Silo - Tips - Da Guerra e Paz Como Questao Filosofica Rousseau Kant Hegel
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Silo - Tips - Da Guerra e Paz Como Questao Filosofica Rousseau Kant Hegel
(ROUSSEAU, K A N T , H E G E L )
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Refiro, com viva recomendação de leitura, os estudos de Stelling-Michaud, sobre os
Écrits sur 1'Abbé de Saint-Pierre, em J.-J.Rousseau, 1964, Vol. Ill, pp. CXX-CLVIII;
Hoffmann, 'Rousseau, la guerre et la paix', 1965; Truyol Y Serra, 'La guerra y la paz en
Rousseau y Kant', 1979, pp. 47-62; Hassner, 'Rousseau and the Theory and Practice of
International Relations', 1997, pp. 200-19; Morgado, 'Rousseau e o Projecto de Paz
Perpétua' (2006) 153-73.
Philosophien, 30, Lisboa, 2007, pp. 27-60
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As referências de Rousseau ao projecto gorado das Institutions Politiques encontram-se
esparsas por lugares da sua obra além do CS, nomeadamente nas Confessions, OC, I ,
p. 404.
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mas em se evitarem, e a paz, que não a guerra, seria "a primeira lei natu-
ral". Vê-se que Rousseau já não anda longe. E Montesquieu acrescenta,
enunciando uma crítica que virá a concitar consideráveis concordâncias, a
de Rousseau à cabeça, que a ideia de império e de domínio, atribuída ao
homem natural, "é tão compósita e depende de tantas outras ideias" que
decerto não a teria em mente originariamente. No fundo, Hobbes não
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Uma das ideias chave da antropologia hobbesiana c a de que a natureza fez os homens
tão iguais nas faculdades de corpo e de espírito que mesmo as diferenças de força entre
indivíduos não são suficientes para que algum possa reivindicar benefícios que não este-
jam ao alcance dos outros, até porque os mais fracos têm sempre o recurso de compen-
sar as suas inferioridades pelo uso da astúcia c da inteligência (Hobbes, 1995, pp. 109
ss.). É esta posição de igualdade que toma o medo ou desconfiança de uns homens
perante os outros homens uma lei gera) do "estado de natureza" (sobre o tema, Alves,
2005, pp. 125-35).
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Primeiro crítico da modernidade com um olhar moderno, Rousseau dirige à ideia de
progresso, tão cara ao iluminismo setecentista, uma severa barragem de contestações,
inaugurada, como se sabe, com o polémico Discurso sobre a Ciência e as Artes, datado
de 1750, em que são antecipados muitos dos temas das correntes actuais de criticismo
aos malefícios do progresso e da "civilização" em geral (Rousseau, 1964, III, pp. 1-57).
Da guerra e paz como questão filosófica 31
Daqui cai à terra o germe das guerras, pois o grande fautor desta
doença crónica da humanidade "civil" veio a consistir no impulso que o
estabelecimento da hipotética primeira sociedade deu ao de todas as
outras. A razão de ser de que proliferem sociedades que evoluirão rapi-
damente para Estados mais ou menos complexos pois "une société ne
sauroit exister sans un gouvernement" (Montesquieu), e governar grupos
gera necessariamente complexidade, é fácil de entender. Rousseau resu-
me com acutilância a sua ideia num troço incluído nos escritos sobre o
Abade de Saint-Pierre, intitulado 'Que Pétat de guerre nait de 1'état
social':
Vale por dizer que a dinâmica da guerra com o seu cortejo de cala-
midades se põe em marcha devido ao pluralismo das sociedades políticas,
ou, brevitatis causa, dos Estados que se têm formado em todo o vasto
mundo. Aquilo que, no status naturae ou no estado "pré-civil", digamos
assim, das rudimentares sociedades primitivas, poderia resultar em confli-
tos fugazes entre indivíduos ou, quando mais, entre minúsculos grupos
efémeros, pela disputa deste ou daquele bem particular, dá lugar a lutas
organizadas de longa duração entre grandes corpos colectivos com voca-
ção de permanência e alta complexidade estrutural, visando objectivos
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trata-se de situações que não são de paz efectiva permanente mas de tré-
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Sobre a discutidíssima noção de "contrato social" em Rousseau, permito-me citar Alves,
1983, pp. 11-56, e 2005, pp. 137-53, bem como a bibliografia aí referenciada.
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E interessante que Rousseau tenha dedicado grande atenção à constituição e ao papel das
confederações (Rousseau, 1964, III, pp. 564 ss.).
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Hobbes: "durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os
manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra;
e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens" (1995, p. 111).
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Gagnebin, 1964, p. 1899. Note-se que Hobbes se aproxima da ideia de estado intermédio
entre guerra e não-guerra mas não a tematiza com a nitidez de Rousseau: ("... a guerra não
consiste apenas na batalha, ou no acto de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual
a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida [...] a natureza da guerra não con-
siste na íuta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não
há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz.": Hobbes, 1995, p. 111).
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Mas não é obrigatório que se pense assim, embora este tivesse sido,
e talvez ainda seja, o pensamento dominante. No seu futuro imediato, a
reflexão de Jean-Jacques Rousseau cruza-se com a concorrência de duas
orientações paradigmáticas não homólogas da sua: a de Kant, que recusa
a resignação e procura encontrar os caminhos da paz; a de Hegel, que
integra a guerra nos planos da razão.
A elas vamos passar de seguida.
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Entre várias outras menções leiam-se as primeiras linhas do Extra.it du Trojel de Paix
Perpétuette de Monsieur VAbbé de Saint Pierre: "Como nunca houve Projecto mais ele-
vado, mais belo e mais útil a ocupar o espírito humano do que o de uma Paz perpétua e
universal entre todos os povos da Europa, nenhum autor mereceu mais a atenção do
público do que aquele que propôs os meios para pôr este Projecto cm execução" {Rous-
seau, 1964, III, p. 563).
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Muito desvalorizado por alguma critica, quando da publicação (1795), como trabalho
menor, se não ferido de senilidade do autor, o ensaio sobre a Paz Perpétua - aliás, ime-
diatamente entendido na sua importância por um Fichte e um Humboldt, p.e - foi recu-
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Devo dizer que este elenco de requisitos negativos para a paz consti-
tui, no seu conjunto, uma introdução relativamente decepcionante, ou
assim o julgo. Não tanto por algumas trivialidades que se não priva de
exibir, mas sobretudo porque o seu acolhimento generalizado pressuporia
que a paz já reinasse nas relações internacionais. No fundo, cai-se na
armadilha frequente de propor para um problema medidas cuja adopção
supõe que o problema se encontra resolvido.
Com a passagem aos "artigos definitivos", as coisas mudam de figu-
ra. Dir-se-ia que o poderoso pensamento de Kant começa energicamente
a pensar.
E que nos propõe ele de essencial? Três proposições, qual delas a
mais significativamente importante.
perado nos estudos kantianos mais recentes como um dos textos centrais das filosofias
da história e jurídico-política de Kant.
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Consistindo os pontos nodais do republicanismo kantiano na separação do poder exe-
cutivo e do poder legislativo, como princípio constitucional, e no sistema representati-
vo como forma de governação, sem o modo republicano de governar, remata Kant,
"todo o governo é despótico e violento (seja qual for a sua constituição)": (Kant, 1988,
p. 14).
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"... Devemos admirar um plano tão belo e ter o consolo de não o ver
em execução, pois tal não seria possível senão por meios violentos e
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Sobre este tópico, v. o comentário sucinto e esclarecedor de Terra, 2004, pp. 51-4.
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1 4
Sobre o tema, Philonenko, 1980, pp. 181-91.
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"Na rivalidade que opõe os Estados uns aos outros, quando as vonta-
des particulares de cada um deles não alcançam resolver os seus dife-
rendos por negociação, somente a guerra pode decidir" (Hegel, 1974,
§ 334).
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Sem falar de intérpretes desprovidos de qualquer interesse, ou de obras historicamente
distantes como o clássico Hegel und seine Zeit (1857), de R. Haym, vejam-se os ata-
ques, não tão longínquos, de Popper em The Open Society, e, em polémica com
Pelczynski e Avineri, o artigo 'Hegel Rehabilited?' de S. Hook.
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Retomando uma aproximação ultra-sinóptica: "Ao (re)descobrir-se como o "elemento"
comum das diferenciações históricas que o manifestam ou objectivam, o Espírito reco-
nhece-se o mesmo nas particularidades desta segunda natureza, instituída pela acção
humana (...) e pode, legitimamente, pensar-se como absoluto. Por três grandes vias de
realização se desenvolve a esfera do "Espírito Absoluto": a Arte, em que o Absoluto se
efectiva pela intuição e como forma; a Religião, que o realiza pelo sentimento e como
representação; enfim, a Filosofia (...) genuína "consciência" do Absoluto que nela
devêm diáfano como pensamento puro e emancipado que a si mesmo se pensa na iden-
tidade das suas várias figurações" (Alves, 1983, p. 140).
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4. Conclusão
Referências
Alves, J,L. 2005, Ética & Contrato Social (Estudos), Lisboa: Edições Colibri.
— 2004, O Estado da Razão. Da ideia hegeliana de Estado ao Estado segundo a
ideia Hegeliana, Lisboa: Edições Colibri.
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— 1972, Introduction à la lecture de Hegel, Paris. Gallimard.
Lacroix, M.1994, L'Humanicide.Pour une morale planétaire, Paris: Plon.
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Agradecimento
RESUMO
Palavras-chave:
Estado de Natureza; Estado Social; "Guerra" e "Estado de Guerra"; Paz
Perpétua; Republicanismo; Cidadania; Cosmopolitismo; Federação; Estado
Mundial.
ABSTRACT
Keywords:
State of Nature; Civil State; "War" and "State of War"; Perpetual Peace;
Republicanism;
Citizenship; Cosmopolitanism; Federation; Worldwide State.