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Lucila SCAVONE *
Introdução
*
UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Faculdade de Ciências e Letras,
Campus de Araraquara. Araraquara – SP – Brasil. 14800-901 - [email protected]. https://orcid.org/0000-
0003-4330-018.
1
A Constituição de 1946, em vigor, não vinculava a escolha do presidente a de seu vice. O mandato
presidencial era de cinco anos, não reelegível.
2
Estava claro na Constituição de 1946 que na vacância do cargo da Presidência o vice assumiria.
Entre os radicais encontrava-se Leonel Brizola, então governador do estado do Rio Grande do Sul,
cunhado de Jango e figura de destaque na “luta pela legalidade” (CARVALHO, 2001, p. 143).
3
Na Reforma Eleitoral estava em pauta a proibição do voto aos analfabetos e aos soldados, que
persistia desde a Constituição de 1934. Em 1950, 57% da população era analfabeta (CARVALHO, 2001).
6
O AI-5 cassou os mandatos de 513 senadores, deputados e vereadores. Foram aposentados 3.782
funcionários públicos, dos quais 72 professores universitários e 62 pesquisadores científicos. Os militares
que se opunham ao golpe foram excluídos das fileiras: 1.313 militares de diversas patentes (CARVALHO,
2001).
e a Câmara, as eleições ocorreram em 1966, 1970, 1974, 1978 com os dois partidos
e em 1982 e 1986 já no sistema multipartidário (GASPARI, 2004).
Nesse período, poucas mulheres participavam da vida política institucional
do país. As mulheres obtiveram direito ao voto no Brasil em 1932, após uma longa
luta liderada pela pioneira, a bióloga Bertha Lutz, que criou em 1922 a Federação
Brasileira para o Progresso Feminino. Vargas cedeu às pressões das feministas
pioneiras e incorporou o direito ao voto feminino no Código Eleitoral, por meio do
Decreto 21.076, a 24 de fevereiro de 1932 (SOHIET, 2006). Nesse ano, a médica
Carlota Pereira de Queiroz, eleita a primeira deputada federal e participante da
Assembleia Constituinte de 1934, contribuiu para a inclusão desse direito na nova
Constituição.
No período de 1932-1962 (fora os oito anos da ditadura Vargas), 11 mulheres
se elegeram à Câmara dos Deputados (AVELAR, 2001). Nas eleições de 1965, um
ano após o golpe militar, o número de eleitas aumentou três vezes, passando de
duas deputadas (nove candidatas) das eleições anteriores para seis deputadas (treze
candidatas). As mulheres apresentaram-se aos cargos eletivos para substituírem
“seus parentes (maridos, irmãos, pais) cujos mandatos haviam sido cassados no
Ato Institucional Nº 1” (TABAK; TOSCANO, 1982, p. 25). Essas deputadas eram
na maioria do partido de oposição, MDB, uma só do partido do governo, ARENA.
A participação das mulheres na política institucional no país foi e ainda é
marcada pelas oligarquias familiares, que se perpetuam no poder (AVELAR, 2001;
BLAY, 1981). Algumas mulheres dessas famílias se destacaram nacionalmente:
Ivete Vargas, sobrinha-neta de Getúlio Vargas, elegeu-se deputada federal em
1950/1954/1958 pelo PTB e depois pelo MDB em duas legislaturas durante a
ditadura (1963-1967 e 1967-1971) e teve seu mandato cassado pela ditadura em
1969. Na volta à democracia assumiu a liderança do PTB e se elegeu novamente
deputada na legislatura 1983-1987. Roseana Sarney, filha de José Sarney, é outro
exemplo desse tipo de política: elegeu-se senadora pelo Partido Frente Liberal
(PFL), antigo Partido Democrático Social (PDS), e foi a primeira mulher no país a
se eleger governadora no estado do Maranhão.
Durante os anos de chumbo, na legislatura 1971-1975, há somente uma
deputada no Congresso Federal, da ARENA. Na legislatura seguinte, eleição de
1974, legislatura 1975-1979, o mesmo cenário: uma só deputada, da ARENA. Em
1977, o Congresso Nacional aprovou a Lei do Divórcio no país e não contou com o
apoio desta deputada. Nas eleições de 1978, legislatura 1979-1983, quatro mulheres
foram eleitas, três do MDB e uma da ARENA (SASSE, 2010).
Se não havia uma discriminação aberta contra às mulheres nesse período, o
espaço para elas na política institucional autoritária foi praticamente inexistente.
Além da participação conservadora fugaz que as mulheres das classes dominantes
tiveram na Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), não há nenhuma
mulher que tenha se notabilizado no apoio aos ditadores, a não ser em seus papéis
tradicionais dentro da família.
As ideias do feminismo brasileiro contemporâneo surgiram no fim dos anos de
1960 e começo dos anos de 1970, período dos anos de chumbo. Nesse período, ainda
não é possível falar em um movimento feminista, mas em um novo acontecimento
político, no qual as mulheres começam a participar do movimento estudantil, da
ação partidária ou sindical clandestina e a romper com um dos mais consolidados
mitos da dominação masculina de que política é negócio dos homens. Subjacentes
a esse acontecimento há os ecos da revolução das idéias e comportamentos dos
países do norte que circulavam no meio da vanguarda política e cultural brasileira
e os questionamentos dos tabus tradicionais relacionados à família e à sexualidade,
que aprisionavam as mulheres no espaço doméstico.
Desde o início de 1968, multiplicavam-se as manifestações estudantis nas
capitais do país; os estudantes, organizados, mobilizavam-se em massa contra
a ditadura. A União Nacional dos Estudantes (UNE) congregava opositores
de diferentes tendências de esquerda, dentre eles, homens e mulheres que,
posteriormente, foram ou para luta armada ou para a clandestinidade. As
manifestações de operários, camponeses, políticos, intelectuais, artistas, nas
principais cidades brasileiras e na zona rural, indicavam o clima de resistência geral
ao regime militar.
No fim de 1968, com a decretação do AI-5, o país ingressou em um período
de repressão política, sem precedentes em sua história – a censura atingia os grandes
e pequenos jornais, livros, letras de músicas, espetáculos teatrais, com o exílio,
ou prisão, ou morte de militantes, estudantes, intelectuais, professores, artistas,
trabalhadores do campo ou da cidade, sindicalistas, religiosos progressistas e de
todos os que se manifestassem contra o regime (GASPARI, 2002).
A fase da guerrilha urbana, organizada pelos partidos clandestinos da nova
esquerda, se intensificou com sequestros de embaixadores, assaltos a bancos e
ações públicas e políticas de impacto. Os sequestros eram utilizados para negociar
a liberação e o exílio das centenas de prisioneiros políticos que a ditadura, até então,
encarcerara.
A ação política das mulheres contra a ditadura foi diversificada: na luta
armada; na militância clandestina dos partidos políticos; no apoio aos seus
companheiros, filhos ou amigos. Foram perseguidas, torturadas ou exiladas. Houve
aquelas que se auto exilaram para estudarem nos Estados Unidos, Europa, por
terem sido ameaçadas pelo regime, ou por terem tido pessoas de suas relações que
sofreram com a repressão.
A participação das mulheres nas organizações de esquerda, nesses anos,
foi bem menor do que a dos homens, no entanto ela foi significativa e, de certo
modo, condizente com o lugar que elas começavam a ocupar no espaço público:
8
Em 2006, essa taxa alcança o índice dos países desenvolvidos de 2.0 filhos por mulher.
O arbítrio foi cometido até o fim dos anos de 1970, começo da década de
1980: prisões políticas seguidas de tortura e assassinatos; repressão aos estudantes,
que voltavam às ruas clamando por liberdades democráticas; práticas de terrorismo
da direita com o intuito de desestabilizar o processo de redemocratização do
país. Cenário que evidenciava as forças políticas conflitantes que se digladiavam
nos bastidores do processo em curso. No fim da década de 1970 a tensão entre a
sociedade civil e os militares aumenta: três grandes greves operárias paralisam o
país: 1978, 1979 e 1980.
9
Filha do historiador marxista Caio Prado Júnior, condenado pela ditadura em 1970.
10
Trechos da carta enviada aos jornais em 17 de dezembro de 1976.
bandeira nacional, por ter tido sede em vários estados e uma ampla participação de
mulheres. Muitas militantes do MFA eram feministas, ou aderiram ao feminismo
após a militância pela Anistia (MORAES, 1990). Entretanto, o MFA rompeu com
a Frente Unitária das Mulheres por sua líder não concordar com a discussão sobre
aborto ali levantada (BARSTED, 1992).
Logo após o Seminário do Rio, em 1975-1976, destaca-se a criação do Centro
de Desenvolvimento da Mulher Brasileira (CDMB) em São Paulo e do Centro da
Mulher Brasileira (CMB) no Rio. A atuação em partidos políticos de esquerda das
principais integrantes do CDMB fez com que não fizessem referência à palavra
“feminismo” em seu estatuto (BARSTED, 1992). Estes Centros lutavam pela volta
à Democracia no país, e as reivindicações de cunho específico eram relacionadas,
sobretudo, à situação das mulheres trabalhadoras, como criação de creches e escolas.
Em 1975, foi organizada uma mesa-redonda sobre a questão da mulher na
Reunião Anual da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), órgão
tradicionalmente progressista que apoiava a luta contra a ditadura. Esta foi uma
das primeiras ocasiões em que a questão da mulher foi discutida na academia
(SCHUMAHER; BRAZIL, 2000), embora em 1967, a socióloga feminista Heleieth
Saffiotti tenha defendido uma tese sobre o assunto – na qual articulava a questão da
mulher com as classes sociais – que se tornou, posteriormente, referência nacional
para os estudos de gênero no país (SAFFIOTI, 1969).
Ainda em 1975 foi criado o jornal Brasil Mulher que era impresso na cidade
de Londrina-PR, primeiro jornal feminista contemporâneo produzido no país,
que traz a “gênese do debate entre mulheres feministas e mulheres militantes de
esquerda” (CARDOSO, 2004, p. 43). Esse jornal chegou a ter uma tiragem de 10
mil exemplares e foi publicado até 1980, com uma predominância de temas políticos
mais gerais na maioria das suas edições.
Em 1976 foi criado o jornal Nós Mulheres, em São Paulo, “primeira
publicação do feminismo brasileiro contemporâneo a declarar-se feminista”
(MORAES, 1990, p. 20)12. Esse jornal tinha uma organização interna flexível e não
partidária, funcionava como um coletivo e defendia a autonomia do movimento;
contava com mulheres que já haviam passado pelo exílio ou pelo exterior (LEITE,
2003). Levantava bandeiras feministas, denunciando a dupla moral e a repressão
sexual, como a opressão da mulher em todas as classes. A questão do racismo já fazia
parte das preocupações das feministas brasileiras dos anos 70, no primeiro número
desse jornal foi publicado o depoimento de uma mulher negra que denunciava o
racismo no país (CORRÊA, 2001). Apesar da postura assumidamente feminista
desse jornal, havia uma demanda e uma crítica da ausência de questões candentes
Na obra A mulher no Brasil, a autora June E. Hahner (1978) indica que o Brasil foi o único país da
12
América Latina que teve uma imprensa feita por mulheres entre 1974-1980.
13
O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) foi criado em março de 1966 como uma forma de oposição
à ditadura, composto por uma frente ampla de centro a esquerda moderada. Em 1979 recebeu a
denominação de partido, passando a ser PMDB, e em 2017 volta à sua sigla original MDB.
pode ser compreendida por fatores conjunturais. Internamente, a vitória nas eleições
estaduais do amplo partido da oposição (PMDB) para o governo de São Paulo, em
1982, favoreceu a intervenção política institucional do movimento feminista em
nível estadual e nacional15.
Internacionalmente, a Conferência da Organização das Nações Unidas para
a Década da Mulher em Nairóbi, em 1985, recomendou aos países-membros o
desenvolvimento de políticas públicas de promoção dos direitos das mulheres. A
proposta da criação do CNDM provocou um processo de intensa discussão política
no movimento feminista. De um lado, estavam as feministas que prezavam a
autonomia; de outro, aquelas que consideravam ser importante a interlocução com
o Estado, para implementar políticas destinadas às mulheres. Apesar de esta divisão
ter sido central no VII Encontro Nacional Feminista de 1985, em Belo Horizonte-
MG, a criação do CNDM foi efetivada.
A análise da Carta de Belo Horizonte mostra as tensões internas perante a
criação do CNDM, entre outras, o receio do movimento de ter seu discurso cooptado
e neutralizado pelo Estado e de perder sua autonomia. Por fim, o CNDM foi
aprovado sob determinadas exigências: que fosse administrado por feministas; que
tivesse dotação orçamentária própria; que o movimento participasse da elaboração,
execução e acompanhamento das políticas oficiais, entre outras. Era uma série de
reivindicações que supunham garantir a continuidade da luta feminista em nível
institucional, sem perda total da autonomia (SHUMAER; VARGAS, 1993).
Em sua primeira gestão (1985-1989), o CNDM estava ligado ao Ministério
da Justiça e tinha uma estrutura deliberativa e executiva, semelhante a uma
Secretaria de Estado, que lhe possibilitou ações mais efetivas nos campos da saúde,
trabalho, legislação específica, violência e combate ao racismo. Esta gestão teve
duas presidentes feministas, Ruth Escobar (1985-1986) e Jacqueline Pitanguy
(1986-1989).
A conjunção da ação do CNDM, da ampla mobilização do movimento
feminista com as associações de mulheres, em todo o país, e da bancada feminina
suprapartidária, criada pelas 26 deputadas do Congresso Constituinte de 1988 foi
denominada de “lobby do batom”, uma denominação dada inicialmente de forma
pejorativa pelos constituintes de direita e que as feministas em resposta passaram a
utilizar de forma positiva como elemento de mobilização, desarmando o machismo
de seus agressores (SCHUMAER, 2007; COSTA, 2005). Com o slogan “Constituinte
pra valer tem que ter palavra de mulher” e o uso da tática feminista “de ação direta
de convencimento dos parlamentares”, o “movimento feminista conseguiu aprovar
15
As eleições para governadores em 1982 se realizaram pelo sufrágio universal. No estado de São
Paulo foi eleito André Franco Montoro (PMDB, 1983-1987) e no de Minas Gerais, Tancredo Neves
(PMDB, 1983-1984), dois líderes da abertura democrática, sendo Montoro de uma tendência mais
progressista do partido.
em torno de 80% de suas demandas, foi o setor organizado da sociedade civil que
mais vitórias conquistou” (PINTO, 2001, p. 72).
Na Carta das Mulheres entregue pelo CNDM ao presidente da Assembleia
Constituinte, Ulysses Guimarães16 (PMDB), havia demandas gerais de aprofun-
damento da democracia e de justiça social e, sobretudo, dos direitos das mulheres
(CONSTITUINTE, 1987). O documento tratava da questão da violência contra as
mulheres, redefinia o conceito de estupro e clamava pela ampliação das delegacias
policiais de atendimento às mulheres no país. As questões do controle da natalidade
e do aborto foram habilmente contornadas por uma demanda mais ampla: garantia
das mulheres ao direito de conhecer e decidir sobre o próprio corpo. A carta foi apro-
vada em uma grande reunião em Brasília por mais de 3 mil mulheres (PITANGUY,
2005).
Por ser um tema polêmico no processo constituinte, o movimento entrou
em acordo com os parlamentares progressistas de que o aborto poderia ser
regulamentado pela legislação ordinária e não precisaria ser matéria constitucional
(ROCHA; NETO, 2003).
A Constituição de 1988 assegurou os direitos de igualdade de homens e
mulheres perante a lei. Foi garantida igualdade no trabalho e na sociedade conjugal.
Ficaram caucionadas: licença-gestante de cento e vinte dias e licença-paternidade de
cinco dias; mecanismos para coibir a violência doméstica e propiciar o planejamento
familiar, como decisão livre do casal, entre outras17. A ampla mobilização dos grupos
feministas, das associações de mulheres da sociedade civil, com o apoio do CNDM,
explica tal resultado e evidencia o poder da intervenção feminista nesse importante
momento de redemocratização do país.
Após a participação do movimento feminista na Constituinte, o CNDM
intensificou seu trabalho, dando prioridade às temáticas consideradas ameaçadoras a
uma estrutura estatal que mantinha resquícios de autoritarismo. Entre essas temáticas
estavam as questões dos direitos das trabalhadoras rurais, dos direitos reprodutivos,
especialmente o aborto, como também a campanha nacional relacionada às mulheres
negras (SCAVONE, 2012). Na ocasião do Centenário da Abolição da Escravatura
no país, em 198818, a Comissão da Mulher Negra do CNDM organizou a campanha
Mulher negra, 100 anos de discriminação, 100 anos de afirmação, que não foi bem
16
O deputado Ulysses Guimarães foi um ícone da campanha Direta Já.
17
Cap. I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, Art. 5º; Cap. II – Dos Direitos Sociais, Art. 6º
e Art. 7º, inciso XVIII; Cap. VII – Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso, Art. 226,
parágrafos 7 e 8 da Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988).
18
A escravidão no Brasil durou mais de três séculos. Sua abolição foi decretada em 1888, sem dar
nenhuma proteção social e econômica aos escravos, o que dificultou a integração dos negros libertos
na sociedade brasileira. Por não possuírem qualificação, os negros ficaram à margem do mercado de
trabalho e, mesmo como assalariados, não podiam concorrer na mesma base de igualdade com os
brancos. Há um modelo de valorização dos brancos e o preconceito racial no país é disfarçado, marcado
pela discriminação dos negros (FERNANDES, 1965; HASENBALG, 2005).
para que o Programa tivesse um caráter inédito e progressista diante das políticas
de saúde anteriores. O PAISM propunha um atendimento à saúde das mulheres em
todas as fases da vida, não as limitando à fase reprodutiva, e respeitava a liberdade
dos casais no planejamento familiar.
As médicas feministas que trabalhavam no Ministério da Saúde propuseram a
criação da Comissão de Estudos dos Direitos da Reprodução Humana (1985-1988),
instituída com a finalidade de trazer as vozes da sociedade civil para assessorar o
PAISM. A Comissão, composta por feministas, profissionais de saúde, cientistas e
parlamentares, fez um levantamento das atividades das organizações que atuavam
com financiamento externo, sem restrições normativas, na área da reprodução
humana: distribuição indiscriminada de anticonceptivos, pesquisas de novos
contraceptivos, reprodução assistida, esterilização feminina (OLIVEIRA, 2005;
REIS, 2005). O PAISM teve inúmeras dificuldades de êxito em sua implantação nas
décadas seguintes, não só pela falta de infraestrutura na saúde pública para aplicá-
lo, como também pela falta de interesse político em continuá-lo (RIBEIRO, 1993).
Em 1986, 26,9% das mulheres em idade reprodutiva em união haviam se
esterilizado, em 1996 este índice atinge, 40.1% (BRASIL, 1997). Inicialmente o
feminismo denunciou o crescimento inexorável do fenômeno, sua associação com
partos por cesariana, política de controle de populações mais pobres e/ou da raça
negra, seu caráter definitivo. Constatava-se, entretanto, que as mulheres brasileiras de
todas as classes buscavam a esterilização por ser um recurso seguro e, seguidamente,
pagavam para realizá-la. No fim dos anos 1990, houve uma mudança no teor do
debate, e alguns grupos feministas passaram a apoiar a sua regulamentação para
evitar abusos.
Em 1997, governo FHC promulgou uma lei federal de planejamento familiar
que estabeleceu critérios para o acesso à esterilização voluntária masculina e
feminina, nos serviços públicos de saúde: idade acima de 25 anos, ter pelo menos dois
filhos/as, ser informado de seus riscos e benefícios, ser realizada independentemente
do parto. O regulamento proporcionou um aumento da esterilização masculina e uma
diminuição da esterilização em mulheres muito jovens e sem filhos.
O aborto sempre foi um sério problema político para o feminismo brasileiro.
Ele é proibido no país, com base no Código Penal de 1940, pelo qual é considerado
crime, salvo por dois permissivos legais: risco de vida da mulher e gravidez
decorrente do estupro. É um crime raramente punido, tanto para as mulheres que o
realizam, como para as parteiras, ou para os médicos que o executam, mesmo com
ocorrência de morte da gestante (ARDAILLON, 1997).
A trajetória do debate e das ações políticas feministas em prol da liberalização
do aborto no país foi marcada por avanços, recuos e, sobretudo, por inúmeras
negociações políticas. Da omissão da palavra aborto, nos meados dos anos de 1970 –
para assegurar as alianças políticas com os setores da esquerda e da Igreja católica
19
Pesquisa de SAFFIOTI (2004) indica a falta de treinamento das equipes como possível ponto fraco
das DDMs no Brasil.
igualitária. Força que teve suas origens no século XIX, quando uma precursora como
Nísia Floresta se indignou com a discriminação social e política das brasileiras, ou,
então, quando Bertha Lutz, no começo do século XX, iniciou a luta pelos direitos
civis, que culminou com a conquista do voto para as brasileiras em 1932.
Da resistência ao autoritarismo dos anos 1970-1980, aos diálogos internacio-
nais e à onguização do movimento dos anos 1990, à experiência de um feminismo
de Estado, nos anos 2000, constatamos que os ganhos feministas para as mulheres
e a democracia brasileira não são desprezíveis. Se utilizarmos como parâmetro de
comparação as conquistas dos direitos sociais e políticos das mulheres nas demo-
cracias dos países centrais, há ainda muito a ser alcançado. Mas, se olharmos esta
História pelo lado do Sul, constataremos que a experiência da ação política feminista
no país não deve ser desperdiçada, e sim utilizada pelas mulheres brasileiras como
ponto de referência primordial para dar continuidade a suas aspirações.
ABSTRACT: This text relates to the history of feminism concerning the period
of military dictatorship in Brazil (1964-1985): the so called “years of lead”, the
democratic transition, the return to democracy. It presents the trajectory of the
feminist movement which, during that time, consolidates itself in the organizational,
federal and political context. A movement which, with their own requirements,
played a fundamental role in the process of democratization. It refers to the
exchange of feminist experiences, including those with exiled Brazilians, which
resulted in contacts with other emerging social movements: women from the poor
neighborhoods, black and homosexual female. This orientation of the feminist
movement defined its actions in two major areas, regarding the formulation of social
policies and the expansion of the debate about democratization: reproductive health
and violence against women. This led the movement towards the lower classes,
those deprived of their rights to health programs and their rights to assistance
against the harm caused by violence. This text lists the gains, not negligible, for both
Brazilian women and the Brazilian democracy as the results of the resistance to the
authoritarianism in the years of military dictatorship, of the international dialogues
and dialogues with other social movements as well.
RESUMEN: Este texto se refiere a la historia del feminismo en relación con los
períodos de la dictadura militar (1964-1985): años de plomo, transición democrá-
tica, retorno a la democracia. Presenta la trayectoria del movimiento feminista,
que en ese momento se consolidó a nivel organizativo, estatal y político y que, con
sus propias reivindicaciones, representó uno de los principales actores del proce-
so de democratización. Se refiere a los intercambios de experiencias feministas,
incluso con mujeres brasileñas en el exilio, que resultaron en contactos con otros
movimientos sociales emergentes: mujeres de la periferia, negras y homosexuales.
Esta dirección del movimiento feminista definió sus acciones en dos grandes áreas,
relacionadas con la formulación de políticas sociales y la expansión del debate
sobre la democratización: la salud reproductiva y la violencia contra la mujer,
que condujo al movimiento hacia las clases populares, privadas de derechos de
salud y de derechos de asistencia contra los daños de la violencia. Menciona con-
quistas relevantes para las mujeres y la democracia brasileña como resultado de
la resistencia al autoritarismo de los años de la dictadura militar, de los diálogos
internacionales y con otros movimientos sociales.
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Recebido em 20/08/2019.
Aprovado em 31/05/2020.