235 - Margrid Sauer
235 - Margrid Sauer
PRÓ-REITORIA ACADÊMICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Dissertação de Mestrado
Canoas, 2017
3
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Prof.ª Dr. ª Karla Saraiva, pelos ensinamentos, pelo incentivo, pelo
exemplo e por todas as contribuições durante esta trajetória, em especial nesta dissertação.
Meu muito obrigada às Professoras, Dr. ª Cristianne Famer Rocha, Dr. ª Iara Tatiana Bonin e
Dr. ª Bianca Salazar Guizzo, pelas contribuições, por terem aceito fazer parte da comissão
examinadora desta dissertação, por apontarem outros caminhos, pela cuidadosa revisão, pelas
sugestões.
Aos meus colegas de Mestrado, pelas trocas, pelas contribuições, pelo companheirismo. Sem
vocês, este caminho não teria sido de tanta riqueza. Um agradecimento especial aos meus
colegas do Grupo de Estudos Foucaultiano, que sob a orientação da Prof.ª Dr. ª Karla Saraiva
fomos apresentados às teorizações de Michel Foucault.
Aos meus filhos, Giselle, Filipe e Henrique, à minha nora Caroline Scharlau e ao meu genro,
Cláudio Fonseca. Todos vocês sempre me apoiaram, me incentivaram e ficaram felizes com as
minhas conquistas. Para vocês, meus amores, dedico também essa dissertação. Obrigada por
me ouvirem, pelos longos papos e teorizações nos finais de semana e por trazerem ao mundo
meus netinhos, Rodrigo e Martin.
Agradeço aos meus pais, Haini Sauer (in memoriam) e Edith Burliga Sauer, por terem me dado
oportunidades de estudo que me possibilitaram seguir em frente.
Ao meu sócio, Alessander de Moraes Souto, por compreender todas as vezes que precisei me
ausentar e por sempre me incentivar a seguir em frente, meu muito obrigada.
Por fim, agradeço por esse ciclo de aprendizados, de construção e reconstrução da minha
própria vida, que se completa nesta dissertação.
5
RESUMO
Esta dissertação de Mestrado tem como objetivo compreender a valorização da disciplina na formação
de jovens em tempos contemporâneos. Mais especificamente, proponho-me a pesquisar os motivos que
levam pais e mães de alunos a buscarem Escolas Militares para seus filhos e quais os significados que
atribuem à disciplina para sua formação. Em alguns dos estados brasileiros vem acontecendo um
processo de Militarização de Escolas públicas o que me leva a pensar na hipótese de que os processos
disciplinares, que passam pela docilidade do corpo, ainda encontram espaço na contemporaneidade. É
para este espaço ocupado pelas Escolas fortemente disciplinares, que pretendo voltar minha
investigação. Para realizar este trabalho, tomei como material de pesquisa entrevistas com pais e mães
de alunos que frequentam o Colégio Militar Tiradentes, localizado em Porto Alegre. Este Colégio é
mantido pelo Estado do Rio Grande do Sul e tem no seu comando a Brigada Militar. Escolho o Colégio
Tiradentes porque ele integra o sistema de ensino civil, diferente dos Colégios Militares do Exército,
que possuem um sistema próprio de regulação. Minha pesquisa ficou dividida em duas etapas, sendo a
primeira parte composta por entrevistas estruturadas, com pais e mães de alunos que estavam realizando
a prova de seleção para ingresso. Nesta etapa, levantei as motivações para a escolha do Colégio
Tiradentes. Também, nessa mesma etapa, solicitei autorização deles para realizar a segunda etapa, que
seria com pais e mães cujos filhos tivessem obtido aprovação. Na prova de seleção. Aqueles que
aceitaram participar da segunda etapa forneceram o telefone para contato. A segunda etapa da pesquisa
foi no final de 2016, um ano após a primeira etapa. Na segunda etapa, a entrevista foi semiestruturada e
realizada com cinco mães e teve como objetivo aprofundar as motivações para a escolha do Colégio
Tiradentes e dificuldades de adaptação ao sistema disciplinar. A partir desta pesquisa, consigo perceber
que uma instituição fortemente disciplinar, como o Colégio Tiradentes, ainda encontra espaço ativo na
contemporaneidade. O que leva estas famílias a optarem por um sistema fortemente disciplinar para
educar seus filhos ou filhas é a esperança de um bom desempenho no Exame Nacional de Ensino Médio-
ENEM, que permita a classificação em universidade pública de alta qualidade. O que me parece possível
poder afirmar é que os alunos e alunas do Colégio Tiradentes estão fazendo uma troca, deixando de
usufruir no tempo presente, liberdades típicas da juventude para investir em um resultado que virá em
tempo futuro e que poderá ser mais proveitoso.
ABSTRACT
This dissertation aims to understand the value of discipline in the formation of young people in
contemporary times. More specifically, I propose myself researching the reasons that lead parents of
students to seek military schools for their children and what the meanings they attribute to the discipline
for their education. In some of the Brazilian states, a process of Public School Militarization has been
taking place, which leads me to think about the hypothesis that disciplinary processes which rely on the
docility of the body, still find space in the contemporaneity. To this space, occupied by the strongly
disciplinary Schools, in which I intend to focus my investigation. To carry out this work, I took as
research material interviews with parents of students attending the Tiradentes Military School, located
in Porto Alegre. The institution is maintained by the State of Rio Grande do Sul and has at its command
the Brigada Militar. I have chosen the Tiradentes Military School because it integrates the civil education
system, different from Army Military Colleges, which have their own system of regulation. My research
was divided into two stages, the first part of which consisted of structured interviews with parents of
students who were taking the entrance selection test. At this stage, I raised the motivations for choosing
the Tiradentes College. Also, at this same stage, I asked for their authorization to carry out the second
stage, which would be with parents whose children had been approved in the selection test. Those who
agreed to participate in the second stage provided the phone to contact. The second stage of the research
was by the end of 2016, one year after the first stage. In the second stage, the interview was
semistructured and carried out with five mothers and aimed to deepen the motivations for choosing the
Tiradentes Military College and difficulties in adapting to the disciplinary system. From this research, I
can see that a strongly disciplinary institution, such as the Tiradentes Military College, still finds an
active space in the contemporary age. What drives these families to choose such a strongly disciplinary
system to educate their sons or daughters is the hope of a good performance in the ENEM, which allows
them to be classified in a high-quality public university. What I think it is possible to affirm is that the
students of the Tiradentes Military College are making an exchange, failing to enjoy, in the present time,
typical liberties of youth to invest in a result that will come in a future time and that could be more
profitable.
Lista de Figuras
Lista de Tabelas
Lista de Quadros
SUMÁRIO
1. INTERESSE SOBRE O TEMA ............................................................................................. 13
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................... 89
O soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe; que leva os sinais
naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho: seu corpo
é o brasão de sua valentia
(Michel Foucault, 2007, p.117)
A escolha do meu tema de pesquisa se deu a partir de um acaso: certo dia, quando
passava em frente ao Colégio Militar de Porto Alegre, observei jovens estudantes adolescentes
ostentando uniformes militares. Meninas com cabelo preso, meia calça branca, saia e boina e
meninos com cabelos bem curto, calça comprida, todos impecavelmente arrumados. Em outros
tempos, essa cena cotidiana não teria chamado a minha atenção, mas desta vez, já como aluna
do Mestrado em Educação da Universidade Luterana do Brasil, meu olhar não foi o mesmo e
passei a refletir sobre como aquela educação se encaixaria no mundo atual e que atrativo teria
para aqueles jovens.
A cena já tinha me surpreendido em outros momentos, pois como não sou natural de
Porto Alegre, e a cidade onde nasci e vivi parte da minha vida não tem quartel, nem colégios
de ordem militar, confesso que tinha total ignorância sobre o assunto. Mesmo tendo me
surpreendido em outros momentos, nunca havia me ocorrido qualquer divagação a respeito do
assunto. Apenas achava curiosa tanta imponência. Porém, neste curso de mestrado, fui
apresentada a autores que mudaram a perspectiva sob a qual olho o mundo, e sob a qual olhei
para aqueles jovens. As leituras, as discussões em aula, a dedicação de meus professores e em
especial as leituras que tenho feito da obra de Michel Foucault, para os nossos encontros de
orientação, me permitiram outro olhar para aquela cena. De acordo com as teorizações desse
autor, a disciplina “esquadrinha, desarticula e recompõe o corpo humano, num mecanismo que
o torna tanto mais obediente, quanto mais útil, e inversamente. Temos nessa relação a
fabricação de corpos dóceis”. E foram estes corpos “dóceis” que observei, pela primeira vez,
naqueles alunos (FOUCAULT, 2007, p. 119).
Esta inquietação e a expressão “corpos dóceis” me acompanharam por alguns dias. Era
o encontro da teoria com a prática, e só conseguia pensar que estava diante de um tema
interessante para pesquisa. Fui, então, investigar um pouco mais sobre os Colégios Militares.
Inicialmente, imaginei que restavam poucas instituições de ensino com orientação militar em
todo o Brasil. Porém, deparei-me com um cenário completamente diferente e com um ativo
movimento de militarização de escolas estaduais em diferentes estados do Brasil. Reportagens
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0
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Fonte: Censo Escolar de 2014
O excerto desta matéria me faz pensar no que escreve Foucault (2007) “a disciplina é
uma anatomia política do detalhe”. Segundo o autor, os processos disciplinares tiveram seu
espaço nos conventos, nos Exércitos e nas oficinas, mas foi a partir dos séculos XVII e XVIII
que se tornaram fórmulas gerais de dominação. Este processo de dominação, de controle
minucioso do corpo, que acaba por lhe impor uma relação de docilidade-utilidade, o autor
chama de disciplina (FOUCAULT, 2007, p. 118). No capítulo 4, retomo e aprofundo as
questões disciplinares.
Os atuais processos de militarização de escolas públicas, em diferentes Estados do
Brasil, levam-me a pensar na hipótese de que os processos disciplinares, que passam pela
docilidade do corpo, ainda encontram espaço na contemporaneidade. É para este espaço
ocupado pelas escolas fortemente disciplinares que pretendo voltar minha investigação. Meu
objetivo é investigar que valor tem a disciplina na formação de jovens em tempos
contemporâneos, segundo seus responsáveis. E mais especificamente, quais são os motivos que
levam pais e mães a buscarem um Colégio Militar, como o Tiradentes, para matricularem seus
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filhos e filhas. E ainda, quais são os significados que estes pais e mães atribuem à disciplina
para a formação desses jovens?
Assumo aqui o pressuposto de pesquisa de que a disciplina nos colégios sob o comando
da Polícia Militar funciona de modo mais rígido do que nas demais escolas públicas.
1
No Rio Grande do Sul a Polícia Militar é chamada de Brigada Militar, nome que a Força Policial do Estado do
RS assumiu em 1892. Ao longo de sua história, a Brigada Militar – BM tem diferentes objetivos, e, por
consequência, diferentes nomes. A partir de 1932 é que a BM assume a tarefa de fazer a segurança pública na
capital do RS. Em 1967 passa também a fazer o policiamento ostensivo de todo o Estado, assumindo a função de
Polícia Militar, porém permanecendo com o nome adotado em 1892.
17
horas de duração. Durante esse tempo, foi possível fazer várias observações, ainda que estas
não estivessem no escopo inicial. Na próxima seção, apresento os dados produzidos nesta
conversa com a direção da Escola.
Esta seção foi elaborada com as informações obtidas na conversa com a Direção, já
mencionada. De acordo com os diretores, o Colégio Tiradentes teve início na década de 1980,
tendo por objetivo principal suprir uma necessidade da corporação para com a formação de
jovens para a carreira militar. Ainda segundo os diretores, este propósito já não existe mais.
Hoje, o Colégio tem como objetivo a formação de “cidadãos”, “bons profissionais” e “pais de
família”.
Também fui informada de que a busca por vagas no Colégio Tiradentes tem aumentado
nos últimos anos. Em média, são de 500 a 600 inscritos para noventa vagas do ensino médio.
São ofertadas trinta vagas para filhos de policiais militares e sessenta vagas para a comunidade
em geral. Este aumento pela procura de vagas vem acontecendo gradualmente. O quadro
docente é formado por professores da rede estadual de ensino, subordinados à Secretaria de
Educação do Estado.
O Colégio Tiradentes oferece estudo aliado à “hierarquia e disciplina”, conforme me
diz o Diretor. Ele acredita que a procura pelo Colégio esteja embasada em diferentes fatores,
sendo o principal deles a busca pelo ingresso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), pois o Colégio Tiradentes tem tido bons índices de desempenho no Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM). Ele ainda comenta que alguns pais fazem vista grossa para a
questão disciplinar para que filhos ou filhas tenham o que consideram uma boa formação. Outro
fator citado por ele é a segurança, relacionada com a tranquilidade de pais e mães por manterem
seus filhos e filhas longe do perigo das drogas. Os pais acreditam que dentro do Colégio seus
filhos estão seguros e a companhia dos colegas é boa. O diretor do Colégio e o diretor do
Departamento de Ensino comentam a expulsão de um dos alunos, por ter sido pego fumando
um cigarro de maconha nas dependências do Colégio.
Pergunto se os adolescentes têm problemas de adaptação. Segundo os Diretores, o
aluno tem três meses de adaptação. Caso não consiga se adaptar, pode solicitar transferência
para outras escolas estaduais. Dizem não haver muitos casos de falta de adaptação, pois as
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regras e a proposta pedagógica do Colégio são claras e a família é que tem que perceber se o
filho ou filha tem o perfil de comportamento requerido pelo Colégio.
Os alunos que passam pelo período de adaptação, que visa o uso correto do uniforme,
o cumprimento das normas que regem o Colégio Tiradentes da Brigada Militar, a realização de
atividades extraclasse de rotina como formaturas diárias e formaturas gerais, participam da
solenidade da troca de boina. Segundo o que está descrito no site do Colégio, a troca de boina,
que inicialmente é na cor marrom claro, passa a ser de cor azul, significando a incorporação do
aluno às fileiras do Colégio Tiradentes da Brigada Militar, conforme descrito a seguir:
Após nossa conversa inicial, solicitei aos diretores autorização para realizar a
entrevista com pais e mães. Neste momento, os diretores sugerem que eu entreviste os pais e as
mães no dia da seleção para ingresso no Tiradentes, que ocorrerá no final se semana seguinte à
entrevista. Segundo me relatam, os pais e as mães ficam aguardando no pátio do Colégio os
filhos e as filhas realizem a prova. Aceito a sugestão, uma vez que teria a oportunidade de
conversar com vários pais e mães em uma única ocasião, tendo em vista que todos estariam na
mesma condição, a de postulantes a uma vaga no Tiradentes.
Uma vez que me foi dada a oportunidade de conversar com os diretores do Colégio
Tiradentes, aproveitei a oportunidade para fazer o registro de algumas de suas falas a respeito
do Colégio Militar.
2
Cerimônia de TROCA DE BOINAS. Disponível no site do Colégio Tiradentes da brigada Militar.
19
- Não somos um reformatório, sabemos que eles são jovens, que querem
namorar, e isso aqui é permitido. Não pensa que não temos jovens
homossexuais e todos aqui são tratados com respeito.
Os Colégios Militares no Brasil têm seu início no final do Segundo Império, com a
criação do Imperial Colégio Militar no Rio de Janeiro, em 1889. Antes deste período, as Escolas
Militares estavam destinadas somente à formação de quadros para o Exército. A criação do
Imperial Colégio Militar (atual Colégio Militar do Rio de Janeiro, que faz parte do Sistema de
Colégios Militares do Brasil - SCMB), visava garantir aos filhos de Militares uma educação
secundária respaldada pelo Estado (LUCHETTI apud NOGUEIRA, 2014).
Em 1912, foram criados os Colégios Militares de Porto Alegre/RS e de Barbacena/MG
e, posteriormente, o Colégio Militar do Ceará (1919). Por razões políticas, estes Colégios
funcionaram por poucos anos e, a partir de 1925, foram sendo extintos, restando apenas o
Colégio Militar do Rio de Janeiro. Ao longo do tempo, os Colégios Militares recuperaram sua
importância, reativando-se os Colégios fechados e surgindo novos Colégios (BRASIL,
MINISTÉRIO DA DEFESA, 2016).
Segundo Nogueira (2014), a instituição Exército Brasileiro sempre viu na educação
uma oportunidade de estreitar laços com a sociedade civil, buscando diminuir as barreiras
historicamente existentes entre Militares e civis. Sob esta perspectiva, a educação Militar exerce
a função de preparar seus alunos, tanto para as carreiras Militares, quando para o exercício das
diversas profissões e funções públicas civis.
O sistema de Ensino Militar Federal se subordina às normas e prescrições do sistema
de Ensino do Exército e, ao mesmo tempo, obedece a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional-LDBEN (BRASIL, 1996). Hoje, são doze os Colégios Militares no Brasil, a saber:
Colégio Militar do Rio de Janeiro, Colégio Militar de Porto Alegre, Colégio Militar de
Fortaleza, Colégio Militar de Manaus, Colégio Militar de Brasília, Colégio Militar de Recife,
Colégio Militar de Salvador, Colégio Militar de Belo Horizonte, Colégio Militar de Curitiba,
Colégio Militar de Juiz de Fora, Colégio Militar de Campo Grande e Colégio Militar de Santa
Maria.
Além dos Colégios Militares do Exército, que possuem um sistema próprio de
regulação, existem os Colégios das Polícias Militares - PM dos Estados e do Distrito Federal,
no Rio Grande do Sul, também chamado de Colégio da Brigada Militar. Esses Colégios
21
integram o sistema de ensino civil. Na próxima seção, apresento a diferença entre os dois
sistemas de ensino.
O Colégio Militar do Rio Grande do Sul, localizado em Porto Alegre, tem seu início
em 1851 como “Escola Militar de Porto Alegre”, destinado à formação de oficiais. Esse foi o
primeiro estabelecimento de ensino militar no Brasil e o primeiro de ensino superior no Estado.
A atual denominação “Colégio Militar de Porto Alegre”, vem com o decreto presidencial, em
22 de março de 1912, data em que o Colégio passa a ter como objetivo a formação do ensino
médio e não mais a formação de oficiais. O Colégio passa por algumas reformulações ao longo
dos anos e em 1939 passou a se chamar “Escola Preparatória de Porto Alegre”, destinada à
formação de cadetes, tendo em vista a II Guerra Mundial. No ano do cinquentenário de sua
fundação (1962), volta a se chamar “Colégio Militar de Porto Alegre”, denominação que
mantém até hoje (ROCHA, 2007).
No Rio Grande do Sul, os Colégios Militares da Brigada Militar fazem parte do Centro
de Ensino Médio Tiradentes, criado através do Decreto nº 29.502, publicado em Diário Oficial
do Estado (DOE) nº 130 de 25 de janeiro 1980, então com a denominação de Escola Estadual
de 2º Grau da Brigada Militar, passando a ter a denominação atual no ano de 2000. A Rede
Estadual de Ensino Militar inclui sete estabelecimentos de ensino, localizados nas seguintes
cidades: Porto Alegre, Passo Fundo, Santo Ângelo, São Gabriel, Pelotas, Santa Maria e Ijuí.
O foco desta pesquisa é o Colégio Tiradentes de Porto Alegre. O Colégio é mantido
pela Secretaria de Segurança Pública e sua administração é exercida por oficiais superiores,
auxiliados por um efetivo militar especialmente designado pelo Comando da Brigada Militar.
A coordenação pedagógica e os professores pertencem aos quadros da Brigada Militar e da
Secretaria de Educação. As unidades do departamento de ensino têm oficiais e praças da
Brigada Militar na Direção Administrativa.
O ensino médio regular, ministrado pelo Colégio Tiradentes da Brigada Militar,
destina-se à comunidade em geral e aos dependentes de policiais militares, com a destinação de
trinta das noventa vagas existentes para este público, pois um de seus objetivos contempla a
garantia de oferta educacional de qualidade aos dependentes de policiais militares. A seleção
para ingresso no Colégio Tiradentes é realizada por exame intelectual constituído por uma
prova escrita com 25 questões de língua portuguesa e 25 questões de matemática, referentes a
conteúdos curriculares do ensino fundamental. Os classificados no exame intelectual passam
por um exame de saúde e, posteriormente, por um exame físico, conforme critérios descritos
no edital de seleção, disponível no site do Colégio.
O exame básico de saúde é composto por um eletrocardiograma - ECG em repouso e
pela ficha médica, devidamente preenchida, datada e assinada pelos responsáveis legais e pelo
médico cardiologista que realizou o exame. Os documentos são enviados à junta médica da
Brigada Militar para análise e confecção da ata médica quanto ao parecer do candidato estar
apto ou inapto para ingresso no Colégio Tiradentes da Brigada Militar - CTBM.
Estando apto para ingresso, o candidato passa para o exame físico, que segundo dados
disponíveis no site do Colégio Tiradentes3, é composto por:
3
Maiores informações estão disponíveis no site do Colégio Tiradentes da Brigada Militar.
23
Os exames físicos exigidos nos Colégios Militares limitam o ingresso de alunos com
problemas físicos ou mentais, ou acima do peso. No caso do Colégio Tiradentes, essas barreiras
de entrada encontram apoio legal na legislação estadual – Lei nº 12.349, de 26 de outubro de
2005 que, em seu artigo primeiro, instituiu o ensino médio na Brigada Militar “de forma
preparatória para o ingresso na carreira de policial militar”.
Passada a etapa de ingresso no Colégio Tiradentes, os estudantes admitidos são
apresentados aos valores que orientam a formação dos alunos na instituição, a saber4:
Visão:
Ser referência como instituição pública de excelência na Educação de Ensino
Médio; promover o desenvolvimento pessoal e intelectual do aluno
Tiradentes.
Missão:
Promover a formação integral de jovens através da disciplina, da hierarquia e
do ensino qualificado, de acordo com as exigências de seu tempo.
Princípios:
Ética; disciplina; moral; cidadania; excelência intelectual e disciplinar;
solidariedade; responsabilidade; respeito; liderança; autonomia.
Como valores que orientam o processo educativo dos adolescentes, o Colégio destaca
os princípios da cidadania, solidariedade, respeito, liderança, autonomia, hierarquia e
disciplina. Na proposta pedagógica, lê-se que a ação educativa prioriza a disciplina, a iniciativa,
o respeito e a consciência cidadã, valorizando os talentos do educando nas atividades artísticas,
culturais e esportivas.
4
Missão, visão e princípios estão disponíveis no site do Colégio Tiradentes da Brigada Militar.
24
A seguir, apresento os uniformes e o regramento para o uso. Apesar de ser uma leitura
um pouco mais longa, penso ser importante, pois mostra o quão no detalhe a escola leva a
necessidade de homogeneizar a aparência e a apresentação de seus alunos.
Após a análise das regras do uso do uniforme, apresento e discuto o sistema de punição
e premiação como mais um aspecto do exercício da disciplina no Colégio Tiradentes. Pois, “na
essência de todo o sistema disciplinar, funciona sempre um pequeno mecanismo penal”
(FOUCAULT, p. 149). As micropenalidades adotadas nos sistemas disciplinares podem ser por
atraso, por falta, por interrupção das atividades, por fala inadequada, pela maneira de se portar,
pela maneira de se vestir, entre tantas outras que aqui poderiam ser exemplificadas
(FOUCAULT, 2007). No bojo desse mecanismo de sanção está a premiação, que é o destaque
para aqueles que se enquadram na norma vigente e não incorrem nas falhas passíveis de
micropenalidades. No Colégio Tiradentes, os alunos que se destacam por atingir os objetivos
da instituição e por não incorrerem em falhas puníveis, são condecorados com medalhas e
alamares5 e podem até assumir o posto de comando da turma, como demonstrarei mais adiante.
5
Alamares são adornos que guarnece uniformes militares de gala, feito de cordão trançado de seda, lã ou metal
com alças.
25
Num sistema disciplinar, o detalhe faz toda a diferença. É no detalhe que a disciplina
opera. Segundo Foucault (2007, p. 118) “é dócil um corpo que pode ser submetido e
transformado”. Escreve ainda esse autor:
Já o uniforme diário possui duas versões, uma em manga longa e outra em manga
curta, respectivamente para inverno e verão. Seu uso ocorre em deslocamentos, representações
e atividades internas do Colégio. Excepcionalmente, em dias de temperatura muito elevada, e
mediante ordem expressa do Comandante do Corpo de Alunos, os discentes poderão participar
das atividades do Corpo de Alunos (CAL) e de sala de aula sem a camisa azul-claro, desde que
estejam com a camiseta branca regulamentar.
O uniforme diário de inverno é composto pelos seguintes itens comuns a meninos e
meninas:
boina na cor azul-marinho CTBM com insígnia do Brasão do CTBM;
camisa azul-claro CTBM, lapelas azul-marinho CTBM, manga longa, com
listra de dois centímetros na cor azul-marinho CTBM nas mangas, com brasão
do CTBM posicionado no centro do bolso esquerdo;
camiseta branca com gola olímpica e brasão do CTBM afixado no peito do
lado esquerdo (manga longa), contendo a dois centímetros abaixo desse Brasão
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o nome de guerra do(a) aluno (a), em letras maiúsculas (tamanho 24, fonte
Arial), em cor azul-marinho CTBM, devendo ser usada sob a camisa de manga
longa;
na camisa azul-claro CTBM, barrotes dourados, referentes ao ano em que o
aluno está matriculado, afixados na extremidade azul-escuro CTBM da lapela
esquerda, e na lapela direita, afixada na extremidade azul-escuro CTBM, o
Castelo dourado símbolo das Escolas Militares;
japona confeccionada em nylon azul-marinho CTBM, com capuz, brasão do
CTBM, afixado de forma centralizada no bolso esquerdo, e a 1,0 cm, acima
desse bolso, afixado de forma centralizada, o nome de guerra do (a) aluno (a)
em letras maiúsculas (tamanho 24, fonte Arial), da cor vermelho, podendo em
dias frios ter o zíper fechado até o pescoço;
cinto cinza CTBM com fivela, niquelada, contendo em sua face externa o
“Castelo” em alto relevo;
suéter de lã, azul-marinho CTBM, liso e com gola “V”, com brasão CTBM e
nome de guerra do aluno, em letras maiúsculas, na cor vermelha, ambos
bordados no lado esquerdo do peito. O nome de guerra será bordado 02
centímetros abaixo do brasão do CTBM em letras tamanho 24, fonte Arial;
luvas de cor azul-marinho ou preto para baixas temperaturas;
cachecol de cor azul-marinho ou preto liso, para baixas temperaturas; e
plaqueta de acrílico em azul com letras maiúsculas, em branco com o indicativo
do nome de “guerra” do aluno, fixada sobre o bolso direito da camisa azul-
claro CTBM.
saia-calça azul-claro CTBM, com listra vertical nas laterais, com dois
centímetros em cetim azul-marinho CTBM, devendo ser usada com o cós
posicionado a dois dedos abaixo do umbigo e com bainha posicionada a dois
dedos abaixo dos joelhos;
legging ou meia-calça de cor preta, lisa (até 80 ou em lã, para baixas
temperaturas); e
bota em couro ou similar, exceto camurça, estilo montaria, na cor preta, lisa,
em tom opaco, salto grosso até três centímetros, cano alto, logo abaixo dos
joelhos, com zíper nas laterais, sem detalhes (fivelas, laços, botões ou outros
adereços).
bustiê azul-marinho;
bermuda justa, com comprimento até o joelho, confeccionada na cor preta ou
azul-marinho CTBM, para ser usada sob calção;
calção confeccionado na cor azul-marinho CTBM, com listra vermelha de dois
centímetros, nas laterais; e
bermuda, confeccionada na cor azul-marinho CTBM, com listra vermelha de
dois centímetros nas laterais;
A critério do Comando da Escola, meninas poderão usar, sem prejuízo das demais
peças do uniforme, uma das seguintes composições:
camiseta branca sem manga, bustiê, calção e malha atlética; ou
camiseta branca manga curta ou manga longa e bermuda justa, com
cumprimento até o joelho.
Foucault (2007, p. 149) escreve que “na essência de todo o sistema disciplinar,
funciona um pequeno mecanismo penal”. É um microssistema de penalidades para os mais
diversos motivos. São penalizáveis as frações mais tênues de conduta inadequada, a ponto de
deixar que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade punível-punidora. Segundo
esse autor, a punição se dá num sistema de gratificação-sanção, na qualificação dos
comportamentos e dos desempenhos a partir de valores opostos, como o bem e o mal.
(FOUCAULT, 2007). E o sucesso deste “poder disciplinar se deve, sem dúvidas, ao uso de
instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e a sua combinação num
instrumento que lhe é específico, o exame” (FOUCAULT, 2007, p. 143).
O Colégio Tiradentes de um mecanismo reverso de sanção. Os alunos que tiverem
desempenho disciplinar e nota acima da média são condecorados, na presença de todos os
alunos. A sanção para os alunos que não atingem desempenho satisfatório disciplinar e de notas
é ficar de fora da gratificação que ocorre na formatura interna. No entanto, esta não é a única
forma de punição presente no Colégio Tiradentes. O regulamento disciplinar, disponível no site
do Colégio, aborda no Capítulo I, do Título III – Das Medidas Disciplinares e Educativas, a
natureza a amplitude das medidas disciplinares. O Objetivo dessas medidas é, segundo o
regulamento, restabelecer o adequado convívio escolar e conscientizar o estudante da
necessidade de atender o regramento social. São as seguintes medidas disciplinares adotadas,
que podem ou não acarretar na pontuação disciplinar considerada para a obtenção de medalhas:
I – Advertência escolar verbal – não decresce a pontuação;
II – Realização de Trabalhos Sociais – não decresce a pontuação;
III – Tarefa de Recuperação Disciplinar – não decresce a pontuação;
IV – Restrição na participação de eventos do CTBM (curriculares ou
extracurriculares) – não decresce pontuação;
33
6
Adorno que guarnece uniformes militares de gala, feito de cordão trançado de seda, lã ou metal com alças.
34
A seguir, apresento as medalhas, que são distinções aos alunos que fizerem jus durante
o decorrer do ano letivo pelo Mérito Escolar, Cultural, Disciplinar e Esportivo. Elas serão
concedidas por portaria do comandante do CTBM e usadas em solenidades, desfiles e
formaturas especiais, colocadas sobre o bolso direito dos fardamentos CT1, CT2, CT5 e CT67,
mediante ordem do comandante do CTBM e o passador será utilizado diariamente nos
uniformes CT2 e CT5 quando não estiver sendo utilizada a medalha. Não podem ser usados ao
mesmo tempo as insígnias (também chamadas de passadores) ou barretes (pequenas
condecorações) com as medalhas, salvo quando os passadores metálicos delas façam parte
integrante.
Medalha de Honra ao Mérito Escolar: É a condecoração concedida ao aluno
que ao longo dos 3 anos possuir a maior média entre todos os alunos, além de
possuir uma conduta ilibada e demonstrar o devido comprometimento com as
atividades do Colégio, possuindo média disciplinar igual ou superior a 8 pontos
no mês da concessão;
7
As numerações correspondem aos uniformes do Colégio Tiradentes, assim identificados: uniforme de gala
(CT1), uniforme diário (CT2), uniforme de educação física (CT3), uniforme de natação (CT4), uniforme de
atividades diárias de equitação (CT5) e uniforme de gala de equitação (CT6)
35
A medalha será adquirida e concedida com ônus para o CTBM, portanto será
concedido exclusivamente ao aluno que estiver com o pagamento da contribuição escolar
atualizada até o mês da concessão. Embora se exalte o mérito para àqueles que conseguem se
enquadrar na norma, as punições para quem não se enquadra na mesma, ou por algum motivo
não pagou a contribuição escolar, consiste em ficar de fora, apenas como expectador desse
cerimonial.
Abordo a seguir o processo de militarização de escolas públicas que vêm ocorrendo
em diferentes Estados do Brasil e no que esse processo se diferencia do Colégio Tiradentes da
Brigada Militar.
Em relação a este tipo de rigidez dos regulamentos, Foucault (2007) argumenta que o
olhar esmiuçante nas inspeções disciplinares, o controle das mínimas parcelas da vida e do
corpo se organiza a partir de algumas práticas, práticas essas cujo objetivo é produzir um
determinado tipo de sujeito. Este tipo de sujeito talvez seja o objetivado pela educação militar.
Esse processo de militarização de escolas públicas não está ocorrendo no Rio Grande
do Sul. Entretanto, nos últimos anos, houve uma expansão na rede de escolas ligadas à Brigada
Militar, com duas novas unidades implantadas, sendo uma na cidade de Ijuí e outra na cidade
de Pelotas. Atualmente, são sete as escolas sob o comando da Polícia Militar no Estado do RS.
40
É contra essa expansão que a nota do jornal Extra Classe, publicação do Sindicato dos
professores das escolas privadas (SINPRO) se posiciona, como mostra a Figura 13, a seguir.
Uma escola que pretende ser exemplar, top de linha, deveria esmerar-se em
criar condições didáticas e pedagógicas para incluir progressivamente todos
os alunos que nela tentam ingressar. É muito fácil dar aula para alunos
41
Outro argumento que traz a matéria, também citado pelo Professor Becker, é que a
disciplina rígida pode causar mais estragos do que benefícios para muitos alunos e que jamais
deveria ser utilizada como fim educacional.
Não há um consenso na comunidade escolar a respeito das escolas militares, sejam
elas oriundas de processos de militarização ou não. Porém, cabe salientar que o processo que
ocorreu no Rio Grande do Sul é diferente dos demais estados, como explicou-me o Diretor da
Rede de Ensino Médio Tiradentes (CTBM), em entrevista realizada no dia 17 de novembro de
2015:
Prosseguindo no tema disciplina, procurei por teses, artigos e dissertações que possam
contribuir com o entendimento do papel que a disciplina tem na educação de jovens em tempos
contemporâneos. No próximo capítulo, apresento alguns dos trabalhos já realizados sobre o
tema e que contribuíram para a minha pesquisa.
42
3. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Tem sido um desafio olhar para o mundo com novas lentes, com novas ferramentas,
que me foram apresentadas no Programa de Pós-Graduação em Educação da ULBRA. Em
especial, cito a caixa de ferramentas de Foucault, da qual irei me apropriar para esta pesquisa.
Outros autores, dentro da perspectiva teórica pós-estruturalista, também contribuíram para as
articulações necessárias.
A obra Vigiar e Punir de Michel Foucault (2007) apresenta um estudo que descreve
como a disciplina foi utilizada para um controle minucioso do corpo e como essa lhe impõe
uma relação de docilidade-utilidade. Os processos disciplinares já existiam nas instituições
religiosas medievais, mas foi nos séculos XVII e XVIII que a disciplina se tornou uma estratégia
de dominação que passou a ser utilizada em diversas instituições como a prisão, o quartel, a
fábrica e a escola.
Diferente do poder soberano, em que havia uma relação de aniquilação dos corpos, por
meio de práticas como matar, esquartejar e expor o corpo em praça pública, para que servisse
de exemplo aos que porventura se atrevessem a desobedecer às leis impostas, o momento
histórico da disciplina é o momento em que nasce uma arte do corpo humano a ser controlado
em cada detalhe. A disciplina visa não unicamente o aumento das habilidades do corpo, mas a
relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e
inversamente. Esse domínio sobre o corpo do outro não é simplesmente para que façam o que
se quer, mas para que operem como se quer. “Muito mais sutil do que a força física, a disciplina
fabrica corpos submissos, exercitados, corpos dóceis”. Em suma, são corpos modelados para
aceitar as rotinas que lhes serão impostas (FOUCAULT, 2007, p.119).
De acordo com Saraiva (2010), a passagem da ênfase no poder soberano para o poder
disciplinar, que vai acontecer ao longo dos séculos XVI e XVII, abre um campo de
possibilidades para as transformações nas relações sociais, fazendo surgir uma nova forma de
exercício de poder, mais econômica e eficaz porque mais sutil. Gradativamente, o poder-força
vai cedendo sua hegemonia para um poder revestido de uma maior astúcia, um poder-saber.
Um poder não mais como algo que se possui, mas que se exerce na relação. Um poder que
submete não pela força, mas por meio de produção de discursos de verdade. A invenção dessa
47
nova anatomia política não pode ser entendida como uma descoberta súbita., mas como uma
multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações
esparsas, que se acoplam, se repetem, se imitam, se apoiam e aos poucos vão esboçando um
método geral de dominação. Para Foucault (2007, p.119):
Segundo Gadelha (2009), o poder disciplinar vai tomando o corpo social, da família à
escola, desta ao quartel, dos hospitais aos reformatórios de “menores”, das fábricas aos
manicômios, mas também dos saberes das disciplinas clínicas às práticas do direito, dos saberes
da epistemologia aos procedimentos que orientam a administração pública, dos saberes das
ciências humanas às práticas que se incumbem da educação e da formação para o trabalho.
Tudo isso é trespassado pelo que Foucault chamou de dispositivo disciplinar (GADELHA,
2009). No dizer de Saraiva (2010):
A rede que permeia as relações sociais permite que o poder disciplinar seja
exercido na sua plenitude. É essa rede de relações que forma a sociedade
disciplinar. Nessa sociedade, é a arquitetura que toma o lugar do soberano com
o esquadrinhamento do espaço, e passa a ser planejada para permitir vigiar
aqueles que estão em seu interior (SARAIVA, 2010, p. 132).
[...] serão propostos para a Escola horários como os seguintes: 8:45 entrada do
monitor, 8:52 chamada do monitor, 8:56 entrada das crianças e oração, 9 horas
entrada nos bancos, 9:04 primeira lousa, 9:08 fim do ditado, 9:12 segunda
lousa, etc. (FOUCAULT, 2007, p.128).
8
São exemplos de instituições de sequestro: a escola, a prisão, o quartel, o hospital, a família (SARAIVA, 2010,
p. 133).
49
9
Escolas palatinas: tinham como objetivo a formação mais ampla do indivíduo. Exigiam muita dedicação e
empenho dos estudantes, pois tinham um currículo vasto. As principais artes liberais estudadas eram: Gramática,
Retórica e Dialética (Trivium) e Aritmética, Geometria, Astronomia e Música (quadrívium).
50
filhos dos camponeses, sem recursos financeiros e presos às obrigações servis, não havia acesso
à educação escolar, ficando eles sem saber ler e escrever por toda a vida (LAUAND, 2013).
No final da Idade Média (século XIV e XV), com o surgimento da burguesia, as escolas
e universidades passaram a receber estudantes oriundos desta nova camada social. Os filhos
dos burgueses iam para escolas e universidades que ofereciam uma formação mais ampla ou
um ensino de caráter técnico, o que vai forçar a nobreza a também enviar seus filhos para essas
escolas. Como escreve Varela (1992), os colégios jesuítas surgem, em grande medida, da luta
contra as instituições educativas medievais, assim como acontece com a manufatura, que
emerge em oposição à oficina artesanal. Das escolas medievais, passa-se a instituições
modernas com colégios e universidades reformadas. Mas é a imposição da escola obrigatória,
inicialmente destinada às classes populares, que transformará os filhos dos artesãos e operários
de “tábula rasa” em trabalhadores disciplinados (VARELA, 1992). No entanto, a instrução dos
filhos das classes populares, mais especificamente na segunda metade do século XIX e início
do século XX, faz parte da medida geral do “bom governo”. Essa educação não tem por
finalidade ensinar esses jovens a mandar, mas sim a obedecer, ensinar-lhes bons costumes e
moralizá-los para que a sociedade tenha paz, pois “custam menos as Escolas do que as
rebeliões” (FERNANDES; GONZALES apud VARELA, 1992, p. 89).
Para o filósofo Kant, do século XVIII, o propósito da educação é não deixar o homem
desviar-se de seu destino, que é a própria humanidade. Segundo o filósofo, “um homem não
pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. O homem é aquilo que a educação
faz dele”. Os próximos excertos demonstram o pensamento desse filósofo sobre a educação
(KANT, 2012, p.9-12):
O homem é a única criatura que precisa ser educada. Por educação se entende
os cuidados básicos da infância (alimentação, subsistência), a disciplina e a
sua instrução;
[...] as crianças são mandadas cedo à escola, não para que ali aprendam alguma
coisa, mas para que lá se acostumem a ficarem sentadas em silêncio e a
obedecer pontualmente aquilo que lhes é mandado, a fim de que no futuro elas
não sigam de imediato seus impulsos.
trabalhadores disciplinados. E segundo Varela (1992), para socorrer os filhos dos operários, a
quem se destina a escola nacional, não faltarão filantropos, higienistas, reformadores sociais e
educadores. As escolas tornaram-se um meio de isolar cada vez mais as crianças da sociedade
dos adultos. Segundo Sibila (2012), a sociedade moderna pensou a si mesma como igualitária,
fraterna e democrática. E para dar conta desse projeto era necessário educar todos os cidadãos,
servindo-se para esse fim dos recursos do Estado Nacional. Na modernidade, a escola não foi
o único dispositivo criado para conter a classe trabalhadora, também vista como perigosa pela
burguesia. Diversos outros dispositivos foram sendo instituídos para que se obtivesse a
transformação dessas classes, como aponta Varela (VARELA, 1992, p. 88):
almas (CÉSAR, 2010). A aliança que ocorreu entre estado, pedagogia e medicina colocou todos
os aspectos da vida das crianças em evidência: além das aulas, as brincadeiras de pátio, a
merenda, as vacinas, os exercícios físicos, a higiene corporal, tudo foi tomado como campo de
intervenção e produção de verdades sobre a infância, formando-se um sistema disciplinar no
qual os exames corporais compuseram medidas centrais no processo de educação escolarizada,
que acabava por repartir a infância entre normal e anormal. Ao longo do século XIX foi se
constituindo um aparelho judicial especialmente concebido para o cuidado da infância e da
juventude, tendo em vista tratar da delinquência juvenil. Esses novos personagens já
apareceram orientados pela psicologia da adolescência e não mais pelas regras moralizadoras
dos filantropos do século XIX (CÉSAR, 1999).
Prosseguindo na análise da sociedade disciplinar, César (2010) aponta que quando se
acena para o fim dos sujeitos escolares, isto é, para o fim da infância e para a morte da
adolescência, o foco do argumento é que as práticas e os discursos que constituíram tais sujeitos
no âmbito dos processos da escolarização disciplinadora da modernidade entraram em crise e
deixaram de produzir tais sujeitos. Essa passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de
controle permite entender as mudanças pelas quais a instituição Escola vem passando desde a
última década, a fim de tornar-se a instância de produção do novo sujeito moral, flexível,
tolerante e supostamente autônomo, requerido pelas novas modulações do controle que
gravitam entre o estado e o mercado neoliberal (CÉSAR, 2010). Foucault já demostrara, no
final da década de 1970, que os limites históricos da sociedade disciplinar estavam demarcados
e que estávamos passando de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle
(SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009). Seguindo na mesma linha de raciocínio de Foucault,
Deleuze compreendeu a crise da sociedade disciplinar como uma crise dos modos de
confinamento centrados na prisão, hospital, fábrica, escola e na família. Para Deleuze (2005),
se os confinamentos da disciplina eram moldes produtores de subjetividades, os novos controles
são uma modulação desses e podem ser transformados continuamente de maneira a produzir a
subjetividade flexível como chave de controle.
Na próxima seção, aprofundo um pouco mais a transição da sociedade disciplinar para
a sociedade de controle e as implicações dessa passagem nas escolas, quando alunos
contemporâneos se deparam com professores e instituições carregadas dos valores da
modernidade.
53
Na sociedade de controle, o trabalho já não prioriza o corpo, mas a alma, como dizem
Lazzarato e Negri (2001), chamando essa “captura da alma” de trabalho imaterial. Esse tipo de
trabalho não está mais limitado ao tempo que os trabalhadores estão na empresa, podendo ser
executado fora dela. Ao priorizar o cérebro, o trabalho não está mais fortemente ligado ao tempo
e ao espaço, fazendo com que a vigilância sobre o corpo perca importância, o que não significa
a ausência de controle, como mencionam Saraiva e Veiga-Neto (2009). Ainda segundo esses
autores, “o cronômetro é substituído por indicadores e a visibilidade se desloca do corpo para
o cumprimento de metas” (p.192). O trabalho imaterial modifica as atividades da cadeia
produtiva e a “transição do capitalismo industrial para o capitalismo cognitivo marca a
passagem da ênfase nos corpos dóceis para a ênfase nos cérebros flexíveis e articulados” (p.
194). Para esses autores, “pensar como estamos sendo governados na atualidade é condição
para que se possa compreender o que vem acontecendo no mundo e, em particular, nas escolas
e em torno das escolas contemporâneas” (p.197). (SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009).
Quando voltamos nosso olhar para a Escola contemporânea, ainda encontramos um
forte resquício da escola disciplinar e de seu modo de confinamento. Embora a vigilância sobre
o corpo tenha perdido importância, como destacam Saraiva e Veiga-Neto (2009), ela ainda é
uma das formas de controle dos adolescentes na escola contemporânea. Na Dissertação de
Alcionéia Teixeira, intitulada Cenas de uma Escola contemporânea: uma geração
indisciplinada ou uma geração de novos sujeitos? a pesquisadora aponta para o descompasso
entre os professores e os alunos.
Em outro ponto, Teixeira toca nos modelos disciplinares que se observam na escola,
embasados na obediência aos regulamentos, enquanto que para os alunos, inseridos em uma
outra lógica, não veem sentido nessas normas: “Para estes sujeitos, surgidos numa racionalidade
contemporânea, parece não haver sentido seguir normas e regras pré-estabelecidas pela Escola”
(TEIXEIRA, 2010, p. 93).
da ordem, por meio do progresso econômico e por meio da globalização. Vou me deter na
exclusão produzida pelos projetos baseados na ordem. Segundo esse autor, este tipo de projeto
tem a pretensão de modificar o mundo. Pretensão esta que sustentou o projeto moderno em suas
mais diferentes vertentes.
O objetivo era construir um mundo novo sob a égide de alguns referenciais
considerados universais, tais como a força e a dominação, no caso do fascismo e do nazismo; o
livre mercado, no caso do capitalismo; e a supressão das classes, no caso do comunismo. Nesses
projetos, há aqueles que se integram, fazem parte, sendo chamados pelo autor de válidos. Mas
há outros tantos que não se adaptam ou que não se encaixam na ordem, funcionando como
falhos. Os falhos são aqueles que não são necessários, ou não se enquadram nas regras impostas
pelo sistema vigente. Bauman (2012) chama à atenção para o fato de que essa exclusão é sempre
legítima, pois é feita pelo próprio aparelho do Estado ou pelas instituições sociais diversas, que
de certa forma a legitimam. A exclusão, dos que merecem ser excluídos pela ordem se dá pela
perda do direito de fazer parte de algo, não pelo resultado da delimitação dos incluídos
(BAUMAN, 2012).
O que Bauman (2012) aponta, e que em especial me interessa nessa análise, é que no
sistema de ordem, os falhos não estão lá porque delimitamos uma fronteira. Eles não estão lá
porque não conseguem fazer parte da ordem imposta, perderam o direito de fazer parte do
espaço que é destinado aos válidos. Portanto, acabam sendo eliminados, banidos do sistema,
pois a ordem é sempre limpa (grifo da autora). O termo válidos também foi utilizado por Saraiva
(2006) para se referir aos consumidores que interessam numa sociedade controlada pelo
biopoder. Nessa sociedade, “só interessam os consumidores válidos. Aqueles que podem, e
devem ir atrás de seus desejos de consumo, em constante renovação” (SARAIVA, 2006, p. 78).
A partir das entrevistas com os diretores do Colégio Tiradentes, mencionada
anteriormente, não encontro uma preocupação com a inclusão. Neste espaço, nada que esteja
fora da ordem é tolerado e isso se justifica por sua forte orientação disciplinar, pois a norma
disciplinar segrega os anormais do grupo (FOUCAULT, 2008). Durante a minha pesquisa, me
foi revelado que a gravidez precoce de uma das meninas fez com que a mesma abandonasse o
Colégio Tiradentes. Ela deixara de ser uma aluna válida: sua gravidez tornava-a uma falha.
Talvez, num outro espaço, o abandono do colégio não tivesse acontecido, mas, naquele espaço,
permanecer estudando não era uma alternativa possível para aquela adolescente.
Outro aspecto, que julgo importante destacar é que o Tiradentes me parece ser um
Colégio para os válidos, para aqueles capazes de bom desempenho, hígidos e diferenciados dos
56
demais, haja vista que só estes passam pelos testes de aptidão já mencionados. Lá se exige
limpeza, limpeza que vai do corpo à mente. Pois, como diz Bauman (2012), a ordem é sempre
limpa.
Segundo Veiga-Neto, os processos inclusivos na educação só puderam ser pensados a
partir do final do século XX, quando a disciplina começa a perder um pouco de sua força
(VEIGA-NETO, 2001). Ainda segundo esse autor, a inclusão precisa da aproximação com o
outro para que se dê um primeiro (re)conhecimento, e para que se estabeleça algum saber acerca
desse outro. Esse processo de inclusão, a que se refere Veiga-Neto, ainda não é realidade para
todos no Colégio Tiradentes.
No próximo capítulo, apresento as análises das entrevistas estruturadas realizadas na
primeira etapa da pesquisa e respondidas por pais e mães de alunos que estavam realizando a
prova de seleção para ingresso no Colégio Tiradentes de Porto Alegre, em novembro de 2015.
57
Neste capítulo, descrevo as etapas da pesquisa, que me permitiram trilhar esse caminho
de análise. A primeira etapa, da qual vou tratar nesse capítulo, foi uma entrevista estruturada
(Anexo A), realizada com pais e mães que aguardavam enquanto seus filhos e filhas realizavam
a prova de seleção no Colégio Tiradentes, na manhã do dia 22 de novembro de 2015. Esta
primeira etapa foi realizada no pátio do Colégio, espaço em que os mesmos se encontravam
durante a espera. A seleção dos participantes foi aleatória, não havendo uma prévia distinção
entre homens ou mulheres. Não foram realizadas entrevistas com outros familiares, sendo esses
descartados na abordagem. Para esta etapa da pesquisa, escolhi elaborar questões que pudessem
ampliar meu olhar sobre o meu questionamento inicial: quais os motivos que levaram à escolha
do Colégio Tiradentes?
Expliquei, naquele momento, que nessa segunda etapa me interessaria conversar com aqueles
pais e mães cujos filhos tivessem sido aprovados e que já teriam cursado parte do ensino médio
no Colégio Tiradentes. Na segunda etapa, que será tratada no capítulo 6, as entrevistas foram
pessoais e semiestruturadas, todas realizada por mim. Para tanto, utilizei de um Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo B), que foi assinado por todos os participantes da
segunda etapa. Esse termo não foi necessário na primeira etapa. A decisão de entrevistar apenas
pais e mães foi para que somente adultos participassem, não adolescentes. A segunda etapa da
pesquisa, assim como a primeira, não foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa. Esta
decisão ancora-se no questionamento feito por pesquisadores no campo das Ciências Humanas
e Sociais a respeito do viés biomédico das resoluções aprovadas pelo Conselho Nacional de
Saúde. Por outro lado, como se refere Pereira (2015) em seu artigo, o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido tem por real objetivo proteger o pesquisador e a Universidade, caso um dia
queiram os pesquisados acioná-los judicialmente, não sendo o pesquisado o alvo das garantias
desse termo (PEREIRA, 2015).
O editorial da revista Educação e Sociedade (2015) aborda a relação
pesquisador/pesquisado como sendo uma relação de mútua confiança, uma relação que se
estabelece ao longo do processo, nos diferentes contatos que fazem e, às vezes, num
acompanhamento de todo um período de pesquisa. Por outro lado, as pesquisas nessa área não
desencadeiam maleficência nos sujeitos pesquisados, motivo pelo qual a área de Ciências
Humanas e Sociais tem se empenhado junto ao Conselho Nacional de Saúde, visando a
conquista de autonomia no desenvolvimento de pesquisas e de definição do risco aos sujeitos
participantes, dadas as idiossincrasias de matrizes teóricas, estatutos epistemológicos e
procedimentos metodológicos dessa área do conhecimento (REVISTA EDUCAÇÃO E
SOCIEDADE, 2015).
Nas duas etapas da minha pesquisa, obtive o consentimento para a realização da
entrevista do próprio entrevistado, uma vez que esse não estava recebendo nenhum benefício
ao conceder a entrevista e nem estava sob nenhum tipo de pressão. Concederam a entrevista de
livre e espontânea vontade, com o objetivo de contribuir com a pesquisa acadêmica. Aqueles
que manifestaram o interesse de participar da segunda fase da pesquisa forneceram
espontaneamente seus nomes e telefones para que pudessem ser encontrados posteriormente.
No entanto, conforme foi acordado com os pesquisados, seus nomes não seriam aqui revelados.
59
Para a maioria dos pais e das mães entrevistadas (80%), os filhos e filhas não
encontrarão dificuldades de adaptação no Colégio Tiradentes. Em 20% dos casos, há uma
expectativa de dificuldade, e ela recai sobre a rigidez disciplinar que os filhos e filhas podem
encontrar na fase de adaptação.
63
lugar, nas citações. É importante salientar que mais de um motivo foi citado pelos familiares,
sendo que a combinação deles é o que os leva a escolher o Colégio Tiradentes.
A partir das respostas dos familiares pesquisados, recortei categorias de análise,
porém, as categorias recortadas não aparecem de forma isolada, mas imbricadas umas com as
outras e ambas com a questão disciplinar como pano de fundo.
O mundo lá fora e a disciplina; e
O desempenho no vestibular como passaporte para o futuro.
MÃE 1: Aqui é mais rígido, mas vale a pena, porque do jeito que está o mundo lá
fora.
MÃE 3: Prepara para o vestibular e para a vida também, pela disciplina, pelo
respeito, porque o mundo de hoje está perdido.
PAI 10: A ideia é buscar uma Escola pública de qualidade. Aqui valorizam o civismo,
usam uniforme, respeitam os professores.
Que “mundo lá fora” seria esse, a que se referem os familiares? Diferentes referências
aparecem nos excertos selecionados que remetem o Colégio Tiradentes para um lugar diferente
“desse mundo que está perdido”; “do mundo violento”, “do mundo sem segurança”. O
sentimento referido pelos familiares pode ser pensado sob o conceito foucaultiano de
heterotopia. Foucault (1967) cunhou esse conceito para se referir a uma espécie de lugar que
está fora de todos os lugares, embora sejam lugares efetivamente localizáveis. Esse é um
conceito que se coloca em oposição às utopias (FOUCAULT, 1967)
Por ser uma escola fortemente disciplinar, o Colégio Tiradentes parece estar fora da
lógica neoliberal imposta pela sociedade atual, que segundo Lazzarato e Negri (2001, p. 30) se
apoia cada vez mais num “trabalho intangível, que já não pode ser mensurado em termos de
hora/homem, que não está mais limitado ao espaço da empresa, nem à jornada de trabalho”. No
Colégio Tiradentes, a disciplina é rígida, a presença é exigida, bem como a pontualidade.
Pensando no que aponta Teixeira (2010) em sua pesquisa, discorrendo sobre os alunos que
querem liberdade e no desencaixe, por ela observado, entre corpo docente e discente, como que
essa disciplina imposta no Colégio Tiradentes cabe na contemporaneidade? Na sociedade
neoliberal, a disciplina tem perdido força e o que se coloca em movimento é um poder muito
mais discreto, que produz muito menos resistências e contestações morais do que a disciplina
(SARAIVA; LOPES, 2011), mesmo assim, os pais e as mães acreditam que seus filhos estarão
bem preparados para a vida estudando numa escola fortemente disciplinar. Observei que a
referência a uma formação disciplinar tem mais força junto às famílias com a presença de
Militares. Esse grupo atribui um maior valor para a disciplina: são quinze entre 22 alunos com
militares na família comparados com seis em 19 alunos sem militares na família.
no ENEM é bastante referida. Para os respondentes, parece, num primeiro momento, que
qualidade e disciplina são sinônimos. As respostas referem conteúdo, cobrança, grade curricular
e supervisão, como valores importantes para a garantia de um aporte de conhecimento suficiente
para o vestibular:
MÃE 13: O Colégio Militar otimiza os estudos dos alunos e preza muito pela conduta
e disciplina, o que é fundamental para se desenvolver como cidadão.
MÃE 15: A disciplina, a didática. Nas (Escolas) não militares é tudo um oba, oba!
Dão o conteúdo e não cobram dos alunos. Isso eu sei que vou encontrar aqui. Eles
supervisionam e cobram dos alunos.
MÃE 9: Primeiro por ser Militar, com regras mais disciplinares: assiduidade,
pontualidade, cobrança de atividades. Aqui também vai ter uma melhor preparação
para o vestibular porque o ensino é mais puxado.
O que observei na fala dos pais e das mães participantes da pesquisa é que a educação
disciplinar, que ainda se impõe no Colégio Tiradentes, agrada e parece produzir efeitos na
sociedade neoliberal, com a aprovação elevada de seus egressos nos vestibulares ou no ENEM.
Como esses testes medem exclusivamente conhecimento, exigem do aluno quatro horas de pura
concentração. Estariam esses sujeitos mais bem preparados física e psicologicamente para
suportar a pressão do vestibular ou do ENEM? A sociedade contemporânea questiona as escolas
disciplinares e essas parecem ser cada vez menos aceitas por alunos, como afirma Teixeira
(2010) em seu estudo. No entanto, ainda há uma parcela de jovens e de famílias que acreditam
na disciplina como forma de facilitar a aquisição de conhecimento e melhorar o desempenho.
Estas famílias vêm na disciplina uma espécie de passaporte para um futuro mais próspero para
seus adolescentes.
Como já referi em diferentes momentos, proponho-me a pesquisar os significados que
essas famílias atribuem à disciplina na formação de seus filhos e filhas, pois como nos lembra
Lazzarato, o trabalho industrial era o modelo de trabalho da Modernidade, e esse tipo de
trabalho necessitava de um corpo treinado no detalhe, capaz de suportar a dura rotina da fábrica,
67
o que não é mais necessário com o advento do trabalho imaterial. Nesse novo modelo de
capitalismo, não se faz mais necessário treinar e fixar os corpos (LAZZARATO, 2006). Essa
mudança de racionalidade educacional, segundo Saraiva (2014), passa por uma gradativa
desvalorização da chamada escola tradicional, norteada pelos princípios disciplinares, e essa
escola estaria sendo proclamada como um modelo ultrapassado, ineficiente e no cerne da baixa
qualidade de ensino. Ainda, segundo essa autora, a comunicação que era estritamente proibida
pela escola disciplinar, passa a ser, com frequência, incentivada. Com isso, a obediência ao
comando do professor também é relaxada. O que se tem percebido é que a educação atual está
muito mais em sintonia com a governamentalidade neoliberal, com o capitalismo cognitivo e
com o trabalho imaterial, do que com a disciplina. (SARAIVA, 2014).
No próximo capítulo, inicio a análise das entrevistas semiestruturadas, realizadas com
cinco mães que aceitaram participar da segunda etapa da pesquisa e cujos filhos ou filhas
passaram na seleção para o Colégio Tiradentes e cursaram o primeiro ano do ensino médio.
Portanto, à época da segunda parte da pesquisa, os alunos já haviam cursado a quase totalidade
do primeiro ano. Dos pais entrevistados na primeira etapa, um deles não aceitou dar entrevista
e, nos demais casos, os filhos não passaram na seleção. Desta forma, restaram as entrevistas
com as mães. Foram convidadas e aceitaram participar duas mães de meninos e três mães de
meninas.
68
6. ANALISANDO AS ENTREVISTAS
entrevista da primeira etapa. Isso vai permitir confrontar a opinião que tinham antes e depois
dos filhos frequentarem o Colégio Tiradentes. As questões que elaborei para esta segunda etapa
dão continuidade às questões da primeira entrevista, permitindo um ponto de partida para a
conversa que se estabeleceu. No Quadro 1 apresento o roteiro elaborado para as entrevistas.
1- No final do ano passado, tivemos a oportunidade de conversar, enquanto você aguardava seu
filho/filha realizar a prova de seleção para o Colégio Tiradentes. Naquela ocasião, você me
falou que a escolha desse Colégio tinha sido, entre outros fatores, porque (resgatar do
formulário a resposta dada na época). Passado esse primeiro ano, como a família está vendo o
sistema educacional do Colégio Tiradentes?
2- De que maneira, esta escola contribui e onde, especificamente, contribui na formação de seu
filho/filha?
4- Você também me disse, na ocasião, que quem escolheu o Colégio Tiradentes, como opção
de Ensino Médio, foi de (resgatar resposta). Podes falar mais um pouco sobre esta escolha?
5- O que mais você elencaria como diferencial do Colégio Tiradentes para a formação de seu
filho/filha?
Para seguir com a análise do material resultante das entrevistas com as mães, mantive
as duas categorias recortadas anteriormente – o mundo lá fora e desempenho no vestibular –
deixando a disciplina como uma categoria de análise separada do “mundo lá fora”. Esta nova
categoria chamarei de disciplina para a vida, ficando assim, três categorias:
O mundo lá fora;
Disciplina para a vida; e
Desempenho no vestibular como passaporte para o futuro.
70
No decorrer deste primeiro ano, parece ocorrer uma separação desses adolescentes do
mundo que está fora do Colégio, o chamado “mundo lá fora”. O que as mães relatam, por vezes,
com preocupação, ainda que disfarçadamente, é que seus filhos vão abandonando os amigos
que tinham fora do Colégio e deixam de se preocupar com celular, maquiagem, roupas. Dito
isso, apresento alguns excertos que sinalizam neste sentido.
Mãe 14: Tem alguns pais [referindo-se às reuniões de pais e mestres], que ficam
falando (entre eles) que os filhos não têm tempo para mais nada. Acham a escola
puxada, “coitadinho”. Mas eles não sabiam como era a metodologia da escola?
[Pergunta-se a mãe]
Pesquisadora: e seu filho, também tem pouco tempo para outras atividades, qual a
sua opinião?
Mãe 14: Ele não tem mais tempo para ficar no WhatsApp, brincando no celular e
coisas assim, como ficava antes. Agora está preocupado com os estudos. Eu acho que
isso é bom!
O distanciamento do mundo lá fora, que o Colégio vai produzindo nos seus alunos,
marca a família e as relações que nela se estabelecem. Porém, curiosamente, o processo parece
se inverter e podemos pensar nesses sujeitos como “incluídos” dentro do espaço do Colégio e
“excluídos”, por assim dizer, do mundo que corre lá fora. E como escreve Ewald (1993), na
medida em que um grupo passa a se relacionar somente consigo mesmo, tem como princípio
72
Mãe 32: A exigência da escola acaba afastando eles da vida social, isso no início foi
um problema para ela. Mas agora já está mais integrada com os colegas do
Tiradentes e acaba fazendo os programas com essa turma.
Mãe 32: tem, mas é menos que antes, quando saía mais com os colegas e ia ao cinema.
Agora precisa estudar muito mais.
Outro aspecto a ser destacado é que a norma que se aplica ao Colégio Tiradentes
assume os dois sentidos que Veiga-Neto (2011, p 112) apresenta, “de um lado: norma como
regra de conduta, como oposição à irregularidade e à desordem; de outro lado: norma como
regularidade funcional, como oposição ao patológico e à doença”. Os dois sentidos de norma
se articulam no espaço do Colégio Tiradentes. O papel da norma disciplinar, segundo Foucault
(2007), é o de estabelecer os parâmetros para a vida dentro de um sistema disciplinar, definindo
os limites entre o aceitável, o normal, e o anormal.
Ao promover uma convivência intensa desse grupo entre si, eles compartilham valores
de conduta, morais e éticos, mas de uma ética interna ao grupo, promovendo a sua própria
normalização. O Colégio retira os adolescentes da exterioridade, do convívio com aqueles que
estão fora de seus muros, de suas regras, para enquadrá-los a uma distância segura da
exterioridade, a ponto deles não se incorporarem aos demais.
A família também é envolvida pelo Colégio, pois é necessário que as regras sejam
respeitadas, e os demais membros da família precisam compreender e aceitar o que é imposto
pelo Colégio, o que parecem fazer sem muitos questionamentos, começando pela pontualidade.
A aula inicia às 7h, pontualmente: nem um minuto sequer há de tolerância para esse horário.
73
Segundo relatou-me uma mãe, às 7h01min o portão é fechado e o aluno não entra mais. O
mesmo ocorre nas reuniões de pais e mestres:
Mãe 4: Essa questão de horário foi o que mais “pegou” a todos nós
aqui em casa. Porque a gente pensa, são só cinco minutos! Não, até
nas reuniões de pais, horário é cumprido à risca. Aos poucos nós fomos
nos adaptando a isso. Eu aprendi a cumprir horário, e aprendi isso com
ele.
Mãe 32: A família teve que se adaptar à rotina dela, que precisa estar
de volta no colégio para o turno da tarde. As aulas lá iniciam às 7h de
manhã, então isso exigiu uma adaptação de horário. É preciso fazer o
almoço dela, deixar tudo pronto para ela levar (marmita).
Acabamos nos mudando para perto do colégio e isso facilitou um pouco
essa questão dos horários dela.
No que me foi possível observar, ao longo das entrevistas, é a família que faz um
esforço para manter o filho ou filha no Colégio Tiradentes. Estes esforços vão da adaptação do
grupo familiar às regras do Colégio ao esforço financeiro. Embora o Tiradentes pertença à rede
de ensino estadual, há obrigatoriedade do uso de uniformes, que são pagos. Há também uma
contribuição mensal com o Colégio. Este tipo de contribuição já existiu, mas não existe mais
nas escolas da rede estadual de ensino. Todos os esforços empreendidos pela família, como
mostrarei mais adiante, têm uma finalidade principal, que é a busca por uma colocação em um
curso superior oferecido pela UFRGS. Tal colocação implica a necessidade de ser bem sucedido
nos exames do ENEM e no vestibular.
A próxima categoria que recortei é disciplina para a vida. Vou discutir como as mães
justificam a disciplina como garantia de sucesso para uma carreira futura de seus filhos ou
filhas.
75
Mãe – 32: Quem não tem boa nota perde os passeios e competições com
outras escolas. Só participa o aluno que tem a nota mínima. Como ela não
vai bem nas notas, e ficou com média baixa, acaba perdendo os passeios e
também a participação no esporte, que acontece no turno contrário.
Mãe – 32: não vejo como uma sanção, mas como um benefício mesmo, para
quem tem boas notas.
Embora essa mãe não considere a perda do passeio como sanção, esta está presente no
regulamento disciplinar como uma sanção, que ocorre por falta disciplinar, ou como relatou a
mãe, por baixo desempenho escolar. De acordo com as mães, a disciplina presente nesse
Colégio vai preparar melhor seu filho ou filha para a vida e para o mercado de trabalho. Por
ocasião da primeira etapa da pesquisa, 80% dos pesquisados disseram que os filhos ou filhas
não teriam dificuldades de adaptação. Na segunda etapa, as cinco mães entrevistadas referiram
que os filhos ou filhas e também as famílias encontraram dificuldades de adaptação,
dificuldades essas que foram desde a rigidez do horário, do uso do uniforme até a disciplina
que o aluno ou aluna precisa desenvolver para poder estudar.
Porém, estas dificuldades, em geral, são significadas como algo que produz bons
resultados. Nesse sentido, as mães veem o zelo com o próprio uniforme, bem como o
comprometimento com a manutenção e limpeza da escola, aprendizagens que os transformam
positivamente e os preparam para a vida.
Mãe-22: Ela tem que limpar o sapato, tem que se responsabilizar pelo
uniforme, e são diferentes uniformes. Foi caro comprar todos eles, tem o dia
do uniforme completo, dia do abrigo, o cabelo precisa estar arrumado,
puxado para usar a boina. Tudo isso são responsabilidades que ela acabou
assumindo e isso prepara para a vida dela depois.
Mãe- 4: O colégio passou para ele coisas que eu não consegui transmitir.
Mãe-4: Fiquei feliz de vê-lo tomando conta de suas coisas, cuidando daquele
uniforme, nem me deixa passar. Ele dá valor, tem respeito [pelo uniforme].
Cumpre o que é combinado. Creio que isso a gente acaba relaxando na
educação e lá ele aprendeu. Acho que todo o jovem devia passar por essa
escola. Vejo que em outras escolas tem vandalismo, está tudo sujo, quebrado.
Lá não tem isso e eles ajudam na limpeza da sala e do pátio do colégio.
Mãe-15: Ela aprendeu muito nesse último ano. Amadureceu, ficou mais
responsável. Ela tem que cuidar do próprio uniforme, passar todos os dias,
arrumar cabelo. Enfim, obrigações com as quais ela não estava acostumada.
Eles limpam a sala, ajudam a limpar o pátio, recolhendo as folhas, são
responsáveis em manter a sala de aula e aquele espaço em ordem.
Outra mãe me diz que a disciplina é necessária para a vida, que regras são importantes
e que estas devem ser cumpridas.
Percebi, ao longo das minhas entrevistas, uma defesa intensa de que o sistema
disciplinar do colégio prepara os filhos e filhas para a vida. Parece-me, no entanto, que não é
apenas a disciplina, como adestramento do corpo e da conduta, que opera no Tiradentes, mas
um sistema normalizador, que, como escreve Ewald, os homogeneíza, ao colocar todos no seu
interior, e os diferencia ao fazer cada um ocupar um lugar, uma classificação. “Enquanto as
77
disciplinas visam os corpos, com uma função de adestramento, a norma é uma maneira de
produzir uma medida comum” (EWALD, 1993, p. 88).
A próxima categoria que vou tratar será “desempenho no vestibular”. Este é o motivo
principal para que famílias busquem o Colégio Tiradentes, conforme a primeira etapa da
pesquisa. As famílias almejam, para seus filhos ou filhas, acesso a boas universidades públicas,
tais como a UFRGS, com entrada através do ENEM ou do vestibular. Embora as falas das mães
tenham se concentrado mais na palavra vestibular, como forma de acesso à universidade, e à
UFRGS como referência, elas sabem que um bom desempenho do ENEM também pode
garantir acesso a outras instituições públicas de reconhecida qualidade. O ENEM também pode
aumentar a probabilidade de acesso a instituições privadas de qualidade pelo Programa
Universidade Para Todos (ProUni). Por fim, o ENEM pode ao menos garantir uma condição
mais facilitada caso o aluno recorra ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) para financiar
seus estudos em instituições privadas. Em suma, um bom desempenho no ENEM não garante
automaticamente acesso à UFRGS ou a outros benefícios, pois há competição, mas um mau
desempenho no ENEM impede o aluno de ter acesso a facilitadores importantes para a
continuidade de sua carreira de estudos.
Desde o início desta pesquisa, ficou claro para mim que o ingresso numa universidade
pública de qualidade é o principal motivo da busca pelo Colégio Tiradentes. Na primeira etapa,
61% dos familiares entrevistados responderam que a busca por uma vaga numa faculdade
pública, a exemplo da UFRGS, era a razão do filho ou filha estar participando da seleção. A
maioria desses adolescentes (63%) é oriunda da rede estadual de ensino, como demonstrado na
primeira etapa desta pesquisa. Ainda na primeira etapa, os pais e mães entrevistados disseram
que a escolha pelo Colégio Tiradentes havia sido do filho ou filha. Porém, as entrevistas com
as mães mostraram que uma considerável influência dos pais ou das mães nessa escolha, e a
razão apresentada para buscar o Tiradentes consiste, basicamente, no fato de que é um colégio
público, cujos egressos atingem boas notas no ENEM e boa classificação no vestibular da
UFRGS. Na segunda etapa, das cinco mães entrevistadas, apenas uma referiu que o filho sempre
quis seguir a carreira militar, que ele é escoteiro e que ir para o Tiradentes era um desejo do
adolescente, sendo que o vestibular não era o único objetivo, naquele caso.
78
Mãe 4: Ele era escoteiro, então ele que queria vir para esta escola, porque
quer ser militar. Esta escolha é dele e quando vim conhecer o colégio eu me
surpreendi com tudo o que vi. Ele fez a prova e rodou na primeira vez e depois
fez novamente. Nós apoiamos a decisão dele.
As demais mães apresentaram o ENEM e/ou vestibular, como motivo da procura pelo
Colégio Tiradentes:
Mãe 15: Queremos uma boa preparação para ela, para prestar o vestibular.
Nesse colégio, eles ensinam com base nas provas de vestibular. Há toda uma
preparação para isso. O processo [de seleção] é rigoroso e quem está lá, é
porque quer estar lá.
Mãe 32: A busca foi pelo desempenho no vestibular. Ela provavelmente vai
rodar nesse primeiro ano. Mas não faz mal, muitos iniciam no Tiradentes
depois de já ter feito o primeiro ano em boas escolas de Porto Alegre. Ela já
está lá dentro. Mesmo que rode, ano que vem será mais fácil. Ela é jovem,
tem somente 15 anos. Então tem tempo para seguir em frente, e também ela
vai ficar mais bem preparada para o vestibular da UFRGS, que é o objetivo.
Entre as dez melhores escolas públicas do país, o Colégio Tiradentes ficou com a 6ª colocação.
Apresento na Tabela 4 o ranking do resultado do ENEM 2015, com as dez melhores
classificações do RS. Até o momento da conclusão da pesquisa, os resultados do ENEM 2016,
por escola, ainda não estavam disponíveis.
Ranking
Média
Nacional
Colégio Politécnico da Univ. Federal de Santa Maria (UFSM) 716,21 33
Outro dado curioso é que das dez escolas públicas gaúchas mais bem classificadas no
ENEM, sete são militares e destas, cinco da rede Tiradentes de Ensino, conforme a Tabela 5.
80
Ranking
Média
Nacional
Colégio Politécnico da Univ. Federal de Santa Maria (UFSM) 716,21 33
Muito se tem escrito sobre os exames nacionais que aferem a qualidade do ensino e
produzem rankings para a classificação de alunos e instituições. Bujes (2012) faz uma crítica a
estes instrumentos de medida que, segundo a autora, aferem uma mera questão de
aprendizagem, ou de qualidade, não se preocupando com outras questões que envolvem o
sistema educacional. Ball é outro autor que trata desse assunto, e para ele a competitividade
desencadeia na escola uma série de práticas em busca de uma esperada performance (BALL,
2004). Em outro artigo, Ball reforça que a performance é alcançada mediante a construção e
publicação de informações e de indicadores que servem para julgar e comparar resultados
(BALL, 2005).
Os programas de avaliação externa do ensino, sejam eles nacionais como o ENEM, ou
internacionais como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), adquiriram
importância e passaram a ser objeto de comparação entre escolas, entre os Estados (no ranking
do ENEM o RS é o 6º) e entre países (no ranking internacional, o Brasil está entre os piores
sistemas educacionais do mundo).
Para Veiga-Neto, são esses aspectos, levantados por Bujes, que nos fazem perceber a
escola desencaixada do mundo atual (VEIGA-NETO, 2003). Reposicionando o foco da
discussão no Colégio Tiradentes, estaria ele desencaixado da expectativa da sociedade? Como
referem algumas das mães entrevistadas, ele é diferente do “mundo lá fora”. É diferente de
algumas escolas estaduais do RS, onde há greve, pichação, desordem, insegurança e uma
baixíssima colocação no ranking do ENEM, na opinião das mães. Se a expectativa da
sociedade, como escreve Bujes (2012), é uma boa colocação no ranking final [vestibular], se
esta é a “caixa”, o Colégio Tiradentes estaria encaixado? Acredito que haja um espaço para este
Colégio na sociedade atual, e ele vem sabendo ocupar este espaço. As demais escolas estaduais
não podem impor sobre seus alunos o poder disciplinar, muito menos o poder da norma, como
faz o Colégio Tiradentes. Neste Colégio, as regras são outras, e estas encontram apoio legal na
legislação estadual – Lei nº 12.349, de 26 de outubro de 2005 que, em seu artigo primeiro,
instituiu o ensino médio na Brigada Militar de forma preparatória para o ingresso na carreira de
Policial Militar.
No entanto, no mundo em que tudo se move a uma velocidade inusitada, alguns
insistem em ficar parados, como diz Bauman (2012). Nossos compromissos se transformam,
assim como os afetos e os valores que professamos. Tudo se encontra sujeito a ser substituído
e descartado (BUJES, 2012). Nas escolhas feitas pelos estudantes do Tiradentes e nas
afirmações de seus parentes, observo uma troca entre abrir mão do tempo presente para investir
num tempo futuro. Diferente do que refere Bauman (2012), de que hoje vivemos a síndrome da
impaciência. Não queremos mais esperar por nada, o tempo passou a ser um enfado e nossos
desejos precisam ser satisfeitos de imediato. Nesse mundo veloz, um egresso do Tiradentes terá
que fazer uma ruptura com o sistema disciplinar ou ficará desencaixado do “mundo lá fora”.
Por outro lado, mesmo considerando esse possível desencaixe, certamente momentâneo, não
estará esse aluno, mais qualificado para o mercado de trabalho? Não terá ele desenvolvido
habilidades, ao longo de sua trajetória no ensino médio, que ainda são valorizadas na carreira
profissional? Diante desse sistema disciplinar, estaria o Colégio Tiradentes formando jovens
capazes de se integrar à sociedade também como cidadão, assim como escreve Dewey (1997)?
Para finalizar este capítulo, apresento uma síntese das falas das mães, e que foram
analisadas segundo três categorias: o mundo lá fora, a disciplina para a vida, e desempenho no
vestibular como passaporte para o futuro. Cada categoria de análise gerou evidências empíricas
relevantes, e cada evidência foi sustentada por elementos teóricos extraídos de literatura
pertinente. O Quadro 2 sintetiza sinoticamente o que foi discutido até aqui.
82
mais rígido do que o vigente nas demais escolas do sistema estadual de ensino. O rigorismo nos
uniformes e o sistema de premiação-punição são apenas alguns dos elementos, possivelmente
os mais importantes, do sistema disciplinar a que os estudantes devem se submeter. Para tanto,
é necessário que o estudante mantenha distância do que chamei de “mundo lá fora”. É preciso
se afastar de hábitos e costumes mantidos até então para poder dar conta de todas as exigências
e de todo o sistema normativo que o Tiradentes impõe.
No próximo e último capítulo, retomo o que considero os principais passos e achados dessa
pesquisa, apresentando a minha conclusão sobre o tema escolhido.
84
Desde o início da minha pesquisa, o que me moveu foi a curiosidade sobre o espaço
ocupado no mundo contemporâneo pelas escolas fortemente disciplinares. Minha proposta era
investigar que valor a disciplina tem na formação de jovens, segundo seus responsáveis. E mais
especificamente, que motivos levam pais e mães a buscarem um colégio militar, como o
Tiradentes, para matricularem seus filhos. E ainda, que significados atribuem à disciplina na
formação desses jovens. Neste capítulo, pretendo resgatar o que me parece mais relevante
nesses achados.
Para realizar a minha pesquisa, tomei como material de análise os depoimentos de pais
e mães com filhos inscritos e posteriormente matriculados no Colégio Tiradentes de Porto
Alegre. A pesquisa foi dividida em duas etapas. A primeira incluiu a realização de entrevistas
estruturadas com pais e mães de alunos que realizavam a prova de seleção para ingresso no
Colégio Tiradentes. Nesta ocasião, consegui entrevistar 41 pais e mães de alunos ou alunas. Na
segunda etapa, com os dados dos responsáveis em mãos, realizei um primeiro contato
telefônico, a fim de obter a informação sobre o resultado do teste de seleção. Entre os pais e
mães cujos filhos passaram na seleção, consegui realizar entrevistas semiestruturadas com
cinco mães de estudantes regularmente matriculados no Colégio Tiradentes.
Os resultados da primeira etapa já indicavam como principal interesse desses pais e
mães a busca por uma escola pública capaz de preparar o filho ou filha para a prova do ENEM
ou para o vestibular. Em especial, interessa para estes pais e mães o vestibular da UFRGS. Esta
é a razão central da busca pelo Colégio Tiradentes. Outros fatores foram citados, mas com
menor importância. Ficou evidente a crença dos pais e das mães de que uma escola com mais
disciplina poderia preparar melhor seus filhos e filhas para o vestibular. Antes de realizar a
entrevista com os familiares, conversei com os diretores do Tiradentes. Naquela ocasião, um
deles mencionou que muitos pais “faziam vista grossa” para a questão disciplinar, em função
do resultado que o Colégio obtinha nas provas do ENEM e no vestibular da UFRGS. De certa
forma, ele estava certo, porque a disciplina cobra seu preço, preço esse que todos, família e
estudantes, pagam para terem a chance de ingressar numa universidade pública de qualidade.
85
Como forma de olhar para todo o material produzido nas entrevistas, construí três
categorias de análise. As categorias ajudaram a organizar o trabalho e foram ao encontro do
meu interesse, mas não são categorias estanques e devem ser consideradas como imbricadas
umas com as outras, pois se complementam. Na primeira etapa, recortei duas categorias: “o
mundo lá fora e a disciplina” e “desempenho no vestibular como passaporte para o futuro”. Na
segunda etapa da pesquisa decidi separar “disciplina” da categoria “o mundo lá fora”, ficando
então, com três categorias de análise: “disciplina para a vida”; “o mundo lá fora” e “vestibular
como passaporte para o futuro”. A seguir, passo a elencar alguns pontos que considero mais
relevantes e para os quais quero dar um pouco mais de destaque.
Uma das primeiras questões a chamar a minha atenção neste tema foi a crescente
militarização de escolas públicas no país. Embora meu foco de análise não fosse estas escolas,
não foi possível ignorar este fenômeno, que se dá como uma forma de conter a violência e a
indisciplina dentro das escolas públicas. É a sociedade buscando soluções para problemas atuais
no sistema disciplinar, que segundo Foucault (2007), já existia nas instituições religiosas
medievais e ganhou força nos séculos XVII e XVIII como estratégia de dominação. Para este
autor, o nascimento da chamada escola disciplinar se deu em um período de intensas
modificações nas estruturas de poder. Tais modificações deram origem ao aparato social e
político denominado pelo autor de sociedade disciplinar. Como escrevem Saraiva e Veiga-Neto
(2009), embora na contemporaneidade a vigilância sobre o corpo tenha perdido um pouco da
sua importância, ela ainda tem se mostrado uma das formas de controle dos adolescentes na
escola contemporânea.
A disciplina que se faz presente no Colégio Tiradentes é muito mais rígida do que a
observada em outras escolas públicas. É uma disciplina que vai da escola para dentro das
famílias. Segundo Foucault (2007), o poder disciplinar tem como efeito maior o adestramento
do indivíduo. O poder disciplinar “fabrica” indivíduos. E o sucesso desse sistema se dá com a
vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame (FOUCAULT, 2007). Todos esses
elementos estão presentes no Colégio Tiradentes. A vigilância é exercida pelo olhar do Capitão
que inspeciona cada formação e também pelo Comandante do Corpo de Alunos-CAL, que
determina, inclusive, se em dias quentes os alunos que estiverem apenas com a camiseta branca
(que tem gola olímpica) podem participar das atividades do CAL e da sala de aula. Tudo é
vigiado, o uso do uniforme, o horário de entrada no Colégio, a limpeza da sala e também a
higiene pessoal de cada aluno.
86
É como disse um dos diretores do Tiradentes, por ocasião da minha reunião, é bonito
de ver aquele jovem que chega aqui civil e, dentro de alguns meses, percebe-se a mudança no
corpo, na postura deles. A forte disciplina que rege os alunos do Tiradentes acaba por distanciá-
los do mundo que está fora dos muros do Colégio. Parece-me que o “mundo lá fora” tem um
tempo diferente daquele que vige dentro do Tiradentes. A liberdade, que opera na
contemporaneidade, não parece encontrar espaço dentro desse Colégio, onde funcionam as
velhas regras de controle. Dentro do que me foi possível observar, as famílias vão sendo
capturadas pela disciplina, e também disciplinadas pelo Colégio e pelos filhos.
Quando se referem ao “mundo lá fora”, pais e mães se referem a um mundo que se
move. Lembrando o que escreve Bauman (2014, p. 77), “alguns dos habitantes do mundo estão
em movimento; para os demais, é o mundo que se recusa a ficar parado”. Há uma busca por
uma ordem que foi perdida, uma crença que a disciplina vai preparar melhor os filhos e filhas
para o mundo e para o mercado de trabalho. Uma das mães justifica a escolha pelo Tiradentes
“pela disciplina, pelo respeito e porque o mundo de hoje está perdido”.
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105-118.
APÊNDICE
95
ANEXO
97
Você está sendo convidado (a) para participar do projeto de pesquisa acima identificado. O documento abaixo
contém todas as informações necessárias sobre a pesquisa que estamos fazendo. Sua colaboração neste estudo
será de muita importância para nós, mas se desistir, a qualquer momento, isso não causará nenhum prejuízo para
você.
Eu, participante da pesquisa, abaixo assinado(a), após receber informações e esclarecimento sobre o projeto de
pesquisa, acima identificado, concordo de livre e espontânea vontade em participar como voluntário(a) e estou
ciente:
6. Dos benefícios.
A participação do entrevistado nessa pesquisa contribuirá para a produção de conhecimento sobre a educação no
Brasil.
_________________________________ _________________________________
Pesquisador Responsável pelo Projeto Participante da Pesquisa e/ou Responsável