Silo - Tips - Da Guerra e Paz Como Questao Filosofica Rousseau Kant Hegel

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 34

D A GUERRA E PAZ COMO QUESTÃO FILOSÓFICA

(ROUSSEAU, K A N T , H E G E L )

João Lopes Alves


Jurista, Lisboa

1, A Guerra segundo Rousseau

Pode surpreender que, apesar do papel nuclear no pensamento políti-


co moderno desempenhado por Jean-Jacques Rousseau, as reflexões do
"Newton do mundo moral" (Kant) sobre o fenómeno da guerra não
tenham alcançado (e, de meu conhecimento, continuam a não alcançar) o
lugar que mereceriam na imponente massa de literatura secundária susci-
tada pela sua obra.
A insuficiência impressiona de facto, mas não supõe nada de muito
misterioso. Penso que contribuiu em decisiva medida para algum efeito
de alheamento do comentarismo, apesar de tudo relativo, que o trabalho 1

de exegese e crítica fosse fortíssimamente atraído pelo fulgor do "petit


traité", como o adjectivou Rousseau, publicado em 1762 sob o título "Du
Contract Social, ou Príncipes du Droit Politique" <CS> (Rousseau,
1964). Ora, esta obra de intensidade literária e teórica verdadeiramente
única, tendo a crédito uma influência avassaladora, incidiu principalmen-
te no "direito estatal interno", se quisermos recorrer a uma epígrafe hege-
liana <das innere Staatsrecht> (Hegel, 1974: §§ 260 ss.; no caso de Hegel
cito com referência aos parágrafos <§> que dividem o texto) por contra-
posição à juricidade "externa" que, grosso modo, corresponderia ao direi-
to das gentes (ou, em linguagem de hoje, de focagem mais especializada,
Direito Internacional Público), onde são cruciais as questões de guerra e

1
Refiro, com viva recomendação de leitura, os estudos de Stelling-Michaud, sobre os
Écrits sur 1'Abbé de Saint-Pierre, em J.-J.Rousseau, 1964, Vol. Ill, pp. CXX-CLVIII;
Hoffmann, 'Rousseau, la guerre et la paix', 1965; Truyol Y Serra, 'La guerra y la paz en
Rousseau y Kant', 1979, pp. 47-62; Hassner, 'Rousseau and the Theory and Practice of
International Relations', 1997, pp. 200-19; Morgado, 'Rousseau e o Projecto de Paz
Perpétua' (2006) 153-73.
Philosophien, 30, Lisboa, 2007, pp. 27-60
28 João Lopes Alves

de paz. Acresce que o filósofo genebrino renunciou intencionalmente a


tratar do relacionamento inter-Estados que coroaria o universo político.
Como se sabe e o próprio Rousseau destacou, o CS seria, no propósito
originário do autor, tão-só a primeira parte de um tratado muito mais
amplo no seu objecto, a que pensava dar o título de "Institutions Politi-
ques" . Todavia, o projecto gorou-se, por razões cujo sentido geral é
2

comentado na conclusão do CS:

'Após estabelecer os verdadeiros princípios do direito político <n.a.: o


"direito estatal interno"> e empreender a fundação do Estado sobre a
respectiva base, estaria apoiá-lo mediante as suas relações externas, o
que abrangeria o direito das gentes, o comércio, o direito da guerra e
as conquistas, o direito público, as ligas, as negociações, os tratados,
etc. Tudo isto porém forma um novo objecto demasiado vasto para a
minha curta vista; sempre deveria fixá-lo mais perto de mim" (Rous-
seau, 1964, Oeuvres Completes <OC>, DI, p. 470).

A ablação da matéria internacional que prolongaria o CS não obstou


a que o tema da guerra comparecesse em ordem dispersa por vários luga-
res da obra rousseauniana: no Discurso sobre as causas da desigualdade
entre os homens (Rousseau 1964: OC, III, pp. 178-9), no artigo Economie
Politique da Enciclopédia de Diderot e d'Alembert (Idem, 268-9), em
trechos do próprio CS e de o Emílio (Idem, pp. 357-8 e Rousseau, 1969,
OC, IV, 848-9), naturalmente no Extracto e no Julgamento sobre o Pro-
jecto de Paz Perpétua do Abade de Saint Pierre (Rousseau, 1964, OC,
III, pp. 563-616) e, associados aos escritos sobre o famoso Projecto do
Abade, nalguns fragmentos respeitantes à guerra e ao "estado de guerra"
(situação segundo Rousseau distinta da de guerra, como adiante comenta-
rei; Idem, pp. 1899-1904). No seu conjunto, estes textos não só desenham
ideias que contribuem para iluminar o significado da guerra como se con-
jugam com as noções da célebre mansuetude do "estado de natureza"
rousseauniano e da sua transição para um "estado social", esse sim neces-
sariamente belicoso. Neste particular, Rousseau pensa a guerra a partir de
uma crítica radical do que ele chama o "horrível sistema de Hobbes" e a
"absurda doutrina" do filósofo inglês. (Idem, p. 610)
Sabe-se como Hobbes, precisamente nos antípodas daquilo que
Rousseau pensará, concebe que a guerra (talvez melhor dito, neste con-
texto, relações de violência) é consubstancial ao estado de natureza dos
humanos, visto sob a imagem de "guerra de todos contra todos", com os
corolários do medo constante de morte violenta (the Fear of Violent

2
As referências de Rousseau ao projecto gorado das Institutions Politiques encontram-se
esparsas por lugares da sua obra além do CS, nomeadamente nas Confessions, OC, I ,
p. 404.
Da guerra e paz como questão filosófica 29

Death) que a proximidade do outro significa por natureza, a suspensão de


quaisquer termos de convivialidade satisfatória e o inerente bloqueio das
potencialidades de inventiva industriosa e artística, de conhecimento
racional das coisas, de circulação das pessoas, dos bens e das ideias. Nes-
te cenário descoroçoante, Hobbes pode concluir incisivamente que a vida
em estado de natureza é "solitária, pobre, sórdida, selvagem e curta".
(Hobbes, 1995, p. 111). Terá sido justamente para sair do 'tale of horror'
do seu estado "natural", que o homem se auto-inflingiu o "artifício" do
poder irrestrito (mas não arbitrário) do Leviatã como um dispositivo de
prevenção e repressão das pulsões da liberdade natural. Ao conjecturar
que são partes contratantes do hipotético pacto inter-individual de consti-
tuição do Leviatã os homens em relação de vizinhança, logo sob ameaça
permanente de se trucidarem uns aos outros, Hobbes, como é sabido,
avança a ideia de que, pelo pacto assim ficcionado, delegam de jure, num
dado homem ou numa assembleia (oligárquica ou democrática), "o poder
soberano ilimitado de os representar a todos eles, legislando, governando,
julgando e policiando, a fim de se assegurar, pela força da espada se
necessário, que os contratantes vivam em paz uns com os outros e este-
jam protegidos dos restantes homens" (Alves, 2005, p. 127). Deste modo,
reprime-se a violência da guerra "natural", desregrada e generalizada, por
recurso à contenção coerciva da paz civil que o Estado institui e assegura,
segundo as regras que o próprio Estado estabelece. Numa palavra: natu-
reza significa guerra, sociedade significa paz ou, mais precisamente,
segurança.
Uma brecha na plausibilidade desta visão das coisas foi detectada
por Montesquieu, no Espírito das Leis, com a sua sagacidade habitual.
Considera Montesquieu que numa situação de igualdade virtual de forças
em que todos se sentissem por igual ameaçados, como é suposto por
Hobbes , a tendência mais verosímil consistiria não em se entre-atacarem,
3

mas em se evitarem, e a paz, que não a guerra, seria "a primeira lei natu-
ral". Vê-se que Rousseau já não anda longe. E Montesquieu acrescenta,
enunciando uma crítica que virá a concitar consideráveis concordâncias, a
de Rousseau à cabeça, que a ideia de império e de domínio, atribuída ao
homem natural, "é tão compósita e depende de tantas outras ideias" que
decerto não a teria em mente originariamente. No fundo, Hobbes não

3
Uma das ideias chave da antropologia hobbesiana c a de que a natureza fez os homens
tão iguais nas faculdades de corpo e de espírito que mesmo as diferenças de força entre
indivíduos não são suficientes para que algum possa reivindicar benefícios que não este-
jam ao alcance dos outros, até porque os mais fracos têm sempre o recurso de compen-
sar as suas inferioridades pelo uso da astúcia c da inteligência (Hobbes, 1995, pp. 109
ss.). É esta posição de igualdade que toma o medo ou desconfiança de uns homens
perante os outros homens uma lei gera) do "estado de natureza" (sobre o tema, Alves,
2005, pp. 125-35).
30 João Lopes Alves

atenderia a que atribui aos homens, "antes do estabelecimento das socie-


dades", desejos e motivos que não podem surgir-lhes enquanto não as
houver, só a partir de então se suscitando razões de ataque e de defesa
(Montesquieu, 1979, p. 126).
Rousseau desenvolverá esta linha de argumentação, que decerto
seria de seu conhecimento como grande leitor e admirador de Montes-
quieu. Sustenta, também ele, que "o homem é, de seu natural, pacífico e
assustadiço, pronto a fugir ao menor perigo". (Rousseau, 1964, OC, III,
p. 601) Coisas como a honra, o interesse, a vingança, a vontade de impé-
rio, que poderiam empurrá-lo a arrostar com os perigos e a morte, "sont
loin de lui dans 1'état de nature" {Idem). A par destas razões pela negati-
va, intervém no cenário, pela positiva, o sentimento humano básico da
"Pitié", ou compaixão, que manifesta a repugnância do homem em pro-
vocar nos semelhantes mais sofrimento do que o estritamente necessário.
Trata-se, diz Rousseau, de "uma disposição conveniente a entes tão
débeis e sujeitos a tantos males como nós somos" (Idem, p. 154). Senti-
mento natural prévio a qualquer forma de reflexão, da compaixão se pode
dizer que, temperando os efeitos do "amour de soi même", contribui cru-
cialmente para a conservação da espécie (Idem, p. 156).
Tal é o fundamento antropológico primordial da tese rousseauniana
do que seria popularizado sob a designação (muito imprópria) de "bom
selvagem". O qual, observa Rousseau, não poderia ser bondoso porque,
em rigor, nem sabe o que significa ser-se maldoso. A neutralização das
paixões e a ignorância dos vícios impedi-lo-iam de fazer o mal intencio-
nalmente. O 'estado de natureza', em Hobbes matriz tempestuosa de vio-
lência, transforma-se em Rousseau num campo de calmaria e de estagna-
ção civilizacional que, todas as contas feitas, seria propícia afinal, numa
contabilidade de custos / benefícios de felicidade e infelicidade, ao que de
melhor podem esperar os homens. Ou seja, bem pouco. O olhar hostil
com que Rousseau considerava, em contra corrente na época, as chama-
das "luzes do progresso", tão intimamente associadas às ideologias suas
contemporâneas da modernidade, ganha aqui explicação e justificação . 4

Mas se o estado de natureza é isto, as razões de ser da guerra como


flagelo endémico da humanidade devemos procurá-las no contrário disto
que é o "estado social*. O movimento da inversão teórica anti-hobbesiana
fica assim completo.

4
Primeiro crítico da modernidade com um olhar moderno, Rousseau dirige à ideia de
progresso, tão cara ao iluminismo setecentista, uma severa barragem de contestações,
inaugurada, como se sabe, com o polémico Discurso sobre a Ciência e as Artes, datado
de 1750, em que são antecipados muitos dos temas das correntes actuais de criticismo
aos malefícios do progresso e da "civilização" em geral (Rousseau, 1964, III, pp. 1-57).
Da guerra e paz como questão filosófica 31

A passagem do "paleolítico" de solidões do estado de natureza ao


"neolítico" do estado social teria sido movida pelo ímpeto de apropriação
egoísta dos bens da ten-a por alguns homens e a pulsão cúpida de proibir
aos outros a sua fruição (aquilo que justamente se chamará 'propriedade
privada' enquanto que operação de privar de propriedade os outros).
Paralelamente, surge a delimitação exclusivista dos territórios e a
superveniencia de mil predações, mil desigualdades de fortuna e poderio,
mil violências de ataque ou defesa.
É bem conhecido o proémio de Rousseau à 2. parte do Discurso
a

sobre a origem da desigualdade:

"Quem primeiro delimitou um terreno e decidiu declarar isto perten-


ce-me [...] foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Qantos cri-
mes, guerras, mortes, quantas misérias e horrores, teria poupado ao
género humano [.,..] quem houvesse gritado aos seus semelhantes:
Cuidai de não escutar este impostor; estais perdidos se esquecerdes
que os frutos são de todos e a Terra é de ninguém" (Rousseau, Idem
p. 164).

Daqui cai à terra o germe das guerras, pois o grande fautor desta
doença crónica da humanidade "civil" veio a consistir no impulso que o
estabelecimento da hipotética primeira sociedade deu ao de todas as
outras. A razão de ser de que proliferem sociedades que evoluirão rapi-
damente para Estados mais ou menos complexos pois "une société ne
sauroit exister sans un gouvernement" (Montesquieu), e governar grupos
gera necessariamente complexidade, é fácil de entender. Rousseau resu-
me com acutilância a sua ideia num troço incluído nos escritos sobre o
Abade de Saint-Pierre, intitulado 'Que Pétat de guerre nait de 1'état
social':

"Da primeira sociedade formada segue-se necessariamente a formação


de todas as outras. Tem de se fazer parte dela ou de a ela nos unirmos
para lhe resistir. Há que imitá-la ou deixarmo-nos engolir por ela".
(Idem, p. 603)

Vale por dizer que a dinâmica da guerra com o seu cortejo de cala-
midades se põe em marcha devido ao pluralismo das sociedades políticas,
ou, brevitatis causa, dos Estados que se têm formado em todo o vasto
mundo. Aquilo que, no status naturae ou no estado "pré-civil", digamos
assim, das rudimentares sociedades primitivas, poderia resultar em confli-
tos fugazes entre indivíduos ou, quando mais, entre minúsculos grupos
efémeros, pela disputa deste ou daquele bem particular, dá lugar a lutas
organizadas de longa duração entre grandes corpos colectivos com voca-
ção de permanência e alta complexidade estrutural, visando objectivos
32 João Lopes Alves

políticos estrategicamente determinados: dominar, conquistar, presérval-


os domínios e as conquistas, prevenir ameaças de ataque. Um diagnóstico
desta nova qualidade nos conflitos humanos aparece condensado no CS:

"A guerra não é de modo algum uma relação de homem a homem,


mas uma relação de Estado a Estado em que os particulares não são
inimigos senão acidentalmente, não como homens, nem mesmo como
cidadãos, mas como soldados". {Idem, p. 357)

O mesmo é afirmado no 'Estado de Guerra' com máxima concisão:


"não há guerra entre os homens; somente há guerra entre os Estados"
(Idem, p. 604). A caracterização política da guerra como acontecimento
circunscrito aos confrontos entre Estados remete, pois. um como que
sucedâneo "civil" do belicoso estado de natureza hobbesiano para o
patamar das relações internacionais.
Não que tal signifique alguma moderação nos níveis de violência.
Pelo contrário, para Rousseau agrava-os, e isto num duplo registo. Por
um lado, um registo de grandeza. Rousseau salienta-o, com clareza:

"A independência retirada aos homens acantona-se nas sociedades, e


estes grandes corpos, entregues às suas próprias impulsões, produzem
os choques mais terríveis, na proporção em que as suas massas exce-
dem as dos indivíduos". (Idem, p. 604)

Deste ponto de vista, a "artificialidade" de dimensão dos Estados,


comparada à "naturalidade" dos indivíduos, pode piorar a propensão à
belicosidade (e sabemos que piora). De facto, enquanto que os homens
esbarram nos limites insuperáveis de força e de expressão física estabele-
cidos pela natureza, os Estados, sendo criações artificiais, não têm medi-
da determinada, a sua grandeza é indefinida e pode sempre ser aumentada
ou restringida, com o acicate de que um Estado "se sente fraco tanto
quanto existam outros mais fortes do que ele" (Rousseau, Idem, p. 605).
Por outro lado, a passagem do "estado natural" ao "estado social"
gera uma condição de duplo constrangimento (condição mista, nas pala¬
vas de Rousseau), grávida de violências reforçadas. Uma vez mais, a
explicação de Rousseau é cristalina:

"De homem a homem, vivemos no estado civil, submetidos às leis; de


povo a povo, cada um goza da liberdade natural; o que, no fundo, tor-
na a nossa situação pior do que se ignorássemos estas distinções. Pois,
vivendo simultaneamente no estado social e no estado de natureza,
estamos sujeitos aos inconvenientes de um e de outro, sem encontrar
segurança em nenhum deles". (Idem, p. 610)
Da guerra e paz como questão filosófica 33

Rousseau estabelece depois uma ligação intrínseca entre guerras


externas e despotismo interno. É uma das suas ideias, aliás não original,
que influenciará segmentos determinantes do idealismo clássico alemão,
mormente Kant e Fichte, conhecerá prolongamentos até ao nosso tempo
(basta lembrar a contrario a relação orgânica entre Paz e "Estado de
Direito" democrático contida na Declaração Universal dos Direitos do
Homem) e, o que é mais importante, terá confirmações bem tristes na
ordem do acontecimento. Eis como o "Citoyen de Genève" analisa a
situação, no Jugement sur le Projet de Paix Perpétuelle do Abade de
Saint-Pierre, forçando as cores, com recurso à sua infungível retórica:

"É fácil de compreender que, por um lado a guerra e as conquistas, e,


por outro lado o progresso do despotismo, se ajudam mutuamente; que
se deita mão à vontade, num povo de escravos, <n.a.: metáfora forte
de gente submetida e submissa> ao dinheiro e aos homens de que se
precise para subjugar outros homens; que, reciprocamente, a guerra
fornece o pretexto de exacções pecuniárias e outro, não menos espe-
cioso de manter grandes exércitos para se conservar o povo em respei-
to. Enfim, todos podemos lobrigar bastante bem que os Príncipes con-
quistadores tanto fazem guerra aos seus súbditos como aos seus
inimigos e que a condição dos vencedores não é melhor do que a dos
vencidos". (Idem, p. 593)

A visão rousseauniana do mundo dos homens, no seu traçado actual,


resulta, assim, mais sombria do que a do próprio Hobbes. Na verdade, o
autoritarismo armado do Leviathan permitiria que se coabitasse em segu-
rança, mediante a repressão "institucional" dos apetites anómicos do
estado de natureza. Para Rousseau nada se salva: nem no novo estado de
"segunda natureza" civil, com as inerentes desigualdades de propriedade
e a violência competitiva que faz alastrar entre os homens, nem no "esta-
do social", gerador de guerras e de despotismo. Talvez se não salve
sequer o tempo ideal retrospectivo de um hipotético estado de natureza,
povoado de humanos tidos por "bons" apenas porque são "bornés et stu¬
pides". Como quer que seja, parados num tempo sem história, absoluta-
mente irrecuperável, uma vez passado o Rubicão histórico da entrada na
"civilização" devido a algum conjunto fortuito de circunstâncias externas,
sobre as quais podemos conjecturar, mas nada sabemos de seguro (Idem
p. 140). Como comentará Starobinski, "a transformação é irreversível; o
caminho de regresso está aberto somente aos sonhadores" (Starobinski,
1964, p. LVII). As ténues esperanças de melhoria da condição humana às
quais Rousseau acena projectam-se não no passado, nem no presente,
mas no futuro hipotético da possibilidade de se promover a educação para
a liberdade a que aponta o que podemos chamar 'contrato educacional'
34 Joao Lopes Alves

do Emílio e de se alcançar o estadio de legitimidade do poder político


segundo os direitos da razão e a razão do direito ser direito que encontra
fundamento no "contrato social". Possibilidades essas que se mostram
5

de verificação terrivelmente improvável, aprisionadas como estão "num


horizonte de extremismo lógico [...] a reflectir um horizonte de extremo
risco existencial. O rol de horrores da historia humana ilustra-o com elo-
quência: há o risco de que os governantes confisquem o poder, o risco de
que a guerra, interna e extema, perverta e aniquile o corpo político, o
risco de que prevaleçam os egoísmos particulares, os pessoais e os colec-
tivos, abolindo-se nas realidades da exploração a possibilidade de fazer
valer o interesse comum, há enfim o risco maior de que os povos "não
vejam" a razão - eventualidade que se bloqueou o pensamento político de
Platão, como não haveria de bloquear outros pensamentos!" (Alves,
1983: p. 48). Mas precária que seja, a aposta num futuro melhor ou
menos mau é tudo quanto nos resta, pois da "história do presente" só
temos a esperar o pior.
Quanto à relação de Estado a Estado da guerra, o pessimismo de
Rousseau adensa-se. Mesmo num contexto de sociedades políticas legíti-
mas, a questão da guerra não ficaria resolvida. Note-se que Rousseau não
ignora os esforços históricos porfiados de se trazer as disciplinas do direi-
to ao relacionamento entre Estados, guerra incluída (o Projecto do Abade
de Saint-Pierre inscreve-se nesse movimento, muito vivo doutrinariamen-
te no século XVIII), mas a fraqueza de raiz do direito das gentes - falta
de uma instância supra-estatal com o poder efectivo de sancionar as pre-
varicações - deixa-o muito céptico sobre a possibilidade de se alcançar
um estádio de paz genuína entre entidades soberanas independentes:

"Quanto ao que se chama comummente o direito das gentes, certo é


que, faltando as sanções, as suas leis não passam de quimeras mais fra-
cas ainda do que a lei natural. Esta, pelo menos, fala ao coração dos par-
ticulares, ao passo que as decisões do direito das gentes, sem outra
garantia senão a utilidade de quem se lhe submete, são respeitadas ape-
nas quando o interesse as ratifica". (Rousseau, 1964, OC, EÕ, p. 610).

É patente, no entanto, que a guerra desencadeada não se processa de


forma ininterrupta, mas como situação recorrente, e que os Estados con-
seguem intervalar relações temporárias de coexistência não directamente
bélicas, bi ou multilaterais (ligas e confederações, p.e.) . Simplesmente,
6

trata-se de situações que não são de paz efectiva permanente mas de tré-
5
Sobre a discutidíssima noção de "contrato social" em Rousseau, permito-me citar Alves,
1983, pp. 11-56, e 2005, pp. 137-53, bem como a bibliografia aí referenciada.
6
E interessante que Rousseau tenha dedicado grande atenção à constituição e ao papel das
confederações (Rousseau, 1964, III, pp. 564 ss.).
Da guerra e paz como questão filosófica 35

gua passageira. No essencial, os Estados vivem neste caso aquilo que


Rousseau chama "estado de guerra", distinguindo-o explicitamente da
guerra e que é algo como um purgatorio entre céu e inferno. O rasgo con-
ceituai merece realce e a mais de um título. Em primeiro lugar, porque
cola à realidade das coisas muito melhor do que urna retórica tremendista
de guerra permanente de todos contra todos . Gagnebin observa que
7

Rousseau desenvolve aqui uma noção nova que não encontramos em


Hobbes, Grócio, Pufendorf ou nos autores do século X V I I I (Gagnebin,
1964: p. 1904). Nova, e de considerável impacte para a compreensão das
relações internacionais . Realmente, se não houvesse pausas longas na
8

beligerância, nem se vê como seria concebível o surgimento de algum


princípio de civilidade no contacto entre Estados. Ora, a existência de um
módico de regras de civilidade impõe-se à observação. Mesmo os peles-
-vermelhas iroqueses de Montesquieu, que comiam os prisioneiros,
enviavam e recebiam embaixadas e reconheciam direitos de guerra e de
paz. Rousseau explica-se com a clareza habitual:

"Embora os dois termos de guerra e de paz pareçam exactamente cor-


relativos, o segundo compreende uma significação muito mais exten-
sa, atendendo a que se pode interromper e perturbar a paz de muitas
maneiras sem se ir até à guerra". (Idem, p. 1902)

Pode-se, é certo, prolongar uma situação de hostilidades contínuas e


é o que se chama "fazer a guerra". Mas sucede também que por exaustão
recíproca ou pela impossibilidade de chegarem a um desenlace, os Esta-
dos inimigos fiquem expectantes provisoriamente e não empreendam
actos ofensivos um contra o outro. A sua relação de hostilidade não
muda, procuram acumular meios de combate com vista à guerra próxima
futura, aguardam ou fomentam oportunidades favoráveis para se ataca-
rem, mas têm os actos de guerra efectiva suspensos. Para os leitores que
nós somos, recém chegados ao terceiro milénio com trânsito pela segunda
metade do século X X , a proximidade deste estado intermédio entre guerra
e "não-guerra" à noção de "guerra fria", lembrada de passagem por Ber-
nard Gagnebin, acode irresistivelmente.

7
Hobbes: "durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os
manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra;
e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens" (1995, p. 111).
8
Gagnebin, 1964, p. 1899. Note-se que Hobbes se aproxima da ideia de estado intermédio
entre guerra e não-guerra mas não a tematiza com a nitidez de Rousseau: ("... a guerra não
consiste apenas na batalha, ou no acto de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual
a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida [...] a natureza da guerra não con-
siste na íuta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não
há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz.": Hobbes, 1995, p. 111).
36 João Lopes Alves

A terminologia perfilhada - estado de guerra - é também desde logo


significativa de que para Rousseau a distinção entre "guerra" e "estado de
guerra" não estabelece a linha de separação entre guerra e paz, mas muito
mais uma diferenciação de graus dentro do género "guerra". De resto,
Rousseau é perfeitamente esclarecedor a este respeito, ao caracterizar a
situação como um estado de guerra modificado "em que os dois inimigos
se atam as mãos sem perderem nem disfarçarem a vontade de se destruí-
rem" (Idem, p. 1904). No fundo, esta noção, aliada a um grande cepticis-
mo, e é dizer pouco, sobre a efectividade do direito das gentes, parece
manifestar que Rousseau se resigna à inevitabilidade de relações de guer-
ra quando estejam em causa entes políticos soberanos.(Truyol y Serra,
1979, p. 54) Quer dizer: não considera viável a criação de condições de
paz genuína entre os Estados. Os seus escritos relativos ao Projecto do
Abade de Saint-Pierre vão no mesmo sentido, independentemente da
grande simpatia e admiração que exprime pelo sentido geral do Projecto e
pela qualidade humana do autor que chegara a conhecer pessoalmente . 9

Mas não é obrigatório que se pense assim, embora este tivesse sido,
e talvez ainda seja, o pensamento dominante. No seu futuro imediato, a
reflexão de Jean-Jacques Rousseau cruza-se com a concorrência de duas
orientações paradigmáticas não homólogas da sua: a de Kant, que recusa
a resignação e procura encontrar os caminhos da paz; a de Hegel, que
integra a guerra nos planos da razão.
A elas vamos passar de seguida.

2. O Imperativo de Paz segundo Kant

Considero que um dos títulos de grandeza da filosofia de Kant é a


sua reflexão sobre as questões da paz e da guerra. Título de grandeza, e
verdadeiramente um marco miliario na história do pensamento ocidental,
como escrevi noutro lugar (Alves, 2004, p. 256). Não porque antes dele
se não houvesse debatido profusamente o tema, muito mais pelo ângulo
da guerra do que pelo da paz, deve dizer-se, como, por exemplo, no caso,
que acabámos de apreciar, de Jean-Jacques Rousseau. O traço distintivo
kantiano consistiu em que, por um lado, inscreveu a questão não como
algo de lateral ao sistema de ideias da sua filosofia, mas de intrínseco,
para não dizer constitutivo dessa filosofia, e, por outro lado, atacou o

9
Entre várias outras menções leiam-se as primeiras linhas do Extra.it du Trojel de Paix
Perpétuette de Monsieur VAbbé de Saint Pierre: "Como nunca houve Projecto mais ele-
vado, mais belo e mais útil a ocupar o espírito humano do que o de uma Paz perpétua e
universal entre todos os povos da Europa, nenhum autor mereceu mais a atenção do
público do que aquele que propôs os meios para pôr este Projecto cm execução" {Rous-
seau, 1964, III, p. 563).
Da guerra e paz como questão filosófica 37

binómio guerra/paz do ponto de vista das condições objectivas de estabe-


lecimento de um estado de paz entre os povos. Neste conspecto, o fenó-
meno da guerra passa a ser relegado para o estatuto, de certo modo subal-
terno teoricamente, de ausencia de paz, ao passo que, inversamente, a
tradição pré-kantiana tendia a ver a paz como ausencia intervalar de guer-
ra. Quer-se dizer que, antes de Kant, o lugar da necessidade era ocupado
pela guerra, não pela paz, e a esta "realidade" (que aparentava sê-lo, de
facto, nas práticas humanas) opunham-se tão-somente, quando oposição
havia, lamentos piedosos ou exortações de ordem moral (a condenação da
guerra por Erasmo fornece um exemplo muito elaborado disto mesmo:
Erasmo, 1999).
Com Kant as coisas entram noutro patamar de exigência reflexiva. O
horizonte antropológico-político da filosofia kantiana perspectiva a ques-
tão da Paz como uma finalidade imperativa para a afirmação do que deve
vigorar de racionalmente humano na humanidade.
Pode dizer-se que o tema da Paz percorre transversalmente todo o
pensamento de Kant. Há uma isomorfia de fundo entre o "projecto de paz
perpétua metafísica" da Crítica da Razão Pura (Hassner), o projecto polí-
tico de paz interna associável ao primado do Direito, considerado dentro
dos limites da simples razão {Doutrina do Direito, conclusão) e o projec-
to cosmopolítico de paz universal esquematizado monográficamente no
opúsculo sobre a Paz Perpétua. Estes diversos cruzamentos convergem no
fim último da História que trará à luz da razão o plano escondido da
Natureza. Leia-se Kant:

"Pode-se considerar a história da espécie humana, em seu conjunto,


como a realização de um plano oculto da natureza para estabelecer
uma constituição política perfeita interiormente e, quanto a este fim,
também exteriormente perfeita, como o único estado no qual a nature-
za pode desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas dispo-
sições". (Kant, 2003, p. 17)

Ora, falar de uma "constituição política perfeita" significa na esfera


interna que se saiu do "status naturae" entre os indivíduos humanos para
o Estado de Direito, pressupondo a metáfora fundadora do "contrato ori-
ginário" ideal; e, na esfera externa, a análoga superação do "estado de
natureza" anárquico nas relações inter-Estados, criando-se condições de
renúncia à violência para dirimir conflitos. Num caso e noutro, o impera-
tivo da "razão moral prática" formula um veto irrevogável: "não deve
haver guerra" (Kant, 2005, p. 243).
Não deixa de ser paradoxal (ou talvez não) que o filósofo da Paz,
contrariamente ao sentido da 'démarche' teórica de Rousseau, enraíze a
sua reflexão num julgamento da natureza humana tributário, em larga
38 João Lopes Alves

medida, da visão pessimista de Hobbes, e isto apesar de ter escrito uma


refutação política anti-Hobbes (Kant, 1988, pp. 73-98). Kant tira partido
da recepção das grandes linhas do "status naturae" hobbesiano para
apoiar uma ideia muito idiossincrática da sua filosofia, a de que a Nature-
za faz surgir, da discórdia dos homens, a harmonia, mesmo contra a von-
tade humana (Kant, 2003, p. 9 e 1988, p. 140). Com efeito, segundo Kant,
o bem providencial da Paz não ê natural, carece de ser instaurado contra
as pulsões de violência de um "estado de natureza" humana em bruto,
ainda não disciplinado pela razão, meio ambiente não de paz, mas de
guerra declarada, ou na iminência de o ser. Tomando a liberdade de mais
uma auto-citação alongada, direi que, na rede conceituai kantiana, "o
estádio de paz permanente configura-se perante os homens como um
'bem racionafao mesmo tempo de dever e de esperança, que pode alcan-
çar plenitude prática e, justamente porque pode, devemos empenhar-nos
em que alcance. Por isso se conclui no Zuni ewigen Frieden que a questão
da paz não se oferece de chofre às possibilidades humanas, é um proble-
ma que deve ser resolvido pouco a pouco". (Alves, 2005, p. 27)
Ou, nas palavras de Kant, a paz perpétua não é uma ideia vazia,
"mas uma tarefa que, pouco a pouco resolvida, se aproxima constante-
mente do seu fim" (Kant, 1988, p. 171).
Kant não se contenta em proclamar que assim deve ser. Com escrú-
pulo intelectual característico, delineia um plano muito pormenorizado
das condições ideais de efectivação da Paz. Estamos, é certo, convém
nunca esquecer, a contas com aquilo que Kant designa por "ideia de
razão", sendo, no entanto, de ter presente também que, no contexto da
filosofia kantiana, uma "ideia de razão" não é, a nenhumas luzes, a
expressão de alguma inclinação subjectiva arbitrária. É, sim, um impera-
tivo racional que deve ganhar realidade como critério de legitimação teó-
rica das boas práticas, enquanto que princípio orientador do entendimento
e da acção que se exerce na multiplicidade pluriversal da experiência
humana. Se assim não for, ou são viciosas as práticas, ou não é boa a
teoria (cf. Kant,1988, pp. 5-102).
Qual pode ser, então, o esquema racionalmente procedente de um
projecto filosófico de Paz, por experiência tão contrário à natureza das
relações entre os homens e entre os povos? Como implantar esse projecto
de civilização contra as tendências naturais dos seres humanos, alimenta-
das pelas paixões da cupidez e pelas pulsões desenfreadas da belicosidade?
O opúsculo de 1795/ 96, Para a Paz perpétua. Um projecto filosófi-
co, contém a resenha mais bem articulada das ideias de Kant na matéria . 10

Muito desvalorizado por alguma critica, quando da publicação (1795), como trabalho
menor, se não ferido de senilidade do autor, o ensaio sobre a Paz Perpétua - aliás, ime-
diatamente entendido na sua importância por um Fichte e um Humboldt, p.e - foi recu-
Da guerra e paz como questão filosófica 39

Esboçando com suave ironia um simulacro das formas canónicas dos


verdadeiros tratados internacionais, Kant distingue aí o que chama "arti-
gos preliminares para a paz perpétua entre os Estados", "artigos definiti-
vos" com o mesmo escopo, dois "suplementos" e um "apêndice" dividido
em duas partes.
Nos artigos preliminares, ou condições prévias de consecução, peia
negativa, do estádio de paz (aquilo que os Estados devem abster-se de
perpetrar), será útil, para início de debate com o sentido do pensamento
de Kant, destacar sumariamente as suas exigências:
a) Que os Estados não celebrem convenções de paz com reserva
mental de admitirem que a paz é vulnerável a circunstâncias justificativas
do recurso à guerra;
b) Que não acolham pretensões de apropriação, pela força, de outros
Estados;
c) Que não mantenham exércitos permanentes, até porque - um
curioso argumento - as despesas com forças armadas podem tornar a paz
mais insuportável do que uma guerra curta;
d) Que não contraiam dívidas públicas para financiamento de inicia-
tivas de política externa, o que - outro curioso argumento - pode levar à
constituição de tesouros a todo o tempo mobilizáveis para a guerra;
e) Que não interfiram, pela força, nas escolhas e nos conflitos de
política interna de outros Estados;
f) Que não recorram a práticas de guerra pérfidas (como assassinatos
políticos, desrespeito de actos de rendição, instigações à traição, etc), as
quais, destruindo a confiança em acordos futuros de paz, são propensas a
estimular guerras de extermínio.

Devo dizer que este elenco de requisitos negativos para a paz consti-
tui, no seu conjunto, uma introdução relativamente decepcionante, ou
assim o julgo. Não tanto por algumas trivialidades que se não priva de
exibir, mas sobretudo porque o seu acolhimento generalizado pressuporia
que a paz já reinasse nas relações internacionais. No fundo, cai-se na
armadilha frequente de propor para um problema medidas cuja adopção
supõe que o problema se encontra resolvido.
Com a passagem aos "artigos definitivos", as coisas mudam de figu-
ra. Dir-se-ia que o poderoso pensamento de Kant começa energicamente
a pensar.
E que nos propõe ele de essencial? Três proposições, qual delas a
mais significativamente importante.

perado nos estudos kantianos mais recentes como um dos textos centrais das filosofias
da história e jurídico-política de Kant.
40 João Lopes Alves

É bem conhecido e comentado que Kant designa, em primeiro lugar,


como condição necessária de paz entre os Estados, a instauração genera-
lizada de constituições políticas de modelo republicano e, em segundo
lugar, que advoga a criação de uma sociedade ou liga de Estados livres
(de constituição republicana, está implícito) com o objectivo (restrito) de
dirimir os conflitos inter-Estados por meios pacíficos.
Por último, Kant propõe a definição de um direito de cidadania
cosmopolita, circunscrito à institucionalização de condições de hospitali-
dade universal, não como máxima filantrópica, mas sob forma de regra
jurídica em sentido próprio.
As condições de viabilidade de um estádio de paz perpétua articu-
lam-se em torno a este feixe de requisitos. Vale a pena examinar um pou-
co mais em pormenor o conjunto do esquema e o alcance de cada uma
das suas componentes.
É visível que o traço profundo da combinatória kantiana passa pela
conjugação entre factores de ordem política interna (o modelo constitu-
cional republicano) e factores externos (liga de Estados e cidadania cos-
mopolita). E, mais marcante ainda, que a peça de charneira do conjunto
consista no republicanismo do Estado. Com efeito, a ideia chave de Kant
não é que a sustentação da situação de paz perpétua entre os povos assen-
te apenas na convenção de uma sociedade universal de Estados, ideia
muito antiga na tradição europeia e que ganhara frescura renovada no
Projecto de Paz Perpétua, quase contemporâneo, do Abade de Saint¬
-Pierre. Verdadeiramente inovadora e percuciente é a ideia de que a Liga
de Estados deva ser formada por parceiros politicamente homogéneos, e
que a homogeneidade se apure com referência à formatação constitucio-
nal dos colectivos políticos segundo os princípios republicanos do "Esta-
do de Direito".
Com flexiblidade suficiente como para acomodar regimes de monar-
quia constitucional, o que, aliás, permite repudiar qualquer forma de
autocracia , o republicanismo kantiano ampara-se nos termos do núcleo
11

duro conceituai da figura que entrou na terminologia jurídico-política sob


a denominação de "Estado de Direito". Grosso modo, um modelo consti-
tucional baseado na separação entre poder legislativo e poder executivo,
na igualdade dos cidadãos perante a lei e na formação das leis de modo
que os cidadãos as aceitem como se nelas houvessem consentido. Não se
quer dizer com isto que o republicanismo de Kant corresponda, ponto por

11
Consistindo os pontos nodais do republicanismo kantiano na separação do poder exe-
cutivo e do poder legislativo, como princípio constitucional, e no sistema representati-
vo como forma de governação, sem o modo republicano de governar, remata Kant,
"todo o governo é despótico e violento (seja qual for a sua constituição)": (Kant, 1988,
p. 14).
Da guerra e paz como questão filosófica 41

ponto, ao Estado demo-liberal tal hoje entendemos o conceito. Designa-


damente, o "contrato social originário" de Kant, pura "ideia de razão",
não exige que a vontade popular se manifeste historicamente; o decisivo é
que o legislador produza as leis como se elas derivassem da vontade
comum e cada cidadão seja considerado como se houvesse dado o seu
consentimento àquela vontade. Movemo-nos, assim, no que concerne à
vontade política, num mundo de ficções jurídicas em sentido próprio,
ancoradas no princípio tipicamente kantiano do "ais ob" que prescinde de
confirmações fácticas.
Ao lado da novidade do republicanismo, acabam por aparecer como
aspectos quase menores as exclusões de cidadania activa em razão da
falta de independência económica ou do estatuto familiar e do sexo, que
Kant também acolhe, não se emancipando do fundo ideológico das aper-
tadas malhas censitárias do primeiro liberalismo. Mas é indiscutível que,
embora peado por limitações epocais, o republicanismo kantiano exprime
um modelo de constituição gerador de regimes de tipo representativo em
que a vontade dos cidadãos ganha de direito o estatuto de causa primeira
das escolhas, conquanto ao nível de abstracção acima referenciado, e, o
que é verdadeiramente determinante, eleva-se ao papel de condição obri-
gatória do estádio de paz perpétua entre os povos.
O abandono das decisões de paz e de guerra ao poder absoluto dos
príncipes de "Ancien Régime" é, pois, banido sem ambiguidade dos
caminhos de emancipação da humanidade como ente de razão, por cuja
abertura Kant pugnou intelectualmente sem descanso. No fundo, diz-nos
que, sem o "estado de paz" dentro dos Estados a que a constituição repu-
blicana dá forma, não há espaço para o estado de paz entre os povos.
A suspicácia de Kant acerca da aceitação espontânea, pela vontade
humana, dos juízos da razão, mesmo os que pareceriam mais consensuais,
tais os que sinalizam a paz como bem precioso a obter e a preservar, isto
a par de certezas sombrias acerca da "maldade da natureza humana",
terão contribuído para a sua coincidência com a proposta de Saint-Pierre
de criação convencionada de uma liga ou federação "de tipo especial" (a
expressão é de Kant), na verdade uma "federação de paz ifoedus pacifi-
cum)", estritamente defensiva, contra as ameaças de guerra, que, indo
incomensuravelmente mais fundo do que os tratados de paz ordinários,
destinados a terminar guerras "empíricas", visaria pôr fim à GUERRA.
Este desiderato, o mais ambicioso a que se pode almejar no relacio-
namento internacional, requereria a garantia de que os Estados membros
fossem internamente livres e governados sob o império do Direito. Situa¬
-se aqui a principal fractura entre o Projecto de Saint-Pierre e o de Kant,
pois, alheio à exigência de republicanismo, o Abade deixava as decisões
ao poder tendencialmente absoluto dos governantes. Bem pesadas as
coisas, tratar-se-ia de uma Liga não de povos, mas de Príncipes. Ora, para
42 João Lopes Alves

Kant somente numa república, não de súbditos, mas de cidadãos, se pode


presumir com legitimidade teórica o seu consentimento racional para
decidir da paz e da guerra, pois apenas cidadãos detêm o atributo de
autonomia de juízos própria de sujeitos livres. Só num povo de entes
livres é de supor, nas decisões, o genuíno conhecimento de causa de
quem paga os custos e suporta as terríveis provações da guerra; pelo con-
trário, numa constituição não republicana, decidir a favor da guerra é
coisa de somenos para o principe que não a paga nem a sofre (Kant,
1988, p. 129).
Duas questões críticas irrompem, então como hoje. Por um lado, a
questão da coercibilidade na imposição de arbitragens da federação opos-
tas ao interesse imediato de um Estado soberano; de facto, quem coage, e
com que meios? Foi este vazio nas relações internacionais que justificou,
vimo-lo atrás, a descrença de Rousseau sobre as possibilidades de se
implantar uma situação de paz permanente entre os Estados e constitui
um desafio central num pensamento como o de Kant que atribui à coer-
ção <Zwang> o papel de critério distintivo do Direito. Por outro lado, fica
em aberto a questão de se determinar se o objectivo da federação deve
(ou não deve) suscitar algo como uma forma de governação mundial que,
sustentando-se num "contrato social" inter-Estados, controlaria a situação
de anarquia nas relações internacionais, analogamente ao "contrato origi-
nário" entre indivíduos para controlo da selvajaria do estado de natureza
pelo advento do Estado de Direito.
Ora, é interessante que Saint-Pierre correspondesse ao problema da
coerção com uma resposta clara e linear, adequada à situação o suficiente
para, no essencial, reaparecer uns duzentos e trinta anos depois na Carta
das Nações Unidas, enquanto que Kant, neste particular, vacilasse. No
Projecto de Saint-Pierre, a liga ou federação de Estados é dotada de um
órgão judicial, designado pelos soberanos membros, para decidir por via
processual pacífica os litígios entre as partes e tem assegurados, pelos
Estados, os meios de impor, manu militan se necessário, contra algum
Estado prevaricador o cumprimento das decisões da Liga e, de um modo
geral, prevenir ou reprimir actos que violem, ou ameacem violar, o com-
promisso de paz. Prevê-se, assim, um dispositivo de garantia coerciva que
pode ir até fazer-se guerra ao serviço da paz. E discutível, como comenta
Miguel Morgado, se esta modalidade de beligerância, no contexto do
Projecto, configura o conceito técnico-jurídico de guerra, ou se tem mais
"o carácter de uma acção policial do que propriamente militar" (Morga-
do, 2006), mas, como quer que seja, aparece desenhado um sistema de
paz sem pacifismo em que se não prescinde do recurso à força para elidir
a guerra.
Kant não se pronuncia sobre a solução de Saint-Pierre, nem propõe
alternativas. Talvez lhe repugnasse que uma Liga de Estados livres e
Da guerra e paz como questão filosófica 43

soberanos fosse dotada do poder de fogo bastante para fazer guerra a


algum deles. Mas não se pronunciando, condena-se a ficar por injunções
excessivamente vagas sobre a coactividade das leis internacionais, o
mesmo é dizer sobre a sua efectiva obrigatoriedade. Assim, escreve na
conclusão da defesa do segundo artigo definitivo para a Paz Perpétua
(que o direito das gentes se deve fundar numa federação de Estados
livres):

"Os Estados com relações recíprocas entre si não têm, segundo a


razão, outro remédio para sair da situação sem leis, que encerra sim-
plesmente a guerra, senão o de consentir leis públicas coactivas'"
(Kant, 1988, p. 136; sublinhados meus).

Isto, tal os homens singulares prescindem da sua liberdade selvagem


(sem leis) a favor de um poder supra omnes "artificial" que controle os
malefícios e sofrimentos da violência anárquica. Ressaltam desta passa-
gem duas notas: por um lado, a indestrutível confiança de Kant na bonda-
de dos veredictos da razão, o que no seu pensamento vive em tensão
constante com a desconfiança acerca da aceitação espontânea das deci-
sões racionais pelos interessados; por outro lado, a óbvia insuficiência da
resposta ao problema que enfrenta, no caso o da necessidade de leis na
esfera internacional dotadas de amparo coercivo. No fundo, Kant limita¬
-se a enunciar o problema, ao passo que Saint-Pierre foi à procura de uma
solução.
A resistência à ideia de dar resposta ao problema com a instauração de
um "Estado de Povos" que no limite "abrangeria todos os povos da terra" é
mais argumentada. Kant não exclui que a ideia possa ser correcta m thesi
mas duvida fortemente da sua aceitabilidade in hipothesi. E, de facto, são
convocáveis vários argumentos contra. Limitando-me a uma resenha sim-
plicíssima, temos problemas práticos de governabilidade, do que as dificul-
dades políticas dos grandes impérios históricos dão bons retratos en rac-
courci; o risco, para não dizer certeza, de formas de governação despótica
(outra vez a História o confirma, a uma escala que a dimensão da república
mundial transcenderia vertiginosamente); a extrema violência revolucioná-
ria (é o termo!) que tal empresa exigiria para ser levada a cabo, com efeitos
de sofrimento humano provavelmente superiores aos benefícios esperados.
E interessante, a propósito, registar a mesma preocupação em Rousseau,
feita relativamente ao Projecto de Saint-Pierre mas comentando no caso de
espécie a ideia de uma Liga da cristandade europeia que Henrique IV e o
ministro Sully tinham preconizado, sem êxito:

"... Devemos admirar um plano tão belo e ter o consolo de não o ver
em execução, pois tal não seria possível senão por meios violentos e
44 João Lopes Alves

temíveis para a humanidade [...] Qual de nós se atreveria a dizer que


esta Liga Europeia é de desejar ou que é de temer? Talvez produzisse
mais desgraças de um só golpe do que as que evitaria durante sécu-
los' . (Rousseau, 1964,OC, III, p. 600)
1

Kant observa na Doutrina do Direito que os obstáculos que tomam


irrealizável alguma associação universal de Estados acabam por submer-
gir do mesmo passo, no imediato, a ideia de paz perpétua. Mas já é
admissível que os princípios que apontam no sentido da formação da
associação universal se configurem como "meios de aproximação contí-
nua a essa ideia", fundados num dever que é também direito das pessoas
e dos Estados (Kant, 2005, p. 238). Esta disposição de paciência históri-
ca, caracteristicamente kantiana, explica os contornos defensivos da fede-
ração de Estados livres. Para que "nem tudo se perca" (Kant), propõe-se o
sucedâneo negativo de uma federação contra a guerra, de funcionamento
permanente e em expansão contínua, embora sob o perigo constante de a
guerra voltar a irromper (Kant, 1988, p. 136). Trata-se, pois, de uma fede-
ração de finalidade limitada, cujo objectivo único consiste em afastar o
recurso à guerra para resolver conflitos entre os Estados. Note-se que não
se pressupõe a abolição do conflito, ou mesmo relações amistosas entre
os indivíduos e os Estados, mas tão-somente (um somente enorme, con-
venhamos) a juricidade dos diferendos, neutralizada a guerra. Doutro
modo, os Estados continuarão a resolver disputas "de forma bárbara (à
maneira dos selvagens), quer dizer, por intermédio da guerra" (Kant,
2005, p. 239). E barbárie é o que, desgraçadamente, não tem faltado nos
percursos da História.
O direito cosmopolita a que se refere o terceiro artigo definitivo para
a paz perpétua não deve ser dissociado deste cenário de federalismo frou-
xo. Embora reivindique ser, mais do que uma máxima filantrópica, uma
regra de direito, restringe-se a significar "o direito de um estrangeiro a
não ser tratado com hostilidade em virtude da vinda ao território de
outrem". E, diz Kant, um direito à hospitalidade (Kant, 1988, p. 137).
Não é, porém, uma noção irrelevante ou simplesmente um ideia
curiosa, como comentou Hannah Arendt em momento menos inspirado.
Em primeiro lugar, porque atribui ao indivíduo, na sua singularidade, o
papel de sujeito de direito internacional, abrindo o caminho de uma cida-
dania mundial, e isto é tudo menos despiciendo. E, ao acentuar que o
direito de visita contempla obrigações bilaterais, nem o visitado devendo
agredir o visitante, nem o visitante agredir o visitado, o que põe implici-
tamente em tela de juízo toda a crónica de ignomínias da colonização
europeia moderna , Kant conclui este tópico no Para a Paz Perpétua, de
12

1 2
Sobre este tópico, v. o comentário sucinto e esclarecedor de Terra, 2004, pp. 51-4.
Da guerra e paz como questão filosófica 45

forma surpreendente pela amplitude de vistas, antecipando muitos dos


nossos temas, leitores de hoje, sujeitos e pacientes da chamada globaliza-
ção mundial:

"Como se avançou tanto no estabelecimento de uma comunidade


(mais ou menos estreita) entre os povos da Terra que a violação do
direito num lugar da Terra se sente em todos os outros, a ideia de um
direito cosmopolita não é nenhuma representação fantástica e extrava-
gante do direito, mas um complemento necessário de código não
escrito, tanto do direito político como do direito das gentes, num direi-
to público da humanidade em geral e, assim, um complemento da paz
perpétua, cuja contínua aproximação só é possível encontrar sob esta
condição". (Kant, 1988, p. 140)

Encerrando este capítulo, ainda direi que encontramos em Kant uma


grande ambição no objectivo e uma modéstia cautelosa no processo. O
sereno filósofo de Konigsberg nutre a ambição enorme de melhorar o
mundo, e, neste aspecto, herda a benefício de inventário a grande tradição
militante do jusnaturalismo racionalista moderno; mas guarda também a
prudência de preconizar processos que, por um lado, sejam praticáveis
segundo as luzes comuns do entendimento e, por outro, não façam correr
o risco de provocar mais sofrimentos do que aqueles que se pretende
suprimir. Não deixa por isso de ser irónico que o tenham acusado de uto-
pismo irrealista, quando um dos seus cuidados principais foi o de ladear
as quimeras da utopia.
Porém, a era das revoluções calçara as botas de sete léguas, como
dirá Hegel. O republicanismo de Kant é inseparável de uma leitura ilumi-
nista restritiva das revoluções americana e francesa que tinham criado as
primeiras repúblicas de grande porte da idade moderna; só que essas
revoluções seguiram vias que não foram as entreabertas pelo pensamento
kantiano. As fases revolucionárias sucedem Napoleão, a Santa Aliança,
os prenúncios do imperialismo norte-americano, e o pacifismo de Kant
quebra-se contra o adamastor da guerra. O espírito do tempo toma o
nome de Hegel.

3. Hegel: a guerra como empresa racional

Sabe-se que a filosofia hegeliana da guerra é um dos aspectos que


contribuiu fortemente para algumas das vagas de incompreensão hostil
que, bom ano mau ano, distorcem a correcta receptividade do pensamento
de Hegel em geral. Se Kant ganhou no quadro de honra da tradição filo-
sófica ocidental o lugar de filósofo da Paz, e é justo que tenha ganho,
Hegel foi consideravelmente incompreendido por efeito da má reputação
46 João Lopes Alves

de parecer um filósofo da guerra. A qualificação até talvez não seja de


todo despropositada, mas devemos entender-nos sobre o que pode signi-
ficar dizer-se que Hegel é um filósofo da guerra. Ora, tal como a questão
da paz não é exterior à nervura da filosofia de Kant, antes se situa no
íntimo dessa filosofia (cf. cap. supra), a compreensão do pensamento de
Hegel sobre a guerra é indissociável das linhas de força da sua filosofia.
O filósofo que se propôs pensar o "real" como razão em acto e o
"racional" como expressão consciente dos avatares da realidade - "was
vernünftig ist, das ist wirklich; und was wirlkich ist, das ist vernünftig" -
e para quem "a História é a figuração do Espírito sob forma de aconteci-
mento" (Hegel, 1974, § 348), não poderia abster-se de questionar um
fenómeno recorrente nos percursos da humanidade com uma persistência
aparentemente perene. Por outro lado, ao imperativo filosófico sempre se
acrescentariam os desafios do tempo próprio. Realmente, seria dar mos-
tras de grande distracção filosófica passar ao lado do sentido da guerra
quando se vive ao longo de toda uma época marcada pelo seu uso como
instrumento reflectido de desígnios revolucionários e contra-revolucio-
nários (Revolução Americana, Revolução Francesa, Império napoleónico,
Santa Aliança) e, no mesmo movimento, se redesenha à ponta de baioneta
o mapa político mundial. Uma época, portanto, em que a guerra pode ser
pensada como a arma de última instância da razão política. Na conhecida
tipologia de concepções ideológicas da guerra que Rapoport delineou - a
escatológica (que vê na guerra o 'erzaíz' paroxístico de realização de
grandes desígnios providenciais - divinos, naturais ou humanos - tais
como guerras santas, consagração da raça eleita, revolução do proletaria-
do redentor, cumprimento do destino manifesto dos EUA, etc.); a cata-
clísmica (a guerra seria como um flagelo de Deus punitivo dos desman-
dos da humanidade, ou uma catástrofe natural que foge aos cálculos e
manobras de políticos e generais); a política (a guerra como instrumento
racionalmente controlado de objectivos políticos: Rapoport, 1976, pp. 8
ss.), a época hegeliana representa incontestavelmente, e no terreno que
não só nas ideias, o predomínio de uma concepção política do fenómeno¬
-guerra. Não surpreende, por isso, que pensadores da grandeza de Fichte,
de Hegel, de Clausewitz, de certo modo também Kant enquanto pensador
da Paz, sejam, a par de nomes menos significativos na história das
ideias , referências capitais da procura da razão-de-ser do papel da guer-
13

ra na história dos conflitos humanos.


Na apreciação do filósofo de Berlim, "a guerra de nenhum modo
deve ser vista como um mal absoluto ou um puro acidente" (Hegel, 1974,
§ 324) e esta perspectiva distancia-o imediatamente da guerra como o

Merece uma chamada de atenção a qualidade, na senda de Clausewitz, de obras de


oficiais do Exército prussiano, como R.V. Lilienstern e A.v. Gneisenau.
Da guerra e paz como questão filosófica 47

cenário de horror sanguinário que Rousseau abominava, ou a manifesta-


ção de selvajaria não racional aduzida por Kant. Com Hegel, a guerra
respeitabiliza-se como empresa de razão. Mas não de qualquer maneira,
nem a qualquer preço. A mais-valia racional da guerra não é um valor
absoluto, deve observar limites na violência e seguir normas de conduta.
Antes de examinar, na especialidade, os limites e as normas, há que
não esconder, à partida, o carácter altamente discutível desta orientação
de pensamento de, na generalidade, se incluir o fenómeno-guerra do lado
de dentro da razão.
Que se tome a guerra como alvo da reflexão filosófica nem é de
estranhar (estranho é ignorá-la), nem é novo (lembre-se apenas, nas inevi-
táveis origens gregas, os fragmentos do enigmático Heraclito sobre as
virtudes genesíacas da guerra, inspiradores de toda uma ilustre descen-
dência de pensamento). Mas tomar a guerra a sério não inculca necessa-
riamente qualificá-la como acto de razão. Pode mesmo dizer-se que a
propensão mental mais frequente consiste em, contrariamente, repelir a
guerra para zonas de aberração irracional. Tolstoi, na esteira de Schope¬
nhauer e mobilizando para o pleito todo o seu portentoso génio literário, é
um defensor bem persuasivo desta atitude intelectual . Mesmo na pers-
14

pectiva hegeliana do "real que é racional e do racional que é real", com a


sua astúcia característica de fazer significar as monstruosidades irracio-
nais como elementos a contrario do processo da razão, não se estaria
inibido de, sem deixar de reconhecer que a guerra faz parte integrante da
história da humanidade, avaliar o fenómeno como uma das doenças
infantis da evolução da espécie, revogável ou superável pelo amadureci-
mento paulatino dos valores racionais. Por esta rota se encaminhou a
reflexão kantiana, como aflorei no cap. anterior. Mas não Hegel. Para ele,
não há que apresentar desculpas em nome da razão pelos factos de guerra.
Mais: como uma das malhas que a razão tece, Hegel vê na guerra um
factor positivamente insuperável da dimensão ética do homem.
Na verdade, ao longo do seu percurso intelectual, desde os escritos
de juventude até aos de maturidade, Hegel sempre atribuiu à guerra
papéis de primeira importância na economia geral do sistema da ética,
actuantes uns na constituição interna dos Estados, outros, na "soberania
para o exterior" <Die Souverãnetat gegen aussen>, dentro do campo de
acção das relações internacionais.
Na esfera intema, a guerra configuraria um factor positivo de reali-
zação da ética porque determina um grau de exigência cívica capaz de
arrancar drasticamente o homem "privado" do casulo dos seus interesses
particulares, compelindo-o, a golpes de sofrimento e sacrifício, no limite
o sacrifício da própria vida, a tomar consciência de que o seu ser indivi-

1 4
Sobre o tema, Philonenko, 1980, pp. 181-91.
48 João Lopes Alves

dual, para subsistir e desenvolver as potencialidades humanas próprias, é


devedor da pertença a um todo colectivo que transcende os círculos restri-
tos da família, da propriedade e dos mesteres. "No estado de guerra a
futilidade das coisas e bens temporais, objecto, em tempos de normalida-
de, de tantos tropos edificantes, passa a ser tomada a sério". (Hegel, 1974,
§ 324). A lei do todo em guerra pode impor o sacrifício de "bens, opi-
niões, e tudo o mais que se contém na existência singular" (Idem). Trata¬
-se de uma situação extrema de suspensão dos direitos do indivíduo e, se
tal for preciso, de sacrifício do direito supremo à vida própria, perante um
estado de necessidade colectivo que não tolera tergiversações. No fundo,
"War is ... the ultimate proof that the values of civil society are only rela¬
tive" (Avineri, 1974), p. 196. Repito que a ideia não é inédita, nem é rara,
mas isso não quer dizer que seja indiscutível. Há uma grande plétora
especulativa, seja na assunção das virtudes de educação ética da guerra, à
Hegel, seja no seu contrário, pois também é possível sustentar que um
ambiente de guerra pode estimular, em vez de dissolver, o egoísmo indi-
vidual, levando-o mesmo a extremos de ferocidade por imperativos de
sobrevivência. O mais provável é que, num estado de guerra, ambas as
propensões coexistam e, por vezes, nos mesmos homens. De facto, a
guerra é um grande alimentador de protocolos de ambivalência como, de
outro ponto de vista, Hegel salientou no célebre artigo sobre o Direito
Natural, de 1802-3 : as inter-relações dos povos oporiam o lado positivo
15

da "igual e calma subsistência de duas individualidades, coabitando em


boa paz" e o lado negativo da auto-afirmação agressiva de cada povo
perante os outros. Hegel enuncia aqui uma ideia a que se manterá fiel e
que é basilar na sua teoria da guerra: aquele confronto é animado pela
energia dramática de significar um choque entre direitos absolutos - o
absoluto que cada povo encarna - e é a impossibilidade de dirimir pelo
julgamento da razão dois absolutos um dos factores que faz da guerra
uma prática histórica necessária.

"Na rivalidade que opõe os Estados uns aos outros, quando as vonta-
des particulares de cada um deles não alcançam resolver os seus dife-
rendos por negociação, somente a guerra pode decidir" (Hegel, 1974,
§ 334).

Hegel sugere, pois, que entre direitos iguais perante os juízos da


razão decidem as razões da força. O vencedor não ganha mais razão por
que vence; é simplesmente o que vence.

Título completo: "Sobre as maneiras de tratar cientificamente o Direito Natural, seu


lugar na filosofia prática e relação com as ciências positivas do Direito".
Da guerra e paz como questão filosófica 49

Em ligação com a temática da guerra, deve-se ainda a Hegel uma


cuidada teoria da instituição militar e do soldado. As guerras entre os
Estados podem implicar que se morra em favor do todo, e, de facto, não
seria preciso que os filósofos no-lo lembrassem. A esta capacidade,
quando assumida reflectidamente, chama Hegel "virtude de bravura". O
militar é o tipo humano que adopta a bravura como dever de profissão. O
seu perfil profissional significa assim uma como que "corporativização"
do risco de morte ao serviço do todo que o Estado personifica. Note-se
que a assunção da bravura como dever profissional permanente do militar
não exime os mais cidadãos de comprometerem bens e vida sempre que
estejam em jogo situações de ameaça à existência independente do Estado:

"Os diferendos entre Estados podem dizer respeito a qualquer aspecto


das suas relações. A classe particular consagrada à defesa do Estado <
a classe militar > tem por missão cuidar destes conflitos. Mas quando
o Estado enquanto tal for ameaçado na independência, o dever chama
à sua defesa todos os cidadãos" (Hegel, 1974, § 326).

Neste contexto conceptual, dificilmente se pode fugir à valorização


ética da condição militar. Pois, o que

"mesmo para o selvagem aparece como objecto de máxima admira-


ção? Um homem que não se apavora, que não teme, que, portanto, não
cede ao perigo, mas ao mesmo tempo procede energicamente com
inteira reflexão. Até no estado maximamente civilizado prevalece este
apreço superior pelo guerreiro (....) Por isso se se pode ainda polemi-
zar quanto se queira na comparação do estadista com o general sobre a
superioridade do respeito que um merece perante o outro, o juízo esté-
tico decide a favor do último".

Hegel? Não, Kant!! E o filósofo da Paz Peipétua diz mais algumas


coisas à primeira vista nele surpreendentes:

"Mesmo a guerra se é conduzida com ordem e no sagrado respeito


pelos direitos civis, tem em si algo de sublime e ao mesmo tempo tor-
na a maneira de pensar do povo que a conduz assim tanto mais subli-
me quanto mais numerosos eram os perigos a que estava exposto e
sobre os quais tenha podido afirmar-se valentemente. Contrariamente
uma paz longa encarrega-se de fazer prevalecer o espírito mercantil,
porém com ele o baixo interesse pessoal, a covardia e moleza, e ainda
de humilhar a maneira de pensar do povo" (Kant, 1992, p. 160).

O que ressalta em primeiro lugar deste trecho de Kant é que a valori-


zação ética da guerra e do guerreiro não representava um exclusivo de
Hegel mas algo que circulava no espírito do tempo; em segundo lugar,
50 João Lopes Alves

que Kant, a chamar-se-lhe pacifista, era tudo menos um pacifista ingénuo,


incapaz de ajuizar o fenómeno-guerra senão como mal histórico absoluto.
Kant não hesita mesmo em falar da guerra como "algo de sublime". E
sublime, porque, para Kant, tal como mais tarde para Hegel, pode dizer¬
-se que a guerra faz falta à higiene cívica dos povos.
Se quisermos confrontá-lo directamente às ideias hegelianas, o
"pacifista" Kant evidencia o aspecto paradoxal de uma admiração entu-
siástica pela figura do soldado que não encontramos tão marcada em
Hegel. E que para este a guerra só vale dentro dos estritos parâmetros
conceptuais da sua filosofia geral de compreensão da razão-de-ser íntima
daquilo que as coisas são. Donde que a "virtude de bravura" se recorte,
para o militar, como virtude apenas formal. O valor efectivo da bravura
prende-se exclusivamente ao seu fim último de defesa da soberania do
Estado (Hegel,1974, § 328). De facto, "the courage of the warrior is not
simply the courage of risk but the courage of risking one's life for the
sake of an ethical ideal" (Verene, 1972, p. 179). Bravos podem ser os
ladrões, os assassinos ou os aventureiros movidos pela ganância de
ganhos materiais, também eles podem exibir a coragem de arriscar a vida
pelos seus desígnios, mas daí não vem qualquer valia ética nem para os
desígnios, nem para a coragem (Hegel,1974,§ 328). O que valoriza eti-
camente a bravura como atributo de classe do soldado não são as proezas
espectaculares ou os sacrifícios nos teatros de guerra mas que proezas e
sacrifícios se produzam ao serviço da finalidade universal de defesa do
Estado. Assim, a bravura do homem de guerra vale no mundo moderno
não a título de virtude pessoal de um indivíduo mas como o contributo de
"um membro do todo". Donde - observação fundamental para se com-
preender o alcance e limites da guerra no pensamento hegeliano e que
lembra as passagens de Rousseau sobre a guerra como choque não entre
indivíduos mas entre Estados - que a coragem militar deva ser dirigida
não contra "outras pessoas tomadas individualmente, mas contra um
outro todo hostil em geral, de maneira que a coragem pessoal aparece
como coragem que já não é pessoal", mas algo de "mecânico", que se
inscreve no espírito de universalidade que caracterizaria a era modema. A
invenção das armas de fogo não teria sido alheia a esta disposição do
Espírito, antes a reforçaria, "e não foi por acaso que a invenção de tais
armas transformou o aspecto puramente pessoal da coragem num aspecto
mais abstracto" (Hegel, Idem).

O corolário é que, diferentemente dos lugares comuns da copiosa


literatura de panegírico das virtudes do guerreiro em torno aos actos de
destruição exercidos sobre outrem, a violência triunfante não merece de
Hegel qualquer acolhimento de glorificação. A mais-valia ética atribuída
à guerra estriba-se nos valores patrióticos de defesa do Estado, e tanto
melhor se se puder prescindir de arrojos pessoais nos campos de batalha,
Da guerra e paz como questão filosófica 51

como o armamento moderno permite. No fundo, "Hegel propõe que na


era do advento da ciencia filosófica se deve converter as guerras em
puros actos de razão, poupando o mais possível nas emoções e nos
heroísmos. Aquiles e Heitor tornaram-se excedentes de mão-de-obra
desejavelmente dispensáveis". (Alves, 2004, p. 254)
Aliás, note-se que, como exercício no terreno, as virtudes da guerra
são preponderantemente negativas. Se a guerra pode desempenhar o seu
papel de termocautério ético que relativiza o relativo é porque gera limi-
tações dolorosas aos direitos individuais, transporta destruição e prova-
ções, suscita pavores e sofrimento. Afinal, aquilo que, segundo Hegel,
são os espaços da positividade - autonomia da pessoa, livre pensamento,
reconhecimento recíproco dos direitos, vida de família - caem todos do
lado da Paz.
Precisamente por isso um dos traços cruciais da filosofia hegeliana
da guerra consiste na ideia de que a finalidade racional última de qual-
quer guerra deve ser a definição dos termos da Paz- "War in Hegel's
account is not an act of total destruction undertaken by one nation against
another" (Verene, 1972, p. 171). A guerra (como empresa de razão) serve
não para destruir mas para decidir disputas entre os "direitos absolutos"
de cada Estado beligerante. Num quadro de racionalidade, a paz que pre-
serve a sobrevivência do vencido deve figurar sempre como horizonte
indefectível da guerra. Assumindo com toda a nitidez que as guerras
"racionais" são por definição conflitos entre Estados, a posição de Hegel
é claríssima acerca dos limites "civilizados" que devem circunscrever o
conflito

"Devido ao facto de os Estados se reconhecerem mutuamente como


tais, subsiste entre eles uma ligação de respeito recíproco como deten-
tores de um valor em si e para si. Daí que no decurso das guerras a
própria guerra se determine na perspectiva de não ser uma situação
perpetuável. A guerra comporta, assim, a regra do direito das gentes
de que se preserve a possibilidade de paz e, por exemplo, se respeitem
os embaixadores, além de que não deve ser dirigida contra as institui-
ções internas e a pacífica vida familiar e privada, ou contra os civis
<privat Personenx (Hegel, 1974, § 338)

E, sabe-se, a protecção dos não-combatentes permanece até hoje


como preocupação preventiva e repressiva axial da legislação internacio-
nal vigente sobre os actos de guerra.
E abissal o fosso que separa esta concepção estritamente político¬
-militar da guerra e a "Weltanschauung" de guerra pela guerra, de adora-
ção da violência, de cultivo do ódio ao estrangeiro, de vontade demencial
de domínio, que alimentará o imaginário de não poucos delírios ideológi-
52 João Lopes Aives

cos que haveriam de povoar com terrível impacte os nossos tempos,


como foi o caso dos nazi-fascismos. Vale a pena sublinhar a diferença,
pois o pensamento hegeliano foi aproximado destas patologias com sur-
preendente irreflexão, por parte de alguns autores . Mas não seria apro-
10

priado opostamente querer adoçar as ideias de Hegel como se não postu-


lassem que a guerra é um ingrediente positivamente constitutivo da
história humana. É certo que para Hegel o destino da guerra deve consis-
tir em preparar a paz, que a guerra deve ser comandada não pelo ódio mas
pela razão, que, como tal, deve deixar de fora dos seus cenários de des-
truição pessoas e infraestruturais civis, que o filósofo de Berlim veria o
sinistro conceito de "guerra total" estimulado pela alta tecnologia indus-
trial-militar como algo de criminoso, mas não por isso a guerra deixa de
ser GUERRA. E não por isso deixa de ser diagnosticada por Hegel como
um elemento de que se não pode prescindir nas relações entre Estados, se
se quiser desatar nós górdios. Mais: sem a guerra o espírito de solidarie-
dade activa dos membros de um povo amoleceria nos cálculos do comér-
cio e dos egoísmos privados. Perpetuar a guerra seria uma aberração do
espírito que a razão repele; querer perpetuar a paz, uma perigosa ilusão
ou, pior, um pantanoso factor de decaímemto cívico.
Situa-se neste ponto fulcral o desencontro entre a esperança kantiana
da paz perpétua e a valorização hegeliana da guerra nas dialécticas da
História. Há nas Grundlinien der Philosophie des Rechts de Hegel uma
critica directa ao Projecto de Kant que vale a pena reter:

"Não existe pretor que decida os diferendos entre Estados. Quando


muito existem árbitros ou mediadores que, em qualquer caso, inter-
vêm de maneira contingente, conforme a vontade particular dos Esta-
dos interessados. O projecto kantiano de paz perpétua, realizável por
uma federação de Estados - federação que resolveria os conflitos e
enquanto que potência reconhecida pelos Estados federados arbitraria
os diferendos, tomando impossível o recurso à guerra para obter deci-
sões - pressupõe a adesão unânime dos Estados. Só que uma tal deci-
são repousará sobre razões de ordem moral, religiosa ou outras e, em
última instância, estará sempre dependente de vontades particulares
soberanas, permanecendo, portanto, imersa na contingência" (Hegel,
1974, § 333).

Esta crítica mostra-se claramente insuficiente. Hegel passa por alto o


republicanismo kantiano na ordem interna e o direito cosmopolita de

1 6
Sem falar de intérpretes desprovidos de qualquer interesse, ou de obras historicamente
distantes como o clássico Hegel und seine Zeit (1857), de R. Haym, vejam-se os ata-
ques, não tão longínquos, de Popper em The Open Society, e, em polémica com
Pelczynski e Avineri, o artigo 'Hegel Rehabilited?' de S. Hook.
Da guerra e paz como questão filosófica 53

protecção individual na ordem externa. Ora, como apreciámos no


cap. anterior, estes dois elementos são verdadeiramente fundamentais na
economia do argumento kantiano. Se os deixamos na sombra, falhamos a
compreensão do alcance e pressupostos do projecto de Kant. Com efeito,
limitando-se a dirigir o foco da crítica sobre o federalismo de Estados,
Hegel obtém um ganho de causa fácil, pois, mesmo que, sem mais, se
alcançasse um pacto federativo como o proposto por Kant, o pacto ficaria
vulnerável às opções de governos nacionais movidos, por natureza e defi-
nição, pelos interesses particulares próprios. De facto, os governos dos
Estados são "formas de sabedoria particular, não de providência univer-
sal" (Hegel, Idem, § 337). Nada garante, excepto a pura contingência de
razões de poder, a perpetuidade dos tratados bilaterais ou multilaterais
que subscrevam. No fundo, o pacto kantiano seria ferido pela fraqueza
comum à generalidade do direito das gentes: a sua universalidade não
supera o nível do dever-ser, e por isso mesmo as relações entre Estados
alternam fases de respeito e fases de desrespeito dos tratados (Hegel,
Idem, § 333); quebrada a anuência - e pode sempre ser quebrada - a
necessidade da guerra como regulação de conflitos reaparece no horizon-
te. Revela-se aqui alguma coincidência de Hegel com Rousseau no que se
chamou atrás resignação à guerra, embora seja hiante a separação entre
ambos acerca da avaliação que fazem do fenómeno.
Sobraria a superação do recurso à guerra pela constituição de um
governo mundial. Se para Kant a ideia é aceitável em tese mas muito
dificilmente afirmável por hipótese, para Hegel nem isso. No pensamento
hegeliano, que não cabe desenvolver neste artigo, a pluralidade dos Esta-
dos particulares, com os seus atributos constitutivos de independência e
de soberania, é verdadeiramente o nec plus ultra "terreno" do que Hegel
denomina por Espírito Objectivo, círculo ideal compreensivo da "objecti-
vação" das obras humanas na história, na cultura <Bildung>, nas forma-
ções do relacionamento ético, maxime na política. A universalidade abso-
luta do Espírito - o denominado Espírito Absoluto - essa produz-se
apenas e tão-só como hegemonia das formas de pensamento nas figuras
da Arte, da Religião e da Filosofia . Na história política não se pode
17

esperar racionalmente, pouco importando aspirações sem suporte racio-

1 7
Retomando uma aproximação ultra-sinóptica: "Ao (re)descobrir-se como o "elemento"
comum das diferenciações históricas que o manifestam ou objectivam, o Espírito reco-
nhece-se o mesmo nas particularidades desta segunda natureza, instituída pela acção
humana (...) e pode, legitimamente, pensar-se como absoluto. Por três grandes vias de
realização se desenvolve a esfera do "Espírito Absoluto": a Arte, em que o Absoluto se
efectiva pela intuição e como forma; a Religião, que o realiza pelo sentimento e como
representação; enfim, a Filosofia (...) genuína "consciência" do Absoluto que nela
devêm diáfano como pensamento puro e emancipado que a si mesmo se pensa na iden-
tidade das suas várias figurações" (Alves, 1983, p. 140).
54 João Lopes Alves

nal, ir além da particularidade dos Estados, o que instala irremediavel-


mente a guerra (embora com os constrangimentos de "civilidade" acima
referenciados) na posição de árbitro de última instância dos conflitos
inter-estatais.
Aparentemente, o tribunal do mundo foi reconhecendo bastas razões
à razão de Hegel face às grandes linhas do contraposto projecto kantiano
de paz, e nem precisamos de desenvolver esta afirmação, de visível que
ela é. Devemos, no entanto, interrogarmo-nos se Hegel é tão convincente
quanto parece e Kant tão pouco.
Em primeiro lugar, como sublinhei atrás, no plano da interpretação
filosófica Hegel não convence. Omitir a análise da exigência republicana
na constituição interna dos Estados e da necessidade de um direito cos-
mopolita dos indivíduos fere de morte a procedência da crítica hegeliana.
Não é aceitável que se afaste com as costas da mão o projecto kantiano
sem pelo menos discutir estes dois pressupostos, explicitamente alegados
por Kant como essenciais, e a verdade é que Hegel nem sequer os men-
ciona. Por outro lado, mesmo quanto à efectividade do pacto federativo
de Paz, julgo que Kant não duvidaria também das suas fragilidades no
presente histórico. A proposta de Kant dirige-se claramente ao futuro, e a
um futuro longínquo, para ser atingido "pouco a pouco", com a paciência
da ideia que não tem pressa, em percurso que se sabe que vai ser feito de
avanços e de recuos.
Estas observações são, porém, de simples técnica hermenêutica e
valem o que valem. No confronto Kant/Hegel, realmente paradigmático,
o que mais deve interessar são as mudanças no rumo das coisas submeti-
das ao julgamento da razão. Mudam no sentido de Kant? Confirmam
Hegel? Infirmam ambos? Reservo algumas tentativas de resposta para a
breve conclusão seguinte.

4. Conclusão

Como vimos, a concepção de Hegel de que as relações internacio-


nais se fixam num insuperável "estado de natureza" tendencialmente
belicoso apoia-se em duas ideias basilares: por um lado, a de que a pre-
tensão kantiana de se constituir convencionalmente uma federação de
Estados para a Paz releva da pura contingência dos interesses que os
Estados envolvidos defendam como seus, o que mantém a guerra (efecti-
va ou virtual) como última ratio no solucionamento de conflitos críticos;
por outro lado, a ser assim, então as guerras apresentam-se como meios a
que se pode apelar para solucionar conflitos nos casos de esgotamento da
negociação diplomática. Mas este reconhecimento não garante de per si a
racionalidade das guerras, e muitas delas são, de facto, manifestações de
Da guerra e paz como questão filosófica 55

irracionalidade crassa ou brutal. Para se manterem dentro de padrões de


racionalidade, para serem conduzidas "com ordem e no sagrado respeito
pelos direitos civis", como pretendia Kant, as guerras devem ter um esco-
po militar restrito que deixe as populações civis a salvo dos efeitos de
destruição e visar sempre a reconstituição das possibilidades de paz.
Tais são os requisitos de que a guerra se cumpra como acto de razão.
Ora, assim como a invenção das armas de fogo, sublinhada por Hegel,
alterou os parâmetros dos factos de guerra e a própria essência da guerra,
o progresso da tecnologia militar do nosso tempo, ligado intimamente aos
desenvolvimentos tecno-científicos da grande indústria, devastou o cená-
rio hegeliano da guerra como empresa racional, por destruição dos seus
pressupostos.
De facto, os tremendos efeitos de destruição e os massacres colossais
das duas guerras mundiais do século X X fizeram da pretensão de civili-
dade da guerra segundo Hegel algo de brutalmente obsoleto. Com esses
desastres humanos, ganhou uma realidade temível a visão apercebida por
Clausewitz de que quanto mais grandiosos forem os motivos e os meios
postos em movimento pela guerra mais esta se aproximará da sua forma
abstracta e tenderá ao esmagamento do inimigo. Fins políticos e fins mili-
tares sobrepor-se-iam e a guerra seria cada vez mais guerreira e cada vez
menos política (Clausewitz, 1976, p. 88).
O conceito e a prática de guerra total, associada a carnificinas de
alta tecnologia, a envolver nas redes de violência e de devastação a gene-
ralidade das populações e todas as estruturas materiais da vida quotidiana,
contrariam drasticamente o pressuposto hegeliano de racionalidade que
consistiria na militarização à outrance da guerra, com exclusão dos civis,
ressalvados casos extremos de ameaça à independência nacional, Nos
cenários de guerra total, a tendência é para se inverter a equação: massa-
cram-se os civis e preservam-se os militares como recursos humanos
raros e de qualificação valiosa.
O surgimento e os progressos fulminantes do armamento nuclear,
que continuam eufóricamente o seu caminho, agora, segundo parece, no
sentido de uma miniaturização "táctica" facilmente manejável, levam às
últimas consequências o efeito filosófico, se me permitem dizê-lo assim,
subentendido em todos estes desenvolvimentos. A ideia chave de Hegel
é, como referi atrás, que a guerra pode ser, e nos casos de impossibilidade
da via negocial é mesmo, o único instrumento disponível para a solução
racional de conflitos entre Estados. A tecnologia militar avançada, com a
sua roleta russa de terrores geridos à beira do abismo, em que se põe em
jogo o cancelamento de qualquer futuro vivível para a inteira humanida-
de, trouxe algo de inédito à história do género humano: a suspeita para-
doxal de que o formidável potencial adquirido pelos meios de guerra
esvazia objectivamente a guerra de sentido útil. Dito de outra maneira: o
56 João Lopes Alves

recurso à guerra deixou de ser uma solução racional de conflitos. Persis-


tir num tipo de jogo competitivo que pode (e realmente pode) implicar a
aniquilação dos contendores e a desaparição do próprio campo de jogo,
recorta um caso limite intolerável de irracional idade da razão. Em perda
de pertinência pelo menos desde 1914-18, o paradigma hegeliano de
resignação ao "ser" da guerra caduca quando deflagram as bombas de
Hiroshima e de Nagazaqui. Em paralelo, o "dever-ser" kantiano da paz
reentra nos percursos da história.
Assegurar a paz num mundo de egoísmos em competição tornou-se
a preocupação maior dos povos, agora que o recurso à guerra, mormente
se envolver algum dos Estados que Hegel chama "os dominantes" numa
dada época, pode significar, na expressão de Michel Lacroix, um puro
e simples "humanicídio" (Lacroix, 1994). A emergência da questão
ambiental, em larga medida imbricada nas questões militares, traz um
fortíssimo acrescento ao arsenal dos terrores que nos afligem. A paz dei-
xou de ser questão de desejo ou opção ao lado de outras, para se nos
impor como a questão prévia de todas as questões. O futuro da humani-
dade, ou, mais precisamente, as possibilidades de que a humanidade
tenha um futuro, prendem-se inexoravelmente à viabilidade de um estado
de paz. Pensar a paz obriga a pensar uma dimensão cosmopolita dos des-
tinos humanos, e isto é Kant puro.
Esta ligação intrínseca do espírito do tempo ao espírito de Kant não
é para ser vista como um simples produto intelectual. Encontramo-la nas
realizações jurídico-políticas básicas do relacionamento internacional
(e, qualquer que seja o seu futuro imediato, a humanidade não as vai
esquecer, tal não esqueceu os contributos da Revolução Francesa, apesar
dos fracassos e até dos crimes revolucionários), nomeadamente a Carta
das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos do Homem
<DUDH>, fontes e inspiração de uma legislação de concretização densa e
diversificada que faz mancha de óleo pelo mundo. Nas suas grandes
linhas, esta matéria dá testemunho de um impressionante "poder de intui-
ção profética" da parte de Kant (Friedrich, 1962, p. 139).
Se recapitularmos a renovada arquitectónica das relações entre os
Estados e dos Estados com os cidadãos que nos envolve ideologicamente
- em bosquejo grosseiro: a afirmação do direito à auto-determinação das
nações; o reconhecimento e protecção dos direitos do homem por um
"regime de direito"; o direito dos indivíduos e dos povos a que prevaleça
um ordenamento da vida internacional que favoreça "o desenvolvimento
de relações amistosas entre as nações" (preâmbulo da DUDH); o reco-
nhecimento de que as justas exigências da moral, da ordem pública e do
bem-estar geral só numa sociedade democrática podem encontrar satisfa-
ção; a interdependência estabelecida na Carta das Nações Unidas e na
DUDH entre as estruturas internas do "Estado de Direito" e a possibilida-
Da guerra e paz como questão filosófica 57

de de um ordenamento externo de liberdade, de justiça e de paz - encon-


tramos a inspiração do pensamento de Kant a cada esquina. Acima de
tudo, teria, certamente, encantado Kant a verificação de que, embora por
ínvios e sangrentos caminhos, a espécie humana pudera aproximar-se da
consciência de que a paz perpétua, universal, não somente era desejável
(como outros antes de Kant já tinham demonstrado) e concebível (o que
também já fora demonstrado) mas necessária e inevitável (Friedrich,
Idem).
Ao mesmo tempo, novos sopros de crise ameaçam de ruína um outro
pilar da arquitectónica hegeliana: a soberania estatal como "valor supre-
mo". Como se sabe e tem sido copiosamente propagandeado, a soberania
do Estado-Nação está a ser erodida internamente pela proliferação de
colectividades intermédias e de múltiplos e pluriformes centros privados
de representação dos interesses, que começam a ter mesmo na esfera das
relações externas uma expressão que leva a falar-se do surgimento de
uma "sociedade civil internacional" (Slaughter, 1995, Schutter, 1996,
Alves, 2005, pp. 69-81) e, externamente, pela chamada globalização
mundializante, tendencialmente federadora da decisão política. Nesta
curva dos percursos da humanidade, pesam alterações cruciais nos cená-
rios de guerra e paz e, a montante, os fantásticos desenvolvimentos tecno-
lógicos com o seu cortejo de novas expectativas e de novas ameaças nas
esferas entrecruzadas do social, do político, do cultural, do ambiental.
Inopinadamente, o providencialismo kantiano revela-se "realista" e o
"realismo" hegeliano parece obsoleto.
Fica em aberto a questão de se reflectir sobre se problemas mundiais
não vão requerer obrigatoriamente qualquer coisa como o "Estado Mun-
dial Homogéneo" que Alexandre Kojève julgou ver contido no pensa-
mento de Hegel (Kojève, 1972, pp. 289 ss. e 1981, p. 586). Não creio que
se possa pensar produtivamente o problema, seja em Kant, que, sem o
recusar, dificilmente lhe reconhecia aceitabilidade prática, menos ainda
em Hegel que, pesem as imaginosas pretensões de Kojève, negou explici-
tamente a procedência de verdadeiros poderes "terrenos" acima dos Esta-
dos particulares, ou em Rousseau que veria na ideia o cume do perigo,
para não dizer certeza, do despotismo. De facto, nenhum deles pensou
seriamente, a não ser pela negativa, a possibilidade e, sobretudo, a dese-
jabilidade de um governo mundial dotado, designadamente, de meios de
controlo, pela força, da guerra e do que à guerra conduz. Mas nós, huma-
nos à entrada do século X X I , não nos podemos considerar dispensados de
o pensar, talvez mais na sua expressão "civilizacional" cosmopolita do
que como resposta política. Afinal, a marcha do mundo trouxe ao campo
das realidades factores novos impensados (porque obviamente impensá-
veis) por um Rousseau, um Kant ou um Hegel, que fazem do problema
uma polémica que, sem deixar de interessar à filosofia, a transborda por
58 João Lopes Alves

todos os lados. Tal n ã o será, p o r é m , o quinhão dos problemas autentica-


mente filosóficos que batem à porta da filosofia, esse discurso de balanço
e contas do real? Pensá-los, n ã o será o nosso dever m í n i m o ?

N.B.: As traduções em português adoptadas neste artigo são da respon-


sabilidade do autor, salvo outra indicação específica.

Referências

Alves, J,L. 2005, Ética & Contrato Social (Estudos), Lisboa: Edições Colibri.
— 2004, O Estado da Razão. Da ideia hegeliana de Estado ao Estado segundo a
ideia Hegeliana, Lisboa: Edições Colibri.
— 1983, Rousseau, Hegel e Marx. Percursos da Razão Política, Lisboa: Livros
Horizonte.
Avineri, S. 1974, Hegel's Theory of the Modern State, Cambridge: CUP.
Clausewitz, C.v.,1976, Da Guerra (trad, de Teresa B.P. Barroso), Lisboa: Pers-
pectivas & Realidades.
Erasmo, 1999, A Guerra e Queixa da Paz (trad, do latim de A. Guimarães Pinto),
Lisboa: Edições 70.
Friedrich, C.J., 1962, 'L'Essai sur la Paix. Sa position céntrale dans la philoso¬
phie morale de Kant', em A A VV, "Annales de Philosophic Politique"
- 4 , Paris: PUF.
Gagnebin, B., 1964, 'Notice' sobre 'Guerre et État de Guerre', em Rousseau,
Oeuvres Completes <OC>, vol.Ill, Paris: Gallimard, Bibliothèque de la
Plêiade, p. 1899.
Hassner, P., 1997, 'Rousseau and the Theory and Practice of International Rela-
tions', em C.Orwin & N.Tarcov (eds.), The Legacy of Rousseau, Chi-
cago/London: The University of Chicago Press.
Hegel, G.W.F.,1974, Grundlinien der Philosophic des Rechts, em K.H.IIting
(ed.), Vorlesungen iXhcr Rechtsphilosophie, 1818-1831, 2° vol., Estugarda
~ Bad-Cannsatt: Fromann-Hoolzboog.
Hobbes, T.,1995, Leviatã (trad, de J.Paulo Monteiro e M.B. Nizza da Silva),
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Hoffmann,S.,1965, 'Rousseau, la guerre et la paix', em A A V V , "Annales de
Philosophie Politique" - , 5, Paris: PUF.
Kant, I . 2005, A Metafísica dos Costumes (trad, de José Lamego), Lisboa: Fun-
dação Calouste Gulbenkian.
— 2003, Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita
(trad, de Rodrigo Naves e Ricardo R.Terra), São Paulo: Livraria Martins
Fontes.
— 1988, A Paz Perpétua e outros Opúsculos (trad, de Artur Morão), Lisboa:
Edições 70.
Kojève, A., 1981, Esquisse d'une phénomenologie du Droit, Paris: Gallimard.
— 1972, Introduction à la lecture de Hegel, Paris. Gallimard.
Lacroix, M.1994, L'Humanicide.Pour une morale planétaire, Paris: Plon.
Da guerra e paz como questão filosófica 59

Montesquieu, M . de, 1979, De l 'Esprit des Lois, Paris: Garnier-Flammarion.


Morgado, M., 2006, 'Rousseau e o Projecto de Paz Perpétua' em "Política Inter-
nacional", I I Série, n.° 30, Lisboa: IPRIS / CIDEC.
Philonenko, A., 1980, 'Hegel, Tolstoi et Cíausewitz', em "Revue Européenne
des Sciences Sociales. Cahiers Vilfredo Pareto", Tome X V I I I , n.° 12,
Genève: Librairie Droz.
Rapoport, A., 1976, 'Prefácio' a C.v.Cíausewitz (trad, de M . Teresa Ramos), Da
a

Guerra, ed. cit. acima.


Rousseau, J.J.,1964, Oeuvres Completes, vols. 1,11,111; 1969, IV; Paris: Galli-
mard, Bibliothèque de la Plêiade.
Saint-Pierre, C.I. C , 1986, Projet pour rendre la paix perpétuelle en Europe:
1713, Paris: Fayard.
Schutter, O.De, 1996, 'Sur 1'émergence de la société civile en droit international:
le role des associations devant la Cour européenne des droits de
rhomme', em "European Journal of International Law".
Slaughter,A.M., 1995, 'International Law in a World of Liberal States', em
"European Journal of International Law".
Starobinski, J,, 1964, 'Introduction' a Discours sur l'Origine et les Fondements
de Vlnégalité, em ousseau, 0C,I1I, ed.cit.acima, pp. X L I I - L X X I .
Stelling-Michaud, S., 1964, "Introduction" a Ecrits sur 1'Abbé de Saint-Pierre,
em Rousseau, OC, I I I , ed.cit.acima, pp. CXX-CLVIII.
Terra, R., 2004, Kant & o Direito, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.
Truyol Y Serra, A., 1979, 'La guerra y la paz en Rousseau y Kant', em "Revista
de Estúdios Políticos", 8 (Nueva Época), Madrid: Centro de Estúdios
Constitucionales.
Verene, D.P., 1972, 'Hegel's Account of War', em Z.A. Pelczinski (ed.), Hegel's
Political Philosophy, Cambridge, CUP.

Agradecimento

Este artigo f o i publicado originariamente na "Revista Eletrônica


Estudos Hegelianos" da Sociedade Hegel Brasileira, A n o 3.°-n.°05
Dezembro 2006 hhtp://www.hegelbrasil.org/re05a.htm, cuja anuência à
presente publicação se agradece.

RESUMO

1. Oposição de Rousseau ao sistema de Hobbes relativamente ao binómio


'estado de natureza' / 'estado social'. 2. A guerra como decorrência do 'estado
social' e conflito entre Estados, segundo Rousseau. 3. Guerra e despotismo em
Rousseau. 4. A distinção rousseauniana entre"guerra" e "estado de guerra". 5. A
inevitabilidade da guerra num ambiente de pluralidade de entes políticos
soberanos, nos pontos de vista de Rousseau e de Hegel. 6. O imperativo racional de
Paz segundo Kant. 7. A Paz Perpétua como tarefa de realização histórica paulatina.
60 João Lopes Alves

8. Republicanismo de Estado, cidadania e paz no pensamento kantiano. 9. A fede-


ração defensiva do "Zum ewigen Frieden" e a associação mundial de Estados
como horizonte de esperança para a Paz. 10. O direito cosmopolita. 11. Hegel, ou a
guerra como empresa racional insubstituível de solução de conflitos críticos entre
os Estados. 12. A guerra como prolegómeno à virtude cívica em Hegel e também
em Kant. 13. A profissionalização militar da "virtude da bravura" e os
constrangimentos na condução da guerra como acto de razão segundo Hegel. 14. A
nova tecno-ciência militar como factor de irracionalização da guerra.15. O regresso
de Kant.

Palavras-chave:
Estado de Natureza; Estado Social; "Guerra" e "Estado de Guerra"; Paz
Perpétua; Republicanismo; Cidadania; Cosmopolitismo; Federação; Estado
Mundial.

ABSTRACT

1. Rousseau versus Hobbes' system regarding the opposition between 'State


of Nature' and 'Civil State'. 2. War as a consequence of the 'Civil State', as well
as, according to Rousseau, a kind of conflict between States. 3. War and Despotism
in Rousseau's Tought. 4. The rousseaunian distinction between "Guerre" and "Etat
de Guerre". 5. The War's inevitability in a sovereign entities' context, from the
different points of view both of Rousseau and of Hegel. 6. The kantian rational
Imperative of Peace 7. The Perpetual Peace as a progressive historical
achievement. 8. Republican State, Citizenship and Peace according to Kant. 9. The
defensive Federalism from the "Zum ewigen Frieden" and an Universal
Association of States as hopeful prospects for Peace. 10. The Cosmopolitan Law.
11. The Hegelian view of War as a rational procedure to settle critical conflicts
between States. 12. War as civic virtue training, according to Hegel, as well as to
Kant. 13. The military "professionalism of courage" and the constraints of rational
Wars conduct, according to Hegel. 14. The advanced military technology as a
factor to make the War irrational. 15. Kant's coming back.

Keywords:
State of Nature; Civil State; "War" and "State of War"; Perpetual Peace;
Republicanism;
Citizenship; Cosmopolitanism; Federation; Worldwide State.

Você também pode gostar