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REFLEXÕES SOBRE A DEFICIÊNCIA MENTAL NO BRASIL: (BIO)

NECROPOLÍTICA E DIREITO À CIDADE

Josenilson Rodrigues1
Mário Thael de Alencar Costa2

RESUMO
Reflexões sobre a deficiência mental no Brasil: (bio) necropolítica e
direito à cidade é um estudo crítico e reflexivo sobre a deficiência
mental no país que, com base nas ideias do biopoder e da necropolítica,
parte da hipótese que o tratamento social e político dado aos portadores
de doenças psiquiátricas os relega à condição de “morte social”. O
método utilizado foi a análise bibliográfica e documental, com apoio na
análise de conteúdo. Constatou-se, nesse sentido, a importância do
direito à cidade como mecanismo para reinserção do doente mental no
pacto social e para desconstruir a segregação historicamente constituída
e perpetuada por modelos hospitalocêntricos e asilares.
Palavras-chave: Cidadania. Estigmatização. Morte Social.
Segregação.

“Trata-se tão só, há que precisar, da luta e do futuro que há que


sulcar custe o que custar. Essa luta tem como finalidade produzir a
vida, derrubar as hierarquias instituídas por aqueles que se

1
Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI), membro do Núcleo de Estudos
Constitucionais (NEC/UESPI), Pesquisador do Núcleo de Estudos em Gênero, Poder e Sociedade (GPS/UESPI)
e estagiário do Ministério Público Federal.
2
Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI), membro do Programa de Extensão Seu
Direito na Praça e estagiário do Ministério Público do Piauí.

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acostumaram a vencer sem ter razão, tendo a "violência absoluta",
nesse labor, uma função desintoxicadora e instituinte”.
(Achille Mbembe, 2011, p. 02)

1 INTRODUÇÃO

Na modernidade, a “loucura” foi apreendida pelo saber psiquiátrico e o “louco” foi


deslocado para a categoria de doente mental e com isso reputado perigoso, incapaz, irracional,
desconforme. Foi relegado à exclusão social e à estigmatização, passando a viver à margem da
sociedade numa condição de não-cidadão. Isto é, uma vida numa “morte social”.
Contudo, a partir do novo paradigma inaugurado pela Constituição Federal de 1988, e
com as conquistas do Movimento da Reforma Psiquiátrica, os antes “loucos” passaram a ser
considerados mais do que meros usuários/consumidores de serviços de saúde mental, sendo
reputados cidadãos e, como é inerente a tal condição, detentores de direitos. Todavia, ainda
vigora um cenário que resiste e impõe barreiras tanto para a efetiva inclusão social dos
deficientes mentais como para a desconstrução dos estigmas atrelados à “loucura”.
Nesse contexto, o presente artigo objetiva analisar e refletir criticamente acerca da
deficiência mental no Brasil à luz das teorias da biopolítica e da necropolítica. Parte-se da
hipótese segundo a qual o tratamento social e político dispensado aos deficientes mentais não
oportuniza sua emancipação e produção de condições de vida digna e inclusiva, pelo contrário,
os relega a uma existência segregada num mundo que os torna “socialmente mortos”. Destaca-
se, nesse quadro, um direito à cidade pelos “loucos” como meio de reinseri-los na sociedade e,
ainda, de desconstruir a percepção social da loucura, que a excluiu da cidade e permitiu que os
doentes mentais fossem retirados do convívio social.
Para tanto, desenvolveu-se a base teórica concernente ao biopoder e à necropolítica
em sua relação com o “louco” e a “loucura”. Depois foi demonstrado o panorama jurídico,
político e social da deficiência mental no Brasil. Por fim, refletiu-se acerca do direito à cidade
e da construção de um novo lugar social para os portadores de doenças psíquicas.
Como percurso metodológico, lançou-se mão de uma pesquisa eminentemente
bibliográfica, bem como de análises documentais. Buscou-se ainda apoio na análise de
conteúdo no estudo dos materiais coletados. Ademais, as informações foram analisadas e
interpretadas de forma crítica e reflexiva, a fim de demonstrar nuances subjacentes ao
normatizado e, desse modo, com aporte na metodologia crítica, considerar e incorporar as

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relações de poder na análise, colocando em questão sistemas que produzem os “anormais” e os
excluem. (MOUTIAN, 2017).

2 BIOPODER E NECROPOLÍTICA

Ainda na década de 1970, Michel Foucault estabeleceu uma forma inovadora de


estudar e interpretar as relações de poder dentro de uma sociedade, deslocando a metodologia
de análise, que era centrada no Estado e na sua soberania, para a periferia, ou seja, para os
“micro-poderes” (DINIZ; OLIVEIRA, 2014). Nesse sentido, o poder passa a ser estudado não
apenas a partir do seu exercício pelo ente estatal, instituído e organizado, mas também sob a
ótica da influência, do poder que as pessoas ou os grupos exercem uns sobre os outros e as
consequências dessa dinâmica para a sociedade.
Tendo como base os fundamentos mencionados, pode-se dividir a análise de Foucault
em dois momentos distintos: o poder disciplinar e o biopoder. A primeira forma de poder é
perspicaz, sutil. Para Foucault (1999), o objetivo do poder disciplinar não é retirar ou apropriar-
se, mas adestrar. É uma forma de poder que usa a sagacidade para exercer e promover o
exercício da dominação. Sua manifestação se dá em atividades simples do cotidiano, como a
fiscalização hierárquica e as normas regulamentadoras, objetivando, com isso, apropriar-se da
esfera individual e exercer cada vez mais influência sobre as pessoas.
Como destacam Diniz e Oliveira (2014), o poder disciplinar é aquele que promove
uma pessoa à sujeição de uma vontade sem ter que, para isso, apelar para a violência e a força.
Portanto, a dinâmica dessa dominação, como identificada na filosofia foucaultiana, é a que se
observa, por exemplo, em escolas, fábricas e hospícios. Essa é uma forma de dominação que
age, portanto, na pessoa singularmente considerada, no individual.
A segunda forma de exercício do poder, ao contrário da anterior, não se dá sobre a
esfera individual, mas sobre a coletividade. Foucault (1999) defende que a sociedade ocidental,
a partir da época clássica, passou a vivenciar uma série de transformações profundas dos
mecanismos de poder até então conhecidos. Antes desse período clássico, o poder era
representado como um direito de apreensão, seja das coisas, do tempo ou, finalmente, dos
corpos e da vida – o que Foucault chama de “confisco”. Depois, passa a ser concebido de forma
mais ampla, como algo destinado a produzir forças, não a destruí-las (FOUCAULT, 1999;
FOUCAULT, 1979).

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Assim, o confisco não é mais a única forma de exercício de poder, mas apenas uma
forma que, por sua vez, inter-relaciona-se com outros mecanismos, promovendo, segundo
Foucault (1999, p. 128) “funções de controle, vigilância, de majoração e de organização das
forças que lhes são submetidas”. O autor francês ainda complementa seu raciocínio mostrando
que há um deslocamento do papel da vida e da morte.
Se perante a ideia clássica de exercício de poder predominava a concepção de deixar
viver ou fazer morrer, agora o poder era destinado a fazer viver ou deixar morrer. O poder
soberano clássico passa a ser visto como um revés de uma nova realidade social que surgiu a
partir do século XVIII, gerada por uma sociedade que exige e adquire o direito de garantir,
manter e desenvolver a própria vida (FOUCAULT, 1999).
Também é importante destacar que, na análise foucaultiana, a mudança de paradigma
no exercício do poder não significa a ausência deste. Portanto, concebe-se que surgiram, na
realidade, novas formas de controle e dominação, que preencheram a lacuna deixada após o
rompimento social com a ordem vigente quando imperava a soberania clássica.
É a partir deste contexto que Foucault (1999) identifica os mecanismos de
administração dos corpos e da gestão calculista da vida. O primeiro está relacionado à
docilidade e à utilidade das pessoas, mensuradas através da sua submissão aos ritos cerimoniais
da sociedade, principalmente na sujeição ao trabalho e sua conversão em utilidade econômica.
Portanto, o corpo “útil” se apresenta como aquele que é produtivo, manipulável e submisso às
convenções estabelecidas.
O segundo mecanismo, a gestão calculista da vida, compreende uma série de técnicas
voltadas para a manutenção do controle sobre as populações. Surgem, assim, nas observações
políticas e econômicas, fenômenos como natalidade, longevidade, saúde pública, habitação,
migração. A conjuntura formada por esses dois mecanismos recebe o nome de biopolítica
(FOUCAULT, 1999; FOUCAULT 1979).
A partir desse pensamento compreende-se como Foucault enxerga as novas relações
de poder vigentes na sociedade, de forma que, mesmo após o rompimento com a metodologia
clássica de conceber o poder, ainda permanecem o domínio e o controle sobre as populações.
O biopoder, difundido pelas diversas instituições da sociedade, soma-se, por fim, ao poder
disciplinar, que será exercido sob influência daquele, e não em antagonismo. Desta forma,
completa-se o ciclo de domínio como o concebeu a filosofia foucaultiana.
Lima (2018) lembra que nesse contexto histórico de mudança de paradigmas emergem
saberes como a medicina moderna, a psiquiatria, a justiça penal e a pedagogia. Essas ciências
passaram a ser institucionalizadas, e seus maiores objetivos eram identificar comportamentos

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anormais, em detrimento do que se alegava ser a proteção das populações. Assim, o biopoder
legitimou um cenário de segregacionismo, em que o poder, sendo exercido em nome do bem-
estar da população geral, começou a discriminar e marginalizar alguns grupos.
Como observa Lima (2018), a percepção do biopoder e da biopolítica é o que fará o
autor camaronês Achille Mbembe dialogar com Foucault, refletindo sobre a vida e a morte
como características da política e como fundamentais para a compreensão da modernidade e
dos problemas que ela apresenta. De fato, Mbembe (2018, p. 5) assegura que “a expressão
máxima de soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode
viver e quem deve morrer”.
Contudo, a filosofia de Mbembe acrescenta outros elementos à análise foucaultiana,
principalmente através do que ele chama de “estado de exceção” e “estado de sítio”. O autor
camaronês correlaciona esses fenômenos ao seu entendimento da política como “trabalho da
morte”, de onde desdobra-se a soberania que, para ele, expressa-se de forma predominante com
o “direito de matar” (MBEMBE, 2018).

A oferta que Mbembe nos proporciona a partir das noções de Necropoder-


Necropolítica permite alargar as reflexões Foucaultianas de que o poder se situa e é
exercido no nível da vida. Sendo o poder a ação sobre a ação do outro como nos diz
Foucault, é exercido também no nível da morte, na possibilidade de matabilidade e na
ideia de que qualquer um/a pode ser soberano/a e decidir pela morte do outro. Esse
deslocamento conceitual-metodológico merece ser tomado com um pouco mais de
agudez porque talvez nos informe transformações contemporâneas nos diagramas de
poder e possamos, a partir daí, pensar e nos posicionar sob e sobre o que tem sido
designado como a vida (LIMA, 2018, p. 30).

O estado de exceção, portanto, atuará em conjunto com as chamadas “relações de


inimizade”, gerando, legitimando esse “direito de matar”. O poder, para tanto, apela para as
exceções, para as emergências e para as noções ficcionais de inimigos, não só os combatendo,
mas também os criando (MBEMBE, 2018). É justamente perante esses estados de exceção ou
emergência que o biopoder de Foucault desponta como fator decisivo. Na leitura de Mbembe
(2018), o biopoder opera como uma divisão entre os vivos e os mortos – ou, entre quem deve
viver e quem deve morrer – e é definido na esfera biológica, passando a controlá-la –
biopoliticamente.
Através desse controle a espécie humana é dividida em grupos, o que estabelece uma
censura biológica entre uns e outros – o que Foucault chama de racismo (MBEMBE, 2018). O

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racismo, sob esta perspectiva, não está restrito a questões apenas de cor, antes possui conotação
ampla e exprime a maneira pela qual o biopoder é exercitado. Mbembe (2018) entende, assim,
que na economia do biopoder o papel do racismo é a regulamentação da morte, tornando
possíveis as funções assassinas do Estado.
O racismo, dessa forma, pode ser direcionado a grupos diversos, como o foi em relação
aos judeus na Alemanha nazista ou, em proporções menores, refletidas nos diversos tipos de
eugenia social. O controle exercido pelo biopoder, de forma a legitimar o direito de matar, passa
pela apreensão do racismo no próprio corpo social, concebendo alguns grupos diversos dentro
da sociedade como portadores de ameaça ou perigo, motivo pelo qual sua eliminação biofísica
reforçaria o potencial de vida e a segurança da sociedade discriminadora (MBEMBE, 2018).

O racismo em todas as suas formas não passa da expressão da necessidade de tais


áreas de compensação; assim como a existência dos manicômios, símbolo do que
poderíamos chamar de "reservas psiquiátricas" (comparáveis ao apartheid do negro e
aos guetos), representa a expressão de uma vontade de exclusão daquilo que é temido
por ignorado e inacessível. Vontade justificada e cientificamente confirmada por uma
psiquiatria que considerou incompreensível o próprio objeto de seus estudos, razão
por que o relegou à companhia dos excluídos (BASAGLIA, 1985, p. 120).

A própria escravidão é elencada por Mbembe (2018) como uma forma de exercício do
biopoder. Para ele, a servidão resulta em uma perda tripla, a saber: do lar, da autonomia sobre
o corpo e do estatuto político. O racismo, portanto, funciona, para o biopoder, como regulador
da distribuição da morte, determinando que corpos podem ser mortos (Mbembe, 2018), bem
como funciona como “motor do princípio necropolítico” (MBEMBE, 2017, p. 65).
Pode-se notar, do até agora exposto, que a biopolítica atua na gestão da vida,
promovendo a vida de determinados corpos e, omissivamente, deixando morrer outros corpos
que são tidos como desconformes ao padrão desejado. A necropolítica, por sua vez, atua na
gestão da morte, na legitimidade de fazer morrer determinados corpos. Ademais, um dos
contextos, no Brasil, em que o poder necropolítico se manifesta é no âmbito dos hospitais
psiquiátricos (LIMA, 2018).
No caso da “loucura”, apreendida pelo discurso sanitarista, tem-se não apenas um
biopoder, mas uma (bio)necropolítica, ao passo que sob o discurso biopolítico do tratamento
dos corpos tidos como desconformes, insanos, doentes, tem-se a legitimação das mortes desses
corpos. Ou seja, determinadas pessoas são passíveis de sofrer com a morte social (quiçá, física).
O “louco” perde, assim, seu lugar social, a autonomia sobre o corpo e o estatuto político,

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passando a viver num mundo da morte, morrendo (fisicamente) ou tendo sua subjetividade
invisibilizada (o que também pode ser tido como uma “morte”, embora não real, mas
social/política/civil).

3 O “LOUCO” NO BRASIL: DE MORTO SOCIAL A CIDADÃO

O florescer dos movimentos antimanicomiais, no Brasil, tem início nos anos 1970,
quando alguns profissionais recém-formados se depararam a pessoas com doença mental
abandonadas e acometidos pelos infortúnios da violência institucional (AMARANTE; NUNES,
2018). Daí começa a caminhada da reforma psiquiátrica brasileira que foi fortemente
influenciada pelos movimentos italianos dos anos 1970, que defendiam a bandeira da
desinstitucionalização na saúde mental (FURTADO; et al., 2016).
Nesse aspecto, o movimento foi de encontro ao sistema manicomial, hospitalocêntrico
e asilar vigente. Pois buscou lançar uma nova visão em relação aos deficientes mentais, um
olhar não estigmatizante, sobretudo apontando para um tratamento que os considerasse como
sujeitos de direitos, de modo que a noção de cidadania se tornasse questão fulcral da reforma
psiquiátrica, pois buscaria devolver o indivíduo considerado “louco” ao mundo dos direitos
(AMARANTE, 1996). Nesse contexto, a ideia de um tratamento não institucionalizador ganha
especial relevo, sendo uma das principais bandeiras do movimento. Ao encontro disso, elucida
Basaglia (1985) – um dos maiores expoentes do movimento antimanicomial italiano e também
mundial – que a devolução da liberdade ao “louco” é crucial e o ponto de partida para a cura
do doente mental.
No Brasil, pode-se apontar como um dos grandes marcos da Reforma Psiquiátrica a
Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001, que trata sobre os direitos das pessoas com transtorno
mental e redireciona o modelo de assistência em saúde mental (BRASIL, 2001). Esta lei,
segundo Amarante e Nunes (2018), a despeito de não ter conseguido contemplar todas as
bandeiras defendidas pelo movimento reformista, trouxe várias mudanças positivas para o
campo da saúde mental. 3

3
Segundo a Lei 10.216/2001, são direitos das pessoas com transtorno mental: “I - ter acesso ao melhor tratamento
do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse
exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na
comunidade; III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; IV - ter garantia de sigilo nas
informações prestadas; V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não
de sua hospitalização involuntária; VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; VII - receber o
maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; VIII - ser tratada em ambiente

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A não observância dos direitos preconizados na legislação supracitada, bem como o
não oferecimento de assistência integral à pessoa com transtorno mental, caracteriza a
instituição como asilar, tipo de entidade que, inclusive, é vetada pela Lei n. 10.216/2001
(BRASIL, 2001). Todavia, muito embora essa lei estabeleça que o tratamento deve sempre
perseguir a reinserção social do paciente (art. 4º, § 1º), e que, em todas as modalidades de
internação, esta deve ter caráter subsidiário, quando os recursos extra-hospitalares não forem
suficientes (Art. 4º), ela continua a admitir, além das internações voluntárias e compulsórias, a
involuntária.
Nesse sentido, a internação do paciente com transtorno mental é executada nos
Hospitais Psiquiátricos, tipo de organização que Goffman (2003) coloca no rol do que ele
chama de Instituição Total, que tem como grande marcador a barreira estabelecida em relação
ao mundo exterior. Para o referido autor, essas instituições levam o institucionalizado a um
processo de “mortificação do eu”, ao passo que essas pessoas perdem os seus valores de
referência com a realidade externa e perdem seu papel social, enfim, elas têm sua subjetividade
desconfigurada.
A institucionalização leva à perda do contato com o mundo exterior, uma vez que o
institucionalizado pode ser privado de seus amigos, posses e eventos pessoais típicos da vida
em sociedade, o que o leva a exiguidade de perspectivas de uma vida fora do hospital
psiquiátrico. Tudo isso, aliado à ociosidade forçada e a violência institucional, são fatores
apontados por Barton (1976), com propícios a desencadear a neurose institucional, quando a
pessoa institucionalizada acaba se acostumando com a vida fora do seio social, tornando-se
submisso e perdendo a iniciativa e o interesse, principalmente, por questões de índole
impessoal. Dessa forma, a individualidade dessas pessoas é perdida e, com isso, elas acabam
por aceitar uma vida fora da sociedade.
No que tange à internação involuntária, ela parte de pedido de terceiro,
independentemente do consentimento do usuário, sendo que o seu fim também está fora do
âmbito de disposição do paciente (BRASIL, 2001). Frise-se que essa questão representa o
primeiro passo da objetificação – legalmente permitida – da pessoa com transtorno mental, que
tem sua condição de sujeito de direitos negada e entregue à terceiros. É o primeiro ultraje a suas
garantias fundamentais de primeira dimensão – civis e políticas – que há muito foram
conquistadas. O doente mental, nesse contexto, é subalternizado à condição de incapaz.

terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários
de saúde mental”. (BRASIL, 2001).

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Essa subalternização se encontra divergente também da atual concepção de direitos
humanos da pessoa com deficiência, incorporada pelo ordenamento jurídico-constitucional
pátrio. Em 2008, por exemplo, o Brasil, por meio do Decreto Legislativo nº 186, ratificou a
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo
Decreto n. 6. 949, de 2009, que passou a integrar o rol de normas constitucionais.
O supracitado pacto tem como princípios, dentre outros, o respeito à dignidade
imanente a todas as pessoas, a autonomia individual, a capacidade para fazer as próprias
escolhas, a independência das pessoas, a não-discriminação, a participação ampla e efetiva, bem
como a inclusão social (BRASIL, 2009). Preconiza também que as pessoas com deficiência
detêm, igualmente às demais, capacidade legal em todos os aspectos da vida, ademais, que a
deficiência não pode ser fator justificante para a privação de sua liberdade (BRASIL, 2009).
Com base nesta Convenção, foi elaborada a Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015
(Estatuto da Pessoa com Deficiência), que trouxe mudanças significativas na tutela dos direitos
dessas pessoas, privilegiando a condição inarredável de sujeitos de direitos pertencentes a toda
e qualquer pessoa humana. Aliás, uma das grandes mudanças foi não mais considerar a
deficiência como fator de incapacidade civil do sujeito. Desse modo, a pessoa com deficiência
passou a ser considerada plenamente capaz civilmente (BRASIL, 2015).
Outro ponto destacado, como já retromencionado, foi a tutela da liberdade e autonomia
dessas pessoas, verdadeiros corolários da condição de sujeitos de direitos. Assim sendo, a Lei
10.146/2015 é expressa e clara ao prescrever a não admissibilidade de submissão da pessoa
com deficiência a intervenções clínicas, tratamentos ou institucionalização forçada; outrossim,
é o consentimento prévio, declarado de forma livre e consciente, fator imprescindível para que
o deficiente possa realizar tratamento e ser hospitalizado (BRASIL, 2015).
Nesse diapasão, se de um ponto de vista deontológico a institucionalização do doente
mental já tinha por trás do discurso de periculosidade e terapia um meio de excluí-los da
sociedade, de se livrar do tido como inoportuno pelo padrão normatizado vigente, agora
também se torna discrepante da novel legislação, do paradigma de direitos humanos e da
Constituição de 1988.
Nessa ordem de ideias, Carrara (2010), elucida que por trás das instituições
psiquiátricas e seu discurso terapêutico existe uma outra face subjacente, cujo desiderato é
conter, moralizar e disciplinar as pessoas reputadas como socialmente desviantes. Assim, a
institucionalização do doente mental, quando considerado perigoso, transcende uma questão de
mera segurança, sendo usada como meio de segregar e isolar o indivíduo considerado perigoso
e diferente (IBRAHIM; VILHENA, 2014).

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Ademais, a despeito dos recentes avanços legais no sentido de considerar o doente
mental com capacidade plena, como genuíno sujeito de direitos, ainda pode-se observar
paradigmas que se alinham com a crítica supra. O Conselho Federal de Psicologia, por exemplo,
lançou um relatório, fruto da Inspeção Nacional de Hospitais Psiquiátricos, realizada no final
de 2018, por meio de ação interinstitucional, quando foram visitados 40 Hospitais Psiquiátricos.
Nele é denunciado que todos os hospitais analisados possuíam caráter asilar, sendo constatado
um quadro sistemático de violação dos direitos humanos dos internos, bem como quadros de
violência institucional.
As políticas públicas desse tipo, principalmente aquelas oriundas da internação
involuntária, desconsideram o transtornado mental enquanto pertencente ao gênero humano em
igualdade de direitos. Assemelhando-se, nesse sentido, a uma verdadeira espécie de
necropolítica. A propósito, segundo Mbembe (2016), a soberania teria como expressão máxima
o poder de selecionar os que devem morrer e os que devem viver.
Nessa linha, no Brasil, sobretudo na expressão da internação involuntária do doente
mental, teríamos, em analogia ao pensamento de Mbembe, a soberania dos ditos normais em
detrimentos dos reputados como desconformes, como “loucos”. Sendo que, os primeiros
escolhem os “loucos” para morrer, não necessariamente uma morte física, mas sobretudo, uma
morte civil, uma morte social. O doente mental é despojado de sua autonomia e direitos civis
(ainda que de forma velada), isto é, seu elemento social é arrancado pelo corpo social
normatizado soberano.
A soberania manifesta-se, pois, no poder de dizer, a partir do padrão de normalidade
socialmente aceito, quem é normal e quem não é, quem está apto a viver em sociedade e quem
deve ser institucionalizado. Quem é coisa e quem é pessoa, quem merece gozar do status de
cidadão e quem deve ser subjugado. Quem deve participar da vida social e política e quem deve
aceitar “viver” segundo os ditames alheios. Quem deve apropriar-se dos espaços e territórios e
quem deve recolher-se à sua margem.
Os segregados são desumanizados e arcam com os infortúnios do confinamento, sendo
a fronteira criada pela segregação oriunda de questões raciais, de gênero ou, também, baseadas
no sanitarismo quando se estabelece a barreira do segregacionismo entre os “sãos” e os
“insanos” (MAYA NETO, 2018). Ademais, como aponta o referido autor, não obstante tenham
havido mudanças em definições e práticas dispensadas às pessoas com transtorno mental, o
discurso sanitarista ainda se faz sentir na sociedade brasileira como, por exemplo, na
persistência das internações compulsórias.

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(...) a despeito dos avanços oriundos das reformas, máxime no campo legislativo,
constata-se que ainda perduram máculas típicas dos sistemas manicomiais. É o que se
observa no caráter asilar ainda vigente na aplicação das medidas de segurança, na
exclusão do convívio social, distanciando os indivíduos da sociedade e dificultando
sua reinserção e na marcante marginalização a que os tutelados são submetidos no
decurso da execução das medidas, uma vez que são, em alguns casos, privados de
direitos humanos básicos e “esquecidos” pelo próprio sistema judicial, que deveria
zelar para que não fosse aplicada uma verdadeira pena a quem foi absolvido nos
termos da sua culpabilidade. Permanece, em grande parte, a submissão dessas pessoas
a um quadro crônico de negação de direitos e, corriqueiramente, de violência
institucional (FIGUEIREDO et al., 2021, p. 70).

Costa e Lotta (2021), a partir de uma análise histórica acerca da legislação brasileira
que versa sobre saúde mental, indicam três momentos concernentes às mudanças de categorias
políticas dos serviços em saúde mental: 1º) tem-se o nascimento da medicina social balizada
pelo discurso biomédico, que condiciona o exercício da cidadania à racionalidade, e o “louco”
é tido como irracional e perigoso, que precisa ser recolhido em manicômios; 2º) movimentos
sociais eclodem no fim da década de 1970 e no início da década de 1980, nos auspícios da
redemocratização, e, balizados pelo ideal de cidadania, influenciam e aprovam novas
legislações que contemplem o “louco” como cidadão em detrimento de um sistema excludente;
e por fim, 3º) atualmente, a despeito dos avanços e das novas políticas e serviços conquistados
pela Reforma Psiquiátrica, vivencia-se sinais de retorno à categoria de políticas pautadas na
ideia de doença mental, ao antigo modelo.
Nessa senda, também denunciam Amarante e Nunes (2018), quando abordam a
Resolução nº 32 de 2017, da Comissão Intergestores Tripartite, como sendo um retrocesso que
desconstrói o processo conquistado pela Reforma Psiquiátrica, apontando para um modelo
manicomial. Para Costa e Lotta (2021), a referida Resolução retorna com o regime pautado na
internação para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), bem como “deixa brechas para a
paralisação da estratégia de desinstitucionalização'' (p. 3.473).
Mais recentemente, outro ato governamental trilhou a mesma tendência apontada pelos
autores supracitados. A Nota Técnica Nº 11/2019, intitulada “Nova Saúde Mental”, do
Ministério da Saúde, vai na contramão das políticas de desinstitucionalização e retoma a ideia
de hospitalização, dispondo, por exemplo, sobre a ampliação de leitos em hospitais
psiquiátricos na RAPS e a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia:

259
Todos os Serviços, que compõem a RAPS, são igualmente importantes e devem ser
incentivados, ampliados e fortalecidos. O Ministério da Saúde não considera mais
Serviços como sendo substitutos de outros, não fomentando mais fechamento de
unidades de qualquer natureza. A Rede deve ser harmônica e complementar. Assim,
não há mais porque se falar em “rede substitutiva”, já que nenhum Serviço substitui
outro. O país necessita de mais e diversificados tipos de Serviços para a oferta de
tratamento adequado aos pacientes e seus familiares (BRASIL, 2019).

A referida resolução e a nota técnica são provenientes de setores da sociedade que


acabam não compreendendo ou reduzindo a importância da desinstitucionalização levantada
pela Reforma Psiquiátrica – ou que a esta são contrários, como asseveram Costa e Lotta (2021)
– reduzindo-a ou a confundindo com mera desospitalização e desassistência dos usuários. Na
esteira do que aduz Figueiredo et al. (2021), algumas políticas públicas, principalmente sob
influência dos movimentos antimanicomiais, buscaram romper com o sistema manicomial e
excludente a que o deficiente mental está submetido no Brasil.
Contudo, ainda de acordo com os autores supracitados, resta muito a ser feito para
garantia dos direitos fundamentais dos indivíduos submetidos ao tratamento hospitalocêntrico,
principalmente por meio da “ampliação das políticas que têm mostrado resultados e na
implementação daquelas que ficaram apenas na teoria” (FIGUEIREDO et al., 2021, p. 70). É
dizer que se deve promover a efetiva desinstitucionalização e privilegiar políticas pautadas na
cidadania e na liberdade do deficiente mental, na sua inclusão. Ou seja, buscar um novo lugar
social para a “loucura”, em que a diferença é acolhida, e não alijada.

4 UM LUGAR SOCIAL PARA A “LOUCURA”: SOBRE UM DIREITO À CIDADE

A “loucura”, na história da humanidade, teve múltiplas formas de existir e de se


relacionar com a sociedade, mas, na modernidade, foi sequestrada pelo saber psiquiátrico. Com
isso, a multiplicidade de lugares e de formas que a abrigavam foram reduzidas a um único
território possível, qual seja, o manicômio. Este foi erigido como um lugar disciplinado,
medicalizado e higienizado; um espaço fruto da modernidade para regular a vida nas cidades,
eliminando-se do contexto social a doença mental por meio da internação (VIECELI, 2014).
O âmago da Reforma Psiquiátrica foi, e é, a desconstrução de políticas desse jaez, que
excluem o doente mental do convívio social, buscando romper com o paradigma manicomial,
biomédico e hospitalocêntrico. Tem-se, nessa linha, como principal bandeira, a construção de

260
modelos assistenciais, serviços e legislações que privilegiam a desinstitucionalização.
Buscando-se substituir um modelo centrado na retirada dos portadores de doenças psiquiátricas
da sociedade (na internação e medicalização) por outro que considere a atenção psicossocial
inserida no contexto territorial. 4
Contudo, como salientam Amarante e Nunes (2018), o processo social proposto pela
Reforma Psiquiátrica detém maior complexidade, não devendo ser reduzido a mera substituição
e aprimoramentos de serviços e tecnologias de cuidado. Deve-se ir além da reformulação de
dispositivos clínicos e terapêuticos, buscando, nesse processo, a construção de um novo lugar
social para a “loucura”. Para tal, é essencial a promoção de estratégias e dispositivos nos
campos político, social e cultural. Notadamente, na busca por novas práticas culturais atinentes
à “loucura” (AMARANTE; NUNES, 2018).
Nessa senda, é necessário ter como base um conceito crítico de território, que trabalhe
pautado na distinção necessária entre a inserção na rede de saúde e socioassistencial e a inclusão
do doente mental nos espaços físicos, sociais e relacionais. Trabalhando-se essas políticas a
partir da consideração das relações de poder que permeiam o território, sem negligenciar as
relações sociais e sua influência no processo de inclusão dos indivíduos tidos como “loucos”
(FURTADO; et al., 2016).
Deve-se buscar um processo maior que a mera ideia de desospitalização, que, se
tomada num sentido amplo, pode referir-se, inclusive, a retirada de pacientes de um ambiente
hospitalocêntrico e sua inserção em serviços de base comunitária (AMARANTE; TORRE,
2018). Não obstante, isso não é o suficiente para a construção de um lugar social para a
deficiência mental. Os serviços territoriais, a exemplo dos Centros de Atenção Psicossociais
(CAPS), podem acabar por manter práticas do modelo tradicional. 5 Ou seja, os mecanismos de

4
“O conceito crítico de território contrasta com a noção corriqueira, cujos sentidos são variados e por vezes vagos
ou superficiais (território como sinônimo de área ou região, por exemplo). Parece haver uma gradativa perda de
potência e discernimento, que atenua a concepção de território presente na reforma psiquiátrica italiana e reforçada
no Brasil pela Geografia Crítica e pela obra de Milton Santos. Ao abrandar a capacidade crítica e analítica dessa
concepção, omitindo a caracterização do verdadeiro (des)encontro entre pessoas com sofrimento mental grave e o
espaço urbano e social na sociedade brasileira contemporânea, tanto o campo científico quanto o burocrático
tornam ainda mais vulneráveis e fragilizados os trabalhadores dos serviços e seus usuários. Para aqueles que tentam
se inserir socialmente, é imenso o risco de sujeição a valores e comportamentos hegemônicos” (FURTADO; ODA;
BORYSOW; KAPP, 2016, p. 10).
5
No mesmo sentido observam Costa e Lotta (2021, p. 3475), quando observam “a manutenção de uma lógica
medicamentosa, biomédica, e a transferência do paradigma manicomial para o CAPS por parte dos profissionais.
O que evidencia uma dificuldade das atuais normas legais de alterarem as categorias políticas anteriores e da
própria resistência de um grupo de trabalhadores”.
Outrossim, Amarante e Torre (2018, p.1104): “tem havido uma recorrente permanência dos sujeitos em sofrimento
mental no interior das instituições ditas “abertas”, produzindo uma nova institucionalização nos Centros de
Atenção Psicossocial (Caps). E que muitas vezes correm o risco de se tornar espaços “protegidos”, com forte
tendência ao fechamento e à priorização dos protocolos tradicionais como medicação psicofarmacológica,
consultas psiquiátricas e restrição às atividades internas à instituição. Além disso, também há o risco de se relegar

261
institucionalização podem estar presentes em determinados serviços territoriais, que tem como
principal desiderato a substituição do hospital psiquiátrico e, por conseguinte, buscar não
reproduzir o modelo tradicional de atenção (PANDE; AMARANTE, 2011). Nessa perspectiva,
tem-se uma dicotomia:

Ora o Caps tem a preocupação em favorecer um intercâmbio com a comunidade, ora


se reconhece fechado em si mesmo. Se por um lado exalta a cidadania dos usuários,
por outro entende que deve protegê-los dos desafios impostos pela sociedade. Ao
mesmo tempo que entende a necessidade de aproximação entre todos os seus
membros, ressalta as diferenças e as mantêm intactas. As perspectivas opostas estão
presentes, em um jogo de forças que compõe diferentes desenhos de acordo com a
ocasião. Os serviços podem, a um só momento, cronificar, restringir, segregar,
proteger, bem como libertar, favorecer autonomia, cidadania e protagonismo
(PANDE; AMARANTE, 2011, p. 2.075).

Por isso, é preciso avançar rumo à noção de desinstitucionalização, buscando a


desconstrução dos conceitos e saberes que sustentam o paradigma psiquiátrico, estabelecendo
a transformação do lugar social da “loucura” e da diferença. Se assim não for, pode-se ocorrer
de a “loucura” ser gerida em serviços sanitários sem qualquer trabalho cultural, passando-se de
“instituições da violência” para “instituições da tolerância” 6, e as práticas manicomiais podem
transmutar para serviços ditos “abertos” e “territoriais” (AMARANTE; TORRE, 2018). Nesse
sentido, a instituição que a Reforma busca desconstruir a “loucura” não é necessariamente o
manicômio (SANTOS, et al., 2019), pois este seria apenas uma de suas facetas.

O movimento de desinstitucionalização da loucura, que traz, ou melhor, devolve o


louco para o meio urbano, para o convívio social, para produção de autonomia, é uma
afirmação da sua existência, e busca restituir seu direito à cidadania, seu direito à
cidade. Abandona-se o confinamento entre muros, a clausura dos gabinetes e se ocupa
o bairro, a rua, a praça. Este movimento implica em um novo e grande desafio: o
encontro da cidade com o louco e a loucura (VIECELI, 2014, p. 07).

a um segundo plano a participação e o acolhimento dos familiares, e a intervenção comunitária para transformar o
estigma relacionado com a loucura psiquiatrizada”.
6
“Em outras palavras, a transformação da atitude, de violência para tolerância, tal como operada na comunidade
terapêutica, não significa uma transformação dialética do processo dentro-fora, do processo de inclusão-exclusão
social do louco, isto é, de inserção da loucura no espaço social. A exclusão, embora sem as características violentas
da psiquiatria asilar, continua a existir sob a égide da tolerância e da complacência” (AMARANTE, 1996, p. 86).

262
Faz-se necessário, além da criação de novos serviços de saúde mental, a busca pela
reinvenção dos espaços na sociedade, para que o diferente possa neles viver e atuar. Os sujeitos
devem participar ativamente nos seus trajetos no campo da saúde mental, sem que os usuários
dos serviços sejam subordinados ao conhecimento técnico-científico, inserindo a deficiência
mental no laço social; sendo o cuidado em rede e o uso da cidade nesse processo, essenciais
(SANTOS, et al., 2019).

O lugar da “cura” e da “reabilitação” não é mais a instituição de tratamento nem o


serviço de saúde, ainda que a assistência pública em serviços abertos seja fundamental
para a mudança nos modos de cuidado e fortalecimento dos dispositivos e estratégias
da atenção psicossocial. O lugar da emancipação e da autonomia, entendidas como
realidades dinâmicas a serem construídas, é a cidade, as relações sociais possíveis no
espaço da cidade, nos espaços de convivência coletiva, nos espaços de participação
social, nos grupos sociais diversos e na busca de cuidado integral e acesso a políticas
públicas. Isto é, promover o direito ao lazer e ao trabalho, o direito à cultura, os
espaços de militância, o direito à saúde, educação, moradia, alimentação, mobilidade
social, e a uma cidade sustentável e com mais equidade para os sujeitos em sua
diversidade (AMARANTE; TORRE, 2018, p. 1095).

É a partir desse processo, que transcende a mera desospitalização, mas que busca
construir um lugar social para a deficiência mental na sociedade, que o direito à cidade urge
como salutar e imprescindível para que o “louco” saia do “mundo da morte” a que é subjugado
e ascenda ao “mundo da vida”. Construindo-se uma nova cultura, um novo modo de lidar com
a deficiência mental e com a diferença na cidade, a cura passaria a ter uma nova abordagem,
perpassando pela necessidade de se produzir subjetividade e sociabilidade. A inserção dos
usuários de serviços de saúde mental na vida urbana, bem como sua reprodução social, é
fundamental para a produção da saúde e de projetos de vida (AMARANTE e TORRE, 2018).
A presente discussão é imperiosa e de importância maior para a construção de um lugar
social para a “loucura”, mormente porque, como destacam Costa e Lotta (2021), a despeito da
construção de novas categorias políticas, notadamente com o desiderato de combater e
desconstruir os estigmas associados aos usuários de serviços de saúde mental, eles ainda são
vistos pelos profissionais e pela sociedade como perigosos e incapazes. A persistência de tais
estereótipos, sobretudo dos profissionais da saúde, acaba por ensejar tratamentos que propiciam
a exclusão social, tais como a internação, medicalização excessiva e interdição civil, criando-
se cidadãos que não estão efetivamente incluídos na sociedade (COSTA; LOTTA, 2021).

263
Deve-se ampliar os lugares da “loucura” para além das políticas de saúde mental, que
devem ser aliadas a políticas sociais, educacionais, culturais, trabalho e o próprio direito à
cidade, buscando integrá-la nos espaços públicos, possibilitando o convívio com a diferença –
o cuidado em saúde mental deve passar a integrar o panorama da cidade (VIECELI, 2014) 7.
Afinal, como apontam Amorim e Dimenstein (2009), é nos espaços coletivos, potencializados
pela cidade, que “lutas em rede” 8 podem funcionar na resistência a sistemas manicomiais, bem
como produzir condições para a emancipação da vida do deficiente mental.
Nesse processo de resistência e emancipação, a busca pela desconstrução de estigmas
que colocam o “louco” numa condição de não-cidadão, condenando-o a uma vida na morte
social do seu eu, deve ser energética e contínua, nos mais variados setores da sociedade. Afinal,
como observa Goffman (1988), as pessoas tidas como normais visualizam a pessoa
estigmatizada como não sendo completamente humana, desencadeando-se, por isso, várias
discriminações e mitigando suas chances de vida.
O estigmatizado perde sua subjetividade, o seu eu, que é substituído pela acepção de
“loucura” elaborada pelo padrão de normal vigente na sociedade: o “louco” como incapaz e
perigoso. Assim, a estigmatização do deficiente mental constitui barreira a uma vida social
sadia, ao direito à saúde e à inclusão social (BUSSINGUER; ARANTES, 2016).
Desse modo, urge o imperativo de construção e efetivação de um direito à cidade como
mecanismo para reinserção do doente mental no pacto social e, sobretudo, para desconstrução
dos estigmas vigentes, em consonância com a Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência, que preconiza, em seu artigo 19, os seus direitos de viverem na
comunidade com o mesmo nível de liberdade de escolha das outras pessoas. Devem ser
assegurados, inclusive: o direito de escolha do seu local de residência, não podendo a pessoa
com deficiência mental ser obrigada a viver em determinado tipo de moradia; a assistência para
que as pessoas possam viver incluídas na comunidade, e não segregadas; e direito aos serviços

7
“As novas formas de lidar com a loucura vão na direção de romper com muros da internação e da exclusão do
louco, inserindo-se cada vez mais no terreno vivo, múltiplo e cambiante da cidade, no contexto das trocas sociais
que se estabelecem em comunidade. O cuidado em saúde mental passa a fazer parte do panorama da cidade,
apropriando-se dos bairros, das ruas, das praças, das igrejas, do bar da esquina, enfim, dos espaços sociais, que se
constituem como os novos lugares da loucura” (VIECELI, 2014, p. 07).
8
“(...) o processo de desinstitucionalização pode ser potencializado quando na relação loucura-cidade redes de
sociabilidade, de afeto e cuidado são desenvolvidas e viabilizadas a partir de “lutas em rede”. Redes tecidas numa
costura macro e micropolítica, no campo da saúde – nas articulações entre gestão-serviços-comunidade – e para
além dele nas articulações da saúde com outros setores (educação, habitação, assistência social, justiça etc.). Na
vida social e cotidiana as articulações dos moradores e usuários podem gerar iniciativas de cooperação e
solidariedade” (AMORIM E DIMENSTEIN, 2009, p. 332).

264
e instalações comunitários da população em geral, sempre atendendo às suas necessidades
(BRASIL, 2009).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa forneceu uma visão analítica, reflexiva e crítica acerca do “louco”
e da “loucura” na sociedade brasileira. Evidenciando-se a necessidade premente de se discutir
políticas de inclusão do deficiente mental na sociedade de forma ampla e democrática, sendo
este o principal sujeito ativo desse processo.
A despeito de avanços, notadamente das categorias jurídicas e políticas, as práticas e
percepções sociais concernentes à “loucura” ainda são estigmatizantes, obstando a efetivação
da condição de cidadão dos portadores de enfermidades psiquiátricas. Estes que são subjugados,
segundo os parâmetros sociais do “normal” à condição de doente, como perigosos e incapazes.
Condenados pelo padrão socialmente imposto a viverem num cenário de “morte social”.
Assim, permanece frontalmente oposto às diretrizes de direitos humanos e da
Constituição de 1988, que fundamentam a Reforma Psiquiátrica. Faz-se necessário, portanto,
construir um novo lugar social para a “loucura” à luz de um direito à cidade. Transcendendo o
âmbito das políticas de saúde e dos serviços substitutivos, devolvendo o deficiente mental ao
convívio social e efetivando sua cidadania, construindo um espaço de apropriação e criação da
subjetividade, da historicidade e da sociabilidade sem ceifar sua singularidade.
É dizer: construir um lugar social para a “loucura” em que seja possível a convivência
com a diferença, pautado pela alteridade e pela criação de possibilidades de desconstrução de
estigmas, pela emancipação do doente mental. Noutras palavras: construir meios de produção
de vida social para os portadores de doenças psiquiátricas.
Discussões desse jaez mostram-se inarredáveis e salutares, mormente num cenário que
enseja retrocessos e vai na contramão da produção da vida e da cidadania, reforçando velhos
paradigmas e estigmas que servem à gestão da morte social de grupos estigmatizados.

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REFLECTIONS ABOUT MENTAL DISABILITIES IN BRAZIL: (BIO)


NECROPOLITICS AND THE RIGHT TO THE CITY

ABSTRACT
Reflections on mental disabilities in Brazil: (bio) necropolitics and right
to the city is a critical and reflexive study on mental disabilities in Brazil
based on the ideas of biopower and necropolitics, starting from the
hypothesis that the social and political treatment given to those with
psychiatric illnesses relegates them to the condition of "social death".
The used methodology was bibliographic and documental analysis,
supported by content analysis. Thus, it was verified the importance of
the right to the city as a mechanism to reinstate the mentally ill in the
social pact and to deconstruct the segregation historically built and
maintained by both hospitalocentric and asylum models.
Keywords: Citizenship. Stigmatization. Segregation. Social Death.

269

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