Mundo Rural Na Era Vargas
Mundo Rural Na Era Vargas
Mundo Rural Na Era Vargas
Policarpo Machado
João Carlos Tedesco
Marcos Gerhardt
Organizadores
H i st ó r i a d o
Mundo Rural:
o sul do Brasil
Volume II
Apresentação 211
N
as últimas décadas
desenvolveram-se,
com mais intensida-
de, pesquisas sobre aspec-
tos do espaço rural numa
perspectiva interdiscipli-
nar. Desse modo, retoma-
-se a antiga e clássica noção
da “questão agrária” brasi-
leira, revisitando bases teó-
ricas e, também, sob novas
perspectivas teórico-me-
todológicas, principalmente
no campo da História Social
e da Histórica Cultural.
Temas antigos renovam-se
com os olhares multiplica-
dos pelos vários campos
das ciências humanas e so-
ciais. Os escritos deste livro
e seus autores localizam-se
neste universo acadêmico;
expressam um esforço de
interpretação sobre o direi-
to à terra, as lutas sociais,
os povos tradicionais, fron-
teiras agrícolas, relações
socioculturais, ambientais e
de poder no meio rural.
Nesse sentido, o Núcleo de
Estudos Históricos do Mun-
do Rural (NEHMuR), numa
perspectiva interdiscipli-
nar, vem possibilitando en-
contros de pesquisa, dis-
cussões, intercâmbios
Ironita A. Policarpo Machado
João Carlos Tedesco
Marcos Gerhardt
Organizadores
H i st ó r i a d o
Mundo Rural:
o sul do Brasil
Volume II
2020
© dos Autores, 2020
Editoração:
Alex Antônio Vanin
Revisão:
Sabino Gallon
Foto da capa:
Indígenas Kaingang colhendo trigo no Posto Indígena de Nacionalização de
Guarita, no Rio Grande do Sul, em 1952. Fonte: Acervo do Museu do Índio. Funai.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-63917-32-4 (impresso).
CDU: 981.65
H i st ó r i a d o
Mundo Rural:
o sul do Brasil
Volume II
2020
Núcleo de Estudos
Históricos do Mundo
Rural (NEHMuR)
Apresentação.................................................................................................7
O
conhecimento acadêmico é fruto da pesquisa na medida
em que o contexto social impõe necessidades e problemas
ao pesquisador tracejado teórica e metodologicamente
em busca de respostas. O conhecimento, por sua vez, direta ou
indiretamente, indica elementos de orientação à sociedade. Por
conseguinte, o conhecimento histórico no campo rural implica,
primeiramente, compreender a trajetória do conhecimento como
leitura da história agrária brasileira e seus protagonistas. Assim,
é necessário identificar a matriz histórica dos movimentos e con-
flitos sociais, das políticas públicas de acesso à terra ou ausência
dessas, da agricultura cultural e da agroindústria ao agronegócio
contemporâneos.
Atualmente, no Brasil, ao mesmo tempo em que se assiste
à mundialização econômica e cultural, verifica-se o recrudesci-
mento das identidades étnicas, religiosas, regionais, políticas,
Apresentação 7
sociais e também nacionais. É nesse sentido que a ausência do
conhecimento acadêmico se apresenta como exacerbação equi-
vocada de representações históricas, favorecendo intolerância
aos movimentos sociais, que, organizados ou não, reivindicam
por direitos constitucionais e históricos.
Os estudos do universo rural sempre buscaram respostas
para a questão agrária brasileira, produzindo obras que possam
explicar o passado para entender o presente. A partir das décadas
de 1980/90, tem-se, com o revisionismo marxista, uma plurali-
dade de problemas. Fontes e abordagens motivam os historiado-
res, entre eles Maria Yedda Leite Linhares e Ciro Cardoso, que
tentam construir um novo campo científico: a história agrária
ou história social da agricultura. Os autores, inspirados nas pro-
duções francesas e no marxismo – que renovava –, passaram a
produzir textos sob a orientação do pensamento de Chayanov
a respeito do campesinato; dos argumentos de Ernet Labrousse
sobre a história econômica, e inspirados pelo marxista francês
Pierre Vilar, os quais, por exemplo, produziram os livros História
da agricultura brasileira: debates & controvérsias (1981) e Agricultura,
escravidão e capitalismo (1978), emblemáticos em questões para ex-
plicar o campesinato, o latifúndio, em suma, o universo rural..
De 1990 aos dias atuais, com a redemocratização, pluralida-
de e interdisciplinaridade de áreas do conhecimento, retoma-se a
questão agrária brasileira sob novas perspectivas teórico-metodo-
lógicas, como, por exemplo, a história social e história cultural,
sob a inspiração do marxismo inglês e francês. Os escritos dos
autores deste livro localizam-se nesse universo acadêmico, revi-
sitando permanentemente interpretações sobre o direito à terra,
relacionado e questionado o poder nas múltiplas manifestações,
o latifúndio, a marginalização dos movimentos sociais e, como
Apresentação 9
procuram enfatizar a relação entre a história agrária, história da
agricultura, história ambiental, ocupação e apropriação da ter-
ra, conflitos fundiários, movimentos sociais, fronteiras agrárias
e políticas, relações socioculturais, socioambientais e grupos so-
ciais rurais.
Por conseguinte, a perspectiva que aproxima e aglutina estes
estudos é o mundo rural no sul do Brasil em interação com os de-
mais territórios platinos. Na interface entre história, antropolo-
gia, geografia, sociologia rural e direito, o grupo tem procurado
discutir as várias realidades rurais do país.
Por esses horizontes interpretativos do mundo rural, esta
obra traz reflexões acerca dos seguintes temas: um balanço da
produção no próprio conhecimento do campo da história do
mundo rural; o patrimônio familiar e as transmissões de proprie-
dade, debatendo conceitos de redes familiares e propriedade pri-
vada da terra; a política desenvolvimentista do governo Vargas e
seus reflexos no mundo rural no sul-rio-grandense, alguns apon-
tamentos sobre a discussão conceitual da racionalidade capita-
lista no contexto da industrialização brasileira; os movimentos
sociais, a propriedade da terra, a função social e utilidade pública
e respectivas normatizações, com base no estudo dos atingidos
da barragem do Passo Real e a função socioambiental das pro-
priedades rurais desapropriadas para a construção da usina hi-
drelétrica de Machadinho; ainda, o debate referente ao processo
de titulação das terras dos assentados pela reforma agrária na
fazenda Annoni; reflexões sobre a política indigenista e seus des-
dobramentos no toldo indígena de Cacique Doble, no norte do
estado, na década de 1940, bem como discussões acerca dos di-
reitos da terra pelas comunidades quilombolas, com base no es-
tudo de caso da comunidade Arvinha; por último, considerando
Os Organizadores
Apresentação 11
1 HISTÓRIA DO MUNDO RURAL:
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
EM PERSPECTIVA
INTRODUÇÃO
As questões fundiárias e agrícolas, comumente remetidas
ao mundo rural, permanecem no centro dos interesses na área
de história, reconhecidas ora no campo da história econômica,
ora no campo da história social. O fato é que predominam na
interdisciplinaridade do conhecimento.
Este estudo tem por matriz teórico-metodológica originá-
1
Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS). Professora do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade de Passo Fundo. Membro do Núcleo de Estudos Históricos do
Mundo Rural (NEHMuR). E-mail: [email protected].
2
Doutor em Ciências Sociais. Professor do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade de Passo Fundo. Membro do Núcleo de Estudos
Históricos do Mundo Rural (NEHMuR). E-mail: [email protected].
ria da história econômica3 por ocupar-se de análises referentes
à propriedade, posse, exploração da terra, predominando três
tipos de abordagens: história da agricultura, voltada aos estu-
dos da tecnologia e economia da produção através de métodos,
instrumental e organização da agricultura; história agrária, de
maior abrangência, ocupa-se da estrutura social rural, das for-
mas de apropriação e uso da terra, condições jurídicas e sociais
dos trabalhadores rurais, as diferentes modalidades históricas de
organização e exploração da força de trabalho, com ênfase nas
relações de trabalho e tipologias agrárias; história rural, conside-
rada por muitos historiadores a síntese das duas anteriores, ocu-
pa-se das relações sociais, econômicas e políticas das sociedades,
estudos macro e microeconômicos da produção, distribuição e
circulação no setor agrícola da economia.
Nesse panorama encontra-se a justificativa para o desenvol-
vimento desta pesquisa, colocam-se algumas questões, tais como:
qual é a matriz teórico-metodológica que orienta as pesquisas
acerca do mundo rural nos últimos anos? Quais são os temas,
problemas e perguntas que caracterizam as especificidades his-
tóricas que (temporal e espacialmente) predominam na pesquisa
acerca do mundo rural? Os estudos do mundo rural predominam
numa perspectiva regional? A qual totalidade (nacional, interna-
cional etc.) as investigações podem ser remetidas?
3
Sobre este debate, ver FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. História
econômica. In: CARDOSO, Ciro Flamarion S.; BRIGNOLI, Héctor Pérez.
Historia económica de América Latina, t. 1; Sistemas agrários y historia colonial. 3. ed.
Barcelona: Crítica, 1979. p. 27-43. Ver a análise de Meuvret, esquematizada em
CARDOSO, Ciro Flamarion S. História da agricultura. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da história: ensaios de teoria
e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997; YOUNG, Eric van. La historia
rural de México desde Chevalier: historiografia de La hacienda colonial. In:
CÁRDENAS, Enrique (Comp.). Historia económica de México. México: Fundo de
Cultura Económica, 1989. p. 377.
14 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
A história agrária se desenvolve articulada com a história
regional e local. Na sua especificidade, a história local e a his-
tória regional propõem estudar as atividades dos grupos sociais
historicamente constituídos – assentados numa base territorial
e com identidades culturais, de organizações comunitárias, de
práticas econômicas –, identificando suas interações exteriores
na perspectiva da totalidade histórica. Por conseguinte, é neces-
sário inquirir a respeito do atual “estado de arte” da produção
historiográfica acerca do mundo rural.
Nas últimas décadas do século XX e início do século XXI,
o tema agrário tem sido desenvolvido na perspectiva social, onde
são abordadas a situação jurídica da terra e as relações de traba-
lho, pontos de partida para um programa de reforma agrária ou
de interferência na organização da propriedade e no modo de
sua utilização. A história agrária foi sistematizada como campo
de conhecimento específico desde o início do século XX, associa-
da, conforme Linhares (In: Cardoso; Vainfas, 1997, p. 165-166),
ao estudo das mudanças operadas pela ação dos grupos sociais
através do tempo com o da relação do homem com o seu meio
físico, ou seja, a história volta-se ao passado em busca de infor-
mações e registros precisos, capazes de explicar a sociedade hu-
mana nas múltiplas determinações e complexidades. A pergunta
é: nos últimos anos, as pesquisas de história agrária enunciadas
de “história do mundo rural” envolvem que problemas ou que
perguntas de trabalho diante da atual conjuntura multifacetada
de reivindicações sociais e fundiárias no Brasil, em especial na
região Centro-Sul?
A pesquisa historiográfica referente ao mundo rural é neces-
sária como possibilidade de identificar e discutir as concepções
teórico-metodológicas que definem “ferramentas” e “formas”
4
O Programa de Pós-Graduação em História (PPH) da UFRRJ foi criado em
2008, e doutorado aprovado em 2013, primeira turma em 2014, portanto, ainda
não tem teses defendidas.
5
Fontes: Teses defendidas no período de 2010 a 2014, nos seguintes programas
de pós-graduação: USP, UFSC, UFPR, UFF, UFRGS, PUCRS, UFRJ, UFRRJ,
Unicamp e Unesp. Banco de dissertações e teses Capes e catálogo dos próprios
programas.
História do mundo rural: construção do conhecimento em perspectiva 17
Gráfico 01. Quantificação das teses objeto de estudo
Fonte: Banco de dissertações e teses dos PPGHs e Capes. Elaboração dos autores.
6
Matriz disciplinar da história ou matriz epistemológica, do tipo ideal da ciência
histórica proposta por Rüsen e Kuhn, que possibilita realizar a análise historiográ-
fica, entendida esta última como a forma de teorização e representação das expe-
riências humanas que resulta numa história escrita, a qual, consciente ou incons-
ciente, está filiada a certos modelos epistemológicos. Ver, entre outros, KUHN,
Thomas S. A. Estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1979; RÜ-
SEN, Jörn. Reflexão sobre os fundamentos e mudanças de paradigmas na ciência
histórica alemã-ocidental. In: NEVES, A. B.; GERTZ, R. E. A nova historiografia
alemã. Porto Alegre: Ediufrgs, 1987. p. 14-40; MACHADO, Ironita P. Cultura histo-
riográfica e identidade: uma possibilidade de análise. Passo Fundo: UPF, 2001.
18 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
organizar o conhecimento histórico como processo cognitivo. Os
vetores possíveis de análise são o interesse pelo conhecimento;
as perspectivas orientadoras; as regras metódicas; a forma de
representação historiográfica; a função didática da história. No
entanto, pelas limitações deste texto, analisaremos apenas os três
primeiros.
Na medida em que se faz breve explicação de cada vetor da
matriz disciplinar, identificaremos os elementos das teses e as
variáveis que ainda serão teorizadas. As teses foram lidas indi-
vidualmente, e a leitura, orientada pelos vetores, no entanto, o
objetivo desta análise será tomada no geral.
O primeiro vetor, “o interesse pelo conhecimento”, corres-
ponde ao lugar social do historiador e ao contexto problemáti-
co, tendo necessidade de orientação da práxis cotidiana, o que
possibilita identificar as motivações historiográficas e a temati-
zação das questões de identidade. Dois elementos são evidencia-
dos nesse vetor: o primeiro diz respeito à carreira acadêmica dos
doutores, a maioria constrói a reflexão e a prática de pesquisa
desde a graduação – iniciação científica, ou trabalhos finais de
curso – participando de grupos e laboratórios de pesquisa; o se-
gundo, estreitamente relacionado ao primeiro, corresponde aos
problemas de investigação associados ao lugar social de origem,
como também a incorporação teórica à linha de pesquisa (pro-
fessor orientador) do programa de pós-graduação a que está vin-
culado. O vetor, “as perspectivas orientadoras”, diz respeito às
orientações teóricas que possibilitam que o passado seja conhe-
cido como história, portanto, meio deste identifica-se como os
historiadores se reportam ao passado, observando o tratamento
dado ao tempo, às mudanças, aos fatos históricos e aos aspectos
contemplados. Esta questão ficará melhor ilustrada quando apre-
sentarmos os recortes espaciais e temáticos.
História do mundo rural: construção do conhecimento em perspectiva 19
O terceiro vetor, “as regras metódicas”, diz respeito às for-
mas pelas quais as experiências do passado foram inseridas nas
perspectivas orientadoras através da pesquisa de acordo com a
opção teórica da concepção de história. Esse elemento orienta
a análise da identificação das fontes utilizadas e as formas de
utilização. Estes dois vetores entrecruzam-se, por isso tratamos
apenas três aspectos dos dois: os recortes temporal, temático e
espacial, apresentados na sequência.
Fonte: Banco de dissertações e teses dos PPGHs e Capes. Elaboração dos autores.
7
Sobre o tema, ver CARDOSO, Ciro Flamarion S. História da agricultura e
História do mundo rural: construção do conhecimento em perspectiva 25
menor número a história econômica. Nesse aspecto queremos
trazer à reflexão a questão da história do mundo rural, constituir
na leitura dos processos de produção agrícola, propriedade da
terra, modo de produção e capitalização da terra e a capacidade
produtiva, de transformações do espaço socioambientais, sem se
desvincular de políticas econômicas estatais, de grupos capitalis-
tas, de políticas e legislações de gerenciamento da propriedade
da terra, de instituições político-culturais e das relações de traba-
lho, assim como do processo de industrialização e urbanização,
uma história social do mundo rural em construção.
O social trata de um campo de interpretação histórica que
permite a localização empírica e teórica do objeto de estudo, in-
cluindo as bases materiais e subjetivas na constituição de uma
totalidade histórica. O estudo das relações sociais em determi-
nado tempo, localizado espacialmente, permite identificar to-
madas de decisões, deliberadas e conscientes, para intervir nas
áreas em que se decidem seus destinos; permite ainda introduzir
uma dialética da continuidade e da mudança da estrutura e da
conjuntura em oposição ao tempo do acontecimento. Em outras
palavras, não se pode fazer a “nova história” como possibilidade
da interseção entre “todas as histórias”, social e política, sem o
social. Nas palavras de Maria Yedda Linhares (1997, p. 170),
Fonte: Banco de dissertações e teses dos PPGHs e Capes. Elaboração dos autores.
REFERÊNCIAS
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espaços. In: SILVA, Marcos A. (Coord.). República em migalhas: história
regional e local. São Paulo: Marco Zero, 1990.
BLOCH, Marc. Introdução à história. Trad. de Maria Miguel e Rui Grácio.
AS TRANSMISSÕES DE PROPRIEDADE
INTRODUÇÃO
Este artigo busca problematizar a questão da partilha das
heranças, aliadas à transmissão de grandes propriedades no sé-
culo XIX. O objetivo é entender de que modo ocorria a trans-
missão do patrimônio das famílias de estancieiros abastados nos
atuais municípios de Vacaria - RS, Lages - SC e São José dos
Ausentes - RS. As fontes documentais utilizadas são os inven-
tários post-mortem de três fazendeiros do século XIX. Possuíam
vastos territórios que lhes conferiam visibilidade e prestígio so-
cial. José Joaquim Ferreira (1872), proprietário de uma fazenda
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de
Passo Fundo (UPF). Membro do Núcleo de Estudos Históricos do Mundo Rural
(NEHMuR). E-mail: [email protected].
mais importantes na povoação dos Campos de Cima da Serra,
doada em sesmaria a José de Campos Bandemburgo por volta
de 1770; Laureano José Ramos, dono da fazenda Guarda Mor,
localizada no atual município de Lages; Antônio Manoel Velho,
proprietário da fazenda dos Ausentes, localizada em São José
dos Ausentes.
A fazenda do Socorro foi tombada patrimônio histórico e
cultural do Rio Grande do Sul pelos artigos 221, 222 e 223 da
Constituição do Estado, através do projeto lei nº 257 de 2010,
atualmente é propriedade particular de uma família que a ad-
ministra e mantém a produção agropecuária. Porém, durante o
século XIX, a fazenda pertencia à família de José Joaquim Fer-
reira, uma das maiores propriedades pecuaristas da região. A fa-
zenda servia de passo para os tropeiros, abrigava as invernadas e
era local de pouso para os que seguiam pelo caminho de Viamão
e da Vacaria dos Pinhais em direção às feiras de Sorocaba - SP.
A fazenda Guarda Mor, após passar por vários proprietá-
rios, foi adquirida por Laureano José Ramos, que administrou
até o seu falecimento em 1861. Os descendentes, além de fazen-
deiros, foram também grandes líderes políticos, atuando na ad-
ministração do estado de Santa Catarina durante os séculos XIX
e XX. Além da fazenda, pertencia à família Ramos as fazen-
das São Luiz e Cadete, localizadas na chamada Coxilha Rica.
A fazenda Bananeiras, deixada por Laureano Ramos ao seu
filho José Oliveira Ramos, da qual tiveram origem as fazendas
Herança, Santa Rosa, Carasinho, Bugio e Cascata. Paiquerê foi
propriedade do coronel Vidal Ramos Senior, também dono de
outras fazendas. São Luiz passou para o filho José de Oliveira
Ramos, que a deixou ao filho João. Cadete ficou para o filho José
Luiz, que a vendeu a Carlos Vidal Ramos Costa (1982).
POSSE OU PROPRIEDADE?
A manutenção do prestígio social, assim como a preserva-
ção do patrimônio familiar, dependia dos cuidados da qualidade
das interações sociais. Os fazendeiros contavam com a ajuda das
redes familiares e clientelares para preservar suas posses. Muitos
optavam por escrever testamentos indicando o futuro adminis-
trador da propriedade familiar. Ser senhor e possuidor de terras
significava não apenas usufruir de uma condição de vida favorá-
vel, mas abrangia uma série de privilégios expressos no prestígio
advindo da posição social que a terra conferia aos grandes fazen-
deiros. Segundo Mota (1998, p. 38),
PARTILHA DE HERANÇAS
Diferentemente do que se pensa, as partilhas de heranças
no século XIX eram realizadas através de critérios rígidos, sem-
pre seguindo os padrões da lei vigente. As Ordenações Filipinas
definiam as divisões de patrimônios entre os herdeiros, já que o
Patrimônio familiar nos Campos de Cima da Serra no final do século XIX... 55
primeiro Código civil brasileiro só passou a vigorar em 1916. De
acordo com a lei, a partilha era realizada na soma total dos bens
deixados, que configuravam o maior monte, deste era deduzida a
partilha que efetivamente seria partilhada após o pagamento das
dívidas, dos credores, dos espólios, gastos fúnebres, entre outros.
Do monte líquido partível, retirava-se a meação da(o) viú-
va(o), a outra metade era dividida entre os filhos do casal, em
caso de falecimento de algum herdeiro filho, o valor correspon-
dente passava a pertencer aos seus filhos. Nesse caso, o valor
referente à legítima do falecido era dividido em igualdade en-
tre todos os seus filhos. No entanto, se não tivesse descendentes,
toda a herança devia pertencer a(o) viúva(o), complementando
seu pagamento.
A herança de Laureano José Ramos coube à sua esposa Ma-
ria Gertrudes de Moura e aos seus nove filhos. Os bens somavam
81.787.553 réis, em libras esterlinas atingia 8.962,55, entre ani-
mais, terras, escravos, joias e utensílios de uso doméstico. À viú-
va coube o valor de 48.903.775 réis. Ela ficou com a maior parte
das terras da fazenda Guarda Mor, incluindo casa, benfeitorias,
além do moinho e grande quantidade de animais, sendo direito
por lei herdar a casa onde residia. Nas Ordenações Filipinas, li-
vro quarto, lemos: “Todo o sobredito há lugar nos bens comuns
que hão de ser partidos entre a mulher e os herdeiros do marido,
ou entre o marido e os herdeiros da mulher.” Nesse caso, tiran-
do a meação da viúva, o restante da herança, incluindo terras,
animais, escravos, dinheiro, era dividido primeiramente entre os
herdeiros diretos.
Do mesmo modo que ocorreu a partilha das heranças de
Antônio Manoel Velho, as divisões da herança de Laureano José
Ramos foram realizadas em conformidade com a lei, sem a cons-
PERDAS DE PATRIMÔNIOS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos, através deste estudo, analisar o processo de par-
tilha de heranças com vistas às perdas ou manutenção do pa-
Patrimônio familiar nos Campos de Cima da Serra no final do século XIX... 61
trimônio. Primeiramente verificamos que todas as separações e
divisões de bens eram realizadas devidamente nos critérios da
lei. Caso algum herdeiro acumulava maior capital em relação
aos demais, o fato se devia a arranjos familiares após a partilha.
Isso ocorria se algum herdeiro vendesse ou trocasse parte de sua
herança a um outro herdeiro, destacando-se em relação aos de-
mais. Na partilha de Antônio Manoel Velho, um dos herdeiros se
tornou o novo administrador da fazenda dos Ausentes, acumu-
lando a maior parte da fortuna.
Os testamentos eram uma maneira direta de o fazendei-
ro escolher seu futuro sucessor para cuidar do patrimônio e da
própria família. No entanto, nem sempre os acordos saíam con-
forme o determinado, não era possível prever se realmente as
escolhas teriam sido efetivamente as melhores. Os desentendi-
mentos entre os herdeiros podiam resultar na decadência e perda
da fortuna.
Os estudos apontam que as desavenças e disputas de heran-
ças na família Ferreira resultaram na perda de mais da metade de
todo o patrimônio. O motivo do desentendimento partiu da es-
colha de José Joaquim Ferreira nomear seu sobrinho Domingos
Gomes da Cunha como herdeiro universal. A família, na disputa
pela herança, ocasionou mais do que a discórdia na divisão de
patrimônios, a própria degradação familiar, começando pelo as-
sassinato de Ferreira.
Ao final deste trabalho, evidencia-se que as famílias que
optaram pela partilha amigável de suas fortunas e permitiram a
divisão entre todos os membros, demonstraram maior capacida-
de na conservação do patrimônio. As estratégias de organização
familiar foram fundamentais para evitar dilapidação da fortuna
no momento da partilha. Mostrou-se significativo nos cuidados
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre teoria da ação. Campinas:
Papirus, 1996.
BURGUIÈRE, André; LEBRUN, François. As mil e uma famílias da
Europa. In:_BURGUIÈRE, André et al. História da família. Lisboa:
Terramar, 1987. v. 3. p. 15-82.
CAMPS, Joan Bertard. La estrechez del lugar: reflexiones en torno
a las estrategias matrimonialaes cercanas. In:_JIMÉNES, Francisco
Chacon; FRANCO, Juan Hernández (Ed.). Poder, família e consanguinidad
em la Espanã del antigo régimen. Barcelona: Antropos,1992. p. 107-156.
COMISSOLI, Adriano. A serviço de sua majestade: administração, elite
e poderes no extremo meridional brasileiro (1808c.-1831c). Rio de
Janeiro, 2011.
MACHADO, Ironita P. Entre justiça e lucro: Rio Grande do Sul 1890-
1930. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2012.
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito
e direito a terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de
Leitura, 1998.
KUNH, Fábio. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da
América portuguesa – século XVIII. Niterói, 2006.
Vitória Comiran1
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa sobre o mundo rural durante a era Vargas
(1930-1945) procura compreender, através de diferentes tipo-
logias de fontes, como os discursos, constituições, legislações e
processos civis, as repercussões da política desenvolvimentista
introduzida no governo no meio rural. Analisam-se 17 discursos
de Getúlio Vargas, as constituições de 1934 e 1937 e as legisla-
ções agrárias.
Prioriza-se a contextualização de três análises de casos a
partir da amostragem de três processos civis, que demarcam re-
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de
Passo Fundo (UPF). Membro do Núcleo de Estudos Históricos do Mundo Rural
(NEHMuR). Bolsista Prosuc/Capes. E-mail: [email protected]
presentativamente as dinâmicas que envolveram algumas carac-
terísticas sobre a questão fundiária no norte rio-grandense. Este
estudo é pertinente como forma de contribuir na construção de
um debate acadêmico que visa aprofundar questões político-eco-
nômicas e jurídicas acerca do mundo rural.
Para desenvolver a pesquisa, foi utilizada a metodologia da
análise do discurso na concepção de Bakhtin, que propõe o es-
tudo da língua através dos símbolos e da interferência ideológica
e externa expressa no contexto histórico-social que interfere nas
manifestações do interlocutor. Segundo Bakhtin (2010, p. 21-
22), “[...] o signo ideológico, deve ser concebido a partir de um
sujeito, que se constitui na e pela linguagem, num processo de
interação determinado pelo momento sócio-histórico formador
de condutas humanas”.
A era Vargas foi um período em que muitas mudanças fo-
ram propostas no âmbito político-econômico nacional no que
diz respeito ao rural, para alavancar novos projetos ligados ao
desenvolvimento econômico, que propunham diversificar as po-
líticas mantidas durante a República Velha (1889-1930). No pe-
ríodo que antecede o processo revolucionário de 1930, que con-
duziu Vargas ao poder, é possível caracterizá-lo como permeado
por interesses político-econômicos voltados à agroexportação,
principalmente no que tange à estrutura oligárquica latifundiária
dominante.
Diante dessas características, três aspectos compreensivos
acerca do mundo rural na perspectiva da era Vargas serão obser-
vados. O primeiro analise as mudanças iniciadas em 1930, ob-
servadas nos primeiros discursos de Getúlio Vargas como chefe
de governo. Os discursos, ao todo 17, evidenciam as diferentes
fases do governo, as ambições e anseios que variaram conforme
PASSO REAL
INTRODUÇÃO
A partir de 1965, para a construção da usina hidrelétrica do
Passo Real, o governo do estado do Rio Grande do Sul desapro-
priou 23.000 hectares de terra na região do Alto Jacuí, mais espe-
cificamente nos munícipios de Cruz Alta, Ibirubá e Espumoso,
desalojando milhares de famílias. Em 28 de agosto de 1968 foi as-
sinado entre o Estado, através da Comissão Estadual de Energia
Elétrica (CEEE), e a União, representada pelo Instituto Brasilei-
ro de Reforma Agrária (Ibra), posteriormente transformado em
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o
1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de
Passo Fundo (UPF). Membro do Núcleo de Estudos Históricos do Mundo Rural
(NEHMuR). E-mail: [email protected].
chamado “Acordo de cooperação”, pelo qual o Governo federal
assumia a responsabilidade do reassentamento dos desalojados.2
De acordo com o relatório da CEEE, datado de 8 de setem-
bro de 1969,3 foram desapropriadas 3.129 unidades rurais, das
quais 1.498 na margem direita do rio Jacuí e 1.631 na margem
esquerda. Em outra lista encontrada no mesmo relatório, 1.265
glebas tinham registro de propriedade em cartório. Nesse senti-
do, segundo dados do Incra,4 aproximadamente 1.600 famílias
de agricultores foram atingidas. Desse total, 1.050 optaram pelo
reassentamento em novas terras num primeiro momento. Assim,
o órgão federal teria desapropriado na primeira etapa 16.449,36
hectares. Dentre os quais, 9.774,37 hectares pertenciam à fazen-
da Boa Vista, localizada no município de Cruz Alta; 3.064,1878
hectares desapropriados da fazenda Colorados, situada no mes-
mo município; 3.140,1003 hectares da fazenda Itaíba, nos muni-
cípios de Ibirubá e Santa Bárbara do Sul.
O processo de reassentamento foi institucionalmente elabo-
rado com o Projeto integrado de colonização (PIC), que desa-
propriaria uma área conforme as normas do Estatuto da Terra. A
área seria repartida de forma parcimoniosa e disponibilizada aos
agricultores que a compravam mediante o pagamento em vinte
anos, daí obteriam o título legal da propriedade. Nesse processo
2
LORENZON, Algir (Org.). Afogados: até quando? Relatório da Comissão
Especial dos Agricultores Desalojados do Passo Real. Porto Alegre: Assembleia
Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul; Companhia Rio-Grandense de Artes
Gráficas, [s.d.].
3
CEEE – Relatório acerca das propriedades que tiveram suas terras atingidas pelas
águas da bacia de alagamento do Passo Real. 8/9/1969. Arquivo do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos.
4
Projeto Integrado de Colonização Sarandi (Gleba I – invernada do Butiá) –
Ministério da Agricultura – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
– Incra, Coordenadoria Regional do Rio Grande do Sul, publicado em dezembro
de 1972.
84 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
também havia fomento de crédito para a aquisição de utensílios
e maquinários, bem como a realização de estudo técnico acerca
das condições de exploração agrícola dos terrenos.
Nesse sentido, o Projeto integrado de colonização do Passo
Real deveria ter reassentado 513 famílias, para posteriormente
recolocar mais 537. O Incra ampliou o Projeto integrado de colo-
nização de Sarandi,5 desapropriando a invernada do Butiá, per-
tencente à firma Sagrisa – Comercial e Agrícola Ltda. Também
foram desapropriadas a fazenda Sarandi, de Ernesto José An-
noni, e a antiga estação experimental Engenheiro Luiz Englert,
mediante acordo entre o Governo do estado e o Ministério da
Agricultura, passando ao patrimônio do Incra parte da área não
lotada do núcleo colonial de reforma agrária de Sarandi.
SITUAÇÃO CONTRADITÓRIA
Contudo, os projetos integrados de colonização do Incra
deveriam ter reassentado pelo menos 1.050 famílias, porém não
cumpriram com esse número, tampouco foram suficientes para
reassentar a totalidade das famílias atingidas pela construção da
barragem do Passo Real. Conforme os arquivos do setor de titu-
lação do Incra/RS, até a década de 1990 somente 476 famílias
foram reassentadas, considerando o total de 3.129 unidades ru-
rais, estariam em situação de desamparo 2.653 com direito ao
reassentamento.
Apesar da alta cifra de desabrigados, devemos considerar
que muitas famílias não optaram pelo reassentamento. O que de
fato se deve considerar é que a maioria dos atingidos não teve
5
O PIC teve origem no primeiro processo de desapropriação da fazenda Sarandi
em 1962, em ação decorrente das mobilizações e acampamentos realizados nesse
ano pelo Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master) na região.
Desvendando os ‘afogados’: os atingidos pela barragem do Passo Real 85
uma justa reparação por parte das autoridades estatais que os de-
salojaram. Para ter uma dimensão concreta de tal panorama, em
1986 a prefeitura de Fortaleza dos Valos6 enviou à Superinten-
dência do Incra/RS um dossiê advogando em favor dos atingidos
da barragem. O conteúdo dos documentos evidencia a situação
de diversos desalojados que há mais de 12 anos estavam à espera
de uma solução, vivendo em condições precárias. Encontramos
várias listas com nomes de desalojados candidatos ao reassenta-
mento cujo somatório representava mais de trezentas famílias.
Dentre os trabalhadores rurais desalojados encontravam-se
pequenos proprietários, arrendatários, parceiros e meeiros, que
tiveram seus meios de sobrevivência destruídos pela barragem.
Nesse sentido podemos elucidar o caso de APM, mediante um
requerimento encontrado no arquivo do sindicato.7 Em 1969,
quando da desapropriação, APM arrendava a cinco proprietários
uma área de 100 hectares. Possuía três tratores e uma automotriz
financiados pelo Banco do Brasil. Ele também era proprietário
de 2,5 hectares oriundos da herança de sua esposa IGS., também
havia comprado outros 2,5 hectares com recursos próprios.
Vindo a desapropriação, APM perdeu tudo, inclusive o ma-
quinário, ficando sem condições de pagar o financiamento pen-
dente. Em 1986, ele vivia na área urbana de Fortaleza dos Valos,
com sete filhos maiores de idade, também em situação de desam-
paro. Numa observação no final do documento pode-se entender
a situação de APM: “A pobreza e a desesperança, não consegue
abater seu A. P. M e sua família, tem sobrevivido da esperança de
um dia reconquistar tudo o que a BARRAGEM levou.”
6
Emancipado de Cruz Alta em 1982, Fortaleza dos Valos é o município com
maior área alagada pela barragem.
7
Requerimento APM, desalojado do Passo Real em 8/12/1986. Arquivos da
Superintendência do Incra/RS.
86 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
Também podemos apreciar alguns quadros em que um agri-
cultor perdeu parcialmente sua terra. Foi a situação de NFC,8
que antes do alagamento plantava 35 hectares em parceria com
o sogro. Em 1986, como a maior parte de suas terras ficou sub-
mersa, plantava 4 hectares, onde possuía a moradia, mas sem
condições mínimas de poder sobreviver.
Trajetória parecida teve NPS,9 em 1969 morava na comu-
nidade rural do Rincão dos Valos trabalhando em parceria com
TS. Quando a água chegou, NPS perdeu o pedaço de terra que
lhe era cedido, perdeu também a fonte de sustento de sua família.
Em 1986, ele estava com 53 anos e, conforme a observação no
final do documento, era considerado “uma pessoa caridosa, que
reparte o pouco que tem, ajudando os ainda mais pobres; Pessoa
reconhecidamente honesta”.
No requerimento de DFS10 consta o esforço desempenhado
por um desalojado para manter sua família após o alagamento.
Até 1969, ele plantava de 8 a 12 hectares com tração animal. Em
1986, casado com ELS, tinha dez filhos, seis maiores de idade,
e plantava 3 hectares que havia recebido de herança da esposa.
Além de possuir três vacas de leite e algumas galinhas, tinha que
caminhar mais de 2 km para plantar uma área de 2,5 hectares
cedida por um parente. Na observação consta que a família era
numerosa e organizada, poderia produzir mais. Contudo, não
tinha as condições necessárias para tanto, pois vivia em situação
de extrema pobreza.
Além de arrendamentos e parcerias em terras cedidas por
8
Requerimento NFC, desalojado do Passo Real em 10/12/1986. Arquivos da
Superintendência do Incra/RS.
9
Requerimento NPS, desalojado do Passo Real em 8/12/1986. Arquivos da
Superintendência do Incra/RS.
10
Requerimento DFS desalojado do Passo Real em 10/12/1986. Arquivos da
Superintendência do Incra/RS.
Desvendando os ‘afogados’: os atingidos pela barragem do Passo Real 87
parentes e amigos, muitos desalojados necessitavam trabalhar
como diaristas em propriedades alheias para complementar sua
escassa renda. Foi o caso de IMM, que na época da desapropria-
ção vivia nas terras de seu pai ABM, possuía 3,5 hectares, foi
indenizado apenas 1,5 hectare. Em 1986, IMM tinha 37 anos, ca-
sado, com dois filhos menores, cultivava 4 hectares de seu sogro,
pagava uma taxa de 20% da produção. Assim, para incrementar
o sustento da família, trabalhava como diarista em granjas11 de
terceiros.
Mediante a leitura dessas fontes, evidenciamos o difícil
panorama enfrentado pelos desalojados do Passo Real, que em
meados dos anos 1980 ainda não haviam sido reassentados. Esse
cenário possibilita perguntar por que esses trabalhadores ru-
rais, prejudicados pela barragem, não foram reassentados como
as demais famílias que ainda nos anos 1970 tiveram o acesso
à terra através do acordo celebrado entre o Incra e o Governo
do Rio Grande do Sul? Ainda não temos todas as respostas, no
entanto, os requerimentos já referenciados dão algumas pistas
do que pode ter acontecido. No requerimento de IMM encon-
tramos a seguinte sentença: “NIGUÉM TEM COMPROVAN-
TE ALGUM, TANTO DE DOCUMENTOS como destas INS-
CRIÇÕES. Perguntado por que? DIZEM que o Dr. J.B ficava de
mandar depois...”.
Analisando os outros requerimentos, mais da metade dos
documentos traz uma referência a um tal Dr. JB vinculado ao
Incra, que entre 1969 e 1971 era responsável por inscrever os de-
salojados na lista para reassentamento. Os requerentes alegaram
ter sido inscritos com o Dr. JB, porém nunca receberam os com-
provantes. Ainda não podemos tirar nenhuma conclusão defini-
11
“Granja” coloquialmente se referem a propriedades rurais, independentemente
do tamanho, na região do Alto Jacuí.
88 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
tiva, entretanto, tais evidências permitem questionar os métodos
burocráticos adotados pelo Incra na seleção dos desalojados, que
acentuaram ainda mais as contradições daquele processo. Futu-
ramente, no decorrer de nossas pesquisas, mediante cruzamento
de fontes mais acuradas, poderemos tecer reflexões mais consis-
tentes sobre essa matéria.
12
Embora a fazenda Annoni também tenha recebido afogados do Passo Real,
essa foi palco de um processo mais amplo, abrigando trabalhadores rurais sem
terra de diversas partes do Rio Grande do Sul. Nesse sentido é interessante
contemplar a dissertação “A função social da propriedade da terra no processo de
desapropriação da fazenda Annoni (1972-1993)”, de Simone Lopes Dickel (2016):
A fazenda Annoni, localizada na região Norte do Rio Grande do Sul, pertencente
aos municípios de Pontão e Sarandi, ganhou espaço nos noticiários no ano de
1985. Ficou conhecida quando foi alvo da maior ocupação de terras no Brasil até
então, coordenada pelo recém-criado Movimento dos Sem Terra (MST) no início
do período democrático. No ano de 2015, a ocupação, que contribuiu para tornar
a fazenda um dos símbolos da reforma agrária, feita por mais de 1.500 famílias
sem terra, completou trinta anos. No entanto, antes disso, um conflito importante
– e pouco conhecido em torno da desapropriação da Annoni – acontecia desde
o início da década de 1970, envolvendo os desapropriados (família Annoni) e
a União. Parte remanescente do grande latifúndio regional denominado fazenda
Sarandi, que foi palco constante de conflitos em torno da terra por diferentes
Desvendando os ‘afogados’: os atingidos pela barragem do Passo Real 89
contestavam sua desapropriação na justiça há mais de dez anos.
A denominação “afogados” se consolidou quando o deputado
Algir Lorenzon publicou relatório da Comissão com o título
“AFOGADOS: Até Quando?” O termo ganhou mais amplitude
e destaque pela imprensa na matéria daquele ano, muitas vezes
referindo-se aos agricultores como afogados.
É possível que tal alcunha tenha aparecido há alguns anos
antes. No livro de memórias, o prefeito de Ibirubá, entre 1963
e 1968, Olavo Stefanello, havia sido procurado pelos atingidos
para que interviesse em seus clamores. Então, Olavo os teria de-
nominado de “afogados”: “Os afogados do Passo Real, como eu
os denominei, só aceitariam sair de suas terras pacificamente se a
CEEE e os governos lhe dessem outras terras, assentando-os não
distante dali e com a mesma infraestrutura” (Stefanello, 2008, p.
227).
O prefeito de Ibirubá também relata que se entrevistara com
os presidentes Castello Branco, Costa e Silva e Médici, dizendo
que “como a solução ideal e necessária” tardou em vir, muitas
audiências e reuniões foram realizadas sem que o problema fosse
resolvido (Stefanello, 2008, p. 227).
Afora a origem de tal denominação, é importante analisar
como os atingidos forjaram uma identidade na luta pela terra
e reconhecendo-se como “afogados”, clamavam por justiça so-
cial. No documento, sem data, intitulado “Os afogados do Passo
Real”,13 localizado nos arquivos do Sindicato dos Trabalhadores
14
Nota de solidariedade da Regional Sindical dos Trabalhadores Rurais do
Desvendando os ‘afogados’: os atingidos pela barragem do Passo Real 91
Um terceiro documento do sindicato de Fortaleza dos Valos
mostra como os afogados alicerçaram sua identidade e constituí-
ram um discurso firme na luta pela terra. O documento intitula-
do “O manifesto dos afogados da barragem do Passo Real”, ela-
borado em viagem a Porto Alegre, os trabalhadores esclarecem
às autoridades quem eles eram:
17
CH e Passo Real/gleba 92 em 11/5/1965. Arquivos da Superintendência do
Incra/RS.
Desvendando os ‘afogados’: os atingidos pela barragem do Passo Real 97
Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos um documento18
que pedia colaboração para o cadastramento dos desalojados,
dando um sinal que iria reassentá-los. A questão, no entanto,
somente teria prioridade as pessoas que estivessem na situação
de agricultores sem-terra, não priorizando aqueles que tivessem
terra, ou estivessem empregados, ou em condições razoáveis. O
problema era como medir as tais “condições razoáveis”. O fato
de o sujeito estar empregado não desqualificaria como um sem-
-terra, talvez fosse a única solução circunstancial para sustentar
sua família. No caso dos afogados que ainda tivessem um pedaço
de terra, de todo modo não era o que possuíam antes do alagado,
e na maioria dos casos não era suficiente para sua manutenção.
Ainda não conseguimos aferir o tamanho dos lotes propos-
tos pelo Mirad nesses reassentamentos. Entretanto, através da
solicitação de cinco afogados,19 é cabível dizer que as glebas eram
inferiores àquelas distribuídas nos primeiros projetos integrados
de colonização, que os outros desalojados receberam. Assim, os
afogados VSC, ORJ, SS, FLS e AS solicitavam, de “forma sin-
gela”, a igualdade no recebimento de lotes com os que já foram
reassentados:
18
Delegado regional do Mirad no Rio Grande do Sul, 11/3/1988. Arquivo do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos.
19
Solicitação afogados, [s.d.]. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Fortaleza dos Valos.
98 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
hoje pelo MIRAD, nos concederia um pedaço de terra,
mas não pensávamos que o mesmo seria tão pequeno,
em relação aos sofrimentos e angústias guardadas por
estes longos anos.
FONTES
CEEE – Relatório acerca das propriedades que tiveram suas terras
atingidas pelas águas da bacia de alagamento do Passo Real, 8/9/1969.
Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Fortaleza dos Valos.
CHE Passo Real/gleba 92, 11/5/1965. Arquivos da Superintendência
do Incra/RS.
Declaração AB, 18/6/1984. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores
O CASO DA
FAZENDA ANNONI
INTRODUÇÃO
Embora fosse objeto de uma grande disputa judicial per-
meada de contradições desde a década de 1970, a antiga fazenda
Annoni no norte rio-grandense tornou-se conhecida no cenário
nacional em outubro de 1985. Em pleno processo de redemo-
cratização e elaboração do Plano Nacional da Reforma Agrária
(PNRA), a região cujo histórico de conflitos agrários remonta os
anos de 1960 (quando uma parte da fazenda Sarandi foi desapro-
priada durante o governo de Leonel Brizola) desperta novamente
1
Doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade de Passo Fundo (UPF). Membro do Núcleo de Estudos Históricos
do Mundo Rural (NEHMuR). Bolsista Capes. E-mail: simone.lopes.dickel@
gmail.com.
a atenção da sociedade para o drama vivido pelos sem-terra no
sul do país.
A fazenda Sarandi/Annoni, que inicialmente foi desapro-
priada para fins de reassentamento de colonos desalojados em
função da construção da Barragem do Passo Real, foi objeto de
intensa disputa nos tribunais (Dickel, 2017). A desapropriação
proposta pela União através do decreto 70.2322, que declarava o
imóvel de interesse social para fins de reforma agrária, foi ques-
tionada de forma veemente pela família desapropriada. Essa
impugnação, que buscou amparo legal no direito à propriedade,
atrapalhou os planos da União de conferir uma destinação social
pretendida às terras da Annoni. Algumas das famílias para as
quais o imóvel fora destinado foram realocadas pelo Incra na
fazenda, mas em situação precária.
Nesse rol de conflitos, em meados da década de 1980, o
imóvel passou a despertar o interesse de um contingente de
camponeses sem terras da região, que se organizar em torno do
recém-criado Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST).3 Após a ocupação em 1985, a Annoni se tornou um dos
palcos da formação e consolidação daquele que viria a se tornar
o mais organizado movimento socioterritorial de luta pela terra
(Fernandes, 2008). É, portanto, inegável e compreensível que em
2
Baixado em 3 de março de 1972 pelo Presidente da República Emílio Garrastazu
Médici, o decreto de 70.232 foi seguido de uma ação de desapropriação, ajuizada
dias depois na Justiça Federal de Passo Fundo. O enorme processo judicial que
decorreu do ato desapropriatório encontra-se no Incra/Porto Alegre, na seção de
Obtenção de Terras.
3
Fundado em 1984, após o Primeiro Encontro Nacional, em Cascavel, no Paraná,
o MST surgiu do protagonismo dos camponeses, e tinha três grandes objetivos
principais: lutar pela terra, lutar pela reforma agrária e lutar por mudanças sociais
no país (disponível em: http://www.mst.org.br/nossa-historia/84-86). Sobre a
história da formação do MST, ver FERNANDES, B. M. A formação do MST no
Brasil. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000.
104 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
qualquer menção que se faça ao antigo latifúndio, hoje assenta-
mento, esteja presente a referência à ideia de reforma agrária,
fruto da luta pela terra.
Recentemente, um novo assunto tem dividido a opinião dos
assentados, acarretando algumas preocupações em relação ao fu-
turo do assentamento. As possíveis implicações do processo de
titulação decorrentes de uma nova política de governo em rela-
ção à reforma agrária se constituíram um tema de controvérsias,
e preocupou inclusive funcionários do Incra de modo geral. O
motivo foram as mudanças propostas pela medida provisória nº
759, reconhecida como um novo marco na legislação agrária.
Num primeiro momento, é contextualizada a proposição
da medida provisória que foi transformada na lei nº 13.465 de
2017, sancionada pelo presidente Michel Temer. Num segundo
momento, são discutidas mais pontualmente as principais mu-
danças que essa medida propôs. Com base nisso, busca-se lançar
alguma luz para se pensar quais os impactos da lei nos assen-
tamentos de reforma agrária, como o assentamento da fazenda
Annoni.
4
Um dos prefeitos de Pontão, município do norte do Rio Grande do Sul, que
abrange a maior extensão das terras da antiga fazenda Annoni, teve seu título de
domínio bloqueado. Ele precisou “dar explicações ao Incra” sobre o exercício de
mandato eletivo, que aconteceu bem depois de sua inclusão como beneficiário
da reforma agrária. Pode-se, nesse caso, questionar se não seria positivo a um
assentamento eleger seus representantes para que a comunidade possa pleitear
suas demandas?
108 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
de um assentado foi apontada como irregularidade, exigindo es-
clarecimentos junto ao TCU.
A análise de cerca de vinte processos de titulação no assen-
tamento da Annoni na situação de quitados e liberados, após
bloqueados pelo TCU, foi constatado que a maioria tinha sido
notificada pelo tribunal pelo fato de o beneficiário residir em mu-
nicípio de origem diferente da área do assentamento. Coube aos
indiciados se explicarem por meio de uma declaração que isso
aconteceu simplesmente porque o município de Pontão, atual
endereço dos envolvidos, ainda não era emancipado quando da
implantação do assentamento. Por esse motivo, houve divergên-
cias entre o município de residência do assentado e o município
onde o projeto de assentamento foi implantado.
Uma das cláusulas que os beneficiários se comprometiam
cumprir no momento da assinatura do contrato de concessão de
uso era “residir com a família na área, explorando-a direta e pes-
soalmente” (decreto no 59.428, de 27 de outubro de 1966, cap. V,
Da colonização oficial, art. 64, III). Essa era uma das principais
exigências feitas aos assentados, e a não observância podia acar-
retar a perda do lote, cuja posse podia ser reintegrada ao Incra,
resultando na exclusão do beneficiário do programa de reforma
agrária.
Nos casos em que o indiciamento de irregularidade recaísse
sobre alguns dos processos de titulação, a notificação resultava
no desencontro ou na falta de informações. Desse modo não se
configurava uma irregularidade, já que os assentados residiam no
lote designado pelo Incra. Após verificação caso a caso, “dadas
as devidas explicações”, o Incra e o TCU negociavam a liberação
dos títulos de domínio, bloqueados por motivos inconsistentes.
Na Cartilha de esclarecimentos sobre a regularização fundiária ur-
5
As divergências entre os acampados na Annoni levaram à formação de uma
assembleia em 1987, onde um grupo de acampados criou a Associação Gaúcha
de Reforma Agrária (Agra), que passou a atuar na coordenação do acampamento
paralelo ao MST.
Mudanças na legislação e o processo de titulação em assentamentos de reforma... 113
lançamento de editais para composição de novos assentamentos,
ignorando as famílias que já se encontram há mais de uma dé-
cada acampadas à beira de estradas e em situação de conflito”
(MST, 2017).
Outra mudança importante da reforma agrária relaciona-se
à regularização fundiária e aos critérios de permanência nos seus
projetos de reforma. Algumas das condições que motivaram as
investigações do TCU, levando a indiciamentos por irregularida-
des, foram normatizadas. Nesse cenário, enquanto para o acesso
ao programa há uma série de proibições, para a permanência do
assentado se percebe a permissão da maior parte dessas condi-
ções.
É o caso, por exemplo, do exercício de funções públicas de
interesse da comunidade, como de professor e de agente de saú-
de, e também da obtenção de renda superior a três salários míni-
mos mensais. Se um beneficiário passa em um concurso público,
não significa necessariamente que vá abandonar o lote, podendo
desempenhar atividade que venha a contribuir na comunidade
onde ele se insere, de forma concomitante à exploração agrícola
do lote.
O fato de um assentado desenvolver alguma atividade para
complementar a renda da família também não podia ser censura-
do, desde que isso não comprometesse a exploração da terra. Ao
invés de ser passíveis de condenação, eram permitidas e, inclusi-
ve, desejáveis. “Ao invés de ser fator de eliminação do beneficiá-
rio do programa, tais ascensões econômicas e sociais são alme-
jadas e, porque não, constituem o próprio cerne da distribuição
de renda e promoção da dignidade” (Cartilha de esclarecimen-
tos, 2017). Admitia-se, portanto, um novo perfil de assentado de
acordo com a nova realidade do campo, num contexto em que se
6
Em função das negociações que envolvem indenizações nos processos de
desapropriação, a propriedade do imóvel não é transferida de imediato em nome
do Incra. Logo, a autarquia não pode conceder a posse de imóvel, que ainda não
está sob sua propriedade.
Mudanças na legislação e o processo de titulação em assentamentos de reforma... 117
verno federal levará a uma maior precarização das condições nos
assentamentos”. Tal consideração veio ao encontro do que já foi
dito em relação ao tempo necessário de permanência do assenta-
do no lote para a estabilização, uma vez que as políticas públicas
dos assentamentos nem sempre aconteciam no ritmo das deman-
das dos assentados. Era importante ponderar nesse contexto que
nem sempre esse tempo era suficiente para que os assentados
adquirissem autonomia para produzir.
No caso da fazenda Annoni, apesar de ser um assentamen-
to relativamente antigo, cuja implantação se desdobrou em fa-
ses entre o final da década de 1980 e início da de 1990, apenas
uma das fases do assentamento foi considerada emancipada. Na
maior parte do assentamento o processo de titulação ainda não
tinha sido concluído, o que possibilitava recorrer ao Incra para
reivindicar políticas públicas de apoio e incentivo à produção
agrícola. Foi o caso do projeto de capeamento asfáltico do trecho
de oito quilômetros, aproximadamente, de uma estrada principal
do assentamento, que estava em fase de execução. A medida foi
pleiteada pelo poder público municipal de Pontão junto ao Incra,
que aprovou o projeto com recursos de emendas parlamentares.
Um dos objetivos da obra que, em tese, beneficiava 376 fa-
mílias era de “permitir maior segurança e viabilidade no deslo-
camento da população e no escoamento da produção agrícola”.
Uma das justificativas da administração municipal para pleitear
junto a parlamentares a destinação de verbas para a obra de pa-
vimentação asfáltica foi que essa era a forma encontrada de o
poder público contribuir para a permanência do homem no cam-
po, com qualidade de vida (projeto de Capeamento asfáltico de
estradas vicinais no assentamento Encruzilhada Natalino - Fa-
zenda Annoni/Incra).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos assentamentos da Annoni, foi difícil mensurar as con-
sequências dessas mudanças na legislação de reforma agrária, es-
pecialmente no que se refere à agilização das titulações, uma vez
que se tratava de um processo que estava em curso, mais vivo do
que nunca. De presença sempre marcante, o tema ainda dividia
opiniões, e levantava dúvidas acerca das reais intensões do poder
público, sendo pauta de muitas especulações acerca dos possíveis
desdobramentos do processo massivo de titulação.
Embora já prevista na Constituição de 1988 como um direi-
to dos beneficiários, a apropriação privada dos lotes oriundos da
reforma agrária podia ser facilitada e agilizada, sob a justificativa
de que o campo muda e a legislação também precisa se adequar
a essas novas realidades. Uma das críticas apontadas por espe-
cialistas – dentre os quais o sociólogo Sérgio Sauer (2017), que
também expressou o pensamento dos movimentos sociais, em
especial do MST – seria de que a titulação poderia representar a
possibilidade de mercantilização dessas terras de assentamentos.
Em termos provisórios, os estudos sobre os impactos da titu-
lação são praticamente uma novidade no mundo acadêmico, até
porque tratam de um fenômeno relativamente novo na história
brasileira. Se considerarmos que o processo de implementação
de assentamentos rurais, em si, é um fenômeno relativamente
recente, o processo de emancipação o é ainda mais. Por isso, a
complexidade dessas implicações ganha ainda mais relevância
quando acrescida ao fato de que a realidade de um assentamento
REFERÊNCIAS
BRASIL. Cartilha de esclarecimentos: regularização fundiária urbana e
rural. Brasília: Governo federal, 2017b.
______. Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017 que “dispõe sobre a
regularização fundiária rural e urbana [...]”. Brasília: Presidência da
República, 2017.
______. Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, que “dispõe sobre
a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma
agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal”.
Brasília: Presidência da República, 1993.
______. Medida provisória nº 759, de 26 de dezembro de 2016,
que ”dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a
liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária
e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal,
institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de
alienação de imóveis da União”, 23 de dezembro de 2016.
BONAVIGO, Elisabete Ana; BAVARESCO, Pedro Antônio. Fazenda
Annoni: da ocupação ao assentamento definitivo. In: TEDESCO, João
Carlos. Conflitos agrários no norte gaúcho-1980-2008. Passo Fundo: Ediupf,
2008.
DICKEL, Simone Lopes. Terras da Annoni: entre a propriedade e a
função social. Curitiba: Prismas, 2017.
FERNANDES, B. M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis-RJ:
Vozes, 2000.
_______. Conflitualidade e desenvolvimento territorial. In:
BUAINAIN, Antônio Márcio (Org.). Luta pela terra, reforma agrária
e gestão de conflitos no Brasil. Campinas: Editora Unicamp, 2008. (Col.
Instituições, Agricultura e Desenvolvimento sustentável).
INTRODUÇÃO
Este texto se direciona ao estudo da percepção que os de-
sapropriados, os expropriadores e o Judiciário possuíam da
função socioambiental das propriedades rurais desapropriadas
para a construção da usina hidrelétrica de energia de Machadi-
nho – Carlos Ermírio de Moraes (UHE Machadinho). Enfoca a
questão de como a função socioambiental da propriedade rural
1
Bacharel/licenciado em Direito; licenciado em História; especialista em Direito
Ambiental; mestre em Ambiente e Desenvolvimento; doutorando em História
pela Universidade de Passo Fundo e servidor público do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – Campus Sertão. Currículo
lattes: http://lattes.cnpq.br/2231250432559450. Membro do grupo de Pesquisa
Linguagens, Cultura e Educação (IFRS) e do Núcleo de Estudos Históricos do
Mundo Rural (NEHMuR).
pode ser entendida pelos sujeitos envolvidos nos processos de
desapropriação e de reintegração de posse para a construção da
UHE Machadinho.
A metodologia adotada para a implementação da pesquisa
envolveu um estudo de caso, e seguiu os pressupostos da pes-
quisa qualitativa, sendo analisados dez processos judiciais que
versaram sobre a desapropriação e reintegração de posse, todos
transitados em julgado e arquivados no Poder Judiciário do Rio
Grande do Sul, Comarca de São José do Ouro.
Busca-se analisar os processos de transformação da nature-
za local, associando-os com a percepção que os sujeitos têm em
relação ao meio ambiente e à propriedade rural. Dessa forma,
as reflexões, as fundamentações teóricas, as análises a respeito
das relações decorrentes entre o homem, o meio ambiente e a
propriedade foram respaldadas e descritas de forma que se possa
visualizar e compreender melhor essas inter-relações.
2
Socioambiental em dicionário Priberam da língua portuguesa. Disponível em:
http://www.priberam.pt/dlpo/socioambiental. Acesso em: 1º ago. 2016.
3
Socioambiental em dicionário on-line de português. Disponível em: http://
www.dicio.com.br/socioambiental. Acesso em: 2 fev. 2019.
A função socioambiental das propriedades rurais desapropriadas para a construção... 125
No que tange à propriedade rural e à sua função
socioambiental, deve ser levado em consideração que no decorrer
da história, tanto em nível mundial como local, a propriedade
passou por mudanças importantes. Inicialmente, o direito à
propriedade era absoluto; depois começou a se falar na função
social da propriedade, e nos dias atuais, a propriedade perpassa
uma visão social e ambiental, diante da necessidade de uma
proteção ambiental mais intensa, uma vez que é requisito básico
para uma vida digna.
A expressão “função social da propriedade” atribui-se ter
sido utilizada pela primeira vez em 1911 pelo francês Léon Du-
guit, intrínseca à ideia de fraternidade, preconizada pela Revo-
lução Francesa de 1789, em contraposição à concepção indivi-
dualista e absolutista do direito de propriedade que predominou
até o acontecimento histórico. Nesse prisma pertinente à lição de
Araújo (1999, p. 158):
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As justificativas invocadas pelos órgãos competentes e in-
teressados em construções de usinas hidrelétricas são no senti-
do de que, além da necessidade de produção de energia elétrica,
geram empregos diretos e indiretos, e as populações ribeirinhas
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Telga. A propriedade e sua função social. In:
LARANJEIRA, Raymundo (Coord.). Direito agrário brasileiro. São
Paulo: LTr, 1999.
BRASIL. Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964. Estatuto da
Terra. Presidência da República. República Federativa do Brasil.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
L4504.htm. Acesso em: 22 dez. 2018.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa
do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; Centro Gráfico, 1988.
SERVIÇO DE
A POLÍTICA DO
PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS NO
SOBRE A
INTRODUÇÃO
Durante a década de 1930, a questão indígena brasileira
passou por uma série de alterações no âmbito institucional e ope-
racional. A problemática é regida pelo Serviço de Proteção aos
Índios (SPI), órgão do aparato administrativo brasileiro desde
a fundação em 1910, readequado às novas diretrizes do gover-
no no pós-1930. O Estado brasileiro avançava, desde 1930, para
a constituição de um estado nacional e capitalista, imprimindo
uma nova estrutura organizativa. O governo de Vargas, progres-
sivamente, consolidava o poder do governo central, nacional,
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de
Passo Fundo (UPF). Bolsista Prosuc/Capes. Membro do Núcleo de Estudos
Históricos do Mundo Rural (NEHMuR). E-mail: [email protected].
intervindo em vários setores da sociedade, sobretudo no âmbito
econômico.
O intervencionismo federal, sobretudo no início do perío-
do do Estado Novo, provocou várias reformas no Ministério da
Agricultura, orquestradas em prol da racionalização da agricul-
tura, aperfeiçoamento da produção, expansão, pesquisas e reco-
nhecimento de recursos minerais e energéticos (Fonseca, 1989,
p. 215). A produção nacional deveria ser fruto de uma especia-
lização, organização e racionalização do setor agrícola através
da introdução de novas técnicas e incentivos para a produção
diversificada de gêneros.
Nesse sentido, reintegrado ao ministério em 1939, o SPI pas-
sou a ter um novo direcionamento na questão indígena nacional,
tanto no que tange à estrutura do órgão quanto na ação prática.2
A questão fundiária, relacionada à posse e à propriedade da ter-
ra, tornou-se problemática para ser gerida de maneira articulada
em consequência da proximidade com as políticas de exploração
do território nacional. Da mesma forma, o SPI também deveria
“orientar e interessar os indígenas no cultivo do solo, para que se
tornem úteis ao país e possam colaborar com as populações civi-
lizadas que se dedicam às atividades agrícolas”.3 A proteção aos
indígenas proposta pelo órgão não era vista separadamente das
questões da colonização, motivo pelo qual a assistência indígena
perpassava à necessidade de lhe garantir a propriedade.
O discurso em âmbito nacional estruturava a necessidade de
promover o indígena à categoria de produtor rural com práticas
e técnicas apreendidas no auxílio federal, subsidiando a emanci-
2
BRASIL. Decreto-lei nº 1.736, de 03 de novembro de 1939. Subordina ao Ministério
da Agricultura o Serviço de Proteção aos Índios. Disponível em: https://bit.
ly/2S6C1zt. Acesso em: 21 out. 2018.
3
Idem.
148 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
pação econômica e a fixação à terra. Porém, a garantia da posse
viria atrelada à necessidade de se cultivar o solo, de engendrar
uma produção em larga escala voltada ao mercado interno. Para
isso, a mão de obra indígena seria peça-chave para alavancar esse
novo modelo produtivo que se instalava nessas áreas.
A produção teve ênfase na criação de postos indígenas, de
tipologias e operacionalidades diversas entre si, próprias para as
diferenças situacionais, nas quais os postos de assistência, nacio-
nalização e educação (PIN) desenvolviam atividades ligadas à
produção, à agricultura, à pecuária e ao extrativismo, bem como
à educação e indústria, afim de prover a sustentabilidade racio-
nalizada da comunidade indígena.
Nesse viés este trabalho procura analisar a documentação
do posto indígena de Cacique Doble durante a década de 1940,
primeira década de ação do órgão federal com a população indí-
gena kaingang. A análise das fontes será de maneira qualitativa,
atentando para os discursos, as informações, o dito e o interdito
nas narrativas dos agentes do SPI. Baseados nos regramentos e
ordenamentos do órgão federal, conduziram a política de desen-
volvimento agropecuário proposta para a população indígena.
4
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Ofício e relatório anexo apresentados pelo
encarregado do PIN Cacique Doble, Mario Arnaud Sampaio, à Inspetoria Regional nº7.
Cacique Doble, 21 jan. 1941, fl.03. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
152 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
a chegada do encarregado do SPI. A tarefa de Sampaio era tor-
nar-se figura de “confiança” entre os indígenas, afim de legitimar
a si e ao órgão federal como responsáveis legítimos pelo auxílio
àquela população. Em razão disso, Sampaio enfrentou proble-
mas e entrou em conflito com as autoridades estaduais e locais,
indígenas e não indígenas.
A falta de informações acerca da área indígena foi um dos
primeiros desafios enfrentados por Sampaio. A área destinada
aos indígenas na medição organizada pela Diretoria de Terras
e Colonização (DTC), em 1910, não era conhecida por ele, não
eram conhecidos quaisquer registros da área demarcada, nem as
plantas e mapas referentes. Conhecer o território e suas dimen-
sões da área era extremamente necessário para a implantação da
política indigenista do SPI, bem como a qualidade da terra e as
múltiplas possibilidades de plantio e produção para o desenvol-
vimento. Em virtude desse desconhecimento, surgiram conflitos
de interesses entre o SPI e a DTC na área do toldo de Cacique
Doble.
Possivelmente, em consulta aos indígenas e moradores dos
arredores do toldo, Sampaio declarou à IR7 que a área ocupada
pelos indígenas se estendia por, aproximadamente, 7.200 ha, di-
vidida em duas porções territoriais. A primeira se situaria onde o
posto indígena seria instalado, em área demarcada originalmente
pela DTC; a segunda se localizaria fora do toldo e do distrito de
Cacique Doble, às margens do rio Forquilha, no distrito de Sa-
nanduva, em local denominado de Passo Grande do Forquilha.5
O toldo existente no Passo Grande do Forquilha passou a
ser desconsiderado enquanto local próprio para a habitação indí-
5
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Ofício e relatório anexo apresentados pelo
encarregado do PIN Cacique Doble, Mario Arnaud Sampaio, à Inspetoria Regional nº7.
Cacique Doble, 21 jan. 1941, fl. 2. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
Intervencionismo sobre a terra e a propriedade: a política do Serviço de Proteção... 153
gena em razão da dificuldade de a administração do posto esten-
der-se até aquela localidade e por “ás terras do ‘Passo Grande’
já não se prestam á cultura, e será sempre um problema a solver,
pelas próprias dificuldades locais”.6 O posto deveria ser central
enquanto instituição junto aos indígenas, tanto estrutural como
simbólica; devia se fazer presente diariamente de como se estru-
turava a proposta interventora do SPI.
Os indígenas da área do Passo Grande, reconhecida como
de ocupação indígena em terras do estado consideradas “deso-
cupadas”, foram deslocados para o posto de Cacique Doble. As
terras do Passo Grande foram arrendadas, em contrato, para
Teodoro Sousa de Moraes e Joaquim Ghiotto pelo prazo de cin-
co anos.7 Em registros posteriores, realizados pelos encarregados
do SPI, afirmam o arrendamento da área, mas não há indicação
se a área foi efetivamente desocupada da presença indígena.
O desconhecimento de Sampaio em relação à questão fun-
diária que envolvia o toldo de Cacique Doble foi aproveitado
pelos sujeitos envolvidos. Por parte dos indígenas, foi intentado
o reconhecimento legítimo de uma terra de sua ocupação, que, a
princípio, há décadas era ocupada por eles, na descendência do
cacique Doble, além do fato de ser localizada em terras conside-
radas “devolutas” no Passo do Forquilha.
A falta de informações do encarregado da área servia aos
interesses da DTC, que ao invés de apresentar informações car-
tográficas e fundiárias reais, omitiam e não permitiam nova
medição, requisitada por Sampaio.8 Valendo-se da oficialidade
6
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Ofício e relatório anexo apresentados pelo
encarregado do PIN Cacique Doble, Mario Arnaud Sampaio, ao Inspetor Regional da IR7,
Paulino de Almeida. Cacique Doble, 27 fev. 1941, fl. 1. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
7
Idem, fl. 02.
8
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Ofício e relatório anexo apresentados pelo
encarregado do PIN Cacique Doble, Mario Arnaud Sampaio, ao Inspetor Regional da IR7,
154 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
de órgão público responsável pela questão fundiária estadual, a
DTC informou um número menor da área, de 5.676 ha demar-
cados em 1910, para 4.426 ha, dimensão informada, e elaborada
a planta no ano seguinte.9
No mapa da área de Ca- Figura 02. Mapa da área original
cique Doble (Figura 02), vê-se e da área reduzida do toldo de
a redução da área indígena. A Cacique Doble
porção subtraída da original, de-
marcada em 1910, corresponde
à área de mata, especificamente
um pinheiral, de onde os indí-
genas extraíam o pinhão, assim
como em outras partes do posto.
Contudo, após a redução, a área
passou para o domínio definitivo
do Estado, sendo cercada sob a
jurisdição da Guarda Florestal.
Para a DTC manter certas
áreas distantes do controle do
SPI, afastando, assim, o órgão fe-
deral das reais dimensões sobre as Fonte: SIMONIAN, 1981, p. 18-19.
Adaptado pelo autor.
quais exercia influência, foi uma
estratégia do Estado para preservar a área de mata, detentora de
extensos pinheirais, sob o manto da “proteção florestal”. Essas
terras se tornaram definitivamente reserva florestal por despa-
cho do governador Valter Sá Jobim, em 1949, deixando de ser
considerada área indígena (Kujawa, 2014, p. 25). Essa medida se
13
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Relação dos alunos matriculados e frequência
escolar do mês enviado pelo auxiliar de ensino do PIN Cacique Doble, João Lucio de Paula, ao
Inspetor Regional da IR7, Paulino de Almeida. Cacique Doble, set. 1941. Sedoc/Museu
do Índio - RJ.
14
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Relatório anual do ano de 1943
enviado pelo encarregado do PIN Cacique Doble, João Lucio de Paula, ao Inspetor Regional da
Intervencionismo sobre a terra e a propriedade: a política do Serviço de Proteção... 157
condição de “vizinho” do posto colocava-o como figura conheci-
da da comunidade indígena e, ao mesmo tempo, conhecedor dos
indígenas. Anos antes de assumir o cargo, João Lucio, enquanto
subprefeito do distrito de Cacique Doble, já tratava com os indí-
genas na condição de autoridade instituída, destinando auxílios
à população indígena em consonância com a CTC de Erechim.15
A partir da admissão de João Lucio, a situação econômica
e laboral dos indígenas do posto alterou-se, tornando-se a ques-
tão da produtividade central na administração do SPI. Enquanto
produtor de trigo na região, o encarregado revelou proximidade
e conhecimentos das técnicas de cultivo e de gestão dos recur-
sos disponíveis para o plantio. Em seus relatórios, João Lucio se
mostrou conhecedor das atividades técnicas e práticas, aplican-
do-as no posto de Cacique Doble. Diferentemente de Sampaio, o
novo encarregado descrevia de forma detalhada o que era reali-
zado na dimensão econômica da produção e da comercialização
de gêneros.
Sampaio, embora tenha esboçado o início do cultivo de tri-
go, não deixou registros detalhados acerca da produção durante
sua gestão, muito em razão da área indígena cultivada ter sido
diminuta, semelhantemente com a criação de animais, em nú-
mero muito restrito ainda em 1941. A motivação dessa vacância
de informações se conjugada com a falta de investimento nesse
setor, que se processou pela necessidade primária de estruturar o
posto, construindo suas edificações principais, abrindo roçados e
estradas para o escoamento da produção até a sede do distrito de
Cacique Doble. Paralelamente havia também a indisponibilida-
IR7, Paulino de Almeida. Cacique Doble, 15 dez. 1943. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
15
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Informação enviada pelo encarregado do
PIN Cacique Doble, João Lucio de Paula, ao Inspetor Regional da IR7, Paulino de Almeida.
Cacique Doble, 19 fev. 1945. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
158 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
de de ferramentas adequadas, o que resultava no não emprego de
todos os indígenas nas atividades do campo. Diante dessa situa-
ção, forçava o encarregado a permitir a saída de muitos do posto
para seguirem vendendo sua força de trabalho para colonos da
região, porém com a anuência e permissão do agente, acertando
o pagamento da jornada na forma de contrato.16
A ação do órgão federal, nesse sentido, passou a inviabilizar
a disponibilidade de mão de obra indígena antes disponível na
região. Visto de outra forma, o SPI era o responsável pela cana-
lização do trabalho indígena dentro do posto, inclusive regular
as entradas e saídas dos indígenas do local.17 Todavia, a centra-
lização do trabalho indígena para o posto não significava o fim
da exploração dos trabalhadores indígenas, passava a ser regida
pelo órgão federal.
João Lucio passou a empregar os recursos do posto de ma-
neira racionalizada, medindo gastos, cotejando despesas, consi-
derando preços, mercados e projetando o desenvolvimento agrí-
cola e pecuário. Passou a existir uma clara divisão entre o que era
patrimônio do posto e o que era patrimônio indígena, bem como
a divisão das plantações “do posto” e “dos índios”, embora, em
tese, tudo pertencesse à população indígena.
Quanto ao governo Vargas e o fomento da produção de
trigo, é importante destacar que, desde a Revolução de 1930, o
novo governo instituído passou a conceder incentivos financei-
ros, visando ao aumento da produtividade. A interferência na
produtividade do trigo tornou-se mais premente a partir do Esta-
16
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Relatório anual do ano de 1941 enviado pelo
encarregado do PIN Cacique Doble, Mario Arnaud Sampaio, ao Inspetor Regional da IR7,
Paulino de Almeida. Cacique Doble, dez. 1941. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
17
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Relatório mensal do mês de setembro enviado
pelo encarregado do PIN Cacique Doble, João Lucio de Paula, ao Inspetor Regional da IR7,
Paulino de Almeida. Cacique Doble, 1º out. 1945. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
Intervencionismo sobre a terra e a propriedade: a política do Serviço de Proteção... 159
do Novo, com políticas de cotas de compra de trigo nacional em
detrimento do internacional. Contudo, o esforço governamen-
tal encontrou ressonância maior após a deflagração da Segunda
Guerra Mundial, com a adoção da política de substituição de
importações (Pierucci et al., 2007). Era de responsabilidade de
João Lucio consagrar a produção do trigo, seguindo as orienta-
ções do SPI e da política de incentivos do governo. Já em 1943, a
produção de trigo do posto superava a produção da maioria dos
triticultores da região de Cacique Doble.18
A agricultura no posto não era voltada propriamente para
o consumo e subsistência indígena. Dito de outra forma, a pro-
dução agrícola, era centralizada na triticultura, não tinha como
enfoque produtivo a variedade de gêneros alimentícios que sa-
nassem as necessidades indígenas, essa modalidade se restringia
à produção individual indígena, pouco incentivada pela adminis-
tração do posto. A agricultura deveria prezar por uma lavoura de
cultivo extensivo e de excedentes para a comercialização, e não
para o provimento indígena. A comercialização da produção de-
veria gerar os lucros necessários para a composição da “renda
indígena” e, por conseguinte, o suprimento da população.
No contexto de um primeiro estágio de modernização da
agricultura brasileira, entre as décadas de 1930 e 1960, os inves-
timentos na industrialização pesada e a dinamização da agricul-
tura se tornaram partes dos planos de desenvolvimento econô-
mico. A contribuição indígena nesse cenário se deu de maneira a
complementar a produção agropecuária nacional. O SPI passou
a instituir nas bases as atividades de aproveitamento econômico
das áreas indígenas tuteladas. O mote essencial desse planeja-
18
LAGOA VERMELHA. Estatística do trigo do distrito de Cacique Doble enviada pelo
subprefeito Sirio Ricardi ao prefeito de Lagoa Vermelha. Cacique Doble, 12 mar. 1942.
Arquivo Histórico Regional. Fundo Lagoa Vermelha – Executivo Municipal.
160 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
mento era a produtividade, que deveria ser elevada para suprir as
necessidades de todos os habitantes do posto e gerar um exceden-
te comercializável para o mercado local/regional.
A adoção de uma racionalidade, atrelada à produtividade
e ao lucro, era coordenada pelo encarregado do posto. Ele devia
administrar e definir o que seria plantado, de que forma, em que
estação, qual o tempo da colheita, qual a área destinada para o
plantio, bem como que animais criar, como alimentá-los e tratá-
-los. Nesse período houve a introdução de máquinas agrícolas,
principalmente para a “maquinação” do trigo, como se pode ver
na Figura 03, havendo também necessidade de inserir os indíge-
nas nas práticas e técnicas da agricultura.
Nesse contexto, a
Figura 03. Indígenas trabalhando com
maneira de trabalhar a máquina agrícola na lavoura de trigo do
terra era modificada em PIN de Cacique Doble – 1952
diversos âmbitos. O pla-
nejamento do encarrega-
do do SPI dava forma a
uma dinâmica produtiva
centrada na economia
do PIN, sobre a qual os
kaingang não tinham
controle do que produzir,
nem o que era produzi-
do, tampouco a forma de
produzir. Eles recebiam
em troca uma pequena
diária pelos serviços e os
pagamentos não eram Fonte: BRASIL. Ministério da Agricultura.
SPI. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
regulares, porém realiza-
19
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Relatório mensal do mês de maio enviado pelo
encarregado do PIN Cacique Doble, João Lucio de Paula, ao Inspetor Regional da IR7, Paulino
de Almeida. Cacique Doble, 31 maio 1943. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
20
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Boletim interno do SPI. 01-13. Rio de
Janeiro, n. 12, p. 34, 1941-42.
162 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
de construção, beneficiavam madeiras e os que arrendavam de-
terminadas áreas do posto.
O regime das parcerias englobava o arrendamento das ter-
ras indígenas não cultivadas por eles em razão da impossibili-
dade de ter mão de obra suficiente para o cultivo de toda a área
disponível no posto. A prática dos arrendamentos não era expe-
riência nova, já que, pelo menos, desde 1912 se tem os primeiros
registros de arrendamento de terras indígenas no Rio Grande do
Sul (Pezat, 1997, p. 359), porém, na década de 1940, tais práticas
eram assimiladas pelo SPI e adquiriam legitimidade institucio-
nal.
Geralmente os parceiros eram produtores rurais dos distri-
tos de Lagoa, Cacique Doble, Vazulmiro Dutra, Sananduva e
Marcelino Ramos. Este último era onde se localizava a sede da
principal parceira, a firma Irmãos Vecchi S/A., distribuída em
vários armazéns e depósitos naquela região. Em Cacique Doble,
em 1942, a firma havia se tornado a maior produtora de trigo do
distrito.21 Um dos depósitos da Irmãos Vecchi S/A. era o depó-
sito oficial da produção do PIN Cacique Doble, de onde partia
para a comercialização.22
Era possível também, nesse arranjo comercial, a realização
de empréstimos, tanto por iniciativa do posto quanto dos par-
ceiros interessados, sendo que para estes os juros cobrados eram
convertidos em renda extra, que supria as necessidades do posto
e da comunidade indígena.23 De acordo com João Lucio de Pau-
21
LAGOA VERMELHA. Estatística do trigo do distrito de Cacique Doble enviada pelo
subprefeito Sirio Ricardi ao prefeito de Lagoa Vermelha. Cacique Doble, 12 mar. 1942.
Arquivo Histórico Regional. Fundo Lagoa Vermelha – Executivo Municipal.
22
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Ofício enviado pelo encarregado do PIN
Cacique Doble, João Lucio de Paula, ao Inspetor Regional da IR7, Paulino de Almeida.
Cacique Doble, 21 mar. 1942. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
23
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Relatório mensal do mês de setembro enviado
Intervencionismo sobre a terra e a propriedade: a política do Serviço de Proteção... 163
la, as vantagens oferecidas pelas parcerias na agricultura eram
importantes para o PIN, pois permitiam o arrendamento das ter-
ras incultas para aproveitá-las economicamente, além de poupar
a necessidade de utilizar a força de trabalho indígena na limpeza
das áreas; o lucro que advinha do aluguel do arrendamento era
bem-vindo, complementava a composição da renda indígena,
resultando em maior margem de aplicação; ficava aberto o pre-
cedente para que os indígenas pudessem trabalhar fora, mas den-
tro do posto, isto é, trabalhar para os parceiros, perfazendo uma
renda extra particular, reduzindo as necessidades de provimento
do posto.24
As parcerias se estendiam além da dimensão comercial, per-
passavam a reciprocidade e a confiança estabelecidas por João
Lucio. Era o princípio das relações do encarregado que nascia a
possibilidade de firmar contratos, que, muitas vezes, eram ape-
nas verbais, e cooperações com prestadores de serviço e produ-
tores rurais regionais. A partir da experiência na função pública
e na participação política na região, João Lucio atraiu parceiros
que sanavam as dificuldades enfrentadas no posto, provendo os
meios, utensílios e abertura de mercados para o escoamento da
produção indígena.
Nem sempre a aproximação dos parceiros prestadores de
serviço era de todo benéfica e sem conflitos. O caso de Raimun-
do Carniel foi um desses. Ele era parceiro do SPI e ocupante da
queda de água situada no limite da área indígena a oeste. Pagava
mensalmente ao encarregado o aluguel de um moinho movido
a água, com o compromisso de realizar moagem de trigo dos in-
pelo encarregado do PIN Cacique Doble, João Lucio de Paula, ao Inspetor Regional da IR7,
Paulino de Almeida. Cacique Doble, 1º dez. 1945. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
24
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Correspondência particular enviada pelo
encarregado do PIN Cacique Doble, João Lucio de Paula, ao Inspetor Regional da IR7, Paulino
de Almeida. Cacique Doble, 18 fev. 1943. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
164 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
dígenas gratuitamente.25 Entretanto, os parceiros se desentende-
ram, e João Lucio requereu o desvio do canal para a construção
de uma granja de arroz, mas lhe foi negado, possivelmente em
razão da diminuição da capacidade do moinho.
A falta de parceria de Raimundo fez com que João Lucio re-
corresse à Justiça, bem como às autoridades de Lagoa Vermelha
e do SPI, obrigando o encarregado a firmar parceria com outros
e reconhecer que “muitos civilizados de desejo de dinheiro pre-
tendem avançar de qualquer modo na propriedade indígena”.26
Entretanto, pode-se afirmar que estabelecer acordos com tercei-
ros repercutia de forma benéfica ao posto, mas o volume de par-
cerias estabelecidas nesses primeiros anos de administração do
SPI certamente indicava o interesse de não indígenas pela área,
principalmente em virtude de suas possibilidades de negócios e
extração de recursos naturais ou, mesmo, para fins de apropria-
ção da área.
No campo econômico, a nova política instituída pelo SPI na
década de 1940 tratou de coordenar as ações visando à integra-
ção dos indígenas na sociedade nacional através do trabalho, da
produção de bens de interesse comercial, destinados ao mercado
interno (Rocha, 1996, p. 96). Foi instituída uma nova relação
de controle e de poder que fez uso da mão de obra indígena em
larga escala, bem como de recursos disponíveis nos postos. As
novas formas de trabalho, a instalação e fomento da produção
intensiva agrícola foram as marcas da nacionalização indígena
proposta e praticada na perspectiva econômica.
25
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Ofício enviado pelo encarregado do PIN
Cacique Doble, João Lucio de Paula, ao Inspetor Regional da IR7, Paulino de Almeida.
Cacique Doble, 1º set. 1945. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
26
BRASIL. Ministério da Agricultura. SPI. Relatório mensal do mês de outubro enviado
pelo encarregado do PIN Cacique Doble, João Lucio de Paula, ao Inspetor Regional da IR7,
Paulino de Almeida. Cacique Doble, 31 out. 1945. Sedoc/Museu do Índio - RJ.
Intervencionismo sobre a terra e a propriedade: a política do Serviço de Proteção... 165
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A administração do SPI de certa forma revelou também fa-
cetas exploratórias em relação aos trabalhadores indígenas, inse-
ridos numa rotina de trabalho constante e articulada. A política
de desenvolvimento do órgão federal assumiu o formato de um
grande empreendimento de produção agrícola gestado pelo SPI
e, com isso, eliminando a participação indígena na tomada de
decisões acerca da área indígena, das projeções de cultivo e da
extração dos recursos naturais.
O posto indígena de Cacique Doble foi, certamente, um dos
locais onde se aplicou a política do SPI através da implantação
do projeto educacional e agropecuário. Entre os kaingang de Ca-
cique Doble, essa política foi disseminada no cotidiano dos indí-
genas, havendo alterações na concepção de trabalho, produtivi-
dade, relação com a terra e os integrantes da comunidade. Houve
o deslocamento do poder decisório das lideranças cacicais para o
encarregado, representante e intervencionista do SPI.
REFERÊNCIAS
BRINGMANN, Sandor Fernando. Entre os índios do sul: uma análise da
atuação indigenista do SPI e de suas propostas de desenvolvimento
educacional e agropecuário nos postos indígenas Nonoai - RS e Xapecó
- SC (1941-1967). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal
de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.
BRINGMANN, Sandor Fernando; NOTZOLD, Ana Lúcia Vulfe. O
Serviço de Proteção aos Índios e os projetos de desenvolvimento dos
postos indígenas: o programa pecuário e a campanha do trigo entre os
kaingang da IR7. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v. 5, n.
10, p. 147-166, dez. 2013.
FONSECA, Pedro Cesar Dutra. Vargas: o capitalismo em construção.
COMUNIDADE DE ARVINHA
INTRODUÇÃO
O Brasil há muito tempo vinha enfrentando problemas rela-
cionados à propriedade da terra. Entre tantos litígios, a questão
dos quilombolas ganhou evidência no cenário agrário. As desi-
gualdades sociais, a má distribuição econômica e a forma como
se deu a formação das propriedades privada da terra refletiram
em problemas, que se estenderam até os dias de hoje. Como
exemplo, destaca-se a violência com os trabalhadores rurais, com
os povos remanescentes de comunidades quilombolas e com os
indígenas. Esses conflitos ocorriam pelo interesse de se apossar e
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
de Passo Fundo. Membro do Núcleo de Estudos Históricos do Mundo Rural
(NEHMuR). E-mail: [email protected].
apropriar da terra. Os interesses eram diversos, às vezes contrá-
rios um do outro, por isso os embates em legitimar os discursos.
Este capítulo tem por objetivo discutir a importância da au-
toatribuição e presunção de ancestralidade para a manutenção
da identidade das comunidades remanescentes dos quilombos e
os princípios utilizados como recursos para a legitimação da pro-
priedade da terra. Procura-se situar a questão da ancestralidade
como um dos fatores de formação, manutenção e legitimação
das comunidades remanescentes quilombolas, com território re-
conhecido no estado do Rio Grande do Sul, a exemplo da comu-
nidade de Arvinha.
2
Dicionário Michaelis. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
portugues/busca/portugues-brasileiro/ancestralidade/ Acesso em: 20 jan. 2019.
170 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
Quer dizer, o ancestral é aquele que tem o estatuto de
fundador, fundador do clã, da linhagem, que foi uma
personagem importante, que é a origem, a fundação
(apud Oliveira, 2009, p. 201).
3
NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. Vozes, 1980.
O papel da ancestralidade na formação das comunidades remanescentes quilombolas... 173
centes quilombolas nasceu de uma ideia popular, resultante de
uma conferência que assimilou as principais demandas e neces-
sidades. A proposta 9 resultou no projeto 2.886, de autoria do
Centro de Estudos Afro-Brasileiro ao presidente da Assembleia
Nacional Constituinte, promulgado na Constituição de 1988,
art. 68 da ADCT.
4
O termo havia desaparecido desde o período republicano.
O papel da ancestralidade na formação das comunidades remanescentes quilombolas... 175
que muitos escravos libertos migraram para outras regiões em
busca de um espaço para habitar, sendo assim, dificilmente se
encontrariam vestígios de seus ancestrais nesses locais. A FCP
não estava dando conta da demanda de pedidos de certificações
para as comunidades, então, o Instituto Brasileiro de Patrimônio
Cultural (IBPC) foi designado para auxiliar nas visitas técnicas
às comunidades, porém, com o decorrer do tempo, notou-se um
conflito entre o conceito definido na teoria e a demanda social
desses indivíduos.
Polêmicas surgiram em razão da conceituação de quilom-
bo; compreendeu-se que o conceito de quilombo não podia ser
congelado, algo estático, pois contém definições distintas a cada
momento na história; tanto é que houve uma resistência dos mo-
radores das comunidades com o termo em questão, pois seria
algo “criado” pelo Estado e que no seu aparecimento representa-
ria algo pejorativo, muitas comunidades preferiam ser chamadas
de “terra de preto”, “de crioulos”, porém não excluem o termo
quilombo, pois é a forma que eles devem se autodenominar para
que reivindiquem seus direitos. Devido a esses impasses e con-
flitos conceituais, a primeira comunidade a ter sua propriedade
titulada foi em 1995 (sete anos após a promulgação do art. 68 da
ADCT) e em 2001 regulamentou sobre ser a FCP a responsável
pelos processos administrativos de reconhecimento através do
decreto federal n° 3.912.
Foi no governo de Luís Inácio Lula da Silva que ficou cons-
tituído um novo preceito para os processos de reconhecimento
de terras aos remanescentes quilombolas, após inúmeras mani-
festações de movimentos ligados aos quilombolas, que critica-
vam o decreto de 2001, no qual reconhecia apenas os territó-
rios ocupados em 1888, mesmo sabendo que após a abolição os
5
BRASIL. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm>. Acesso em: 1° ago. 2018.
178 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
vida mais digna para esse povo a partir de sua autoafirmação
como uma comunidade remanescente de quilombo, mesmo que
seja necessária uma certidão, legitimando-a como uma “comu-
nidade remanescente”.6
As comunidades quilombolas foram, e ainda são, símbolo
de ruptura com a lógica escravista que perdurou por mais de tre-
zentos anos na medida em que os negros se apossavam de peque-
nas áreas de terra, buscando resistir a todos os tipos de violência
e discriminação, além de buscar uma vida mais digna para as
suas famílias. Do período colonial até a Constituição de 1988, a
legislção privava a possibilidade de adquirir a terra de forma le-
gal, a não ser através da compra. Mesmo com esses impedimen-
tos criados pelas legislçaões da época, os negros se estabeleciam
nas suas terras, criando relações com esse espaço, dando a esse
multiplos significados.
6
Ver decreto 4.887/2003, p. 11.
O papel da ancestralidade na formação das comunidades remanescentes quilombolas... 179
O território, a posse da terra, relembra os remanescentes qui-
lombolas a um passado de resistência, remetendo às memórias
de seus ancentrais, o que vem reforçar a luta pelo reconhecimen-
to de suas propriedades, garantindo um direito que deveria ser
garantido a todos. O acesso à terra pode se constituir numa das
formas de alterar o cenário de injustiças e instabilidades sociais,
econômicas e jurídicas. A convivência, oportunizada pela vida
em conjunto na comunidade, colabora em reafirmar a identidade
através da ligação de valores e costumes comuns e a relação com
a terra, pois o indíviduo reconhece sua identidade, passa a ter um
papel de agente na sociedade em seus direitos.
A territorialidade quilombola ocorre pela ocupação imemo-
rial, ou seja, há uma lembrança de ligação com seus ancestrais
que habitaram o território, mesmo não sendo o mesmo geográfi-
ca e espacialmente. As comunidades remanescentes quilombolas
utilizam suas terras de forma coletiva, melhor quando reconhe-
cida a propriedade através de um título coletivo. A ocupação ter-
ritorial desse povo é tida como tradicional, sendo espaços neces-
sários para a reprodução cultual, social e econômica.7
7
BRASIL. Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6040.htm>
Acesso em: 3 ago. 2018.
180 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
2009, atualmente encontra-se em fase judicial para as desapro-
priações.
processo n. 54220.001305/2005-96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em virtude dos fatos mencionados, observa-se que a sig-
nificação e reconhecimento de uma propriedade de terra como
região não está fundamentalmente ligada a questões políticas,
econômicas ou sociais. O que define o recorte enquanto região
(território) é a identidade de um passado comum. Temos aqui
como exemplo as comunidades remanescentes de quilombolas,
que após se apossarem das suas terras, com o passar do tempo os
indivíduos foram edificando a noção de pertencimento, criando
laços mais fortes com a terra do que simples ligação mercantil.
REFERÊNCIAS
BAJARAS, Deni Trejo. La historia regional em México: reflexiones y
experiências sobre uns practica historiográfica. Unisinos, 2009.
INTRODUÇÃO
O Código de postura estabelece normas da polícia adminis-
trativa municipal e comina pena aos infratores. É propriamente
com esses termos que o Código de postura municipal de Passo
Fundo de 1950 dispõe esse texto nos dois primeiros artigos. Mas
se compararmos a expressão “polícia administrativa” é recorren-
te em outros códigos de postura, como o de Porto Alegre, de
1974; de Fortaleza, em 1981; de Manaus, de 2014.
O policiamento pode ser entendido como um conjunto de
normas e regras impostas aos indivíduos, uma espécie de tutela
1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de
Passo Fundo (UPF). Membro do Núcleo de Estudos Históricos do Mundo Rural
(NEHMuR). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
administrativa da municipalidade no estabelecimento de padrões
de comportamentos desejáveis. Isso realizado sob a égide de res-
trições e proibições, disciplinando a vida cotidiana por meio da
punição aos infratores, na afirmação de um ethos do “bem viver”
a partir das relações que se estabelecem na vida urbana.
A temática neste texto é chamada de “posturas munici-
pais”. Para tanto, utiliza-se uma análise do Código de posturas
da Câmara Municipal da vila do Passo Fundo (atual município
de Passo Fundo - RS) de 1860. Tenho por principal objetivo com-
preender as relações entre o texto do Código de postura muni-
cipal e o contexto histórico-social a esse inerente, na interface a
outros dos ordenamentos jurídicos. Produzindo uma reflexão a
partir de algumas noções foucaultianas relacionadas à organiza-
ção do espaço urbano perante um poder disciplinador enquanto
dispositivos que normatizaram o comportamento e os espaços
citadinos.
2
Unidade de medida de comprimento que equivale, aproximadamente, a
22,86 centímetros; 80 palmos, portanto, equivalem a 1828,80 centímetros, que
corresponde a 18,28 metros (60 palmos correspondem aproximadamente a 13,71
metros). Essa base de informação é referencial, sendo que pode haver variação
acerca da exatidão dessas equivalências.
3
Pé direito significa a medida entre o chão e o teto de uma construção, atualmente
corresponde normalmente 2,70 metros. Na época 18 planos, algo próximo a 4
metros de altura.
194 História do Mundo Rural: o sul do Brasil - Volume II
realizadas no espaço urbano, a exigência normativa determinada
que houvesse edificação na gleba recebida, sob pena de perder o
direito sobre o lote concedido. Isso justamente após a promulga-
ção da lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, que dispunha sobre
as terras devolutas do Império e que determinava a proibição da
aquisição de terras devolutas por outro título que não fosse a
compra (art. 1º).
O século XIX caracterizou-se pela consolidação e expansão
do modo de produção capitalista, repercutindo inclusive no Bra-
sil. A concessão de terras ocorreu na colonização, que iniciou
com a prática das sesmarias em 1534 e perdurou até 1822. Po-
rém, ocorreu outro acesso fundiário através de posses desregula-
das antes da promulgação da Lei de Terras em 1850.
Em ambos os casos, as concessões e posses conferiam um
relativo caráter de propriedade de terra individual, mas não era
uma mercadoria, apenas determinava formas de se apropriar.
A Lei de Terras estabelecia o objeto terra em um nível jurídico
mercadológico, agora, porém, em uma racionalidade de merca-
do. Para se obter a terra era preciso pagar. Entretanto, a ideia de
direito de propriedade no Brasil já estava juridicamente estabele-
cida, a Constituição de 1824 afirma que dentre os direitos civis e
políticos dos cidadãos brasileiros estava a liberdade, a segurança
e a propriedade (art. 179).
O Código de posturas foi decretado e sancionado em 1860,
portanto, posterior à Lei de Terras de 1850. Mas determina uma
prática de acesso ao mobiliário fundiário urbano que “rivaliza”
entre os aspectos de sedimentação jurídica, os quais manifestam
os preceitos legais da aquisição, e o processo consuetudinário
assentado em práticas de concessão ou distribuição de terras.
Os capítulos II ao VI do Código de posturas da vila de Pas-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizar, destaco dois pontos que devem ser conside-
rados como fundamentais para se pensar o Código de postura
municipal em relação ao poder disciplinador enquanto dispositi-
vo de normatização dos bens e do comportamento individual pe-
rante um lugar urbanizado que caracteriza os espaços citadinos.
Esses pontos, por mais expostos distintamente a partir de
características próprias, consolidam-se numa única perspectiva
na formação do espaço urbano como lugar de excelência da civi-
lidade, ou seja, o respeito pelas normas de convívio que discipli-
nam e punem os comportamentos individuais desviantes.
Assim, as “posturas municiais” podem ser percebidas como
espaços privilegiados de predominância dos senhorios, locais na
prerrogativa de acesso ao poder e à estrutura de normatização
que credenciariam cada indivíduo a viver em sociedade. Isso se
desenvolveria em sintonia a um ideário civilizatório no delinea-
mento da conduta desejada com punições para os desviantes.
Realizo essa sistematização de ideias tendo como foco as
relações de propriedade fundiária e de mobiliária. Nesta enfatizo
o paralelo entre uma ideia de consolidação da propriedade da
terra em critérios de materialização das relações capitalistas de
aquisição fundiária estabelecidas pela Lei de Terras de 1850, e
um processo arraigado à tradição e ao costume brasileiro, que
foram as doações ou concessões de terras.
Código de postura municipal e sua função de polícia administrativa 207
Nesse sentido, por mais que a propriedade na forma privada
tivesse que ser regrada em vista do desenvolvimento da urbani-
dade, a municipalidade na administração da Câmara Municipal
admitiria a concessão de uso de glebas urbanas que conseguis-
sem promover esse fim, ou seja, a construção, a edificação, nesse
sentido, erigissem paulatinamente aspectos necessários à consti-
tuição de uma cidade.
Entre a ideia de propriedade mobiliária adquirida sob as-
pectos do moderno sistema capitalista de compra e o tradicional
sistema de concessões que coexiste no desenvolvimento da urba-
nidade, salienta-se a relação existente entre a atividade fundiária
agrícola e a extrativista. Para ambas as atividades há noções dis-
tintas de propriedade. Nas atividades agrícolas, percebe-se uma
noção de propriedade privada sobre o bem fundiário; nas ativi-
dades extrativistas, existe uma noção de bem coletivo no sen-
tido de bem público, administrado pela municipalidade, acerca
da propriedade fundiária em que estão as árvores de erva-mate.
No aspecto da atividade fundiária, a propriedade é comum; no
aspecto da atividade extrativista no âmbito de produção de uma
mercadoria decorrente da força de trabalho passa a ser proprie-
dade privada, em franca associação aos princípios liberais da
propriedade privada como resultado apropriativo permeado pelo
trabalho.
O Código de postura visa, sobretudo em relação ao extrati-
vismo da erva-mate, disciplinar a coleta, preservando os ervais,
também arrecadar impostos decorrentes das atividades e zelar
pela qualidade do produto. Com o advento das novas relações
fundiárias estabelecidas pela promulgação da Lei de Terras, os
ervais públicos passam por processos de venda e comercializa-
ção, ou seja, a privatização do espaço antes público, o que gerou
REFERÊNCIAS
ARIES, Philippe. O homem perante a morte. Portugal: Europa-América,
2000. 341 p.
BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil. Carta de lei de 25 de
Os Organizadores
H i st ó r i a d o
Mundo Rural:
o sul do Brasil
O
s textos que compõem este livro
são resultado de estudos e debates
de pesquisadores vinculados ao
Núcleo de Estudos Históricos do Mundo
Rural (NEHMuR), esse, articulado à Linha de
Pesquisa “Espaço, Economia e Sociedade”,
do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade de Passo Fundo
(PPGH/UPF). As abordagens encontram-
se na interface entre história, antropologia,
geografia, sociologia rural e direito.
Portanto, é um esforço de compreensão
de alguns aspectos da realidade rural,
em grande parte, do sul do Brasil, numa
perspectiva interdisciplinar.