Petição de Impeachment Popular de Bolsonaro
Petição de Impeachment Popular de Bolsonaro
Petição de Impeachment Popular de Bolsonaro
vêm, respeitosamente, perante a Câmara dos Deputados, invocando o disposto no art. 14 da Lei nº
1.079, de 10 de abril de 1950 e conforme estipulado no art. 218, caput, do Regimento Interno da
Casa (RICD), apresentar DENÚNCIA contra o Presidente da República Jair Messias Bolsonaro
pela prática de crimes de responsabilidade, com fundamento no art. 85, caput e incisos III, IV e V
da Constituição da República e nos termos das tipificações previstas no art. 5º, incisos 1, 2, 3, 7 e
11; art. 7º, incisos 5, 6 e 9; no art. 8º, incisos 7 e 8; e no art. 9º, incisos 3, 4 e 7, da Lei nº 1.079, de
10 de abril de 1950, aptos a amparar o seu respectivo recebimento, na forma estatuída pelo art.
218, § 2º, do RICD, seguida da autorização pela Câmara dos Deputados para a instauração do
processo e subsequente remessa ao Senado Federal, para processar e julgar o Presidente da
República, nos termos dos art. 51, inciso I; art. 52, inciso I e art. 86, caput da Constituição da
República, visando à suspensão das funções presidenciais e ao julgamento definitivo do
impeachment, com a prolação de decisão condenatória e consequentes destituição do acusado do
cargo de Presidente da República e inabilitação para a função pública, conforme os arts. 52,
parágrafo único, e 86 da Constituição da República e os artigos 15 a 38 da Lei nº 1.079, de 10 de
abril de 1950 e de acordo com o objeto adiante delimitado em tópico introdutório específico.
2. Não comporta dúvida, portanto, que atos do Presidente da República que atentem contra a
Constituição são, por assim dizer, a pedra de toque da configuração jurídica dos crimes de
responsabilidade e, via de consequência, da deflagração objetiva do processo de impeachment
presidencial em nosso país. Com efeito, no âmbito de nosso Estado de Direito, o texto
constitucional subordina e condiciona os limites da atuação de todas as autoridades públicas, a
começar pela mais proeminente no seio do Poder Executivo, que é o Presidente da República.
4. Fixadas tais sólidas premissas jurídicas, cumpre constatar que o atual Presidente da
República, desde o início do seu mandato, vem incidindo, de maneira grave, reiterada e sistemática
em ofensas à Constituição da República. Ao adotar esse padrão de desrespeito à supremacia
incontrastável do texto constitucional, o mandatário parece apostar na tolerância e naturalização
de tais violações, como forma de solapar o caráter cogente da normatividade que o deveria
restringir ao império das regras do direito.
1
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição
Federal e, especialmente, contra: I - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder
Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III - o exercício dos
direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a
lei orçamentária; VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Parágrafo único. Esses crimes serão definidos
em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.
2
“Visando a tornar efetiva a responsabilidade do Poder Executivo, a Constituição adotou um processo parlamentar,
fiel ao princípio de que toda autoridade deve ser responsável e responsabilizável” (BROSSARD, Paulo. O
impeachment. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 4).
5. A presente denúncia, cujos titulares representam movimentos populares e representativos
da sociedade civil organizada, trará essencialmente um conjunto de transgressões praticadas pelo
Presidente da República em diversas áreas de ação governamental, decisivas na perpetração de um
pernicioso processo de esvaziamento de políticas públicas de inspiração constitucional, assim
como de subversão de diretrizes constitucionais relacionadas com direitos individuais e coletivo,
de natureza econômica, social, cultural e ambiental.
7. Nos capítulos seguintes, que traduzirão com copiosa narrativa fática e preciso
enquadramento jurídico decisões e atitudes do Presidente da República, será oferecida uma
minuciosa descrição temática das sérias infrações cometidas, cuja caracterização plena não pode
disfarçar o rompimento dos elevados compromissos inerentes ao cargo.
3
Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: (...) 5-
servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades
o pratiquem sem repressão sua; 6- subverter ou tentar subverter por meios violentos a ordem política e social; (...) 9-
violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais
assegurados no artigo 157 da Constituição;
inexorável comprovação da prática de abusos de poder pelo próprio Presidente da República e por
seus Ministros de Estado, além de diversos outros subordinados seus, estes agindo sob
determinações da autoridade máxima ou fomentados por seus eloquentes e irresponsáveis gestos,
desacertadas convocações e infames orientações. Tais reiteradas configurações delituosas, no que
se refere às referidas autoridades subordinadas ao chefe de Estado e de Governo,
comprovadamente careceram da devida desautorização, sendo, ao reverso, toleradas e até mesmo
estimuladas pelo Presidente da República, a demonstrar cabalmente a infringência do inciso 5 do
art. 7º, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Por outro lado, ressairá a observação de uma
temerária concretização, por parte do Chefe de Governo, do intento criminoso de degradar a ordem
social, desarticulando instituições e estruturas estatais voltadas à sua promoção de acordo com os
rumos traçados pelo texto constitucional, o que permite a realização do suposto legal de quebra da
responsabilidade segundo o inciso 6 do já citado art. 7º, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.
Haverá, ainda, de modo compreensivo e totalizante da verificação objetiva da ocorrência de crimes
de responsabilidade, a exibição de fatos que evidenciarão a patente violação de direitos e garantias
individuais e sociais assegurados na Constituição da República, notadamente nas searas
econômica, social, cultural e ambiental, a representar substrato para a aplicação do art. 7º, inciso
9, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.
9. Outro relevante aspecto a ser desenvolvido nos tópicos subsequentes diz respeito aos
crimes contra a segurança interna cometidos pelo Presidente da República, ao fazer periclitar,
irresponsavelmente, políticas públicas cruciais à defesa da vida e da incolumidade física dos seus
concidadãos, ofendendo predicados mínimos da prudência governamental, a ponto de incidir nas
previsões arroladas no art. 8º, incisos 7 e 8 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.4 Os elementos
a seguir carreados ao exame seguramente projetarão a imagem nítida do mais vil menosprezo do
Presidente da República, por meios tácitos ou expressos, a diversas disposições de leis federais de
ordem pública, sempre em prejuízo ao interesse geral e ao bem comum, o que configura o
suprimento da premissa legal existente no art. 8º, inciso 7 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.
Em semelhante e lastimável comportamento, ficará exposta com clareza a omissão negligente e
leviana do chefe de Estado, ao descumprir sua obrigação legal de tomar providências determinadas
por leis federais, no condizente à sua inexecução e descumprimento, nisso mobilizando a
invocação contra si do art. 8º, inciso 8 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.
4
Art. 8º São crimes contra a segurança interna do país: (...) 7- permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei
federal de ordem pública; 8- deixar de tomar, nos prazos fixados, as providências determinadas por lei ou tratado
federal e necessário a sua execução e cumprimento.
10. Incorreu, ademais, o Presidente da República, em figurinos legais que o implicam
dramaticamente na prática de crimes de responsabilidade contra a probidade da administração,
conforme o art. 9º, incisos 3, 4 e 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.5 Sua postura em relação
aos atos insensatos e desatinados levados a efeito por inúmeros subordinados jamais esteve à altura
da responsabilidade do cargo que ocupa. A repetida e progressiva escalada de descuidos e atos
contraproducentes dessas autoridades, em desalinho com a Constituição e com a regularidade
funcional de seus postos contou não apenas com o beneplácito presidencial, senão também com
seu incentivo, o que perfaz com absoluta suficiência o tipo criminal estampado no texto do art. 9º,
incisos 3, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Não obstante, e à guisa de agravamento dessa
conduta deletéria, o Presidente da República ignora explicitamente disposições expressa da
Constituição da República, ao expedir ordens e fazer requisições em contrariedade aos termos
normativos da Lei Maior, em nociva concretização do inciso 4, do art. 9º da Lei nº 1.079, de 10 de
abril de 1950. E não bastassem essas demonstrações inequívocas de afastamento da probidade em
seu procedimento como autoridade máxima do Poder Executivo Federal, o mandatário abusa de
posturas completamente incompatíveis com a dignidade, a honra e o decoro do cargo presidencial,
agindo em descompasso ante a previsão do art. 9º, inciso 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.
11. Restará, ainda, comprovado por meio das circunstâncias extraídas desta petição e da
instrução do processo que o atual Presidente da República atuou em oposição a obrigações
relacionadas à integridade da União, especialmente em decorrência da alteração radical da política
externa, comprometendo seriamente a soberania nacional e consumando crimes tipificados no art.
5º, incisos 1, 2, 3, 7 e 11, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.6
5
Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: (...) 3- não tornar efetiva a
responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à
Constituição; 4- expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição; (...)
7- proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.
6
Art. 5º São crimes de responsabilidade contra a existência política da União: 1 - entreter, direta ou indiretamente,
inteligência com governo estrangeiro, provocando-o a fazer guerra ou cometer hostilidade contra a República,
prometer-lhe assistência ou favor, ou dar-lhe qualquer auxílio nos preparativos ou planos de guerra contra a República;
2 - tentar, diretamente e por fatos, submeter a União ou algum dos Estados ou Territórios a domínio estrangeiro, ou
dela separar qualquer Estado ou porção do território nacional; 3 - cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira,
expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade; (...) 7 - violar a imunidade dos
embaixadores ou ministros estrangeiros acreditados no país; (...) 11 - violar tratados legitimamente feitos com nações
estrangeiras.
12. Em resumo, o Presidente da República deverá sofrer processo de impeachment e ser
condenado, como resultado da apuração dos seguintes crimes de responsabilidade: a) crimes de
responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais previstos
no art. 7º, incisos 5, 6, e 9 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950; b) crimes contra a segurança
interna do país previstos no art. 8º, incisos 7 e 8; c) crimes de responsabilidade contra a
probidade na administração previstos no art. 9º, incisos 3, 4 e 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril
de 1950; d) crimes contra a existência da União previstos no art. 5º, incisos 1, 2, 3, 7 e 11.
17. No campo social, foi profundamente operada pelo Presidente da República e pelo
seu governo a deterioração das relações trabalhistas, em desacordo flagrante com princípios e
normas constitucionais de índole material ou institucional, mediante a adoção de medidas que
favorecem demasiadamente empresas e conglomerados empresariais engajados politicamente na
eleição e no suporte ao governo, em detrimento das condições de vida dos trabalhadores. Entre
essas medidas, destacaram-se a extinção do Ministério do Trabalho, com o consequente
enfraquecimento do sistema de fiscalização das condições de trabalho no Brasil; a obstaculização
sistemática da eficácia das atividades de controle, fiscalização e autuação de auditores trabalhistas,
com reflexos crescentes nos índices de sonegação de direitos dos trabalhadores e de incidência de
trabalho em condições degradantes, forçadas ou análogas à escravidão, além da ocorrência de
trabalho infantil.
18. Nessa mesma área, foi encerrada a política de valorização do salário mínimo (que
permitia reajustes superiores à inflação para aqueles trabalhadores com menor remuneração), que
vigorava há cerca de quinze anos. Registre-se, ainda, a tentativa despudorada de asfixia financeira
dos sindicatos representativos de trabalhadores, por meio da burocratização excessiva e
insuperável do pagamento das mensalidades sindicais. Merece crítica, ademais, o embaraço à ao
funcionamento das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes de Trabalho nas Empresas. Não
se deve desprezar a vigorosa debilitação de diversos direitos trabalhistas no contexto da pandemia
da Sars-Cov-2 (COVID-19), com a permissão para jornadas de trabalho extenuantes, redução de
salários e suspensão de contratos, deixando trabalhadores desamparados durante período crítico
da crise de saúde pública no país. As medidas implantadas pelo governo federal no mundo do
trabalho terminam por ocasionar severos prejuízos aos trabalhadores, parte mais fraca da relação
de emprego, e ainda ameaçam gravemente direitos sociais consagrados pela Constituição de 1988.
19. Quanto à temática ambiental, diversas condutas do Presidente e seu governo têm
gerado severos riscos ao país. Além de priorizar interesses particulares de grandes violadores de
normas ambientais, tem-se promovido verdadeiro assédio institucional aos servidores
responsáveis pela fiscalização do cumprimento de normas protetivas do meio ambiente. A
liberação de agrotóxicos avançou em ritmo inédito e o país notabilizou-se pelo desmatamento e
pelos incêndios em áreas de preservação, em níveis nunca registrados. Como resultado dessa
política, o Brasil tem perdido o financiamento externo de ações de proteção ambiental (tal como
ocorrido com o fim do custeio do Fundo Amazônia pela Alemanha e pela Noruega) e investimentos
externos em segmentos econômicos diversos, diante das preocupações com a condução do setor.
20. Em meio à pandemia da COVID-19, por outro lado, veio a público a intenção do
governo de fazer “passar a boiada” em matéria de flexibilização das normas ambientais, em prol
de empreendimento destruidores da natureza e de recursos naturais, ou seja, valer-se da distração
da opinião pública com a emergência de saúde, conforme enunciado pelo próprio Ministro do Meio
Ambiente em reunião ministerial ocorrida no dia 22 de abril de 2020, nas presença complacente
do Presidente da República.
21. As políticas de saúde também foram severamente afetadas pela atuação criminosa
de Jair Bolsonaro. Além da desarticulação do Sistema Único de Saúde (SUS), que já vinha sendo
posta em prática no primeiro ano de gestão, a pandemia da COVID-19 escancarou o desprezo do
atual governo pela proteção à saúde da população.
25. Por outro lado, o governo federal também interrompeu o programa de compra
antecipada de alimentos (PAA), que, além de favorecer os trabalhadores do campo, produtores da
maior parte dos alimentos que chegam às mesas dos brasileiros, permitia o acesso à comida
saudável por parte significativa da população mais pobre. Cessaram, ainda, os programas que
dizem respeito à capacitação profissional, assistência técnica e fomento dos agricultores familiares
e assentados da reforma agrária, construção de cisternas no semiárido e aquisição de máquinas
agrícolas por trabalhadores rurais. Os esforços dedicados à agroecologia e à redução do uso de
agrotóxicos foram interrompidos e a violência no campo ganhou novos incentivos, por meio da
liberação de armas de qualquer calibre em toda a extensão de fazendas.
29. Impossível não referir, ainda, às políticas abertamente racistas incentivadas pelo
discurso e pela prática institucional do atual presidente. O discurso oficial, permeado de
declarações com viés discriminatório, tem acarretado um incremento do discurso do ódio no
Brasil, o que se afere pela quantidade de novos grupos fascistas e neonazistas disseminados desde
que Bolsonaro chegou ao poder.
32. A postura do governo brasileiro também tem acarretado sentidos prejuízos à política
exterior e às relações internacionais do país. Além de abdicar da soberania nacional em nome de
interesses, em especial, do governo estadunidense, Jair Bolsonaro vem sendo considerado uma
ameaça global por diversas lideranças responsáveis de países que alimentam paradigmas de
convivência civilizada. O presidente não apenas atua com agressividade e descaso contra atores,
países, líderes e povos, como também descredibiliza instituições internacionais, tal como ocorrido
com a Organização Mundial da Saúde (OMS) durante a pandemia da COVID-19. Em
consequência, o Brasil vem enfrentando entraves na consecução de acordos bilaterais e
multilaterais, além de sofrer com a suspensão de compras de produtos nacionais por outros países.
33. Não bastasse isso, também têm se tornado comuns os posicionamentos que
contrariam o mandamento constitucional de cooperação para a paz entre as nações, como ocorrido
no caso das ameaças públicas de conflitos com países soberanos (tal qual ocorrido com a
Venezuela) e do desrespeito à autodeterminação dos povos (como no dramático caso da Palestina).
Através do voto, você não vai mudar nada neste país. Nada, absolutamente
nada! Você só vai mudar, infelizmente, quando um dia nós partirmos para
uma guerra civil aqui dentro. E fazendo o trabalho que o regime militar não
fez, matando uns 30 mil, começando com o FHC. Não deixar ir para fora,
não! Matando! Se vai [sic] morrer alguns inocentes, tudo bem, em tudo
quanto é guerra morre inocente7.
7
Entrevista à TV Bandeirantes. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=qIDyw9QKIvw> (a partir de
31:00)
8
https://noticias.uol.com.br/politica/2009/05/28/ult5773u1291.jhtm
9
https://www.terra.com.br/noticias/mito-ou-fato/verificamos-bolsonaro-elogiou-cavalaria-dos-eua-por-dizimar-
indios,a0253be3477f453811b0c5e0f06c2ebd23ha8paf.html
mereceriam ser estupradas por serem feias10; o desabafo de que preferiria ver seu filho morto do
que saber que ele era homossexual11; o gracejo nojento que se valeu ao dizer que quilombolas
pesavam como arroba e não serviriam sequer para procriação12; a alegação de que o dotador
chileno Augusto Pinochet “fez o que devia ser feito”13; e que Carlos Alberto Brilhante Ustra, o
mais célebre e doentio torturador da ditadura militar brasileira, seria um herói a ser
homenageado14.
44. Jair Bolsonaro, desse modo, apresentou-se no processo eleitoral como um outsider
– a despeito de ser parlamentar por mais de 20 anos – movido pela indignação com o sofrimento
do povo e a com a traição que a elite política lhe teria infligido. Toda a sua campanha eleitoral
desenvolveu-se quase que exclusivamente em redes sociais, potencializada por seguidores
agressivos, desconfiados, paranoicos, que se viam como “cidadãos de bem” convocados pelo líder
para enfrentar todas as mazelas da esquerda, especialmente as do tipo “ideologia de gênero” e
10
<http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/06/bolsonaro-vira-reu-por-falar-que-maria-do-rosario-nao-merece-ser-
estuprada.html>
11
<https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-prefiro-filho-morto-em-acidente-a-um-
homossexual,cf89cc00a90ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>
12
<https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/bolsonaro-quilombola-nao-serve-nem-para-procriar/>
13
CARVALHO, Bruno. “Não foi você: uma interpretação do bolsonarismo”. Piauí, julho de 2018.
14
<http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/11/bolsonaro-diz-no-conselho-de-etica-que-coronel-ustra-e-heroi-
brasileiro.html>
“ditadura gay”15. Somadas ao discurso do ódio, vieram as chamadas “fake news”16, mentiras e
distorções da realidade que assumiam ares de verdade, entre outros aspectos, por dois fenômenos:
as “bolhas” virtuais que expandem os grupos de “cidadãos de bem” e a ausência de acesso, pela
população de baixa renda, à internet, impossibilitando a consulta sobre a veracidade do que era
dito no ambiente do Whatsapp, aplicativo de uso gratuito.
45. Ao tomar posse na Presidência da República e iniciar o seu governo, Jair Bolsonaro
encarregou-se de frustrar as apostas de que conteria daí em diante os seus excessos ante as
responsabilidades do cargo. Já em 26 de março de 2019, o porta-voz da Presidência da República
informava que Bolsonaro determinara ao Ministério da Defesa que fizesse as comemorações
devidas com relação ao golpe militar de 31 de março de 1964, incluindo uma ordem do dia,
patrocinada pelo Ministério da Defesa. Convém recordar que a Comissão Nacional da Verdade fez
constar de sua Recomendação nº 4 a proibição da realização de eventos oficiais em comemoração
ao golpe militar de 1964, em virtude de investigações realizadas terem comprovado que o regime
autoritário que se seguiu foi responsável pela ocorrência de graves violações de direitos humanos,
perpetradas de forma sistemática e em função de decisões que envolveram a cúpula dos sucessivos
governos do período. Também àquela altura, as condenações do Brasil pela Corte Interamericana
de Direitos Humanos, nos casos “Gomes Lund e outros” e “Vladimir Herzog”, reconheceram que
o período que se seguiu a 1964 no país foi marcado politicamente por mortes, desaparecimentos
forçados, detenções arbitrárias e torturas.
46. Em 29/7/2019, declarou que “um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é
que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele”. E completou: “Ele não vai querer
ouvir a verdade. Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar a essas
conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e
15
Nas palavras da socióloga Angela Alonso, “[a] comunidade moral bolsonarista se estrutura na crença compartilhada
em códigos binários, que divide o mundo em bem e mal, sagrado e profano, gente de família e indecentes, cidadãos
de bem e bandidos, ético e corruptos, nacionalistas e globalistas. Essas clivagens simbólicas simplificam a realidade,
reduzindo sua complexidade a estereótipos administráveis, e ativam sentimentos coletivos de alta voltagem – o afeto
o medo, o ódio. Seu manejo reforça o senso de pertencimento a uma comunidade de semelhantes e estigmatiza os
diferentes”. (ALONSO, Angela. “A comunidade moral bolsonarista”. In: ABRANCHES, Sérgio et al. Democracia
em risco?: 22 ensaios sobre o Brasil hoje, São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 52).
16
Um dos exemplos mais famosos foi aquele que atribui ao PT a elaboração e distribuição de material de doutrinação
homossexual de crianças (o chamado kit gay): https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2018/10/16/e-fake-que-
haddad-criou-kit-gay-para-criancas-de-seis-anos.ghtml
violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro” 17. Além da
perversidade em si da fala, que tripudia sobre a dor de alguém que não pode fazer o luto do próprio
pai, ela é mentirosa. O desaparecimento forçado de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi
investigado pela Comissão Nacional da Verdade e, anteriormente, pela Comissão Especial de
Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão de Anistia. Fernando Santa Cruz era funcionário
público, com emprego fixo e integrava a Ação Popular (AP). Ao contrário de outros militantes da
época, não estava na clandestinidade. Não consta registro nessas comissões de que tivesse tido
participação em algum ato da luta armada. Ele foi visto pela última vez quando deixou a casa de
seu irmão, no Rio de Janeiro, em 23 de fevereiro de 1974. Provavelmente, foi preso junto com
Eduardo Collier Filho, por agentes do DOI-CODI do I Exército e, em momento incerto, transferido
para o DOI-CODI do II Exército, São Paulo, à época dirigido por Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Cogita-se, ainda, de que tenha sido assassinado na Casa da Morte, em Petrópolis – RJ. A Comissão
Nacional da Verdade concluiu que Fernando Santa Cruz “foi preso e morto por agentes do Estado
brasileiro e permanece desaparecido, sem que os seus restos mortais tenham sido entregues à sua
família. Essa ação foi cometida em um contexto de sistemáticas violações de direitos humanos
perpetradas pela ditadura militar instaurada no Brasil em abril de 196418.”
47. Também sem apego ao que foi produzido pela Comissão Nacional da Verdade, e na
ânsia permanente de reescrever a história da ditadura militar, em café da manhã com a imprensa
estrangeira, Bolsonaro afirmou que a jornalista Miriam Leitão integrou a luta armada de resistência
e dirigia-se à guerrilha do Araguaia quando foi presa, na década de 1970. A jornalista, em verdade,
foi vítima de prisão ilícita e tortura durante o regime militar. Estava grávida à época e foi submetida
a sevícias diversas, durante dois meses. Processada na Justiça Militar, veio a ser absolvida19.
17
O Globo, 29/07/2019: “Bolsonaro: 'Se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu, eu
conto pra ele'”. Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-se-presidente-da-oab-quiser-saber-como-
que-pai-dele-desapareceu-eu-conto-pra-ele-23839835; e Folha de S. Paulo, 29/07/2019. “Se presidente da OAB quiser
saber como pai dele desapareceu na ditadura, eu conto, diz Bolsonaro”. Disponível em
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/se-presidente-da-oab-quiser-saber-como-pai-dele-desapareceu-na-
ditadura-eu-conto-diz-bolsonaro.shtml; O Estado de São Paulo, 29/07/2019: “'Se o presidente da OAB quiser saber
como o pai dele desapareceu no período militar, eu conto'”. Disponível em
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,se-o-presidente-da-oab-quiser-saber-como-o-pai-dele-desapareceu-no-
periodo-militar-eu-conto,70002945253?utm_source=estadao:whatsapp&utm_medium=link
18
Comissão Nacional da Verdade, Volume III, p. 1603/1609.
19
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/07/19/globo-repudia-em-nota-ataques-de-bolsonaro-a-miriam-
leitao.ghtml
ao seu desequilíbrio e à sua obsessão em disseminar mentiras, ódio e preconceitos, ao rejeitar a
credibilidade de dados técnicos apresentados por órgãos oficiais20; afirmar ainda que o país não
poderia ser lugar de turismo gay porque aqui existem famílias21; que o trabalho infantil “não
prejudica as crianças”22; que ninguém passa fome no Brasil23; que a questão ambiental importa
apenas “aos veganos, que comem só vegetais”24; e que o programa Mais Médicos, implementado
por Dilma Rousseff, tinha como objetivo formar “núcleos de guerrilha”25. Somam-se aqui o
discurso do ódio e a inverdade, ambos sem lugar na democracia, como se desenvolverá adiante.
20
https://noticias.uol.com.br/ultis-noticias/agencia-estado/2019/07/31/bolsonaro-diz-que-pediu-a-ministerios-
avaliacao-de-dados-do-inpe.htmma
21
https://exame.abril.com.br/brasil/brasil-nao-pode-ser-pais-do-mundo-gay-temos-familias-diz-bolsonaro/
22
https://exame.abril.com.br/brasil/em-live-bolsonaro-afirma-que-trabalho-nao-atrapalha-criancas/
23
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/19/politica/1563547685_513257.html
24
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/07/questao-ambiental-e-para-veganos-que-so-comem-vegetais-diz-
bolsonaro.shtml
25
https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-diz-que-mais-medicos-tinha-objetivo-de-formar-nucleos-de-
guerrilha,70002950683
26
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/chefe-da-secom-sugere-boicote-publicitario-apos-reportagem-da-
folha.shtml
27
https://oglobo.globo.com/brasil/demissao-de-santos-cruz-sucedeu-divergencia-sobre-financiamento-blogs-pro-
governo-23740161
28
https://veja.abril.com.br/blog/radar/tcu-manda-banco-do-brasil-suspender-publicidade-
digital/amp/?__twitter_impression=true
29
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/bolsonaro-cumpre-ameaca-e-exclui-folha-de-licitacao-da-
presidencia-para-assinatura-de-jornais.shtml
30
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/bolsonaro-amplia-ameaca-a-folha-e-diz-que-boicota-produtos-de-
anunciantes-do-jornal.shtml
de televisão31, por discordar da linha editorial.
50. Num dos episódios mais bizarros dessa batalha contra a imprensa, o governo pediu
a um humorista que entregasse bananas a jornalistas32. Antes, Bolsonaro, em ato machista e
misógino, insinuou que Patrícia Campos Mello, jornalista da Folha de São Paulo, estaria disposta
a oferecer favores sexuais em troca de um furo de reportagem contra ele 33. Logo após, a Folha
publicou editorial em que acertadamente afirmava que o presidente “atiça as falanges governistas
contra o jornal e seus profissionais, mas seu alvo final não é um veículo nem tampouco a imprensa
profissional. Ele faz carga contra o edifício constitucional da democracia brasileira”34.
51. O avanço sobre os pilares da democracia prosseguiu com mais intensidade com a
chegada ao Brasil da pandemia da Covid-19. Ciente de antemão da incapacidade de seu governo
gerir essa enorme crise sanitária e, igualmente, os impactos econômicos imediatamente projetados,
Bolsonaro deu início a um festival de desinformação, de desorganização administrativa e de
renovação de ataques aos entes subnacionais, ao Parlamento e ao Supremo Tribunal Federal.
31
https://istoe.com.br/bolsonaro-ameaca-nao-renovar-concessao-da-rede-globo-vai-ter-dificuldade
32
https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-ignora-resultado-do-pib-posta-video-em-que-humorista-da-banana-
para-jornalistas-no-alvorada-24285268
33
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/02/bolsonaro-insulta-reporter-da-folha-com-insinuacao-sexual.shtml
34
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/02/sob-ataque-aos-99.shtml?origin=folha
35
https://news.un.org/pt/story/2020/03/1708272)
36
Disponível em: https://www.instagram.com/p/B-JwjLeHSWy/?igshid=12plbgxy42p5x
37
Link do vídeo divulgado por Flávio Bolsonaro, onde ao final aparece a logomarca do governo federal:
https://www.facebook.com/flaviobolsonaro/videos/198469951450285/
No mundo todo, são raros os casos de vítimas fatais do coronavírus entre
jovens e adultos". A quase totalidade dos óbitos se deu com idosos.
Portanto, é preciso proteger estas pessoas e todos os integrantes dos grupos
de risco, com todo cuidado, carinho e respeito. Para estes, o isolamento.
Para todos os demais, distanciamento, atenção redobrada e muita
responsabilidade. Vamos, com cuidado e consciência, voltar à
normalidade"
#oBrasilNãoPodeParar
38
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/governo-bolsonaro-admite-a-estados-nao-ter-estudo-que-embase-
isolamento-vertical.shtml
antecedência a pandemia39 e publicações, como a elaborada pelo segundo o time de resposta ao
Covid-19 do Imperial College (Imperial College COVID-19 Response Team), do Reino Unido,
em trabalho denominado “The Global Impact of COVID-19 and Strategies for Mitigation and
Suppression”,40 de 26 de março de 2020. Segundo o estudo, numa projeção para os próximos 250
dias (contados na ocasião), a diferença entre uma política de não-mitigação ou supressão social
(normalidade de vida econômico-social) para uma política de quarentena horizontal precoce e
ampla podia ser de mais de 1 milhão e cem mil vidas no Brasil. O Presidente da República,
portanto, sem base empírica, resolveu assumir o risco dessas mortes ao veicular expressamente o
desprezo aos alertas lançados pela comunidade científica em relação às perspectivas de
agravamento severo da mortalidade causada pela pandemia no país.
54. Numa outra vertente, é preciso pontuar que o enfrentamento às pandemias depende
de um esforço do conjunto das nações, tendo em vista que a grande circulação humana,
ultrapassando as fronteiras nacionais, é um dado irrecusável dos dias atuais. Com esse propósito,
o Brasil aderiu ao Regulamento Sanitário Internacional, aprovado na 58º Assembleia Geral da
Organização Mundial da Saúde (OMS), em 23 de maio de 2005, e, recentemente, por meio do
Decreto 10.212, de 30 de janeiro de 2020, promulgou o texto revisado do regulamento. O
Regulamento Sanitário Internacional (RSI) tem por objetivos, conforme está expresso na Portaria
do Ministério da Saúde MS nº 1.865, “oferecer a máxima proteção em relação à propagação de
doenças em escala mundial, mediante o aprimoramento dos instrumentos de detecção, prevenção
e controle de riscos de saúde pública” e avaliar e aperfeiçoar as “capacidades dos serviços de saúde
pública para detectar e oferecer resposta apropriada aos eventos que possam se constituir em
emergência de saúde pública de importância internacional”. Para isso; a RSI prevê, em seu art. 4.1,
que “cada Estado parte deverá designar ou estabelecer um Ponto Focal Nacional para o RSI e as
autoridades responsáveis em suas respectivas áreas de jurisdição pela implementação de medidas
de saúde em conformidade com este regulamento”. No Brasil, a Portaria MS nº 1.865, de 10 de
agosto de 2006, estabeleceu a Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde como
Ponto Focal Nacional, informação que foi encaminhada à Organização Mundial da Saúde no
mesmo ano.
39
https://oglobo.globo.com/mundo/isolamento-maior-gasto-publico-conheca-as-medidas-tomadas-pelos-20-paises-
com-mais-casos-da-covid-19-24332153
40
Disponível em https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/sph/ide/gida-fellowships/Imperial-
College-COVID19-Global-Impact-26-03-2020.pdf. Acesso nesta data.
55. Em 6 de fevereiro de 2020, veio a ser editada a Lei nº 13.979, que “dispõe sobre as
medidas para enfrentamento de emergência de saúde pública de importância internacional
decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2109”. O § 1º de seu art. 3º estipulou que “as
medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências
científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde”. Assim, seja no plano
interno, seja no plano internacional, o Brasil estava comprometido a enfrentar a pandemia
conferindo centralidade ao Ministério da Saúde, o qual, por sua vez, deveria guiar-se
exclusivamente por evidências científicas. O Presidente da República, no entanto, ao seu talante,
numa atitude inteiramente estranha à responsabilidade do cargo, deu início à recomendação de
medicamentos cuja eficácia ainda não havia sido convenientemente testada para a Covid-19 e
conclamou a população, repetidamente, a sair às ruas e retomar as suas atividades cotidianas,
desafiando o protocolo de distanciamento social que passaram a constituir, em todo o planeta, a
chave para provocar a redução da propagação avassaladora do vírus. Em meio à pandemia, foram
exonerados dois Ministros da Saúde, não em razão de suas fragilidades ou erros (ainda que os
tivessem), mas paradoxalmente em virtude de seus acertos: Henrique Mandetta41, demitido, por
não concordar com o afrouxamento do isolamento social, e Nelson Teich42, que saiu por discordar
do Presidente nesse mesmo aspecto e também quanto ao fomento governamental do uso
indiscriminado da cloroquina. No último dia 25 de maio, saiu do governo o Secretário Nacional
de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde43, ponto focal do Brasil na OMS e responsável,
desde o início da pandemia, pelo seu acompanhamento e pela avaliação das estratégias de seu
enfrentamento. Mais uma vez, a razão foi a discordância de Bolsonaro em relação a condutas
prudentes, implementadas com base científica.
56. Essa gestão errática e irresponsável, a olhos vistos, contribuiu decisivamente para
que o Brasil rapidamente se tornasse o país com mais contaminações e mortes em escala diária,
alcançando o segundo maior contingente em adoecimentos e perdas de vidas humanas, de cerca
de 1.800.000 infectados e 70 mil mortos, já na segunda semana de julho de 2020.44
41
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/16/mandetta-anuncia-em-rede-social-que-foi-demitido-do-
ministerio-da-saude.ghtml
42
https://oglobo.globo.com/sociedade/saida-de-nelson-teich-do-ministerio-da-saude-repercute-negativamente-na-
comunidade-medica-24429464
43
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/24/secretario-de-vigilancia-do-ministerio-da-saude-
diz-que-deixara-o-cargo-na-segunda
44
https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/07/09/coronavirus-covid-19-casos-mortos-9-
julho.htm
57. A constatação profundamente dramática da análise desses dados e da escalada da
pandemia em nosso país decorre do efeito evitável retardado da disseminação da doença em
território brasileiro, em comparação com países que experimentaram semanas antes os efeitos do
desprezo ao imperativo do isolamento social, a exemplo de Itália, Espanha e EUA.
45
https://oglobo.globo.com/brasil/nas-redes-sociais-crescem-ataques-de-bolsonaristas-governadores-24384581
46
Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito
à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude
penal. (...) As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica,
observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito
fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual
não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência
dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. (...) No estado de direito democrático devem
ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. (HC 82424,
Relator Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004).
60. O Supremo Tribunal Federal (STF), por sua vez, decidiu, ainda em 2019, instaurar
um inquérito para apurar atos de violência e de distorções da verdade contra os seus ministros,
especialmente nas redes sociais. Mandados de busca e apreensão expedidos com respaldo legal e
determinados recentemente no bojo desse inquérito, abrangendo apoiadores do Presidente da
República geraram reações ainda mais violentas do Presidente de República47, que não hesitou em
recorrer a ameaças e palavras de baixo calão, ao sugerir que “ordens absurdas não se cumprem”48.
47
https://www.otempo.com.br/politica/investigados-por-fake-news-e-ataques-ao-stf-reagem-a-corte-e-miram-
ministro-1.2342592
48
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/05/29/bolsonaro-ameaca-nao-cumprir-decisoes-
do-stf.htm
49
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2020/05/30/bolsonaro-volta-a-passear-sem-mascara-e-provocar-
aglomeracoes-durante-pandemia
50
https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/ato-contra-o-stf-tem-bolsonaro-sem-mascara-e-alusao-ao-golpe-de-
1964/
51
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/31/grupo-300-protesto-supremo.htm
63. A falsa informação, por sua vez, é a antítese da democracia, porque ela distorce a
verdade e falsifica a discussão, levando a decisões que não se amparam em dados da realidade. A
pandemia fez ver a insegurança gerada por esse ambiente em que verdade e mentira são
manipuladas dolosamente pela mais alta autoridade do Poder Executivo do país.
64. Para além dessa face mais ostensiva do autoritarismo do atual Presidente da
República, é preciso avaliar o impacto de sua atuação no conjunto dos demais direitos
fundamentais.
65. A Constituição brasileira, em seu artigo 3º, transmite e assume a ideia de uma
sociedade mais justa e voltada à eliminação das desigualdades, livre de discriminações de todos
os tipos. Tratava-se de uma diretriz que, para avançar, requer investimento perseverante e
ininterrupto.52 Em breve retrospectiva, é possível verificar o avanço substancial na implementação
de direitos no período de 1990-2016.
66. Em 1992, foi homologada a Terra Indígena Yanomami, com mais de 9 milhões de
hectares (Decreto de 25 de maio de 1992). Logo após a promulgação da Constituição de 1988
foram editados ainda o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), o Código de Defesa
do Consumidor (Lei 8.078/90), o Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos (Lei 8.112/90)
e a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90), que instituiu o SUS e garantiu a universalidade do acesso
à saúde. É também desse período a chamada “Lei Rouanet” (Lei nº 8.313/91), de valorização da
diversidade das expressões e manifestações culturais.
67. Mais adiante, o governo federal abraçou a campanha contra a fome e a miséria que
vinha sendo desenvolvida pelo sociólogo Betinho e, pelo Decreto nº 807, de 22 de abril de 1993,
criou o CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar, com multiplicidade e articulação
de instituições, órgãos e atores sociais, nos diferentes níveis de governo. Também nesse período
surgiu a Política Nacional do Idoso e a criação do Conselho Nacional do Idoso (Lei 8.842/94).
52
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre,
justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação.
68. Já em 1996 foi lançado o 1º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)53,
cujo prefácio consignou logo de início: “não há como conciliar democracia com as sérias injustiças
sociais, as formas variadas de exclusão e as violações aos direitos humanos que ocorrem em nosso
país”. Esse documento inaugurou o modelo de conferências locais, regionais e nacional, com
ampla participação de segmentos da sociedade civil. Seu principal enfoque veio ser a cidadania e
a redução das desigualdades sociais, econômicas, sociais e culturais. Há nele uma preocupação
com a não-violência e com a cultura do desarmamento; com o reconhecimento da especial
vulnerabilidade de “crianças e adolescentes, idosos, mulheres, negros, indígenas, migrantes,
trabalhadores sem terra e homossexuais”.
69. Em 2002, foi lançado o 2º PNDH54, com maior enfoque nos direitos econômicos,
sociais e culturais. Está ali expresso que o “PNDH II incorpora ações específicas no campo da
garantia do direito à educação, à saúde, à previdência e assistência social, ao trabalho, à moradia,
a um meio ambiente saudável, à alimentação, à cultura e ao lazer, assim como propostas voltadas
para a educação e sensibilização de toda a sociedade brasileira com vistas à construção e
consolidação de uma cultura de respeito aos direitos humanos.” Compreende o documento que,
para alcançar essas metas, é necessário fortalecer os órgãos da administração pública, como Funai,
Ibama, Incra e Fundação Cultural Palmares, entre outros, bem como os espaços de participação
social nos vários conselhos de direitos humanos já existentes.
70. Nessa época, também foram criadas a Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos (Lei 9.140/95) e a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça (Lei
10.559/2002). Também é desse período o Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001) e a Lei da Saúde
Mental (Lei 10.216/2001), que veio a redirecionar toda a política no sentido principalmente do fim
dos manicômios e das internações de longa duração de todos os tipos.
53
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direitos-Humanos-no-Brasil/i-programa-nacional-de-direitos-
humanos-pndh-1996.html
54
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direitos-Humanos-no-Brasil/ii-programa-nacional-de-direitos-
humanos-pndh-2002.html#:~:tex
Segurança Pública, Acesso à Justiça e Combate à Violência; Eixo Orientador V: Educação e
Cultura em Direitos Humanos; Eixo Orientador VI: Direito à Memória e à Verdade). Isso
significou que direitos humanos se tornaram o tema transversal de todas as políticas públicas e o
artigo 4º do Decreto veio a instituir um comitê para acompanhamento da implementação do PNDH
III. Nesse período, foram criados, entre outros, o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), o ICMBio
(Lei 11.516/2007), a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades
Tradicionais (Decreto 6040/2007), a Política Nacional para a População em Situação de Rua
(Decreto 7.053/2009), o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), o decreto de demarcação
de áreas quilombolas (Decreto 4.887/2003). São dessa época, a “Reforma do Judiciário” (EC
45/2004) e importantes políticas de enfrentamento à desigualdade (Bolsa Família, Fome Zero,
Minha Casa Minha Vida e Primeiro Emprego).
72. Vale ressaltar a iniciativa capital traduzida na edição do estatuto da Igualdade Racial
(2010), associada à criação em 2003 da Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial,
centradas no enfrentamento do racismo como elemento central e articulador da exclusão social e
da opressão a grandes contingentes populacionais e culturais de nosso país.
74. Houve, portanto, desde 1988, o fortalecimento considerável das políticas tendentes
à ampliação de direitos, na linha do compromisso estabelecido na Constituição de 1988. Todo esse
arcabouço, seja legislativo, seja administrativo, implicou necessariamente o reforço dos recursos
e das estruturas institucionais públicas, orientadas ao cumprimento das citadas diretrizes
constitucionais.
76. A Medida Provisória 870, de 1º de janeiro de 2019, foi o primeiro ato do governo,
editado para estabelecer a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos
Ministérios. Alguns sinais antecipavam a demolição da política de direitos humanos que se
avizinhava. Foi extinto, sem que outro órgão ocupasse o seu lugar, o CONSEA – Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e com isso ficou desorganizado todo o Sistema de
Segurança Alimentar e Nutricional –SISAN, instituído pela Lei 11.346/2006. Convém lembrar que
o CONSEA nasceu inspirado pelo movimento “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela
Vida”, sob a liderança do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho,56 e foi reconhecido pela FAO57
como ferramenta central para que o país saísse do Mapa Mundial da Fome em 2014, reduzindo em
82,1% o número de pessoas subalimentadas. Quando a MP 870 foi editada, o Brasil estava numa
curva ascendente de pessoas em retorno à situação de extrema pobreza58.
55
https://oglobo.globo.com/mundo/antes-de-construir-preciso-desconstruir-muita-coisa-no-brasil-diz-bolsonaro-nos-
eua-23530792
56
SILVA, Sandro Pereira. A trajetória histórica da segurança alimentar e nutricional na agenda política nacional:
projetos, descontinuidades e consolidação. 2014. Disponível em:
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/3019/1/TD_1953.pdf.
57
BOJANIC, Alan Jorge; FRANÇA, Caio Galvão de; MARQUES, Vicente Penteado Meirelles de Azevedo; e DEL
GROSSI, Mauro Eduardo. Superação da fome e da pobreza rural: iniciativas brasileiras. FAO: Brasília, 2016.
Disponível em: http://www.fao.org/3/a-i5335o.pdf. Acesso em 12 fev 2019.
58
Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2018/08/13/aumenta-a-pobreza-e-a-extrema-pobreza-no-brasil-
artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/. Acesso em 12 fev. 2019.
licenciamento ambiental que afetem povos indígenas. Embora o Congresso Nacional não tenha
aprovado a MP nesse ponto, restou evidente o propósito de Bolsonaro de colocar nas mãos do
agronegócio os interesses indígenas.
59
Promulgada e internalizada no Brasil pelo Decreto 5.687, de 31/1/2006.
emergência de saúde pública. A liminar que suspendeu a vigência dessa norma foi concedida pelo
Ministro Alexandre de Moraes do STF, nos autos da ADI 6351 e, posteriormente, confirmada pelo
Plenário da Corte. Agregue-se a isso a decisão governamental pela não divulgação dos dados de
adoecimentos e mortes pela Covid-19, seguida por uma apresentação bastante confusa dos
números60.
82. Mantidos os conselhos criados por lei, os ataques a eles foram permanentes. Tome-
60
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/apos-ameacar-sonegar-dados-governo-promove-confusao-com-
numeros-a-covid-19.shtml
se como exemplo o Conanda – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente,
criado pela Lei 8.242/9. No dia 4 de setembro de 2019, foi promulgado o Decreto 10.003, em que
o Presidente da República alterou o seu regulamento, o Decreto 9.579/2018, reduzindo o número
de seus componentes, esvaziando o seu caráter multissetorial e transversal e ainda retirando o
apoio técnico-administrativo-financeiro do MMFDH necessário ao seu funcionamento. Em
dezembro de 2019, o ministro Roberto Barroso concedeu liminar na ADPF 622, para restabelecer
os mandatos dos conselheiros até seu termo final e determinar a eleição dos representantes das
entidades da sociedade civil em assembleia específica, a realização de reuniões mensais com o
custeio do deslocamento dos conselheiros que não moram no Distrito Federal e que o presidente
do órgão fosse eleito por seus pares, tudo nos termos do regimento interno. Como a decisão ocorreu
no final de 2019, o Conanda se viu impossibilitado, naquele ano, de fazer a gestão do Fundo
Nacional para a Criança e o Adolescente (FNCA), com prejuízo ao financiamento de inúmeros
projetos destinados à promoção, proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes.
83. Já o Conselho Nacional do Idoso, criado pela Lei 8.842/94, é outro exemplo do
descumprimento dissimulado da decisão do STF na ADI 6.121. Toda a sua estrutura, composição
e funcionamento, tal como previstas no Decreto 5.109/2004, foram alteradas pelo Decreto
9.893/2109, que, de resto, cassou os mandatos da presidente e dos conselheiros e conselheiras
eleitos para a gestão 2018-202061.
61
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=44C4BBF8E9A2C654A79B951433C
41F80.proposicoesWebExterno1?codteor=1774969&filename=Avulso+-PDL+454/2019
62
http://www.congemas.org.br/Publicacao.aspx?id=115474
videoconferência foi a chave para dar a aparência de que os conselhos seguiam funcionando. Sem
o fornecimento de qualquer equipamento de informática, os conselhos de participação social,
quase que em sua totalidade, não realizaram atividade alguma ao longo do ano de 2019.
63
https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/todas-as-noticias/2019/fevereiro/cndh-manifesta-preocupacao-
frente-ao-cancelamento-da-missao-do-
64
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-desmonta-orgao-de-combate-a-tortura,70002866264
65
https://www10.trf2.jus.br/portal/trf2-mantem-liminar-garantindo-cargos-de-peritos-do-mecanismo-nacional-de-
prevencao-e-combate-tortura/
a Associação para a Prevenção da Tortura, com sede em Genebra, pediu ingresso, na condição de
amicus curiae, na ADPF 607, cujo objeto era esse “serviço voluntário” dos peritos do
Mecanismo66.
87. A área de memória e verdade foi totalmente destruída. É preciso lembrar que o
Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund, a
assumir obrigações de instituir políticas de reparação integral às vítimas e familiares da ditadura
inaugurada em 1964. Em 2015, o Brasil apresentou relatório à CIDH, onde justifica a sua aderência
àquela decisão mediante as seguintes iniciativas, todas a cargo da Comissão de Anistia: (i)
implantação do Memorial da Anistia; (ii) projeto Clínicas do Testemunho, com a realização de
4.000 atendimentos, 450 horas de capacitação e conversas públicas com 1.900 pessoas; (iii)
Caravanas de Anistia, por “romper com o silêncio e o medo de discutir publicamente o passado”;
(iv) Marcas da Memória, enfatizando que, ao final do projeto, “os acervos de fontes orais e
audiovisuais organizados serão disponibilizados para consulta pública e pesquisa no Centro de
Documentação e Pesquisa do Memorial da Anistia Política do Brasil”; (v) publicações em
conformidade com os ideais de preservação da memória histórica e da verdade; e (vi) mais de 50
atividades realizadas ao longo de 2014 por ocasião dos 50 anos do golpe, dentre tantas outras ações
de reparação. Nada disso existe mais. Ao contrário, pela Portaria nº 378, de 27 de março de 2019,
a composição do Conselho da Comissão de Anistia passou a contar com pelo menos cinco militares
de carreira, além de pessoas com atuação judicial contrária à concessão de reparação, a atos da
Comissão de Anistia e do Ministro da Justiça e à instauração da Comissão Nacional da Verdade67.
66
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750859776&prcID=5741167#
67
https://oglobo.globo.com/brasil/damares-muda-perfil-da-comissao-de-anistia-rejeita-265-pedidos-23554015 ;
https://jornalggn.com.br/direitos-humanos/para-presidir-comissao-de-anistia-damares-nomeia-ex-assessor-
debolsonaro-
que-ja-atuou-contra-anistiados/
68
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/bolsonaro-muda-comissao-de-mortos-e-desaparecidos-em-meio-a-
ataques-sobre-o-tema.shtml
89. Um dos membros recém designados, Weslei Antônio Maretti, assim se manifestou
em redes sociais, ao elogiar um notório torturador do período da ditadura militar: “O
comportamento e a coragem do coronel Ustra servem de exemplo para todos os que um dia se
comprometeram a dedicar-se inteiramente ao serviço da pátria. Apesar de travar uma luta de Davi
contra Golias, a sua vitória é certa porque no final o bem prevalece sobre o mal”.69
69
https://jornalggn.com.br/politica/novo-integrante-da-comissao-de-mortos-e-desaparecidos-politicos-exalta-
torturador-e-ex-chefe-do-doi-codi/
70
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-defende-familia-tradicional-e-chama-ideologia-de-genero-
de-coisa-do-capeta,70002962393
exercício da atividade docente. A eventual necessidade de suplementação
da legislação federal, com vistas a` regulamentação de interesse local (art.
30, I e II, CF), não justifica a proibição de conteúdo pedagógico, não
correspondente às diretrizes fixadas na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei 9.394/1996). Inconstitucionalidade formal. 2. O
exercício da jurisdição constitucional baseia-se na necessidade de respeito
absoluto à Constituição Federal, havendo, na evolução das Democracias
modernas, a imprescindível necessidade de proteger a efetividade dos
direitos e garantias fundamentais, em especial das minorias. 3. Regentes
da ministração do ensino no País, os princípios atinentes à liberdade de
aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art.
206, II, CF) e ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art.
206, III, CF), amplamente reconduzíveis à proibição da censura em
atividades culturais em geral e, consequentemente, à liberdade de
expressão (art. 5º, IX, CF), não se direcionam apenas a proteger as opiniões
supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também
aquelas eventualmente não compartilhada pelas maiorias. 4. Ao aderir à
imposição do silêncio, da censura e, de modo mais abrangente, do
obscurantismo como estratégias discursivas dominantes, de modo a
enfraquecer ainda mais a fronteira entre heteronormatividade e homofobia,
a Lei municipal impugnada contrariou um dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, relacionado à promoção do bem de todos
(art. 3º, IV, CF), e, por consequência, o princípio segundo o qual todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput, CF).
5. A Lei 1.516/2015 do Município de Novo Gama – GO, ao proibir a
divulgação de material com referência a ideologia de gênero nas escolas
municipais, não cumpre com o dever estatal de promover políticas de
inclusão e de igualdade, contribuindo para a manutenção da discriminação
com base na orientação sexual e identidade de gênero.
Inconstitucionalidade material reconhecida. 6. Arguição de
descumprimento de preceito fundamental julgada procedente.
71https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/
72
https://oglobo.globo.com/sociedade/menino-veste-azul-menina-veste-rosa-diz-damares-alves-em-video-23343024
73
https://veja.abril.com.br/politica/tudo-tem-seu-tempo-prega-campanha-de-damares-por-abstinencia-sexual/
conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos resultantes de suas
conferências de revisão. Em relação ao primeiro, consta:
74
http://www.unfpa.org.br/swop2016/BOOK-SWOP-2016-24-10-WEB.pdf
vida adulta. As evidências confirmam que a educação integral para
a sexualidade não incentiva a atividade sexual, mas tem um impacto
positivo sobre comportamentos sexuais mais seguros e pode
postergar a iniciação sexual.
94. Além da destruição de espaços que foram projetados como órgãos de Estado, e não
de governo, e do encolhimento de todas as políticas de enfrentamento à desigualdade e à exclusão,
a administração pública, em sua generalidade, passou a ser moldada pela vontade pessoal de Jair
Bolsonaro. O laudo pericial da reunião ministerial do último dia 22 de abril de 2020 não permite
dúvida. Bolsonaro diz: “eu tenho o poder e vou interferir em todos os ministérios, sem exceção”.
Mais adiante revela que tem que alterar a presidência do Iphan: “O IPHAN, não é? Tá la vinculado
a Cultura. (...) Mas tinha que ter um outro perfil também. O IPHAN para qualquer obra do Brasil,
como para a do Luciano Hang. Enquanto tá lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô! Para
a obra. O que que tem que fazer? Alguém do IPHAN que resolva o assunto, né? E assim nós temos
que proceder. E assim, cada órgão, como eu falei da Teresa Cristina, que mudou uma Instrução
Normativa, revogou uma Instrução Normativa, ajudou quatrocentos mil pessoas no Vale do Ribeira
- parabéns a ela - assim são outras decisões.”75
75
https://valor.globo.com/politica/noticia/2019/06/20/bolsonaro-visita-a-familia-em-eldorado-no-vale-do-
ribeira.ghtml
governadores e prefeitos”. Numa culminância do espetáculo de desfaçatez que foi esse encontro
de altas autoridades federais, presidido de modo canhestro pelo Presidente da República, o então
Ministro da Educação, Abraham Weintraub, investiu contra os Ministros do Supremo Tribunal
Federal, ao verberar: “eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no
STF”; e acrescentou, em desrespeito patente ao disposto na Constituição, produzindo ato
discriminatório impensável para uma autoridade da área educacional: “odeio o termo ‘povos
indígenas’, odeio esse termo. Odeio. O "povo cigano". Só tem um povo nesse país. Quer, quer.
Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um povo. Pode ser preto, pode ser branco, pode ser
japonês, pode ser descendente de índio, mas tem que ser brasileiro, pô! Acabar com esse negócio
de povos e privilégios”. Paulo Guedes, identificado como um “anarcocapitalista”76, evidenciou a
sua incapacidade de elaborar qualquer política pós-pandemia ancorada no Estado, enquanto o
mundo todo se dá conta de que haverá uma grande crise econômica e que a intervenção estatal será
inevitável.
76
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/08/quem-sao-os-libertarios-e-anarcocapitalistas-que-pregam-o-
fim-do-estado.shtml
77
Ver nota 34
78
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/10/secom-usa-lema-associado-ao-nazismo-para-
divulgar-acoes-contra-a-covid-19.htm
“A Guerrilha do Araguaia tentou tomar o Brasil via luta armada. A dedicação
deste e de outros heróis ajudou a livrar o país de um dos maiores flagelos da
História da Humanidade: o totalitarismo socialista, responsável pela morte de
aprox. 100 MILHÕES de pessoas em todo o mundo.”
“Heróis do Brasil
Presidente Bolsonaro recebe Tenente-Coronel que combateu a Guerrilha
Comunista do Araguaia.
97. Relatório produzido a pedido da CPMI das Fake News identificou mais de 2
milhões de anúncios pagos com verba da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da
República (Secom) em sites, aplicativos de telefone celular e canais de YouTube que veiculam
conteúdo considerado inadequado. Entre eles estão sites que divulgam notícias falsas, oferecem
investimentos ilegais e até aplicativos com conteúdo pornográfico79.
79
https://blogs.oglobo.globo.com/sonar-a-escuta-das-redes/post/cpmi-das-fake-news-identifica-2-milhoes-de-
anuncios-da-secom-em-canais-de-conteudo-inadequado-em-so-38-dias.html
98. Em 17 de janeiro de 2020, o então Secretário Especial de Cultura, Roberto Alvim,
postou um vídeo para divulgar o Prêmio Nacional das Artes, lançado no dia anterior . No vídeo,
além de reproduzir quase que literalmente pronunciamento de Joseph Goebbels para diretores de
teatro em 1933, o ex-secretário o faz em ambiente estético muito similar àquele constante de uma
foto do ministro da propaganda de Hitler80. A sua sucessora, a atriz Regina Duarte, em entrevista
à rádio CNN Brasil do último dia 4 de maio, minimizou a tortura ocorrida no período da ditadura81.
80
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aNqAiyMxYRw.
81
Disponível em: https://youtu.be/v9gLHrP7RNw
82
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49107737
83
http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/6053-funai-e-ministerio-da-agricultura-discutem-gestao-
fundiaria
84
http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pfdc-recomenda-ao-incra-revogacao-de-resolucoes-usadas-para-
desistencia-em-processos-de-desa
85
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,presidente-da-fundacao-palmares-repudia-zumbi-que-da-nome-a-
entidade-e-e-simbolo-do-movimento-negro,70003302274
esquerda racialista; não do povo brasileiro. Repudiamos Zumbi!". Em reunião do dia 30 de abril,
chamou o movimento negro de “escória racista” e “vagabundos”, e ainda conclamou seus
subordinados a entregarem os servidores esquerdistas da Fundação, para que fossem demitidos86.
86
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/06/presidente-da-fundacao-palmares-chama-movimento-negro-de-
escoria-maldita.shtml
87
https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/08/07/exoneracao-de-diretor-do-inpe-e-publicada-no-diario-
oficial.ghtml
88
https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/04/30/ibama-exoneracoes-amazonia.htm
89
https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/05/12/governo-oficializa-mudancas-no-icmbio-associacao-critica-
troca-de-11-coordenadores-por-5-gerentes.ghtml
termos de equipamento, como em relação ao conhecimento técnico acumulado, explicam a
incapacidade de respostas ágeis e eficientes ao combate do novo coronavírus. O Ministério da
Saúde utilizou até agora apenas 6,8% dos recursos destinados diretamente para a emergência
sanitária provocada pela pandemia, segundo dados retirados do próprio site do ministério no dia
27 de maio. Conforme os dados, somente 804,68 milhões de reais, de um total de 11,74 bilhões de
reais, foram usados para a ação "Enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância
Internacional Decorrente do Coronavírus"90. Esse Ministério demorou três meses após a chegada
da pandemia ao Brasil para adotar alguma medida em relação às favelas, que não contam, via de
regra, com saneamento básico, sofrem permanente falta de água, seus habitantes não têm
condições econômicas de adquirir álcool gel e outros equipamentos de proteção individual, e o
adensamento populacional das habitações nesses regiões torna impossível a adoção da
recomendação do distanciamento social. Não é por acaso que o bairro campeão de morte por
Covid-19 em São Paulo é Brasilândia. A imprensa internacional vem se preocupando com o
aumento de militares no Ministério da Saúde e, no dia 3 de junho, após 19 dias de cargo vago, foi
oficializado o general Pazuello como Ministro interino da saúde91. De resto, a imprensa nacional
noticia que o novo secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde foi uma indicação
do chamado “Centrão”, na negociação para impedir o impeachment de Bolsonaro92.
90
economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/06/02/mpf-abre-inquerito-para-apurar-execucao-orcamentaria-do-
ministerio-da-saude-na-pandemia.htm
91
https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-brazil-response-sp-idUSKBN2321DU e
https://oglobo.globo.com/sociedade/governo-oficializa-general-pazuello-como-ministro-interino-da-saude-1-
24459898
92
https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,governo-nomeia-novo-secretario-de-vigilancia-do-ministerio-da-
saude,70003325632; https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/05/governo-nomeia-novo-
secretario-de-vigilancia-em-saude-do-ministerio-da-saude.ghtml
93
https://catracalivre.com.br/cidadania/senado-aprova-auxilio-emergencial-de-r-600-a-trabalhadores-informais/
94
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/06/caixa-promete-cadeiras-e-controle-de-distancia-em-fila-para-
saque-de-auxilio-emergencial.shtml
95
https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/05/14/governo-nega-auxilio-emergencial-para-
parentes-de-presos.htm
Bolsa Família destinados ao Nordeste foi transferida para a publicidade oficial96
96
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/06/governo-tira-dinheiro-do-bolsa-familia-no-nordeste-para-bancar-
publicidade-oficial.shtml; https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/05/estados-do-nordeste-pedem-que-stf-
restabeleca-recursos-transferidos-do-bolsa-familia.ghtml
requisitos para a promoção em carreira (art. 39, parágrafo 2º). Os serviços da administração se dão
com a participação dos usuários e estão sujeitos à avaliação periódica, externa e interna (parágrafo
3º, I e II). A Constituição, em seu artigo 85, V, estabelece ser crime de responsabilidade os atos do
Presidente da República que atentem contra “a probidade na administração”. Idêntica previsão
consta da Lei 1079/50 (art. 4º, inciso V). A Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), em
seu art. 11, diz que “constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da
administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade,
imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”.
97
Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: (...) 5-
servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades
o pratiquem sem repressão sua; 6- subverter ou tentar subverter por meios violentos a ordem política e social; (...) 9-
violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais
assegurados no artigo 157 da Constituição;
Também assegurou, no caput do art. 225, como direito de todos, o “meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações”.
111. Referidos dispositivos traduziram uma preocupação que, em nível global, vem
ocupando a comunidade internacional ao menos desde 1972, quando a Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, enunciou, entre seus princípios
que “Os recursos naturais da terra incluídos o ar, a água, a terra, a flora e a fauna e especialmente
amostras representativas dos ecossistemas naturais devem ser preservados em benefício das
gerações presentes e futuras, mediante uma cuidadosa planificação ou ordenamento”.
113. No entanto, desde o início da gestão do ora Denunciado, este tem dirigido um
processo de desarticulação dos principais mecanismos de defesa ambiental e incentivado uma
destruição sem precedentes do patrimônio ecológico brasileiro.
98
Documento de encerramento da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,
realizada no Rio de Janeiro, entre 3 e 14 de junho de 1992.
99
Internalizada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998.
100
Internalizada pelo Decreto nº 2.652, de 1º de julho de 1998.
101
Internalizado pelo Decreto nº 9.073, de 5 de junho de 2017.
102
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/02/ricardo-salles-exonera-21-dos-27-superintendentes-regionais-
do-ib.shtml.
103
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-do-meio-ambiente-impoe-lei-da-mordaca-a-ibama-e-
icmbio,70002753849.
em depoimentos ao Ministério Público Federal, a adoção de medidas pelo governo federal para
prejudicar a fiscalização ambiental e favorecer interesses de criminosos ambientais. Segundo o
MPF, em ação de improbidade ajuizada perante a 8ª Vara Federal de Brasília, destacam-se as
seguintes medidas do governo federal que contribuíram para o enfraquecimento da fiscalização104:
• mudanças de chefia por pessoas com pouco conhecimento das atividades fiscalizatórias ou demora na
definição dos cargos;
• reduções orçamentárias;
104
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/08/servidores-dizem-em-depoimento-que-governo-toma-medidas-
para-prejudicar-fiscalizacao-ambiental.ghtml.
105
https://reporterbrasil.org.br/2020/01/20-agrotoxicos-liberados-em-2019-sao-extremamente-toxicos/.
118. Ao mesmo tempo, o trabalho da fiscalização ambiental foi severamente prejudicado
pelas políticas levadas a cabo pelo Denunciado, que desde o princípio do seu mandato tem insistido
na existência de uma suposta “farra das multas ambientas”, que, segundo ele, deve acabar106. A
autonomia das autarquias que se encontram sob a alçada do Ministério do Meio Ambiente também
tem sido minada. Em abril de 2019, por exemplo, o IBAMA recebeu uma determinação
proveniente da Secretaria-Executiva do MMA (Ofício nº 2070/2019/MMA) para que fosse
liberada a exploração de petróleo no Parque Nacional de Abrolhos pela “relevância estratégica do
tema”107.
120. O IBAMA teve, ainda, 24% do seu orçamento reduzido por iniciativa do Poder
Executivo, o que inevitavelmente afeta a capacidade de fiscalização e manutenção das atividades
106
https://noticias.r7.com/brasil/bolsonaro-afirma-que-farra-das-multas-ambientais-vai-acabar-01122018.
107
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-mandou-ibama-liberar-petroleo-em-abrolhos-por-
relevancia-estrategica,70002787439.
108
https://valor.globo.com/politica/noticia/2019/04/14/bolsonaro-desautoriza-operacao-do-ibama-em-
rondonia.ghtml.
do órgão109. No mês seguinte, em maio de 2019, o ICMBio perdeu 26% do seu orçamento,
implicando redução de 95% dos valores destinados à pasta da agenda climática e 38% do montante
destinado à prevenção e ao controle de incêndios florestais110.
121. Como resultado dessa conjunção de fatores, mesmo em período com acentuado
volume de agressões ao meio ambiente, as sanções impostas pela fiscalização ambiental caíram
60% em um ano, levando especialistas a vislumbrarem um “apagão ambiental” no país, decorrente
da intensa pressão para que os servidores responsáveis não apliquem sanções aos transgressores
da legislação ambiental111.
109
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ministro-ricardo-salles-manda-cortar-24-do-orcamento-do-
ibama,70002806082.
110
https://www.oeco.org.br/noticias/governo-corta-r-187-milhoes-do-mma-saiba-como-o-corte-foi-dividido/.
111
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/07/sancoes-impostas-pelo-ibama-caem-60-em-um-ano-e-
especialistas-alertam-para-apagao-
ambiental.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa.
112
http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/dashboard/deforestation/biomes/legal_amazon/rates.
113
https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/06/12/mesmo-com-queda-em-maio-alertas-de-desmatamento-na-
amazonia-indicam-que-temporada-pode-ter-devastacao-maior-que-a-anterior.ghtml.
123. Nem mesmo a atuação do INPE escapou à atuação irresponsável do atual
mandatário. Em lugar de adotar medidas para contenção do desmatamento, no mês de julho de
2019, o Presidente da República criticou publicamente o diretor do INPE pela divulgação de dados
que, na sua compreensão, prejudicaram “o nome do Brasil”114. Poucos dias depois, Ricardo Galvão
foi exonerado de suas funções115.
114
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/07/bolsonaro-critica-diretor-do-inpe-por-dados-sobre-
desmatamento-que-prejudicam-nome-do-brasil.shtml.
115
https://congressoemfoco.uol.com.br/meio-ambiente/diretor-do-inpe-e-demitido-apos-desafiar-bolsonaro/.
124. A situação na região foi agravada com o aumento registrado no número de
incêndios florestais, diretamente relacionados ao aumento do desmatamento116. Segundo o INPE,
a Amazônia registrou incremento de 30% na quantidade de focos de incêndio, em relação ao ano
de 2018117. Paradoxalmente, ao longo de 2019, as autuações do IBAMA relacionadas às infrações
ambientais reduziram em 29,4%118. O governo federal, em verdade, editou Medida Provisória
(Medida Provisória nº 900/2019), permitindo o desconto de até sessenta por cento no pagamento
de multas ambientais, sem qualquer outra contrapartida dos infratores119. O Presidente, em lugar
de adotar políticas públicas capazes de fazer frente à questão, acusou falsamente organizações não-
governamentais de incendiarem áreas de floresta120.
116
https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/08/23/cientista-da-nasa-relaciona-queimadas-na-amazonia-com-
maior-desmatamento.ghtml.
117
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/01/08/focos-de-queimadas-na-amazonia-aumentam-em-2019-
informa-o-inpe.ghtml.
118
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/08/queimadas-disparam-mas-multas-do-ibama-despencam-sob-
bolsonaro.shtml.
119
https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,medida-provisoria-transforma-conversao-de-multas-
ambientais-em-pagamento-com-desconto,70003055274.
120
https://veja.abril.com.br/politica/sem-apresentar-qualquer-prova-bolsonaro-tenta-ligar-ongs-a-queimadas/.
121
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/15/politica/1565898219_277747.html. Também:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/08/15/bolsonaro-sugere-a-noruega-usar-verba-do-fundo-amazonia-para-
127. A política ambiental predatória tem causado, ainda, outros significativos impactos
em nível internacional. Os Parlamentos de Holanda122 e Áustria123 já rejeitaram oficialmente o
acordo de comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Outros países europeus, como a
França124 e a Alemanha125, devem caminhar no mesmo sentido.
128. Por outro lado, mais de duzentos fundos financeiros, que controlam um total de 16
trilhões de dólares, já alertaram empresas atuantes no país para que “redobrem seus esforços e
demonstrem um claro compromisso de eliminar o desmatamento em suas operações e cadeias de
abastecimento”126. É clara a tendência do país de tornar-se, na expressão do economista Pérsio
Arida, um “pária do investimento internacional”127 por conta da política da área ambiental. As
condutas do denunciado e sua tolerância com as ações ilegais de seus subordinados já prejudicam
o mercado exportador brasileiro128 e mesmo entidades empresariais já apontaram os riscos à
atividade econômica decorrente da atual gestão ambiental promovida pelo governo federal, que,
no entanto, insiste em sua agenda de desconstrução da agenda de preservação dos ecossistemas129.
131. Cumpre observar que, por ato do próprio governo federal, o comitê criado em 2013
para elaborar plano de ação em caso de crises decorrentes de desastres desse gênero havia sido
extinto132. Em lugar de adotar ações que reduzissem o impacto para o ambiente e para os cidadãos
brasileiros cuja subsistência depende da fauna marinha, o governo federal preferiu dedicar-se a
novamente enunciar acusações falsas contra entidade de proteção ambiental133. A inexistência de
um efetivo e tempestivo plano de contingência agravou o problema e contribuiu sobremaneira para
que a mancha se espalhasse por mais de 1000km da costa brasileira, atingindo onze unidades da
federação.
132. Tão relevante omissão amolda-se ao crime de responsabilidade contido no art. 85,
IV, da Constituição c/c art. 8º, inciso 8, da Lei nº 1.079/1950, dado que é vedado ao Presidente da
República deixar de tomar as providências determinadas por lei, necessárias à sua execução e ao
seu cumprimento.
133. E não foi só. A perplexidade diante das ações ambientais do Presidente e seus
subordinados foi ainda mais expressiva quando, no âmbito do Inquérito nº 4.831/STF, tornou-se
público o conteúdo de reunião ministerial ocorrida em 22 de abril de 2020. Naquela ocasião, em
meio à pandemia da COVID-19, o Ministro Ricardo Salles enunciou134:
E que são muito difíceis, e nesse aspecto eu acho que o Meio Ambiente é o mais difícil,
de passar qualquer mudança infralegal em termos de infraestru ... e ... é ... instrução
normativa e portaria, porque tudo que a gente faz é pau no judiciário, no dia seguinte.
Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de
tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir
passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN,
de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de
131
https://oglobo.globo.com/sociedade/mpf-pede-que-justica-obrigue-governo-acionar-plano-para-conter-oleo-no-
nordeste-1-24026808. E ainda: https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,salles-so-formalizou-plano-41-
dias-apos-manchas-aparecerem-no-nordeste,70003059406.
132
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/10/governo-bolsonaro-extinguiu-comites-do-plano-de-acao-de-
incidentes-com-oleo.shtml.
133
https://oglobo.globo.com/sociedade/salles-insinua-que-greenpeace-pode-ter-derramado-oleo-mas-volta-atras-
24039726.
134
Transcrição disponível em: https://static.poder360.com.br/2020/05/transcricao-video-reuniao22abr.pdf.
ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação
regulam ... é de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos.
135. É dever das autoridades brasileiras, diante de flagrante cometimento de ato ilícito
de seus subordinados, exigir pronta retratação e responsabilização dos responsáveis. A omissão
presidencial diante de tão grave afirmação do seu Ministro do Meio Ambiente torna o Denunciado
incurso na conduta constante no art. 85, V, da Constituição c/c art. 9º, incisos 3, 4 e 7, da Lei nº
1.079/1950.
137. Não por outra razão, na forma do art. 23, III e IV, da Constituição, há competência
comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para “proteger os
documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as
paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” e “impedir a evasão, a destruição e a
descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural”.
Contudo, o que se observa desde a posse do Denunciado na Presidência da República é uma
sistemática desarticulação dos fundamentos constitucionais da política cultural brasileira.
138. Como primeiro ato do atual governo, o Ministério da Cultura (MinC) foi extinto
por meio da Medida Provisória nº 870/2019, passando a compor, inicialmente, a estrutura do
Ministério da Cidadania para, a partir de novembro de 2019, integrar o Ministério do Turismo. Em
seguida ao fim do MinC, iniciou-se uma verdadeira marcha ideológica de perseguição a projetos
culturais que pudessem representar críticas ao Poder Executivo ou transmitir valores diversos
daqueles defendidos pela base de apoio do ora Denunciado.
140. Após escancarados esses fatos, foi necessária intervenção do Poder Judiciário para
determinar a retomada do mencionado edital. A decisão judicial destacou que houve
“discriminação contra projetos com temática relacionada a lésbicas, gays, bissexuais, transexuais
e travestis”139.
135
https://oglobo.globo.com/cultura/projetos-de-serie-que-bolsonaro-quer-abortar-sao-finalistas-na-linha-
diversidade-de-genero-de-edital-publico-23882963.
136
https://oglobo.globo.com/cultura/bolsonaro-sobre-ancine-se-pessoal-se-adequar-da-para-mante-la-23877823.
137
https://oglobo.globo.com/cultura/governo-bolsonaro-suspende-edital-com-series-lgbt-para-tvs-publicas-
23891805.
138
https://oglobo.globo.com/cultura/governo-bolsonaro-suspende-edital-com-series-lgbt-para-tvs-publicas-
23891805.
139
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/justica-determina-que-ancine-retome-edital-censurado-por-
conter-conteudo-lgbts.shtml.
140
https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2019/11/27/novo-presidente-da-fundacao-palmares-nega-
racismo-e-ataca-negros-famosos.htm.
órgão. A incompatibilidade com o cargo era tão expressiva que decisão judicial chegou a suspender
a nomeação141.
142. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) também não teve
melhor sorte. Como se verifica na transcrição de reunião ministerial datada de 22 de abril de 2020,
tornada pública por decisão do Supremo Tribunal Federal, o Presidente da República desconhece
as políticas do órgão e busca, mediante interferência em suas atividades, favorecer interesses
privados em detrimento do interesse da coletividade priorizado pela Constituição de 1988.142
143. Ressalte-se que, consoante enunciado pela ex-presidente do instituto, o Iphan teve
alterações recentes em sua estrutura administrativa por pressão de um dos filhos do Presidente da
República, o que demonstra o caráter corrupto, autoritário e personalista do ora Denunciado143. As
práticas não republicanas e o descaso com a atuação daquele importante órgão de preservação do
patrimônio cultural ganharam ainda mais vulto com a nomeação de nova presidente, sem qualquer
vinculação com a área144, mas com proximidade pessoal à família do ora Denunciado145.
144. O ataque ao setor também tem sido levado a cabo por sucessivos cortes do custeio
estatal às iniciativas culturais, bem como pela revisão dos critérios de incentivo ao custeio privado
dessas mesmas iniciativas. Em 2020, por exemplo, o orçamento do Poder Executivo Federal prevê
uma redução de 78% na verba destinada ao patrimônio cultural de cidades históricas146. Por outro
lado, a implantação da Lei de Incentivo à Cultura sofreu severas restrições a partir da publicação
da Instrução Normativa nº 2, de 23 de abril de 2019, que limitou os projetos incentivados ao teto
de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), reduzindo o teto do valor anterior, de R$ 60.000.000,00
(sessenta milhões de reais)147.
141
https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/12/12/governo-suspende-nomeacoes-dos-presidentes-da-fundacao-
palmares-e-iphan.ghtml.
142
“E assim nós devemos agir. Como tava discutindo agora. O IPHAN, não é? Tá la vinculado a Cultura. (...) Mas
tinha que ter um outro perfil também. O IPHAN para qualquer obra do Brasil, como para a do Luciano Hang.
Enquanto tá lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô! Para a obra. O que que tem que fazer? Alguém do
IPHAN que resolva o assunto, né? E assim nós temos que proceder.”
143
https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/05/25/interna_politica,1150497/ex-chefe-do-iphan-diz-que-
perdeu-o-cargo-por-pressao-de-flavio-bolsona.shtml.
144
https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/05/12/interna_gerais,1146419/nomeacao-da-nova-presidente-do-
iphan-gera-polemica-e-muitas-criticas.shtml.
145
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/06/justica-suspende-nomeacao-de-presidente-do-iphan.shtml.
146
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/12/bolsonaro-faz-cortes-nas-areas-social-cultural-e-
trabalhista.shtml.
147
https://static.poder360.com.br/2019/04/dou-LeiRouanet.pdf.
145. Toda a cadeia da cultura, que congrega 5,7% dos trabalhadores brasileiros148,
termina por ser vulnerabilizada diante desse cenário de baixo custeio, o qual oferece grave risco
para a divulgação de projetos que não contem com forte apelo econômico e financeiro.
146. A direção destruidora das iniciativas culturais brasileiras ganhou forma ainda mais
alarmante com a nomeação de Roberto Alvim para o cargo de Secretário Especial da Cultura. Em
17 de janeiro de 2020, o então Secretário efetuou discurso transmitido em redes oficiais,
reproduzindo frases do Ministro da Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels149,
evidenciando a pretensão de conferir viés político-ideológico à atuação do Ministério, de forma a
fazê-lo aderir exclusivamente aos valores defendidos pelo atual mandatário, ora Denunciado. Após
a divulgação do vídeo, o Presidente da República não efetuou qualquer censura pública ao
Secretário, que chegou até mesmo a reportar a compreensão do Denunciado no sentido de que
“não houve má intencionalidade”150.
149. A Constituição Federal de 1988 estabelece, no art. 3º, IV, a promoção do “bem de
todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação” como um dos objetivos fundamentais da República. Em seu art. 5º, XLII, enuncia
148
https://biblioo.cartacapital.com.br/setor-cultural-emprega-57-dos-trabalhadores-brasileiros/.
149
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/17/secretario-nacional-da-cultura-roberto-alvim-faz-discurso-sobre-
artes-semelhante-ao-de-ministro-da-propaganda-de-hitler.ghtml.
150
https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/01/17/interna_politica,1115027/roberto-alvim-diz-que-
bolsonaro-nao-viu-ma-intencao-em-citacao-de-nazi.shtml.
que: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de
reclusão, nos termos da lei”.
151
Alterada pela Lei 9459, de 13 de maio de 1997.
152
Essa é a leitura externada por um grupo de organizações de direitos humanos recentemente enviado para a Relatora
Especial sobre formas contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Religiosa,
Tendayi Achiume. https://www.terradedireitos.org.br/noticias/noticias/com-negacao-do-racismo-governo-se-abstem-
da-obrigacao-de-garantir-direitos-fundamentais-a-populacao-negra/23413
153. Ainda no ano de 2017, ganhou ampla repercussão a declaração do então deputado
federal Jair Bolsonaro em evento realizado no Clube Hebraica em que se referiu de modo
discriminatório a quilombolas, indígenas, mulheres, LBGTQIA+ e refugiados, utilizando, para se
referir aos primeiros, termos como “arrobas” e “procriar”, igualando-os a bichos.153 Esse grave
episódio foi o prenúncio do discurso que seria adotado pelo candidato Bolsonaro nas eleições de
2018 e, posteriormente, em pronunciamentos públicos como Presidente da República. A partir das
eleições de 2018, as práticas e os discursos racistas foram intensificadas até alcançar o discurso
oficial da Presidência da República e ser adotado como critério para definir a ocupação de cargos
do governo e para orientar políticas públicas.
153
Afirmou Bolsonaro na ocasião: “"Isso aqui é só reserva indígena, tá faltando quilombolas, que é outra brincadeira.
Eu fui em um quilombola em El Dourado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não
fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais. Mais de um bilhão de reais por ano gastado com
eles. Recebem cesta básica e mais material em implementos agrícolas. Você vai em El Dourado Paulista, você compra
arame farpado, você compra enxada, pá, picareta por metade do preço vendido em outra cidade vizinha. Por que?
Porque eles revendem tudo baratinho lá. Não querem nada com nada”. Degravação da fala do Denunciado constante
no acórdão proferido nos autos do Inquérito nº 4694/DF que tramitou no Supremo Tribunal Federal. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750302384
154
Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/apos-colocar-demarcacoes-na-agricultura-bolsonaro-fala-em-
integrar-indigenas-quilombolas-23340520
155
Disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2019/05/08/interna_internacional,1052188/bolsonaro-afirma-que-
racismo-e-algo-raro-no-brasil.shtml
156
Portaria 2.377/2019, do Ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República.
157
Portaria 2.400/2019, do Ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República.
declarações de Sérgio Camargo158, concluiu que a sua nomeação para o cargo de Presidente da
Fundação Palmares “contraria frontalmente os motivos determinantes para a criação daquela
instituição e a põe em sério risco, uma vez que é possível supor que a nova Presidência, diante
dos pensamento expostos em redes sociais pelo gestor nomeado, possa atuar em perene rota de
colisão com os princípios constitucional da equidade, da valorização do negro e da proteção da
cultura afro-brasileira”159.
157. Ainda em maio do ano corrente, Sérgio Camargo anunciou a preparação de um selo
em que a Fundação Cultural Palmares “certifica que uma pessoa não é racista” a ser conferido à
“vítima de campanha de difamação e execração pública da esquerda”.162
158. As ações recentes da Fundação Cultural Palmares foram alvo de veemente repúdio
por parte da CONAQ, que registrou: “A Fundação Cultural Palmares era patrimônio de toda
sociedade brasileira, mas sobretudo dos quilombos, posto que traduzia, ainda que de forma
precária, compromissos com mais igualdade, direitos e dignidade para a população negra
quilombola”. E denunciou que a instituição “foi usurpada da população para a qual foi criada,
158
Veja-se: “Menciono, a título ilustrativo, declarações do senhor Sérgio Nascimento de Camargo em que se refere
a Angela Davis como "comunista e mocreia assustadora", em que diz nada ter a ver com "a África, seus costumes e
religião", que sugere medalha a "branco que meter um preto militante na cadeia por crime de racismo", que diz que
"é preciso que Mariele morra. Só assim ela deixará de encher o saco", ou que entende que "Se você é africano e acha
que o Brasil é racista, a porta da rua é serventia da casa". Além das acima mencionadas existem diversas outras
publicações que tem o condão de ofender justamente o público que deve ser protegido pela Fundação Palmares, que
não serão mencionadas por desnecessário, ante a suficiência das anteriormente citadas”. Decisão proferida nos autos
da Ação Popular nº 0802019-41.2019.4.05.8103. Disponível em:
https://pje.jfce.jus.br/pjeconsulta/Processo/ConsultaDocumento/popupProcessoDocumento.seam?idBin=17016562&
cid=88503
159
Decisão proferida nos autos da Ação Popular nº 0802019-41.2019.4.05.8103. Disponível em:
https://pje.jfce.jus.br/pjeconsulta/Processo/ConsultaDocumento/popupProcessoDocumento.seam?idBin=17016562&
cid=88503
160
Portaria 41/2020, do Presidente da Fundação Cultural Palmares, disponível em http://www.in.gov.br/web/dou/-
/portaria-n-41-de-20-de-fevereiro-de-2020245207310.
161
Decisão de 29.5/2020 na ação popular 1028357-89.2020.4.01.3400, disponível em
https://pje1g.trf1.jus.br/consultapublica/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/docu
mentoSemLoginHTML.seam?ca=e21da6bd311c345bae6f0b5c9b1aaa5dcc33fad007ad339e329
142ee539dd177ddf0c9729df1cead3cc405f0bf67cde626af86090af13e9b&idProcessoDoc=2365 93418.
162
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/05/29/fundacao-palmares-lanca-selo-para-quem-for-
injustamente-acusado-de-racismo-entidades-reagem.ghtml
desvia e se afasta das importantes e fundamentais atribuições que assumiu desde a sua criação
no ano de 1988, logo após o processo constituinte formal”. A CONAQ bem sintetizou a realidade
da instituição: “Verificamos agora o afastamento da FCP em relação aos interesses dos
quilombos, o que demonstra o nível de racismo e de assalto ao patrimônio do povo perpetuado
pelo governo de Jair Bolsonaro”.163 A entidade, que articula as comunidades quilombolas do
Brasil, relembrou, ainda, que o combate ao racismo, assim como o fortalecimento e consolidação
de políticas públicas para os quilombolas constituem compromisso assumido pelo Estado
brasileiro perante a Assembleia Geral, por meio da Resolução nº 68/237, de 2 de dezembro de
2013, por meio da qual “proclamou-se a Década Internacional de Afrodescendentes, com início
em 1º de janeiro de 2015 e fim em 31 de dezembro de 2024”.164
159. No início de junho de 2020, o jornal Estadão revelou áudios de Camargo nos quais
ele afirma, em reunião com auxiliares, que “Não vai ter nada para terreiro na Palmares, enquanto
eu estiver aqui dentro. Nada. Zero. Macumbeiro não vai ter nem um centavo” Na mesma
oportunidade, classificou o movimento negro como "escória maldita", que abriga "vagabundos",
e chamou Zumbi de Palmares de "filho da puta que escravizava pretos"165. Nova ordem judicial
determinou que a Fundação retirasse da página da instituição artigos com críticas e repúdio a Zumbi.
Segundo juíza, a “instituição federal cuja finalidade é a preservação dos valores resultantes da influência
negra, ao fechar os olhos às diferenças raciais, descumpre seus deveres institucionais e sobretudo seu
dever – como ente estatal – de respeitar o direito à identidade dos cidadãos".166
163
http://conaq.org.br/noticias/nota-de-repudio-5/
164
http://conaq.org.br/noticias/nota-de-repudio-5/
165
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/06/03/educafro-entra-com-representacao-contra-
sergio-camargo-no-mpf.htm?cmpid=copiaecola.
166
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/29/justica-manda-fundacao-palmares-apagar-artigos-com-criticas-
a-zumbi.ghtml
167
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/06/fundacao-palmares-censura-biografias-de-liderancas-negras-
historicas-em-seu-site.shtml.
168
https://twitter.com/sergiodireita1
a Fundação Palmares. Em 13 de dezembro de 2019, Bolsonaro postou em sua conta de twitter “O
afastamento de Sérgio Camargo da Fundação Cultural Palmares de seu por causa de decisão
judicial. Caso nosso recurso seja vitorioso, EU O RECONDUZIREI à Presidência da Fundação”.
Abaixo da postagem, reproduziu vídeo de Sérgio Camargo no qual ele afirma “Claro que tem que
acabar o dia da Consciência Negra do qual a esquerda se apropriou para propagar vitimismo e
ressentimento racial. [...] No que depender de mim a Fundação Palmares não dará suporte algum
a essa data”.169
162. As falas e práticas descritas incorrem no crime tipificado no art. 20, caput, da Lei
nº 7.716/1989: “praticar, induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional”, além de violar outros dispositivos legais. A referência de modo
pejorativo aos praticantes de religião de matriz africana, assim como afirmação de que serão
negados expressamente qualquer tipo de acesso e benefício futuramente requerido configura
flagrante violação ao art. 215, § 1º, da Constituição Federal, que consagra o dever do Estado de
proteger “as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros
grupos participantes do processo civilizatório nacional”.
169
https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1205553080948985856 Publicado em 13 de dezembro de 2019.
170
“Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a constituir a Fundação Cultural Palmares - FCP, vinculada ao
Ministério da Cultura, com sede e foro no distrito Federal, com a finalidade de promover a preservação dos valores
culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira.
Art. 2º A Fundação Cultural Palmares - FCP poderá atuar, em todo o território nacional, diretamente ou mediante
convênios ou contrato com Estados, Municípios e entidades públicas ou privadas, cabendo-lhe:
promoção e preservação da cultura afro-brasileira, além do combate ao racismo e fortalecimento
de políticas públicas voltadas à população negra. Por expressa determinação legal, a Fundação
deve promover ações afirmativas voltada a retirar da invisibilidade a cultura negra, formadora da
identidade nacional, e eliminar as desigualdades históricas e as discriminações raciais, étnicas,
culturais e religiosas do povo.
I - promover e apoiar eventos relacionados com os seus objetivos, inclusive visando à interação cultural, social,
econômica e política do negro no contexto social do país;
II - promover e apoiar o intercâmbio com outros países e com entidades internacionais, através do Ministério das
Relações Exteriores, para a realização de pesquisas, estudos e eventos relativos à história e à cultura dos povos negros.
III - realizar a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, à
delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a correspondente titulação. (Incluído pela
Medida Provisória nº 2.216-37, de 31.8.2001)
Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares - FCP é também parte legítima para promover o registro dos títulos
de propriedade nos respectivos cartórios imobiliários”.
171
Promulgada pelo Decreto Legislativo nº 143, de 20 de julho de 2002, alterado, sucessivamente, pelo Decreto nº
5.501 de 19 de abril de 2004 e Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019.
167. Além de constituir prática criminosa, nos termos do art. 20, da Lei nº 7.716/1989,
as falas e práticas racistas do chefe do Poder Executivo Federal promovem o aumento de
declarações racistas e discriminatórias por parte de outras autoridades públicas no Brasil e tem
forte repercussão na sociedade, perceptível no aumento dos discursos ódio no país, assim como
das ideologias nacionalistas violentas e as ideologias da superioridade racial que incitam à
violência contra os afro descendentes.
169. Nesse contexto, a população negra é forte e diretamente impactada pela subversão
do programa constitucional de combate ao racismo, através do aumento da discriminação,
deslegitimação das políticas públicas, dificuldade no acesso a direitos e incremento da violência
contra a população negra. Segundo dados atualizado, estima-se que “quase três mil pessoas foram
mortas por intervenção da Política Militar em 2019 apenas nesses dois estados (719, em SP, e
1810, no RJ)”, ao mesmo tempo em que “aumentou o número de pessoas desaparecidas, corpos
que nunca foram encontrados”173, a maioria pessoas negras.
170. Diante dessa realidade alarmante, em 2020 a Coalizão Negra por Direitos174
denunciou o Estado brasileiro perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o
Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas pelo genocídio da população
negra. Segundo a entidade, “o genocídio negro não se trata, portanto, apenas das balas diretas
projetas por agentes do Estado contra o povo negro”, mas, “também se sustenta em uma ausência
de políticas públicas que “nos deixam morrer””. A denúncia de genocídio está fundada, portanto,
na “sistêmica exclusão econômica e social que priva negras e negros do devido acesso à saúde,
172
https://www.terradedireitos.org.br/noticias/noticias/com-negacao-do-racismo-governo-se-abstem-da-obrigacao-
de-garantir-direitos-fundamentais-a-populacao-negra/23413
173
https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2020/03/04/coalizao-negra-por-direitos-e-a-denuncia-
internacional-ao-genocidio-negro.htm
174
Articulação nacional que envolve mais de 100 organizações e coletivos negros de todos o país.
educação, trabalho, representatividades e outros aspectos básico que impedem a vida, plena e
sadia” 175.
171. A política pública constitucional quilombola está prevista no artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que estabelece: “aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. O Decreto nº 4.887/2003, por sua
vez, “regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação
e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata
o art. 68”, inserido no arco de competências do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA).
175
https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2020/03/04/coalizao-negra-por-direitos-e-a-denuncia-
internacional-ao-genocidio-negro.htm
176
Atualmente, a política quilombola tem o procedimento previsto no Decreto nº 4.887/2003, delineado pela IN 57,
de 20 de outubro de 2009, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
177
Relatório do Coletivo RPU – Meio Período, com dados da CONAQ e Terra de Direitos.
178
A CONAQ) fundada em 1995, englobando 25 estados, é movimento social de abrangência nacional que tem por
objetivo atuar em defesa dos direitos fundamentais da população negra quilombola. Uma das principais razões de ser
da CONAQ é o combate ao racismo secularmente incrustrado na sociedade e nas instituições brasileira.
Fundação Cultural Palmares registra cerca de 3.500 (três mil e quinhentas) comunidades
quilombolas certificadas em todo o território nacional, revelando um grande número de
comunidades que aguardam a titulação de seus territórios.
179
Informe de Carta 41, de junho de 2017, e a realização da audiência temática sobre “Direito de Acesso à Terra de
Pessoas Afrodescendentes Quilombolas no Brasil”, no 165º Período de Sessões desta E. Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, em Montevidéu, no Uruguai.
180
https://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2018/238OPport.pdf
181
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/06/18/movimento-negro-denuncia-bolsonaro-na-onu-e-
defende-inquerito.htm?cmpid=copiaecola
locais que, para produzir, você não vai produzir, porque não pode ir numa linha reta para
exportar ou para vender, tem que fazer uma curva enorme para desviar de um quilombola, uma
terra indígenas, uma área de proteção ambiental. Estão acabando com o Brasil”.182
182
https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-08/bolsonaro-diz-que-nao-fara-demarcacao-de-terras-
indigenas
183
Relatório do Coletivo RPU – Meio Período, com dados da CONAQ e Terra de Direitos. Pág. 20 e seguintes.
Disponível em: https://iddh.org.br/wp-content/uploads/2019/10/VERS%C3%83O-WEB.pdf Acesso em: 11 jul 2020.
184
Ibidem.
185
Ibidem.
pandemia, unida ao racismo e à dificuldade de a população negra exercer seus direitos, tem
resultado no agravamento de doenças, na maior letalidade frente à COVID-19 e em mais
desemprego e pobreza”. Pesquisadores reunidos em evento sobre os impactos da pandemia de
COVID-19 sobre a população negra no Brasil, realizado pela Associação Brasileira de Estudos
Populacionais (ABEP) e (UNFPA), indicaram que “os obstáculos que as iniquidades, o racismo e
a discriminação impõem à população negra brasileira, a tornando mais vulnerável aos impactos
de saúde, econômicos e sociais da pandemia”.186
183. Levantamento realizado pela Agência Pública, a partir de dados referentes ao mês
de abril, revela uma situação alarmante sobre a desigualdade racial no que tange à letalidade de
Covid-19. No Brasil, “há uma morte a cada três internações de pessoas negras por síndrome
respiratório aguda grave, causada pelo novo coronavírus”, ao passo que, “entre brancos, essa
média é de uma morte a cada 4.4 hospitalizações”.188
186
Disponível em: https://bit.ly/2XMc257
187
https://nacoesunidas.org/covid-19-deve-agravar-situacao-de-saude-pobreza-e-capacidade-de-recuperacao-da-
populacao-negra-no-brasil/
188
A análise foi feita com base em dados do Ministério da Saúde divulgados até 26 de abril. Disponível em:
https://apublica.org/2020/05/em-duas-semanas-numero-de-negros-mortos-por-coronavirus-e-cinco-vezes-maior-no-
brasil/ Acesso em: 11 jul 2020.
condutas pessoais do presidente como dois dos principais agentes promotores da precariedade das
condições de vida da população negra durante a crise da Covid-19189.
189
https://www.newyorker.com/news/news-desk/how-jair-bolsonaro-and-the-coronavirus-put-brazils-systemic-
racism-on-display.
190
O Observatório é uma realização da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas (CONAQ) com o Instituto Socioambiental e a informação sobre os casos quilombolas advém do
monitoramento autônomo desenvolvido pela Conaq junto aos territórios em que atua.
191
https://quilombosemcovid19.org/
192
https://apublica.org/2020/06/nos-quilombos-coronavirus-mata-um-por-dia/
188. Segundo dados do Observatório da Covid-19 nos Quilombos, e os casos de
transmissão da doença em territórios quilombolas são “subnotificados, pois muitas secretarias
municipais deixam de informar quando a transmissão da doença e a morte ocorrem entre pessoas
quilombolas”. Além disso, “tanto as secretarias de saúde como o próprio Ministério da Saúde
têm negligenciado uma atenção específica em relação às comunidades negras. Parte do problema
é a ausência de dados epidemiológicos para populações quilombolas”. Além da subnotificação
de casos, “situações de dificuldades no acesso a exames e denegação de exames a pessoas com
sintomas têm sido relatadas pelas pessoas dos quilombos”193.
193
Fonte: https://quilombosemcovid19.org/
194
Fonte: CONAQ. https://quilombosemcovid19.org/
195
https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/pandemia-de-covid-19-expoe-abandono-do-
estado-com-quilombos
Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República do Brasil, através da qual
determinou a remoção de 800 famílias quilombolas de Alcântara, no Maranhão, para consolidação
do Centro Especial de Alcântara. Para além do desrespeito às diretrizes estabelecidas pela
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, essa medida contraria, de modo flagrante e direto,
a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a consulta prévia,
livre e informada sobre instalação e impactos de projetos em territórios tradicionalmente ocupados.
193. O Estado brasileiro possui uma riqueza pluriétnica que se traduz em mais de 900
mil indígenas, representando 305 povos, falantes de 274 línguas indígenas e ainda 114 registros
de grupos isolados ou de recente contato. Desde 1500 até a década de 1970, a população indígena
brasileira decresceu acentuadamente e muitos povos foram extintos. A partir da década de 1990,
o contingente de brasileiros que se consideravam indígenas cresceu 150%, resultado concreto dos
valores reconhecidos em nossa Carta Constitucional.
196
http://conaq.org.br/noticias/nota-de-repudio-a-resolucao-do-governo-que-ataca-quilombolas-de-alcantara/
197
http://conaq.org.br/noticias/nota-de-repudio-a-resolucao-do-governo-que-ataca-quilombolas-de-alcantara/
atribuição de identificar, delimitar, demarcar e registrar as terras tradicionalmente ocupadas pelos
povos indígenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, pasta ministerial
chefiada pela fazendeira Teresa Cristina, cuja família tem um histórico conflito de terra com os
Terena no Mato Grosso do Sul198. A mesma medida provisória transferiu a Fundação Nacional do
Índio (Funai), do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos,
pasta esta chefiada pela pastora Damares Alves.
195. Neste caso, ficou flagrante o desvio de finalidade ao transferir para o Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento a atribuição para decidir o que será ou não terra de
ocupação tradicional. Não é preciso muito esforço intelectual para concluir que tal transferência
visou nitidamente a acatar reivindicação da classe ruralistas, mas sobretudo, colocar os interesses
privados acima dos interesses coletivos de toda a sociedade brasileira, visto que terra indígena é
bem da União (Art. 20, inciso XI, da Constituição da República). A situação é corroborada, tendo
em vista que é público e notório que a ministra Teresa Cristina é notadamente contra a demarcação
de terras indígenas, sendo assídua militante e representante do agronegócio. Logo, os processos
demarcatórios estariam comprometidos, em flagrante violação aos princípios da impessoalidade e
finalidade, fundamentos da administração pública de acordo com o disposto no art. 37 do texto
constitucional.
196. In casu, pelo conceito alhures mencionado – desvio de poder -, percebe-se como
ardilosa a tarefa de identificação do instituto em comento haja vista que, como bem frisou o
professor Adilson Dallari de Abreu199, “o desvio de poder nunca é confessado, somente se
identifica por meio de um feixe de indícios convergentes, dado que é um ilícito caracterizado por
198
REVISTA FÓRUM. Bolsonaro dá poder aos ruralistas para demarcação de terras indígenas e quilombolas.
Disponível em https://www.revistaforum.com.br/bolsonaro-da-poder-aos-ruralistas-para-demarcacao-de-terras-
indigenas-e-quilombolas/?fbclid=IwAR0gnb87qTQWLYpat6-
oI6a_BMCtdhe3c7Pv0nG9dTSB4wgM8VjBU2PKiNI . Acesso em 10.jun.2020.
199
DALLARI, Adilson Abreu. Desvio do Poder na Anulação do Ato Administrativo. Instituto de Direito Público da
Bahia. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Numero 7 – julho/agosto/setembro, 2006. Disponível em:
http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-7-JULHODESVIO%20DE%20PODER-
ADILSON%20DALLARI.pdf
um disfarce, pelo embuste, pela aparência da legalidade, para encobrir o propósito de atingir a
um fim contrário ao direito, exigindo um especial cuidado por parte do Judiciário”.
198. Pois bem, desde quando assumiu a Presidência da República, Jair Bolsonaro vem
implementando uma política indigenista extremamente nociva aos povos indígenas, nomeando
pessoas para ocupar cargos na Fundação Nacional do Índio (Funai) publicamente contrárias aos
direitos e interesses dos povos indígenas. Uma preocupação importante diz respeito à proteção aos
povos em isolamento voluntário, tendo em vista a recente nomeação de um missionário ligado à
Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), missão proselitista que busca o contato com povos
isolados, para a coordenação da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados
(CGIIRC), departamento da FUNAI responsável pelas políticas para os povos isolados e de recente
contato. Sua nomeação foi indicada pela bancada evangélica201 que apoia o governo de Jair
Bolsonaro, com o claro interesse de que sejam alteradas as diretrizes de não-contato e o respeito
ao isolamento voluntário desses povos atualmente em vigência no órgão202e a abertura de contato
evangelizador impositivo e homogeneizador, caracterizando mais um ato de violência contra a
identidade étnica das comunidades visando sobretudo a sua colocação numa posição subordinada
200
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Pleno. Petição n.º 3.388/ED/RR. Voto-Vista: Ministro Menezes
Direito. DJ 25.09.2009.
201
REPORTER BRASIL. Ex-missionário nomeado para Funai é acusado de manipular indígenas e dividir aldeias.
Disponível em https://reporterbrasil.org.br/2020/02/ex-missionario-nomeado-para-funai-e-acusado-de-manipular-
indigenas-e-dividir-aldeias%EF%BB%BF/. Acesso em 15.jun.2020.
202
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). O que está em jogo com a nomeação de um missionário para a
coordenação de isolados da Funai. Disponível em https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/o-
que-esta-em-jogo-com-a-nomeacao-de-um-missionario-para-a-coordenacao-de-isolados-da-funai. Acesso em
15.jun.2020.
de “selvagens”, à espera do cristianismo civilizador no cenário geral branco e supremacista que
defendem para o país.
199. Paralelamente aos ataques no âmbito institucional da Funai, tem havido assédio de
missionários nas TI’s com presença de isolados, como no Vale do Javari. Desde setembro de 2019
a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA) vem denunciando a atuação de
missionários proselitistas. Naquela ocasião, três missionários, dentre eles Andrew Tonkin – que já
havia tentando invadir a TI em outras ocasiões - realizaram uma expedição em um igarapé onde
vive um povo em isolamento voluntário203. Em um novo comunicado do início de março de 2020,
a UNIVAJA novamente denunciou o aumento do assédio de missionários e a preocupação com a
nomeação de Dias para a CGIIRC, além da compra de um helicóptero pela missão Ethnos360
(novo nome da MNTB) para atuar no contato com povos isolados da TI Vale do Javari204. No final
de março de 2020, lideranças relataram que Andrew Tonkin e Josiah Mcintyre estavam realizando
reuniões na cidade de Atalaia do Norte, aliciando jovens indígenas e comprando equipamentos
para invadirem a TI Vale do Javari em busca de isolados205. Ante a recusa da UNIVAJA em
permitir a entrada dos missionários no território, o pastor Josiash Mcintyre invadiu a associação e
ameaçou colocar fogo na sede206.
203
CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO (CIMI). Univaja divulga nota denunciando invasões, assassinato,
ameaças e proselitismo evangélico no Vale do Javari. Disponível em https://cimi.org.br/2019/09/univaja-divulga-
nota-denunciando-invasoes-assassinato-ameacas-e-proselitismo-evangelico-no-vale-do-javari/. Acesso em
15.jun.2020.
204
UNIVAJA. Aumento do assédio de grupos missionários fundamentalistas no Vale do Javari. Disponível em
https://trabalhoindigenista.org.br/wp-
content/uploads/2020/03/Nota_a%CC%80_Imprensa_Univaja_03._03.2020_asse%CC%81dio_missiona%CC%81ri
o-1.pdf. Acesso em 15.jun.2020.
205
O GLOBO. Missionário americano prepara invasão a terras indígenas com povos isolados na Amazônia, dizem
lideranças. Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/missionario-americano-prepara-invasao-terras-indigenas-
com-povos-isolados-na-amazonia-dizem-liderancas-24325032. Acesso em 15.jun.2020.
206
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Em meio a pandemia, indígenas do Javari denunciam ameaça de
missionários a isolados. Disponível em https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/em-meio-a-
pandemia-indigenas-do-javari-denunciam-ameaca-de-missionarios-a-isolados. Acesso em 15.jun.2020.
expressamente que não fará demarcação de terras indígenas ou quilombolas durante o seu
governo.207
201. Importante consignar que demarcar terra indígena é imperativo constitucional, pois
ao tempo que a Carta Constitucional reconheceu o direito originário dos povos indígenas as terras
tradicionalmente ocupadas (art. 231, CF), impôs prazo de 5 (cinco) anos para a conclusão de todas
as demarcações (art. 67, ADCT). A Constituição de 1988 atribuiu à União a obrigação expressa
de demarcar as terras indígenas, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens. Trata-se de poder-
dever outorgado ao Estado brasileiro, a ser implementado mediante o exercício da competência
administrativa, atividade típica do Poder Executivo Federal. Note-se que a demarcação das terras
indígenas, nos termos impostos pelo texto constitucional, possui conteúdo declaratório, vez que
corresponde ao reconhecimento de direitos originários dos povos indígenas, imprescritíveis,
inalienáveis e indisponíveis, que precedem a própria fundação do Estado brasileiro.
203. A conduta de não demarcar terras indígenas ficou clarividente em atos do Ministro
da Justiça e do Presidente da Funai. Na última semana do mês de janeiro de 2020, o então Ministro
Sérgio Moro, determinou a devolução à Funai dos 17 processos administrativos de demarcação
207
Afirmou Bolsonaro: “Enquanto eu for presidente não tem demarcação de terra indígena. [...] Não pode continuar
assim, [em] 61% do Brasil não pode fazer nada. Tem locais que, para produzir, você não vai produzir, porque não
pode ir numa linha reta para exportar ou para vender, tem que fazer uma curva enorme para desviar de um
quilombola, uma terra indígenas, uma área de proteção ambiental. Estão acabando com o Brasil”.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-08/bolsonaro-diz-que-nao-fara-demarcacao-de-terras-
indigenas
208
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Pet 3388, Rel.: Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em
19/03/2009, publicado no DJe-181 em 25/09/2009 e republicado no DJe-120 em 01/07/2010.
que há muito aguardam a assinatura da Portaria Declaratória, segundo respectivamente o Jornal
do Brasil e a coluna do jornalista Rubens Valente, em matéria no jornal Folha de S. Paulo:
Segundo essa tese jurídica, os indígenas que não estavam em suas terras em
outubro de 1988 (data de promulgação da Constituição) ou que não lutaram
judicialmente por ela não teriam mais direito algum sobre as terras, ainda que
sobre elas existam pareceres antropológicos demonstrando que pertenceram a
seus antepassados.
Com isso, uma série de adiamentos e entraves passou a ocorrer com os processos
de demarcação de terras indígenas tanto na Funai quanto no Ministério da
Justiça.
209
JORNAL DO BRASIL. Moro usa parecer de Temer e trava demarcação de 17 terras indígenas no país. Disponível
em https://www.jb.com.br/pais/politica/2020/01/1021896-moro-usa-parecer-de-temer-e-trava-demarcacao-de-17-
terras-indigenas-no-pais.html. Acesso em 04.02.2020.
Sambaqui (PR); Marú (PA); Pindory/Araçá-Mirim (SP); Guaviraty (SP); Kanela Memortumré
(MA); Cobra Grande (PA); Barra Velha do Monte Pascoal (BA); Tupinambá de Olivença (BA);
Wassú-Cocal (AL); e, Paukalirajausu (MT).
205. Ainda, nas redes sociais é possível perceber a agitação. São frequentes, pelo que se
percebe do perfil de dirigentes e líderes de associações vinculadas ao agronegócio, as reuniões de
pessoas para fazer frente à demarcação das terras indígenas, o que pode culminar em violências de
toda ordem. Essa agitação está se dando em função da decisão do Ministro da Justiça em
determinar que a Funai reveja os casos acima apontados. Veja-se o ofício encaminhado à Funai:
OFÍCIO Nº 2740/2019/SE/MJ
(...)
206. Além disso, Funai vem tomando posição pela desistência de ações de sua
titularidade e abandonando a defesa das comunidades indígenas em várias ações judiciais; e isso é
apenas mais um ato pernicioso, num conjunto maior de atos, que, embasados em orientação da
Advocacia Geral da União (AGU), por meio do Parecer 001/2017/AGU. Assim decidiu o
presidente da Funai quanto a desistência da defesa técnica em autos de ação rescisória com liminar
deferida (autos nº 5037051-44.2019.4.04.0000; Rel. Des. Rogério Favreto, TRF4):
207. Veja-se também, a FUNAI desistiu da defesa em ação que tramita no Supremo
Tribunal Federal (STF), com data de 21 de novembro de 2019, deixando à míngua os interesses
dos povos indígenas e, sobretudo, se omitindo da defesa do patrimônio público federal (art. 20, da
Constituição da República).
208. Note-se que chegamos ao extremo da irracionalidade, pois o Brasil é o único país
do mundo que possui uma agência oficial indigenista do porte institucional da Funai, criada para
a defesa dos direitos indígenas e agora está se negando a defender a sua razão de ser.
209. Ainda no campo da política fundiária, alguns expedientes merecem atenção, tal
como a Medida Provisória n. 910/2019, agora transformada no Projeto de Lei (PL) n. 2633/2020,
em trâmite na Câmara dos Deputados e a Instrução Normativa (IN) n. 9 da Funai.
211. O parágrafo primeiro do art. 1º, da Instrução Normativa n. 09, preceitua que a
“Declaração de Reconhecimento de Limites” (DRL) se destina a fornecer aos proprietários ou
possuidores privados a certificação de que os limites do seu imóvel respeitam os limites das terras
indígenas homologadas, reservas indígenas e terras dominiais indígenas plenamente regularizadas.
Na prática, a Funai mais uma vez fechará seus olhos para as grilagens que ocorrem em relação as
terras indígenas, bastando lembrar que temos pelo menos 246 terras indígenas ainda pendentes de
homologação. Os invasores de TI poderão pedir regularização à Funai e, munidos desse
documento, requerer junto ao Incra, por meio de cadastro autodeclaratório, a legalização dessas
áreas invadidas.
212. Neste contexto, preocupa a situação vulnerável dos povos indígenas isolados.
Atualmente existem 114 registros de povos isolados considerados pela Funai. Destes, apenas 28
são confirmados, de acordo com a metodologia do órgão, em 17 Terras Indígenas e 3 áreas com
Restrição de Uso. O restante, 86 registros, estão em fase de qualificação. Os registros ainda não
estão confirmados e principalmente aqueles localizados fora de áreas protegidas, configuram assim
um grande passivo de estudos e pesquisas do órgão indigenista oficial (Funai) e um entrave para a
efetivação da política de proteção aos isolados no Brasil. Esse passivo no reconhecimento da plena
existência desses povos, principalmente em áreas não demarcadas, leva ao risco de genocídio
desses povos, uma vez que seus territórios ficam à mercê de invasores e empreendimentos que
causam tanto violência direta quanto risco de contágio por doenças infecciosas.
215. Vale lembrar que a MP entrou em vigor em dezembro de 2019, ano marcado pela
alta do desmatamento em terras públicas federais não concedidas. Segundo o do Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (INPE), de agosto de 2018 a julho de 2019, o desmatamento nessas áreas
foi 61% maior em relação ao mesmo período do ano anterior e atingiu cerca de 2,5 mil km². No
mesmo período, terras públicas representaram 36% do desmatamento total do país, segundo
análise do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Em 2020, quase 800 km2 de
floresta foram derrubados nos três primeiros meses, um aumento de 51% em relação ao mesmo
período em 2019. Um terço da devastação ocorreu em terras públicas, alvo preferencial dos
grileiros.
210
CLIMATE POLICY INITIATIVE. Medida provisória recompensa atividades criminosas. Análises da MP
910/2019 que altera o marco legal da regularização fundiária de ocupações em terras públicas federais. Disponível
em https://climatepolicyinitiative.org/wp-content/uploads/2020/02/NT-MP-910.pdf. Acesso em 15.jun.2020.
de grilagem e desmatamento ilegal, (ii) promovem o desalinhamento das políticas fundiária e
ambiental; e (iii) beneficiam médios e grandes produtores rurais em detrimento de agricultores
familiares, povos indígenas e comunidades tradicionais.
211
IMAZON. Nota Técnica sobre o segundo relatório do Senador Irajá Abreu referente à Medida Provisória (MP)
n.º 910/2019. Disponível em https://k6f2r3a6.stackpathcdn.com/wp-
content/uploads/2020/03/Nota_Tecnica_MP910_2019_Imazon.pdf Acesso em 15.jun.2020.
212
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF). Nota Técnica n. 8/2020/PFDC/MPF, de 13 de abril de 2020. Tema:
Medida Provisória nº 910, de 10 de dezembro de 2019 (Regularização fundiária deocupações incidentes em terras
situadas em áreas da União ou do Instituto Nacional de Colonziaçãoe Reforma Agrária). Disponível e
http://www.mpf.mp.br/pfdc/manifestacoes-pfdc/notas-tecnicas/nota-tecnica-8-2020-pfdc-mpf. Acesso em
17.jun.2020.
213
TERRA DE DIREITOS. 7 razões para não aprovar a MP da Grilagem. Disponível em
https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/7-razoes-para-nao-aprovar-a-mp-da-grilagem/23306. Acesso em
15.jun.2020.
aquelas que ainda não têm limites geográficos definidos no processo de demarcação administrativo
- estão abertas para regularização por terceiros.
221. Por fim, no contexto de pandemia do Covid-19, os povos indígenas estão entregues
à própria sorte – o genocídio já está ocorrendo. Nos últimos meses, temos acompanhado com
preocupação o avanço da pandemia sobre as comunidades indígenas. Segundo dados do Comitê
Nacional pela Vida e Memória Indígena214, atualizados em 11 de julho de 2020, o país registrava
469 indígenas falecidos, 13.683 infectados e 128 povos atingidos pelo vírus. Os estados com maior
número de casos de mortes são Amazonas, Pará, Roraima, Pernambuco e Ceará.
214
O Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena foi criado pela APIB ao final da Assembleia Nacional da
Resistência Indígena, realizado entre os dias 08 e 09 de maio de 2020. O grupo reúne ativistas e comunicadores
indígenas que coletam diariamente dados das organizações locais e comunidades indígenas sobre o avanço da
pandemia nas terras indígenas e indígenas que estão fora de seus territórios.
222. Nota-se que o vírus se alastrou de forma rápida entre os indígenas. Com base nos
dados da APIB, denota-se que o índice de letalidade entre os povos indígenas é de 9,6%, enquanto
entre a população brasileira geral é de 5,6%.
223. Diversos estudos confirmam que os “povos indígenas são mais vulneráveis a
epidemias em função de condições sociais, econômicas e de saúde piores do que as dos não
indígenas, o que amplifica o potencial de disseminação de doenças”.215 E a experiência histórica
confirma a baixa imunidade dos povos indígenas a doenças dos brancos, é o caso dos efeitos da
“gripe espanhola” sobre os indígenas da Amazônia no início do século XX ou das doenças
disseminadas pelos brancos durante a ditadura militar instalada no país em 1964.216
224. Vale ressaltar que a transmissão de doenças foi uma estratégia usada, em diferentes
momentos da história, para dizimar etnias. Segundo a pesquisadora Manuela Carneiro da Cunha,
“as cruéis estratégias coloniais de dominação aliadas à baixa imunidade dos povos indígenas a
doenças como varíola, sarampo, tuberculose e gripe, custaram a vida de milhões de indígenas,
com a dizimação de inúmeros grupos”217
215
https://covid19.socioambiental.org/
216
Cf. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Vol. II. Texto 5. Violações de Direitos Humanos
dos Povos Indígenas.
217
Cf. Manuela Carneiro da Cunha. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Editora Claro Enigma,
2012, p. 14-15. In: Petição Inicial da ADP 709 proposta pela Apib.
218
Nota Técnica disponível em: https://drive.google.com/file/d/1H596_oDmOGf4mOTziHGIrbYM17PdycVj/view
Acesso em 09 jun 2020.
lidar com a crescente fragilização das políticas públicas de saúde e proteção
territorial.
227. Nesse sentido, a pandemia expôs as fragilidades que as equipes de atenção primária
à saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS) e, mais intensamente, as do Subsistema de
Atenção à Saúde Indígena (SASISUS) enfrentam cotidianamente há anos, como: falta de
infraestrutura adequada; insuficiência de equipamentos de proteção individual (EPI); reduzido
estoque de insumos e medicamentos; alta rotatividade de profissionais; dificuldades de garantir
formação adequada e implementar educação permanente com as equipes; problemas de
integração com a rede de saúde; e a situação de precariedade e insalubridade das Casas de Saúde
do Índio (CASAI).
228. A realidade das áreas remotas e dos DSEI mais interiorizados conta ainda com
outras dificuldades como: restrições de comunicação (algumas áreas têm comunicação
exclusivamente via rádio); dificuldade de acesso e dificuldades logísticas decorrente do isolamento
geográfico (alguns DSEI têm acesso apenas por via fluvial ou aérea); além da complexidade do
cuidado de populações indígenas no contexto intercultural.
230. A presença de invasores nas terras indígenas com presença de indígenas isolados
aponta para o risco concreto de genocídio neste contexto de pandemia. No atual governo, várias
situações colocam em risco a política do não-contato. Desde a eleição de Jair Bolsonaro à
presidência do país, houve o aumento acelerado do desmatamento na Amazônia brasileira,
inclusive nas terras indígenas. Conforme dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(INPE)219, o desmatamento na Amazônia Legal em 2019 aumentou 30% em relação a 2018. O
levantamento do INPE apontou as terras mais desmatadas, sendo: Ituna/Itatá (Pará), Apyterewa
(Pará), Cachoeira Seca (Pará), Trincheira Bacajá (Pará), Kayapó (Pará), Munduruku (Amazonas e
Pará), Karipuna (Rondônia), Uru-Eu-Wau-Wau (Rondônia), Manoki (Mato Grosso), Yanomami
(Roraima e Amazonas), Menkü (Mato Grosso), Zoró (Mato Grosso) e Sete de Setembro (Rondônia
e Mato Grosso).
231. Nota-se que dentre essas, Ituna/Itatá (restrição de uso), Munduruku (homologada),
Kayapó (homologada) e Zoró (homologada) possuem referências de povos em isolamento
voluntário em estudo pela Funai, enquanto Uru-Eu-Wau-Wau (homologada) e Yanomami
(homologada) possuem povos isolados confirmados, totalizando 10 registros220. O movimento
indígena tem sistematicamente denunciando a situação da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau que
vem sofrendo com invasões por grileiros e madeireiros ilegais, assim como a TI Araribóia, no
Maranhão, que abriga o povo isolado Awá-Guajá. Em ambas, os próprios indígenas se
organizaram para fazer a vigilância proteção do território e denunciar a invasão e extração de
madeira nas Terras Indígenas, o que acirrou os conflitos com os invasores. Essas tensões
resultaram, somente nos últimos seis meses, no assassinato de três membros dos grupos de
proteção indígenas e lideranças: Ari Uru-Eu-Wau-Wau, em 18 de abril de 2020, Paulinho
Guajarara, em 1º de novembro de 2019 e Zezico Guajajara, em 31 de março de 2020221.
219
INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPECIAIS (INPE). A estimativa da taxa de desmatamento por corte
raso para a Amazônia Legal em 2019 é de 9.762 km². Disponível em
http://www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_Noticia=5294, acesso em 15.jun.2020.
220
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Relatório do ISA denuncia na ONU risco elevado de genocídio de povos
indígenas isolados. Disponível em https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/relatorio-do-isa-
denuncia-na-onu-risco-elevado-de-genocidio-de-povos-indigenas-isolados. Acesso em 15.jun.2020.
221
EL PAÍS. Assassinato de líder Guajajara abala comunidade indígena e Moro garante que PF vai investigar.
Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/02/politica/1572726281_632337.html. Acesso em
15.jun.2020.
222
BBC NEWS BRASIL. Em meio à covid-19, garimpo avança e se aproxima de índios isolados em Roraima.
Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52225713. Acesso em 15.jun.2020.
no contexto da pandemia, estudos tem mostrado alta contaminação por mercúrio nas zonas
invadidas223.
234. A TI Ituna/Itatá está sob Restrição de Uso para o estudo da presença de indígenas
isolados. Em 2019 registrou aumento de 656% no desmatamento em relação a 2018 pela invasão
sistemática de posseiros e grileiros. A TI é hoje alvo de um forte lobby de políticos locais e do
senador pelo estado do Pará, Zequinha Marinho. Desde o ano passado, quando a área teve sua
portaria de interdição renovada, o senador vem tentando deslegitimar a presença de indígenas
isolados na TI e liberar a exploração da área por particulares, tendo chegado inclusive a propor um
projeto de decreto legislativo propondo o fim da interdição224. Em uma fiscalização do Ibama,
realizada em agosto de 2019, com apoio da Polícia Federal e Força Nacional, realizada em um
garimpo nas proximidades da TI, os agentes foram recebidos a tiros225 e houve a queima de
máquinas dos garimpeiros ilegais.
223
FIOCRUZ. Contaminação por mercúrio se alastra na população Yanomami. Disponível em
http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/46979. Acesso em 15.jun.2020.
224
SENADO FEDERAL. Zequinha Marinho nega existência de índios isolados em área protegida no Pará.
Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/09/03/zequinha-marinho-nega-existencia-de-
indios-isolados-em-area-protegida-no-para. Acesso em 15.jun.2020.
225
TERRA. Equipe do Ibama é alvo de tiros em operação perto de área indígena no Pará. Disponível em
https://www.terra.com.br/noticias/brasil/equipe-do-ibama-e-alvo-de-tiros-em-operacao-perto-de-area-indigena-no-
para,3692e3c2f218d2ae9513007d3074d8d2vsxrj125.html. Acesso em 15.jun.2020.
226
G1 NOTÍCIAS. Agentes do Ibama conseguem retornar de operação no PA, após serem bloqueados por população.
Disponível em https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2020/01/16/agentes-do-ibama-conseguem-retornar-de-operacao-
no-pa-apos-serem-bloqueados-por-populacao.ghtml. Acesso em 15.jun.2020.
da TI Ituna/Itata em fevereiro de 2020, o senador tentou articular a paralização da fiscalização no
Ministério do Meio Ambiente227.
236. No início de março de 2020, o IBAMA lançou outra série de ações de fiscalização
em terras indígenas nas proximidades da TI Ituna/Itata. A ação visou reprimir a invasão das TIs
Apyterewa, Trincheira-Bacaja e Arawaté por garimpeiros e posseiros para impedir o contágio dos
indígenas pelo Covid-19. A operação, que novamente queimou e inutilizou maquinários dos
invasores, teve grande cobertura midiática e, na semana seguinte, o diretor de Proteção Ambiental
do órgão, em Brasília, Olivaldi Borges Azevedo, foi exonerado do cargo e outros servidores em
cargos de chefia também estão sendo pressionados228. Tal posicionamento do governo federal, de
coibir as ações de fiscalização e as constantes declarações de Jair Bolsonaro contrárias às
demarcações de terras indígenas, vem criando uma enorme pressão nestes territórios pela grilagem
e ocupação de posseiros que esperam legalizar as áreas invadidas229.
237. Desde início da pandemia, o elevado risco que o novo coronavírus representa para
os povos indígenas, assim como o severo impacto sobre a saúde dos povos, vem sendo Denunciado
pela comunidades indígenas, entidades indigenistas e por algumas instituições.
238. A omissão da União Federal levou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil a
ajuizar, com apoio de seis partidos políticos, uma Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental, sob o fundamento de que “o Estado brasileiro vem falhando gravemente no seu
dever de proteger a saúde dos povos indígenas diante da COVID-19, gerando o risco de
extermínio de muitos grupos étnicos”. e de que “o Estado vem se omitindo intencionalmente no
seu dever de proteger esses territórios indígenas – inclusive aqueles em que vivem povos isolados
ou de recente contato –, abstendo-se de impedir e de reprimir invasões, que tantos riscos
227
G1 NOTÍCIAS. Antropólogo tenta impedir ação do Ibama em terra indígena e é detido. Disponível em
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/02/17/antropologo-tenta-impedir-acao-do-ibama-em-terra-
indigena-e-e-detido.ghtml. Acesso em 15.jun.2020.
228
UOL NOTÍCIAS. Diretor do Ibama é exonerado após operação contra garimpos ilegais. Disponível em
https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/04/14/ibama-conoravirus-crise.htm?cmpid=copiaecola.
Acesso em 15.jun.2020.
229
G1 NOTÍCIAS. Áudios e vídeos revelam detalhes de esquema de grilagem dentro de terras indígenas. Disponível
em https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/04/19/audios-e-videos-revelam-detalhes-de-esquema-de-grilagem-
dentro-de-terras-indigenas.ghtml. Acesso em 15.jun.2020.
ocasionam”. Além das omissões, indica a APIB que, “muitas vezes, é o Estado que causa
ativamente a disseminação do vírus entre povos indígenas”.230
239. Como fundamento da ADPF nº 709, são enumeradas uma série de manifestações
de instituições nacionais e de organismos internacionais que corroboram o descumprimento por
parte do Estado brasileiro de suas obrigações para com os povos indígenas. Colaciona-se excerto
da petição:
230
Petição inicial da ADPF nº 709. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoi
ncidente=5952986 Acesso em: 9 jun 2020.
15. A Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos
(OEA), por sua vez, emitiu comunicado aos Estados-membros,
instando-os a prestarem especial atenção às populações indígenas
durante a crise de saúde causada pelo COVID-19. Devido à dupla
situação de vulnerabilidade das comunidades indígenas, resultantes
de sua marginalização histórica e do seu isolamento geográfico, “as
autoridades locais, regionais e nacionais de cada Estado Membro a
trabalhar em coordenação com protocolos específicos que visam
garantir a saúde e o bem-estar de sua população indígena desde uma
perspectiva intercultural, conforme contemplado na Declaração dos
Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas, aprovada em 2007,
e na Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas da
Organização dos Estados Americanos, aprovado em 2016”.
[...]
“Não entro nessa balela de defender terra pra índio”; “[reservas indígenas]
sufocam o agronegócio” (Campo Grande News, 22.04.2015)[4]; “Em 2019
vamos desmarcar [a reserva indígena] Raposa Serra do Sol. Vamos dar fuzil e
armas a todos os fazendeiros” (No Congresso, 21.01.2016)[5]; “Se eu assumir
[a Presidência do Brasil] não terá mais um centímetro quadrado para terra
indígena” (Dourados, Mato Grosso do Sul, 08.02.2018)[6]; “Reservas indígenas
inviabilizam a Amazônia” (Revista Exame, 13.02.2020)[7].
242. O Ministro registra ser esse o contexto “em que se insere a presente discussão e que reforça
o dever de cuidado por parte do Tribunal quanto a tais povos”. O recurso ao poder judiciário se
dá em um cenário em que o Presidente da República se pronuncia pública e expressamente aos
direitos dos povos indígenas, consagrados na Constituição Federal e em Tratados Internacionais
de proteção dos Direitos Humanos.
243. Jair Bolsonaro nunca negou o seu desprezo pelos direitos sociais, bem como pelo sistema
protetivo do trabalho constitucionalmente estabelecido e garantido. Desde a época da campanha
eleitoral, Jair Bolsonaro defende o voto dado na qualidade de deputado federal a favor da Reforma
231
Decisão monocrática proferida em 8 de julho de 2020. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoi
ncidente=5952986
Trabalhista de 2017, apesar das consequências de agravamento da desigualdade social e perda da
dignidade de quem trabalha. Em matéria publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, o então candidato
à Presidência da República justificava sua posição referindo-se a frase que, segundo ele, ouvia de
empresários brasileiros: “um dia o trabalhador vai ter que decidir: menos direito e emprego ou
todos os direitos e desemprego”.232
244. Ao longo de quase dois anos de governo, essa visão do mundo do trabalho
não só é repetida pela Presidência da República e seus ministros233, como também é posta em
prática por meio de medidas provisórias de constitucionalidade duvidosa. E essa racionalidade que
norteia as ações do atual governo é perseguida, e muitas vezes implementada, inclusive durante a
pandemia, conforme explicitaremos a seguir.
Não adianta você ter direito e não ter emprego, não ter trabalho."234
"Qual país do mundo que tem (a Justiça do Trabalho)? Ela tem que
ser a justiça comum. Poderíamos fazer, está sendo estudado.
Havendo o clima, nós podemos discutir essa proposta e mandar para
frente."
232
Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/10/candidatos-a-presidencia-querem-alterar-
reforma-trabalhista-de-temer.shtml>.
233
Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/politica/os-trabalhadores-querem-menos-direitos-e-mais-
trabalho-diz-bolsonaro/>.
234
Disponível em: < https://www.sbt.com.br/jornalismo/sbt-noticias/noticia/119459-bolsonaro-afirma-que-pode-
acabar-com-justica-do-trabalho-e-propoe-idade-minima-para-aposentadoria>.
chefiado por Michel Temer, trouxe um elemento novo e corrosivo para o equilíbrio das relações
trabalhistas e para o respeito ao Direito Constitucional do Trabalho: o esvaziamento e a implosão
de instituições responsáveis pela fiscalização de condições de trabalho e promoção do
cumprimento dos direitos sociais.
248. Esta foi a primeira vez, desde sua criação em 1930, que deixou de existir a
pasta específica para cuidar das relações de trabalho. A simbologia desta Medida Provisória é
reforçada por outras circunstâncias da época: atribuição da competência relativa ao registro
sindical para o Ministério da Justiça e Segurança Pública, remetendo ao tempo em que as questões
sociais eram “caso de polícia”; e nomeação do relator da Reforma Trabalhista, Rogério Marinho,
como Secretário Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia.
235
Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2020/01/14/extincao-do-ministerio-do-trabalho-o-que-mudou-
apos-um-ano>.
antes de qualquer autuação e a tentativa de conversão do trabalho dos fiscais do trabalho em
atividade meramente orientadora, sem poder sancionador (Medidas Provisórias 905 e 927).
“Porta da esquerda: Carta del Lavoro, Justiça Trabalhista, sindicato, você tem proteção, você tem
tudo, as empresas têm que pagar, mas quase não tem emprego. É o sistema atual. Porta da direita:
novo regime trabalhista e previdenciário, não tem nada disso, se seu patrão fizer alguma besteira
como você e te tratar mal, vai pra justiça comum, é privado, privado, privado.”
236
Disponível em <https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html>
237
Disponível em <https://oglobo.globo.com/economia/reforma-da-previdencia-devera-mudar-regras-trabalhistas-
para-jovens-23431614>
253. Tal raciocínio, depois, será plasmado na Medida Provisória nº 905, de
novembro de 2019, quando o governo criou o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo para,
supostamente, fomentar o primeiro emprego.
"Trabalhei desde os 8 anos de idade plantando milho, colhendo banana, com caixa de banana nas
costas com 10 anos de idade e estudava. E hoje sou quem sou. Isso não é demagogia. Isso é
verdade."
“No dia anterior, durante uma ‘live’ em uma rede social, o presidente havia falado do assunto
espontaneamente. ‘O trabalho dignifica o homem, a mulher, não importa a idade’, afirmou na
transmissão ao vivo.
Tanto na entrevista desta sexta quanto na ‘live’ de quinta, o presidente disse não defender o trabalho
infantil e afirmou que não enviará nenhuma proposta ao Congresso com essa finalidade. Ele
afirmou na ‘live’ que, se fizesse isso, ‘seria massacrado’.
238
Disponível em: < https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/05/bolsonaro-diz-nao-defender-trabalho-infantil-
mas-ressalva-que-trabalho-enobrece-todo-mundo.ghtml>.
‘Trabalhar enobrece, tá? Não estou defendendo o trabalho infantil, muito menos escravo. Mas me
fez muito bem trabalhar e me transformou até fisicamente muito bem."
239
Disponível em: < https://sinait.org.br/mobile/default/noticia-
view?id=17687%2Fsinait+apresenta+estudo+dos+impactos+da+configuracao+ministerial+atual+sobre+a+fiscalizac
ao+do+trabalho >
primeiro emprego” e causando novos prejuízo à classe trabalhadora. Dentre as principais
alterações, há de se destacar: a) precarização do trabalho dos mais jovens, que terão menos direitos
trabalhistas; b) liberação do trabalho aos domingos no comércio e na indústria e aumento da
jornada de trabalho e liberação de trabalho aos sábados de bancários e bancárias; c) transformação
da gorjeta em salário; d) redução dos juros referentes a condenações trabalhistas; e) modificações
na PLR, com a exclusão dos sindicatos da comissão de empregados e possibilidade de acordo
individual com empregados que ganhem mais do que o dobro do teto do INSS; f) multa de R$ 1
mil a R$ 100 mil para os associados de sindicatos que deixarem de votar nas eleições sindicais
sem justificativa; g) cobrança de 7,5% de alíquota para o INSS do valor do seguro-desemprego;
h) redução do adicional de periculosidade, de 30% para 5%; i) revogação de mais de 30
dispositivos da CLT, dentre outros.
265. No dia 23 de março de 2020, foi publicada a Medida Provisória nº 927, que
dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública
reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. Embora a conjuntura de crise
sanitária recomendasse a adoção de medidas protetivas do emprego, da renda e dos negócios, para
240
“Art. 157 - A legislação do trabalho e a da previdência social obedecerão nos seguintes preceitos, além de outros
que visem a melhoria da condição dos trabalhadores:
II - proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado
civil; (...) IV - participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa, nos termos e pela forma que a
lei determinar; (...) VI - repouso semanal remunerado, preferentemente aos domingos e, no limite das exigências
técnicas das empresas, nos feriados civis e religiosos, de acordo com a tradição local;
(...) XVII - obrigatoriedade da instituição do seguro pelo empregador contra os acidentes do trabalho.”
criar condições de combate ao vírus e estabelecer patamares mínimos necessários ao crescimento
econômico pós-pandemia, a linha de conduta da Presidência da República permaneceu intocada.
Menos direitos para quem trabalha, mais facilidade e benefícios econômicos para empregadores.
Aliás, a essa visão, somou-se a negação da própria Covid-19 e conclamação do povo às ruas com
o slogan “o Brasil não pode parar”241.
241
Disponível em: < https://istoe.com.br/em-meio-a-pandemia-governo-cria-acao-brasil-nao-pode-parar/>.
<https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/---protrav/---
safework/documents/instructionalmaterial/wcms_745541.pdf>.
242
Disponível em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---
dcomm/documents/briefingnote/wcms_740981.pdf >.
- Não concede nenhuma garantia, seja de proteção à saúde (a mais
importante), seja pecuniária, aos trabalhadores do serviço de saúde,
instituindo somente regras para intensificar suas jornadas de trabalho e
ampliar as hipóteses de posterior compensação ou pagamento.
267. O texto original da MP, publicado em 23 de março, previa, no art. 18, que o
empregador também poderia suspender o contrato de trabalho, sem pagamento de salários, por até
4 meses, para o empregado participar de curso de qualificação não presencial, por acordo
individual. A medida flexibilizava a previsão do art. 476 da CLT, possibilitando o
empregador conceder ajuda compensatória com valor definido livremente entre as partes. O artigo
foi revogado na noite do dia 23, pela MP nº 928/2020, de tão absurdo e prejudicial às trabalhadoras
e aos trabalhadores neste momento de crise sanitária.
269. O art. 29 previa que os casos de contaminação pelo coronavírus não seriam
considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal. Ou seja, a vítima de
moléstia nessas condições teria que, paradoxal e absurdamente, fazer a desafiadora comprovação
do nexo de causalidade entre a atividade desenvolvida e a contaminação pelo coronavírus. Nem
mesmo as pessoas que trabalham na área da saúde e são responsáveis pelo combate efetivo do
coronavírus e pelo cuidado de quem adoeceu foram poupadas. A caracterização da Covid-19 como
doença profissional ou do trabalho é de fundamental importância para trabalhadores e
trabalhadoras, já que garante a obtenção do auxílio-doença acidentário e a garantia de emprego
por 12 meses, assim como possibilita que o trabalhador possa ser indenizado pela empresa em caso
de lesão permanente ou morte decorrente da doença adquirida no ambiente de trabalho.
278. Por fim, mas não menos importante, no campo trabalhista, é imprescindível
chamar a atenção para o desrespeito de Jair Bolsonaro a órgão por ele mesmo criado, em 4 de
outubro de 2019, o denominado Conselho Nacional do Trabalho.247 Depois de sua criação, o
Conselho Nacional do Trabalho não foi consultado sobre nenhuma das propostas e medidas
provisórias do governo sobre relações do trabalho. O Conselho foi criado exatamente para
estimular os debates tripartites entre governo, representantes dos trabalhadores e representantes
dos empregadores em assuntos relacionados ao trabalho. O diálogo tripartite, inclusive, é
compromisso assumido pelo Brasil ao ratificar a Convenção nº 144 da Organização Internacional
do Trabalho248. Ou de fato o Conselho serve como órgão consultivo, ou não tem nenhuma função.
A MP nº 905, de novembro de 2019, e as MPs nºs 927 e 936, de 2020, não foram discutidas no
âmbito do CNT e, assim, constituem exemplos práticos de um governo que não realiza efetivo
diálogo social. Mais de uma vez as Centrais Sindicais reivindicaram uma participação efetiva na
243
Disponível em: < https://www.camara.leg.br/radio/programas/401222-jair-bolsonaro-e-contra-aprovacao-da-pec-
das-domesticas/> .
244
Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/entry/guedes-empregada-
disney_br_5e448759c5b671eafe1e44d8>
245
Disponível em: < https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-12/ipea-trabalho-domestico-e-exercido-
por-mulheres-mais-velhas >.
246
Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51982465> .
247
Portaria nº 1.097/19.
248
“Art. 2 — 1. Todo Membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente Convenção
compromete-se a pôr em prática procedimentos que assegurem consultas efetivas, entre os representantes do Governo,
dos empregadores e dos trabalhadores (...).”
elaboração de medidas relativas ao mundo do trabalho, especialmente no contexto da pandemia.
O governo, porém, limita-se a utilizá-las para forjar um arremedo de diálogo. Em contrapartida,
Jair Bolsonaro reúne-se com empresários e chega até mesmo a visitar o Supremo Tribunal Federal
para pressionar para a retomada das atividades nas empresas e flexibilização na reabertura do
comércio.249
279. Nessa mesma linha, aliás, pode-se mencionar o Decreto nº 9.759/2019, que
extinguiu todos os colegiados da Administração Pública federal, entre conselhos, comitês,
comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns e salas, organizações que foram criadas por
decreto ou ato normativo inferior e que faziam parte das estruturas de participação social na gestão
estatal e, em sua maioria, com natureza consultiva. O Decreto desconsiderou e ignorou que os
conselhos são forma de efetivação da democracia brasileira, pela qual se possibilitava o diálogo
permanente entre o governo e os diversos grupos organizados da sociedade civil, onde era
desenvolvido um trabalho relevante na melhoria, fiscalização e gestão de políticas públicas. O
Supremo Tribunal Federal, não obstante, instado a analisar a constitucionalidade da norma,
suspendeu trecho do Decreto referente à extinção dos colegiados previstos em lei. Essa medida
segue o tom do projeto político de Jair Bolsonaro, que desconsidera por completo o diálogo social.
281. De início, o processo de edição das MPs não promoveu a consulta tripartite
para as normas do trabalho, violando, dessa maneira, o princípio do tripartismo disposto na
Convenção nº 144 da OIT (aprovada pelo Decreto Legislativo nº 6, de 01/06/89, e promulgada
pelo Decreto nº 2.518, de 12/03/98, substituído pelo Decreto nº 10.088/19), que versa sobre a
necessidade do diálogo entre as “organizações representativas”, compreendidas como sendo o
governo, os representantes dos empregadores e dos trabalhadores, com o objetivo de se alcançar
249
Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-05/bolsonaro-vai-com-empresarios-ao-stf-
para-pedir-retomada-da-economia >
justiça social em prol do trabalho digno para todas as pessoas, objetivo este que é central em um
Estado Democrático de Direito.
282. As MPs foram editadas de forma unilateral pelo Poder Executivo brasileiro,
sem que tenha havido qualquer participação dos demais atores, o que reforça ainda a sua
fragilidade e insuficiência para lidar com a situação de urgência. Fato que ilustra bem a situação
foi a revogação do art. 18 do texto original da MP, que regulamentava a suspenção para
qualificação, sem salários, por meio de outra medida provisória, a MP nº 928/2020, no mesmo dia
de sua publicação, como citado acima.
ARTIGO 1º
Na presente Convenção, a expressão "organizações representativas" significa as
organizações mais representativas de empregadores e trabalhadores, que gozem do
direito de liberdade sindical.
ARTIGO 2º
1. Todo Membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente
Convenção compromete-se a pôr em prática procedimentos que assegurem
consultas efetivas, entre os representantes do Governo, dos Empregadores e dos
trabalhadores, sobre os assuntos relacionados com as atividades da Organização
Internacional do Trabalho a que se refere o Artigo 5, parágrafo 1, adiante.
2. A natureza e a forma dos procedimentos a que se refere o parágrafo 1 deste artigo
deverão ser determinados em cada país de acordo com a prática nacional, depois
de ter consultado as organizações representativas, sempre que tais organizações
existam e onde tais procedimentos ainda não tenham sido estabelecidos.
ARTIGO 3º
1. Os representantes dos empregadores e dos trabalhadores, para efeito dos
procedimentos previsto na presente Convenção, serão eleitos livremente por suas
organizações representativas, sempre que tias organizações existam.
2. Os empregadores e os trabalhadores estarão representados em pé de igualdade
em qualquer organismo mediante o qual sejam levadas a cabo as consultas.
ARTIGO 5º
1. O objetivo dos procedimentos previstos na presente Convenção será o de
celebrar consultas sobre:
a) as respostas dos Governos aos questionários relativos aos pontos incluídos na
ordem do dia da Conferência Internacional do Trabalho e os comentários dos
Governos sobre os projetos de texto a serem discutidos na Conferência.
b) a propostas que devam ser apresentadas à autoridades competentes relativas à
obediência às convenções e recomendações, em conformidade com o artigo 19 da
Constituição da Organização Internacional do Trabalho.
c) o reexame, dentro de intervalos apropriados, de convenções não ratificadas e de
recomendações que ainda não tenha efeito, para estudar que medidas poderiam
tomar-se para colocá-las em prática e promover sua ratificação eventual;
d) as questões que possam levantar as memórias que forem comunicadas à
Secretaria Internacional do Trabalho em virtude do artigo 22 da Constituição da
Organização Internacional do Trabalho.
e) as propostas de denúncia de convenções ratificadas.”
Art. 4 — Deverão ser tomadas, se necessário for, medidas apropriadas às condições nacionais, para
fomentar e promover o pleno desenvolvimento e utilização dos meios de negociação voluntária
entre empregadores ou organizações de empregadores e organizações de trabalhadores com o
objetivo de regular, por meio de convenções, os termos e condições de emprego.
Art. 2 — Para efeito da presente Convenção, a expressão ‘negociação coletiva’ compreende todas
as negociações que tenham lugar entre, de uma parte, um empregador, um grupo de empregadores
ou uma organização ou várias organizações de empregadores, e, de outra parte, uma ou várias
organizações de trabalhadores, com fim de:
a) fixar as condições de trabalho e emprego; ou
b) regular as relações entre empregadores e trabalhadores; ou
c) regular as relações entre os empregadores ou suas organizações e uma ou várias organizações de
trabalhadores, ou alcançar todos estes objetivos de uma só vez.”
287. Sobre este ponto, vale lembrar que o Brasil segue Denunciado na OIT em
relação à Reforma Trabalhista exatamente pela ausência de diálogo tripartite e enfraquecimento
das negociações coletivas. No Informe da Comissão de Expertos em Aplicação de Convenções e
Recomendações (Informe III – Parte A), divulgado em fevereiro deste ano250, a OIT levou em
conta as informações prestadas por entidades representativas de trabalhadores e de empregadores,
bem como do próprio governo sobre as medidas tomadas em relação a violações a convenções
internacionais ratificadas pelo Brasil, em razão da Lei nº 13.467/2017.
250
Disponível em: <https://www.ilo.org/global/standards/applying-and-promoting-international-labour-
standards/committee-of-experts-on-the-application-of-conventions-and-recommendations/WCMS_735948/lang--
es/index.htm>.
autônomos” (art. 442-B, CLT). Todos estes pontos, como se vê, estão também presentes nas MP
nºs 927 e 936/2020. Por fim, cite-se a Convenção nº 155 da OIT sobre Segurança e Saúde dos
Trabalhadores (aprovada pelo Decreto Legislativo nº 2, de 17/03/92; retificada em 18/05/92; e
promulgada pelo Decreto nº 1.254, de 29/09/94):
“Art. 8 — Todo Membro deverá adotar, por via legislativo ou regulamentar ou por qualquer outro
método de acordo com as condições e a prática nacionais, e em consulta com as organizações
representativas de empregadores e de trabalhadores interessadas, as medidas necessárias para tornar
efetivo o artigo 4 da presente Convenção.
Art. 16 — 1. Deverá ser exigido dos empregadores que, na medida que for razoável e possível,
garantam que os locais de trabalho, o maquinário, os equipamentos e as operações e processos que
estiverem sob seu controle são seguros e não envolvem risco algum para a segurança e a saúde dos
trabalhadores.”
251
Disponível em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---
dcomm/documents/briefingnote/wcms_740981.pdf >
prazo: a proteção de saúde e apoio financeiro, tanto no que diz respeito à demanda quanto à oferta;
c) é necessário adotar medidas efetivas e integradas em larga escala em todas as esferas políticas
para alcançar resultados favoráveis e sustentáveis; d) criar confiança por meio do diálogo é
essencial para que a ação política seja bem-sucedida eficaz.
294. Para a CDHI, pessoas que continuam a realizar suas atividades laborais
devem ser protegidas dos riscos de contágio dos vírus e, em geral, deve ser dada proteção adequada
a empregos, salários, liberdade de negociação sindical e coletiva, garantia de auxílios e outros
direitos sociais relacionados com o ambiente trabalhista e sindical. E o que faz o governo de Jair
Bolsonaro? Contraria todas essas recomendações. Estimula a volta ao trabalho e a reabertura do
comércio; não protege empregos e não proíbe demissões, individuais ou coletivas; não garante
liberdade de negociação sindical, ao alijar os sindicatos dos acordos com os empregados; e veta
252
Disponível em: < http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf>
auxílio a vasta gama de trabalhadores informais, extrativistas, pescadores, agricultores,
ambulantes, artesãos, atletas, artistas, diaristas, garçons, taxistas, motoristas de aplicativos e de
vans e caminhoneiros.
295. Como se vê, por todo o exposto, Jair Bolsonaro comete crime de
responsabilidade, conforme item 9 do art. 7º da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, já que viola
patentemente direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição, que devem sempre visar
à melhoria da condição social das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros.
253
Em entrevista concedida quando ainda era parlamente, Bolsonaro afirmou incentivando a “violência corretiva”
que: “O filho começa a ficar assim meio gayzinh, leva um coro, ele muda o comportamento dele. Olha, eu vejo muita
gente por aí dizendo: ainda bem que eu levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem”. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=QJNy08VoLZs . Acesso em: 11 jul 2020.
254
https://www.hrw.org/pt/world-report/2020/country-chapters/336671
255
https://revistaforum.com.br/colunistas/julianrodrigues/bolsonaro-extingue-conselho-lgbti/.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9883.htm
de flagrante afronta ao artigo 1º, III, da Constituição Federal e a todas as normas nacionais e
internacionais que vedam a discriminação.
256
Esses fatos foram detalhadas no item “b) violações na área cultural” da presente denúncia e constam, também,
no Relatório Anual da Human Rights Watcha sobre o Brasil em que se registra: “O governo Bolsonaro suspendeu o
financiamento público de quatro filmes que tratavam de questões LGBT”. “https://www.hrw.org/pt/world-
report/2020/country-chapters/336671. Acesso em: 11 jul 2020.
257
https://grupogaydabahia.com.br/relatorios-anuais-de-morte-de-lgbti/
258
https://grupogaydabahia.com.br/relatorios-anuais-de-morte-de-lgbti/
303. Lamentavelmente, a pandemia do Covid-19 não impõe tréguas a estas
violações e à realidade de violência vivenciada pela população LGBTI. Com efeito, a pandemia
tem “agravando ainda mais as desigualdades já existentes”, levando à piora nas condições de vida
desta população, especialmente para as trans. Vale ressaltar que a maioria das trans, principalmente
as travestis e mulheres transexuais trabalhadoras sexuais, “não conseguiu acesso as políticas
emergenciais do estado devido a precarização histórica de suas vidas e não possui outra opção a
não ser continuar o trabalho nas ruas, se expondo ao vírus” 259.
259
https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/06/boletim-3-2020-assassinatos-antra.pdf
260
https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/06/boletim-3-2020-assassinatos-antra.pdf
261
Ibidem.
262
Parte das condutas do Presidente da República descritas no presente tópico foram apresentadas pelas organizações
Terra de Direitos e Labá – Direito, Espaço & Política perante a Relator Especial das Nações Unidas para Moradia
Adequada em chamada de contribuições específica sobre a pandemia de convid-19. Disponível em:
https://ohchr.org/EN/Issues/Housing/Pages/callCovid19.aspx
305. Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou
que o surto da doença causada pelo novo coronavírus constitui uma Emergência de Saúde Pública
de Importância Internacional. Em razão da orientação geral de distanciamento e isolamento social,
em 6 de fevereiro foi promulgada a Lei nº 13.979 que estabeleceu as “medidas para enfrentamento
da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus pelo
surto de 2019” e as primeiras disposições sobre os serviços públicos e atividades essenciais.263
263
Essa Lei estabeleceu que fica assegurado às pessoas afetadas pelas medidas previstas no referido artigo “o pleno
respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, conforme preconiza o Artigo 3
do Regulamento Sanitário Internacional”. Anexo ao Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020.
264
OPAS Brasil. OMS afirma que COVID-19 é agora caracterizada como pandemia. Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma-que-covid-19-e-
agora-caracterizada-como-pandemia&Itemid=812. Acesso em: 25 mar. 2020.
265
BRASIL. Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46568-
ministerio-da-saude-declara-transmissao-comunitaria-nacional. Acesso em: 25 mar 2020.
266
Os dados são do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). A entidade criou uma plataforma para
registrar os dados sobre o novo coronavírus no país após o Ministério da Saúde excluir de seu boletim epidemiológico
diário o número total de pessoas infectadas pelo Sars-Cov-2, assim como o total de mortes e a curva de evolução da
doença no país. Os dados atualizados estão disponíveis em: http://www.conass.org.br/painelconasscovid19/.
308. Em que pese a adoção inicial de diretrizes de distanciamento social e o
anúncio, por parte do governo federal, de que seriam adotadas medidas de proteção dos direitos
da população à luz do Regulamento Sanitário Internacional, no Brasil as medidas de enfrentamento
à pandemia esbarraram e continuam esbarrando no negacionismo, ou na minimização da gravidade
do problema, por parte do Presidente da República, o que impacta de modo muito negativo e
determinante na forma como o problema vem sendo tratado no país. Com isso, a crise não apenas
se agravou, como também durou mais tempo, causando ainda maiores danos sanitários e
econômicos.
267
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/24/leia-o-pronunciamento-do-presidente-jair-
bolsonaro-na-integra.htm
sua responsabilidade nesse contexto. Na ocasião, afirmou “todos nós iremos morrer um dia” e
agregou, em tom jocoso, “não sou coveiro, tá?”.268
268
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/nao-sou-coveiro-ta-diz-bolsonaro-ao-responder-sobre-mortos-
por-coronavirus.ghtml
269
O estudo ainda não foi publicado, mas os dados foram amplamente noticiados pela imprensa nacional e
internacional. https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/falas-de-bolsonaro-contra-isolamento-
podem-ter-matado-mais-seus-eleitores-aponta-estudo.shtml
270
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/07/02/itamaraty-omite-na-onu-dimensao-da-pandemia-e-
diz-que-protege-indigenas.htm?cmpid=copiaecola
271
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/05/26/bolsonaro-volta-a-criticar-isolamento-
social-nao-da-para-continuar-assim.htm
314. O desrespeito do Presidente brasileiro às diretrizes científicas para o
enfrentamento da pandemia vai desde a inobservância da medida sanitária mais basilar, como o
uso de máscara272, até o protocolo médico relativo à administração de medicamentos. Em que pese
a inexistência de comprovação por estudos científicos da eficácia destes medicamentos no
tratamento da covid-19, o Governo Federal publicou em maio uma recomendação para que o
sistema público de saúde passe a prescrever cloroquina e a hidroxicloroquina a pacientes com
sintomas leves da doença. 273
315. Outro grave problema é a baixa execução por parte da União do orçamento
aprovado para combate à pandemia. Segundo especialistas do Instituto de Estudos
Socioeconômicos, o Governo Federal retém 60% do orçamento de emergência aprovado pelo
Congresso contra pandemia, provocando falta do auxílio emergencial até recursos para hospitais.
Alertam que: “após quatro meses de declaração de emergência nacional, apenas 40,1% do
valor planejado no orçamento do governo federal para combater a pandemia do novo
coronavírus foi de fato gasto: dos R$ 274 bilhões autorizados, somente R$ 110 bilhões foram
pagos” e “a baixa execução dos valores orçamentários é sentida pela população, que, em
grande parte, está sem acesso às políticas de enfrentamento à Covid-19”. 274 Essas omissões
agravam a situação de vulnerabilidade de segmentos historicamente bastante impactados pela falta
de acesso a políticas públicas e direitos.
272
Apesar da existência de norma legal que determina a obrigatoriedade do uso de máscara em todo o Distrito Federal,
o Presidente não tem utilizado o equipamento. A situação foi levada à Justiça que, em decisão de 22 de junho de 2020,
determinou “ao réu Jair Messias Bolsonaro a obrigatoriedade de utilizar máscara facial de proteção, em todos os
espaços públicos, vias públicas, equipamentos de transporte público coletivo e estabelecimentos comerciais,
industriais e de serviços do Distrito Federal, sob pena de cominação de multa diária, que desde já fixo em R$2.000,00
(dois mil reais)”. Decisão proferida no Processo n. 1032760-04.2020.4.01.3400. https://www.dn.pt/mundo/bolsonaro-
obrigado-pelos-tribunais-a-usar-mascara-12343368.html
273
https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/20/novo-protocolo-nao-autoriza-a-compra-de-
cloroquina-na-farmacia-o-que-muda.htm
274
https://diplomatique.org.br/as-despesas-da-uniao-com-a-covid-19/. Aceso em: 29 jun 2020.
União pretendia centralizar a definição das medidas de distanciamento social, pautada na postura
negacionista do Presidente da República.
318. A matéria foi levada ao Supremo Tribunal Federal que reconheceu que a
União pode legislar sobre a essencialidade de atividades, mas que o exercício desta competência
deve também resguardar a autonomia dos Estados e Municípios275.
275
Julgamento ocorrido em 15 de abril de 2020. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341.
276
Transcrição da reunião ministerial disponível em: https://asmetro.org.br/portalsn/wp-
content/uploads/2020/05/Leia-a-%C3%ADntegra-da-transcri%C3%A7%C3%A3o-da-reuni%C3%A3o-ministerial-
com-Bolsonaro-_-CNN-Brasil.pdf
277
https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/07/12/que-erros-cometidos-pelos-eua-na-
reabertura-foram-repetidos-no-brasil.htm.
governamental, a ponto de incidir nas previsões arroladas no art. 8º, incisos 7 e 8 da Lei nº 1.079,
de 10 de abril de 1950.278
278
Art. 8º São crimes contra a segurança interna do país: (...) 7- permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de
lei federal de ordem pública; 8- deixar de tomar, nos prazos fixados, as providências determinadas por lei ou tratado
federal e necessário a sua execução e cumprimento.
279
Parte das condutas do Presidente da República descritas no presente tópico foram apresentadas pelas organizações
Terra de Direitos e Labá – Direito, Espaço & Política perante a Relator Especial das Nações Unidas para Moradia
Adequada em chamada de contribuições específica sobre a pandemia de convid-19. Disponível em:
https://ohchr.org/EN/Issues/Housing/Pages/callCovid19.aspx
280
https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Observatorio-DH-covid-junho.pdf Aceso em: 29 jun 2020.
281
O Observatório dos Direitos Humanos na Crise da Covid-19 é uma ação de um conjunto de organizações sociais e
movimentos populares, de um espectro diverso dos direitos humanos, para monitorar, formular e sistematizar
informações relativas aos direitos humanos no contexto da pandemia de coronavírus. Integram o Observatório a
Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos(ABGLT); Articulação de
Mulheres Brasileiras (AMB); Associação Juízes para a Democracia (AJD); Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
(APIB); Anistia Internacional; ARTIGO 19; Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea); Coalizão Negra por
Direitos; Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq); Criola;
GeledésInstituto da Mulher Negra; Instituto de Estudos Socioeconômicos(Inesc); Justiça Global; Movimento de
Mulheres Camponesas(MMC); Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Plataforma DHESCA; SOS
Corpo; e Terra de Direitos. Disponível em: https://www.facebook.com/ObservaDHeCovid19/
essenciais para proteção ao coronavírus, as favelas e cortiços apresentam maior letalidade do
que em bairros ricos das grandes cidades”.282
326. Merece destaque, ainda, o fato de que, em meio a uma crise sanitária da
maior gravidade, o Brasil encontra-se sem Ministro da Saúde desde 15 de maio, ou seja, há mais
de 50 dias.284 E as sucessivas trocas no Ministério, vale ressaltar, decorrem da discordância das
equipes técnicas com o Presidente da Repúblicas sobre as medidas para combater a covid-19,
notadamente, o descompasso com as orientações internacionais para enfrentamento da crise.
282
https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Observatorio-DH-covid-junho.pdf Aceso em: 29 jun 2020.
283
United Nations Human Rights. Coronavirus: Human rights need to be front and centre in response, says Bachelet.
Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25668&LangID=E.
284
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/15/teich-deixa-o-ministerio-da-saude-antes-de-completar-um-mes-
no-cargo.ghtml
285
Disponível em: https://www.inesc.org.br/obrasilcombaixaimunidade/
286
https://direitosvalemmais.org.br/
329. No mês de abril, dois Relatores Especiais das Nações Unidas - Juan Pablo
Bohoslavsky, o especialista independente em direitos humanos e dívida externa, e Philip Alston,
o Relator Especial sobre pobreza extrema – afirmaram em nota à imprensa que “o Brasil deveria
abandonar imediatamente políticas de austeridade mal orientadas que estão colocando vidas em
risco e aumentar os gastos para combater a desigualdade e a pobreza exacerbada pela pandemia
da COVID-19”. 287
330. Diante desse cenário, a Coalizão Direitos Valem mais lançou Alerta
Público sobre a insustentabilidade do Teto do Gastos e sobre a execução orçamentária baixa,
lenta e desigual regionalmente nas operações de enfrentamento à pandemia. Informam e
repudiam o fato de que “apenas 25% da já baixa dotação orçamentária para saúde e somente
12% dos recursos do orçamento para repasse da União aos Fundos de Participação de estados,
municípios e distrito federal tenham sido executados”. 288
287
https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25842&LangID=E
288
https://direitosvalemmais.org.br/wp-
content/uploads/2020/06/AlertaPublico_BaixaExecucaoOrcamentaria_junho2020.pdf.pdf. P. 1.
289
Ibdem. P. 2.
poucas regiões e não no País como um todo, foram revogadas pelo Governo Federal através da
MP 926/2020 em mais uma atitude irresponsável e totalmente injustificada.290
337. Além de não existir evidência científica que comprove o benefício do uso
da Cloroquina e da Hidroxicloroquina no tratamento dos pacientes acometidos pela covid-19, são
medicamentos que têm conhecidos efeitos colaterais e potenciais riscos. Outros efeitos deletérios
da recomendação foram estimular a automedicação da população e passar a falsa crença da
efetividade da medicação, fazendo com que as pessoas reduzam os cuidados de proteção e o
290
https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1231-nota-cns-lamenta-as-50-667-mortes-por-covid-19-no-
brasil-um-marco-evitavel-causado-pelo-descaso-do-estado
291
Nota pública: CNS defende manutenção de distanciamento social conforme define OMS
https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1102-nota-publica-cns-defende-manutencao-de-distanciamento-
social-conforme-define-oms
292
Sociedade Brasileira de Infectologia. Informe sobre o novo coronavírus n° 13: esclarecimentos científicos sobre
orientações que propõem o uso universal da cloroquina ou hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19
https://www.infectologia.org.br/admin/zcloud/137/2020/05/d4826f984f26ea5dc55119e087716868e8e62dc3a4dc5f3
1349b2844aeaeafd6.pdf
293
NOTA PÚBLICA: SBB solicita revogação imediata da orientação do Ministério da Saúde sobre uso da cloroquina
em pacientes com COVID-19. http://www.sbbioetica.org.br/Noticia/777/NOTA-PUBLICA-SBB-solicita-revogacao-
imediata-da-orientacao-do-Ministerio-da-Saude-sobre-uso-da-cloroquina-em-pacientes-com-COVID-19
distanciamento social. No caso da Cloroquina e da Hidroxicloroquina, vale acrescentar que o
governo tem investido vultosas somas na produção desses medicamentos em laboratórios
militares, conforme amplamente noticiado.
341. Uma das estratégias para suprir a necessidade de médicos na Atenção Básica
é o Programa Mais Médicos que foi duramente criticado por Bolsonaro desde o início do seu
governo, chegando a lançar em agosto de 2019 o Programa Médicos pelo Brasil, mas que não
chegou a fazer contratações.
294
https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/06/25/profissionais-enviados-ao-am-para-combate-a-covid-19-
cobram-salario-atrasado.ghtml
Foram lançados editais de convocação de médicos, com muitas vagas não preenchidas e o governo
insiste em descumprir a legislação deixando de convocar os médicos brasileiros formados no
exterior, que estão em segundo lugar na ordem de chamada para participar do Mais Médicos,
quando as vagas não são preenchidas pelos médicos brasileiros formados no Brasil.
295
. https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1186-cns-e-conselhos-estaduais-se-unem-para-exigir-do-ms-
financiamento-integral-do-sus-frente-a-pandemia
296
https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1241-dinheiro-para-enfrentamento-a-covid-19-que-esta-
parado-no-ms-daria-para-comprar-428-mil-respiradores-mostra-boletim-do-cns
347. Em alerta ao Governo divulgado amplamente na imprensa em 24/06/2020 o
Tribunal de Contas da União - TCU referiu a falta de diretrizes estratégicas para combater a
pandemia do novo coronavírus, "como denota a saída de dois ministros da Saúde num intervalo
de um mês, durante a maior pandemia deste século”. O alerta apontou ainda que há falta de
gerenciamento de risco e ausência de profissionais da área da saúde atuando para mitigar a
disseminação da doença.
350. O boicote se revela ainda nos vetos a artigos da Lei 14.019/2020 que
disciplina o uso de máscara facial em espaços públicos em todo o território nacional, sancionada
no dia 02/07/2020. De acordo com a Agência Senado “o presidente Jair Bolsonaro, vetou a
obrigatoriedade do uso da máscara de proteção individual em órgãos e entidades públicas e em
estabelecimentos comerciais, industriais, templos religiosos, instituições de ensino e demais locais
fechados em que haja reunião de pessoas. Ao justificar os vetos, o Planalto alega, entre outras
razões, que a obrigatoriedade “incorre em possível violação de domicílio".
297
https://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1214-recomendacao-n-043-de-05-de-junho-de-2020
lei trata de uso de máscaras para circulação em espaços públicos e privados acessíveis ao público.
Ou seja, não invade a intimidade, mas ainda que se considerasse que haja alguma intervenção na
vida privada, o veto está errado, pois as liberdades individuais estão condicionadas na origem pelo
interesse público, que se sobrepõe.
355. Para que se possa ter uma ideia melhor do significado destes números, é
importante verificar a taxa de incidência, calculada dividindo-se o número de casos pela população
e assim permitindo a comparação dos resultados de diferentes locais. De acordo com os dados
atualizados até 07/07/2020 a incidência de covid-19 no Brasil era de 7.924 casos a cada um milhão
de habitantes. Comparando-se com outros países do Mercosul que estão tendo um desempenho
mais adequado na condução da pandemia, observa-se, por exemplo que na Argentina a incidência
é de 1.856 e no Uruguai, 274 casos a cada um milhão de habitantes. A comparação das taxas de
incidência se faz dividindo-se uma pela outra para calcular o risco relativo. Desta forma, o risco
de um brasileiro contrair covid-19 é 4,3 vezes maior do que o risco de um argentino e 28,9 vezes
maior do que a de um uruguaio!
356. Estes números refletem o total desacerto do governo brasileiro na condução
do combate à pandemia. Se estivéssemos numa situação semelhante à da Argentina, por exemplo,
estaríamos totalizando agora cerca de 400 mil casos e 15 mil mortes, que ainda seriam muitos, mas
bem menos grave do que a atual tragédia que se verifica no Brasil. Muitos casos e muitas mortes
teriam sido evitados.
358. Outro aspecto da tragédia da covid-19 é que o Brasil é o País onde mais
profissionais de saúde perderam a vida na linha de frente de combate à doença. Além do
desrespeito, do descaso e do boicote às ações de enfrentamento da covid-19, o governo Bolsonaro
vem tomando várias medidas de enfraquecimento de diferentes programas do SUS, das quais
quatro exemplos são citados a seguir.
298
https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1223-nota-cns-repudia-retirada-de-documento-tecnico-sobre-
saude-sexual-e-reprodutiva-das-mulheres-durante-pandemia-do-site-do-ministerio-da-saude
360. Vale salientar que, ao contrário do Poder Executivo, o Congresso Nacional
discute projetos de lei (por exemplo: nº 1267/2020, nº 1291/2020 e nº 1444/2020), que estabelecem
medidas emergenciais de proteção à mulher vítima de violência doméstica durante a emergência
de saúde pública decorrente da pandemia de covid-19.
299
https://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1225-recomendac-a-o-n-044-de-15-de-junho-de-2020
E a retirada do termo AIDS do nome é uma forma de tentar colocar no esquecimento algo grave,
que é a epidemia do vírus, existente no Brasil e no mundo”.
367. Sob o manto de uma alegada modernização e redução dos “custos absurdos
em função de uma normatização absolutamente bizantina, anacrônica e hostil”, o então Secretário
Especial de Trabalho e Previdência afirmou a intenção de reduzir em até 90% as obrigações
contidas nas normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho, conhecidas sob a sigla
NR. Leis e regulamentações isoladamente não mudam uma sociedade, mas a sua inexistência ou
fragilidade promovem a agudização da injustiça e podem se constituir, no caso das NR em um país
que apresenta indicadores alarmantes de acidentalidade no trabalho, um retrocesso evidente.
Nenhuma economia é sustentável tendo um dos pilares baseado no adoecimento e morte de parcela
significativa de sua força de trabalho. Esta opção governamental pela naturalização das
iniquidades fica ainda mais evidente com a edição das Portarias Conjuntas nº 19 e 20, de 18 de
junho de 2020, que disciplinam as “medidas a serem observadas visando à prevenção, controle e
mitigação dos riscos de transmissão da Covid-19”, respectivamente nas atividades desenvolvidas
na indústria de abate e processamento de carnes e derivados destinados ao consumo humano e
laticínios e de uso geral. Seus conteúdos e obrigações constrangem a boa técnica e o consenso
científico mundial por sua insuficiência e fragilidade, em meio a uma pandemia que no início de
julho já tinha atingido mais de 1,5 milhão de brasileiros e produzido mais de quase 64 mil óbitos.
Mantidas intenções e objetivos, nos esperarão, em um futuro próximo, legiões de trabalhadores e
trabalhadoras adoecidos, mutilados, mortos em nome do luxo e fastio de uma falsa modernização.
368. Os povos originários são outro alvo preferencial dos ataques do governo
federal à saúde do povo brasileiro. Com mais um Projeto de Lei de iniciativa do executivo (PL
1911/2020) de natureza necropolítica, busca o governo atual “regulamentar o § 1º do art. 176 e o
§ 3º do art. 231 da Constituição para estabelecer as condições específicas para a realização da
pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos
hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas e institui a indenização pela
restrição do usufruto de terras indígenas”.
373. E, ainda mais, com o agravante que dadas às mudanças no Plano Nacional
de Atenção Básica (PNAB) que estabeleceu “que os municípios tenham autonomia para o
direcionamento dos recursos federais que recebem. Isso significa que parte da verba destinadas
a programas como o Estratégia Saúde da Família (ESF) e do Programa de Agentes Comunitários
de Saúde (PACS) possam ser destinadas a outras iniciativas”, ou seja, o que se posta como
temerário e vem trazendo graves problemas de assistência e atenção básicas à saúde dos munícipes.
374. Agindo desta forma, o Presidente demonstra sua incapacidade para o cargo,
devendo ser responsabilizado pela insuficiente, descoordenada e atrasada adoção de medidas
efetivas, o que tem implicado em maior número de casos e em mais mortes pela covid-19. Não se
trata apenas de “destempero verbal”. Ao descumprir a quarentena obrigatória, após voltar de
viagem internacional, onde mais de duas dezenas de seus assessores e ministros apresentaram
testes positivos para a covid-19, participar de manifestação pelo fechamento do Congresso e do
STF e afirmar que iria comemorar seu aniversário no dia 21/03, o Presidente passa à população a
mensagem de que o distanciamento físico e a quarentena de sintomáticos e seus contatos não são
necessários, o que favorece a transmissão acelerada do coronavírus. Em pronunciamento à Nação
na noite do dia 24/03/2020, o Presidente questionou o porquê de fechar escolas, repassou
informações equivocadas sobre a covid-19, criticou o distanciamento social e mais uma vez,
desrespeitando as milhares de vítimas fatais no mundo e também seus familiares, classificou a
doença como uma “gripezinha ou resfriadinho”. O pronunciamento gerou imediatamente forte
reação contrária de várias entidades de saúde, como da ABRASCO que chamou o pronunciamento
de “manifestação incoerente e criminosa” e do Conselho Nacional de Saúde – CNS que considerou
o pronunciamento, “uma afronta grave à Saúde e à vida da população”.
375. Ao proferir pronunciamentos absurdos, questionando a decisão dos estados
ao adotarem ações protetivas, estimulando a ajuntamento populacional em cultos religiosos e
insuflando os ânimos contra o isolamento populacional ao destacar o impacto na economia, o
Presidente dá um péssimo exemplo e demonstra um desprezo pela vida dos brasileiros e brasileiras,
principalmente dos mais pobres, que sofrerão as maiores consequências.
376. Num episódio recente Bolsonaro estava sendo entrevistado por alguns
repórteres quando retirou a máscara justamente para informar que estava com covid-19, o que
certamente representa uma violação aos artigos 131 e 132 do Código Penal. Ademais, no dia
seguinte, o Presidente disse que tinha tomado a hidroxicloroquina e estava se sentindo muito bem.
Chegou a mostrar-se em suas redes sociais num vídeo engolindo um comprimido que seria de
hidroxicloroquina. A aparência era de uma propaganda comercial o que é totalmente de
equivocado e inapropriado, principalmente considerando o cargo que ocupa e a indução a
automedicação da população e do relaxamento com os cuidados, ao acreditar que existiria um
tratamento eficaz.
382. Enfim, são muitos os ataques do governo Bolsonaro ao SUS e à saúde dos
brasileiros, o que permite que seja caracterizado como inimigo da saúde do povo, conforme
identificaram as entidades da área da Saúde Coletiva, desde o discurso presidencial transmitido
em cadeia nacional de rádio e TV no dia 24 de março de 2020.300
300
https://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1143-recomendacao-n-030-de-27-de-abril-de-2020
administração, conforme o art. 9º, incisos 3, 4 e 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. 301 Sua
postura em relação aos atos insensatos e desatinados levados a efeito por inúmeros subordinados
jamais esteve à altura da responsabilidade do cargo que ocupa. A repetida e progressiva escalada
de descuidos e atos contraproducentes dessas autoridades, em desalinho com a Constituição e com
a regularidade funcional de seus postos contou não apenas com o beneplácito presidencial, senão
também com seu incentivo, o que perfaz com absoluta suficiência o tipo criminal estampado no
texto citado.
301
Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: (...) 3- não tornar efetiva a
responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à
Constituição; 4- expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição; (...)
7- proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.
388. Durante parte relevante do período de emergência de referidas normas
jurídicas, o Brasil experimentava um momento de descompasso com as tendências
democratizantes e vivia os anos de chumbo da ditadura civil-militar. Somente com a Constituição
de 1988, que enumerou os princípios regentes de atuação do país no campo das relações exteriores,
o Brasil passou a assegurar amplo respaldo às normas decorrentes do direito internacional,
consoante se extrai do art. 4º:
393. Veja-se que, já no seu primeiro ato como chefe de Estado em missão
internacional, o Denunciado empreendeu intensa agenda de desarticulação de atributos da
soberania brasileira. Em março de 2019, poucos meses após a sua posse, Bolsonaro compareceu
em visita oficial aos Estados Unidos da América, durante a qual anunciou que o Brasil abdicaria
de suas vantagens competitivas junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) em troca de
uma ilusória promessa de apoio norte-americano ao ingresso do Brasil na Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)303.
302
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,brazil-conference-debate-politica-externa-com-ex-chanceleres-
siga,70003286305.
303
https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2019-03/brasil-abrira-mao-de-direitos-na-omc-para-
ingressar-na-ocde.
em território norte-americano304. Tal conduta rompe com o paradigma da reciprocidade e
igualdade entre os Estados e se assenta sobre premissas discriminatórias a respeito dos cidadãos
brasileiros, consoante se extrai do discurso do próprio Denunciado305.
304
https://exame.com/brasil/bolsonaro-publica-decreto-que-cancela-visto-dos-eua-e-mais-tres-paises/.
305
https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/03/19/bolsonaro-diz-que-liberou-visto-porque-turistas-americanos-
nao-vao-ao-brasil-em-busca-de-emprego.ghtml.
306
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/06/26/aos-75-anos-onu-e-alvo-de-campanha-inedita-do-
brasil-para-esvazia-la.htm.
307
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-25/desmatamento-sob-bolsonaro-afasta-investidores-e-ameaca-acordo-
mercosul-uniao-europeia.html.
308
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/04/30/ocde-critica-interferencia-de-bolsonaro-em-luta-anti-
corrupcao-e-amazonia.htm
309
https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/politica/2018/10/655095-china-faz-alerta-a-bolsonaro-e-diz-que-
custo-pode-ser-grande-ao-brasil.html.
310
https://www.correiodobrasil.com.br/bolsonaro-fala-guerra-contra-venezuela-irrita-militares-brasileiros/
311
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47751065.
399. Relativamente à Venezuela, veja-se que o Presidente da República, em meio
à pandemia da COVID-19, tentou expulsar do território brasileiro – sem que existissem até mesmo
meios de transporte para tal – o corpo diplomático daquele país, investida que somente não foi
levada às últimas consequências em razão da intervenção do Supremo Tribunal Federal312.
402. Não por acaso, em apenas um ano, o ora Denunciado foi alvo de 37
acusações perante instâncias internacionais315, fato que, por si, traduz o desmonte dos mecanismos
de proteção aos direitos humanos por intermédio da desinstitucionalização das políticas públicas
312
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/05/barroso-suspende-ordem-do-governo-bolsonaro-de-expulsao-de-
diplomatas-venezuelanos.shtml.
313
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/bolsonaro-comemora-golpe-militar-de-1964-dia-da-liberdade.
314
https://veja.abril.com.br/politica/em-israel-bolsonaro-defende-homenagem-a-torturador-da-ditadura-militar/.
315
https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/certas-palavras/bolsonaro-denuncias/.
em amplo espectro, sendo especialmente alarmantes a questão indígena316 e a destruição das
políticas ambientais317.
316
https://cimi.org.br/2020/06/indigenas-amazonicos-estao-em-grave-risco-frente-ao-covid-19-alertam-onu-direitos-
humanos-e-cidh/.
317
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2019/12/02/deputados-denunciam-brasil-na-onu-por-
desmantelamento-de-politica-ambiental.htm.
318
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/04/29/relatores-da-onu-denunciam-governo-por-colocar-
milhoes-de-vidas-em-risco.htm.
319
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/04/03/coronavirus-bolsonaro-e-Denunciado-no-tpi-por-
crime-contra-a-humanidade.htm.
406. Tais circunstâncias apontam para uma crescente tendência de
responsabilização internacional do Estado Brasileiro e colocam em risco os preceitos
determinantes das relações internacionais, preconizados pela Constituição de 1988, bem como a
soberania nacional e a segurança interna do país.
b) Uma vez que os Autores e as Autoras da presente denúncia procedem ao seu respectivo
protocolo em formato virtual, com assinaturas de apenas parte dos Denunciantes
certificadas eletronicamente, na forma da Medida Provisória nº 2.200-2/2001 e, assim
reconhecida sua autenticidade para a finalidade constante no art. 218, §1º, do
Regimento Interno da Câmara dos Deputados; e considerando as excepcionais
circunstâncias atualmente vivenciadas em face da pandemia da COVID-19, que não
permitem deslocamentos para certificação digital, reconhecimentos de firma em
cartórios nem mesmo a autenticação presencial de documentos (conforme Ato da Mesa
Diretora nº 118/2020, a impossibilitar o comparecimento individual às dependências
da Câmara dos Deputados), requerem a validação presencial ou eletrônica posterior das
assinaturas restantes, sem que haja prejuízo ao andamento da denúncia, tampouco
impugnação da autoria daqueles que suprirão os requisitos formais tão logo seja
restabelecida a normalidade dos serviços cartoriais e de secretarias referenciados;
c) a juntada dos documentos anexos como elementos de comprovação da prática dos
crimes de responsabilidade narrados na presente denúncia;
d) a produção de prova testemunhal, mediante a oitiva das pessoas indicadas a seguir, as
quais deverão ser intimadas para tal finalidade em conformidade ao que dispõe o artigo
18 da Lei n. 1.079/50, sem prejuízo da produção de outras provas de qualquer natureza,
visando à comprovação dos fatos ora apontados como ensejadores de crimes de
responsabilidade, conforme o art. 16 da mesma lei;
ROL DE TESTEMUNHAS
Pedem deferimento.
Brasília, 14 de julho de 2020.
MAURO DE AZEVEDO MENEZES
DÉBORA DUPRAT
SILVIO LUIZ DE ALMEIDA
KENARIK BOUJIKIAN
CEZAR BRITTO
CAROLINE PRONER
JUVELINO STROZAKE
LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO
PAULO TAVARES MARIANTE
JOSÉ EYMARD LOGUERCIO
MARCO AURÉLIO DE CARVALHO
CAMILA GOMES DE LIMA
JOÃO GABRIEL PIMENTEL LOPES
SHEILA SANTANA DE CARVALHO
WILSON RAMOS FILHO
MARCELISE DE MIRANDA AZEVEDO
MONYA RIBEIRO TAVARES
GUSTAVO TEIXEIRA RAMOS
VERA LÚCIA SANTANA ARAÚJO
FÁBIO KONDER COMPARATO
FRANCISCO BUARQUE DE HOLANDA
FREI BETTO (CARLOS ALBERTO LIBANIO CHRISTO)
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA
MARIA VICTORIA BENEVIDES SOARES
LUIZ GONZAGA MELLO BELLUZO
FERNANDO GOMES DE MORAIS
JUCA KFOURI JOSÉ CARLOS AMARAL KFOURI
GREGORIO BYINGTON DUVIVIER
WALTER CASAGRANDE JUNIOR
EDUARDO ALVARES MOREIRA
PADRE JÚLIO RENATO LANCELLOTTI
JOÃO PEDRO STÉDILE
SÉRGIO NOBRE
IAGO MONTALVÃO OLIVEIRA CAMPOS
CARMEN HELENA FERREIRA FORO
ATNÁGORAS TEIXEIRA LOPES
DENISE CARREIRA SOARES
JOSE ANTONIO MORONI
IÊDA LEAL DE SOUZA
SONIA GUAJAJARA
DANIEL SEIDEL
ROMI MÁRCIA BENCKE
JOSÉ ARBEX JR.
LUIZ BERNARDO PERICÁS
ERIC NEPOMUCENO
ANA MERCES BAHIA BOCK
DIRA PAES (ECLEIDIRA MARIA FONSECA PAES)
OLIVIA BYINGTON
VERA HELENA BONETTI MOSSA
LUCÉLIA SANTOS
ANA LUIZA CASTRO
CASSIO LUIZ DE FRANÇA