Quarto de Hospedes - Dreda Say Mitchell
Quarto de Hospedes - Dreda Say Mitchell
Quarto de Hospedes - Dreda Say Mitchell
”
Macbeth, William Shakespeare
Prólogo
A lex para de ler. Nenhum de nós fala nada. Na verdade, não sei
bem por que não estou saltitando pelo quarto toda animada. O
homem sem rosto falou comigo de novo. Ele me ofereceu mais
informações sobre sua vida para me ajudar a resolver o quebra-
cabeça de sua morte. Então, percebo o que estou experimentando:
uma enorme onda de decepção. Queria que o texto me dissesse
mais. Que respondesse a todas as perguntas que fiz depois de ler
sua carta de suicídio, ou melhor, de despedida. Qual era seu nome?
Que erros ele cometeu? Quem são os inocentes que ele menciona?
Finalmente falo em um sussurro:
– Ele não falou qual era o seu nome.
Como sempre, Alex entende tudo com sua visão de advogado.
– Bem, é o típico drama russo. Casal com filhos, tudo parece
estar transbordando uma alegria cor-de-rosa do lado de fora, mas
por dentro é uma maldita confusão. Quem quer que tenha escrito
isso devia estar escrevendo uma peça de teatro. Uma peça russa
muito trágica que, pelo que sei, é o único tipo que existe.
– É trágica, sim – digo baixinho. – Mas não é uma peça, é tudo
verdade.
Alex faz uma careta, confuso.
– Como você sabe?
Agora tenho que tomar uma decisão: mostro a carta de despedida
ou não? A carta está tão carregada de sofrimento e remorso e é tão
confidencial que parece quase uma traição compartilhá-la com outra
pessoa. Mas como eu poderia fazer Alex entender por que preciso
desvendar isso?
Ele fica surpreso quando vou até a minha bolsa. Pego a carta e a
entrego a ele.
Ele me lança seu olhar preocupado quando termina de ler.
– O que é isso?
Solto de uma vez:
– Uma carta de suicídio, mas prefiro chamar de carta de
despedida. No dia em que me mudei, encontrei o papel enfiado
atrás das gavetas da mesinha de cabeceira. A escrita em cirílico no
rodapé é o que mostrei pra você no pub. É a mesma caligrafia da
parede. Ele está tentando...
Continuo falando sem parar, em um atropelo, de uma forma tão
estranha que sugere que não tenho controle. E, pelo horror que vejo
no rosto de Alex, talvez não tenha mesmo.
Ele me detém com uma mão firme no ar.
– Está me dizendo que esta é uma carta de suicídio escrita por
um homem que morou aqui antes?
Assinto depressa.
– Mas Martha, bem, Jack, na verdade, insiste que ninguém tinha
alugado esse quarto antes de mim. – Engulo em seco. – Acho que
ele se matou aqui...
– O quê? Neste quarto? – Alex está horrorizado.
– Sim. Preciso descobrir por quê.
Alex me devolve a carta segurando-a na ponta dos dedos, como
se ela portasse algum tipo terrível de doença contagiosa. Pela
maneira como me encara, sei o que está pensando.
Explodo:
– Não ouse dizer que estou maluca.
– Não ia dizer. Isso é assustador. Perturbador. Um homem tira a
própria vida no local onde estamos, deixa uma carta de suicídio e
um texto em uma língua estrangeira na parede e você espera que
eu encare como se tivesse acabado de ler um artigo do The
Guardian?
Aceno para a parede freneticamente.
– Deve ter mais. Isso deve ser só o começo.
Para provar minha tese, começo a descolar a próxima tira de
papel de parede, que não revela nada. Mas deve haver mais. Não
consigo parar.
– Lisa, pare com isso.
O tom autoritário de Alex me faz recuar. Estou hiperventilando,
atormentada, tremendo. O quarto está gelado, mas minha pele
parece pegar fogo.
– Isso está me assustando – ele diz.
Alex se dirige para a porta e já está descendo as escadas antes
que eu diga:
– Por favor, Alex, me ajude a descobrir o resto.
Ele volta batendo os pés e me encara.
– Não deve ter resto nenhum. O coitado deve ter se matado antes
de conseguir escrever mais. Por que isso é tão importante para
você?
Comprimo os lábios e, depois, digo:
– Quero que você me ajude a descobrir quem ele era.
Ele bufa de frustração e desce as escadas. Não o sigo. Fico
parada no lugar. Alex é engolido pela penumbra; é uma sombra
abrindo a porta e me deixando aqui. Jack insiste que esse inquilino
nunca existiu, então como é que vou descobrir quem ele era?
Enquanto volto para o quarto, ouço meu celular apitando uma
notificação. É uma mensagem de meu pai me lembrando da visita
deles. Não respondo. Em vez disso, coloco o papel de parede que
cobre os escritos do homem morto de volta no lugar.
***
Meus pais se sentam em um lado da sala, e me acomodo no
outro. Minha mãe segura uma caneca de chá sem açúcar, enquanto
meu pai tem um copo de conhaque. Eles chegaram pontualmente
às quatro. Demos beijinhos e abraços na porta, como de costume.
Estamos enrolando com aquele mesmo papo furado esquisito e
apressado de sempre. Em especial minha mãe, que termina quase
todas as frases com uma tosse nervosa. Falamos sobre todos os
assuntos inofensivos: meu trabalho, o clima, a situação do país.
Até que topamos com um silêncio que conhecemos muito bem.
Um momento de quietude, em que eles estão selecionando com
cuidado o que querem falar de verdade.
Não é necessário dizer que a última coisa de que preciso neste
momento é de uma visita dos meus pais. Para eles, estou
efetivamente em observação agora. Assim como um criminoso é
sempre um criminoso aos desconfiados olhos da sociedade, um
potencial suicida é sempre um potencial suicida, mesmo quando
você nunca quis se matar, para começo de conversa. Dessa forma,
quando as pessoas perguntam “Então, como tem passado?”, o que
elas realmente querem saber é “Você andou tentando se matar?”.
Por isso, concordo que eles venham me visitar e torço para que não
fiquem muito tempo.
Meu pai chegou trazendo flores do jardim deles, enquanto minha
mãe trouxe uma cesta de frutas. Alguém da igreja deve ter falado
que frutas são boas para os suicidas. Talvez sejam.
Ele quebra o silêncio.
– Então, como tem passado, Lisa?
Sei que meu pai me ama, que está preocupado com o meu bem-
estar, que só quer o meu melhor, mas estou cansada dessas
perguntas. Cada uma delas me cutuca nos lugares mais
vulneráveis, e alguns deles saíram das sombras não faz muito
tempo.
– Estou bem. – Sei qual vai ser a próxima pergunta, então
acrescento: – Tenho ido ver o Dr. Wilson.
Minha mãe fica animada, e sua expressão revela um alívio
abençoado.
– Que bom. Ando tão preocupada com você. – Ela tosse de leve
para acalmar a emoção e a agitação que pairam na sala.
É em momentos como este que me envergonho de pensar que
eles mentiram sobre o meu passado, sobre o acidente da minha
infância. Tenho tanta sorte de tê-los como pais. Talvez seja hora de
abandonar o passado e encarar o futuro.
– Sinto muito, mãe. Sei que você e papai só querem me ajudar. –
Olho para baixo. – Devo ser uma grande decepção para vocês.
A resposta dela é firme e forte. Ela abaixa a xícara.
– Nunca diga isso. Desde o dia em que entrou na nossa vida,
você tem sido nossa maior alegria.
Desde o dia em que você entrou na nossa vida. É um jeito
estranho de falar. Certamente uma mãe diria algo como “A primeira
vez que segurei você nos braços”. Pare! Pare! Lá vai você de novo,
vendo coisas onde não há nada. Ou, como Shakespeare diria,
“Nada é senão o que não é”.
– Ele é muito bom, não é? – meu pai pergunta, com certo orgulho
do talento do Dr. Wilson.
– Ele tem um jeito fácil de conversar – concedo.
– Ele tinha um consultório na Califórnia nos anos 1990.
Meu pai obviamente acha que ter um consultório na Costa Oeste
dos Estados Unidos prova se tratar de um ótimo psiquiatra.
– Você acha que está ajudando? – A pergunta de minha mãe está
tão repleta de esperança que é até doloroso ouvir.
Decido falar algo que vai ser difícil de dizer e difícil para eles
ouvirem:
– Discutimos se tentei me matar ou não.
Aí está. Saiu. A origem do mau cheiro enfim foi descoberta.
Meu pai parece que recebeu um soco, e minha mãe, pobre
mamãe, parece prestes a vomitar.
Ele se recupera rapidamente e pergunta com seu tom de médico:
– E você tentou?
Sou sincera com meus pais pela primeira vez:
– Não sei. Estava estressada, e a vida estava correndo tão rápido
que estava difícil acompanhar. Queria que tudo, tudo desacelerasse,
ou até parasse, mas não aconteceu. Os pesadelos voltaram, assim
como o sonambulismo. Chegava no trabalho parecendo um zumbi
de The Walking Dead. – Meus olhos imploram por compreensão. –
Só queria fazer tudo parar. Apenas parar.
Minha mãe deve notar que estou à beira das lágrimas, porque me
envolve com seus braços carinhosos. Agarro-me nela com força,
respirando o conforto e a segurança que estão em falta na minha
vida há muito tempo.
– A gente ama você, querida – ela cantarola em meu cabelo. –
Nunca se esqueça disso. A gente ama você.
Meu pai acrescenta depressa:
– Você pode nos procurar a hora que quiser. Estamos sempre
aqui por você.
Eu me solto dos braços dela gentilmente para olhar seu rosto. A
firmeza e as batalhas de uma vida toda estão estampadas ali.
Levanto-me e vou até meu pai. Sento ao seu lado e apoio a cabeça
em seu ombro. Ele me abraça.
– Você se lembra daquela vez que viemos para Londres quando
você tinha 10 anos?
Assinto contra seu ombro.
– E decidimos passar na Harrods? Você ficava dizendo que
estava entediada, que não queria ver roupas e calcinhas de
velhinhas.
– Edward! – minha mãe interrompe, escandalizada.
Nossa risada ressoa pela sala. Deus, é tão bom curtir nosso
momento a três, como uma família de novo. Se pudesse congelar
uma cena, seria esta: eu no meio, com mamãe e papai ao meu lado.
Estamos sorrindo com os olhos e gargalhando, aproveitando nossa
vida nesta terra.
– Daí você se perdeu – meu pai continua. – Entramos em
desespero. A próxima coisa que me lembro é de ouvir um anúncio
pedindo para que os pais de Lisa Kendal fossem até o balcão de
informações.
O que nunca lhes contei é que me encontraram no departamento
de beleza, olhando as maquiagens. Uma das funcionárias me viu
passando o dedo nos testadores de pó facial e aplicando-os no meu
braço. Nunca me esqueci da nossa conversa.
– Onde estão seus pais, lindinha? – ela perguntou, se agachando
na minha frente.
Escancarei a boca de espanto. Seu rosto era a coisa mais perfeita
que meus jovens olhos já tinham visto.
Ignorei a pergunta e apontei para a maquiagem.
– Estou tentando escolher a cor certa para mim.
O sorriso deslumbrante que ela me deu era tão perfeito quanto o
resto.
– E por que você quer passar isso nessa pele tão maravilhosa?
– Por causa disso. Quero cobrir.
Ergui a manga do meu vestido e mostrei minhas cicatrizes.
Esperei a inevitável zombaria que ouvia das meninas da escola:
“Ah, pobrezinha” ou “Scarface”. Mas aquela deusa não fez nada
disso. Não deu nem um suspiro.
Seu sorriso se alargou.
– Querida, esse tipo de beleza é superficial. Sua verdadeira
beleza está dentro de você. Aqui. – Ela pegou minha mãozinha e a
colocou sobre o meu coração.
Devia ter feito dessas palavras minha música-tema. Devia ter
deixado que me guiassem pelas dificuldades da vida.
Provavelmente isso teria me poupado muita dor de cabeça ao longo
do caminho.
– Sabe por que fiquei tão orgulhoso de você aquele dia? – meu
pai pergunta, me trazendo de volta para a sala. – O homem do
balcão de informações nos disse que você foi corajosa. – Ele me dá
um beijo suave. – Você vai ser sempre nossa garotinha corajosa.
Sou tomada por uma sensação de pura alegria e pertencimento.
Isso significa tanto para mim. Por muito tempo, acreditei que era a
pior coisa que tinha acontecido a eles.
Ficamos ali conversando, compartilhando lembranças e rindo,
quando minha mãe pergunta:
– Você não acha que é um pouco estranho que ele nunca tenha
se casado? Quero dizer, ele é um homem tão bonito.
– De quem você está falando? – questiono.
– Tommy Wilson. – Ah, ela botou suas garras da fofoca no bom
doutor. Em geral, ela não gosta de fofoca, mas de vez em quando
não consegue se segurar. – Oh! Você acha que ele é... bem, você
sabe?
– Gay? – sugiro. – Não é uma palavra proibida, mãe. Tem um
monte de gays livres por aí, e, se o Dr. Wilson for gay, qual é o
problema?
Meu pai se afasta de mim e franze a testa para ela.
– Podemos deixar Tom de fora desta conversa?
– Só estou comentando, querido. Você não disse que ele era
mulherengo quando vocês estavam na faculdade de Medicina? Todo
charmoso, elegante e dançarino? Claro, suponho que o fato de ele
ser estudante de psicologia feminina tenha ajudado. Ele devia saber
o que dizer quando saía para cortejar as garotas.
É difícil imaginar o bom doutor como um garanhão. Meu pai
também acha isso; ele está com a cara mais impassível do século.
Mas minha mãe não percebe e acrescenta:
– Talvez ele nunca tenha conhecido a garota certa ou alguém
partiu seu coração e ele renunciou às mulheres para dedicar a vida
a serviço dos outros. Prefiro acreditar na segunda opção, claro, é
tão mais romântica. Lembra, teve aquela figura volúvel...
Meu pai interrompe:
– Quer parar com essas bobeiras sem sentido, Barbara? Você
está parecendo uma adolescente sentimental.
Minha mãe fica chocada, e eu também. Nunca ouvi meu pai falar
com ela de um jeito tão agressivo assim. Ele não é do tipo que
acredita que o homem é o chefe da casa e se orgulha de ter uma
parceria de verdade com a esposa.
Ela o encara, agitada e brava:
– Não me critique assim, Edward Kendal. Tom não é só seu
amigo, mas é meu também, desde que nos ajudou no acidente que
Lisa sofreu quando era pequena...
Ela fecha a boca de uma vez. Meus pais trocam um olhar tenso e
ansioso.
– O que foi? – pergunto, afiada e bruscamente.
Meu pai se levanta.
– Temos que ir. – Ele olha para minha mãe. – Não é?
– É claro. – Ela também se levanta. Toda a alegria se esvaiu. Ela
não percebe que está torcendo as mãos.
Eles já estão saindo da sala, rumando para seus casacos perto da
porta. Pergunto:
– Dr. Wilson ajudou vocês durante o meu acidente? Quando eu
tinha 5 anos?
Eles trocam aquele olhar mais uma vez. Desta vez, minha mãe
parece à beira das lágrimas.
Meu pai balança a cabeça.
– Sua mãe está confundindo um dos médicos que cuidaram de
você no hospital depois do que aconteceu. – Ele pega o braço dela
antes que possa perguntar qualquer coisa. – Temos que ir agora,
senão vamos ficar presos no trânsito do horário de pico.
O muro entre nós se ergueu de novo. Um muro construído tijolo
após tijolo, cimentado com mentiras. Ele está mentindo. Tenho
certeza, porque ele não me olha nos olhos. Estava certa esse tempo
todo. Em vez de me sentir satisfeita, estou arrasada pela dor. Por
que não me contam a verdade? Quero gritar com eles, mas meu pai
já abriu a porta e está conduzindo minha mãe trêmula para a rua,
em direção ao carro.
Atordoada, fico parada no lugar enquanto o carro dá partida e eles
me abandonam junto com as mentiras. Quero segui-los, exigir a
verdade. Só que não vai adiantar nada; meu pai vai repetir a mesma
história. Durante seu tempo como médico, sem dúvida aprendeu
todas as maneiras de lidar com o sofrimento humano e desligar as
próprias emoções. Por que sua reação ao meu sofrimento seria
diferente?
Por fim, o que me dá forças para me mexer são as frases na carta
de despedida que encontrei no quarto de hóspedes: Não há
necessidade de fazer perguntas. Elas não podem ajudar ninguém,
nem a mim. Já parti. Deixe-me descansar.
O homem que tirou a própria vida estava errado. Tenho tantas
perguntas. Elas podem me ajudar. Eu não parti. Eu me recuso a
descansar.
Se meus pais não querem me dar as respostas, sei quem pode
me oferecer isso.
Determinada, visto um casaco leve, pego minha bolsa e abro a
porta.
Dou um pequeno salto para trás ao perceber que há alguém
bloqueando o caminho. Meu coração acelera quando percebo quem
é.
– O que está fazendo aqui? – pergunto para Jack, surpresa.
Ele está parado na porta da minha casa. Sim, minha casa. Não a
que eu divido com ele e Martha, mas minha casa que comprei no
leste de Londres.
Ele estreita os olhos. Sei que está pensando: se Lisa tem uma
casa própria, por que está alugando nosso quarto de hóspedes?
Dezenove
– Por que você fingiu que não ajudou minha família durante o
acidente que aconteceu comigo quando eu era pequena? – atiro a
pergunta incriminadora para o Dr. Wilson enquanto me sento na
ponta da cadeira de seu consultório.
Sinto um gostinho de vitória quando ele para de escrever naquele
maldito caderno irritante. Tenho vontade de arrancá-lo de sua mão e
rasgá-lo em mil pedacinhos. Ele não pareceu muito satisfeito ao me
ver, mas suponho que seu profissionalismo não permita que me
mande embora. Deve ter pensado que faria algo terrível comigo
mesma, como fiz quatro meses atrás, se não me deixasse entrar.
– Você falou com os seus pais, como sugeri? – ele me devolve
com calma.
Este homem é um mestre em seu ofício. Não importa o que eu
atire no seu caminho, ele sempre sabe como fazer a engrenagem
voltar aos eixos para garantir que o tráfego flua na direção que quer.
Insisto, quase caindo da cadeira.
– Pelo jeito como meu pai fala de você... vocês não são só
conhecidos. São amigos há anos.
Ele desvia minhas acusações com um simples arqueio de
sobrancelha.
– É assim que você se sente, Lisa? Que as pessoas, todas as
pessoas, estão mentindo para você?
Agora ele está tentando devolver minhas palavras, fazendo com
que me sinta totalmente paranoica.
– Você sabe do que estou falando. Você mentiu na minha cara
dizendo que não estava presente durante o meu acidente, sabendo
muito bem que estava.
Ele faz anotações no caderno. Em seguida, levanta a cabeça para
mim.
– Quem contou isso?
– Minha mãe.
– Lisa, só encontrei sua mãe em três ocasiões. Uma foi no clube
de golfe do seu pai...
– Por que está fazendo isso comigo?
– Isso o quê? – Ele escreve no caderno.
Rangendo os dentes, pronta para causar grandes danos, me
inclino, descalço um dos sapatos e o atiro pela sala.
Ele se endireita.
– Não vou tolerar comportamento violento aqui.
– Não se preocupe, doutor, não vou encostar num fio de cabelo
da sua cabeça mentirosa.
Tiro o outro sapato e o atiro pela sala.
– Não quero ter que chamar a polícia, mas, neste momento, acho
que não tenho escolha.
Não ouço nada enquanto salto para o divã de couro. Viro as solas
dos meus pés para ele. Aponto para o único conjunto de cicatrizes
que ninguém nunca vê. Seu rosto perde a cor.
– São feias, não? Quando eu era pequena, batizei cada uma no
estilo dos anões da Branca de Neve. – Coloco uma perna sobre a
outra para tocar meu pé. – Este aqui se chama Zangado, porque é
bastante irregular, como se alguém tivesse tentado arrancar um
pedaço de mim. Este aqui se chama Tropeço, porque ficava tão
dolorido no inverno que me fazia cair.
– Lisa...
Pego o outro pé e não permito que ele me interrompa.
– Só tenho um amiguinho neste pé, como você pode ver. É o
Esquecido. É tão pequeno que quase não dá para ver. Mas nunca
me esqueço dele, nem desse nem de nenhum outro. É tão nojento.
– Abaixo a perna. – Preciso que você me diga o que realmente
aconteceu. Que tipo de acidente poderia ter deixado cicatrizes como
essas na sola dos pés?
Ele pega meus sapatos e os devolve para mim.
– Está vendo como seu comportamento é irracional? Pessoas
normais não saem atirando os sapatos por aí.
– Normais? Por que não diz o que quer? Que sou maluca?
Ele dá um passo para trás enquanto calço os sapatos.
– Acho que não devemos continuar hoje. Quero que volte
amanhã. Daí retomamos.
Estou prestes a concordar, quando percebo algo. Uma foto em
sua escrivaninha. Como não reparei antes? É a mesma foto que
meu pai tem na parede da sala, dos velhos tempos na faculdade de
Medicina, com dois outros amigos. Esta é um pouco diferente;
nenhum dos caras está usando máscaras cirúrgicas. Seus rostos
estão à vista de todos. Reconheço meu pai, bonito e pronto para
conquistar o mundo. Não conheço o segundo homem, e o terceiro é
o Dr. Wilson.
Ele percebe para onde estou olhando. Vai até a foto e a vira para
baixo com calma. Encara-me com um ar de desafio. Poderia
questioná-lo, mas não adianta. Ele não vai falar nada, só vai cuspir
mais de seu blá-blá-blá de terapeuta. Não importa. Não preciso mais
de sua confissão.
Na porta, digo:
– Com esses pés marcados, vaguei pelas ruas de Londres
tentando encontrar a casa da minha memória. Fiz isso por anos.
Não conseguia parar.
– Que casa? – Ele balança a cabeça, franzindo a testa com força
em confusão.
– A casa onde o acidente realmente aconteceu, quando eu era
pequena.
– Lisa, não há casa nenhuma. – Ele me olha com pena. – O
acidente aconteceu em uma fazenda, como seus pais contaram.
– Você está errado.
Ele nota algo diferente na minha resposta e pergunta quase sem
respirar:
– O que quer dizer?
– Encontrei a casa.
– Lisa? – Ele não tem mais a postura de um médico, mas de um
homem que levou um soco no estômago.
– Estou morando no quarto de hóspedes da casa. A casa dos
meus pesadelos.
Vinte
O arse frio do lado de fora me deixa instável mais uma vez. É como
eu estivesse bêbada. Estou desorientada, sem saber onde
encontrar transporte de volta para casa. É isso que a casa se
tornou? Meu lar? Não, lar é o lugar onde a gente se sente seguro e
protegido, e não com medo de pegar no sono à noite. Com certeza
não é o lugar onde as paredes do seu quarto sejam revestidas com
o preto mais brilhante. A menos que seja gótico.
Paro no primeiro ponto de ônibus que vejo. O coletivo chega
alguns minutos depois, e é só quando estou lá dentro que percebo
que estou indo para o destino errado, na direção errada. Desço e
fico vagando de qualquer lugar para lugar nenhum. Arrasto os pés, e
os transeuntes me olham. Alguns são gentis e me perguntam se
estou bem. Por que as pessoas perguntam se você está bem
quando é óbvio que não está?
Viro uma esquina e reconheço onde estou. Camden High Street.
Vejo a luz amarela de uma companhia de táxis. Uma mulher
mastigando um hambúrguer atrás de uma grade metálica pergunta
para onde quero ir. Depois que falo o endereço, ela diz para eu me
sentar que alguém vai me buscar em cinco minutos.
Um corpulento motorista de meia-idade entra balançando as
chaves do carro e sorri para mim. Ele me acompanha até o carro e
me acomodo no banco de trás. Quando ele dá partida, caio de lado.
Ele me olha por sobre os ombros e pergunta, preocupado:
– Você está bem?
– Não. Quero dizer, sim.
– Está bêbada?
Se o álcool fosse meu único problema, seria mais fácil de
resolver.
– Não, não estou.
Ele deve estar preocupado que eu vomite no carro. Quando fica
claro que não vou fazer sujeira, ele se anima e começa a tagarelar
sem parar: o trânsito está terrível, os ciclistas são uns babacas,
Londres está ficando violenta e, ah, ele está de saco cheio de
clientes que saem correndo sem pagar ao chegar ao destino.
Quero que ele cale a boca, mas dizer isso seria tão cruel e ele é
tão simpático que não falo nada. Estou reconhecendo as ruas pela
janela. Sou tomada por uma imensa sensação de alívio. Ele vira na
avenida e para.
– É um pouco mais para a frente, onde aquela van branca está
parada – digo.
Estacionamos do lado de fora da casa com a marca de pedreiro.
O motorista se vira para mim e diz:
– Dez libras e cinquenta. Fica por dez.
Procuro minha bolsa. Que inferno! Só tenho cinco e umas
moedas. Devia ter pegado um Uber, e a corrida seria descontada no
meu cartão de crédito.
– Você não tem dinheiro. – Não é bem uma pergunta, mas uma
afirmação.
– Tenho, sim.
Seus lábios se contorcem de raiva, e ele estende a mão cheio de
expectativa.
– Mas não aqui. Espere um minuto, vou lá dentro pegar.
Ele revira os olhos.
– Ah, não, mais uma...
Salto para fora do carro. Será que tenho dinheiro lá em cima? No
final, não importa. Quando dou os primeiros passos vacilantes, ele
vai embora sem o dinheiro.
Levo séculos para alcançar a porta. Fico parada na frente da casa
observando-a, especialmente a marca de pedreiro na parede, que
me trouxe até aqui, para começo de conversa. Há tantos segredos
nesta casa. Tantas respostas. Mas, se eu estiver mentalmente
arrasada e destruída, posso não descobrir quais são, e estou
ficando sem tempo. Só preciso aguentar mais um pouco, e vou
chegar lá. Estou convencida disso. Não posso me dar ao luxo de
desmoronar agora. Esta é minha última chance de descobrir a
verdade, e nada vai me impedir.
Quando entro em casa, percebo que Martha e Jack estão fora.
Tudo está silencioso. Chamo por eles só para garantir, então vou
até a cozinha. A geladeira está dividida entre a minha seção e a
deles. A minha parte está vazia; depois do que Martha fez com
Bette, vai saber o que ela pode fazer com a minha comida. Pego a
comida deles. Não quero comer – só de pensar já fico enjoada –,
mas faço um sanduíche gigante de presunto, adiciono maionese,
picles e outras coisinhas. Sento na sala de jantar, onde as cadeiras
e os armários estavam saltitando durante o episódio de ontem, e
enfio o lanche goela abaixo. Fico meio zonza, mas recupero um
pouco do juízo. Faz tempo desde que comi alguma coisa, e isso não
me fez nada bem. Pego uma cerveja de Jack, o que também ajuda.
Então, me dou conta de que Jack e Martha não estão aqui. Posso
aproveitar a oportunidade. Talvez eles estejam à espreita, mas vou
aproveitar mesmo assim.
Com a cerveja na mão, vou até a sala de estar e fico parada em
um canto tentando absorver as vibrações, ou como queira chamar,
não ligo. Fecho os olhos com força, me esforçando para sentir o
passado. Abro os olhos. Lembro-me do “armário” vindo para cá com
a “mulher da porta”. É uma maluquice, claro. Mas também é
verdade. A mulher estava gritando no meu aniversário de 5 anos
bem aqui. Tenho certeza. Saio da sala de estar e testo a porta da
sala matinal. Está trancada. Penso em arrombá-la com um chute,
mas nem sei se tenho força suficiente para isso.
Vou até o andar de cima e começo a checar as portas. A do
escritório de Jack está aberta e eu entro. Antes mesmo de cruzar a
soleira e me deparar com a bagunça dele, já sei que não há nada
para mim ali. A porta ao lado, a do quarto deles, está trancada.
Martha tem seu próprio quarto e, surpreendentemente, ele não está
trancado.
As cortinas estão fechadas. O cômodo é um baú de tesouros de
roupas, perucas, perfumes, maquiagens e fotos de uma jovem
Martha incrivelmente glamorosa cercada por homens que a
veneravam. Ela exala poder nessas imagens. São hipnóticas e
fascinantes, mesmo as mais simples, quem dirá as cuidadosamente
montadas. Não sei por qual motivo, mas dou uma olhada embaixo
da cama, e me arrependo no mesmo instante. Sei que não é real,
mas os olhos de um rato morto estão me encarando. E estou
ouvindo gritos. Tem uma mulher gritando aqui? Crianças? Um
homem?
De repente, o quarto fede a esgoto. Sinto um estrangulamento
invisível. Estou sufocando. Não consigo respirar. Minha visão está
oscilando. Desbotando. Isso não é real. Nada disso é real. Eu me
levanto e saio dali. No corredor, me encosto na parede, ofegando
pesadamente enquanto sou dominada por um calafrio. O que
aconteceu ali? Será que o reino privado de Martha está conectado
ao meu passado? Talvez eu deva voltar... Eu me aproximo da porta
de novo, apreensiva. Toco na maçaneta... E afasto a mão trêmula.
Estou com medo. Morrendo de medo.
Tenho uma ideia. Depressa, desço para a sala de jantar. Tento
reconstituir a cena das cadeiras saltitantes da noite anterior. Então,
imagino alguém batendo na porta e o armário indo atender. Ouço os
gritos na sala de estar e corro de volta para o quarto de Martha.
Encolho-me mais uma vez apavorada. Fecho os olhos.
Lembre. Lembre. Lembre.
Olhos de rato. Mulher. Mulher na porta. Crianças. Homem. Gritos.
Quase fico enjoada desta vez. Saio correndo do quarto e bato a
porta. Algo ruim aconteceu neste quarto. Algo terrível. Não consigo
entender, mas sei que algo aconteceu ali. Algo tão terrível que
destruiu a minha vida antes mesmo que ela começasse. Sento-me
na escada que leva ao meu quarto e tento pensar. Mas estou sem
munição.
Ouço uma chave girando na porta da frente. Passos firmes no
corredor. Sinto o perfume de maçã com especiarias de Martha
enquanto os rangidos e gemidos baixos da madeira velha sinalizam
que ela está subindo as escadas. Fico rígida, como uma ladra pega
no flagra.
Ela está usando calça jeans; é a primeira vez que a vejo de jeans.
A calça é preta, provavelmente de algum estilista, e bem justa,
ressaltando cada linha, curva e músculo. Não consigo ver se ela
está usando o pingente de Bette porque sua blusa é de gola alta.
Será que ela sabe que eu sei?
– Espero que você tenha tido a chance de consultar um médico
sobre... – Ela não termina a frase. Não é necessário; nós duas
sabemos do que ela está falando.
– Tive a chance de pensar sobre a cena que vi lá embaixo, na
sala de jantar. – Seus olhos verdes se estreitam enquanto falo. – Na
porta da frente.
– Estou preocupada com a sua sanidade – ela diz, cheia de pena.
Estou acabada; ainda assim, consigo reunir forças de algum lugar
e fico de pé no degrau olhando para ela.
– Durante o que quer que tenha acontecido ontem – falo cheia de
emoção –, nada parecia real, exceto uma coisa.
Ela fica curiosa.
– Do que você está falando?
– Eu me lembrei. Tinha uma pessoa na porta. Sabe quem era?
Martha tenta repassar o roteiro da piedade novamente, mas desta
vez não vai colar.
– Você está vendo coisas. Precisa de ajuda.
Balanço a cabeça contra as suas acusações.
– Você. Eu vi você na porta, Martha.
***
Naquela noite, amarro minha perna com três nós porque temo o
que vai acontecer se eu sonhar acordada e sair do quarto. Temo
onde vou parar. A tinta preta faz com que as paredes e o chão se
misturem. Estou em uma nuvem de escuridão. Durante a noite, sinto
que estou levitando na cama. Quero dormir, mas estou com medo
de fechar os olhos, com medo dos gritos nos meus pesadelos, que
vão acabar se transformando em meus próprios gritos, tenho
certeza.
Martha não está apenas tentando me expulsar de sua casa; de
alguma forma, ela está conectada ao meu passado. Conectada aos
meus pesadelos.
Não tenho nada a temer. A corrente está no lugar; a cadeira está
segura contra a porta. Fecho os olhos. Faço meus exercícios de
respiração com um novo conjunto de palavras:
“Era você. Eu vi você na porta, Martha.”
“Era você. Eu vi você na porta, Martha.”
Trinta e três
O brigada!
Obrigada por ler Quarto de hóspedes. Espero que tenha
gostado.
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Tudo sobre Dreda
Seus alunos mataram sua filha. Agora ela quer se vingar. Mais de
três milhões de exemplares vendidos. O mundo da professora Yuko
Moriguchi girava em torno da pequena Manami, uma garotinha de 4
anos apaixonada por coelhinhos. Agora, após um terrível
acontecimento que tirou a vida de sua filha, Moriguchi decide pedir
demissão. Antes, porém, ela tem uma última lição para seus pupilos.
A professora revela que sua filha não foi vítima de um acidente,
como se pensava: dois alunos são os culpados. Sua aula derradeira
irá desencadear uma trama diabólica de vingança. Narrado em
vozes alternadas e com reviravoltas inesperadas, Confissões
explora os limites da punição, misturando suspense, drama,
desespero e violência de forma honesta e brutal, culminando num
confronto angustiante entre professora e aluno que irá colocar os
ocupantes de uma escola inteira em perigo. Com uma escrita direta,
elegante e assustadora, Kanae Minato mostra por que é
considerada a rainha dos thrillers no Japão.