Cidadania Financeira Ou Financeirização Da Cidadania-Ricardo Carvalho
Cidadania Financeira Ou Financeirização Da Cidadania-Ricardo Carvalho
Cidadania Financeira Ou Financeirização Da Cidadania-Ricardo Carvalho
Belo Horizonte
2019
Cidadania Financeira ou Financeirização da Cidadania?
Uma leitura crítica da visão de cidadania no Banco Central do Brasil sob a ótica da
Administração Pública Societal
Belo Horizonte
2019
Ficha Catalográfica
CDD: 658
Elaborada por Rosilene Santos CRB6-2527
Biblioteca da FACE/UFMG – RSS24/2020
FOLHA DE APROVAÇÃO
Para Camila e Samuel
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todas as pessoas que me trouxeram até aqui, os que conheci pessoalmente e os que
conheci apenas pelos livros, na solidão arrebatadora das palavras. Mestras e mestres. Doutoras
e Doutores. Professoras e professores. Do passado e de hoje, de muitas escolas. Meu muito
obrigado! Espero ter retribuído minimamente a preciosidade do tempo, da sabedoria e da
atenção que vocês me dedicaram. Que minhas escritas não lhes deixem desapontados(as). Que
minhas falhas não contaminem a grandeza de suas ideias nem a força de suas presenças neste
trabalho.
Agradeço, especialmente, a profa. Ana Paula Paes de Paula, pelas suas orientações, pela sua
paciência e – sobretudo – pela sua admirável competência intelectual que ajudou a construir,
no Brasil, uma vertente teórica própria de Administração Pública, crítica e profundamente
preocupada com as questões sociais.
Agradeço às colegas e aos colegas de mestrado, amigas e amigos, que me impulsionaram nesta
trajetória mesmo sem que soubessem que as linhas que aqui se escrevem devem muito ao
convívio desta preciosa turma. Eu me orgulho profundamente de vocês. Parte do meu otimismo
com um futuro melhor vem da certeza de que a pesquisa social no país estará em ótimas mãos,
em pensamentos dedicados e em corações generosos como os seus.
A todas as pessoas do Banco Central do Brasil, agradeço-lhes, além de tudo, pela oportunidade
de divergir. Penso diferente da maioria de vocês. Que sigamos trabalhando, harmonizando as
dissonâncias que nos pertencem, para construir um país mais justo, igualitário, sustentável e
seguro. Tenho esperança de que melhoraremos juntos. O povo sofre há muito tempo, e por isso
tem pressa. Há que se empenhar em ouvi-lo, respeitá-lo e se colocar disposto(a) a ajudar.
Lembrando sempre: somos povo também.
Camila e Samuel. Mãe e Pai (Dona Tina e Seu Carvalho). Alysson e Ivana. Christiano e
Silvânia. Ariadne, Koji, Gustavo, Eva e Arley (in memoriam), Tim e Guete, Dona Geralda. Não
tenho muito a oferecer, mas que este trabalho, que pouco é, seja também um agradecimento a
vocês e uma homenagem ao que representam na minha vida. O todo do meu afeto não será o
bastante para o tanto que me deram, mas será sempre mais quanto mais tempo tiver para ofertá-
lo. Que tenhamos muito tempo, então. E que assim eu possa um dia equilibrar a fortuna de suas
afeições com a minha capacidade de honrá-la.
“A coisa mais importante para os brasileiros (...)
Darcy Ribeiro
RESUMO
Financial citizenship is a concept that has become preeminent after the 2008 economic crisis,
being developed under the influence of the dual process of financialization and increasing
inequality that characterizes today’s capitalism. In Brazil, its Central Bank is currently
responsible for its formulation and dissemination. The main goal of this research, therefore, is
to understand how this concept was brought to the Brazilian society, investigating the reasons
that led this citizenship agenda to be adopted by an institution traditionally averse to
sociopolitical issues of this kind. To do so, we assume that citizenship and Public
Administration have an intrinsic relationship. A bond that was weakened by managerialism but
that has been recovered by the Brazilian theory of Societal Public Management, a theory that
highlights the sociopolitical dimension of Public Administration. With Critical Theory
underpinnings, a perspective that comprehend social phenomena as historical and dialectally
determined, this research paper draws back the origins of current citizenship and Public
Administration (bureaucracy) to the Modern Era, which was influenced, in its turn, by the early
concepts on these issues of the Classical Antiquity. Habermas critique of Modernity, a dialogue
with Max Weber’s instrumental and substantive rationality, and Hannah Arendt’s right to have
rights, are used to discuss the traditional sense of citizenship given by Thomas H. Marshall, an
heir of the Modern concept of citizenship viewed as a linear progressive evolution of civil,
political and social rights. After this general discussion, the Brazilian history of citizenship and
Public Administration is presented with a summary of Brazilian scholar’s debate about them.
At the end, the Brazilian historical analysis, its theoretical debate, and the interviews of 25
leaders of Central Bank of Brazil (CBC) demonstrate that financial citizenship was not a
spontaneous act of sociopolitical engagement in CBC. It was the result of a dispute in society
between democratic-participatory, authoritarian and neoliberal political projects, as part of a
long dialectical struggle between authoritarianism and democracy, politics and technique,
developmentalism and liberalism, public and private. It is a concept-synthesis of a process that
is, in fact, the financialization of citizenship, mediated by a bureaucracy whose technocratic
leadership does not incorporate the sociopolitical dimension claimed by the Societal Public
Management, and that establishes financial resource management as a requirement to
enjoyment of rights, transforming the right to have rights into have money to have rights.
Quadro 1 – Os quatro tipos de tendências à crise das sociedades capitalistas avançadas segundo Habermas ...... 15
Quadro 2 – Relações entre Administração Pública e Cidadania ............................................................................ 35
Quadro 3 – Categorizações de Administração Pública na virada do século XX para o XXI ................................ 43
Quadro 4 – Diferenciações entre a Administração Pública Gerencial e Societal .................................................. 49
Quadro 5 – Teorias dos Direitos da Cidadania, segundo Janoski e Gran .............................................................. 65
Quadro 6 – Cidadania no Brasil: síntese das abordagens teóricas ......................................................................... 93
Quadro 7 – Lista de Entrevistas utilizadas para a análise da construção da cidadania financeira no Banco Central
do Brasil........................................................................................................................................... 134
Quadro 8 – Periodizações Histórica, da Administração Pública e da Cidadania, no Brasil ................................ 139
Quadro 9 – Qualificações para o direito de votar, no Brasil, de 1821 a 1934 ..................................................... 149
Quadro 10 – As quatro reformas Administrativas do Brasil Império .................................................................. 150
Quadro 11 – Primeiras leis formalizando direitos trabalhistas – 1888 a 1927..................................................... 156
Quadro 12 – Direitos trabalhistas – 1931 a 1963 ................................................................................................ 161
Quadro 13 – A experiência de planejamento no Estado, de 1939 a 1963 ............................................................ 163
Quadro 14 – Avanços nos direitos sociais, normas e burocracia, de 1966 a 1974 .............................................. 168
Quadro 15 – Instrumentos de planejamento do governo, de 1964 a 1985 ........................................................... 170
Quadro 16 – Padrões monetários no Brasil, de 1500 aos dias atuais ................................................................... 174
Quadro 17 – Evolução histórica da Composição da Diretoria do BCB – 1964 a 1985 ....................................... 210
Quadro 18 – Especializações de Diretores, Diretorias ou Áreas do BCB – 1965 a 1995 .................................... 211
Quadro 19 – Especializações de Diretores, Diretorias ou Áreas do BCB – 1965 a 2012 .................................... 234
Quadro 20 – Especializações de Diretores, Diretorias ou Áreas do BCB – 1965 a 2019 .................................... 256
Quadro 21 – Principais alterações estruturais no processo de funcionamento do Copom ................................... 264
Quadro 22 – Definições de Inclusão Financeira pelo BCB, de 2009 a 2018 ....................................................... 279
Quadro 23 – Definições de Educação Financeira pelo BCB, em 2011 e em 2018 .............................................. 280
Quadro 24 – Composição do Índice de Cidadania Financeira (ICF) ................................................................... 283
LISTA DE TABELAS
Gráfico 1 – Evolução do Setor Financeiro – Ações Negociadas e Capitalização como proporção do PIB – de
1980 a 2017 ..................................................................................................................................... 104
Gráfico 2 – Valor Adicionado pela Indústria como proporção do PIB – de 1995 a 2016 ................................... 105
Gráfico 3 – Participação na Renda Nacional antes dos Impostos, agregados para o Mundo, de 1980 a 2016 .... 107
Gráfico 4 – Participação na Renda Nacional antes dos Impostos, agregados para o Mundo, do 1% mais rico da
população, de 1980 a 2016 .............................................................................................................. 108
Gráfico 5 – Participação do eleitorado sobre o total da população de 1835 a 2018 ............................................ 148
Gráfico 6 – Dívida externa registrada, total anual em US$ (milhões), de 1946 a 1964 ....................................... 166
Gráfico 7 – Preços ao consumidor, taxa anual, de 1930 a 1964 .......................................................................... 166
Gráfico 8 – Dívida externa registrada, total anual em US$ (milhões), de 1964 a 1985 ....................................... 171
Gráfico 9 – Coeficiente de Gini no Brasil, de 1976 a 2014 ................................................................................. 175
Gráfico 10 – Número de domicílios extremamente pobres, de 1986 a 2014 ....................................................... 176
Gráfico 11 – Metas para a Inflação, com limites inferior e superior, de 1999 a 2021, e resultado do IPCA de 1999
a 2018 .............................................................................................................................................. 259
Gráfico 12 – Índices de Confiança da Economia – 2011 a 2018 ......................................................................... 263
Gráfico 13 – Mudança na composição dos participantes dos fóruns de inclusão e de cidadania financeiras nos
governos Dilma e Temer ................................................................................................................. 267
Gráfico 14 – Quantidade de Penalidades Aplicadas pelo Banco Central do Brasil de 1999 a 2919 ................... 268
Gráfico 15 – Soma dos Lucros Líquidos dos Top 20 do SFN por trimestre, de mar/00 a mar19 ........................ 269
Gráfico 16 – Total de Reclamações de Banco Registradas no Sistema RDR, de 2002 a 2018 ........................... 270
Gráfico 17 – Relação entre reclamações de assuntos financeiros nos Procons e no BCB – 2014 a 2018 ........... 272
Gráfico 18 – Total de atendimentos realizados no BCB por múltiplos canais, de 1998 a 2018 .......................... 273
Gráfico 19 – Números de agências e números de postos de atendimento das Top 20 Instituiçoes Financeiras por
Lucro Líquido – mar/2000 a mar/2019 ............................................................................................ 274
Gráfico 20 – Editais de Audiências Públicas do BCB que receberam manifestações – 2002 a 2019.................. 276
Gráfico 21 – Amplitudes: Coeficiente de Gini e IDHM por UF, no Brasil, de 1991 a 2010, Índice de Inclusão
Financeira, de 2000 a 2010, e Índice de Cidadania Financeira, 2018 .............................................. 285
Gráfico 22 – Assuntos comentados nas 25 entrevistas entre questões e termos relacionados a economia e
cidadania .......................................................................................................................................... 288
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................13
2. REFERENCIAL TEÓRICO ..............................................................................................................23
2.1 TRILHA TEÓRICA: A TEORIA CRÍTICA E A DOR DO MUNDO ..................................................................... 23
2.2 CRÍTICA, ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E CIDADANIA: HABERMAS, ARENDT E WEBER ........................... 29
2.3 A CRÍTICA NO CONTEXTO ORGANIZACIONAL: A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA SOCIETAL ........................ 35
2.4 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E CIDADANIA: CIDADANIA FORMAL E EFETIVA ........................................... 50
2.4.1 Estado, burocracia e cidades: a Cidadania Formal ..................................................................................... 52
2.4.2 As cidades, o espaço público e o Outro: a Cidadania Efetiva .................................................................... 66
2.5 CIDADANIA NO BRASIL: INTERPRETAÇÕES BRASILEIRAS E UMA CIDADANIA MULTIDIMENSIONAL....... 75
2.6 A PERPLEXIDADE CONTEMPORÂNEA: FINANCEIRIZAÇÃO ....................................................................... 94
2.6.1 Financeirização e Desigualdade ................................................................................................................. 94
2.6.2 Financeirização e Consumo: inclusão e cidadania ................................................................................... 112
2.6.3 Cidadania Financeira: uma conceituação rececnte ................................................................................... 119
3 METODOLOGIA .............................................................................................................................127
4 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E CIDADANIA NO BRASIL: DOS “HOMENS BONS” AOS
“CIDADÃOS DE BEM” ...................................................................................................................136
4.1 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E CIDADANIA NO BRASIL: QUESTÕES GERAIS ............................................ 137
4.2 1500 A 1822: O ARCAÍSMO COMO PROJETO E OS HOMENS BONS DA SOCIEDADE................................... 139
4.3 1822 A 1930: DIREITOS POLÍTICOS E CIVIS EM UM MEIO CONSERVADOR, LIBERAL E AUTORITÁRIO ... 143
4.4 1930 A 1964: A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA E OS DIREITOS SOCIAIS SOB AUTORITARISMO........ 157
4.5 1964 A 1985: O RECUO DEMOCRÁTICO COM NOVOS DIREITOS SOCIAIS ................................................ 167
4.6 DE 1985 EM DIANTE: DEMOCRACIA E CIDADÃOS DE BEM ...................................................................... 172
5 A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA FINANCEIRA PELO BANCO CENTRAL DO BRASIL ..179
5.1 UM ESCLARECIMENTO PRELIMINAR: O QUE FAZ UM BANCO CENTRAL? ARRANJOS INSTITUCIONAIS DA
POLÍTICA MONETÁRIA NO BRASIL .......................................................................................................... 179
5.2 DA ALERGIA POLÍTICA À CIDADANIA FINANCEIRA: AS QUATRO FASES DE CONSTRUÇÃO DO BCB E DE
SUA RELAÇÃO COM A CIDADANIA............................................................................................................ 184
5.3 BCB E CIDADANIA (1945-1964): A ORIGEM CONSERVADORA E AUTORITÁRIA ..................................... 187
5.4 BCB E CIDADANIA (1964-1994): UMA BUROCRACIA TECNOCRATA E LIBERAL ..................................... 208
5.5 BCB E CIDADANIA (1994-2016): ESTABILIZAÇÃO E INCLUSÃO FINANCEIRA ........................................ 234
5.6 BCB E CIDADANIA (DE 2016 EM DIANTE): A CIDADANIA FINANCEIRA E O 1% ...................................... 255
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ..........................................................................................................291
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................309
13
1. INTRODUÇÃO
Não são fáceis as condições em que nos encontramos, neste início de século XXI, para estudar
a Administração Pública centrada em uma discussão sobre cidadania. Isso porque ambas
tomadas em seus sentidos modernos – vinculados à noção de direitos fundamentais e de
burocracia racional-legal –, vêm sendo questionadas por uma série de crises que eclodiram em
todo o mundo, especialmente, na última década do século anterior e nas primeiras do atual. Nos
dizeres de Holston e Appadurai (1999, p. 2), já na virada do século, “o projeto de uma sociedade
nacional de cidadãos, especialmente na versão do liberalismo do século XX, aparece
crescentemente exaurido e desacreditado”. Um processo de deterioração que, segundo Isin
(2015), vem se agravando na verdade, desde 1945, com as promessas não cumpridas do pós-
guerra que abalaram a crença nos ideais que fundam a cidadania moderna, quais sejam, os de
igualdade, liberdade e democracia equitativamente distribuídos entre os povos, seja nas nações
capitalistas ou nas alternativas socialistas. E, conforme Haque (1999, p. 309) afirma “a essência
da Administração Pública está nos princípios da cidadania”, e, com isso, se uma falha, a outra
falha também.
De um lado, autores como Mhurchú (2014) e Isin (2000, 2002, 2015) creditam uma parcela da
descrença com o conceito moderno de cidadania à crise da própria Modernidade. Para eles, um
mundo como o que vivemos, com fronteiras nacionais mal-acabadas, habitado por sujeitos
complexos, repleto de zonas sociais cinzentas é típico da Pós-Modernidade e não comporta a
visão universalista e instrumental trazida pela Modernidade1. Nessa linha, a “crítica da
1
Na verdade, a crítica à Modernidade é extensa, polêmica e complexa. Existe uma imensa literatura que explora
a possibilidade de exaustão do projeto da Modernidade calcada na dualidade mente/corpo e na razão neutra e
ilimitada, e defende a ascensão e a consolidação de um mundo Pós-Moderno, onde o prefixo pós não significa
depois, mas alternativo. Nessa linha destacamos a discussão feita, e.g., por Sousa Santos (1989, 2002, 2003),
Eagleton (1997), Macfarlane (2000) e Lyotard (1988). Por outro lado, temos autores que exploram a incompletude
do projeto da Modernidade, não o seu esgotamento, como Giddens (1991), ou a sua crise, como Habermas (1998),
ou a sua novidade como diferenciação sistêmica, como Luhmann (2002), além dos que reconhecem sua
modificação ao longo do tempo ainda que não a sua superação, como Bauman (1998, 2001) ou Arendt (1961,
2007), ou as múltiplas modernidades de Charles Taylor (2004). E a tradição positivista que se mantém defensora
do progresso moderno irreversível. Os Estudos Organizacionais não escapam deste debate. Harding (2003), Chan
(2001), Hassard (1999), Knights (1997), Alvesson e Deetz (2005), Hardy e Clegg (1997) e Antonio (1991) são
alguns dos que apresentam o questionamento da visão Moderna que constitui as organizações construídas sobre
dualidades (sujeito/objeto, verdadeiro/falso, gestor/empregado, organização/indivíduo) que Chia (1997) chama de
ontologia do ser, em oposição à ontologia do tornar-se típica da Pós-Modernidade. De outro lado, autores como
Donaldson (2003) defendem que a visão moderna do positivismo já não é tão superficial e simplória, reconhece
14
cidadania nas democracias euro-americanas nas duas últimas décadas demonstrou que a figura
abstrata e ostensivamente universal e secular do cidadão era, na verdade, uma projeção de uma
figura masculina, proprietária, branca, heterossexual, capaz, geralmente cristã”, tal como a
visão genérica que o mundo moderno industrial, positivista e capitalista difundiu no mundo
(ISIN, 2015, p. 5). De outro lado, mais uma vez, a Administração Pública, e com ela, o Estado,
são apresentados como alguns dos responsáveis pelo fracasso dessas pretensões universais da
cidadania e pelo colapso humanitário hoje vivido (TAYLOR-GOOBY, 1999).
b) As crises políticas, em suas várias vertentes, que vão das instabilidades geopolíticas
decorrentes da guerra ao terror, pós-11 de setembro de 2001, à primavera árabe e à
guerra da Síria (FERRIS & KIRIŞCI, 2018; SADIKI, 2014; MULLARD & COLE,
2007), combinadas com o retorno das instabilidades políticas latino-americanas,
especialmente, na Argentina, Honduras, Venezuela, Paraguai, e, mais recentemente, no
Brasil (SOUZA, 2016; SANTOS, 2017);
os limites da razão, mas não abandona o projeto universal e progressista da Modernidade. Paes de Paula (2008)
apresenta uma síntese sobre esse debate nos estudos organizacionais.
15
Essas crises se aproximam da classificação feita por Habermas (1992) das quatro tendências à
crise das sociedades capitalistas avançadas – agrupadas entre as do sistema e as de identidade
– que seriam as econômicas, de racionalidade, de motivação e de legitimação, relacionados aos
sistemas sociais econômico, político e sociocultural, da seguinte forma:
Do ponto de vista organizacional, e em linha com este argumento, conforme discutido por Paes
de Paula (2009, p. 22), a Administração Pública na sua vertente hegemônica contemporânea, a
Gerencial, ao cindir a técnica da política, promoveu um descompasso entre três dimensões
fundamentais para a construção de uma gestão pública democrática, as dimensões econômico-
financeiras, institucional-administrativa e sociopolítica, “mas devido à clássica dicotomia entre
a política e a administração há uma tendência de se relegar a dimensão sociopolítica ao segundo
plano”. Esse distanciamento e essa desvalorização da instância política pela Administração
também já haviam sido apontados por Tragtenberg (2005, 2006), ao discutir como as teorias
clássicas da área enxergavam as negociações políticas e o conflito como algo pernicioso que
deveria ser extirpado do mundo organizacional.2
Assim, um dos objetivos deste trabalho é justamente combinar essas três linhas de raciocínio,
de Habermas, de Arendt e de Paes de Paula, para construir o anteparo sobre o qual se projetará
a proposição geral a ser investigada, a de que estaríamos, hoje, em uma crise de legitimação da
Administração Pública diante do abandono de sua dimensão sociopolítica representada pelo
afastamento da cidadania do centro de sua discussão. E, de modo mais restrito, caminharíamos
para a proposição específica de que, devido à despolitização da Administração e à
desvalorização do espaço público, combinado a quatro macroprocessos sociais que se
espalharam pelo mundo (de globalização, de aumento da desigualdade, de financeirização dos
2
Conforme Tragtenberg (2005, p.40) afirma o “que o poder pede à psicossociologia é ocultar os conflitos do nível
político, pois o conflito no nível político pressupõe a divisão do poder”. Negar isso é negar a própria história, como
ele diz na sequência, que “o ‘culto à personalidade’ é a ocultação dos conflitos políticos. Cidadãos tornam-se
infantilizados, desenvolvendo-se uma patologia política. O fato é que sem conflitos sociais não há história”.
17
Esses quatro macroprocessos citados contribuiriam para estas proposições da seguinte forma:
c) O Estado, como agente promotor de cidadania, mantém-se sendo criticado pelo seu
tamanho e ineficiência bem como da Administração Pública em geral, mas, de modo
mais agudo, recente e específico, essa crítica caminha paralelamente com o
questionamento da sustentabilidade financeira dos direitos amparados por esta
estrutura (HOLMES & SUSTEIN, 2013). Nesse ponto, ao invés de termos uma
visão incondicionada da cidadania como “a existência de um direito de ter direitos”,
na linha defendida por Arendt (1989, p. 330) e recuperada por Evelina Dagnino
(1994, 2004), passamos a ter a defesa de que é preciso ter dinheiro para ter direitos
– construindo-se a financeirização completa da cidadania ou na economicização dos
direitos (BROWN, 2017);
18
Ao olharmos para o final do século XX, no entanto, não era essa a perspectiva defendida por
uma série de correntes teóricas ligadas, de uma maneira ou de outra, ao liberalismo e que
propugnavam uma série de vitórias supostamente irreversíveis e universais no mundo social,
tais como: i) a do mercado autorregulado ou desregulamentado e da Nova Economia, ou seja,
a economia que, segundo Stiglitz (2003, p. 34), preconizava a “mudança da produção de bens
para a produção de ideias” sobre a velha economia planificada socialista e do intervencionismo
econômico das várias matrizes keynesianas (BEESLEY, 1997; FRIEDMAN, 1982); ii) a do
Estado Neoliberal ou do Estado mínimo sobre o Estado de Bem-Estar Social ou o Estado-
Providência (TAYLOR-GOOBY, 1999); iii) a do Liberalismo Democrático Capitalista sobre o
Marxismo em geral, e o Socialismo e o Comunismo, em específico (FUKUYAMA, 1992); e
iv) a do gerencialismo na Administração Pública sobre a burocracia governamental, sintetizada
na ascensão e na universalização da chamada Nova Gestão Pública ou New Public Management
(ENTEMAN, 1993; OSBORNE & GAEBLER, 1995; HANDLER, 1996).
Todas essas supostas vitórias deveriam nos levar, segundo esses pensadores, a uma era de
plenitude: do pleno emprego, da plena liberdade e da cidadania plena. Fukuyama (1992, p. 139)
chegou a defender, por exemplo, que o triunfo do Estado Liberal, democrático e capitalista,
demonstrava, seguindo a interpretação que Alexander Kojève deu a Hegel, que “chegamos ao
fim da história porque a vida no estado universal e homogêneo é completamente satisfatória
19
para seus cidadãos. O mundo democrático liberal moderno, em outras palavras, está livre de
contradições”. Essas eram também as perspectivas dos exuberantes anos 1990 (the roaring
ninnities) apontadas por Joseph Stiglitz (2003, p. 33) como a década mais próspera da história
que “[p]odia não ser o fim da história proclamado por Fukuyama, mas, pelo menos, acreditava-
se que era o início de uma nova era”.
Ocorre que, do “Fim da História” de Francis Fukuyama (1992), o mundo parece ter pulado
diretamente para o “Fim dos Tempos”, de Slavoj Žižek (2012), nesses vinte anos que separam
as duas obras em suas publicações no Brasil. Vivemos em uma época em que a concentração
de riqueza alcançou níveis onde “[a]penas 8 pessoas possuem tanta riqueza quanto metade da
população mundial, enquanto o 1% mais rico possui mais do que os 99% restantes da
população” (JOHNSON, 2017, p. 7). O alarde em torno desse nível de desigualdade levou
economistas como Joseph Stiglitz (2012), Piketty (2004, 2015), Alvaredo et al. (2013), Yanis
Varoufakis (2016), Atkinson (2015), Goda, Onaran e Stockhammer (2016) a colocá-lo como
um dos principais entraves à própria sobrevivência do capitalismo e das democracias no século
XXI. Outro exemplo marcante dessas contradições é que, segundo relatório publicado pela
Food Security Information Network (FSIN), rede técnica de estudos associada à Organização
das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), estima-se que 124 milhões de
pessoas, em 51 países, passam por inseguridade alimentar ou fome extrema, principalmente na
Nigéria, Somália, Iêmen e Sudão do Sul, requerendo ajuda humanitária urgente. Trata-se de
uma tragédia cuja origem não é necessariamente a escassez na produção de alimento, mas a
ocorrência de conflitos políticos, de movimentos de migração e de exclusão (displacement)
impulsionados também pela desigualdade (FSIN, 2018).
3
Os comentários de Horkheimer (1990, p.2) nesse sentido são contundentes, diz ele, “[d]esde os anos subsequentes
à Segunda Guerra Mundial, a ideia da miséria progressiva dos operários, da qual, segundo Marx, deveria emergir
a revolta, a revolução, como transição para o império da liberdade, tomou-se, durante longos períodos, abstrata e
ilusória, pelo menos tão antiquada quanto as ideologias detestadas pela juventude”.
20
de fim dos tempos em que vivemos: “[s]e o capitalismo é assim tão melhor que o socialismo,
por que a nossa vida continua péssima?”. A sensação a que se chega é que, além de carências
econômicas e financeiras, estaríamos entrando também em um quadro de carências
democráticas, sociais, educacionais e jurídicas, ou seja, tal como na análise feita por Mura
(2015, p. 38) para o contexto europeu, encontramo-nos em uma fase em que a “nova ênfase
discursiva na ‘escassez’ e no ‘endividamento’ na Europa, desencadeada pela austeridade, foi,
além disso, acompanhada nos últimos anos por uma convergência crítica do déficit
orçamentário e do déficit democrático”. É uma leitura aproximada da confluência perversa
defendida por Dagnino (2004) para a América Latina, onde se operaria uma luta simbólica de
dois projetos, o neoliberal (que combate enfaticamente os déficits fiscais e orçamentários dos
governos) e o projeto democratizante antirregimes autoritários (déficits democráticos), criando
instâncias de disputa sobre os conceitos de cidadania e solidariedade.
A sensação do mal-estar civilizatório não é nova, já foi amplamente discutida, por exemplo, nas
análises frankurtianas da teoria crítica, especialmente com Adorno (2009), Marcuse (1973,
1975) e Horkheimer (1990). A reflexão de Marcuse4 (1973, p. 23), por exemplo, é emblemática
nesse sentido, quando ele diz que “[o]s direitos e liberdades que foram fatores assaz vitais nas
origens e fases iniciais da sociedade industrial renderam-se a uma etapa mais avançada dessa
sociedade: estão perdendo o seu sentido lógico e conteúdo tradicionais”. Assim, discutir
Administração Pública e cidadania no contexto atual é tentar resgatar os seus sentidos lógicos
em um cenário que parece não apresentar sentido algum, onde pululam os paradoxos e as
perplexidades como os de escassez na abundância, de democracias sem direitos, de nacionais
sem Estado-nação, de financeirização de direitos, de não-reconhecimentos das pluralidades de
gênero, de etnias, das igualdades, etc.
Em suma, em meio a esse cenário de crises e incertezas, o objetivo deste trabalho é estudar a
inter-relação entre cidadania e Administração Pública onde ambas encontram-se atualmente sob
4
Um autor como Kettler (1982), por exemplo, defende que, de um lado, Marcuse partilha com a tradição liberal a
percepção da civilização como algo que faz toda a diferença no entendimento do mundo, mas, de outro lado e
diferentemente deles, isso aconteceria não necessariamente de modo positivo. “Marcuse sustenta que as
instituições políticas e sociais criadas nos países mais civilizados dos séculos XIX e XX não conseguem controlar
as tensões sociais geradas pela civilização, apesar da aparência em contrário” (KETTLER, 1982, p. 19). Assim,
no mundo moderno, a economia se desenvolve, alguma noção de ordem social prevalece, a produção industrial
cresce e há alguns bolsões de satisfação, mas, tudo isso é um disfarce do verdadeiro fracasso do processo
civilizatório, especialmente, em seu conteúdo subjetivo e substantivo.
21
pesadas críticas diretamente associadas à própria turbulência do momento atual, por serem
tomadas como causas de algumas das crises da contemporaneidade tanto devido à sua presença
ineficiente no mundo social quanto por sua promessa de efetivação não cumprida. O objetivo é
realizar essa discussão a partir de uma leitura crítica apresentada pela Administração Pública
Societal, desenvolvida por Paes de Paula (2009), que defende que a dimensão sociopolítica da
Administração Pública se perdeu com o apogeu da Nova Administração Pública (New Public
Management), de cunho gerencialista, funcionalista e amplamente amparada pela economia
neoclássica e pela teoria da escolha racional. Para a Administração Pública Societal, essa
dimensão sociopolítica determina que a Administração Pública deveria colocar a questão da
cidadania, como participação e emancipação, de modo substantivo, muito além da mera
formalização de direitos e deveres, no centro da discussão administrativa do Estado, como
capacidade de formulação, definição e implementação de políticas públicas conectando a
dimensão técnico-gerencial com a político-institucional.
O ponto específico a ser investigado, no entanto, refere-se a uma característica muito particular
do tratamento atual dado pelas discussões tradicionais de Administração Pública quanto à
cidadania. A nova onda de crises e contestações aos dois conceitos, previamente citada,
22
A partir da análise, buscaremos então trazer essa discussão para o caso brasileiro, a partir do
qual analisaremos, sob a ótica da perspectiva crítica apresentada pela Administração Pública
Societal, a implantação, a viabilização e o sentido de um conceito de cidadania financeira ora
em curso no governo federal brasileiro, cuja implementação tem sido capitaneada por um órgão
específico, o Banco Central do Brasil.
23
2. REFERENCIAL TEÓRICO
A chamada Teoria Crítica é uma abordagem filosófica que ganhou seus contornos
fundamentais no início do século XX por meio de pensadores alemães, em sua maior parte,
vinculados ao Instituto para Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung), localizado em
Frankfurt, na Alemanha. Existe um consenso na literatura especializada de que, embora seja
um movimento fundamental da filosofia do século XX, uma de suas principais definições é,
talvez, a menos precisa de todas e mais problemática, justamente a que diz respeito ao que seria
a definição de crítica que dá nome à abordagem. Essa é uma posição encontrada, por exemplo,
em Best, Bonefeld e O’kane (2018), Henning (2018), Fleck (2017), Paes de Paula (2008) e
Melo (2011). Segundo Paes de Paula (2008), a crítica como postura de inservidão às tradições,
à autoridade, como reflexão profunda a respeito de um determinado tema, não é algo que existe
apenas nos teóricos dessa abordagem. Nesse sentido, tal como Sloterdjik (2012, p. 24) coloca,
a crítica é antes uma reflexão sobre o incômodo, sobre um desconforto com o mundo, daí a sua
noção de que, antes da crítica, existe uma dor, o que ele chama de “o a priori da dor”, ou seja,
é “o fato de as coisas mais simples da vida se mostrarem tão pesadas para alguém – que abre
criticamente os olhos”.
Sloterdjik (2012), então, relata que a crítica nesse sentido, como perplexidade diante da dor que
exige uma reflexão, uma resposta, difundiu-se mais propriamente na Modernidade, embora
também já existisse na Antiguidade e no mundo medieval. Nessa linha, ele argumenta que “sob
as grandes realizações críticas modernas há feridas abertas por toda parte: a ferida Rousseau, a
ferida Schelling, a ferida Heine, a ferida Marx, a ferida Kierkegaard, a ferida Nietzsche, a ferida
Spengler, a ferida Heidegger, a ferida Theodor Lessing, a ferida Freud, a ferida Adorno”
(SLOTERDJIK, 2012, p. 25). A crítica, da Teoria Crítica, no entanto, possui uma noção
específica que vai além das feridas abertas do inconformismo com a tradição. Conforme afirma
Melo (2011, p. 249), o “que distingue uma teoria crítica das demais posturas teóricas no campo
das ciências humanas consiste em seu interesse pelas condições emancipatórias socialmente
existentes”. Nesse sentido, não se busca apenas pensar sobre um desconforto com o mundo,
sobre uma dor. É preciso enfrentar essa dor, superá-la. A preocupação central da teoria
24
“Teoria crítica, portanto, aparece como um projeto, ou melhor, como um programa esboçado
por meio de uma contraposição com aquilo que Horkheimer denominou então como teoria
tradicional” (FLECK, 2017, p. 101). A Teoria Tradicional é toda a teoria que se funda a partir
de uma noção de ciência com base na pretensão iluminista de esgotamento do mundo pelo
sujeito cognoscente, sob uma visão positivista, que defende uma neutralidade do sujeito social
e uma separação estrita entre sujeito e objeto, e que guarda um senso de progresso técnico
evolucionista irrefletido. Conforme argumenta Paes de Paula (2008, p. 9), para os teóricos
críticos da Escola de Frankfurt, “a razão iluminista”, que impulsionou a Teoria Tradicional, “se
converteu em um crescente processo de instrumentalização para a dominação e a repressão do
homem”, justamente por defender uma ciência estritamente técnica, distante e separada do seu
objeto de investigação e pretensamente neutra. Mas, novamente como Sloterdjik (2012, p. 20)
aborda, “[s]e as coisas nos acossam de maneira ardente, precisa surgir uma crítica que dê
expressão ao arder. Não se trata aqui de uma questão de distância correta, mas de proximidade
correta”. Para os frankfurtianos, portanto, não caberia distanciar-se do mundo para abordá-lo
como algo externo a mim, longe, e que será absorvido por uma razão neutra. Era preciso, pelo
contrário, aproximar-me desse mundo, compreendê-lo internamente, como produto histórico e
conflituoso das relações sociais.
Segundo Best, Bonefeld e O’kane (2018, p. 2), portanto, “a teoria tradicional é acrítica de suas
próprias pré-condições sociais e históricas. Em vez de procurar estabelecer a constituição social
e histórica de seu objeto, identifica a sociedade como dada”. A Administração, Pública e de
Empresas, da maneira como é ensinada e estudada sob a égide do funcionalismo e do
positivismo pelas correntes de seu mainstream, segue essa lógica tradicional. Um exemplo
25
5
Na lição de Chauí (2001, p. 5), um “mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-
se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a
repetição de si mesmo”. Nessa leitura de mito fundador, proposta por Chauí (2001, p.5), duas questões emergem:
i) como fundatio, esse mito “impõem um vínculo interno com o passado como origem”, ou seja, existe desde
sempre; e, ii) como subjetividade, “falamos em mito também na acepção psicanalítica, ou seja, como impulso à
repetição de algo imaginário, que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede lidar com ela”, ou seja, é
acrítica, é a postura totalmente irrefletida sobre a realidade.
6
A visão de Taylor como visionário e pioneiro é recorrente nos manuais de Administração, como podemos ver
nos seguintes exemplos: “Frederick Winslow Taylor (1856–1915) insistiu que a administração sozinha teria que
mudar e, além disso, que a maneira de mudar poderia ser apenas determinada por estudos científicos. A partir daí,
o termo administração científica emergiu” (DAFT & MARCIC, 2009, p. 31); “Como pioneiro, o mérito de Taylor
reside em sua contribuição para encarar sistematicamente o estudo da organização. O fato de ter sido o primeiro a
fazer uma análise completa do trabalho” (CHIAVENATO, 2014, p. 59); “O primeiro homem a fazer os dois, a
trabalhar como trabalhador manual e a estudar o trabalho manual, foi Frederick Winslow Taylor [...] Taylor foi a
primeira pessoa a aplicar conhecimento no trabalho” (DRUCKER, 2000, p. 191-193); “Taylor introduziu o uso da
ciência como ferramenta de gestão” (BATEMAN & SNELL, 2015, p. 38); “Taylor é considerado o pai do
pensamento administrativo” (JONES & GEORGE, 2015, p. 40);
26
Essa ênfase na preponderância da materialidade econômica sobre o mundo social dada por Karl
Marx, somada à ideia de que a práxis revolucionária gerou consequências penosas para a
humanidade7, e, ainda, diante da evidência histórica de que a pauperização extrema do
operariado, cuja miséria contínua e irrefreável conduziria à revolução, conforme previsto por
Marx, não ocorreu, levaram os teóricos críticos a retomarem apenas parte do arcabouço
conceitual marxista. Nesse sentido, Horkheimer (1990, p. 2) afirma que a “doutrina de Marx e
Engels, que continua imprescindível para o entendimento da dinâmica social, já não é suficiente
para explicar o desenvolvimento interno e as relações externas das nações”. De Marx foram
mantidas a relevância da análise histórico-social que, combinado a Hegel, foi usada na defesa
da dialética como forma de análise em oposição ao positivismo. Além disso, mantiveram-se as
discussões, sobretudo, em torno dos conceitos de alienação, ideologia, reificação e fetichismo.
Ademais, enfatizou-se a questão da crítica ao capitalismo em suas dimensões políticas e
culturais. Esse tipo de abordagem de Marx foi chamado, por alguns autores, de marxismo
ocidental8 (BEST, BONEFELD & O’KANE, 2018; FLECK, 2017; MELO, 2011; PAES DE
PAULA, 2008; HONNETH, 2007).
7
A este respeito, Horkheimer questiona a leitura leninista e trotskista de Karl Marx, e chega a dizer que: “A bem
da verdade, a mim me parece porém imprescindível frisar, abertamente, que a problemática democracia, apesar de
todas as suas falhas, sempre é melhor que a ditadura, a que levaria hoje a subversão. Embora partidária da
Revolução Russa, Rosa Luxemburgo, que muitos estudantes admiram, há cinquenta anos atrás já dizia que ‘a
eliminação da democracia em geral... propugnada por Trotski e Lenin’ era um remédio muito pior ‘do que o mal
que isso supostamente deveria curar’” (HORKHEIMER, 1990, p. 3).
8
De acordo com Andrew Elgar (2005, p. 3), estudioso da obra de Habermas, o “termo ‘marxismo ocidental’ foi
usado pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty para caracterizar a linhagem amplamente humanista do
marxismo que foi articulada na Europa Ocidental, em contraste com o leninismo e o stalinismo da União Soviética
e a abordagem maoísta da China”.
27
Weber não foi acolhido da mesma maneira por todos os teóricos ligados à Escola de Frankfurt.
Alguns autores desta escola acabaram enveredando por análises psicanalíticas, indo propor
estudos amplamente relacionados à questão da subjetividade, algo que também era criticado
por ter sido deixado de lado pelo marxismo. Nessa linha, Paes de Paula (2008, p. 6) afirma que
“[u]ma preocupação fundamental da Escola de Frankfurt foi também a tentativa de integração
entre a teoria marxista e o freudismo”, algo que foi bastante trabalhado por Herbert Marcuse e
por Walter Benjamin, que não era exatamente um teórico da Escola de Frankfurt, mas manteve
bastante proximidade com ela. Enquanto alguns retomavam Freud, Jürgen Habermas foi um
dos autores, já na segunda geração da Escola de Fankfurt, a se dedicar a uma análise mais
aprofundada dos conceitos weberianos (HENNING, 2018; ELGAR, 2005). De Weber são
retomadas as discussões sobre a modernidade, a racionalidade, a dominação, a legitimidade e a
burocracia. Esses conceitos foram conectados para compor a noção de patologias da
modernidade, da seguinte maneira:
9
Sobre o Weber crítico, escreve Tragtenberg (2006, p. 194): “A obra de Weber é profundamente polêmica; todas
autênticas obras o são, haja vista a obra de Marx. A polêmica é a maneira de Weber intervir na coisa pública. Estas
polêmicas lhe foram impostas por adversários que as provocaram, obrigando-o a reagir [...]. Ele influi pela crítica
de ideologias ineptas, superadas pelo processo histórico, desmistificando-as, mostrando assim sua nocividade
social”.
28
Habermas, portanto, é citado como um autor transfronteiriço entre várias abordagens de teoria
social e filosófica, dotado de uma visão peculiar que, ao mesmo tempo que o distancia das
primeiras gerações da Escola de Frankfurt, o mantém próximo de uma visão de uma teoria
crítica engajada nas transformações possíveis do mundo social, discutindo bastante essas
patologias da modernidade (HENNING, 2018; ELGAR, 2005). Conforme Renault (2018, p.
66) comenta, ele faz parte do núcleo de pensadores que permitiu a chamada “emergência de
teorias sociais sintéticas, que consistem em tentativas de interconectar diferentes paradigmas,
como é o caso em Bourdieu, Habermas e Giddens”. Neste sentido, “[s]ua ação comunicativa
derivou de muitas fontes e foi conscientemente eclética”, dizem-nos Best, Bonefeld e O’kane
(2018, p. 9), indo “do conservadorismo de Gadamer através da teoria do sistema de Luhmann
à filosofia pragmática”. O ecletismo de fontes também encontrou eco em um igual ecletismo
de temas tratados por Habermas, indo das questões sobre ciência, epistemologia, passando pela
sociologia do direito, filosofia política, direitos humanos, até comunicação e cultura. Nesta
vasta amplitude de pesquisas que, conforme Henning (2018) comenta, abrange sete décadas de
intensa produção intelectual, alguns temas surgiram e desapareceram, como as questões de
metodologia de pesquisa social e a ideologia, mas outros fulguraram como discussões
permanentes, como a recuperação em torno da participação e da esfera pública em uma
possibilidade de emancipação dos sujeitos sob regimes democráticos.
Dentro deste quadro permanente de reflexão, Henning (2018, p. 405) destaca alguns tópicos
perenes na filosofia habermasiana e que demonstram claramente esse elo weberiano: “[u]m
desses tópicos é a oposição entre tecnologia (incluindo tecnologia social, como burocracia e
Administração Pública) e política ‘real’ (definida como atos de fala que promovem o bem
comum, em oposição a usos egoístas, instrumentais ou estratégicos da linguagem)”. Esse tópico
situa-se, portanto, no cerne da nossa investigação, ou seja, o relacionamento da Administração
Pública como burocracia em um contexto de capitalismo tardio. Assim, para o embate entre a
esfera pública e a autonomia privada, em um contexto capitalista de extrema desigualdade, onde
as alternativas socialistas falharam e os espaços de reivindicação são mediados por uma
burocracia estatal, Habermas busca soluções que sejam ao mesmo tempo democráticas e
eticamente justas. Para tanto, ele incutirá uma nova roupagem analítica à Teoria Crítica, ao
incorporar as questões de linguagem, com a hermenêutica e a comunicação. Assim,
29
O percurso teórico a ser trilhado nesta pesquisa é, portanto, o pavimentado pelas discussões que
emergiram no bojo da Teoria Crítica, sobretudo com a Escola de Frankfurt, e que encontraram
em Jürgen Habermas, nome associado à segunda geração dessa escola de pensamento (mas que
não se manteve preso a ela), um ponto central de reflexão sobre os temas que aqui nos
30
A conexão que buscaremos apreender entre os dois autores, Arendt e Habermas, se dá por meio
de uma base de discussão comum, a recuperação da esfera pública como espaço de interlocução
entre sujeitos autônomos, como momento da prática política e do exercício do diálogo como
faculdade da razão que enseja uma coexistência democrática na sociedade. Uma figura
essencial surgirá como promotora desses espaços no mundo social moderno, que é o Estado, ao
mesmo tempo sendo representação da soberania popular e burocracia, ou seja, uma instituição
que articula a política e a técnica administrativa, por meio da Administração Pública como o
Estado em execução. Para tanto, dois autores-chave encadearão o diálogo entre os dois
pensadores e farão a conexão direta com a Administração e a Cidadania, Max Weber e
Immanuel Kant.
31
Hannah Arendt, por sua vez, não estabelece uma relação imediata com Max Weber. Nixon
(2015) e Baehr (2010) descrevem a relutância de Arendt em trabalhar com conceitos
weberianos, especialmente, quanto ao uso de tipos-ideais de carisma e de burocracia para
analisar os regimes totalitários. A aproximação com o filósofo Karl Theodor Jaspers12 –
pensador que influenciara também Habermas –, segundo alguns intérpretes, a teriam feito
refletir forçosamente sobre a obra de Weber, mas, de modo geral, seria possível reconhecer, tal
como Kateb (2006, p. 131) argumenta, que o “projeto de Arendt de conceituar o autenticamente
político tem uma semelhança superficial com os esforços comparáveis de dois escritores
alemães um tanto anteriores, Max Weber e Carl Schmitt”. Apesar disso, como já reconhecido
por parte da literatura, na sua discussão sobre regimes totalitários, deliberadamente ou não, a
10
Nesse sentido, tal como argumenta Machado (1988, p. 40), “[p]ara Habermas, as posições teóricas de
Horkheimer e Adorno, dos anos 40, reforçaram as convergências entre a tese weberiana sobre a racionalização e
a crítica da razão instrumental, que se situa na linha da tradição Marx-Lukács”, que trabalha o processo de
reificação do capitalismo como integrado ao processo de dominação racional-legal.
11
As conexões entre Weber e Habermas são mais profundas que isso, tal como Sitton (2003, p. 19) argumenta,
“[t]anto para Habermas quanto para Weber, o desenvolvimento social baseia-se em ‘interesses ideais’ e ‘visões de
mundo’ (Weber), anteriormente e independentemente emergentes, ou “potenciais cognitivos” (Habermas). Assim
como a evolução futura de uma espécie é limitada por sua química física existente e sua estrutura biológica,
também as futuras direções sociais da espécie humana são limitadas por seu desenvolvimento cultural anterior”.
12
Nixon (2015, p. 90) comenta a resistência de Arendt a Weber em um trecho de uma carta de Jaspers a Arendt,
da seguinte maneira: “Nessa ocasião em particular, a diferença surgiu como resultado de Jaspers ter enviado a
Arendt um livro que escrevera sobre Max Weber e publicado em 1932 com o subtítulo ‘a essência alemã no
pensamento político, na erudição e na filosofia’. Em uma carta datada de 1 de janeiro de 1933, Arendt agradeceu-
lhe pelo livro e depois disse que, embora não a incomodasse por ele ter retratado Weber como ‘o grande alemão’,
a incomodava que ele encontrasse ‘a essência alemã’ em Weber e identificou essa essência com ‘racionalidade e
humanidade originária da paixão’. Ela tinha ‘a mesma dificuldade com isso. . . com o imponente patriotismo de
Max Weber’”.
32
“visão de Arendt é dominada por suas preocupações com a burocracia” (WALDRON, 2006, p.
208). Essa questão, porém, não é a que mais nos interessa aqui, mas uma outra reflexão: o
questionamento da atomização do indivíduo frente à racionalidade moderna, que está em
Weber, e que Arendt toma nos regimes totalitários como um caso extremo, pulverizando-os nas
massas, o que impede o reconhecimento das pessoas – principalmente das diferentes, dos
estrangeiros, das minorias – como sujeitos universais de direitos (LAFER, 1988, 1997, 2018).
Esse sentido universal da condição humana seria uma conexão por meio da ética kantiana que
perpassa Weber13, Arendt14 e Habermas15, que aproximaria a razão prática kantiana da razão
substantiva weberiana e ambas da razão comunicativa e a ética do discurso habermasianas e do
sentido da ação política arendtiano. Os três se associam a Kant, portanto, ao encontrar na
faculdade de julgar, amplamente estudada por eles, e no Direito, um campo de estudo e uma
possibilidade de emancipação dos indivíduos na sociedade (HUNZIKER, 2010; BEINER,
1992; KRISTEVA, 2001; FREITAG, 1989). Conforme Rutgers e Schreurs (2006) discutem,
seria possível identificar as origens da dicotomia entre a racionalidade substantiva e a
racionalidade instrumental weberianas diretamente na filosofia kantiana, quando ele discute os
conceitos de autonomia e de heteronomia. No primeiro caso, o sujeito autônomo, capaz de
refletir sobre os valores de sua ação, segue os princípios morais internos e absolutos, ao passo
que o segundo se guia por objetivos e fins calculados que lhes são externos. A racionalidade
substantiva, portanto, se aproxima da autonomia kantiana que implica a sua concepção de
liberdade (emancipação) como conceito inexplicável, mas que se opera no mundo social quando
13
Alguns intérpretes de Weber, como Gabriel Cohn (2003) construíram a imagem de Weber como um pensador
que se identifica por uma posição de renúncia, de recusa a assumir-se defensor de qualquer sistema teórico
totalizador, por isso seria difícil encontrar nele influências diretas de pensadores que não possam ser questionadas,
as mais frequentes, sendo as de Kant e de Nietzsche. Tragtenberg (2006, p. 197) também apresenta essa visão ao
dizer que “Weber não significa um compromisso; não está nem do lado do republicanismo burguês nem do
socialismo proletário; defende o liberalismo político, combate o liberalismo econômico”. Cohn (2003) defende
que, prova disso, é que Weber não se permitiu deixar de analisar qualquer corrente teórica de seu tempo, sem
adotar nenhuma delas. Reduzi-lo a um representante do idealismo neokantiano, portanto, seria uma simplificação
grosseira. “Não houve uma só corrente de pensamento à qual ele tenha ficado indiferente”, diz Cohn (2003, p. 10-
11), mas, por outro lado, deixar de reconhecer a influência de Kant em Weber pode ser um erro muito mais grave.
14
O interesse de Hannah Arendt por Kant não se fundaria apenas na investigação sobre a faculdade de julgar ou
uma tentativa recuperar uma filosofia política nesse filósofo, ela o distinguia como um pensador capaz de romper
com o pensamento conformado. Swift (2009, p. 6) argumenta, nesse sentido, que “Arendt também achava que no
período moderno alguns filósofos, como Kant, haviam conseguido sair da tradição filosófica”, ou seja, por ser
essencialmente crítico, conseguiu aproximar-se da reflexão política, algo que Habermas (1989) também evocará.
15
O fato de os três pensadores Weber, Arendt e Habermas receberem influências de Kant não quer dizer que eles
concordem em suas interpretações deste. No caso específico de Arendt e Habermas, esse é até um dos motivos
pelos quais Habermas a critica. Conforme afirma Julia Kristeva (2001, p. 76), “Habermas a repreende [Hannah
Arendt] por negar o status cognitivo do julgamento e por dissociar o discurso prático (político) do discurso
racional”.
33
o sujeito é capaz de criar as suas próprias normas16 (SADRI, 1982). Nessa linha, conforme
Freitag (1989, p. 10) argumenta, “a legislação elaborada pela razão prática [kantiana] precisa
levar em conta, como finalidade suprema, a realização desse valor interior e universal: a
dignidade humana”. Conectam-se, assim, a razão prática e a racionalidade substantiva, que se
relacionam com a dignidade humana como fim último, que é, na verdade, o que está por trás da
noção arendtiana de direitos humanos, válidos para todos os seres humanos, o cidadão do
mundo de Habermas.17
Voltando para o contexto organizacional, Guerreiro Ramos (1981) resgata a distinção entre a
racionalidade instrumental e a substantiva. Segundo ele (RAMOS, 1981, p. 5), Weber não tinha
qualquer “compromisso dogmático com a racionalidade gerada pelo sistema capitalista”, sendo
sua análise, na visão de Ramos (1946/2006) e também na de Tragtenberg (2006, 1997, 1966),
essencialmente crítica, com o que concordamos.18 Assim, a Zweckrationalität é a racionalidade
legal-formal que “é determinada por uma expectativa de resultados ou ‘fins calculados’”,
meramente instrumental e não emancipatória, e a Wertrationalität, por sua vez, a racionalidade
substantiva ou de valor, que “é determinada independentemente de suas expectativas de sucesso
e não caracteriza nenhuma ação interessada na consecução de um resultado ulterior a ela”
(RAMOS, 1981, p. 5). Assim, Weber teria descrito a burocracia como “empenhada em funções
racionais, no contexto peculiar de uma sociedade capitalista centrada no mercado, e cuja
racionalidade é funcional e não substantiva” (RAMOS, 1981, p. 5). A racionalidade substantiva,
sim, constituir-se-ia um “componente intrínseco do ator humano” capaz de promover a sua
reflexão emancipatória. É nesse sentido da burocracia esmagadora da racionalidade reflexiva
que Prestes Motta também recupera de Weber a noção de burocracia como forma de poder19.
16
É nessa linha que Freitag (1989, p. 16) argumenta que “[a] moralidade kantiana começa com a liberdade, mas
termina com a sujeição do sujeito ao imperativo do dever (Pflicht), o dever de subordinação da própria vontade à
vontade da lei (universal)”.
17
“No papel de cidadão do mundo, o indivíduo confunde-se com o do homem em geral - passando a ser
simultaneamente um eu singular e geral” (HABERMAS, 1997, p.17)
18
Um importante papel dos autores da Escola de Frankfurt, e, em especial de Habermas, foi justamente essa
recuperação da interpretação do Max Weber como teórico crítico, como apontado em Elgar (2005), Geuss (1981),
Best, Bonefeld e O’Kane (2018), Henning (2018), Machado (1988) e Sitton (2003). Nos estudos organizacionais,
Paes de Paula (2008) já havia apontado essa relação e também destacou que muito da análise crítica frankfurtiana
fora antecipada por pensadores brasileiros como Guerreiro Ramos e Tragtenberg, e a visão do Weber crítico não
escapou a esses autores, como também para Prestes Motta, tal como também comentam Motta (2001), Faria e
Meneghetti (2009, 2011), Paes de Paula (2007, 2008b) e Paes de Paula et al. (2010).
19
Prestes Motta (1986, p. 68), ao fazer a discussão sobre burocracia, recupera as formas históricas básicas de
dominação weberianas, quais seja, a legal-burocrática, a carismática e a tradicional, para discutir que por meio
delas uma combinação entre a dominação vista como “constelação de interesses” e a que decorre das funções e
relações de mando e subordinação chega-se à ideia geral de que, no mundo burocrático, “a dominação expressa-
34
Com base nessa oposição, portanto, entre a razão instrumental e a substantiva, que permeia
tanto a Modernidade quanto as burocracias, analisaremos o fenômeno da cidadania opondo,
similarmente, os conceitos de cidadania formal e cidadania efetiva, que acompanham a
distinção anterior, secundando uma terminologia comum à discussão sociológica sobre
cidadania na pós-modernidade, encontrada principalmente em Engin Isin (2000), Isin e Turner
(2002) e Mhurchú (2014). A cidadania formal versa sobre a mera consagração normativa-legal
de direitos e deveres assim reconhecidos por um Estado, a uma determinada camada da
população, e a cidadania efetiva abrange todas as pessoas e versa sobre as possibilidades de
concretização desses direitos de modo emancipatório e participativo na sociedade.
Por fim, entendemos que essas associações entre tipos de Administração Pública e de conceitos
de cidadania concebem também condições específicas de efetivação de direitos sob o
capitalismo, que na verdade são condições de existência nesse próprio sistema, pois afetam
diretamente a questão da dignidade humana. Sendo assim, ter-se-ia, do lado neoliberal, a
cidadania financeirizada, em que a obtenção de direitos estaria condicionada à sustentabilidade
se como organização”. Motta discute, portanto, que o ponto fundamental de a dominação racional-legal ser também
uma maneira de assegurar o controle e o poder da Burocracia como organização e como sistema social, ou classe
social, quando diz que a “burocracia pode constituir-se em um grupo ou uma classe social, mas é também uma
forma de poder que se estrutura por intermédio das organizações burocráticas” (BRESSER-PEREIRA & MOTTA,
2004, p. xiii), como o próprio Weber (1973, p. 19) coloca, “tecnicamente, a burocracia representa o aspecto mais
puro de autoridade legal”.
35
financeira dos mesmos pelos próprios indivíduos, dado que o Estado, em situação de crise fiscal
e econômica, não seria capaz de viabilizá-los economicamente (BROWN, 2017). Contraposta
a esta visão, teríamos a noção de garantias universais de direitos pelo Estado, em busca de uma
cidadania efetiva a ser acolhida pela Administração Pública Societal, amplamente estendida a
todas as pessoas como sujeitos de direito. Nessa visão, direitos e garantias independem de
financeirização, são precondições de existência e são inalienáveis. Caberia ao Estado, nessa
visão, assegurar as condições de um mínimo existencial, para fruição de direitos fundamentais,
por meio de políticas públicas ou mesmo mediante a distribuição de Renda Básica Universal.
Todas essas relações que guiarão a discussão desse trabalho estão sintetizadas, portanto, no
quadro 2, logo abaixo.
Condições de
Paradigma de Dimensão
Base Teórica Racionalidade Cidadania Cidadania no
Gestão Pública Enfatizada
Capitalismo
É difícil precisar quando nasce uma ciência. Conforme aponta Reed (2007), no entanto, uma
demarcação possível para a origem dos estudos organizacionais e da Administração é o
desenvolvimento do próprio capitalismo como sistema e modo de produção. Assim, as raízes
históricas dos estudos organizacionais coincidem com esses movimentos de formação do
Estado burguês (como Estado Administrativo) e das grandes corporações industriais, ambas
constituídas como Burocracias, privadas ou públicas, em um contexto de consolidação da
36
racionalidade na Modernidade. Tragtenberg (2006) leva o início dessa discussão teórica a Saint-
Simon e a outros pensadores do século XIX, como Hegel, pois, como fenômenos sociais, as
burocracias são bem anteriores a estes, tal como discutem Max Weber (1982, 1999, 2010) e
Karl Marx (1857/2011) ao falarem das burocracias20 asiáticas e do modo de produção asiático.
Essa é uma análise, no entanto, que se apresenta como uma alternativa à teoria da administração
do mainstream. Para a Administração hegemônica, os estudos organizacionais, a Administração
como ciência e as consultorias nascem, todas, com Frederick Winslow Taylor (1909/1995) e
Henri Fayol (1916/1989), o primeiro constituindo seu principal mito fundador.21
Seguimos aqui, portanto, o entendimento de Tragtemberg (2005, 2006) de que a discussão sobre
burocracia na esfera pública, como Estado e poder, precede o estudo da burocracia como
Administração de Empresas, tal como defendido pela teoria administrativa tradicional. Esse
ponto é fundamental porque, ao reconhecermos isso, estamos admitindo também que a
discussão sobre Administração Pública inicialmente incorporava análises sobre o Estado e
desse com os indivíduos, ou seja, que Administração Pública e Cidadania – como esse
amálgama de relações políticas entre indivíduos, sociedade e Estado – estava no cerne da
reflexão inicial sobre burocracia, com Hegel e depois com Weber22. “Hegel procura sintetizar
na corporação (entendida como burocracia privada) e no Estado (entendido como burocracia
pública acabada) as múltiplas determinações que levam à tensão entre o interesse particular e o
universal do Estado” (TRAGTENBERG, 2006, p. 27). “Max Weber”, por sua vez, “critica a
20
Alguns autores, como Cunha (2015, 2017) e Krygier (1985), defendem a possibilidade de haver uma discussão
sobre burocracia em Karl Marx. Esse é um ponto controverso na literatura marxiana e marxista, até porque uma
teoria do Estado era um dos intentos do volume III, não acabado d’O Capital, ou seja, trata-se de um projeto
inconcluso, daí autores como Poulantzas (1985) insistirem que não seria problema reconhecer que Marx não teria
uma teoria do Estado, e portanto da burocracia, e partir dele para que os teóricos atuais construção essa análise.
Uma crítica não-marxiana famosa é a de Norberto Bobbio (1978) sobre Marx não ter uma teoria de Estado e que
gerou uma série de debates. Um resumo desses debates pode ser visto em Bianchi (2007).
21
“Ao falarmos em mito”, diz-nos Chauí (2001, p. 5), falamos “não apenas no sentido etimológico de narração
pública de feitos lendários da comunidade”, que é originalmente o significado da palavra grega mythos. Falamos
também em um segundo sentido, antropológico, “no qual essa narrativa é a solução imaginária para tensões,
conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade”. É interessante
como essa ideia de solução imaginária do mito alcança a contemporaneidade ressignificada, mas sem se descolar
totalmente dessa essência do fantástico. O mito agora, na dinâmica das redes sociais brasileiras, é verbo: mitar.
Esse neologismo, conforme discutem Valadares e Moura (2016), denota toda pessoa que comenta algo
emblematicamente, com grande repercussão e compartilhamento nas redes. Ou seja, o mito não é apenas a solução
imaginária, mas a capacidade imaginada de perpetuar comentários, falsos ou verdadeiros, não importa,
indefinidamente no mundo virtual.
22
Na visão de Shaw (1992), para Hegel, o modo de execução da burocracia é diferente do que compreende Weber.
Hegel entende que a natureza da atividade burocrática não é a mera aplicação do conhecimento técnico-
instrumental, da perícia (expertise), mas o conhecimento em sua vertente prática no sentido aristotélico. Assim,
opõe-se a tecné na visão weberiana de um lado e a phronesis na visão hegeliana de outro.
37
concepção do Estado corporativo e a sua ressurreição no século XX”, diz Tragtemberg (2006,
p. 155). Nessa linha, entende-se que foi com o advento da Administração Científica que se
propalou a visão empresarial da administração, que distanciou a reflexão política da discussão
organizacional.
Duas cisões foram operadas nos estudos da administração com o advento da Administração
Científica: a divisão entre Administração Pública e de Administração de Empresas, separando
o público do privado, e a cisão entre a política e a técnica. A separação entre política e técnica
administrativa tinha como foco eliminar o conflito das relações sociais produtivas nas
organizações, conforme discute Tragtemberg (2005, 2006), criando-se, assim, a possibilidade
de uma ideologia da harmonia administrativa. “A ideologia da harmonia administrativa iniciada
por Taylor, reafirmada por Fayol, é continuada por Mayo, na sua preocupação em evitar os
conflitos e promover o equilíbrio ou um estado de colaboração definido como saúde social”
(TRAGTENBERG, 2006, p. 102). A dicotomia público/privado, por sua vez, não é
exclusividade da Administração. Weintraub e Kumar (1997) já haviam abordado a separação
público e privado como sendo a grande dicotomia da teoria social e do pensamento social
ocidental. Conforme afirma Thériault (1992), a separação entre o público e o privado é um tema
fundamental no pensamento político moderno. Tanto Hannah Arendt (2007) quanto Habermas
(2001) analisaram essa relação no centro da formação social reflexiva, apontando justamente a
desvalorização do público em detrimento do privado como um dos problemas da
contemporaneidade. O que a teoria da administração fez foi justamente o contrário, favorecer a
defesa do privado sobre o público23.
23
Mintzberg (1996), por exemplo, já dizia no final do século passado que já era hora de “reconhecermos o quão
verdadeiramente limitada essa dicotomia é”, e mais do isso, era preciso ir além dos mitos que ela reproduz,
principalmente, os que deificam as soluções privadas e demonizam as públicas. Mintzberg (1996, p. 76) afirma
que, no mundo ocidental, “porque o capitalismo supostamente triunfou, o setor privado se tornou bom, o setor
público ruim”, e, “acima de tudo, dizem alguns especialistas, o governo deve se tornar cada vez mais parecido
com uma empresa”. Tal como defende Chanlat (2000), no entanto, essa seria uma consequência imediata de um
fenômeno mais amplo, o de construção do que ele denomina de sociedade managerial – em alusão à predominância
do termo inglês, management, atrelado à Administração de Empresas e que se impõe como visão preponderante
no mundo administrativo acadêmico e prático. Em uma argumentação similar, Gaulejac (2007) expõe a
repercussão da expansão da visão gerencialista privatista sobre todas as esferas do mundo social como sendo a
grande patologia social do nosso século. De certa forma, essa é uma argumentação que caminha em linha também
com a obra recente de Byung-Chul Han (2015), sobre vivermos na sociedade do desempenho, muito inspirado no
desempenho privado.
38
Para compor essa crítica da relação público/privado, Habermas (1991) e Arendt (2007)
recuperam a mesma fonte: o pensamento clássico grego e a discussão da relação entre a Cidade-
Estado (polis) e a casa (oikos). Habermas (1991) apresenta uma das principais análises acerca
do tema, em sua obra The Structural Transformation of the Public Sphere. Nessa obra, o
filósofo alemão recua à formação das Cidades-Estado gregas para identificar a origem dessa
separação, bastante evidenciada no pensamento aristotélico. Nas Cidades-Estado gregas, havia
a esfera da polis que era um ambiente comum (koinon) para os cidadãos livres, que marcava o
domínio da vida política exercida por meio da ação (praxis) e do discurso (lexis). Essa esfera
era estritamente distinta e separada do reino do oikos, a esfera da casa, da família e daquilo que
é dado a cada indivíduo em seu próprio domínio doméstico (idia). A esfera pública, por ser
concebida pelo diálogo, pela construção coletiva, era o mundo da permanência, da liberdade,
da perenidade ao passo que a privada, dada pelo domínio patriarcal, era o reino da inconstância,
da violência, da transitoriedade. Essas categorias distintas, segundo Habermas (1991), foram
assimiladas e trazidas até a Idade Média, por sua vez, por influência direta da sua cristalização
pelo Direito Romano, que as reconheceu tecendo diferenças técnico-jurídicas entre o publicus
e o privatus, incutindo nuances à interpretação clássica grega desses termos. Essas expressões
seriam, no entanto, totalmente modificadas com a ascensão da sociedade burguesa que veio a
colapsar a noção de esfera pública, reduzindo-a à esfera da autoridade pública demarcada pela
existência de uma administração permanente e de um exército.
Em uma linha similar, Arendt (2007) também se ocupa dessa distinção entre o público e privado
na sua origem helênica, principalmente no seu livro A Condição Humana. O público, tal como
dado em Aristóteles e mencionado por Habermas, possuía vários sentidos, dentre eles, o de que
tudo o que é público está disponível para todos visto ser comum a todos, mas, mais do que isso,
esse mundo público “tem que ser pensado não apenas como aquilo que é comum, mas aquilo
que é comunicável e que, portanto, se diferencia das experiências estritamente subjetivas e
pessoais que podem ter validade na dimensão privada da vida social” (TELLES, 1990, p. 31).
Essa percepção arendtiana é também reforçada em Weintraub e Kumar (1997) quando
enfatizam que uma das caraterísticas básicas da oposição público privado é a contraposição
entre o que está aberto, revelado e acessível versus o que está oculto, escondido ou visível para
poucos ou invisível para muitos. Para Arendt (2007, p. 31), a esfera pública é fundamental, pois
“[n]enhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é
possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres
39
24
Na leitura feita por Rouanet e Freitag (1993, p. 23), a questão do poder é central na relação entre Arendt e
Habermas, pois “o interesse de Habermas pelo pensamento de H. Arendt vem do fato de que para ambos o poder
só é legítimo quando resulta de um consenso”.
40
1423), “houve um esforço para contrabalançar e demarcar diferentemente a esfera privada como
livre do poder invasivo do Estado”. Nessa mesma linha, diz-nos Arendt:
“A distinção entre uma esfera de vida privada e uma esfera de vida pública
corresponde à existência das esferas da família e da política como entidades
diferentes e separadas, pelo menos desde o surgimento da antiga cidade-
estado; mas a ascendência da esfera social, que não era nem privada nem
pública no sentido restrito do termo, é um fenômeno relativamente novo, cuja
origem coincidiu com o surgimento da era moderna e que encontrou sua forma
política no estado nacional” (ARENDT, 2007, p. 37)
25
Alexander (1999) diz que Parsons inicia sua trajetória demarcando presenças claras na sua principal obra, The
Structure of Social Action, de Marshall, Pareto, Durkheim e Weber, e, as ausências, sobretudo, de Marx e Simmel,
dos pragmáticos e dos institucionalistas americanos. Alexander (1999) atribui essas escolhas às ideias e conceitos
que mais se identificariam ou se refletiriam na própria construção teórica de Parsons, dali para frente. Segundo
ele, teria sido sua intenção deliberada estabelecer que Durkheim e Weber eram clássicos, mas não como outros os
liam, e sim conforme a leitura parsoniana desses autores permitiria que eles fossem lidos, ou seja, como defensores
de modelos sociais que preservam a ordem e o consenso e as estruturas e funções sociais. “Quando, no final da
década de 1950, surgiu um movimento teórico e empírico contra o funcionalismo, a interpretação parsoniana dos
clássicos tornou-se um de seus elementos principais” (ALEXANDER, 1999, p. 61). É interessante notar, segundo
Alexander (1999), que, embora tenham havido queixas sobre as ausências de Marx e de Simmel (com Levine e
Coser), as principais ausências percebidas e combatidas no movimento antifuncionalista foram as interpretações
parsonianas de Freud, Weber e Durkheim.
26
De acordo com Lynn Jr (2009), essa primazia do Direito na visão da Administração Pública estadunidense era,
na verdade, uma alternativa à consolidação do Direito Administrativo fundado no Rechtsstaat europeu, tomado
por Lynn Jr (2009) como um paradigma da Administração Pública baseado no Direito codificado. Rosser (2014)
destaca a influência de Johann Caspar Bluntschli (1808–1881), erudito europeu cujos estudos faziam parte da
teoria política alemã que teria influenciado Woodrow Wilson e Frank Goodnow, sobretudo, no que concerne à
discussão da base constitucional norte-americana para a organização administrativa do Estado. Diz esse autor que,
“a fim de argumentar a favor de uma reforma constitucional, Wilson e Goodnow ancoraram parte de seus escritos
na tradição alemã de um Estado forte, com um Executivo forte e um corpo extenso de servidores públicos”
(ROSSER, 2014, p. 106).
41
Diante disso, no entender de Wilson (1887), para cuidar das questões administrativas do Estado
(para colocá-lo em movimento), é preciso fazê-lo do mesmo modo como se faz com uma
empresa privada, ou seja, com base na técnica, não na política. Segundo Wilson (1887), é
fundamental buscar na ciência da administração, no estudo das organizações privadas, os
mecanismos técnicos para “endireitar o governo”. Ele defende, então, haver uma dicotomia
necessária, entre a política e a administração, e com base nela argumenta que o público deve
ser gerido com as técnicas de gestão do setor privado estudadas pela administração. Em suas
próprias palavras, “o campo da administração é o campo dos negócios. Tendo sido removido
da agitação e dos conflitos da política” (WILSON, 1887, p. 209). É com base nisso que Henry
(1975) identifica o período de 1900 a 1937 como sendo o da insurgência e transição entre dois
paradigmas de Administração Pública: i) o paradigma da Dicotomia Política/Administração, de
1900 a 1926, cujos marcos coincidem com as datas das publicações citadas de Goodnow e
White; e, ii) o paradigma dos Princípios da Administração, de 1927 a 1950, que passou a
enfatizar mais o aspecto gerencial da Administração Pública, cujo marco inicial seria o livro
Principles of Public Admnistration, de F. W. Willoughby, publicado em 1927.
Com base nisso, portanto, do final do século XIX até os anos de 1930 e de 1940, era possível
perceber, como afirma Guy (2003, p. 644), que “a busca por uma abordagem racional e
‘científica’ para governar espelhava a busca por princípios científicos da produção industrial,
tais como os popularizados por Frederick Taylor”. Dwight Waldo (1948) surge, então, como
um nome importante para uma mudança na visão de Administração Pública ocorrida em
meados do século XX. Tal como Wilson, ele também discutia a Administração Pública com um
foco muito mais calcado na ciência política e no Direito. Apesar disso, no entanto, Waldo não
27
A visão dicotômica de Wilson (1887) foi bastante reforçada no meio acadêmico norte-americano no início do
século XX, tendo sido bastante influente pelo menos até os anos 1940. Reforçaram essa perspectiva alguns autores
como Frank J. Goodnow, com o seu livro Politics and Administration, de 1900 e Leonard White, com Introduction
to the study of Public Administration, de 1926, importantes marcos dessa discussão, e que também preconizavam
pela separação entre a Política e a Administração. Mais do que isso, esses autores passavam a defender a criação
da disciplina da “Administração Pública” como sendo a “gestão científica dos serviços públicos” (GUY, 2003, p.
646). Conforme Henry (1975, p. 379) pontuou, nessa visão dicotômica, “a política não deveria interferir na
administração; a Administração Pública tem capacidade para ser tornar uma ciência ‘livre de valores’ por si
própria; a missão da administração é a economia e a eficiência, ponto final”.
42
A partir de meados do século XX, a Administração Pública findou por tomar dois caminhos
distintos. De um lado, houve um movimento de fortalecimento do polo da discussão política o
que levou à reaproximação (e às vezes, à plena identificação) com a ciência política e o
desenvolvimento das políticas públicas como campo de estudo. Nesse percurso, o público
passou a extrapolar a figura do Estado, deteriorando-se a visão restrita defendida por Woodrow
Wilson. De outro, por sua vez, há o fortalecimento das questões gerenciais, mas também indo
além da mera inspiração taylorista-positivista propugnada por Waldo, e que levam a uma
aproximação cada vez maior com a Administração de Empresas em sentido amplo, culminando,
por vezes, na sua total identificação com a teoria das organizações e na própria modificação da
nomenclatura básica da disciplina em que o termo administração começa a ceder espaço para o
substantivo gestão (HENRY, 1976; COX III, 1995; GUY, 2003; HOOD, 2007; LYNN JR,
2007; FARAH, 2011).
A partir do último quarto do século XX, então, inicia-se uma disputa teórica intensa sobre a
classificação dos movimentos de interpretação da Administração Pública inspirados pela
Administração Privada. Nesse sentido, para Pollitt e Bouckaert (2011), o que houve na verdade
foi uma mudança no enfoque do ímpeto reformista do Estado, nas décadas de 1950 e de 1960,
28
Para alguns comentadores recentes, como Overeem (2008), Dwight Waldo teria sido equivocadamente tido
como um dos principais autores responsáveis pelo fim da dicotomia política-administração que prevalecia no
mundo pré-Segunda Grande Guerra. Isso porque haveria um primeiro Waldo, o que escrevera The Administrative
State, onde a dicotomia é combatida, e um segundo Waldo, da maturidade, que deixara um livro não publicado de
600 páginas e que trataria com menos rigor essa polarização, até mesmo vendo-a com bons olhos. Svara (2008),
no entanto, segue um raciocínio diferente, afirmando que, de fato, é possível deduzir que Waldo, em verdade, não
rejeitava totalmente essa dicotomia, mas ele rejeitava sim a sua versão mais rigorosa, mais ferrenha, que defendia
uma separação completa entre política e administração. Isso quer dizer que ele manteve-se sempre contrário a
essa cisão, em qualquer momento de sua análise, mas também significa que ele abordava essa relação de modo
mais complexo e profundo do que a maior parte dos seus leitores costuma abordar. Em movimento oposto a esses,
muitos teóricos das organizações passaram a discutir não apenas as complementaridades da política e da
administração no setor público, mas das questões políticas no setor privado; nesse sentido, ver Mintzberg (1985).
43
a reforma da Administração Pública era tida como uma discussão jurídico-legal, não de matizes
econômicos. As questões de eficiência econômica e gerencial, portanto, ganhariam maior
percuciência após a década de 1970, a esteio da discussão sobre o próprio papel do Estado na
sociedade, devido ao esgotamento de um modelo de Estado de Bem-Estar Social, fortemente
marcado pelo declínio do keynesianismo29. Nessa linha, Matias-Pereira (2008) demarca como
ápice desse movimento a difusão do chamado Consenso de Washington, movimento
capitaneado pelos EUA e que apresentou uma cartilha de boa governança e boa conduta aos
países subdesenvolvidos como orientação às melhores práticas políticas e econômicas
observadas pelos países desenvolvidos. Alguns outros documentos geralmente citados são o
Volcker Comission Report, o Winter Comission Report (COX III, 1995).
29
Alguns autores, portanto, associam as críticas mais severas ao setor público em fins do século XX a uma relação
do tipo impulso-resposta, em que houve uma crise do Estado (impulso) que só poderia ser combatida, segundo os
países desenvolvidos, por meio de um protocolo específico de reformas (resposta). Abrucio (2006) situa essa crise
do Estado em três dimensões: i) econômica – questionamento do ferramental keynesiano intervencionista; ii) social
– questionamento do chamado Estado-Providência ou Estado-Benevolente fortemente voltado para a promoção de
políticas públicas de atendimento às necessidades básicas da população; e iii) administrativa – questionamento ao
modelo burocrático weberiano, pretensamente neutro, racional e impessoal. Aqui, novamente, mantém-se a visão
de que a análise crítica de Weber sobre a burocracia é tomada equivocadamente ainda como um modelo de gestão
pública.
44
É possível consolidar, portanto, com base nesse resgate da questão política, essas
categorizações esparsas e os discursos pouco homogêneos em um grande modelo tomado como
46
Nova Gestão Pública (New Public Management)30, afirmando que este é o verdadeiro e atual
antagonista da burocracia tradicional que foi criticamente analisada por Weber e não defendida
por ele. A Administração Pública Gerencial, portanto, segundo Paes de Paula (2009) nada mais
é que a transposição para o caso brasileiro da Nova Administração Pública (New Public
Management). No entender de Hood (1991), a Nova Administração Pública surge do encontro
de duas vertentes, a nova economia institucional e o gerencialismo no setor público, com base
na administração científica. Hood (1991) argumenta que a emergência da NPM encontra-se
vinculada a quatro outras megatendências administrativas: o movimento de reverter ou de
diminuir o crescimento do governo; a mudança ocorrida no setor público em favor da
privatização e da quase-privatização; o advento da automação no provimento de serviços
públicos; e o desenvolvimento de uma agenda internacional como foco na gestão pública, no
desenho de políticas públicas e na cooperação intergovernamental em detrimento da
especialização nacional da Administração Pública.
Conforme apresentado por Paes de Paula, por sua vez, é possível localizar o cerne da
problemática da Nova Administração Pública na dimensão sociopolítica:
Nesse sentido, conforme Paes de Paula (2009) discute, é fundamental compreender a Nova
Administração Pública dentro de um contexto mais amplo, para o qual contribuíram elementos
teóricos, como o neoliberalismo e a teoria da escolha pública, mas também a dinâmica social
30
Existe certo consenso na literatura de que a Nova Administração Pública (NAP) não é, na verdade, um corpo
teórico uniforme. Nesse sentido, para Hughes (2008), a NAP é um espectro, um fantasma, uma aparição – algo
que espreita o serviço público sem nunca se concretizar; ou uma quimera – um híbrido, algo que combina alguns
artefatos diferentes em um corpo pouco coerente, disforme. Hughes (2008) afirma que não há um pensador-chave,
um patriarca fundador da teoria. Osborne e Gabler, segundo ele, não usam o termo em seu livro. Hood o faz,
porém, sem defini-lo apenas apresentando um conjunto de pontos principais, algo similar é feito por Pollitt. Assim,
somente alguns traços comuns podem ser destacados nas análises sobre a NAP que permitem colocá-la como este
grande guarda-chuva conceitual, tal como apontam Kaboolian (1998), Merrien (1999), Zaato (2009), Mongkol
(2011) e Dunleavy et al. (2005).
47
como a atuação dos think tanks e os movimentos neoconservadores, além do que o contexto de
sua disseminação foi bastante peculiar, ou seja, a crise do keynesianismo e a expansão do
movimento gerencialista. Ademais, foram fundamentais “os elementos que reforçam o
movimento gerencialista: a crítica das organizações burocráticas, a disseminação da cultura do
management e os ‘modismos gerenciais’” (PAES DE PAULA, 2009, p. 53). Nesse sentido,
segundo Paes de Paula (2009, p. 56), o gerencialismo se baseia nas seguintes crenças: i) o
progresso social ocorre pelos contínuos aumentos na produtividade econômica; ii) a
produtividade aumenta principalmente através da aplicação de tecnologias cada vez mais
sofisticadas de organização e informação; iii) a aplicação de tecnologias se realiza por meio de
uma força de trabalho disciplinada segundo o ideal de produtividade; iv) o management
desempenha um papel crucial no planejamento e na implementação das melhorias necessárias
à produtividade; v) os gerentes têm o direito de administrar.
Quando contraposta a uma noção de Administração Pública que recupera a questão política,
recentralizando a preocupação com a cidadania, ocupando-se adequadamente da dimensão
sociopolítica da administração, vemos que a Nova Administração Pública esbarra nas seguintes
limitações:
A autora apresenta, então, a Administração Pública Societal, como uma visão alternativa, no
contexto brasileiro, à constituição da Nova Administração Pública que foi incorporada no país
como Administração Pública Gerencial. A Administração Pública Societal “se manifesta em
experiências alternativas de gestão pública herdeiras do ideário inaugurado pelas mobilizações
populares contra a ditadura e pela redemocratização do país” (PAES DE PAULA, 2010, p. 473).
Nesse sentido, o que essa perspectiva busca são “instituições políticas e políticas públicas mais
abertas à participação social e voltadas para as necessidades dos cidadãos” (PAES DE PAULA,
2010, p. 478). Diante disso, a grande recuperação feita por ela é a de que essa visão ancorada
na valorização do espaço público de participação “demanda planejamento e organização
governamental desde o princípio orientados pela dimensão sociopolítica. Em outras palavras,
os direitos à cidadania e à participação na gestão estabelecem as diretrizes que guiam as
dimensões econômico-financeira e institucional-administrativa” (PAES DE PAULA, 2010, p.
487).
Em linha com a análise habermasiana, por exemplo, podemos ver na Administração Pública
Societal “que um aparelho do Estado com características participativas deve permitir a
infiltração do complexo tecido mobilizatório, garantindo a legitimidade das demandas
populares” (PAES DE PAULA, 2005, p. 44). A centralidade da legitimidade, do procedimento
de definição da gestão e das políticas públicas é fundamental para essa perspectiva. Isso porque
os “processos de entendimento mútuo visam um acordo que depende do assentimento
racionalmente motivado ao conteúdo de um proferimento. O acordo não pode ser imposto à
outra parte, não pode ser extorquido ao adversário por meio de manipulações” (HABERMAS,
1989, p. 165). Neste sentido, os atos de entendimento mútuo do agir comunicativo não podem
49
ser reduzidos apenas ao agir teleológico, ou seja, não basta alcançar o fim desejado, a maneira
como esse fim é obtido é fundamental para a validade da finalidade obtida.
Diante disso, Paes de Paula apresenta as principais diferenças entre as duas vertentes, conforme
exposto no quadro 4.
A ideia central é demonstrar que concorreram, tanto para a formação da Administração Pública
(como burocracia estatal) quanto para a construção de uma noção de cidadania formal e
substantiva (como vínculo jurídico-político legal a um determinado Estado-Nação), uma
51
Conforme será discutido, os dois primeiros fenômenos são típicos da época Moderna e ajudam
a moldar a noção de cidadania como evolução e incorporação de direitos à guisa de como foi
consolidada, já no século XX, com Thomas H. Marshall (1967), e que estamos chamando aqui
de cidadania formal. Como produto desse percurso histórico-social, surgem na Modernidade
teorias de Estado para justificar e explicar esse complexo relacionamento entre indivíduos,
sociedade e Estado de Direito. Destacaremos três teorias fundamentais que depois serão
relacionadas pela literatura especializada a teorias sobre a cidadania e a visões de
Administração Pública diferentes; são elas: a) a teoria liberal-utilitarista; b) o
contratualismo; e c) a teoria histórico-dialética. Estas teorias apresentam pressupostos
diferentes sobre o Estado e se relacionam, portanto, a três visões de cidadania: a) a cidadania
liberal enfatizando a liberdade individual e os direitos civis e de propriedade; b) a cidadania
comunitarista, enfatizando o bem-estar e o bem-comum (em versões moderadas e radicais),
além de direitos coletivos e sociais; e c) a cidadania republicana, destacando os direitos
políticos. Essas três vertentes de direitos civis, políticos e sociais são a base da definição
clássica de cidadania de Thomas Humphrey Marshall.
a Antiguidade ocidental, fato este recuperado, sobretudo com a crítica contemporânea feita por
Habermas (1998, 2001, 2002) e Hannah Arendt (2007) à instrumentalização dada pela mera
formalização de direitos sem participação e ao reducionismo de uma noção de público,
permitindo o enlace teórico necessário para percepção da crise de Cidadania e crise de
Administração Pública do tempo presente.
Assim, chegamos ao contexto atual que, tanto para a cidadania quanto para Administração
Pública, não é simples. Os dois conceitos alcançam a virada do século XX para o XXI em meio
a um cenário de crises e de contestações fortemente apresentadas, sobretudo, pela Teoria Crítica
não só para a Administração Pública, como para Administração em geral, tal como Guerreiro
Ramos (1981, 2006), Prestes Motta (1986) e Tragtenberg (2005, 2006) discutem, quanto para
a própria ciência e concepções Modernas de mundo. Na verdade, seguindo a trilha deixada por
Habermas (1998, 2001) e Boaventura de Sousa Santos (1989, 2002, 2003), vemos que a
instrumentalidade da razão moderna, que fez do positivismo uma dogmatização, faz parte do
desenvolvimento de uma sociedade industrial capitalista, cujo fascínio pelo domínio técnico da
natureza impôs-se sobre outras maneiras de conhecer o mundo e a si mesmo. Nesse sentido,
conjugando-se ambas a uma leitura weberiana, a Modernidade trouxe-nos como produto final
a formação simultânea da burocracia e da dominação racional-legal que constituiu uma
cidadania formal não efetiva, vinculada a um aparato administrativo público obcecado por
premissas de eficiência econômica.
(2014); quanto em autores brasileiros, como Roberto DaMatta (1991), Jessé de Souza (2003,
2005), Maria Victoria Benevides (1994), José Murilo de Carvalho (2012), Evelina Dagnino
(1994, 1998, 2004) e Leonardo Avritzer (2002), e, de modo menos direto, em Wanderley
Guilherme dos Santos (1979). Trata-se de uma concepção de cidadania, no entanto, que teve
algumas de suas características essenciais profundamente abaladas e questionadas na transição
do século XX para o XXI, tanto do ponto de vista dos fenômenos sociais incorridos quanto do
ponto de vista do pensamento crítico, e que será tratada como cidadania efetiva.
31
Como dito anteriormente, essa perspectiva é, portanto, diferente da análise tradicional de Administração Pública
que atribui a sua origem científica, como estudo da burocracia governamental, a Woodrow Wilson (1887) e a
Dwight Waldo (1948), ambos perfazendo uma conexão com Frederick W. Taylor (1995), conforme se vê em
Overeem (2008) e Svara (2008).
54
Ambos os conceitos, portanto, são frutos de um processo histórico antigo e complexo, que
encontram na Modernidade a sua primeira conformação mais específica, por estarem muito
atrelados a uma conjugação de fatores que ganha corpo nessa época. Giddens (1991) chama
esses fatores de mudanças institucionais, que teriam alterado definitivamente a conformação
social desse então, quais sejam: a) o surgimento do Estado-nação; b) o desenvolvimento da
dependência de fontes de energia inanimadas; c) a criação das cidades modernas e a expansão
do urbanismo; d) a produção industrial; e e) o surgimento do trabalho assalariado. A esse
processo soma-se ainda a consagração geral do domínio racional e técnico do homem sobre a
natureza, fruto de dois outros fenômenos fundamentais, a revolução técnico-científica e a
reforma protestante (MARCONDES, 2001; REALE & ANTISERI, 1990), e que ajudaram a
impulsionar o capitalismo, o que Max Weber (1905/2004) sintetizou na ideia de
desencantamento do mundo, com o pretenso triunfo da racionalidade sobre a narrativa místico-
religiosa. Por fim, temos as revoluções americana, francesa e a primavera dos povos de 1848
encerrando o ápice do ciclo de transformações sociais da Modernidade (LANDES, 1988;
HOBSBAWM, 1996; COUNTRYMAN, 2000).
Como consequência desse cabedal de mudanças, conforme Giddens (1991, p. 14) comenta, os
“modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam de todos os tipos tradicionais
de ordem social, de uma maneira que não tem precedentes”, e, nesses novos modos, o indivíduo
que surgia na modernidade se encontrava preso, conforme a leitura weberiana feita por Cohn
(2003, p. 6), numa “disputa interminável por capacidade de dominação pelos entes individuais
em que o todo foi desmembrado”. Em outros termos, não haveria mais espaço para as narrativas
totalizadoras da tradição, da religião e das mitologias, e assim, o indivíduo precisaria
estabelecer outra forma de ser reconhecido no mundo. Tal forma seria dada pelo vínculo
jurídico-político a um Estado-Nação regido por uma dominação racional-legal. Os indivíduos
precisariam deixar de serem associados a famílias, tribos e clãs, e passariam a ser relacionados
a cidades, Estados e nações. É nesse sentido que Turner argumenta que as “formas
convencionais de cidadania foram associadas à modernização da sociedade e ao
desenvolvimento do quadro administrativo dos Estados Modernos” (2001, p. 1847), pois era
preciso construir uma estrutura capaz de viabilizar essa vinculação, de zelar por ela e de definir
quem poderia ou não ser reconhecido e tutelado. Assim, desde essa conformação, a necessidade
de uma Administração Pública, de uma Burocracia, para viabilizar a Cidadania passa a ser
essencial.
55
32
Segundo Janoski (2010, p. 7), por exemplo, a “Revolução Francesa transformou ‘pertencer’ à sociedade francesa
em participação ativa baseada em direitos e obrigações, que fixam a cidadania no estado-nação”.
56
Esses três fenômenos conjugados, que não ocorreram de modo linear, formam as condições
necessárias para o desenvolvimento quase em paralelo da Administração Pública, como
burocracia que expressa o Estado em movimento, e a Cidadania, como expressão de direitos e
deveres dos indivíduos vinculados a um Estado. A divisão nesses três pontos, no entanto, é
didática e não linear ou sequencial, e todos esses fenômenos se alimentam, se retroalimentam,
e se confundem ao longo do tempo, como procuraremos demonstrar a seguir.
Hobsbawm (2000, p. 19, grifos nossos) comenta como se relacionam, principalmente, os dois
primeiros pontos, a nacionalidade e o Estado-Nação. Segundo ele, a nacionalidade e a cidadania
são fenômenos históricos que se confundiam com o industrialismo, o progresso técnico-
científico, a acumulação capitalista, a urbanização e a definição das fronteiras nacionais, de
modo que, no séc. XIX, “a ‘nação’ então considerada era o corpo de cidadãos cuja soberania
coletiva lhes constituía um Estado que era a sua expressão política”. Ser cidadão ou cidadã era,
portanto, gozar direitos e cumprir deveres partilhados com seus compatriotas, ao mesmo tempo
em que era viver em uma cidade sob a cobertura de um Estado-Nacional. A linha que conecta
a nacionalidade ao Estado é a do Direito, em especial, a do Direito Positivo. O estabelecimento
do Direito Positivo, formal e racionalmente constituído, tem como definição o direito como
“aquele que regula juridicamente aspirações concretas” (REALE, 2002, p. 599) e que defende
a ideia “segundo a qual só há um direito, o estabelecido pelo Estado” (FASSÓ, 1998, p. 656),
e que, como tal, se ampara na aplicação fria da norma legislativa como execução prática da
justiça (DWORKIN, 2004). Essa concepção de direito auxiliou na definição de nação e de
nacionalidade, e todas essas são fundamentais nesse processo de construção da cidadania
57
formal, perfazendo o percurso que Habermas (2001, p. 22) chamou de “do povo do ‘espírito do
povo’ à nação dos cidadãos”.
A importância do Direito Positivo nesse percurso é crucial, pois é ele que reconfigura o
nacionalismo, como espírito, em nacionalidade, como vínculo jurídico formal de uma realidade
social específica. Consoante a análise de José Murilo de Carvalho (2012, p. 11), o “surgimento
sequencial dos direitos sugere que a própria ideia de direitos, e, portanto, a própria cidadania, é
um fenômeno histórico”. Nesse sentido, o Direito Positivo é fruto do desenvolvimento histórico
da discussão jurídica, como principiologia geral e abstrata tornada formalmente concreta em
lei. Ele é importante, nessa discussão, porque é uma das principais demarcações históricas do
surgimento do Estado-Nacional. Sem ele, o “desenraizamento dos povos” (the uprooting of
people), na expressão de Hobsbawm (1996, p. 137), não passaria de mera aspiração. No
comentário de Habermas (2011, p. 17), portanto, o “sistema legal é estabilizado pelo poder
sancionador do Estado”, ou seja, é preciso uma instituição capaz de sancionar o funcionamento
do Direito que seja distinto do recurso ao divino ou a uma ética universal jusnaturalista.33
Embora no jusnaturalismo medieval ou renascentista já se buscasse uma justificativa racional
para o Direito, distinta de uma inspiração divina, o que é fundamental com a positividade do
Direito é a defesa de sua aplicabilidade circunstancial, contextualizada, específica e transitória.
Como Habermas (2001, p. 146) comenta, “mesmo normas fundamentais, que a própria
Constituição declara como inalteráveis, compartilham com todo o direito positivo do destino
de poderem ser desativadas, como por exemplo, após uma mudança de governo”.
Conforme aponta Bobbio (1995, p. 15), portanto, “a tradição do pensamento jurídico ocidental
é dominada pela distinção entre ‘direito positivo’ e ‘direito natural’”, que tem heranças na
filosofia clássica resgatada no mundo medieval, mas que se define como juspositivismo apenas
na idade moderna. Bobbio (1995, p. 22-23) apresenta seis características distintivas entre
jusnaturalismo e juspositivismo, quais sejam: a) o primeiro é universal, válido em todo lugar,
ao passo que o segundo é particular, válido para uma realidade específica; b) o direito natural é
33
Alguns juristas, no entanto, tentaram defender no Estado Moderno, uma vinculação a uma fonte divina, como
é caso de Carl Schmitt, mas cuja inspiração divina não apenas legitima o direito mas também a própria política. A
este respeito, Habermas (2011, p. 19) comenta: “[n]a imagem que Carl Schmitt pintou do início do Estado
moderno, a autoridade política continua a extrair sua legitimação da crença na autoridade de um Deus todo-
poderoso”.
58
imutável no tempo, e o direito positivo, mutável; c) o primeiro tem como fonte original a
divindade ou uma pretensa moral natural à condição humana, ao passo que o segundo advém
do povo e de suas reivindicações (potestas populus); d) o primeiro é acessível por uma ética
universal, o segundo precisa ser formalizado e promulgado; e) o jusnaturalismo pauta-se pela
dicotomia das normas entre boas ou más, o segundo, pelas normas válidas ou inválidas, onde
“o justo é aquilo que é ordenado, injusto o que é vetado”; e f) há distinção no critério de
valoração, “o direito natural estabelece aquilo que é bom, o direito positivo estabelece aquilo
que é útil”.34
A transição do Direito Natural para o Positivo, portanto, demarca a criação de direitos válidos
para entes e realidades históricas específicas, onde o Estado-Nação é o ápice dessa
especificação35. Na leitura que Habermas (2001, p. 144) faz, “Estados modernos caracterizam-
se justamente pelo fato de que a potência política se constitui sob a forma do direito positivo”.
Para Bresser-Pereira (2017, p. 157), nesse sentido, os “tratados de Vestefália são geralmente
identificados com o momento do surgimento do estado-nação”, de onde a figura do Estado
formal, em trânsito para sua positividade, circunscrito a uma fronteira clara, parte para o mundo,
e a identificação com esse Estado restrito a um território política e juridicamente demarcado
impulsionam a ideia formal de nacionalidade. Assim, o tratado de Vestefália (Westphalia),
também chamado de Paz de Vestefália, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, assinado em
Munster e Osnabruck em 1648, se destaca. Segundo Castro (2012, p. 36), ele é importante “pela
criação do conceito moderno de Estado com sua summa potestas (soberania)” e é tido como um
marco do “princípio do estatocentrismo como engrenagem mestra da política entre as nações”.
Trata-se, portanto, de um marco da teoria das relações internacionais por viabilizar a ideia de
Estados como sujeitos de direito passíveis de concertações jurídicas multilaterais, conforme
34
A discussão sobre jusnaturalismo e juspositivismo extrapola esse trabalho. O único intento aqui é demarcar a
importância do Direito formal positivado em lei para a acepção moderna de cidadania. Não entraremos, portanto,
nas minúcias das discussões jurídicas que derivam desse embate e que, na versão sintética trazida por Dworkin
(2004, p. 1392), opõem o positivismo ao interpretativismo, onde ele define o positivismo jurídico como a visão do
Direito em que “juízes devem fazer cumprir as regras estabelecidas pelo legislativo, desde que essas regras não
sejam ambíguas ou possam ser tornadas inequívocas, consultando a história legislativa e outras fontes padrão de
intenção legislativa”, ou seja, onde prevalece a letra fria da lei sobre a sua interpretação hermenêutica. Para
detalhes dessa discussão, ver Dworkin (2004), Reale (2002), Bobbio (1995), Baracho (1979).
35
Conforme Santos (2002, p. 126) discute, toda a pretensão jusnaturalista, em suas várias versões, se assenta em
um ideal de universalização de fundo teológico em alguns casos e racionalista, em outros. Assim, diz ele que, na
época moderna, “[e]sta preocupação com a sistematização e a racionalização, característica do jusnaturalismo dos
séculos XVII e XVIII, tem origem no humanismo jurídico dos séculos XV e XVI, e, enquanto projecto, remonta
ao ideal de Cícero de reduzir o direito a uma arte ou uma ciência (ius in artem redigendo), através da revelação da
razão abstracta contida no direito romano (a recta ratio ou ratio juris)”.
59
discutem Sombra Saraiva (2007) e Duroselle (2000).36 Além disso, porém, esse momento lança
as bases para a noção do “Estado como portador de uma vontade suprema e soberana [...] que
deflui de seu papel privilegiado de ordenamento político monopolizador da coação
incondicionada da sociedade” (BONAVIDES, 2010, p. 133). O Estado soberano surge como
Estado de Direito, cuja razão de ser transita da origem divina e natural para a construção jurídica
histórico-social, formal e positiva, que se impõe sobre a sociedade e que se relaciona com outros
Estados de mesma natureza.
Como sentido histórico, portanto, essa concepção é fundamental para a discussão de cidadania
e de Administração Pública, e ajuda entender a primazia da análise europeia sobre o tema, em
virtude de a formalização jurídico-política dos Estados-Nação ter ocorrido primeiro naquela
porção do mundo. Conforme Barraclough (1967, p. 154) afirma, o “[n]acionalismo veio para a
Ásia um século depois de vir para a Europa, e para a África negra 50 anos depois da Ásia” já
na história do século XX. Na América Latina, o ideal de nacionalismo também se funde à
constituição do Estado-Nação tardiamente, fruto da expansão do capitalismo e dos processos
de independência, no século XIX, mas legando para o século XX noções precárias e instáveis
tanto em termos de identidade nacional quanto de estabilidade jurídico-política do Estado-
Nação (WASSERMAN, 2003). Esse processo deu-se de forma tão ambígua que Hobsbawm
(1996, p.) comenta que “fora da Europa”, no séc. XIX, “é difícil falar de nacionalismo de
qualquer maneira”, talvez algo apenas como um proto-nacionalismo. “Da cidadania como a
conhecemos fazem parte então”, tal como comenta José Murilo de Carvalho (2012, p. 12), um
relacionamento ambíguo entre essas duas esferas, “a lealdade a um Estado e a identificação
com uma nação”, sendo que, segundo ele, a “identificação à nação pode ser mais forte do que
a lealdade do Estado, e vice-versa”. Nesse quadro complexo, portanto, se entrechocam questões
culturais, identitárias e formais da nacionalidade, com questões jurídico-políticas da nação
edificada como um Estado Moderno, oscilando a maior adesão dos indivíduos a um, a outro ou
a ambos ao longo da história.
36
Embora seja um marco, sabe-se, porém, que existem eventos anteriores aos 11 tratados assinados de Vestefália
sobre a autonomia de uma região política que esboçam o início dos princípios de autodeterminação, mas não na
complexidade que a multilateralidade instituída por este. Um exemplo seria a Paz de Augsburgo, de 1555. Para
aprofundar essas discussões, ver Duroselle (2000), Sombra Saraiva (2007), Knutsen (1992) e Castro (2012).
60
Na análise de Carvalho (2018) sobre cidadania, a identidade se relaciona com idioma, religião,
cultura, guerras contra inimigos comuns, ao passo que a lealdade tem a ver com o grau de
participação na vida política. De fato, em uma perspectiva mais ampla acerca do nacionalismo
como esse espírito de identidade, a nação e a nacionalidade como a formalização jurídica dessas
relações, podemos recorrer a Hobsbawm (2000, p. 12) e analisar esses dois movimentos em três
fases: a) uma de movimentação cultural sem formação ideária de nação, apenas como aspiração
cultural compartilhada entre sociedades; b) outra de primeiras militâncias em torno de uma
“ideia nacional”, tomada como um conjunto compartilhado de traços culturais, sociais e
políticos comuns; e c) uma última fase onde os programas de nacionalidade ganham o apoio
das massas que os chamados “nacionalistas” imaginam representar, já sob os anseios e os
contornos de um Estado de Direito. Nessa divisão apresentada por Hobsbawm, portanto, o
nacionalismo, ou seja, a identidade sociocultural, precede o Estado-Nação juridicamente
formalizado e, portanto, a nacionalidade jurídica. Nesse sentido, a formação da identificação se
opera antes da possibilidade de participação efetiva na vida política do Estado. Isso sugere que
os dois movimentos, transição nacionalismo-nacionalidade e constituição do Estado
conformando juridicamente a Nação, precisariam confluir para dar espaço à construção de uma
vinculação jurídico-política dos indivíduos ao Estado, tornando-os sujeitos de direitos e deveres
tal como a visão moderna de cidadania evoca.
Para consolidar juridicamente a lealdade a uma nação, era preciso, pois, haver instâncias de
reconhecimento e de participação na vida política da própria nação, para julgar e para ser
julgado, para conceder direitos e para exigir obrigações. Essa participação depende primeiro de
uma formalização jurídica, daí coincidir a formação do Estado com a construção do Direito
Constitucional. Isso ocorreria porque “conduzido ao domínio jurídico, o conceito de nação se
prende ao de soberania constitucional, porque essa é a raiz contemporânea mais profunda do
direito” (BONAVIDES, 2008, p. 196). Nesse sentido, o surgimento da nação coincide com a
formação do Estado que se identifica pela existência de uma Constituição, a norma fundamental
racional kelseniana de onde derivariam todas as demais (COSTA MATOS, 2011; CHAMON
JR, 2005; BARACHO, 1979). Para participar da vida política na era moderna, então, passa a
ser preciso, além da identidade comum, a definição formal de direitos e deveres que delineiem
os modos e o escopo dessa participação de acordo com essa normatização. Essa determinação
jurídica repousa, no entanto, em uma racionalidade burocrática de funcionamento e de
organização do Estado. E, assim, tal como Coutu (2016) e Troper (2016) defendem, a
racionalidade moderna termina por aproximar alguns pontos do positivismo jurídico e da
dominação racional-legal weberiana, afunilando o Estado de Direito e a Burocracia, ou seja,
Estado e Administração Pública, em um esforço que se intensifica com o positivismo jurídico
acolhido no século XX por Hans Kelsen.37
Esse percurso, porém, foi longo e complexo e parte de um elemento fundamental ainda não
comentado aqui, as cidades, o terceiro item fundamental para a conformação da Cidadania e da
Administração Pública. Muito antes de se formarem os Estados nacionais, emergiram as cidades
37
Embora Hans Kelsen fosse contrário à noção de sociologia do direito porque ela estaria muito próxima do direito
consuetudinário defendido pela Escola Histórica alemã, especialmente com Friedrich Karl Von Savigny que se
inspirava especialmente no jusnaturalismo que Kelsen tanto combatia, alguma aproximação com a sociologia
jurídica weberiana é possível, com ressalvas. Weber, por sua vez já amplamente influenciado pela Escola Histórica
alemã, tem na sua definição de racionalidade instrumental uma visão muito próxima da racionalidade estrita do
positivismo kelseniano, algo cuja concretude e impessoalidade remete ao pandectismo germânico que reduzia o
juiz a um burocrata da lei. Para uma discussão sobre isso, ver Coutu (2016) e Tropper (2016) e, de modo mais
amplo, Cohn (2003) e Reale (2002).
62
e, em alguns casos, as duas esferas se fundiram na cidade-estado que aparece no mundo político
em dois momentos fundamentais: a Cidade-Estado greco-romana no período clássico e as
Cidades-Estado medievais e do setecentos (ARRIGHI, 1994; BRAUDEL, 1984; KNUTSEN,
1992; ANDERSON, 1991). O impacto das cidades para a realidade social é enorme, tanto que
trataremos esse ponto em separado no próximo item, por ora, apenas comentamos que, se a
cidade-estado greco-romana institui os pilares da discussão sobre cidadania e sobre
Administração Pública, as cidades-estados de Gênova, Veneza e, depois, as holandesas ajudam
a inaugurar os sistemas de relações internacionais e a ideia de sistema-mundo, conforme
discutem Braudel (1984), Wallerstein (2004) e Arrighi (1994). A transição dessa realidade até
a definição das fronteiras nacionais e a ideia de nacionalismo foi conflituosa e confusa. Nesse
sentido, conforme afirma Knutsen (1992, p. 25), a “era moderna começa nas cidades-estados
do norte da Itália no final do século XIV e início do século XV. O começo foi lento. As sementes
da modernidade foram semeadas na Alta Idade Média, fragmentada e rural, e levaram séculos
para crescer”. Por enquanto, então, retornamos a um elemento-chave desse processo que é a
nacionalidade.
Na época Moderna, o nacionalismo aflora inicialmente por meio de conflitos bélicos e combina-
se ao estatocentrismo emoldurado em conceitos jurídicos que passam do jusnaturalismo para
juspositivismo, onde se desloca a origem divina, etérea ou universal dos direitos para uma
origem racional, específica e territorializada proveniente da norma constitucional formalizada,
algo que as várias vertentes de teorias das relações internacionais reconhecem (NOGUEIRA &
MESSARI, 2005; KNUTSEN, 1992). Nesse movimento, portanto, a militarização das nações
cumpriu um papel importante, tal como discute Paul Kennedy (1989); aproveitando-se do
nacionalismo para impulsionar esforços de guerra em torno de Estados emergentes, viu-se um
processo que, segundo Charles Tilly (1996, p. 126), combinou o “desarmamento civil” e a
concentração do poderio coercitivo no Estado, criando a um só tempo o poder militar e a
estrutura burocrática estatal38. Tal panorama configuraria a chamada “teoria belicista” de
criação dos Estados (SPRUYT, 2017, p. 78) e que se aproxima da ideia weberiana de que o
38
A este respeito, Charles Tilly (1996, p. 127) comenta que a “criação de forças armadas por um governante gerou
uma estrutura de Estado duradoura. E isso aconteceu não só porque o exército se tornou uma organização
expressiva dentro do Estado, mas também porque a sua criação e manutenção induziram a instalação de
organizações complementares: tesouros, serviços de abastecimento, mecanismos de recrutamento, órgãos de coleta
de impostos e muitas outras. O principal organismo de arrecadação de impostos da monarquia prussiana recebeu
o nome de Comissariado Geral da Guerra”.
63
Estado é aquela figura que se reconhece por deter o monopólio legítimo da violência. Os
momentos de paz, tal como no tratado de Vestefália, porém, dão um passo além. Eles passam
a consagrar outra possibilidade de usar esse mesmo nacionalismo, mas para construir soluções
racionais para essas mesmas nações, agora já reconhecidas como sujeitos de Direito, não apenas
como agentes de guerra, abrindo espaço para a conversão do nacionalismo em nacionalidade; e
dessa, em cidadania.
É nesse percurso que se compreende o entendimento de Mosher (1943) que dizia que
patriotismo é o que sentimos ou apoiamos em tempos de Guerra, cidadania é o que sentimos ou
apoiamos em tempos de paz. Manning (1993), Hobsbawm (2000), Carvalho (2012) e Kennedy
(1989) concordam que guerras e conflitos contribuíram para aflorar o sentimento de
nacionalismo. E também concordam que, embora esse sentimento, por si só, seja insuficiente
para alcançar a noção de cidadania como direitos e deveres, foi importante no seu
desenvolvimento pois incutiu o acirramento da identificação de uma comunidade com um
território político salvaguardado por um Estado, sem conseguir, no entanto, alcançar o espírito
de participação política dos indivíduos em um Estado de Direito, ou seja, a construção da
lealdade ao Estado comentada por José Murilo de Carvalho que vai além dessa identidade de
guerra.
Essa discussão fez florescer as teorias modernas sobre o Estado, ou, conforme Simmons (1999,
p. 740) denomina, originou “o projeto de ‘justificar o Estado’” e que tentava compreender essa
relação entre a sociedade e esta nova entidade, mediando a vida privada e a vida pública, a
individualidade e a comunidade. Dessa discussão, podem-se demarcar três matrizes teóricas
fundamentais para a cidadania e para a Administração Pública, que passam a relacionar Estado,
Burocracia e Direitos inseridos nessa articulação entre indivíduos e coletividade, que
repercutiriam fortemente em correntes contemporâneas sobre estes assuntos (MANNING,
1993; MOUFFE, 1992; JANOSKI & GRAN, 2002). São elas: a) as teorias liberais-utilitaristas
do Estado, derivadas sobretudo de David Hume, Adam Smith, James Mill, Stuart Mill e Jeremy
Bentham; b) as teorias contratualistas do Estado, inspiradas em Hobbes, Locke, Rousseau,
Spinoza, Puffendorf e Kant, e que para alguns autores foram revisitadas pelos federalistas norte-
americanos como Alexander Hamilton e Thomas Jefferson; c) as teorias histórico-dialéticas
do Estado, como as de Hegel e de Marx, que dão amparo teórico a discussões do Estado sob
perspectivas comunitaristas e radicais (socialistas e comunistas).
Janoski e Gran (2002) fazem uma síntese da evolução dessas teorias, segundo a relação entre
indivíduo e consenso, grupos, direitos e obrigações, instituições políticas e ímpeto ideal. Trata-
se do resultado do longo esforço teórico de discussão acerca do desenvolvimento do que eles
chamaram de teoria dos direitos da cidadania. Assim, da tradição liberal-utilitarista viria a
Teoria Liberal; das visões contratualistas e comunitaristas, a Teoria da Ordem Consensual e a
do Republicanismo Participativo (Quadro 5).
Quadro 5 – Teorias dos Direitos da Cidadania, segundo Janoski e Gran
Indivíduo e Consenso Grupos Direitos e Obrigações Instituições Políticas Ímpeto Ideal
1. Teoria Liberal: Direitos individuais universais
Cidadãos(ãs) são
autointeressados(as), mas têm precedência sobre o Partidos políticos agregam
John Locke, Adam Smith, T. H. O indivíduo é supremo e Estado e as obrigações. interesses categóricos Cidadãos(ãs) seguem o
isso é bom.
Marshall, o jovem R. Dahl, John sua participação voluntária Direitos de grupos não expressos por grupos de autointeresse e as regras na
Rawls em grupos pluralistas é o existem para categorias interesse. A maior parte das busca da felicidade, sendo
O Consenso não é descritivas. Os grupos têm ações tem lugar nas
a. Liberalismo Tradicional representativo para eles. tolerantes.
provável, mas também não direitos secundários em legislaturas representativas.
b. Pluralismo/Liberalismo
é desconsiderado. relação aos indivíduos.
Modernos
Cidadãos(ãs) podem ser
2. Ordem Consensual:
moldados(as) para o bem A "vontade geral" na Obrigações representando a O Estado como entidade Cidadãos(ãs) cumprem
ou para cidadãos(ãs) sociedade como um todo e "vontade geral" são mais moral tem o dever de reforçar
Aristóteles. J. J. Rousseau seus deveres e trabalham
virtuosos(as). nos seus grupos importantes que os direitos as obrigações da população.
A. Etzioni, W. Galston, A. individuais. As obrigações, Em algum grau, a sociedade
juntos a fim de
constitutivos são mais
Oldfield, P. Pettit porém, ajudam a reforçar e a civil também reforça essas compartilhar em uma boa
O consenso é altamente importantes que o
a. Comunitarismo apoiar os direitos universais. obrigações. sociedade.
desejável e é o principal autointeresse.
b. Republicanismo cívico
objetivo.
A natureza humana da Indivíduos são sub- Direitos e obrigações
3. Republicanismo Participativo: O Estado e a Sociedade Civil
cidadania é complexa, mas representados. Sua universais estão em um Cidadãos(ãs) participam,
formalmente criam
isto não é uma barreira participação em grupos equilíbrio complexo. Deve-se de modo justo e tolerante,
J. Habermas, J. Bohman, H. van instituições deliberativas,
ter cuidado ao reforçar
para a participação. deve ser encorajada como pesquisas deliberativas, dos conselhos
Gusteren, Benjamin Barber, M. obrigações estatais, mas
reuniões na cidade, no
seguindo procedimentos algumas obrigações são comunitários e fóruns, a
Warren trabalho, conselhos,
O consenso dá lugar à comunicativos. Os grupos necessárias. Deve-se, fim de estabelecer uma
a. Neo-Republicanismo codeterminação, conselhos de
participação e ao devem respeitar os direitos igualmente, ter cuidado com sociedade justa.
b. Democracia Expansiva polícia-cidadã, etc.
procedimento. individuais. os grupos.
Grupos culturais e descritivos
4. Pluralismo Pós-moderno As identidades dos(das) têm direitos culturais e Movimentos sociais e a mídia
Grupos sociais de larga- Cidadãos(ãs) buscam
Moderado: cidadãos(ãs) são procedimentais. Direitos são a força-motriz para a
escala se ajustam mal à identidades de grupo por
complexas. universais não existem ou mudança institucional. Ambos
maioria dos indivíduos meio de grupos ou direitos
E. Laclau, C. Mouffe, E. Isin, J. existem de modo muito envolvem as elites de vários
pós-modernos, que tendem limitado. Direitos de grupos grupos apresentando direitos culturais, ou resistem e
Torfing, W. Kymlicka Isto fundamentalmente
a se expressar nos particularmente para grupos particularistas ao passo que sustentam tais direitos em
a. Pluralismo Radical desconsidera o consenso
movimentos sociais. culturais e grupos descritivos ignoram obrigações. movimentos sociais.
b. Multi-culturalismo substantivo.
são importantes.
65
66
Conforme Schwartz (1985, p. 531) argumenta, porém, um último elemento da discussão sobre
cidadania e Administração Pública precisa ser analisado que é essa noção de comunidade
política na qual os indivíduos se engajam, e que se relaciona com uma percepção de cidadania
que vai além da formalidade normativa. Trata-se de um vínculo direto com um espaço público
específico que é a cidade como território político, portanto, como ela coloca: a “[c]idadania foi
primeiro uma ideia da cidade”. É preciso, então, ir além das questões formais de vínculos
políticos-jurídicos a um Estado, tratados pelo espírito do nacionalismo transformado em
nacionalidade, cujas discussões teóricas defenderam modos distintos de Estado e de concepções
associadas de direito e de justiça, conforme apresentamos, para então recuperarmos um dos
traços definidores dessa relação, a vivência dos indivíduos nesse espaço diferenciado. Trata-se,
portanto, de uma discussão que fez emergir um outro lado desse debate e que passou a ser
relacionado à ideia de uma chamada cidadania efetiva, que passamos a discutir.
Para entender esse ponto, é preciso compreender que as transições relatadas no tópico anterior,
além de históricas, são também fruto de um modo de pensar específico da Modernidade que
consagra, na verdade, uma nova maneira de estar no mundo. Estar no mundo passa a ser
entendido, a partir dessas transformações socioeconômicas, jurídicas e políticas – e, também,
burocráticas –, como um sentido de presença no mundo capaz de afetar e moldar racionalmente
a realidade à sua volta. Sob os auspícios da razão iluminista, moderna, isso significa ser capaz
de compreender objetivamente a vida social, explicando e construindo o mundo com base no
domínio técnico e racional dos saberes (HAMILTON, 1995). A Modernidade, sob essa ótica,
portanto, vai além dessas transformações históricas, ela não se restringe mais apenas a uma
época, mas torna-se um longo projeto de ordenamento do mundo, que alguns entendem como
inacabado (MACK, 2009; HABERMAS, 1998; GIDDENS, 1991) e outros defendem ter sido
bem-sucedido em alguns aspectos instrumentais (no domínio técnico da natureza) e totalmente
falho em outros mais substantivos (como a promoção da emancipação), tal como entende
Boaventura de Sousa Santos (1989, 2002, 2003) que argumenta que a Modernidade é um
paradigma sociocultural simultaneamente de superação técnica e de obsolescência humanística.
66
67
Esse projeto, que pretende desenhar o mundo com base em normas racionais,
independentemente de estar inacabado ou superado, legou-nos um produto social concreto
fundamental: a cidade. A cidade, segundo Hobsbawm (1995, p. 246), é “o mais marcante
símbolo exterior do mundo industrial”, do progresso, do avanço tecnológico; e ela faz das
relações de seus habitantes com esse espaço físico e político um dos pontos centrais da
existência humana. É pela cidade que nos conectamos formalmente ao Estado, à Nação. É nela
que passamos pelas experiências de vida. A cidade é o local de engajamento político, onde se
esbarram as fronteiras do privado e do público. É nela que o indivíduo se torna cidadão, e como
cidadão se transforma em um ser político. A cidade, que no passado foi a representação máxima
da organização social, evolui, para continuar sendo, na modernidade, a representação da
racionalidade, conectando o passado ocidental helênico-romano com o renascimento (LE
GOFF, 1992, 2005). 39 Não por acaso, é da cidade que se extrai o léxico cidadania, e não do
Estado. A própria evolução linguística do termo não consagrou um vocábulo de estadania,40
embora, como tenhamos visto, a “própria cidadania moderna nasceu do Estado-nação no qual
certos direitos e obrigações eram atribuídos a indivíduos sob sua autoridade” (ISIN, 2000, p.
3). E por que isso ocorreu?
Não é fácil precisar o momento em que as cidades surgiram no mundo41, embora o seu impacto
social seja definitivo. Este é um ponto praticamente pacificado na literatura especializada, seja
no que tange ao mundo Ocidental quanto Oriental (LEES, 2015; LEFÈVRE, 2013; TILLY,
2011; SOJA, 2011; ELSHESHTAWY, 2008; FREUND, 2007; ISIN, 2000, 2002, 2015;
39
Conforme Lefebvre (2003, 2011) discute, não foi por acaso que o mapa e o plano surgiram como a grande
representação da racionalidade moderna que é lançada sobre as cidades. E, não por acaso, também, o mapa e o
plano são tidos como grandes representações da própria Administração, ainda hoje tomados como grandes
produtos dos processos de planejamento (KAPLAN & NORTON, 2004; OLIVEIRA, 2010). Esses dois objetos
consagram, segundo Lefebvre (2003, p. 12), o surgimento da ciência da planimetria (planimetry) ou do
planejamento urbano, onde estes instrumentos combinam as visões “simultaneamente idealista e realista – a
perspectiva do pensamento e do poder – [que] foi situada na dimensão vertical, a dimensão do conhecimento e da
razão, e [que] dominou e constituiu uma totalidade: a cidade”. A cidade como essa totalidade moderna desempenha
um papel crucial, portanto, na articulação entre os indivíduos que nela vivem, donde se retira a raiz do léxico
cidadania e o aparelho do Estado-Nação.
40
Uma proposta do conceito de estadania é feita por José Murilo de Carvalho (2001), para explicar a falta de
engajamento do povo brasileiro na reivindicação de direitos que compõem a cidadania no Brasil, formalista e
construída de cima para baixo, por força normativa do Estado. Andrade, Castro e Pereira (2002) fazem uma
recuperação deste termo para discuti-lo sob o foco da Administração Pública, mas, internacionalmente, não há
evidências robustas do uso deste termo, que Murilo de Carvalho afirma ele mesmo tê-lo criado.
41
Charles Tilly (2011, 2017) e Soja (2011), por exemplo, estudam a formação de cidades por volta de 5000 anos
atrás, com adensamentos populacionais tendo ocorrido bem antes disso. Lees (2015), por sua vez, aponta o
surgimento de cidades cerca de 3500 a. C. Pounds (2005) apresenta uma demarcação de cidade apenas após 800
a. C., anteriormente a isto, ele define os assentamentos como proto-urbanos.
68
VERHULST, 1999). E tal fato decorre não apenas de questões históricas quanto a alguma
dificuldade cronológica, mas também de problemas e dificuldades conceituais, pois os
“especialistas não estão de acordo quanto à data em que surgiram as cidades, principalmente
porque cada qual tem uma ideia diferente do que faz uma cidade nascente” (LEFÈVRE, 2013,
p. 100). Não sendo possível determinar estritamente quando, o momento de criação, sociólogos
e historiadores passaram a se concentrar no como, no processo de formação das cidades. E,
como fruto de um processo que não se esgotou ainda, a formação das cidades surge como uma
síntese do processo civilizatório e a “história da humanidade é a história das civilizações”
(HUNTINGTON, 1997, p. 44).
Daí, como discute Norbert Elias (1996, p. 162), analisar-se a civilização antes como processo
civilizador que como resultado civilizatório, afinal, “[n]ão há um ponto zero na historicidade
do desenvolvimento humano, da mesma forma que não há na socialidade, na interdependência
social dos homens”. Nesse sentido, mais importante que precisar o nascimento, é reconhecer
que “[a]pesar de conterem por muito tempo apenas uma pequena minoria da população
mundial, elas [as cidades] tiveram impactos profundos nas sociedades em que surgiram”, pois,
onde quer que tenham aparecido, “aumentaram enormemente as capacidades dos moradores
das cidades e promoveram poderosas inovações de todos os tipos - tecnológicas, políticas,
culturais e intelectuais” (LEES, 2015, p. 1). Elas ajudaram a definir, portanto, o locus primordial
da existência humana no decurso histórico, seja na antiguidade como primeira conformação do
espaço público comum, seja quando alcançaram o mundo medieval integradas à cosmologia42
humana ou, como defende Le Goff (1992, p. 144), na instauração de “uma nova sociedade
urbana”. Nessa sociedade, diz ele, embora situada no feudalismo, “não são as hierarquias da
sociedade feudal que melhor podem caracterizá-la, mas um novo tipo de estratificação social
ligado à economia, à propriedade urbana, ao dinheiro, à influência na cidade”.
Mais do que isso, como Lefebvre (2003) argumenta, hoje as cidades são o retrato de um mundo
virtual e espacialmente urbanizado, que partiu dos primeiros esforços das cidades-Estado
42
A este respeito, diz-nos Keith D. Lilley (2009, p. 12), que a “cidade medieval [...] adquiriu seu simbolismo
cosmológico através de suas formas espaciais, por exemplo, nas geometrias ordenadas que compartilhava com o
cosmos, e em suas funções, como um ‘corpo’ composto de partes hierarquicamente dispostas espelhando a moral
topografia do universo cristão como um todo, tudo criado para o plano divino de Deus”. A este respeito, também
é fundamental a influência da Cidade de Deus, de Santo Agostinho, no renascimento, ponto que Le Goff (2005)
destaca como crucial para emergência de uma ideia de Europa amplamente embasada na teologia cristã.
69
(COULANGES, 1995) que foram mais caoticamente construídas que planejadas, passando para
o Estado-Nação e as cidades utópicas medievais e renascentistas (DAVIS, 2017, 2010;
FORTUNATI, 2004; BRADATAN, 2009, BRUCE, 1999), essas já mais desejadas que
efetivadas. A partir daí alcançaram, já no século XX, a noção de aldeia global43 (MCLUHAN
& FIORE, 2001) e das cidades-mundo (KING, 2010; CLARK, 2003; LIMENA, 2001;
CARVALHO, 2000), como a nova utopia contemporânea em que a realidade local, que era a
única existente na antiguidade, passa a estar totalmente conectada com a realidade global. Esse
percurso é fundamental para a evolução da cidadania e da Administração Pública porque da
construção social das cidades sob essas várias concepções surgiu tanto a necessidade de se
discutir os direitos e os deveres dos que nelas vivem como os seus mecanismos de viabilização,
as suas formas de reivindicação e as maneiras de identificação e de reconhecimento desses
indivíduos. Em termos gerais, portanto, para se ter uma dimensão da sua importância nas
ciências sociais, Soja (2011, p. 216) argumenta que as “cidades e o processo de urbanização
forneceram talvez a mais importante força geradora por trás de cada grande avanço na geo-
história humana, desde as revoluções agrícolas até as revoluções industriais, até as grandes
explosões de criatividade artística e inovação tecnológica”.
Mas o que é a cidade? Podemos nos valer da definição de Charles Tilly (2011, p. 5) que diz que
“cidades são assentamentos humanos que combinam populações residentes significativamente
mais densas do que seus territórios vizinhos, diferenciação e desigualdade dentro das
populações residentes, alguma autoridade central e localizações nodais dentro de extensas redes
de comunicação”. Conforme vemos nessa definição, nela encontramos elementos fortemente
ligados à ideia de uma administração comum ou pública, quando falamos em autoridade central.
De outro lado, temos representada a questão dos direitos e deveres quando trabalhadas as
noções de diferenciação e desigualdade, que determinam quem deve ou tem direito ao quê.
Esses três elementos, a autoridade comum, a diferenciação e a desigualdade estão no cerne da
discussão que faz a evolução da cidadania formal para a substantiva, e do papel que a
Administração Pública exerceria (ou deveria exercer) na viabilização desta.
43
Limena (2001, p. 37) comenta que “Marshall McLuhan sugeriu, em 1960, que o mundo inteiro iria se tornar,
um dia, uma ‘aldeia global’, na qual todos os membros da humanidade poderiam interagir num simulacro em
tempo real de uma comunidade neolítica”, onde o antigo e o novo se confundem em um mundo sem fronteiras.
Conforme Gordon (2012, p. 104) questiona, porém, “mais do que abrir o mundo e melhorar as interações daqueles
que nele estão [...] a ascensão da ‘civilização pop-tech de um-mundo-só’ fez exatamente o contrário [...] ‘ofereceu
às pessoas a oportunidade de se empacotarem em mundos menores”. Para aprofundar o conceito, ver o trabalho
seminal de McLuhan e Fiore (2001), originalmente publicado em 1967.
70
Weber teria defendido, na leitura de Isin (2002), duas premissas fundamentais acerca da
importância das cidades para a constituição da cidadania e que teriam correlações com o
surgimento da própria Administração Pública em diferenciação da administração privada: i) a
de que as cidades teriam surgido principalmente com base no sinecismo, ou seja, no processo
de assentamento conjunto, de modo unificado, dado pelas famílias, tribos ou clãs que optam,
por diversas razões, por coexistirem pacificamente em um mesmo lugar, transformando-o em
um território comum; e ii) a de que, nesse processo, surgem governados e governantes, e das
massas governadas, das plebes, convivendo associadamente sem laços de parentesco, emerge a
necessidade da definição de regras e deveres (a cidadania), o que no Ocidente ocorreria mais
rápido em razão do advento do domínio racional-legal moderno em face da prevalência do
misticismo oriental. Essas duas premissas embasam uma trajetória longa e tumultuada de
formação, que remete ao período das cidades antigas e segue caoticamente evoluindo até as
cidades medievais e modernas.
Segundo Isin (2002, p. 12), portanto, “para Weber, todas as cidades na história do mundo foram
fundadas pelo assentamento conjunto de estranhos e forasteiros previamente alheios àquele
espaço”. Isso é importante porque coloca a cidadania decorrente da necessidade de diferenciar
os membros de um assentamento dos membros de fora desse assentamento. Essa visão
71
weberiana da formação das cidades, o chamado sinecismo, é a mesma trazida por Coulanges
(1995) para explicar a origem das cidades no mundo antigo entre famílias, tribos, clãs e fratrias.
Ainda na perspectiva weberiana, segundo Isin (2002), o processo de sinecismo leva à origem
de uma cidade que passa a ser identificada por cinco características: i) fortificação para defesa;
ii) formação de um mercado de trocas; iii) instituição do direito autônomo; iv) administração
autônoma; v) autocefalia ou governo próprio. Nessa linha, vemos a combinação de militarismo,
direito, economia e administração na conformação das cidades. A própria fundação das cidades
ensejaria, portanto, a conformação dos seus habitantes como sujeitos governados por essas
regras de direito (autocefalia) e de Administração Pública (administração autônoma). Assim,
cidade e cidadania surgiriam juntas, em um mesmo processo que viabilizaria a constituição das
regras de direito e da estrutura organizacional necessária para implementá-la, a burocracia ou a
Administração Pública, conectando o jurídico com o político.
Isin (2002, p. 19) defende, portanto, que para Weber “o que fazia da cidade ocidental única, era
que ela permitia a associação e a formação de grupos com outros vínculos e laços que não a
linhagem e o parentesco”. Segundo Isin (2002, 2015), esta é uma visão muito calcada na ideia
do orientalismo, ou seja, na visão que trata o Oriente como místico, exótico, atrasado, numa
espécie de antítese do Ocidente e que é muito próxima da visão etnocêntrica e colonialista
(TURNER, 2014; SAID, 2003).44 Essa visão teria, de acordo com ele, provocado um
movimento duplo em que somente a cidade ocidental permite o surgimento da cidadania como
produto racional e formal, e, com isso e ao mesmo tempo, a “cidadania se tornou tanto a
incorporação e a expressão da singularidade da cidade ocidental” (ISIN, 2002, p. 19). O
fenômeno que permite esse tipo de evolução no Ocidente é a instituição da racionalidade legal
que ali teria ocorrido e que se acentuaria na Modernidade, promovendo o desencantamento do
mundo que não teria ocorrido da mesma maneira no mundo oriental. No mesmo momento em
que a cidade ocidental traça suas fronteiras, portanto, ela estabelece os que são de dentro e os
de fora, criando os direitos e obrigações referentes a cada uma dessas situações referenciando-
44
Conforme Turner (2014, p. 7) argumenta, o “orientalismo baseia-se numa epistemologia que é essencialista,
empírica e historicista”, ou seja, ele é profundamente associado ao desenvolvimento da religião islâmica, onde a
“afirmação essencialista apresenta a noção de que o ‘Islã’ é uma entidade coerente, homogênea e global” e que
por isso, histórica e empiricamente, as nações do Oriente, sobretudo, do Oriente Médio, ficaram presas a um
misticismo posto pela religião que impediu ou dificultou a ocorrência de revoluções progressistas. Assim, chega-
se a uma explicação em que o “declínio social e político” do Oriente, que era promissor no passado, se deu em
“consequência de algum elemento historicamente sempre presente – o autoritarismo, a falta de leis ou de grupos
de oposição autônomos, a adesão escrava ao costume formal ou o fracasso das instituições dominantes”.
72
Apesar da crítica de Engin Isin (2002) ao orientalismo de Weber, muito próxima da que a
influente obra de Edward W. Said (2003) realiza, alguns autores questionam essa associação,
como Nafissi (1998) e Salvatore (1996), e afirmam que o estudo comparado da sociologia das
religiões que Weber realizou é incompatível com essa posição, e que muito dela decorreria, tal
como Farris (2010) enfatiza, da má interpretação dada ao método ideal-típico weberiano
conferido ao Islã e que foi erroneamente tomado como uma espécie de estereótipo do
etnocentrismo. É inegável, no entanto, que a discussão da cidadania realmente teve uma
predominância histórico-social no Ocidente que foi impulsionada com a Modernidade europeia,
como o próprio Isin (2015, p. 1) reconhece em outro momento, a “palavra ‘cidadão’ evoca um
legado particular que está inexoravelmente associado a valores ‘europeus’ que definem
especialmente os estados euro-americanos. Estes incluem secularismo, democracia, lei e
direitos”. Quanto à burocracia e Administração Pública, por sua vez, o próprio Weber reconhece
as origens asiáticas de ambas, algo que Tragtenberg (2006) recuperou ao defender que a
primeira experiência burocrática surge no modo de produção asiático, assomados às sociedades
antigas do México e do Peru, e que é ao mesmo tempo um modelo histórico (por ter origem no
passado) e um modelo sem história (por ser impossível precisar a época de seu início e
desaparecimento).
existência subjetiva que vai além dessa construção formal. Essa visão legalista da cidadania é
a que DaMatta (1991, p. 72) chama de “jurídico-político-moral”, a qual teria alcançado os
nossos dias esquecendo ou ocultando, segundo ele, o fato de que a cidadania “também comporta
uma dimensão sociológica básica, já que ser cidadão, e ser indivíduo, é algo que se aprende, e
é algo demarcado por expectativas de comportamento singulares”, é algo que envolve cultura,
educação e identidade. A análise weberiana do surgimento das cidades, como esse espaço onde
vivemos, construímos e nos constituímos no mundo concreto, e onde o Estado aparece apenas
como projeção, já aduz a essa ideia de que existe um processo subjetivo de diferenciação, mas
também de identificação, que contrapor-se-á ao que chamamos de cidadania efetiva à cidadania
formal.
Existiria, portanto, segundo Mhurchú (2014), Carvalho (2012), Kymlicka e Norman (1994)
uma amarra fundamental que vai da cidadania à política, e dessa com o Direito, o que fez da
tríade cidadania-direito-política um todo formal indissolúvel que se encontra sintetizado no
Estado-Nação, mas que é exercido e vivenciado nas cidades, e que, portanto, não se esgota
como direitos e deveres formais, mas que alcança relações sociais efetivas. Nesse sentido, Isin
(2002) argumenta que isso faz com que a cidadania, durante sua trajetória, seja na verdade o
caminho de constituição do ser político na sociedade, o que, na concepção dele, é o indivíduo
dotado de vários direitos, mas tendo como base um que é genérico: o direito de imersão na
realidade social de uma comunidade podendo se constituir nela como um agente para governar
(ou aceitar ser governado), para deliberar com os outros e para ser reconhecido. Na essência,
esse princípio nada mais é que o direito de ter direitos arendtianos, recuperado por Lafer (1988,
1997, 2018) e Dagnino (1994, 2004). Segundo ele, isso estava presente na imagem do cidadão
como guerreiro-heroico da Polis grega, na do cidadão-patrício da civitas Romana, na do
cidadão-mercador da Christianopolis, e no cidadão-burguês das metrópoles ocidentais. Cada
uma, à sua forma, concebe maneiras e sujeitos diferentes para se engajar politicamente no
mundo, embora todos com graus distintos de restrição de quem usufruía da cidadania. Em
outros termos, as cidades foram projetando maneiras e reconhecimentos diferentes de seres
políticos.
Agora fica mais claro que, do ponto de vista formal, a vinculação das pessoas às cidades e ao
Estado-Nação, faz do díptico cidadania/nacionalidade, a legalização da obediência a uma
74
Conforme Chen (2018, p. 10) discute, próximo ao questionamento posto por DaMatta (1991),
a “cidadania não é simplesmente sobre a adesão legal à comunidade política de acordo com sua
definição mais restrita, mas é no sentido mais amplo sobre a relação política, social e cultural
do indivíduo e da comunidade - seja local, nacional ou global”. Nesse sentido, de acordo com
Habermas (2011, p.), portanto, o questionamento da formalidade jurídica dada pelo Estado fez
nascer uma outra instância de reflexão, pois, segundo ele, o “complexo emergente de lei e poder
político deu origem a um novo requisito funcional - a legitimação da autoridade política”.
Cidadania, logo, envolveria tanto o formal quanto não formal, o cultural, o identitário, o
legítimo, o substantivo, o reflexivo e a possibilidade de participação. “Ser politicamente
engajado”, dizem-nos Isin e Turner (2002, p. 4), “significa praticar a cidadania substantiva”, o
que quer dizer que “os membros de uma comunidade sempre lutam para moldar seu destino”,
o que culminou em “uma definição sociologicamente informada de cidadania em que a ênfase
é menor em regras legais e mais em normas, práticas, significados e identidades”.
Nesse sentido, as cidades passam a figurar como esses espaços onde todas as subjetividades se
conjugam, existencialmente, para além dos seus aspectos legais formais. Assim, tal como
Edwards (2018, p. 16) argumenta, ao discutir os movimentos políticos de juventude, passa-se a
compreender que a “cidadania era, portanto, um status - algo que os membros recebiam - e uma
75
prática - algo que os membros deviam demonstrar em seu dia a dia”. Mais do que mera definição
jurídica, o exercício substantivo é fundamental para a efetivação da cidadania. Essa noção de
engajamento e de subjetividade, no entanto, tal como defendido por Weber é anterior aos traços
da modernidade associados ao Estado-Nação e à nacionalidade, encontra-se na origem da
formação das cidades. Com isso, essa interação com as coisas públicas, com o espaço público,
com a vida em comunidade, vividas e experimentadas nas cidades, faz a conexão dessa
discussão com a antiguidade. Nessa genealogia, cidadania, cidades, Estado e Administração
Pública se misturavam, e a subjetividade o engajamento eram intrinsecamente associados à
lógica pública/privada, direitos e deveres, uma noção que foi preterida em detrimento da visão
racional instrumental e formal trazida pela Modernidade, e que alguns críticos do século XX e
XXI passaram a recuperar.
Por ser um fenômeno histórico, como vimos, a discussão sobre cidadania requer a compreensão
de particularidades de cada contexto social que se estiver analisando. Nesse sentido, a pesquisa
nacional que se debruçou sobre o tema procurou, justamente, identificar essas peculiaridades
em nossa realidade. Embora tenham este objetivo comum, entretanto, não se constituiu uma
teoria sobre cidadania brasileira única e consolidada. Pelo contrário, dada a grande
multiplicidade de abordagens sendo feitas – especialmente as historiográficas, políticas,
sociológicas e jurídicas – não se pode nem dizer que há exclusivamente um único debate teórico
sobre cidadania no país, dentro de um único campo, com várias correntes se confrontando a
partir de uma mesma matriz disciplinar. Há, diferentemente, um material extenso, mas que é
rico e profundo, preocupado em compreender as razões desse fenômeno antigo ter tido tanta
dificuldade de se estabelecer no Brasil. E em função disso, portanto, na maioria dos casos, as
análises se apresentam como se fossem independentes umas das outras, raramente se
mencionando. Todas dialogando, entretanto, com uma mesma raiz teórica: as referências
embrionárias na antiguidade clássica ocidental (romana e grega); o surgimento na
Modernidade; e o trabalho de Thomas Humphrey Marshall, sempre citado.
Diante disso, um dos esforços desta pesquisa é tentar buscar retratar o estudo de cidadania, no
Brasil, a partir das reflexões próprias de pesquisadoras e pesquisadores nacionais. Neste
76
sentido, de material estudado, destacamos as análises que, ao nosso olhar, nos parecem mais
robustas, que estabeleceram critérios e conceitos próprios, específicos, e que não ficaram
apenas replicando essa raiz teórica original que mencionamos. Neste sentido, podemos
identificar sete principais abordagens brasileiras sobre cidadania: a) a Cidadania Regulada, de
Wanderley Guilherme dos Santos; b) a concepção de Estadania e a Cidadania em Negativo,
criada por José Murilo de Carvalho; c) a Nova Cidadania, de Evelina Dagnino; d) a
Subcidadania, de Jessé de Souza; e) a Cidadania Inexistente, de Marcelo Neves; f) a
Cidadania e a Identidade, de Elisa Maria da C. Pereira Reis, André Botelho e Lilia Moritz
Schwarcz; e g) a Cidadania Formal e a Cidadania Substantiva, de Roberto da Matta.
A sua principal obra que trata diretamente sobre cidadania é “Cidadania e Justiça, a política
social na ordem brasileira”, de 1979, que parte de uma compreensão da legislação nacional
sobre os direitos sociais para conceber o seu conceito de cidadania regulada (SANTOS, 1979).
Santos (1979) argumenta que, segundo uma análise institucional dos direitos, seria possível
distinguir os países quanto à ordem e ao ritmo em que esses regulamentos sociais vão sendo
estabelecidos, por meio da análise do escopo da legislação, do formato burocrático de
administração dos programas, do esquema de financiamento e, finalmente, quanto à articulação
dos programas sociais. As questões da burocracia e da constituição do Estado dialoga um pouco
com Max Weber. Com base no processo burocrático brasileiro, não seria adequado, portanto,
sob sua perspectiva, compreender a cidadania definida por Thomas Marshall como algo a ser
transplantado de modo imediato para a realidade brasileira. No caso brasileiro, teríamos um
fenômeno específico, uma cidadania regulada, um “conceito de cidadania cujas raízes
77
Neste conceito, fica clara a necessidade do Estado (que regula a cidadania) para estabelecer a
amplitude e a profundidade dos direitos no país, já que não há maiores reivindicações sociais
espontâneas. Santos (1979) destaca, por conseguinte, um aspecto crucial na evolução
institucional deste conceito, a importância das relações de trabalho reguladas pelo Estado como
a única possibilidade de acesso a direitos formais no país. É assim que ele defende que, no
Brasil, a partir dos anos 1930, a “extensão da cidadania se faz [...] via regulamentação de novas
profissões e/ou ocupações, em primeiro lugar, e mediante ampliação do escopo dos direitos
associados a estas profissões, antes que por expansão dos valores inerentes ao conceito de
membro da comunidade”. Não se trata, portanto, de uma consciência social que reivindique
participação e reconhecimento de modo emancipatório e crítico, mas, antes, de uma perspectiva
de direito tutelada, vigiada e permitida com ressalvas pelo Estado àqueles que cumpririam
papeis produtivos na economia capitalista formal brasileira. Trata-se, logo, de uma perspectiva
de cidadania altamente restrita e excludente, criada para acomodar conflitos nas organizações
produtivas. Assim, no Brasil, a “cidadania está embutida na profissão e os direitos do cidadão
restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por
lei. Tornam-se pré-cidadãos, assim, todos aqueles cuja ocupação a lei desconhece” (SANTOS,
1979, p. 75).
Guilherme dos Santos (1979) chama a atenção, ainda, para dois aspectos: a possibilidade de
universalização dos direitos e a liberdade de fruição destes direitos. Contrariamente ao projeto
marshalliano, no Brasil houve não apenas um processo de constituição da cidadania restritivo
e excludente, ou seja, em nada universalizado, mas também com recuos na sua possibilidade de
aproveitamento, sobretudo, em função da ditadura civil-militar instaurada no país em 1964. Foi
com base nessa visão que ele argumentou que “a violação da ordem democrática, em 1964,
colocou em recesso a dimensão política da cidadania brasileira” (SANTOS, 1979, p. 100). De
outro lado, Guilherme dos Santos via com otimismo a redemocratização após 1985, chegando
a dizer que, com ela, a cidadania foi retomada e ampliada nos primeiros anos do século XXI
implicando mesmo a possibilidade do fim da cidadania regulada no país: “hoje, a cidadania
78
regulada está em decadência, porque era uma barreira a entrada no mundo dos direitos, os
direitos estão universalizados – foram universalizados a partir do Lula. Agora, os direitos são
universais, não tem mais por categoria profissional” (SANTOS, 2011, p. 26).
A análise de José Murilo de Carvalho, por sua vez, é de História. Como um dos principais
historiadores do país, ele parece ter atendido ao chamado de Francisco Iglésias (1993, p. 301)
que dizia, em sua “Trajetória Política do Brasil: 1500-1964”, que “há muitos aspectos da vida
política que não foram até hoje objeto de atenção. Faltam, por exemplo, uma história dos
partidos e do processo eleitoral; do acesso à cidadania”. Faltavam à época de Iglesias, agora
não falta mais graças à extensa e volumosa obra de José Murilo de Carvalho sobre o assunto
(1987, 2007, 2008, 2011, 2018). Murilo de Carvalho, tal como Guilherme dos Santos, também
defende que, no desenvolvimento histórico da cidadania no Brasil, não houve a evolução
marshalliana de direitos civis, depois políticos para então alcançar-se os sociais. No caso
brasileiro, na visão deste autor, houve uma inversão em função de uma trajetória histórica
ambígua, contraditória e violenta, em que há avanços e recuos na definição de cidadania cujas
dimensões (direitos sociais, políticos e civis) não caminham ou retrocedem juntos, nem no
mesmo ritmo nem na mesma profundidade:
Por fim, Murilo de Carvalho (2018) conclui que o nosso processo histórico de formação da
cidadania implicou, dadas as desigualdades, uma triste construção que estratifica a sociedade
em camadas de acesso a direitos, onde:
A proposição central de Evelina Dagnino (1994, 2004b, 2007) é a de que a cidadania possui um
núcleo fundamental, que é a noção do direito a ter direitos, mas na qual a própria noção de
direito está em disputa e faz parte da luta política, determinando que o fundamental nesta
concepção é o engajamento social. Essa seria uma concepção nova por três razões. Primeiro,
ela “não se limita a provisões legais, ao acesso a direitos definidos previamente ou à efetiva
implementação de direitos formais abstratos”, ou seja, não é dada pela mera regulação feita pelo
81
Estado por uma elite burocrática. Segundo, e em função do primeiro ponto, ela é engajada
socialmente e construída de baixo para cima, “a nova cidadania requer [...] a constituição de
sujeitos sociais ativos (agentes políticos), definindo o que consideram ser seus direitos e lutando
para seu reconhecimento enquanto tais”. Terceiro, a nova cidadania não toma como dado que
já se sabe onde e como as pessoas excluídas deverão ser incluídas, mais do que isso, ela entende
que a cidadania implica “o direito de participar na própria definição desse sistema, para definir
de que queremos ser membros, isto é, a invenção de uma nova sociedade” (DAGNINO, 2004b,
p. 104). Trata-se, portanto, de uma visão mais ampla de cidadania, que não a restringe a uma
relação binária Estado-Indivíduo onde o primeiro prevalece, mas diz respeito à própria
construção da sociedade na qual o sistema político-jurídico é apenas uma das instâncias.
Nessa abordagem, portanto, vemos o destaque dado aos movimentos sociais, à participação e à
ideia ampliada da cidadania. Além disso, porém, temos duas conexões fundamentais trazidas
por Dagnino (1994, 2003, 2004a, 2004b, 2007, 2010), o autoritarismo e o neoliberalismo. Esses
dois elementos, existentes no processo de democratização tentado na América Latina, fez surgir
45
De acordo com Dagnino, Olvera e Panfichi (2006, p. 38), “a noção de projetos políticos está sendo utilizada
aqui para designar os conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a
vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos. Essa definição simples, claramente
vinculada ao pensamento gramsciano”.
82
uma crise discursiva trazida pela confluência perversa que advém do embate entre, de um lado,
o “projeto neoliberal que se instala em nossos países ao longo das últimas décadas” e, de outro,
“um projeto democratizante, participativo, que emerge a partir das crises dos regimes
autoritários e dos diferentes esforços nacionais de aprofundamento democrático” (DAGNINO,
2004a, p. 140). A confluência emerge na medida em que ambos os projetos, que são opostos,
tratam de temas que se expressam por terminologias comuns, como participação, sociedade
civil, cidadania, democracia. Já a “perversidade estaria colocada, desde logo, no fato de que,
apontando para direções opostas e até antagônicas, ambos os projetos requerem uma sociedade
civil ativa e propositiva” (DAGNINO, 2004a, p. 142). Diante disso, um processo que é
naturalmente complexo, dada a sua teia de relações sociais, como a construção da cidadania
passa também pela incompreensão da sociedade das diferenças entre os projetos políticos, o
que cria simplificações grosseiras da realidade (como as oposições liberais entre o Estado,
sempre mau, e o Mercado, sempre bom) que dificultam o próprio aprofundamento da cidadania.
E também porque estabelece uma dualidade entre sujeitos ativos (cidadania ativa) e passivos
(cidadania passiva) na sociedade diante destes projetos políticos.
Em conclusão, Dagnino (1994, 2003, 2004a, 2004b, 2007, 2010) amplia a discussão de
cidadania e a dinamiza, reivindicando uma interpretação que é essencialmente crítica, em que
as principais insatisfações da análise coincidem com reinterpretações da democracia na
América Latina, contra: a) a insistente tendência de tratar a sociedade civil como um todo
unificado e homogêneo; b) a necessidade de algumas teorias de isolar a sociedade civil da
sociedade política; c) a visão simplista do processo político que o vê como uma apologia da
sociedade civil, como polo de virtudes democratizantes, adotando uma visão maniqueísta que
a opõe ao todo maléfico Estado; d) a dificuldade de reconhecer a existência de diferentes
projetos políticos, inclusive produzindo a chamada confluência perversa (DAGNINO,
OLVERA & PANFICHI, 2006).
46
Embora sejam duas edições diferentes, trata-se, na verdade, do mesmo livro que foi republicado com uma nova
introdução.
83
organizacional que fica presa a lógicas de paradigmas incomensuráveis47. Souza (2006, 2018b)
constrói a sua crítica da construção da cidadania no Brasil a partir de uma análise das
interpretações de intelectuais brasileiros à luz do que ele denomina de culturalismo
conservador, uma visão liberal conservadora do país que atribuiu à nossa sociedade uma
condição permanente de inferioridade. Essa posição de inferioridade é reflexo de uma
incapacidade de se superar o que o autor chama de racismo científico no Brasil, que buscava
explicar o comportamento diferencial de sociedades inteiras pela cor da pele. Segundo o próprio
autor (SOUZA, 2018b), essa é uma análise que se projeta como uma espinha dorsal de sua obra,
especialmente em “A ralé brasileira” (SOUZA, 2009), “A tolice da inteligência brasileira”
(SOUZA, 2015) e, mais recentemente, no livro “A elite do atraso” (SOUZA, 2017), mas cujas
ideias principais já despontavam previamente em “A modernização seletiva, uma
reinterpretação do dilema brasileiro” (SOUZA, 2000). O fundamento que alinhava seu
pensamento seria o combate à visão – que o racismo científico teria criado e defendido – de que
o povo brasileiro seria essencialmente vira-lata e corrupto, mas que essa percepção poderia ser
superada pelo nosso culturalismo, que muda o racismo explícito da cor para o racismo implícito
de seres humanos de primeira e de segunda classe, supercidadãs(ãos) e subcidadãs(ãos).
47
Sobre a necessidade de superar a noção de paradigmas nos Estudos Organizacionais e da Administração, ver
Paes de Paula (2016).
84
seria uma aplicação equivocada do conceito weberiano, perpetuada nas obras de Raymundo
Faoro, Fernando Henrique Cardoso e Roberto DaMatta.
Jessé de Souza situa toda a sua discussão sobre cidadania em um contexto de reflexão sobre a
Modernidade iniciado na “Modernização Seletiva” (SOUZA, 2000) e continuado em
“Subcidadania Brasileira” (SOUZA, 2018b) e a “Construção Social da Subcidadania”
(SOUZA, 2006). Ele parte inicialmente de Max Weber, Norbert Elias, Charles Taylor e Jürgen
Habermas48 para discutir a Modernidade e situar o Brasil em um processo de modernização
periférico, para então adicionar as contribuições de Pierre Bourdieu49 na compreensão das elites
nacionais. Souza (2000, 2006, 2018b) recupera a singularidade da racionalidade ocidental
dotada de uma superioridade moral e cognitiva, segundo uma leitura que o autor denomina de
neovolucionista e que combina as perspectivas ontogenética (desenvolvimento individual) e
filogenética (desenvolvimento societário ou da espécie). A isso Souza (2000) acrescenta o
processo civilizatório de Elias tido como de superioridade ocidental, um continuum de evolução
cultural, representando uma fase de autoconsciência e de autolegitimação de uma cultura
específica, a cultura do Ocidente. Nesse sentido, Weber expressaria uma evolução racional ao
passo que Elias manifestaria uma evolução de valores culturais do Ocidente, cuja difusão como
uma moralidade própria do capitalismo moderno seria discutida por Charles Taylor alcançando,
em Bourdieu, o status de violência predominante no sistema capitalista em uma hierarquia
moral que impõe uma determinada conduta esperada por este sistema.
48
De Habermas, Souza (2000) recupera a discussão sobre o espaço público, como esfera social fundamental de
interação humana, donde surge o Estado como figura fundamental, mas que é necessariamente contraposta à
família como núcleo primaz do espaço privado. Souza (2000) trabalha também com os conceitos de sistema e
mundo da vida sendo mediados pelo Direito, em que o direito é o meio pelo qual o poder comunicativo pode
transformar-se em poder administrativo, sendo que ele não pode dominar o Estado (o poder administrativo), mas
deve apenas influenciá-lo e direcioná-lo. Para tanto, é necessária a construção de uma esfera pública racionalizada
que deve viabilizar uma influência democrática sobre o Estado, segundo procedimentos de participação
efetivamente democráticos.
49
De Bourdieu, Souza (2000, 2006, 2018b) recupera a questão dos vários capitais, como uma tentativa do que ele
entende ser uma atualização teoria crítica da modernidade e da modernização da luta de classes analisada por meio
da disputa pelo acesso a bens e recursos escassos. Como a análise de Bourdieu aprofunda a questão simbólica dos
vários tipos de capitais (econômico, social e cultural), sendo mecanismos de manifestação e expressão de poder,
Souza (2018b) acentua essa análise como uma crítica do que ele denomina de contextualismo moral do capitalismo
na Modernidade. Esse contextualismo demonstra que existiriam consensos morais compartilhados por todas as
classes no capitalismo em suas lutas por recursos escassos, como a valorização da competição pacífica ou a
reprovação ou a criminalização do assassinato como meio legítimo de auferir vantagens. A grande questão,
segundo Souza (2006, 2018b), é que a força da moralidade como produto de um consenso social inarticulado é
imperceptível na sociedade moderna, os indivíduos não percebem conscientemente toda a violência simbólica que
lhes é imposta de modo imediato, embora absorvam dessa moralidade violenta a todo instante.
85
Marcelo Neves introduz outra perspectiva em relação à cidadania, desta vez abordada por meio
do Direito, na sua discussão sobre a cidadania inexistente. Neves (1994, 1996a, 1996b, 2006,
2012, 2019) é também um pesquisador que sintetiza pensamentos de autores igualmente
complexos – e, por vezes, opostos – criando um cabedal teórico sofisticado que busca dialogar,
sobretudo, com Niklas Luhmann – sendo ele próprio um dos principais intelectuais brasileiros
a difundir a sociologia luhmaniana no país – e Jürgen Habermas. O texto fundamental de
Marcelo Neves que trata da cidadania é “Entre subintegração e sobreintegração: a cidadania
inexistente” (NEVES, 1994). Neste texto, Marcelo Neves recupera uma evolução histórico-
jurídica do conceito de cidadania como direitos dos(as) cidadãos(ãs). A sua origem remete,
como vimos, às revoluções burguesas que construíram a noção dos direitos do homem (droits
de l’homme) voltada “para o direito à participação na formação da ‘vontade’ estatal” (NEVES,
1994, p. 254). Trata-se, segundo ele, de uma afirmação pré-estatal de direitos – anterior à
própria consolidação do Estado Moderno, residente na vontade de participar da sua construção
– que, após o surgimento do Estado Nacional, evolui para a noção de direitos do cidadão (droits
du citoyen). Nesta última visão, portanto, “a cidadania ficaria restrita aos ‘direitos políticos’”
(NEVES, 1994, p. 254). Essa era uma visão que, segundo Neves (1994), alcança inclusive Marx
na sua discussão sobre a questão judaica, que separava os direitos humanos (Menschenrechte)
dos direitos políticos, os primeiros sendo aqueles pertencentes aos membros da classe burguesa,
e os segundos como os dos que gozavam da possibilidade de participar da comunidade política.
A partir disso, Marcelo Neves (1994, p. 254) critica a conceituação de Thomas H. Marshall,
por entender que existem novas fases de consolidação dos direitos posteriores à concepção da
cidadania como direitos políticos do cidadão, mas, também, que vai além das “três fases
estudadas por Marshall, nas quais se conquistaram e ampliaram direitos cuja titularidade, em
última análise, era individual”. Ele remete, então, às três gerações de direitos – que hoje se
entendem mais como dimensões do direito –, consoante o já exposto em Lafer (1988) e
Bonavides (2004, 2010). Marcelo Neves (1994, p. 254) amplia essa evolução incluindo mais
duas fases, ficando então a primeira dada pelos direitos civis; a segunda, pelos direitos políticos;
a terceira, por direitos sociais (coletivos e difusos); a quarta, pela “exigência mais generalizada
de integração dos direitos coletivos à realidade dos Estados”; a quinta, pelo que chama de
“discriminações inversas”, valendo-se da expressão de Ronald Dworkin, “dirigindo-se a
compensar discriminações sociais negativas contra minorias étnicas, sexuais e deficientes
físicos”.
87
A partir disso, a leitura de Marcelo Neves (1994, 2012) é do ponto de vista da juridificação
(legislação, burocratização e judicialização). Segundo ele, seguindo uma leitura habermasiana
do Direito, o processo de juridificação desenvolveu-se no Estado moderno em quatro fases: a)
a dos clássicos direitos subjetivos privados vinculados ao surgimento do que ele chama de
Estado Burguês Absolutista, é portanto anterior à noção de cidadania porque é anterior à noção
de igualdade que lhe é central; b) a da positivação dos direitos políticos de caráter liberal, do
chamado por ele de Estado Burguês de Direito, com a consagração das liberdades negativas
(não ser impedido de agir) e dos direitos civis clássicos; c) a dos direitos públicos subjetivos
democráticos, com o surgimento do Estado Democrático de Direito, na juridificação do
processo de legitimação do Direito, com afirmação das liberdades positivas (criar seus próprios
direitos) e consagração dos direitos políticos; e d) a da positivação dos direitos sociais com a
conformação do que ele chama de Estado Democrático e Social de Direito.
A partir dessa perspectiva, portanto, não basta pensarmos apenas no direito a ter direitos se a
distribuição dos deveres também for desigual na sociedade. Assim, ele complementa a definição
de igualdade (núcleo central da cidadania) tomando por base um princípio de igualdade
ambivalente, para direitos e deveres, e, a partir disso, conceitua a própria cidadania “como
88
integração jurídica igualitária na sociedade”, contemplando essas duas esferas, nas quais a
integração refere-se ao sentido luhmanniano da incorporação funcional em um sistema parcial
do sistema social (no caso, o jurídico), e não como perspectiva de valores ou moralidade
compartilhada e absorvida na sociedade (NEVES, 1994, p. 261)50. Diante disso, Neves (1994,
2012) entende que a cidadania estará ausente ou será inexistente quando se generalizarem
relações de subintegração ou de sobreintegração no sistema constitucional, que é o que ocorre
em países de modernidade periférica, como o Brasil (1994, 1996, 2012). A ausência completa,
hoje em dia, é mais difícil, mas já foi mais generalizada como no tempo da escravidão.
Concluindo, conforme ele define, teremos então dois lados da cidadania na sociedade brasileira:
a) no lado dos subintegrados, não haverá acesso aos benefícios do ordenamento jurídico estatal,
mas haverá suas prescrições impositivas, ou seja, “os ‘subcidadãos’ não estão inteiramente
excluídos” porque são alijados dos direitos, mas não das obrigações, já que “não estão liberados
de deveres e responsabilidades impostas pelo aparelho coercitivo estatal, submetendo-se
radicalmente às suas estruturas punitivas” (NEVES, 2012, p. 248); e b) no lado dos
sobreintegrados, ocorre o inverso, pois “são titulares de direitos, competências, poderes e
prerrogativas, mas não se subordinam regularmente à atividade punitiva do Estado no que se
refere aos deveres e responsabilidades” (NEVES, 2012, p. 250). No entendimento de Neves
(1994, 1996, 2012), portanto, os subintegrados são parcialmente integrados ao sistema jurídico,
na medida em que são reconhecidos como devedores, indiciados, denunciados, réus,
condenados, enfim, os marginalizados. Ao passo que os sobreintegrados são credores, autores,
titulares de direitos, que conseguem instrumentalizar a Justiça para amplificar direitos que já
possuem ou para defender seus interesses e escapar das obrigações impostas pelo Estado, logo,
são os donos do poder.
Por fim, temos duas visões do lado antropológico, a questão da Cidadania e a Identidade, de
Elisa Maria da C. Pereira Reis, André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz, e a Cidadania Formal
50
Uma das dificuldades de se concatenar Habermas e Luhmann é justamente a oposição quanto à questão
valorativa e de consciência moral, que estão ausentes em Luhmann. Para ele, “a evolução social não se configura
como um processo de passagem para uma vida melhor, um maior grau de felicidade”, ou de elevação de um
determinado nível de consciência moral crítica, mas restringe-se à complexidade dos sistemas, seus graus de
liberdade e de especializações funcionais e à maneira como as pessoas se integram (fazem parte dele como
elementos operadores de códigos-diferença) aos sistemas parciais da sociedade, como o jurídico (NEVES, 2012,
p. 4).
89
A crítica de Botelho e Schwarcz (2012) é, portanto, à definição clássica moderna que coloca os
sujeitos como agentes passivos, estáticos, que desfrutam de direitos concedidos pelo Estado,
sem a devida politização e engajamento. Para eles, há que se reconhecer os processos subjetivos
de significação da cidadania que envolvem a construção das ideias e dos sentimentos de
pertencimento a um grupo, e que esses processos são ativos, fluidos e dinâmicos. Nesse sentido,
eles entendem que a cidadania marshalliana – por sua passividade – quase substituiu a noção
de solidariedade religiosa, abnegada, que espera ganhar o céu pela mera expectativa de que a
bondade frutifique no mundo pela mão de representantes messiânicos no Estado. Os autores
ainda destacam o processo conflituoso de construção da cidadania – ainda que incompleta –
brasileira, ressaltando o legado tétrico da escravidão. Eles ressaltam também que muito dessa
passividade do conceito moderno vem de uma posição liberal econômica, que entende que as
pessoas se integram na sociedade na medida em que lhes são atribuídas condições de consumo,
51
Na definição de Elisa P. Reis (p. 189), “pode-mos deduzir que a ‘cidadania’, o status daqueles que pertencem a
um Estado nacional, corresponde a uma identidade social ‘politizada’ que emerge de características políticas,
econômicas e culturais peculiares a uma sociedade. Tais peculiaridades nos permitem reconhecer que diferentes
modelos de cidadania podem regular os direitos a que se qualificam os membros de Estados nacionais di-versos,
assim como as obrigações a que eles estão submetidos”.
90
em um sistema capitalista, ou seja, com emprego e renda, sem necessidade de qualquer processo
de subjetivação. Por fim, comentam que, sendo um processo que não é estático, a “cidadania
sempre envolve uma dinâmica de inclusão e exclusão, suas reivindicações são sempre
reivindicações de inclusão no usufruto de direitos, e se criamos critérios para incluir alguém
estamos, necessariamente, também excluindo outros” (BOTELHO & SCHWARCZ; 2012, p.
11).
O trabalho de Roberto DaMatta (1980, 1991, 2001) é amplamente conhecido. Sua principal
obra a respeito da cidadania é “A casa e a rua” (DAMATTA, 1991), nela o autor identifica, na
separação público e privado, a origem de uma percepção de supercidadania na esfera privada,
no Brasil, oposta ao mundo da rua, do público, do Estado, que é visto sempre com descaso,
como explorador, desorganizado e ruim, onde todas as pessoas se comportam mal como se
submetidas a um código de conduta da subcidadania. DaMatta (1991) destaca três categorias
sociológicas fundamentais para compreender a realidade brasileira na relação da cidadania: a)
a casa, como espaço de intimidade, proteção, conforto, tradição e zelo; b) contraposta à rua,
como espaço público, impessoal, desaquecido de familiaridade; e c) o espaço místico, o outro
mundo, metafísico, que se encontra espraiado nas relações sociais brasileiras. Do embate destas
categorias, a oposição principal que permanece é entre o público e o privado, entre casa e rua,
dado que o espaço místico alcança as duas esferas.
Assim, na vida privada, segundo DaMatta (1991, 2001), somos cuidados, ordeiros, pacíficos,
somos supercidadãs(ãos) dedicados ao zelo das nossas propriedades, ao passo que na vida
pública somos indiferentes, omissos, descuidados, incautos, somos subcidadãs(ãos) em uma
zona que, por ser de todas as pessoas, não é de ninguém. O mundo da casa e o mundo da rua,
embora opostos, se complementam, segundo o DaMatta (1991), e neles se entrechocam o
trabalho, a familiaridade, a fluidez do movimento, a surpresa e a tentação. Na sua visão, em
casa, somos nós e nas ruas, somos outros. Em casa, estamos confortáveis, convidamos,
recebemos. Na rua, escondemos, evitamos, desconfiamos. Assim, conclui: o “espaço público é
perigoso e como tudo o que o representa é, em princípio, negativo porque expressa um ponto
de vista autoritário, impositivo, falho, fundado no descaso e na linguagem da lei que, igualando,
subordina e explora” (DAMATTA, 1991, p. 65). Embora a análise de DaMatta (1991, 2001)
reconheça as perversidades da escravidão, ele a toma como algo que, mesmo sendo espalhado
91
e determinado pela dualidade senhor/escravo, também era pulverizado em relações que faziam
com que o escravo doméstico, da casa, gozasse de tratamento diferenciado em relação ao da
rua, o da produção e, posteriormente, o ex-escravo em situação de mendicância.
Além desta característica, DaMatta (1991, p. 72) também aponta outra questão na cidadania, a
predominância de uma visão legalista, que ele chama de “jurídico-político-moral”, que marca
a dependência da esfera do Estado – que se repudia no Brasil – para construir as perspectivas
de direito da sociedade. Contraposta a esta visão, ele apresenta a ideia de cidadania substantiva
que, segundo ele, “comporta uma dimensão sociológica básica, já que ser cidadão, e ser
indivíduo, é algo que se aprende, e é algo demarcado por expectativas de comportamento
singulares”, é algo que envolve cultura, educação e identidade. Em muitos dos estudos culturais
contemporâneos, essa visão de cidadania substantiva tem sido trabalhada, principalmente nos
trabalhos de Engin Isin (2000) e Isin e Turner (2002). A análise de DaMatta (1980, 1991, 2001),
no entanto, acrescenta pouco ao que já fora discutido e, ainda, de fato, apresenta os problemas
citados por Jessé Souza e Evelina Dagnino que ajudam a colocar o Estado como representação
de tudo o que há de ruim e o privado como tudo o que é bom. Nesse sentido, interessa-nos
pouco a sua contribuição.
Como base no nosso referencial teórico, compartilhamos – por meio de uma conexão via
Weber, Arendt e Habermas, e, pela perspectiva histórica – as propostas de Evelina Dagnino,
Jessé Souza e Marcelo Neves, de um lado, e de Murilo de Carvalho e Guilherme dos Santos,
de outra. Assim, em uma tentativa de síntese, podemos dizer que a busca por uma cidadania no
92
Brasil é o contínuo processo conflituoso de construção histórico-social dos direitos, dos deveres
e das identidades sociais, mediado pelas relações entre Estado e Sociedade de modo
diversificado e heterogêneo, que vem se alterando por meio do embate de diferentes projetos
políticos, e que somente será aprofundado a partir de uma ampla luta política por
reconhecimento irrestrito de todas as pessoas como titulares de direitos e de obrigações, a serem
integradas de modo equilibrado no sistema social.
Quadro 6 – Cidadania no Brasil: síntese das abordagens teóricas
Estadania e Cidadania
Cidadania no Cidadania Cidadania e Cidadania Cidadania e
Cidadania Nova Cidadania Formal e
Brasil Regulada Subcidadania Inexistente Identidade
Negativa Substantiva
Wanderley Elisa M. da C. P.
Principais José Murilo de
Guilherme dos Jessé de Souza Marcelo Neves Evelina Dagnino Roberto DaMatta Reis; André Botelho
Autoras(es) Carvalho
Santos e Lilia M. Schwarcz
Ciência Política Sociologia,
Matriz Teórica Sociologia e Ciência
(ênfase nas História Sociologia Direito Antropologia Antropologia e
Principal Política
instituições) História
P. Bourdieu, Charles
Niklas Luhmann; J. Hannah Arendt; Thomas H. Marshall;
Principais Max Weber e Taylor, J. Habermas Max Weber e
Thomas H. Marshall Habermas; Thomas Jürgen Habermas; Reinhard Bendix;
Diálogos Teóricos Thomas H. Marshall Weber; Thomas H. Thomas H. Marshall
H. Marshall Antonio Gramsci Max Weber
Marshall
Direitos Civis,
Integração jurídica
Núcleo da Direitos Civis, Direitos Civis, Direitos Civis, Políticos e Sociais e Identidade Social
igualitária na Direito a ter Direitos
Cidadania Políticos e Sociais Políticos e Sociais Políticos e Sociais Identidade Política e Politizada
sociedade
Social
Sujeitos sociais
Acesso a direitos Conservadorismo
ativos (agentes
Acesso a direitos dependente da liberal e autoritário Desequilíbrio na Coexistência de Cidadania como
políticos) definem o
condicionado à definição pelo construiu uma visão distribuição de direitos definidos processo de
Características estratificação Estado, dada a falta moralmente direitos e de deveres
que consideram ser
legalmente e reconhecimento e
seus direitos e lutam
ocupacional de engajamento hierarquizada da na sociedade questões indentitárias subjetivação
pelo seu
popular sociedade.
reconhecimento.
Liberalismo, Moralidades
Principais entraves Autoritarismo, Construção do
Autoritarismo, Falta diferentes entre o Processo de exclusão
liberalismo, transição Escravidão, Direito no Brasil;
à consolidação da escravidão mão de
Escravidão
moralidade das elites passado autoritário
de engajamento Privado e o Público, social desde a
cidadania no Brasil social; Passado de inclusive na escravidão
obra assalariada, (Escravidão)
Escravidão Escravidão
Relação com
Inovação em História brasileira é Inclusão da Necessidade de Os vínculos sociais É um processo
democracia, avanços Questões e morais
uma pirâmide distribuição engajamento não formais-legais dinâmico, sempre em
relação ao conceito e recuos, culturais do Ocidente
invertida da equilibrada dos político, confluência contribuem para construção, que não
clássico moderno dependência das periférico afetam a
proposição deveres, não só dos perversa dos projetos formação da depende só do
de T. H. Marshall categorias cidadania no Brasil.
marshalliana. direitos políticos cidadania. Estado.
profissionais
Cidadãs(ãos) e Pré- Cidadania de 1ª, 2ª, e Sobrecidadãs(ãos) e Sobreintegrados e Cidadania Ativa e Supercidadãs(ãos) e
Classificações cidadãs(ãos) 3ª classes Subcidadãs(ãos) Subintegrados Passiva Subcidadãs(ãos)
Inclusão e Exclusão
Nesta parte, iremos analisar as mudanças trazidas para a Administração Pública e a Cidadania
em função de um processo particular, a financeirização. Esse é um processo que está
relacionado ao desenvolvimento histórico do capitalismo e que tem impactos diretos na vida
social, seja ela analisada do ponto vista geral do capitalismo, como modo de produção, seja no
âmbito da vida cotidiana em suas interações sociais mais particulares. Com a financeirização,
conecta-se outro fenômeno fundamental para a nossa análise, a desigualdade, e ambos,
influenciados e impulsionados pela globalização e pelo neoliberalismo, afetaram tanto o debate
quanto as práticas organizativas de Administração Pública, assim como a maneira de se
compreender a cidadania.
Um dos traços mais marcantes da virada do século XX para o XXI foi o intenso processo de
financeirização (financialization) das relações sociais (JESSOP, 2017; SAWYER, 2013; PIKE
& POLLARD, 2010). Esse processo, na verdade, tem sido discutido por pensadores de
diferentes correntes teóricas, como Arrighi (1996, 2008), Chesnais (1996, 2016), Lipietz
(1986), Harvey (2008), Minsky (2008, 2016), Epstein (2005) e Sawyer (2013), e, mais
recentemente por economistas como Palley (2013), Stiglitz (2012, 2019), Deaton (2013),
Piketty (2015) e Milanovic (2016), estes analisando especificamente o impacto desse fenômeno
no crescimento econômico e na desigualdade, além do trabalho de Dowbor (2017) e Lavinas
(2017), no Brasil. Mas o que seria, de fato, essa financeirização? Sawyer (2013, p. 16) defende
que há duas correntes principais de interpretação desse fenômeno. Uma que a trata como um
“objeto de estudo nos termos gerais da evolução quantitativa e qualitativa do setor financeiro e
do papel das finanças” na economia, ou seja, cuida do crescimento do sistema financeiro e das
empresas que o compõem. Nas definições trazidas da economia52, o setor financeiro diz respeito
52
Existem diferenças marcantes entre as abordagens financeiras da Economia e da Administração. Como
esclarecem Dornbusch, Fischer e Startz (2013, p. 333), e. g., na linguagem administrativa (que acabou por dominar
a linguagem do “uso comum” das questões financeiras), “‘investimento’ em geral refere-se à compra de ativos
financeiros ou físicos existentes. Por exemplo, dizemos que alguém ‘investe’ em ações, títulos, ou em uma casa,
quando ele ou ela compra o ativo. Em macroeconomia, o ‘investimento’ tem um significado mais preciso, técnico:
95
aos mercados monetários53 e não monetários54 onde se transacionam ativos que não sejam
propriamente bens físicos manufaturados (DORNBUSCH, FISCHER & STARTZ, 2013) e que,
portanto, incorporam principalmente o mercado de moeda nacional (monetário), de crédito, de
moeda estrangeira (cambial) e de capitais (títulos de dívida e de propriedade) (GALVÃO et al.,
2006) que, conjuntamente, com “as instituições financeiras participantes, as inter-relações entre
eles e os regulamentos e regras de intervenção do poder público na organização e supervisão
das operações, definem um sistema financeiro” (CARVALHO et al.., 2007, p. 221, grifos
nossos). O setor financeiro se distingue, portanto, do setor chamado real da economia porque
“[n]o setor real é que se realizam as operações de geração de bens (produtos tangíveis) e de
serviços não financeiros (produtos intangíveis, como comunicações, transportes, comércio)”
(GALVÃO et al., 2006, p. 1-2).
investimento é o fluxo de gasto que soma-se ao estoque de capital físico”, nesse sentido, a economia privilegia a
discussão financeira segundo a análise das interações dos agentes os mercados financeiros (mercados de ativos
monetários e não monetários que se distinguem da economia real) e não estritamente as decisões de aplicação de
recursos (principalmente das empresas) tal como no sentido de “investimento” para a Administração. Isso é
importante porque, se tomarmos a ideia de financeirização no sentido administrativo, toda o capitalismo é
financeirizado desde sempre, já que tudo é investimento financeiro de alguém em algum mercado, financeiro ou
não, seja na indústria ou no mercado de capitais, tudo é investimento financeiro. Nossa discussão de
financeirização, portanto, é mais econômica, sociológica e filosófica se comparada a Administração Financeira.
Além disso, o foco da Administração são, como dizem os manuais, os “negócios financeiros de organizações de
todos os tipos — financeiras ou não, abertas ou fechadas, grandes ou pequenas, com ou sem fins lucrativos”
(GITMAN, 2010, p. 4), um foco intra-firmas, as outras áreas citadas, por sua vez, e preocupam mais com as
repercussões das interações destas entre si e com demais agentes (famílias, governo) na sociedade como um todo.
53
Na definição de Simonsen e Cysne (2009, p. 37), “Sistema (Setor) Financeiro Monetário, ou Sistema (Setor)
Financeiro Bancário, composto pelo Banco Central e pelos bancos comerciais. Esta parte do setor financeiro
costuma receber maior atenção em livros de macroeconomia, porque é aquela responsável pela criação de meios
de pagamento”.
54
Novamente, segundo Simonsen e Cysne (2009, p. 37), “costuma-se subdividir o Sistema Financeiro Não
Monetário em: (i) demais instituições financeiras, não captadoras de depósitos à vista; (ii) auxiliares financeiros;
(iii) entidades ligadas aos sistemas de previdência e seguros; (iv) entidades administradoras de recursos de
terceiros; e (v) entidades operadoras de sistemas de liquidação”.
96
mercados financeiros no mundo todo ao longo da história, mas, como ele mesmo ressalva, é
preciso reconhecer que “a financeirização transforma o funcionamento do sistema econômico
tanto no nível macro quanto no micro”, ou seja, ela também afeta diretamente as pessoas,
individualmente.
55
Essa é uma das grandes distinções ocorridas nas diversas interpretações do capitalismo que marcam o
distanciamento de pensadores que se mantém fiéis à análise original de Karl Marx daqueles que partem de suas
interpretações (como de David Ricardo ou mesmo de Adam Smith) para acrescentar novas reflexões. Boaventura
de Sousa Santos (2003) faz uma leitura dessas distinções ocorridas no marxismo no texto “Tudo o que é sólido se
desfaz no ar: o marxismo também?”. Nesse texto, ele discute que, para os intérpretes da Teoria Crítica, da
Sociologia Histórica e do que hoje se convencionou chamar de Realismo Crítico, que era necessário reconhecer
que Marx errara algumas de suas previsões (na verdade, não teria como acertá-las, já que ele não pôde ver muito
dos desenvolvimentos subsequentes da história do capitalismo, do Direito e das organizações), e que o marxismo,
para avançar, requereria uma profunda revisão em busca de atualidade. Nesse sentido, ele destaca os trabalhos de
Daniel Bell e Alain Touraine e a identificação de uma sociedade pós-industrial, que rompem com o marxismo
estrito, e as revisões e críticas ao Materialismo Histórico feitas por Habermas, Giddens e Aaronowitz.
56
Macrossociologia histórica é o termo que o próprio Arrighi (2003) utiliza para discutir tanto a Sociologia
Histórica e Comparativa (SHC) quanto a Economia Política dos Sistemas-Mundo (EPSM), que são abordagens
que combinam teorias da sociologia com análise histórica para interpretar grandes mudanças no mundo social ao
longo de eventos de grande duração. É uma análise bastante difundida no estudo das relações internacionais e tem
como autores principais Charles Tilly, Immanuel Wallerstein, André Gunder Frank e o próprio Arrighi, bastante
influenciados pela noção de longue durée do historiador Fernand Braudel.
97
Do ponto de vista organizacional, a análise feita por essa segunda perspectiva é a que nos
interessa mais. Isso porque ela entende que o capitalismo se desenvolveu segundo uma relação
de complementação entre a burocracia pública e a privada, com a construção de um aparato
institucional que combinava a formação do Estado Moderno e das Grandes Corporações
impulsionadas, incentivadas e protegidas por aqueles, e que convergiram para dois períodos
específicos: a) a produção em massa, onde ocorre a expansão das grandes organizações
multinacionais e a formação de um Estado de bem-estar social intervencionista, de matriz
keynesiana, que impulsiona a padronização e a economia de escala, e cria o aparato de proteção
aos trabalhadores para que eles sustentem o consumo massificado, tendo na formação dos
mercados financeiros apenas a promoção da industrialização como lógica dominante do
desenvolvimento do capitalismo; e b) a produção flexível, globalizada, intensa em tecnologia e
típica de uma sociedade totalmente informatizada, que coloca em disputa o capital financeiro
com o industrial, requerendo uma total financeirização e privatização da sociedade, o que leva
a demandar a substituição do Estado de Bem-Estar Social pelo Estado Mínimo e Neoliberal
(BOYER, 1990; LIPIETZ, 1986; AGLIETTA & ORLÉAN, 1984; ARRIGHI, 1996;
CHESNAIS, 1996). Do ponto de vista organizacional, no entanto, é importante reconhecer que
57
É interessante perceber que o reconhecimento da financeirização, da globalização e do neoliberalismo como
eventos centrais para compreensão de uma nova etapa do capitalismo tem se tornado bastante presente na literatura
social, mesmo com interpretações de escolas distintas que mudam por vezes suas causas e eventuais consequências,
mas não os negam, tal como chegou a ocorrer no passado. Assim, esses eventos têm sido amplamente reconhecidos
e estudados por um amplo espectro de autores que vão de prêmios Nobel da economia, como Stiglitz (2002, 2003
e 2012) e Angus Deaton (2013), expoentes da geografia crítica como Milton Santos (2001) e David Harvey (2008),
teóricos da macrossociologia histórica como Giovanni Arrighi (1996, 2003 e 2008), pelos regulacionistas
franceses, especialmente com Robert Boyer (1990), e, mesmo com autores de categorização complexa como
Anthony Giddens (1991, 1996 e 2006), além de filósofos tão distintos entre si como Habermas e Slavoj Žižek
(2012a, 2012b, 2017). E a ocorrência da crise financeira de 2007 e 2008 veio a confirmar muitas das previsões
destes pensadores.
98
o aspecto fordista desse primeiro período fora reconhecido e destacado muito antes destes
autores por Tragtenberg (2005, 2006), que os abordava segundo uma linha que combinava
Taylor-Ford-Fayol e posteriormente Elton Mayo na construção de uma sociedade falsamente
harmonizada em torno da produção industrial.
O primeiro momento (da produção em massa) alcançaria seu ápice no chamado período fordista
do capitalismo no século XX, cujo zênite David Harvey (2008) demarca como sendo de 1946
a 1973, período conhecido na literatura da Escola Francesa da Regulação como sendo o dos
trinta anos gloriosos do capitalismo (Les Trente Glorieuse), e que Chesnais (2016, p. 26)
defende ser, na verdade, um “parêntese” de estabilidade e crescimento em um histórico de crises
do capitalismo. Segundo Harvey (2008, p. 117), os trinta gloriosos são denominados assim por
serem um “longo período de expansão” e que “tem como base um conjunto de práticas de
controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações político-econômicas
denominado fordista-keynesiano”. Esse conjunto de práticas levou a uma sociedade de massas
tanto na produção quanto no consumo, marcada pela rigidez na forma de acumulação de capital
dada pelo grande foco no controle da produção, na padronização, na replicação e na
popularização do consumo. Harvey (2008) defende ainda uma data simbólica anterior, de início
dessa época no capitalismo. Seria o ano de 1914, quando Henry Ford introduziu a rotina de oito
horas e cinco dólares de recompensa, colocando a indústria capitalista e o Estado burocrático
protetor desta indústria como grandes protagonistas organizacionais do capitalismo. Daí ele
chamar esse período inteiro de fordista ou fordista-keynesiano. Dadas as consequências deste
pacto público-privado que culminou na proliferação de monopólios e oligopólios, autores como
Braverman (1974/1998), Baran e Sweezy (1966) e Foster e Magdoff (2009), nomeiam-no de
Capitalismo Monopolista, para destacar a influência das grandes corporações atuando como
monopólio ou como cartel na dinâmica do capitalismo mundial, atuação que seria amplamente
patrocinada pelos Estados Nacionais. Foi esse mesmo arranjo que Habermas (1992) denominou
de capitalismo tardio ou avançado, só que não destacando apenas essas interações
organizacionais, mas, também, suas consequências culturais e de racionalidade.
Como constatação histórica, essa dinâmica dada entre organizações produtivas monopolistas
ou oligopolistas e o Estado burocrático foi determinante para o desenvolvimento do
capitalismo, tanto que mesmo estudiosos não estritamente alinhados ao marxismo e à
99
perspectiva crítica, como Alain Touraine (1971) e Daniel Bell (1973/1999), e mais
recentemente Kumar (2005), reconhecem o fenômeno, mas preferem caracterizá-lo não como
uma fase do capitalismo, mas como a formação de um tipo específico de sociedade, a sociedade
industrial. De qualquer maneira, tal como Habermas (1992, p. 33) afirma, nessa fase, que
inaugura para ele a formação do capitalismo tardio, esse arranjo (Estado-Monopólios privados)
consolida o “capitalismo organizado ou regulado pelo Estado”, onde “o Estado intervém no
mercado à medida que as lacunas funcionais se desenvolvem”, ou seja, a burocracia pública
passa a existir como um dos maiores contrapesos às falhas do mercado onde atuam as
burocracias privadas. A análise de Habermas (1992, p. 36) nesse sentido é feita sob a ideia de
capitalismo tardio (Spätkapitalismus) que aponta o amálgama formado pela relação Estado
burocrático e empresas no Mercado, quando “o aparato estatal não mais, como no capitalismo
liberal, apenas assegura as condições gerais de produção (no sentido dos pré-requisitos para a
existência continuada do processo de reprodução), mas está agora ativamente engajado nisso”.
A partir de 1973, no entanto, conforme Harvey (2008, p. 135) argumenta, tem-se a transição
desse regime para o regime de acumulação flexível, quando algumas rigidezes produtivas
anteriores se mostraram problemáticas, em especial, a “rigidez dos investimentos de capital fixo
de larga escala e de longo prazo em sistemas de produção de massa que impediam muita
flexibilidade de planejamento e presumiam crescimento estável em mercados de consumo
invariantes”.
chegar-se à mais contundente delas, que foi a crise financeira de 2007-2008 (ROUBINI &
MIHM, 2010; STIGLITZ, 2012; GONTIJO & OLIVEIRA, 2011). Essa nova realidade fez
inclusive os teóricos do Capitalismo Monopolista passarem a configurá-lo como Capitalismo
Monopolista-Financeiro (SAWYER, 1988; FOSTER & MAGDOFF, 2009).
A defesa de que a financeirização é uma nova etapa do capitalismo nos parece correta, dado o
nível de hegemonia que o capital financeiro encontrou em um ambiente de produção flexível,
mas não é correto deixar de reconhecer que, na história do capitalismo, impulsos de
financeirização fazem parte da evolução cíclica deste sistema econômico. Assim, de um ponto
de vista que combina adequadamente essas duas análises, talvez a melhor leitura seja a proposta
por Giovanni Arrighi (1996, p. 247), que vê o século XX como um longo período58 iniciando-
se na verdade, em 1873-75, dado que “as estratégias e estruturas de capital que moldaram nossa
época [o século XX] surgiram nos últimos 25 anos do século XIX”. As estruturas e estratégias
a que Arrighi (1996) se refere são exatamente o alinhamento entre o capital produtivo da
indústria de massa com a proteção institucional dada pelo Estado Nacional, que, por mais que
tenha sido enfatizada no fordismo-keynesianismo, ela tem origens anteriores. Essa é uma
argumentação com a qual o próprio Braverman (1974/1988, p. 175) concorda quando diz que
o “capital monopolista teve seu início, isso é geralmente aceito, nas últimas duas ou três décadas
do século XIX”. O que Arrighi (1996) está destacando aqui é, na verdade, a importância da
58
Do ponto de vista político, no entanto, é sim possível ver a evolução do século XX como breve, tal qual
Hobsbawm (1995) propôs, indo da primeira Guerra em 1914 ao fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS) em 1991, já que, em termos de alternativas políticas ao regime capitalista, essa foi a maior experiência já
vista e tentada na história, e, neste aspecto, ele talvez tenha razão, esse evento pode ser sim tomado como o mais
importante do século XX porque é único e de enorme impacto histórico. E é bastante interessante perceber,
também, que este interregno coincide com o ápice do fordismo e, depois, com o seu declínio e consolidação da
acumulação flexível propostas por Harvey (2008), já que ele também representa o momento de sagração do
neoliberalismo, do Consenso de Washington e da globalização como fenômeno irrefreável no mundo virtualmente
integrado pela tecnologia da informação, ou seja, a consolidação do pensamento único ao qual Milton Santos
(2001) faz referência e que se tornou preponderante após 1991. Do ponto de vista organizacional, no entanto, a
visão de Arrighi (1996) nos parece enfatizar melhor a questão do papel das organizações na determinação do
capitalismo no século XX, onde ele expõe tanto a burocracia pública (Estado) quanto a formação e disputa dos
mercados (financeiro versus produtivo), acompanhadas pela maior precisão na caracterização de quando essa
estrutura organizacional é montada, na era dos impérios de Hobsbawm (1873-1914), e, principalmente, quando
ela passa a existir como uma estratégia de formação hegemônica, a da pax americana em substituição à pax
britannica anterior. Essa visão de Arrighi (1996) nos parece apresentar a complementação necessária à análise
habermasiana do capitalismo tardio, por enfatizar questões de organização, produção e relações internacionais que
não são o foco de Habermas. Além disso, creio que isso só é possível porque Arrighi, tal como Habermas,
reconhece uma base weberiana em sua análise que ele combina a alguns aspectos antecipados por Marx, ao passo
que David Harvey e Eric Hobsbawm tentam se manter o mais próximo possível de Karl Marx. E, como seguimos
a análise proposta por Paes de Paula (2016) para a análise organizacional, entendemos que essas opções teóricas
não são excludentes, desde que se saiba trabalhar adequadamente seus conceitos, porque elas não se constituem
como paradigmas kuhnianos incomensuráveis para nós.
101
análise organizacional para a compreensão deste período histórico. Ele coloca como
fundamental, na evolução do capitalismo, as organizações, ou seja, o Estado e as empresas, mas
mais do que isso, ele apresenta como as empresas entram em disputa nos mercados, opondo o
setor financeiro ao setor produtivo, e como se associam às políticas e estratégias
governamentais de construção de uma hegemonia internacional fundamental sem a qual o
capitalismo não tem como sobreviver: a expansão de mercados que Adam Smith previra como
necessário à sobrevivência deste, e que tanto ele, quanto David Ricardo e Karl Max colocaram
como obstáculo à sua estabilidade e existência (ARRIGHI, 1996, 2008). Para fazer essa análise,
portanto, Arrighi dialoga com Alfred Chandler Jr., Taylor e Ford, mas também com Ronald
Coase, Douglas North e Oliver Williamson, e com Schumpeter, Max Weber, Adam Smith,
David Ricardo e Karl Marx. Ou seja, autores que trabalharam conceitualmente a questão
organizacional (especialmente da burocracia) dentro da história do capitalismo. Curiosamente,
esta combinação de diálogos e autores – à exceção dos institucionalistas norte-americanos – é
a que também se encontra presente em Prestes Motta (1986), Tragtenberg (2005, 2006) e
Guerreiro Ramos (1981, 2006).
Arrighi (1996), portanto, acaba por fazer uma análise que lhe permite uma interpretação capaz
de combinar as duas perspectivas propostas por Sawyer (2013), ou seja, a de que a
financeirização não é, na verdade, única na história do capitalismo, ainda que seja mais
acentuada agora e que represente uma nova fase (mas que não se caracteriza assim apenas pela
financeirização, mas também pelo renascimento da hegemonia asiática) e, ao mesmo tempo,
faz parte de uma dinâmica de expansões do setor financeiro ao longo da história. Ela teria
ocorrido, por conseguinte, outras vezes, e tem se repetido ciclicamente, algo que tem sido
bastante abordado por economistas contemporâneos que discutem as crises recentes do
capitalismo associadas ao atual processo de financeirização, como é o caso de Piketty (2015),
Roubini e Mihm (2010), Deaton (2013), Milanovic (2016) e Stiglitz (2002, 2003 e 2012). Para
argumentar isso, ele se vale da noção de ciclos sistêmicos (inspirados principalmente em Henri
Pirenne, mas também em Kondratieff e Schumpeter) combinando-a à análise de Fernand
Braudel sobre expansão financeira, além da lei geral do capitalismo, tal qual apresentada por
Karl Marx no esquema D-M-D’:
“[A] fórmula geral do capital apresentada por Marx (DMD’) pode ser
interpretada como retratando não apenas a lógica dos investimentos
102
Embora Arrighi (1996) reconheça a similaridade de sua análise com a feita por David Harvey
e pelos regulacionistas59, ele entende que essa fase não se restringe apenas a um período fordista
que vai de 1914 a 1973; trata-se, na verdade, de um longo período, que acompanha a construção
da hegemonia norte-americana no capitalismo mundial e que encontra sim, uma transição na
década de 1970, mas não apenas de modo de produção, e sim de hegemonia, haja vista que este
período marca o “renascimento econômico da Ásia oriental” e o início de um novo ciclo de
hegemonia capitaneado, sobretudo, pela China60 (ARRIGHI, 2008, p. 17). Arrighi (1996, p.
87), no entanto, também destaca tal qual Harvey, a importância das empresas privadas e de sua
associação ao Estado neste processo, por exemplo, ao dizer que a “ascensão do sistema
contemporâneo da livre empresa, como estrutura dominante da economia capitalista mundial,
constitui o estágio mais avançado de um processo que já dura seis séculos de diferenciação
entre empresas comerciais e governos”. O efeito dessa dinâmica de expansões financeiras e
materiais é que os momentos de expansão financeira coincidem com épocas de transição de
59
Na sua principal obra, “O Longo Século XX”, Giovani Arrighi (1994, p. 4) reconhece que “[as] indagações que
geraram este estudo são semelhantes às de Harvey. Mas as respostas são buscadas numa investigação das
tendências atuais à luz de padrões de repetição e evolução que abarcam todo o curso do capitalismo histórico como
sistema mundial”, ou seja, embora ele guarde afinidade com o mote, a ênfase dada por Arrighi é na longue durée
braudeliana, que trata o capitalismo segundo essas grandes ondas cíclicas de desenvolvimento. Sobre os
regulacionistas, a grande diferença é na novidade que o pós-fordismo traria para o capitalismo, já que, segundo
ele, “[n]ossa tese é a de que, de fato, a história do capitalismo está atravessando um o momento decisivo, mas essa
situação não é tão sem precedentes quanto poderia parecer à primeira vista” (ARRIGHI, 1996, p. 1).
60
Comentários sobre o desenvolvimento da China também estão presentes nos autores clássicos como Smith, Marx
e Weber. Os três demonstraram assombro com a capacidade organizacional e o poderio chinês, tanto que Marx e
Weber encontraram ali as raízes da burocracia e Smith viu na China uma potência latente. É impressionante que
essa é uma análise que Tragtenberg (2005, 2006) também fez, mas que foi bastante negligenciada na teoria
organizacional do século XX, que preferiu enfatizar a robustez do taylorismo e só depois, ao final do século XX,
sentiu-se ameaçada pelo toyotismo. Arrighi (1996, 2008) vinha realizando a previsão do retorno chinês à
hegemonia global desde meados da década de 1970, algo pouco estudado à época. E, hoje, historiadores
conservadores como Niall Ferguson (2008) divulgam o nosso século como sendo o da formação da chimérica
(junção dos modos de produção chineses e norte-americanos), e economistas como Stiglitz (2002, 2003, 2012)
apontam como a China conseguiu sobreviver ao neoliberalismo e despontar como a provável maior potência do
século XXI.
103
De outro lado, quando observamos os indicadores disponibilizamos pelo Banco Mundial para
o valor adicionado mundial (saída líquida de um setor após somar todos os outputs e subtrair
inputs intermediários) produzido pelo setor industrial em relação ao PIB, tomando por indústria
os dados de mineração, manufatura, construção, eletricidade, água e gás, calculado sem deduzir
depreciação de ativos fabricados ou esgotamento e degradação de recursos naturais, conforme
a Classificação Internacional Industrial de Atividades Econômicas (ISIC - International
Standard Industrial Classification of All Economic Activities), da ONU, o cenário que vemos é
o oposto da financeirização. Conforme disposto no gráfico 2, observamos uma queda
persistente de 1995, quando representava 31,99% do PIB, até 2016, quando alcança 25,40%,
ou seja, um decrescimento de 21%.
105
Gráfico 2 – Valor Adicionado pela Indústria como proporção do PIB – de 1995 a 2016
Existe, no entanto, outro aspecto dessa financeirização que nos importa diretamente. Para além
de ser um movimento intensificado na virada do século XX para o XXI, a existência das
expansões financeiras com a transição para os regimes flexíveis de produção, e o recuo do
Estado de Bem-Estar Social com o Neoliberalismo, acarretou outro fenômeno fundamental para
compreender o que aconteceu com a discussão de cidadania: a desigualdade. Nesta linha, uma
das análises de maior repercussão ocorridas recentemente foi a realizada por Piketty (2015).61
Com o mesmo corte histórico, do último quartel do século XX, ele nos diz: “desde a década de
1970, a desigualdade voltou a aumentar nos países ricos, principalmente nos Estados Unidos,
61
Piketty (2015), tal qual Giovanni Arrighi, realiza sua construção teórica recuperando brevemente as análises de
Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx. Algo que também Roubini e Mihm (2010) fazem para discutir as crises
financeiras do capitalismo. A diferença é que Piketty (2015) reformula a lei geral de Marx, e, de certa forma, acaba
enfatizando a questão da financeirização. Ironicamente, e até por isso, Piketty (2015) nomeia a sua principal obra
até então de “Capital”, mas de o “Capital no Século XXI”, tal como a principal obra de Marx. Talvez porque ele
esteja imaginando que tenha corrigido a lei geral do capitalismo marxiana ou mesmo porque se trata de uma obra
que, metodologicamente, também é profundamente abrangente e extensa, embora não tanto quanto a de Marx –
haja vista as imbricadas questões filosóficas, sociológicas e históricas presentes na obra do pensador alemão, mas
ausentes na de Piketty – dadas as mais de 1.000 páginas de discussão pikettiana considerando-se enormes trechos
de apêndices estatísticos.
106
onde a concentração de renda na primeira década do século XXI voltou a atingir — e até
excedeu — o nível recorde visto nos anos 1910-1920” (PIKETTY, 2015, p.22). Ao estudar o
padrão de desenvolvimento histórico do capitalismo, Piketty (2015, p. 57) identifica uma outra
regularidade, a que ele chama de “primeira lei fundamental do capitalismo”, dada por α = r ×
β, onde, r é a taxa de remuneração (ou taxa de rendimento) média do capital e β é a razão
capital/renda. A partir dessa formulação, Piketty (2015, p. 344) chega ao que ele denomina a
terceira lei fundamental do capitalismo62, dada por r > g, relacionando, portanto, a taxa de
remuneração do capital ou retorno do capital (r) à taxa de crescimento da economia (g). Se o
retorno do capital for maior que a taxa de crescimento da economia, então, haverá uma
tendência de concentração de riqueza e, assim, de piora na sua distribuição em uma economia,
aumentando deste modo a desigualdade. Se tomarmos r como uma medida de financeirização,
chegaríamos a uma conclusão similar à de Arrighi (1996) e à de Harvey (2008) de que o
capitalismo enfrenta processos de desestabilização (crise ou aumento de desigualdade) quando
há uma expansão financeira (D-D’) descasada da expansão material (M-M’). E, assim, como
conclui Varoufakis (2016, p. 62), “à medida que as finanças cresciam em importância, mais
propensas a crises econômicas foram ficando nossas sociedades”.
62
Piketty (2015) ainda apresenta a segunda lei fundamental do capitalismo, dada por segunda lei fundamental do
capitalismo dada por β = s/g, onde β, que é a razão capital/renda, guarda uma relação direta com s é a taxa de
poupança de um país e g a taxa de crescimento de sua renda nacional. Essa segunda lei não nos interessa
diretamente neste momento, por isso optamos por citá-la apenas aqui nesta nota.
63
Nesse caso, defendemos que a abordagem de Piketty (2015), mesmo apresentando problemas, está correta no
movimento geral da desigualdade no século XX. Dentre os seus críticos, Milanovic (2016, p. 50) diz que “[a]s três
teorias mais influentes da desigualdade de renda têm um problema prima facie para explicar os fatos modernos. O
problema de Kuznets e Tinbergen é com o período mais recente, e o de Piketty com o período anterior ao século
XX”, pois falhariam no desenho dos ciclos econômicos em algum momento conforme os dados disponíveis. De
qualquer forma, para a nossa análise, no século XX, a lógica de Piketty estaria correta. De outro lado, Acemoglu
e Robinson (2015) questionam as causas da desigualdade apresentadas por Piketty porque ele, tal qual David
Ricardo e Karl Marx bem antes, não teria dado a devida relevância ao aspecto institucional da desigualdade. Como
nossa pesquisa não busca esclarecer a natureza da desigualdade, apenas reconhecê-la como fenômeno relevante
no capitalismo tardio (o que eles também reconhecem), essa crítica também não caberia ao nosso trabalho. E,
críticas como a de Mankiw (2014, p. 9), para quem “a desigualdade de riqueza não é um problema em si”, são
insustentáveis diante das repercussões para a cidadania que esperamos apresentar no curso do trabalho.
107
Gráfico 3 – Participação na Renda Nacional antes dos Impostos, agregados para o Mundo, de
1980 a 2016
Ainda em relação ao processo de desigualdade, existe um dado que chama mais a atenção que
é o fato de que a parcela de população que representa o 1% mais rico do mundo não só concentra
um nível muito elevado de absorção da renda (demonstrando haver desigualdade mesmo no
topo dos 10% mais ricos), como veio progressivamente aumentando a sua participação até
2006, quando chegou a acumular 22,12%. A partir de 2006, a sua participação diminui, mas
permanece alta, chegando a 20,44% em 2016 (Gráfico 4).
108
Gráfico 4 – Participação na Renda Nacional antes dos Impostos, agregados para o Mundo, do
1% mais rico da população, de 1980 a 2016
Joseph Stiglitz (2012, 2019) também apresenta uma análise em que relaciona a financeirização
da economia capitalista ao aumento da desigualdade, na verdade, boa parte da sua discussão
destaca exatamente a disputa entre o 1% mais rico e os demais 99% da população. Ele segue
uma discussão similar à feita por Piketty (2015), com a diferença de que Stiglitz enfatiza mais
alguns elementos para que esse processo de desigualdade seja hoje ainda mais perverso, quais
sejam: a) a adoção do processo de desregulamentação do mercado financeiro; b) a sujeição ao
credo neoliberal propagado pelo Consenso de Washington de ajuste fiscal restritivo nas
economias; c) o desmonte das proteções sociais trazidas pelo Estado de Bem-Estar Social; e d)
o processo de globalização cujos resultados positivos não se homogeneizaram nos diversos
países.
especial nos países do sul asiático (principalmente China, Índia, Tailândia e Indonésia) –, tenha
crescido substancialmente, as pessoas dessa faixa de renda “ainda são relativamente pobres
comparadas com as classes médias ocidentais” e “não se deve atribuir ao termo o mesmo status
de classe média (em termos de renda e educação) que tendemos a associar às classes médias
nos países ricos”. Essa é a mesma percepção defendida por Angus Deaton (2013, p. 12) ao
afirmar que, ao longo do século XX, vive-se mais e melhor que os períodos anteriores da
história, mas, apesar disso, “o mundo é imensamente desigual”.
Atkinson (2004, 2015), em grande medida um mentor intelectual de Piketty, também destaca
os aspectos citados por Stiglitz para a desigualdade, ressaltando que o sistema tributário
regressivo na maior parte das economias do mundo (onde os mais ricos pagam menos que os
mais pobres) também incentiva a concentração e a desigualdade. Esses elementos são
igualmente destacados pela análise de Varoufakis (2016), que ainda acrescenta como
fundamental para o impulso à financeirização e à desestabilização da economia atual a
transformação da teoria econômica neoclássica do mainstream em um mito e, portanto, em uma
teoria inquestionável (por mais que houvesse questionamentos de todas as ordens e matizes
teóricos – de marxistas a evolucionistas neo-schumpeterianos, passando por neo-ricardianos e
até os institucionalistas) e a persistente idolatria da economia neoliberal com a mão invisível
smithiana. Discutindo as dificuldades do crescimento econômico atual, Mariana Mazzucato
(2011) também aponta como causa aos problemas de desenvolvimento essa adesão irrestrita ao
credo neoliberal que retirou a mão estatal de cena e adiciona o pouco reconhecimento dado ao
trabalho de economistas que criticam a financeirização, em especial, Hyman Minsky (2008,
2016), talvez a grande referência econômica, para demonstrar que a expansão desenfreada das
finanças implica necessariamente mais turbulências e crises no capitalismo contemporâneo.
como modo de produção, mas ao dia a dia das pessoas, em todas as suas interações sociais, das
mais íntimas às coletivas. Trata-se daquilo que Bob Jessop (2017, p. 21) chama de
“financeirização da vida cotidiana” (financialisation of everyday life) e Randy Martin (2002)
de “financeirização da vida diária” (financialisation of daily life), que significa a dominância
das relações financeiras sobre todos os aspectos da vida social, sobretudo, em função da visão
trazida pela agenda neoliberal de se estabelecer a métrica econômica utilitarista como parâmetro
de validação para todas as interações da esfera social.
Um efeito deste processo alcança diretamente a cidadania, naquilo que Sommers (2017) chama
de economicização da cidadania. Segundo Sommers (2017, p. 90), a economicização da
cidadania (the economisation of citizenship) é “o processo pelo qual o conceito social-solidário
de cidadania de Marshall foi substituído por um onde a razão econômica e a economia política
neoliberal recompuseram a definição de bem comum, e reajustaram os critérios de inclusão
plena e de reconhecimento igual”. Essa recomposição diz respeito ao fato de que a cidadania
possível é a cidadania financeiramente sustentável. Para ter direitos, portanto, era preciso agora
ter e saber lidar com ativos financeiros, e o raciocínio político-social passa a ser apenas o
raciocínio econômico. Não se trata mais de atribuir direitos e deveres na sociedade, o único
dever estabelecido é o que auferir renda para financiar os demais direitos, caso contrário, os
direitos deveriam ser restringidos. Novamente, a justificativa era a técnica (as finanças, a
economia) afastarem da cidadania as questões políticas (participação e distribuição de direitos).
A economicização da cidadania, tal como entendida por Somers (2017), representa, ao mesmo
tempo, uma conexão e um produto dos fenômenos de financeirização e de acentuação da
desigualdade. Isso porque a noção moderna de cidadania foi estabelecida sob um critério de
solidariedade que, ainda que limitado e normativo, contestava as dificuldades postas pela
desigualdade extrema em um sistema capitalista de produção, daí defendendo a necessidade de
algum aparato de defesa de direitos neste contexto. Essa era a argumentação apresentada por
Thomas H. Marshall (1967). “A economicização da cidadania, ao contrário, justifica resultados
desiguais do mercado pelo ideal moral da justiça natural do mercado – a crença de que as
desigualdades da classe social são um reflexo justo e preciso dos esforços ganhos e das forças
de mercado não contaminadas pela politização” (SOMMERS, 2017, p. 90). Nesse caso,
portanto, a desigualdade social-econômica é naturalizada, como resultado esperado das
111
interações de mercado. No dizer de Sommers (2017, p. 90), nesse processo, a “inclusão social
e o reconhecimento igual seriam assim determinados pela justiça do mercado”.
Pathak (2014) também aponta esse caminho da economicização da cidadania, mas ele trata
também sob o termo de financeirização (que nós achamos mais correto, até porque a economia
não se ocupa apenas de finanças) e a coloca em duas grandes perspectivas de investigação, uma
de política econômica e outra de cultura econômica. Para o autor, a primeira perspectiva lida
com os impactos dos mercados financeiros nas economias domésticas decorrentes,
principalmente, dos efeitos da globalização e do neoliberalismo. Alguns desses impactos seriam
as decisões de macroeconomia que, ao visarem à estabilidade do sistema financeiro, afetariam
não só aspectos econômicos, mas políticos da vida social dos cidadãos e cidadãs, pois decisões
sobre gastos e investimentos públicos em educação e saúde, em última instância, afetariam
condições de formação e de participação na sociedade. Nessa linha de pesquisa, Pathak (2014,
p. 92) destaca que há várias vertentes de análise, principalmente, os teóricos da Regulação,
como os já citados e que ele chama de “neo-Marxistas” e de estudiosos do Fordismo pós-
Segunda Guerra, até economistas pós-keynesianos.
Uma repercussão imediata para a cidadania neste sentido seria, portanto, o que Pathak (2014,
p. 93) chama de “privatização da provisão do Estado de Bem-Estar Social” em que toda a vida
social passa a ser ditada pela “narrativa e práticas de valor para o acionista” que vigoram no
mercado financeiro e no mundo corporativo. Ou seja, as cidadãs e os cidadãos não seriam
apenas contribuintes para um Estado providência que asseguraria direitos, cada um deles seria
um empreendedor financeiro, que precisa gerar valor para a sociedade antes de querer absorver
os benefícios desta. Deve-se antes, portanto, saber financiar seus próprios benefícios
particulares, ou, em outros termos, autofinanciar sua própria cidadania. A segunda perspectiva,
de acordo com Pathak (2014), não abandona totalmente a questão da macroeconomia que é
intrinsecamente vinculada a essa perspectiva de cultura do autofinanciamento. Ela parte desses
pontos para chegar a uma análise das questões de identidade e de subjetividade que são afetadas
por esse contexto de globalização e de financeirização, como a adoção da cultura financeira de
mercado como referência para todo o comportamento social, algo parecido com a ideia de
absorção total da cultura do desempenho controladora proposta por Byung-Chul Han (2015) ou
112
da cultura gerencial dominando a vida social como uma patologia, nos moldes propostos por
Gaulejac (2007).
Wendy Brown (2017) também compartilha dessa visão de economicização da cidadania, que
ela apresenta como uma economicização dos direitos que foi agudizada pelo neoliberalismo. A
conexão com o neoliberalismo é fundamental no entendimento da autora, isso porque ele é mais
que uma época de resgate de valores liberais, ele é a imposição de um cabedal específico de
valores sobre toda a sociedade, com uma rationale própria. Segundo Brown (2017, p. 94), “é
importante entender o neoliberalismo como uma ordem de razão normativa que, quando se
torna ascendente, toma forma como uma racionalidade governante que, entre outras coisas,
estende uma formulação específica de valores, práticas e métricas econômicas a todas as
dimensões da vida humana”. Essa racionalidade neoliberal, portanto, é distinta do liberalismo
clássico por três razões, no entender de Brown (2017): a) em todas as situações sociais
existentes o único comportamento possível é o do homo oeconomicus racional-utilitarista, ou
seja, a natureza humana é a do homo oeconomicus, não há exceções nem alternativas; b) o homo
oeconomicus neoliberal se materializa como capital humano, ou seja, como recurso que existe
apenas para gerar valor de mercado; c) as esferas de atuação do homo oeconomicus como capital
humano, que se limitavam no passado à produção, como recurso humano de uma empresa, são
agora vistas como precondições de todas as esferas de existência, no trabalho, na família, como
contribuintes, como usuários do sistema de saúde, etc., são unidimensionalmente tomados como
recursos e, como tais, são plenamente dispensáveis conforme sua utilidade para o mercado.
Para a nossa análise, o consumerismo é importante por duas razões, primeiro porque ele
acompanha o processo de financeirização do capitalismo, e, em segundo lugar, porque ele foi
formalmente incorporado no debate de Administração Pública. Autores como Taşnadi et al.
(2018, p. 102) apontam que, em um capitalismo altamente financeirizado, as práticas de
consumo são muitas vezes um efeito indesejado dos excessos da modernidade, por vezes,
64
É interessante perceber que tanto Baudrillard (1970/2010) quanto Bauman (1999), que têm abordagens e
perspectivas muito diferentes entre si, compartilham de um fenômeno fundamental da ideia do consumo para
interpretar o nosso tempo. A frugalidade do consumo diante da perenidade do tempo, da multiplicidade de coisas
e da escassez na superabundância de recursos. Baudrillard (1970/2010, p. 18) traz uma frase que expressa essa
perplexidade quando diz que “nós vivemos o tempo dos objetos: quero dizer que vivemos em seu próprio ritmo e
de acordo com sua sucessão incessante”, uma sociedade determinada por objetos consumidos em hipervelocidade.
No passado, todas as coisas nos sobreviviam, os jovens aprendiam a manusear os instrumentos usados há anos
com os mais velhos e os mais velhos antes destes, e os instrumentos os superavam. Essa discussão entre perenidade
e hipervelocidade do consumo se assemelha a uma ideia trazida também por Arendt (1961, 2007), a perplexidade
dos seres humanos diante da imortalidade e da eternidade, ou seja, da ideia de que as coisas naturais (e culturais)
são capazes de nos superar na brevidade da vida, e a luta cotidiana é a luta para alcançar essa superação. É nesse
sentido que ela diz: “[a] tarefa e a grandeza potencial dos mortais têm a ver com sua capacidade de produzir coisas
– obras e feitos e palavras – que mereceriam pertencer e, pelo menos até certo ponto, pertencem à eternidade, de
sorte que através delas, os mortais possam encontrar o seu lugar num cosmo onde tudo é imortal exceto eles
próprios” (ARENDT, 2007, p. 28). E assim ela restabelece a conexão da cidadania (como luta política) com o
tempo. Essa “luta pela imortalidade”, diz ela, “é o modo de vida do cidadão, o bios politikos” (ARENDT, 2007,
p. 29) é a forma de superar a frugalidade das nossas vidas.
114
irracionais, ou seja, tem suas “raízes presas dentro de uma ideologia moderna que [também]
nos traz a poluição diária, a exploração irracional dos recursos, a corrupção dos governos,
manipulação de mentes e comportamentos através da publicidade, a escravização de tecnologia
e da moda, a ‘doença do shopping’”, ou seja, a compulsão por consumir. Vivemos em uma
sociedade de consumo e de consumo exacerbado. E mais, em uma sociedade cujo consumo
depende, em larga medida, do acesso a recursos financeiros para que possa ocorrer, logo, uma
sociedade consumerista no âmbito do capitalismo atual é necessariamente uma sociedade
financeirizada. E uma sociedade consumerista-financeirizada requer um modo de Estado que
viabilize essa condição, portanto, um Estado cujo braço executor (a Administração Pública)
seja também orientada pela ótica do consumo.
Já vimos anteriormente que, para Abrucio (1996), o consumerismo teria surgido como forma
de suavizar o extremismo privatista do gerencialismo, e o que procurava, na verdade, era
reforçar o conceito de qualidade no serviço público e a busca pela satisfação dos clientes ou
consumidores desse serviço. Só que a própria vertente acarretaria exageros, de acordo com ele,
sobretudo pelo apelo do modelo de competição econômica e então teria sido novamente
abrandada por outra perspectiva, a Public Service Orientation, que teria postulado a
recuperação do papel da cidadania política no lugar do consumo, dando ênfase a questões como
115
A nosso ver, entretanto, a visão trazida pelo consumerismo, por mais que tenha tentado ser
amenizada pela Public Service Orientation, representa ainda, tal como esboçado em Wiesel e
Modell (2014), uma continuidade na visão da cidadania como papel do consumidor/cliente.
Nesse sentido, a crítica que permanece é a de que “a óptica do cliente/consumidor é limitada,
pois cidadão é um conceito que engloba a cidadania, ou seja, implica direitos e deveres e não
somente a liberdade de escolher os serviços públicos” (MATIAS-PEREIRA, 2009, p. 95), ou
mesmo, tal como colocam Aberbach e Christensen (2005, p. 227), seria até uma contradictio
in terminis para algumas perspectivas de cidadania, pois “conceber os cidadãos de uma nação
como clientes em sua relação com o Estado seria visto na tradição republicana como uma
negação do papel do cidadão”. Na defesa do consumerismo, autores como Clarke (2007)
argumentam que a ideia do consumo na cidadania e no setor público não pode ser reduzida à
noção de fazer compras (it’s not like shopping), ou seja, de selecionar quais serviços públicos
consumir. Em função disso, Clarke et al. (2007) afirmam que a noção de cidadãos e cidadãs
clientes e consumidores ainda persiste, é forte e bastante defendida na discussão de gestão
pública contemporânea. Vimos, no entanto, que cidadania é um conceito multidimensional e
complexo. Na leitura habermasiana do espaço público, exigir participação, transparência e
qualidade dos serviços públicos é parte essencial do exercício da cidadania, isso não é atributo
do consumo faz parte da construção dialógica das soluções coletivas em sociedade. Não faz
sentido, portanto, falar em serviço público orientado para o cidadão/cidadã quando é o
cidadão/cidadã que orienta a existência do serviço público.
parcela enorme da população fora do circuito financeiro, e, portanto, fora das possibilidades de
consumo que essa visão de cidadania e de Administração Pública exigiam para funcionar. Nesse
sentido, para falar em cidadania-consumo em um capitalismo financeirizado era preciso, antes,
incluir financeiramente os excluídos destas possibilidades. Conforme Marx (1858/2011, p. 66)
dizia, nos Grundrisse, “a produção [...] produz não somente um objeto para o sujeito, mas
também um sujeito para o objeto”, ou seja, a produção capitalista cria as mercadorias (objeto)
para o consumo das pessoas (sujeitos) ao mesmo tempo em que cria os trabalhadores como
consumidores (sujeitos) para as mercadorias produzidas (objetos). Nesse sentido, na lógica
reducionista de cidadania, um Estado que produz direitos para serem consumidos precisaria
criar cidadãs e cidadãos para consumi-los. Foi sob essa lógica que a discussão sobre inclusão
financeira ganhou corpo.
Conforme Turner e Mackert (2017) discutem, a noção moderna de cidadania apresentada por
Thomas H. Marshall (1967) era uma visão que preconizava pela inclusão social como forma de
se evitar o conflito aberto pela desigualdade nas sociedades capitalistas. Segundo eles, essa
ideia teria sido complementada por Talcott Parsons e sua visão integradora da sociedade,
gerando um conceito de cidadania como forma de estabilizar a sociedade. Assim, concluem
estes autores, “[s]em dúvida, a perspectiva de Marshall-Parsons preparou o terreno para a
compreensão da cidadania como inclusão” (TURNER & MACKERT, 2017, p. 2). Se as pessoas
não estivessem incluídas na cidadania, a sociedade sofreria com a possibilidade aberta do
conflito social. Em uma sociedade do consumo, altamente financeirizada e desigual, que teve a
cidadania-consumo incorporada pela Administração Pública, portanto, era de se esperar que a
discussão sobre cidadania passasse a ser um debate sobre as condições financeiras para o
“consumo” de direitos. Neste sentido, consagrada a visão consumerista na gestão pública, a
próxima etapa para formar cidadãos e cidadãs clientes seria necessariamente incluí-los no
circuito financeiro (PRIDMORE, 2017).
De acordo com Pridmore (2017, p. 52), o nexo estabelecido entre a cidadania e o consumo pode
ser lido de duas maneiras, em primeiro lugar, “o cidadão é visto como um ‘consumidor’ de
serviços governamentais que envolve a reavaliação dessas práticas em termos de mercado, da
mesma maneira que os pacientes são vistos como consumidores de serviços de saúde e os
estudantes como consumidores de educação”. Essa é a visão defendida por Clarke et al. (2007),
117
A literatura especializada indica que não há uma única definição de inclusão financeira, mas
que a grande maioria delas parte de uma noção apresentada pelos organismos internacionais
acerca do acesso a serviços prestados por empresas do mercado financeiro (monetário, cambial,
de ativos ou de capitais) (ZHU, HE, & ZHAI, 2019; JOUTI, 2018; PARK & MERCADO, 2018;
MORGAN & PONTINES, 2018; TURÉGANO & HERRERO, 2018; TAMBUNLERTCHAI,
2018; BANNIGOL & HUNDEKAR, 2018; ALLEN et al.., 2016; ARUN & KAMATH, 2015;
KUMAR, 2013). Nesse sentido, duas características são bastante marcantes nas muitas
definições encontradas: a) a predominância de inclusão financeira como bancarização, ou seja,
como ter acesso ou contas vinculadas a bancos para o provimento de serviços financeiros –
mesmo havendo outros agentes que possam prestar os mesmos serviços; e b) uma disputa sobre
65
Pridmore (2017) cita como um exemplo contundente dessa visão o discurso de George W. Bush que, logo após
o atentado de 11 de setembro de 2001 ocorrido nas torres gêmeas do edifício World Trade Center, nos EUA,
solicitou à população norte-americana que não parasse de consumir, diretamente dizendo que essa era uma maneira
de demonstrar também confiança nos EUA e indiretamente insinuando que também seria uma maneira de
demonstrar a grandeza do país diante da fragilidade representada pelo ataque sofrido.
118
se a inclusão é voltada apenas para a camada mais pobre da sociedade ou se diz respeito a todos
os segmentos da sociedade.
Assim, alguns autores, como Kumar (2013, p. 6) afirmam, que a “Inclusão Financeira é a
entrega de serviços bancários a um custo acessível para vastas seções de grupos desfavorecidos
e de baixa renda”. Embora destaque a questão da inclusão da camada mais pobre, essa nos
parece uma definição muito restrita e enviesada em favor dos bancos. Por outro lado, uma
definição mais abrangente é a de Jouti (2018, p. 278) que diz que “[a] inclusão financeira é
definida globalmente como a proporção de indivíduos e empresas que usam serviços
financeiros” e, nessa linha, evoca a questão da universalidade do acesso independentemente do
provedor (bancos, cooperativas, fintechs, etc.). Nessa mesma linha, Park e Mercado (2018, p.
185-196) argumentam que “a inclusão financeira é o processo que garante a facilidade de
acesso, disponibilidade e uso do sistema financeiro formal para todos os membros de uma
economia”. Conforme Bannigol e Hundekar (2018, p. 13) defendem, no entanto, “uma boa
definição de inclusão financeira deve, portanto, ser intimamente ligada com a minimização da
exclusão financeira decorrente de falhas do mercado ou do governo”, ou seja, não pode apenas
se pautar pela quantidade de pessoas com acesso a serviços financeiros, mas deve trazer em seu
bojo as possibilidades de se evitar a exclusão destes serviços.
A discussão sobre cidadania financeira – conceituada sob essa expressão – é bastante recente,
conforme argumentam Riles (2018), Berry e Serra (2012), Berry (2015), Kear (2013), French,
Leyshon e Thrift (2009), Dimsky (2005) e Perret (2007, 2015). Riles (2018) defende que a
questão surgiu na agenda pública global em função da crise de legitimidade pela qual os bancos
centrais passaram no mundo todo após a crise financeira de 2007-2008. Berry e Serra (2012),
por sua vez, defendem que as políticas neoliberais já haviam recebido um contramovimento de
retorno da agenda pública de cidadania e que a crise financeira incorporou nesta reação o debate
120
sobre as questões financeiras. Perret (2015, p. 2), em uma visão mais ampla, argumenta que a
financeirização, a globalização e o neoliberalismo, conjuntamente com a crise financeira de
2007-2008, criaram o contexto para a discussão da financeirização da cidadania, mas isso
ocorreu porque, a partir deles, “os direitos sociais dos cidadãos já não aparecem como direitos
fundamentais intangíveis, mas como instrumentos de regulação conjuntural, que podem ser
facilmente diminuídos ou desafiados em tempos de crise financeira”. Dimsky (2005) e French,
Leyshon e Thrift (2009) seguem uma linha similar a essa, mas reforçam que boa parte da
discussão sobre cidadania financeira vem mesmo do debate sobre inclusão/exclusão financeira.
66
Além de ser recente, com boa parte dos artigos indicando que o primeiro texto a usar essa expressão ter sido o
de Leyshon e Thrift (1995), existe uma preferência curiosa de determinados campos de pesquisa sobre o assunto.
Alguns dos artigos e livros mais citados sobre o assunto, por exemplo, são de antropologia ou de geografia e, em
ambos, o referencial buscado é a governamentalidade de Michel Foucault para discutir a financialização do espaço,
como ocorre em Riles (2018), Kear (2013), French, Leyshon e Thrift (2009), Leyshon e Thrift (1995) e Dimsky
(2005), e não o referencial econômico-financeiro propriamente dito.
67
Os exemplos mais clássicos são as obras de Friedrich von Hayek e de Milton Friedman, em especial, o “Caminho
para a Servidão”, do primeiro, e “Livre para Escolher”, do segundo. Mas o volume é muito extenso e vem dos
liberais-econômicos clássicos (Smith, Ricardo, Say, Stuart Mill) passando pelas origens do marginalismo na
economia com Stanley Jevons, Carl Menger e Léon Walras, até a Escola Austríaca à qual se vinculam, além de
Menger e Hayek, Eugen von Böhm-Bawerk e Ludwig von Mises.
121
A rigor, tanto a despolitização quanto a tecnocracia podem ser compreendidas como um mesmo
processo de não reconhecimento das questões políticas no mundo organizacional, em favor de
uma suposta neutralidade e independência técnicas. Vimos que a Nova Administração Pública
se baseou, dentre outros aspectos, na predileção da preocupação com a técnica-eficiência em
detrimento das questões sociopolíticas, buscando reforçar a dicotomia entre a administração da
política (PAES DE PAULA, 2003, 2015). Mais do que isso, porém, a Nova Administração
Pública, além de afastar de si a questão política, afastou-a também da cidadania à qual ela servia.
Conforme Vigoda-Gadot e Golembiewski (2004, p. 7) afirmam, na Nova Administração
Pública, estabeleceu-se “o compromisso e a obrigação das instituições públicas com os cidadãos
como clientes passivos”, absorvendo essa ideia do consumerismo, conforme discutido antes.
Nesse contexto, a ideia de participação e de colaboração se encontra reduzida ou alijada da
esfera pública (VIGODA-GADOT, 2004). Assim, o último elemento faltante seria incorporar
a questão financeira como uma questão técnica, e não política na Administração Pública, e isso
os governos passaram a fazer ao tratar as questões econômico-financeiras como questões
tecnocráticas por meio de um órgão específico: o Banco Central.
Essa é a argumentação recente feita por Annelise Riles (2018) e Paul Tucker (2018) e é a partir
dela que se opera a conexão da financeirização da cidadania com a construção de uma cidadania
financeira. Segundo Riles (2018), após essa crise de 2007-2008, de nada adiantou a defesa dos
bancos centrais de alegarem serem órgãos independentes e altamente técnicos, pois a crise pôs
à prova os instrumentos tradicionais de política monetária e a própria credibilidade das ciências
econômicas. Mais do que isso, tal como Tucker (2018, p. 8) discute, o aparato teórico-prático
montado pelo neoliberalismo, pela economia ortodoxa e pela defesa técnica da atuação dos
governos incluiu os bancos centrais em mais um dos grandes poderes não-eleitos da sociedade
(como as forças armadas e o Judiciário), fazendo com que a sua independência na verdade,
fosse não só em relação ao governo, mas também em relação à sociedade civil, ou seja, nos
dizeres de Tucker (2018, p. 8), “bancos centrais e seus líderes [estão] se tornando
supercidadãos”. Essa defesa da técnica e da independência, no entanto, encontrou um grande
obstáculo com a crise de 2007-2008: como supercidadãos financeiros, estritamente técnicos e
122
não influenciados pelo jogo político, não teriam sido capazes de prever e enfrentar essa crise e
evitar o mal a tantos cidadãs e cidadãos comuns? Essa última crise representou, para Riles
(2018) e Tucker (2018), portanto, uma crise de legitimidade, uma fissura na imagem
tecnocrática eficiente das questões econômicas conduzidas pelos governos, exigindo que
cidadãos e cidadãs também passassem a se preocupar com a legitimidade de quem decide e
interfere em suas vidas financeiras, e assim, colocando o tema da cidadania dentro dos
principais órgãos financeiros dos governos, os bancos centrais.
No entender de Riles (2018), portanto, essa crise de legitimidade teria ocorrido justamente
porque bancos centrais excluíram as questões políticas e culturais de sua agenda interna, e
tentaram se apresentar como órgãos estritamente técnicos e independentes:
Alguns economistas de renome, como Stiglitz (2012), também fizeram críticas à questão da
independência dos bancos centrais ter se tornado um mito, defendido arduamente por parte da
literatura econômica especializada, que deixa de lado questões mais relevantes para a sociedade,
como crescimento e geração de empregos. Para além da crítica econômica, essa obsessão com
a independência, tal como defendida por alguns economistas, também foi contestada
recentemente por autores mais ligados ao Direito, como Conti-Brown (2015) e Baradaran
(2015). Assim, como Riles (2018, p. 21) argumenta, “uma maneira melhor de pensar sobre os
bancos centrais, portanto, é vê-los não como atores independentes, mas interdependentes, nas
esferas econômica e política”. Diante disso, Riles (2018) defende que bancos centrais são
órgãos culturais como as demais organizações e que, portanto, precisam aprender a se
comunicar e a realizar políticas de acordo com os desejos dos cidadãos e cidadãs, e não sob um
véu inexistente de independência técnica. E, é com base nesse enfoque que a autora, então,
define o que seria para ela cidadania financeira neste contexto, uma nova visão na relação entre
o público e os órgãos executores de políticas econômicas:
123
“Esta nova visão tem duas partes importantes. A primeira parte vou chamar
de cidadania financeira - é uma visão de um novo papel para os cidadãos na
administração e governança da economia e uma nova parceria entre
especialistas e públicos. A segunda parte vou chamar uma nova narrativa de
legitimidade para os bancos centrais: precisamos concordar juntos em uma
nova explicação do porquê o trabalho dos bancos centrais é importante - algo
melhor do que uma declaração dos banqueiros centrais no sentido de ‘apenas
confiem em nós – nós somos os especialistas e sabemos melhor” (RILES,
2018, p. 43, grifos nossos).
De início, vemos que Riles (2018) se aproxima de uma visão de cidadania que tangencia a ideia
da Administração Pública Societal de recuperação da dimensão política, em vista da crescente
assunção da tecnocracia como forma de condução dos negócios públicos. Quando analisamos
outras definições de cidadania financeira, no entanto, não encontramos essa conexão entre o
político e o econômico de modo tão evidente. Berry e Serra (2012, p. 27), por exemplo, dizem
de modo bem assertivo que “[e]m uma sociedade financeirizada, se não somos cidadãos
financeiros, então, sem dúvida, não somos cidadãos de forma alguma”. Nesse sentido, a
definição que eles apresentam está em linha com a discussão trazida no capítulo anterior, de
inclusão financeira, mas adicionando a ideia de que “[a] educação financeira também será vital
para uma concepção completa da cidadania financeira” (BERRY & SERRA, 2012, p. 26).
Assim, eles definem que a “cidadania financeira não é apenas um remédio para a exclusão
financeira, mas sim um conjunto básico de direitos e responsabilidades que devem ser
aplicados, independentemente de as pessoas serem excluídas ou não” (BERRY & SERRA,
2012, p. 20). Gozar de cidadania financeira significa, para essa vertente, estar incluído
formalmente no sistema financeiro, sabe lidar com finanças e conseguir, a partir destas duas
condições, gerir a sua própria vida financeira com vistas a conseguir assegurar uma boa
alocação de recursos, a boa aplicação em ativos, realizar gastos conscientes e prover-se para
situações futuras como aposentadorias ou mesmo doenças e inabilitações.
Diante disso, após a análise de Riles (2018) e Tucker (2018), Berry e Serra (2012), Berry (2015)
além das críticas de Perret (2007, 2015) e Paes de Paula (2003, 2015), o que vemos é que o
contexto de financeirização, assomado ao processo de globalização, de ascensão do
neoliberalismo e da Nova Administração Pública implicou o reforço da separação entre
administração (técnica) e política, com a defesa da eficiência em detrimento da justiça social, e
124
(2012), Berry (2015), Kear (2013) e French, Leyshon e Thrift (2009) – e, indiretamente, como
Tucker (2018) –, defendem a necessidade de inclusão financeira e de educação financeira como
motes para a evolução para uma realidade efetiva de cidadania financeira, em linha com o
conceito de democracia financeira de Shiller (2008, p. 89) que significa estender “a aplicação
de princípios financeiros sólidos a um segmento cada vez maior da sociedade e utilizando toda
a tecnologia moderna à nossa disposição para atingir esse objetivo”. A justificativa para isso
seria múltipla: a) a inevitabilidade de se viver em uma sociedade cada vez mais financeirizada
e consumerista da qual não se pode escapar; b) dado (a), a necessidade de saber lidar com
finanças, pois, para consumir de modo consciente, é preciso compreender a lógica financeira;
c) dados (a) e (b), também leva à necessidade de exigir condutas adequadas de agentes públicos
cujas decisões afetem a realidade econômico-financeira dos países; e d) os Estados são, de fato,
pressionados pela globalização, pelo neoliberalismo e pelas crises, logo, é necessário saber
autofinanciar os seus direitos diante das instabilidades e imprevisibilidades decorrentes destas.
Resumimos essa perspectiva, então, pela ideia de que a cidadania financeira para eles significa
ter dinheiro para ter direitos.
De outro lado, porém, existem os autores que defendem que direitos e, portanto, a reivindicação
deles por meio do exercício da cidadania, não dependem de questões financeiras, logo, uma
cidadania financeira seria, em si mesma, uma expressão vazia de sentido. É nessa linha que
posicionamos pensadores como Hannah Arendt (1961, 1989, 2007) e Jürgen Habermas (1989,
1991, 1992, 1998, 2002) cujas teorias relacionadas constroem a visão de que a cidadania é o
direito a ter direitos, e para tanto, basta ser cidadão ou cidadã, o que quer dizer necessariamente
ter acesso à participação nos espaços públicos de construção das soluções coletivas para que se
possa reivindicar suas condições de existência em comunidade. Partindo de Habermas e Arendt,
vemos que a cidadania é multidimensional, envolve participação e reconhecimento, identidade
e subjetividade, sendo, portanto, algo muito além de uma mera carta formal de direitos ou de
ser bancarizado e dominar questões financeiras. Cidadania é existência substantiva e, portanto,
não pode ser condicionada. É em função disso que ambos ultrapassam a noção de Estados-
Nacionais e passam, em função do forte traço kantiano em suas discussões, a pretender o
universalismo da cidadania, sem fronteiras, sem restrições, como uma condição humana
universal (LAFER 1988, 1997, 2018; AVRITZER, 2002; VALLESPÍN, 2000). Pelo contrário,
Arendt (1989, p. 330) é taxativa ao dizer que o condicionamento dos direitos é uma
consequência nefasta da burocratização completa da vida social sob Estados-Nacionais, e,
126
nessas condições, restringir a cidadania por qualquer motivo é uma ofensa à dignidade humana;
nas palavras dela, “[s]ó com uma humanidade completamente organizada, a perda do lar e da
condição política de um homem pode equivaler à sua expulsão da humanidade”.
3 METODOLOGIA
Nesse sentido, esta pesquisa tem como alegação de conhecimento, no sentido dado por
Creswell (2007) de suposições filosóficas, epistemológicas e ontológicas de como abordar o
mundo real, a vertente reivindicatória e participatória. Isso se dá, em virtude de ter escolhido
uma epistemologia crítica, calcada na Teoria Crítica com ênfase na abordagem habermasiana
como norte de análise. Essa epistemologia, herdeira da Escola de Frankfurt, com alguns
elementos da epistemologia weberiana, toma o mundo como algo apreensível pela razão
somente em parte, nunca completamente exaurível, mas que não abandona por completo o
idealismo-racionalismo como possibilidade de compreender o mundo por meio da razão, mas
de uma razão substantiva que amalgama subjetividade e objetividade. Todavia, compreende
que todo conhecimento é conhecimento precário e que toda abordagem ao mundo é uma
abordagem limitada (PAES DE PAULA, 2012, 2016).
Como ontologia, defende-se uma abordagem que entende que o ser se constitui histórica e
socialmente, onde sujeito e objeto se confundem em algum grau, mas que é possível abordar o
mundo pela razão desde que reconhecidas as suas dificuldades e limitações. O subjetivo se
plasma no objetivo e lhe é inextricável, mas isso não impede a reflexão crítica. Isso pressupõe
que, ao discutirmos a cidadania como conceito substantivo, oposto ao formal-instrumental,
128
estaremos dialogando com autores que trabalharam essa oposição substantivo-racional evocada
por Max Weber, em especial, Hannah Arendt que trata a cidadania como condição humana do
direito a ter direitos, e Jürgen Habermas que reclama a possibilidade de tratá-la, mas com
alguma possibilidade de emancipação por via da ação comunicativa. Nesse sentido, a análise a
ser realizada se funda antes na ideia de fluidez que de determinação, tomando ser e objeto como
categorias que precisam ser observadas sob ideia da compreensão, ou no sentido que Chia
(1997, p. 696) emprega para os estudos organizacionais, segundo a “crença alternativa de que
‘todas as coisas fluem’ e que estão em um processo contínuo de tornar-se, de transformar, de
perecer”. Com isso, entendemos que a realidade social – e a realidade organizacional – está
sempre em construção ou por ser construída e nunca dada, enfoque esse ainda mais exacerbado
diante do reconhecimento – também nos estudos organizacionais – da crise da modernidade e
das grandes narrativas (CZARNIAWSKA, 2003; HARDING, 2003; CHAN, 2001; HASSARD,
1999).
A ideia por trás dessa defesa ontológica é a de que o mundo é complexo, mas apreensível, ainda
que não em sua totalidade, mas também não o é de modo excessivamente fragmentado,
portanto, é preciso combinar elementos, teorias e abordagens distintas, como vários pontos de
luz sobre um mesmo painel, posto que, tal como entendia Max Weber, como “obra humana, a
experiência histórica é também uma realidade múltipla e inesgotável” (QUINTANEIRO,
BARBOSA & OLIVEIRA, 2003, p. 107). Toma-se a ciência neste trabalho, por conseguinte,
como composição, conforme a proposta sugerida por Max Weber e indicada na leitura que
Adorno fez dele, e que é citada por Gabriel Cohn (2003). Ou seja, a ciência se constrói como
uma pauta musical, onde várias coisas podem ser ditas de forma separada e simultâneas, de
várias fontes diferentes e de várias perspectivas. A priori, a qualidade da composição depende
da sua capacidade de trabalhar todos os elementos envolvidos. Na explicação do sociólogo
brasileiro:
“Não é difícil imaginar o fascínio de Weber por essa escritura que permite
tratar de modo simultâneo o desenrolar rigorosamente coerente de temas que
correm por linhas paralelas, conforme a lógica de cada qual, para no final
formularem um todo construído pela vontade livre mas disciplinada de um
pensamento criador: a obra” (COHN, 2003, p. 3, grifos nossos).
Com isso, teremos uma obra que resultará da composição de algumas análises em paralelo: i)
teorias da cidadania; ii) teorias da Administração Pública; iii) teorias de Estado; iv) teorias sobre
financeirização e desigualdade no capitalismo atual. Combinam-se elementos conceituais de
129
Quanto à metodologia, conforme Paes de Paula (2012, p. 70) argumenta, “[u]tilizar a Escola de
Frankfurt como referencial epistemológico estabelece alguns desafios quanto à questão
metodológica”, isso porque, se por um lado é possível situá-la conforme sua oposição ao
positivismo estrito e à sua reivindicação de uma reflexão transformadora e compreensiva da
realidade, por outro, nem todos os frankfurtianos se preocuparam em estabelecer
especificamente uma discussão sobre método. A chamada ruptura epistemológica que
diferencia os saberes (senso comum de ciência e filosofia), tal como postuladas por Bachelard
(2005, 2006) e tão evocadas por Sousa Santos (1989, 2002), fora recuperada por eles dentro de
um espectro mais amplo de reflexão sobre as possibilidades da razão antes do que como uma
busca por enfatizar limites entre processos de fazer ciência e de fazer filosofia. A grande
preocupação era a recuperação da reflexão filosófica crítica e transformadora. De modo geral,
no entanto, o que podemos dizer é que, tal como apontado por Pedersen (2008) e Dryzek (1995)
sobre a teoria social de Habermas como possibilidade de pesquisa metodológica, entendemos
que a reconstrução racional do mundo social proposta na matriz habermasiana transita entre o
empirismo-analítico e a hermenêutica (abarcando aqui a sociologia compreensiva de Weber).
Assim, com base nisso, propomos um método de pesquisa que se valha tanto da construção
empírica da realidade social por meio dos dados disponíveis sobre a financeirização e a
desigualdade no Brasil quanto da interpretação e compreensão do sentido da conceituação de
cidadania financeira no país a partir dos discursos e documentos oficiais relacionados ao tema.
A consequência dessas posições é a de que iremos realizar uma pesquisa cujo método tentará
encadear o empírico-analítico e o crítico, considerando as vertentes teóricas consideradas e os
pressupostos epistemológicos, ontológicos e metodológicos apontados. Diante disso, propomos
131
a) Investigar como (de que maneira, quando e por que) o tema de cidadania, que não
é próprio da discussão econômica com a qual bancos centrais costumam lidar no
dia a dia, surgiu no Banco Central do Brasil, ao longo de sua história;
c) Investigar qual a relação (se é que ela existe) do conceito de cidadania financeira
com a dimensão sociopolítica da Administração Pública reivindicada pela
Administração Pública Societal. O conceito de cidadania financeira realmente
exprime a incorporação desta dimensão na gestão pública no Banco Central do
Brasil? Ou ele se mantém dentro do quadro analítico da Administração Pública
Gerencial?
d) Dado que o tema de cidadania não é comum nas atividades típicas de bancos
centrais, a assunção do tema de cidadania financeira é mesmo fruto de uma
inflexão no ideário econômico das lideranças do BCB, ou seja, deixando uma visão
liberal econômica restrita e assumindo uma dimensão social na condução do Banco
Central do Brasil?
a) Dado que, pela teoria crítica, os fenômenos são criados histórica e socialmente, o
primeiro passo é a reconstrução histórica do relacionamento entre Administração
Pública e cidadania no Brasil, para situar o contexto de criação do BCB e
identificar as raízes da construção da cidadania no país, e a forma de
relacionamento e evolução destes dois assuntos no Brasil. Trata-se de uma
recuperação da visão histórica na análise da Administração, no Brasil, tal como
sugerido em Costa e Costa (2016) e Costa (2018). Esta parte será feita com base
na análise da historiografia brasileira sobre o tema, com o levantamento de marcos
normativos e institucionais sobre o assunto (sobretudo legislação) e dados
estatísticos públicos (IBGE, BCB, IpeaData, If.Data, FMI e Banco Mundial) que
possam demonstrar como e quando os direitos civis, políticos e sociais foram
desenvolvidos no país, avaliando se eles seguem a definição e a ordem sugerida
por Thomas Marshall ou não, e qual a relação deles com a economia, para
identificar alguma correspondência possível ou implicação da cidadania na
construção do BCB;
Aqui cabe uma observação. As entrevistas mencionadas no item (b), mesmo que não
conduzidas pelo pesquisador, são muito relevantes. Em primeiro lugar, em função de sua
amplitude, profundidade e acesso, dado que o pesquisador dificilmente conseguiria tempo e
disponibilidade de tantas lideranças deste setor ao mesmo tempo (muitos foram entrevistados
mais de uma vez e em momentos distintos de sua trajetória profissional), e considerando que
alguns dos entrevistados já até faleceram. Em segundo lugar, trata-se de um material, em sua
maioria (22 entrevistas) inédito e recente, publicado em 2019 em função de um convênio
firmado ente o CPDOC/FGV e o BCB para estudar a criação deste órgão, e que intitulou-se
Coleção História Contada do Banco Central do Brasil. Em virtude disso, e em terceiro lugar, a
qualidade das entrevistas conta com o apoio profissional da equipe do Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). A
dificuldade maior diz respeito ao volume do material ser muito extenso, pois algumas
transcrições chegam a mais de 200 páginas, e ao fato de a entrevista não ter sido direcionada
especificamente para o tema da cidadania, forçando o pesquisador a lidar com um material
produzido indiretamente. Apesar disso, como se trata de uma entrevista sobre realizações e
feitos do BCB, é provável que este tema seja mencionado em algum momento, assim, acredita-
se que as vantagens anteriores superem muito estas adversidades. Os entrevistados são: 21 ex-
presidentes que ocuparam a chefia do BCB entre 1964 e 2011, além de um ex-ministro da
134
Para haver cidadania, é preciso haver pessoas titulares de direito e responsáveis por deveres
(sujeitos de direito e obrigações) igualmente reconhecidas. Mais do que isso, é preciso haver
pessoas respeitadas e amparadas pela ordem normativa, mas também com voz, representação e
participação, autônomas e conscientes de seus direitos e deveres, com reflexividade crítica e
capacidade de ação para reivindicá-los (mobilização social). Desta forma, teremos juntos o
formal e o social que, combinados, viabilizam a construção de uma cidadania efetiva. Esta
efetividade, no entanto, somente será possível mediante a formação de um último aspecto
subjetivo, um vínculo identitário que ligará cada indivíduo a essa coletividade social. É nesse
sentido, portanto, que Schwarcz e Botelho (2012, p. 8) afirmam que a “cidadania é noção
construída coletivamente e [que] ganha sentido nas experiências tanto sociais quanto
individuais, e por isso é uma identidade social”.
Conforme Tenório e Rozenberg (1997, p. 103) afirmam, por fim, “a participação social e a
cidadania referem-se à apropriação pelos indivíduos do direito de construção democrática do
seu próprio destino”. A análise histórica nos mostrará, bem como a discussão de pensadoras e
pensadores que refletiram sobre esse processo no Brasil, que essa construção democrática do
nosso destino tem sido bastante difícil, até porque a construção da democracia no Brasil tem
137
sido difícil (CARVALHO, 2011, 2018; SCHWARCZ & BOTELHO, 2012; NEVES, 1996,
2012; SOUZA, 2018b; DAGNINO, 1994; SANTOS, 1979; MANZINI-COVRE, 1995). É o
que passamos a discutir.
Um segundo aspecto que deve ser considerado é que, em termos de formação do Estado e
Administração Pública, também a periodização tradicional coincide parcialmente com a
historiografia política, tendo sido bastante influenciada pela ideia de paradigmas e tipos ideais,
apresentados sobretudo por Keinert (1994), Bresser Pereira (1996, 2001) e Raymundo Faoro
(2001). Keinert (1991), possivelmente inspirada em um trabalho de Henry (1975), apresenta a
formação da dimensão teórica da Administração Pública no país, a partir de 1900, ao passo que
Bresser Pereira (1996, 2001) e Raymundo Faoro (2001) conjugam a formação do Estado com
a construção da Administração Pública desde o Império, para o primeiro e, desde a Colônia,
para o segundo. Para Keinert (1994), os marcos são quatro fases da visão da Administração
Pública: a) Ciência Jurídica (1900-29); b) como Ciência Administrativa (1930-79); c) Ciência
Política (1980-89); d) como Administração Pública (1989-em diante). Raymundo Faoro (2001)
trabalha com a ideia de uma longa formação de um Estado patrimonialista estamental, onde
138
uma elite se apropria do Estado tomando-o como se fosse seu, tendo sido gestado no Brasil
como uma extensão da herança portuguesa, ao passo que Bresser Pereira (1996, 2001) fala de
Estados Patrimonial (1821-1930), num sentido próximo de Faoro, Burocrático (1930-1995) e
Gerencial (1995 em diante).
Comparando-se essas periodizações (Quadro 8), observa-se que os marcos dados pela
periodização por tipos ideais e a da cidadania coincidem em suas duas primeiras fases, de 1500
a 1822, de 1822 a 1930, e que todas as análises colocam o ano de 1930 como um marco de
transição representando de fato um marco na história política, administrativa e cidadã brasileira.
A lentidão das mudanças sociais e econômicas brasileiras após independência (mantendo-se a
escravidão, a dominância agrária, a visão liberal e conservadora e a demora em se consolidar
um Estado Nacional unificado) explica esse emparelhamento. A partir de 1930, vemos um
ligeiro descasamento entre os marcos políticos, as mudanças teóricas sobre a Administração
Pública, a cidadania e os modelos de Estado. Esse descasamento representa a desconexão
conferida por uma particularidade na história da cidadania brasileira. Ela foi constituída de
contradições que permitiram o convívio de avanços e de recuos em dimensões diferentes de sua
definição tradicional (direitos civis, políticos e sociais), ao longo do tempo. Isso se acentua na
medida em que o Estado se desenvolve, e com ele a Administração Pública consolidando-se
como Burocracia. Nesse fenômeno, o poder burocrático do administrador no Executivo passa
a impor-se sobre a política, fazendo surgir Estados autoritários (civis e militares), dotados de
um quadro técnico racionalista-instrumentalizado e conservador (tecnocrata), que permite a
criação de um Estado que, de um lado, freia o desenvolvimento de direitos políticos e civis, e
de outro, acomoda pressões por meio de concessões de direitos sociais.
139
Periodização da Periodização da
Periodização Histórica Periodização da
Administração Pública Administração
Tradicional Cidadania
por Tipos Ideais Pública por
Paradigmas
Fausto (1995); Iglésias Murilo de Carvalho
Faoro (2001); Bresser
(1993) (2018)
Pereira (1996, 2001) Keinert (1994)
1500-1822: o “Peso do
1500-1822: Brasil Colônia 1500-1822: Estamental Passado” para a -
cidadania brasileira
Esse é o cenário geral da relação entre Estado, Administração Pública e Cidadania. Mas, e a
mobilização social? A mobilização social – ou a falta dela – ajuda a explicar a demora nas
transições entre as fases, como também ajuda a compreender que, em razão da própria
concessão de direitos em meio a cenários autocráticos e ditatoriais, fragiliza-se diversas vezes
a coesão social em torno de grandes manifestações e reivindicações. O próprio termo,
concessão, não é por acaso. Ele alude à ideia de que a cidadania brasileira é antes concedida
por alguém, o Estado, viabilizando-a por meio da Administração Pública federal, que foi
conquistada, por meio de ampla reivindicação social organizada. As linhas gerais desses
entrelaçamentos e fases é o que explicaremos a seguir.
Como vimos anteriormente, a ideia de cidadania remonta à antiguidade, mas a sua concepção
moderna é dependente da criação do Estado Nacional. Em razão disso, para falar de Cidadania
no Brasil, é preciso falar da construção do Estado Nacional brasileiro após independência.
Antes, porém, cabe um comentário breve sobre a herança que essa construção teve da
colonização portuguesa. Conforme afirmado por Carvalho (2018, p. 24), a história da cidadania,
no Brasil, parte de um passado pesado, colonial, que constituiu um país de imensa unidade
territorial, linguística, cultural e religiosa, mas com uma população analfabeta, uma sociedade
escravocrata e um Estado absolutista, e uma história de conquista marcada pela violência e pela
dizimação de povos indígenas. Daí ele dizer que “à época da independência, não havia cidadãos
brasileiros, nem pátria brasileira”.
Existe uma linha de análise do período colonial, de matiz econômico que nos ajuda a interpretar
esse legado. Conforme Fragoso e Florentino (2001) discutem, existem alguns modos de
interpretação do sistema colonial brasileiro, que poderiam ser agregados em duas escolas. A
primeira contempla a historiografia clássica de Caio Prado Jr. (1983, 2004), Celso Furtado
(2007) e, mais recentemente, de Fernando Novais (1989). Estes autores defendem, no geral,
que o sistema colonial é marcado pelo sistema exportador de produtos agrícolas que orienta o
processo de colonização (circulação externa de bens), subjugado a uma espécie de
mercantilismo português (acumulação primitiva de capitais), em que o tráfico de escravos
negros para o Brasil é uma transplantação de experiências prévias lusitanas no continente
africano (é um meio para obter a acumulação). A colonização detém, portanto, um sentido claro
de expansão produtiva da economia portuguesa a partir de excedentes gerados na colônia68. A
outra escola é formada por Jacob Gorender (1978) e Ciro Flamarion S. Cardoso (1980) que
explica a colonização em função da máxima exploração do modo de produção escravagista da
colônia, e não pela circulação externa de excedentes agrícolas.
Em comum, essas duas escolas tinham, no entanto, a visão de que a colônia era totalmente
sujeita às determinações externas (comércio e flutuação de preços) e que tinham na escravidão
68
Segundo Fragoso e Florentino (2001), esta escola rompia com a teoria dos ciclos de produção que explicavam
o colonialismo a partir da descoberta e exploração de uma determinada matéria-prima (pau-brasil, açúcar, ouro e
café), encontrada em Roberto C. Simonsen (2005) e ligeiramente recuperada por Dowbor (1982).
141
um meio para a produção e circulação de produtos agrícolas de exportação. Era o que Dowbor
(1982) chama de processo de extroversão da produção agrícola sem formação da pequena classe
camponesa, dado que se funda no grande latifúndio em nada identificado com a constituição de
uma nação, guiado apenas pela formação de riqueza de famílias latifundiárias, sem visão de
povo. A escravidão, para estas duas escolas, não era lucrativa em si mesma. Além disso,
entendiam que não haveria formação de mercado interno suficiente para contrapor a
dependência do comércio interno. Fragoso e Florentino (2001) questionam essa visão e
demonstram que havia mercado interno na economia colonial, e que a sua estrutura era
complexa, havia produção agrícola e produção industrial têxtil incipiente. Tal como apontado
por Alencastro (2000), a escravidão era um sistema lucrativo e explorado interna e
internacionalmente por Portugal. O que é fundamental para nós, na análise de Fragoso e
Florentino (2001), é a explicação de que o Brasil Colônia é um projeto do arcaísmo português
em sua estrutura política, social, econômica e administrativa. O século XVI de Portugal não era
o da Modernidade insinuante, mas o da “atrofia tecnológica e demográfica”, atrasada em
relação aos pares europeus, quando a “colonização ultramarina transformou-se em precondição
para a perpetuação desta estrutura” aristocrata, antiga, com um Estado grande, com cidades que
tinham dificuldade em se desenvolver, e com uma agricultura insuficiente para se sustentar
internamente e uma indústria artesanal fraca (FRAGOSO & FLORENTINO, 2001, p. 42-43).
Disso, conclui-se que:
“Daí também poder-se assumir que o ‘atraso’ português, em pleno séc. XVIII,
não se constituísse em mero anacronismo, fruto de uma putativa incapacidade
de acompanhar o destino manifesto capitalista europeu; ao contrário, o
arcaísmo era, isto sim, um verdadeiro projeto social, cuja viabilização
dependia, no fundamental, da apropriação das rendas coloniais” (FRAGOSO
& FLORENTINO, 2001, p. 52, grifos nossos).
Essa realidade econômica pressionava para a construção de uma colônia moldada por
aventureiros, os semeadores de Buarque de Holanda (1995), que confusamente se apropriam da
colônia, sem tanta racionalidade de desenvolvimento. De outro lado, ela também contribui para
a formação do patronato, do patrimonialismo estamental, de um Estado grande e dado às
distribuições de honrarias em uma permanente necessidade de reprodução interna da
aristocracia portuguesa, como discutida em Faoro (2001). Constrói-se, então, uma realidade
legalista e formal, cujas regras, todavia, não servem a todos, e “as autoridades, embora tenham
regimentos, instruções e leis a obedecer, procedem em geral sem atenção a documentos
ordenadores” (IGLÉSIAS, 1993, p. 76). Em suma, como conclui Iglésias (1993, p. 72-73), “a
142
administração era muito confusa, com redundâncias e contradições [...]. Não se distinguia bem
o da Coroa e das autoridades, o público e o privado. A administração tinha muito de patrimonial,
estava longe de ser burocrática – para usar conceitos da sociologia de Max Weber”.
Murilo de Carvalho (2018) destaca que foram raras as reações cívicas da Colônia. Excetuando-
se as revoltas escravas, das quais a mais notável foi Palmares, quase todas as outras foram
conflitos entre setores dominantes ou reações de brasileiros contra o domínio de Portugal. A
mais politizada foi a Inconfidência Mineira (1789), cujos líderes pertenciam aos setores
dominantes (militares, fazendeiros, padres, poetas e magistrados). A mais popular foi a Revolta
dos Alfaiates (1798), na Bahia, “a única envolvendo militares de baixa patente, artesãos e
escravos” (CARVALHO, 2018, p. 30). Distinguia-se das revoltas de escravos anteriores por ter
ocorrido em uma cidade importante, não na busca por quilombos distantes. A única e mais séria
revolta do período colonial foi a Pernambucana (1817), também com militares de alta patente,
comerciantes, senhores de engenho e padres. Proclamaram uma república independente e
controlaram o governo por dois meses. “A identidade pernambucana fora gerada durante a
prolongada luta contra os holandeses, no século XVII. Como vimos, guerras são poderosos
fatores de criação de identidade” (CARVALHO, 2012, p. 25).
“de mentalidade mercantilista, dos chamados ‘déspotas esclarecidos’” (IGLÉSIAS, 1993, p.54)
–, não houve força suficiente para se mobilizar um processo de alteração deste quadro
institucional.69
Nesse Brasil que se formava, portanto, o bom era o homem branco escravizador, dado que não
podiam ser homens bons, além dos artesãos, como recorda Boris Fausto (1995, p. 64), “os
considerados impuros pela cor ou pela religião, isto é, negros, mulatos cristãos-novos”. E, de
toda essa estrutura burocrática confusa, conservadora e opressora, foi justamente “graças ao seu
enraizamento na sociedade” que “as Câmaras Municipais foram o único órgão que sobreviveu
por inteiro e até se reforçou, após a independência” (FAUSTO, 1995, p. 64).
4.3 1822 a 1930: direitos políticos e civis em um meio conservador, liberal e autoritário
Os próximos 108 anos de história do Brasil, da independência em 1822 até o final da chamada
Primeira República, em 1930, representam um longo percurso tanto para a Administração
69
Podemos ver, com Abrucio e Loureiro (2018, p. 39), que a experiência da administração da Colônia com o
ministro Pombal é mais uma das ambiguidades desta época, conforme eles argumentam: “a ‘burocracia pombalina’
ocupou altos postos governamentais e teve relevo no processo de independência, na organização do Estado e na
elaboração de um projeto de nação. Esta teve um papel modernizador ambíguo. De um lado, instalada no aparelho
estatal, pôde planejar a independência e atuar em prol da unidade nacional. Por outro lado, não rompeu – ou não
teve como romper – com a instituição que infelizmente marcou de forma crucial o caráter da sociedade brasileira
desde então: a escravidão”.
144
Pública quanto para a cidadania, no país. Do ponto de vista político, é consenso entre Fausto
(1995), Iglésias (1993), Murilo de Carvalho (1987, 2008, 2018), Alencastro (2000), Faoro
(2001), Guilherme dos Santos (1979) e Buarque de Holanda (1995) que a transição da Colônia
para o Império, com a independência, significou pouco em termos de alteração político-social
no país, sendo até entendido que 1831 marca uma independência mais efetiva que a formal,
ocorrida nove anos antes, dado que foi o momento em que se rompeu com a política portuguesa,
a partir da abdicação de D. Pedro I70. As principais instituições sociais da época da colônia
perpetuavam, como o absolutismo, a monarquia, a escravidão, a grande propriedade de terra e
a influência da Igreja.
Diante disso, importa para a cidadania que três eram os principais entraves à sua formação no
Brasil nesta época, segundo Murilo de Carvalho (2018), a escravidão, a grande propriedade de
terra (o latifúndio) e o descaso com a educação primária. Do ponto de vista da afirmação de
direitos, da emancipação e da inclusão social, o único marco realmente importante deste período
foi, de fato, a abolição da escravidão, mas essa ocorreu apenas formalmente, demonstrando uma
tentativa falha e incompleta de integração de ex-escravos aos direitos civis (MATOS, 2000;
IGLÉSIAS, 1993; GORENDER, 1978; CARVALHO, 2008, 2018; SCHWARCZ & GOMES,
2018). Efetivamente, pode-se dizer que essa incorporação não ocorreu até os dias de hoje. Nesse
sentido, Murilo de Carvalho (2018, p. 25) é taxativo: “o fator mais negativo para a cidadania
foi a escravidão [...]. Calcula-se que até 1822 tenham sido introduzidos na colônia cerca de 3
milhões de escravos. Na época da independência, numa população de cerca de 5 milhões,
incluindo uns 500 mil índios, havia mais de 1 milhão”.
70
Com a morte de D. Pedro I, em 1834, a herança política direta portuguesa se enfraquece porque os restauradores
perdem seu sentido político. Inicia-se assim a cisão entre liberais ou Luzias (agora sob o Partido Liberal) e
conservadores ou Saquaremas (do Partido Conservador), onde, conforme atesta Iglésias (1993, p. 156), “a procura
de um programa para esses partidos, de ideologia definida, é tarefa inútil”.
145
República. Isso minimiza o impacto destes eventos na formação social cidadã do Brasil. Neste
sentido, o reconhecimento de trabalhadoras e trabalhadores como sujeitos de direito é tardio e
não coaduna com a ideia de formação consciente de trabalhadoras(es) brasileiros(as), daí a ideia
de Alencastro (2000, p. 354) de que o mercado de trabalho brasileiro foi “desterritorializado”,
pois “de 1550 a 1930 [...] o contingente principal da mão-de-obra nasce e cresce fora do
território colonial e nacional”, primeiro com escravos, usurpados via tráfico, e depois com
“imigrantes europeus, levantinos e asiáticos”.
O segundo ponto, a grande propriedade de terra, por sua vez, tampouco servia para a cidadania.
Ela permitia a renda ao opressor que subjugava com força parcela significativa da sociedade.
Mais do que renda, porém, em um país de estrutura administrativa herdada do arcaísmo
aristocrata português, a grande propriedade de terra asseguraria também o poder político e o
judicial, pois, em um Estado ausente, cabia à grande fazenda se tornar o Estado presente. Neste
sentido:
“Não se pode dizer que os senhores fossem cidadãos. Eram, sem dúvida,
livres, votavam e eram votados nas eleições municipais. Eram ‘homens bons’
do período colonial. Faltava-lhes, no entanto, o próprio sentido da cidadania,
a noção de igualdade de todos perante a lei [...] Em suas mãos, a justiça, que,
como vimos, é a principal garantia dos direitos civis, tornava-se simples
instrumento do poder pessoal. O poder do governo terminava na porteira das
grandes fazendas” (CARVALHO, 2012, p. 21, grifos nossos).
Se, do ponto de vista político a grande fazenda representava o Estado ausente, com o
desenvolvimento da Administração Pública, deu-se o contrário. O Estado passa a ser o “Feitor
Ausente”, na expressão cunhada por Leila Algranti, no livro de mesmo nome de 1988, e que
Adriana Campos (2007, p. 213) retoma em seu texto. À medida que o aparato público se
desenvolve no séc. XIX e que a população negra cresce, aumenta-se também a repressão
governamental na mesma proporção, dada a “progressiva criminalidade escrava”, relacionada
“às formas de resistência ao sistema de dominação vigente à época” (CAMPOS, 2007, p. 213).
Isso passou a exigir uma ação pública a ser exercida quando não fosse possível o alcance do
feitor; assim, o Estado passaria a fazer as vezes do Feitor na punição à resistência negra. Trata-
se de uma das piores maneiras de se reivindicar a instituição do aparato policial e judiciário,
para se fazer opressão, mas isso não é por acaso, o primeiro Código Penal brasileiro foi
instituído logo em 1830 e, posteriormente, 1850, o comercial; ambos bem antes do primeiro
Código Civil brasileiro, de 1916, e mais de 100 anos antes do primeiro Código Eleitoral, de
146
1932. Simbolicamente, isso quer dizer que importava primeiro definir como punir e depois
como comercializar, afinal, os direitos de propriedade e de participação política dos homens
bons já estavam dados desde a Colônia, todos os conheciam e cabiam aos homens, aos
herdeiros, aos ricos e aos brancos (FAUSTO, 1995; IGLÉSIAS, 1993; CAMPOS, 2007;
CARVALHO, 1987, 2007, 2008, 2011, 2018).
O terceiro pilar, o da educação, representa também uma das grandes tragédias brasileiras. Não
há dados sobre o letramento no Brasil Colônia, mas a realidade apontada no final do século
XIX, era ruim. Como avalia Murilo de Carvalho (2018, p. 29), “não era do interesse da
administração colonial, ou dos senhores de escravos, difundir essa arma cívica. Não havia
também motivação religiosa para se educar. A Igreja Católica não incentivava a leitura da
Bíblia”. O resultado disso era, conforme Tabela 1, uma taxa de 16% de pessoas que sabiam ler
e escrever, segundo dados do primeiro recenseamento realizado no país, em 1872. Entre os
escravos, a quantidade era extremamente baixa, 0,06% dos homens escravos eram
alfabetizados, e entre as mulheres, 0,03%. Em 1870, nos EUA, 80% da população total era
alfabetizada, ao passo que apenas 20% da população negra e estrangeira também o era. Ambos
os números são bem mais expressivos que os brasileiros (SNYDER, 1993).
Fontes: Carvalho (2018); Guilherme dos Santos (2017), IBGE – Censo de 1872
(https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv25477_v1_br.pdf), elaboração própria.
147
Esses três fatores, escravidão, grandes propriedades de terra e baixo nível de educação, revelam
uma dificuldade em se constituir um contexto favorável à mobilização, à reivindicação e à
defesa de direitos no país em larga escala, no século XIX. Enquanto isso, paralelamente, temos
um lado da viabilização da cidadania operando em pequena escala, por meio da construção da
Administração Pública, que fica atrelado apenas ao desenvolvimento do Estado Nacional
conforme os interesses de uma pequena elite intelectual burocrática (jurídica e técnica), militar
e aristocrata em disputa entre si e entre uma elite financeira ruralista (CARVALHO, 1987,
2007, 2011, 2018). Embora pequena, mas representativa, essa parcela da população – e não a
grande maioria do povo livre e escravo – provocou as maiores mobilizações políticas, em
função das questões partidárias e de contestação à Monarquia, durante o Império. Tem-se uma
ilha de letrados, na expressão que Murilo de Carvalho utilizou em “A Construção da Ordem”
(2008). Daí, ter-se, no século XIX, um período de “efervescente mobilização política [...]
verificada na imprensa, nas associações e nos movimentos cívicos e contestatórios de rua [que]
encontrava ampla ressonância nos espaços oficiais de representação política” (BASILLE, 2011,
p. 89). Conforme Guimarães (2007), Barbosa (2007) e Carvalho (2007) discutem, forja-se um
intenso debate via imprensa pública e panfletos, mas que, obviamente, circulavam somente
dentre os poucos que sabiam ler.
O quadro de instabilidade política que se deu com as regências fez com que ocorressem muitas
contestações até pouco depois da ocorrência do golpe da maioridade, em 1840. Seria uma
oportunidade para as grandes reivindicações políticas, mas, como indicam Murilo de Carvalho
(1987, 2008, 2011, 2018), Boris Fausto (1995) e Francisco Iglésias (1993), a maior parte das
movimentações nem tangenciava a abolição da escravidão. Em sua maioria envolvia militares
e proprietários. Apenas a Revolta dos Malês, de 1835, teria sido totalmente levada a cabo por
escravos. Mas o debate político se fez presente e forte, e a participação eleitoral que se iniciou
significativa foi diminuindo com o tempo, de modo que “a participação eleitoral no Brasil
apresentou durante o século XIX uma curva descendente, em descompasso com o que se
passava em países europeus onde ela era lenta mas ascendente” (CARVALHO, 2011, p. 39).
Pelo Gráfico 5, vemos que a proporção do eleitorado sobre o total da população, que
148
efetivamente estava habilitado a participar dos pleitos eleitorais71 no século XIX, começou com
cerca de 10% da população em 1835, para cair para 0,8%, mais de 50 anos depois, em 1886.
Isso ocorreu porque, de início, “a lei brasileira permitia ainda que os analfabetos votassem.
Talvez nenhum país europeu da época tivesse legislação tão liberal” (CARVALHO, 2012, p.
30).
80
71,20 70,65
67,5
70
57,00
Em % da População Total
60
50
40
30
20 13,4
10 11,05
10 5,6
0,8 2,2 1,4 2,9
0
1835187218861894190619101922193019451962198219891994199820022006201020142018
Fonte: IBGE. Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais. População
residente enviada ao Tribunal de Contas da União - 2001 a 2015; Directoria Geral de Estatística, [187?]
/ 1930, Recenseamento do Brazil 1872/1920; IBGE, Censo demográfico 1940/2010; Murilo de Carvalho
(2011, 2018); Guilherme dos Santos (2017), elaboração própria.
Muito em função do contexto repressor, pobre, desigual e de baixa instrução formal, e pelo
pouco apego às regras e de grande extensão geografia dificultando o controle, as eleições eram
fraudulentas e violentas:
71
Conforme comenta sobre como eram as eleições à época, diz-nos Carvalho (2012, p. 30), “a eleição era indireta,
feita em dois turnos. No primeiro, os votantes escolhiam os eleitores, na proporção de um eleitor para 100
domicílios. Os eleitores, que deviam ter renda de 200 mil-réis, elegiam os deputados e senadores. Os senadores
eram eleitos em lista tríplice, da qual o imperador escolhia o candidato de sua preferência”.
149
Do ponto de vista político, porém, o tumulto era esperado, mas a formação da cidadania requer
aprendizado e amadurecimento pelo exercício. Isso é algo no qual a historiografia insiste, se
não fossem alteradas as regras eleitorais em 1881, tornando o voto censitário – restringido por
fatores financeiros e demais condicionantes, conforme Quadro 9 – não se teria postergado a
volta à participação eleitoral somente com a virada do século, atrasando em quase 100 anos a
participação proporcional acima do realizado em 1835.
Idade
Ano Alfabetização Voto Renda Mulheres Escravos Emprego
Mínima
Obrigatório
1821 21 Não Não Não Não Não
e Indireto
Obrigatório Assalariados, ordens
1822 20 Não Não Não Não
e Indireto religiosas
Não
Obrigatório e (Escravos Criados de servir,
25 (21 -
Indireto libertos
1824 chefes de Não (voto
100$ Não podiam
filhos-família, ordens
família) censitário) votar nas religiosas
primárias)
Obrigatório e Criados de servir,
Indireto
1846 25 (21) Não (voto
200$ Não Não filhos-família, ordens
censitário) religiosas
1881
Criados de servir,
(Lei Saraiva, Facultativo filhos-família, ordens
Decreto nº
25 (21) Sim e Direto 200$ Não Não religiosas e praças de
3.029, de 9 de
(censitário) pré e serventes de
janeiro de
repartições públicas
1881)
Criados de servir,
Facultativo filhos-família, ordens
1882 21 Sim e Direto 200$ Não Não religiosas e praças de
(censitário) pré e serventes de
repartições públicas
Criados de servir,
filhos-família, ordens
1891 Facultativo religiosas e praças de
21 Sim Não Não - pré e serventes de
(Constituição) e Direto
repartições públicas e
mendigos
Criados de servir,
1932 (Código
Obrigatório, filhos-família, ordens
Eleitoral e
religiosas e praças de
criação da 21 Sim Secreto e Sim Sim - pré e serventes de
Justiça Universal repartições públicas e
Eleitoral) mendigos
Obrigatório, Praças de pré e
1934
18 Sim Secreto e Sim Sim - serventes de repartições
(Constituição) públicas, mendigos
Universal
Ao largo da questão política, a Administração Pública seguiu se desenvolvendo com base nos
interesses desta mesma elite política, pois “uma das principais características da elite política
imperial, à semelhança de outras elites de países de capitalismo retardatário ou frustrado, era o
seu estreito relacionamento com a burocracia estatal” (2008, p. 145). Conforme comenta Cabral
(2017, p. 14), “ao longo da primeira metade do século XIX mantiveram-se os traços gerais da
estrutura burocrática que resultara da permanência da corte no Brasil”. Na transição para a
segunda metade, porém, a sociedade brasileira vai se tornando mais complexa, exigindo novas
especializações judiciárias e militares, aumentando gastos do Império, e, com isso se dão
reformas administrativas, conforme Quadro 10. Percebe-se, principalmente após 1850, um
primeiro esforço de burocratização no qual “a administração imperial avançava, afastando-se
da organização personalista, estruturada em cargos que agregavam o conjunto de atribuições”
(CABRAL, 2017, p. 20)
Período Características
Uma característica-síntese do período que se estenderá até a virada do século será uma
amálgama peculiar que junta conservadorismo, liberalismo e autoritarismo. A sua aparição se
dá, de forma institucionalizada, na própria Constituição de 1824 – que fora outorgada, vinda de
uma Assembleia Legislativa dissolvida pelo Imperador (IGLÉSIAS, 1993). Apesar disso, o
período imperial no Brasil coincide, segundo Guilherme dos Santos (1979), com o da utopia
liberal do século XIX, que seria pautada pela dinâmica de acumulação do mercado capitalista,
e que não incluía a problemática social nas discussões porque não era focada na construção de
uma sociedade de iguais entre si. É um liberalismo sui generis, no entanto, que faz conviver no
mesmo texto constitucional a liberdade do voto, as aspirações econômicas liberais, a escravidão
e o Poder Moderador intervencionista. Mas “é na omissão do problema do trabalho escravo que
a ordem jurídico-política iniciada em 1824 revela-se reacionária”, diz-nos Guilherme dos
Santos (1979, p. 18). Essa condescendência com a opressão, que mistura liberdade com
152
violência, se junta a um apego à tradição que, de tão conservador, demora tanto a romper com
o passado que faz do país a única monarquia de um continente inteiramente republicano, como
lembra Iglésias (1993), como também a última a abolir a escravidão. Quando instâncias
conservadoras são tão intensas, se não há um povo que rompa com a tradição, as mudanças vêm
de cima e pouco alteram o quadro institucional, e é por isso também que passam a flertar
sempre, a partir de 1889, com o autoritarismo de militares – a primeira instância já
burocratizada e nacionalista do país.
Em suma, todos, portanto, encontravam-se no que hoje poderia ser identificável em um mesmo
(e confuso) espectro de direita72, variando-se o grau de defesa da liberdade econômica e o grau
de defesa do conservadorismo. Murilo de Carvalho (1987, p. 42) destaca, no entanto, que essas
72
Conforme José Murilo de Carvalho (2008) destaca, existe uma disputa na historiografia política do Brasil deste
período em que autores como Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Nestor
Duarte e Vicente Licínio Cardoso negam diferenças contumazes entre os dois partidos, todos representando
praticamente a mesma elite burguesa. Para outros, como Raymundo Faoro, Azevedo Amaral, Afonso Arinos de
Melo Franco, as diferenças de origem dos seus representantes ajudam a ilustrar matizes ideológicos distintos. E,
ainda, para Fernando de Azevedo e João Camilo de Oliveira Torres, as diferenças situam-se mais no campo da
divisão original de seus representantes entre ruralistas e urbanos que no ideário político.
153
“ideias mal absorvidas ou absorvidas de modo parcial ou seletivo”, resultavam “em grande
confusão ideológica”, mas que isso não ocorria apenas no quadro da direita, “liberalismo,
positivismo, socialismo, anarquismo misturavam-se e combinavam-se das maneiras mais
esdrúxulas na boca e na pena das pessoas mais inesperadas”. Somente em um contexto destes
poder-se-ia ter gestado (e aceitado) a outorga – ou seja, a imposição – em 1824, de uma Carta
Magna que, “com todo o seu liberalismo”, como diz Murilo de Carvalho (2018, p. 34), “ignorou
a escravidão, como se ela não existisse”, criou os três poderes típicos das repúblicas
democráticas (Executivo, Legislativo e Judiciário), mas manteve um “resíduo do absolutismo”,
com o Poder Moderador. Ou seja, tínhamos, no Brasil, a seguinte situação: “o liberal era contra
o autoritarismo, queria eleições frequentes [desde que as mulheres não votassem], livre
expressão. Admitia, contudo, o sistema escravista de trabalho, flagrante incoerência”
(IGLÉSIAS, 1993, p. 154). 73
Vimos, nos tópicos anteriores, que um ingrediente fundamental para a construção da cidadania
é o nacionalismo. O Estado Nacional brasileiro teve de esperar até por isso, pois não foi fruto
de reivindicações populares. Não houve uma guerra que unificasse o país, mas conflitos
esparsos, sendo a maioria após a independência. Restava, então, a consolidação do aparato
burocrático, que foi sendo montado para viabilizar essa unificação nacional, como mediador de
todas essas ambiguidades. Conforme sintetiza Murilo de Carvalho (2008, p. 234): “exigia-se a
liberalização do Estado pela redução do controle sobre a economia, pela redução da
centralização, pela abolição do Poder Moderador, mas recorria-se a ele [esse mesmo Estado]
para resolver os problemas da escravidão [e não o fim desta], da imigração, dos contratos de
trabalho, do crédito agrícola, da proteção à indústria”. O aparato público, como objeto de
dominação das elites, era o instrumento unificador da pátria, pois era por meio dele que se
realizava o pacto federativo entre liberais e conservadores que depois foi transplantado para a
República Velha como Política de Governadores mediando interesses das elites paulistas e
mineiras (FAUSTO, 1995, IGLÉSIAS, 1993, CARVALHO, 2008, 2011, 2018).
73
A falta de coerência política não era incomum e avançou para a República Velha, como analisava Iglésias (1993,
p. 237), “mesmo políticos tidos como inovadores e representantes das formas tradicionais não ficam imunes a certa
sedução da direita, observável até nos tenentes, supostamente de esquerda”. Havia, portanto, confusão nas
definições políticas e imprecisão nas econômicas, permitindo liberais combinarem a defesa da liberdade com a
imposição autoritária. Conforme sentenciava Francisco Iglésias (1993, p. 237), “em um país sem sólida tradição
intelectual, com o embaralhamento de ideias de pouca clareza ou mesmo equivocadas, o pensamento costuma ser
fluido e até contraditório”.
154
Por fim, temos a questão econômica que é importante para a nossa análise específica sobre a
construção histórica da cidadania financeira no Banco Central do Brasil (BCB). O século XIX
é marcado, na economia brasileira, como o momento da consolidação do modelo agrário-
exportador, em que o açúcar e o cacau perdem espaço, e o café se estabelece como principal
produto, havendo alguns momentos de ascensão do algodão maranhense por força da guerra da
civil norte-americana e do início do sistema fabril interno, e mais curto e intenso, da borracha,
no Norte (LUZ, 1995). Conforme levantam Abreu e Lago (2014, p. 5), a importância do
crescimento da produção cafeeira no século XIX foi tal que “entre o início e o fim do Império,
a participação das exportações de café nas exportações totais aumentou de menos de 20% para
mais de 60%”. E foi a própria necessidade de financiamento da produção do café que
impulsiona a abertura de bancos comerciais nacionais e estrangeiros no país (ABREU &
LAGO, 2014). Abreu e Lago (2014) e Novelli (2001) comentam que os bancos privados
nacionais começam a ser criados entre de 1837 e 1840 e os internacionais chegam a partir de
186074. O Banco do Brasil, instituição que fora herdada do Brasil Colônia foi liquidado em
1829, tendo sido recriado em 1853, em uma reforma bancária. Em 1866, foi abolida a emissão
bancária, e o Tesouro Nacional assumiu o monopólio da capacidade emissora. Esse período
experimenta também as primeiras crises financeiras e monetárias, com a escassez de moeda,
em 1830; a crise comercial (com centenas de falências decorrentes da queda dos preços
internacionais das commodities brasileiras), em 1857; e o próprio endividamento do Estado com
os bancos Rothschild para cobrir os gastos com a guerra do Paraguai, em 1864 (ABREU &
LAGO, 2014; NOVELLI, 2001; PRADO JR, 1983). Fora isso, o país já amargara os custos de
legitimação do Estado independente, com o Império Britânico, além das negociações tarifárias
do início do século que foram bastante desfavoráveis ao país e fizeram da Inglaterra o nosso
principal fornecedor. Segundo Leslie Bethel (2011, p. 20) “nos anos de 1808-1850 a Inglaterra
geralmente supria a metade de todas as importações do Brasil (Portugal, França e Estados
unidos apenas 10% cada)”.
74
São alguns exemplos: como o Banco Commercial da Bahia (1847), o Banco Commercial do Maranhão (1846),
o Banco Commercial do Pará (1847), o Banco de Pernambuco (1851). Banco de Campos (1863), o Comercial do
Rio de Janeiro (1866), o Rural e Hipotecário (1868), o London and Brazilian Bank (1862), o Brazilian and
Portuguese Bank (1863) que mudou de nome para English Bank of Rio de Janeiro (1866), o Deutsche
Brasilianische Bank, (1870), para maiores detalhes v. Abreu e Lago (2014) e Novelli (2001).
155
A mudança para a república foi uma quebra do quadro institucional pelos militares, que já nessa
época, conforme afirma Cabral (2017), ocupam um lugar de destaque no tamanho, na despesa
e no estilo da Administração Pública, cheia de regras, especializações e formalizações. A
Constituição de 1891 – que aspirava a um Brasil unificado, tanto que se chamou proclamou o
nome dos Estados Unidos do Brasil, que foi mantido na república até 1967 (BRASIL, CEUB,
1891) – traz traços de um regresso conservador, como na questão do voto (v. Quadro 9), e
principalmente porque, numa sociedade já desigual e injusta, “retirou do Estado a obrigação de
fornecer educação primária, constante da Constituição de 1824” (CARVALHO, 2018, p. 67).
Os direitos civis, como dito antes, representados pela vinculação ao passado por uma legislação
antiga, focavam mais a propriedade e o comércio que as questões de liberdade, subjetividade e
identidade, ou de reconhecimento de sujeitos de direito, haja vista o tratamento dado a escravos,
a mendigos e mulheres. Os direitos sociais teriam de esperar a virada do século para começar a
se institucionalizar no país (CARVALHO, 2018; SANTOS, 1979; IGLÉSIAS, 1993). Esse
quadro pouco promissor assistirá a uma combinação perversa de fatores: a defesa de reformas
de Estado com liberalismo econômico (ajustes fiscais) após as crises financeiras e monetárias
da transição do século, a falta de inclusão social e o autoritarismo – que vingará por toda a
República Velha. Murilo de Carvalho (2018) destaca dois movimentos sociais que despertam
nessa transição, o abolicionista, em 1887 e os tenentistas, a partir de 1922. Os dois configuram
o que ele chama de cidadania em negativo, porque são movimentos reativos e não propositivos,
mais resistem a um passado e presente opressores que promovem mudanças efetivas. E nessa
combinação, chega-se à República Velha sem maiores movimentações de inclusão social,
embora com vários episódios – violentamente combatidos – de contestação.
156
Já na transição para o novo século, os direitos sociais trabalhistas começam a ganhar corpo,
mas ainda falta-lhes uma institucionalização burocrática, ou seja, um braço da Administração
Pública que coordene e acompanhe a propagação desses direitos na sociedade (Quadro 11).
Isso demonstra que a viabilização da cidadania, em condições de desenvolvimento desigual,
depende da Administração Pública para a sua devida implementação.
Normatização Ano
Lei amparando os empregados das estradas de ferro do Estado (Lei 3.397, de 24 de
1888
novembro de 1888)
Fundo de Pensões do Pessoal das Oficinas da Imprensa Nacional (Decreto 10.269, de
1889
20 de julho de 1889)
Direito a férias de 15 dias para os trabalhadores no abastecimento de água da Capital
1889
federal, logo estendido aos ferroviários da Estrada de Ferro Central do Brasil
Direitos de aposentadoria a todos os ferroviários, públicos, naturalmente, ao mesmo
tempo em que se criava, em 1890, fundo de pensão para o pessoal do Ministério da
1890
Fazenda e para o pessoal da Estrada de Ferro Central do Brasil (Decreto 565,
republicano, de 12 de julho de 1890)
Regulamentação impedindo do trabalho infantil - bases da assistência à infância
1890
desvalida (Decreto 439, de 31 de maio, de 1890)
Decreto 1.313 do Governo Provisório, de 17 de janeiro de 1891, regulamentaria o
1891
trabalho dos menores nas fábricas da Capital Federal.
Lei de proteção a acidentes de trabalho 1919
Legislação simultânea sobre velhice, invalidez e morte (dependentes) e doença e
1923
auxílio-maternidade
Decreto-Lei n. 4.682, criando a Caixa de Aposentadoria e Pensão dos Ferroviários
1923
(Lei Eloy Chaves)
Decreto Legislativo 4.982, de 24 de dezembro de 1925, concedendo 15 dias de férias
1925
anuais aos trabalhadores
Governo autorizado a criar o Instituto de Previdência para os funcionários da União
1926
(Decreto Legislativo n. 5.128, de 1926)
Decreto 17.496, de 30 de outubro de 1926, legislação sobre direito a férias 1926
Decreto 19.646, de 31 de março de 1927, transforma a previdência social dos
1927
servidores públicos em matéria de competência exclusiva do Governo
Código de Menores- Decreto-Lei 17.934/A, de 12 de outubro de 1927 1927
Apesar destes pequenos avanços, porém, faltava o principal: um povo que se mobilizasse para
as mudanças e para que o Estado efetivasse a consolidação de uma cidadania efetiva:
“Pode-se concluir, então, que até 1930 não havia povo organizado
politicamente nem sentimento nacional consolidado. A participação na
política nacional, inclusive nos grandes acontecimentos, era limitada a
pequenos grupos. A grande maioria do povo tinha com o governo uma relação
157
Conforme comenta Octavio Ianni (2004, p. 29), “em 1930 o Brasil realizou uma tentativa
fundamental no sentido de entrar no ritmo da história, tornar-se contemporâneo do seu tempo,
organizar-se segundo os interesses dos seus setores sociais mais avançados”. A historiografia
já demonstrou o tamanho da complexidade de se estudar toda a movimentação político-social
de 1930 e suas diversas interpretações, seja do ponto de vista político-social75, seja do
econômico76. Não nos cabe aqui reconstruir esse debate. Apenas tomaremos os marcos cruciais
dessa época como um momento fundamental para a discussão do entrelaçamento de
Administração Pública e cidadania no Brasil.
75
Dentre as interpretações consolidadas, temos as visões que tratam a Revolução de 1930 como sendo uma
ascensão da elite burguesa ao poder, e a interpretação que rechaça essa movimentação, de Boris Fausto, de que a
entende como um movimento complexo e contraditório no qual nenhum grupo se destaca isoladamente, muito
menos uma classe industrial ascendente. Ver Oliveira (1978).
76
Apenas para citar algumas das mais relevantes, em termos da industrialização, temos (a) a escola dos Choques
Adversos, que entende a industrialização como um fenômeno restrito a crises do setor exportador, dividida em
duas vertentes: a interpretação cepalina, que analisa o caso brasileiro como uma extensão de uma dicotomia centro-
periferia da divisão internacional do trabalho; e a leitura de Maria da Conceição Tavares e de Celso Furtado, que
entende 1930 como ponto de inflexão no processo de industrialização, de agrário-exportador para a substituição
de importações, mas mantendo a dependência externa. A outra vertente é a (b) de Robert Nicol e Warren Dean,
que entende a industrialização como uma decorrência da expansão do setor agrário-exportador e não da sua crise.
Uma terceira análise é (c) da Ótica do Capitalismo Tardio, de Wilson Cano, que entende a industrialização como
um processo longo e contraditório que vem da formação tardia do capitalismo brasileiro com a formação industrial
gerando paulatinamente excedentes próprios que impulsionam o setor. A quarta escola (d) entende que o Estado é
o grande agente indutor e responsável pelo desenvolvimento industrial no período por meio do protecionismo. E,
uma quinta vertente, (e), de Wilson Suzigan, a da industrialização induzida por produtos básicos que se alternam
na formação dos excedentes necessários ao impulso industrial.
158
Além disso, é neste período também ocorrerá uma consolidação particularmente importante
para a nossa pesquisa, a de outro elemento do sistema capitalista brasileiro, a modernização do
sistema financeiro nacional – que ocorrerá tanto do ponto de vista organizacional, com a criação
das instituições reguladoras do mercado, quanto do da ideologia, no longo debate que se verá
entre desenvolvimentistas e liberais (ABREU, 2014; IANNI, 2004; PIERUCCI et al., 2007;
BIELSCHOWSKY, 2004). Essa formação do sistema financeiro nacional é de importância
fundamental para compreender as raízes da formação do Banco Central do Brasil como
burocracia pública e como difusor do liberalismo econômico no país, inserido em um contexto
conservador e autoritário de sua época de criação.
Embora haja divergências quanto às interpretações das vertentes econômicas do período que
marca o fim da República Velha (SALOMÃO, 2017; CANO, 2015), existe certo consenso na
literatura especializada de que o período que se estende da Revolução de 1930 ao fim do Estado
Novo demonstra o início de um debate que avançou por todo o século XX, no Brasil, e que fez
tangenciar as áreas da Administração Pública (como braço executor do Estado) e da Economia:
o debate sobre o desenvolvimentismo (FONSECA, 2017, 2015, 2002; FONSECA & HAINES,
2012; BIELSCHOWSKY, 2004). Na verdade, esse período fez eclodir uma controvérsia que
aproximava desenvolvimentismo, industrialização e planejamento público, de um lado, ao qual
se opunha o crescimento econômico impulsionado pelo modelo agrário-exportador (explorando
as vantagens comparativas brasileiras) defendido pelo liberalismo econômico, de outro. A este
respeito, conforme argumentou Reis Velloso (2010, p. 11), “na verdade, havia uma dupla
controvérsia – planejamento/industrialização”, que teve como principais nomes inicialmente
Roberto Simonsen, em defesa do chamado dirigismo econômico a favor da formação de uma
159
política industrial nacional, mais interventor na economia, portanto, e de outro, Eugênio Gudin,
patrono brasileiro dos liberais econômicos modernos (DOELLINGER, 2010).
Grande parte dessa controvérsia, porém, – similarmente ao que acontecia com as posições
políticas do Império e da República Velha – permanecia dentro um mesmo lado do espectro
social brasileiro, o da elite financeira e política nacional que aparentava romper com a
construção oligárquica dada pela República Velha, mas que, de fato, propunha uma alteração
do quadro institucional sem transformar a estrutura social do país e suas forças políticas
tradicionais. Em função, disso, a historiografia nacional consagrou para o período a expressão
de “modernização conservadora”, discutida pelo sociólogo Barrington Moore Jr. (1967) na
formação das democracias modernas, e que no caso brasileiro destacava o fato de que se
buscava avançar na construção de um Estado Nacional, com um aparato burocrático forte e uma
economia dinâmica – ou seja, aprofundando o processo de racionalização típico da
Modernidade – porém, “sem qualquer reformulação substancial da estrutura econômico-social
preexistente”, pois mantinham-se (e acentuavam-se) os traços elitistas, opressores e ambíguos
que marcaram a realidade política anterior, ou seja, a sua raiz conservadora e autoritária, com
mudanças institucionais vindas de cima da cadeia social financeira, sem a devida participação
popular (GOMES et al. 2007, p. 105).
Essa aparente contradição, de algo Moderno – e, portanto, que quer romper com o pensamento
mágico-tradicional e com o discurso da autoridade – mas que é ao mesmo tempo Conservador
– ou seja, que busca manter a tradição, a autoridade, os privilégios –, é apenas uma das
contradições da evolução social que marcam a economia política brasileira. Daí Murilo de
Carvalho (2008, p. 229) identificar nas origens contraditórias da elite política nacional o que
chama de “dialética da ambiguidade” presentes no século XIX. Essa ambiguidade encontra-se,
principalmente, na construção de um Estado, durante o Brasil Império, que é ao mesmo tempo
razão de manutenção das estruturas sociais e meio de transformação das mesmas estruturas.
Tais ambiguidades espraiam-se pelo debate político e econômico do país, em que os próprios
agentes são contraditórios. Doellinger (2010, p. 24), por exemplo, ao comentar a posição do
patrono do liberalismo econômico brasileiro, diz: “em face da crescente radicalização política,
confundiam-se liberais e conservadores. Eugênio Gudin poderia ser considerado um liberal,
160
Nesta mesma época, “do ponto de vista da cidadania, o movimento operário significou um
avanço inegável” (CARVALHO, 2018, p. 64). Conforme Murilo de Carvalho (2018), Francisco
Iglésias (1993) e Boris Fausto (1995) observam, o intervalo entre 1930 e 1937 é comparável ao
nível de agitação política de 100 anos antes, no tumultuado período das regências. Existem
muitos movimentos de políticos e sociais mais intensos, mas a solução dada para os
movimentos sociais reivindicatórios foi uma resposta ainda mais autoritária que a dos períodos
anteriores. Em 1937, tem-se mais um golpe de Estado e instaura-se o Estado Novo, no país. O
Estado Novo, como costumam ser as ditaduras, cassam direitos políticos e promovem um
retrocesso nessa dimensão da cidadania. Em nada adianta o direito ao voto concedido às
mulheres em 1932 e consagrada na Constituição de 1934, pois os direitos políticos são
cerceados em 1937. De outro lado, numa flagrante dialética da ambiguidade, promove-se um
avanço até então sem precedentes na legislação trabalhista e na construção do sistema
previdenciário brasileiro (Quadro 12), aprofundando e ampliando o espectro de direitos sociais
que, para serem devidamente viabilizados, contam com o desenvolvimento de um aparato
161
A partir de 1937, portanto, acontece uma aproximação peculiar, que é resultado de uma dialética
ambígua, autoritária e paternalista, ao mesmo tempo favorável e desfavorável à cidadania. De
um lado, estabelece-se o “nacionalismo, incentivado pelo Estado Novo”, como “principal
instrumento de promoção de uma solidariedade nacional, acima das lealdades estaduais”
(CARVALHO, 2018, p. 92). De outro, institui-se uma Administração Pública cada vez mais
complexa e crescente, na qual “em 1920, o funcionalismo federal era constituído por 65.533
indivíduos”, ao passo que, “em 1965, temos 381.202 pessoas [...] sem considerar as
administrações estaduais e municipais e os militares” (PAIVA, 2009, p. 779). A existência de
uma Administração Pública sob dominação racional-legal junto a um sentimento de
nacionalismo, diante de um processo de modernização do Estado Nacional, deveriam promover
162
uma evolução significativa da cidadania em todas as suas dimensões. Não foi isso, porém, o
que ocorreu. Viu-se um aprofundamento distorcido, sob um crescente autoritarismo que se
consolidou em um regime de exceção.
Neste sentido, é particularmente simbólico que no ano de 1937 se tenha, em um mesmo texto
constitucional (outorgado), a retirada do direito de greve (art.139), de um lado, e a previsão do
estatuto dos funcionários públicos (art.156) que inclui a realização de concursos públicos para
investidura nos cargos, direitos como férias e aposentadoria, além da modernização
administrativa com a criação de um órgão (art.67) que culminará na criação do Departamento
Administrativo do Serviço Público (DASP), conforme Decreto-Lei nº 579, de 30 de julho de
1938. Da mesma forma, é perversamente simbólico que a quarta constituição brasileira – a
segunda que foi imposta ao povo – seja divulgada no mesmo dia do Golpe de Estado que
instituiu a ditadura de Vargas – a primeira ditadura republicana –, trazendo em seu preâmbulo
como justificativa para a sua imposição o “estado de apreensão criado no País pela infiltração
comunista” (BRASIL, CEUB, 1937). No sentido político, havia sido, portanto, a mais
anticidadã de todas as constituições, instituindo questões como a pena de morte (art.122, 13), a
censura prévia (art.122, 15, a) e a suspensão da imunidade parlamentar (art.169) (BRASIL,
CEUB, 1937).
O Estado Novo durou até 1945 quando o país viverá, de 1945 a 1964, um primeiro momento
efetivamente democrático em 445 anos de história até então, um suspiro em meio a tantos
regimes autoritários e conservadores, mas que não alcança 20 anos de duração. Neste momento,
uma congruência ocorre com a aproximação das discussões econômicas e administrativas,
especialmente, em função do amadurecimento de um processo que vinha desde os anos 1930:
o uso de instrumentos de planejamento como base para o desenvolvimento econômico (Quadro
13). Essa aproximação fará intensificar-se o debate econômico entre desenvolvimentistas e
liberais, conforme discutem Bielschowski (2004), Abreu (2014), Fonseca (2017, 2015, 2002) e
Fonseca e Haines, (2012), um debate que dominará a discussão econômica por todo o século
XX.
Normatização
Período Planos Objetivos
associada
Plano Especial
de Obras
Decreto nº 1.058, Fruto do trabalho técnico do DASP, visava possibilitar o
1939 a Públicas e
de 19 de janeiro desenvolvimento de indústrias de base, executar obras
1943 Reaparelhamento
de 1939 públicas e estruturar a defesa nacional.
da Defesa
Nacional
Praticamente uma continuação do Plano Especial de Obras
Públicas e Reaparelhamento da Defesa Nacional, mas teve
Plano de Obras e Decreto-Lei nº sua continuidade frustrada pela promulgação da Constituição
1943 a
Equipamentos 6.144, de 29 de de 1946, que determinou a existência de um orçamento uno,
1946
(POE) dezembro de 1943 impedindo que o plano corresse em paralelo determinando
previsões de despesas na linha dos decretos anteriores (Art.
73) (BRASIL, CEUB, 1946).
Lei nº 1.102 de 18
Elaborado com base nos trabalhos anteriores do
de maio de 1950;
1950 a Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP),
1951 Plano SALTE previa investimentos nos setores de saúde, alimentação,
Mensagem
(1953) transporte e energia, criava a figura do administrador-geral
Presidencial no
do Plano (Decreto nº 28.225, de 12 de junho de 1950).
196 de 1948
Plano de desenvolvimento econômico que buscava o
Plano Nacional
financiamento externo (com os EUA) que era pontado como
de Lei nº 1.474, de
1951 a um problema nos planos anteriores. Criou também o Fundo
Reaparelhamento 26 de novembro
1956 de Reaparelhamento Econômico, dado que os problemas de
Econômico de 1951
execução dos planos anteriores passavam pela dificuldade de
(Horácio Lafer)
financiamento.
164
A) Energia:
Metas - 1) Energia Elétrica; 2) Energia Nuclear; 3) Carvão
Mineral; 4) Produção De Petróleo; 5) Petróleo (Refinação)
B) Transportes:
6) Reaparelhamento das Ferrovias; 7) Construção de
Decreto nº 38.744
Ferrovias; 8) Pavimentação Rodoviária; 9) Construção de
de 01 de fevereiro
Rodovias; 10) Serviços Portuários; 11) Marinha Mercante;
de 1956 (Cria o
Programa de 12) Transporte Aéreo;
1956 a Conselho de
Metas (Plano de C) Produção de Alimentos:
1961 Desenvolvimento)
Metas) 13) Produção de Trigo; 14) Armazéns; 15) Frigoríficos; 16)
e
Matadouros industriais 17) Mecanização da Agricultura; 18)
Legislação
Fertilizantes
dispersa
D) Indústrias de Base:
19) Siderurgia; 20) Alumínio; 21) Metais Não-ferrosos; 22)
Cimento;23) Álcalis; 24) Celulose e Papel; 25) Borracha; 26)
Minério de Ferro; 27) Indústria Automobilística; 28)
Indústria de Construção Naval; 29) Indústria Mecânica e de
Material Elétrico Pesado; 30) Formação de Pessoal Técnico
Objetivos Básicos:
1. Assegurar uma taxa de crescimento da renda nacional;
2. Reduzir progressivamente a pressão inflacionária;
3. Criar condições para que melhorar a distribuição de renda
Plano para a população;
Trienal de 4. Intensificar substancialmente a ação do Governo no campo
1962 a Desenvolvimento Sem legislação educacional, da pesquisa científica e tecnológica, e da saúde
1963 Econômico e específica pública;
Social 5. Orientar adequadamente o levantamento dos recursos
(Celso Furtado) naturais e a localização da atividade econômica, visando
reduzir as disparidades regionais;
6. Eliminar entraves de ordem institucional, responsáveis
pelo desgaste de fatores de produção e pela lenta assimilação
de novas técnicas, em determinados setores produtivos;
7. Encaminhar soluções visando refinanciar adequadamente a
dívida externa;
8. Assegurar ao Governo uma crescente unidade de comando
dentro de sua própria esfera de ação.
Fontes: Biblioteca Digital do Planejamento (Ministério do Planejamento); Abreu (2014); Vianna
(2014a, 2014b); Pinho Neto (2014); Orenstein e Sochaczewski (2014); Mesquita (2014); Vianna e
Villela (2011); Villela (2011), elaboração própria.
passavam interferir decisivamente nas políticas públicas E foi nesta época que a pressão de
técnicos (especialmente economistas) de dentro e de fora do governo começa a mostrar força,
especialmente quando os órgãos de econômicos do governo começam a ser criados,
primeiramente, com a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) (Decreto-Lei nº 7.293,
de 2 de fevereiro de 1945), uma versão embrionária do Banco Central do Brasil. Como Dargent
(2015, p. 2) afirma, “os tecnocratas são atores de longa data na América Latina”, pois, em
quadros históricos de líderes populistas e de uma população desigualmente formada, “o
conhecimento técnico fornece ao seu portador um poder considerável”, capaz, segundo ele, de
determinar políticas que contrariem o projeto político legitimado pelo voto (DARGENT, 2015,
p. 5).
Em meio a este cenário, a Constituição de 1946, desta vez promulgada então, instituiu
constitucionalmente os direitos do trabalho, embora de modo conservador, posto que os
reconhecia, mas não os regulamentava. Ela manteve a liberdade de imprensa e foi escrita de
modo pluripartidário, mas ainda centralizava um controle do movimento sindical, usado como
ferramenta de apoio e controle pelo Estado (CARVALHO, 2018). Ou seja, havia de fato uma
cidadania regulada, tal qual apontado por Guilherme dos Santos (1979). Mas de nada adiantava
o direito, se a elite tecnocrática econômica e liberal não quisesse uma agenda social no governo.
166
Gráfico 6 – Dívida externa registrada, total anual em US$ (milhões), de 1946 a 1964
$4.000
Milhões de Dólares
$3.462
$3.500 $3.155
$3.000
$2.568
$2.500
$2.000
$1.500
$1.000
$644
$500
$-
1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960 1961 1962 1963 1964
Dutra Vargas JK Jânio Jango Castelo Branco
100,00 91,80
80,00
60,00
Em Percentual
39,20
40,00
21,90
20,00 14,70
0,00
1930
1931
1932
1933
1934
1935
1936
1937
1938
1939
1940
1941
1942
1943
1944
1945
1946
1947
1948
1949
1950
1951
1952
1953
1954
1955
1956
1957
1958
1959
1960
1961
1962
1963
1964
-9,00
-20,00 Vargas Estado Novo Dutra Vargas JK JânioJangoGolpe
Como Habermas (2015, p. 57) alerta, portanto, “os regimes tecnocráticos continuarão a
proliferar sob o rótulo inocente de ‘governança’, desde que as fontes de legitimação
167
Como vimos, dois processos econômicos históricos surgem nessa época e se tornam centrais na
agenda econômica dos governos, a inflação e a dívida externa, passando a dominar planos e
estruturas de governo. Ambos, porém, foram associados, pela vertente liberal e conservadora,
aos planos desenvolvimentistas, que deveriam ser controlados a qualquer custo. Assim, o
período seguinte consistirá na nova incursão de militares no poder, em mais um retrocesso
democrático e consolidará a ascensão de economistas no poder.
acomodar agitações políticas. Mais uma vez a estrutura da Administração Pública é reforçada,
tornando-se ainda mais tecnocrática. E, mais uma vez, os direitos políticos e civis são
sacrificados e amortecidos por cessões de direitos sociais trabalhistas pelo Estado.
Praticamente, sob ditadura e repressão, todo o aparato de Bem-Estar Social relacionado à
previdência, por exemplo, foi consolidado no regime militar (Quadro 14).
Do ponto de vista da Administração Pública, tem-se o mais significativo marco legal desde a
criação do DASP, com a edição do Decreto-Lei nº 200 de 1967. Cavalcante e Carvalho (2017,
p. 5), como a maioria da pesquisa brasileira, considera este decreto como sendo “a segunda
reforma administrativa do país”. Ignoram, no entanto, as reformas administrativas do Império
que comentamos no Quadro 10. De qualquer maneira, o Decreto-Lei 200 de 1967, “estabelecia
169
Todo este novo aparato institucional propiciou o uso intensivo de planos de governo, tal como
no período anterior, tentando combinar dinâmicas de desenvolvimento social com planos
econômicos. É interessante perceber que, neste período, começa a se desenvolver uma
dominância econômica sobre as pautas dos governos, sendo que, em todos os planos, a principal
questão é a econômica que condiciona todas as demais. Mesmo o esforço de modernização da
Administração Pública começa a aparecer como questões auxiliares destes instrumentos
(Quadro 15). Neste sentido, alguns planos começam a citar a profissionalização, a melhoria de
processos e de estruturas administrativa como requisitos a serem desenvolvidos para o sucesso
dos planos. O I PND, por exemplo, trazia como ações administrativas para modernização das
estruturas da administração direta e indireta o “incremento da profissionalização da
administração” (BRASIL, 1972, p. 70). II PND, por sua vez, trazia ao final a menção ao
“fortalecimento da estrutura das Secretarias-Gerais, dotando-as de unidades permanentes de
planejamento, orçamento e reforma e modernização administrativa, com equipes técnicas
também permanentes, à base da carreira de Técnicos de Planejamento” (BRASIL, 1974, p. 141).
Era a burocratização final da Administração Pública.
170
Normatização
Período Planos Objetivos
associada
Ironicamente, apresentava-se como uma fórmula bem-sucedida
de planejamento democrático. Tinha como objetivos: 1)
Programa de
aumentar o crescimento econômico; 2) conter o processo
1964 a Ação Econômica Sem legislação
inflacionário; 3) atenuar os desníveis econômicos setoriais e
1967 do Governo específica
regionais; 4) melhorar as oportunidades de emprego produtivo
(PAEG)
à mão de obra; 5) corrigir a tendência a déficits descontrolados
do balanço de pagamentos.
Programa
Aprofundar o processo de desenvolvimento econômico e social,
1968 a Estratégico de Sem legislação
por meio de um programa de investimentos nas áreas
1970 Desenvolvimento específica
consideradas estratégicas
(PED)
Tinha como objetivo transformar o país em uma economia
Plano de Metas e
desenvolvida até o final do século, atuando em quatro áreas: 1)
1970 a Bases para a Sem legislação
educação; 2) saúde e saneamento; 3) agricultura e
1972 Ação do específica
abastecimento; 4) desenvolvimento científico e tecnológico; 5)
Governo
poder de competição da indústria nacional.
Tinha três objetivos: 1) colocar o Brasil no espaço de uma
geração na categoria de nações desenvolvidas; 2) duplicar a
renda em relação a 1969 per capita até 1980; 3) elevar o PIB em
I Plano Nacional Lei 5.727,
1974 de 8% a 10%.
1972 a de promulgada em
Previa, nas ações administrativas, uma Reforma
1974 Desenvolvimento 4 de novembro
Administrativa.
(PND I) de 1971
Instituiu o Programa de Promoção de Grandes
Empreendimentos Nacionais e abriu um diálogo com o
empresariado nacional.
Lei n.º 6.151, de
4
de dezembro de
1974;
II Plano Nacional
Mensagem n.º Tinha por objetivos elevar a renda per capita e o produto
1975 a de
430, interno bruto, com os mesmos intuitos de tornar o Brasil um
1979 Desenvolvimento
de 10 de país desenvolvido.
(PND II)
setembro de
1974, ao
Congresso
Nacional
O objetivo-síntese era a construção de uma sociedade
desenvolvida, livre, equilibrada e estável, com base nos
III Plano chamados objetivos nacionais: 1) Acelerado crescimento da
1980 a Nacional de Resolução n.º renda e do emprego; 2) Melhoria da distribuição da renda; 3)
1985 Desenvolvimento 01, de 1980 Redução das disparidades regionais; 4) Contenção da inflação;
(PND III) 5) Equilíbrio do balanço de pagamentos e controle do
endividamento externo; 6) Desenvolvimento do setor
energético; 7) Aperfeiçoamento das instituições políticas.
Fonte: Biblioteca Digital do Planejamento (Ministério do Planejamento), elaboração própria.
171
Gráfico 8 – Dívida externa registrada, total anual em US$ (milhões), de 1964 a 1985
$120.000
Milhões de Dólares
$95.857
$100.000
$70.198
$80.000
$60.000 $43.511
$40.000
$17.166
$20.000
$3.155
$-
1964
1965
1966
1967
1968
1969
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
1977
1978
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
Castelo Costa e Silva Médici Geisel Figueiredo
Branco
Neste período, também o endividamento externo continuou forte e crescente (Gráfico 8), tal
qual a inflação. E ambos ocuparam a agenda do BCB recém-criado. É interessante notar que,
embora neste período constituía-se um Estado nos moldes do que Guillermos O’Donnel (1979)
concebia como burocracia autoritária, a primeira experiência de governo era uma inflexão
liberal, combatendo fortemente a inflação por meio da promoção de um ajuste fiscal duro, com
arrocho salarial. A esse primeiro momento seguiram-se tentativas de desenvolvimentismo,
novamente explorando o embate entre estas correntes até a redemocratização.
Os atos institucionais, a perda de direitos políticos e civis, a violência por parte do Estado, a
censura e a outorga de mais uma Constituição, a de 1967, maculam qualquer possibilidade de
aprofundamento de cidadania no período, mas os liberais econômicos comemoraram a
experiência liberal econômica e autoritária, repetindo – de maneira mais opressora – a realidade
vivida na virada Campos Sales-Rodrigues Alves, durante a República Velha. Dois últimos
aspectos seriam reforçados no período do regime de exceção, a concentração de renda nos mais
ricos e o aumento da desigualdade. Conforme Pedro Souza (2019, p. 370) demonstra, “o golpe
militar de 1964 assinalou um ponto de inflexão. A fração do 1% mais rico interrompeu a
172
tendência de queda e pulou de 17-19% [do acúmulo de renda] para mais de 25% entre 1964 e
1970”.
“Do período de restrição dos direitos civis aos ingênuos e libertos na Carta
Imperial de 1824 até o amplo reconhecimento dos direitos civis, políticos,
sociais e coletivos no texto constitucional de 1988, teria havido um processo
intenso de conquista e desenvolvimento da cidadania. Mas essa evolução no
cenário do palco constitucional não teve significado relevante na práxis
político-jurídica” (NEVES, 1994, p. 267).
Isso porque, conforme Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) comentam, as práticas autoritárias na
América Latina, que formalmente teriam caído após os regimes ditatoriais, não desapareceram
da sociedade, e nem a abertura democrática significou o final do projeto político autoritário na
região. Inclusive, o autoritarismo ganhou novas formas, até fora do Estado, quando ele se
espalhou para os grupos paramilitares, por exemplo, na Colômbia, ou nos grupos de autodefesa
no Peru, ou nas pandillas (bandos) e maras salvadorenhas, ou mesmo nas milícias no Brasil.
Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) destacam ainda o aggiornamento democrático das elites
conservadoras que assimilaram parte do vocabulário da época de transição, montando um falso
discurso democrático, como reflexo do aprendizado da ditadura, que aprendeu a dosar direitos
sociais com opressão.
Dois fenômenos chamam a nossa atenção neste período. O mais importante deles é a
promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988 (CRFB/88). O outro
é a conversão deste aparelho de Estado burocrático que veio sendo montado, desde 1930, de
impulsionador da modernização em responsável pelos descaminhos da economia no país. Os
173
país, cinco surgiram após a redemocratização. Se contarmos o início do regime militar de 1964,
serão sete desde o golpe de 31 de março daquele ano (Quadro 16). E estes problemas fizeram
com que os planos de governo que surgissem depois mudassem o enfoque; de ampliar a
estrutura, o foco passou a ser reduzir, cortar e desburocratizar. Essas visões geraram planos de
reformas administrativas de matiz gerencialista, no governo Collor e no governo FHC.
Como legado deste período, portanto, a questão liberal mais uma vez se contrapõe aos aspectos
desenvolvimentistas. Desta vez, porém, a agenda econômica é completamente dominante, e a
estabilização monetária e o ajuste fiscal passam a dar a tônica dos governos da Nova República
de José Sarney a Fernando Henrique Cardoso. O legado da burocracia autoritária foi a sua
conversão em uma burocracia tecnocrática econômica, na qual o Banco Central do Brasil
passou a ocupar um espaço fundamental. Apesar disso, a redemocratização conseguiu reverter
175
0,66
0,64
0,62
0,60
0,58
0,56
0,54
0,52
0,50
1976
1997
2005
1977
1978
1979
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1992
1993
1995
1996
1998
1999
2001
2002
2003
2004
2006
2007
2008
2009
2011
2012
2013
2014
Geisel Figueiredo Sarney Collor It. FHC Lula Dilma
Mais significativo que esse dado, no entanto, foi o expressivo decrescimento da pobreza, a partir
do governo Lula (Gráfico 10). Tratava-se de uma mobilidade social nunca acontecida, um
período de crescimento econômico com inclusão social sem precedentes, que levaram Laura
Carvalho (2018) a qualificá-lo como milagrinho, em alusão ao milagre econômico do período
ditatorial do regime militar. Foi uma ascensão das classes mais baixas reconhecida até mesmo
por economistas avessos às políticas petistas (NÓBREGA, 2016; BACHA, 2016; BOLLE,
2016).
176
6.000.001
5.000.001
4.000.001
3.000.001
2.000.001
1.000.001
1
1996
2002
1986
1987
1988
1989
1990
1992
1993
1995
1997
1998
1999
2001
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2011
2012
2013
2014
Sarney Collor It. FHC Lula Dilma
Após esse longo ciclo de recuos, autoritarismo e neoliberalismo, em 2003, o projeto político
democrático-participativo chegou ao poder. Não se procedeu uma inversão na política
econômica, que permaneceu neoliberal no primeiro mandato. Ao final do segundo mandato e
na transição para o segundo, porém, ocorre a tentativa de recuperação do desenvolvimentismo
com a chamada Nova Matriz Econômica, que combinava a taxa de juros reais alta, o câmbio
valorizado, o controle de preços administrados do petróleo e subsídios a setores produtivos para
conter efeitos de desaquecimento da economia (BASTOS, 2012; BARBOSA FILHO, 2017;
OREIRO; 2017; NÓBREGA, 2016; BACHA, 2016). A insatisfação da elite econômica liberal
foi muito forte neste período.
Como lembram Jessé Souza (2016) e Guilherme dos Santos (2017), porém, o conservadorismo
então latente na sociedade brasileira, combinado com a mudança de política econômica
proporcionada pela Nova Matriz Econômica, mais um projeto político autoritário que nunca
deixou de estar presente na sociedade brasileira, e, por fim, aliado a escândalos de corrupção
que vinham sendo investigados desde 2006, culminaram no impeachment da presidenta Dilma
Rousseff em 31 de agosto de 2016. Não sem antes o país protagonizar mais uma marcha às ruas
contra a corrupção, pelos valores morais da família tradicional brasileira e pela cidadania dita
177
do bem – reivindicada, em sua maioria, por homens brancos, de classe média alta ou ricos e
conservadores, como os homens bons do Brasil Colônia. As mobilizações sociais que eram tão
reivindicadas e que ficaram desarticuladas por tanto tempo, durante a história do Brasil, vieram
na transição da redemocratização. Primeiro, com a frustração das diretas já em 1985, depois
com o impeachment de Collor, em 1992; e depois, em 2013, de maneira inesperada, abrupta,
quando “cientistas políticos, sociólogos, jornalistas, políticos, serviços de inteligência,
marqueteiros, estavam longe de prever que a turbulência se verificaria tão cedo e com tanta
força” (CARVALHO, 2018, p. 7).
Se, bestializado, o povo estava na transição golpista da Monarquia para a República, em 1889;
em 2013, foi a nossa vez, e “todos assistimos, bestializados, a essa explosão coletiva de
insatisfação” (CARVALHO, 2018, p. 8). Manifestações havia no passado, mas o ingrediente
das redes sociais era novo, imprevisível. Essas manifestações, porém, frustraram-se como as de
1985, sem se compreender a sua real intenção, e não impediram a eleição do projeto político
democrático-participativo em 2014. Desta vez, porém, a falta de paciência com as instituições
democráticas, que Murilo de Carvalho (2018) tanto comenta, apresentou-se novamente, mas,
dessa vez, não foi o autoritarismo da força bruta a fazer a destituição do poder, mas a autoridade
da técnica, da tecnicalidade, a encontrar uma motivação pretensamente isenta para realizar a
transição de que gostaria o projeto político neoliberal.
O recado de um dos ex-presidentes do BCB parece estar certo, vivemos o tempo em que a
economia determina a legitimidade política:
178
Feito este longo caminho da cidadania no Brasil e da sua relação com a Administração Pública,
é hora de ver como isso se relaciona com o BCB, para fazer emergir a noção de cidadania
financeira.
179
Antes de entrar nos detalhes da genealogia do BCB, é preciso entender que a condução e a
execução da política monetária podem ocorrer sob diversos arranjos institucionais, e um dos
arranjos mais tradicionais – e para o qual a maior parte dos países evoluiu – foi por meio da sua
centralização em órgãos chamados bancos centrais (GOODHART, 1991). Nada impede, no
entanto, que a política monetária seja conduzida por outros arranjos ou por mais de um órgão,
e foi exatamente esse processo pelo qual o Brasil passou. Havia um arranjo descentralizado de
definição e condução de política monetária que foi centralizado depois na figura de dois órgãos,
o banco central e o Conselho Monetário Nacional (CMN). Além da política monetária, bancos
centrais foram assumindo novas funções ao longo do tempo, dentre as quais Ciocca (2015)
destaca a de fiscalização do sistema financeiro e a de manutenção dos sistemas de pagamentos,
entre outras, mas, fundamentalmente, a sua ideia-núcleo gira em torno das noções de política
monetária e de estabilidade do sistema financeiro (BLINDER, 2010; ILLING, 2008;
GOODHART, 2003; CHANT & ACHESON, 1986). Mais recentemente, após a crise financeira
de 2007-2008, novas funções foram destacadas, sobretudo a de regulador do sistema financeiro,
em uma visão que amplia a noção de mera fiscalização contábil incorporando a proteção ao
180
consumidor financeiro, tal como Tucker (2018) destaca, conjugando as visões de que se
chamam de macroprudenciais e de política monetária (COBHAM, 2012), além de papéis
subsidiários como o de provedor de análises econômico-financeiras, dado o grande
aprofundamento de departamentos de estatística e de pesquisa em bancos centrais em vários
países do mundo (CHORAFAS, 2013).
Para compreender essa evolução, no Brasil, portanto, é preciso entender minimamente o que
seriam a política monetária, seus instrumentos e regimes monetários no país. Conforme
Mankiw (2012, p. 330) define, política monetária corresponde à “fixação da oferta de moeda
[para a economia de um país] pelos formuladores de políticas no banco central”; trata-se de
uma das políticas econômicas mais tradicionais, ao lado da política fiscal (que versa sobre
dispêndios do governo), para promover estabilidade no funcionamento da economia, de acordo
com os objetivos perseguidos pelos formuladores dessa política. Tal como afirmam Sachs e
Larraín (2013, p. 630), a “questão de quais são ou devem ser os objetivos da autoridade
monetária não é fácil”, e, como Benjamin Friedman (2008) ressalta, podem ser múltiplos e
simultâneos, porém, pode-se dizer de modo genérico que, “em última análise, o interesse da
política monetária é promover a estabilidade e o crescimento econômico com baixa inflação”.
Diante disso, o seu foco primordial seria tomar decisões para afetar o nível geral de preços
impedindo movimentos fortes de sua elevação (inflação) ou de decrescimento (desinflação) que
prejudiquem o crescimento econômico. O termo política, portanto, refere-se ao fato de ser uma
decisão de Estado, ainda que executada por um órgão independente, sobre medidas que possam
afetar alguma variável econômica, no caso, a moeda. Essas medidas são os chamados
instrumentos tradicionais de política monetária como o redesconto, a taxa de juros e o depósito
compulsório.
Além disso, existe um extenso debate em macroeconomia, disciplina da Economia que estuda
as políticas monetária e fiscal afetando a economia como um todo (em nível amplo), sobre as
maneiras de condução da política monetária e os seus efeitos ou não na sociedade, e uma parcela
específica cuida dos chamados regimes monetários ou regimes de política monetária
(HEINEMANN, KLÜSH & WATZKA, 2017; TRUMAN, 2003; MODENESI, 2005).
Conforme Modenesi (2005, p. XLVI) define, um “regime monetário nada mais é do que uma
estratégia de condução da política monetária baseada na utilização de uma regra”. A ideia por
181
trás da definição desse tipo de regra, portanto, seria limitar a liberdade para atuar
(discricionariedade) dos executores da política monetária, pois uma parte significativa da
literatura econômica entenderia essa liberalidade como perniciosa77.
Malgrado a definição de regimes monetários ao longo da história econômica possa variar muito,
tal qual Bordo e Capie (1994) demonstram, para fins deste trabalho acompanharemos a
definição de Modenesi (2005) já citada, em cuja obra o autor também apresenta uma visão
panorâmica dos três principais tipos de regimes monetários consagrados pela economia,
baseados em três tipos distintos de regras: i) metas cambiais; ii) metas monetárias, iii) metas
para inflação. Muitas vezes a literatura econômica denomina a escolha de uma dessas metas
com o termo ancoragem, uma metáfora que remete à imagem de que política econômica está
segura, presa a uma meta que a fixa na estabilidade, ou seja, como uma âncora no fundo do mar
a estabilizar um navio. Conforme Modenesi (2005, p. XLV) argumenta, portanto, “[a]dotar uma
âncora consiste em optar pela fixação do valor de uma variável-chave nominal como elemento
central da política monetária. A taxa de câmbio, o estoque monetário ou a taxa de inflação são
as variáveis-chave escolhidas ou as âncoras nominais mais utilizadas”, correspondendo a cada
um dos três regimes citados. Assim, na meta de câmbio, estabelece-se um valor a ser perseguido
para a taxa de câmbio, ou seja, na relação entre a moeda nacional e uma estrangeira; na meta
monetária, estabelece-se um valor de crescimento do volume de moeda na economia, e, na meta
para a inflação, decide-se por um valor a ser alcançado de taxa de inflação (que mede a elevação
do nível geral de preços da economia).
Apresentadas essas definições, temos que, antes da formação de um banco central tradicional,
ou seja, que concentrasse as quatro funções tradicionais conforme Tucker (2018), Blinder
77
O debate em torno do qual a definição de um determinado regime monetário gira, por conseguinte, é o sobre o
grau de discricionariedade para atuação dos executores de política monetária. Conforme Bernholz (2003) e
Modenesi (2005) comentam, o que uma parte da teoria econômica defende é que, se houver muita liberdade para
agir, sob forte influência de governos, os bancos centrais poderiam atender aos pedidos de governantes para
estimular a economia a favor do crescimento econômico e com isso acabar gerando inflação, o que seria
descumprir o papel precípuo da autoridade monetária de zelar pela estabilidade da moeda. Esse tipo de
comportamento é descrito na literatura econômica como o viés inflacionário dos governos. Diante disso, conforme
Bernholz (p. 14) argumenta, “[c]om o viés inflacionário dos governos, a inflação só pode estar ausente a longo
prazo se as mãos dos governantes estiverem vinculadas a um regime monetário ou de constituição adequado”, ou
seja, se a sua liberdade para agir for limitada pelo compromisso estrito a uma determinada regra de condução da
política monetária. Associada a essa discussão, portanto, encontram-se questões conexas como a independência
dos bancos centrais, o tipo de racionalidade que guia os agentes econômicos e mesmo a capacidade de a política
monetária gerar efeitos no chamado lado real da economia (a produção de bens e serviços).
182
(2012), Cobham (2012) e Chorafas (2013), quais sejam, a de coordenador da política monetária,
supervisor e regulador do sistema financeiro, mantenedor do sistema de pagamentos e de
compensações financeiras, e de salvaguarda da estabilidade do sistema financeiro, essas
funções encontravam-se dispersas em vários órgãos. De início, durante o século XIX, essas
funções concentravam-se no Banco do Brasil e no Tesouro Nacional. Quando analisamos as
funções nucleares pretendidas por um banco central moderno, como o controle sobre a oferta
de moeda e a definição de políticas monetárias, é possível ver, como defende Novelli (2001),
que existe uma proto-história do BCB que remonta à criação do Banco do Brasil, em 12 de
dezembro de 180978, com a vida de D. João VI de Portugal em 1808, dado que esta instituição
cumpria estas funções neste período até dividi-las em um confuso arranjo com o Tesouro e a
Sumoc até 1965, e com o próprio BCB até os anos 1980.
Em todo o extenso período que vai do início do século XIX até 1945, deu-se a definição e a
execução da política monetária em um arranjo que combinava o Banco do Brasil e o Tesouro
Nacional, conforme discutem Corazza (2006), Novelli (2001), Abreu (2014), Vianna (2014) e
Orenstein & Sochaczewski (2014). É importante notar, como Cabral (2017) aponta, como os
processos de reforma administrativa do Estado imperial são afetados pela necessidade de
organização financeira do Estado, inclusive, pelo seu endividamento no séc. XIX. Essas duas
instituições foram se tornando mais complexas até que, em 1945, inicia-se o processo formal
de implementação de um banco central no Brasil. Conforme comenta a este respeito Corazza
(2006, p. 2), a criação de um banco central no Brasil “levou nada menos que 20 anos, a partir
de seu primeiro embrião, a criação da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), em
1945, até a criação do Banco Central do Brasil, em 31 de dezembro de 1964”. Roberto Campos
(1994, p. 661) também comenta, sobre a criação do BCB, que “a ideia havia sido adumbrada
ainda nos anos 30 com a missão financeira de sir Otto Niemeyer, que visitou o Brasil em 1931.
Mas o primeiro projeto concreto foi o de nº 104, apresentado em 1950, por Correia e Castro,
ministro do governo Dutra”.
A Sumoc foi criada pelo Decreto-Lei nº 7.293, de 2 de fevereiro de 1945, cujo Art. 3º já
exprimia sua existência vinculada à criação de um banco central, quando determinava
78
Conforme Novelli (2001) e Abreu e Lago (2014) lembram, o Banco do Brasil foi extinto em 1829, para então
ser recriado em 1859.
183
“enquanto não for convertido em lei o projeto de criação do Banco Central, à Superintendência
da Moeda e do Crédito incumbem as seguintes atribuições”, listando-se na sequência as
atribuições típicas de um banco central (BRASIL, 1945). Além disso, essa mesma lei,
determinava que ficariam “revogadas as atribuições legais que competiam às Carteiras de
Câmbio e de Redesconto do Banco do Brasil S.A. de Caixa de Mobilização e Fiscalização
Bancária” (BRASIL, 1945). Diante disso, vê-se que a Sumoc surge como protagonista formal
da criação do BCB uma vez que o próprio texto normativo que lhe instituía trazia a ideia de que
ela tinha como objetivo “preparar a organização do Banco Central” (CORAZZA, 2006, p. 4).
De outro lado, como Novelli (2001), Corazza (2006) e Abreu (2014) demonstram, o Banco do
Brasil se apresenta como antagonista dessa própria criação, uma vez que a estrutura e o poder
construído em torno desse banco representavam um entrave à transição da Sumoc para um
banco central efetivo.
Assim, ainda com a criação da Sumoc, o arranjo institucional de política monetária anterior à
constituição do BCB era, portanto, conforme vemos em Corazza (2006), Novelli (2001), Abreu
(2014), Vianna (2014), Orenstein & Sochaczewski (2014) e Raposo e Kasahara (2010), um
jogo de forças, dividido entre três instituições em um sistema complicado e de difícil
coordenação, da seguinte forma:
Vimos que foi durante a Era Vargas que surge o embrião institucional do BCB, com a vinda
das missões de Otto Niemeyer, em uma tradição de discussão da organização do SFN que já
havia ocorrido com a missão Cooke e que continuaria com a Missão Abbink e a Câmara Mista
Brasil EUA (CMBEU). A Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) foi criada, no final
do primeiro período de Getúlio Vargas como Presidente da República, pelo Decreto-Lei nº
7.293, de 2 de fevereiro de 1945, que instituiu a autoridade monetária brasileira, com a missão
de preparar a organização de um banco central no país. A sugestão de se criar a
superintendência, como alternativa à criação imediata de um banco central, foi de Octavio
Gouvêa de Bulhões, em 1939.
Nesta pesquisa, analisamos a evolução organizacional do BCB por meio um extenso, profundo
e complexo material que engloba relatórios de gestão, relatórios de administração, relatos da
185
Com base nessa análise, podemos identificar quatro fases de desenvolvimento do BCB:
b) A construção de uma burocracia tecnocrata e liberal: uma segunda fase que percorre
da criação do BCB, em 1965, sob contexto autoritário e conservador, período auge
do liberalismo econômico e do crescimento econômico, concentrador de renda e
impulsionador da desigualdade socioeconômica. Neste período, marcado
intensamente por instabilidades econômicas (crises econômicas, endividamento
externo e hiperinflação) e de transição política para a democracia, e que segue neste
quadro instável e de transição até 1994, com a implantação do plano real, tido como
186
Para além da sua transformação em banco central que implicou a incorporação de seus
funcionários pelo novo ente recém-criado, a Sumoc deixou algo igualmente importante, um
legado cultural e ideológico para o novo órgão. Ambos os órgãos, Sumoc e Banco Central,
foram criados em regimes de exceção, sob ditaduras, o primeiro de um governo autoritário que
se desfazia – o segundo governo Vargas pondo fim ao Estado Novo –, e o segundo, no início
do governo Castelo Branco, o primeiro dos presidentes da ditadura civil-militar instaurada no
país em 1964. A Sumoc foi criada por um Decreto-Lei – ou seja, uma medida editada
diretamente do executivo, sem participação ou qualquer discussão no parlamento. O BCB, por
uma lei segundo a qual o parlamento era regido pelo Ato Institucional no 1, de 9 de abril de
1964, cujo preâmbulo dizia que a ruptura institucional então provocada, a autointitulada
“revolução”, “se investe no exercício do Poder Constituinte” e determina que “fica, assim, bem
claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso”, ou seja que seus atos não
carecem de representação nem de legitimação populares (BRASIL, AI N.1, 1964).
Esses fatos imprimem uma marca ideológica na construção do BCB, herdada já da Sumoc, pois
como diz um dos membros da primeira diretoria do BCB, este começara a existir antes de sua
existência formal ter sido definida no próprio regime de exceção que se instaurava:
fundação. No dia seguinte da tomada do poder, havia que pôr ordem na casa.
E havia que debater uma legislação de banco central, que submetê-la ao
Congresso. Embora tivéssemos um Congresso bastante cooperativo naquela
época, isso levaria, como levou, um ano. Não esperamos o Banco Central, mas
havia a mentalidade de banco central, de prestamista de última instância – que
depois foi deformada” (RIBEIRO, 2019, p. 167, grifos nossos).
Essa marca ideológica é formada, portanto, por três pilares: conservadorismo, autoritarismo e
liberalismo. Embora Sumoc e BCB surjam em momentos de viradas liberais na economia, o
liberalismo se consolidaria mais como marca ideológica após a criação formal do banco central,
como veremos mais à frente. A transição do segundo governo Vargas para a primeira metade
do governo Dutra – momento de criação da Sumoc – é de um tensionamento do
desenvolvimentismo varguista que passa a ser acomodado por um impulso liberal na economia,
em favor de um ajuste econômico e de estabilização no pós-II Grande Guerra. Conforme
diagnosticam Vianna e Vilella (2011, p. 7), a “política econômica doméstica do governo Dutra
pode ser definida, até 1949, como marcadamente ortodoxa”. Após a segunda metade do governo
Dutra (1949-1950), porém, foram feitos novos impulsos desenvolvimentistas que atingem o
ápice no governo JK (1956-1960). Esse período foi temperado ainda por políticas econômicas
dúbias do retorno de Vargas ao poder em 1951, que flertam com (mas não sustentam) a
austeridade fiscal ao buscar referenciar-se no período Campos Salles-Rodrigues Alves79
(VIANNA, 2014; FONSECA, 2002), quando João Goulart interrompe novamente o desejo de
outra virada liberal a que se aspirava com Jânio Quadros, que renunciou em 1961. Assim,
somente a partir dos primeiros anos do período da ditadura civil-militar após 1964 é que se
consolida uma inflexão marcada expressivamente liberal na economia (FONSECA, 2015,
2002; FONSECA & HAINES, 2012; CORSI, 2002).
Em função disso, os primeiros aspectos que vamos identificar nessa fase embrionária do BCB
são o conservadorismo e o autoritarismo que veio das lideranças envolvidas no processo de
definição da Sumoc e de transição para o BCB. Com base nas entrevistas concedidas pelos
envolvidos na criação da Sumoc, especialmente, com Otávio Gouveia de Bulhões – principal
79
Nos dizeres de Fonseca (2002, p. 20), há alguma disputa teórica acerca da presença do desenvolvimentismo no
segundo governo Vargas, que ele mesmo classifica assertivamente como desenvolvimentistas, mas, de toda
maneira ela reconhece que “é certo que, no início do Governo, a equipe econômica e o próprio Vargas
pronunciavam-se pela fórmula: ‘Campos Salles-Rodrigues Alves’ -, ou ‘sanear para crescer depois’ [...] a própria
fórmula não deixava de mencionar que o fim último era o desenvolvimento e salientava as dificuldades de levá-lo
adiante num quadro de déficits internos e de estrangulamento externo”.
190
defensor da criação deste órgão e Ministro da Fazenda nos governos Ranieri Mazilli e de
Humberto Castelo Branco (1964 a 1967), além de diretor da Sumoc em duas oportunidades –,
Denio Chagas Nogueira, o primeiro presidente do então criado BCB e também ex-diretor da
Sumoc, e Casimiro Antônio Ribeiro, membro da primeira diretoria do BCB e ex-diretor da
Carteira de Redesconto do Banco do Brasil, observamos marcadamente esses traços de um
conservadorismo saudosista e inspirado na manutenção da ordem, da disciplina, da vigilância
e da tradição. Além disso, percebemos também essa posição em Ernane Galvêas, presidente do
BCB no governo do general Alberto da Costa e Silva e assessor econômico nos governos
Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, acompanhando, portanto, as transições da
Sumoc para o BCB. Fica evidente, também, a oposição forte ao desenvolvimentismo, a rejeição
a qualquer noção de projeto de esquerda e a defesa do insulamento burocrático sob uma
oposição entre a técnica e a política que vê a Administração Pública como neutra, o que
justificaria a aceitação de se acoplar a um projeto autoritário para estabelecer no país um projeto
liberal.
A fala já citada na abertura desta parte, de Casimiro Ribeiro (2019, p. 167), é emblemática nesse
sentido pois demonstra que, antes mesmo de se criar formalmente o BCB, um grupo de técnicos
da Sumoc decide por conta própria que ele deve existir e efetiva a sua criação já que “com os
poderes que existiam na época, na verdade, fizemos funcionar o Banco Central unificado antes
da sua fundação”. Os poderes mencionados eram exatamente a oportunidade de agir à revelia
da população, já que se tratava de contextos de ditadura tanto na criação da Sumoc quanto na
do BCB. Mais do que isso, porém, Casimiro Ribeiro deixa claro que, para além de haver um
banco central instituído formalmente, já havia um saber, um fazer e uma mentalidade de banco
central, evidenciando que, na cabeça de quem participou dessa construção, existia uma herança
inegável de modo de pensar e de agir absorvida pelo BCB que vinha da Sumoc, para além de
qualquer incorporação de estrutura física e de pessoal de um órgão para o outro80.
80
Embora a Sumoc tenha sido criada incorporando estrutura e pessoal do Banco do Brasil, e o BCB tenha também
absorvido pessoas do Banco do Brasil, a influência hegemônica da mentalidade dirigente, como vemos nas
entrevistas utilizadas neste trabalho, é tida como a da mentalidade que criou e dirigiu a Sumoc tendo o Banco do
Brasil como antagonista, ou seja, se a mentalidade do Banco do Brasil da época (que era contra a criação da Sumoc
e do BCB) fosse a mentalidade hegemônica na Sumoc e tivesse prevalecido, não teríamos tido a criação de um
banco central no Brasil. Daí falarmos na herança do conservadorismo e do autoritarismo da Sumoc para o BCB e
não do Banco do Brasil para o BCB.
191
“Os políticos antigos, da era antes de 1930, eram políticos de grande valor
moral e cultural e, sendo a economia mais modesta, não havia necessidade de
grandes técnicos para dirigir o país. Hoje pode ser que haja bons técnicos, mas
há maus políticos. O nível da mentalidade política decresceu em lugar de
melhorar, ou mesmo de preservar o nível antigo. Hoje, não há dúvida de que
o Brasil dispõe de excelentes economistas. Basta citar o Mário Henrique
Simonsen, o Casimiro Ribeiro, que são economistas de grande valor e se
manifestam com toda a franqueza. Mas não há nome da envergadura de um
Campos Sales ou de um Rodrigues Alves. Nesse ponto, o país perdeu. Quer
dizer, o país está sem estadistas. E técnico sem estadista pouco vale”
(BULHÕES, 2019, p. 43, grifos nossos).
É importante notar a conexão familiar entre as elites. Rodrigues Alves tivera como ministro da
Fazenda José Leopoldo de Bulhões Jardim, conhecido apenas como Leopoldo de Bulhões, um
liberal-conservador, tio de Octávio Gouveia de Bulhões, demonstrando também um aspecto
familiar das elites brasileiras que se perpetuam nos governos, evidenciando já uma tendência à
conservação dos poderes e das tradições.
81
Sobre Epitácio Pessoa, nos diz Francisco Iglésias (1993, p. 223), “Epitácio Pessoa, jurista e político
experimentado, que reprimiu as manifestações de abuso. Enérgico, não hesitava em fechar o Clube Militar ou
prender seu dirigente”.
82
De acordo coma pesquisa feita por Ana Suelen Gomes e Andityas Matos (2017, p. 1764), “no período da
República Velha (1889-1930) governou-se por 2.365 dias em estado de sítio”, sendo “no governo de Arthur
Bernardes por 1.287 dias”, ou seja “governando este [Arthur Bernardes] em estado de normalidade por menos de
dois meses num governo de quatro anos”.
193
Os dois regimes a que ele alude são o Estado Novo e o primeiro governo do General Humberto
Castelo Branco, ambos regimes de exceção. Casimiro Ribeiro (2019, p. 162), portanto, deixa
claro que a exceção dada pelo autoritarismo, pela ditadura, na usurpação dos direitos de
representação democráticos e de manifestação política, é vista como uma oportunidade para os
liberais, que souberam fazer uso dela, por meio da pureza de seus atos (traduzida por uma
pretensa pureza de Octávio Bulhões) para patrocinar as suas próprias convicções, ou nas
palavras dele, usar “os poderes excepcionais que havia para fazer aquilo que não se conseguia
fazer” em tempos de democracia, que exige, tal como apregoa a ética do discurso habermasiana,
uma construção coletiva, dialogada, para legitimar as decisões políticas. Denio Chagas
Nogueira (2019, p. 121) ratifica essa posição, ao afirmar que “eu não discordaria de que a
situação especial existente em 1964 tivesse tido uma influência ponderável no andamento da
Lei do Banco Central”.
É interessante observar que essas percepções não são isoladas, não sendo apenas de alguns dos
primeiros envolvidos nos momentos de criação da Sumoc e da sua transição para o BCB, vários
dos presidentes e diretores que se relacionaram com estes órgãos reforçaram essas perspectivas
ao longo do tempo, recepcionaram e defenderam o conservadorismo como valor e o
autoritarismo como oportunidade. Neste sentido, Ernane Galvêas, por exemplo, presidente do
BCB durante o período dos anos de chumbo, do governo Emílio Garrastazu Médici (1968-
1974) – o segundo maior mandato presidencial no BCB, atrás de Henrique de Campos
Meirelles, já no século XXI –, afirma nostalgicamente em favor dos valores tradicionais
educacionais da Monarquia que, segundo ele, os intelectuais de esquerda buscavam destruir:
tinha uma visão muito pessimista, quase de um determinismo histórico (LANGONI, 2019, p.
27, grifos nossos).
Um dos traços mais marcantes do conservadorismo, no entanto, legados pelo período de criação
da Sumoc para o BCB, é mesmo o da relativização do autoritarismo, pela defesa da ordem, da
disciplina, da hierarquia, da manutenção do status quo. Esse traço do conservadorismo
encontra-se claramente demarcado nas posições de Octávio Gouvêia de Bulhões, de Dênio
Chagas Nogueira e em Casimiro Antônio Ribeiro. Uma imagem-síntese dele pode ser obtida na
imagem do homem forte (o strongman político) – sempre um homem, nunca uma mulher, frise-
se – simbolicamente representada pela figura do presidente que se impõe, que governa sozinho,
independentemente dos ritos democráticos, da participação e da representação política. No
ideário liberal-conservador, foram homens fortes que idealizaram, instituíram e construíram a
Sumoc e o BCB, relativizando o fato de que foram criados em ambientes de exceção, onde o
diálogo público, o espaço público, ou seja, as instâncias da política dialógica habermasiana e
arendtiana – que são fundamentais para uma administração pública democrática societal –
inexistem. Neste sentido, Bulhões (2019, p. 192, grifos nossos) é enfático, ao comentar o
sucesso da experiência econômica ortodoxa do governo ditatorial de Castelo Branco, que,
“quando um presidente assume responsabilidade de levar adiante uma ideia, essa ideia vinga.
Mas é preciso haver um presidente. Café Filho não tinha muita força. Juscelino foi um bom
196
presidente para criar Brasília, essas coisas, mas não para administrar moeda”. Casimiro Ribeiro
segue na mesma linha:
“O momento em que o Banco Central foi criado não era o melhor do ponto de
vista da democratização do país. Era um governo de exceção. Mas nós tivemos
a sorte – e sorte não prova nada, não prova que o regime de exceção é melhor
– de ter na presidência o general Castelo Branco, e não um general qualquer.
Se estivesse um outro qualquer lá, não saía nada. Castelo Branco era um
homem de alto nível, estudioso, com senso patriótico. Teve problemas sérios
com o pessoal dele, com os coronéis, a turma da barra pesada. Ele nomeou o
doutor Bulhões ministro da Fazenda. Só a nomeação do doutor Bulhões já era
recomendação a seu favor. Se ele quisesse fazer política, não botava um doutor
Bulhões na Fazenda, seguramente. Participei de várias reuniões do presidente
Castelo com o doutor Bulhões – e com Roberto Campos também, mas eu
seguia mais o doutor Bulhões –, em que ele apoiou o doutor Bulhões nas
medidas mais rígidas, mais severas. Deu aquele apoio do presidente, que é
necessário, ao ministro da Fazenda” (RIBEIRO, 2019, p. 162-163, grifos
nossos).
“O presidente Castelo merece mais crédito do que tem recebido, mesmo dos
historiadores. Foi realmente um período muito especial aquele do governo
Castelo Branco. Eu tenho dito a alguns historiadores: “Vocês precisam deixar
um pouco o ranço de lado, parar com essa história de ‘é militar, sou contra’!
Não. Tem que ver o sujeito, ver o que aconteceu”. Toda vez em que houve um
caso difícil para discutir, seja ligado à austeridade que o doutor Bulhões
queria, seja ligado a questões éticas, Castelo Branco deu a solução certa. Quer
dizer, fez justiça” (RIBEIRO, 2019, p. 167, grifos nossos).
A capacidade de impor decisões pessoais sobre os demais é tida, portanto, como uma virtude.
Uma virtude que o regime presidencialista poderia ter se a sua liderança máxima agisse
autocraticamente, como um monarca despótico. Nesse momento vemos novamente a junção do
197
conservadorismo com o autoritarismo. Nas palavras de Bulhões (2019, p. 192), “num regime
presidencialista, quem manda é o presidente de fato. Se o presidente quer, vai tudo para a frente.
Se o presidente não tem muita convicção, as coisas não funcionam”, em um depoimento típico
de culto à personalidade, como se toda a capacidade de execução política de um Estado
dependesse de uma única pessoa, independentemente dos demais poderes democráticos. É
interessante que Bulhões não consegue ver nesse tipo de situação qualquer traço de
autoritarismo, embora possa ver em outros regimes. Quando perguntado sobre o
parlamentarismo, ele responde que “ah, mas um primeiro-ministro enérgico é muito autoritário.
Ele manda no Congresso (BULHÕES, 2019, p. 194)”. E, mantendo a sua linha de defesa de
presidentes fortes, enaltece mais uma vez esse aspecto simbolizando-o por meio do general
Castelo Branco:
É interessante observar que, mais uma vez, o apego à tradição é refletido na ideia dos princípios.
Ser autoritário e resistir a pressões é uma questão principiológica, como a moral e os bons
costumes. Um presidente que mantém princípios, portanto, que seja moralmente correto, não
cede a pressões. É possível observar que, para esses entrevistados, essas virtudes não são
atribuídas apenas aos presidentes, mas também a si mesmos. Bulhões reivindica para si uma
construção solitária da Sumoc, diminuindo a participação de Denio Nogueira no processo,
justamente por esse ter tido que dialogar com o Congresso:
“A ideia de criar o BCB era uma ideia que eu tinha há muito tempo, tanto que
criei a Sumoc. É claro que Denio Nogueira, sendo diretor-executivo da
Sumoc, tinha que assumir maior responsabilidade junto ao Congresso, no
sentido de preparar a lei do BCB. Não lembro bem se preparamos um novo
projeto ou se reformulamos o já existente, mas o fato é que Denio Nogueira
foi quem se incumbiu de discutir com os congressistas a maneira de se criar o
BCB e o Conselho Monetário Nacional” (BULHÕES, 2019, p. 173, grifos
nossos).
Assim, é interessante perceber que, para eles, a criação da Sumoc e do BCB, além de se dar em
contextos autoritários, cujo conservadorismo moral lhes permite aproveitar para colocar em
198
O que se percebe das entrevistas é que não se medem esforços, portanto, para se concretizar os
sonhos liberais dos conservadores, nem que para isso tenham que combinar liberdade com
opressão. Nesse sentido, os entrevistados demonstram que tentam minimizar as contradições
da defesa de uma ordem econômica liberal, mas que deveria ser uma ordem vigiada, nem que
para tanto fosse preciso instaurar um regime de exceção – uma contradição que tenta
compatibilizar liberdade e autoritarismo (que tentam suavizar tomando-o como autoridade),
algo que é típico da política brasileira, desde os tempos do Brasil Império, como vimos. Bulhões
(2019, p. 192, grifos nossos), numa destas tentativas de compatibilização dos opostos (num
exemplo claro de dialética de ambiguidades), afirma que “não precisa haver um regime
excepcional. É preciso haver autoridade. Autoridade não é incompatível com democracia, com
liberdade. Ao contrário, a liberdade exige disciplina e autoridade”. A isso ele acrescenta a ideia
do homem forte, que tudo resolve, não importando o regime, pois “acreditem no seguinte: são
os homens que dirigem as coisas, não os regimes” (BRASIL, 2019, p. 194). Desta forma, para
ter liberdade, deve-se ter vigilância. Somente sob uma crença destas, um liberal econômico
poderia compatibilizar essa ideia de liberalismo com a ideia de criação de órgãos interventores
na economia, como a Sumoc e o BCB. É isso o que Bulhões tenta fazer na sua definição de
liberdade:
“Como sabem, foi o doutor Bulhões que redigiu o decreto-lei que criou a
Sumoc em 1945. E o fez não apenas com competência técnica, mas com
grande habilidade, porque estava ciente de que, encerrada a ditadura, se
tentasse arrancar do Congresso uma lei, não sairia. Haveria sempre oposições.
Aproveitou então que o governo tinha poderes para baixar decreto-lei “para
vender o peixe dele” sem depender do Congresso. E fez muito bem, porque se
não tivesse feito aquilo, não teria saído nem a Sumoc” (RIBEIRO, 2019, p.
31, grifos nossos).
Casimiro Ribeiro (2019, p. 31) deixa claro que Bulhões “fez muito bem” em se aproveitar do
regime de exceção para “vender o peixe dele”, que era a criação da Sumoc. Mais do que isso,
deixa transparecer todo o viés autoritário ao entender que não seria possível “arrancar do
Congresso uma lei” favorável à criação deste órgão, ou seja, a ideia de atuação no Congresso
era a de extrair à força algo de lá, de retirar e não a de construir também lá, como se defende
nas democracias, como espaço público de legitimação política. Essa percepção da habilidade
de usar do contexto autoritário a seu próprio favor também é destacada por Galvêas (2019, p.
68, grifos nossos), que diz que essa era uma qualidade não apenas de Bulhões, tanto que ele
afirmou: “não creio que o doutor Bulhões e o Roberto Campos fossem homens que não usassem
o poder; ao contrário, sabiam usá-lo com determinação. E o Denio Nogueira era também muito
impositivo”. Casimiro Ribeiro (2019, p. 125) também reforça essa característica em Roberto
Campos, de ser um ícone liberal que tentava valer-se do regime autoritário para passar às
pressas uma agenda de privatizações. Ele diz que “essas atitudes do Roberto, oriundas, a meu
ver, de uma convicção firme e da vontade de fazer as coisas às pressas, levaram a uma
hostilidade muito grande e começou-se a dizer que ele era entreguista”.
complementa essa afirmação e se justifica, dizendo que, “embora tenha sido o primeiro chefe
do governo militar, num quadro que podemos dizer que era uma ditadura, considerando o
processo de eleição, de seleção dos governantes, ele tinha um grande respeito às instituições
jurídicas”. Trata-se de uma percepção que não encontra respaldo na historiografia e nas
evidências históricas, dado que um ano após o golpe militar de 1964, o general Castelo Branco
modificou a composição do Supremo Tribunal Federal por meio do Ato Institucional no 2, de
27 de outubro de 1965, aumentando-a de 11 para 16 representantes, a fim de conseguir que o
governo de exceção formasse maioria na Suprema Corte brasileira, manipulando assim as
instituições jurídicas, contrariando a posição de Galvêas (BRASIL, AI No 2, 1964).
Ernane Galvêas ainda rememora que, antes de Octávio Bulhões, Roberto Campos e Denio
Nogueira, havia a figura de Eugênio Gudin, como patrono dos liberais brasileiros que já havia
deixado registrado o seu pendor conservador e sua contemporização com regimes autoritários.
Galvêas (2019, p. 58, grifos nossos), ao ser perguntado sobre o ambiente despótico de criação
da Sumoc e do BCB, se ele “não envolvia uma descrença profunda quanto ao mecanismo
democrático em si, ou uma visão conservadora de que a sociedade não está preparada para a
democracia?”, responde que: “não. Muito embora o doutor Gudin, que era o nosso comandante,
o nosso mentor intelectual, [...] o doutor Gudin, várias vezes, escreveu – não falou, não;
escreveu − o seguinte: ‘O Brasil não está politicamente preparado para ser uma democracia full
time’”. A influência de Gudin é muito forte no ideário liberal brasileiro, como apontam
Bielschowski (2001, 2004), Abreu (2014) e os próprios entrevistados, tendo o seu nome
associado a planos liberais que se tentaram na economia, chamados de plano Gudin-Bulhões.
Posteriormente, a essas interações são adicionadas as relações da montagem do arcabouço
liberal-conservador brasileiro passando pelas influências de Eugênio Gudin, Octávio Gouveia
de Bulhões, Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen, com os chamados plano Gudin-
Bulhões, no período Café Filho; plano Lucas Lopes-Roberto Campos, no governo Juscelino; e
plano Mariani-Bulhões, no governo Jânio.
das ações políticas e das movimentações sociais, tidas como criadoras de desordens ou
desestabilizadoras, e reconhecem, de outro, golpes militares como movimentos revolucionários
estabilizadores e de manutenção da ordem. Nesse sentido, Octávio Gouvêia de Bulhões e Denio
Chagas Nogueira demonstram indiferença ou mesmo desdém a respeito das movimentações
políticas da república velha e da segunda república (da Revolução de 1930 ao Estado Novo).
Quando Bulhões (2019, p. 23, grifos nossos) foi perguntado sobre ter sido “da geração do
movimento tenentista” e, por isso, queria se saber “como o senhor [Bulhões] viu o episódio dos
18 do Forte, a Coluna Prestes?”, ele foi evasivo, afirmando: “nunca estive ligado a esses
movimentos. Assistia a tudo de uma maneira um tanto afastada”. De forma similar, quando
perguntado sobre a Revolução de 1930 e o clima na capital federal naquele momento,
restringiu-se a falar: “não sei dizer. Devia ser ruim. Eu era um funcionário insignificante do
Imposto de Renda, uma formiga. Como é que eu podia estar acompanhando essas coisas todas?
Não podia”. E quando perguntado sobre o ambiente na Faculdade de Direito, à época, foi
irônico e respondeu somente: “lembro que estavam todos exultantes porque iam passar sem
exame”.
que resolvi sair da frente do canhão. Se ele atirasse, pelo menos não me acertaria. Não me
recordo de nenhuma revolução, no Rio de Janeiro, que tivesse afetado a vida da cidade de
maneira sensível” (NOGUEIRA, 2019, p. 30).
É possível ver, portanto, uma imagem de que o golpe de 1964 foi uma revolução estabilizadora
e restauradora da ordem nos depoimentos dos envolvidos na construção da Sumoc e na posterior
transição para o BCB. A este respeito, os entrevistados são pacíficos em determinar que o
governo de João Goulart, que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros (em qual todos votaram
em função de suas promessas liberais e conservadoras 83) era um momento de desordem na
economia e no quadro institucional brasileiro, e que, por isso, foram favoráveis à sua derrubada
na concertação civil-militar que assumiu o poder. Alexandre Kafka (2019, p. 65), representante
do Brasil no FMI por mais de 30 anos e ex-conselheiro da Sumoc, qualificou-o como o
“desastroso Jango como presidente”. Bulhões (2019, p. 145) afirmava, “o período do Jango é a
flor da desordem”. Sobre o período, Carlos Geraldo Langoni (2019, p. 21) afirma que “havia
uma sensação muito grande de desgoverno”. Galvêas (2019, p. 44), por sua vez, dizia que “João
Goulart era uma pessoa despreparada para exercer a presidência da República. Tinha uma
grande vocação populista, uma formação sindicalista”. Casimiro Ribeiro (2019, p. 139)
afirmava que “Jango entrou e, em primeiro lugar, foi de um primarismo total na condução dos
assuntos”, e que “a sua assessoria virou um saco de gatos, tinha influência de tudo quanto é
lado. Nas discussões internacionais, acho que, em termos de primarismo, ele bateu todos os
recordes”. E, para consolidar a necessidade de interrupção dessa desordem percebida, havia
ainda um elemento fundamental e antigo, mas renovado, o receio do socialismo84: “sentimos
que estávamos no vértice de um acontecimento extremamente perigoso, que podíamos estar
83
Bulhões (2019, p. 133) responde taxativamente à pergunta “o senhor foi eleitor de Jânio Quadros?”, “Fui”.
Alexandre Kafka afirmou (2019, p. 64) ter voltado ao Brasil por causa de Jânio Quadros, pois encontrava-se no
exterior e disse “não posso dizer que tivesse total confiança naquilo que Jânio ia fazer, mas fiquei muito
impressionado pelas pessoas que ele nomeou para o governo”, que eram liberais econômicos. Similarmente, Denio
Nogueira (2019, p. 74). Quando perguntado se estava no Brasil e se havia votado em Jânio, também responde que
“estava e votei no Jânio”, ao que complementa dizendo que “também me envergonho de dizer isso, mas votei. [...]
eu tinha alguma esperança no Jânio [...]. Voltei para o Brasil para votar nele e tentar colaborar com o governo”.
Ernane Galvêas (2019, p. 36) não afirma que votou em Jânio, mas fez parte do governo como assessor econômico
do Ministério da Fazenda. Entretanto, dado o seu alinhamento liberal conservador, é bastante provável que tenha
votado nele, embora reconheça que “Jânio Quadros foi terrível como presidente do Brasil!”, pois, “as situações
que ele criou praticamente não deixavam ninguém trabalhar”.
84
Bulhões (2019, p. 24) ao ser perguntado sobre a Intentona Comunista de 1935, que foi utilizada como uma das
justificativas para o golpe de 1937 de Getúlio Vargas, se ele “achava na época que pairava uma ameaça comunista
sobre o Brasil”, responde, “acho que não. Foi um movimento militar localizado”. Mas logo em seguida retoma a
posição de isenção e indiferença sobre questões políticas afirmando que “também aí não acompanhei de perto, não
me informava bem. Sou um péssimo depoente nessa área, nunca sei de nada”.
203
Diante disso, os entrevistados reconhecem que assumiram um papel contrário ao governo e aos
planos econômicos de Jango, elencados no Plano Trienal encabeçado por Celso Furtado 85,
assumindo até uma postura de sabotagem desse governo e favorável ao golpe militar, esse sim
caracterizado por eles normalmente como revolução. Nesse sentido, Ruy Aguiar da Silva Leme
(2019, p. 35), o segundo presidente do BCB, após Denio Nogueira, no governo Costa e Silva,
afirma: “eu era a favor da revolução. Eu me lembro de que era frontalmente contra o Jango.
Fiquei satisfeitíssimo com a revolução. A derrubada do Jango, para mim, foi uma grande coisa”.
Entendia-se, então, que o caminho a seguir segundo as autoridades liberais da Sumoc e do
governo era não ajudar o próprio governo, e assim, em mais uma constatação de dialética da
ambiguidade, o conservador que defendia a ordem opta por desestabilizá-la, para recuperá-la
via ruptura institucional – uma contradição. Diante de “um período de amedrontamento” pelo
medo socialista, portanto, “os economistas mais responsáveis da época – Eugênio Gudin,
Roberto Campos, Octavio Bulhões, e mesmo os da nossa área miúda [da assessoria econômica
do governo] – não quiseram cooperar” (GALVÊAS, 2019, p. 58). A vontade de superar o
governo de Jango era tanta que, mesmo sendo favoráveis à criação do BCB, resolveram
posicionar-se contra, dificultando a sua criação. É o que se vê no depoimento de Ernane
Galvêas, quando diz:
85
Diferentemente dos economistas liberais, Furtado se pautou pelo diálogo, conforme o próprio Casimiro Ribeiro
(2019, p. 146) reconhece: “o Plano Trienal era um plano de linhas gerais, coordenado pelo Celso Furtado. Acho
que ele acreditava no plano, estava muito entusiasmado pessoalmente. Era uma oportunidade enorme que se dava
para ele botar em prática uma série de coisas que vinha estudando na Cepal e no Brasil. Ele reuniu várias
assessorias, várias pessoas de diversas tendências doutrinárias”. Muitos reconhecem o valor de Furtado: “Aquele
Plano Trienal do Celso é até muito razoável. Teve uma vida muito curta, nem entrou, praticamente, em vigor, mas
se você pegar o documento e ler – essas coisas acabam nunca sendo examinadas e lidas – verá que é razoável.
Havia uma preocupação de combater a inflação e de compatibilizar essas coisas todas” (LIRA, 2019, p. 23).
204
Galvêas (2019, p. 43) dizia comentar aos colegas da Sumoc, por exemplo: “estou realmente
preocupado, não com o Banco do Brasil, que podemos preservar de várias maneiras, mas com
a criação de um banco central agora, nesse governo [de João Goulart], nessa conjuntura
tumultuada”. Não somente ele havia mudado de posição se colocado contra a criação do BCB
durante o governo João Goulart, também Eugênio Gudin e Octávio Bulhões teriam feito o
mesmo:
Mais contundente do que simplesmente não cooperar, foi o fato de algumas dessas lideranças
entrevistadas resolverem trabalhar em órgãos cuja historiografia política brasileira demonstrou
terem contribuído para desestabilizar o governo João Goulart e assim promover a ruptura
institucional do país (DREIFUSS, 1981). Nesse sentido, participaram do Instituto de Pesquisas
e Estudos Sociais (IPES), criado em agosto de 1961, mas fundado oficialmente em 2 de
fevereiro de 1962, por empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo e por oficiais que
vinculados à Escola Superior de Guerra (ESG). E também do Instituto Brasileiro de Ação
Democrática (IBAD), criado no Rio de Janeiro, em 25 de maio de 1959. Os dois órgãos tinham
como característica a sua natureza conspiratória anticomunista e apresentavam um perfil
político conservador e que chegou a se relacionar com a Agência Central de Informações norte-
americana (Central Intelligence Agency - CIA)86. O Ibad, o Ipes e a ESG são frequentemente
mencionadas pelos entrevistados.
86
O Ipes resultou de articulações entre empresários paulistas e cariocas em reação à tendência esquerdista da
política da época. O Ipes era dirigido por um comitê diretor e por um comitê executivo e atuava por meio de grupos
de estudo e ação: Grupo de Levantamento da Conjuntura, de Assessoria Parlamentar, de Opinião Pública, de
Publicações/Editorial, e de Estudo e Doutrina. A instituição foi presidida pelo paulista João Batista Leopoldo
Figueiredo até o início de 1964, quando ocorreu a cisão entre os grupos de São Paulo e do Rio de Janeiro, passando
205
Denio Nogueria (2019, p. 85) foi, segundo ele, “redator econômico” do Ibad e tenta justificar a
sua participação no órgão dizendo que “naquela época, eu precisava ganhar dinheiro para pagar
meus compromissos e, por isso, aceitava vários trabalhos”, mas também foi assessor econômico
do Ipes, ao qual teria sido levado por José Garrido Torres, economista liberal que fora da Cexim,
no Banco do Brasil. Ele relata estes fatos dizendo que participara de debates para contrapor as
reformas de base de João Goulart “junto com o Gustavo Corção e o Hasslocher” – conhecidos
líderes conservadores e apoiadores do golpe de 1964, segundo ele, “Corção dava a orientação
política em relação à reforma agrária – uma orientação positiva, no sentido da necessidade da
reforma –, e eu ficava com a parte fiscal, econômica, defendendo a mesma posição que tive no
Ipes” (NOGUEIRA, 2019, p. 85).
Em uma posição extremamente confusa sobre o seu posicionamento político, Denio Nogueira
(2019, p. 82) diz a respeito do Ipes: “eu sabia que o Ipes era considerado uma instituição de
direita, mas ouço falar em tanta coisa de direita. Considero que a esquerda é muito mais de
direita do que a própria direita é de direita”. E, por fim, nega que a sua passagem por lá tenha
lhe favorecido com a ocupação de postos de direção após o golpe de 1964, e que o Ipes tenha
preparado um grupo de pessoas que assumiriam os cargos técnicos econômicos no eventual
governo militar, contestando a posição difundida no pensamento político brasileiro, sobretudo,
por meio dos estudos do cientista político René Armand Dreifuss (1981).87 O fato é que não
apenas os materiais anticomunistas de órgãos externos foram difundidos para desestabilizar o
governo João Goulart, mas membros do próprio governo debatiam contra as propostas de João
Goulart. Conforme afirma Galvêas (2019, p. 58, grifos nossos), a este respeito, “discutíamos
todas as reformas: agrária, tributária, da educação, da previdência, do sistema financeiro. Isso
vinha sendo debatido há longo tempo. Nessa época, os assuntos foram trazidos novamente à
este último a ser presidido por Haroldo. No Rio de Janeiro – sua direção foi entregue a Ivan Hasslocher, ex-
integralista e agente de ligação da CIA para o Brasil, Bolívia e Equador.
87
“Quando houve a revolução, Bulhões foi convidado para ser ministro da Fazenda. Garrido era companheiro do
Bulhões, membro como ele do CNE e diretor da Conjuntura Econômica, sendo o Bulhões nesse caso, como vice-
presidente do Ibre, seu superior. Eu era chefe de uma divisão do CNE, a Divisão de Finanças, a mais próxima do
Bulhões, que me tinha levado para lá muito antes de existir o Ipes [...] Eu não tenho dúvida em afirmar que o Ipes
não tem nada a ver com isso. Acho, inclusive, que o Bulhões nem sabia da existência do Ipes, ou ao menos o que
nós estávamos fazendo lá. Foi a proximidade com ele, não só na FGV como no CNE, que o levou a nos convidar”
(NOGUEIRA, 2019, p. 87).
206
tona para discussão, mas com um caráter que entendíamos subversivo. Não era o que o Brasil
desejava”.
A ESG, por sua vez, era um reduto técnico militar de discussão política em torno do qual muitas
dessas lideranças da Sumoc e do BCB gravitavam, não só elas, mas todo o eixo liberal
conservador, de Eugênio Gudin, Julian Chacel, Octávio Bulhões, Roberto Campos e Denio
Nogueira, um vínculo criado nesse período e que se estende, pelos depoimentos posteriores, até
os dias atuais. Conforme afirma Bulhões (2019, p. 66), perguntado se ele “deu palestras na
ESG”, ele afirmou que “sim. Acho que o [Julian] Chacel também. O próprio doutor Gudin
esteve lá”. Perguntado se lhe agradava o ambiente da ESG, ele respondeu que “gostava. Havia
uma troca de pontos de vista da esfera militar com a esfera civil” (BULHÕES, 2019, p. 150).
Denio Nogueira (2019, p. 87) também relata sua participação na ESG, tendo inclusive
conhecido o presidente que o nomeou para o BCB lá: “conheci o Castelo Branco na Escola
Superior de Guerra em 1958, quando fiz o curso lá”.
Demonstrando que essa relação entre os economistas liberais da chefia dos governos e o
pensamento estratégico da ESG se prolongava e se imiscuía no regime militar, Carlos Brandão,
presidente do BCB no governo ditatorial do General João Baptista Figueiredo, também
enalteceu, em seu depoimento, a definição das estratégicas governamentais por este órgão, a
serem seguidas na ditadura civil-militar pós-1964, ele dizia que a ESG “sem dúvida, era um
acesso privilegiado. Todos sonhavam em ir para a ESG porque era onde se gestava a maioria
dos programas estratégicos do governo”, afirmava também que “a instituição tornou-se um
centro de apoio às decisões governamentais na época da ditadura” e que “a ESG forneceu
subsídios fabulosos” nesse sentido (BRANDÃO, 2019, p. 173). Brandão ainda destacou que a
relação não se restringia a acadêmicos, servidores públicos e militares, mas se estendia ao setor
privado também. Comentando sobre a colaboração dos empresários, que na época tinham um
bom entrosamento com os militares, ele diz “Muito bom! A maioria dos estagiários da ESG era
formada de empresários” (BRANDÃO, 2019, p. 173).
Nogueira (2019, p. 153, grifos nossos) simboliza isso remetendo à imagem da divindade que
teria feito com que, no início do governo Castelo Branco, houvesse uma diminuição nas safras
de café. Diz ele, “para nós, aquilo seria uma bênção divina, porque o problema mais sério que
tínhamos, do ponto de vista monetário, era a sustentação do café”. Esses tipos de alusão
alcançam até os dirigentes mais recentes do BCB, como no caso do comentário de Pedro Bodin
de Moraes, ex-diretor do BCB no mandato de Francisco Roberto André Gros, no governo do
José Sarney. Ao comentar sobre o sucesso do Plano Real, ele afirma que “eu diria que a
combinação do sucesso do Plano Real com a liderança de Fernando Henrique foi providência
divina. Se há um Deus, Ele zela pelo Brasil e gastou um anjo da guarda nesse projeto, porque
muitas coisas podiam ter dado errado ali” (MORAES, 2019, p. 52-54, grifos nossos).
Carlos Brandão também faz alusões à religiosidade até para explicar sua saída do governo e
mesmo para justificar os riscos da não adoção de políticas liberais de austeridade econômica no
período subsequente ao chamado milagre econômico; diz ele:
“Nunca me ocorrera antes, mas naquela hora pressenti tudo o que estava para
acontecer. Sempre tive esse predicado, que Deus me deu, de poder olhar além
do horizonte, principalmente quando não se trata de nada meu, particular.
Disse-lhe [a Mario Henrique Simonsen], então, em tom de profecia: “A não
execução do nosso programa de governo, devido à vontade do Delfim de
realizar outro ‘milagre brasileiro’, levará o país à estagnação e à inflação, por
um período de uma década, no mínimo”. Realmente, com a nossa saída do
governo, o ministro Delfim, a partir do fim de agosto de 1979, deixou claro
que promoveria um novo surto de desenvolvimento econômico. Ficou só na
intenção e deu no que deu. Mais de uma década perdida para o Brasil,
caracterizada por altíssimos índices de inflação e estagnação econômica”
(BRANDÃO, 2019, p. 132, grifos nossos).
Este foi o quadro conservador e autoritário do período que antecedeu a criação formal do BCB,
em que se combinavam a nostalgia pelos regimes autoritários do passado, o fascínio com a
ordem, a disciplina, a hierarquia, a tradição e os valores dos grandes homens fortes, de
princípios. Além disso, tem-se a contraposição dessa ideia com a visão de desordem no período
João Goulart, com a qual – paradoxalmente – se contribuiu para recuperar-se a ordem, via
ruptura institucional. Vê-se, portanto, um traço complexo na formação do pensamento liberal
no BCB, que se recusa a perceber as graves fraturas institucionais postas pelos regimes
autoritários. Uma síntese final disso pode ser vista no depoimento de Ernane Galvêas, a respeito
do triunfo dos militares sobre a esquerda brasileira. Galvêas (2019, p. 57) não percebe a
legitimidade de uma pauta de esquerda e a coloca como algo que está até mesmo fora da
208
sociedade civil, tamanha a sua marginalidade, a qual precisaria derrotar para se impor, não só
a própria sociedade, mas também os militares. Uma perspectiva política que, para ele, foi
“fragorosamente” derrotada na base da violência, da força, da tortura. Uma esquerda que, em
mais um exemplo contraditório, era fraca, mas era capaz de amedrontar capitalistas,
acadêmicos, técnicos, servidores públicos. A ponto de precisarmos de uma ruptura institucional
brutal para conter tamanha subversão na ordem política e econômica:
Após o golpe de 1964, como vimos, o BCB foi formalmente criado por lei, a Lei nº 4595, de
31/12/1964, que o instituiu como uma autarquia federal, vinculada – e, portanto, não
subordinada – ao Ministério da Fazenda (atual Ministério da Economia). Estabeleceu-se a sua
sede e o foro na Capital da República, Brasília, e a sua atuação em todo o território nacional. A
organização original da primeira Diretoria era com 4 integrantes, conforme art. 14 dessa mesma
Lei. A sua primeira estrutura administrativa, no entanto, foi se estabelecer somente com a
Circular nº 11, de 8 de setembro de 1965 (BCB, 2019). Por ter sido criado no último dia de
1964, sua atuação efetiva mesmo deu-se apenas em 1965, motivo pelo qual costuma considerar-
se esse o ano de sua fundação. O regime militar pós-1964 é, por conseguinte, o de
institucionalização burocrática do BCB, mas não o de sua configuração como banco central
clássico, dado que as definições das diretrizes de política monetária ficaram a cargo de outro
órgão, o Conselho Monetário Nacional (CMN), órgão superior do Sistema Financeiro Nacional
que tem a responsabilidade de formular a política da moeda e do crédito, objetivando a
estabilidade da moeda e o desenvolvimento econômico e social do país, criado juntamente com
209
essa lei, tendo seu funcionamento iniciado 90 dias depois, em 31 de março de 1965 88. Nesse
período ditatorial, no entanto, dão-se as primeiras estruturações administrativas do BCB,
algumas delas permanecendo até hoje e que inauguram uma forma de atuação hierarquizada,
racional e formal, vista como tecnocrática. Com o fim do regime ditatorial e a redemocratização
até o governo Itamar Franco, pode-se dizer que o BCB concretiza a sua fase de burocratização.
No período seguinte, de 1965 a 1969, as áreas de jurisdição dos diretores eram personificadas,
não havia denominação específica, tais como Diretoria “A” ou “B”, apenas Diretores. Logo
após, entre 1969 e 1974, as Diretorias passam a ser identificadas por sua área de atuação (cfe.
Aviso Depad 142, de 5/12/1969), i.e., econômica, administrativa, fiscalização, etc. Durante
todo este período, entre 1965 e 1974, a diretoria do BCB era toda formada por pessoas
escolhidas dentre os membros nomeados do CMN (cfe. art. 14 da Lei nº 4.595). A
Superintendência Administrativa foi criada em 23/8/1973, por decisão do CMN ao apreciar o
Voto CMN 324/73, que propôs o desmembramento da Área Administrativa e do Crédito Rural
e Industrial. Subordinada ao Presidente, a Superintendência não fazia parte da Diretoria. Apenas
após 1974 é que passam a haver as indicações das lideranças formais do BCB pelo Presidente
da República. Sua composição seguirá sendo alterada até chegar ao formato final, em 1985, no
início da redemocratização (Quadro 17). Em 18/2/1975 foi aprovado o Voto CMN 029/75 e
entrou em vigor a Portaria 63, que definiu a estrutura técnica e administrativa do Banco Central
e criou as Unidades Especiais (Gabinetes do presidente e dos diretores), e as Diretorias passam
a ter denominação específica. Em 24/1/1992, foi aprovado o voto BCB 057/92, que introduz o
conceito de Diretoria Colegiada, com atribuições e competências agrupadas por assuntos,
extinguindo os Gabinetes do presidente e dos diretores, eliminando também a forma de nominar
os diretores por área de atuação (“Diretor de...”) e as respectivas siglas. A composição da
Diretoria permanece com 9 membros (1 presidente e 8 diretores), conforme Decreto nº 91.961,
de 19/11/1985.
88
Segundo os relatos da documentação oficial do BCB, o CMN foi efetivamente instituído em 31 de março de
1965 porque o art. 65 da Lei nº 4.595 estabeleceu que a Lei entraria em vigor 90 dias após sua publicação.
210
Neste período, o BCB irá se constituir em uma burocracia tradicional, formal e hierarquizada,
que irá incorporar novos assuntos ao longo do tempo, conforme Quadro 18. De um início sem
especialização definida, que durará por quatro anos, o BCB irá incorporar novos assuntos de
acordo com as preocupações em cada momento, como os créditos industrial e rural no final dos
anos 1970, a dívida pública que cresceria bastante no início dos anos 1980, a dívida externa,
que será o grande tema de meados desta mesma década, o enfoque regulatório, normativo e de
reorganização do sistema financeiro no início dos anos 1990, até a sua estruturação clássica se
dar em 1995, com as áreas de política econômica e política monetária bem definidas. É
interessante que, embora a grande área de atuação do BCB seja política monetária, como
veremos, a definição das diretrizes desta política não ficou a cargo do BCB em sua criação,
211
sendo apresentada para o CMN, que carecerá de uma reorganização em 1995 para então chegar-
se ao arranjo institucional que prevalece atualmente.
cultura do povo”, mas não só por isso, mas também “pela estrutura capitalista da economia
nacional”. Se um técnico fala, ele há de ter razão. Poucos trabalhos denunciaram tanto os
perigos e as consequências da ascensão tecnocrática nas burocracias quanto os de Max Weber
e de Hannah Arendt. E, talvez, poucas burocracias representem tão bem essa ascensão dos
tecnocratas, quanto o BCB.
E junto com a tecnocracia e a burocracia, deu-se também uma virada liberal na economia
brasileira até então sem precedentes. Vimos que o BCB herdou um legado conservador e
autoritário das lideranças da Sumoc. A essa herança, juntava-se agora a da aspiração liberal,
que tentou se firmar e justificar ante mais um período opressor da história brasileira por meio
da defesa da técnica, apartada da política, isenta, neutra. Aqui a economia se junta à burocracia
como forma de poder (MOTTA, 1986; TRAGTENERG, 2005, 2006) ignorando qualquer
possibilidade de racionalidade substantiva (RAMOS, 1981), de crítica, de reflexão ética e de
busca por qualquer legitimidade ética do discurso (HABERMAS, 1989, 1991, 1997a, 1997b,
2004, 2011). Para um(a) tecnocrata, a razão moderna instrumental da economia justifica-se por
si só, não carece de reflexão, de convencimento, de diálogo. Ela se basta. Da mesma forma,
bastam as motivações técnicas para se aceitar quaisquer transgressões de direitos em favor de
uma pauta liberal.
É nesse sentido, portanto, que essa fase marca a ascensão dos economistas tecnocratas ao poder,
uma visão que permaneceu no BCB até os dias atuais. A entrevista de Carlos Langoni (2019,
p. 29) enfatiza bem isso quando diz que “nos governos militares, houve a valorização da
profissão do economista. Antes, havia alguns economistas importantes, mas eram
personalidades que ocupavam cargos públicos”, ou seja, eram esforços isolados. “A partir do
governo Castelo Branco”, diz ele, “começou a surgir a figura do economista técnico, do
tecnocrata” (LANGONI, 2019, p. 29). E o que é esse tecnocrata? Segundo ele, o “tecnocrata
nada mais era do que a versão pública do economista”, só que havia questionamentos, “quando
tinha poder de decisão na área pública, o economista era considerado um tecnocrata e, aliás,
muito criticado” (LANGONI, 2019, p. 29). Langoni (2019, p. 29) deixa claro que essas críticas
eram, na visão dele, injustas exatamente porque eram críticas políticas e não técnicas, não eram
matematizadas, como uma economia liberal exigia: “fazia-se certa transposição da crítica
política, acusando os tecnocratas de frios e sem sentimentos, pois só lidavam com números.
Isso porque foi a primeira vez que se começou a quantificar a economia, e ainda era um
exercício muito limitado”.
Além da chegada dos tecnocratas no poder, essa fase viu também a construção do BCB como
burocracia. Foi durante o regime de exceção que durou 21 anos que se consolidou a estrutura
do BCB como conhecemos hoje. Foi nessa época que foram criados os prédios, definidas
carreiras e a sua forma de funcionamento. Nessa época, constituiu-se uma identidade de banco
central na sociedade brasileira. Uma identidade envolta em um regime ditatorial, conservador
e de liberal. E que prezava a técnica sobre a política. Foi assim que o BCB ficou de 1965, início
de seu funcionamento sob a lei que o instituiu, a 1976 sem concursos públicos. Foram doze
anos sendo montado e povoado à revelia de interessados nas suas carreiras diretamente da
sociedade, tendo sido constituído com um quadro de pessoal incorporado do Banco do Brasil e
da Sumoc. “Em 1977, fizemos os primeiros concursos públicos para poder constituir uma
burocracia bem treinada e bem remunerada. Nossa preocupação era manter os vencimentos no
nível do mercado, para podermos captar no mercado”, afirma Paulo Hortênsio Pereira Lira
(2019, p. 51), presidente do BCB durante do governo do general Ernesto Geisel. Assim era
preciso construir um quadro técnico considerado de excelência; nesse sentido, Paulo Lira afirma
que “a ideia que eu tinha – e tenho – é a seguinte: o Banco Central tem que ser uma elite
pensante, porque o custo para o país de uma política mal concebida ou mal executada pelo
Banco Central causa um prejuízo inestimável para a economia” (2019, p. 51). Assim, conforme
214
o seu entendimento, e “o setor privado devia compreender” isso, “as cabeças mais privilegiadas
devem fazer parte da equipe do Banco Central, porque o mal que ele pode fazer é muito grande”
(LIRA, 2019, p. 51).
O apreço pela formação técnica do seu quadro, como boa burocracia, é bastante enaltecido pelos
entrevistados. Como Affonso Celso Pastore (2019, p. 49), o último dos presidentes do BCB em
período ditatorial, afirmou, em sua entrevista, tinha “muita gente boa na Instituição. Alguns
eram oriundos do Banco do Brasil, outros não. O Banco Central sempre se preocupou em treinar
seus funcionários”. Segundo ele, “havia um espírito de corpo. Isso sempre me chamou atenção
[...] o funcionário tinha orgulho de onde estava, do que fazia, das relações, da função [...] o
orgulho do seu pessoal era compatível com uma instituição muito maior do que ele, de fato,
era” (PASTORE, 2019, p. 49). O lado da qualidade técnica dos funcionários é enaltecido
diversas vezes nas entrevistas, e, como burocracia tradicional, a sua hierarquia também chama
a atenção, questões bastante comuns para um ambiente tomado pela racionalidade burocrática:
Era o grande momento dos economistas liberais, mais uma vez, sempre homens. Levados ao
poder pelos militares, eles se aproveitavam do regime de exceção para não se subordinar aos
políticos, como os economistas do período anterior. Como tecnocratas, eles sabiam impor suas
técnicas, ainda que não percebessem que essa imposição era, na verdade, fruto do regime
ditatorial. Ele, no entanto, conseguiram não só separar a política da economia, como superá-la.
Na análise habermasiana, tratava-se da colonização sistêmica do mundo da vida, a dominação
da política pela técnica econômica, como se vê neste trecho:
89
“O senhor também abordava os marxistas? Ligeiramente. Tudo o que contém muita ideologia vou descartando”
(BULHÕES, 2019, p. 67) Os alunos pediam ideologia, pediam Marx? “Eles não tinham coragem de me pedir
ideologia, não” (BULHÕES, 2019, p. 67). “A minha geração teve que estudar muito Marx e sobretudo Kalecki,
além de ler todas as teses da [Maria da] Conceição [de Almeida Tavares], todas as teses do Carlos [Francisco
Teodoro Machado Ribeiro de] Lessa. Era uma crueldade. Hoje, a Associação já avançou muito se compararmos
com aquele momento, e os alunos são poupados desses sacrifícios” (FRANCO, 2019, p. 19).
217
que ser um profissional puro, não deve ter nenhuma inclinação para soluções
políticas” (NOGUEIRA, 2019, p. 193, grifos nossos);
“Todo órgão público, seja o IBC, o Banco Central ou qualquer outro está
sempre sujeito a pressões. A democracia funciona assim. O que é preciso é
que a direção técnica do órgão seja capaz de resistir às pressões, que em si são
legítimas” (NOGUEIRA, 2019, p. 154, grifos nossos);
“Em 1974, houve a troca de poder entre Médici [general Emilio Garrastazu
Médici] e Geisel [general Ernesto Geisel]. O presidente do Banco Central
indicado foi Paulo Hortêncio Pereira Lira e o ministro da Fazenda, Mário
Henrique Simonsen. Pouco após minha saída do Bradesco, eles me
convidaram para assumir a Diretoria da Área Externa do Banco Central, onde
fiquei por cinco anos. Foi um período muito agradável. Fiquei lotado em
Brasília e atuei em uma área exclusivamente técnica, que não tinha nenhuma
relação com política” (BRACHER, 2019, p. 19-20, grifos nossos).
“Questionado sobre quão ideológica foi a opção pelas privatizações, digo que
foi muito pouco, porque, ao final, o aspecto financeiro domina qualquer outro
quando não há dinheiro em casa” (FRANCO, 2019, p. 77).
Presidentes de diferentes momentos, portanto, desde a criação formal do BCB, assumem essa
postura de distanciamento em relação à política, ou de rejeição da mesma, e até de
desconsiderações em relação ao contexto político. Henrique Meirelles (2019, p. 66), por
exemplo, quando perguntado sob as repercussões de eventos políticos da contundência do
mensalão, ocorridos durante o governo Lula, limitou-se a dizer: “naquele período, não me
dedicava a fazer análises de ordem política. O foco era exclusivo nas políticas monetária e
cambial, atividade-fim de um banco central”. De forma bastante similar, Pedro Bodin de
Moraes (2019, p. 52-54), valendo-se de uma metáfora de um comandante de um navio,
comentou sobre as instabilidades do governo Collor que isso era de menor importância, pois
“na época, nossa preocupação não era se o impeachment do Collor aconteceria, mas sim fazer
219
com que o navio transatlântico ancorasse para que a nova tripulação assumisse da melhor forma
possível”. A argumentação era a de que a técnica, neutra e isolada da política, viria sempre em
primeiro lugar, ainda que, como vemos na resposta de Bodin, mesmo dizendo que não havia
preocupação com a saída de Collor, a analogia usada sugere que já haveria uma percepção de
que o impeachment ocorreria, dado que ele menciona uma “nova tripulação”, ou seja, um novo
governo que trocaria todos os que administravam e conduziam o BCB.
“Os professores tinham suas visões políticas, mas minha impressão é que o
que distinguia esse projeto [da PUC do RJ] dos demais era o foco na
excelência acadêmica, que vinha à frente de outras questões, até porque o
processo político já seguia um rumo virtuoso. A militância política não fazia
parte da vida das pessoas que estavam ali, eram doutores, formados no
exterior, que estavam organizando um curso de Economia. Em contraste, na
UFRJ, a militância política parecia sobrepujar qualquer outra consideração e,
na EPGE, havia a mesma tendência, mas para o lado do governo. Nesse caso,
não era propriamente uma militância, mas talvez uma torcida. A PUC, de certa
maneira, foi uma espécie de descanso dessa dualidade porque era preciso
pensar sobre o futuro. Ninguém estava fazendo pesquisas na área de Economia
com excelência, isenção, tecnologia e contato com o mundo acadêmico
exterior. Esse grupo buscou preencher esse vazio e estava mais afastado da
política. O que foi muito bom, porque era do que o país estava precisando”
(FRANCO, 2019, p. 18-19).
Prevalecia, portanto, a visão de que era possível ser neutro, apartidário, apolítico, técnico,
independentemente do contexto social, do momento histórico e do ambiente político, como bem
representa a fala de Ernane Galvêas, sobre as relações do BCB com o Congresso Nacional no
regime militar pós-1964:
“Havia um gerente com o seu auxiliar que eram pessoas da minha confiança,
mas, como tinham trabalhado na administração de João Goulart, houve uma
pressão para tirá-los. Pressão política, não do sistema bancário. Conferi com
o sistema bancário, e eles os achavam ótimos funcionários, da maior
confiança. Disseram-me: ‘Você precisa manter esses homens. Faz muito bem
em mantê-los’. Quer dizer, era tudo fofoca política. Mas muito forte. E eu
mantive o pessoal que era da minha confiança” (RIBEIRO, 2019, p. 175).
Castelo Branco imprimiu uma virada liberal na economia brasileira que, como vimos, fora
elogiada pelas lideranças econômicas da Sumoc e do BCB. É neste sentido que Ernane Galvêas
(2019, p. 49, grifos nossos) afirma, em sua entrevista sobre o surgimento de um banco central
no país, que “a sua criação marcou o ponto de inflexão dessa velha política [a
desenvolvimentista], correspondeu a uma mudança de atitude, refletindo um sentimento muito
mais neoclássico, muito mais liberal”. Os elogios apresentados por ele a este fato, seguem na
linha conservadora (tratada anteriormente), que enaltece suas características de manutenção da
ordem e da disciplina. Ele diz: “ele [o BCB] é a polícia do sistema financeiro, é o agente
financeiro do governo, o guardião das reservas internacionais, o disciplinador da expansão
monetária, do controle da liquidez” (GALVÊAS, 2019, p. 49, grifos nossos). Polícia, agente,
guardião, disciplinador e controlador. Todas essas palavras remetem à ideia da dominação, da
força, da defesa, da imposição. São expressões típicas do vocabulário conservador autoritário.
Mas esse conjunto de atributos impositivos do BCB teria durado pouco, segundo os
entrevistados, porque a partir do governo Costa Silva, tem-se uma mudança na orientação de
política econômica com a assunção de Delfim Netto e o retorno de traços do
desenvolvimentismo, responsáveis pela insurgência do chamado “milagre econômico” que
durou de 1968 a 1973.
A partir deste momento, tem-se uma fase de desequilíbrios econômicos e institucionais, em que
são criticadas, pelos entrevistados, as alterações no modelo liberal original, que queria um BCB
221
totalmente independente, técnico, neutro e com poder total de decisão. A estrutura institucional
montada, porém, mantinha a chamada conta movimento no Banco do Brasil e um
relacionamento imbricado com o Tesouro Nacional, além da criação do Conselho Monetário
Nacional, que era o órgão que efetivamente determinaria as diretrizes da política monetária no
país. Passa-se, então, por um momento turbulento, em que a tecnocracia liberal tenta-se afirmar
em um quadro institucional complexo e um contexto econômico perverso, de hiperinflação,
concentração de renda, aumento da desigualdade, endividamento externo e crises bancárias.
Neste contexto, os conflitos entre política e economia se acentuam, e o questionamento à
relação BCB-CMN é mais forte. Denio Nogueira (2019, p. 107), por exemplo, como
representante da ala liberal mais conservadora, em sua entrevista, declara sobre a criação do
CMN: “eu era e continuo sendo contra o CMN”. Isso porque a existência do CMN feriria a
autonomia do BCB e o impediria de se tornar um banco central clássico, que decide sozinho as
diretrizes da política monetária.
O CMN, no seu modelo inicial, era composto por muitos representantes do empresariado, do
setor financeiro e do governo, reduzindo, portanto, o papel do BCB na condução de suas
decisões. Perguntado, no entanto, sobre por que não foi prevista a participação de trabalhadores
na composição do CMN, Nogueira (2019, p. 105, grifos nossos) responde taxativamente, em
uma das respostas simbolicamente mais significativas de sua entrevista: “porque o trabalhador
não tem nada a ver com a política monetária. Como o industrial também não tem, o comerciante
também não tem”. Ou seja, como todo tecnocrata, sua decisão há de ser exclusiva, racional,
sem mediação e sem participação de ninguém. A tecnocracia não surgiu para operar em
contexto democrático. O BCB também não. E, tanto trabalhadores quanto a própria cidadania
deveriam estar fora das discussões de política monetária.
O curioso é que, nessa mesma parte da entrevista, Denio Nogueira (2019, p. 105) é contestado
dizendo que o empresariado estava, sim, presente; só trabalhadores que não. Ele contemporiza
a contestação e diz “realmente, acabaram sendo escolhidos dois banqueiros: um representando
o sistema bancário mineiro, e o outro, o sistema bancário paulista. Mas podiam não ter sido
banqueiros, podiam ter sido dois professores de Economia, por exemplo”. E ele justifica a
presença dos banqueiros dizendo que “o conselho é monetário. Trata-se de regular a moeda. E
a moeda bancária é a maior parte da moeda [...] se alguém tem conhecimento do mecanismo da
moeda são os banqueiros” (NOGUEIRA, 2019, p. 106). Note-se que, neste momento, toda a
222
Essa aparente incoerência quanto à isenção técnica fica evidenciada também nos comentários
sobre o grau de independência que o BCB possuía, quando de sua implementação. Ernane
Galvêas, por exemplo, que comemorava o poder de polícia do BCB recém-criado, como vimos
há pouco no seu depoimento, questionava esse mesmo poder ao afirmar:
É interessante notar que o fato de se defender um BCB apartado da política convive com a
percepção de ele “cuida praticamente de tudo em matéria de política!”, sendo que na verdade
seu foco é apenas a política monetária (GALVÊAS, 2019, p. 73). É uma constatação dúbia,
contraditória. Igualmente ambíguo: o BCB deveria ser independente do governo, mas não
poderia ser independente demais – incluindo do setor privado, por exemplo – porque senão se
tornaria um quarto poder. Como visto antes, é uma visão liberal com ambiguidade e
contradição. Rejeita-se a política, mas quer se dominar toda a política. A política monetária –
que é vista como estritamente técnica e apolítica – é maior que qualquer política. E isso deforma
a própria noção de liberdade. A tecnocracia quer uma liberdade sem política, pois reivindica-se
a liberdade para decidir tecnicamente sobre algo (no caso, a política monetária), impondo a sua
decisão a toda a sociedade, sem questionamentos. Quer-se uma liberdade para mandar e exigir
obediência (uma dominação racional-legal weberiana estrita), ou seja, contra a liberdade da
223
Nos trechos anteriores, vemos que representantes do povo (congressistas), governantes eleitos
(presidentes) e mesmo necessidades de ajustes do momento (acontecimentos) são vistos como
problemas para um BCB independente. A presença de banqueiros no CMN, não. Afinal, quando
fora elaborar o projeto de criação do BCB, Denio Nogueira (2019, p. 97) escolheu para trabalhar
com ele “três banqueiros, mas eram, sobretudo, pessoas das minhas relações”. E quando se saía
do BCB e voltava-se a trabalhar no mercado, para bancos privados, as portas do BCB
permaneciam abertas, não só para ouvir, mas para discutir estratégias, “linhas de ação”: “sempre
que o Ruy Leme [presidente do BCB à época, sucessor de Denio Nogueira] reunia banqueiros
para discutir linhas de ação, fazia questão de me convidar, embora o Banco Geral do Brasil
[banco privado que Denio Nogueira auxiliou a fundar após sair do BCB] ainda não tivesse
atingido posição de destaque entre os bancos nacionais” (NOGUEIRA, 2019, p. 178, grifos
nossos). Um relacionamento que se fazia questão de reforçar, como vemos em Casimiro Ribeiro
(2019, p. 179-180), ao comentar a sua gestão da política de redescontos: “uma das funções que
desempenhei foi a de chamar os bons banqueiros – em conjunto e depois um a um – e dizer:
‘Não se preocupem. Não vou dar tostão para os patifes, que são pequenos, são poucos”, pois,
aparentemente banco bom é banco grande, concentrador de market share, em que pese a teoria
econômica neoclássica liberal defender a competição perfeita, sem monopólios. Contrariamente
ao que ocorria com a política (e com trabalhadores), portanto, com os bancos e os banqueiros,
especialmente os grandes, havia bastante sintonia e eram bem recebidos:
eram apenas banqueiros, e meu relacionamento com eles era bom. Com o
Setúbal [histórico banqueiro ligado ao grupo Itaú], por exemplo,
relacionávamo-nos otimamente. Havia banqueiros que falavam a mesma
língua que nós. Estava lá eu, na frente, fazendo a minha exposição, e eles a
apoiar, a discutir. Falávamos a mesma língua” (LEME, 2019, p. 42, grifos
nossos).
90
“No Banco Central, tivemos um evento sério no final de 1988, começo de 1989. Eu ainda não era presidente do
Banco, era o diretor da área bancária e, por questões de agendas, naquele dia, eu era o diretor de plantão em
Brasília. Havia um movimento forte ocorrendo na frente da sede do Banco Central, uma paralisação total. Algumas
áreas do Banco precisavam funcionar, mas estava tudo parado. Desci do andar onde estava alocada a Diretoria da
Área Bancária, passei no meio daquelas pessoas, pedi a palavra e subi em um caixote que estavam usando como
palanque, e inicialmente fui vaiado. Falei sobre a importância do Banco Central, sobre a importância do trabalho
deles, informei que as negociações estavam em andamento e que não dependiam, necessariamente, do Banco
Central, mas sim de outras esferas do governo. Depois de algum tempo e de algumas discussões e discursos, as
vaias cessaram, e o pessoal retornou para dentro do Banco. Foi uma experiência ímpar” (BUCCHI, 2019, p. 26).
225
econômicos ortodoxos e heterodoxos. Foi um período que acompanhou também uma esperança
de consolidação democrática com o retorno do sufrágio universal, da eleição direta e do
pluripartidarismo. Esse descompasso entre ganhos políticos e perdas econômicas parecia
frustrante nas lideranças entrevistadas, pois, aparentemente, haveria uma preferência pelo
contrário. Gustavo Franco (2019, p. 133) chega a dizer que era “um ambiente econômico
absolutamente destrambelhado. [...] não enxergamos a Nova República como um fracasso.
Pode não ter sido um fracasso político, mas, do ponto de vista econômico, foi uma tragédia, e
seu legado foi a hiperinflação”. “Naquela época [após a transição democrática até a transição
Collor-Itamar Franco-FHC]”, diz Paulo Cesar Ximenes Alves Ferreira (2019, p. 27), “como
agora [no governo Dilma Rousseff], a agenda econômica não se compatibilizava com a agenda
política”. A Nova República, inaugurada com a transição democrática, era vista como uma
grande decepção econômica, sobretudo por conta da hiperinflação:
Pelas entrevistas, percebe-se que as lideranças do BCB no período entendem que sua qualidade
técnica e independência política foi insuficiente para conter os descompromissos posteriores
dos governos com a questão econômica:
Neste período, surge também outra ambiguidade nas posições das lideranças do BCB. Ao
mesmo tempo em que a política era mal vista pelos entrevistados, rejeitada, e por mais que se
226
“Na presidência do Banco Central, tem-se que ter uma disposição política
maior. Não era possível permanecer apenas como técnico. Ser presidente do
Banco Central é algo muito importante, tem-se que estar disposto a enfrentar
politicamente várias questões” (BRACHER, 2019, p. 49, grifos nossos).
Novamente, porém, prevalecia a visão de uma burocracia insulada, hermética, fechada à pressão
política exterior porque era técnica, racional, eficiente. A questão política, então, deveria ser
tida como uma tentativa de superação unilateral, do BCB para o Congresso ou o Executivo,
porque o caminho inverso, segundo a percepção dos entrevistados, não seria possível ou não
era permitido por eles. Gustavo Franco (2019, p. 45) já havia comentado o fato de considerar o
BCB “mais protegido”, neste sentido, que o próprio Ministério da Fazenda. Carlos Brandão
(2019, p. 114) também reforçou esse entendimento ao dizer: “não aceitei imposição de nomes”
para o BCB. A visão geral, portanto, era a de que “o Banco Central nunca esteve exposto
diretamente à ingerência político-partidária” (LOYOLA, 2019, p. 22). Fernando Milliet de
Oliveira, presidente do BCB durante o governo de José Sarney, diz a este respeito:
“Acredito que tive muita sorte em relação a isso. Tive pouco contato com o
presidente Sarney e sempre em conjunto com o ministro da Fazenda. Nesses
encontros, nunca houve influência política, velada ou explícita [...] No período
em que fui presidente do Banco Central, nunca sofri cobranças e nunca tive
um pedido para abrir uma exceção, o que eu considero uma felicidade”
(OLIVEIRA, 2019, p. 59-60, grifos nossos).
É interessante perceber que a necessidade da política, mal vista e rejeitada pelas lideranças do
BCB, aumenta à medida que se avança na transição política da ditadura para a democracia no
país. Obviamente, um órgão que se supõe apartado do mundo político haveria de ter mais
dificuldades ainda de compreender a sua atuação numa transição deste nível. Os depoimentos
dados pelos entrevistados confirmam isso. O período pós-regime militar em 1985 até o início
dos anos 1990 passa a ser visto como caótico: “vivíamos um momento de transição, o país
estava em ebulição”, diz Wadico Waldir Bucchi (2019, p. 32), “tínhamos saído de um regime
político fechado para um aberto. A sociedade ainda não tinha amadurecido o suficiente para
algumas discussões importantes, como a atuação de um Banco Central ativo no exercício da
política monetária”. Gustavo Jorge Laboissiere Loyola (2019, p. 22), um dos dois presidentes
do BCB que eram da carreira, também destaca essa dificuldade ao dizer: “foi um período de
227
distensão, estávamos no final do regime militar e havia um clima de discussão mais aberta. O
BCB sempre foi um órgão muito técnico, mas ficava no meio dessa discussão política”. E uma
série de problemas econômicos que o país enfrentava passaram a pôr em dúvida a capacidade
de atuação do BCB: “havia, por exemplo, a questão da dívida externa, que gerava muitas
discussões e contestações: muitos queriam fazer uma auditoria da dívida, os credores
internacionais eram demonizados, as missões do FMI eram duramente criticadas” (LOYOLA,
2019, p. 22). Até mesmo as reivindicações trabalhistas marcaram o período: “Foi quando
começaram as primeiras greves, os primeiros movimentos sindicais dentro do Banco”
(LOYOLA, 2019, p. 22).
E, o BCB, como órgão técnico, ficava em segundo plano diante das discussões travadas no
âmbito do CMN: “em todo o período pré-Constituição de 1988, quem elaborava as políticas
públicas, na realidade, era o Conselho Monetário Nacional (CMN)” (LOYOLA, 2019, p. 22).
Mas, podemos ver algumas indicações nas próprias entrevistas de que a tão defendida
neutralidade técnica e o insulamento burocrático do BCB talvez não fossem válidos para todas
as áreas ou em todas as circunstâncias, ou mesmo diante das pressões contra a atuação sindical:
CRFB/88 de modo positivo. Afinal, no período militar, como afirmou Casimiro Ribeiro,
“estávamos num governo de força [...] não era preciso aprovar o nosso nome no Congresso para
se trabalhar”, o que, para um tecnocrata que fosse, portanto, refém de uma racionalidade
instrumental estrita, pareceria uma vantagem (RIBEIRO, 2019, p. 165).
Não haveria o porquê de um órgão como o BCB, na visão de suas lideranças, participar da
construção da CRFB/88. Quando perguntados a este respeito, se o BCB foi chamado a participar
da Assembleia Constituinte e a debater as propostas, Fernão Bracher (2019, p. 47) limitou-se a
dizer que “não”. Fernando Milliet de Oliveira (2019, p. 56) disse, por sua vez, que “muito
pouco. Na verdade, tive alguns contatos com lideranças parlamentares para buscar apoio para
a proposta do governo para a área econômica. Promovi alguns almoços na minha casa em
Brasília. Eram conversas amigáveis”. Embora não participassem ou não quisessem participar
da sua construção, isso não impediu que as lideranças envolvidas na criação institucional do
BCB se posicionassem fortemente contra a chamada constituição cidadã. Pérsio Arida (2019,
p. 89-90) refere-se a ela como “o trauma da Constituinte de 1988 que, num arroubo populista,
estabeleceu o teto de 12% ao ano para a taxa de juros”. Na visão dele, o “Brasil só escapou de
um desastre porque a Suprema Corte foi mais lúcida do que a Constituinte ao entender que o
dispositivo constitucional não era autoaplicável” (ARIDA, 2019, p. 89-90).
voluntarista, uma decisão retrógrada, fora da realidade, estatizante, o nosso maior erro, em
suma, um desastre:
Reparemos que, numa posição flagrantemente anticidadania, Bulhões afirma que ela é um
desastre justamente por não favorecer a iniciativa particular ou privada e por focar a
distribuição, ou seja, a desigualdade – essência dos debates sobre cidadania, como vimos ao
longo deste trabalho. A CRFB/88, na visão dele, pecou por enfocar as pessoas, ao invés de visar
à produção, ao setor econômico produtivo empresarial, rural e financeiro.
Além dessa visão percuciente contra a CRFB/88, uma percepção mais sutil da linha de
raciocínio anticidadã da burocracia tecnocrata do BCB pode ser vista nas entrevistas dadas e
que era uma marca desta segunda fase, a tentativa de implementação de planos de estabilização
que nem sequer se preocupavam com a devida orientação à população do que estava por ocorrer.
Obviamente, numa decisão tecnocrata, como vimos, não há porque se preocupar com
trabalhadores, com política, nem com cidadania. É uma decisão matemática que prescinde de
povo, de negociação, de consenso de legitimação política. Está fora da ética do discurso. Está
fora dos espaços públicos de exercício da cidadania e de construção coletiva da política pública
democrática. A Administração Pública, neste sentido, não existe para viabilizar a cidadania
alguma, existe para tomar decisões técnicas que podem ser, inclusive, contrárias à própria
230
cidadania. O comentário de Ibrahim Eris (2019, p. 40), sobre o plano Collor que resultou no
confisco da poupança é emblemático, neste sentido: “a população não compreendia como
aquele plano iria reduzir o nível de inflação e achava que era, simplesmente, um confisco”, ou
seja, atribui-se à população a culpa pela dificuldade da implantação do plano que, do ponto de
vista técnico, seria infalível. Reconhece-se, no entanto, que era preciso, ao menos, dialogar com
a população: “na verdade, tudo isso estava contido nas entrelinhas do plano [a população que
não soube entender], mas, como disse, foi mal explicado para a população, não temos como
negar. A comunicação foi um desastre total” (ERIS, 2019, p. 40). O problema é que, apesar de
se saber da necessidade do diálogo, não se dialogou.
O desprezo pelo diálogo e pela transparência são características imanentes das ditaduras. E,
para um órgão concebido sob o regime de exceção com os traços de conservadorismo,
autoritarismo e de tecnocracia apontados, seria esperado que não houvesse preocupação em se
empenhar em explicar planos e decisões à população. Seguia-se a tradição das políticas de
austeridade e de arrocho salarial do início do regime militar em que, segundo Paulo Lira (2019,
p. 32), “nada foi explicado, e aqueles que sofreram ao longo daquele período não aceitavam
isso. O aperto nunca foi esquecido. E nunca foi explicitada a razão daquela política”. Isso
porque a decisão era sempre técnica, portanto, “não havia outra alternativa”, não precisava
explicar, bastava decidir (LIRA, 2019, p. 32). O interessante é a tentativa de justificar as
insatisfações da população dizendo que o setor privado também sofre: “quem paga a maior
parte é o assalariado, mas as empresas também pagam” (LIRA, 2019, p. 33).
uma coletiva de imprensa e falar sobre o plano, víamos essa como uma função
do ministério” (ERIS, 2019, p. 43).
Neste sentido como última característica dessa fase, percebida amplamente nas falas dos
entrevistados, temos a sagração do liberalismo e a ampla defesa do mercado, que muitas das
vezes é retratada como antidesenvolvimentismo91, antiestado e contra qualquer política
associada à esquerda. Na fala de Carlos Brandão (2019, p. 109, grifos nossos), observa-se isso
nitidamente, bem como o traço tecnocrata de falar em nome do Brasil: “minha filosofia
obedecia a outros parâmetros, expressos na organização que imprimi ao mercado de capitais,
calcada no exemplo norte-americano, avesso à estatização – o caminho do Brasil seria mais
esse”. E o único caminho admissível é o monetarismo:
91
Denio Nogueira (2019, p. 63) afirmava categoricamente contra a política de JK: “Brasília, política cambial de
taxas múltiplas, industrialização substitutiva de importações, eram todos pontos de que eu discordo
fundamentalmente”.
232
“É. E só descobre isso quem vai lá trabalhar. Você vira monetarista. E não é
porque você resolve tudo com a moeda, não é isso. É que você vê um
descalabro, e então você acaba propondo mais (RIBEIRO, 2019, p. 151).
92
A posição de Denio Nogueira (2019, p. 83-84), no entanto, é a mais confusa nesse sentido – como já apontada
no tópico anterior, ele dizia que “nós estamos no Brasil, numa posição em que é difícil definir o que é esquerda e
o que é direita. Quando eu me comparo ao Celso Furtado, considero-me de extrema esquerda e a ele de extrema
direita, ainda que, politicamente, ele possa ser de esquerda”; e continuava, “o BCB é o contrário do liberalismo. É
uma intervenção na moeda, que é como o sangue no corpo humano, é algo que toma conta de todo o país. Tudo é
regulado pela moeda. Não posso entender como é que se pode chamar de direita uma pessoa que quer intervir por
meio da moeda que é a melhor forma de intervenção! As intervenções que vejo feitas pela Cepal por um grande
grupo seguidor das ideias do Celso Furtado, os chamados estruturalistas, essas intervenções é que são de extrema
direita, porque concentram a renda” (NOGUEIRA, 2019, p. 83-84).
233
“Acho, na verdade que, por trás de tudo, estava um problema que, na época,
não foi bem entendido. Os acontecimentos de 1964 resultaram de uma crise
externa. O Brasil havia tido uma crise da dívida externa em 1961-1962”
(LIRA, 2019, p. 31, grifos nossos);
“Figueiredo declarou a anistia! Até os civis não queriam uma anistia ampla,
geral e irrestrita. A anistia seria para o Brizola, o Arrais e outros poderem
voltar para o Brasil e votar nos candidatos que fossem às eleições, mas não
para eles serem candidatos. E a anistia foi total. Figueiredo fez a anistia ampla,
geral, irrestrita. Foi ele que inspirou a Emenda Dante de Oliveira. E todos
voltaram, todos foram candidatos e todos foram eleitos. Eram todos mártires,
eram todos vítimas...” (GALVÊAS, 2019, p. 185, grifos nossos);
93
Chico Lopes se apresenta como uma rara exceção: “o Langoni seguia a linha de Chicago, e nós éramos meio
keynesianos. Não tínhamos nenhuma relação com a Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e
Caribe],10 éramos mais de centro. E o mestrado que criamos na PUC recebeu o título de Mestrado em Economia
do Setor Público, ou seja, tinha um pouco esse viés” (LOPES, 2019, p. 32).
234
Especialização na Alta
Administração do BCB: 1965 1969 1980 1985 1990 1995 1996 1999 2000 2002 2011 2012
Diretores, Diretorias ou Áreas
Sem assunto definido
formalmente
Sim - - - - - - - - - - -
Administrativa - Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Crédito Rural - Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Bancária ou Fiscalização - Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Mercado de Capitais ou Mercado
Aberto
- Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Área Internacional ou Cambial - Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Crédito Industrial - Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Dívida Pública - - Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Dívida Externa - - - Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Normas, Regulação e
Organização do SFN
- - - - Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Política Monetária - - - - Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Política Econômica - - - - - Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Reestruturação do Sistema
Financeiro Estadual e Dívidas
- - - - - - Sim Sim Sim Sim Sim Sim
Regimes Especiais, Liquidação
ou Resolução
- - - - - - - Sim Sim Sim Sim Sim
A terceira fase de construção do BCB e de sua relação com a cidadania marca um momento de
estabilização monetária combinado com um reconhecimento da relevância da política como
elemento articulador de políticas econômicas. A visão tecnocrática – de que o órgão é isento,
neutro, independente – permanece, mas é suavizada pelo entendimento de que a política
monetária faz parte de uma visão política maior, que depende não só da presidência do
Executivo nacional, mas também da atuação política do Ministro da Fazenda. “No governo, é
importante seguir uma linha, ter uma visão geral das coisas”, diz Armínio Fraga Neto (2019, p.
43), “ter uma linha de política pública geral, saber o que se quer fazer, quais são os princípios
norteadores, e seguir, deixar correr”. Essa era uma visão amadurecida pelos erros do período
anterior que demonizaram a política por completo. Sabia-se, agora, das consequências da
instabilidade política em regimes democráticos. Gustavo Franco (2019, p. 38), por exemplo,
lamentava que “o país possuía um ministro da Fazenda a cada dois meses e meio, cada um deles
saindo de cena por uma razão mais efêmera do que o outro”, no período que foi do impeachment
de Collor à eleição de Fernando Henrique Cardoso. Assim, pela necessidade impingida pela
democracia, passava-se agora a valorizar o trabalho de articulação política para convencimento
e não mera imposição, tal como vemos no depoimento de Persio Arida:
“Devo fazer uma observação que talvez pareça óbvia, mas que é muito
importante [...] pensar e executar um plano de estabilização é um projeto
coletivo e político, porque muda o país. Há que se ter um time de bons
economistas, bem formados e bem informados, que trabalhe lastreado por
laços pessoais de confiança, com capacidade de persuasão junto aos
formadores de opinião. O fato de muitos de nós terem vindo da PUC-Rio e já
termos anos de amizade e reflexão juntos, como professores ou alunos, fez
uma enorme diferença. Mas nada teria sido possível sem a liderança e
capacidade política do Fernando Henrique, inclusive por sua capacidade de
convencer o presidente Itamar Franco a embarcar no que provavelmente
achava quase uma aventura. O gosto do presidente era mesmo congelar
preços” (ARIDA, 2019, p. 68).
Com a implantação do Plano Real, em 1994, portanto, inicia-se uma nova fase da construção
BCB e da percepção de cidadania das lideranças a ele atreladas, que se ancora nos resultados
da estabilidade monetária para implementar alterações institucionais relevantes, como a criação
do Comitê de Política Monetária (COPOM), pela Circular nº 2.698, de 20 de junho de 1996, e
a construção do sistema de metas para inflação, logo em seguida, em 1999, por meio do Decreto
Presidencial nº 3.088, de 21 de junho de 1999 que estabeleceu formalmente, passando a vigorar
236
a partir de 1º de julho de 199994. Como afirma Affonso Celso Pastore (2019, p. 46), “o Banco
Central que conhecemos hoje, que nasceu com o Plano Real, não era o Banco Central de antes.
O nome pode ser o mesmo, mas a instituição é completamente diferente”. Nessa mesma linha,
Francisco Lafaiete de Pádua Lopes (2019, p. 42) afirma que “algumas pessoas dizem que o
Banco Central começa a existir, de fato, a partir do Plano Real. É verdade, mas houve muitas
críticas”, reconhecendo apenas as relativas às altas taxas de juros definidas pelo BCB à época.
O Plano Real e o sistema de metas para a inflação são vistos, muitas vezes, como um mesmo
processo de estabilização, que marca a consolidação do BCB como um banco central clássico
e autêntico, ou de livro-texto, conforme vemos mencionado em algumas entrevistas. Na
entrevista de Armínio Fraga, por exemplo, ele trata dessa construção como sendo a implantação
de um Plano Real II ou de uma segunda fase do Plano Real e diz: “não tenho nenhuma dúvida
de que foi. O que, aliás, não é caso único na história, só que muitos planos chegam a essa
segunda etapa e dão errado. O nosso deu certo, mas contou com uma base fiscal que foi
fundamental. Esse ajuste foi histórico” (FRAGA, 2019, p. 97). A visão de ser uma nova etapa
na história do BCB, pós-estabilização, é bastante frequente:
Pela primeira vez, o plano liberal parece ultrapassar as preocupações com o autoritarismo e o
conservadorismo dos dois períodos anteriores, que pretendiam passar suas ideias a qualquer
custo. Há também um consenso entre os entrevistados de que o movimento liberalizante pode
ser construído democraticamente, frente aos resultados obtidos pelas privatizações iniciadas
94
Em 30 de junho de 1999, a Resolução 2.615 do Conselho Monetário Nacional definiu como referência para as
metas o Índice de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA.
237
com Collor e continuadas com FHC, tidas como um marco positivo na economia brasileira,
mesmo em meio ao caos político da democracia. Como se vê nos depoimentos abaixo:
O projeto neoliberal que se instaurava nos governos Collor – este considerado “ultraliberal”,
por Ibrahim Eris (2019, p. 28) – e FHC, se coadunava agora com uma agenda tecnicista também
da Administração Pública Gerencial, tendo-se, inclusive, ocorrido a reforma administrativa de
Collor, mais tumultuada, e a reforma administrativa de FHC, capitaneada por Luz Carlos
Bresser-Pereira, com a instituição do MARE, amplamente estudada na literatura especializada.
A Nova Administração Pública estava no seu auge, vindo de movimentos reformistas mundo
238
afora. A diferença, nesse período, é que, no Brasil e na América Latina, o projeto autoritário
perdia espaço e, com ele, o conservadorismo – embora este ainda estivesse associado à origem
neoliberal. Achava-se, de qualquer forma, que se estaria em um movimento crescente de
aprofundamento democrático, ainda que houvesse muitas críticas à gestão de FHC.
Para os entrevistados, todo esse contexto marcado pela construção da tríade institucional da
política monetária brasileira dada pela implantação do Plano Real, do Copom e das Metas para
a Inflação fez, na verdade, com que se aumente a percepção das lideranças do BCB de que,
enfim, o banco central caminharia para a sua desejada independência técnica, sob contexto
liberal, ainda que fosse uma independência de fato e não de direito, como se percebe nos trechos
abaixo:
“Não era mais uma atitude voluntarista de terminar a inflação, como ocorreu
no Plano Cruzado, no Plano Bresser. Tratava-se de uma combinação entre
ciência e evidência empírica, sem esquecermos do necessário apoio político
dado pelo presidente da República, que implementou o Plano Real, que tornou
o Banco Central de fato independente no uso dos instrumentos” (PASTORE,
2019, p. 23).
Além disso, tangenciando uma mudança de perspectiva sobre a cidadania, indicando outra
mudança em relação ao período anterior, identificada como um aprendizado com os erros
cometidos, a população passou a ser vista agora como parte do processo, como quem precisaria
tomar conhecimento das mudanças. Tem-se, pela primeira vez, desde a criação do BCB, uma
preocupação em orientar e explicar o que estava por ocorrer na economia. Inspirado no livro de
Elias Canetti, Massa e Poder, sobre a hiperinflação alemã, Gustavo Franco (2019, p. 59), diz
que o efeito de combater a inflação no plano real também tinha uma dimensão simbólica muito
grande para a população: “o dinheiro é um ‘símbolo da massa’, do grupo ou da nação, porque
cada um de nós se sente representado na moeda, como na bandeira e no hino; a moeda é um
símbolo nacional, como se fosse um pedaço da nossa identidade”. O objetivo era, portanto, o
contrário do período anterior, em que se buscava surpreender o povo, ele agora existia e se
239
identificava com a moeda. Pretendia-se, portanto, explicar o que se buscava fazer, com mais
transparência, tal como se exige efetivamente em uma democracia:
“Fernando Henrique foi muito bom nisso: afirmava que a diferença desse para
os outros planos econômicos era que os anteriores desabavam sobre a cabeça
das pessoas em uma segunda-feira pela manhã, depois de as decisões terem
sido tomadas no final de semana [...] No Plano Real, fomos informando aos
poucos qual era a direção que pretendíamos seguir, não haveria surpresa”
(MALAN, 2019, p. 60, grifos nossos).
Apesar desta aparente amenização no discurso, porém, as questões sociais mais profundas da
cidadania permaneceram fora da agenda do BCB no início deste período. E uma justificativa
para isso era que, após a implementação da tríade Plano Real, Copom, Metas para a Inflação, a
grande preocupação das lideranças do BCB à época não era promover inclusão nem
desenvolvimento social, mas impedir que esta arquitetura institucional ruísse. E, para assegurar
a sua continuidade, troca-se o autoritarismo ditatorial da força bruta do regime militar pelo
240
autoritarismo da tecnocracia como única solução possível: qualquer governo que viesse depois
haveria de se comprometer com essa realidade institucional. Mas, mais do que isso, a partir de
1999, com a adoção do regime de câmbio flexível e da preocupação permanente com o nível
de gastos do governo, institui-se também o chamado tripé macroeconômico que alcança
também a política fiscal, formado pelo Regime de Meta para a Inflação, o Câmbio Flexível e a
Meta de Superávit Fiscal. Era isso, ou o caos, na perspectiva dos entrevistados. Foi nesse
sentido que aquilo que era para representar uma alteração no projeto político neoliberal, em
2003, com a ascensão democrática do maior partido de esquerda da América Latina ao poder,
transformou-se apenas em um apêndice da política neoliberal já praticada de Collor a FHC.
Nesse ponto, retornam as posições de que a defesa irrevogável da pauta liberal não é uma
ideologia, mas uma escolha técnica. A defesa irrestrita da técnica é o que vemos nas falas de
Henrique de Campos Meirelles, presidente do BCB com o mandato mais longevo, ocupando
todos os oito anos do governo Lula. Segundo ele, “evidentemente, o presidente da República
tem a prerrogativa legal de demitir o presidente do Banco Central do Brasil a qualquer
momento, mas esse era um problema dele, não meu. Meu problema era tomar as decisões certas
e ponto final” (MEIRELLES, 2019, p. 63). Nesse sentido, a defesa da independência do BCB
– que significava manter sua atuação técnica mesmo em um governo cujo projeto político
original fosse inteiramente distinto – é evidente: “meu acordo com o presidente Lula, à época,
foi de autonomia total. Eu honraria esse acordo, e o Copom faria o que deveria ser feito com
total autonomia” (MEIRELLES, 2019, p. 63). O tecnocrata, como visto, tende a falar em nome
de todas as pessoas, mesmo sem mandato político para tal, julga-se o único portador da verdade,
cujo olhar técnico decide o que é melhor para o país. Nesse sentido, nada mais tecnocrático e
autoritário do que dizer que só há uma solução certa para qualquer problema, independente do
contexto e dos projetos políticos. Se no caso do regime de exceção da ditadura civil-militar o
autoritarismo se dá na figura do ditador, na tecnocracia, se dá na imposição de uma única
solução admitida em qualquer contexto: “ninguém impedia que o Banco Central e o Copom
tomassem as decisões corretas. E tomávamos” (MEIRELLES, 2019, p. 63). Mas quem diz o
que é o correto? E o correto, é correto para quem?
Neste ponto, é fundamental ver a posição das lideranças do BCB ao comentar a essencialidade
da Carta ao Povo Brasileiro, elaborada e divulgada pelo Partido dos Trabalhadores (PT),
241
“Ficamos com a esperança de que o [José] Serra fosse ocupar aquele espaço
[de Roseana Sarney que liderava as pesquisas de intenção de votos à época],
que era mais à direita do que o PSDB, mas isso não aconteceu. Quando ficou
claro, por meio das pesquisas, que não houve migração de votos da Roseana
para o Serra, a situação começou a ficar tensa no mercado. Em algum
momento, pareceu que o Ciro [Ferreira] Gomes venceria, o que também
assustou o mercado. Nós no Banco Central estávamos com o dedo no pulso
do paciente, sentindo a tensão crescer. Em junho, o PT fez a Carta ao Povo
Brasileiro que alguns de nós tivemos a chance de ler antes de ser divulgada. E
nada aconteceu. Fala-se hoje da Carta como se tivesse sido um divisor de
águas, mas, na visão do mercado, não foi. Para nós, houve uma sequência de
acontecimentos: Serra não decolou, a Carta não teve efeito. Então, começamos
a ficar muito tensos. A situação ficava cada vez mais difícil” (FRAGA NETO,
2019, p. 116, grifos nossos).
A partir disso, o BCB, um órgão que vinha se construindo como uma burocracia técnica e
independente, assume-se como um forte agente político na sociedade: “nós, do governo, juntos,
tomamos a decisão de tratar o problema [a tensão nos mercados], que claramente passou a ser
político, com uma resposta também política” (FRAGA NETO, 2019, p. 116, grifos nossos).
Essa resposta veio por meio de “conversas do presidente com os principais candidatos para selar
um grande acordo para manter um certo padrão na gestão das contas públicas, da inflação e
assim por diante” (FRAGA NETO, 2019, p. 117). No fundo, os receios eram os mesmos dos já
identificados nos períodos anteriores, o de uma suposta ascensão socialista, interventora,
estatizante. “Havia um certo receio de que alguém, vamos dizer, da ala mais radical do PT, ou
se não ‘mais radical’, da ‘menos ortodoxa’, como historicamente foi o Mercadante, fosse
assumir” (FRAGA NETO, 2019, p. 119). Como vimos, esse pavor diante de uma ascensão não-
liberal de algum governo não era novo, ele sempre existiu nas lideranças econômicas brasileiras
que cuidaram da política monetária desde pelo menos a posse de João Goulart, 40 anos antes.
O próprio candidato do PT já havia participado de todos os pleitos eleitorais à presidência desde
a redemocratização. E a convicção de algumas das lideranças econômicas era a de que se o
candidato Lula do passado, especialmente o de 1989, ganhasse “não seria um bom governo”,
porque “os planos que a equipe tinha à época não seriam produtivos para a economia brasileira,
e eu disse isso ao Lula mais tarde” (MEIRELLES, 2019, p. 15).
[Armínio Fraga:] Discutia-se, mas não dentro do Banco Central, e sim nas
reuniões do alto escalão. Desde o primeiro mandato, houve, no governo
Fernando Henrique, uma grande guinada na direção de focar o Estado nas
frentes em que realmente pode e precisa atuar, nas questões essenciais: saúde,
educação e outros temas de natureza social, deixando a atividade econômica
nas mãos da iniciativa privada. Apenas no que diz respeito à infraestrutura,
que tem uma dimensão enorme na economia, o Estado participaria, mas com
mecanismos de regulação e supervisão, não com investimentos e gestão do dia
a dia. Essa guinada foi radical. Foi a maior delas, certamente. Esses programas
243
Ao final deste longo período neoliberal que veio de Collor até o final do primeiro mandato do
governo Lula, no entanto, uma mudança de posicionamento começa a se desenhar com a
indicação de Guido Mantega para a fazenda, em 2006. Mantega possuía um histórico de filiação
às vertentes mais desenvolvimentistas. Nesse momento, a questão da divergência política entre
o Ministro da Fazenda e BCB ficaram evidentes, mas continuavam sendo minimizadas pelo
argumento de que prevaleceria sempre a técnica na política monetária. Sobre esse novo
descompasso entre política e economia, Henrique Meirelles (2019, p. 76) afirmou em sua
entrevista, “não é o ideal, mas funciona porque o Banco Central possui instrumentos
independentes, pode atuar normalmente, como atuou e assegurou a estabilidade durante todo
esse processo”. Dois anos depois, um evento implicaria uma primeira reversão no
direcionamento político e econômico do governo, a crise econômica de 2008, que fora
enfrentada com a expansão do gasto público. Nesta época, afirmou Meirelles (2019, p. 76) sobre
Mantega, “tínhamos um relacionamento estritamente profissional, com visões diferentes. Ele
discordava da política monetária de forma direta [...]. Por outro lado, discordávamos da
expansão fiscal que se estabeleceu [...] discordávamos tanto na esfera privada quanto na esfera
pública”.
É neste período, após a crise de 2008, que a questão social começa a se institucionalizar no
BCB de maneira mais evidente. Isso ocorre em função do seu acompanhamento de uma agenda
internacional que se intensifica, no mundo todo, com os questionamentos às soluções liberais e
aos ímpetos desregulamentadores do sistema financeiro, às políticas reformistas da
Administração Pública e de austeridade fiscal – todos estes itens associados às causas da crise,
por intensificarem massivamente o processo de financeirização da economia global,
amplificada via globalização. A maior crise do capitalismo desde 1929 trouxe, portanto, não só
questionamentos às políticas liberais praticadas por décadas, mas também críticas ao
desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social que vinha ocorrendo desde a construção da
hegemonia da Nova Administração Pública. Essa época coincidiu com um forte período de
rediscussão do modelo de Administração Pública – um debate tentando apresentar o fim da
244
Foi neste contexto que, em 2009, o BCB começou a promover uma agenda de inclusão
financeira. Já existia, desde o início do governo Lula, uma proposta política de inclusão social,
sobretudo com as políticas de transferência de renda institucionalizadas pelo Programa Bolsa
Família, mesmo quando da manutenção de políticas neoliberais. Essa agenda de inclusão social
foi bem-sucedida no governo petista e amplificada com políticas sociais de ações afirmativas
de acesso ao ensino superior, programas habitacionais como Minha Casa Minha Vida, Luz para
Todos, etc. No âmbito de atuação do BCB, houve um aumento da discussão a respeito do
impacto das microfinanças no desenvolvimento social, impulsionadas simbolicamente com o
agraciamento do prêmio Nobel da Paz a Muhammad Yunus, em 2006, por sua experiência no
combate à pobreza por meio da criação do Banco Grameen especializado na oferta de
microcrédito.
Um primeiro esboço deste movimento internacional de inclusão financeira pode ser visto em
1999, com a divulgação do documento de promoção de Inclusão Financeira Global: Princípios
e Plano de Ação do G20. Apenas com as repercussões da crise de 2008 é que essas discussões
foram ampliadas. Assim, os eventos abaixo foram fundamentais:
Após o marco global dado em 1999 pelo G20, o BCB realiza a partir de 2002 – sempre
juntamente com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) –, os
seminários de microfinanças, com o intuito de constituir um grupo de interações com o SFN
para pensar a regulação do tema no país, de forma coordenada, embora houvesse alguns
esforços isolados no órgão desde 1992 (SOARES & SOBRINHO, 2008; ALVES & SOARES,
2006). As discussões centram-se inicialmente no microcrédito e no cooperativismo, sendo
realizadas duas edições do Seminário Banco Central sobre Microcrédito, em 2002 e 2003, e
seis edições do Seminário Banco Central sobre Microfinanças, realizadas entre 2003 e 2008.
O contexto social destes eventos se dá pelo foco em pessoas tradicionalmente excluídas do
acesso a serviços financeiros. Conforme explicam Soares e Sobrinho (2008, p. 23), “o termo
microfinanças [...] refere-se à prestação de serviços financeiros adequados e sustentáveis para
população de baixa renda, tradicionalmente excluída do sistema financeiro tradicional, com
utilização de produtos, processos e gestão diferenciados”. O enfoque é justamente a camada
246
mais pobre da população que era fortemente trabalhada nos programas sociais desenvolvidos
pelo governo desde 2003. Microcrédito, por sua vez, refere-se à atividade “no contexto das
microfinanças”, que “se dedica a prestar esses serviços exclusivamente a pessoas físicas e
jurídicas empreendedoras de pequeno porte”, enfocando, portanto, um público-alvo que
também não costuma ser objeto de ações incisivas do setor financeiro tradicional (SOARES &
SOBRINHO, 2008). As preocupações com esse público de microempreendedores e de classes
mais pobres encontravam-se coadunadas ao fenômeno da emergência da nova classe média,
amplamente discutido e trabalhado pelo governo petista, especialmente, durante o forte
processo de inclusão social realizado entre 2003 e 2010.
No Relatório de Administração do BCB, não havia menções à inclusão financeira nem à palavra
cidadania ou à expressão cidadania financeira, em 1999, em que as questões relacionadas à
cidadania limitavam-se às Centrais de Atendimento ao Público, serviços prestados em cada uma
das regionais do BCB, por meio de atendimento presencial, mas também por telefone ou por
correspondência impressa ou eletrônica95 (BCB, RA, 2000). A primeira menção à palavra
cidadania, isoladamente, surge no Relatório de Administração referente a 2000, mas
relacionado ao serviço de mensageiros e ao trabalho voluntário de menores aprendizes e jovens
carentes, não se tratando, portanto, de nenhuma política específica relacionada à sociedade
brasileira. Em 2000, foi criado também o programa BC Atende, por meio do qual o “cidadão
tem o necessário apoio para exigir mais esclarecimentos e melhores serviços das instituições
financeiras” (BCB, RA, 2001, p. 88), e iniciaram-se os trabalhos de educação financeira com o
objetivo de “melhorar a compreensão do público sobre o Banco Central e, mais do que isso,
sobre conceitos fundamentais da economia” (BCB, RA, 2001, p. 90), em que se buscava
trabalhar os espaços como o Museu de Valores, palestras e documentos sobre temas financeiros.
Em 2001, manteve-se o mesmo foco anterior e, na mensagem da Diretoria no relatório de
administração de 2002, surge a expressão “cidadãos consumidores de serviços bancários”
(BCB, RA, 2003, p. 5). Em abril de 2002, passou a ser divulgado, mensalmente, o ranking das
instituições mais reclamadas, e a “expectativa do Banco Central com essa divulgação é levar as
instituições a oferecer um serviço de melhor qualidade para o cidadão” (BCB, RA, 2003, p. 52).
95
Em 1999, a única menção além dessa aos cidadãos, refere-se ao “trabalho de informação acerca de assuntos
relacionados ao Bug do Milênio” (p. 59).
247
Em 2003, portanto, surge pela primeira vez um tópico sobre “democratização do acesso aos
serviços financeiros”, em que se documentava que “no primeiro semestre, sob a coordenação
do Ministério da Fazenda, o governo federal organizou ação articulada para assegurar o crédito
e o acesso aos serviços financeiros a parte considerável da população” (BCB, RA, 2004, p. 16).
Iniciava-se, assim, formalmente a questão da inclusão financeira no BCB, em que se destacava
que “uma das principais medidas foi a implementação de um grande programa de inclusão
bancária, cujo objetivo é possibilitar o acesso ao sistema financeiro por parte de 40 milhões de
pessoas de baixa renda” (BCB, RA, 2004, p. 16). Junto a essas iniciativas, mencionava-se
também o Projeto de Democratização do Crédito e a atuação de Correspondentes Bancários,
desenvolvidas desde 1999, aparecendo, pela primeira vez, a menção às microfinanças. Pela
primeira vez, também, surge nos relatórios de administração – documento oficial de prestação
de contas à sociedade – a expressão inclusão social, embora a palavra cidadania permanecesse
ausente:
Em 2004, passa a constar o tópico sobre “inclusão bancária e crédito para a população de baixa
renda”, que permanece no documento de 2005, no qual se destaca que o “Conselho monetário
Nacional (CMN) regulamentou parte da legislação que criou o Programa Nacional do
Microcrédito Orientado (PNMPO), referente à parcela dos recursos de depósitos à vista
destinada às operações de microcrédito” (BCB, RA, 2006, p. 14). No Relatório de Gestão de
2005, também se menciona a participação do BCB no VI Seminário de Atendimento Bancário
da Febraban em grupo de trabalho cujo tema fora “a educação para o consumo como princípio
básico de cidadania”, destacando o relacionamento da cidadania com a educação financeira.
Neste mesmo ano, a Organização das Nações Unidas declarou o ano de 2005 como o ano
internacional para o microcrédito, a “escolha deveu-se à importância dessa modalidade de
crédito para a melhoria da qualidade de vida das populações carentes” (BCB, RA, 2006, p. 14),
tendo o BCB sediado o 1º Workshop Internacional sobre Regulação e Supervisão de
Microfinanças. Ainda em 2005, surge uma diretriz estratégica no planejamento estratégico
formal do BCB, de “orientação para o cidadão e controle social: compromissos com os
248
Em 2006, o BCB institui a sua Ouvidoria para “fortalecer a cidadania, ao permitir a participação
do cidadão no controle da administração pública; e para garantir ao cidadão o direito à
informação” (BCB, RA, 2007, p. 41). Em 2007, o BCB instituiu grupo de trabalho junto com o
Departamento de Defesa e Proteção ao Consumidor do Ministério da Justiça para organizar o
tratamento de demandas de consumidores financeiros; foi desenvolvido também o projeto para
a transformação do acesso ao sítio do BCB na Internet em um Portal do Cidadão e implantou-
se o Novo Sistema para Registro de Demanda e Reclamação (RDR) de cidadãs e cidadãos.
(BCB, RG, 2008). E, já em 2008, finaliza-se a última edição dos seminários sobre
microfinanças pelo BCB (BCB, RG, 2009).
Em 2009, o BCB lança então o projeto Inclusão Financeira, cujo objetivo era repensar,
juntamente com os atores do sistema financeiro nacional e especialista no assunto, o modelo de
inclusão financeira no país, com o propósito de prover acesso a serviços financeiros adequados
às necessidades da população brasileira. Com base no projeto, inicia-se a série de edições do
Fórum Banco Central sobre Inclusão Financeira, novamente realizado juntamente com o
Sebrae, que se realizaria de 2009 a 2014 e que culminaria na publicação de três relatórios sobre
o tema, em 2011, 2012 e 2015, sendo o primeiro com o intuito de realizar um mapeamento das
microfinanças no país. Ainda em 2009, o BCB, como membro do Comitê de Regulação e
Fiscalização dos Mercados Financeiros, de Capitais, de Previdência e Capitalização (Coremec),
participou da elaboração da Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF) (BCB, RG,
2010; BCB; RA, 2010).
Em outro passo para a institucionalização da inclusão financeira, neste período, o BCB realizou
a revisão de seu planejamento estratégico formal, em fevereiro de 2010 e, com base nos
resultados das discussões do primeiro fórum ocorrido em 2009, incluiu “Promover a eficiência
do SFN e a inclusão financeira da população” em seus objetivos estratégicos, a serem
cumpridos de 2010 a 2014 (BCB, RG, 2011; BCB; RA, 2011). Em 2011, inclusão financeira e
educação financeira passam a ser temas relacionados, de modo que os documentos oficiais
passam a informar que “ao promover a inclusão financeira equilibrada, responsável e adequada,
249
O Relatório de Inclusão Financeira Nº 2, de 2011, por sua vez, apresentou o Índice de Inclusão
Financeira (IIF), primeira abordagem de indicador a ser empregado na definição de políticas
públicas voltadas ao processo inclusivo e na avaliação de seu progresso, relacionando-se a sua
discussão à dos índices de desenvolvimento humano. Este relatório destacava também a
identificação de um ciclo virtuoso de inclusão financeira associado ao desenvolvimento
socioeconômico, destacando a atuação do BCB em uma rede internacional de órgãos para a
promoção desse processo. Neste momento, surge mais claramente a discussão acerca da
proteção financeira do consumidor que, desde o relatório anterior, era já considerada um dos
elementos-chave da inclusão financeira junto com a regulação e a educação financeira, mas
passa a ocupar agora um ponto apartado de relevância no trabalho. De modo similar, divulga-
se a ENEF, que traz o conceito de educação financeira a ser adotado compatibilizado ao da
OCDE:
Por fim, em 2013, lança-se o programa Cidadania Financeira, por meio do Voto BCB 233/2013,
“que faz parte da estratégia do BCB para fortalecer as ações voltadas ao cidadão”, articulando
principalmente a inclusão e a educação financeiras, em ações de pesquisa, estudo e educação
que já vinham se estruturando desde 2009, e, de modo ainda incipiente, a proteção aos
consumidores (BCB, RA, 2014, p. 12). Divulga-se, então, a primeira conceituação dessa
expressão da seguinte forma:
O ano de 2015 estabelece alguns marcos na questão da cidadania no BCB. Em primeiro lugar,
encerra-se o ciclo de fóruns sobre inclusão financeira e se inicia, em 2015, a série de edições
sobre cidadania financeira. Em segundo lugar divulga-se o Relatório de Inclusão Financeira Nº
3, o último dos relatórios previstos, de visão panorâmica e no qual se discute a evolução da
inclusão financeira no Brasil, de 2010 a 2014, comparativamente de 2005 a 2010, considerando
três dimensões da inclusão financeira: a) acesso, como disponibilidade de serviços e produtos
financeiros; b) uso, definido como extensão e profundidade de uso de serviços financeiros; e c)
qualidade, definida como relevância dos serviços e produtos financeiros para a vida diária do
consumidor. Em terceiro lugar, lança-se o portal Cidadania Financeira, em março de 2015,
252
As opiniões apontavam para um descontrole das finanças públicas, um aumento excessivo dos
gastos do governo e uma crítica a uma suposta nova fase de desenvolvimentismo (BASTOS,
2012), traduzida na “Nova Matriz Econômica”96 (BARBOSA FILHO, 2017; OREIRO; 2017;
BACHA, 2016; NÓBREGA, 2016). E bastou essa mudança, para que se voltasse fortemente
para a questão da técnica inflexível que não permite alterações, ajustes, mudanças ou
improvisos. Tudo há que seguir necessariamente a técnica já consagrada – ignorando-se as
críticas existentes às técnicas consagradas, recorde-se o embate teórico sobre a macroeconomia
após 200897. Não pode haver modificações, como visto no comentário de Armínio Fraga (2019,
p. 135) comparando o primeiro mandato com o segundo de Lula: “a frase é essa mesmo. É a
mesma afirmação de [Verónica] Michelle Bachelet [Jeria] no Chile: ‘no primeiro mandato, fiz
o que tinha que fazer. Agora vou fazer o que quero’. Geralmente, isso não é bom sinal. E foi o
que aconteceu com o PT’”. Ou seja, não se pode tocar um projeto político diferente do exigido
pela técnica. Num exemplo claro de como a sistematização colonizou o mundo da vida, o
discurso, a política e a ética viraram reféns da macroeconomia ortodoxa, era ela que impunha
restrições quantitativas a todas as instâncias da vida política e do espaço público.
96
Segundo Samuel Pessôa (2013, p. 10), “a ideia básica da nova matriz era ajustar parâmetros macroeconômicos
do Brasil que pareciam anômalos, como a taxa de juros reais muito alta e o câmbio muito valorizado. Como
condimentos adicionais, havia uma visão mais intervencionista e protecionista da política econômica, e um realce
do papel do Estado”. Para um detalhamento maior, ver Bacha (2016) e Nóbrega (2016).
97
Economistas de renome como Joseph Stiglitz (2012, 2019), Paul Krugman (2009) e Paul Romer (2015, 2016) –
todos laureados com prêmios Nobel de economia – vêm apontando, pelo mesmo desde 2008, a necessidade de
reinvenção da macroeconomia e da economia tradicional. Stiglitz, por exemplo, critica abertamente os danos
provocados especialmente pela Escola de Chicago e seu liberalismo radical para a economia global. Romer
questiona a falta de conexão entre os modelos matematizados e a realidade fática. Krugman segue a mesma linha
e ambos questionam o legado monetarista desenvolvido pelos ultraliberais desde a década de 1960. Ricardo Reis
(2018) sintetiza um pouco os debates recentes sobre esses temas.
254
O grande ímpeto de inclusão social desfaz-se, então, diante de “erros técnicos” de decisões de
política econômica de um governo democraticamente eleito que, ao tentar passar o seu projeto
político, falha. Esses equívocos econômicos poderiam ser corrigidos dentro do eixo
democrático, como discutem Laura Carvalho (2018), Laudislau Dowbor (2017) e Lenna
Lavinas (2017). Mas a tecnocracia não admite falhas, ela ignora contextos sociais e políticos, e
exige correções imediatas, mesmo que ao custo da legitimidade política e ao sacrifício
institucional de uma democracia frágil, ainda por se consolidar. A dimensão política
reivindicada pela Administração Pública Societal, portanto, permanece alijada da
Administração Pública, e, se a Nova Administração Pública passou a ser rejeitada após a crise
de 2008, o Brasil consegue, ao recuperar mais uma vez o conservadorismo, dar novo fôlego ao
gerencialismo no Estado, a partir de 2016, com a ascensão da cidadania financeira e o descenso
da verdadeira cidadania.
Neste último período, o BCB já se encontra em uma situação de estabilidade funcional muito
grande, sem maiores modificações em suas perspectivas especializações de assuntos na alta
administração. Como se vê pelo Quadro 20, o único assunto destacado em reestruturações na
alta administração do órgão foi o destaque dado à supervisão de conduta.
256
Em um lugar dominado pela racionalidade instrumental, a técnica será a única métrica válida.
Dessa forma, assim como ela decide qual deve ser a política monetária correta, ela também
determina qual deve ser o tamanho do Estado, qual o modelo de Administração Pública correto,
e, mais do que isso, ela diz e legitima quem deve permanecer no poder e quem sai. O momento
de ascensão da cidadania financeira no BCB coincide, portanto, com o momento de
consagração da técnica sobre a política, e assim, do fim da possibilidade que se aventava de
uma incorporação da dimensão sociopolítica – reivindicada pela Administração Pública
Societal – no Estado brasileiro. O conceito de cidadania financeira que se desenhava no BCB,
vindo da inclusão social e da educação, agora extrapola o próprio órgão, passando a representar
simbolicamente esse novo momento, o da comunhão entre dinheiro e direitos, dada pelo retorno
do liberalismo – mais uma vez, a qualquer custo –, como também do conservadorismo. Só que
257
mais do que isso, dessa vez, ele sintetiza, também, o resultado do longo embate histórico-
dialético da sociedade brasileira entre liberalismo e desenvolvimentismo, política e técnica,
administração público e privada, Estado e Mercado. Como resultado deste processo, tem-se um
conceito-síntese – a financeirização dos direitos e deveres – que é, na verdade, o resultado
momentâneo da disputa entre a afirmação de uma estadania limitada e a defesa de uma
cidadania efetiva. Mais uma vez, falhamos na defesa desta última.
O BCB, como vimos, era uma tecnocracia burocrática, que rejeitava as questões políticas e que
fora instituída em um contexto autoritário, com um passado conservador e liberal-econômico.
Neste cenário, a cidadania – um conceito sociopolítico – passa a fazer parte da realidade do
órgão somente nos anos 2000 e, particularmente, a partir de 2003, quando se incute no BCB
uma agenda de inclusão social que fazia parte, na verdade, de um projeto político mais amplo
de governo e que estava alinhada a um movimento internacional de discussão de combate à
pobreza por meio do acesso a serviços financeiros. A partir de então, em um curto espaço de
tempo, de 2003 a 2015, vê-se essa agenda ser criada e ampliada articulando-se educação e
inclusão financeiras, de um lado, e proteção ao consumidor, de outro, para construir um
conceito de cidadania financeira, sendo toda essa construção impulsionada pelos
questionamentos ao grande processo de desregulamentação e de liberalização da economia que
estava entre as causas da crise de 2008.
“Os analistas estavam chegando ao mesmo resultado porque era essa a meta
implícita nos modelos. O Banco Central estava muito refratário a críticas.
Houve um episódio muito desagradável com [Alexandre Antonio] Tombini.
Não costumo fazer minha crítica entre quatro paredes, costumo torná-la
pública. E, quando fiz essa crítica, ele orientou a assessoria de imprensa a
questionar minha autoridade para falar sobre política monetária, se no meu
tempo a inflação era 100% ao ano. Deixei por isso mesmo, mas perdi
totalmente o respeito por ele. Não acredito que ele poderia ter sido presidente
do Banco Central. A atitude que ele teve comigo não foi legal, e estou
convencido de que o Brasil não deve nada a ele” (BRASIL, 2019, p. 50-51).
Um ponto interessante destes depoimentos é que, ao longo das entrevistas, como vimos, foi
sendo construída a ideia de que o presidente do BCB deveria ser técnico e independente, ou
seja, capaz de tomar decisões que desagradassem, desde que de acordo com o seu embasamento
técnico. Quando isso ocorre, porém, após 2011, as opiniões convergem para criticar as decisões
tomadas, mesmo não tendo havido quase nenhuma alteração no arcabouço institucional de
política monetária no período, qual seja, no Regime de Metas para a Inflação, no Copom e no
Plano Real. Afinal, “o presidente do Banco Central, pela responsabilidade do cargo que ocupa,
tem a sua visão de como deve administrar esses grandes fatores fundamentais: [...] a inflação;
[...], o equilíbrio do balanço de pagamentos [...] o presidente do Banco Central tem que ser
independente”, dizia Paulo Lira (2019, p. 54-55). As mudanças feitas à época do governo Dilma
teriam sido conforme a sua própria política de governo, e justamente o fato de se entender que
a política monetária deveria fazer parte de uma visão política mais ampla era um dos fatores de
sucesso apontados para o processo de estabilização monetária anterior, diziam que seria
importante para guiar a política monetária, como vimos nos depoimentos de Armínio Fraga e
Persio Arida.
Como dito, no entanto, em um ambiente que prevalece a racionalidade instrumental, não cabem
alternativas políticas, a solução é ótima, eficiente e deve ser sempre uma só. Mesmo
reconhecendo que o papel do BCB, dentro do quadro geral da política econômica não tivesse
agravado tanta a situação assim, a insatisfação foi crescente. “O Banco Central não
desorganizou a política monetária de modo relevante, tanto que, apesar de a taxa de inflação ter
frequentado a região acima da meta, nunca se afastou muito dela. Não estamos em
hiperinflação, nem nada parecido”, disse Gustavo Franco (2019, p. 140). Em outro trecho, diz:
259
“enfim, mesmo quando o Banco Central esteve sob imensa pressão do Palácio, não foi capaz
de subverter a lógica do regime de metas para a inflação” (FRANCO, 2019, p. 143). Segundo
ele, portanto, o BCB “não foi o protagonista do fracasso que foi o governo Dilma Rousseff e
nem poderia ter sido, porque o assunto que desencadeou o processo de impeachment sequer era
de sua alçada” (FRANCO, 2019, p. 143). O Gráfico 11 mostra que os resultados do regime de
metas para inflação do período da gestão de Alexandre Tombini demonstram um amento
continuado do resultado do IPCA até o seu pico e 2015, mas estão longe de reproduzir o maior
período de resultados fora da meta, que foi de 2001 a 2004, nas gestões de Armínio Fraga e de
Henrique Meirelles, quando o IPCA ficou cinco vezes seguidas acima da meta, e só não ficou
uma sexta porque a meta foi aumentada em 2004.
Gráfico 11 – Metas para a Inflação, com limites inferior e superior, de 1999 a 2021 e resultado do
IPCA de 1999 a 2018
Se não havia elementos técnicos para desqualificar o BCB, seria preciso, então, encontrá-los
em outro lugar. Neste caso, o alvo passou a ser a política fiscal, que não poderia ser questionada
apenas no nível político, era necessária uma argumentação igualmente técnica. E, para tanto,
um ex-presidente do BCB até aceitou trabalhar na campanha eleitoral do principal adversário
260
político do governo à época, para assim conseguir subverter a condução da política econômica
até então praticada:
“Em 2014, decidi contribuir, acreditando que não iria me envolver muito na
campanha, que seria chamado a falar apenas dentro do que fosse possível. Era
um ambiente extremamente populista, além disso, um discurso econômico
ortodoxo não ajuda a angariar votos” (FRAGA NETO, 2019, p. 138, grifos
nossos).
É interessante perceber que retorna o questionamento do caráter populista das ações do projeto
político contrário ao liberal-econômico. São as mesmas críticas feitas a JK, Jango e Getúlio
Vargas, pelos entrevistados, como também, o reconhecimento de que o argumento técnico (o
discurso ortodoxo) era insuficiente para convencer a população, que segundo entendimento
sugerido em uma das entrevistas, votava mal informada e era dependente de programas
assistencialistas:
Relevante notar como a racionalidade instrumentalizada não permite aceitar que existam
decisões que possam contrariar o cálculo utilitarista. As pessoas não podem simplesmente
discordar da agenda tecnicista, por qualquer razão. A discordância é fruto de ignorância, de
manipulação ou de má informação. E assim, o resultado das eleições de 2014 desagradou as
pessoas que sempre estiveram na liderança do BCB. Em suas entrevistas, percebemos que são
ignorados os fatores políticos e sociais, como a pressão por instabilidade criada pelos derrotados
no pleito eleitoral e as movimentações populares que, insatisfeitas tanto com as promessas não
cumpridas pela ascensão de um governo de esquerda quanto com as do liberalismo, tomaram
as ruas do país em 2013 e foram sendo subvertidas – insufladas por uma nova onda de
conservadorismo autoritário – até 2015, em um movimento contínuo de pressão com apoio da
imprensa tradicional, de parcela do empresariado e do setor financeiro.
261
Assim, o argumento da moralidade, dos bons costumes, do conservadorismo retorna. “Ao invés
de o governo do PT combater o que já eram práticas não republicanas [...] fez o oposto [...],
com consequências desastrosas tanto para a economia quanto para a política, para a cultura, em
geral, no Brasil. O aspecto cultural (isto é, de costumes) é difícil de se corrigir” (FRAGA
NETO, 2019, p. 123). A intensificação de políticas sociais, que era a principal marca dos
governos eleitos após 2003, não era bem vista pelas lideranças do BCB. Pelo contrário, a
política social representava um problema: “é um desperdício, em termos sociais, que se tenham
essas taxas de crescimento econômico que não geram empregos porque, então, retornam as
demandas por políticas sociais” (LIRA, 2019, p. 99). O crescimento econômico deveria
substituir a necessidade de política social. E esse problema – o retorno da demanda por políticas
sociais –, aparentemente, era visto como consequência política e cultural de uma falha no
processo de crescimento econômico ocorrido tanto no regime militar como no governo Lula:
“há uma dimensão humana no crescimento e os economistas acabam sendo muito acusados de
não prestar atenção a essa dimensão humana” (LIRA, 2019, p. 99). Logo, a conclusão a que se
chega é a de que “o país está, potencialmente, no fundo do poço. Isso se o governo parar de
cavar. Se a Dilma continuasse, talvez continuasse a cavar porque não sei se ela saberia fazer
diferente” (FRAGA NETO, 2019, p. 143). Era preciso, portanto, tirar a presidente eleita do
governo. Não se destituindo o governo no voto, restava, mais uma vez, a autoridade da técnica.
O clima de instabilidade política criado após a eleição de Dilma Rousseff para o seu segundo
mandato tem sido objeto de alguns estudos recentes. Trata-se de fato complexo, que começa
ser estudado na literatura especializada, como vemos, principalmente, em Carvalho (2018),
Jessé Souza (2015, 2016, 2017) e Guilherme dos Santos (2017), não por acaso, autores que
estudam a construção da cidadania no Brasil. A abordagem feita pelas lideranças do BCB, no
entanto, é diferente da desses autores. Para eles, não há ruptura institucional, nem sequer golpe
parlamentar. A razão para a mudança política é restrita à racionalidade econômica, mantendo-
se próximo da ideia da qualificação técnica da questão, mesmo reconhecendo que seja um ponto
não pacificado e de difícil compreensão para a opinião pública. As argumentações ficam sempre
em torno da legalidade estrita – outra característica da burocracia levantada por Weber e do
gerencialismo –, de estar previsto na lei, e não na sua análise qualitativa, reflexiva, ético-política
de ruptura institucional. O que importa é o resultado “que vá conduzir a um caminho melhor”
(FRAGA NETO, 2019, p. 124), não importando os meios, mesmo que a verdadeira razão seja
uma questão tão vaga quanto o “conjunto da obra”:
262
98
Como aproximações da confiança do mercado no governo, foram utilizados os Índices de Confiança do
Empresário Industrial (ICEI) Geral, representando o empresariado, medido para condições atuais e não como
expectativas futuras, que é calculado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). Os investidores estão
representados pelo índice Ibovespa, principal índice do mercado de ações brasileiro composto pelo desempenho
médio das cotações das ações negociadas na B3 - Brasil, Bolsa, Balcão -, fortemente influenciado pela volatilidade
especulativa do mercado quanto às decisões de político-econômica. E, por fim, o Índice de Confiança do
Consumidor, calculado pela Fecomércio, que procura capturar a confiança do consumidor brasileiro.
263
80.000
140
70.000
120
60.000
100
50.000
Ibovespa (Pontos) - 80
40.000
(Eixo da Esquerda)
60
30.000
40
20.000
Indice de Confiança
10.000 Industrial Geral 20
(Eixo da Direita)
0 0
03/01/2011
11/03/2011
18/05/2011
22/07/2011
27/09/2011
05/12/2011
09/02/2012
18/04/2012
25/06/2012
29/08/2012
06/11/2012
17/01/2013
27/03/2013
04/06/2013
08/08/2013
11/10/2013
18/12/2013
26/02/2014
08/05/2014
16/07/2014
18/09/2014
24/11/2014
02/02/2015
10/04/2015
18/06/2015
24/08/2015
29/10/2015
11/01/2016
18/03/2016
25/05/2016
02/08/2016
06/10/2016
14/12/2016
20/02/2017
02/05/2017
10/07/2017
13/09/2017
22/11/2017
31/01/2018
10/04/2018
15/06/2018
21/08/2018
26/10/2018
Alexandre Antonio Tombini Ilan Goldfajn
A partir de 2016, com o novo governo, inicia-se o último período analisado. Neste momento, o
BCB passa por mudanças que afetam mais a maneira como ele se relaciona com o mercado, do
que de reconfigurações de sua arquitetura de política monetária. Até porque, não houve ruptura
na política econômica, manteve-se algum alinhamento inclusive pessoal, pois, durante a
implementação do regime de metas para a inflação, trabalharam conjuntamente Armínio Fraga
(na presidência do BCB), Ilan Goldfajn, como diretor da área de Política Econômica, e
Alexandre Antônio Tombini, que chefiava o Departamento de Estudos e Pesquisas, principal
unidade interna do BCB responsável pela modelagem macroeconométrica que ampara o regime
(BCB, 1999, 2018a, 2018b). Tendo agora Henrique Meirelles no Ministério da Fazenda, era
esperado, portanto, que não houvesse mudanças bruscas em um relacionamento que envolvesse
quatro dos últimos presidentes do BCB em 20 anos. E isso foi o que, de fato, se viu em relação
à tríade institucional da política monetária.
prerrogativa, concedida
pelo COPOM, de
alterar a meta para a
Taxa SELIC no mesmo
sentido do viés, sem
necessidade de
convocação de reunião
extraordinária do
COPOM
O Diretor responsável
pelos assuntos de
Política Monetária
divulgará as decisões Propôs a extinção do
tomadas pelo COPOM uso das expressões
Indicação de viés - -
e as eventuais “com viés” e “sem
alterações da meta da viés”.
Taxa SELIC, conforme
viés, efetuadas pelo
Presidente
As decisões
As decisões
emanadas do Copom
emanadas do Copom
devem ser publicadas
devem ser
por meio de
As atas das reuniões do publicadas por meio
Comunicado do Atas das reuniões do
COPOM serão de Comunicado do
Diretor de Política Copom serão
Divulgação das divulgadas no prazo de Diretor de Política
Monetária, divulgado divulgadas no prazo de
atas até quinze dias corridos Monetária,
na data da segunda até seis dias úteis após a
após a data de sua divulgado na data da
sessão da reunião data de sua realização.
realização. segunda sessão da
ordinária, a partir das
reunião ordinária,
dezoito horas,
após o fechamento
imediatamente após o
dos mercados.
seu término.
Os Comunicados das
decisões do Copom
A divulgação das O Comunicado de
serão divulgados na
decisões emanadas do que trata este artigo
data da segunda sessão
Comunicados COPOM ocorrerá identificará o voto -
da reunião ordinária, a
mediante edição de de cada membro do
partir das dezoito horas,
comunicado Copom.
imediatamente após o
seu término.
Fica mantido o
calendário de reuniões
ordinárias do COPOM
para o ano de
1999, estabelecido pelo
Comunicado nº 6.438, O calendário anual das
de 28 de outubro de reuniões ordinárias será
1998, o qual será O calendário anual divulgado mediante
acrescido de reunião das reuniões Comunicado do Diretor
Calendário de extraordinária, ordinárias deve ser de Política Monetária
-
Reuniões convocada para o dia divulgado até o fim até o fim do mês de
22.9.1999. Tal reunião do mês de junho do junho do ano anterior,
terá como objetivo ano anterior admitindo-se ajustes até
exclusivo analisar o o último dia do ano de
Relatório de Inflação, a sua divulgação.
que se refere o Decreto
nº 3.088, de 21 de junho
de 1999, relativo ao
terceiro trimestre de
1999.
Fonte: elaboração própria a partir de BCB 1999, 2012, 2016, 2017, 2018a, 2018b.
266
A principal mudança que se viu, neste período, portanto, não foi na área de política monetária
stricto sensu, mas, sim, de relacionamento com o sistema financeiro, a começar pela própria
sagração da cidadania financeira. No período anterior, houve a promoção da inclusão com os
fóruns de inclusão financeira e o primeiro fórum de cidadania financeira. Neste período agora,
tem-se a consolidação dos fóruns de cidadania financeira, porém, com uma diferença marcante
na composição dos seus participantes e no foco. Vê-se, conforme demonstra o Gráfico 13, que
há uma redução proporcional na presença de bancos populares, de especialistas, pesquisadores
e representantes de ações de economia solidária, universidades e de organismos internacionais
relacionados ao combate à pobreza, em favor de entidades de classe do sistema financeiro
(como Febraban, ABBC, ABC, etc.), bancos e empresas privadas, Fintechs 99, ONGs,
empreendedores e influenciadores digitais. Teve-se, portanto, um redirecionamento da questão
da cidadania em favor do setor privado ao invés da pesquisa, da política pública e dos
organismos internacionais. Esses participantes do setor privado representavam cerca de 45% da
população dos encontros anteriores, e nos realizados no governo Temer passaram a representar
cerca de 75% dos convidados.
99
Fintechs são empresas que introduzem inovações nos mercados financeiros por meio do uso intenso de
tecnologia.
267
Além disso, outro ponto de inflexão do período atual diz respeito à aplicação de penalidades ao
setor financeiro. O processo de instauração e punição administrativa de instituições do SFN é
complexo e demorado. De toda forma, pelo que se depreende do Gráfico 14, vinha-se desde o
início do governo Dilma, sob mandato do presidente Alexandre Tombini no BCB, em 2011, em
um movimento crescente de retomada da aplicação de penas no BCB, até que se sancionou a
Lei Nº 13.506, de 13 se novembro de 2017, que alterou o arcabouço normativo referente ao
processo administrativo sancionador na esfera de atuação do Banco Central do Brasil e da
Comissão de Valores Mobiliários. Essa lei foi recebida com alguma polêmica em função de seu
art. 30, que dispôs que o BCB poderá celebrar acordo administrativo em processo de supervisão
com pessoas físicas ou jurídicas que confessarem a prática de infração às normas legais ou
regulamentares cujo cumprimento lhe caiba fiscalizar, podendo com isso determinar a extinção
de sua ação punitiva ou redução de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) da penalidade aplicável.
Trata-se, portanto, de uma adoção do controverso instituto da colaboração premiada, que tem
sido ampla – e controversamente – utilizado no Brasil nos últimos anos.
268
Gráfico 14 – Quantidade de Penalidades Aplicadas pelo Banco Central do Brasil de 1999 a 2919
Mais um fator que chama muita a atenção nesse período é a forte inflexão positiva provocada
pelo aumento expressivo da lucratividade dos principais bancos do país. Quando analisamos o
período do governo Dilma (Gráfico 15), vemos que o somatório dos 20 maiores lucros líquidos,
por trimestre, das instituições financeiras atuantes no país regrediu nos seus valores máximos,
partindo de R$33, 71 bilhões em março de 2011 para chegar em setembro de 2016 com 32,88
bilhões. Embora pela curva da média móvel vê-se que a lucratividade dessas empresas do setor
financeiro tenha sempre crescido ao longo dos últimos 20 anos, a variação positiva ocorrida
após o governo Temer e início do governo Bolsonaro, quando se alcança um volume total de
R$71,12 bilhões de reais é sem precedentes. Trata-se de um caso de financeirização aguda da
economia, em um momento de recessão, dado que o crescimento do PIB desde a ascensão de
Temer como presidente não tem acompanhado nenhum ritmo acelerado de crescimento.
Pelo Gráfico 15 também consegue-se conjecturar que a pressão sofrida pelo governo Dilma a
partir do sistema financeiro deve ter sido forte diante da percepção de que havia uma estagnação
da lucratividade dos 20 maiores detentores de lucro no período, mesmo o período
imediatamente anterior comportando a crise de 2008, que foi, de fato, pouco sentida pelo setor
no Brasil.
269
Gráfico 15 – Soma dos Lucros Líquidos dos Top 20 do SFN por trimestre, de mar/00 a mar19
R$71,12
Bilhões
R$70,00
R$60,00
R$45,76
R$50,00
R$32,88
R$33,71
R$40,00
R$30,00
R$20,00 R$9,69
R$2,83
R$10,00
R$-
set/00
set/01
set/02
set/03
set/04
set/05
set/06
set/07
set/08
set/09
set/10
set/11
set/12
set/13
set/14
set/15
set/16
set/17
set/18
mar/00
mar/01
mar/02
mar/03
mar/04
mar/05
mar/06
mar/07
mar/08
mar/09
mar/10
mar/11
mar/12
mar/13
mar/14
mar/15
mar/16
mar/17
mar/18
mar/19
FHC Lula Dilma Temer Bols.
Armínio Fraga Henrique Meirelles Alexandre Tombini Ilan Camp.
Goldfajn Neto
Contrariamente a essa inflexão de lucros positiva e sem precedentes, outra mudança ocorrida,
a partir de 2016, foi a redução no total de reclamações realizadas pela sociedade contra os
bancos, setor que, como vimos, segue um ciclo impetuoso de lucratividade. Conforme se
observa no Gráfico 16, o período que cobre o mandato do presidente Tombini e da presidente
Dilma Roussef, que foi o período de grandes transformações no foco ao atendimento a cidadãs
e cidadãos, implicou um forte aumento no volume de reclamações registradas no BCB. Esse
aumento de 156% no número de reclamações, saindo de 93.567, em dezembro de 2010 para
chegar-se a 255.549 em dezembro de 2015, foi seguido de uma queda de 10% até 2018.
Combinando-se essa análise com a queda das penalidades (Gráfico 14), amplia-se a sensação
de que o BCB tem tido dificuldades, desde o impeachment, em aprofundar o atendimento à
sociedade no que tange à efetivação das denúncias e reclamações da sociedade em punições,
dado que o ritmo de crescimento de atendimentos e punições parece estar caindo desde então.
270
300.000
255.439
227.713
250.000
200.000
239.796 230.902
230.654
150.000
127.867
100.000
93.567
37.159
50.000
8.186 14.245 53.561
0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
FHC Lula Dilma Temer
Armínio Henrique Meirelles Alexandre Tombini Ilan Goldfajn
Fraga
Essa sensação de que as denúncias e reclamações não sejam efetivas no BCB fica ainda mais
clara, quando vemos a comparação entre o volume total de reclamações realizadas no órgão,
para os anos de 2015 a 2018, e a quantidade dessas reclamações que foram classificadas como
procedentes, ou seja, em cujas ocorrências (irregularidades) se verificou realmente haver
indício de descumprimento, por parte da instituição, de lei ou de regulamentação cuja
competência de supervisão seja do BCB. A Tabela 2 demonstra essa relação. Por ela vemos
que as reclamações consideradas procedentes, nesse período, ficam em torno de 16% a 18%,
ou seja, se formos sobrestimar os dados, diríamos que apenas uma em cada cinco reclamações
que chegam ao BCB é considerada comprovada e efetiva, lembrando que as demais não são
necessariamente um equívoco do consumidor, ela ou ele pode ter reclamado de algo cujo tema
não é regulado pelo BCB, como venda casada, por exemplo, regida pelo código de direito do
consumidor e que é acompanhado diretamente pelos Procons100.
100
O Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec) é o sistema informatizado em que se
registram todas as demandas individuais dos consumidores que recorrem aos Procons, no Brasil inteiro.
271
Operações de
Crédito,
Portabilidade de
Crédito, Crédito 11.005 42.204 26% 5.064 27.930 18% 4.244 25.072 17% 5.379 26.804 20%
Consignado e
Financiamento
Imobiliário
Problemas com
Cartões (Débito,
Crédito e Pré-pago), 5.424 33.700 16% 5.866 33.498 18% 6.620 32.564 20% 6.896 34.570 20%
Cheques e Boletos
de Pagamento
Cobrança Irregular
de Tarifas e 4.311 23.651 18% 4.112 25.815 16% 3.412 22.464 15% 3.029 21.839 14%
Cobrança de Juros
Integridade e
segurança das 5.493 11.535 48% 5.434 11.940 46% 8.908 16.674 53% 7.384 14.697 50%
informações
Outras 842 14.189 6% 296 11.775 3% 309 13.035 2% 483 14.216 3%
Total 41.080 239.796 17% 36.160 227.713 16% 41.240 230.902 18% 40.385 230.654 18%
Em função de o BCB não conseguir realizar uma efetivação de sua atuação na proteção ao
consumidor, que é um dos pilares da cidadania financeira, essa atuação parece justamente estar
sendo suprida por outros órgãos especializados nessa defesa, como o caso dos Procons. O
Gráfico 17 demonstra isso claramente, quando vemos que uma queda ou mesmo a estagnação
no atendimento do BCB acompanha, normalmente, um aumento de atendimentos nos Procons
e vice versa. Frente ao valor máximo obtido de 18% de reclamações consideradas procedentes
no BCB, o Procon apresenta um índice de resolução dos conflitos a ele direcionados quanto a
instituições financeiras que alcança 75%, conforme se vê na Tabela 3.
272
Gráfico 17 – Relação entre reclamações de assuntos financeiros nos Procons e no BCB – 2014 a
2018
Instituições Financeiras (em%) 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
BANCO CRUZEIRO DO SUL 61,4 59,9 65,4 - - - - - -
BANCO DAYCOVAL - 69,8 80,8 85,7 - - - - -
BANCO DO BRASIL 63,2 68,7 74,8 77,6 75,8 75,8 71,8 76,0 75,5
BANCO GERADOR S.A - - - - - - - 59,1 68,5
BANCO MERCANTIL - - - - - 72,7 70,1 - -
BANCO SAFRA - - - - - - - 72,6 68,8
BGN/CARDIF/CETELEM 68,1 75,8 81,1 76,8 72,1 73,4 69,1 71,7 75,8
BMG 66,7 64,9 63,0 63,3 65,5 63,1 62,8 67,6 68,8
BONSUCESSO 68,1 70,8 73,4 - - - - - -
BRADESCO - - - - - - - 80,3 80,5
BRADESCO / HSBC 67,4 73,8 78,7 76,1 79,0 78,9 71,7 - -
BV FINANCEIRA 54,3 59,9 73,0 82,7 82,5 83,1 81,0 80,3 77,6
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL 62,9 64,3 65,3 66,3 68,6 77,7 76,9 78,9 78,3
CITIBANK 68,1 77,2 76,6 74,0 80,5 - - - -
CREFISA - 61,1 66,4 - 73,6 71,6 71,2 73,0 73,6
ITAÚ 79,8 80,0 79,5 80,0 83,3 84,6 81,2 80,9 79,4
PANAMERICANO 48,8 62,0 70,6 69,0 65,2 65,7 66,5 72,2 73,1
SANTANDER 68,4 73,8 77,6 79,7 79,7 80,6 77,2 77,8 82,0
Total Geral 64,7 68,7 73,3 75,6 75,1 75,2 72,7 74,2 75,2
Dado que a noção de cidadania trabalhada pelo BCB no período anterior envolvia, além da
questão do consumidor financeiro, ampliar o acesso e o atendimento ao povo brasileiro pelo
órgão, também é nítido que houve uma reversão neste aspecto, nos últimos anos, quando a
quantidade total de atendimentos (não apenas reclamações, mas influindo dúvidas e
esclarecimentos presenciais, via telefone e e-mails) também segue caindo desde 2013,
conforme se observa no Gráfico 18. Esse processo reverte o impulso dado ao atendimento
desde 2006, quando se reestruturou o sistema RDR e se lançou o Portal do Cidadão.
Gráfico 18 – Total de atendimentos realizados no BCB por múltiplos canais, de 1998 a 2018
Em que medidas, no entanto, podemos ver que a posse de Ilan Goldfajn contribuiu para essas
inflexões percebidas nos dados analisados? O primeiro ponto é o atendimento a uma série de
demandas de liberalização do setor financeiro, acompanhada de uma reorientação no foco da
cidadania financeira. Logo no início do seu mandato, Ilan Goldfajn lançou a Agenda BC+ que
se tratava, na verdade, de uma redefinição do planejamento estratégico do órgão. Esta agenda
se fundava em quatro pilares: a) mais cidadania financeira; b) SFN mais eficiente; c) legislação
mais moderna; d) crédito mais barato. Esses pilares contaram, durante o período de dois anos,
com 68 ações, das quais 41 foram consideradas concluídas até o final do mandato. As ações
referentes ao pilar de cidadania financeira eram, no entanto, questões residuais, como inserção
do BCB em mídias sociais, criação de aplicativos, inclusão da educação financeira na base
nacional comum curricular e novo sítio eletrônico do órgão na Internet – sem que houvesse
nenhuma funcionalidade nova em relação ao que já fora construído. Várias delas diziam
respeito a ações já antigas e previstas no governo anterior, como a inclusão de informações no
portal Dados Abertos ou a definição de indicadores de cidadania financeira (BCB, 2017, 2018).
Em comparação, os pilares de um SFN mais eficiente, legislação mais moderna e crédito mais
barato atenderam a uma extensa agenda de reivindicações do setor financeiro como: a
possibilidade de cobrança diferenciada de preços conforme o tipo de instrumento de pagamento;
275
Além dessas questões, em um segundo ponto, o período apresentou também medidas polêmicas
da Agenda BC+ por aparentemente favorecerem interesses diversos dos pretendidos pela
sociedade em geral e visavam à proteção do setor financeiro: a) um estudo do BCB indicando
que a principal razão de as taxas de juros bancárias serem tão altas no Brasil era a inadimplência,
respondendo por 55,7% da composição do spread bancário, minimizando, dentre outros fatores,
a falta de concorrência bancária e a própria lucratividade do setor, contrariando inclusive
pesquisas acadêmicas nesse sentido (RIBEIRO, 2019); e b) a revisão do arcabouço punitivo,
com a edição da Medida Provisória 784/2017, que vislumbrava permitir ao Banco Central e à
Comissão de Valores Mobiliários firmar termos de compromisso e acordos de leniência,
resguardados sob sigilos bancários, o que levou a questionamentos do Ministério Público
Federal se não se tratava de medida que poderia levar a tentativas de instituições financeiras,
quando da ocorrência de ilícito financeiro, de escapar da persecução penal. As questões
mencionadas na medida provisória foram retiradas e não foram lançadas na lei 13.506 que
disciplina o processo punitivo sancionador do BCB.
Em mais uma medida polêmica, já ao final do mandato de Ilan Goldfajn, o BCB ainda
apresentou uma consulta pública à sociedade a respeito da política, dos procedimentos e dos
controles internos a serem adotados pelas instituições autorizadas a funcionar pelo Banco
Central do Brasil visando à prevenção da utilização do sistema financeiro para a prática dos
crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores. Tratava-se do Edital 70/2019. Tal
medida modificava a obrigatoriedade de comunicação ao Coaf de informações relativas a
parentes e colaboradores de pessoas politicamente expostas. A consulta foi amplamente
criticada por entidades de classe, associações de peritos criminais, de delegados e de
magistrados, de movimentos sociais e na imprensa nacional, por ser uma medida que
favoreceria a lavagem de dinheiro e a prática de fraudes financeiras por meio de terceiros
ligados a políticos, levando o BCB a emitir uma nota de esclarecimento à imprensa
276
(MARTELLO, 2019). Como se observa, no Gráfico 20, o Edital 70/2019 foi o que mais
recebeu manifestações de pessoas físicas e jurídicas (449), e em quantidade de críticas
registradas (518), de todos os editais lançados onde consta alguma sugestão ou crítica desde
2002.
Gráfico 20 – Editais de Audiências Públicas do BCB que receberam manifestações – 2002 a 2019
600
518
500
449
400
293
300
255
200
85 84
66 77 71 79
100 45 53
0
Edital 18/2002
Edital 19/2003
Edital 20/2004
Edital 21/2004
Edital 22/2006
Edital 23/2006
Edital 24/2006
Edital 25/2006
Edital 26/2006
Edital 27/2006
Edital 28/2007
Edital 29/2007
Edital 30/2008
Edital 31/2009
Edital 32/2009
Edital 33/2009
Edital 34/2009
Edital 35/2010
Edital 36/2011
Edital 37/2011
Edital 38/2011
Edital 39/2011
Edital 40/2012
Edital 41/2012
Edital 42/2013
Edital 43/2014
Edital 44/2014
Edital 45/2014
Edital 46/2014
Edital 47/2014
Edital 48/2014
Edital 49/2016
Edital 50/2017
Edital 51/2017
Edital 52/2017
Edital 54/2017
Edital 55/2017
Edital 56/2017
Edital 57/2017
Edital 58/2018
Edital 59/2018
Edital 60/2018
Edital 61/2018
Edital 62/2018
Edital 63/2018
Edital 64/2018
Edital 65/2018
Edital 66/2018
Edital 67/2018
Edital 68/2018
Edital 69/2018
Edital 70/2019
EDITAL 53/2017
se deu uma alteração na configuração dos participantes, quando se teve maior presença do setor
privado, de entidades representando o sistema financeiro, ONGs e empreendedores (ver
Gráfico 13). Estabeleceu-se também, neste documento, que o conceito de cidadania financeira
seria amparado por quatro condições básicas: a) inclusão financeira; b) educação financeira; c)
proteção do consumidor; e d) participação. As três primeiras já vinham sendo discutidas no
período anterior, mas a participação como uma dimensão da cidadania financeira foi
incorporada apenas nesse material (Figura 1).
evidenciar o acesso (discutido no capítulo 1), mas também o uso dos serviços financeiros para
o desenvolvimento e a inclusão (cap. 2), a qualidade dessa inclusão (cap. 3) e o microcrédito
(cap. 4). A questão da qualidade da inclusão destacava, dentre outros aspectos, o
endividamento, afirmando que, “com a ampliação do crédito, o endividamento das famílias
cresceu entre 2007 e 2014 de 29% para 46% da renda disponível”, atestando uma preocupação
com a sustentabilidade da vida financeira das pessoas em um contexto de desigualdade (BCB,
RIF, 2015, p. 11). O que se observa agora é a ênfase no acesso aos produtos financeiros e na
visão individualista que o liberalismo econômico prega, retratada no próprio novo conceito de
cidadania financeira que estabelece associação entre cidadania e gestão, ao falar em “gerenciar
bem seus recursos financeiros” (BCB, 2018, p. 7). A visão atual restringe-se à noção de que
cada pessoa saiba gerenciar bem os seus próprios recursos para assim assegurar a sua própria
qualidade de vida, mas o que acontece quando as pessoas não têm recursos para serem
gerenciados? Elas ficariam sem cidadania financeira? Não é por acaso, portanto, que, nas 146
páginas deste Relatório de Cidadania Financeira, a expressão inclusão social não aparece
nenhuma vez (BCB, 2018). Ao passo que, nos antigos, tinha-se a ideia de usar “a efetividade
do microcrédito como ferramenta de inclusão social” (BCB, RIF, 2015, p. 142) e a de que o
“processo de desenvolvimento brasileiro, de forma sustentada, com inclusão social, apontam
para alvissareira perspectiva de longo prazo” (BCB, RIF, 2011, p. 23).
O foco da inclusão social está justamente na falta de recursos, que se quer suprir, eliminando a
pobreza por meio do desenvolvimento econômico e financeiro. O foco na boa gestão de seus
recursos financeiros, trazido por este conceito novo, exprime ideia diversa: a de ter
conhecimento sobre finanças e economia para comprar produtos financeiros corretos,
assegurando a manutenção dos recursos que já se possui ou aumentando riqueza. A mudança é
sutil, mas extremamente significativa. E fica ainda mais evidente quando comparamos as
definições de inclusão financeira ao longo do tempo, conforme expostas no Quadro 22.
Enquanto as definições de 2009 a 2015 enfatizavam a questão do acesso, do uso e da
necessidade de cada pessoa para a promoção da sua qualidade de vida, a definição de 2018 fala
apenas da oferta de produtos financeiros, destacando a questão dos “serviços financeiros
providos por instituições formais” (BCB, 2018, p. 50, grifos nossos) e já mencionando até a
questão da previdência (um direito) como produto financeiro a ser consumido.
279
“Inclusão financeira é um
estado em que todos os
adultos têm acesso efetivo
aos seguintes serviços
“Prover acesso a serviços e “Processo de efetivo acesso e uso
financeiros providos por
produtos financeiros pela população de serviços
instituições formais: crédito,
adequados às financeiros adequados às suas
poupança (entendida em
necessidades da necessidades, contribuindo com sua
termos amplos, incluindo
população.” qualidade de vida.”
contas transacionais),
(BCB, 2010, p. 17, grifos (BCB, 2010, p. 18; 2011, p. 15; pagamentos, seguros,
nossos) 2015, p. 19, grifos nossos) previdência e
investimentos.”
(BCB, 2018, p. 50, grifos
nossos)
Situação similar ocorre com o conceito de educação financeira – que já era questionável, do
ponto de vista crítico –, mas que era baseado em uma definição um pouco mais robusta,
apresentada pela OCDE, de 2005, e validada pelo G20, em 2012 (OCDE, 2013; BCB, RIF,
2011). Conforme vemos no Quadro 23, ela enfatizava as questões de compreensão, formação,
orientação, consciência de riscos e de se saber onde procurar ajuda. A definição oficializada no
Relatório de Cidadania Financeira, por sua vez, faz uma junção típica de conceituações de
educação encontradas na literatura econômica liberal e na da Administração gerencialista e
funcionalista, que reduz a educação ao capital humano e o ser humano a um cliente ou
consumidor. Ela passa a ser, na essência, a boa gestão de produtos financeiros comprados no
mercado.
280
2011 2018
Definição baseada no conceito usado pela “Este trabalho refere-se a educação financeira
OCDE: como o capital humano de uma pessoa,
“Processo mediante o qual os indivíduos e as especificamente no tocante ao conhecimento
sociedades melhoram sua compreensão dos financeiro e/ou à sua aplicação, e inclui:
conceitos e dos produtos financeiros, de conhecimento de conceitos financeiros,
maneira que, com informação, formação e capacidade de comunicação sobre conceitos
orientação claras, adquiram os valores e as financeiros, aptidão na gestão de finanças
competências necessários para se tornarem pessoais, habilidade em tomar decisões
conscientes das oportunidades e dos riscos financeiras apropriadas e confiança no
neles envolvidos e, então, bem informados, planejamento para futuras necessidades
façam escolhas, saibam onde procurar ajuda, financeiras. Espera-se que esforços de educação
adotem outras ações que melhorem o seu financeira resultem não apenas no incremento de
bem-estar, contribuindo, assim, de modo conhecimento financeiro da população, mas,
consistente, para a formação de indivíduos e especialmente, em atitudes e comportamentos
sociedades responsáveis, comprometidos com positivos para a formação e a manutenção do
o futuro.” bem-estar financeiro.”
(BCB, 2011, p. 24, grifos nossos) (BCB, 2018, p. 51, grifos nossos)
A participação, que poderia ser vista objetivando ampliar os espaços públicos de debate sobre
os rumos e objetivos das políticas econômicas do país, ou, pelo menos, sobre tornar mais
281
“As informações contidas nas reclamações que chegam ao BCB são bons
indicadores das principais dificuldades enfrentadas pelos cidadãos no uso de
serviços financeiros, mas precisariam ser complementadas com informações
de outros canais de atendimento para que se tenha uma cobertura mais
adequada. Assim, não foi possível utilizar esses dados no índice, porém
espera-se avançar nessa agenda no futuro, com a parceria do setor privado”
(BCB, RCF, 2018, p. 52, grifos nossos).
282
Chama a atenção o fato de que, ao se ver diante da possibilidade de usar um dado que
apresentaria problemas na oferta de produtos financeiros pelo setor privado, o BCB não usa
essa informação, para sugerir que criará indicador futuro em parceria com o setor privado,
supostamente mais abrangente. Nada impediria que se fizesse uma primeira tentativa com os
dados disponíveis. Trata-se, ao que tudo indica, de uma tentativa de não se utilizar um dado
com o intuito de se evitar um viés negativo para o setor privado, no cálculo do índice de
cidadania financeira, uma vez que o volume de denúncias e reclamações não é desprezível (v.
Gráfico 16 e Gráfico 17). De modo similar, quanto à dimensão da participação, o relatório
afirma que “é uma dimensão inovadora da cidadania financeira para a qual ainda não foi
possível identificar indicadores que capturem essas características com a periodicidade e a
desagregação necessárias para comporem o ICF” (BCB, RCF, 2018, p. 52). Isso embora seja
possível mapear a quantidade instrumentos disponíveis de participação no banco central, por
exemplo, por meio das audiências públicas realizadas, conforme se observa na Tabela 4,
embora os números apontem que essa participação seja baixa:
Quantidade de
Audiências ou Total de Quantidade de
Ano
Consultas Públicas Manifestantes Sugestões Registradas
Realizadas
2002 1 7 7
2003 1 0 0
2004 2 0 0
2006 6 47 49
2007 2 66 77
2008 1 18 18
2009 4 255 293
2010 1 21 21
2011 4 9 10
2012 2 18 28
2013 1 0 0
2014 6 93 119
2016 1 6 10
2017 8 185 225
2018 12 133 147
2019 1 449 518
Total 53 1.307 1.522
Fonte: Banco Central do Brasil, elaboração própria
283
De toda forma, o relatório apresenta o ICF para as duas dimensões, de inclusão e de educação
financeiras, conforme indicadores listados no Quadro 24. Os resultados estão apresentados na
Tabela 5, onde constam os valores calculados para 2018 que, conforme o relatório informa são,
na verdade, o valor médio do ICF calculado no período de 2015 a 2017, bem como os
comparativos com os índices de inclusão financeira de 2000 a 2010.
Tabela 5 – Índices de Inclusão Financeira e de Cidadania Financeira, 2000, 2005, 2010 e 2018
IIF ICF
Unidade da Federação
2000 2005 2010 2018
Distrito Federal 38,2 52,2 66,4 87,2
São Paulo 20,3 30,7 43,3 74,5
Rio Grande do Sul 14,6 22,5 35,5 65
Santa Catarina 16,1 24,4 41 64
Paraná 13,7 21,9 36,1 61,5
Rio de Janeiro 20,1 27,1 34,2 60,3
Mato Grosso do Sul 7,9 11,7 19,5 53,8
Espírito Santo 13,9 18,1 27,1 51,4
Minas Gerais 11,4 15,5 25,4 51
Mato Grosso 7,9 11,8 20,8 49,2
Goiás 7 11,2 19,2 48,5
Sergipe 7,4 11 16 36,7
Rondônia 4,4 8,5 18 36,2
Rio Grande do Norte 5,6 8,4 14,8 33,3
Paraíba 4,5 7,8 14,7 31,5
Pernambuco 3,5 8,7 15,6 31,4
Ceará 4,4 8 12,3 29,3
Bahia 5,3 7,7 13,9 29,1
Roraima 3,7 8,9 14,7 28,7
Tocantins 4,9 8,8 16,3 27,9
Alagoas 5,4 8,6 14,4 25,2
Acre 4 8,7 13,4 22
Piauí 6,6 5 10,1 21,3
Amapá 2,4 7,6 12,7 15,4
Maranhão 2,5 4,2 8,5 14,4
Amazonas 3,9 8,2 12,3 14,4
Pará 4,1 5,7 9,3 7,7
Fonte: Relatórios de Inclusão Financeira (BCB, 2010, 2011, 2015) e Relatório de Cidadania Financeira
(BCB, 2018) do Banco Central do Brasil, elaboração própria.
Embora os índices IIF – dos relatórios anteriores – e ICF tenham métricas diferentes, eles
possuem a mesma escala (de 0 a 100, onde 100 representa o melhor resultado possível)101.
Assim, é possível ver que as unidades da federação apresentaram melhoras de 2000 a 2010, nos
cálculos do IIF. A distribuição dos resultados, no entanto, demonstra que a desigualdade entre
as regiões é muito forte, dada a amplitude dos resultados extremos. O que já era ruim, uma
diferença entre 9,3 (o resultado do IIF do Pará, em 2010) e 66,4 (o resultado do Distrito Federal,
em 2010), ficou ainda mais amplificado no ICF, quando a diferença do pior resultado (7,7) para
o melhor resultado (87,2) é de quase 80 pontos, próximo da amplitude inteira da escala. A
ausência de dados desagregados e as mudanças nos índices atrapalham significativamente
101
Para obtenção de um índice de inclusão, subtraímos o número 1 da distância euclidiana normalizada para o
intervalo de 0 a 1 entre cada unidade e o benchmark.
285
quaisquer análises mais profundas, mas, ainda assim, é possível perceber que o nível de
desigualdade apresentado é extremamente forte. Se compararmos com outros índices
econômicos, como IDH e Gini, vemos que a amplitude que se criou no ICF reforça um processo
completamente distorcido de cidadania financeira no país, ainda que o que se esteja medindo
seja mais o acesso a serviços financeiros e algum nível de educação financeira, que
propriamente a cidadania, como vemos Gráfico 21.
Gráfico 21 – Amplitudes: Coeficiente de Gini e IDHM por UF, no Brasil, de 1991 a 2010, Índice
de Inclusão Financeira, de 2000 a 2010, e Índice de Cidadania Financeira, 2018
1
0,87
0,9 0,82
0,8 0,73
0,67 0,69 0,67 0,66
0,7 0,62 0,19
Fontes: IBGE, DataSus, Atas do Desenvolvimento Humano e Banco Central do Brasil, elaboração
própria.
Notas: os valores do IIF e do ICF foram divididos por 100, para manter a comparabilidade de 0 a 1, da
escala do Coeficiente de Gini e do IDH.
Vemos, pelo Gráfico 21, que o IDH, que captura o desenvolvimento social, demonstra um nível
de amplitude de 0,26 a 0,19, mostrando que houve alguma aproximação entre as melhores e as
piores regiões e que, ainda, houve melhoria nos valores absolutos dado que tanto o topo (a
melhor nota) quando o piso (a pior nota) variaram ascendentemente. O coeficiente de Gini, por
sua vez, que mede concentração de renda como proxy para desigualdade, mostra também que
houve melhoras ligeiras de 2005 para 2010 nas regiões com maior concentração de renda (de
0,69 para 0,67), mas que algumas regiões menos desiguais melhoraram mais (o menor valor
diminuiu mais, de 0,56, para 0,49), o que fez a amplitude aumentar. Quando observamos o
286
índice de inclusão financeira, de 2000 a 2010, o que vemos é que a parcela mais rica do país,
representada pelos Estados do Sul, do Sudeste e o Distrito Federal, é a mais financeirizada e,
portanto, mais inclusivos financeiramente. Esse processo aumentou drasticamente, ao longo do
tempo, o que era esperado dado o fenômeno da financeirização nesta etapa do capitalismo. O
que chama a atenção é que a camada mais pobre não acompanha esse processo e permanece
distante do topo formalmente financeirizado. Quando passamos a analisar o índice de cidadania
financeira, porém, essas características parecem serem exacerbadas, o que é ainda mais
preocupante porque as variáveis que efetivamente mudaram são as que compõem a parcela do
índice de educação financeira e que estão dadas pelo percentual da população adulta que
contribui para o INSS, pelo nível de endividamento e pelo nível de inadimplência, que são
geralmente piores em regiões mais pobres do país.
Com base nisso, consegue-se ver que houve de fato uma inflexão no modo de se analisar a
cidadania financeira, no BCB. O ICF é lido como uma oportunidade de negócio, do ponto de
vista da oferta, das empresas. Todas as regiões da camada mais baixa da Tabela 5 são tidas
como potenciais regiões de financeirização. Além disso, as do topo (que os índices de GINI e
IDH mostram que continuam desiguais e que, sabe-se, têm bolsões históricos de
subdesenvolvimento) são apresentadas como robustos casos de sucesso. As regiões pobres são
locais endividados, inadimplentes e com pouco acesso a direitos fundamentais, como a
previdência. E, pela lógica atual do relatório de cidadania financeira, precisam ser educados
financeiramente, não para serem incluídos socialmente, mas para reduzirem a inadimplência e
adquirirem bons produtos financeiros, inclusive planos de previdência, e aumentar ainda mais
a exuberante lucratividade do setor, representada pelos top 20 mostrados no Gráfico 15. Daí a
lógica perversa de o sistema financeiro em ver o desmantelamento do regime de previdência
geral, por meio de reformas, como uma imensa oportunidade de negócio: a venda de planos de
previdência. Transforma-se, assim, a cidadania no Brasil em um imenso mercado financeiro de
compra e venda de direitos.
O Relatório de Cidadania Financeira, portanto, sintetiza bem essa inflexão liberal. Ele segue
apresentando apenas discussões sobre canais remotos de acesso a serviços financeiros por
smartphones, tablets e computadores, cadastro positivo de credores, pagamentos instantâneos
e fintechs. As discussões sobre Bolsa Família se restringem a gráficos no anexo, e não há
287
menções a economia solidária em nenhum momento. Não há capítulo nem tópicos sobre
microcrédito, que é mencionado apenas como um item em três gráficos do anexo, sobre a
composição da carteira de crédito conforme os dados do cadastro único (BCB, 2018). Não há,
também, tópico específico de ações de proteção ao consumidor capitaneadas pelo próprio BCB,
nem pelo governo. No relatório de Cidadania Financeira, de 2018, a cidadania está ausente.
Essa constatação não surpreende. Ela é fruto da reorientação liberal que se fez no governo, a
partir de 2016, e que sempre esteve presente na maior parte do tempo no pensamento das
lideranças do BCB. A mais evidente constatação disso é, talvez, o próprio conteúdo das
entrevistas utilizadas nessa pesquisa. Em nenhum momento, com os 25 entrevistados, surge o
tema cidadania financeira. Embora fossem entrevistas de celebração de realizações, nenhum
dos entrevistados rememorou, citou ou insinuou a cidadania ou cidadania financeira como
alguma realização relevante, como uma posição importante do BCB. Poder-se-ia alegar que
isso decorre do fato de não se terem entrevistados os últimos três presidentes em cujos mandatos
a cidadania financeira se estabeleceu, a saber, Alexandre Tombini, Ilan Goldfajn e Roberto
Campos Neto. Só que essa alegação não se sustenta na medida que, como visto ao longo deste
trabalho, os entrevistados mencionam, por diversas vezes, realizações que não diziam respeito
aos períodos em que foram presidentes ou diretores. Os entrevistados comentaram planos de
estabilização que aconteceram depois de seus mandatos, decisões políticas posteriores a suas
gestões e consequências econômicas de momentos em que não se encontravam mais no BCB.
E, vários deles analisam o contexto atual, após impeachment de Dilma Rousseff. Nas entrevistas
realizadas a partir de 2016, mencionam, por exemplo, questões recentíssimas como a operação
Lava-Jato, o governo Temer, a Ponte para o Futuro, etc. Se considerassem a cidadania ou a
cidadania financeira uma realização relevante, é de se esperar que comentariam, como
comentaram, o Regime de Metas, o Plano Real, ou mesmo a criação do Sistema de Pagamentos
Brasileiro.
1.200 120%
1.062 96%
94%
1.000 87% 91% 100%
868 81%
800 80%
600 60%
399
400 0 0 0 40%
179
200 131 20%
80 58
39 27 16 12 6 2 2 2 1 1
0 0%
Juros
Igualdade
Desigualdade
Inclusão Social
Cidadania
Inflação (*)
Banqueiro (***)
Distribuição de Renda
Identidade
Participação Social
Mercado (**)
Dívida Externa
Cidadania Financeira
Deveres Sociais, Políticos ou Civis
Pobres ou Pobreza (Material)
Inclusão Financeira
Direitos Sociais, Políticos ou Civis (****)
Cidadã ou Cidadão (povo brasileiro)
ECONOMIA CIDADANIA
desse período. Isso porque se trata de um conceito-síntese que extrapolou a realidade do próprio
BCB. Ao olharmos a evolução da cidadania do Brasil, conjugada ao desenvolvimento de uma
Administração Pública orientada primeiramente pela burocratização e pela racionalidade
instrumental e depois pelo consumerismo e pelo gerencialismo, vemos que a sua construção se
deu, de fato, formalmente dependente do Estado, especialmente, do Executivo Nacional
(estadania) e da mobilização social de categorias específicas de regulação profissional para que
houvesse movimentos de contestação e de reivindicação (cidadania regulada). Vemos também
que foi uma cidadania que acompanhou um ritmo próprio de desenvolvimento, diferente da
progressão moderna clássica de Thomas H. Marshall, que misturou a influência da economia
liberal com o autoritarismo e fez concessões demais aos dois, permitindo que o avanço de uma
de suas dimensões (os direitos sociais, principalmente trabalhistas) pudesse ser usado como
forma de compensar a perda de outras (especialmente políticos e civis). A esse cabedal cultural,
combinaram-se também a ascensão da tecnocracia burocrática com o tecnicismo econômico,
fazendo com que a dimensão sociopolítica – ampla e profundamente reivindicada pela
Administração Pública Societal – fosse completamente colonizada pela sistematicidade da
racionalidade instrumental, irrefletida e pretensamente apolítica, apartidária e neutra,
misturando o gerencialismo com a ortodoxia econômica para, por fim, criar um ambiente
plenamente favorável à financeirização total da vida social e política do país.
Ao final desse processo, temos uma eterna busca pela conservação do poder, da técnica e das
elites, em um longo ciclo de jogos de força dialéticos – Política vs. Técnica (econômica ou
administrativa), Desenvolvimentismo vs. Liberalismo, Administração Pública vs. Empresas
Privadas, Estado vs. Mercado, Democracia vs. Autoritarismo – que acarretou, pelo menos, três
reduções condicionantes: a) a da liberdade reduzida e condicionada ao liberalismo econômico
(a ter dinheiro para comprar liberdades), b) a da cidadania reduzida e condicionada à
financeirização de direitos (a ter dinheiro para ter direitos); e c) a da Administração Pública
reduzida e condicionada às relações de econômicas (dinheiro para ter Políticas Públicas).
Assim, a emergência da cidadania financeira passa a representar não apenas um conceito, mas
o resultado de um processo, o processo de financeirização completa da vida social sob contexto
de desigualdade extrema.
290
“Acredito que os economistas não tenham lido a PEC do Teto dos Gastos com
atenção. É uma emenda muito poderosa, pois tem mecanismos automáticos de
ajuste. O teto é fixado independentemente de ter sido atendido ou não. E, se
for ultrapassado, há, por exemplo, congelamento de salários dos servidores,
proibição para contratações, proibição de aumento das despesas obrigatórias.
É um instrumento poderoso independentemente da aprovação da Reforma da
Previdência. Essa reforma vai se mostrar inevitável no momento em que o teto
dos gastos começar a operar. E independe de a Previdência apresentar déficit
ou não” (LOPES, 2019, p. 57-58, grifos nossos).
“A surpresa positiva foi o governo Temer depositar tanta importância em uma
agenda de reformas constitucionais, começando pela “PEC do Teto” e
seguindo com a reforma da Previdência, passando por outras medidas
importantes, e infraconstitucionais, como a mudança na TJLP [Taxa de Juros
de Longo Prazo] e a reforma trabalhista. Alguns bons progressos foram
alcançados nessas áreas, embora, infelizmente, tenha faltado gás para a
reforma mais importante, a da previdência” (FRANCO, 2019, p. 136, grifos
nossos).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Discutimos que a evolução do conceito de cidadania, embora tendo, para o mundo Ocidental,
origens na antiguidade clássica grega e romana, é um conceito que ascende na Modernidade e
que se institui dependente da formalização de direitos pelos Estados-Nacionais, acompanhando
o processo de positivação do direito e de conversão dos nacionalismos em um conceito de
nacionalidade. Com isso, tivemos a formação de titulares de direitos e deveres, amparados por
um Estado-Nacional como cerne da noção de cidadania, em uma definição que a vincula ao
estabelecimento de direitos civis, políticos e sociais, e que alcança seu epítome, no século XX,
no trabalho do sociólogo britânico Thomas Humphrey Marshall (1967). Esse percurso de
construção da cidadania associado à formação dos Estados fez com que a sua efetivação ficasse
correlacionada também à existência de um aparato de Administração Pública, capaz de
operacionalizar a viabilização e a concretização destes direitos. Diante disso, haveria um
vínculo necessário entre a cidadania e a Administração Pública que surge como uma premissa
do nosso trabalho,
A ideia geral era a de que a definição destes direitos que compõem a cidadania, segundo a ótica
legada por Marshall (1967), seria uma resposta ao aumento da desigualdade socioeconômica
trazida pelo capitalismo, e o Estado funcionaria como um anteparo para amenizar essas
292
distorções. Para tanto, seria necessário construir um aparato de Administração Pública para
operacionalizar o Estado de Bem-Estar Social, viabilizando assim a efetivação da cidadania e
promovendo a igualdade sob o capitalismo. Discutir cidadania passou a ser, portanto, discutir
o próprio Estado e a própria Administração Pública. De outro lado, porém, na discussão pós-
Marshall, a crítica apresentada era a de que a cidadania é algo multidimensional, maior do que
a simples definição jurídica operacionalizada pelo Estado, abarcando uma ampla gama de
reivindicações de reconhecimento tanto de quem são titulares de direitos, quanto de sua
identidade social, de sua subjetividade, de sua capacidade de mobilização e de participação
social, enfim, de emancipação, indo muito além dos aspectos da sua mera formalização
normativa e viabilização burocrática associadas à visão marshalliana. Por meio da leitura da
obra de Hannah Arendt (1989, p.330), identificamos uma síntese nuclear do que seria essa
cidadania, para além da merca formalização jurídica, entendendo-a como “a existência de um
direito de ter direitos”, algo incondicionado, atribuível a toda a espécie humana. A efetivação
deste direito incondicionado passaria pela sua reivindicação política, reivindicação essa que
depende da recuperação da noção de público na sociedade, à guisa do que defende a teoria
habermasiana, como espaço de vivência e de discussão, inclusivo, de participação de todos, e
de constituição da autonomia dos sujeitos por meio do diálogo, da construção coletiva dos
direitos na sociedade.
Essa é síntese de uma discussão teórica vasta e diversa que procuramos construir por meio de
um diálogo entre autores(as) como Jürgen Habermas (1989, 1991, 1998, 2002, 2015, 2017), a
própria Arendt (1989), Engin Isin (2000, 2002, 2015), Holston e Appadurai (1999), Isin e Nyers
(2014), Janoski e Gran (2002), Janoski (2010), Momen (2018) e Mhurchú (2014). O resultado
dessas discussões, como dito, foi a percepção de que a cidadania está em crise. Não uma crise
isolada, uma tensão fechada em si mesma, mas uma fissura que decorre também das tribulações
que afetam seus eixos basilares, quais sejam, o dos Estados-Nacionais pressionados por um
mundo globalizado que questiona suas fronteiras, a da imorredoura crítica à ineficiência da
Administração Pública, e a da própria xenofobia que a ideia de nacionalidade – elo jurídico das
pessoas com os Estados – tangencia. Além destes tensionamentos, porém, o cenário atual foi
agravado pelo desmantelamento da rede de proteção de direitos ocorrida sob o neoliberalismo
que lhes questionava a sustentabilidade financeira, consequência típica do acirramento do
processo de financeirização do capitalismo e da vida social como um todo. A cidadania
contemporânea, que surgira como contraponto à desigualdade, encontra-se hoje em um intenso
293
Neste cenário preocupante, o debate sobre cidadania, de maneira geral, foi intensamente
retomado no início do século XXI, e uma discussão específica, porém, surgiu, destacando o
papel de organizações tradicionalmente distantes desta temática: bancos centrais. Segundo
vimos com Brown (2017), Sommers (2017) e Pathak (2014), essa foi uma consequência do
fenômeno global de economicização ou de financeirização da cidadania intensificado no pós-
crise de 2008. Assim, ao invés de vivermos um processo de recuperação da esfera pública,
conforme pretendido pela lógica habermasiana, temos o que Pathak (2014, p.93) chama de
“privatização da provisão do Estado de Bem-Estar Social”, em que toda a vida social passa a
ser ditada pela “narrativa e práticas de valor para o acionista” que vigoram no mercado
financeiro e no mundo corporativo. Neste processo, a necessidade de se discutir cidadania sob
o enfoque financeiro fez com que o tema se aproximasse dos bancos centrais, órgãos
usualmente vinculados ao Estado – em sua maioria como parte da Administração Pública – para
cuidar de questões econômico-financeiras. Caberia a esta organização, portanto, um
protagonismo na condução deste tema em vários países do mundo.
Em que sentido bancos centrais participariam de uma discussão sobre cidadania? Vimos que
isso ocorreu, em uma primeira abordagem, a partir do debate sobre inclusão social que buscava
promover processos de mobilidade social no capitalismo por meio do aprofundamento da
inclusão financeira e que, com a crise de 2008, se tornou uma preocupação mais patente em
função dos males causados às camadas mais pobres da sociedade no pós-colapso financeiro.
Essa discussão trouxe, portanto, a necessidade de construção de um conceito de cidadania
financeira como essa possibilidade de emancipação via inclusão financeira. O acesso a
microcrédito, a programas de renda mínima básica ou universal, a financiamentos, portanto,
passa a ser visto como parte da efetivação de direitos, como uma política pública que procura
294
intensificar e ampliar o acesso direto a eles. Para essa visão, em um contexto onde alternativas
ao capitalismo não se apresentam, o único caminho seria incluir o máximo possível as pessoas
dentro do sistema e assim eliminar os sofrimentos decorrentes da pobreza e da desigualdade.
Nesse sentido, como discutimos a partir de Riles (2018), Berry e Serra (2012), Berry (2015),
Kear (2013), French, Leyshon e Thrift (2009), Dimsky (2005) e Perret (2007, 2015), a cidadania
surge nos bancos centrais a partir da ideia de inclusão financeira como etapa fundamental para
a inclusão social e assim ampliar o acesso a alguns direitos (como financiamento subsidiado
pelo governo para moradia ou educação, por exemplo), mas não para substituir totalmente a
provisão de direitos coletivos, como previdência, saúde pública. Em um segundo momento,
conforme Riles (2018), Tucker (2018) e Stiglitz (2019) deixaram mais claro, essa perspectiva
seria ampliada para incluir também a reivindicação de participação da sociedade nas decisões
e no controle da atuação das políticas econômicas capitaneadas pelo BCB.
Ocorre, nesta segunda visão, portanto, uma alteração da conclusão nuclear arendtiana sobre a
cidadania. Ao invés de termos o direito de ter direitos, passamos a ter a defesa de que é preciso
ter dinheiro para ter direitos. O ponto que discutimos nesse trabalho, no entanto, é que o grande
reforço dado à essa visão não se restringe à economia, mas à própria Administração Pública. O
modelo de Administração Pública gerencialista herdado do movimento da Nova Administração
Pública (New Public Management), como principal impulso reformista que se espalhou pelo
mundo no final do século XX, guardava uma correlação forte com a economia neoclássica, a
teoria da escolha racional e essas perspectivas consumeristas (PAES DE PAULA, 2009, 2015).
Conforme discutimos com Vigoda-Gadot e Golembiewski (2004, p.7), nesse modelo,
estabeleceu-se “o compromisso e a obrigação das instituições públicas com os cidadãos como
clientes passivos”. Essa lógica está embutida na crença amplamente defendida de que o setor
público deveria funcionar como uma empresa privada, e reforçou a visão de cidadãos(ãs) em
uma perspectiva financeirizada e consumista, com a incorporação de uma agenda consumerista
(consumerism) nos governos (BOURGON, 2010; ABRUCIO, 1996; HUGHES, 2003). Essa
perspectiva é contrária à noção que defendemos como correta, trazida pela Administração
Pública Societal, teoria desenvolvida por Paes de Paula (2009, 2015) que entende que a gestão
pública precisa recuperar a sua dimensão política, reestabelecendo uma visão de cidadania
efetiva, emancipatória e participativa, muito além do reducionismo técnico economicista que o
gerencialismo enfatizou.
No interior desta discussão de incorporação de uma agenda específica de cidadania por bancos
centrais, portanto, identificamos a relação entre dois conceitos fortemente discutidos nos
estudos organizacionais. Em primeiro lugar, o embate trazido por Max Weber sobre o processo
de modernização que apresenta, na racionalização que desencantava o mundo social, a
dicotomia entre a razão instrumental (formal, impessoal e calculista) e a razão substantiva
(reflexiva, ética e crítica). Esse fenômeno, que é um dos grandes traços da Modernidade,
caminhou em favor da instrumentalização racional das burocracias, enfatizando a
preponderância implacável da técnica, como visto em sua famosa visão da jaula ou gaiola de
ferro. Tanto Habermas quanto Arendt recuperam essa discussão, em favor de uma necessária
retomada da reflexão crítica, dialogada, expressa na razão comunicativa de um e na dinâmica
política da outra, como meios de frear o império da técnica que coloniza o mundo da vida,
296
subjugando-o, e que, em última instância, poderia levar ao retorno das experiências totalitaristas
cuja brutalidade se defendia por meio da isenção técnica.
Esse é o cenário geral da relação entre Estado, Administração Pública e Cidadania no Brasil.
Mas, e a mobilização social? A mobilização social – ou a falta dela – ajuda a explicar a demora
nas transições entre as fases, como também ajuda a compreender que, em razão da própria
concessão de direitos, em meio a cenários autocráticos e ditatoriais, fragiliza-se diversas vezes
a coesão social em torno de grandes manifestações e reivindicações. O próprio termo,
concessão, não é por acaso. Ele alude à ideia de que a cidadania brasileira é mais concedida por
alguém, o Estado, viabilizando-a por meio da Administração Pública federal, que conquistada
por meio de ampla reivindicação social organizada. Embora seja inegável o papel das
resistências sociais ocorridas ao longo da história brasileira. O grande obstáculo, porém, é que
nesse jogo de forças, o resultado geral tende a pender para as elites liberais-conservadoras que
dominam o Estado e controlam a agenda de definição formal da cidadania, além de usar do
próprio aparato público para sufocar os movimentos de contestação, como ocorreu
intensamente na República Velha, no Estado Novo e na Ditadura Civil-Militar de 1964.
Vimos que foram precisos 35 anos, num arco que vai de 1964 a 1999, para estabelecer-se a
consolidação das funções e da estrutura de política monetária do país, mas que esta não se
esgota apenas no BCB, e sim em um complexo arranjo que conta com: a) a criação de um banco
central formal, executor da política monetária, o BCB; b) um órgão superior de definição da
política monetária, o Conselho Monetário Nacional (CMN); c) o fim da conta movimento e a
estrita separação de funções entre Banco do Brasil (BB), Tesouro Nacional (TN) e BCB; d) a
estabilidade monetária com o Plano Real; e) a definição de um órgão interno do BCB que define
a taxa básica de juros da economia, o Comitê de Política Monetária (Copom); e, e) a
implementação do Regime de Metas para a Inflação. Para compreender esse processo de
institucionalização, porém, foi preciso recuar e identificar como as questões econômico-
financeiras do país se relacionaram tanto com a formação da própria Administração Pública,
em geral, quanto com a formação do BCB.
O arranjo brasileiro, neste sentido, é peculiar. A preocupação com a condução interna da oferta
de moeda pelo Estado Nacional ocorreu, evidentemente, após a independência, mas tendo-se
mantido o padrão monetário dos mil-réis advindo da Colônia. Conforme vimos em Cabral
(2017), a oferta de moeda, de crédito e o endividamento estatal ajudaram logo de início a definir
a estruturação da Administração Pública no país no século XIX, juntamente com a organização
militar e judicial. Daí termos, dentre os marcos da Administração Pública brasileira, a
reformulação da Fazenda Pública pela lei de 4 de outubro de 1831, com a reorganização do
Tesouro Público em 1859-60, e, a posterior reorganização administrativa (a reforma de 1868)
decorrente dos gastos com a Guerra do Paraguai (CABRAL, 2017; GAMBI 2012;
CAVALCANTE & CARVALHO, 2017; ABRUCIO & LOUREIRO, 2018). É interessante
perceber, como estes três aspectos, finanças, justiça e militarismo, marcam a formação da
Administração Pública brasileira e nos alcançam até hoje, representando bem a convergência
entre liberalismo, conservadorismo e autoritarismo, e se encontram, de alguma maneira no
ideário das lideranças do BCB.
Vimos que no extenso período que vai do início do século XIX até 1945, intervalo que também
inclui a transição do mil-réis para o Cruzeiro em 1942, deu-se a definição e a execução da
política monetária em um arranjo que, após um início descentralizado, foi concentrado em dois
organismos, BB e TN. Em 1945, inicia-se o processo formal de implementação de um banco
300
central no país, embora, a ideia de sua criação fosse anterior, remontando ao processo de
modernização conservadora que teve início nos anos 1930. Neste período, formalizava-se
institucionalmente a influência internacional na organização do Sistema Financeiro Nacional
(SFN) e da economia brasileira, algo que se repetiria sob os auspícios norte-americanos com a
missão Cooke, de 1942, com a Missão Abbink, de 1948, e com a Comissão Mista Brasil-
Estados Unidos, de 1951. Neste contexto, a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc)
foi criada no final do período ditatorial do Estado Novo, pelo Decreto-Lei nº 7.293, de 2 de
fevereiro de 1945, cujo artigo 3º previa a sua existência até que um projeto de criação de um
banco central no país fosse convertido em lei. Este só vindo a ocorrer em 1964, novamente sob
regime de exceção.
De toda a análise realizada, concluímos que a cidadania não fez parte das preocupações das
lideranças do BCB desde a sua criação, em 1964. Entendido e defendido como um órgão
técnico, o BCB cuidou de questões econômicas de política monetárias, fiscalização bancária,
manutenção do sistema de pagamentos, política cambial e, no passado, de políticas de crédito
de dívida pública. As questões sociais não lhes são próprias e não vieram impulsionadas, ao
que tudo indica, por meio de seus presidentes e diretores. Suas lideranças da época julgavam-
se técnicas, isentas, apartidárias e apolíticas. As lideranças que se seguiram herdaram essa visão
e compartilhavam dessa percepção que opunha técnica e política, do mesmo modo como
Woodrow Wilson (1887) pregava que a política deveria estar fora da Administração Pública.
301
Forjado num contexto de aversão política, as lideranças do BCB se apresentam, na maior parte
dos casos, como saudosistas de regimes autoritários e repressivos que conseguiam passar
agendas liberais, como os de Campos Sales-Rodrigues Alves, e o mandato de Castelo Branco.
Conservadores, admiram homens fortes e não se acanham de ver oportunidades em regimes de
exceção para fazer o que consideram ser o certo. Como tecnocratas, acreditam falar em nome
de todas as pessoas – mesmo sem mandato para tal – em função do poder que creem que lhes
foi conferido pelo conhecimento técnico que possuem. Com base nas entrevistas, vimos que
essas características estavam bastante presentes nas lideranças da Sumoc e dos primeiros anos
do BCB – muitos advindos daquela –, sobretudo, nos depoimentos de Otávio Bulhões, Denio
Nogueira, Ernane Galveas e Casimiro Ribeiro e frequentemente associados por estes às grandes
referências liberais econômicas do período, como Eugênio Gudin e Roberto Campos. De modo
menos explícito, encontram-se nas lideranças durante e após a ditadura civil-militar de 1964,
especialmente, nas falas de Ruy Leme, Carlos Langoni, Carlos Brandão, Fernando Bracher e
até mesmo, em lideranças mais recentes, como Gustavo Franco e Armínio Fraga.
Na análise das entrevistas das lideranças do BCB, percebemos uma visão pacificada de que a
atuação do órgão é técnica, no sentido de isenta, neutra e avessa à política. Ainda nessa visão,
portanto, as perturbações ao desempenho do BCB são sempre externas, normalmente da
realidade política ou da incompreensão da sociedade a respeito da atuação hermética do órgão.
Trata-se de uma visão que opõe a política à técnica nos mesmos moldes que a discussão clássica
de Administração Pública separava política e administração, evidenciando a incorporação pelas
lideranças do órgão da noção de racionalidade instrumental weberiana e de isolacionismo
burocrático já citados. Os receios recorrentes, como visto, são os de uma suposta ascensão
socialista, interventora, estatizante, retratada em uma postura antidesenvolvimentista na agenda
econômica e em uma posição anti-esquerda no âmbito político. O curioso é que as lideranças
que se dizem avessas à política e estritamente técnicas não se furtam de assumir suas posições
políticas e partidárias quando se trata de programas políticos que se posicionem a favor de uma
agenda econômica mais liberal, enaltecendo as qualidades do mercado. Isso aparece em
lideranças do órgão desde o seu início até os dias mais recentes, de Otávio Bulhões e Denio
Nogueira a Ibrahim Eris e Henrique Meirelles, ocorrendo especialmente nas manifestações de
Carlos Brandão.
Vimos, então, uma transição do império da força, nos regimes autoritários, para fazer valer a
agenda liberal, para o império da técnica que, nos regimes democráticos, não permitiria espaços
para orientações políticas que não fossem igualmente liberais. A imposição de que só se aceitem
governos liberais é, portanto, antiga e permanente no imaginário das lideranças do BCB,
estando presente tanto nos depoimentos da origem da Sumoc e do BCB, especialmente com
Bulhões, Nogueira, Ribeiro, Galveas e Leme, como na consolidação técnico-burocrática do
BCB, principalmente, com Brandão, Bracher, Langoni, Pastore, Camões, Lemgruber, Eris, até
os responsáveis pela formatação mais recente do órgão com Franco, Fraga e Meirelles. Essa
visão se encontra até mesmo na única liderança advinda do serviço público, Gustavo Loyola,
que era servidor de carreira do BCB.
Em um imaginário construído sob estas características, não chega a surpreender que a cidadania
seja vista como um problema, como na visão apresentada sobre a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, a Constituição Cidadã, que é tida como um erro grotesco, um
equívoco que deveria ter sido evitado a qualquer custo ou um arroubo populista. Essa visão une
303
de Bulhões a Franco e Persio Arida. E fez com que Elmo Camões, Milliet de Oliveira e
Fernando Bracher não vissem sentido em participar de qualquer discussão da Assembleia
Constituinte, assim como Meirelles não via sentido em qualquer discussão sobre políticas
sociais no BCB, em 2003. Neste cenário, a burocracia formada pelos servidores do BCB é uma
elite técnica, como os depoimentos de Lira, Pastore, Ximenes e Buchi deixam claro, tomada
como bem formada e isenta, tal como seus líderes. As lideranças entrevistadas, no entanto,
apresentam estar em permanente confronto não só com a política em geral, mas com uma
política específica, a desenvolvimentista, intervencionista e de esquerda. São comuns as
menções ao comunismo, como são comuns os apoios ao golpe de 1964, o qual costumam
chamar de revolução. Da mesma forma, são comuns também as críticas às políticas sociais, à
educação crítica e à crítica econômica que venham de outras escolas que não a ortodoxa liberal.
Todas elas são tidas como ideológicas.
Neste contexto, portanto, não haveria como uma agenda de cidadania surgir espontaneamente
no BCB. Assim, ao investigar como (de que maneira, quando e por que) o tema de cidadania
surgiu no Banco Central do Brasil, ao longo de sua história, vemos que houve uma mudança de
projeto político de governo, mais favorável à agenda de cidadania, a partir de 2003, combinado
com um movimento internacional de questionamento das políticas liberais após a crise
econômica de 2008. Diante disso, uma série de fóruns foi realizada pelo BCB construindo
paulatinamente a ideia de cidadania primeiramente como inclusão financeira, em proximidade
com os temas de economia solidária e de inclusão social. Posteriormente, esta agenda foi
transformada em uma pauta de cidadania financeira.
Por fim, ficou claro para nós que essa realidade do BCB não é isolada, mas faz parte de um
longo processo dialético, mais amplo e antigo, de enfrentamento de forças opostas na sociedade
brasileira em que se contrapõem liberalismo e desenvolvimentismo, Estado e Mercado, público
e privado, política e técnica, democracia e autoritarismo. Esse processo sintetizou mais que um
conceito de cidadania financeira. Ele, na verdade, constitui um processo de financeirização da
cidadania, extrapolando a realidade do BCB e definindo, de modo contundente, as
perplexidades do momento atual do Brasil, em que se desmantela a rede de proteção social
construída desde a emergência da cidadania regulada e, em seu lugar, cria-se a financeirização
completa dos direitos, na qual não há o direito a ter direitos como núcleo da cidadania efetiva,
tal como defendido por Hannah Arendt (1989) e recuperado por Evelina Dagnino (1994, 2004a,
2004b, 2007, 2010), mas, sim, a condicionalidade do ter dinheiro para ter direitos.
Mas, diferentemente, agora, não é a industrialização sozinha a provocar essa redução, mas a
financeirização. Trata-se no momento atual, seguindo Habermas (1989), da dominação total da
racionalidade instrumental acrítica das finanças sobre a ética do discurso que a política
viabiliza. A unidimensionalidade da cidadania financeira é, na verdade, apenas um reflexo de
um processo maior, de financeirização da vida social, que resulta em um esvaziamento do
conceito de cidadania: a transformação e redução do aspecto sociopolítico dos direitos e deveres
socialmente construídos em uma questão rasa de gestão financeira de recursos particulares para
autofinanciar os próprios direitos. Como conceito técnico e frio, trata-se de uma definição
instrumentalizada, criada por um órgão tecnocrático, longe das aspirações da sociedade. Não
foi um conceito demandado, exigido, construído socialmente – está longe de haver, portanto,
uma identificação social politizada em torno deste conceito (BOTELHO & SCHWARCZ;
2012). Pelo contrário, foi um conceito imposto à sociedade brasileira, cunhado em parceria (se
não totalmente) pelo setor financeiro, sem participação popular que o legitimasse. Trata-se de
um conceito-síntese, portanto, de um processo dialético mais amplo, o de financeirização da
sociedade brasileira guiada pela razão técnico-instrumental burocrática do BCB.
Este desequilíbrio de nosso mal-acabado Estado de Bem-Estar Social, como bem lembrou
Marcelo Neves (1994, 1996a, 2012, 2019), formou uma desigualdade não apenas de direitos,
mas também de deveres. E aqui também a cidadania financeira reforça essa percepção. Uma
cidadania financeirizada – como bancarização e consumo –, implica que somente aquelas
pessoas possuidoras de recursos financeiros conseguirão viabilizar economicamente os seus
direitos. A integração plena ao sistema jurídico se torna, portanto, ainda mais distante para
pessoas pobres e marginalizadas. Além disso, uma cidadania financeirizada implica que as
obrigações serão também mal distribuídas na sociedade, pois os deveres de contribuição com a
manutenção de um Estado de Bem-Estar Social são invertidos, dado que os mais ricos
conseguem isenções, restituições e subsídios e os mais pobres não. Não é por acaso, também,
que de toda a agenda de reformas pensada pelos neoliberais escape sempre a reforma tributária
progressiva. Isso se confirma no recente estudo de Pedro Souza (2019, p. 371) que apontou que
307
“as comparações internacionais confirmam que o Brasil é o país mais desigual entre aqueles
com estimativas disponíveis com base em dados tributários”.
A maneira como se construiu a ideia de uma cidadania financeira também evoca a noção de
estadania, de José Murilo de Carvalho (2018). Sem participação popular, tratou-se, mais uma
vez, de uma percepção centrada na visão de um Poder Executivo forte que é capaz de moldar
unilateralmente toda a realidade do país. O Poder Executivo, neste caso representado pelo BCB,
concebe e institui uma noção própria de cidadania, à revelia das reivindicações populares. É
interessante destacar que os exemplos de mobilização social recentes no país em 2013 não
apresentaram nenhuma reivindicação neste sentido. Mas, as medidas tomadas pelo BCB desde
2016, como vimos, foram em favor de uma financeirização da cidadania que a população não
solicitou. Também é preciso fazer a ressalva de que, se por um lado é fundamental a
participação popular para a efetivação da cidadania, tal como destacam Evelina Dagnino (1994,
2004a, 2004b, 2007, 2010) e José Murilo de Carvalho (2018), isso não quer dizer que o Estado
e a Administração Pública devam estar ausentes nesse processo. Pelo contrário, vimos que, sem
a instituição de um aparato de Administração Pública viabilizador – como foi no caso do
impacto da construção dos ministérios e demais órgãos relacionados a trabalho e previdência –
, alguns avanços de direitos não se efetivam. O que se questiona, no entanto, é a determinação
unilateral sem valorização dos espaços públicos de construção dos direitos com participação
popular.
Não compactuamos, portanto, da visão de DaMatta (1980, 1991, 2011) de que o espaço público
é sempre visto no país como um local sem regras, de descaso, mal acabado. Pelo contrário,
entendemos que uma boa parte da problemática da viabilização da cidadania no Brasil decorre
do fato de que há uma elite financeira conservadora e liberal – tal qual demonstrado neste
trabalho – que dissemina essa visão, impedindo que os espaços públicos (tomados em sentido
amplo e não apenas os governamentais) e a Administração Pública sejam valorizados e
apropriados pela população. Neste ponto, concordamos com Jessé Souza (2000, 2001, 2015,
2017) em sua crítica, dentre outros, a Roberto DaMatta e Raymundo Faoro, que teriam
contribuído com a divulgação dessa visão que, ao final, acabaria por funcionar como uma defesa
da elite tecnocrática a ocupar os espaços públicos para ordená-los, discipliná-los e diminui-los,
308
tornando-os inacessíveis às camadas populares, e assim perpetuar a sua agenda política no poder
que coloca o privado como solução e o público como problema.
Por fim, o que temos é que a utilização da cidadania financeira tomada como acesso a serviços
financeiros formais para a boa gestão de recursos próprios particulares culmina na manutenção
(e aprofundamento) da categorização de cidadãs e cidadãos no Brasil em classes distintas. A
subcidadania, de Jessé Souza (2003, 2006, 2018b), entendida como o expurgo de parcela da
sociedade brasileira do gozo de direitos, permanecerá. A financeirização da cidadania no país
não inclui, pelo contrário, expulsa ainda mais pessoas das condições básicas de fruição de
direitos favoráveis à sua própria emancipação, sobretudo em um contexto altamente desigual e
concentrador de renda no topo da cadeia financeira do país, como demonstram Ladislau
Dowbor (2017) e Pedro Souza (2019). Mais do que em qualquer época, caso a sociedade
brasileira entenda ser necessário defender a existência de um Estado de Bem-Estar Social no
país, precisará mobilizar-se para frear a financeirização da cidadania e reinterpretar essa visão
atual de cidadania financeira apresentada pelo BCB.
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