uma
região. Neste aspecto, encontra-se uma diferença nítida de predomínio econômico entre o norte e sul
do Brasil, por exemplo. Esse é um grande fator para a constatação de que mesmo com toda a vitali-
dade do agronegócio no país, mesmo com os projetos de fortalecimento da agricultura e com o cres-
cimento econômico, o Brasil ainda é um país de famintos. Na região do Extremo Sul da Bahia, por
exemplo, caracterizada economicamente pelo turismo, pela silvicultura do eucalipto, e pela diversi-
dade de produção no campo, a fome e a miséria, que são indissociáveis, ainda podem ser constatadas,
tanto no urbano como rural, coabitando com a glamourização das grandes redes hoteleiras, resorts e
com o turismo de luxo.
Como pesquisadores do Observatório Milton Santos, buscamos compreender esse cená-
rio apontado pelo geógrafo, observando-o nos fenômenos de escala regional. Ou seja, por que a rique-
za da produção dos setores econômicos dessa região da Bahia não diminui a carência de alimentação
da sua população? Em 2011, a Bahia, de acordo com o portal de notícias do G128 era o estado com
maior concentração de pessoas em situação de extrema pobreza, e grande parte desse contingente se
encontra no semiárido.
Contudo, é diagnóstico evidente que ainda há extrema pobreza em regiões cuja produção
da riqueza se encontra em franco dinamismo econômico. Esse parece ser também o caso da Costa
do Descobrimento, em que as pessoas chegam à busca de oportunidades de trabalho, em vista das
oportunidades oferecidas pelo turismo, porém não acessam um teor distribuído da riqueza, que se
acumula nas corporações que comandam o setor turístico. Sem capacitação necessária e atuando em
setores econômicos saturados, a maior parte da população em busca de oportunidade passa relegada a
um papel secundarizado da economia, com baixa renda e, sobretudo, com baixa condição alimentar. A
região turística da Costa do Descobrimento ainda é considerada como um “eldorado”, sobretudo por
causa do turismo, mas na realidade a região passa pelos mesmos problemas estruturais de pobreza,
miséria e fome, às vezes mais acentuados, quando se compara com outras regiões do país. Em suas
principais cidades, Porto Seguro e Eunápolis, é visível o aumento de pessoas nas ruas, ou morando
em condições subumanas. Tentar observar alguns aspectos, a partir do olhar de Milton Santos, dessa
dinâmica da pobreza na região foi o principal elo de realização deste projeto.
Neste aspecto, gostaríamos de observar que, ainda que se aceite uma constante de crise
econômica no país, não se pode aceitar, por outro lado, que ela seja a principal causa dessa situação
de fome. No documentário “A globalização vista do lado de cá”, Milton Santos diz que a preocupa-
ção política é apenas com a economia, nunca com o social. E em relação a fome no Brasil, é isso que
28 https://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/05/bahia-e-estado-com-mais-pessoas-em-situacao-de-miseria-diz-governo.
html
72
estampa a forma como as decisões políticas se concentram no econômico: de forma simples, é assim
que se decide quem vai e quem não vai comer.
Além disso, observa-se isso como um efeito da globalização, que pode ser interpretada
por diferentes prismas. Porém, para a Geografia, ela passa a ser um fenômeno que explica a dinâmica
territorial nos mais diversos territórios e nas mais variadas escalas. No período da Guerra Fria, havia
a possibilidade de interpretar os territórios a partir de três divisões: primeiros, segundos e terceiros
mundos que envolviam não apenas a condição econômica, mas a ideologia política também como um
vetor fundamental para se compreender a dinâmica social.
Contudo, há uma intenção perversa de se basear apenas no nível econômico e de sim-
plificar o mundo dividindo-o apenas nessas partes, sem levar em conta que cada território é único e
repleto de contradições que pode ter ou não um caráter global. Não há um conceito científico que de-
fina a globalização, que inclusive é abordada por alguns autores como mundialização. A globalização
parece apresentar infindáveis meios que conduzem a sua interpretação, talvez por isso Hansen (2003,
p.105) vai dizer que a globalização se tornou um termo para o qual todo mundo tem sua própria de-
finição. Assim, continentes, países, regiões e cidades podem ser interpretados à luz dos vetores da
globalização e, por conseguinte, classificados como desenvolvidos ou não a partir das premissas des-
se fenômeno. Isso é o que determina, de certo modo, uma prevalência do discurso econômico sobre
as demais formas de definição política. Observando por esse prisma, não seria um erro afirmar que
a globalização passou a indicar o nível de desenvolvimento de um determinado território. Por esse
prisma, não há novidade alguma se pensarmos que o mundo sempre foi dividido entre pobres e ricos,
desenvolvidos e subdesenvolvidos, norte e sul, e agora, globalizado e não globalizado. Entretanto,
“a globalização é mais do que um conceito, ela é também um modo de enfocar a realidade ou uma
perspectiva analítica, e em termos mais amplos, discursiva” (THERBORN, 2001, p.125).
Em geral, os economistas dizem que a globalização é o único caminho para se chegar a
um estágio de desenvolvimento. Para os humanistas, esse fenômeno viria a produzir ou aumentar o
abismo entre os continentes, entre os países, justamente porque os atores que compõem todo o pro-
cesso de globalização vão privilegiar poucos territórios em detrimento de tantos outros. O que há
dentro dessa diversidade de análises sobre o tema é que a sua caracterização enquanto um fenômeno
irá indicar o quanto um território está desenvolvido, ou está em processo de desenvolvimento ou é
subdesenvolvido, logo, uma análise de cunho puramente economicista. A partir desse entendimento
as ciências, geralmente, vão trabalhar com análises que enxergam a globalização como um importan-
te indicativo de exclusão, sobretudo se um território não é dotado de certos equipamentos, técnicas
e tecnologias. Por outro lado, são os atores da globalização que determinam quais territórios serão
luminosos ou opacos.
No Brasil, a maior crítica ao modelo de globalização que o país estava implantando veio
da obra de Milton Santos, que mesmo antes de publicar “Por uma outra globalização” (2001), já
elaborava um pensamento crítico em suas entrevistas e debates nos diversos meios de comunicação.
Mais uma vez, com destaque para o Programa Roda Viva da TV Cultura (1987), o geógrafo, quase que
unilateralmente, contraria grande parte dos seus entrevistadores, argumentando que os efeitos mais
nocivos da globalização estão direcionados para países pobres. É a periferia global que mais sente os
efeitos sociais devastadores do sistema. Certamente, não há como prever qual seria a interpretação
desse geógrafo quanto a sua proposição de se pensar em uma “outra globalização”. Entretanto, para

73
quem conhece a sua obra, pode-se imaginar que ele estaria procurando outros caminhos para explicar
a dinâmica do mundo atual; inclusive subvertendo a lógica estampada pelo termo “globalização”.
De acordo com Giddens (2000, p.23) “a globalização não é, portanto, um processo singu-
lar, mas um conjunto complexo de processos. E estes operam de uma maneira contraditória ou anta-
gônica”. Por esse caminho de análise, Milton Santos, por sua característica de pensamento dialético,
soube sintetizar esses contraditórios a partir da dinâmica dos países subdesenvolvidos, mostrando a
face perversa da globalização através dos processos de urbanização, da produção de alimentos, do
papel da mídia, da influência da ciência econômica e de uma geopolítica comandada pelo capital.
Corroborando com esta análise Diniz (2009, p.40) nos mostra que “Milton Santos chama atenção para
a força do mercado, que atravessa inclusive os interesses das pessoas, a partir do lado político dessa
globalização perversa”. No livro “Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal”, Milton Santos propõe a tentativa de se redesenhar o paradigma da globalização por meio
da adoção de um viés humanista, que se confrontaria diretamente com esse modelo economicista e
mercadológico.
Milton Santos interpretou a globalização sob diversos aspectos. Num desses aspectos ele
usa a globalização para indicar “a existência de três mundos” (SANTOS, 2001, p.18) num mesmo
planeta. Assim, haveria um mundo onde a globalização foi nos dada como fábula no que tange ao
acesso ao consumo por todos. Um outro mundo mostraria a globalização enquanto perversidade, em
que a exclusão dos pobres do processo de desenvolvimento é a tônica dessa ideologia. E, por último,
um terceiro mundo construído a partir de uma outra globalização. É nessa última proposta que vamos
nos debruçar para compreender se estamos ainda perseguindo uma outra globalização ou outros pro-
cessos que leve a diminuição de um mundo tão perverso para os pobres.
Dessa forma, torna-se fundamental uma reflexão do que poderia ser indicado como um
“fracasso da globalização pensada por Milton Santos”, já que passadas mais de duas décadas da
publicação do livro citado, é evidente que novos elementos que configuram a globalização foram
agrupados, fazendo com que o viés econômico tenha obtido sucesso frente a uma proposta geopolítica
mais solidária. A análise de Milton Santos observou apenas o começo da internet, portanto ela não
poderia antecipar a explosão das redes sociais e seus diversos usos econômico-sociais, não podendo
analisar o ciberespaço como outro território, no qual mercadorias, ideias e a propagação política não
encontram limites geográficos e, portanto, difícil de ser cartografado. Logo, a globalização proposta
por Milton Santos não levou em consideração esses novos atores que se apresentam como poderosos
no que tange a relação entre os territórios.
Ao propor, por exemplo, uma reflexão sobre o fim da globalização não está se pensando
num processo de isolamento entre os territórios, pois a diplomacia bem executada é altamente salu-
tar para diminuir as linhas abissais entre os povos. Também não se configura num cerceamento do
uso do termo globalização. O objetivo principal é apresentar uma proposta de análise que coloque a
globalização, enquanto conceito de desenvolvimento, de “cabeça para baixo”29, com caminhos para
a globalização, atualizando-se o pensamento de Milton Santos a esses novos contornos. Para Santos
(2001, p.23) “a globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo
capitalista”. Analisada por esse prisma, pode-se entender que ela se constitui como uma etapa da di-

29 Frase dita por Milton Santos no Programa Roda Viva da TV Cultura em 1987.
74
nâmica do capital pelo mundo, sendo uma etapa na qual é possível pensar o seu fim e o surgimento de
outro fenômeno em sua substituição.
Um dos fracassos da globalização está na não homogeneização do planeta, pois não aca-
baram “com as diferenciações entre os lugares na superfície terrestre, foram surpreendidos e rebati-
dos pelos acontecimentos geopolíticos ocorridos logo nos primeiros anos do século XXI” (MORAES,
2002, p.190). Ademais, como diria Santos (1982, p.23) “a universalização não suprime os particula-
rismos”, tendo em vista que assistimos os continentes em ebulição social, econômica e política, e o
aparecimento de novos países.
Concordando que o termo internacionalização é sinônimo da globalização, Brandão
(2003, p.01) dirá que este processo é altamente maléfico à integração de países, por exemplo, como
o Brasil, pois, “de um modo geral debilita os centros nacionais de decisão e comando sobre os des-
tinos de qualquer espaço nacional”. Portanto, a globalização age para debilitar a administração de
prefeitos, governadores e presidentes de territórios econômica e culturalmente frágeis. Daí Haesbaert
(1999) afirmar que a globalização é uma barreira para que haja áreas mais coesas e integradas.
De acordo com Amaral Filho (2002), a globalização está provocando, capitaneada sempre
pelo capital, o reordenamento das regiões, nas quais há um processo de desvalorização das antigas
áreas de centros industriais, e a criação ou a valorização de regiões, que, até então, não possuíam de
grande relevância econômica. Dessa forma, a geopolítica das empresas se apresenta mais eficiente
que a geopolítica dos governantes.
No entendimento de Sousa-Santos (2005, p.42), “lo que llamamos globalización es un
conjunto de relaciones sociales. Esto quiere decir, en primer lugar que no hay propiamente una
globalización, sino muchas globalizaciones, diferentes modos de producción de globalización”. A
existência e o formato dessas globalizações corroboram com uma percepção de que a globalização
deve ser interpretada através das particularidades dos territórios, ao contrário do que a globalização
pretende, que é a homogeneização.
Essas são algumas das questões que Milton Santos nos deixa para continuarmos a propor
estudos, cujos objetivos podem expor os lugares opacos, em que se encontra milhares de pessoas
vivendo à margem do desenvolvimento, que é cada vez mais excludente. Para Milton Santos, é ne-
cessário busca por teorias não eurocêntricas, cujo intuito seja pensar os fenômenos locais a partir
dos elementos locais, como pensar a condição política da terra no Brasil a partir das categorias do
pensamento indígena e etc. Provavelmente, Milton Santos gostaria de ver o Brasil em busca de sua
identidade enquanto civilização, assim como em relação à formulação de um desenvolvimento pró-
prio, sem seguir os parâmetros civilizatórios colonialistas.
É preciso construir outros caminhos que provoquem debates apontando para outras vias
de se pensar o território, outras possibilidades de reconhecer o mundo em que vivemos, não se petri-
ficando sobre aquelas já estabelecidas e, assim, fugir do conforto intelectual. Se para aqueles que só
conseguem perceber as mudanças da ordem física pelo caminho das ações concretas, e desprezam o
debate, a crítica, o filosofar, nos processos de modificações antrópicas, vale ressaltar que é através
do exercício do pensamento que podemos enxergar o território como algo não rígido, como se ele já
estivesse acabado.
Assim, os pesquisadores do Grupo de Pesquisa Observatório Milton Santos, que partici-
param da formulação desta obra, vão continuar norteando suas pesquisas e ações pautadas numa gran-

75
de premissa de Milton Santos: “o papel do intelectual é causar o desconforto”. Diante disso, julgamos
não somente necessária, mas inevitável uma homenagem a Milton Santos, que é um lição de crítica
ao modelo de desenvolvimento desigual do mundo tal como vivemos, que coloca o dinheiro como o
centro do universo, seja sobre os lugares luminosos, seja sobre o ser humano, mormente os pobres,
abandonados nos lugares opacos.

Referências bibliográficas

AMARAL FILHO, Jair. A grande transformação e as estratégias de desenvolvimento local.


VII Encontro Nacional de Economia Política e II Colóquio Latino Americano de Economistas
Políticos. Curitiba, 2002. p.01-21. BRANDÃO, Carlos Antônio. A dimensão espacial do
subdesenvolvimento: uma agenda para os estudos urbanos e regionais. (Tese de Livre-
Docência). Universidade Estadual de Campinas. Setembro, 2003. DINIZ, Jânio Roberto.
A territorialização dos conflitos e das contradições: o capital versus trabalho nos laranjais baianos e
sergipanos. Tese de doutorado. FFLCH/USP, 2009.GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole.
Tradução: Maria Luiza X. de A. Broges. Rio de Janeiro: Record, 2000. HAESBAERT, Rogério.
Região, diversidade territorial e globalização. GEOgraphia. Ano I, n.01, 1999. p.15-39.
HANSEN, Dean L. Educação e desenvolvimento local. In: FALCÓN, Maria Lúcia O.; HANSEN,
Dean L; BARRETO JÚNIOR, Edison R. (orgs.) Cenários de desenvolvimento local: estudos
exploratórios. Aracajú: Secretaria Municipal de Planejamento, 2003. p.97-123. MORAES, Antônio
C. Robert. Território e história no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2002. SANTOS, Milton. Por uma
outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de janeiro: Record, 2001.
SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Edusp, 1982. SANTOS, Milton.
Entrevista ao Programa Roda Viva na TV Cultura. 1997. 1 DVD (85 min). SOUSA-SANTOS,
Boaventura de. Desigualdade, Exclusión y Globalización: hacia la construcción multicultura de la
igualdad e la diferencia. Revista de Interculturalidad. Universidad de Chile. Año 1. Nº1, marzo,
2005. THERBORN, Goran. Globalização e desigualdade: questões de conceituação e
esclarecimento. Sociologias, Porto Alegre, ano 3, n°6, jul/dez 2001, p.122-169.

76
•••
••
•••
••
INSTITUTO
FEDERAL
Bahia

Você também pode gostar