Texto 1. BRANDO. A Educao Como Cultura
Texto 1. BRANDO. A Educao Como Cultura
Texto 1. BRANDO. A Educao Como Cultura
Livro:
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. São Paulo: Mercado das
Letras, 2002.
através dos sentidos e também de atos por meio dos quais deixam a sua marca
momentânea em seu mundo. Um colibri faz isto. Nós também. Alguns macacos da
Amazônia que, mais felizes do nós, saltam de galho em galho na floresta, enquanto
arrastamos pelo chão um corpo que precisou de alguns milhões de anos para
aprender a se equilibrar precariamente sobre duas penas, são biologicamente
diferentes de nós em apenas algo inferior a 3% da composição da arquitetura das
cadeias de DNA. No entanto há nesta mínima porcentagem toda a diferença.
Mas será ela tão grande assim?
Faz alguns anos Claude Lévi-Strauss, um conhecido antropólogo europeu
que se iniciou como pesquisador de campo entre povos indígenas do Brasil-Central,
foi convidado pela Assembléia Francesa a escrever algo para um repensar o
conceito e a ideia de liberdade, tal como eles estão há alguns séculos na
Constituição da França. Num texto de resposta que veio depois a ser publicado em
um livro, ele começa dizendo que não teria nada a acrescentar, caso o conceito e os
seus preceitos devessem permanecer no âmbito do contrato social. Mas logo a
seguir ele aproveita a ocasião para perguntar aos franceses e a todos nós, se não
seria este o momento de realizarmos uma reviravolta corajosa de identidade, com
todas as suas conseqüências. Ao invés de continuarmos a nos definir como “seres
mortais” ou como “sujeitos sociais”, não teria chegado a hora de nos identificarmos
como “seres da Vida”? não é este atributo o mais radical, o mais verdadeiro e
também o mais generoso em nós e entre nós e tudo o mais que habita: vida?
Se isto for verdade e se isto for possível, então o que era antes um
reconhecimento de desigualdades dado pela disjunção entre nós, seres humanos e
todos os outros seres da Vida, passa a ser um sinal de conjunção entre seres
irmanados em uma igualdade essencial, e apenas diferentes dentro das infinitas
alternativas que a Vida abre e faz existir.
E entre nós, seres da natureza alçados ao mundo da cultura que nós próprios
criamos, deve existir, entre todas, uma diferença ainda mais essencial. Com uma
enorme variedade de vivências disto, em todos os outros seres vivos podemos supor
que existem formas de uma consciência reflexa da relação entre o ser e o seu
mundo. Eles sentem, eles percebem, eles lembram, eles sabem, eles agem. Nós
também. Mas nós tivemos que aprender a entrelaçar cada uma dessas coisas com
todas as outras, de tal maneira que precisamos fazer um enorme esforço para
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conseguirmos viver cada uma delas em sua vez, sem a presença do poder das
outras. Como é bom sentir sem pensar. Mas como é difícil!
Abra um livro de “técnicas de meditação” e você verá como isso verdadeiro. O
que se sugere ali – sobretudo nos mais budistas e nos mais tibetanos – é um
enorme esforço de anos e anos de “treinamento da mente”. E para que? Para que
ela aprenda a deixar de fazer o que aprendeu antes, ao longo dos anos e anos de
interações e estudos: pensar com palavras, refletir com ideias. Que aquele que
medita saiba treinar-se para varrer de dentro da próprias mente todas as memórias,
os pensamentos, as imagens e, mais do que tudo, os desejos do corpo e do espírito.
Isto é, toda a ilusão do que não existe, a não ser que se queira seguir iludido em
pensar que “isto” que parece que existe de fato, existe fora de nós. Para que, então,
a mente descubra no vazio do nada do agora um paraíso perdido chamado: absoluto
presente. Um tempo único, porque é vivido fora do tempo. Um momento irrepetível
sem resquício algum da maldição de vivermos sempre atrelados a uma vida em três
tempos: o passado, o presente (o único que de fato existe, dirão lamas tibetanos e
alguns físicos quânticos) e o futuro. Ou seja, todo um aprendizado que pode durar
uma vida inteira para virmos a adquirir a sabedorias que sonha alcançar o eremita
solitário, e com a qual, sem esforço algum, já nasce o pássaro com quem estivemos
na beira de um lago algumas linhas acima, e que nos espera de novo algumas
outras, abaixo.
Como não somos esses seres de frágil perfeição natural, aprendemos a viver
dentro de algo mais do que apenas o viver e o sentir. Assim, nós nos sentimos
sentindo, como os outros seres da Vida também. Mas nós nos pensamos sabendo e
nos sabemos pensando. E sabemos que sentimos e nos sentimos tomados desta ou
daquela emoção porque aprendemos a nos saber sabendo. Passamos da
consciência reflexa que compartimos com o colibri e o chimpanzé, à consciência
reflexiva, que acrescente um “me” e um “mim” a um “eu”, e que é em nós o sinal e o
símbolo da habitante de um mundo onde a própria natureza é vista e é
compreendida como e através de símbolos e de significados. Que é uma árvore para
você? O que é uma ave?
Voltemos ao nosso pássaro.
Sabemos que um pássaro voa com um par de asas, e nós com o inacabável
das nossas ideias. Por isso ele voa com as asas com que nasceu e nós voamos
com os aviões (e as asas delta, e os ultraleves, e os planadores e as
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aos outros através do que comemos. Através do modo como comemos e através do
que criamos como preceitos de códigos de normas, como a rotina de todos os dias,
como a celebração única num ano ou na vida, em volta da mesa em que nos
reunimos para saciar a fome dos nossos corpos, e para dar respostas à fome de
símbolos e de sentidos de afeto e vida que transformam ritualmente uma “comida”
em uma “refeição” e uma refeição em uma “festa”. Triste é comer só, mesmo quando
a comida é boa, e a bebida amarga é doce, quando entre amigos queridos.
Pois afora o que fazem durante breve tempo algumas mães animais com os
seus filhotes, somos a única espécie que junta porções comestíveis da natureza e
leva o alimento para outras pessoas. Somos os únicos que, por felicidade ou por
desgraça, aprendemos a fazer de fragmentos do meio ambiente transformado em
alimento, uma porção de coisas entrelaçadas e, de vez em quando, contraditórias,
quando “isto” poderia ser uma coisa só. Pois tal como os panos com que nos
cobrimos ou as casas onde nos abrigamos e reunimos, bens de uso, bens de troca,
cenário de interações, símbolos, palavras e mensagens.
E algo semelhante acabamos realizando conosco mesmos. Pois sendo, como
todos os outros seres vivos, sujeitos da natureza, acabamos nos tornando uma
forma da natureza que se transforma ao aprender a viver. Sem cessar e sem
exceção, entre todas as comunidades humanas do passado e de agora,
transformados seres do mundo de natureza: e unidades de uma espécie: indivíduos,
em sujeitos do mundo da cultura: pessoas. Em seres de direitos e de deveres e,
portanto, agente culturais e atores sócias. Somos uma pessoa em um duplo sentido.
Ao conviverem conosco em cenários da cultura, como uma família nuclear, uma
parentela, um grupo de idade ou de interesses, uma escola, ao longo dos
sucessivos círculos dos seus ciclos de vida os nossos filhos e as nossas filhas
aprendem, pouco a pouco, a internalizarem não somente “coisas” aos pedaços,
como habilidades, condutas, saberes e valores. Eles aprendem a realizar interações
e integrações cada vez mais complexas de e entre tudo isto. Assim sendo, um
indivíduo humanos é uma pessoa social quando integra e possui dentro dele uma
experiência tornada individual do ser cultural de seu próprio mundo de vida
cotidiana.
E eles são pessoas humanas (mas o “humano” aqui é redundante) porque ao
viverem em seus mundos sociais, saem continuamente de si mesmos e desejam ou
se obrigam a interagir com outras pessoas em mundos sempre culturalmente
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Eis porque em termos bastante atuais, falamos que a cultura está mais no
quê no como nós nos trocamos mensagens e nos dizemos palavras e ideias entre
nós, para nós e a nosso respeito, do que no que fazemos em e sobre o nosso
mundo, ao nos organizarmos socialmente para viver nele e transformá-lo. Eis um
belo sentido da ideia da nossa própria liberdade. Ao levarmos a vida do reflexo à
reflexão e do conhecimento à consciência, nós acrescentamos ao mundo o dom
gratuito do espírito. Com ele, nós nos tornamos senhores do sentido e criadores de
uma vida regida não pela fatalidade biológica da espécie, como entre nossos irmãos
animais, mas pelo poder de escolha crescentemente livre de nossos próprios
símbolos, de nossos tantos modos de vida, de nossas múltiplas identidades e das
buscas de aprendizado de sentimentos e de significados a serem dados à teia de
“tudo isto”.
REFERÊNCIA
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. São Paulo: Mercado das
Letras, 2002.