Escolas Democraticas Na Perspectiva Da Psicologia Escolar
Escolas Democraticas Na Perspectiva Da Psicologia Escolar
Escolas Democraticas Na Perspectiva Da Psicologia Escolar
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
FELIPE OLIVEIRA
São Paulo
2016
FELIPE OLIVEIRA
São Paulo
2016
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Oliveira, Felipe.
Escolas democráticas na perspectiva da Psicologia Escolar:
contribuições para a educação pública / Felipe Oliveira; orientadora
Marilene Proença Rebello de Souza. -- São Paulo, 2016.
146 f.
Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em
Psicologia. Área de Concentração: Psicologia da Aprendizagem, do
Desenvolvimento e da Personalidade) – Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo.
LB1051
Nome: OLIVEIRA, Felipe
Título: Escolas Democráticas na perspectiva da Psicologia Escolar:
contribuições para a Educação Pública
Aprovado em:
Banca Examinadora
ISTVÁN MÉSZÁROS
A todas e todos que se dedicam cotidianamente
ao enfrentamento dos desafios existentes na
construção de uma educação pública, gratuita e
de qualidade, que atenda às necessidades e
anseios populares.
AGRADECIMENTOS
À Marilene Proença, minha orientadora, por todo o aprendizado ao longo destes últimos anos,
pelo cuidado e disposição em promover uma educação emancipadora através da sua prática
docente e militância política. Grande inspiração na luta por uma educação verdadeiramente
comprometida com os valores democráticos.
Ao meu filho Igor, por me manter acreditando na beleza e na grandeza da educação sem
deixar-me esquecer de seus desafios.
Aos meus familiares, por todos os sacrifícios necessários e desafios superados para tornar
possível minha trajetória, que culmina neste trabalho.
Aos colegas de orientação, Ana Carla, Ana Carina, Ana Tejada, Andréia, Alayde, Alexandre,
Cris, João Batista, Juliana, Gisele, Hilusca, Kátia, Luciana, Patrícia e Sabrina, por suas
importantes contribuições no processo de pesquisa.
À Beatriz de Paula Souza, incansável defensora de uma educação de qualidade que respeite os
alunos em suas singularidades, pela formação em Orientação à Queixa Escolar, cujas
discussões foram de fundamental importância para a elaboração deste trabalho.
A todas e todos amigos com que tive o prazer de trabalhar junto para a organização das
Semanas de Psicologia e das Semanas de Psicologia e Educação, Andrielly, Gustavo “James
Joyce”, Má Peters, Danilo “Danilove”, Carol, Cézar, Bárbara “Streisand”, Carla “Charlie”,
Dora, Lu Zuzarte, Laura, por todo aprendizado de convivência e organização democráticas.
Aos grandes amigos, Richard e Zé Fernando, por não me deixarem “enlouquecer” sozinho ao
longo deste trabalho.
À Ana Elisa Siqueira, diretora da EMEF Desembargador Amorim Lima, por sua
disponibilidade com relação a este trabalho e sua disposição para cotidianamente inventar e
reinventar práticas educativas que respeitam e valorizam a autonomia dos estudantes, e fazer
da escola um lugar de concretização da participação da comunidade.
RESUMO
Esta pesquisa tem por objeto de estudo as Escolas Democráticas e por objetivo investigar o
ideário político-pedagógico que embasa a concepção destas escolas, com ênfase em como esta
proposta vem se materializando na educação pública brasileira. Parte-se da perspectiva teórica
da Psicologia Escolar crítica, de inspiração marxista, que propõe investigar a escolarização
como fenômeno social complexo, síntese de múltiplas determinações, considerando seus
aspectos de ordem institucional, econômica, política, histórica e cultural. Entende-se Escola
Democrática enquanto organização pedagógica em que os estudantes definem suas trajetórias
de aprendizagem, sem currículos compulsórios e com uma gestão participativa, com
processos decisórios que incluem estudantes, educadores e funcionários. Para tanto, foi
realizado o levantamento bibliográfico sobre o tema e também uma entrevista com a diretora
de uma escola pública. O levantamento consistiu na busca de artigos sobre Escolas
Democráticas, no período de 2000 a 2014, em quatro revistas conceituadas da área de
Psicologia e Educação: Educação e Pesquisa; Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos;
Revista Psicologia Escolar e Educacional; Revista Brasileira de Educação. Não foi encontrado
nenhum artigo especificamente sobre as Escolas Democráticas. Isso indica que, apesar da
crescente visibilidade de tais iniciativas e da necessidade de uma educação pública coerente
com valores democráticos, tal objeto de estudo recebe pouca atenção no meio acadêmico.
Entretanto, foram encontrados 16 artigos que tratam sobre os princípios da gestão
democrática, a participação de estudantes e da comunidade no funcionamento escolar. Além
da pesquisa por artigos, o levantamento bibliográfico buscou por publicações (de origem
diversa) sobre Escolas Democráticas, democracia e educação. A entrevista foi realizada com a
diretora da Escola Municipal de Educação Fundamental “Desembargador Amorim Lima”, que
pode ser definida como Escola Democrática, localizada na Zona Oeste da cidade de São
Paulo. A análise da entrevista centrou-se nos seguintes eixos temáticos: a) o cargo de direção;
b) a participação da comunidade escolar. Sobre o primeiro eixo, o que se destaca é que um
diretor com maior ou menor inclinação à participação da comunidade é um fator
determinante. Entretanto, mesmo que o diretor tenha interesse em promover a participação e
tenha amplos poderes para tal, ele está submetido à responsabilidade funcional do cargo e
deve responder às instâncias superiores pelas decisões tomadas coletivamente. Isso o insere
em uma posição frágil, pois algumas decisões podem ter graves consequências para ele. Ao
mesmo tempo, o convoca a uma função formativa junto à comunidade para que esta possa
compreender os limites e possibilidades da escola no interior do sistema educacional público.
Sobre o segundo eixo, cabe destacar o caráter formativo da experiência de participação nos
diferentes espaços da escola. Tal experiência possibilita que a comunidade e os alunos possam
compreender a escola como um todo, e com isso ter subsídios mais concretos para atuar no
Conselho Escolar – mecanismo previsto legalmente – com mais propriedade. Por fim, o
trabalho mostra que uma educação que se pretenda democrática deve ter como horizonte a
superação do modo de produção capitalista, uma vez que este impõe limites significativos
para a democracia e a promoção de valores democráticos.
This research has the Democratic Schools as object of study and aims to investigate the
political-pedagogical ideas that underlies the conception of those schools, with emphasis on
how that proposal is materializing in the Brazilian public education. It starts from the
theoretical perspective of a critical School Psychology, of Marxist inspiration, which proposes
to investigate the schooling process as a complex social phenomenon, synthesis of multiple
determinations, and considering aspects of institutional, economic, political, historical and
cultural order. It is understood Democratic School as an educational organization where
students define their learning trajectories without a compulsory curriculum and with a
participatory management, with decision-making processes that include students, educators
and staff. For this purpose, we carried out a bibliographic research on the subject and
interviewed the director of a public school. The bibliographic research consisted in the search
for papers about Democratic Schools, in the period from 2000 to 2014, in four prestigious
journals in the field of Psychology and Education: “Educação e Pesquisa”; “Revista Brasileira
de Estudos Pedagógicos”; “Revista Psicologia Escolar e Educacional”; “Revista Brasileira de
Educação”. It have found no article specifically about Democratic Schools. This indicates
that, despite the increasing visibility of such initiatives and the need for a coherent public
education with democratic values, such study object receives little attention in academia.
However, were found 16 articles that deal with the principles of democratic management,
participation of students and the community in school functioning. Besides searching for
papers, the bibliographic research also looked for publications (from various sources) on
Democratic Schools, democracy and education. The interview was conducted with the
director from the school “EMEF Desembargador Amorim Lima”, that can be defined as the
Democratic School, located in the West Zone of São Paulo city. From the “Análise de Prosa”
method, the interview contents were grouped on the following theme axis: a) the duty of
direction; b) the participation of the school community. About the first axis, what stands out is
that a director with greater or lesser inclination to community participation is a key factor.
However, even though the director is interested in promoting participation and has broad
powers to do so, they are subjected to the functional role responsibility and must respond to
superior instances for decisions taken collectively. This puts them in a weak position, given
that some decisions might have severe consequences for him. Simultaneously, it invites them
to a formative function with the community so that it can understand the limits and
possibilities of the school within the public school system. About the second axis, what stands
out is the formative experience of the participation in different school spaces. Such experience
allows the community and students to understand the school as a whole, and thus have more
concrete subsidies to serve on the school board - mechanism provided legally - more properly.
Finally, the work shows that an education that desires to be democratic should have as a goal
the overcoming of the capitalist production system, since it imposes significant limits on
democracy and for promoting democratic values.
SUMÁRIO
RESUMO ................................................................................................................................... 8
ABSTRACT ............................................................................................................................... 9
APRESENTAÇÃO................................................................................................................... 12
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 17
CAPÍTULO II. A origem das Escolas Democráticas: ideias que influenciaram sua
constituição ............................................................................................................................... 57
2.1. Escolas Democráticas e a concepção de Vigotski sobre desenvolvimento .................. 61
APRESENTAÇÃO
O primeiro contato que tive com as chamadas Escolas Democráticas foi em uma
atividade de estágio realizado como parte de disciplina sobre as relações entre Psicologia e
Educação, durante a graduação em Psicologia. Até aquele momento desconhecia essa
modalidade de escolarização que, de modo geral, destaca-se por apresentar práticas educativas
alternativas, que buscam inventar novas maneiras de ensinar e novas maneiras de organizar o
funcionamento escolar. Toda a minha educação fundamental e ensino médio foi realizada em
escolas (públicas e privadas) com práticas tradicionais, em que ao aluno cabia apenas
respeitar as regras institucionais, prestar atenção nas aulas, fazer os exercícios propostos em
sala e para casa, responder avaliações periódicas, em sua maioria provas, para que a escola
pudesse verificar se os alunos haviam aprendido minimamente aquilo que o professor havia
ensinado. Na universidade conheci um professor muito querido1 que costuma dizer, com certa
frequência, que “a cabeça pensa por onde os pés andam”. Dessa maneira, a partir da minha
experiência de escolarização, eu havia interiorizado e naturalizado o funcionamento escolar
tradicional. Tomava-o como o único modo de educar e como a melhor forma possível de
organizar a aprendizagem.
1
Guillermo Arias Beatón, Professor Titular e Presidente da Cátedra L.S. Vygotski da Faculdade de Psicologia da
Universidad de Havana.
13
a repetição de alguns problemas. Assim, sem ter a dimensão das significativas rupturas com
tal modelo, encerrado o estágio, deixei em segundo plano tais práticas, centrando minha
formação em outros aspectos, ainda que ligados à Psicologia Escolar.
Foi nesse momento que tive a possibilidade de começar uma pesquisa de Iniciação
Científica sobre Projetos de Lei sobre dislexia e TDAH2. A pesquisa consistiu em um
levantamento e análise de tais projetos, buscando compreender quais as concepções presentes
acerca dos supostos transtornos. E, como resultado, foi possível constatar que a totalidade dos
Projetos de Lei em tramitação operava dentro de uma lógica medicalizante.
2
Esse trabalho está publicado em um capítulo intitulado “O que dizem os Projetos de Lei sobre Dislexia e
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: contribuições da Psicologia Escolar”, presente no livro
“Novas capturas, antigos diagnósticos na Era dos Transtornos”. Ele conta com a co-autoria de Marilene Proença
Rebello de Souza e foi fruto de uma pesquisa financiada pelo CNPq.
14
Com esse mesmo espírito, de ajudar a construir atividades que busquem trazer para o
curso aquilo que, na visão dos estudantes, não está contemplado na formação, participo desde
2011 da organização da Semana de Psicologia, que vem sendo realizada anualmente e
organizada exclusivamente por estudantes do Instituto de Psicologia. Por intermédio da
Semana foi possível atuar a partir de sugestões dos alunos, ao mesmo tempo em que
organizava um evento científico nos moldes dos congressos, com mesas-redondas, simpósios,
minicursos e etc. Assim, além do contato com temáticas que me eram desconhecidas,
sugeridas pelos colegas de curso, foi possível um contato mais próximo com os palestrantes,
que sempre mostraram enorme disposição em participar de um evento organizado
exclusivamente por estudantes. Muitas vezes, depois da atividade o palestrante ficava
conversando com os estudantes que organizaram a Semana, compartilhando histórias sobre
sua formação.
Por conta da experiência com eventos desse tipo, assim que comecei a cursar o
Mestrado organizei, com a colaboração de amigas e amigos da graduação e da pós-graduação,
a “I Semana de Psicologia e Educação: concepções teóricas, práticas educacionais, cotidiano
escolar e políticas públicas”, no Instituto de Psicologia. Foi por meio desse evento que pude,
3
O Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade tem por objetivo “articular entidades, grupos e
pessoas para o enfrentamento e superação do fenômeno da medicalização, bem como mobilizar a sociedade para
a crítica da medicalização da aprendizagem e do comportamento” (Disponível em <medicalização.org.br>.
Acesso em 2 ago. 2015).
15
agora com mais clareza de propósito, ter novamente contato com as discussões sobre Escolas
Democráticas e diferentes propostas educacionais. A partir das contagiantes conferências de
Helena Singer e José Pacheco retomei o contato com as Escolas Democráticas e naquele
momento decidi, na pesquisa de Mestrado, aprofundar as discussões sobre esse
funcionamento escolar que se propõe ser distinto daquele constituído historicamente como
hegemônico e que busca romper com o que foi naturalizado no processo educativo ao propor
uma nova forma de educar, uma nova configuração das relações de ensino-aprendizagem no
interior da escola. Uma forma que aposta em uma postura mais ativa dos estudantes e que se
dispõe a realizar as transformações significativas no funcionamento escolar a partir destes.
INTRODUÇÃO
Tal autora aponta que os diversos movimentos políticos de luta por direitos nos anos
1970 e 1980 contribuíram para produzir um maior interesse de participação no funcionamento
das instituições públicas. Entre eles, destacamos o crescimento da atuação de associações
comunitárias no enfrentamento de problemas locais, a articulação de movimentos sociais
apoiados pelas Comunidades Eclesiais de Base (ligadas à Igreja Católica) e a luta do
movimento sindical, que vai culminar nas grandes greves da região do ABC, apoiadas pelo
movimento estudantil e contando com a adesão de professores.
A adesão dos professores às greves acarretava em perseguição e punição por parte dos
órgãos da Secretaria de Educação, que se utilizavam dos diretores de escola para efetivar as
punições. Frente a tal realidade o órgão de representação dos professores, a Associação dos
Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP), vai promover “discussões
sobre o autoritarismo que permeava as escolas e órgãos intermediários e centrais” (p. 98).
Em janeiro de 1986 o prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, revoga o decreto que
previa o caráter deliberativo do Conselho Escolar, criando “um ambiente propício a mandos e
desmandos por parte dos vários dirigentes escolares” (p. 99). Somente em 1989, na gestão da
prefeita Luiza Erundina, com Paulo Freire à frente da Secretaria Municipal de Educação, que
ressurge o Conselho de Escola com caráter deliberativo, paritário e proporcional, contando
como membro nato unicamente o diretor, o que propicia à comunidade melhores condições de
participação e o direto à voz.
Lima (2013) aponta que Paulo Freire, desde o início de sua atuação frente à Secretaria
Municipal, buscou promover uma reorganização política e administrativa na referida
secretaria, colocando a gestão democrática como um importante princípio orientador. Paulo
Freire acreditava que a transformação da escola deve ser fruto de uma ação coletiva, uma vez
que, por ser pública, necessariamente precisa contar com a participação da população para
decidir seus rumos. E, dessa maneira, trabalhou para a descentralização das decisões
administrativas, buscando construí-las coletivamente a partir da base do sistema e não do topo
hierárquico, invertendo a lógica que predominava na educação pública.
Paulo Freire defendeu essa posição inclusive com relação ao currículo, apontando
como fundamental a participação da comunidade para orientá-lo de acordo com os próprios
interesses. Ele, entretanto, não desprezava a atuação dos especialistas – que considerava
indispensáveis – e com isso buscou reorganizar o sistema de modo a colocá-los a serviço da
população e não como “proprietários” exclusivos do currículo.
Frente a todos esses elementos, Lima (2013) afirma que a criação do conselho escolar
deliberativo “representou uma das mais relevantes mudanças que [Paulo Freire] introduziu na
governação escolar” (p. 59).
É importante destacar ainda que tais medidas encontraram significativa resistência por
conta da tradição autoritária presente na sociedade, fazendo com que a ideologia colonial e
elitista presentes em muitos diretores, coordenadores e professores, trabalhasse para sufocar
as iniciativas de conselhos escolares mais democráticos e com ampla participação popular (p.
63). Nesse sentido, Franco (2014) afirma que durante as várias administrações que se
seguiram a de Luiza Erundina – que após a saída de Paulo Freire contou com a participação
de Mario Sérgio Cortella – “investiu-se no desmantelamento da construção das políticas
implantadas por eles e suas equipes na educação municipal”, entretanto, apesar das inúmeras
modificações que desvirtuaram grande parte das conquistas, “muito foi mantido e perpetuado
levando, inclusive os que resistem, a lutar pelo trabalho coletivo” (p. 118) como expressão de
uma educação de qualidade.
Souza, M. (2010a) aponta que tais políticas são implantadas de modo hierarquizado e
pouco democrático, sendo centralmente decididas por órgãos governamentais distantes da
realidade escolar e desconsideram a história dos profissionais da educação e todo
conhecimento acumulado a partir de sua prática educacional. Ao mesmo tempo, em grande
medida, as políticas públicas em educação exigem que justamente esses profissionais levem a
cabo ações que não ajudaram a construir e que, a partir de suas experiências, muitas vezes
discordam significativamente, de tal modo que essas políticas contribuem para o
aprofundamento da alienação do trabalho pedagógico.
Dentre esses aspectos, entretanto, Saviani (2011) aponta dois deles como limitativos
do avanço das transformações. O primeiro deles é o caráter da chamada “transição
22
democrática” e a ambiguidade que o termo encerra. Isto é, ao mesmo tempo em que pode
significar uma transição para a democracia, também pode significar transição feita
democraticamente. O segundo aspecto, ligado ao primeiro, é a heterogeneidade dos
participantes e das propostas. Assim, o efeito da articulação entre os dois aspectos é que, para
os grupos dominantes – a burguesia – a transição é vista como uma estratégia de conciliação a
partir de seus próprios interesses, preservando privilégios, enquanto que para os grupos
dominados – o proletariado – a transição é compreendida como um processo de libertação da
condição de dominado. Com isso o autor indica que
Mais recentemente, por outro lado, dentre as distintas formas de ensinar, uma proposta
educativa vem ganhando visibilidade, tanto a partir de experiências nacionais como também a
partir de experiências internacionais. Essa proposta ao mesmo tempo em que pretende romper
23
com parte significativa das práticas pedagógicas que se estabeleceram como hegemônicas no
campo da educação, sobretudo da educação pública, busca promover valores consonantes com
a manutenção e desenvolvimento das sociedades ditas democráticas.
Outra prática comum a tais escolas é o modo como os conteúdos a serem aprendidos
pelas crianças são organizados. Ao invés de utilizarem o modelo hegemônico em que as
crianças são separadas por séries e salas onde todos os alunos presentes recebem um professor
que ministra a mesma aula, com o mesmo conteúdo (matemática, português, história, por
exemplo), nas denominadas Escolas Democráticas existe uma maior flexibilidade no contato
com os saberes a serem desenvolvidos pelo currículo. Esses conteúdos, bem como as
estratégias utilizadas para o aprendizado, são determinados em grande medida pela própria
criança, que tem grande liberdade para escolher aquilo que mais lhe interessa e motiva
estudar, o que tem implicações diretamente na organização escolar.
24
Tais escolas também pretendem romper com as relações autoritárias do adulto com a
criança, do professor com o aluno, privilegiando o comportamento autônomo dos estudantes.
A criança não deve obedecer a uma regra porque um adulto decidiu e acredita que sabe o que
é o melhor para a convivência escolar, o aluno é estimulado a participar na manutenção dos
espaços coletivos de maneira consciente, de modo que tais escolas buscam fazer com que este
seja corresponsável pelas regras de conduta no interior da escola.
Ao propor aos alunos um papel mais ativo na determinação de sua vida escolar, as
chamadas Escolas Democráticas possibilitam a constituição de modos de se relacionar
distintos dos presentes no modelo escolar tradicional, tanto no que diz respeito à relação
aluno-aluno, quanto à relação aluno-professor. No modelo de educação hegemônico, de modo
geral, a troca de conhecimentos entre estudantes é pouco estimulada, sendo privilegiada a
troca de conhecimentos entre professores e alunos. Muitas vezes a interação entre alunos em
sala enquanto o professor ministra uma aula é completamente desencorajada, sendo encarada
como um grande problema para o desenvolvimento das atividades de aula. Na proposta das
25
Patto (1990) expõe o caráter ideológico das práticas da Psicologia, a forma restrita
como os psicólogos interpretavam os fenômenos escolares e como ao longo do século XX as
explicações sobre o fracasso escolar responsabilizavam reiteradamente o aluno e sua família.
A crítica realizada pela autora aponta que nessa época predominavam discursos em que a
dimensão institucional, os aspectos culturais, históricos, sociais e políticos não eram
devidamente considerados como elementos constitutivos dos fenômenos educacionais.
4
À medida que é apresentado o aporte teórico que dá subsídios para o presente trabalho – a Psicologia Escolar
crítica –, também são realizadas algumas aproximações de tal aporte com as proposições das chamadas Escolas
Democráticas. Tais aproximações são realizadas apenas à guisa de introdução, as discussões sobre as
denominadas Escolas Democráticas são aprofundadas mais adiante.
26
Com base nessa leitura da realidade sobre os avanços nas discussões sobre Psicologia
e Educação, a Orientação à Queixa Escolar surge com a proposta de realizar um atendimento
psicológico “que procura integrar conhecimentos desenvolvidos nas áreas de psicologia
escolar e social”, realizado a partir de “uma concepção de homem como ser social, cuja
subjetividade constitui-se em relação dialética com seu ambiente, o qual compreende, entre
outros elementos que o integram, instituições e grupos de pertencimento historicamente
marcados” (SOUZA, 2007, p. 23).
isso que consiste em “um fragmento de complexas relações sociais que a priori esse
profissional desconhece em virtude da complexidade do fenômeno e da formação restrita que
recebe” (p. 123) – o psicólogo leve em conta o cotidiano vivido na escola, tendo como
referência os sujeitos que o constituem, alunos, pais e professores.
Importante apontar que tal proposição da Psicologia Escolar como crítica à atuação
que tradicionalmente a Psicologia apresentou frente às dificuldades escolares se assemelha,
em alguma medida, à crítica que as denominadas Escolas Democráticas fazem ao modelo
hegemônico de ensino. Entre outros aspectos, essas escolas também propõem aos pais, alunos
e professores, um lugar significativamente distinto no processo pedagógico, um lugar que
reserva aos envolvidos uma participação mais ativa, em que eles também são sujeitos das
mudanças e dos funcionamentos escolares.
Apesar do avanço dos movimentos de crítica no interior da Psicologia a partir dos anos
de 1980, Bock (2000) aponta que a visão da Psicologia tradicional ainda predomina, com sua
compreensão liberal de homem, de caráter idealista, tomando-o apenas em sua
individualidade sem considerar as dimensões sociais e culturais em sua constituição, além de
contribuir para a naturalização do humano, desconsiderando seu caráter histórico. Assim, a
Psicologia tem
Meira (2000) afirma que na sociedade capitalista uma concepção de teoria e prática
que se pretenda crítica em Psicologia Escolar – isto é, comprometida com a denúncia dos
aspectos ideológicos presentes nos conhecimentos da psicologia que se constituíram
historicamente como hegemônicos e a denúncia das desigualdades existentes que produzem
efeitos perversos na educação – deve estar implicada com a transformação social e
comprometida com a efetivação da democratização educacional. A autora apresenta algumas
possibilidades de atuação da(o) Psicóloga(o) Escolar que estão ligados à democratização do
ensino, como a
28
A intervenção foi realizada junto a cinco classes de “terceira série do primeiro grau”,
cujas professoras apresentavam como queixa a indisciplina excessiva dos alunos, situação
essa que em grande medida inviabilizava o trabalho pedagógico. Tomando como base os
desenhos e produções escritas realizadas pelas crianças a autora vai discutir criticamente
algumas das noções sobre escolarização que predominam na escola e como se fazem presente
no imaginário dos alunos.
Os desenhos produzidos mostram salas de aula como lugar de ordem e rigor, com
carteiras alinhadas e lousas – que ora aparecem cheias de exercícios repetitivos, ora aparecem
vazias, indicando a falta de relação entre os conteúdos escolares e a vida cotidiana dos alunos.
Chama a atenção também que retratos das crianças de corpo inteiro só aparecem em situações
em que elas estão fora da classe (pátio, quadra, rua), sendo que em um dos desenhos estão
presentes apenas as carteiras e as cabeças do professor e dos alunos, “o corpo é transformado
ou misturado à carteira, no qual deve se permanecer o tempo todo” (p.109). Isso é tomado
como um indício de que as crianças reconhecem o ordenamento escolar, entretanto, o que
existe é uma cisão entre brincar e estudar, uma cisão entre estudar e ter prazer. Brincar traz
grande prazer, mas é associado com a bagunça, enquanto que estudar exige uma ordem
extremamente rigorosa, associada ao desprazer. De acordo com a autora, com um controle tão
rigoroso, uma educação tão dura com o pouco espaço para brincadeira, o que resta é a
bagunça. A indisciplina também aparece ligada a determinantes sociais pouco tratados no
30
Com isso, tal estudo aponta soluções na mesma direção das denominadas Escolas
Democráticas, ou seja, intervenções que possibilitam maior flexibilidade para que os
estudantes possam se organizar de acordo com as próprias necessidades, além de buscar
promover um aprendizado significativo, orientado a partir dos interesses dos alunos, de modo
a aproximar estudo e prazer.
Kalmus & Paparelli (2010) apresentam uma pesquisa que acompanhou crianças
multirepententes e constatou que elas possuem uma imagem de si bastante negativa.
Entretanto, ao acompanhar também os jovens fora da escola foi possível perceber como eram
inteligentes, criativos, curiosos e com capacidade reflexiva. Com isso, é possível perceber que
inúmeras vezes o modelo de escolarização acaba não dando conta de atender a todos,
deixando para trás crianças plenamente capazes que, com o devido cuidado e atenção, teriam
condições de se desenvolver e aprender os conteúdos escolares.
31
Cabe comentar que, no sentido apontado pelo estudo acima, as chamadas Escolas
Democráticas, ao atuarem de modo distinto do funcionamento escolar hegemônico, talvez
consigam, em alguma medida, fazer frente a esse grave problema. Ao atuarem com maior
flexibilidade, de acordo com a necessidade de todas as crianças, talvez evitem que alunos
sejam abandonados à própria sorte ainda que no interior do sistema educacional.
Portanto, a educação, sobretudo a educação escolar, não deve ser compreendida como
um espaço onde cada aluno apenas alcança aquilo que já existe de antemão e que precisa
32
apenas ser desenvolvido à sua máxima potência, sendo a escola um mero facilitador para a
realização de atributos existentes a priori. Ao contrário, tal espaço é entendido como o lugar
do esforço sistemático para produzir nos alunos o desenvolvimento de características humanas
que não existem a priori, uma vez que foram constituídas historicamente. Não é adequado, por
exemplo, conceber como natural que o aluno se interesse pelos conteúdos escolares, que
preste atenção nas aulas e nas orientações dos professores e que se comporte desde muito
novo de acordo com as regras do funcionamento escolar. Essas características, entre outras,
precisam ser desenvolvidas em todos os alunos a partir de um esforço sistemático para tal.
Para o presente trabalho tal compreensão é de importância central, à medida que fornece
parâmetros que auxiliam na investigação acerca das intituladas Escolas Democráticas e no
entendimento que tais escolas apresentam sobre o processo educativo.
Para o presente trabalho é importante destacar ainda, em acordo com Meira (2000),
alguns dos aspectos imprescindíveis a um pensamento que se pretende crítico. Tal autora
indica como indispensáveis quatro elementos: “reflexão dialética, crítica do conhecimento,
33
Por fim, o quarto elemento, aponta para a necessidade de o pensamento crítico trazer
em seu interior, além do desvelamento das determinações históricas e sociais e dos interesses
em jogo, a possibilidade de ser utilizado no processo de transformação social (coerente, é
claro, com os outros três elementos). Assim, ao mesmo tempo em que denuncia a condição de
degradação a que está submetida parcela significativa da humanidade, as elaborações críticas
também apontam determinados aspectos para, através da ação humana, superar a condição de
exploração inerente ao sistema capitalista.
com as contribuições da uma Educação também crítica, sendo ambas comprometidas com a
transformação social e a superação das desigualdades inerentes à sociedade capitalista,
conforme apontam Bock (2000), Meira (2000), Patto (1990), Souza (2000, 2010b, 2010c),
Tanamachi (2000).
A partir do aporte teórico apresentado, o presente trabalho tem por objetivo investigar
o ideário político-pedagógico que embasa a concepção das chamadas Escolas Democráticas e
como este modelo vem se materializando na educação pública brasileira.
chamadas Escolas Democráticas existentes na rede pública do município de São Paulo. Nessa
entrevista a diretora comenta sobre a trajetória de transformação pela qual passou a escola,
apresenta os desafios existentes e as concepções sobre educação, além de apresentar algumas
estratégias para tornar possível o envolvimento da comunidade nas decisões acerca das
práticas escolares.
Importante destacar ainda que apesar de Wrege (2012) apontar que no Brasil o
surgimento das denominadas Escolas Democráticas ocorrem a partir de iniciativas no campo
da educação privada, o presente trabalho escolhe por investigar as escolas ligadas à esfera
pública, por diversos motivos. O primeiro e mais elementar é a compreensão de que o acesso
a uma educação de qualidade deve ser um direito a toda população e não algo limitado pela
condição econômica. Tal compreensão é, inclusive, coerente com uma concepção de que a
democracia implica na possibilidade de todos poderem participar em igualdade de condição.
Outro motivo é relativo ao que está presente na Constituição Federal de 1988 acerca da gestão
democrática. Conforme aponta Cury (2015) “[...] na formulação legal, o princípio
democrático da gestão está adstrito ao ‘ensino público’” (p. 201). Ou seja, atuar a partir dos
princípios democráticos de gestão do ensino é algo explicitamente ligado à esfera pública da
educação. Além disso, investigar experiências conhecidas como Escolas Democráticas que se
realizam no âmbito da educação pública é fundamental para saber em que medida estão de
acordo com os princípios dos marcos legais nacionais e em que medida também podem
contribuir com práticas e funcionamentos passíveis de serem disseminados por toda a rede
pública, contribuindo para seu desenvolvimento.
Por fim, cabe resgatar que é fundamental para a manutenção da forma de vida
democrática, conforme sinaliza Anísio Teixeira (1968), uma educação pública que alcance a
totalidade da população, sob o risco de a democracia retroceder a um regime oligárquico em
que apenas uma minoria “esclarecida” se valha do conhecimento conquistado para dominar as
massas. Frente a isso, é dever da sociedade
parte dos estudantes e seus responsáveis. Com isso, podem ajudar a apresentar soluções para o
ensino, contribuindo para pensar o futuro da educação da rede pública. Faz-se necessário,
portanto, investigar tais iniciativas, no sentido de buscar as raízes históricas e os pressupostos
existentes, apontando criticamente os limites de tais proposições que vem, recentemente,
ganhando força e visibilidade, se mostrando como uma alternativa recente a problemas
antigos de escolarização.
37
Rosenfield (2009) aponta que na antiguidade a democracia era uma entre três formas
possíveis de governo das polis – as cidades-estado da Grécia – sendo as outras duas formas de
governo a monarquia e a aristocracia. Em seu sentido etimológico a palavra democracia
significa “governo do povo” ou “governo da maioria”, enquanto a monarquia era o “governo
de um só” e a aristocracia “governo de alguns”.
Com o advento da democracia, o poder que antes ficava oculto dos súditos, restrito aos
palácios, passa à praça pública, ao centro da aglomeração urbana e, assim, tem início um novo
modo de pensar e praticar o poder. Nesse sentido, Rosenfield (2009) afirma que
Rosenfield (2009) destaca ainda que para os gregos antigos o político está intimamente
ligado ao moral e, nesse sentido, a finalidade da polis “não é a simples sobrevivência, o bem-
estar material, mas a liberdade política, o ‘bem viver’, isto é, o viver de acordo com os valores
de uma comunidade virtuosa e justa” (pág. 8). Outro importante aspecto destacado pelo autor
é a compreensão presente à época de que “boas leis não são dadas, mas nascem de uma
convenção humana produzida pela atividade pública dos cidadãos” e com isso “o ‘mundo da
lei’ vem a ser o mundo da verdadeira ‘natureza humana’” (p. 10).
uma vez que as opiniões de cada cidadão sobre os rumos da cidade são debatidas em praça
pública e, a partir da articulação de ideias reconhecidas publicamente como sendo as melhores
são tomadas as decisões, o que produz um processo de identificação da comunidade consigo
mesma (ROSENFIELD, 2009).
esta seja um importante elemento organizador das relações entre países, bem como de suas
respectivas legislações internas. É nesse contexto que
Silva (2004) defende que o papel da educação está ligado à criação de “identidades
democráticas”, sendo que tal entendimento decorre da compreensão da transformação social
como um processo gradativo (não revolucionário), no sentido da democratização.
Compreensão esta amparada pela noção de que a realidade possui duas importantes
dimensões, uma subjetiva e outra objetiva, com relativa autonomia entre si. A dimensão
objetiva diz respeito às condições externas aos sujeitos. Nesse caso podemos pensar nas
estruturas e instituições sociais e seus valores. Já a dimensão subjetiva diz respeito aos
significados que os indivíduos atribuem a si-próprio, à realidade externa e aos próprios
significados. Essas relações se condicionam de tal forma que
Assim,
Para além de sua origem, ligada à participação coletiva como forma de governo das
cidades-estado gregas na antiguidade, Araújo (2002) destaca quatro importantes princípios
constitutivos da democracia: liberdade, igualdade, justiça e participação ativa.
Assim, a soberania popular deve ser justa, respeitando as diferenças das pessoas ou
grupos sociais, ou seja, a justiça entra como um importante elemento constitutivo da
democracia, em conjunto com as noções de igualdade e liberdade, para regular a convivência
humana nas dimensões econômica, social, política e jurídica.
A noção de participação ativa, por sua vez, está ligada a forma como os Estados
Democráticos se estruturam. A forma mais comum de exercício da democrática nos Estados
Modernos é através da chamada democracia representativa, em que o poder é exercido por
representantes eleitos pelo povo. Existe também a democracia direta, em que o poder é
exercício pelos cidadãos, por meio de plebiscitos, conselhos, ou outras formas. Araújo (2002)
aponta que nos últimos anos tem sido crescente a insatisfação com a forma representativa da
democracia e com a organização político-partidária de organização de representação,
sobretudo “porque não vem conseguindo atingir a igualdade socioeconômica, a justiça social,
nem garantir liberdades individuais e coletivas” (p. 31). Com isso a participação ativa nos
processos do Estado, quer de maneira direta ou por representação, aparece também como um
importante elemento da democracia.
Entretanto, a democracia nas escolas não se faz apenas com a sobreposição dos
princípios da primeira sobre a segunda, é preciso pensar as peculiaridades da educação e
como esta pode funcionar de maneira democrática.
diferentes status e responsabilidades. Para que tais relações sejam democráticas, para que a
instituição educativa seja de fato democrática é preciso que consiga um equilíbrio entre “a
assimetria funcional das relações e a simetria democrática dos princípios que devem reger as
instituições sociais” (ARAÚJO 2002, p. 33). O autor ainda alerta:
Frente a esses elementos, para pensar a democracia nas escolas, Araújo (2002) aponta
que o princípio da equidade, inerente ao conceito de justiça, se faz necessário. A equidade é
compreendida como o “princípio da diferença dentro da igualdade” (p. 34). Nesse sentido, ela
oferece subsídios para pensar a diferença de status na relação professor aluno e de
responsabilidade frente à instituição escolar, sem desconsiderar os aspectos democráticos da
sociedade que ambos habitam. O autor também alerta para o fato de que pensar a democracia
apenas a partir da igualdade apresenta um risco para a liberdade individual e coletiva, nesse
sentido, torna-se importante a compreensão da equidade e da igualdade como sendo princípios
complementares. Nesse mesmo sentido, Silva (2004) também destaca a equidade como um
importante princípio para pensar as relações democráticas na escola.
Esse respeito ao pensamento divergente e a diferença faz com que a cidadania também
passe a figurar como um importante elemento das escolas que se pretendem democráticas.
Cabe ressaltar, porém, que o modo como Araújo (2002) compreende cidadania vai além do
seu sentido tradicional em que ela está ligada à ideia de que para participar da vida pública,
podendo ser candidato a cargos públicos ou votar, o cidadão possui um série de direitos e
deveres. Para o autor, a noção de cidadania também está ligada a condições que possibilitem o
desenvolvimento de uma vida saudável, o desenvolvimento de condições físicas, psíquicas,
cognitivas, ideológicas e culturais que possibilite uma vida virtuosa, individual e coletiva.
Uma educação que se pretenda democrática deve ter explícito o objetivo de promover
uma cidadania “pautada na democracia, na justiça, na igualdade, na equidade e na
participação ativa de todos os membros” (ARAÚJO 2002, p. 38) e trabalhar para desenvolver
os diversos aspectos humanos. Pois, para que seja possível a participação da vida pública e
política da sociedade é preciso que o cidadão tenha desenvolvida sua capacidade de lidar com
o conflito de ideias e a adversidade, bem como sua capacidade de se indignar perante as
injustiças, sendo tudo isso permeado por influências da cultura e sabendo lidar com suas
emoções tanto na relação com os outros quanto consigo próprio. Ou seja,
Silva (2004), de maneira semelhante, ou seja, a partir do destaque dado aos princípios
da liberdade, igualdade, equidade, apresenta outro elemento importante na relação educação
democracia, a noção de “cultura democrática”. Silva (2004) afirma que ainda que cultura
dominante não seja democrática, é necessário e possível que as pessoas sejam educadas de
modo a construirmos uma cultura democrática, sendo esta compreendida como:
O trecho acima ilustra como a compreensão que Silva (2004) propõe para a ideia de
cultura democrática possui muitos elementos semelhantes ao modo como Araújo (2002)
entende a relação entre democracia e educação. Para Silva (2004), ainda que existam
44
Apple & Beane (1997) caminham no mesmo sentido ao apresentar o que consideram
como sendo as condições de que depende a democracia, de que depende o que chamam de
“modo de vida democrático”:
Para esses autores, o papel central das escolas democráticas deve ser a preocupação
com tais condições e com sua ampliação através da educação.
Um aspecto comum a todos os autores citados, Apple & Beane (1997), Araújo (2002),
Ribeiro (2001), Rosenfield (2009) e Silva (2004), é a compreensão de que a democracia é um
sistema aberto, que reconhece suas limitações e reconhece que está em permanente
construção, sendo que sua própria existência e manutenção estão intimamente ligadas à
prática, como ilustra Dewey no trecho a seguir:
Nesse mesmo sentido, Paulo Freire também defende que o ensino da democracia está
diretamente ligado à sua experiência prática, à possibilidade de ir aprendendo na medida em
que se vivência o modo de vida democrático.
discurso sobre ela, não abstratamente feito, mas sobre ela ao ser ensaiada e
experimentada (FREIRE 1994 apud LIMA 2013, p. 29).
O trecho acima indica que o ensino da democracia está intimamente ligado com a
maneira como é realizada, não é possível ensinar democracia apenas abstratamente. Contudo,
como apresentado acima, é preciso levar em conta que ensinar os valores democráticos,
através de práticas coerentes, implica em levar em conta as especifidades da educação, ou
seja, a democracia na escola não deve ser uma reprodução da democracia política, como se
tratassem do mesmo fenômeno. É preciso reconhecer e respeitar as diferenças hierárquicas
entre alunos e professores ao mesmo tempo em que se busca ensinar de maneira a romper
com o autoritarismo.
Azanha (2004) considera que existe um consenso em torno do ideal de democracia que
o coloca como um importante valor para a convivência humana em sociedade. Porém, esse
consenso encontra limite nas diversas concepções sobre democracia existente, produzindo
grandes divergências e impactos no campo da educação. De modo que
Com base nessa constatação o autor tece considerações sobre aquilo que entende ser o
que divide os defensores da democracia: a “ação democratizadora”. Ou seja, as divergências
quanto à noção de democracia vão implicar em diferentes maneiras de atuar frente ao ensino.
E, para discutir tal concepção o autor analisa alguns episódios que marcaram os esforços por
democratização no estado de São Paulo: Reforma Sampaio Dória (1920); Manifesto dos
46
Pioneiros (1932); a luta pela escola pública (1948-1961); a expansão de matrícula no ensino
ginasial (1967-1969); a experiência do Ginásio Vocacional.
A partir de sua análise, Azanha (2004) aponta que existem duas ideias centrais a
respeito da democratização do ensino presente nos episódios mencionados. A primeira delas é
a compreensão de que a “ação democratizadora” deve garantir o acesso universal ao sistema
de ensino, priorizando a ênfase em aspectos quantitativos. Tal compreensão foi
reiteradamente criticada no âmbito pedagógico, sendo compreendida como implicando
necessariamente no rebaixamento da qualidade de ensino. A segunda é a de que a ação
democratizadora se faz através de práticas pedagógicas democratizantes, ou seja, a
democratização das relações no interior da escola, priorizando aspectos qualitativos. Desse
modo, iniciativas dessa ordem eram vistas como experimentações, onde se buscariam resolver
os problemas, desenvolvendo e aperfeiçoando uma espécie a educação para, posteriormente,
universalizá-la. De uma lado pretendia-se primeiro universalizar o ensino e depois resolver a
questão da qualidade, de outro se buscava primeiro resolver a qualidade para somente depois
universalizá-lo. Entretanto,
democracia se refere a uma situação política, social e econômica que não se concretiza pela
simples associação de indivíduos democráticos” (p. 342).
Libâneo (2014), por sua vez, indica que a dimensão da democratização da escola é
encarada sob diferentes perspectivas. Por um lado existe a preocupação de órgãos oficiais em
garantir o acesso das camadas mais pobres à escola sem, entretanto, garantir condições
mínimas para manutenção de tal acesso. Por outro lado existe uma parcela dos educadores
mais críticos que compreendem que a democratização se faz através da transformação dos
mecanismos de tomadas de decisão sobre o funcionamento escolar. Entretanto, ambos deixam
de lado o essencial, isto é, democratizar o conhecimento.
5
Observatório do Plano Nacional de Educação. Disponível em: <http://www.observatoriodopne.org.br/metas-
pne/2-ensino-fundamental/indicadores>. Acesso em: 14 jul. 2015.
48
Nesse mesmo sentido, Ferraro (2004) apresenta, a partir de dados sobre o acesso de
crianças e adolescentes à escola e dados sobre a relação idade/série, dois eixos temáticos de
análise importantes para pensarmos a questão da escolarização no Brasil. O primeiro,
intitulado por ele de “exclusão da escola”, se refere às crianças ou adolescentes que foram
privadas da educação escolar, seja porque nunca tiveram acesso, seja porque tiveram acesso
por um determinado período, mas as sucessivas reprovações e situações vividas dentro e fora
da escola acabaram por fazer com que abandonassem a escola. O segundo, denominado de
“exclusão na escola”, se refere àquela exclusão que tem lugar no interior da escola, que
acontece como efeito do processo de escolarização em que crianças fortemente defasadas,
apesar de estarem no interior da escola, não conseguem ter acesso ao conhecimento.
Assim, uma educação pública que se pretende democrática precisa atender a toda
população, o que implica não apenas acolher as crianças em idade de escolarização, mas sim
garantir o que é mais primordial em se tratando de educação: o acesso ao conhecimento.
Nesse sentido, como apresentado acima, ter práticas coerentes com os valores democráticos é
indispensável, mas isso se faz necessariamente articulado com o acesso ao conhecimento. Ou
seja, não se trata apenas de uma forma de se relacionar no interior da escola que busca emular
as relações sociais, através de votação e escolha de representantes.
Importante resgatar ainda, conforme afirma Carvalho (2004), que “democracia não é
um ponto a que se chega, é antes um processo que se vive” (p. 334). E, enquanto processo, é
intrinsicamente dependente daqueles que estão envolvidos, daqueles que estão participando
diretamente. Isso faz com que gradativamente sejam produzidas diferenciações, decorrentes
das relações que se estabelecem na instituição em questão e são atravessadas por dimensões
históricas e culturais. Portanto, ainda que seja possível a existência de escolas consideradas
democráticas apesar de possuírem práticas distintas entre si, o presente trabalho toma como
49
De acordo com a autora, embora existam diferenças com relação aos países de origem
de cada uma delas, muitas se articulam em torno de um movimento intitulado “educação
democrática”. Entretanto, “deve-se ressaltar [...] que nem todas as escolas democráticas
participam do movimento internacional ou se reconhecem desta forma” (p. 15).
Assim, para o presente trabalho, de maneira coerente com o que vem sendo exposto,
as Escolas Democráticas, ainda que sejam propostas singulares e restritas à algumas poucas
6
Vale a pena insistir que isso não implica no monopólio de tais escolas sobre o adjetivo “democráticas”, como
se esse somente pudesse ser aplicado a elas, uma vez que todas as escolas restantes seriam autoritárias. Pelo
contrário, podem existir diversas escolas que são democráticas (com letras minúsculas) que não funcionam tal
como essas que são tomadas como objeto de estudo pelo presente trabalho. Entretanto, o uso do termo Escola
Democrática (com letras maiúsculas) diz respeito a um conjunto de práticas tal como definidas por Singer
(1997).
7
Comunicação oral proferida no Encontro da Rede Nacional de Educação Democrática, realizado na Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo, no dia 14 de março de 2014.
50
Destarte, Freitag (1980) apresenta as posições teóricas mais conhecidas sobre o papel
da educação na sociedade, discutindo criticamente a perspectiva de autores como E.
Durkheim, J. Dewey, P. Bourdieu, J. C. Passeron, L. Althusser. Para o presente trabalho não
cabe retomar toda a exposição da autora, somente alguns pontos específicos.
Como crítica, Freitag (1980) aponta que tal perspectiva, apesar da importância
explícita que a escola possui na manutenção do sistema capitalista, não enxerga nela um
instrumento de disputa de classes. Não considera a escola como uma possibilidade de
libertação por parte da classe dominada, relegando tal superação somente ao campo da
política e da economia. Para a autora falta a essa perspectiva “a visão histórica e dialética dos
AIE e da escola” (p. 36), visão que considere as determinações do modo de produção
capitalista sobre a escola, mas que também considere as contradições (no sentido dialético)
existentes nas práticas que são realizadas cotidianamente no interior dela. Nesse sentido, a
autora aponta as contribuições de Gramsci como possibilidade de superação dessa concepção
que reduz a educação a apenas os seus aspectos ligados à reprodução do modo de produção
capitalista.
Ainda que a preocupação central de Gramsci não seja a escola e sua função específica
na sociedade capitalista, suas elaborações sobre o conceito de Estado vão apontar a função
dialética da escola de conservar e minar as estruturas capitalistas. O autor propõe que o
Estado é organizado em duas instâncias distintas, a “sociedade política” e a “sociedade civil”.
A sociedade política é onde se encontram os mecanismos de repressão, os poderes, os
tribunais, etc.; enquanto a sociedade civil é onde se encontram as instituições privadas, como
8
Saviani (2001) aloca tal concepção junto àquelas teorias pedagógicas que ele denomina de “teorias crítico-
reprodutivistas”. Ainda que, ao contrário das “teorias não-críticas”, tais teorias possuam uma compreensão de
que a escola está inserida e sofre determinação da sociedade, essa determinação seria de tal ordem que não
haveria outra possibilidade à escola senão reproduzir as desigualdades presentes na sociedade e contribuir na
manutenção do status quo. Assim, “[...] enquanto as teorias não-críticas pretendem ingenuamente resolver o
problema da marginalidade por meio da escola sem jamais conseguir êxito, as teorias crítico-reprodutivistas
explicam a razão do suposto fracasso” (p. 29-30). Ou seja, o que para as “teorias crítico-reprodutivistas” é tido
como fracasso, pelas “teorias acríticas” é justamente o contrário. As primeiras acreditam que as escolas, ao
fracassarem na educação das massas populares, realizam sua finalidade que consiste não em superação, mas sim
na manutenção das desigualdades.
52
igrejas, sindicatos, mídia e, entre diversas outras, a escola. Por meio de um processo que o
autor chama de “hegemonia”, a classe dominante busca, por intermédio da sociedade política,
impor sua visão e mundo à sociedade civil, na tentativa de anular as contra-ideologias
presentes. Dessa forma, Freitag (1980) afirma que:
A força da dominação de uma classe sobre a outra reside na sutileza de tal dominação,
assim, com exceção de uma situação ditatorial, o que prevalece na sociedade civil é a
circulação de ideologias e contra-ideologias e o caráter de conflito ideológico. E, enquanto a
classe dominante busca, no âmbito da sociedade civil, fazer prevalecer sua visão de mundo,
por meio da assimilação por parte dos dominados, estabelecer seus valores como senso
comum, as contra-ideologias tem por objetivo, na busca pela superação do modo de produção
capitalista, minar esse senso comum. Frente a essas perspectivas apresentadas, Leite (2007), a
partir das contribuições de Freitag afirma que:
[...] nas sociedades capitalistas, a luta política pode e deve ser travada,
prioritariamente, nas instâncias da sociedade civil, o que significa, na
prática, reconhecer a importância da existência, no interior da escola, de
educadores comprometidos com concepções de homem e de mundo
marcados por valores centrados na justiça, na solidariedade e no respeito
humano, contrapondo-se às relações injustas de dominação, que marcam,
inevitavelmente, as formas de produção capitalista (p. 289).
Entretanto, Mészaros (2008) aponta que para uma transformação social qualitativa é
necessária uma educação “para além do capital”, que busque romper com a lógica de
exploração e opressão engendrada pelo capitalismo. Isso porque no interior da lógica
capitalista mesmo as iniciativas subjetivamente bem intencionadas estão limitadas pelos
interesses da classe dominante em decorrência do fato de que “[...] as determinações
fundamentais do sistema do capital são irreformáveis” (p. 27, grifos do autor).
53
Nesse sentido, o autor defende uma concepção ampla de educação, que não se
restringe apenas aos aspectos formais ou a educação para o trabalho, que seja algo presente
por toda a vida a serviço do ideal de emancipação humana. Romper com a lógica do capital,
portanto, não é uma tarefa restrita apenas a educação, ou que se realize inicialmente a partir
da educação. Romper com tal lógica é uma tarefa para uma educação articulada com outros
elementos mais amplos da vida social. Assim, afirma o autor,
Ainda que algumas mudanças sejam possíveis, e em alguns momentos sejam de fato
importantes quando comparadas com práticas que existiram em momentos imediatamente
anteriores, a lógica do capital permanece determinando a educação de maneira significativa.
Fato esse que não deve ser ignorado, sobretudo dado os objetivos do presente trabalho, que
busca investigar uma prática educativa que se pretende contra-hegemônica.
Ao contrário do que o senso comum dos últimos cinquenta anos nos pode
fazer pensar, a relação entre democracia e capitalismo foi sempre uma
relação tensa, senão mesmo de contradição.
Isso em grande medida tem a ver com a propaganda ideológica do ocidente que
associava democracia e capitalismo e os contrapunha ao socialismo e autoritarismo. Como
recentemente os países centrais do capitalismo tem vivenciado uma significativa crise de
representação em decorrência da crise financeira, pode parecer que a tensão entre capitalismo
e democracia é fruto apenas dos excessos do capitalismo financeiro, em que o dinheiro
público é utilizado para financiar bancos à beira da falência.
Frente a essa realidade, é importante resgatar, como aponta Dias (2013), que o Estado
Moderno surge dentro da lógica do capitalismo mercantil, pró-lucro, antes da democracia
moderna tal como concebemos hoje. E, mais do que isso, o sistema de representatividade
política moderno surge destinado a garantir o controle do Estado pelos grupos no poder – seja
ele de ordem bélica ou econômica – garantindo assim o uso legítimo da violência para a
manutenção da dominação. Ou seja,
Desse modo, o que está posto é a democracia a serviço dos interesses dominantes e a
manutenção do modo de produção, de tal maneira que a participação das massas populares na
escolha dos seus representantes encontrou fortes restrições em diversos países democráticos
do ocidente. Somente por meio de muita luta é que aos poucos – cada país dentro de suas
especificidades – foi conquistado o direito à participação universal e em condição de
igualdade nas eleições. Quanto a isso existem inúmeros exemplos: nos EUA o voto universal
de fato só virou lei federal em 1965 – antes, a população negra ainda era, através de diversos
mecanismos legais, impedida de votar em diversos estados; na França as mulheres só
passaram a votar 1945; na Suíça as mulheres somente puderam votar em 1971; a Austrália só
deu direito a voto às minorias aborígenes em 1962; Espanha só deu direito pleno de voto à sua
população em 1978; Portugal, em 1975; no Brasil, somente com a Constituição Federal 1988
foi garantido o direito dos analfabetos ao voto; a Inglaterra só deu plenos direitos à população
em 1928, com a conquista do voto feminino (DIAS, 2013). Ou seja, durante muito tempo, no
interior da democracia capitalista (ou liberal burguesa),
A liberdade era apenas para quem tinha renda expressiva, nada para o
homem comum e o pobre das fábricas, campos e usinas. Foi com resultado
de intensas lutas de trabalhadores, liderados – é importante frisar – pela
esquerda radical (comunistas, socialistas, anarquistas e sindicalistas em
geral), que o voto, entre tantos outros direitos hoje “universais”, foi
conquistado contra o poder capitalista dominante, fundando a democracia
que pensamos hoje.
A defesa radical da democracia deve levar em conta seu caráter de oposição ao modo
de produção capitalista, ainda que este, eventualmente, ceda em alguns aspectos à luta popular
por maior participação nos espaços de decisão e determinação do futuro coletivo. Assim, uma
educação que se pretenda verdadeiramente democrática no interior da sociedade capitalista
deve ter como tarefa o horizonte de superação do capitalismo, o que não se faz com iniciativas
restritas a um pequeno grupo de pessoas, não se faz de maneira isolada e voluntarista. Dada a
grandeza do desafio que se coloca, se faz necessária uma articulação entre os diversos setores
da sociedade, o que, no caso específico da escola, pode ser realizado, em certa medida, com a
aproximação da escola com a comunidade em que está inserida.
57
Singer (1997) aponta que primeira Escola Democrática que se tem notícia data de
meados do século XIX e se localizava na Rússia: Yásnaia-Poliana foi fundada e dirigida pelo
escritor Leon Tolstoi em 1857. A escola era gratuita e se dedicava a atender os filhos dos
camponeses pobres região e a condição precária em que viviam as famílias das crianças que
frequentavam a escola as obrigava a deixar a escola para ajudar na colheita durante o verão.
Muitos dos alunos abandonavam a escola para irem trabalhar tão logo aprendiam a ler e a
escrever.
A escola tinha cerca de 40 alunos, sendo que diariamente haviam por volta de 30 e era
aberta a receber tanto meninas quanto meninos. Entretanto, estes últimos eram a imensa
maioria, havendo somente quatro meninas. A escola contava também com quatro professores,
que organizavam um cronograma de atividades semanais. Tais atividades eram entendidas
mais como uma orientação aos estudos do que algo a ser rigorosamente seguido, sendo
passíveis de serem cumpridas ou modificadas de acordo com os interesses dos estudantes.
Singer (1997) aponta ainda que nas salas de aula, os alunos tinham total liberdade para
sentar onde quisessem. Não havia recriminações, castigos ou lição de casa. Os alunos também
tinham liberdade para escolher os horários que frequentariam a escola, eram livres para
chegar depois de iniciadas as atividades ou ir embora mais cedo. Algumas das aulas mais
interessantes chegavam a durar até sete horas. As regras que existiam no interior da escola
foram criadas livremente à medida que os alunos sentiam necessidade. No começo não havia
distinção de período de aula e do intervalo para o recreio, nem tampouco divisão dos alunos
por faixa etária e classe. Com o tempo os estudantes foram organizando seu tempo e os
conteúdos a serem ministrados pelos professores.
No início, a avaliação da aprendizagem dos alunos era realizada através de notas, mas
ao longo do tempo deixaram de ser usadas. A avaliação passou a ser então através de
conversas com os professores ao final do dia. Nesse momento as crianças dialogavam com os
professores acerca dos conteúdos presentes nas aulas, contavam o que haviam aprendido e
também o que lhes havia despertado interesse. Passeios pelos bosques da região realizados na
companhia do escritor Tolstoi era outra atividade bastante comum para as crianças em que
conversavam sobre diversos assuntos9.
9
Quase como uma espécie de Escola Peripatética, tal como na Grécia antiga, onde os ensinamentos e estudos
eram realizados ao ar livre, enquanto se caminhava.
59
Nesse período histórico também se faziam presentes os ideais do socialismo, que “[...]
ao mesmo tempo [era] opositor e herdeiro da tradição burguesa” (p. 66). Isso fez com que se
buscasse
O Socialismo, entretanto, por desejar a emancipação dos indivíduos com relação tanto
à Igreja, quanto ao Estado, acabou perseguido por ambos. Sob a acusação de disseminarem
ideias socialistas, essa perseguição implicou no fechamento de inúmeras escolas, entre elas a
Yásnaia-Poliana.
Singer (1997) também aponta que “apesar da clara proximidade com os ideais do
socialismo, a grande inspiração de Tolstoi para a construção de Yásnaia-Poliana, foi a obra do
filósofo Jean-Jacques Rousseau [...]” (p. 67-68), tendo como compreensão que o principal
elemento do processo de educação é a liberdade da criança, através do respeito à sua
curiosidade e aos seu tempo de aprendizagem. Nesse sentido, a autora enfatiza que o que
existe nas propostas de Rousseau “[...] é uma articulação complexa entre liberdade e
responsabilidade, que por vezes chega a parecer ainda mais rigorosa do que o modelo de
educação dominante” (p. 71). Assim, para Tolstoi não existe espaço para o castigo na
educação e a organização das crianças se dá como efeito da própria liberdade, que cria
situações que possibilitam que aos alunos criar suas regras, orientados por suas próprias
necessidades. Ou seja, “na mesma linha de pensamento de Rousseau, Tolstoi acredita que a
liberdade é a única forma de se atingir a perfeição de um sistema educativo” (p. 73).
Singer (1997) também aponta que as Escolas Democráticas, à medida que tem como
valores fundamentais a liberdade e a responsabilidade e como objetivo busca a formação de
pessoas mais autônomas, também se aproximam das experiências educativas anarquistas.
Martins (2014), tomando por base as escolas anarquistas no Brasil do início do século XX,
aponta que estas se pautavam pela “pedagogia racional libertária” e tinham como valores a
“solidariedade, cooperação, igualdades e liberdade” (p.58), sendo a racionalidade e a
liberdade “[...] princípios fundamentais para promover mudanças básicas na estrutura da
sociedade e substituir o estado autoritário por um modo de cooperação entre indivíduos
livres” (p. 59). A autora ainda afirma que
60
Nesse mesmo sentido, Pascal & Schwartz (2006), também apresentando algumas das
experiências educacionais anarquistas do começo do século XX no Brasil, apontam que
A partir dos trechos acima ficam claras as semelhanças entre as Escolas Democráticas
e a Pedagogia Libertária, tanto no que diz respeito aos valores defendidos, quanto com relação
à perseguição sofrida e o caráter contra-hegemônico de ambas10.
O movimento Escola Nova, que teve início no final do século XIX e início do século
XX, surgiu como crítica ao modelo da pedagogia tradicional e, a partir das contribuições do
campo da Psicologia, passou a levar em conta outros elementos no processo educacional.
Assim, tal movimento defendia a necessidade de se colocar a criança como centro do processo
educativo – a partir de quem tal processo deve ser organizado –, levando em conta seus
interesses. Com isso, tal movimento se orientava por uma ideia de educação flexível em que a
10
Porém, Singer (1997) aponta que, apesar de as duas propostas pedagógicas se aproximarem e guardarem
semelhanças, os educadores que ela estudou não fazem menção direta da influência de pensadores e ideias
anarquistas.
61
escola, ao invés de buscar adaptar o aluno a uma estrutura rígida de funcionamento para
promover o desenvolvimento e a disciplina, como faz a educação tradicional, busca a
estratégia de adaptar-se aos alunos para educar. Assim, as relações interpessoais entre
professor e alunos ocupam papel importante no desenvolvimento da atividade educativa,
privilegiando-se, portanto, a existência de pequenos grupos, onde o professor, por meio de
materiais didáticos diversos, buscaria auxiliar a criança a aprender, sempre tendo claro o seu
próprio interesse; “em suma, a feição das escolas mudaria seu aspecto sombrio, disciplinado,
silencioso e de paredes opacas, assumindo um ar alegre, movimentado, barulhento e
multicolorido” (SAVIANI, 2001, p. 9).
Entretanto, Saviani (2001) aponta11 que tal proposta pedagógica implicaria em grandes
mudanças no âmbito organizacional escolar. Isso, por sua vez, resultaria em custos muito
elevados, fator impeditivo para que a experiência da Pedagogia Nova fosse generalizada para
todo o sistema escolar, restringindo-se apenas a algumas iniciativas de caráter experimental.
Ainda assim, o ideário escolanovista continuou a ser propagado, tendo influenciado
professores da rede escolar tradicional, o que resultou no “afrouxamento da disciplina e a
despreocupação com a transmissão de conhecimentos” (p. 10), causando impactos muito
negativos para a educação pública e acabou por “rebaixar o nível do ensino destinado às
camadas populares” (p. 10). Assim, tais críticas apresentam importantes elementos a serem
levados em consideração acerca das Escolas Democráticas.
11
Tais críticas, ainda que digam respeito à Escola Nova e ainda que as Escolas Democráticas tenham se
distanciado desse movimento, são importantes à medida que podem indicar aspectos problemáticos da primeira
que ainda se fazem presente na segunda.
62
[...] ele teve uma intenção bastante clara, qual seja, a de construir uma
psicologia enraizada no materialismo dialético e no materialismo histórico
(MARTINS, 2010, p. 344).
Nesse sentido, em diversos momentos o autor recorre a Marx e Engels para sustentar
sua concepção de humano, sobretudo com relação à compreensão materialista, em que
enfatiza que são as condições materiais que determinam a consciência e não o contrário. No
texto “A transformação socialista do Homem”, por exemplo, o autor vai afirmar que “nós
temos que proceder da suposição básica que a produção intelectual é determinada pela forma
de produção material” (VIGOTSKI, 2004). Porém, mais do que apenas se basear em tais
autores, Vigotski vai aprofundar tal compreensão com suas elaborações sobre o
desenvolvimento humano.
Podemos reducir todas las teorías del desarollo infantil a dos concepciones
fundamentales. Según una de ellas, el desarollo no es más que la realización,
el cambio y las combinaciones de las capacidades innatas. No surge nada de
nuevo a excepción del crecimiento, despliego e reagrupación de los
elementos dados desde el princípio. Para la otra concepcíon, el desarollo es
un processo continuo de automovimiento, que se distingue, em primer lugar,
por la permanente aparición y formación de lo nuevo, no existente en
estádios anteriores. Ese punto de vista sabe captar en el desarollo algo
essencial para la comprensión dialéctica del processo (VIGOTSKI, 2006a, p.
254).
A noção de que algo novo se constitui nas mudanças de fase pelas quais as crianças
passam, algo que não estava previsto, mas que irá se constituir a partir de determinadas
condições é fundamental para a compreensão que o autor apresenta. Assim, a partir da
interrogação a respeito de princípios devem estruturar tal periodização, o autor vai afirmar
que
63
Vigotski também aponta que ainda que tais transformações, bem como uma
determinada maneira de compreendê-las, seja central, isso não é o suficiente para a tarefa de
periodização, sendo necessário o conhecimento sobre a dinâmica de cada idade, assim como a
dinâmica da passagem de uma idade à outra. Nesse sentido, o autor diferencia dois momentos
distintos de desenvolvimento, os momentos estáveis e os momentos de crise.
Vigotski apresenta que os autores de seu tempo não deram a devida atenção a tais
períodos, nem chegaram a construir elaborações que levassem o período de crise em conta nas
64
Assim, o autor aponta três peculiaridades comuns aos momentos de crise. A primeira
delas é que tais períodos se iniciam de modo imperceptível, sendo difícil estabelecer com
precisão seu momento de início e fim. Por outro lado, há nesses períodos um momento em
que a crise se torna bruscamente mais aguda. Isto costuma ocorrer aproximadamente no que
seria a metade de tais períodos.
Como Vigotski afirma que “el critério fundamental, a nuestro juicio, para classificar el
desarollo infantil en diversas edades es justamente la formación nueva (VIGOTSKI, 2006a, p.
65
260) os períodos de crise passam a ser centrais em sua compreensão sobre o desenvolvimento
humano, enfatizando mais uma vez o caráter revolucionário do desenvolvimento humano:
Los períodos de crisis que se intercalan entre los estables, configuran los
puntos críticos, de viraje, en el desarollo, confirmando uma vez más que el
desarollo del niño es un processo dialéctico donde el passo de un estádio a
outro no se realiza por via evolutiva, sino revolucionária (VIGOTSKI,
2006a, p. 258).
Cabe apontar, apenas a título de curiosidade, sem entrar nas características específicas
de cada idade, a proposta de Vigotski para periodização do desenvolvimento humano:
Crisis postnatal; Primer año (dos meses – un año); Crisis de un año; Infância
temprana (un año – três años); Crisis de três años; Edad pré-escolar (três
años – siete años); Crisis de siete años; Edad escolar (ocho años – doce
años); Crisis de trece años; Pubertad (catorce años – dieciocho años); Crisis
de los diecisiete años (VIGOTSKI, 2006a, p. 261).
La situación social del desarollo es el punto de partida para todo los cambois
dinámicos que se producen en el desarollo durante el período de cada edad.
Determina plenamente y por entero las formas y la trayectoria que permiten
al niño adquirir nuevas propriedades de la personalidade, ya que la realidade
social es la verdadeira fuente de desarollo, la possibilidad de que lo social se
transforme en individual. Por tanto, la primeira cuestión que debemos
resolver, al estudar la dinámica de alguna edad, es aclarar la situación social
de desarollo. [...] No debemos olvidar que la situación social del desarollo no
es más que el sistema de relaciones del niño de una edad dada y la realidad
social; si el niño há cambiado de manera radical, es inevitable que essas
relaciones se reestructuren (VIGOTSKI, 2006a, p. 264 e 265).
66
Com isso fica claro que o social é tomado como ponto de partida e referência para
compreender a dinâmica das transformações presentes no processo de desenvolvimento tal
como Vigotski compreende. Além disso, a ação do meio social sobre a criança não é
unidirecional, é relativo à própria criança, de modo que a medida que esta passa por
transformação a relação do meio com a criança se modifica. Portanto, entender o
desenvolvimento como unidade entre o social e o pessoal é entender que estes se afetam
mutuamente, que modificações em um deles produz modificações no outro.
[...] las fuerzas que mueven el desarollo del niño en una u otra edad, acaban
por negar y destruir la propria base de desarollo de toda edad, determinando,
con la necessidad interna, el fin de la situación social del desarollo, el fin de
la etapa dada del desarollo y el passo al seguiente, o al superior período de
edad (VIGOTSKI, 2006a, p. 265).
Ou seja, o que autor aponta é que para exercermos o papel educativo, para dar conta
das questões da aprendizagem relativas ao desenvolvimento, é de significativa importância
saber em que momento do desenvolvimento a criança se encontra para então poder atuar de
maneira adequada a tal desenvolvimento. Por outro lado, esse deve ser apenas o primeiro
passo, apenas um primeiro movimento de aproximação para melhor compreender a criança
em seu nível de desenvolvimento.
O autor aponta que em sua época o principal meio desenvolvido para acessar o que ele
chama de nível de desenvolvimento real eram os testes padronizados. Tais testes são
compostos de diversas questões apresentadas em ordem crescente de dificuldade. Assim, a
67
criança vai resolvendo cada questão até o momento em que não consegue seguir adiante. Com
isso cria-se uma padronização do índice de respostas e se estabelece uma correlação entre o
período de desenvolvimento e o número de acertos. Entretanto, Vigotski aponta que com um
auxílio sistemático a criança é capaz de ir além do ponto em que parou, e que a capacidade
que a criança tem de “imitar” a partir do auxílio tem relação com seu nível de
desenvolvimento. Com isso o autor afirma que a
Assim, não só as tarefas que a criança realiza de forma solitária apresentam elementos
indicativos do desenvolvimento, mas as tarefas que a criança consegue realizar com auxílio
também passam a ser de grande importância, sendo que, mesmo com colaboração, em
diferentes momentos do desenvolvimento a criança vai apresentar diferentes capacidades para
realizar uma tarefa. Assim, o autor propõe que, ao submeter a criança à resolução de tarefas
que ela não possui condições de realizar sozinha, auxiliando-a por meio de estratégias
colaborativas determinadas, é possível, por meio do resultado obtido pela criança, ter uma
indicação do seu desenvolvimento, no sentido de sabermos o quanto esta supera a própria
idade se for auxiliada. Com isso, é possível determinar a dimensão do desenvolvimento que
está na iminência de ocorrer, aquelas capacidades que a criança está na iminência de
conseguir apresentar por conta própria.
Ou seja, de certo modo o autor, ao indicar que o “autêntico” diagnóstico deve ser
abrangente, abarcar elementos do desenvolvimento que ainda estão em vias de se realizar,
também aponta algumas das limitações ao se tomar o teste psicométrico com indicativo do
desenvolvimento humano12.
Além disso, para autor essa diferença entre o desenvolvimento que a criança alcançou
– portanto as tarefas que ela possui condições de realizar de maneira autônoma e
independente – e as habilidades que estão na iminência de serem desenvolvidas – aquelas que
são acessíveis através da atividade que a criança realiza mediada pela colaboração de um
adulto ou outra criança mais desenvolvida – é justamente o que caracteriza a Zona de
Desenvolvimento Próximo. Ou, nas palavras do autor; “la esfera de los processos inmaduros,
pero en vía de maduración, configura la zona de desarollo próximo del niño” (Vigotski tomo
4 pág 268). Assim, articulando tal noção com a compreensão que autor apresenta sobre o
meio social, sobre as relações que a criança estabelece ao longo de seu desenvolvimento,
temos que
M.H.S. Patto em “Para uma crítica da razão psicométrica” apresenta uma crítica a partir do marco teórico do
12
materialismo histórico, dos aspectos epistemológicos e políticos do psicodiagnóstico através dos testes.
69
acordo com o autor, isso ocorre porque o ensino e a aprendizagem se apoiam tanto naquelas
funções que estão maduras, como naquelas que estão ainda amadurecendo. O autor afirma que
Assim,
[...] ya ahora debe ser evidente para nosotros que como el aprendizaje se
apoya en processos inmaduros, pero en vías de maduración, y como toda la
esfera de dichos procesos está incluida en la zona de desarollo próximo, los
plazos óptimos de aprendizaje, tanto para el conjunto de los niños, como
para cada uno de ellos, se determinan en cada edad por la zona de desarollo
próximo. Por está razón tiene tanta importância práctica la zona de
desarollo próximo (VIGOTSKI, 2006a, p. 271, grifo nosso).
único fator educativo é o meio (sendo este entendido em sua complexidade, como apresentado
anteriormente) e que, portanto, o professor deve atuar como um organizador de tal meio.
Nesse sentido, o professor deve ajudar o aluno “a caminhar com as próprias pernas”.
Sobre o ritmo de cada aluno, ainda que estes tenham maior liberdade frente aos
conteúdos, o professor desempenha um papel importante na manutenção de tal ritmo. Dito de
modo simples, ainda o estudante tenha seu ritmo respeitado, o professor também irá auxilia-lo
para a manutenção de um ritmo adequado de aprendizagem. Nesse sentido, ao comentar sobre
a Escola da Ponte (grande inspiração para as experiências educacionais do mesmo tipo no
Brasil) Groppa e Sayão (2004) apontam que manutenção do cotidiano democrático se deve ao
fato de que “a assimetria entre os lugares de professor e de aluno está totalmente preservada”
(p. 26). Os autores apontam que existência da assimetria presente na relação aluno-professor
permite ao professor atuar, quando necessário, para conter eventuais excessos dos alunos,
cobrar responsabilidades assumidas, ou exigir concentração e esforço para a realização das
tarefas; e, ainda que possua liberdade para escolher o que estudar, o aluno não pode escolher
não estudar. Essas condições possibilitam ao professor a clareza do seu papel e isso possibilita
que este atue para a superação de eventuais dificuldades.
funcionamento mais coletivo dos professores em conjunto com uma maior flexibilidade do
ensino possibilita um maior conhecimento sobre cada aluno, o que pode atuar favoravelmente
quando utilizado para melhor atender as necessidades do desenvolvimento de cada criança.
Com relação à educação, Martins (2010) aponta que para Vigotski as instituições
escolares devem desenvolver processos educativos estreitamente vinculados com a vida em
sociedade, “[...] só a vida educa, e quanto mais amplamente ela irromper na escola, mais
dinâmico e rico será o processo educativo” (VIGOTSKI, 2004a apud MARTINS, 2010). Uma
das reclamações mais comuns por parte dos alunos da educação tradicional, sobretudo os mais
velhos é de que justamente aquilo que é ensinado nas escolas é distante de sua realidade e,
portanto, os alunos não vem muito sentido para aquilo que estão estudando. No máximo, às
vezes são capazes de dar um sentido instrumental para o que aprendem, utilizando o conteúdo
para se formar, ou passar no vestibular, e, uma vez cumpridas tais metas, aquilo que foi
aprendido deixa de ter importância e é esquecido.
Tal colocação se relaciona com o modo com que Vigotski compreende a relação entre
vida e educação, no sentido de que no contexto da revolução socialista o papel da educação se
amplia enormemente de modo que passa estar ligado a própria criação, na própria vida, de
uma orientação para a educação. Com isso Vigotski ainda afirma que
distinto, pode se articular de uma forma coerente com o seu pensamento. No nosso contexto, é
possível compreender tal frase no sentido da superação do capitalismo. Diversos autores
fizeram a crítica dos impactos negativos que o capitalismo tem sobre a educação, inclusive o
próprio Vigotski (2004) aponta que a divisão do trabalho no capitalismo acaba por produzir a
divisão entre trabalho físico e trabalho intelectual e que isso traz consequências negativas para
o desenvolvimento do espírito humano.
Além dos aspectos que se apresentam como potentes para o desenvolvimento nas
propostas presentes nas Escolas Pedagógicas, existem também elementos a serem criticados.
Nesse sentido, Snyders (2001) aponta que as pedagogias não-diretivas – o que inclui a escola
Summerhill – apresentam uma importante crítica à educação tradicional ao denunciar o seu
caráter autoritário e propor uma educação mais progressista, centrada na liberdade do aluno.
Entretanto, o autor destaca que tal proposta pedagógica acaba incorrendo no mesmo erro que
critica. Sua proposta, que se pretende progressista, acaba sendo uma educação conservadora.
13
Apenas a título de exemplo, no Projeto Âncora existe uma oficina dentro da escola, que permite às crianças
trabalhar em projetos diversos, e na escola de Summerhill existiam oficinas de costuras.
73
horizonte claro de luta contra as opressões presentes no sistema capitalista – acaba por
reproduzir as opressões presentes na sociedade14.
Outro importante elemento passível de crítica à luz das compreensões trazidas por
Vigotski são as ideias de dois importante autores, cujas elaborações serviram de base e deram
origem as Escolas Democráticas e, em certa medida ainda, servem de inspiração para tais
práticas: Rousseau e Tolstói. Vigotski (2004), no interior de sua discussão sobre o modo
negativo como o capitalismo impacta o desenvolvimento humano em decorrência do modo
como seu processo de produção está organizado, vai apontar que tais autores também
identificaram os efeitos negativos do progresso da civilização. Entretanto, vão divergir
diametralmente com relação ao sentido que devemos buscar – dada a condição degradante que
se apresenta de modo cada vez mais acentuado. Vigotski (2004) afirma que
Em certo sentido Rousseau e Tolstói estão certos, uma vez que as condições pioram a
medida que o capitalismo se desenvolve. Assim, Vigotski continua
14
Cabe retomar que no caso das instituições brasileiras apresentadas parece predominar uma compreensão mais
crítica da educação, tendo clareza que o professor deve ter uma atuação mais diretiva, como defendem Groppa e
Sayão (2004), conforme apresentados acima no texto.
74
Além da primeira Escola Democrática que se tem notícia e que teve origem em
meados do século XIX, Yasnáia-Polyana, houve durante o século XX outras importantes
experiências dessa ordem realizadas em diversos países e que acabaram servindo também de
inspiração para iniciativas brasileiras mais recentes (no século XXI). Ao longo do século XX
existiram: Summerhill, atualmente localizada na Inglaterra; Escola da Ponte, em Portugal; e a
Escola Democrática de Hadera, em Israel. Todas elas encontram-se ainda em atividade. Tais
experiências inspiraram a criação de algumas Escolas Democráticas no Brasil como o Projeto
Âncora, na cidade de Cotia, a Escola Municipal Desembargador Amorim Lima, na cidade de
São Paulo e a Escola Municipal Antônio José Ramos, em Santo Antônio do Pinhal – todas
estas são escolas públicas localizadas no estado de São Paulo.
2.2.1. Summerhill
A escola Summerhill é apontada por Singer como sendo a Escola Democrática mais
famosa e também “[...] o resultado mais radical do movimento de reforma escolar que se
fortaleceu na Europa após o fim da Primeira Guerra” (1997, pág. 99). O movimento de
reforma apontado no trecho anterior foi, sobretudo, o movimento da Escola Nova. Summerhill
foi fundada por Alexander Sutherland Neill que também atuou como diretor até o seu
75
falecimento, em 1973. Apesar de receber seu nome definitivo apenas em 1924, quando Neil e
a escola se instalaram na Inglaterra, a escola foi fundada em 1921, na Alemanha. Porém, a
deterioração da situação política alemã obrigou Neil a mudar-se com a escola e alguns alunos
para a Áustria, onde receberam novos alunos e professores. Posteriormente, em 1924, a
falência do banco onde Neil matinha suas economias o obrigou a mudar-se novamente, dessa
vez para a Inglaterra onde, apesar de ter mudado algumas vezes de localização, permanece em
funcionamento até hoje.
Singer (1997), a partir de uma visita à escola, apresenta uma descrição das atividades
desenvolvidas em Summerhill e suas estruturas, e relata que a escola possui por volta de
setenta alunos, número que vem se mantendo desde os anos 30. Além da sede, uma casa do
século XIX, onde há dormitórios e um salão, a escola conta com outras instalações
construídas ao redor da casa com o passar dos anos. Existem quadras de tênis e vôlei, uma
marcenaria (que possui um quarto escuro para fotografias), biblioteca, laboratório, barracões
que funcionam como dormitórios e algumas casas onde moram os professores e que são
utilizadas para estes darem suas aulas.
Os alunos variam de cinco a dezessete anos, sendo treze anos a idade máxima para
serem admitidos na escola. Durante o período em que Neill era diretor a escola funcionava no
regime de internato, posteriormente passou a aceitar também alunos que comparecem
diariamente à escola. Para os internos mais novos são permitidas visitas dos pais e parentes
durante os finais de semana, enquanto que para os mais velhos as visitas dos pais são restritas
a duas por trimestre.
Os estudantes são divididos por faixa etária, o que determina a utilização das
instalações. Entre cinco e sete anos são chamados de San Kids, nessa fase meninos e meninas
moram nos dormitórios da sede e dormem juntos. Além disso, conta com a ajuda de adultos
chamados houseparents, que cuidam de sua saúde, lhes dão banho e contam histórias na hora
de dormir. Entre oito e dez anos são chamados de Cottage Kids, nessa fase meninos e meninas
dormem em quartos separados, em grupos de até cinco crianças, também contam com a
presença de houseparents. Entre doze e catorze anos são chamados Shack Boys os meninos e
Shack Girls as meninas, que moram em barracões espalhados pelo terreno em quartos para
duas pessoas. Por último, aqueles entre quinze e dezessete anos, chamados Carriage Boys e
Carriage Girl, vivem em quartos individuais.
76
As regras comunitárias são decididas por uma assembleia geral em que todos podem
participar e as decisões são tomadas pela maioria, sendo que algumas questões como a
proibição do uso de drogas e álcool não são passíveis de serem votadas. Existe também um
tribunal – que recebe queixa daqueles que se sintam prejudicados por alguém – e a sentença é
proferida pela comunidade, que decide de acordo com caso, sendo os mais graves passíveis de
suspensão por alguns dias (o aluno é enviado para casa). O ensino é sempre opcional para os
estudantes, mas obrigatório para os adultos. No caso dos San Kids (de cinco a sete anos), é
possível frequentar da primeira à terceira série, onde se aprende a ler e a escrever e são
orientados nas escolhas das disciplinas optativas dos anos seguintes. Aos mais velhos são
oferecidas tanto disciplinas do currículo regular da Inglaterra, quanto outras disciplinas
especiais, sendo que estas variam de acordo com sugestões e interesse dos alunos. Entre as
possibilidades estão: matemática, biologia, ciências sociais, orientação sexual, literatura,
inglês, latim, alemão, russo, japonês, marcenaria, computação, artes, música, teatro, entre
outras.
Posteriormente, em 1936, na Noruega, Neill entra em contato com Reich, com quem
manteve um intenso contato por correspondência (quase que semanalmente) durante vinte
anos. Sobre esse contato Singer (1997) aponta que
[...] o que de fato deve ter impressionado Neill foi a tentativa reichiana de
resolução da antinomia sexualidade/civilização. É impossível não ver uma
ligação entre a aposta de Reich na substituição da família burguesa por uma
educação do tipo coletivista e o tipo de vida comunitária construído por Neill
em seu internato (p. 107).
Singer também aponta que para Neill a escola deveria promover a felicidade das
crianças por meio da liberdade, sendo felicidade compreendida como “[...] um estado mínimo
de repressão, um sentimento de bem-estar, de equilíbrio, de satisfação” (p. 110). Esse é um
ponto crucial do processo educacional e está ligado a uma noção terapêutica de cura – que
deve ser compreendida como cura da infelicidade. Ou seja, as noções de “cura” e “felicidade”
estão ligadas à liberdade e a compreensão de que a repressão impede a criança de realizar sua
natureza. No trecho a seguir Singer (1997) apresenta as críticas de Neill à Freud e auxilia na
compreensão dos princípios presentes em Summerhill:
Cabe ressaltar, entretanto, que a noção de liberdade não deve ser compreendida, como
no senso comum, de maneira individualista. A liberdade proposta por Neill está ligada a uma
noção de convivência em comunidade em que o respeito à liberdade alheia é necessário e,
portanto, estimulado. Sobre a liberdade Neill afirma que:
Na Escola da Ponte não existem classes dividas por séries, nem salas de aulas
tradicionais, nem aulas expositivas. Os alunos estudam em um grande salão e se organizam
em pequenos grupos, onde fazem seus trabalhos e se agrupam de acordo com o objeto de
estudo de seu interesse. Os grupos são sempre heterogêneos, com crianças com diferentes
idades e diferentes níveis de desenvolvimento. Além disso, como em Summerhill, existem
79
[...] o registro pessoal seja respeitado sem que o individual seja priorizado.
Assim, a diferença é aceita – não apenas tolerada – e respeitada. Daí que o
bem comum passa a ser interesse de todos (GROPPA; SAYÃO, 2004, p.
26).
15
Escola da Ponte. Disponível em: <http:// http://www.escoladaponte.pt>. Acesso em: 17 maio 2014.
81
16
Importante destacar o fato de que a escola não pode ser considerada isolada das contradições da sociedade em
que está inserida. Nesse sentido, coloca-se o seguinte questionamento: é possível uma educação democrática de
fato em Israel, uma vez que promovem o massacre do povo palestino? Não convém ao presente trabalho, dados
seus objetivos, se deter longamente a respeito do Estado de Israel; para saber mais consulte o livro A História
Oculta do Sionismo, de Raph Schoenman.
17
Disponível em: <http://www.yaacovhecht.com>. Acesso em: 17 maio 2014.
82
específico de todo o conhecimento humano produzido que priva as crianças de ter contato
com aquilo que lhes interessa. E mesmo que, por exemplo, um estudante se interesse por
matemática, algo comumente ensinado nas escolas tradicionais, em tais escolas seu contato
com a matemática será restrito a apenas alguns aspectos desse ramo do conhecimento –
aqueles que foram incluídos no currículo – uma vez que na escola tradicional a totalidade da
matemática não é contemplada. Assim, o que Yacoov Hecht propõe é que um escola que se
pretenda democrática deve possibilitar aos estudantes o contato e o aprofundamento nos
conhecimentos que lhes interessem, sejam eles científicos, artísticos ou culturais.
A escola iniciou suas atividades em meados da década de 1950. Porém, o período que
interessa ao presente trabalho é partir dos primeiros anos da década de 2000 quando, inspirada
pela Escola da Ponte, a comunidade escolar decide modificar a estrutura de funcionamento da
escola no sentido de transformar-se em uma Escola Democrática.
Auxiliados então por uma assessoria com a referida psicóloga, a escola deu início a
uma série de modificações, tanto em sua estrutura física, quanto em sua estrutura pedagógica.
sentados juntos em uma mesa estão desenvolvendo as pesquisas de um mesmo roteiro. Isso
acontece porque cada aluno decide a ordem em que quer fazer os roteiros (EMEF
DESEMBARGADOR AMORIM LIMA).
Seu espaço conta com uma área de 11 mil m² onde existem amplas áreas verdes,
quadras de esporte, circo, salões de estudo equipados com livros didáticos e computadores,
85
refeitórios, pista de skate, salas de música, de dança e de artes e uma biblioteca com mais de
dez mil livros. Como a escola não faz parte da rede pública de ensino, toda essa estrutura é
mantida por meio do apoio de empresas privadas, doações particulares e parceria com
diversos institutos.
Com relação à dimensão pedagógica, a escola tem como princípio a crença de que não
deve haver padronizações, como na escola tradicional, sendo cada criança um ser único e que
deve ser tratado com tal, respeitando seus interesses, suas necessidades, encorajando suas
aptidões e potencialidades, respeitando sua história e sua cultura. Ainda que tal descrição
pareça demasiado ampla, os conteúdos desenvolvidos e estimulados tem como referência o
respeito aos marcos legais da educação nacional.
Outro importante aspecto que contribui para o funcionamento da escola é o que eles
chamam de “multirreferencialidade teórica”. Atuando a partir dos princípios dos marcos
legais e tendo como base os valores – como afetividade, honestidade, respeito,
responsabilidade e solidariedade – os educadores se valem de uma diversidade de autores e
conhecimentos como subsídio para as práticas educativas.
Entre os diversos autores brasileiros citados como referência estão Anísio Teixeira,
Florestan Fernandes e Paulo Freire.
Além das iniciativas apresentadas também existiram inúmeras outras, tanto no Brasil
quanto em outros países. Ao longo do século XX houve um aumento considerável no número
de escolas desse tipo e tal iniciativa se espalhou por diversos países. Singer (1997) aponta que
até o ano de 1996 havia noventa e cinco Escolas Democráticas em funcionamento em
diversos países ao redor do mundo, sendo Summerhill a mais antiga ainda em funcionamento,
fundada em 1921. A autora ainda afirma que as Escolas Democráticas possuem
Por outro lado, mais recentemente, existe uma tentativa de articulação entra as Escolas
Democráticas por meio da criação de uma rede internacional, a chamada Rede Internacional
de Escolas Democráticas (International Democratic Schools Network – IDEN), que possui um
site18 na internet em que se encontram informações sobre a quantidade e a localização de
Escolas Democráticas espalhadas pelo globo. Atualmente existem mais de 200 instituições
oferecendo educação democrática, espalhadas por 30 países e trabalhando com mais de
quarenta mil estudantes.
Isso indica que, ainda que seja um número pequeno quando comparado com os
sistemas nacionais de educação, é um movimento internacional significativo e que veio
crescendo ao longo do século XX e no início desse século, no Brasil e no mundo. E, se
levarmos em conta, como exemplo, o caso do Projeto Âncora e da escola Amorim Lima – que
18
International Democratic Schools Network. Disponível em: <http:// www.idenetwork.org/index.htm>. Acesso
em: 08 out. 2013.
87
para modificar suas práticas e se tornarem Escolas Democráticas contaram com o auxílio de
José Pacheco, um dos fundadores da Escola da Ponte – a articulação entre as escola e pessoas
quem compõe a Rede Internacional de Escolas Democráticas é de fundamental importância
para a expansão desse modelo de organização escolar.
88
Frente a tal objeto, foi colocado o objetivo geral de investigar o ideário político-
pedagógico que embasa a concepção das denominadas Escolas Democráticas e como este
modelo vem se materializando na educação pública brasileira. Assim, mais especificamente,
investigaram-se as especifidades da educação com relação à Democracia na sociedade
contemporânea e com relação à promoção e o desenvolvimento de práticas educativas
coerentes com os princípios democráticos, conforme exposto no Capítulo I. Também se
investigou historicamente a constituições de tais escolas e sua origem, quais as ideias
presentes e os determinantes históricos e sociais que as constituíram, conforme apresentado
no Capítulo II. O presente capítulo, de número III, apresenta a trajetória da pesquisa,
sobretudo no que diz respeito à construção do Capítulo IV. Tal capítulo expõe o resultado da
investigação acerca da materialização de tais experiências em uma escola pública da Rede
Municipal da cidade de São Paulo, com o objetivo de conhecer quais os princípios que
orientam as práticas existentes naquele espaço e quais as compreensões sobre a participação
dos estudantes e de seus pais no cotidiano escolar.
Para a presente pesquisa, como uma de suas etapas iniciais, realizou-se uma busca por
artigos que tratassem a respeito das Escolas Democráticas – com ênfase em experiências
89
O primeiro passo na estratégia utilizada para a escolha de artigos foi a leitura do índice
de cada um dos exemplares de cada revista, onde consta o título dos mesmos. A partir do que
o título informava – e caso indicasse tratar acerca de escolas democráticas ou práticas e
princípios relativos a elas – procedia-se então para a leitura dos resumos dos trabalhos. Com
base nas maiores informações contidas nos resumos, procedia-se então para a leitura do
trabalho completo. Ao todo foram escolhidos 16 artigos (Apêndice 1) que tratam sobre os
princípios da gestão democrática e a participação de estudantes a da comunidade no
funcionamento escolar. Entretanto, ainda que nenhum deles diga respeito diretamente às
chamadas Escolas Democráticas, o objeto de estudo do presente trabalho, tais artigos foram
de fundamental importância para o presente trabalho à medida que apresentam discussões e
considerações que serviram de apoio para a análise apresentada no Capítulo IV.
Para a concretização de tal capítulo optou-se pela realização de uma entrevista com a
diretora de uma Escola Democrática. Nessa entrevista a diretora comenta sobre a trajetória de
transformação pela qual passou a escola, apresenta os desafios existentes e as concepções
sobre educação, além de apresentar algumas estratégias que facilitam ou que dificultam o
envolvimento da comunidade – pais, professores e alunos – nas decisões acerca das práticas e
regras escolares.
A entrevista foi realizada com Ana Elisa Siqueira19, diretora da EMEF Desembargador
Amorim Lima, localizada na Zona Oeste do município de São Paulo, próxima a Universidade
de São Paulo.
Importante informar que a entrevista foi realizada na sala de direção da escola, sem a
presença de outras pessoas além do entrevistador e da diretora entrevistada, no período da
19
Ana Elisa concordou que fossem divulgados seu nome e o da escola municipal em que é diretora.
90
manhã, assim que a diretora chegou à escola. Eventualmente ocorreram algumas interrupções
ao longo da entrevista, ora a secretária precisava de algumas assinaturas, ora algum estudante
entrava para conversar brevemente com a diretora como, por exemplo, para saber sobre um
passeio que ocorreria dentro de poucos dias, ou pedir a senha da rede de internet da escola – o
que foi negado uma vez que a rede sem fio da internet da escola é para uso da administração e
não para o uso de alunos.
A entrevista realizada foi do tipo semiestruturada, o que implica em ter como ponto de
partida a investigação de alguns elementos centrais à pesquisa, organizados em um roteiro
20
Além dos aspectos citados, o contato prévio com tal escola, através de um estágio durante a graduação,
também contribuiu na decisão da escolha por tal escola. A experiência do estágio poderia trazer importantes
contribuições, além de facilitar o acesso à escola.
91
contendo as perguntas a serem dirigidas à entrevistada. Entretanto, ainda que exista roteiro
prévio, o tipo de entrevista utilizado propõe certa flexibilidade de modo que, conforme a
pessoa entrevistada responde às perguntas previstas no roteiro, novas perguntas podem surgir,
levando a aspectos não previstos na organização do roteiro. Além disso, as perguntas foram
formuladas de modo a possibilitar à entrevistada respostas amplas sobre os temas
investigados, com o cuidado para não induzir um tipo determinado de resposta. O roteiro,
portanto, tem por finalidade ser o eixo organizador da entrevista e, no caso da entrevista do
tipo semiestruturada, sem restringir os conteúdos a apenas aqueles previstos no momento
anterior à realização da entrevista (BLEGER, 1980; BOGDAN, BIKLEN, 1994; BOSI, 2003).
Além do primeiro eixo temático, de caráter mais introdutório, o roteiro foi organizado
a partir dos seguintes eixos temáticos: a) história institucional; b) cotidiano escolar; c) a
escola e a formação do cidadão; d) a escola e o sistema educacional; e) a escola e outras
Escolas Democráticas.
O eixo história institucional agrupou questões que buscavam investigar o modo como
se deu o processo de transformação da escola, quais os elementos presentes, quais a
preocupações e objetivos desejados. O eixo cotidiano escolar buscou investigar como a escola
tem funcionado após as mudanças em suas práticas pedagógicas: como tem sido a atuação dos
professores, como é a participação da comunidade no funcionamento da escola – a
participação dos “pais ou responsáveis” – e quais os desafios e dificuldades encontrados. O
eixo a escola e a formação do cidadão objetivou conhecer em que medida os processos e
procedimentos democráticos propostos no interior da escola auxiliam o aluno na participação
da dimensão democrática mais ampla, da sociedade como um todo, ou seja, em que medida a
escola contribui para a formação do cidadão democrático e quais suas limitações nesse
processo. O eixo a escola e o sistema educacional é dividido em dois sub-eixos temáticos: a
dimensão pedagógica e a dimensão política. Na primeira, as perguntas tinham por objetivo
conhecer em que medida os marcos regulatórios da educação brasileira possibilitam ou
dificultam as transformações desejadas pela escola. O segundo sub-eixo, a dimensão política,
investigou de que modo as mudanças de gestão impactam o funcionamento da escola, de que
92
modo influenciam (ou influenciaram) as transformações. Por fim, o eixo a escola e outras
Escolas Democráticas, buscou conhecer se a escola em questão possui relação com outras
Escolas Democráticas, quais experiências influenciaram as mudanças que a escola realizou e
se existe um saber compartilhado entre elas, um saber que circula de uma escola a outra.
Cabe destacar que, ainda que as questões estivessem divididas em diferentes eixos
temáticos elas estavam inter-relacionadas de tal modo que um aspecto a ser investigado como
parte de determinado eixo tinha relações com os outros, não sendo possível isolar as perguntas
em eixos temáticos estanques. A ordem em que os eixos foram apresentados acima não foi
necessariamente a ordem em que as questões relativas a cada um deles foi apresentada.
André (1983) propõe que à medida que a análise se desenvolve é necessário que os
eixos temáticos criados sejam permanentemente questionados e revistos, sendo os princípios
teóricos e os pressupostos da investigação importantes elementos orientadores dessa
permanente reformulação. Assim, ainda que os eixos temáticos criados previamente para a
construção das perguntas que orientaram a entrevista tenha sido de fundamental importância
naquele momento da pesquisa, a criação de novos eixos temáticos se fez necessária frente às
93
Importante destacar que, assim como os eixos temáticos criados para orientar na
construção e sistematização das perguntas que foram utilizadas no questionário, os eixos
temáticos construídos para a análise não devem ser compreendidas de maneira estanque. Os
conteúdos de cada categoria estão intimamente ligados e se relacionam de tal maneira que, um
conteúdo presente em uma determinada categoria pode apresentar elementos de outra
categoria uma vez que a realidade se apresenta de forma complexa e não é compartimentada.
Com isso, a divisão em eixos temáticos se faz como estratégia para melhor compreender e
apresentar tal realidade (ANDRÉ, 1983).
A seguir são apresentadas as considerações acerca dos dois eixos temáticos propostos:
o cargo de direção e a participação da comunidade escolar: estudantes, pais e professores.
94
Dessa forma, através de uma entrevista com a diretora o presente trabalho buscou
conhecer os princípios e práticas existentes na escola, bem como quais as compreensões
existentes acerca da participação dos alunos e de seus pais no cotidiano escolar. Os resultados
pormenorizados da análise realizada encontram-se nas subseções a seguir.
com os altos índices de evasão escolar e do impacto negativo que isso produz na vida
daquelas crianças e adolescentes colocados para fora da escola, uma vez que “[...] um número
expressivo de alunos que haviam sido expulsos tinha morrido em decorrência do
envolvimento com o tráfico de drogas” (GROPPA; SAYÃO, 2004, p. 27). Para enfrentar essa
triste realidade inicia-se uma série de mudanças nas estruturas e funcionamento da escola
O fato de a diretora Ana Elisa Siqueira exercer seu ofício na rede pública,
como escolha e não como contingência ou vicissitude da vida profissional,
talvez tenha sido um elemento ético-político fundamental para a busca de
uma escola mais democrática (p. 28).
Nesse sentido, a entrevista buscou investigar com Ana Elisa qual era sua ocupação
anterior, como chegou a direção da EMEF Desembargador Amorim Lima, e o que motivou
essa escolha.
Ela conta que antes de assumir o cargo de direção trabalhou em várias escolas,
primeiro como professora, depois como coordenadora, chegando inclusive a ter por um curto
período de tempo uma experiência como diretora substituta em uma escola na zona leste de
São Paulo. Posteriormente, Ana assume a direção da EMEF Desembargador Amorim Lima
como concursada e ressalta que pela sua pontuação poderia assumir outras escolas, entretanto
escolheu aquela.
determinava o que poderia ou não acontecer. Assim, afirma que “se você quer trabalhar uma
ideia dentro de uma escola você precisa ser diretora” e que seu contato com as práticas do
cotidiano escolar mostraram que “se fosse diretora poderia fazer um pouco mais das coisas
que achava importante de fazer na rede”. O cargo de direção se apresenta então como aquele
que possui mais poder sobre outros cargos no interior da escola, portanto, com maiores
possibilidades de ação.
Ana conta também que trabalhou na área de gestão durante o governo da Luiza
Erundina frente à prefeitura de São Paulo, no final da década de 1980 e início da década de
1990. Sua atuação durante tal governo, assim como sua experiência como professora e
coordenadora pedagógica, mostra como a participação da comunidade está submetida
diretamente ao interesse do diretor. Ela relembra que nessa época o Conselho Escolar – que é
composto pela direção, por professores, pais e alunos – deixa de ser apenas consultivo e passa
a ser deliberativo, sendo que uma de suas finalidades é justamente discutir e decidir o Projeto
Político-Pedagógico. Entretanto, “se não tiver diretor que quer isso, isso não acontece”, ou
seja, “se não tiver diretor que quer a comunidade dentro da escola, a comunidade não entra”.
O trabalho de caráter etnográfico realizado por Paro (1995) no interior de uma escola
pública no início dos anos 1990 confirma esse funcionamento. A partir de suas observações e
com base no regimento Comum das Escolas de 1º Grau do Estado de São Paulo, ele aponta
que existe uma grande distância entre o que está previsto por tal regimento e o que de fato
existe na escola. Se por um lado a relação hierarquizada de distribuição de autoridade
funciona bem próxima do previsto pelo Regimento, sendo “no topo, a diretora, como
autoridade máxima [...], no degrau mais baixo, os alunos, a quem só cabe obedecer” (p. 77),
por outro lado a escola acaba funcionando em uma situação bastante precária e o Conselho
Escolar acaba apenas existindo formalmente e, quase sempre, de modo pouco democrático.
Assim, o diretor, permanece ocupando o lugar de instância máxima de decisão, apesar da
existência de mecanismos institucionais que buscam democratizar as relações escolares.
21
O referido evento foi organizado pelo vereador Eliseu Gabriel.
97
Barros Pernambuco Abolicionista reforçam a ideia de que o diretor ocupa uma posição de
caráter decisivo para a transformação da escola no sentido de uma maior participação da
comunidade. Nessas duas escolas citadas, de modo semelhante ao ocorrido na EMEF
Desembargador Amorim Lima, o início da transformação se deu a partir da chegada de uma
pessoa que assume a direção da escola e começa promover práticas de participação e buscar
junto à comunidade soluções para as dificuldades encontradas no cotidiano da escola, se
mostrando aberto a sugestões e promovendo diálogos.
No caso de Ana essa abertura ao dialogo com a comunidade já estava presente durante
sua atuação na gestão Erundina. Nessa época seu trabalho consistia fundamentalmente em
“discutir Conselho de Escola e grêmio nas escolas” e “pensar como é que inclui a comunidade
nas discussões da escola”. Isso indica que sua preocupação com a participação da comunidade
no ambiente escolar, tanto no que diz respeito aos alunos, quanto no que diz respeito aos pais
desses alunos é algo que já estava presente na sua atuação enquanto profissional da educação
desde antes de se tornar diretora.
Ainda que Ana tenha ocupado o cargo de direção já ciente e preocupada com
promover a participação da comunidade e mesmo que o diretor, sendo a autoridade máxima
na escola, tenha o poder para promover ou impedir a participação da comunidade, essa é uma
posição bastante delicada. Ana afirma que “de certa forma é muito contraditório” uma vez que
“no fundo o diretor responde por tudo” aquilo que é decidido e realizado no interior da escola.
Então, “o duro é que ao mesmo tempo que você fala que tem que ser uma gestão participativa
tem uma parte da lei que o gestor, o diretor, tem que responder” por aquilo que é decidido
com a participação de todos. Busca-se promover a gestão democrática através da participação
da comunidade na decisão sobre os rumos e práticas da escola – sendo o caráter deliberativo
do Conselho Escolar o exemplo mais emblemático – entretanto, a responsabilidade funcional
do diretor faz com que ele deva responder por aquilo que foi deliberado coletivamente.
Assim, Ana afirma ainda que “a entrada da participação é uma coisa muito difícil”.
Quanto a esse aspecto Paro (2010) faz duas importantes considerações. O primeiro
deles é com relação à forma de escolha do diretor. Dado as especificidades da educação
pública e da função de dirigente escolar é necessário que este seja democrático, que exista a
“vontade livre” e o “consentimento daqueles que se submetem à sua direção” (p. 776). Há,
portanto, a necessidade de “se pensar em formas de escolhas democráticas que superem o
anacrônico processo burocrático de provimento por concurso [...]” (p. 776). A participação de
98
pais, alunos e todo o pessoal da escola no processo de escolha do diretor surge como um
importante elemento democrático que, dá mais legitimidade às reinvindicações da escola
junto ao Estado e também possibilita uma direção mais preocupada e comprometida em
defender os interesses da comunidade.
A segunda consideração vai ao sentido de propor que a direção escolar seja exercida
por um “colegiado diretivo” composto por três ou quatro coordenadores. Dessa maneira os
trabalhos seriam divididos de modo que ninguém seria o chefe absoluto da unidade de ensino.
Paro (2010) afirma ainda que
À medida que a entrevista prossegue, porém, a própria diretora vai de certo modo
apresentando uma saída para essa questão distinta do apresentado acima, ponderando sobre a
as relações entre a autoridade e a responsabilidade do diretor. Ela inicia afirmando “o diretor
tem que tomar muito cuidado, não dá para decidir qualquer coisa” e em seguida continua:
Eu não posso decidir que eu vou expulsar aluno da escola. Existem leis
maiores que me impedem e impedem o conselho de escola de fazer isso. Por
exemplo, decidir um calendário totalmente desigual à rede não pode. Porque
você tem que responder às leis maiores [...] Ou seja, o diretor tem que saber
como ele vai trabalhar essa questão da participação, até onde vai a
possibilidade. [...] Ele tem que ter consciência, de certa forma, do que
significa a função dele. Ao mesmo tempo que é ajudar o grupo a participar é
também fazer com que o grupo entenda que existem leis maiores.
uma formação não somente dos alunos mas também da comunidade, para que esta última
compreenda as relações da escola com o sistema educacional e a legislação educativa, no
sentido de entender, nas palavras da diretora, que “ninguém pode decidir tudo”. Isso inclusive
se faz necessário para que a comunidade possa estar esclarecida sobre em qual dimensão do
sistema educacional a sua reinvindicação se insere.
Primeiro é o pai entender que não da pra resolver tudo na escola e que tem
leis maiores e a escola tem, além das diretrizes internas, tem as diretrizes dos
órgãos governamentais e suas varias instâncias. Tem a Coordenadoria de
Educação do Butantã, depois tem a Secretaria Municipal de Educação,
depois tem o Governo Federal. Então a gente tem todas essas instâncias de
lei que é muito importante que as pessoas que participam compreendam.
Esse aspecto do diretor como responsável pela formação também aparece na fala de
Ana de maneira distinta em outros momentos. Quando ela resgata a história do início da
transformação da escola fica claro sua atuação pedagógica junto aos alunos foi um fator
determinante para que o projeto pudesse ser possível. Ela nos conta que
Essa dimensão de sua atuação como diretora é inclusive aquilo que, de acordo com
ela, garante a especificidade educativa de seu cargo e a necessidade de uma formação
pedagógica para ocupá-lo. Ao referir-se à dimensão administrativa de sua prática ela inicia
22
Até o momento da entrevista a diretora Ana Elisa Siqueira continuava responsável por um grupo de tutoria de
estudantes.
100
afirmando que “qualquer burocrata, qualquer pessoa pode fazer o que eu faço” e depois faz
uma ressalva: “se eu não me metesse na pedagogia qualquer um podia fazer o que eu faço”,
“só não dá para fazer porque eu me meto no pedagógico”. Tais frases ilustram como o que é
esperado da atuação do diretor é algo “meramente burocrático”. Frente a tal expectativa Ana
se mostra bastante insatisfeita e afirma que “você faz o burocrático, deu conta, acabou. Basta
isso. E eu acho que não basta isso!”. Ela prossegue então resgatando e reconhecendo a
importância daquilo que chama de burocrático: “o burocrático é importantíssimo, mas o
burocrático tem que ser menor do que a qualidade da escola, menor do que o projeto da
escola”.
Paro (2010) faz algumas considerações sobre a relação entre direção escolar e a
administração (da escola) e apresenta importantes elementos para compreender isso que é tido
como “burocrático”. Ele afirma que os estudos sobre direção escolar tendem a dicotomizar as
atividades escolares em pedagógicas e administrativas. Com isso as atividades administrativas
são entendidas com aquelas atividades-meio (serviço de secretaria e outros serviços
estruturais e de direção), necessárias à realização última da escola, ou seja, a educação das
novas gerações. E, nesse sentido
Entretanto, como “vigora nos sistemas de ensino e nas políticas públicas educacionais
uma concepção estreita de educação” (p. 771), o que prevalece é uma compreensão que
associa a direção escolar à direção empresarial (estruturada a partir do assujeitamento) e que
valoriza as práticas administrativas como mera técnica a ser aplicada, sem relação com as
especifidades da educação. Nesse sentido, a afirmação da diretora de que “qualquer burocrata,
qualquer pessoa pode fazer o que eu faço” e que “você faz o burocrático, deu conta, acabou.
Basta isso” revela como ela está submetida a essa maneira de conceber a educação que
valoriza o caráter administrativo mais restrito.
Ela, porém, sente que sua atuação não deve ficar restrita a esse ponto e afirma
enfaticamente “[...] eu acho que não basta isso!”. Ou seja, para Ana sua atuação como diretora
deve estar ligada à dimensão pedagógica, como indicado pela afirmação “[...] eu me meto no
pedagógico”. Entretanto, ela não entende que existe uma contraposição entre o “burocrático”
e o pedagógico, como se para escola funcionar devesse optar por um ou outro aspecto. Pelo
contrário, ela afirma que “o burocrático é importantíssimo, mas o burocrático tem que ser
menor do que a qualidade da escola, menor do que o projeto da escola”.
[...] una escuela democrática será aquella que sepa organizarse de modo que
estimule la participación de todos los implicados: que reconozca como
interlocutores válidos a todos sus membros (p. 57).
103
A participação é algo a ser estimulado, não bastando apenas que exista como
possibilidade para a comunidade, é preciso um esforço ativo que busque produzir um maior
envolvimento com o funcionamento da escola.
Assim, o presente eixo temático apresenta, a seguir, como ao longo da entrevista com
a diretora Ana Elisa a dimensão da participação esteve presente. Mais especificamente,
apresenta uma análise das considerações da diretora sobre a participação dos alunos, dos pais
e dos professores, cada um deles separadamente.
Tal estratégia pode ser ampliada de modo que a partir de determinado tema de
interesse do aluno é possível apresentar outras temáticas e discussões semelhantes, sendo que
estas não necessariamente devam se restringir à dimensão do funcionamento institucional –
podendo inclusive ser relacionadas com os conteúdos curriculares a serem estudados e
aprendidos. Dourado (2015) propõe como algo central à organização de todo processo
educativo a ideia de expandir os conhecimentos dos alunos partindo de seus interesses
(informação verbal)23. Perspectiva essa semelhante às concepções de Dewey que, de maneira
geral, propõe que a educação deve partir da criança, seus interesses e conhecimentos, e ir mais
além, promovendo o desenvolvimento em um processo dirigido pelo professor, porém de
maneira não autoritária (BRANCO, 2010). No mesmo sentido, Freire (2011) também aponta
23
Informação fornecida por Yvan Dourado na II Semana de Psicologia e Educação do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, em 2015.
105
como indispensável a estratégia pedagógica de partir daquilo que as pessoas conhecem24, isto
é, construir o conhecimento crítico a partir da vivência concreta.
Essa estratégia utilizada para estimular a participação dos alunos está diretamente
ligada à compreensão apresentada por Ana Elisa de que a escola também tem o dever de
promover a formação de valores democráticos, que a escola deve promover experiências de
atuação em decisões coletivas para que as crianças aprendam a lidar com as diferenças e as
divergências, aprendam a conversar e a compreender que em tais circunstâncias é preciso
pensar o todo e não apenas as vontades e interesses particulares. Assim, para Ana Elisa, um
dos aspectos da educação escolar é “[...] o tempo todo inventar formas para conversar sobre
isso [democracia e participação] com as crianças, não adianta falar só com a comunidade, as
criança precisam também viver [...] isso”.
Paro (2010) critica o que chama de “concepção estreita de educação” que vigora nos
sistemas de ensino, onde prevalece a ideia de “transmissão de conhecimento” que
desconsidera que “[...] por mais que se insista, os conhecimentos e informações não se
transmitem sozinhos, isolados de outros elementos da cultura” (p. 773). É possível afirmar, de
maneira coerente a tal crítica, que as concepções apresentadas por Ana Elisa ao longo da
entrevista indicam que no funcionamento escolar se faz presente uma compreensão de que “os
valores relacionados à democracia não são alheios à forma de aprendê-los” (PARO, 2002,
p.18) e que “[...] la escuela reflejará e impulsionará la democracia en la medida que en su
24
Essa concepção se aproxima de algumas das proposições de Vigotski sobre Zona de Desenvolvimento
Próximo, a medida que ele defende a significa importância de ter clareza sobre o momento em que a criança se
encontra para poder desenvolver estratégias que promovam seu desenvolvimento.
106
interior se lleven a cabo prácticas democráticas” (ROVIRA, 2000, p. 57). A participação das
crianças é algo indispensável ao funcionamento escolar, tendo em vista sua finalidade
educativa e formadora para uma sociedade democrática.
Rovira (2000) enfatiza que uma escola que se pretenda democrática deve abrir um
espaço para a “regulação da vida comum” e, nesse sentido, as assembleias de alunos são “[...]
un elemento esencial en una escuela democrática y instrumento insustituible de la educación
en valores” (p.64). Isso porque as assembleias
Ana Elisa destaca que o fundamental nesses espaços de participação “[...] não é o que o grupo
faz, mas sim o que ele pensa da escola”. As atividades exercidas pelo grupo são um meio para
a formação de valores democráticos que, nas palavras da diretora, possibilitam ao aluno “[...]
entender que a parte dele compõe um todo, assim como a gente compõe o todo o tempo todo”.
O grupo de responsabilidade desempenha uma função semelhante às assembleias no sentido
de que
Levar em conta o interesse do todo, ter como horizonte o bem comum, implica
também em perceber que esse todo está em constante transformação. No caso da escola
podemos citar como exemplo a entrada de professores e de alunos novos, lembrando que
mesmo aqueles que permanecem durante anos também, ao longo do tempo, modificam seus
interesses e compreensões acerca do mundo. Com isso, cabe destacar que a permanente
transformação também é uma característica fundamental da democracia, uma vez que esta é
um sistema aberto, em construção (RIBEIRO, 2008; ROSENFIELD, 2008; SILVA, 2004).
Portanto, uma escola que se pretende democrática deve estar atenta e se reinventar
constantemente, preocupação essa que parece quando Ana Elisa, ao comentar sobre a
importância da participação para a formação dos alunos, afirma que a escola foi “encontrando
alguns caminhos” e enfatiza que, entretanto, “nunca são caminhos totalmente resolvidos”.
Importante destacar ainda que a preocupação com os interesses dos alunos não se
restringe apenas à dimensão do funcionamento institucional, ou a promoção de hábitos e
comportamentos democráticos. O interesse dos alunos também é entendido como algo central
ao processo de aprendizagem e responsável direto por alavancar o desenvolvimento do
108
conhecimento dos alunos. Dessa maneira, são poucas as aulas expositivas (matemática, inglês
e de oficina de texto) e o estudo acontece através de apostilas com roteiros25 de pesquisa que
possuem objetivos (perguntas ou tarefas) que devem ser realizados ao longo do ano pelos
estudantes. Existem diversos roteiros e cada aluno decide em qual ordem quer completá-los.
Os alunos estudam em dois grandes salões (resultado da demolição das paredes que dividiam
as antigas classes) e são separados por ciclos, I e II, mas não por série ou ano. Nesses salões
os alunos se reúnem em pequenos grupos que não necessariamente estão desenvolvendo as
pesquisas de um mesmo roteiro, e contam com a presença de cinco a seis professores tutores,
responsáveis por auxiliar os alunos com dúvidas e explicar conceitos de acordo com a
necessidade.
A escola é responsável por motivar os estudantes e fazer com que se interessem pelos
conteúdos. Nesse mesmo sentido, Paro (2010) afirma que o processo pedagógico, uma vez
que tem por finalidade a formação de sujeitos – o que não é possível através de práticas
autoritárias – deve tomar o educando como sujeito, ou seja, “ele só se educa se quiser” (p.
772). Entretanto, tal afirmação não deve ser tomada como um elogio ao espontaneísmo, tal
como a crítica à Summerhill feita por Snyders (2001). Ao contrário, Paro (2010) enfatiza que
“querer aprender não é uma qualidade inata, mas um valor construído historicamente” de
modo que “levar o aluno a querer aprender é o desafio maior da didática” e que “educar não é
apenas explicar a lição ou expor um conteúdo disciplinar, mas propiciar condições para que o
educando se faça sujeito de seu aprendizado” (p. 772). Ou seja, não se trata de esperar o
momento em que o aluno tenha interesse para somente então aproveitar e usar tal interesse
25
Importante reafirmar que “Os roteiros, elaborados pela equipe pedagógica do Amorim Lima, levam em conta
todo o conteúdo recomendado pelo MEC que as crianças deverão aprender durante o seu ano letivo. Eles são
feitos a partir dos livros distribuídos pela rede pública, mas não têm divisão por matérias – e sim por temas.
Assim, um mesmo roteiro pode exigir que a criança busque respostas no livro de português, geografia e história,
por exemplo”. E “Quando acaba de preencher o seu roteiro, o estudante escreve um portfólio, com tudo que
aprendeu com aquele roteiro e entrega para o tutor, que avalia se ele pode receber a apostila seguinte, com os
demais roteiros. Não há provas. O progresso do conhecimento é avaliado pela qualidade dos portfólios e pela
participação do estudante na escola” (EMEF DESEMBARGADOR AMORIM LIMA).
109
para fins educativos. Trata-se justamente de, como disse Ana Elisa, “fazer tudo para que essas
crianças queiram estudar”.
A participação dos pais é apresentada pela diretora Ana Elisa como sendo o grande
diferencial que a escola tem frente às outras da rede. Ela conta que “trazer a comunidade para
dentro da escola foi a mudança mais forte que aconteceu”, possibilitando as transformações
posteriores. A diretora explica que “a participação da comunidade foi a coisa mais
importante” porque a partir de então “a comunidade começa a pensar a escola que a gente tem
e que escola a gente quer ter”. Singer (2014) aponta que uma das características que definem
as Escolas Democráticas é justamente a possibilidade que a comunidade tem de agir para
transformar a escola de acordo com seus interesses políticos (informação verbal) 26.
Assim como acontece com os alunos, Ana Elisa conta que a estratégia para promover
a participação dos pais é, inicialmente, engajá-los na construção de atividades que lhes
interessem, isto é, partir de preocupações concretas da realidade escolar dos filhos. Assim, as
festividades de modo geral – e a Festa Junina em particular – surgem como momentos
especiais, pois mobilizam o interesse de parte significativa da comunidade. As ideias e
necessidades decorrentes da preparação e realização das festividades possibilitam àqueles que
participam uma maior proximidade dos professores, de outros pais e da escola como um todo,
além de conhecer e compreender sobre o funcionamento institucional. Perrella (2012),
investigando sobre a formação política de pais que se envolvem com o Conselho Escolar na
cidade de Suzano (SP), afirma algo que é possível ser generalizado a outras esferas de
atuação.
26
Informação fornecida por Helena Singer no encontro da Rede Nacional de Educação Democrática, realizado
dia 14 de março de 2014, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
111
Em uma cidade como São Paulo, onde as famílias possuem ritmos bastante diversos,
onde se perde muitas horas no trânsito ao se deslocar pela cidade, ter uma flexibilidade no
horário de atendimento à comunidade é imprescindível, sob o risco de impedir a participação
concreta dos pais e torná-la mera formalidade.
Ana Elisa conta que os pais também podem participar em diversas comissões que são
responsáveis pela manutenção do espaço escolar, como a Comissão de Cultura da Paz e a
Comissão de Festas. Assim, a participação dos pais não se restringe somente àquilo que é
previsto legalmente, como Conselho Escolar e APM. Perrella (2012) afirma que a prática
participativa permite uma formação gradativa, sendo fonte de uma aprendizagem que não se
limita apenas àquele espaço, formando para a atuação nos espaços públicos de modo geral.
Entretanto, alerta para a necessidade de atenção e cuidado com o fato de que a participação
112
não garante por si mesma uma formação crítica, podendo ser um espaço reprodutor de
autoritarismo. Existem contradições nessa aprendizagem, de maneira que ela pode contribuir
para a emancipação de sujeitos ou para a opressão. A escola deve, portanto, estar atenta,
estimular e possuir práticas coerentes com valores democráticos.
Se por um lado esse exemplo conta como o envolvimento da comunidade pode trazer
benefícios para a escola, também mostra o impacto das políticas neoliberais sobre a educação
pública. Paparelli (2010) aponta que, no bojo das reformas educacionais dos anos 1990, o
avanço de tais políticas implicou em um “apelo ao voluntarismo e ao comunitarismo como
forma de suprir necessidade das quais o Estado se libera” (p. 323). Lima (2013) aponta que a
“a luta por uma escola pública e popular implicará um processo de progressiva abertura e
inserção comunitárias, mesmo de apropriação criativa da escola pela comunidade” (p. 39),
entretanto, alerta o autor, essa maior participação da comunidade não deve implicar na
“retirada do Estado e da Administração através da devolução de encargos” (p. 39), onde
prevalece uma compreensão
Barbosa (2008) discutindo sobre a pedagogia da autonomia aponta que esta vem sendo
apropriada pelo ideário neoliberal de indivíduo auto-suficiente, de tal modo que permite que o
Estado abdique de suas responsabilidades junto aos cidadãos ao mesmo tempo em que
responsabiliza os indivíduos pelos seus sucessos e fracassos, sem considerar as condições
113
sociais. Com isso, “a autonomia é sujeita a uma instrumentalização que nada tem a ver com as
necessidades de [...] realização do indivíduo como pessoa” (p. 460). Dessa maneira, a escola
vive essa contradição de conseguir contar com o envolvimento dos pais – o que implica em
inúmeros benefícios, tanto para o processo pedagógico, quanto para a melhoria dos espaços
físicos – ao mesmo tempo em que essa participação atua para suprir aquilo que deveria ser
responsabilidade do Estado.
A participação dos pais é estimulada pela escola, que dá ampla liberdade de atuação.
Nesse sentido, Ana Elisa conta ainda que os pais tem grande autonomia para tomar algumas
decisões, não sendo necessária a presença dela ou autorização prévia. Por ocasião da
entrevista ela menciona que na semana anterior foi realizada uma assembleia de pais em que
foi criada a Comissão de Cultura da Paz – sem que ela estivesse presente. Ela conta que “tem
muito envolvimento” por parte dos pais e afirma: “eu não sei o que vai acontecer, eu sei que
tem espaço para participar”. Ela enfatiza o apoio às decisões tomadas, porém com ressalvas, e
diz
Sei que em tudo o que for preciso a gente tem que dar força para a
participação. Não posso falar não. Só se for uma aberração. Nesse caso eu
tenho que falar não. Porque também é preciso entender que existem algumas
coisas que não podem ser feitas.
As diversas possibilidades de atuação por parte dos pais, de acordo com Ana Elisa,
“vão se somando”. E, prossegue ela,
Ainda sobre a participação dos pais, a diretora conta sobre a dificuldade enfrentada
quando os valores familiares divergem dos valores da escola. Nesse sentido, afirma que “os
jovens hoje podem muito mais coisas do que há algum tempo atrás” e as famílias tem
permitido aos filhos agir de maneira que não se permitia antes e, frente a isso, a escola tem
como a tarefa pensar sobre os limites. Com relação a esse aspecto, Araújo (2000) fala da
necessidade de trabalhar alguns valores para que a escola possa ser mais democrática,
deixando claro que ela, “consciente do seu papel formativo e instrutivo, não pode trabalhar
com qualquer valor” (p.101). Assim, o autor apresenta o que chama de “valores
universalmente desejáveis”, indicando a Declaração Universal dos Direitos Humanos como
referência. Ao falar da dificuldade enfrentada com relação aos limites, Ana Elisa afirma “A
escola é para todos e de todos e tem que ser na maior plenitude possível essas questões”,
indicado a necessidade de pensar coletivamente sobre tal assunto. Nesse mesmo sentido,
Groppa e Sayão (2004) apontam o “espaço de convivência escolar como público”, onde todos
“são chamados a se responsabilizar por tudo” (p. 26).
O papel dos professores no interior da escola foi pouco abordado na entrevista com a
diretora Ana Elisa. É possível afirmar que, de maneira geral, o mesmo acontece com a
bibliografia pesquisada em que prevalece o destaque ao papel das crianças no interior da
escola e, em algumas ocasiões, também a atuação de seus pais e da comunidade que vive nas
imediações escolares. O professor aparece poucas vezes, sendo referido de maneira mais
generalizada e abstrata como o responsável pela função educativa da escola. Assim, este
aparece mais como uma espécie de figurante em um cenário em que o destaque é a criança em
sua “nova” maneira de aprender – não mais através de aulas expositivas, sentadas em
cadeiras, todas ordenadamente, realizando avaliações periódicas que vão, por sua vez,
produzir as notas, elemento indicativo do quanto a criança tem aprendido sobre aquele
conteúdo exposto. Essa centralidade do papel ativo da criança nessa educação que, em alguma
medida, se pretende inovadora e contra hegemônica, aliada ao pouco destaque dado à atuação
do professor, pode levar à crença equivocada de que este último ocupa um lugar mais passivo,
mesmo importante, e que a direção do processo educativo cabe à criança, em função de sua
autonomia.
aprendizagem, a segunda está ligada a uma compreensão que enfatiza a capacidade de dirigir
a si mesmo.
O autor afirma ainda que, apesar de uma origem e experiências interessantes ao longo
da história, atualmente a pedagogia da autonomia ganha força aliada a concepções neoliberais
de educação, justificando e fortalecendo-as, o que produz efeitos perversos como a perda da
autoridade docente e da importância dos conteúdos curriculares, além de promover uma forma
de ensino elitista.
Com relação à escola investigada, outro aspecto comentado pela diretora foi a grande
rotatividade de professores. A saída de um número significativo de professores todo ano e a
chegada de novos “faz um mal para o projeto [da escola]” e “é duro todo ano ter que
incorporar de 10 a 12, as vezes 15 [de um total de 50], pessoas novas no projeto”. Isso porque,
de acordo com a diretora, há um desconhecimento sobre o funcionamento escolar. Muitos
professores chegam à escola
Conhecendo de ouvir falar ou de um texto que leu. Mas não sabe o que está
acontecendo aqui. E acha que aqui é a maior maravilha do mundo, [...] que
está tudo pronto, que o projeto resolve tudo. E não resolve. Então, se você
não vem para cá para construir junto você vai odiar. [...] Isso é grave aqui
por que chegam muitas pessoas achando que o projeto já está decidido, está
tudo resolvido e vai ter pouca coisa para fazer.
Ana Elisa afirma que a escola está em permanente construção, enfatizando que “o
trabalho de cada pessoa é fundamental”. Em contrapartida ela também conta que existem
alguns professores que “chegam querendo mudar a escola” para uma perspectiva mais
tradicional. Algo semelhante foi também encontrado por Araújo (2002) que, ao propor um
projeto que visava em instituir práticas participativas (assembleias de alunos e docentes) em
uma escola da região da cidade de Campinas, no estado de São Paulo, encontrou bastante
resistência de alguns docentes, que insistiam e manter suas práticas tradicionais, com aulas
expositivas e pouca participação dos alunos sobre os conteúdos a serem estudados.
Ana Elisa também relata ter encontrado dificuldade com relação à alta rotatividade de
professores – à entrada de professores que muitas vezes idealizam o funcionamento escolar e
pouco se engajam na construção cotidiana de novas práticas e estratégias educativas, à entrada
de professores que tentam retornar a escola a um funcionamento tradicional – a diretora
enfatiza a importância do tempo necessário para que os projetos da escola possam ser
desenvolvidos devidamente.
[...] A coisa pública tinha que ter algum direcionamento para que isso não
acontecesse, porque educação não se faz sem tempo, é muito importante o
tempo da escola. [...] Se a gente muda sempre a escola, ou se a cada dois
anos eu saio, eu não me responsabilizo pelo projeto. [...] O projeto tem que
ser consolidado. Não há projeto que vingue com pouco tempo [...].
Dessa forma, mesmo que em certas Escolas Democráticas o papel do professor seja
secundário ao aluno, a bibliografia aponta que na escola investigada isso não ocorre e que é
possível uma maior autonomia dos alunos sem que isso implique na necessidade do professor
abrir mão de seu papel formativo. Ainda que o ensino não ocorra de maneira expositiva e os
alunos possam escolher o que desejam estudar – dentro de um número limitado de roteiros –
está presente concepção de que o professor possui papel fundamental no aprendizado.
Entretanto, na entrevista o pouco que aparece sobre os professores está mais ligado aos
desafios que a escola enfrenta. Em decorrência da lógica de atribuição de aulas vigente no
119
sistema público de ensino existe uma grande rotatividade de professores na escola. Isso é
prejudicial ao projeto da escola à medida que é preciso constantemente lidar com a adaptação
de um grande número de docentes recém-chegados, além do desafio de lidar com professores
que possuem concepções pedagógicas diametralmente opostas as vigentes na escola.
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das elaborações e conclusões extraídas com base nesses elementos da presente
pesquisa, buscou-se conhecer mais acerca da materialização das Escolas Democráticas. Para
tanto, a estratégia utilizada foi a realização de uma entrevista com a diretora de uma escola
pública da Rede Municipal da cidade de São Paulo que pode ser considerada uma Escola
Democrática, tal como definida nos capítulos acima. Com base nessa entrevista e em sua
posterior análise, o presente trabalho tomou contato com os princípios que orientam as
práticas existentes naquele espaço e as compreensões sobre a participação dos estudantes e de
seus pais no cotidiano escolar. A seguir, encontra-se a síntese dos principais elementos e
discussões produzidas ao longo do trabalho.
Ainda que seja ampla a difusão da democracia enquanto um valor social positivo,
existem entendimentos significativamente distintos, muitas vezes até mesmo opostos, sobre
em que ela consiste e quais as implicações para uma sociedade que pretenda trabalhar para
sua manutenção e desenvolvimento. É, portanto, necessário definir explicitamente os
princípios subjacentes à concepção adotada no presente trabalho.
121
Enquanto na democracia política é necessário que não haja distinções de status entre
os participantes, que exista igualdade de condições de participação, no caso da educação –
assim como no caso de outras instituições como, por exemplo, um hospital – as distinções
estão dadas pela sua finalidade. A escola existe enquanto instituição cuja tarefa é transmitir às
novas gerações, de modo sistemático, o saber acumulado pela humanidade, contribuindo para
desenvolvimento das características humanas não naturais, mas formadas historicamente.
Com isso, está dada, por princípio, uma assimetria de relações relativa à função a ser
desempenhada por cada um na instituição. Dito de outro modo, ao aluno cabe aprender e ao
professor cabe ensinar27. Entretanto, é preciso cuidado para que essa assimetria não se torne
justificativa de uma educação autoritária. Uma educação democrática precisa estar atenta ao
tênue equilíbrio entre a assimetria funcional das relações e a simetria democrática dos
princípios que devem reger as instituições sociais. Importante destacar que tais considerações
não se restringem apenas à relação professor-aluno, mas inclui a participação da comunidade
e também a atuação de outros agentes escolares.
27
Claro, como aponta Paulo Freire, que o professor não é aquele que tudo sabe, enquanto o estudante aquele que
nada sabe, sendo o professor responsável por “depositar” o conhecimento no estudante, como um depósito
bancário, que pode ser sacado quando necessário (FREIRE, 2011). Entretanto, é preciso cuidado para que as
diferenças não se apaguem, o professor possui uma formação e um acúmulo de conhecimentos específicos que o
estudante não possui, mas que é desejável que venha a possuir, afinal esse é o papel da escola.
122
Sobre as Escolas Democráticas, cabe dizer que, apesar de certo aspecto inovador de
suas práticas, sua origem data de meados século XIX, como efeito das Revoluções Burguesas.
Tais escolas surgem inspiradas pelas ideias socialistas e anarquistas, que buscavam a
radicalização das conquistas alcançadas por essas revoluções, promovendo uma educação
orientada por valores como a universalidade do acesso e a gratuidade, a laicidade, a ênfase na
temática do trabalho, e a promoção de uma educação integral – que privilegia o
desenvolvimento de aspectos intelectuais, morais, físicos e cívicos.
28
Tal crítica encontra-se no texto A Transformação Socialista do Homem.
123
Nesse sentido, é necessário destacar que a Escola Democrática escolhida para ser
estudada mais profundamente no presente trabalho, a EMEF Desembargador Amorim Lima,
traz uma importante contribuição. A escola tem discernimento de que, apesar de promoverem
práticas que implicam em maior liberdade dos estudantes – sobretudo quando comparadas às
práticas de uma escola do modelo hegemônico – os alunos não tem total e irrestrita liberdade.
Os estudantes não podem, por exemplo, escolher não estudar, escolher deixar a escola a
qualquer momento sem o acompanhamento de um adulto responsável. O que prevalece é o
entendimento de que os estudantes estão na escola para estudar, cabendo ao professor a tarefa
de ensiná-los. Definitivamente não existe um único modo de ensinar e essa é uma das grandes
diferenças entre as Escolas Democráticas. Algumas propostas, apesar de grande liberdade
para o aluno, tem o professor conduzindo o processo de ensino, havendo por parte da escola a
compreensão de que é necessário que os estudantes aprendam conteúdos específicos. Afinal,
não podem sair da escola sem aprender a ler, por exemplo. Nesse sentido, os marcos legais da
educação nacional, como os Parâmetros Curriculares Nacional, auxiliam ao dar contornos
mais nítidos sobre os conteúdos necessários de serem aprendidos por todos que frequentem a
escola29.
29
Existem contradições nesse processo. Em uma sociedade estruturada através de relações de dominação, como
a sociedade capitalista, a dominação também se faz por meio de determinados conteúdos, escolares ou não.
Nesse sentido, é importante resgatar a compreensão da democracia como processo, como algo a ser
constantemente aprimorado. Importante resgatar também a necessidade da educação (que se pretenda
democrática) ter como horizonte a superação do modo capitalista de produção. Esses aspectos, dentre outros já
citados ao longo do texto, indicam que a escola nem é plenamente capaz de realizar sozinhas as transformações
necessárias à sociedade, tampouco é totalmente incapaz de contribuir para tais transformações.
124
Mais especificamente, com relação aos estudantes, é necessário que a escola promova
a formação de valores democráticos por meio de experiências coletivas de decisão, entre
outras estratégias. A partir da participação coletiva, outras formas distintas podem ser
inventadas; o fundamental é estimular os estudantes a considerarem a escola como um todo e
ajudar na manutenção do bem comum pelas proposições nos espaços de debates e também em
atos cotidianos. Assim, a escola precisa ir além da mera transmissão “conteudista” de
conhecimento, levando em conta que os valores democráticos não são alheios à forma de
aprendê-los. Os estudantes passam assim a ocupar um lugar de corresponsáveis na regulação
da vida escolar. Além disso, uma educação escolar que se pretenda democrática deve atentar
para a necessidade de motivar o estudante a aprender. O interesse é algo historicamente
constituído e não deve ser tomado como natural, de modo que não basta a mera exposição dos
conteúdos, é necessário que o ensino crie condições para que os estudantes se façam sujeitos
do (e no) próprio aprendizado.
A participação dos pais no interior da escola contribui para que a comunidade comece
a pensar a escola que tem e a propor ativamente a escola que deseja ter, se envolvendo no
enfrentamento das dificuldades que surgem em tal caminho. E, assim, de maneira análoga ao
que ocorre com os estudantes, articular os pais a partir de seus interesses é algo fundamental
para engajá-los em atividades na escola. Entretanto, a mera participação a partir dos próprios
interesses não basta, também é importante um esforço deliberado por parte da escola para que
125
as decisões dos pais passem do âmbito do interesse estritamente privado para o interesse
coletivo e ao esforço pelo bem comum. Outro aspecto fundamental para articular de maneira
consistente o envolvimento dos pais é a abertura da escola para recebê-los em diversos
horários. Em grandes centros urbanos a maioria das pessoas – sobretudo as da classe
trabalhadora e habitantes da periferia – precisam se deslocar grandes distâncias para ir e voltar
do trabalho diariamente. Isso faz com que tenham grandes restrições para estarem presentes
na escola quando esta impõe um horário muito restrito para receber os pais. Não basta a
escola desejar e estar aberta à participação, é necessário criar condições para que ela se
realize.
30
A atuação crítica não deve ser tomada como pré-requisito à participação e sim como algo que faz parte da
formação política inerente a tal processo.
126
escola com concepções equivocadas sobre o projeto e nem sempre se adaptam. Alguns
chegam inclusive a trabalhar para o retorno às práticas pedagógicas tradicionais. Nesse
sentido, a permanência de pessoas por um longo tempo na escola é fundamental para a
consolidação e manutenção desse projeto, que se pretende distinto do é encontrado
normalmente na rede de ensino pública.
Sobre as Escolas democráticas, cabe ainda destacar o cuidado para não idealizar tal
proposta. Frente aos avanços identificados através da análise da entrevista realizada com a
diretora Ana Elisa Siqueira, da EMEF Desembargador Amorim Lima, é necessário aprofundar
os estudos, no sentido de acompanhar mais de perto o cotidiano das Escolas Democráticas,
vivenciando suas dificuldades e as estratégias criadas a partir dos esforços coletivos para
enfrentá-las. Cabe dizer também que as considerações apresentadas acima são frutos de
elaborações mediadas pelo aporte teórico e pelas leituras acumuladas. Os elementos
apontados são efeito desta sistematização, de modo que a existência concreta de tais
elementos comporta a possibilidade de contradições e aspectos que o presente trabalho, dado
suas especificidades, não contempla. Com isso, se faz necessário aprofundar as investigações
127
Frente ao exposto, peço licença para concluir o texto com a mesma citação que abre o
trabalho:
Com relação ao futuro, a democracia corre perigo. Por isso, para nós é uma
obrigação, é extremamente importante manter solidamente os valores da
democracia e defendê-la das tendências e forças autoritárias que são
inseparáveis do capital (MÉSZÁROS, 2014).
128
REFERÊNCIAS
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Papirus, 2001.
BLEGER, J. Temas de Psicologia: Entrevista e grupos. São Paulo, SP: WMF Martins Fontes,
1980.
BOSI, E. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. Cotia, SP: Ateliê
Editorial, 2003.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 50ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
FREITAG, B. Escola, Estado e Sociedade. (4ª ed. rev.) São Paulo: Moraes, 1980.
KALMUS, J.; PAPARELLI, R. Para além dos muros da escola: as repercussões do fracasso
escolar na vida de crianças reprovadas. In: MACHADO, A.M. & SOUZA, M.P.R. (orgs)
Psicologia Escolar: Em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.
MACHADO, A. M. Relato de uma intervenção na escola pública In: MACHADO, A.M. &
SOUZA, M.P.R. (orgs) Psicologia Escolar: Em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2010.
MÉSZAROS, I. A educação para além do capital. 2ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2008.
PARO, V. H. Por dentro da escola pública. 1ª ed. São Paulo, SP: Xamã, 1995.
SILVA, J. M. S. Escolas democráticas: fatos e ideias. Revista Org. & Demo, vol. 5, n. l, p.
41-54, 2004.
SNYDERS, G. Para onde vão as pedagogias não-diretivas? 3ª ed. São Paulo: Centauro,
2001.
______. Professora desesperada procura psicóloga para classe indisciplinada In: MACHADO,
A.M. & SOUZA, M.P.R. (orgs) Psicologia Escolar: Em busca de novos rumos. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2010.
______. A queixa Escola e o Predomínio de uma Visão de mundo. In MACHADO, A.M. &
SOUZA, M.P.R. (orgs) Psicologia Escolar: Em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2010c.
135
______. El problema de la edad. In: VIGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Tomo IV. 2. ed.
Madrid: Machado Libros.1931/2006. p. 251-273, 2006a.
______. La crisis de los siete años. In: VIGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Tomo IV. 2. ed.
Madrid: Machado Libros.1931/2006. p. 377-389, 2006b.
APÊNDICE
137
O levantamento não encontrou nenhum artigo sobre Escolas Democráticas, tal como
definidas pelo presente trabalho. Entretanto, encontros artigos sobre determinados aspectos
relativos às práticas de tais escolas com, por exemplo, artigos sobre autonomia dos alunos e
participação da comunidade. Assim, tais artigos contribuíram para as formações e discussões
do presente trabalho.
Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão sobre educação e as possibilidades de ampliação
da cidadania e da participação, considerando especialmente as condições em que está se
construindo um espaço público no Brasil, assim como os alcances e limites do processo de
consolidação de engenharias institucionais inovadoras na gestão da coisa pública. Os dados
foram colhidos em pesquisa realizada em quatro municípios paulistas São Paulo, Santo
André, Itu e Botucatu com a finalidade de examinar em que medida e de que forma se dá a
participação na gestão da educação. Os resulta dos permitem avaliar as possibilidades e
138
Resumo: Este artigo propõe-se a discutir as relações entre moralidade, democracia e educação
na perspectiva do pensamento complexo, apontando caminhos e propostas para sua efetiva
implementação no cotidiano educacional, com a convicção de que esse é um imperativo das
novas demandas sociais para a escola contemporânea. Entendendo que um dos objetivos da
educação é o da formação ética, o autor propõe ações intencionais para que a escola propicie
aos sujeitos da educação os instrumentos necessários à construção de suas competências
cognitivas, afetivas, culturais e orgânicas, dando-lhes condições de agir moralmente no
mundo. Nesse sentido, são identificados e discutidos sete aspectos da realidade escolar que
impedem ou contribuem para a democratização da escola e que de vem ser compreendidos a
partir do paradigma da complexidade: os conteúdos escolares, a metodologia das aulas, a
natureza das relações interpessoais, os valores, a auto-estima e o auto-conhecimento dos
membros da comunidade escolar, as sim como os processos de gestão escolar.
Resumo: Para responder a la pregunta que titula el presente artículo, “¿Cómo hacer escuelas
democráticas?”, se ha llevado a cabo um rodeo que nos ha conducido, en primer lugar, a
definir qué se entiende por escuela democrática, a ver cuáles son sus principales limitaciones
y errores, y qué posibilidades le que dan todavía como instrumento educativo de
transformación social. La escuela democrática se ha caracterizado como un espacio de
participación que, sin embargo, muy a menudo ha producido desigualdad y discriminación.
Pese a todo, las escuelas democráticas de ben ser espacios de controversia y lucha en favor de
la democracia. En segundo lugar, el artículo realiza un rápido recorrido por algunos de las
principales tendencias y momentos de desarrollo de las escuelas democráticas. Luego, em su
tramo final, el escrito propone un conjunto de dinamismos pedagógicos que han de ayudar a
construir escuelas entendidas como comunidades democráticas. Dinamismos como los
encuentros, la formación de pequeños grupos, la definición de espacios de diálogo y
participación, y el diseño de prácticas de valor. Finalmente, el texto concluye con la
presentación de una de las prácticas esenciales de las escuelas democráticas: las asambleas de
clase. Además de presentar qué son las asambleas y como deben funcionar, se analisa su papel
en tanto que instrumento de educación en valores y preparación para la ciudadanía.
Resumo: Neste texto discutimos o projeto pedagógico e a relação com a gestão autônoma da
escola. Decorridos cinco anos da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB
9394/96), que prevê a autonomia pedagógica e a participação da comunidade na gestão
escolar, interessou-nos investigar a autonomia como prática social. De que modo a autonomia
delegada contribui para que se mantenham e/ou se modifiquem as práticas estabelecidas na
escola? Ao mesmo tempo em que o projeto pedagógico normatizado/legalizado impõe sérios
controles ao trabalho que se desenvolve na escola, concretizam-se algumas condições para
práticas alternativas, que afirmam a autonomia, não como universalidade abstrata, mas
concreta, historicamente constituída. A pesquisa foi realizada em 37 escolas da rede
municipal de ensino da cidade de São Paulo. Durante os anos de 1999 e 2000 a equipe técnica
dessas escolas – diretores, assistentes de diretoria e coordenadores pedagógicos – respondeu a
um questionário e participou de quatro encontros cujo objetivo foi refletir sobre a implantação
140
Resumo: Partindo de um conceito amplo de política — que transcende a mera luta pelo poder
e se identifica com prática humano-social com propósito de tornar possível a convivência
entre grupos e pessoas — o artigo elabora um conceito também amplo de democracia que,
não se restringindo à sua conotação apenas parlamentar ou eleitoral, é entendida como prática
social pela qual se constrói a convivência pacífica e livre entre indivíduos e grupos que se
afirmam como sujeitos históricos. A seguir, tomada como atualização histórico-cultural, pela
qual se processa a construção do homem histórico pela apropriação da cultura, a educação tem
destacada sua dimensão política precisamente por essa capacidade de propiciar ao ser humano
sua condição histórica e plural, pela qual ele necessariamente deve conviver com outros
sujeitos individuais e coletivos. Ao analisar a forma dialógica e reforçadora da subjetividade
do educando pela qual a autêntica educação precisa desenvolver-se para ser coerente com sua
função de construtora do homem histórico, o trabalho procura evidenciar o caráter do
processo educativo não apenas como prática política mas também como prática
intrinsecamente democrática. A partir desse quadro, o artigo considera as implicações dessa
condição política e democrática para a qualidade do ensino, para a prática administrativa
escolar e para os estudos de administração escolar.
Resumo: Este artigo trata dos conceitos de participação conflitual, participação funcional,
participação administrativa, co-gestão eautogestão, discutindo a noção e o papel da educação
participativa na construção de uma nova sociedade.
141
Resumo: Partindo do reconhecimento de que o termo “democracia” pode prestaras a todo tipo
de propaganda ideológica, há muita dificuldade em esclarecer a noção derivada de ensino
democrático. Para contornar esse obstáculo, o A. distingue entre a propaganda e a ação
democratizadora, atendo-se ao exame da segunda. Neste sentido analisa alguns esforços de
democratização do ensino no Estado de São Paulo, através dos seguintes episódios: Reforma
Sampaio Dória (1920); expansão da matrícula no ensino ginasial (1967-1969) e tentativa de
renovação pedagógica proposta pelos Ginásios Vocacionais. Nessa análise procura também
distinguir entre a idéia de democratização do ensino como prática de liberdade e como
expansão de oportunidades a todos, procurando mostrar como no primeiro sentido pode haver
uma degradação, em termos pedagógicos, da ideia de democracia política.
Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre a relação intrínseca entre democracia e
educação, particularmente na vertente relacionada com a participação dos discentes nas
decisões da escola. Neste sentido e, no quadro do regime de autonomia das escolas
portuguesas, importa identificar os espaços formais e informais que são proporcionados aos
jovens na tomada de decisões da vida organizativa da escola para compreendermos o papel
desta na promoção e capacitação dos jovens para o exercício de uma cidadania ativa. O modo
de vida democrático constrói-se através de oportunidades de aprendizagem acerca do mesmo,
nomeadamente pela vivência de experiências participativas no contexto escolar. Em 2009,
realizámos um estudo, no âmbito da dissertação de uma dissertação de mestrado em Ciências
da Educação da Universidade de Aveiro, Portugal, em duas escolas públicas do ensino básico,
do Concelho de Aveiro, abrangendo uma população composta por 240 alunos do 8º e 9º ano
de escolaridade e 14 delegados de turma. Os resultados mostram que os alunos possuem uma
débil participação formal e informal, apesar de o Decreto-lei n. 115-A/98 prever a
possibilidade de cada escola, no âmbito da sua autonomia, poder promover e criar espaços de
efetiva participação dos alunos. A análise dos instrumentos de autonomia das escolas
estudadas revela que a participação dos alunos é assumida, ainda, como um ideal e não já
como um efetivo projeto de concretização. Concluímos, pois, que as escolas ainda mantêm
uma centralização das decisões nos professores, verificando-se, por parte dos alunos, uma
participação formal, passiva e ritualizada.
143
Resumo: À luz de um conceito de administração (ou gestão) como mediação para a realização
de fins e de uma concepção de política como convivência (conflituosa ou não) entre sujeitos,
e tendo presente o caráter necessariamente democrático da educação para a formação de
personalidades humano-históricas, este artigo apresenta subsídios teóricos para se discutir
como se configura a ação administrativa do diretor de escola básica (com enfoque especial no
ensino fundamental) diante dos fins da educação e da especificidade do processo de produção
pedagógico. Tendo por base a literatura científica sobre administração escolar, o trabalho traz
à discussão uma concepção conservadora, mais identificada com o senso comum educacional,
que advoga métodos e princípios idênticos aos aplicados na administração empresarial
capitalista, e a confronta com uma concepção de cunho progressista, que leva em conta a
condição cultural e histórica do trabalho pedagógico. Ao adotar o ponto de vista desta última
concepção, o texto examina a direção escolar tanto em sua condição técnica, ligada à
condição de utilização racional de meios, que precisa ser consentânea com o caráter educativo
de seu produto, quanto em sua condição política, ligada (do mesmo modo) a seu produto, mas
principalmente à forma de relação social, que se impõe como relação democrática.
envolvimento implica um conhecimento que se requer cada vez mais aprofundado sobre os
processos de construção das aprendizagens culturais que atravessam as escolas. Detecta-se a
presença de diferentes agentes nas escolas estudadas, o que acompanha uma mudança na
concepção de comunidade educativa, a qual abarca alunos, professores, encarregados de
educação e a comunidade envolvente em que as escolas se inserem.
Resumo: O discurso pedagógico em torno da autonomia não é uma invenção recente, antes se
prolonga nos anais da história pelo menos a meados do século 18, altura em que se
começaram a vislumbrar os princípios constitutivos de uma pedagogia da autonomia.
Recentemente, e numa conjuntura que “obriga” as pessoas a serem autónomas, que as torna
responsáveis por todos os aspectos das suas vidas, tenham ou não condições e recursos para
os controlarem, esse discurso passou a ocupar um lugar de destaque nas reformas educativas,
de tal modo que é hoje considerado uma nova ortodoxia da mudança pedagógica. O presente
artigo arranca desta constatação e questiona se a pedagogia da autonomia não está ferida por
uma série de suspeições que lhe retiram credibilidade, nomeadamente a que a associa à
promoção do ideário neoliberal de indivíduo auto-suficiente. A terminar, perguntamos se
145
ainda há lugar para a pedagogia da autonomia, não obstante as dúvidas e as perplexidades que
levanta. A resposta é positiva e passa pela definição não apenas da meta actual dessa
pedagogia, o empowerment, mas também pelos princípios que a devem reger numa démarche
de projectos educativos, assim como pelas tarefas de mediação e animação que cabem ao
educador protagonizar.
Resumo: Este trabalho parte da experiência de uma das autoras como psicóloga escolar de
uma Associação Pró-Educação do Plano Piloto do DF. Com base na Constituição Federal, que
estabelece a gestão democrática como princípio para o ensino público, objetivamos construir
uma proposta de atuação do psicólogo escolar para a gestão democrática em escolas públicas
de Educação Infantil. A pesquisa consistiu de dois momentos: (1) entrevistas com 3 ex-
psicólogas da Associação e produção de relato de vivência profissional da pesquisadora; (2)
146
entrevistas com 17 gestores e 2 psicólogas das escolas públicas de Educação Infantil do Plano
Piloto do DF e com uma coordenadora regional do serviço de psicologia. Defende-se uma
atuação cotidiana do psicólogo junto aos membros da escola em diferentes ações, tais como:
construção do projeto político pedagógico, mediação das relações interpessoais, escuta dos
não ditos nos diálogos, olhar diferenciado para a singularidade dos sujeitos e compreensão da
diversidade do desenvolvimento humano.