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Democracia e feminismo no brasil

Lucila SCAVONE *

RESUMO: Este texto reporta-se à história do feminismo no que concerne aos


períodos da ditadura militar (1964-1985): anos de chumbo, transição democrática,
retorno à democracia. Apresenta a trajetória do movimento feminista que nessa
época se consolida tanto em âmbito organizacional, estatal, como político e que
com suas reivindicações próprias representa um dos atores de peso no processo de
democratização. Refere-se às trocas de experiências feministas, até mesmo com
brasileiras exiladas, que resultaram em contatos com outros movimentos sociais
emergentes: mulheres da periferia, negros e homossexuais. Esse direcionamento
do movimento feminista definiu suas ações em duas grandes áreas, relacionadas
à formulação de políticas sociais e ampliação do debate sobre a democratização:
a saúde reprodutiva e a violência contra as mulheres, o que levou o movimento
em direção às classes populares, desprovidas de direitos à saúde e de direitos à
assistência contra os danos da violência. Nomeia ganhos não desprezíveis para as
mulheres e a democracia brasileiras como resultado da resistência ao autoritarismo
dos anos da ditadura militar, dos diálogos internacionais e com outros movimentos
sociais.

PALAVRAS-CHAVE: Democracia. Feminismo. Ditadura Militar. Brasil.

Introdução

A história do feminismo contemporâneo brasileiro remete-nos à conjuntura


política, econômica, cultural do período em que emergiram e se desenvolveram a

*
UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Faculdade de Ciências e Letras,
Campus de Araraquara. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901 - [email protected]. https://orcid.org/0000-
0003-4330-018.

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ditadura militar, a transição democrática e o retorno à democracia, como também a


ação política das mulheres neste percurso.
Remontam ao primeiro período democrático da história política brasileira
(1945-1964), após a queda de Getúlio Vargas em 1945, os antecedentes da ditadura
militar no Brasil (1964-1985).
O primeiro período do governo Vargas (Era Vargas) abrangeu 15 anos
ininterruptos (1930-1945), durante o qual Getúlio Vargas governou sem partido
e que compreendeu, inicialmente, o Governo Provisório da Revolução de 1930
(1930-1934), a seguir ele foi eleito pela Assembleia Constituinte (1943-1937),
que promulgou nova Constituição, e, entre 1937 e 1945, período conhecido como
Estado Novo, ele governou como ditador. Considerado como o pai dos pobres,
incorporou os trabalhadores à sociedade por uma política populista apoiada nos
direitos sociais – trabalhistas e previdenciários –, mas que não asseguravam aos
trabalhadores liberdade para realizarem ações políticas e sindicais independentes.
No Brasil, na Argentina, no Peru, o populismo implicou uma relação ambígua
entre cidadãos e Governo, a “antecipação dos direitos sociais fazia com que os
direitos não fossem vistos como tais, como independentes da ação do governo, mas
como um favor em troca do qual se deviam gratidão e lealdade” (CARVALHO,
2001, p. 126).
Em 1945, o general Eurico Gaspar Dutra, candidato do Partido Social
Democrático (PSD) foi eleito presidente da República (1946-1951) pelo voto direto,
o que significou um passo no processo de redemocratização e a ruptura com a
ditadura do Estado Novo. Era o início de um regime democrático que duraria 19
anos, sobrevivendo em meio a diversas crises políticas. Entre 1945 e 1964 ocorreu
“liberdade de imprensa e da organização política”, com eleições regulares em todos
os níveis da República e a criação e funcionamento de diversos partidos políticos,
que foram interrompidos com o golpe militar de 1964 (CARVALHO, 2001, p. 127).
Vargas retornou ao poder eleito (1951-1954) pelo Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB) e teve João Goulart (Jango), também do PTB, como ministro do Trabalho
(1953-1954), alvo das críticas da oposição, pela sua política trabalhista e sindical.
Demitiu-se e os ministros militares exigiram, também, a renúncia de Vargas, que
em 1954 escolheu o suicídio à capitulação. “O choque de forças que levou ao seu
suicídio resolveu-se apenas com o golpe militar de 1964” (CARVALHO, 2001, p.
131).
Nos dez anos que antecederam o golpe da ditadura militar, o Brasil teve
como presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), do PSD, que cumpriu seu
mandato integralmente e cujo vice-presidente foi João Goulart. Jango garantiu as
boas relações dos sindicatos com o governo; foi o período em que o salário mínimo
(instituído em 1940) alcançou seus índices mais altos (CARVALHO, 2001, p.
132). Ao mesmo tempo realizou com êxito, nesse período, uma política trabalhista

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conciliatória entre os diferentes interesses em jogo, o que deu continuidade à política


varguista (SKIDIMORE, 1982, p. 213).
Juscelino foi apoiado por uma aliança entre os dois partidos criados no fim do
Estado Novo por Vargas: o PSD, de proprietários rurais e oligarquias interioranas, e o
PTB, da classe operária e sindical urbana varguista. As elites políticas conservadoras,
civis e militares, representantes da velha oligarquia rural – que se identificavam com
a internacionalização econômica e com o anticomunismo –, estavam concentradas
no partido da União Democrática Nacional (UDN) e formavam a maioria das forças
antivarguistas (CARVALHO, 2001, p. 130-131).
O nacionalismo desenvolvimentista adotado por Juscelino - que gerou uma
alta taxa de crescimento econômico e de urbanização do país – foi fundamentado no
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e inspirado na Comissão Econômica
para a América Latina (CEPAL). Opunha-se ao nacionalismo militar de direita
gerado na Escola Superior de Guerra (ESG) que deu base à doutrina de Segurança
Nacional, utilizada para justificar os atos discricionários da ditadura militar pós-64
(SKIDIMORE, 1982, p. 222).
Jânio Quadros (1961-1961), filiado à UDN, partido historicamente antivar-
guista, foi o presidente vitorioso na sucessão de Juscelino. Entretanto, o vice-pre-
sidente eleito foi João Goulart, apoiado pela aliança da oposição PSD/PTB: “o
país ficou na situação de ter um presidente e um vice-presidente eleitos por forças
contraditórias”1 (CARVALHO, 2001, p. 134). Essa situação, somada ao estilo polí-
tico personalista de Jânio Quadros e à situação econômica provocada pela inflação
acelerada, causou instabilidade no governo.
A renúncia de Jânio, oito meses após sua investidura, com provável intenção
golpista gerou uma grave crise político-institucional e o país esteve próximo de uma
guerra civil. O Exército se dividiu: os ministros militares vetaram a posse de Jango –
que estava em visita oficial à China – e tiveram o apoio das forças antigetulistas,
conservadoras e anticomunistas. Considerado herdeiro de Vargas, eles temiam um
golpe semelhante ao de Perón, na Argentina. Além disso, suas ligações com os
sindicatos e as causas trabalhistas o identificavam, também, com o populismo mais
radical e, por consequência, com o comunismo.
Em contrapartida, os setores legalistas militares (o comando do III Exército,
do Rio Grande do Sul) mais as forças populistas, da esquerda moderada e radical,
apoiavam sua posse2. A solução do parlamentarismo, dada pelo Congresso, garantiu
a investidura de Jango em setembro de 1961, mas, não se sustentou. Submetido

1
A Constituição de 1946, em vigor, não vinculava a escolha do presidente a de seu vice. O mandato
presidencial era de cinco anos, não reelegível.
2
Estava claro na Constituição de 1946 que na vacância do cargo da Presidência o vice assumiria.
Entre os radicais encontrava-se Leonel Brizola, então governador do estado do Rio Grande do Sul,
cunhado de Jango e figura de destaque na “luta pela legalidade” (CARVALHO, 2001, p. 143).

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a um plebiscito, o parlamentarismo foi derrotado e Jango recuperou os poderes


presidenciais em janeiro de 1963 até fim de março de 1964.
Nesse período, as forças políticas em jogo se radicalizaram. À direita:
civis e militares, empresários nacionais e estrangeiros, deputados conservadores,
proprietários rurais, parte da hierarquia da Igreja católica conspiravam. A Escola
Superior de Guerra (ESG) havia preparado militares e técnicos antivarguistas para
um provável governo e produzido, também, estudos sobre os principais problemas
nacionais. Aproximou-se das lideranças empresariais nacionais e estrangeiras
agregadas em torno do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), que
apoiavam o capitalismo e o anticomunismo. Essas forças tramavam a queda de
Jango com o apoio do governo norte-americano. A ameaça comunista, efeitos da
À esquerda se mobilizavam: o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT); a
União Nacional dos Estudantes (UNE), a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) do
Congresso, o Movimento de Educação de Base (MEB), a Juventude Universitária
Católica (JUC) e a Ação Popular (AP), estes três últimos apoiados pela Conferência
Nacional dos Bispos (CNBB). A Igreja católica ficou dividida entre os progressistas
e os conservadores. Os progressistas, fundamentados na Teologia da Libertação,
atuavam na busca da melhoria da população pobre.
O Partido Comunista Brasileiro (PCB), na clandestinidade desde 1947,
apoiava alguns desses movimentos, assim como suas dissidências maoistas. Na zona
rural, a organização das ligas camponesas, sob a direção de Francisco Julião, desde
1960, com apoio de Cuba, constituía-se em uma ameaça para os proprietários rurais.
A demanda das reformas de base – agrária, educacional, fiscal, eleitoral – mobilizava
a esquerda, que de fato tinha um apoio popular limitado e pressionava Jango a tomar
uma posição política mais definida (CARVALHO, 2001).
As questões da reforma agrária e eleitoral3, da aceleração vertiginosa da
inflação, além da queda dos investimentos estrangeiros no país, criaram um clima
político social que acelerou a crise. Jango, indeciso, tenta um golpe contra seus
adversários: solicita ao Congresso o estado de sítio, mas, sem o apoio da esquerda
e dos moderados, recua. Líder sem o carisma e a astúcia política de seu patrono,
Jango oscilava entre seguir as pressões da esquerda moderada ou radical, mas, por
fim, decidiu-se pela defesa das reformas de base (CARVALHO, 2001). Em um
grande comício no dia 13 de março de 1964, Jango, ao lado do seu ministro da
Guerra, defende as reformas de base e anuncia dois decretos polêmicos: um de
desapropriação de terras ociosas; outro que encampava as refinarias de petróleo
particulares. Com tais medidas Jango desafiava o Congresso Nacional, de maioria
conservadora.

3
Na Reforma Eleitoral estava em pauta a proibição do voto aos analfabetos e aos soldados, que
persistia desde a Constituição de 1934. Em 1950, 57% da população era analfabeta (CARVALHO, 2001).

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A tensão social foi crescente, a direita contra-atacou com as Marchas da


Família com Deus pela Liberdade, em São Paulo e Rio de Janeiro, nas quais as
mulheres tiveram um papel proeminente. A Campanha da Mulher pela Democracia
(CAMDE) – e de outras organizações semelhantes, que se formaram no país
naquele momento – defendia os princípios da família e da propriedade, por meio
dos valores católicos tradicionais. O objetivo era fortalecer a luta contra o governo
e conseguir maior apoio popular. Esposas, mães, filhas, parentes de empresários ou
políticos conservadores foram às ruas, com o terço nas mãos, engrossar a ladainha
anticomunista4.
Os impasses políticos agravaram-se ainda com a rebelião dos marinheiros
por melhores condições de trabalho, a qual recebeu o apoio do presidente. O líder
dos marinheiros, o cabo Anselmo, “foi posteriormente identificado como agente da
Central Intelligence Agency (CIA) americana, tendo cooperado com os órgãos de
repressão durante os governos militares” (CARVALHO, 2001, p. 143). Em meio à
maior crise militar de seu governo, Jango participou de uma reunião dos sargentos
e suboficiais das Forças Armadas, em que proferiu discurso inflamado, transmitido
em rede nacional de televisão. Foi o estopim para sua queda.
Apesar de Jango ter montado um dispositivo militar, ao colocar em posições-
chave do Exército seus correligionários, para se preparar para um possível embate, as
forças da direita saíram na frente. O Exército e o governo de Minas Gerais enviaram
as tropas ao Rio de Janeiro, onde tinham o apoio do Chefe do Estado-Maior do
Exército, Humberto Castelo Branco. Receberam adesão da tropa paulista, até então
janguista, em 31 de março de 1964 e apoio do governo norte-americano durante a
preparação do golpe5.
Jango exilou-se no Uruguai, e as forças sindicais e de esquerda, que estavam
ao seu lado, não conseguiram mobilizar apoio popular. Os militares assumiram o
poder, para surpresa dos políticos civis que os apoiaram, especialmente, os udenistas
(CARVALHO, 2001). O país entrou em uma fase de retrocesso de direitos políticos
e sociais que durou até 1985.

O período da ditadura e as mulheres na política

A ditadura militar teve três fases. A primeira (1964-1968): governo do general


Castelo Branco (1964-1966) e do general Costa e Silva (1967-1969), ligados aos
4
Algumas dessas manifestações foram realizadas logo após o golpe para celebrá-lo. O apelo religioso
era estratégico, uma vez que na década de 1960, 95% da população brasileira declarava-se católica
(SCAVONE, 1979).
5
Nas palavras de um general conspirador, o Exército “dormiu janguista” e acordou “revolucionário”,
isto é, passou a apoiar os militares. Os contatos com os governos norte-americanos foram constantes
(GASPARI, 2002, p. 59).

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setores liberais conservadores da Escola Superior de Guerra (ESG). Constam desse


período os Atos Institucionais e as cassações de políticos, militares, civis. Prisões,
denúncias de tortura, dissolução dos partidos, criação do bipartidarismo, instalação
de eleições indiretas para Presidência e governadores. Na economia: combate à
inflação e pequeno crescimento. No fim dessa fase crescem as manifestações contra
a ditadura e iniciam-se as guerrilhas urbana e rural.
A segunda fase (1969-1974), conhecida como os “anos de chumbo”, ligada
aos militares mais truculentos: governo do general Garrastazu Médici, que intensifica
a repressão política. No fim de 1968 foi editado o Ato Institucional Nº 5 (AI-5),
o qual centralizou o poder no Executivo, suspendeu o habeas corpus, decretou o
recesso do Congresso Nacional, que só foi reaberto dez meses depois, com uma
oposição amordaçada6. A partir daí, o arbítrio aumentou, a violência de Estado
incrementou a tortura como arma de constrangimento e extermínio das organizações
de esquerda. Paradoxalmente, foi uma fase de crescimento e euforia econômica,
conhecida como milagre econômico (GASPARI, 2002).
A terceira fase (1974-1985): teve como presidentes o general Ernesto Geisel
(1974-1979) e o general João Batista Figueiredo (1979-1985), ligados aos liberais
conservadores da ESG. No início do período continuam a censura, as prisões e a
tortura. Oito meses após a posse da Presidência, Geisel anunciou uma distensão
política lenta, gradual e segura: em 1974, diminuição das restrições à propaganda
eleitoral; em 1978, revogação do AI-5; em 1979, anistia ampla e a volta ao
pluripartidarismo. Na economia: crescimento da dívida externa e da inflação. Foi
um longo período de transição democrática.
O bipartidarismo e a atuação do Congresso Nacional, em quase todo o período
da ditadura, tiveram um caráter peculiar. O partido do governo, Aliança Renovadora
Nacional (ARENA), acatava todas as decisões e escolhas políticas dos militares,
até mesmo para eleger os presidentes militares indicados. A sigla da oposição-
MDB – Movimento Democrático Brasileiro – congregava diferentes opositores ao
regime que ao longo do período ditatorial foram sendo cassados, neutralizados e/
ou cooptados. Qualquer discurso mais inflamado no plenário redundava em perda
de mandato.
As eleições legislativas – em todos os níveis – eram mantidas com restrições:
censura da propaganda política e veto dos candidatos mais radicais. A vitória do
partido da oposição nas eleições de 1978 fez o governo criar a figura dos senadores
eleitos indiretamente, para não perder o controle da situação política. Para o Senado

6
O AI-5 cassou os mandatos de 513 senadores, deputados e vereadores. Foram aposentados 3.782
funcionários públicos, dos quais 72 professores universitários e 62 pesquisadores científicos. Os militares
que se opunham ao golpe foram excluídos das fileiras: 1.313 militares de diversas patentes (CARVALHO,
2001).

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e a Câmara, as eleições ocorreram em 1966, 1970, 1974, 1978 com os dois partidos
e em 1982 e 1986 já no sistema multipartidário (GASPARI, 2004).
Nesse período, poucas mulheres participavam da vida política institucional
do país. As mulheres obtiveram direito ao voto no Brasil em 1932, após uma longa
luta liderada pela pioneira, a bióloga Bertha Lutz, que criou em 1922 a Federação
Brasileira para o Progresso Feminino. Vargas cedeu às pressões das feministas
pioneiras e incorporou o direito ao voto feminino no Código Eleitoral, por meio do
Decreto 21.076, a 24 de fevereiro de 1932 (SOHIET, 2006). Nesse ano, a médica
Carlota Pereira de Queiroz, eleita a primeira deputada federal e participante da
Assembleia Constituinte de 1934, contribuiu para a inclusão desse direito na nova
Constituição.
No período de 1932-1962 (fora os oito anos da ditadura Vargas), 11 mulheres
se elegeram à Câmara dos Deputados (AVELAR, 2001). Nas eleições de 1965, um
ano após o golpe militar, o número de eleitas aumentou três vezes, passando de
duas deputadas (nove candidatas) das eleições anteriores para seis deputadas (treze
candidatas). As mulheres apresentaram-se aos cargos eletivos para substituírem
“seus parentes (maridos, irmãos, pais) cujos mandatos haviam sido cassados no
Ato Institucional Nº 1” (TABAK; TOSCANO, 1982, p. 25). Essas deputadas eram
na maioria do partido de oposição, MDB, uma só do partido do governo, ARENA.
A participação das mulheres na política institucional no país foi e ainda é
marcada pelas oligarquias familiares, que se perpetuam no poder (AVELAR, 2001;
BLAY, 1981). Algumas mulheres dessas famílias se destacaram nacionalmente:
Ivete Vargas, sobrinha-neta de Getúlio Vargas, elegeu-se deputada federal em
1950/1954/1958 pelo PTB e depois pelo MDB em duas legislaturas durante a
ditadura (1963-1967 e 1967-1971) e teve seu mandato cassado pela ditadura em
1969. Na volta à democracia assumiu a liderança do PTB e se elegeu novamente
deputada na legislatura 1983-1987. Roseana Sarney, filha de José Sarney, é outro
exemplo desse tipo de política: elegeu-se senadora pelo Partido Frente Liberal
(PFL), antigo Partido Democrático Social (PDS), e foi a primeira mulher no país a
se eleger governadora no estado do Maranhão.
Durante os anos de chumbo, na legislatura 1971-1975, há somente uma
deputada no Congresso Federal, da ARENA. Na legislatura seguinte, eleição de
1974, legislatura 1975-1979, o mesmo cenário: uma só deputada, da ARENA. Em
1977, o Congresso Nacional aprovou a Lei do Divórcio no país e não contou com o
apoio desta deputada. Nas eleições de 1978, legislatura 1979-1983, quatro mulheres
foram eleitas, três do MDB e uma da ARENA (SASSE, 2010).
Se não havia uma discriminação aberta contra às mulheres nesse período, o
espaço para elas na política institucional autoritária foi praticamente inexistente.
Além da participação conservadora fugaz que as mulheres das classes dominantes
tiveram na Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), não há nenhuma

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mulher que tenha se notabilizado no apoio aos ditadores, a não ser em seus papéis
tradicionais dentro da família.
As ideias do feminismo brasileiro contemporâneo surgiram no fim dos anos de
1960 e começo dos anos de 1970, período dos anos de chumbo. Nesse período, ainda
não é possível falar em um movimento feminista, mas em um novo acontecimento
político, no qual as mulheres começam a participar do movimento estudantil, da
ação partidária ou sindical clandestina e a romper com um dos mais consolidados
mitos da dominação masculina de que política é negócio dos homens. Subjacentes
a esse acontecimento há os ecos da revolução das idéias e comportamentos dos
países do norte que circulavam no meio da vanguarda política e cultural brasileira
e os questionamentos dos tabus tradicionais relacionados à família e à sexualidade,
que aprisionavam as mulheres no espaço doméstico.
Desde o início de 1968, multiplicavam-se as manifestações estudantis nas
capitais do país; os estudantes, organizados, mobilizavam-se em massa contra
a ditadura. A União Nacional dos Estudantes (UNE) congregava opositores
de diferentes tendências de esquerda, dentre eles, homens e mulheres que,
posteriormente, foram ou para luta armada ou para a clandestinidade. As
manifestações de operários, camponeses, políticos, intelectuais, artistas, nas
principais cidades brasileiras e na zona rural, indicavam o clima de resistência geral
ao regime militar.
No fim de 1968, com a decretação do AI-5, o país ingressou em um período
de repressão política, sem precedentes em sua história – a censura atingia os grandes
e pequenos jornais, livros, letras de músicas, espetáculos teatrais, com o exílio,
ou prisão, ou morte de militantes, estudantes, intelectuais, professores, artistas,
trabalhadores do campo ou da cidade, sindicalistas, religiosos progressistas e de
todos os que se manifestassem contra o regime (GASPARI, 2002).
A fase da guerrilha urbana, organizada pelos partidos clandestinos da nova
esquerda, se intensificou com sequestros de embaixadores, assaltos a bancos e
ações públicas e políticas de impacto. Os sequestros eram utilizados para negociar
a liberação e o exílio das centenas de prisioneiros políticos que a ditadura, até então,
encarcerara.
A ação política das mulheres contra a ditadura foi diversificada: na luta
armada; na militância clandestina dos partidos políticos; no apoio aos seus
companheiros, filhos ou amigos. Foram perseguidas, torturadas ou exiladas. Houve
aquelas que se auto exilaram para estudarem nos Estados Unidos, Europa, por
terem sido ameaçadas pelo regime, ou por terem tido pessoas de suas relações que
sofreram com a repressão.
A participação das mulheres nas organizações de esquerda, nesses anos,
foi bem menor do que a dos homens, no entanto ela foi significativa e, de certo
modo, condizente com o lugar que elas começavam a ocupar no espaço público:

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do total dos 4.124 militantes processados judicialmente nas décadas de 1960-1970,


16% eram mulheres. As mulheres perfaziam, em 1970, somente 18,5% da força de
trabalho, mas já representavam 40% da população estudantil universitária do país.
Além de os homens serem majoritários do ponto de vista quantitativo nos partidos
de esquerda, eles também ocupavam os cargos de comando, salvo em raríssimas
exceções (AVELAR, 2001, TABAK; TOSCANO, 1982).
As mulheres participaram mais dos grupos armados e das organizações
militaristas da guerrilha urbana, as quais apresentavam maiores riscos, do que
dos partidos políticos tradicionais. Do total dos militantes processados ligados
aos grupos armados, 18,3% eram de mulheres; já, entre os processados do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), havia somente 4,7% de mulheres. Este dado sugere que
elas se identificavam com uma proposta de ação política radical, tanto do ponto de
vista da militância como de sua vida pessoal. A ação armada e/ou a clandestinidade
abalavam de forma material e simbólica a conjuntura da dominação masculina, pois
criavam uma situação em que as mulheres rompiam com seu papel social dentro e
fora da família. Apesar dessa ousadia e transgressão, muitas delas só foram perceber
o lugar que ocupavam com a distância do exílio, da prisão, do tempo, ou quando
começaram a constatar a opressão que sofriam como mulheres, até mesmo dentro
das organizações políticas (AVELAR, 2001, TABAK; TOSCANO, 1982).
A militância das mulheres nos partidos políticos de esquerda, nesse período,
foi analisada por estudiosas do assunto como uma dupla transgressão: não só pelo
fato de elas entrarem em uma situação-limite de clandestinidade, de estar fora da lei,
mas também pelo fato de terem rompido com a vida familiar, afetiva e profissional.
Além da grande novidade e desafio de serem mulheres fazendo política.
Essas militantes se identificavam com dois tipos de engajamento político:
como mulheres liberadas, vanguarda da revolução dos costumes, e como mulheres
que se engajavam na luta revolucionária. Associavam compromisso político com
compromisso existencial, tal qual a afirmação de uma militante que dizia estar
fazendo a história, como os guerrilheiros nas montanhas da América Latina ou
como os estudantes nas barricadas de 68 (COSTA et al, 1980). Ao buscarem romper
com o estilo tradicional de fazer política e com os valores de suas classes de origem,
elas estavam, também, em sintonia com o romantismo revolucionário da época.
Não havia, entretanto, uma elaboração propriamente feminista de suas experiências.
Depoimentos dados nos anos 1990 – quando ocorreu uma intensa produção
memorialística, historiográfica, fílmica do período da ditadura militar – por
militantes que participaram da luta armada mostram consciência da questão de
gênero na política (GARCIA, 1993; PATARRA, 1992). Vera Silva Magalhães foi das
poucas mulheres que chegaram a dirigir uma organização e a única que participou
do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick. Ela relatou que fez com
seus companheiros a preparação do ponto de vista prático, teórico e estratégico

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da guerrilha, mas, durante o processo do sequestro, tratou dos levantamentos de


informações “com o papel de mulher que a sociedade me atribuía” (SALEM, 1997,
p. 61).
Em depoimento dado a Marcelo Ridenti (1993, p. 202), Vera declarou que foi
afastada da direção por ter sido considerada, pelos seus companheiros, de “instável
emocionalmente”, comentando que a estabilidade emocional não era exigida para
os homens. Ela ressaltou o lado libertário de sua geração, que queria, também,
romper com os “preconceitos da família, com os casamentos formais”, com o tabu da
virgindade. Foi presa, torturada, e saiu da prisão em 1970, entre os 40 presos soltos
na negociação pela libertação do embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben,
sequestrado pela luta armada7.
As presas políticas que foram torturadas passaram pela “cota suplementar
de sofrimento que resulta da violência sexual (estupros, às vezes seguidos de
gravidez) ou dos rituais de humilhação a que são submetidas” pela sua situação
de gênero (GARCIA, 1997, p. 327). Atos abomináveis de tortura que expuseram
crianças diante de suas mães, que desprezaram mulheres grávidas, mostraram até
que ponto os torturadores utilizaram elementos da identidade feminina para aniquilar
“as mulheres que desafiaram o poder instituído” (OLIVEIRA, 1996, p. 12). Ao
ocuparem um lugar político no espaço público e negarem o lugar tradicional que
lhes fora destinado no espaço privado, abriam as portas para a construção de uma
nova identidade. Muitas delas tornaram-se militantes feministas nos anos seguintes.
Ao lado do intenso cerceamento dos direitos políticos e sociais dos “anos
de chumbo”, o Brasil viveu seu milagre econômico com uma política econômica
de crescimento sem democracia: houve uma centralização da economia, estímulos
fiscais e tributários, investimentos estrangeiros em profusão, aceleração da
industrialização e da urbanização, modernização das comunicações, realização
de grandes obras públicas. O Produto Interno Bruto (PIB) do país chegou a taxas
nunca antes (nem depois) alcançadas. A ditadura utilizava uma propaganda ufanista
e autoritária para divulgar suas realizações econômicas, era aceitar ou desertar,
tal como o slogan que circulou pelo país: “Brasil, ame-o ou deixe-o” (GASPARI,
2002a).
O crescimento deu-se de forma excludente, com aumento significativo da
faixa de participação dos mais ricos na economia e a expulsão dos trabalhadores
para as periferias das grandes cidades. Apesar disso foi a década de expansão de
empregos e quando as mulheres ingressaram definitivamente na atividade produtiva,
representando 28,8% da População Economicamente Ativa (PEA), em 1976, e
36.9% em 1985. Em 2002, as mulheres eram 42.5% da PEA (BRASIL, 1981; 2002).
7
Ao sair da prisão rumo ao exílio, Vera não conseguia andar em consequência das torturas que sofreu.
Em 2002 recebeu indenização do Estado pelas sequelas que a violência causou a sua saúde. Faleceu
no fim de 2007, aos 59 anos,

202 Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020


Democracia e feminismo no Brasil

Nesses anos, há um significativo declínio da fecundidade, com a modernização


da contracepção e início da prática da esterilização feminina, a qual se ampliou
nas décadas seguintes e passou a ser o método contraceptivo mais usado entre as
mulheres brasileiras. Havia contradições políticas na cúpula militar entre adotar uma
política demográfica de incentivo à natalidade visando ao povoamento e à Segurança
Nacional ou uma política demográfica controlista.
Esta última política prevaleceu, pois estava prevista nas cláusulas dos
empréstimos internacionais e introduziu, em 1965, a Sociedade pelo Bem-
Estar Familiar no Brasil (BEMFAM) – instituição associada à International
Planned Parenthood Federation (IPPF), que iniciou uma ampla distribuição de
contraceptivos orais, com o objetivo de diminuir a fecundidade das brasileiras.
Entre os anos de 1970-1980 houve uma redução de 24,1% na taxa de fecundidade,
passando de 5.8 filhos por mulher para 4.4 filhos, no fim da década8 (BRASIL,
1997). As feministas, que estavam no país ou no exterior, criticavam a forma
impositiva e discriminatória da política de controle da natalidade adotada no país
(PINTO, 2001; DOSSIÊ, 1976).
Os “anos de chumbo” começaram seu declínio no fim, de 1974 com “o
assassinato do último guerrilheiro (guerrilheira) do Araguaia (guerrilha rural que
durou aproximadamente quatro anos), Walkíria Afonso Costa, 27 anos, ex-aluna da
Faculdade de Artes e Educação da Universidade Federal de Minas Gerais”, a vitória
no Senado do partido de oposição (MDB) e o aumento de sua bancada na Câmara
de Deputados (GASPARI, 2004, p. 508). Foi quando a política de extermínio de
militantes políticos, das guerrilhas urbanas e rurais, chegou ao seu clímax. Ocorreu
também que os anos do milagre econômico (1968-1973) conviveram com o declínio
do Produto Interno Bruto (PIB), o crescimento da inflação e da dívida externa e
culminou seu desmoronamento com os impactos mundiais da recessão econômica
e da crise do petróleo. O país entrou nos anos de 1980 com recessão econômica e
hiperinflação, que só começou a ser controlada a partir de 1994, com a substituição
da moeda e um plano econômico de estabilização.
A pressão popular cresceu a partir de 1973 e teve o apoio da Igreja católica –
mediante os militantes das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e na figura do
cardeal progressista D. Paulo Evaristo Arns, que se posicionava contra as mortes
nas prisões e o desaparecimento de prisioneiros políticos. Uma missa celebrada em
memória do estudante Alexandre Vannuchi Leme, morto na prisão, foi considerada
como o primeiro protesto de grande porte da década de 1970, ao reunir diversos
setores da sociedade civil. Os assassinatos do jornalista Vladimir Herzog na
prisão, em 1975 e, do operário Manuel Fiel Filho em 1976, desencadearam ampla
mobilização contra o regime.

8
Em 2006, essa taxa alcança o índice dos países desenvolvidos de 2.0 filhos por mulher.

Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020 203


Lucila Scavone

O arbítrio foi cometido até o fim dos anos de 1970, começo da década de
1980: prisões políticas seguidas de tortura e assassinatos; repressão aos estudantes,
que voltavam às ruas clamando por liberdades democráticas; práticas de terrorismo
da direita com o intuito de desestabilizar o processo de redemocratização do
país. Cenário que evidenciava as forças políticas conflitantes que se digladiavam
nos bastidores do processo em curso. No fim da década de 1970 a tensão entre a
sociedade civil e os militares aumenta: três grandes greves operárias paralisam o
país: 1978, 1979 e 1980.

O feminismo nos dois lados do Atlântico

O Chile foi um dos destinos do exílio político durante o governo de Salvador


Allende (1970-1973), mas o golpe militar neste país resultou para os brasileiros
que lá estavam em um segundo exílio. A França (Paris) foi o país que mais recebeu
brasileiros ao longo da ditadura, no âmbito europeu. Os exilados viram-se diante
de um contexto diverso do que vivenciaram no Brasil: havia uma efervescência
social, cultural e política que abrangia tanto a crítica ao imperialismo americano,
como ao soviético, e a busca por um novo modo de fazer política. Havia, também,
a contestação radical aos padrões e costumes da família e da sexualidade burguesas
tradicionais, cujos ecos haviam chegado ao Brasil.
As ideias libertárias de maio de 1968, que confluíam com o feminismo,
traziam à tona questões novas, sobretudo para os militantes brasileiros com formação
mais ortodoxa. As mulheres exiladas brasileiras, e latino-americanas, em Paris
entraram em contato com uma sociedade mais igualitária socialmente, o que lhes
possibilitava perceber com maior clareza as contradições que ocorriam em sua vida
cotidiana.
Aquelas que vinham de um meio social mais privilegiado, que tinham curso
universitário completo (artistas plásticas, ou musicistas, ou profissionais liberais)
mergulharam em um universo onde seus privilégios de classe não eram os mesmos
que no Brasil. As que não tinham formação especializada, por terem centrado
sua vida no trabalho político, ou simplesmente por serem mães, esposas ou irmãs
de guerrilheiros, tiveram dificuldades de integração profissional no novo país
(GOLDEBERG, 1987).
Confrontadas, em suas novas experiências de vida, com a percepção da divisão
sexual do trabalho e das relações de gênero em sua vida afetiva e nas organizações
políticas em que atuavam, as mulheres exiladas se identificaram, em sua maioria,
com as reivindicações do feminismo francês, participando e organizando grupos
feministas (GOLDEBERG, 1989).

204 Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020


Democracia e feminismo no Brasil

Dois grupos organizados por brasileiras no exterior destacam-se na história


do feminismo brasileiro: o Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris (Latino-
Americanas), fundado pela escritora brasileira Danda Prado9, em 1972, e O Círculo
de Mulheres Brasileiras em Paris (Círculo), fundado em 1976 por brasileiras vivendo
em Paris. A constituição desses grupos era de exiladas políticas, auto exiladas e
estudantes. O Círculo foi um grupo composto somente de brasileiras, enquanto o
Latino-Americanas agregava mulheres de diferentes países do continente. Esses
grupos funcionavam como o movimento feminista francês e internacional da época,
em que os grupos de reflexão se multiplicavam espontaneamente por bairros, ou por
temas, ou por interesses comuns, dentro de um grupo maior que se reunia com menor
frequência. Os dois grupos interagiam com o movimento feminista francês em
passeatas e ações públicas, identificando-se com suas reivindicações mais amplas.
O Latino-Americanas editou no período de 1972 a 1976 o jornal Nosotras,
escrito por mulheres de vários países da América Latina e, também, da França,
com uma pauta voltada para as questões feministas e matérias sobre a situação das
mulheres em diversos países. O jornal era enviado para o Brasil e distribuído para
pessoas-chave, burlando a censura e propagando as ideias feministas radicais no
país. Esse grupo foi esvaziado pelas pressões da Frente de Brasileiros no Exílio,
que não aprovava a participação das exiladas na luta feminista e as ameaçava com
a retirada de apoio financeiro para suas famílias (CARDOSO, 2004a; 2004b).
O Círculo propunha-se a lutar contra a “opressão específica das mulheres”
de forma “autônoma”, embora considerasse que essa opressão não se refletisse
“da mesma forma para todas as mulheres”. Assim, pretendia integrar a luta “de
todos aqueles que reconhecem no sistema a causa primeira (…) da exploração e
opressão”10, não abandonando o compromisso com as lutas mais gerais. O grupo
manteve contato com os jornais feministas que se criaram no país – Brasil Mulher
e Nós Mulheres – e, também, com a imprensa alternativa – jornais Movimento e
Opinião (DOSSIÊ, 1976). Este grupo viveu até 1979, quando a Anistia política
possibilitou o retorno do exílio de grande parte de suas militantes.
No Brasil, há registros da organização de grupos de reflexão feminista em
São Paulo e Rio de Janeiro, no início da década de 1970, com mulheres que haviam
voltado de uma experiência de estudos nos Estados Unidos ou na Europa, sobretudo
professoras universitárias (PEDRO, 2006).
A organização das mulheres da periferia de São Paulo – situação proveniente
da urbanização excludente e acelerada da cidade – em clubes de mães, ou de donas
de casa lutando por melhorias em seus bairros, por escolas para seus filhos, por
creches, ou ainda, no movimento nacional contra a carestia, mostra outro tipo de

9
Filha do historiador marxista Caio Prado Júnior, condenado pela ditadura em 1970.
10
Trechos da carta enviada aos jornais em 17 de dezembro de 1976.

Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020 205


Lucila Scavone

atuação política feminina à época da ditadura. Embora suas reivindicações tenham


tido mais força no fim dos anos de 1970, a organização desses movimentos nos anos
duros da ditadura, marcou para essas mulheres a saída do isolamento doméstico e
a entrada como sujeitos políticos no espaço público (OLIVEIRA, 1990; SADER,
1988).
Tais movimentos tinham apoio, sobretudo, da Igreja católica progressista,
grande aliada na luta contra a ditadura – que organizou as Comunidades Eclesiais
de Base (CEBs) –, e da esquerda ortodoxa, o que impossibilitava uma discussão
de temas específicos de interesse das mulheres. A não discussão do aborto nesse
período, por exemplo, resultava em acordo tácito entre as partes envolvidas no
trabalho comunitário.
É comum que estudiosas do movimento feminista brasileiro situem o Ano
Internacional da Mulher, promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU)
e ocorrido no México, em 1975, como propulsor do movimento no país (SARTI,
2001). Tal celebração teria propiciado, no contexto da ditadura militar, abertura de
espaços para reuniões, debates públicos, enfim, meios para sair da clandestinidade.
Foi uma ocasião para setores da esquerda ortodoxa que ficaram no país e para as
mulheres, feministas ou não, se manifestarem contra a ditadura e divulgarem o que
na época era tratado como questão da mulher.
O Seminário O papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira
realizado no Rio de Janeiro, nesse ano (1975), organizado por um grupo de mulheres
feministas e patrocinado pela ONU e pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI),
é considerado como o primeiro momento do debate público sobre feminismo no
país. A pauta incluía questões do trabalho, da saúde, da educação, da legislação,
da discriminação racial, entre outras. Participaram do Seminário vários grupos
de oposição à ditadura, inclusive grupos católicos, com os quais as organizadoras
queriam selar aliança. Isso gerou um documento que deu mais destaque às questões
do trabalho, omitiu a questão do aborto e a palavra “feminismo” (BARSTED,
1992)11.
O Movimento Feminino pela Anistia (MFA), criado em 1975 em São Paulo,
sob a liderança de Terezinha Zerbini, é outro exemplo do bom aproveitamento
político do Ano Internacional da Mulher. Ao voltar da I Conferência Mundial da
Mulher realizada no México, Zerbini lança o MFA, com a proposta de anistia “ampla,
geral a todos que foram atingidos pelos atos de exceção” (DUARTE, 2019, p. 1).
Seu lançamento foi divulgado na imprensa alternativa (jornal Opinião), lembrado
em missa na catedral de São Paulo pelo arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo
Arns. Este movimento contribuiu para ampliar e transformar a luta pela Anistia em
11
Em outubro do mesmo ano, realizou-se na Câmara Municipal de São Paulo o Encontro para o
Diagnóstico da Mulher Paulista. Participaram do evento representantes de partidos políticos, da Igreja,
sindicalistas, feministas e pesquisadoras (SCHUMAHER; BRAZIL, 2000, p. 233).

206 Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020


Democracia e feminismo no Brasil

bandeira nacional, por ter tido sede em vários estados e uma ampla participação de
mulheres. Muitas militantes do MFA eram feministas, ou aderiram ao feminismo
após a militância pela Anistia (MORAES, 1990). Entretanto, o MFA rompeu com
a Frente Unitária das Mulheres por sua líder não concordar com a discussão sobre
aborto ali levantada (BARSTED, 1992).
Logo após o Seminário do Rio, em 1975-1976, destaca-se a criação do Centro
de Desenvolvimento da Mulher Brasileira (CDMB) em São Paulo e do Centro da
Mulher Brasileira (CMB) no Rio. A atuação em partidos políticos de esquerda das
principais integrantes do CDMB fez com que não fizessem referência à palavra
“feminismo” em seu estatuto (BARSTED, 1992). Estes Centros lutavam pela volta
à Democracia no país, e as reivindicações de cunho específico eram relacionadas,
sobretudo, à situação das mulheres trabalhadoras, como criação de creches e escolas.
Em 1975, foi organizada uma mesa-redonda sobre a questão da mulher na
Reunião Anual da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), órgão
tradicionalmente progressista que apoiava a luta contra a ditadura. Esta foi uma
das primeiras ocasiões em que a questão da mulher foi discutida na academia
(SCHUMAHER; BRAZIL, 2000), embora em 1967, a socióloga feminista Heleieth
Saffiotti tenha defendido uma tese sobre o assunto – na qual articulava a questão da
mulher com as classes sociais – que se tornou, posteriormente, referência nacional
para os estudos de gênero no país (SAFFIOTI, 1969).
Ainda em 1975 foi criado o jornal Brasil Mulher que era impresso na cidade
de Londrina-PR, primeiro jornal feminista contemporâneo produzido no país,
que traz a “gênese do debate entre mulheres feministas e mulheres militantes de
esquerda” (CARDOSO, 2004, p. 43). Esse jornal chegou a ter uma tiragem de 10
mil exemplares e foi publicado até 1980, com uma predominância de temas políticos
mais gerais na maioria das suas edições.
Em 1976 foi criado o jornal Nós Mulheres, em São Paulo, “primeira
publicação do feminismo brasileiro contemporâneo a declarar-se feminista”
(MORAES, 1990, p. 20)12. Esse jornal tinha uma organização interna flexível e não
partidária, funcionava como um coletivo e defendia a autonomia do movimento;
contava com mulheres que já haviam passado pelo exílio ou pelo exterior (LEITE,
2003). Levantava bandeiras feministas, denunciando a dupla moral e a repressão
sexual, como a opressão da mulher em todas as classes. A questão do racismo já fazia
parte das preocupações das feministas brasileiras dos anos 70, no primeiro número
desse jornal foi publicado o depoimento de uma mulher negra que denunciava o
racismo no país (CORRÊA, 2001). Apesar da postura assumidamente feminista
desse jornal, havia uma demanda e uma crítica da ausência de questões candentes

Na obra A mulher no Brasil, a autora June E. Hahner (1978) indica que o Brasil foi o único país da
12

América Latina que teve uma imprensa feita por mulheres entre 1974-1980.

Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020 207


Lucila Scavone

do feminismo em sua pauta jornalística, impossível de cobrir no contexto da época.


O Nós Mulheres encerrou suas atividades em 1979.
Em 1978, no Rio de Janeiro, um grupo de mulheres feministas rompeu com
o Centro da Mulher Brasileira, com um manifesto que reivindicava espaço para
os temas-tabu, como a sexualidade e o aborto. No ano de 1979 o I Congresso da
Mulher Paulista lembrou o “direito das mulheres a ter o número de filhos desejados”,
centrou-se na luta pelas creches, destacou a “anistia, ampla, geral e irrestrita”
aos presos e perseguidos políticos. Entretanto, não contou com a participação do
Movimento Feminino pela Anistia de São Paulo, que realizou encontro à parte
(TELES, 1993, p. 117-119).
A mobilização das mulheres brasileiras no período de 1975-1979 foi intensa e
marcada por uma luta que se dividia entre o compromisso político contra a ditadura
e as causas feministas, prevalecendo o primeiro nas negociações políticas.

O retorno à democracia e as ações feministas

O primeiro presidente civil do Brasil após a ditadura foi Tancredo Neves,


filiado ao MDB13 e eleito em 1985, ainda por eleições indiretas. Sua candidatura foi
uma aliança com o partido do governo em sua nova versão, PDS, que indicou o vice-
presidente, José Sarney. A intensa participação de Tancredo Neves na Campanha
pelas Diretas Já, seu histórico na política nacional, sua posição moderada, conferiam-
lhe simpatia popular e apoio político para o cargo. Seu falecimento, pouco antes da
posse, causou comoção social. Assumiu o vice, José Sarney (1985-1990), que havia
colaborado com os militares.
José Sarney foi sucedido por Fernando Collor de Mello (1991-1992), do
Partido da Reconstrução Nacional (PRN), primeiro presidente eleito por voto
direto após a ditadura e também o primeiro na história do país a sair do cargo por
impeachement, por ter comandado um importante esquema de corrupção em seu
governo. Foi sucedido por seu vice, Itamar Franco (1992-1995), do PMDB.
Fernando Henrique Cardoso (FHC, 1995-2002), eleito pelo Partido Social
Democrata Brasileiro (PSDB), dissidência do PMDB, governou o país por oito anos,
dois mandatos, e foi sucedido por Luíz Inácio Lula da Silva (Lula) que emergiu
como liderança sindical no fim dos anos 1970 pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
Lula elegeu-se Presidente da República por dois mandatos, o primeiro entre 2003-
2006 e o segundo entre 2007-2010.

13
O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) foi criado em março de 1966 como uma forma de oposição
à ditadura, composto por uma frente ampla de centro a esquerda moderada. Em 1979 recebeu a
denominação de partido, passando a ser PMDB, e em 2017 volta à sua sigla original MDB.

208 Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020


Democracia e feminismo no Brasil

A fundação do PT ocorreu em 1979 e sua legalização, no começo de 1980,


foi uma novidade promissora para a nascente democracia, já que a história de todos
os partidos brasileiros oficiais, até então, era ligada às elites econômicas, sociais e
políticas. Partido de base popular, aglutinou em sua fundação: os novos movimentos
sociais; o setor progressista da Igreja católica; o novo sindicalismo que brotou das
bases; a esquerda que retornava do exílio; ex-militantes da luta armada; intelectuais
e artistas.
Foi um período em que as mulheres começaram a participar mais da
política institucional. Na legislatura de 1983-1987, foram eleitas oito mulheres
à Câmara Federal – o dobro da anterior – duas delas pertenciam ao PT, uma ao
PTB (Ivete Vargas), três ao PMDB e duas ao PDS. Na legislatura 1987-1991 com
funções constituintes serão 26 deputadas de vários partidos, inclusive do Partido
Comunista do Brasil (PC do B). Essas deputadas compuseram a bancada feminina
da Constituinte.
Nos meados dos anos 1990, a lei das cotas para as candidaturas femininas
dentro dos partidos deu maior visibilidade ao problema, aumentaram as candidaturas,
mas, em proporção menor, as eleitas (ARAÚJO, 2001). Nas legislaturas de 1991-
1995, há 32 mulheres eleitas para o Congresso; em 1995-1998, há 34 eleitas;
em 1999-2000, há 28 eleitas. Na última legislatura, 2003-2006, há 42 eleitas de
diferentes partidos, o que representa 8,2% do total de deputados (FERREIRA, 2006).
No Senado a disparidade entre homens e mulheres é, também, importante,
mas após a redemocratização as mulheres começam a ocupar essa tribuna: 1995-
2003, cinco senadoras eleitas, sendo duas do PT, uma delas Marina Silva (tornou-se
ministra do Meio Ambiente no governo Lula durante cinco anos), além de uma do
PDT (dissidência à esquerda do PTB), uma do PMDB, uma do PFL. De 1999-2007
há duas senadoras eleitas de partidos mais à esquerda e, de 2003-2011, são eleitas
oito senadoras, somente duas do PFL (SASSE, 2010). As duas únicas prefeitas da
mais populosa cidade do Brasil, ou seja, São Paulo, foram Luiza Erundina (1989-
1993) e Marta Suplicy (2000-2004), que à época das legislaturas eram filiadas ao PT.
Tanto em nível organizacional, estatal, como político, o movimento feminista
consolidou durante o processo de democratização suas reivindicações próprias e,
por meio delas, foi um dos atores de peso nesse processo. Com a anistia política, as
exiladas voltaram com a experiência europeia do feminismo, inegável estímulo para
uma maior definição do movimento no país. As trocas de experiências feministas
foram acrescidas dos contatos com outros movimentos sociais emergentes: mulheres
da periferia, negros e homossexuais.
Nos anos 1980-1990 destacamos a formação de grupos autônomos em todo o
país: sua articulação em nível nacional; sua definição política; suas participações na
campanha das Diretas Já em prol da realização de eleições diretas, na Constituinte,
nas concretizações das políticas de saúde e violência contra as mulheres. Ao

Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020 209


Lucila Scavone

escolher sua estratégia política – privilegiar as lutas gerais ou as lutas específicas –,


o feminismo brasileiro optou por participar das lutas gerais, mas, também, assumir
com mais ênfase as lutas ditas específicas. Além disso, passou a considerar a
autonomia feminista diante dos partidos de esquerda, especialmente para aquelas
que tinham uma dupla militância. Do fim dos anos 1970 em diante definiu suas ações
em duas grandes áreas, que remetiam à formulação de políticas sociais e ampliavam
o debate da democratização: a saúde reprodutiva e a violência contra as mulheres.
Com isso, a atuação do movimento se direcionava mais para as classes populares,
desprovidas de direitos à saúde e de direitos de assistência aos danos da violência14.
A maioria dos grupos feministas autônomos, de então, se constituiu em torno
destas questões: SOS Corpo de Recife; SOS Mulher e Centro de Informação da
Mulher, em São Paulo; SOS Violência, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte,
entre vários outros grupos, de norte ao sul do país. No começo dos anos 1980 era
assinalada a existência de aproximadamente 30 grupos no país, do extremo nordeste,
em São Luís do Maranhão, ao extremo sul, em Porto Alegre. Esses grupos faziam
intenso trabalho político: nas ruas (manifestações, peças teatrais); nas periferias
(formando grupos de discussão ou de pesquisas militantes); e no atendimento social
(para saúde e violência) (SUAREZ; BANDEIRA, 2002; SHUMAER; BRAZIL,
2000).
O trabalho de mobilização em todo o país era articulado em Encontros
Feministas e nas grandes campanhas políticas nacionais pela redemocratização.
Os primeiros Encontros Nacionais Feministas, entre 1981-1985, aconteceram ao
lado dos encontros anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC). Com a ampliação do movimento, as reuniões passaram a ser organizadas
independentemente; entre 1979 e 1989 foram realizados onze Encontros Nacionais
em diferentes cidades do país. Na década de 1980 também foram realizados quatro
Encontros Feministas Latino-Americamos, sendo um no Brasil; em 1985, ocorreram
encontros setoriais, por ordem cronológica crescente: movimento sindical, negro,
lésbico; em 1987 realizou-se a I Conferência Nacional sobre a Saúde da Mulher
(SHUMAER; BRAZIL, 2000).
Esse foi o período do processo de institucionalização das demandas feministas
pelo Estado com a criação do Conselho Estadual da Condição Feminina, em São
Paulo (1983), e do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), em 1985,
que a partir daí se multiplicaram. A criação desses Conselhos, em um país que
estava ainda em uma complexa transição política entre autoritarismo e democracia,
14
Nesta questão se coloca um ponto complexo no feminismo brasileiro, consideradas as profundas
desigualdades sociais e de direitos existentes no país. Tanto em relação à violência que atinge as
mulheres, sem distinção de classe, mas que permite àquelas que podem pagar que resolvam com
profissionais particulares os problemas psicológicos resultantes das violências doméstica e/ou sexual
quando estas as atingem, em relação à saúde reprodutiva, que leva as mulheres que podem pagar a
fazer um aborto clandestino sem riscos.

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Democracia e feminismo no Brasil

pode ser compreendida por fatores conjunturais. Internamente, a vitória nas eleições
estaduais do amplo partido da oposição (PMDB) para o governo de São Paulo, em
1982, favoreceu a intervenção política institucional do movimento feminista em
nível estadual e nacional15.
Internacionalmente, a Conferência da Organização das Nações Unidas para
a Década da Mulher em Nairóbi, em 1985, recomendou aos países-membros o
desenvolvimento de políticas públicas de promoção dos direitos das mulheres. A
proposta da criação do CNDM provocou um processo de intensa discussão política
no movimento feminista. De um lado, estavam as feministas que prezavam a
autonomia; de outro, aquelas que consideravam ser importante a interlocução com
o Estado, para implementar políticas destinadas às mulheres. Apesar de esta divisão
ter sido central no VII Encontro Nacional Feminista de 1985, em Belo Horizonte-
MG, a criação do CNDM foi efetivada.
A análise da Carta de Belo Horizonte mostra as tensões internas perante a
criação do CNDM, entre outras, o receio do movimento de ter seu discurso cooptado
e neutralizado pelo Estado e de perder sua autonomia. Por fim, o CNDM foi
aprovado sob determinadas exigências: que fosse administrado por feministas; que
tivesse dotação orçamentária própria; que o movimento participasse da elaboração,
execução e acompanhamento das políticas oficiais, entre outras. Era uma série de
reivindicações que supunham garantir a continuidade da luta feminista em nível
institucional, sem perda total da autonomia (SHUMAER; VARGAS, 1993).
Em sua primeira gestão (1985-1989), o CNDM estava ligado ao Ministério
da Justiça e tinha uma estrutura deliberativa e executiva, semelhante a uma
Secretaria de Estado, que lhe possibilitou ações mais efetivas nos campos da saúde,
trabalho, legislação específica, violência e combate ao racismo. Esta gestão teve
duas presidentes feministas, Ruth Escobar (1985-1986) e Jacqueline Pitanguy
(1986-1989).
A conjunção da ação do CNDM, da ampla mobilização do movimento
feminista com as associações de mulheres, em todo o país, e da bancada feminina
suprapartidária, criada pelas 26 deputadas do Congresso Constituinte de 1988 foi
denominada de “lobby do batom”, uma denominação dada inicialmente de forma
pejorativa pelos constituintes de direita e que as feministas em resposta passaram a
utilizar de forma positiva como elemento de mobilização, desarmando o machismo
de seus agressores (SCHUMAER, 2007; COSTA, 2005). Com o slogan “Constituinte
pra valer tem que ter palavra de mulher” e o uso da tática feminista “de ação direta
de convencimento dos parlamentares”, o “movimento feminista conseguiu aprovar

15
As eleições para governadores em 1982 se realizaram pelo sufrágio universal. No estado de São
Paulo foi eleito André Franco Montoro (PMDB, 1983-1987) e no de Minas Gerais, Tancredo Neves
(PMDB, 1983-1984), dois líderes da abertura democrática, sendo Montoro de uma tendência mais
progressista do partido.

Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020 211


Lucila Scavone

em torno de 80% de suas demandas, foi o setor organizado da sociedade civil que
mais vitórias conquistou” (PINTO, 2001, p. 72).
Na Carta das Mulheres entregue pelo CNDM ao presidente da Assembleia
Constituinte, Ulysses Guimarães16 (PMDB), havia demandas gerais de aprofun-
damento da democracia e de justiça social e, sobretudo, dos direitos das mulheres
(CONSTITUINTE, 1987). O documento tratava da questão da violência contra as
mulheres, redefinia o conceito de estupro e clamava pela ampliação das delegacias
policiais de atendimento às mulheres no país. As questões do controle da natalidade
e do aborto foram habilmente contornadas por uma demanda mais ampla: garantia
das mulheres ao direito de conhecer e decidir sobre o próprio corpo. A carta foi apro-
vada em uma grande reunião em Brasília por mais de 3 mil mulheres (PITANGUY,
2005).
Por ser um tema polêmico no processo constituinte, o movimento entrou
em acordo com os parlamentares progressistas de que o aborto poderia ser
regulamentado pela legislação ordinária e não precisaria ser matéria constitucional
(ROCHA; NETO, 2003).
A Constituição de 1988 assegurou os direitos de igualdade de homens e
mulheres perante a lei. Foi garantida igualdade no trabalho e na sociedade conjugal.
Ficaram caucionadas: licença-gestante de cento e vinte dias e licença-paternidade de
cinco dias; mecanismos para coibir a violência doméstica e propiciar o planejamento
familiar, como decisão livre do casal, entre outras17. A ampla mobilização dos grupos
feministas, das associações de mulheres da sociedade civil, com o apoio do CNDM,
explica tal resultado e evidencia o poder da intervenção feminista nesse importante
momento de redemocratização do país.
Após a participação do movimento feminista na Constituinte, o CNDM
intensificou seu trabalho, dando prioridade às temáticas consideradas ameaçadoras a
uma estrutura estatal que mantinha resquícios de autoritarismo. Entre essas temáticas
estavam as questões dos direitos das trabalhadoras rurais, dos direitos reprodutivos,
especialmente o aborto, como também a campanha nacional relacionada às mulheres
negras (SCAVONE, 2012). Na ocasião do Centenário da Abolição da Escravatura
no país, em 198818, a Comissão da Mulher Negra do CNDM organizou a campanha
Mulher negra, 100 anos de discriminação, 100 anos de afirmação, que não foi bem
16
O deputado Ulysses Guimarães foi um ícone da campanha Direta Já.
17
Cap. I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, Art. 5º; Cap. II – Dos Direitos Sociais, Art. 6º
e Art. 7º, inciso XVIII; Cap. VII – Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso, Art. 226,
parágrafos 7 e 8 da Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988).
18
A escravidão no Brasil durou mais de três séculos. Sua abolição foi decretada em 1888, sem dar
nenhuma proteção social e econômica aos escravos, o que dificultou a integração dos negros libertos
na sociedade brasileira. Por não possuírem qualificação, os negros ficaram à margem do mercado de
trabalho e, mesmo como assalariados, não podiam concorrer na mesma base de igualdade com os
brancos. Há um modelo de valorização dos brancos e o preconceito racial no país é disfarçado, marcado
pela discriminação dos negros (FERNANDES, 1965; HASENBALG, 2005).

212 Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020


Democracia e feminismo no Brasil

recebida pelo Ministério da Justiça e contou com programação de ciclo de debates


e a participação da Pastoral da Terra, Anistia Internacional e Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB) (PITANGUY, 2002).
Em um contexto em que as forças políticas conservadoras ganhavam cada
vez mais espaço, no fim da gestão do presidente José Sarney (1985-1990), houve
uma renúncia coletiva de membros do CNDM: presidente, conselheiras e a maioria
expressiva do corpo técnico e administrativo renunciam, capitulando diante das
pressões políticas adversas. Na gestão posterior, o CNDM perdeu seu perfil político
feminista, foram nomeadas mulheres conservadoras para compor o Conselho na
gestão de Fernando Collor de Melo (1991-1992). Nos anos do presidente Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002), o CNDM não teve muita expressão, pois lhe foi
retirado o status executivo (GRAÇA; NALAGUETI, 2020). Em 2003, a partir do
primeiro mandato do governo Lula (2003-2011), o CNDM passou a integrar a nova
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), a qual, com status de
Secretaria de Estado, promove políticas feministas.

Expansão dos estudos de gênero e das Organizações Não


Governamentais (ONGs)

Destaca-se, a partir dos anos 1980, o desenvolvimento das pesquisas e estudos


acadêmicos sobre as mulheres no país. Dos concursos de pesquisas financiados
pela Fundação Carlos Chagas/Ford (1978-1998) à criação de núcleos de pesquisa
nas universidades, tal produção país passou a ser um importante lugar de reflexão
feminista autônoma, que não parou de crescer e ganhou reconhecimento acadêmico.
No ano de 1981, um grupo de feministas pesquisadoras, jornalistas, intelectuais
lançou o jornal Mulherio (1982-1987), vanguarda na discussão de questões
feministas na imprensa, tais quais: licença-paternidade para os pais, democracia
doméstica, o movimento de mulheres negras, a descriminalização do aborto (TELES,
1993).
A produção de pesquisas, dissertações de mestrado e teses de doutorado nas
áreas de saúde, violência, política, trabalho, educação, sexualidade continuaram a
crescer nas décadas seguintes, contribuindo para refletir, assessorar e acompanhar
as ações políticas feministas no país. A Secretaria Especial de Políticas para as
Mulheres (SPM) tem incentivado pesquisas de gênero, com o objetivo de fortalecer
o lugar das mulheres na ciência. Esse apoio se dá em diferentes níveis de formação,
baseado na política de educação inclusiva (GROSSI; MINELLA; LOSSO, 2006).
A partir dos anos 1990, duas publicações tornaram-se referências nacionais
na área. A revista Estudos Feministas, lançada em 1992 na Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) e, atualmente, sediada na Universidade Federal de Santa
Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020 213
Lucila Scavone

Catarina (UFSC) e a revista Cadernos Pagu, inaugurada em 1993, na Universidade


Estadual de Campinas (UNICAMP). Elas são consideradas revistas de excelência
no meio acadêmico. Em 2005, foi criado o Programa de Pós-Graduação em Estudos
Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, Mestrado e Doutorado, na
Universidade Federal de Salvador (UFBA), primeiro no país e na América Latina
com formação específica na área.
Cabe observar que o feminismo acadêmico no Brasil se integrou à comunidade
científica, por ela foi reconhecido e continuou a manter a ligação política com sua
própria história (BRUSCHINI; UNBEHAUM, 2002; CORRÊA, 2001). Há uma
retroalimentação do movimento com a produção científica, e vice-versa, pela
manutenção de uma troca de experiências entre pesquisadoras, cientistas, militantes,
o que proporciona um rico diálogo entre a teoria e a prática política.
No fim dos anos 1980, ampliaram-se as Organizações Não Governamentais
(ONGs) e a profissionalização do movimento; além disso, novos grupos se formaram
em torno de questões específicas. Saídos do movimento negro (composto pelos dois
sexos) e do feminista (branco e europeizado), surgem os grupos feministas negros,
entre os quais, o GELEDÉS, Instituto da Mulher Negra, fundado em 1988 – com
uma proposta de combater o racismo, o sexismo e a exclusão social –, precursor dos
grupos que surgiram a partir dos anos 1990.
A reflexão específica das mulheres negras conduziu à reapropriação de suas
origens históricas e culturais africanas, ao questionamento dos estereótipos da
sua sexualidade, à verificação de indicadores específicos de saúde e mortalidade.
Isso resultou em uma análise mais visível da articulação das questões de gênero,
de raça e de classe social. Tal processo contribuiu, e continua contribuindo, para
a construção de uma sociedade democrática do ponto de vista racial e social no
país (CARNEIRO, 2002; GONZALES, 1983). Há por parte das políticas públicas
direcionadas às mulheres uma atenção especial à questão da raça/etnia, que aparece
articulada com a discriminação de gênero no trabalho, educação, violência, saúde,
política, sexualidade, entre outras (BRASIL, 2005).
As subdivisões do movimento aumentaram consideravelmente da década
de 1990 em diante: há o movimento lésbico que saí do movimento feminista
(heterossexual) e gay; as mulheres negras lésbicas, que saem do movimento
feminista negro; as feministas católicas, entre outras. Tal dispersão é articulada pela
formação de redes virtuais e/ou reais que buscam aglutinar as divisões temáticas, no
espaço nacional e latino-americano.
Essas redes privilegiaram dois grandes eixos de debate: a saúde reprodutiva
(direitos sexuais e reprodutivos) e a violência de gênero. Esses eixos possibilitaram
uma articulação ampla, pois atravessavam os interesses de cada grupo específico.
Entre tais redes destacam-se a Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos
Reprodutivos (REDESAUDE) e a Rede de Saúde das Mulheres Latino-americana

214 Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020


Democracia e feminismo no Brasil

e do Caribe (RMLAC). Destacam-se também: Articulação Nacional das Mulheres


Negras (AMN); Rede de Educação Popular entre Mulheres (REPEM); Articulação
das Mulheres Brasileiras (AMB); Rede de Estudos e Pesquisa Feministas
(REDEFEM); Rede de Estudos e Pesquisas sobre a mulher e Relações de Gênero
(REDOR), entre outras. A REDESAÚDE, por exemplo, produziu dossiês com
informações temáticas sobre a saúde das mulheres; sistematizou, por meio de
pesquisas, informações necessárias para assessorar as políticas sociais da área.
As reuniões preparatórias das Conferências Internacionais dos anos 1990,
com a participação que as feministas aí tiveram, contribuíram para legitimar, em
nível político nacional, demandas feministas já existentes. Também serviram como
parâmetro de acompanhamento das políticas em benefício das mulheres no país
(PITANGUY, 2002). Entre elas: a Conferência da ONU sobre Meio-Ambiente, no
Rio de Janeiro, 1992, quando o feminismo brasileiro organizou uma importante
força paralela, O Planeta Fêmea; Conferência de Direitos Humanos, Viena (Áustria),
1993; Conferência da População e Desenvolvimento, Cairo, 1994; Conferência
Internacional da Mulher, Beijing, 1995; Cúpula Social na Dinamarca, 1995;
Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância Correlatas, África do Sul, 2001. No início dos anos 2000, a ocorrência
dos Fóruns Sociais Mundiais em Porto Alegre, sul do Brasil, foi outro polo
articulador dos diferentes grupos.
As duas Conferências de Políticas Públicas para as Mulheres realizadas pela
SPM (2006, 2007) resultaram nos Planos Nacionais de Políticas para Mulheres,
frutos do diálogo da sociedade civil com o governo. Esses planos incluem diversos
programas nas áreas de trabalho, saúde, violência, educação, política. O Programa
Pró-Equidade de Gênero, por exemplo, tem como objetivo promover a igualdade de
oportunidades entre os gêneros no trabalho, desde a seleção, formação, promoção e
remuneração nas empresas públicas (BRASIL, 2005-2006).

Políticas Feministas de Saúde e de Combate à Violência

Por meio da questão da saúde reprodutiva, o movimento feminista interveio,


em 1983, na proposta do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher
(PAISM), elaborada pelo Ministério da Saúde, que substituía o antigo programa
Materno-Infantil. A criação desse programa, durante a considerada transição
democrática, foi explicada pela inquietude do governo com o crescimento
populacional, decorrente das cláusulas relacionadas aos empréstimos internacionais.
Além disso, pressão do movimento feminista e de setores da sociedade civil
contra a política de controle da natalidade no país e a participação de médicas e
técnicas feministas do Ministério da Saúde na discussão do PAISM contribuíram
Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020 215
Lucila Scavone

para que o Programa tivesse um caráter inédito e progressista diante das políticas
de saúde anteriores. O PAISM propunha um atendimento à saúde das mulheres em
todas as fases da vida, não as limitando à fase reprodutiva, e respeitava a liberdade
dos casais no planejamento familiar.
As médicas feministas que trabalhavam no Ministério da Saúde propuseram a
criação da Comissão de Estudos dos Direitos da Reprodução Humana (1985-1988),
instituída com a finalidade de trazer as vozes da sociedade civil para assessorar o
PAISM. A Comissão, composta por feministas, profissionais de saúde, cientistas e
parlamentares, fez um levantamento das atividades das organizações que atuavam
com financiamento externo, sem restrições normativas, na área da reprodução
humana: distribuição indiscriminada de anticonceptivos, pesquisas de novos
contraceptivos, reprodução assistida, esterilização feminina (OLIVEIRA, 2005;
REIS, 2005). O PAISM teve inúmeras dificuldades de êxito em sua implantação nas
décadas seguintes, não só pela falta de infraestrutura na saúde pública para aplicá-
lo, como também pela falta de interesse político em continuá-lo (RIBEIRO, 1993).
Em 1986, 26,9% das mulheres em idade reprodutiva em união haviam se
esterilizado, em 1996 este índice atinge, 40.1% (BRASIL, 1997). Inicialmente o
feminismo denunciou o crescimento inexorável do fenômeno, sua associação com
partos por cesariana, política de controle de populações mais pobres e/ou da raça
negra, seu caráter definitivo. Constatava-se, entretanto, que as mulheres brasileiras de
todas as classes buscavam a esterilização por ser um recurso seguro e, seguidamente,
pagavam para realizá-la. No fim dos anos 1990, houve uma mudança no teor do
debate, e alguns grupos feministas passaram a apoiar a sua regulamentação para
evitar abusos.
Em 1997, governo FHC promulgou uma lei federal de planejamento familiar
que estabeleceu critérios para o acesso à esterilização voluntária masculina e
feminina, nos serviços públicos de saúde: idade acima de 25 anos, ter pelo menos dois
filhos/as, ser informado de seus riscos e benefícios, ser realizada independentemente
do parto. O regulamento proporcionou um aumento da esterilização masculina e uma
diminuição da esterilização em mulheres muito jovens e sem filhos.
O aborto sempre foi um sério problema político para o feminismo brasileiro.
Ele é proibido no país, com base no Código Penal de 1940, pelo qual é considerado
crime, salvo por dois permissivos legais: risco de vida da mulher e gravidez
decorrente do estupro. É um crime raramente punido, tanto para as mulheres que o
realizam, como para as parteiras, ou para os médicos que o executam, mesmo com
ocorrência de morte da gestante (ARDAILLON, 1997).
A trajetória do debate e das ações políticas feministas em prol da liberalização
do aborto no país foi marcada por avanços, recuos e, sobretudo, por inúmeras
negociações políticas. Da omissão da palavra aborto, nos meados dos anos de 1970 –
para assegurar as alianças políticas com os setores da esquerda e da Igreja católica

216 Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020


Democracia e feminismo no Brasil

progressista na luta contra a ditadura – à opção política pela descriminalização e


pela efetivação dos casos previstos por lei, o percurso das políticas feministas para
tratar do problema indica o poder das forças conservadoras em jogo.
No fim da década de 1970, o feminismo brasileiro já tinha uma posição
política sobre o aborto fundamentada no princípio do direito individual. Ao
contornarem demandas abertas pelo direito ao aborto, as feministas costumavam
substituí-las por fórmulas gerais, tais como: direito de decidir pelo número de
filhos desejados, direito de conhecer e decidir sobre seu próprio corpo, entre
outras.
No começo dos anos de 1980, a publicação O que é aborto, da Frente
Feminista de Mulheres de São Paulo (BARROSO; CUNHA, 1980), considerava-o
como um direito de autonomia e ressaltava os perigos à saúde decorrentes de sua
clandestinidade. Já estavam aí explícitas duas táticas utilizadas pelo feminismo para
legalizar o aborto: a questão dos direitos e a questão social.
O aborto como problema social está relacionado às condições precárias em
que ele é realizado, colocando a saúde e a vida das mulheres em risco. Essa posição
foi fortalecida nas Conferências do Cairo e de Beijing. O feminismo passou a tratar
do aborto inseguro e a considerar que a alta incidência de abortos clandestinos no
país – em torno de 1 milhão por ano – é um problema de saúde pública. O aborto é
a quarta causa da mortalidade materna no país (REDESAÚDE, 2001).
A questão dos direitos foi aprimorada a partir dos meados dos anos de 1980,
quando o feminismo brasileiro começou a utilizar a noção dos direitos reprodutivos.
Tal conceito remetia a uma das idéias fundadoras do feminismo contemporâneo: o
direito ao próprio corpo, baseado nos princípios de autonomia e liberdade, expresso
na máxima feminista nosso corpo nos pertence. A ideia de geração de direitos é
utilizada pelas Nações Unidas para situar o estágio histórico do debate dos direitos
humanos (JELIN, 1994; ÁVILA, 1999).
Esse conceito propagou-se no feminismo brasileiro a partir da sessão do
Tribunal Internacional de Saúde e Direitos Reprodutivos, realizado em Encontro de
Saúde da Mulher, em Amsterdã, 1984. A noção de direitos reprodutivos foi acatada
pelo grupo de brasileiras ali presentes e, em seguida, incorporada à linguagem
feminista uma década antes de ter sido consagrada nas conferências do Cairo e de
Beijing (CORRÊA; ÁVILA, 2003).
Em 1989, no Encontro Nacional Saúde da Mulher, um Direito a ser
conquistado, organizado pelo CNDM, há uma demanda explícita por sua
descriminalização (BARSTED, 1992). Ao constatar que vários segmentos da
sociedade não apoiavam a criminalização do aborto, mesmo que o condenassem
moralmente, o feminismo brasileiro considerou que esta seria a melhor tática política
para sensibilizar setores progressistas da sociedade e derrubar a condenação do
Código Penal. De fato, nos anos de 1990, o movimento já não estava tão solitário

Estud. sociol. Araraquara v.25 n.48 p.193-227 jan.-jun. 2020 217


Lucila Scavone

nessa luta, com a adesão crescente de novos segmentos sociais: profissionais de


saúde, juristas e parlamentares. Foi o período em que houve maior número de
projetos de lei relacionados ao aborto no Congresso Nacional.
A garantia do direito nos casos previstos por lei, os quais eram desconsiderados
pelos serviços públicos de saúde, só foi efetivada em 1989, quando a prefeita de São
Paulo, Luiza Erundina (1989-1993), instalou o primeiro serviço de aborto previsto
por lei. O feminismo centrou sua luta na garantia da aplicação da lei e buscou
ampliá-la para outros casos. Destaca-se o grupo das Católicas pelo Direito de Decidir
(CDD), pois constitui uma oposição importante no seio da própria Igreja católica,
uma das mais fortes opositoras da liberação do aborto no país.
Em 2004, a Primeira Conferência Nacional de Políticas Públicas para as
Mulheres afirmou a existência de um estado laico e recomendou a revisão da
criminalização do aborto. A Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) designou
uma Comissão Tripartite, com representantes do Executivo, Legislativo e Sociedade
Civil (inclusive feministas), para discutir a questão do aborto. Essa Comissão
elaborou um projeto preliminar de descriminalização e legalização do aborto, que
foi enviado ao Congresso e que ainda aguarda votação.
No fim de 2007, o governo lançou um Programa Especial de Planejamento
Familiar que foi apoiado por um grupo de feministas, que aproveitou a ocasião para
manifestar os princípios feministas do estado laico, dos direitos reprodutivos, da
questão do aborto inseguro e do projeto de descriminalização.
O destaque que o feminismo deu dos meados da década de 1970 em diante à
violência contra as mulheres surtiu efeitos políticos institucionais. Destacam-se as
campanhas nacionais contra os assassinatos de mulheres, nas quais o caso de Ângela
Diniz (1976), assassinada por seu namorado, virou um símbolo da luta contra a
violência às mulheres. Absolvido no primeiro julgamento, as feministas lançaram
uma mobilização nacional, Quem ama não mata, que se espalhou rapidamente pela
mídia; levado ao segundo julgamento, o criminoso foi condenado. A absolvição
tinha sido baseada na tese jurídica da legítima defesa da honra, pois o assassino
alegava ter sido traído. Esse recurso jurídico perdurou até março de 2005, quando foi
promulgada a lei que revogou o adultério como crime contra o casamento, presente
no Código Penal de 1940.
As experiências desenvolvidas pelos grupos feministas autônomos SOS
Violência foram outra forma de buscar resolução ao problema. O aprofundamento
da questão em encontros nacionais, regionais, como o de Valinhos-SP, em 1980,
também criou condições de viabilizar saídas políticas para a questão. Entretanto, o
problema envolvia a esfera policial quando as mulheres registravam queixa contra
o agressor e a esfera jurídica no caso de separação judicial. O registro da queixa
nas delegacias era penoso, dado o despreparo dos policiais para a questão, o que
resultava em atitudes constrangedoras para as mulheres.

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Democracia e feminismo no Brasil

Nos meados dos anos de 1980, foram criadas as Delegacias de Defesa da


Mulher (DDMs) – a primeira nasceu em São Paulo (1985) – e se tornaram parte
da política de Estado contra a violência de gênero. Expandiram-se no Brasil e se
espalharam em outros países; hoje elas existem na Argentina, Uruguai, Colômbia,
Equador, Costa Rica, El Salvador, Nicarágua, Espanha, Paquistão e Índia (BRASIL,
2006).
A proposta foi criar um espaço estatal que desse uma cobertura jurídica,
policial e psicológica ao combate e prevenção à violência contra as mulheres.
Constituir um espaço que, sem a carga do machismo policial, possibilitasse às
mulheres agredidas se expressarem, sem constrangimentos, sobre a violência física,
psicológica e/ou sexual vivida.
Para tanto, as DDMs foram constituídas por policiais mulheres, delegadas,
escrivãs, investigadoras e por uma equipe de assistentes sociais e psicólogas; a
ideia foi dar atenção diferenciada integral às mulheres em situação de violência.
Assim, as mulheres poderiam registrar a queixa contra os agressores (em geral
maridos, companheiros), providenciar a separação conjugal no serviço social, ou
buscar superar os traumas das agressões sofridas e identificar os problemas do
relacionamento (em geral alcoolismo) (IZUMINO, 2003).
Previa-se a necessidade de uma capacitação especial sobre gênero para que
a equipe de atendimento estivesse preparada para tratar a questão como resultante
de uma relação do casal ou familiar. O crescimento do trabalho das delegacias
mostrou numerosas falhas em seu sistema, provenientes não só do despreparo das
equipes, mas também de uma falta de padronização dos procedimentos, já que
elas são vinculadas aos governos estaduais, cada um com suas características e
orçamentos19.
A SPM buscou integrar os diversos serviços existentes, em um plano nacional
de Enfrentamento à violência contra às mulheres, integrado no Plano Nacional de
Políticas para Mulheres. Neste plano está inclusa a Lei nº 11.340/2006, conhecida
como Lei Maria da Penha, que tipifica a violência doméstica e familiar como um
crime, podendo o agressor ser preso em flagrante. Essa lei tem provocado muita
discussão, pelo seu caráter punitivo, e não há consenso entre as feministas. O
documento “Enfrentamento à violência contra a mulher”, indica que em 2007 foram
registradas no país 399 DDMs em funcionamento, 90 Centros de Atendimento às
Mulheres em Situação de Violência e 65 Casas Abrigo, 15 Juizados de Violência
Doméstica e Familiar (BRASIL, 2007).
A descrição da ação política das mulheres brasileiras, nos últimos 40 anos,
reafirma a força de um movimento social na construção de uma sociedade justa e

19
Pesquisa de SAFFIOTI (2004) indica a falta de treinamento das equipes como possível ponto fraco
das DDMs no Brasil.

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Lucila Scavone

igualitária. Força que teve suas origens no século XIX, quando uma precursora como
Nísia Floresta se indignou com a discriminação social e política das brasileiras, ou,
então, quando Bertha Lutz, no começo do século XX, iniciou a luta pelos direitos
civis, que culminou com a conquista do voto para as brasileiras em 1932.
Da resistência ao autoritarismo dos anos 1970-1980, aos diálogos internacio-
nais e à onguização do movimento dos anos 1990, à experiência de um feminismo
de Estado, nos anos 2000, constatamos que os ganhos feministas para as mulheres
e a democracia brasileira não são desprezíveis. Se utilizarmos como parâmetro de
comparação as conquistas dos direitos sociais e políticos das mulheres nas demo-
cracias dos países centrais, há ainda muito a ser alcançado. Mas, se olharmos esta
História pelo lado do Sul, constataremos que a experiência da ação política feminista
no país não deve ser desperdiçada, e sim utilizada pelas mulheres brasileiras como
ponto de referência primordial para dar continuidade a suas aspirações.

Democracy and feminism in Brazil

ABSTRACT: This text relates to the history of feminism concerning the period
of military dictatorship in Brazil (1964-1985): the so called “years of lead”, the
democratic transition, the return to democracy. It presents the trajectory of the
feminist movement which, during that time, consolidates itself in the organizational,
federal and political context. A movement which, with their own requirements,
played a fundamental role in the process of democratization. It refers to the
exchange of feminist experiences, including those with exiled Brazilians, which
resulted in contacts with other emerging social movements: women from the poor
neighborhoods, black and homosexual female. This orientation of the feminist
movement defined its actions in two major areas, regarding the formulation of social
policies and the expansion of the debate about democratization: reproductive health
and violence against women. This led the movement towards the lower classes,
those deprived of their rights to health programs and their rights to assistance
against the harm caused by violence. This text lists the gains, not negligible, for both
Brazilian women and the Brazilian democracy as the results of the resistance to the
authoritarianism in the years of military dictatorship, of the international dialogues
and dialogues with other social movements as well.

KEYWORDS: Democracy. Feminism. Military Dictatorship. Brazil.

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Democracia e feminismo no Brasil

Democracia y feminismo en Brasil

RESUMEN: Este texto se refiere a la historia del feminismo en relación con los
períodos de la dictadura militar (1964-1985): años de plomo, transición democrá-
tica, retorno a la democracia. Presenta la trayectoria del movimiento feminista,
que en ese momento se consolidó a nivel organizativo, estatal y político y que, con
sus propias reivindicaciones, representó uno de los principales actores del proce-
so de democratización. Se refiere a los intercambios de experiencias feministas,
incluso con mujeres brasileñas en el exilio, que resultaron en contactos con otros
movimientos sociales emergentes: mujeres de la periferia, negras y homosexuales.
Esta dirección del movimiento feminista definió sus acciones en dos grandes áreas,
relacionadas con la formulación de políticas sociales y la expansión del debate
sobre la democratización: la salud reproductiva y la violencia contra la mujer,
que condujo al movimiento hacia las clases populares, privadas de derechos de
salud y de derechos de asistencia contra los daños de la violencia. Menciona con-
quistas relevantes para las mujeres y la democracia brasileña como resultado de
la resistencia al autoritarismo de los años de la dictadura militar, de los diálogos
internacionales y con otros movimientos sociales.

PALABRAS CLAVE: Democracia. Feminismo. Dictadura militar. Brasil.

REFERÊNCIAS

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Recebido em 20/08/2019.
Aprovado em 31/05/2020.

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