Corpor, Prazer e Estilo. A Ética Hedonista de Michel Onfray
Corpor, Prazer e Estilo. A Ética Hedonista de Michel Onfray
Corpor, Prazer e Estilo. A Ética Hedonista de Michel Onfray
NATAL
2020
MARCELO HENRIQUE PEREIRA COSTA
NATAL
2020
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Prof. Dr. Markus Figueira da Silva.
Orientador
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
______________________________________
Prof. Dr. Marcos de Camargo Von Zuben
Membro externo
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
______________________________________
Prof. Dr. Antônio Júlio Garcia Freire
Membro externo
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
Para Henry e Talita Gomes, pela felicidade
que me proporcionam.
AGRADECIMENTOS
Pleasure is the main engine that boosts human behavior, a force of nature that drives life to its
utmost affirmation. That is why it is also the greatest ethical and moral issue for a whole
thinking tradition, from Democritus to contemporary neuroscientists. Michel Onfray, one of
the most interesting libertarian thinkers acting in the current French intellectual scenario,
claims that there is no ethics outside Hedonism, which is why his work is organized according
to the long lineage of hedonistic philosophical tradition. Onfray thinks of body and pleasure
as existential guides by means of conceiving human being as an entity comprised of raw
passions and vital forces that need to be shaped by a philosophical and ethical project.
Therefore, this study addresses this jubilant ethics from two important works of Onfray’s
bibliography: L’Art de jouir: pour un matérialisme hédoniste (1991); and La Sculpture de soi:
la Morale esthétique (1993). Considering such texts as theoretical horizon, this study is
organized into four chapters. The first one addresses the body – a hypesthetic machine of
which every philosophy is the expression. The Existential Hapax that guides this chapter was
developed by Onfray in order to manage the relation between body and thought. Afterwards,
the foundations of Hedonism are addressed by seeking to examine the very nature of pleasure
and pain as primary affections of life. Hence, the following questions are raised: Why is
pleasure a moral issue? What are its ethical implications? Is pleasure a necessary condition for
happiness? Are Hedonism and Eudemonism distinct or intertwined notions? In the third
chapter, the founding ethical developments of Hedonism are discussed, which are unfolded by
the philosophies of Aristippus and Epicurus – two thinkers from the ancient Greece. A
commented presentation of Onfray’s interpretation concerning such representatives of
Hedonism is proposed in this chapter. Pleasure and Style title the fourth and last chapter of
this dissertation. In fact, the Ethical Hedonism of Onfray is synonymous with aesthetics of
existence. Based on Nietzsche, Onfray addresses an individualism that is not a selfish. In
addition, Onfray supports an ethical relativism contrary to all castrating morals and glimpse
the conception of oneself out of the raw and chaotic material of which we are made in
advance. Afterwards, Onfray proposes a theory called aesthetic enjoyment in which the author
contemplates the body and its five senses but emphasizing the smell, taste and touch, since
these are ignoble senses devoid of intellectual status, according to the idealistic tradition to
which Onfray opposes. In conclusion, the purpose of Onfray’s work is to promote a
rematerialization of life as a way to counteract the contemporary nihilism – something only
possible if there is a reconciliation with the body in order to affirm its hedonic power. Hence,
it arises Onfray’s conception that philosophy is an art of living and not only a theory. In this
ethical project that celebrates friendship as the greatest virtue, the hedonistic thinker aims to
“know how to loyally enjoy oneself”.
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 12
2 CORPO............................................................................................................................ 22
5.5.4 Lição última do hedonismo: “Saber desfrutar lealmente do próprio ser”............. 232
1 INTRODUÇÃO
Em geral, a essência do que um filósofo tem a dizer ele o diz já em seus primeiros
escritos, aqueles de sua juventude impetuosa. O restante de sua obra, por preciosa que seja,
são acréscimos e desenvolvimentos a esses primeiros frutos de suas intuições inaugurais. O
presente trabalho tem por objeto de estudo duas obras que, se não são exatamente as primeiros
da carreira de Michel Onfray, filósofo francês nascido em 1959, estão entre elas: A arte de ter
prazer: por um materialismo hedonista, publicado na França em 1991, e A escultura de si: a
moral estética, de 1993 (obra agraciada com o prêmio Médicis de ensaio daquele ano) 1.
Onfray tinha, respectivamente, trinta e dois e trinta e quatro anos quando da publicação destes
livros. São no entanto livros-chave de sua filosofia por conterem os fundamentos de sua visão
de mundo.
Trata-se de dois livros de ética, mas enquanto A arte de ter prazer (no original L’art
de jouir, cuja tradução mais precisa seria A arte de gozar), ainda que fale de virtudes, elabora
sobretudo o plano ontológico de uma filosofia hedonista abordando questões ligadas ao corpo,
aos sentidos e à historiografia filosófica; o segundo livro, A escultura de si, pinta bem mais o
cenário de uma ética hedonista prática com fortes tonalidades estéticas. Livro de inspiração
artística na totalidade de suas páginas, A escultura de si formula as modalidades hedonistas de
uma arte de viver, portanto de uma maneira filosófica de se orientar na existência. Por aqui se
vê qual é a matéria deste nosso estudo: propomos uma abordagem da ética hedonista de
Michel Onfray a partir da análise desses dois textos iniciáticos. Todo o restante de sua obra
deve ser lida na medida do possível, mas é preciso considerar que o todo parte desse ponto e a
ele lhe é fiel. O presente estudo é, pois, o nosso recorte acadêmico e visão interpretativa sobre
uma arte de ter prazer enquanto ética da escultura de si.
Autor prolífero e sistemático, o conjunto dos escritos de Michel Onfray orbita de fato
em torno do hedonismo em todas as suas variantes possíveis. Assim, sua obra é composta por
uma política de esquerda libertária (A política do rebelde, 1997), uma metafísica (Tratado de
ateologia, 2005), uma erótica (Théorie du corps amoureux, 2 2000), uma bioética (Féeries
anatomiques, 2003) uma estética (La Danse des simulacres, 2019), uma ética, uma
historiografia filosófica alternativa (Série Contra-história da filosofia, em onze volumes,
2006-2018), uma filosofia da natureza (Cosmos: uma ontologia materialista, 2015), uma
1
https://fr.m.wikipedia.org/wiki/Prix_M%C3%A9dicis_essai;
https://prixmedicis.wordpress.com/laureats/essais/. Acesso em: 08 set. 2019.
2
Os títulos mantidos no original em francês indicam ausência de edição brasileira.
13
3
Edição portuguesa: Decadência: o declínio do ocidente, Edições 70, 2019.
14
sistematicamente a obra de Michel Onfray, percebemos que era imperativo iniciar esse estudo
por sua metafísica e por sua física antes de adentrarmos na sua ética, e essa primeira
abordagem recebeu o seguinte título: O ateísmo combativo de Michel Onfray: por uma
laicidade pós-cristã (Cf. COSTA, 2017).4
Vencida essa etapa, tendo reivindicado o ateísmo como opção metafísica e
estabelecidas as bases ontológicas de uma física dos átomos que de Leucipo e Demócrito aos
astrofísicos contemporâneos dizem a verdade sobre um mundo de pura imanência, restava
tratar da ética onfrayriana. Em consequência, surgiu a pergunta fundamental do presente
estudo: como viver num mundo em que a morte de Deus fez os seres humanos mergulharem
no niilismo moderno? Como viver diante da verdade desesperadora de nossa condição trágica
marcada pela certeza da finitude? Resposta: rindo, fruindo e cultivando o prazer e a alegria de
viver consigo mesmo, com os outros e com o mundo, apesar de tudo. Tal resposta, que
expressa um pensamento trágico ao mesmo tempo em que afirma um hedonismo filosófico, só
pode advir mediante a afirmação do corpo, corpo este que precisa ser redescoberto como uma
potência sensualista e o lugar único onde a vida se manifesta em toda sua grandeza,
intensidade, brilho, fluidez, sensibilidade e força. É o próprio Onfray quem o diz: sobre o
problema do hedonismo, “se eu precisasse reduzi-lo a uma interrogação, seria evidentemente
a de Espinosa: ‘O que pode o corpo?’” (ONFRAY, 2010).5 Questão, pois, capital, uma vez
que tudo se relaciona com o corpo e que somente a partir dele é que se ramificam os
desenvolvimentos possíveis quanto à atitude filosófica propriamente hedonista. O corpo está
impregnado de todas as coisas. O corpo é tudo. Afirmemos o corpo e nos reconciliemos com
os seus cinco sentidos a fim de nos reconectarmos com a vida em seu sentido terreno.
Com efeito, o presente trabalho subscreve uma definição da vida como um “ato do
corpo”. Ora, os atos máximos do corpo se resumem àqueles que se pode dizer da vida em sua
afirmação maior, algo que Pierre Hadot, escrevendo a propósito de Henry David Thoreau,
expressou da seguinte maneira: trata-se do “prazer de sentir o mundo com todos os sentidos”
(HADOT, 2014, p. 303). E, como relata o próprio Thoreau em Walden sobre uma “uma noite
deliciosa” que ele viveu, sentir a vida significa tomar “o corpo todo” como “um sentido só” a
fim de absorver “prazer por todos os poros” (THOREAU, 2015, p. 129). São belas e efetivas
ideias desse tipo, ideias de uma imanência radical, que expressam a filosofia hedonista a qual
Onfray formula e professa a partir de uma valorização do corpo porque, e isso é evidente, o
4
Esse trabalho foi publicado em E-book pela Editora Universitária da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (EDUERN) e se encontra disponível em: https://issuu.com/eduern/docs/livro.projeto.1. Acesso em 30 ago.
2019.
5
Texto de orelha do livro, daí a ausência de paginação.
15
corpo é a própria sensibilidade em toda sua complexidade, de modo que a vida só pode ser
realmente concebida como uma manifestação corporal específica. Para nós, seres vivos
munidos de um sistema nervoso de alta complexidade, não existe vida fora da sensibilidade
corporal. Sentir é perceber a existência. Sentir prazer, porém, é existir maximamente e
alegremente porquanto o prazer é antes de tudo uma força que confere ânimo e potência à
vida, é algo que a impulsiona. Nesse sentido, a ideia predominante deste trabalho pode ser
expressa através da seguinte fórmula: Sinto, logo existo; gozo, logo sou.
A obra de Michel Onfray é de fato uma obra que exalta o corpo e os sentidos. Ela
representa uma celebração ao puro prazer de existir. Por conseguinte, antes de analisarmos o
problema da natureza do prazer em si mesmo e em que modalidades ele é passível de ser
transfigurado a fim de sustentar uma ética filosófica enraizada na tradição helenística do
pensamento – e este é o tema/problema desta dissertação – , precisamos investigar a questão
do corpo ou do que poderíamos chamar de “pensamento-corpo”. Partindo desse ponto, o texto
de Onfray apresenta uma série de questões de interesse central, a saber: o que pode o corpo no
campo do pensamento? Que relação as ideias de um filósofo mantêm com o seu corpo? O ato
de pensar é um ato puramente cerebral ou envolve o organismo em sua totalidade? A
fisiologia está na origem das ideias? Daí decorre o seguinte problema: se o corpo é o centro de
tudo, então aquilo que acontece com ele e o acomete, ou seja, as manifestações de seus atos
de vida no sentido de sua história efetiva e afetiva, o seu estar no mundo, bem como sua
relação com os outros corpos podem conter elementos relevantes para a investigação
filosófica? Em outras palavras, a biografia (pois é disso que se trata) de um filósofo tem real
importância para o estudo de sua obra, ou é algo indiferente a ela?
Tradicionalmente a Universidade, enquanto centro oficial da pesquisa filosófica,
jamais considerou seriamente a ideia de incluir nos seus programas de ensino o estudo
biográfico dos pensadores sobre os quais se debruça. Ela separa portanto a obra escrita da
vida de seu autor. Mas há outra maneira de abordar a questão e é na esteira de Nietzsche que
Onfray concebe realmente toda filosofia como a mais forte expressão autobiográfica de um
autor, ou, para sermos mais preciso, ele vê a filosofia, qualquer filosofia, como a confissão de
um corpo, no caso, o corpo do filósofo. Tomando as teses principais propostas por Nietzsche
em seu célebre prólogo à Gaia ciência (“desde que se é uma pessoa, tem-se necessariamente a
filosofia de sua pessoa” (2001, § 2, p. 10)), bem como nas primeiras páginas de Além do bem
e do mal (“o pensamento consciente de um filósofo é secretamente guiado e colocado em
certas trilhas pelos seus instintos” (1992, § 3, p. 11)), como um método a partir do qual se
deve ler e fazer filosofia, Onfray reivindica uma fisiologia da disciplina e afirma que as
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grandes ideias não caem do céu, à maneira de uma iluminação espiritual, mas, ao contrário,
emanam das entranhas do corpo de um pensador quando este é submetido a experiências
emocionalmente profundas nas quais o inconsciente e os instintos assumem o protagonismo
na ordem da inspiração filosófica. Só após o transe é que a razão toma as rédeas das ideias e
lhes imprime uma ordem.
Hápax existencial, é assim que o nosso autor chama essas experiências pelas quais
muitos dos grandes pensadores efetivamente passaram. Conceito chave em sua obra, ele serve
a Onfray para pensar o corpo e é de real importância para a compreensão de sua filosofia
hedonista. De fato, o hápax existencial nos é apresentado precisamente em A arte de ter
prazer, seu principal tratado para uma ética da fruição, motivo pelo qual lhe dedicamos uma
atenção especial em nosso primeiro capítulo intitulado Corpo. Veremos aí, num primeiro
momento, que Onfray não distingue a inspiração filosófica daquela experiência epifânica das
quais muitos artistas, poetas e místicos – mas raramente os filósofos – dão testemunho.
Assim, o nosso autor busca demonstrar que o pensamento é um afeto do corpo e que, por
conseguinte, muitos sistemas filosóficos, caracterizados por uma racionalidade rígida e por
uma forma de apresentação tão apolínea, têm sua origem identificada com o momento de uma
crise nervosa ou de algo da ordem de uma epifania dionisíaca. Em suma, Onfray sugere que
as ideias racionais e verdades filosóficas provêm muitas vezes de um caldo de paixões gerado
por um estado de forte excitação psíquica e defende essa tese explorando casos concretos – e
eles são muitos – em que de fato a desrazão antecede a razão. É nesse contexto que o
conceito de hápax existencial adquire importância. Mas, o que o caracteriza esse conceito?
Que tipo de crise na vida de um pensador pode ser pensado a partir dessa noção e quais
filósofos na história das ideias tiveram seus hápax? E, no caso do próprio Onfray, que
experiência foi determinante para a concepção de sua ética hedonista?
Considerando esse aspecto existencial da filosofia reivindicado por Onfray, como
pretender escapar à relação vida e pensamento, biografia e ideias, história pessoal e obra
escrita? Desde o início da filosofia a multiplicidade de doutrinas, escolas, tradições, teorias e
sistemas parecem dizer mais sobre a personalidade de seus autores e a maneira como
enfrentaram os problemas fundamentais de suas vidas do que sobre a pretensa cientificidade
de que muitas vezes suas obras se revestem. Em vista disso, um dos conceitos mais
emblemáticos e provocativos de Onfray, a noção de “romance autobiográfico”, merece uma
parte de nossa atenção, pois é através dessa ideia que o nosso autor assume com toda
transparência aquilo que os filósofos em geral buscam ocultar, a saber, a alta carga de
subjetividade inerente em suas obras. Estamos aqui diante de uma atitude metodológica
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reivindicada, e esta é a razão pela qual Onfray inicia cada livro seu com um relato
autobiográfico que pretende fundamentar uma abordagem teórica determinada. O objetivo é
demonstrar, a partir do próprio exemplo, o quanto a vida alimenta o pensamento e o
pensamento, por sua vez, intervém na existência a fim de orientá-la filosoficamente. É para
compreender melhor essa ideia que o nosso primeiro capítulo será concluído com a análise do
texto introdutório de A arte de prazer, livro fundador do hedonismo onfrayriano.
As outras três partes deste trabalho são inteiramente dedicadas ao hedonismo enquanto
proposição ética, mas a partir de perspectivas diferentes. Assim, o segundo capítulo se chama
O que é hedonismo? e inicia a problematização em torno desse conceito, especialmente no
que se refere às noções de prazer e dor, tratados aí como afetos fundamentais da vida
enraizados na biologia humana. Desde a Antiguidade se tem percebido o quanto a questão da
dor e do prazer é imperativa para pensar o agir humano em relação a seu anseio por
felicidade. Alguns pensadores se notabilizaram por pautarem seus sistemas éticos
precisamente a partir do que podemos chamar de “pan-hedonismo”. Com efeito, é possível
afirmar que toda a vida está baseada nesse tropismo natural inegável, a saber, o fato de que
tudo fazemos para alcançar fontes de prazer e de satisfação dos nossos desejos e,
inversamente, tendemos instintivamente a nos afastarmos daquilo que nos causa dor e
sofrimento. Mecanismo biológico, a vida animal não sobreviveria sem essa sensibilidade.
Somos, portanto, e antes de tudo o mais, seres que sofrem e se regozijam, animais
determinados pelos sentimentos de dor e prazer, todo o resto segue disso. Mas precisamente
isso que resta e vem depois é o que estabelece o problema da ética porquanto consiste naquilo
que está no âmago do eterno conflito entre physis e nómos, entre a natureza que somos e a
cultura humana que criamos e recriamos. Eis, então, a nossa tese ou proposta: lendo Onfray
concluímos que o hedonismo é uma espécie de arte da transfiguração da necessidade natural
em virtude cultural.
Porque, de fato, toda a problemática da ética surge com essa exigência humana,
exclusivamente humana, de lidar com a natureza primeira que nos constitui a fim de impor-
lhe uma segunda natureza, vale dizer, um ethos, ou seja, um temperamento, um modo de ser e
de agir, uma disposição ética, uma atitude perante a existência. No reino selvagem não existe
conflito porque não há ética nem moral e cada espécie animal se vira como pode munido
apenas de seus instintos. Quanto a nós, o que fazemos com essa força que nos impulsiona em
direção ao prazer? Que relações foram estabelecidas, no âmbito da cultura e da vida dita
civilizada, com esse nosso corpo equipado pela natureza da capacidade de sentir prazer e
desprazer, dores e júbilos, angústias e alegrias, paixões e desejos? Sabemos que a solução
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encontrada pela tradição judaico-cristã foi a de condenar essa máquina corporal cheia de
apetites sensuais e de paixões tidas como incômodas.
O prazer, sobretudo o prazer foi visto pelas religiões como um mal associado à carne
pecaminosa e, por isso, passível de condenação. Os prazeres estão também no cerne de
desejos impossíveis de serem saciados plenamente, o que fez com que na Antiguidade
estoicos e platônicos somassem suas lutas contra os anseios do corpo. Por outro lado, esses
filósofos ensinavam que a alma era superior ao corpo porque podia, mediante austeridade
ascética orientada por um trabalho intelectual, escapar às suas paixões e à sua volúpia. Nada
de valorizar os prazeres. A virtude reside, ao contrário, em suportar com firmeza e orgulho a
dor. Numa postura que nos leva ao extremo oposto da ética estoica antiga, as sociedades
capitalistas contemporâneas (que não se notabilizam pela virtude) se apropriaram à sua
maneira do impulso natural ao prazer e canalizaram essa energia a seus fins ideológicos. De
fato, a civilização mercantil, obcecada por lucro, poder e consumo faz seu próprio uso das
noções de prazer e de felicidade. No entanto, se o prazer é aqui celebrado, ele é igualmente
deturpado e devemos a essa perversão o fato de o hedonismo ter adquirido um sentido tão vil
quanto distante daquele defendido nos livros de Michel Onfray.
Não obstante o ascetismo platônico/cristão, e apesar da cegueira social em torno das
promessas do mundo consumista contemporâneo, há, e sempre houve, uma tradição filosófica
hedonista autêntica, uma tradição que em tudo se contrapõe ao que vulgarmente hoje se
entende por hedonismo. Onfray propõe o resgate dessa corrente de pensamento a fim de fazer
frente precisamente aos problemas que são os nossos hoje e, nesse caso, o seu elogio se volta
sobretudo às duas maiores escolas hedonistas da Antiguidade, a cirenaica e a epicurista. Ele
deseja, portanto, uma retomada em conjunto das teses dessas duas tradições filosóficas para, a
partir daí, pensar as condições de possibilidade de uma ética do prazer para hoje – o que não
seria possível fazer sem dialogar com a história da filosofia hedonista. Eis porque, em A
inspiração cirenaica e epicurista: genealogias da ética hedonista, nosso terceiro capítulo, nos
debruçamos sobre a interpretação onfrayriana das filosofias de Aristipo e de Epicuro, os dois
mestres gregos da sabedoria hedonista antiga. O material bibliográfico do qual nos servimos
aqui foi o primeiro volume da série Contra-história da filosofia, chamado As sabedorias
antigas, mas igualmente A arte de ter prazer permaneceu aberto em nossa bancada.
Objetivamos apresentar nesse capítulo a leitura que Onfray faz de Aristipo e de Epicuro
porque seu hedonismo se insere na tradição iniciada por estes dois sábios. Contudo decidimos
analisar as suas interpretações à luz de nosso próprio estudo dos fragmentos cirenaicos e
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epicuristas compilados por Diógenes Laércio em suas Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres,
livro imprescindível para a compreensão do hedonismo na Antiguidade grega.
O quarto capítulo desta dissertação tem por título Prazer e estilo: por uma estética da
existência, e a questão que o norteia é a seguinte: como, resgatando o espírito existencial das
filosofias de Aristipo e de Epicuro, Michel Onfray reabilita, por sua conta, um hedonismo
filosófico para uso em nosso próprio tempo, um tempo ainda dominado pela filosofia idealista
e pela moral cristã, por um lado, e pelo hedonismo vulgar de uma sociedade de consumo
doentio, por outro? Ora, sua opção é pela rebeldia, liberdade e subversão próprias a todo
pensador radical assim como a todo artista digno desse nome. Donde uma ética inspirada na
estética na qual predomina uma defesa intransigente da figura do indivíduo cioso de esculpir a
sua própria figura em detrimento do sujeito moldado pelos padrões sociais. Disso decorre uma
necessária depuração do conceito de indivíduo de sua acepção contemporânea equivocada que
associa essa figura e essa expressão ao sujeito egoísta e egocêntrico tão em voga em nossa
época. Veremos que Onfray reivindica, sem rodeios, tanto o individualismo quanto o
relativismo ético, pois não está em seu horizonte legislar a partir de imperativos categóricos
para a totalidade das pessoas. Todavia, o individualismo defendido aqui não faz concessões ao
instinto gregário que hoje impera por toda parte, visto se tratar de um individualismo
aristocrático (no sentido etimológico da palavra, não em sua acepção política) do mesmo tipo
que Nietzsche e Georges Palante defenderam em suas obras. É também o mesmo relativismo
ético e o mesmo individualismo que as sabedorias helenistas e romanas da Antiguidade
praticavam antes de o cristianismo impor a sua moral subniveladora sobre o mundo.
Veremos aí algo de suma importância: a ideia de que, em filosofia, não existe moral
universal, mas somente éticas relativas, logo artes de viver. Eis uma ideia que perpassa a
totalidade desta dissertação, mas cujo desenvolvimento detalhado pertence a este quarto
capítulo. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, tentamos mostrar o quanto Michel
Onfray se inspira na arte para pensar a ética porquanto, para ele, toda construção filosófica de
si pode efetivamente ser comparada a uma criação artística. É nesse cenário que o hedonismo
surge como uma arte de viver que, como toda obra de arte, também esta precisa expressar o
estilo de seu criador. Donde esta mensagem de inspiração nietzschiana: novas possibilidades
de existência são não apenas possíveis como necessárias. De resto, no âmbito da sociedade do
espetáculo que é a nossa, certamente a atitude ética mais louvável, talvez mesmo a mais
imprescindível, é a de tentar viver de outro modo. A decência reside, hoje, na atitude de tentar
viver diferentemente do que se vive a fim de se rebelar contra a padronização dos
pensamentos e dos comportamentos uniformes e uniformizadores.
20
Com efeito, uma ética de inspiração estética e individualista que preconiza o prazer
suscita alguns problemas conclusivos a serem analisados, a saber: como construir a si mesmo
e como imprimir um estilo ao caráter numa sociedade que se sustenta a partir do estorvamento
das espontaneidades inerentes a cada ser humano? De que liberdade é possível falar em
matéria de ética hedonista e individualista? Aliás, que lugar os outros e as outras pessoas
assumem nessa perspectiva? Como ficam as relações intersubjetivas? E a amizade, ela é
possível hoje para além da superficialidade que esta palavra, também ela, adquiriu? Qual é o
sentido próprio, na filosofia hedonista, da amizade e que espaço essa virtude ocupa num plano
ético centrado no indivíduo e na construção de si?
Dissemos acima que o corpo ocupa o lugar central em tudo isso e, de fato, com ele
iniciamos e concluímos este nosso estudo visto que, como se sabe, o hedonismo remete ao
sensualismo, logo aos sentidos corporais e aos seus prazeres potenciais. Sentir é a acepção
primeira da palavra estética. Ora, que papel devemos então atribuir aos sentidos do corpo no
âmbito de uma ética que se quer estética? Existe alguma hierarquia na ordem do sensível?
Sabe-se que a tradição filosófica privilegiou a visão e a audição em detrimento dos demais
sentidos do corpo humano no campo das belas-artes. O que essa distinção pode revelar sobre
a perspectiva ideológica daqueles que, ainda hoje, a cultivam? Quão superiores seriam os
olhos e os ouvidos em relação ao nariz, ao paladar e ao tato no plano estético? São perguntas
munidas do potencial de desencadear reflexões relevantes com alguma dose de polêmica, sem
dúvida, pois Michel Onfray é de fato um pensador polemista, no bom sentido da expressão.
Entretanto, sendo sua luta filosófica exercida em prol do prazer, seu principal trunfo consiste
em chamar a atenção para uma ética que tem no corpo seu principal aliado.
Como o leitor pôde perceber nesta introdução, as questões em torno de uma ética
hedonista são muitas, e não hesitamos na tentativa de desenvolvê-las na medida de nossas
capacidades de pesquisa e de escrita. Talvez por isso tenhamos cometido, para os propósitos
estritamente acadêmicos, o pecado do excesso em número de páginas. Mas sendo esta uma
oportunidade única para abordar o tema a que nos propomos, e na falta de uma “medida”
inquestionavelmente “ideal”, preferimos assumir o risco do excesso no desenvolvimento
teórico ao invés de errar por escassez.
Como em nosso trabalho anterior já mencionado (vide supra, p. 14), também aqui
optamos por um estilo de escrita mais ensaístico e menos técnico. Buscamos ser rigorosos na
pesquisa e na precisão das informações e das demonstrações fornecidas, porém deixamos de
lado, na medida do possível, o padrão acadêmico de escrita comumente empregado nos
trabalhos universitários. Ele tem suas vantagens, mas em seu lugar preferimos a liberdade do
21
ensaio enquanto gênero textual no qual o pensamento parece fluir melhor e expressar-se com
mais clareza, simplicidade e – por que não? – elegância.
Metodologicamente, citamos muito, bastante até, mas isso tem duas razões: em
primeiro lugar, citamos e fizemos muitas notas a várias obras e a muitos autores com o
propósito de, evidentemente, fundamentar as ideias apresentadas fornecendo as devidas fontes
em nome das boas normas acadêmicas e da honestidade intelectual; em segundo lugar,
lançamos mão de muitas citações para simplesmente melhor expressar algumas ideias
centrais, o que nos fez multiplicar consideravelmente as referências. Assim, valendo-nos de
uma vasta bibliografia filosófica em torno dos temas aqui abordados e da argumentação que
elas engendraram, não hesitamos em convocar este pensador ou aquela filósofa para dizer
com mais precisão e propriedade, através de seu gênio literário, aquela ideia que conseguimos
intuir ou aquele pensamento que nos levou imediatamente àquele outro, mas que, por nos
faltar o gênio necessário, não seríamos capazes de expressar com igual força argumentativa,
beleza textual ou precisão retórica. Em suma: nem sempre citamos para fundamentar uma
ideia apresentada, mas para melhor expressá-la.
Citar é uma arte por si só e, nesse sentido, dois mestres nos guiaram aqui como
alhures: são eles Sêneca e Montaigne. Com o primeiro dizemos, nós também, que “qualquer
boa máxima” que expresse aquilo que queremos dizer, “seja qual for o autor”, é nossa
“propriedade” (SÉNECA, 2018, 16, p. 56). Já Montaigne solicita ao seu leitor a mesma
complacência e compreensão que requeremos aqui ao nosso: “Que se veja”, escreve ele,
“naquilo que tomo emprestado, se eu soube escolher com que realçar meu tema. Pois faço os
outros dizerem o que não consigo dizer bem, ora por fraqueza de minha linguagem, ora por
fraqueza de meu gênio. Não conto meus empréstimos; peso-os” (MONTAIGNE, 2006, II, 10,
p. 115). Quanto a nós, por que não adotaríamos a mesma postura de Montaigne e
assumiríamos, desde já, as nossas limitações? Declaramos, pois, que este foi também o
princípio que nos moveu. Desse modo, não contamos nossas citações, procuramos citar bem.
Esperamos ter acertado em nossas escolhas.
22
2 CORPO
Michel Onfray não está de acordo com o critério deleuziano que define o filósofo
como um artífice e criador de conceitos.6 Por essa ótica, grandes pensadores como Montaigne
ficariam de fora do panteão dos filósofos ilustres. Para Onfray, o critério é a vida filosófica: é-
se filósofo se se busca a máxima coerência entre o pensar e o viver, de modo que o filósofo
autêntico é aquele que encarna seu pensamento no cotidiano de sua existência, inclusive no
que ele tem de mais corriqueiro. O neologismo conceitual não pode nunca ter primazia sobre
a vivência. Noutras palavras, o pensamento não deve se desvincular da vida. Contudo, desde
que não se pratique a obsessão do verbo, do formalismo conceitual e a ininteligibilidade
comunicativa que daí decorre muitas vezes (para Onfray, o discurso filosófico deve ser claro e
comunicável a todos), pode fazer parte da prática filosófica a criação de conceitos e, nesse
caso, Onfray dispõe dos seus. Este capítulo será dedicado àqueles que talvez sejam os
principais conceitos onfrayrianos, a saber, “hápax existencial” e “romance autobiográfico”.
Noções intercambiáveis e interdependentes em sua obra, através deles Onfray nos oferece
uma reflexão sobre o corpo e uma concepção do pensamento enquanto sintoma do corpo.
Aqui o corpo é o ponto de partida, e também será o de chegada, pois o hedonismo, bem como
qualquer outra atitude filosófica, é antes de tudo uma opção visceral, isto é, uma exigência do
corpo do pensador. Iniciemos nossa investigação sobre o primeiro conceito, o hápax
existencial, e, em seguida, analisemos no que consiste a ideia de romance autobiográfico.
Hápax vem do grego hápaks, que significa “uma vez”. Hápaks legómenon, também do
grego, quer dizer “o que é dito uma única vez”. 7 Essa etimologia se encontra em qualquer
bom dicionário da língua portuguesa uma vez que nosso idioma, assim como o francês,
manteve o sentido originário da expressão. Vindo, então, da filologia, um hápax, nos diz o
Michaelis, é uma “palavra, termo ou expressão da qual há uma única abonação registrada ou
documentada na língua”. 8 Ainda segundo o Michaelis, existe até mesmo a variação adjetiva
6
Michel Onfray: de la grandeur de Camus. Entrevista concedida a Chantal Guy para o jornal La Presse e
publicada em 07 de abril de 2012. Disponível em: https://www.lapresse.ca/arts/livres/entrevues/201204/07/01-
4513330-michel-onfray-de-la-grandeur-de-camus.php. Acesso em: 21 dez. 2019.
7
Cf. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio, versão 5.0 – a partir de agora apenas Aurélio, entre parênteses, no
corpo do texto.
8
Cf. Michaelis dicionário brasileiro da língua portuguesa, versão eletrônica 3.1.1 – a partir de agora apenas
Michaelis.
23
“hapaxântico”, que remete à ciência botânica e à classe dos monocárpicos, como são
chamados os vegetais que florescem uma única vez e morrem logo em seguida, por exemplo,
a piteira.
No vocabulário próprio da filosofia, onde as palavras costumam se tornar conceitos, o
uso desse termo é extremamente raro, daí sua ausência nos dicionários especializados (ao
menos até onde alcançou nossa pesquisa). No entanto, surpreendentemente, encontramos uma
definição de hápax no livro Termos Filosóficos de Epicuro, de autoria do professor Markus
Figueira, que lhe dedica a atenção de um verbete exclusivo. Em seu texto lemos que hápax,
enquanto advérbio, serve à filosofia de Epicuro para “evidenciar o limite temporal dos
prazeres e dores” e, para demonstrar, cita uma passagem em que Epicuro faz uso da
expressão: “‘Uma vez (hápax) este estado realizado em nós (ausência de sofrimento e temor),
toda a tempestade da alma desaparece’ (DL, X, 128)” (SILVA, 2018, p. 105). Segundo o
professor Markus, a palavra hápax assinala aqui a impossibilidade de “haver simultaneidade
de dores e prazeres”. (Ibid.).9 Contudo, não se trata de um uso propriamente conceitual tal
como o termo aparece em Michel Onfray.
Extraindo, portanto, a palavra hápax da filologia, Onfray lhe confere realmente
expressividade filosófica quando a aplica no campo existencial para pensar o corpo e seus
influxos vitais como fontes originárias do pensamento. Assim, ele entende que os dispositivos
mais fortes para ativar essa máquina de sentir e de pensar que é o corpo humano são as crises
existenciais profundas a que este corpo pode ser submetido, a saber, aqueles momentos
únicos, irreplicáveis e suficientemente traumáticos que geram fendas definitivas na vida de
um místico, de um artista, de um poeta ou de um filósofo. Pois bem, tais turbulências
emocionais não raro são a condição de possibilidade para que o gênio se manifeste e faça
emergir uma obra verdadeiramente viva. O que pode, então, o corpo? Que relações ele
mantém com o pensamento de um filósofo? Do que é capaz o corpo de um indivíduo dotado
de uma sensibilidade intensa e incomum ante uma experiência de vida excepcional onde
sofrimento e êxtase se misturam? Em consequência, o que é uma inspiração filosófica? Donde
vêm as ideias? São questões centrais que Michel Onfray traz à superfície para pensar a gênese
de uma obra filosófica digna do nome, vale dizer, uma obra que outra coisa não é senão a
tentativa de expressar intuições originárias vividas intensamente na carne.
9
É interessante observar que a autora do prefácio dessa obra, Maria de Fátima Silva, utiliza ela mesma a
expressão hápax no sentido filológico, ou seja, apontando a existência, no livro do professor Markus, de palavras
cuja aparição se dá uma única vez em todo o corpus epicurista por ele analisado (Cf. SILVA, 2018, p. 10).
24
O que é, pois, um hápax existencial? É, de fato, um trauma, nos diz Onfray, ou seja, é
a vivência profundamente perturbadora de um “momento da vida em que tudo se subverte e
em torno do qual se organiza o restante da existência” (ONFRAY, 2013, p. 132). Trata-se
efetivamente de “uma experiência psíquica” tanto quanto “física”, “espiritual” e “corporal”
(Ibid.) a um só tempo. A principal característica dessa experiência é a de ser um momento
decisivo que Onfray descreve como a ocasião de “desatamento de um nó” e da “resolução de
uma contradição, de uma tensão”, uma espécie de “crise” que se faz acompanhar de
“somatizações espetaculares” (Ibid.). É um “Hápax”, escreve ele, “pois essa cena não tem
réplica, não se repete, é única”; mas é também “existencial, pois o hápax resolve problemas
que tornariam difícil” o prosseguimento da “existência” (Ibid.).
Tudo se passa na emergência do instante temporal e por isso Onfray lança mão da
conhecida expressão grega “kairós” para precisar o significado de um hápax existencial, pois
este é uma modalidade do kairós, ou seja, diz respeito a um momento oportuno, o instante
preciso, certo e único “de toda empresa filosófica” (2010a, p. 16). Claro, toda a vida é feita de
instantes, únicos e irreplicáveis todos eles. A ontologia heraclitiana resumida na ideia de que
nunca se entra duas vezes no mesmo rio prevalece como a verdade irretorquível do eterno vir
a ser, onde de fato nada se repete tal como tal. Contudo, na duração de uma existência os
instantes de que esta é constituída variam enormemente em ordem e grau. O mais comum é
que eles se assemelhem dando a ilusão de repetição. O hápax, ao contrário, é o instante dos
instantes, a excepcionalidade máxima, a ponta extrema de um momento muito mais agudo,
forte e violento quando comparado até mesmo com todos os demais momentos marcantes de
uma vida. “No cruzamento do tempo e da eternidade”, escreve Onfray noutro contexto, “o
instante é a categoria temporal dos êxtases, daquilo que, aliás, chamei de hápax existencial”
(ONFRAY, 1995, p. 113).
Se Nietzsche apontou para a primazia do corpo sobre o intelecto, para instâncias
inconscientes e instintivas que se encontram na base e na matéria de um processo de
transmutação dessas forças em algo que a razão possa organizar, ler e interpretar; ou seja, se
“o manto da objetividade” e da “ideia” (NIETZSCHE, 2001, Pr., § 2, p. 11) não faz senão
disfarçar uma fisiologia que enseja o pensamento; se para Nietzsche as crises que abalam os
corpos é que impulsionam o ato de filosofar, Michel Onfray, por sua vez, identifica
precisamente esses momentos de tormentas e de experiências extremas vividas por muitos
pensadores. Segundo ele, “num momento preciso da vida de um filósofo, num lugar
determinado, numa hora identificável, ocorre algumas coisa – o não sei quê de Benito
25
10
Dom Benito Jerónimo Feijoo e Montenegro (1676-1764) foi um influente polígrafo, ensaísta e filósofo de
origem galega, considerado como uma das figuras literárias mais importantes de Castela do século XVIII e um
dos primeiros defensores do Iluminismo na Península Ibérica. Cf. http://www.filosofia.org/feijoo.htm. Acesso
em: 29 dez. 2019.
26
afirma que a obra de um filósofo “se nutre” precisamente de “substâncias que, de outro modo,
devasta os corpos” (Ibid., p. 40). Sem que o próprio organismo encontre uma solução para a
crise que o acomete, ele se destrói mergulhando o ser no torpor da loucura.
Michel Onfray não está falando de abstrações românticas, mas de fatos da vida
concreta e real da vida de muitos dos principais gênios da história das ideias. Desse modo,
para demonstrar, ele reúne na chamada “categoria dos filósofos do hápax existencial” (Ibid.,
p. 79) os exemplos mais significativos passíveis de sustentar sua tese. De fato, a despeito dos
esforços da tradição em ocultar as pegadas dessa gênese física de toda metafísica, os
exemplos que restam documentados são abundantes e Onfray sabe explorá-los no sentido de
confirmar suas ideias sobre o corpo de um pensador quando submetido à tensão dos hápax.
Assim, “quando os filósofos se confiam um pouco, quando a correspondência atesta, quando
uma biografia registra o acontecimento, encontramos quase sempre esse gênero de abalo em
sua existência” (ONFRAY, 2010, p. 16). Com efeito, em geral não é se debruçando
exclusivamente sobre a produção teórica de um filósofo que se vai descobrir o tipo de chamas
que alimentou a matéria viva de seus livros. Se esta curiosidade atiça o pesquisador, então é
preciso ir à origem, vale dizer, àquilo que antecedeu a escrita, escrita esta que é sempre a
forma acabada e limitada de um processo mais longo e complexo de gestação de ideias que
não raro envolve toda a vida do pensador e do qual seu corpo foi o protagonista exclusivo.
Como bom nietzschiano e adotando um método diferente de ler e interpretar os filósofos,
Onfray ressalta seu gosto de proceder à maneira de um genealogista e, assim, “sem visar a
exaustividade” (Ibid.), fornece “alguns momentos fortes” (Ibid.) que compuseram os
subterrâneos vivos da produção de algumas das maiores ideias da história da filosofia. A coisa
começa com Agostinho, devido à notoriedade da sua experiência, e segue, cronologicamente:
11
Conforme explanam a bailarina Dani Lima e a filósofa Viviane Mosé em palestra dedicada ao corpo para o
Café Filosófico CPFL no ano de 2009. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=d8kSSGX1Ufw.
Acesso em: 09 out. 2018.
29
Não obstante, é “à escuta das forças que lavram seu corpo” e “trabalham sua carne”
que o “pensador dá maiores oportunidades a sua intuição” (Ibid., p. 35), portanto à matéria
viva com a qual alimentará seus escritos. Para o filósofo as palavras, mesmo em sua
insuficiência, são o instrumento da qual não pode prescindir: delas ele tem uma necessidade
tanto estética quanto existencial. Donde essa bela definição da filosofia que Michel Onfray
nos apresenta sob a inspiração de Bergson: “Uma filosofia é a tentativa de dizer o que um
corpo exige” (Ibid., p. 78). E o corpo exige expressão, por conseguinte, ele clama por uma
criação artística. O pensador, então, se torna um artista da palavra em sua tentativa de dizer o
que precisa, de alguma forma, ser dito. Ele tem de satisfazer uma exigência visceral. Contudo,
uma existência inteira não será suficiente para dar cabo a seu projeto (Ibid.).
como uma razão superior à “Razão”: “Como, meu caro sistema de pensamento e as ideias, as
grandes ideias de todos os gênios, seriam produtos de um corpo que fede, que sofre, que
adoece, envelhece, morre e apodrece?”, questionam tais adeptos do formalismo conceitual,
não sem ironia.
E se lhes for dito, a semelhantes desprezadores do corpo, que a lucidez e a razão de
alguns dos mais importantes pensadores da humanidade surgem de seu contrário, ou seja, de
um estado de quase loucura? “Uma carne habitada pelo entusiasmo, pela desordem e uma
estranha parcela que lembra a loucura, a histeria, a possessão, é o que parece excêntrico,
incongruente” (ONFRAY, 1999a, p. 29) demais em se tratando de filosofia. No entanto,
Michel Onfray lembra que um número significativo de filósofos conheceu esse estado
físico/psíquico por meio dos hápax existenciais, vale dizer, aquelas “experiências radicais e
fundadoras ao longo das quais do corpo surgem iluminações, êxtases, visões que”, por sua
vez, “geram revelações e conversões” convocadas em seguida a se configurarem “em
concepções do mundo coerentes e estruturadas” (Ibid.). Os exemplos acima mencionados são
a mais forte evidência de que primeiro o ser mergulha na desordem, só depois é que ele
encontra alguma ordem possível. Antes, o caos; após, o cosmo. O informe e difuso antecedem
a “bela forma” assim como a embriaguez precede a lucidez. A priori, pois, Dioniso domina.
Só a posteriori é que Apolo entra em cena. A desrazão, portanto, antecede a razão e a
inspiração filosófica é, antes de se apresentar como uma criação poética, um estado
fisiológico.12
Se desde Schopenhauer a razão deve ser concebida como um epifenômeno do corpo,
isto é, como um subproduto do organismo do qual é dependente e a quem obedece como a um
senhor, ao menos desde Nietzsche a loucura poética dionisíaca está presente na filosofia como
elemento propedêutico à sabedoria apolínea. Transmutadores por excelência, os filósofos
(pelo menos os mais interessantes deles, aqueles pertencentes à categoria dos pensadores
existenciais) não se diferenciam do artista e do poeta, pois também eles capturam Dioniso,
exercem algum domínio sobre ele para, em seguida, apresentá-lo “sob os ouropéis de Apolo”
(Ibid., p. 40) como se esta fosse sua forma primeira e última. O capítulo de A arte de ter
prazer em que Onfray expõe, ao longo de 68 páginas, o que entende por hápax existencial
12
Será que nesse sentido poderíamos afirmar que não é sem razão que o significado primeiro da palavra
“inspiração” pertence à fisiologia? Trata-se, antes de tudo, do ato ou efeito de inspirar, ou seja, de fazer o ar
entrar nos pulmões. Apenas secundariamente, por extensão e figuração, é que a mesma palavra serve ainda para
significar “o lampejo”, “o clarão” ou “a iluminação súbita” e genial que estimula o pensamento e a atividade
criadora através de um turbilhão vertiginoso de ideias (Cf. Michaelis).
31
Aliás, foi lendo essas páginas onfrayrianas que nos deparamos com uma bela definição da
vida extraída de Paul Valéry: “A vida é para cada um o ato de seu corpo” (Citado por
ONFRAY, 1999a, p. 107). Em consequência, ainda citando Valéry, o corpo se torna “o único,
o verdadeiro, o eterno, o completo, o insuperável sistema de referência” (Ibid). E, em outra
parte, esta asserção forte e verdadeira, igualmente de Valéry, epigrafada no capítulo Corpo:
“Todo Sistema Filosófico em que o Corpo do homem não tenha um papel fundamental é
inepto, inapto” (Ibid., p. 99).
13
A propósito, explicitemos o sentido psicológico e dicionarizado do termo pulsão: “Pressão constante e
inconsciente que impele o indivíduo a uma ação que possa conter ou suprir o estado de grande tensão do
organismo” (Michaelis).
34
(esta última empregando cada vez mais sutilezas qualitativas como onda, partícula, massa ou
energia em sua definição da matéria) reivindica, como dissemos em outro lugar (Cf. COSTA,
2017, p. 67), a existência de um vitalismo da matéria, uma força energética que faz a vida ser
o que é mas que, simultaneamente, “não foge à matéria, não está para além dela mas, ao
contrário”, dela faz parte, a constitui trabalhando-a, “é ela” (Ibid.).
Aquilo que Espinosa chamou de “conatus”, Schopenhauer de “vontade”, Nietzsche
batizou de “vontade de potência”, Bergson de “elã vital”, Freud de “pulsão” e Wilhelm
Reiche de “orgone” – este último, tomado pelo delírio de captar o que ele entendeu por força
vital, chegou até mesmo a fazer experimentos com rádio e a construir uma máquina dedica a
façanha de capturar e reservar o tal orgone para uso terapêutico antes de, claro, dar de cara
com o fracasso de sua empreitada científica – , Onfray chama de “material vitalista” e se
recusa a fornecer maiores precisões teóricas pela simples razão de que elas, cientificamente e
ao menos por enquanto, inexistem. Nosso autor deixa claro que sua posição ontológica é pelo
materialismo, uma vez que para ele tudo o que existe, todo o real, é redutível à matéria, às
partículas elementares materiais, ao átomo ou ao que mais os físicos apontem como sendo
ainda mais elementar, mas ainda assim físico, material, corpóreo, por minúsculo e sutil que
seja. No detalhe, porém (detalhe que ainda escapa à compreensão humana), seu materialismo
é vitalista, pois, de fato, a matéria parece ser “atravessada por fluxos perpétuos, eles também
reduzíveis à matéria”, certamente, ainda que ultrapassando “a pura e simples justaposição
atômica” (ONFRAY, 2010, p. 46) do materialismo clássico.
Há um “entremeio da matéria”, explica Onfray, que rapidamente ressalta, a fim de
afastar qualquer mal entendido, que o que se encontra nesse permeio “também é matéria”,
algo mantido por forças imanentes que “aguardam sua decodificação científica” (Ibid.). Por
isso seguimos ignorando suas lógicas operacionais enquanto explicação causal satisfatória,
apesar de constatarmos seus efeitos. Nesse sentido, o corpo pode ser considerado como o
notável “lugar percorrido pelas dinâmicas destinadas a permanecer misteriosas e
desconhecidas”, escreve Onfray. “Podem-se apenas”, continua ele, “constatar seus efeitos,
apontar seus trajetos, cartografar seus fluxos” (Ibid.) numa vida filosófica intensa, e esta é a
pretensão do seu conceito de hápax existencial.
Seu materialismo vitalista e monista permite conceber o pensamento como sendo
originário de fluxos corporais do mesmo modo que as demais “regulações” produzidas “sob a
mesma carne” e “sob a mesma pele” (ONFRAY, 1999a, p. 94), sem dúvida, mas essa
constatação supõe o cérebro como a central nervosa que administra esses processos, algo para
o qual um dos maiores expoentes do Iluminismo francês, o Barão de Holbach, já apontava em
35
pleno século XVIII. Sem deixar de ironizar o dualismo corpo/alma ainda tão em voga em sua
época, D’Holbach escreve: “Aqueles que distinguem a alma do corpo nada mais parecem ter
feito do que distinguir seu cérebro de si mesmo” (HOLBACH, 2010, p. 136). Em seguida o
autor do Sistema da natureza (livro de 1771) conclui seu raciocínio como se estivesse
escrevendo à luz da neurofisiologia do século XXI:
Com efeito, o cérebro é o centro comum aonde vêm dar e se confundir todos
os nervos espalhados por todas as partes do corpo humano. É com a ajuda
desse órgão interno que se realizam todas as operações que são atribuídas à
alma; são as impressões, as mudanças, os movimentos transmitidos aos
nervos que modificam o cérebro. Como consequência, ele reage e põe em
funcionamento os órgãos do corpo, ou então age sobre si mesmo e se torna
capaz de produzir no interior do seu próprio âmbito uma grande variedade de
movimentos, que foram designados pelo nome de faculdades intelectuais
(Ibid., p. 136-137).
volume este intitulado Metafísica, o professor Pedro Paulo Pimenta discorre sobre a inversão
conceitual promovida pelos enciclopedistas com relação a isso que tradicionalmente
significava o estudo do que está para além da natureza, para além do mundo físico e material,
como ainda Voltaire define a metafísica (PIMENTA, In: DIDEROT, 2017, p. 14).
Na pluma de um Diderot, porém, a metafísica se torna a “ciência das razões das
coisas” logo na primeira linha do verbete que dedica ao conceito (DIDEROT, 2015, p. 394),
algo que podemos apontar como um avanço na filosofia: “Tudo tem a sua metafísica e a sua
prática”, escreve o autor de Jacques, o fatalista e seu amo: “Interrogai um pintor, um poeta,
um músico, um geômetra, e o obrigareis a explicar as operações de sua arte, ou seja, a chegar
até a metafísica dessa arte” (Ibid.). De maneira que podemos acrescentar: perguntai sobre os
meios operacionais pelos quais um pensador exerce sua arte (a arte de pensar) e chegareis ao
corpo sem dele sair. À velha metafísica da transcendência as luzes da maior parte dos
enciclopedistas opõe uma metafísica da imanência (PIMENTA, In: DIDEROT, 2017, p. 14).
Num período da história do pensamento em que filósofos trabalham ao lado de
médicos, anatomistas, fisiologistas e empiristas consumados o conhecimento avança e
percebe-se o que não poderia deixar de ser percebido: é no cérebro e no sistema nervoso, e
não no “espírito” ou na “alma”, que reside a base de uma sensibilidade apta à produção das
“representações intelectuais” (Ibid., p. 15). A antiga metafísica cede espaço para a fisiologia e
ciências afins. Trata-se de uma novidade moderna: o surgimento de “uma fisiologia do
entendimento” apontando para o fato de que “toda representação remeteria a processos físicos
materiais” (Ibid., p. 18). A “Razão” soberana da metafísica transcendente perde sua majestade
nas mãos dos enciclopedistas, torna-se mais modesta, epifenômeno do corpo e da
sensibilidade deste que, nessa época, já é plenamente concebida como senhora do
entendimento humano (assim é em Locke, Hume, Condillac, Buffon, Diderot mas também, e
mais fortemente, em D’Holbach, Helvétius e La Mettrie). O empirismo aí já demonstrava
fortemente que “existe um automatismo da razão” que é dependente de “processos
fisiológicos que fariam dela uma função do corpo como outra qualquer, a exemplo da
respiração, da digestão, etc” (Ibid., p. 19). A propósito, pode-se até mesmo fazer uma
reparação histórica aos iluministas no sentido de que tradicionalmente esses filósofos são
representados como idólatras cegos da razão quando, na verdade, ao menos em sua vertente
mais empirista e lúcida, eles já reconheciam, sem grandes dramas intelectuais e sem nenhuma
ferida narcísica, a modéstia e a limitação de seu instrumento mais caro e precioso.
E aqui não podemos abrir mão de registrar as conclusões essenciais a que os estudos
do professor Pedro Paulo Pimenta chegam sobre a Enciclopédia. Elas apontam (infelizmente
37
sem mencionar Nietzsche, que tanto fez para validar essas mesmas ideias no século seguinte
ao das Luzes) para a fisiologia da filosofia cara ao pai do Zaratustra e a Onfray:
Ora, se na produção das ideias tudo remete ao corpo e à sua estrutura, bem
como as transformações advindas pelos órgãos da sensibilidade – o que
explica a instabilidade e precariedade do uso das faculdades racionais – ,
como esperar que os homens cheguem um dia a uma filosofia unificada e
coerente, certa e universal? Doutrinas filosóficas, como produtos de uma
função fisiológica particular (grifo nosso), não deixam de ser sintomas de
estados normais alternados com estados patológicos (...). A pergunta que
muitos verbetes da Enciclopédia deixam em suspenso é esta: não caberia
tomar o discurso filosófico como uma doença, um índice de um estado de
“transe ou êxtase”, e não, como ele costuma se apresentar, uma instância
reguladora da racionalidade? (Ibid., p. 21).
Com isso continuamos no centro da imagem sugerida por Onfray no qual Dioniso
representa a paternidade de Apolo. Ou seja, algumas doses de loucura estão contidas no
processo de racionalização e de formação do pensamento filosófico. Até mesmo a doença
(como Nietzsche soube profundamente). Mas sobretudo o pathos, no sentido grego do termo
que define o indivíduo tomado pelos sentimentos e paixões de uma alma comovida, bem
como o “transe” e o “êxtase” fazem parte das afecções do corpo que moldam o espírito do
pensador à maneira dos poetas trágicos de outrora. Sem desrazão não há razão. Sem corpo não
há espírito (e espírito, aqui, não passa de uma expressão metafórica para consciência,
inteligência, pensamento). As ideias filosóficas, portanto, “despontam” sempre como
“figurações de um processo material” (Ibid., p. 23), imanente e existencial. Após esse
preâmbulo é provável que estejamos em melhores condições para compreender um dos mais
emblemáticos exemplos do que foi dito até aqui: o hápax existencial de Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778).
Colaborador da Enciclopédia, tido sempre como um dos expoentes maiores do
Iluminismo francês, Rousseau serve a Michel Onfray como ilustração perfeita para constatar a
“força” dionisíaca presente e atuante “em pleno século das Luzes, como que para melhor
mostrar o caráter secundário da razão, sua função reativa” (ONFRAY, 1999a, p. 66). Em
casos fortes como o de Rousseau o hápax que o acomete demonstra, à sua revelia, tanto a
verdade radical da relação monística entre corpo e espírito como o fato de que esses
momentos ímpares de manifestação violenta de sentimentos fundidos com ideias e
pensamentos perturbadores carregam, em seu cerne, a potência de converter o indivíduo a
uma visão filosófica do mundo. Tudo ocorre a partir do interior do próprio indivíduo, por ele
e para ele. Em outras palavras, essas experiências inaugurais fornecem os fundamentos
38
(vivenciais a priori, intelectuais a posteriori) de uma vida filosófica a ser consumada. Assim é
que Jean-Jacques Rousseau “ilustra, a seu malgrado, o casamento entre a carne e o
conhecimento, a pele e o saber” (Ibid.), de modo que toda sua obra futura será devedora da
“mística pagã” de que ele foi objeto. Com efeito, “o hápax existencial” de que o genebrino é
alvo de fato “revela o filósofo” que ele será na medida em que fornece-lhe “as intuições que
não cessará de desenvolver durante toda a sua vida ao longo de milhares de páginas” (Ibid.).
Pois bem, o acaso cuidou para que o momento excepcional na vida de Rousseau
ocorresse por volta das duas horas da tarde, “num dia de outono extraordinariamente quente”
(MILLER, 2012, p. 225), do ano de 1749. Rousseau tem 37 anos e está a caminho de
Vincennes para visitar seu amigo Denis Diderot (1713-1784), que se encontra preso por
subverter os ensinamentos da Igreja Católica (Ibid.). O caminho é demasiado longo, o calor
demasiado forte, de modo que de quando em quando o filósofo procura a sombra de uma
árvore a fim de recuperar suas energias. Fazia parte desse descanso o folhear de uma
importante revista literária da época, a Mercure de France. É então que numa dessas pausas
os olhos de Rousseau se fixam, repentinamente, sobre a questão formulada para o concurso
literário promovido pela Academia de Dijon para o ano de 1750, no qual seria premiado o
melhor ensaio sobre o seguinte tema: “Se o progresso das ciências e das artes tem
contribuído para corromper ou purificar os costumes” (ROUSSEAU, 1964, VIII, p. 340-
341). Nada mais foi preciso. A leitura puramente casual dessas palavras foi suficiente para
fazer o corpo do caminhante solitário disparar uma torrente de emoções e um turbilhão
vertiginoso de ideias transbordantes. A sua força vital se manifesta aí em seu ápice. A
confusão psíquica e a perturbação física não deixam de ser devastadoras, mas,
simultaneamente, carregam consigo as iluminações intelectuais que farão de Rousseau o
filósofo que se conhece.
Vale notar que em tudo o hápax de Rousseau é similar ao sofrido por Agostinho e,
assim como o Bispo de Hipona, também ele relata com detalhes o episódio mais marcante de
sua vida em uma obra autobiográfica chamada Confissões, na qual diz expressamente que “se
algo já se assemelhou a uma inspiração súbita, foi o impulso que cresceu em mim quando li
aquilo” (ROUSSEAU, Confissões, livro VIII, citado por MILLER, 2012, p. 225). Atordoado,
choroso, trêmulo da cabeça aos pés, Rousseau desmorona se entregando à prostração sob uma
árvore (MILLER, 2012, p. 225). O corpo somatiza, evidentemente, mas também fornece a
solução para o problema existencial pois junto com a tontura, as palpitações e a fraqueza se
fez acompanhar o vislumbre que possibilita a conversão filosófica definitiva: “Logo que tal li,
39
vi outro universo, e transformei-me noutro homem”, escreve Rousseau (1964, VIII, p. 66).
Mais tarde o filósofo relatará em carta ao senhor de Malesherbes os pormenores de seu transe:
De repente sinto o espírito ofuscado por mil luzes; uma infinidade de ideias
vivas se apresentaram ao mesmo tempo com uma força e uma confusão que
me lançaram numa perturbação inexprimível; sinto a cabeça tomada por um
aturdimento semelhante à embriaguez. Uma violenta palpitação me oprime,
toma-me o peito, já não podendo respirar ao andar, deixo-me cair sob uma
das árvores da alameda, onde passo cerca de meia hora em tal agitação que,
ao me levantar, percebi a frente de meu paletó molhada de lágrimas, sem que
eu sentisse que as vertia (Citado por ONFRAY, 1999a, p. 67).
Nessa mesma carta, o autor Do contrato social não deixa de registrar sua constatação
pessoal da enorme distância que separa a ideia vivida em sua carne sob a intensidade da
inspiração e a posterior tentativa de registrá-la por escrito:
Biógrafos como James Miller (Ibid., p. 226) não deixam de se referir a esse
acontecimento como “a epifania de Rousseau”. Depois dessa experiência, evidentemente,
constata-se uma repentina mudança de comportamento do genebrino, fruto de seu novo olhar
sobre si e sobre o mundo. Nas Confissões ele escreve: “Larguei os dourados e as meias
brancas, pus uma peruca redonda, depus a espada, vendi o relógio, dizendo para comigo com
inacreditável alegria: ‘Graças ao céu, nunca mais terei necessidade de saber que horas são’”
(ROUSSEAU, 1964, VIII, p. 352). Abandonando também seu trabalho com a música, o
filósofo passa a redigir, “como um possuído” (MILLER, 2012, p. 226), sua resposta ao
concurso da Academia de Dijon: “Com a mais inconcebível rapidez, os meus sentimentos
puseram-se em uníssono com as minhas ideias” (ROUSSEAU, 1964, VIII, p. 341). De fato
seu texto vence o grande prêmio e Rousseau, fazendo-se notório, inicia a trajetória filosófica
original que exercerá grande influência no e para além de seu século XVIII – com todas as
controvérsias de que seu discurso antiprogresso e anticivilização porta.
Não obstante, o que nos interessa aqui é apontar para a relação concreta, direta e
genealógica entre a obra de Rousseau e sua vida rachada ao meio pelo hápax existencial, o
instante dos instantes de sua existência que, lembremos as palavras de Onfray, se define como
40
“a categoria temporal dos êxtases” (ONFRAY, 1995, p. 113). É o próprio Rousseau que dá
esse testemunho: “Todo o resto da minha vida e das minhas desgraças não foi mais que a
consequência inevitável deste instante de exaltação”. Dito de outro modo, pouco importa se a
tese que Rousseau busca defender em seu Discurso sobre as ciências e as artes (tese
paradoxal dentro do espírito das Luzes de que a Enciclopédia foi o símbolo maior) é a de que
os humanos se corrompem proporcionalmente ao avanço das artes e das ciências, mas sim que
tal ideia, válida especialmente para o próprio Rousseau que nela encontra um piso sólido no
qual assentar sua existência na medida em que lhe possibilita a construção de uma visão do
mundo coerente e original, tal ideia, dizíamos, “tivera origem direta na revelação vivenciada”
pelo filósofo no caminho de Vincennes (MILLER, 2012, p. 229).
Chama bastante a nossa atenção o quanto as palavras de James Miller, autor de Vidas
investigadas: de Sócrates a Nietzsche, estão em consonância com a interpretação de Michel
Onfray. A propósito, o mesmo biógrafo de filósofos acrescenta ainda, como que lembrando
do Nietzsche de A gaia ciência,14 que Rousseau, à maneira de “um Sêneca tardio” (portanto
como um pensador existencial), “transformou fraquezas pessoais em objetos explícitos de sua
filosofia” (Ibid., p. 226). Mas, sendo filósofo, como poderia deixar de fazê-lo?
Uma palavra a mais acerca da noção de “êxtase”, cuja manifestação mais evidente é a
quebra da ordem sensitiva e o consequente desequilíbrio espaço-temporal que faz os místicos
crerem sair de si mesmos (ékstasis) para se fundirem com “o todo”. Pois bem, o hápax
existencial redimensiona o que se entende por êxtase para aquém de seus usos
“transcendentes” e místico-religiosos (que de todo modo não passam de má interpretações e
mal entendidos acerca do corpo, esse grande desconhecido da história do pensamento), ou
seja, o êxtase deve ser entendido aqui como uma experiência imanente e própria do corpo, ou
melhor, como uma experimentação que o corpo exerce consigo mesmo em relação às
afecções que o atingem e nele se acumulam a partir dos mais variados e desordenados
estímulos. O êxtase é o momento da “explosão” do corpo, aquilo que se manifesta num ponto
culminante impossível de ser previsto e de se repetir tal qual. É a forma extremada pelo qual o
corpo transforma impressões que se tornaram, para ele, demasiado intensas. O hápax
existencial pensado por Michel Onfray permite sobretudo conceber o êxtase como uma
14
Onde, com efeito, Nietzsche escreve que “num homem são as deficiências que filosofam, no outro as riquezas
e forças” (NIETZSCHE, 2001, § 2, p. 10).
41
experiência filosófica vivida em seus extremos, experiência esta pela qual constata-se que
pensamento, verdade e corpo mantêm entre si uma relação de forte interdependência. É que
provam os momentos tão raros quanto sublimes da inspiração originária.
A respeito dos sintomas do êxtase vivido por Rousseau, por exemplo, Michel Onfray
(1999a, p. 67) extrai uma conclusão decisivamente fundamental:
Com essa experiência, o pensador vive a filosofia em sua carne: ela habita
seu corpo para o perturbar, o incomodar e lhe revelar aquilo de que é
portador. O organismo grava os tremores de um pensamento em via de se
fazer, para além das palavras, contra sua vontade, no registro da pura
emoção.
O pensamento filosófico é então apresentado como um afeto forte e potente, algo mais
da ordem da emoção que da razão, porém inseparável desta última e por isso mesmo é que o
pensamento se torna uma força capaz de transformar e reorientar uma vida humana
fornecendo-lhe um horizonte existencial. É a emoção que manifesta um caráter, mas é a
consequente conversão à vida do pensamento que lhe imprime forma. A transfiguração do
sentimento (porque pensar é também sentir...) em páginas escritas surge como uma
consequência natural que posteriormente se transforma em exigência vital: o filósofo
necessariamente torna-se escritor. Apesar da insuficiência das palavras, não obstante elas só
intervirem por acréscimo, a linguagem é o instrumento que permite à “carne” fazer-se verbo a
fim de vencer as limitações do espaço e do tempo de que toda subjetividade é prisioneira. Um
pensamento que não é escrito perde-se no ar, desaparece tão logo se manifeste, ao passo que a
palavra escrita permanece viva e com o potencial de intervir, ainda e sempre, na realidade de
outras subjetividades que nelas possam encontrar sua inspiração.
Rousseau faz parte dessa lógica um tanto ilógica a que pertence o pensamento vivo.
Para exagerarmos na expressão à maneira de Nietzsche, digamos que seus textos depois do
hápax são escritos “com o próprio sangue”, o sangue da emoção de uma experiência
intelectual viva, pois o “sangue é espírito” (NIETZSCHE, 2011, p. 40). Assim, Rousseau
“transfigura o impulso dionisíaco” (ONFRAY, 1999a, p. 68) original expresso por seu corpo
através de suores e lágrimas, do sangue também, impulso este “lançado a toda velocidade nos
músculos e nos órgãos” (Ibid.), até mesmo o atordoamento de sua consciência, tudo isso é
transfigurado em ímpeto criativo cuja extensão, no seu caso, dura bastante: “Seguindo-se a
essa iluminação, Rousseau vive uma efervescência – a expressão é sua – de quatro ou cinco
anos de extrema produtividade” (Ibid.).
42
A escrita é a forma artística pela qual o pensador confere às suas ideias uma forma
estética única organizada a partir da matéria bruta, ilimitada, descomedida e informe de que se
compôs sua “iluminação” original. Primeiro Dioniso, isto é, o arrebatamento súbito e
efêmero, o entusiasmo impulsivo, a embriaguez inspiradora. Só depois é que entra em cena o
princípio apolíneo com o objetivo de impor ordem no caos, equilibrar os elementos e comedi-
los numa “forma bela” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 56). Enfim, o filósofo torna-se
filósofo-artista, uma vez que sua reflexão outra coisa não é senão um trabalho efetuado sobre
a emoção que a antecede e sem a qual ela não existiria (ONFRAY, 1995, p. 67).
15
O que nos remete ao belo livro de Frédéric Gros, Caminhar, uma filosofia, especialmente ao capítulo Por que
sou tão bom caminhante, dedicado a Nietzsche (Cf. GROS, Frédéric. Caminhar, uma filosofia. Trad. Lília Ledon
da Silva. São Paulo: É Realizações, 2010).
43
16
Os que visitaram o lugar, como Paulo César de Souza, tradutor da obra de Nietzsche no Brasil, descrevem a
hoje chamada “pedra de Zaratustra”, localizada “na margem direita do lago Silvaplana”, como “um bloco de
pedra de uns três metros de altura, de forma quase piramidal”. Cf. O seu texto intitulado Os lugares de
Nietzsche disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0608200003.htm. Acesso em: 13 set. 2019.
44
intuições que nele próprio já se encontravam em ebulição contínua. Pedimos, então, licença
ao leitor para reproduzirmos as palavras de Nietzsche, e certamente seremos desculpados pela
extensão da citação em virtude tanto da importância teórica como da beleza literária contidas
na passagem:
Alguém, no final do século XIX, tem nítida noção daquilo que os poetas de
épocas fortes chamavam inspiração? Se não, eu o descreverei. — Havendo o
menor resquício de superstição dentro de si, dificilmente se saberia afastar a
ideia de ser mera encarnação, mero porta-voz, mero medium de forças
poderosíssimas. A noção de revelação, no sentido de que subitamente, com
inefável certeza e sutileza, algo se torna visível, audível, algo que comove e
transtorna no mais fundo, descreve simplesmente o estado de fato. Ouve-se,
não se procura; toma-se, não se pergunta quem dá; um pensamento reluz
como relâmpago, com necessidade, sem hesitação na forma — jamais tive
opção. Um êxtase cuja tremenda tensão desata-se por vezes em torrente de
lágrimas, no qual o passo involuntariamente ora se precipita, ora se arrasta;
um completo estar fora de si, com a claríssima consciência de um sem-
número de delicados tremores e calafrios que chegam aos dedos dos pés; um
abismo de felicidade, onde o que é mais doloroso e sombrio não atua como
contrário, mas como algo condicionado, exigido, como uma cor necessária
em meio a tal profusão de luz; um instinto para relações rítmicas que abarca
imensos espaços de formas — a longitude, a necessidade de um ritmo amplo
é quase a medida para a potência da inspiração, uma espécie de
compensação para sua pressão e tensão... Tudo ocorre de modo sumamente
involuntário, mas como que em um turbilhão de sensação de liberdade, de
incondicionalidade, de poder, de divindade... A involuntariedade da imagem,
do símbolo, é o mais notável; já não se tem noção do que é imagem, do que é
símbolo, tudo se oferece como a mais próxima, mais correta, mais simples
expressão. Parece realmente, para lembrar uma palavra de Zaratustra, como
se as coisas mesmas se acercassem e se oferecessem como símbolos (—
“aqui todas as coisas vêm afagantes ao encontro da tua palavra, e te
lisonjeiam: pois querem cavalgar no teu dorso. Em cada símbolo cavalgas
aqui até cada verdade. Aqui se abrem para ti as palavras e arcas de palavras
de todo o ser; todo o ser quer vir a ser palavra, todo o vir a ser quer contigo
aprender a falar” —). Esta é a minha experiência da inspiração; não duvido
que seja preciso retroceder milênios para encontrar alguém que me possa
dizer: “é também a minha”. — (Ibid., Z, § 3, p. 85-86).
O que acabamos de ler é uma das mais emblemáticas, precisas e poéticas descrições
do fenômeno da inspiração filosófica. Obviamente que, ao contrário do que afirma Nietzsche,
não era preciso “retroceder milênios” para encontrar quem se identificasse perfeitamente nesta
descrição e pudesse dizer: “Foi também a minha experiência”. De fato, Rousseau estava, no
tempo, logo ali, há pouco mais de cem anos de distância. Não obstante, após essa tão bela
quanto precisa análise do fenômeno da inspiração, Nietzsche se sente impelido a enfatizar, a
fim de suprimir qualquer equívoco quanto sua posição imanente, que é “o corpo” que “está
entusiasmado”, que é somente ele que sente os efeitos da intuição com seus movimentos
45
extáticos, que é preciso deixar a tal “alma”, definitivamente, fora de tudo isso (Ibid., Z, § 4, p.
87).
impossibilitado de dizê-lo (BERGSON, 2006, p. 125). Ora, precisamente por isso o filósofo
fala, e escreve, e pratica esse exercício por toda sua vida, inevitavelmente, de modo que o que
disse Montaigne acerca de si mesmo vale quase como lei universal para todos os pensadores:
“Quem não vê que tomei um caminho pelo qual (...) avançarei tanto quanto houver de tinta e
de papel no mundo?” (MONTAIGNE, 2001, III, 9, p. 239-240) – eis aqui uma evidência forte
da vida filosófica de Michel Onfray: sua compulsão pela escrita traduzida em uma centena de
livros publicados...
Pode-se questionar num filósofo tal prolixidade? O porquê de tantos livros que nunca
terminam de dizer o que pretendiam? Certamente, mas nos parece ainda mais legítimo pôr a
seguinte questão: poderia um pensador decidido a viver filosoficamente cada instante de sua
existência agir de outro modo? Pode-se acusar um filósofo de grafomania sem risco do
ridículo? Seria ignorar os fatores que movem esse impulso à escrita. Seria não compreender a
necessidade estética que o filósofo tem de transformar tudo o que lhe atinge, das menores às
maiores coisas, em pensamento, isto é, em símbolo, palavra, verso, aforismo, ideia, conceito,
texto, livro. Como disse Nietzsche (um notório escritor compulsivo) numa bela passagem de
A gaia ciência, os filósofos não são “batráquios pensantes” ou “aparelhos de objetivar e
registrar”, indivíduos de “entranhas congeladas” (NIETZSCHE, 2001, Pr., § 3, p. 13), não,
pelo contrário: “Temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor,
dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento,
consciência, destino e fatalidade que há em nós” (Ibid.). Para um filósofo viver significa,
segundo Nietzsche, dar vazão ao impulso que transforma “continuamente em luz e flama tudo
o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo” (Ibid.),
conclui o pensador alemão.
Viver um pensamento significa também escrevê-lo, e isso no próprio ato da escrita.
Em seguida, fora do escritório, é preciso analisar em todas as demais esferas da vida se há
coerência entre o que efetivamente se vive e o que foi pensado. É preciso ainda retomar
continuamente a pena e o papel a fim de refinar o pensamento e acrescentar-lhe novas
vivências. Faz parte da arte de viver dos filósofos a prática dessa espécie de alquimia de que
fala Nietzsche. Portanto, por toda sua vida, eles falam e escrevem, em especial aqueles que,
como Onfray, concebem não projetos acadêmicos, mas projetos existenciais, algo que torna a
relação com a escrita ainda mais complexa em virtude de um compromisso firmado consigo
mesmo de espelhar o vivido no dito, e no dito, o vivido. Assim é que os filósofos consagram
todo o seu trabalho escrito “a dizer, redizer, definir, afinar, corrigir, acrescentar, escrever e
reescrever” (ONFRAY, 1999a, p. 78) sem cessar seus sistemas de pensamento. Nisso Onfray
47
reconhece uma “admirável devoção” e “paixão” que o filósofo nutre por essa arte “que
mobiliza todas as energias”, vale dizer, “a escrita” (Ibid.).
E se, como ensina Onfray, uma filosofia é para ser vivida, uma parte significativa do
impulso do filósofo enquanto escritor será direcionada à prática da escrita autobiográfica ou,
no vocabulário conceitual onfrayriano, do romance autobiográfico. De fato, nosso autor diz
explicitamente não ser capaz de conceber “uma filosofia sem o romance autobiográfico que a
torna possível” (ONFRAY, 2001, p. 14). Mas no que consiste, para um filósofo, o exercício
do “romance autobiográfico”? Trata-se, evidentemente, de narrar uma vida que se quer
filosófica e que, para dar cabo a esse projeto, em retrospecto se examina, se espelha, busca as
relações, as genealogias de si enquanto pensador, portanto os elos possíveis entre uma
experiência passada e um pensamento escrito e afirmado no presente.
Assim, quando da preparação de uma obra, o autor inclui em seu projeto a narrativa de
vivências pessoais não por vaidade, menos ainda por um cultivo gratuito do próprio ego, mas
sim por creditar a elas a origem de determinados problemas filosóficos e das ideias
estabelecidas em consequência da tentativa de resolvê-los. Essa escrita de si é romanceada
porque literária. Ou seja, o filósofo lança mão de sua memória afetiva tanto quanto de seu
talento com a pluma para exercitar um tipo de escrita que não pode deixar de ser também um
exercício de “transposição da vida para um plano artístico” (Aurélio, verbete “Romance”,
acepção 4), algo que caracteriza toda obra literária, filosófica inclusive. Escrevendo à maneira
de um romancista suas próprias memórias o filósofo faz, então, uma autobiografia
romanceada em virtude de imprimir um tom literário à narração feita para si mesmo da
própria vida, mas doravante compartilhada em cumplicidade com potenciais leitores. Os
prefácios dos livros de Michel Onfray são um belo exemplo disso e, de certo modo, lembram
os prólogos que Nietzsche escreveu às suas próprias obras – “talvez a melhor prosa que
escrevi até agora” (NIETZSCHE, 1995, p. 12), disse Nietzsche a seu amigo Overbeck.
Isso quanto à forma, quanto à arte de escrever, que de todo modo deve estar presente
como meio para um conteúdo a prevalecer, pois para o filósofo escrever não é uma atividade
comercial, puro ganha pão, mas uma necessidade existencial. Sua escrita “pressupõe menos
fazer parte de um processo de oportunidade de mercado literário do que para tentar resolver,
para si mesmo, certo número de problemas encontrados no trabalho próprio de ascese
filosófica” (ONFRAY, 2018b, p. 244). A escrita é, portanto, antes de tudo um exercício
48
espiritual. Que um autor possa, como se diz, ganhar a vida vendendo livros é algo secundário
e mesmo uma consequência bem vinda na medida em que lhe permite continuar trabalhando
livremente.
Continuando nossa elucidação de tal conceito, a saber, o romance autobiográfico,
digamos que se trata, ademais, de demonstrar a implicação de uma vida numa filosofia, o que
significa justificar esta a partir daquela e, recíproca e consequentemente, comprometer, com o
máximo de coerência, aquela com esta. Trata-se de escrever o que se vive e, em troca, de
praticar uma escrita viva e pulsante. É o movimento que Nietzsche executa com maestria
inigualável em Ecce Homo que serve aqui de modelo a Onfray – Nietzsche, cujos primeiros
escritos, bem como sua última obra, são do gênero autobiográfico, escreve: “Falo apenas do
vivido, não somente do pensado; a oposição pensamento/vida não existe em mim”
(NIETZSCHE, 1995, nota 36, p. 125). Com efeito, todo o Ecce Homo é uma demonstração de
como suas obras expressam suas vivências e de como estas fizeram brotar aquelas. A vida
pessoal de Nietzsche está implicada em seus livros porquanto não há, para ele, um divórcio
entre filosofia e vida.
Também Michel Onfray tenta evidenciar o quanto sua obra não se distingue de sua
existência. Também ele fala do vivido que para ele se tornou o pensado. Seu método de
demonstração consiste em utilizar fatos de sua história pessoal como prolegômenos às suas
teses teóricas e às suas hipóteses filosóficas. Assim, cada um de seus livros é aberto com um
pequeno ensaio autobiográfico onde o leitor encontra, através da narração de uma experiência
pessoal, a justificativa vital da abordagem teórica que se segue. De fato, há em Michel Onfray
uma forte carga autobiográfica por trás de cada ideia expressa em seus textos e o sentido tanto
ideológico quanto metodológico dos prefácios que os acompanham é o de explanar essa
relação deliberadamente buscada e construída entre filosofia e vida, e isso desde o seu
primeiro livro publicado.
Desse modo, em Féeries anatomiques: généalogie du corps faustien (Espetáculos
anatômicos: genealogia do corpo faustiano), o prefácio se intitula Tumeur (Tumor) e conta a
odisseia vivida por Onfray e sua companheira na luta contra o câncer que esta contraiu e da
qual brotaram as páginas desse livro sobre bioética (Cf. ONFRAY, 2003, p. 23-75). Em
Fisiologia do corpo político, introdução de A política do rebelde: tratado de resistência e
insubmissão (Cf. Id., 2001, p. 13-28), a experiência de trabalho, aos dezessete anos, na fábrica
de queijos de sua aldeia natal onde conhece a transfiguração do corpo pela labuta, a
submissão dos necessitados aos poderosos, mas também a revolta mediante recusa em
protagonizar, por sua vez, a luta de classes já que, diante da oferta feita pelo proprietário para
49
que o então jovem estudante Onfray se torne diretor em sua fábrica, ele escreve ter
experimentado, “pela primeira vez, o júbilo que existe em se dizer não” (Ibid., p. 25). Donde
sua proposta de uma política libertária que elogia o anarquismo e reivindica o pensamento de
maio 68 e o nietzschianismo de esquerda francês tutelado intelectualmente por Bataille,
Deleuze e Foucault, tudo desenvolvido em devida ordem teórica, claro, mas com a diferença
de que essa teoria não é vazia como um produto de abstração pura, e sim a expressão da força
de “um caráter” enraizado numa “experiência existencial fundadora” e, por isso, “impressa na
carne desde os mais tenros anos” (Ibid., p. 267).
Igualmente em Autorretrato com criança, texto que abre A potência de existir:
manifesto hedonista (Cf. Id., 2010a, p. XIII-XL), livro síntese de sua proposição filosófica, no
qual nosso autor revisita, trinta e seis anos depois, o episódio mais marcante de sua vida,
aquele que funda toda sua visão de mundo, a saber, o longo período vivido num internato
dirigido por padres: “Texto adiado, muita dor para voltar àqueles quatro anos num orfanato de
padres salesianos entre meus dez e catorze anos” (Ibid., p. XIII). Ou ainda, nas páginas
iniciais de Le crépuscule d’une idole: L’affabulation freudienne (O crepúsculo de um ídolo: a
fábula freudiana), a história de como suas primeiras descobertas literárias produziram efeito
no terreno fértil de sua alma juvenil, pois aos quinze anos, no “mercado do conselho de
Argentan”, sua cidade natal, Onfray descobre Nietzsche, Marx e Freud por acaso através de
uma vendedora de livros usados: “Aquela senhora de cabelos curtos, cujo rasto perdi
entretanto, vendia-me por uma ninharia uma grande quantidade de livros que eu lia com
avidez, na desordem e no caos de uma alma sequiosa de clarezas” (2012a, p. 19).17 Três livros
o impactaram notadamente: O Anticristo de Nietzsche, O manifesto do partido comunista de
Marx e Três ensaios sobre a teoria da sexualidade de Freud, “três relâmpagos no céu negro
dos meus anos pós-orfanato acenderam o fervor em que ainda hoje vivo” (Ibid. p. 21). De
fato, em experiências livrescas dessa ordem cabe perguntar: “Seremos, algum dia, capazes de
medir os efeitos que as ideias de um filósofo podem produzir sobre a existência de um jovem
leitor?” (p. 25). Eis um campo fértil para a pesquisa filosófica e literária.
O livro A arte de ter prazer contém igualmente um prefácio importante, mas sobre ele
convém não apenas fazer menção, e sim um comentário que nos será útil na transição entre
este e o nosso próximo capítulo. Antes, porém, destaquemos que em Théorie du corps
amoureux: pour une érotique solaire (Teoria do corpo amoroso: por uma erótica solar),
publicado em 2000, Michel Onfray trata mais detidamente sobre o tema da escrita
17
Referência da edição portuguesa, intitulada Anti-Freud.
50
autobiográfica. O livro, que tem como texto de abertura um Manifesto pela vida filosófica
(ONFRAY, 2018b, p. 31-42), é concluído precisamente com um Manifesto pelo romance
autobiográfico (Ibid., p. 231-245) e, entre a abertura e a coda, encontra-se o desenvolvimento
de uma proposição filosófica para pensar e subverter as relações humanas e seus códigos
sociais acerca dos desejos e prazeres sexuais a partir de uma releitura das teses dos filósofos
helenistas, especialmente cirenaicos, cínicos e epicuristas.
No Manifesto pelo romance autobiográfico lemos a seguinte exortação: a de que o
filósofo seja consequente, ou seja, que aponte em sua existência os efeitos de sua teoria (Ibid.,
p. 236) e, do mesmo modo, que seus leitores possam “constatar na elaboração de um mundo
de conceitos o peso de uma vida e a profundidade de uma biografia” (Ibid.). Essa ideia põe
em jogo a coerência, tão negligenciada, entre dois mundos frequente e arbitrariamente
separados: um eu que pensa e escreve e um eu que vive. Contudo, um filósofo é tanto mais
probo quanto mais procura manter sincronizados esses dois tempos, e é por concebê-lo assim
que Onfray diz não poder aceitar uma “filosofia sem a vida filosófica, e a vida filosófica sem
o romance autobiográfico que a acompanha” e atesta a “autenticidade do projeto”. Para ele,
“uma existência deve produzir uma obra exatamente como, em troca, uma obra deve gerar
uma existência” (Ibid., p. 236-237).
18
Onfray observa que a tradição e sua história oficial da filosofia “ama a humildade orgulhosa de um Pascal,
que, como se sabe, afirma que o eu é odioso, mas, no mesmo fôlego, utiliza 753 vezes a palavra eu nos
papelinhos dos seus Pensamentos” (ONFRAY, 2010, p. 13-14).
52
filosófico? Como compreender que ainda se torça o nariz aos que hoje, à maneira de Onfray,
reivindicam essa tradição praticando-a? Thoreau (1817-1862) critica o fato de que “a maioria
dos livros omite o eu ou a primeira pessoa” quando, afinal de contas, “é sempre a primeira
pessoa que está falando” (THOREAU, 2015, p. 17). Onfray reafirma essa maneira não muito
acadêmica, porém muito francesa, de filosofar na primeira pessoa e lembra, a propósito, que o
próprio Discurso do método de Descartes por pouco não foi intitulado História da minha vida
(Ibid., p. 14).19
Para um filósofo, a autobiografia nunca é um fim em si mesmo, jamais é a simples
escrita da própria vida, mas a narração dos meios pelos quais floresceram seus pensamentos e
para os quais ele deseja não a ocultação, e sim a valorização desse aspecto muito humano em
sua obra. Ele deseja, portanto, revelar a relação vivencial que mantém com a filosofia. A
noção socrática de vida examinada exige essa prática da confissão pessoal. Peguemos,
por um instante, o exemplo de Montaigne, um mestre moderno absolutamente impregnado
pelo espírito antigo: noutra ocasião (COSTA, 2014, p. 41) comentamos o quanto os Ensaios
falam do método de educação imposto por seu pai, que o obrigou a aprender latim antes do
francês, de sua inabilidade nos exercícios manuais ou esportivos, sua falta de jeito para
administração da casa, “de seu gosto pelas ostras e pelo vinho clarete”, sobre o fato de ele
nunca tomar “água ou vinho puros”, sobre seu sofrimento com os cálculos renais, as razões
que o levaram a ser prefeito de Bordeaux, o horror de viver em meio à guerra civil religiosa,
“seus hábitos de leitura, sua falta crônica de memória, seu gato, seu grande amigo, o filósofo
La Boétie, a morte deste, seu famoso tombo de cavalo que lhe serve de experiência viva à
reflexão sobre a morte, etc”. Pois bem, quando se trata de um filósofo com o gênio de
Montaigne, nada disso é dito gratuitamente, mas funcionam como pequenas pepitas da vida
que, para além da narração pura e simples de momentos tão pessoais, ensejam para o
pensamento sempre à espreita a oportunidade de se manifestar. Dessa forma, o bom leitor dos
Ensaios não deixará de perceber o quanto é “a partir dessas histórias – meios de pensamento e
não fins em si” (ONFRAY, 2010, p. 14) – que Montaigne
19
Nesse sentido, conferir também o excelente e inspirador ensaio de André Comte-Sponville chamado A ego-
filosofia ou a solidão do pensamento: sobre uma tradição francesa em filosofia (In: COMTE-SPONVILLE,
2001, p. 69-102). Ver especialmente as páginas 85-99 no qual o autor aborda essa característica tão marcante da
filosofia francesa: ser feita, assumidamente, na primeira pessoa.
53
Se enganam, pois, os que pensam que a escrita de si exclui o outro porque, na leitura
de um filósofo, o outro, o leitor, encontra quase sempre seu espaço ao se deixar enredar nas
idas e vindas do pensamento. Montaigne estava bastante consciente desse fenômeno: “O que
serve para mim pode porventura servir também a um outro” (MONTAIGNE, 2006, II, 6, p.
70), disse ele. O outro, de fato, poderá se nutrir das ideias alheias a fim de formar seu próprio
pensamento uma vez que as proposições feitas por um pensador para si mesmo e a partir de
problemas que lhe dizem respeito diretamente estão abertas a interpretações, apropriações e
vivências outras. O filósofo parte sempre de si, mas não fica, forçosamente, preso a si mesmo.
Por outro lado, ele dispensa qualquer sentimento de culpa por filosofar e escrever na primeira
pessoa do singular.
Assim, “entre a recusa do ego e o egotismo alucinado” (ONFRAY, 2010, p. 14), ou
seja, entre a detestação do eu e o narcisismo desenfreado, “há um espaço para dar ao eu um
estatuto singular: uma ocasião de apreender o mundo a fim de penetrar alguns de seus
segredos” (Ibid.). A partir daí, “a narração de um romance autobiográfico” adquire a potência
de interferir positivamente noutras subjetividades, também elas desejosas de encontrar pontos
de referências (ONFRAY, 2018b, p 244): “A escrita de um romance autobiográfico singular
presume a leitura de romances autobiográficos exemplares” (Ibid., p. 245) porque, em
filosofia, a leitura é esse exercício espiritual que supõe um “diálogo silencioso e necessário
para a indução do movimento ético” (Ibid., p. 244), que é o efeito produzido em nós a partir
do contato com as obras de Sêneca, Epicuro, Marco Aurélio ou Montaigne.
Também a filósofa brasileira Marcia Tiburi já abordou o tema da filosofia como
experiência pessoal e autoconfissão biográfica. Em seu livro Olho de vidro, de 2011, ela
escreve um ensaio introdutório no qual expõe os determinantes tanto das razões motivacionais
que a levaram a escrever sobre o tema quanto do método adotado para fazê-lo. Haveria aí
alguma relação com a prática onfrayriana de escrita e método? Teria a filósofa brasileira lido
o pensador francês e se inspirado, ao menos em parte, em seu modo de composição? Talvez
não. Todavia, sem dúvida existe uma forte convergência entre ambos quando ela escreve que
teórica que caracteriza seu fazer como modo de existir (TIBURI, 2011, p.
58).
Com efeito, no livro em questão Marcia Tiburi realmente conta de que forma sua
participação por cinco anos em um programa de televisão funcionou para ela como um
“laboratório do pensamento” no qual elabora sua filosofia da televisão, um objeto midiático
até então desprezado por ela assim como pela maior parte dos intelectuais. Aludindo a
Descartes, Marcia escreve, então, um “discurso do meu método” (In: ibid., p. 13-61) e, ciente
de pisar em terreno hostil quando se trata de filosofar confessando uma experiência pessoal, o
texto abre com um parágrafo de advertência um tanto cerimonioso, mas, igualmente,
apologético de sua postura incomum:
Em primeiro lugar devo pedir desculpas ao leitor pelo longo prefácio com
que inicio este livro. Em segundo lugar, a quem não se interessa por
motivações devo sugerir que salte esta conversa preliminar e vá para ao
primeiro capítulo, onde as questões são colocadas de um modo direto, livres
da subjetividade falante deste trecho. Em terceiro lugar, se, munido de sua
paciência, desejar passear nestas veredas, prometo só o que tenho a dar: o
desejo de sinceridade intelectual. Boa leitura a quem considerá-la um valor
(Ibid., p. 13).
são duas instâncias indissociáveis. Dito isso, que nos seja permitido, a fim de exemplificar,
fazer uma abordagem sobre o prefácio do livro A arte de ter prazer: por um materialismo
hedonista, no qual o nosso autor narra a experiência determinante de sua vida de filósofo, de
teórico do hedonismo e de arauto de uma ética que toma o prazer como guia existencial.
Dessa forma poderemos seguir pela ponte que nos conduzirá diretamente aos três capítulos
restantes desta dissertação, capítulos exclusivamente dedicados à elucidação desse hedonismo
filosófico o qual não existiria, para Onfray, sem a precoce experiência com a mais intensa dor
de existir – pois a dor, à sua maneira, é também um guia para a existência.
E de fato o texto em questão se chama Algodiceia: genealogia da minha moral
(ONFRAY, 1999a, p. 11-21). Ora, algodiceia é a junção da palavra grega álgos, que significa
“dor”,20 e “odisseia”, do grego odysseía, que, como é notório, deriva diretamente da Odisseia
de Homero, poema grego épico, para significar, em sentido figurado, qualquer narrativa
enriquecida de aventuras extraordinárias (Michaelis) ou uma “série de complicações,
peripécias ou ocorrências singulares e inesperadas” (Aurélio). A julgar, pois, pelo significado
de “algodiceia”, o nosso autor pretende narrar a odisseia de uma dor, a sua, para dela extrair
uma interpretação metafísica e, assim, fazer da forte experiência com o sofrimento a gênese
de uma ética hedonista, vale dizer, uma ética de combate à dor que toma o corpo como
cúmplice e aliado na busca do prazer enquanto elemento expansível da potência de vida sem,
contudo, em nenhum momento, ignorar a condição trágica em que esta está imersa, condição
necessária bem difícil de ignorar quando a morte acena de tão perto.
Não se escapa sempre à dor e ao sofrimento. Quanto à morte, esta se impõe
universalmente para suplantar a vida que enquanto tal fora afirmada com ela, apesar dela e,
por um ínfimo instante, contra ela. Para Onfray, a lição deixada por sua algodiceia não foi
apenas a de resistir à morte enquanto isso for possível, mas também a de que é preciso fazê-lo
com arte, prazer e alegria apesar da dor e do sofrimento predominante no mundo e do nada
que nos espera quando enfim deixarmos de aqui estar. “Nenhuma gaia ciência está isenta de
uma concepção trágica do real” (ONFRAY, 1999a, p. 277), e a gaia ciência hedonista de
Michel Onfray se inscreve na tradição atomista de Demócrito e Epicuro para, a partir dessa
base ontológica, demonstrar como é possível construir sentido para uma vida posta a priori
sob o signo da dor e da ausência de todo encantamento metafísico. É da afirmação da
20
No vocabulário epicurista encontra-se a forma substantivada algedón a qual significa, precisamente, “dor” ou
“sofrimento” (Cf. SILVA, 2018, p. 104). Entre as variantes de sentido que a palavra adquire na obra de Epicuro
nos apropriamos, por ora, desta: “Ausência de felicidade causada por dores do corpo” (Ibid.). De álgos deriva
também o termo médico “algia” para expressar qualquer tipo de dor, bem como “algofilia”, que define, na
psiquiatria, a “perversão sexual” caracterizada pelo desejo de sentir dor (Aurélio).
56
condição trágica do ser humano que surge, então, uma filosofia da alegria e do prazer, mas
cuja base existencial não deixou de ser desesperante na mais profunda relação com a dor, e
isso até o ponto de a própria morte ser desejada como o mais doce dos bálsamos.
Assim, Onfray inicia o livro no qual tece os princípios de um pensamento sobre o
corpo e as virtudes éticas do hedonismo narrando as memórias indeléveis de um enfarte
sofrido aos... vinte e sete anos de idade. “Naquela segunda-feira, 30 de novembro”, escreve
ele, “meu corpo experimentou uma sapiência que se transformaria em hedonismo” (Ibid., p.
13). Estranhamente, a sabedoria veio de um corpo cuja vontade de vida foi inteiramente
consumida pela agudeza máxima em que a dor se fez sentir: “Todos os movimentos
necessários à minha descida da ambulância para dar entrada no pronto-socorro do hospital
foram dolorosos. Eu tinha vontade de um imenso sono, de uma morte reparadora” (Ibid., p.
14). Em momentos como esse, é forte a impressão de que o ápice da dor e do dilaceramento
do corpo foi alcançado. Daí que nem mesmo a morte assusta mais, pelo contrário: “Há uma
paz em saber que um além do pior está totalmente excluído” (Ibid., p. 15). Talvez a dor seja a
forma mais eficaz de o real se impor em toda sua intensidade, brutalidade e autoridade (Ibid.).
Mas pode ocorrer também de a própria consciência ser perturbada e, assim, qualquer consolo
se extingue. Nesse caso, a dor impera absolutamente e se faz sentir em toda sua pureza. No
extremo, “o nada” se torna “desejável e parece doce quando a dor aniquila todo controle e o
corpo” é reduzido a uma pura “estrutura animal” (Ibid.). “Sofrer como um animal”, eis o que
significa “conhecer a deserção da consciência e da inteligência, depois a emergência de um
devir imundo – a carne como único receptáculo da morte, como lugar de eleição do traspasse”
(Ibid.).
Primeiros socorros, primeiras incisões efetuadas na carne pelos médicos. Diagnósticos
apontam a necessidade de transferência emergencial, de helicóptero, até o hospital de
referência. Contudo, a neblina impossibilita a operação de voo e o transporte precisa ser feito
de ambulância. Nesse caso, o paciente enfrenta um trajeto que prolonga sua convivência com
a dor no lugar da morte desejada: “Passar tão perto da morte e escapar dela me parecia
inadequado, um pouco como uma falta de gosto – pois é preciso saber morrer quando ainda é
tempo” (Ibid., p. 17) – todavia, não está nas mãos de um enfartado sob cuidados médicos
decidir acerca da morte voluntária... Na emergência do hospital, operações cirúrgicas são
feitas sobre um corpo nu esgotado, fragilizado, destruído pela dor e incapacitado para a vida.
Nesse momento, uma constatação se impõe: “A morte é simples, pois transforma
definitivamente o corpo em puro objeto, ao passo que o sofrimento, mais complicado, coloca-
o do lado da impureza: mistura de passividade e consciência, de desordem e saber, de
57
impotência e certeza” (Ibid.). Segue-se uma descrição dos procedimentos médicos: “A pele é
incisa, a carne aberta, o corpo penetrado” (Ibid.) por sondas que forçam caminho pelas
artérias até o coração, “onde desabrocham em buquês metálicos” (Ibid.). “O sangue jorra da
virilha aberta, escorre pelas pernas e imagina-se a própria carne maculada pelo próprio
sangue” (Ibid.).
Sobre a dor, André Comte-Sponville diz algo interessante: ela é um de nossos “afetos
mais fundamentais” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 183), tal como o prazer, sendo, no
entanto, o exato contrário deste. Segundo diz com justeza, não existe teoria capaz de expressar
o que é a dor com propriedade. A experiência de por ela ser afetado encerra toda manifestação
possível. O corpo, aqui, é soberano e detém, sozinho, toda a razão. Assim, ele já “nos diz o
bastante” o que é a dor, “e melhor que uma definição” (Ibid.). Por isso Comte-Sponville é
econômico nas palavras sobre a dor no verbete que lhe dedica em seu Dicionário Filosófico
sem, no entanto, deixar de dizer o que pode ser dito, e suficientemente, sobre ela: “A dor é
mais que uma sensação penosa e desagradável”, escreve ele. A dor “é uma sensação que não
se pode esquecer, que se impõe absolutamente, que impede qualquer bem-estar, qualquer
relaxamento, qualquer repouso, enfim que é possível suportar, quando é viva, apenas no
horror ou no heroísmo” (Ibid.).
Por conseguinte, o conhecimento pela dor é aquele que vem através dos abismos
inerentes à condição trágica da existência humana. Conseguir escapar ao abismo após encará-
lo tão dramaticamente exige de um filósofo que se faça a metafísica dessa vivência. Uma
lição da qual não é possível se esquivar aqui é a da mais manifesta certeza quanto à
singularidade radical da experiência profunda da vida evidenciada na impossibilidade de
partilhar afetos fundamentais como prazer e dor, tão radicalmente instalados na dimensão
atômica e nuclear do corpo de cada um de nós. “A dor é uma odisseia singular que possui,
assim como o prazer, o estranho privilégio de revelar a solidão, de mostrar a evidência
metafísica em luzes ofuscantes e aterrorizantes” (ONFRAY, 1999a, p. 19), escreve Onfray,
concluindo que “o conhecimento da dor se metamorfoseia em conhecimento pela dor” (Ibid.)
na qual a experiência de quase morte se transforma, a posteriori, em experiência metafísica
apreendida com a maior das propriedades apenas pelo corpo, já que nele impressa
definitivamente.
Após sobreviver à morte, ainda na sala de recuperação, outra lição existencial adveio
da necessidade imposta pelo destino de ter de testemunhar, após os esforços desmedidos dos
médicos e enfermeiros, a morte de um idoso igualmente infartado. Como não desenvolver a
partir daí uma radical alteridade, princípio elementar de toda ética e da ética hedonista em
58
particular? As teses de Michel Onfray estão, todas elas, enraizadas em suas próprias
experiências da vida viva, inclusive no que ela tem de mórbido e de contato com a morte.
Dessas experiências provêm sua incansável tentativa de definir e defender um sistema
hedonista em torno do qual orbitam suas obras. Tal filosofia procede, portanto, de uma lição
de morte, morte esta que, porque não se efetivou, pôde, por isso mesmo, instruir sobre o seu
contrário, a vida. Assim, dando seu testemunho existencial, Onfray escreve que “depois
daquela lição de trevas” não restava outra coisa senão “fazer do corpo um parceiro da
consciência, reconciliar a carne e a inteligência” (Ibid., p. 21). De fato, esse corpo que pensa e
essa carne capaz de cultura e inteligência constituem os fundamentos fisiológicos de sua ética
e de seu projeto filosófico.
Três anos mais tarde Onfray retorna ao centro hospitalar, desta vez na condição de
sobrevivente visitante. Estamos lendo o epílogo do livro, sugestivamente intitulado Disjecta
membra, uma expressão latina que significa “fragmentos dispersos”. O nosso autor é agora
um filósofo decidido a tomar lições de anatomia antes de seguir em frente. Visita então as
regiões menos vivas e mais macabras do hospital universitário, as salas de dissecações. Numa
delas se depara, como que por acaso, “com antebraços num balcão, e, no outro, duas mãos”
(Ibid., p. 316), órgãos separados de seus corpos originais, eles próprios reduzidos à condição
de fragmentos corporais. Em seguida vê cadáveres e ainda outros órgãos espalhados, restos
mortais úteis como materiais pedagógicos à ciência médica. Assiste então a um grupo de
estudantes de medicina, futuros cirurgiões, exercitando sua arte sombria sobre um tórax
aberto de um corpo sem cabeça e sem braços. Desprovido da vocação necessária, sua
experiência se faz acompanhar por náuseas e mal-estares. Como poderia ser diferente, uma
vez que se seu próprio corpo escapou da condição em que agora estes se encontram, corpos
inertes, há muito esvaziados de sua energia vital?
É ao término dessas páginas autobiográficas que Onfray declara seu amor à vida e sua
vontade de usá-la “até furar a sola” (Ibid., p. 319), um sentimento carregado dessa urgência de
viver que um dia foi expresso por Henry David Thoreau numa página do seu Walden: “Queria
viver profundamente e sugar a vida até a medula, viver com tanto vigor e de forma tão
espartana que eliminasse tudo o que não fosse vida” (THOREAU, 2015, p. 95-96). Também
Onfray deseja eliminar de seu horizonte tudo o que não é vida, com a diferença de que seu
ímpeto está nos antípodas de uma austeridade espartana, pois o seu desejo é o de viver de
modo verdadeiramente hedonista. Contudo, priorizar a pulsão de vida em detrimento da
pulsão de morte significa também afirmar a vida tal como ela é, e ela é algo que está
condicionado à mortalidade. Algodiceia e Disjecta membra, prólogo e epílogo de um tratado
59
para uma Arte de ter prazer, são textos que expressam um pensamento trágico. Eles
demonstram que na obra de Onfray o impulso à vida com prazer e alegria não é inconciliável
com a condição trágica dessa mesma vida, mas, ao contrário, é a sua própria expressão visto
que o hedonismo, “sem o trágico”, não é senão “uma impostura”.21
O que é o trágico em Michel Onfray? Aqui ele não inventa nada de novo, porque não
precisa. O trágico é simplesmente a atitude existencial de quem procura, sem alimentar
ilusões, ver e encarar a realidade tal como ela é, inclusive com suas dores, seus sofrimentos e
principalmente com a finitude que a natureza impõe a tudo o que vive. Nem pessimista nem
otimista, o indivíduo trágico é aquele que vê as coisas como elas são. Que o real se manifeste
em toda a sua autenticidade: a vida “é assim e não de outra maneira. Fatum, diziam os
romanos” (ONFRAY, 2019, p. 32), e isso é o próprio trágico, ou seja, uma adesão ao que é.
Podemos dizer, assim, que o pensamento trágico é caracterizado por uma intensa consciência
da morte, sendo a morte aquilo que funda, ontologicamente, a condição trágica do ser
humano.
Não devemos nos enganar em relação a isso, pois tudo passa por aí: “Toda existência é
construída sobre areia” e “a morte é a única certeza que temos” (ONFRAY, 1999a, p. 21).
Contudo, que atitude o filósofo hedonista deve assumir ante o fato da morte? Sem cultivar um
pessimismo mórbido nem um otimismo ilusório – um ama a morte, o outro finge que ela não
existe – , sua postura tem de ser o de um desprezador da morte (Ibid.). A morte está logo ali,
como se sabe. No entanto, basta saber disso e não se enganar quanto a isso. De resto,
enquanto estamos aqui, vivendo, cuidemos de recusá-la e de desprezá-la. Ora, para Michel
Onfray “o hedonismo é a arte desse desprezo” (Ibid.), o que se traduz em uma forma de arte
da afirmação da vida. Deixemos, pois, à morte o que a ela pertence. A vida é um pequeno
intervalo da matéria consciente entre dois nadas: o nada que fomos, e o nada que seremos por
toda uma eternidade. O hedonismo é uma opção por um modo de vida enquanto há vida. É,
então, uma recusa da morte.
Mas com isso atingimos uma de nossas questões principais, a saber: o que é,
propriamente dito, o hedonismo, inclusive em sua condição pré-filosófica? Com efeito, antes
de abordarmos o hedonismo enquanto sabedoria e arte de conduzir uma existência,
precisamos considerar seu aspecto ontológico, qual seja, a de uma força da natureza que
impulsiona a vida e a ação humana a partir de dois afetos primordiais: a dor e o prazer. O
21
L'écriture, la mort, les médias, la politique : les confidences du philosophe. Entrevista de Michel Onfray
ao Le Figaro de 27 de abril de 2018. Disponível em: https://www.lefigaro.fr/vox/societe/2018/04/27/31003-
20180427ARTFIG00347-l-ecriture-la-mort-les-medias-la-politique-les-confidences-du-philosophe-michel-
onfray.php. Acesso em: 21 dez. 2019.
60
hedonismo é uma espécie de dialética entre a morte e a vida, entre o desprazer e a alegria,
entre o sofrimento e o gozo. Em Michel Onfray, como vimos em Algodiceia, é precisamente
porque a dor existe que precisamos cultivar o prazer.
61
3 O QUE É HEDONISMO?
Pois bem, o que dissemos acima sobre a dor serve, como apontado, igualmente para o
prazer. Ou seja: ambos, prazer e dor, são concebidos aqui como afetos fundamentais, o que
significa dizer que, desde que se tenha um sistema nervoso suficientemente desenvolvido toda
a vida, seja ela humana ou outra variação do reino animal, está baseada na relação imposta
pela natureza a partir desses dois afetos opostos, primeiros e primordiais. 22 O que é o prazer?
Sendo um afeto que está na base da vida ele é, assim como a dor, algo que escapa a precisões
teóricas. Também aqui é o corpo que, sentindo, nos diz a verdade inteira. O corpo detém,
sempre, a grande razão da vida. O resto é interpretação do real, conceito ou, se quisermos,
representação verbal aproximada da realidade percebida pelo corpo. Contudo, digamos, numa
primeira abordagem, que o prazer “é o afeto que se opõe à dor”, o que significa dizer que é “o
afeto que nos agrada” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 467) em oposição ao que nos
desagrada. O prazer, portanto, é o afeto “que nos regozija e nos faz bem” em contraste ao que
nos pesa, nos entristece e nos faz mal. O prazer, define André Comte-Sponville, “é a
satisfação agradável de um desejo” (Ibid.), ao passo que a dor é tanto uma satisfação não
agradável de um desejo como, o que é mais frequente, a simples privação dessa satisfação.
Em ambos os casos, a insatisfação perdura, portanto o desprazer.
Definindo assim o prazer e a dor como afetos fundamentais, ou seja, como a base e o
alicerce de que tudo o mais decorre na existência e a que estão submetidos todo querer, desejo
e ação cabe-nos, consequentemente, definir o que devemos entender por essa palavra, afeto.
André Comte-Sponville põe a coisa em devida ordem conceitual em seu Dicionário filosófico:
afeto, explica ele, “é o nome comum e erudito dos sentimentos, das paixões, das emoções, dos
desejos – de tudo o que nos afeta agradavelmente ou desagradavelmente” (Ibid., p. 16). Vale
dizer, chamam-se afetos todas as variações entre prazer e dor a que o corpo está submetido
por sua sensibilidade e que ele expressa à sua maneira, mas que nenhuma definição atende
suficientemente, mas apenas aproximadamente. O afeto, essa única palavra, diz então o que é
possível e necessário dizer sobre a relação corpo, sentimento e consciência. Assim, “o afeto é
22
Neste capítulo, ao falarmos de prazer e dor como afetos fundamentais que se opõem não estamos,
necessariamente, subscrevendo um pensamento dualista do tipo metafísico caracterizado por separar o corpo da
alma ou este mundo do além-mundo. Nada mais contrário à nossa proposta e ao pensamento de Michel Onfray.
Se tratamos prazer e dor como dois princípios que se opõem isso não significa, todavia, que os entendemos como
sendo de naturezas radicalmente distintas, mas, sim, que, primeiro, terminologicamente não é possível trabalhar
de outro modo; segundo, que a terminologia do tratamento teórico tem sua base na experiência concreta da vida
prática, real e efetiva, lá onde, de fato, sentimos os prazeres e as dores de forma distinta, e mesmo dualista, ainda
que, na verdade, trate-se de variações afetivas próprias de um continuum, ou seja, de uma mesma e única
natureza sensitiva que se organiza e se manifesta de forma diversa. Não há vida sem morte, nem prazer sem dor,
e o monismo da matéria prevalece numa lógica imanentista que, esta sim, subscrevemos. É inegável, porém, que
a variação do espectro vital em favor da vida e do prazer não se confunde, nem produz os mesmos efeitos
práticos, que sua predominância em favor das dores que trabalham em prol da morte. Diferença fundamental,
lógica dos contrários e, se quiserem, dualista, mas submetido à ordem maior de um monismo radical.
63
como o eco, em nós, do que o corpo faz ou sofre. O corpo experimenta; a alma sente, e é isso
que se chama afeto” (Ibid.).
Sendo o prazer e a dor os afetos elementares de toda vida animada (no sentido
biológico do termo), eles determinarão a oscilação que afeta essa vida mesma, seja para mais,
seja para menos potência de viver, de existir, a depender se é a dor ou o prazer que lhe atinge,
que lhe aflige, que lhe afeta. E aqui, como não poderia deixar de ser, o conterrâneo de Michel
Onfray convoca Espinosa, uma autoridade maior no tema que define o afeto da seguinte
maneira: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é
aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas
afecções” (SPINOZA, 2011, III, def. 3, p. 98). Esta é a passagem da Ética citada por Comte-
Sponville cujo comentário não é de modo algum desprovido de interesse: segundo ele, o que
Espinosa está dizendo muito explicitamente é que a existência, a nossa existência humana,
“não é um absoluto”, mas sim que “existimos mais ou menos”, segundo o ritmo de “nossos
afetos” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 16) numa lógica em que “a alma e o corpo são uma
só e mesma coisa”, ou seja, “não acontece nada naquele que não suceda também neste, e vice-
versa” (Ibid.). O afeto? “É o nome dessa unidade” corpo/alma, explica Comte-Sponville, “na
medida em que exprime um aumento ou uma diminuição da nossa potência de existir e de
agir”. Noutros termos, afeto “é o esforço de viver (o conato), considerado em suas flutuações
positivas ou negativas” (Ibid., p. 16-17).
Prazer e dor são as duas instâncias por trás desse relativismo de nossa existência, pois
é em virtude desses afetos que, mesmo vivos, o somos em graus oscilantes. A energia vital
não é algo estático, mas dinâmico e, nesse sentido, é dependente dos afetos. Por conseguinte,
a vida mesma se apresenta, num dado momento, mais ou menos potente: mais potente, se é a
alegria o afeto preponderante em nosso corpo; menos potente, ao contrário, se a tristeza
predomina. De maneira que existimos em maior ou menor grau de vitalidade na medida
mesma em que nos sentimos mais ou menos vivos, com mais ou menos força para afirmar
essa nossa existência. Viver e agir constituem um único e mesmo ato: mais dor, menos
vitalidade, menor força para agir. Na direção oposta, o prazer tem uma relação direta com o
aumento da vitalidade que, por sua vez, proporciona força para a ação, para o movimento,
portanto para a vida. Assim, dor e o prazer determinam, universalmente, mas de modo diverso
em cada indivíduo, essa variação da energia vital. Vimos acima, na Algodiceia narrada por
Michel Onfray, o quanto a dor e o sofrimento manifestam sua condição de afetos paralisantes,
por vezes destruidores, da vida. Veremos, no decorrer deste nosso escrito, o quanto o prazer, a
alegria e a felicidade são para o nosso autor armas existenciais de combate a essa ameaça
64
mortífera que é a dor. Sua afirmação é pela vida enquanto fruição, gozo, júbilo, prazer,
portanto enquanto maximização da potência de existir, um conceito espinosista que intitula
uma de suas obras.23
Segundo as teses onfrayrianas, somos todos, por natureza, seres hedonistas, e esta é
uma condição tão essencial à vida que se manifesta mesmo antes de esta vir à luz. De fato,
considerando o tempo de gestação da vida humana, é ainda na escuridão do ventre materno,
por volta da vigésima quinta semana de gestação, que se dá o momento chave no qual o
sistema nervoso parece estar suficientemente desenvolvido para fazer com que “a matéria
cinzenta” (ONFRAY, 2010, p. 114) reaja aos estímulos mais básicos, quais sejam, “a
capacidade de sentir o prazer e a possibilidade de sentir dor – base do hedonismo” (Ibid.),
logo, da condição necessária para que o indivíduo possa apreender a realidade. Por isso
Onfray entende esse momento gestacional como sendo aquele no qual surge o primeiro
estágio da condição propriamente humana do feto: “É essa a data”, observa ele, “a partir da
qual ele sai do nada para entrar no humano, apesar de ter sido vivo desde o encontro
espermatozoide/óvulo” (Ibid.). Os demais estágios do processo de humanização, a saber, a
descoberta de si, dos outros, do mundo, a formação de uma consciência a partir do meio
social, as memórias afetivas que constituirão um caráter etc., tudo isso não será senão um
longo e complexo processo de desenvolvimento regido por essa base hedonista, variações
ricas em possibilidades tanto quanto de imprevisibilidades que se dão sobre apenas dois tons:
prazer e dor.
O hedonismo, num sentido mais amplo, é o tropismo instintivo que nos orienta em
relação aos estímulos de que nosso corpo é o alvo receptor. Munidos da capacidade de sentir
dor e prazer em todo seu espectro, tudo fazemos para atingirmos este, o prazer, ao passo que
somos impelidos a nos afastarmos o máximo possível daquela, a dor. Nesse sentido cru e
natural, dor e prazer são como dois polos sustentadores da vida em seu estado mais elementar.
A dor, assim como sua variação, o medo, são alertas naturais evidentes para o ser vivo, avisos
claros de uma ameaça a ser evitada. Já o prazer é um estímulo para irmos ao encontro de tudo
o que potencialmente contribui para o fortalecimento, desenvolvimento e perpetuação da vida.
Nisso o hedonismo funciona como uma bússola de precisão para todo o reino animal – do
qual o ser humano faz parte – em seu estado de pura natureza.
É uma questão de seleção natural, explica a biologia moderna: “Nosso cérebro está
programado para gostar de sexo”, à guisa de ilustração, “porque o sexo, no estado natural,
23
No caso, A potência de existir: manifesto hedonista (Cf. ONFRAY, 2010).
65
produz bebês” (DAWKINS, 2007, p. 224), e isso garante a preservação da espécie. Por outro
lado, a mesma “seleção natural estabeleceu a percepção da dor como senha para danos
corporais que representem risco à vida, e nos programou para evitá-la” (Ibid.) a qualquer
custo. A dor é simplesmente um “recurso” da natureza “que funciona de modo a aumentar as
chances de sobrevivência do sofredor” (DAWKINS, 2009, p. 367). “Os cérebros”, explica
nosso biólogo, “são construídos com uma regrinha prática mais ou menos assim: ‘se você
sentir dor, pare o que quer que esteja fazendo e não torne a fazê-lo’” (Ibid.). Lição a reter: sem
a capacidade de sentir dor não haveria chance de sobrevivência para a vida animal. Assim,
ainda que a dor seja um mal a ser evitado porque sinaliza um comportamento de risco ao ser
vivo, se ela persistiu ao longo da evolução é porque essa utilidade de alerta natural favoreceu
enormemente à sobrevivência da nossa e de inúmeras outras espécies de seres vivos na
natureza. Contudo, como observa Richard Dawkins, “ainda está em aberto o interessante
debate sobre por que raios tem de doer tanto” (Ibid.). De qualquer modo, nos casos extremos
em que a luta contra a dor é perdida, ela devora o indivíduo até o fim se metamorfoseando em
sua ausência, ou seja, em morte, quer dizer, em alívio no nada.
Na natureza que se basta a si mesma essas questões são muito bem resolvidas. Os
problemas verdadeiramente humanos só têm início no âmbito da cultura e a nossa, de base
judaico/cristã, por desprezar o corpo e não reconhecer o que em nós é natureza (e somos
inteiramente natureza antes de qualquer coisa) tem sido desastrosa na lida com nossos afetos
fundamentais a ponto de inverter a lógica hedonista ao fazer, da dor, um bem, e, do prazer,
um mal. Daí a necessidade de persistir, partindo das lições fornecidas pela natureza, no
desenvolvimento de um hedonismo cultural, portanto artificial – no sentido primeiro da
palavra, ou seja, daquilo que é produto de uma arte do fazer – e ético.
24
Doravante, a referência a Diôgenes Laêrtios aparecerá como DL.
25
Encontramos essa expressão sendo utilizada por André Comte-Sponville (2011, p. 468) e dela nos
apropriamos. Assim como o termo panteísmo significa a ideia de que Deus está em tudo e que o mundo seria o
conjunto de suas manifestações ou emanações, de modo análogo pan-hedonismo expressa uma ordem (no caso, a
ordem da vida humana) segundo a qual o tropismo hedonista reina absolutamente: O prazer está em tudo. Donde
essas palavras de Pascal: “O homem é escravo do deleite; o que mais o deleita, infalivelmente o atrai” (Citado
por C.-SPONVILLE, 2011, p. 468).
67
moral utilitarista e virtuosa: “Os homens são forçados, pela sua natureza, a amar a virtude e a
recear o crime, pela mesma necessidade que os obriga a buscar o bem-estar e a fugir da dor”
(HOLBACH, 2010, p. 800). É a natureza a força que impera nos seres humanos mesmo
quando estes são analisados na perspectiva da política e da moral, e é ela que “os força a
diferenciar entre os objetos que lhes dão prazer e aqueles que lhes causam dano” (Ibid.) em
qualquer âmbito que seja.
Antes de D’Holbach, John Locke (1632-1704), em seu célebre Ensaio sobre o
entendimento humano, faz essa mesma observação certeira ao escrever que a natureza “pôs no
homem desejo de felicidade e aversão à aflição” (LOCKE, 2012, p. 50), e que estes são os
únicos “princípios práticos inatos que operam e influenciam incessantemente (como sói) todas
as nossas ações” (Ibid.). Também Helvétius (1715-1771), pensador esquecido pela tradição,
no entanto mais sensato e realista que um Kant, disse o seguinte:
Jeremy Bentham (1748-1832), que leu Helvétius e com ele aprendeu a fórmula do
utilitarismo, corrente política e moral cujo princípio é a promoção da felicidade do maior
número de pessoas (se constituindo, portanto, como um hedonismo aplicado socialmente por
meio da política), escreve em forma de imperativo categórico esta fórmula que veio a se
tornar célebre: “A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores
soberanos: a dor e o prazer” (BENTHAM, 1979, p. 3). Estes “dois senhores”, esses dois
impulsos da natureza, onipotentes e onipresentes no corpo, logo na alma dos humanos, são
incontestavelmente as molas propulsoras de seus pensamentos assim como de suas ações,
afirma Bentham. Somos por eles governados “em tudo o que fazemos, em tudo o que
dizemos, em tudo o que pensamos, sendo que qualquer tentativa que façamos para sacudir
este senhorio outra coisa não faz senão demonstrá-lo e confirmá-lo” (Ibid.).
Enfim, Sigmund Freud (1856-1939) expressa essas mesmas ideias sob uma nova
roupagem conceitual denominada princípio de prazer: “O princípio de prazer é um dos dois
grandes princípios que regem, segundo Freud, a totalidade da nossa vida psíquica, ou antes, é
o único: todo ser humano (talvez até todo animal) tende a fruir o mais possível e a sofrer o
menos possível” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 469). O conceito correlato a este é o
princípio de realidade, porém ele vem menos se contrapor à sua verdade do que condicioná-la
68
26
José Ferrater Mora (1912-1991), por exemplo, escreve que “o hedonismo teve muitos inimigos, por motivos o
mais diversos: Platão, numerosos filósofos cristãos – sobretudo os de tendência ascética – , Kant e outros
pensadores foram anti-hedonistas. Em geral, o hedonismo foi frequente objeto de crítica e, em alguns casos, de
menosprezo” (MORA, 2001, p. 329).
69
António Damásio e, mais precisamente para o nosso interesse no momento, nas belas e
verdadeiras palavras com as quais ele inicia seu livro de título e subtítulo bastante sugestivos:
Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. Leiamos, então, António
Damásio:
Com essa bela passagem escrita por um cientista de alma filosófica, concluamos pelo
fato de que, sim, existe um hedonismo universal definido por esse tropismo entre prazer e dor
instalado em cada ser humano, bem como em cada outro animal, pela natureza. Contudo, há
igualmente, como extensão dessa natureza primeira, porém como obra astuciosa do
epifenômeno que é a razão, um hedonismo humano, exclusivamente humano, até mesmo mais
que humano, vale dizer, um hedonismo filosófico, logo cultural. Este último parte daquela
tendência instintiva e universal, evidentemente, mas seus fins são diversos e até mesmo infiéis
à sua natureza primeira porque se realizam no âmbito da cultura e do artifício do querer
humanos. É que o ser humano, ao menos o ser humano sábio, percebeu que vive melhor
segundo sua natureza quando não lhe obedece cegamente, mas ponderadamente. Para isso ele
se vale da sua razão enquanto artifício cultural.
Nosso esforço aqui é o de esclarecer, o quanto for possível, o que Michel Onfray
entende por hedonismo. Antes, porém, é necessário considerar a existência de uma definição
mais sumária e geral comum a todas as variantes do hedonismo e por isso encontrável nos
mais diversos manuais de filosofia. Tomemos, para exemplificar, a definição que André
Comte-Sponville (esse mestre das definições) oferece no seu já mencionado Dicionário
filosófico, onde, aliás, o nosso autor é mencionado como um legítimo representante dessa
tradição na contemporaneidade. Lemos, então, no verbete “hedonismo” da referida obra que
70
este termo designa “toda doutrina que faz do prazer (hedoné)27 o soberano bem ou o princípio
da moral: é assim em Aristipo, em Epicuro (embora seu hedonismo se acompanhe de um
eudemonismo) ou, hoje, em Michel Onfray” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 273).
Definição correta, limpa e precisa. No entanto, por se tratar de um dicionário filosófico, e não
de um dicionário de filosofia,28 o autor, que não é partidário do hedonismo, faz uma objeção
digna de que façamos uma pausa atenta antes de prosseguirmos. Assim, na esteira de sua
definição, o colega de Michel Onfray faz a seguinte observação:
complexidade que toda tarefa ética exige, logo seria fadar-se ao fracasso desde a saída.
Ademais, restaria sempre a questão necessária de saber o que se deve entender pelo principal,
isto é, gozar, uma vez que as categorias dos prazeres e dos seus usos possíveis são tão
diversas e múltiplas quanto os corpos e os temperamentos que delas se apropriam, o que
impossibilita qualquer tentativa de uma universalização moral simplória.
De resto, gozar por gozar, sem fazer mal a si nem aos outros pode até bastar como
regra geral, à maneira de uma divisa ética do tipo “minha liberdade termina onde inicia a do
vizinho”. Mas isso não é suficiente para um filósofo hedonista que enxerga, nessa sentença
enxuta, não um fim em si mesmo, mas inúmeros desdobramentos. Ele precisa ir além, e o faz
hierarquizando seus prazeres e não apenas fruindo inofensivamente deles, pois não obstante
ser esta uma regra fundamental, a qualidade que distingue um prazer de outro conta tanto ou
mais que sua neutralidade ofensiva (não causar dano). Chamfort, com sua bela máxima,
fornece tão somente a divisa, o preceito geral do qual se deve partir. Todavia, a complexidade
da empresa ética surge assim que se toma a decisão de cultivar esse preceito com a finalidade
de erigir o prazer em soberano bem. Daí, a nosso ver, a necessidade de fazer a seguinte
distinção: uma coisa é o impulso do princípio de prazer; outra, bem diferente, é o trabalho
cultural e intelectual exercido sobre essa força da natureza com o propósito de construir uma
ética que incorpore um estilo de vida filosófico único, original, inimitável e, portanto,
despreocupado com normas morais universais. O filósofo hedonista quer domar a natureza
bruta que o habita a fim de superar seus ditames; deseja domesticar suas forças selvagens a
fim de usá-las a favor da criação de sua existência humana (voltaremos a isso). Essa é sua
tarefa, e para a qual nenhuma fórmula sumária basta.
Como observamos acima, o tropismo hedonista tem, por assim dizer, vida própria: ele
é um fato biológico natural e universal que define o movimento de aproximação ou de
afastamento do organismo em relação à fonte de estímulo tendo como critério as sensações de
dor e de prazer. Determinado por essa lógica, todo ser humano tende a fruir o máximo que
puder e a sofrer o mínimo possível. Não obstante, isso igualmente se aplica à lesma, à rã, ao
cachorro, ao cavalo, às ovelhas, aos insetos, quiçá até mesmo com plantas e vegetais é assim
que se passa.29 Esse é um movimento que abarca toda a vida animal na Terra e, de nossa
29
Observemos de pronto que não existe, até o momento, nenhuma evidência científica comprovando que as
plantas sentem dor, ainda menos prazer, tal como os animais sentem, já que para tanto a natureza parece exigir a
presença de um cérebro munido de um sistema nervoso, o que não é o caso das plantas. Contudo, os vegetais não
são seres insensíveis e, como escreve Onfray em Cosmos, à sua maneira “as plantas vivem, sofrem” e “reagem a
estímulos” sendo, portanto, “também capazes de sofrer – ou, em outras palavras, de vivenciar o afeto que põe em
risco sua existência” (ONFRAY, 2018a, p. 136). De fato, há estudos mostrando “que quando uma folha ou caule
é arrancado, um gás é liberado, o que seria o equivalente a um grito de dor vegetal. Esse gás emite um som,
72
parte, não temos como escapar da natureza que nos produziu e que nos constitui. Uma vez que
nos entendemos quanto a isso, surge a problemática propriamente humana, e ela é de outra
ordem, a saber, o que fazemos dessa tendência natural no âmbito da vida cultural, logo moral,
que por sua vez nos rege como uma segunda natureza a despeito do que em nós é natureza
primeira?
O exemplo do militante utilizado por Comte-Sponville é válido para demonstrar, por
um lado, a óbvia universalidade do tropismo hedonista e, por outro, o fato de, por
consequência, não existirem ações desinteressadas. Ou seja, agimos, sempre, mesmo em
nossos sacrifícios mais altruístas, com base no interesse próprio. Trata-se, todavia, de um
exemplo extremo, ao passo que na vida prevalece um cotidiano menos dramático ou heroico
no qual as coisas são mais diluídas e de difícil percepção quanto às causas que nos governam.
Um cotidiano, lembremos, feito de cultura e educação. Aliás, quem pode precisar o efeito e o
alcance que a educação e a cultura exercem sobre a tendência inata e natural que pulsa no ser
humano, seja para o bem, seja para o mal? E nos casos, certamente mais comuns, em que o
militante preso e submetido à tortura age no sentido contrário e delata seus companheiros para
salvar a própria pele? Isso está igualmente de acordo com a universalidade do princípio de
prazer e das ações egoístas comuns a humanos e animais. Pode, ainda, no entanto, estar em
concordância com um caráter duvidoso formado por um processo de aculturação e de
moralidade menos virtuoso e que, por conseguinte, o determinou a uma escolha menos digna
de sua condição humana do que de sua natureza de primata. De fato, a moral também exerce
seu peso. Ela tem o poder de criar determinantes, até mesmo uma segunda natureza, como diz
Nietzsche, que interaja ou se sobreponha, de uma forma ou de outra, à natureza primeira. A
civilização, a propósito, não é feita senão de moral e de efeitos castradores sobre nossas
tendências mais inatas. Na lógica da moral, ascética por excelência, prazer e dor podem
inclusive ter seus polos invertidos e suas funções naturais distorcidas na medida em que são
usados a favor de uma vida mais disciplinada, porém menos potente.
Não se pode confundir, então, o hedonismo natural e universal com aquele, artificial,
cultural e particular cujo aperfeiçoamento os filósofos, desde Aristipo, se esforçam por dar
conta. Este hedonismo é uma construção da razão; o outro, matéria bruta produzida por
Gaia. 30 O hedonismo filosófico busca construir uma ética que é também uma segunda
imperceptível ao ouvido humano, que fica mais intenso à medida que a planta é submetida a mais situações de
estresse” (Cf. Sabrina Haick. Planta sente dor? Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-
estranho/planta-sente-dor-2/. Acesso em: 22 set. 2019).
30
Gaia é a personificação, na mitologia grega, da Terra e de sua potência geradora de si. Aqui a tomamos como
sinônimo de natureza pura.
73
natureza a ser esculpida a partir da energia proveniente do hedonismo natural. Dessa forma, a
nosso ver, o hedonismo não é uma formulação tautológica, conforme a crítica que André
Comte-Sponville lhe faz31, uma vez que o prazer universal, considerado em seu estado de
natureza, já não terá o mesmo estatuto, a mesma condição original, pois já será outra coisa
após um trabalho de redirecionamento e condicionamento promovido pela inteligência
humana. Noutros termos: qualquer satisfação de desejos, portanto qualquer prazer, não será
um bem para um filósofo hedonista se não for lapidado, incessantemente trabalhado,
justificado e fundamentado na sua razão mais que nos seus instintos, ainda que em harmonia
com estes. Para uma operação dessa ordem não há fórmula universal, mas apenas decisões
circunstanciais e únicas. Ao contrário da moral, a ética não é universalizável – será preciso
voltar a esse tema mais tarde.
Eis, então, uma primeira distinção fundamental: o filósofo hedonista não busca o
prazer puro como tal. Para isso ele precisaria estar nas savanas e viver como “um bom
selvagem”, e não nas cidades como um indivíduo integrado à civilização. Todavia, o prazer é
por ele querido, não rejeitado. Ocorre que, antes de sua realização, o prazer é “processado” a
fim de produzir efeitos éticos determinados pelo pensamento racional. O filósofo não vive (à
maneira de muitos, senão da maioria) o prazer pelo prazer, como que entregue ao puro
impulso mamífero de sobrevivência, mas somente sob certas modalidades criadas, desejadas e
determinadas por sua consciência e por seu gênio. Só então ele se permite viver a sensação
hedônica incitada por seu corpo. Cumpre, portanto, à sua razão e à sua cultura a tarefa de
esculpir o seu prazer. Em suma: é preciso haver intencionalidade, artifício, cálculo e projeto
ético, caso contrário não existe hedonismo filosófico. De resto, mesmo os mais libertinos
dentre os filósofos vivificaram seus prazeres com razões que não são exatamente
unanimidades para o grosso da sociedade. Isso é muito diferente do que ocorre hoje, por
exemplo, em nossas sociedades dominadas pela ideologia capitalista.
Pois o capitalismo, a fim de manter sua base de sustentação, vale dizer, o consumismo,
explora com mestria o princípio de prazer dos seres humanos, sem dúvida, mas para dar cabo
dessa operação precisa alienar os indivíduos de seus desejos potencialmente próprios com a
intenção de submetê-los às suas regras. Assim, o que capitalismo quer e consegue promover é
a uniformização dos desejos e, por conseguinte, a padronização dos comportamentos
humanos. Sua sobrevivência depende disso. Eis porque, antes de analisarmos, no próximo
capítulo, como dois sábios da Antiguidade grega, Aristipo de Cirene e Epicuro de Samos,
31
Devido à universalidade do princípio de prazer, Comte-Sponville (2011, p. 273) diz ainda que “o hedonismo é
tão irrefutável quanto insatisfatório: escapa do paradoxo apenas para cair na tautologia”.
74
Em nossa época impulsionada por três revoluções industriais impera realmente uma
espécie de ideal coletivo ou ideologia (no sentido marxista) manipuladora das massas sociais.
Através dela se explora uma ânsia humana não lapidada por prazer e felicidade onde o
hedonismo mais primitivo inerente a cada indivíduo desde o nascimento é utilizado como
puro sistema de recompensas a partir do qual o capitalismo produz necessidades antes
inexistentes e pelas quais consegue submeter uma multidão de seres humanos à sua lógica
alienante de consumo. 32 É por isso que se diz que nossa sociedade mercantil é hedonista. Vá
lá, concordemos com o uso da expressão, mas tenhamos em mente que nesse caso seu sentido
é o mais trivial possível. E podemos aqui subscrever o que o professor de filosofia Fernando
Muniz afirma em seu livro Prazeres ilimitados: como transformamos os ideais gregos numa
busca obsessiva pela satisfação dos desejos, onde ele escreve que o que se chama de prazer
atualmente é, na verdade, “a excitação que precede a aquisição” de um bem de consumo,
portanto um “prazer negativo que antecipa o preenchimento de uma falta” (MUNIZ, 2015, p.
170) artificialmente criada no âmbito de uma cultura de formação de consumidores. Novas
necessidades artificiais surgem a cada dia e, com elas, inúmeras possibilidades de satisfações
superficiais servem de iscas para capturar os desejos humanos. A energia hedônica é assim
32
Ver sobre isso o interessante documentário Minimalism, do diretor Matt D’Avella, onde aos três minutos de
filme já se fala que os “desejos delirantes” e o consumismo louco dos norte-americanos têm suas raízes na
biologia humana.
75
33
Sobre o ato de comprar ser uma fonte de prazer com o potencial de se tornar um profundo desprazer, eis
algumas sugestões de leitura na internet:
https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/comprar-causa-bem-estar-por-ser-fonte-de-prazer-explica-
psicologo/; https://dinheirama.com/entenda-relacao-prazer-consumo-fuja-dela/; https://ocp.news/geral/impulso-
por-compras-pode-se-tornar-doenca; https://www.gazetadopovo.com.br/viver-bem/comportamento/quando-
comprar-ja-nao-e-prazer/. Acesso em: 09 abr. 2019.
Sobre a oniomania, ver: https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/oniomania-quando-as-compras-viram-
doenca/; e http://www.usp.br/espacoaberto/arquivo/2001/espaco07abr/editorias/comportamento.htm. Acesso em:
30 mai. 2019. A edição de 30 de maio de 2019 do JCI (Telejornal da TV Cultura) traz uma matéria especial
sobre o tema. O programa está disponível no YouTube em: https://www.youtube.com/watch?v=1E65CRpSOmc.
Acesso em: 30 mai. 2019.
76
que os gregos já alertavam: uma vez que “o prazer não é objeto de reflexão preferencial em
nosso mundo atual” (Ibid., p. 16), e como apenas aparentemente, de maneira vaga e
imprecisa, sabemos o que é o prazer, como pretender alcançá-lo? É o mesmo que aspirar à
felicidade sem saber no que consiste uma vida feliz. Abrir mão da reflexão para confiar
inocentemente nos instintos no âmbito de uma cultura de massa impregnada de publicidade
não é nem um pouco razoável e, como vemos diariamente, nunca produz resultados aceitáveis
do ponto de vista ético. Persegue-se, então, mas às cegas, um objeto desconhecido, e esta é a
razão pela qual Muniz afirma que “vivemos em um mundo que, provavelmente, ao contrário
do que costumamos pensar, perdeu o contato com o prazer”, pois “não se pergunta mais sobre
o que ele é nem como ou por que devemos buscá-lo” (Ibid., p.16-17). De fato, que prazer
perseguir quando não se sabe o que ele é? Faltam aos contemporâneos os fundamentos
teóricos sobre a matéria mesma de sua busca. Faltam-lhes, portanto, as filosofias hedonistas.
Daí que, para Muniz, esse prazer o qual se ignora, mas que no entanto
compulsivamente se vai atrás, culmina necessariamente num estranho paradoxo: “Não somos
hedonistas desenfreados: somos, inconscientemente, anti-hedonistas” (Ibid., p. 17), uma vez
que essa busca às escuras por um objeto cujo delineamento se ignora impossibilita que se
alcance o que quer que seja senão frustrações e descontentamentos. Busca-se
desesperadamente prazer e felicidade, mas essa busca mesma produz apenas vazio existencial
porquanto nos falta o aparato conceitual capaz de orientá-la. Assim, “o que nossa sociedade
chama de prazer é, na verdade, compulsão e voracidade” (Ibid.). Compulsão e voracidade,
porém, dizem respeito às formas grosseiras e animalescas de lidar com os prazeres, formas
estas que persistem tanto quanto seu objeto, o gozo grosseiro, ao passo que o ser humano é
capaz de ir além dessa condição para fruir de maneira verdadeiramente superior. Muniz
apenas expressa de outro modo o eterno problema entre o hedonismo instintivo, natural e
bruto, e o hedonismo cultural lapidado por uma educação filosófica tal como os gregos
preconizavam. Ele tem razão quando afirma que o mundo atual rompeu os laços com o prazer
porque perdeu o verdadeiro significado que os gregos atribuíam à fruição em nossas vidas, e
nisso há uma explícita convergência entre ele e Onfray: para ambos, o que se perdeu no
Ocidente da civilização industrial foi a possibilidade de obter o prazer autêntico. Cultivam-se,
ao invés disso, apenas formas estúpidas de lidar com esse afeto.
Ser anti-hedonista é, nesse sentido, ser hedonista de maneira compulsiva e irracional,
qual um tolo ou um animal. Evidência maior disso são os hábitos que adquirimos enquanto
consumidores pós-modernos onde, inconscientemente imersos em nosso frenesi, nos
assemelhamos a mariposas incapazes de se darem conta de que seu impulso natural está sendo
77
desviado da rota originária e que precisamente por isso se entregam, cegamente e até a morte,
a uma luz artificial a qual não resistem à força de atração. Em vez de fazerem uso tão só da
luz lunar como guia natural para sua sobrevivência ou para uma fruição que não acarrete
degeneração, as mariposas são ludibriadas na raiz de seus impulsos por uma luz artificial
intensa, porém mortal. O mesmo ocorre conosco: desconhecendo a verdadeira natureza e
função biológica do prazer em nossos corpos e a implicação disso em questões éticas, nos
deixamos levar, ofuscados como as mariposas, pelas armadilhas do consumismo provedor de
um oceano de prazeres artificiais apesar das dores e desprazeres que ao fim engendram. O
ardil nunca é visto como tal e, assim, continuamos a nos submeter a um jogo existencial que
faz com que o humano permaneça inapto e entregue à própria sorte na lida com sua
necessidade de gozo.
Não obstante, é na contramão desse cenário que Onfray deseja para a palavra “prazer”
uma “dignidade” que ela ainda não possui (ONFRAY, 2010, p. 28). Por isso sua persistência
na “trilha teórica e existencial” (Ibid., p. 29) do hedonismo que, apesar de todos os equívocos,
representa uma visão filosófica do mundo (Ibid.) digna desse nome. O conjunto de seus
escritos, aliás, reflete esse esforço teórico de um trabalho de depuração do hedonismo
autêntico o qual ele distingue e opõe muito decisivamente à versão vulgar e grosseira do
hedonismo produzido por um capitalismo hoje globalizado. Desse modo, uma crítica
onfrayriana ao neoliberalismo aparece, por exemplo, em algumas páginas chaves escritas em
A arte de ter prazer sob a inspiração do frunkfurtiano Herbert Marcuse (1898-1979),
considerado por Onfray um freudiano-marxista (1999a, p. 299). Nessa crítica, o que está em
questão é a relação de dependência entre prazer e felicidade ou, para adiantar uma ideia a ser
logo examinada, o hedonismo é algo que necessariamente está vinculado ao eudemonismo em
virtude de a felicidade resultar do conjunto dos prazeres que, por sua vez, conduzem à
felicidade. E qual é o ideal que a nossa sociedade mercantil e consumista alimenta no
imaginário coletivo? Precisamente o ideal eudemonista, ou seja, a ideia de que a felicidade
pode ser obtida – contanto que se possa comprá-la.
Não por acaso a máquina capitalista neoliberal é tão bem sucedida em arregimentar
soldados voluntários para a sua causa ideológica: é que ela promete ao sujeito, de uma
maneira sofisticadamente profética, um futuro pleno de uma felicidade proporcional ao seu
esforço e mérito individual, ou seja, uma felicidade condicionada ao grau de subserviência a
que uma pessoa se entrega através do trabalho e de sua contribuição ao que acredita ser o
único sistema de organização social capaz de garantir sua salvação. Para sinalizar a
efetividade dessa promessa, o sistema primeiramente alivia a fome do trabalhador e outras
78
34
Essa dependência econômica até mesmo para a mínima sobrevivência é incompatível com a liberdade humana.
Por essa razão Erich Fromm, propondo a ideia de uma lei que garantisse uma renda fixa mínima a todas as
pessoas, estejam elas empregadas ou não, ressaltou que “o reino da liberdade pessoal seria imensamente
ampliado” (FROMM, 2014, p. 184) com essa medida porque faria com que ninguém fosse economicamente
dependente de outra pessoa, especialmente de um patrão. “A renda anual garantida”, escreve Fromm, “garantiria
verdadeira liberdade e independência”, mas por isso mesmo é algo “inaceitável a qualquer sistema calcado na
exploração e controle” (Ibid., p. 185) das pessoas, como no caso do sistema capitalista.
35
Que como bem lembra André Comte-Sponville (2011, p. 599), “é uma atividade cansativa e aborrecida, que
realizamos tendo em vista outra coisa” (o poder de compra proporcionado pelo salário, por exemplo), já que ele
nunca é um fim em si, mas apenas um meio. Daí que “o trabalho, em si mesmo, não vale nada”, e essa é a razão
pela qual se paga por ele: o trabalho não tem “um valor”, já “que tem um preço” (Ibid.). Ao trabalho, que nossa
sociedade capitalista toma cinicamente como um valor em si, é sempre preferível o lazer, a liberdade e o ócio
nos sentidos que os antigos reservavam a estas palavras, a saber, como apropriação e cultivo do “tempo livre”
para si mesmo, um tempo livre “que só serve para viver” e que “não é devorado pelo trabalho” (Ibid., p. 340).
79
36
A propósito, Paul Lafargue (1842-1911), genro de Karl Marx, disse que a mais “estranha loucura” que o
capitalismo conseguiu produzir sobre as classes trabalhadoras é precisamente a loucura que “consiste no amor ao
trabalho”, essa “paixão moribunda” pela qual os indivíduos se entregam ao ofício “até o esgotamento” de suas
“forças vitais” (LAFARGUE, 2012, p. 13).
37
Essa é a tese central do livro Sociedade excitada: filosofia da sensação, do filósofo alemão Christoph Türcke.
Para Türcke, a sociedade contemporânea vive em um estado de hiperexcitação provocado pelo excesso de
estímulos audiovisuais que são aplicados nas pessoas como se fossem pequenas injeções de adrenalina (Cf.
TÜRCKE, 2010).
38
Claudio Szynkier é crítico e pesquisador de arte. A frase citada encontra-se em um artigo (sem título)
publicado na Folha de São e disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/amp/ilustrissima/2019/01/bolsonaro-
e-consequencia-de-atrofia-no-imaginario-brasileiro-diz-critico.shtml. Acesso em: 12 abr. 2019.
80
pode ser a alienação que estava em seu núcleo original” (DEBORD, 2017, § 32, p. 48).
Debord denuncia aqui a expansão máxima da alienação da existência humana mediada por
imagens que difundem a lógica do capitalismo a todas as esferas da vida pública e privada.
Para isso, todos os meios de comunicação de massa como o cinema, as propagandas, as
revistas, os telejornais, as rádios e as telenovelas, também a música e, hoje, as redes sociais e
as igrejas evangélicas são úteis. A ideologia do trabalho enquanto culto ao trabalho, por
exemplo, nunca é questionada, mas, ao contrário, é sempre celebrada mediante a imagem
típica do “homem de bem” e “pai de família” que através do trabalho cumpre seu dever social
e, em troca, conquista sua dignidade cidadã, isto é, seu status de consumidor. Uma tal imagem
se tornou sacrossanta e seu poder simbólico é tão forte que cada um está assim predestinado a
se tornar trabalhador para poder ser também consumidor. A própria “potência” da vida, como
dito, passa a ser medida não por ela mesma, mas segundo o “poder de compra” do sujeito,
portanto por sua dependência em relação ao dinheiro e às coisas que através de sua posse ele
consegue adquirir.
Michel Onfray chama a atenção para as implicações éticas e hedonistas desse cenário
no qual os desejos e impulsos espontâneos dos indivíduos lhes são subtraídos desde a raiz
para que, em seu lugar, prevaleçam padrões sociais convenientemente aceitáveis. Quando “a
alienação está em seu apogeu, queremos o desejo que nos é sugerido” (ONFRAY, 1999a, p.
300) em detrimento de nossos próprios desejos, para sempre abandonados. Assim:
Marx e Lafargue acertaram em cheio quando apontaram aspectos religiosos por trás do
capitalismo, como no caso do fetiche dos consumidores por suas mercadorias. O professor
Fernando Muniz lembra, em seu Prazeres ilimitados, que “a neurociência tem demonstrado,
por meio do escaneamento do cérebro, que certos produtos causam a mesma resposta neural
que as imagens de santos no cérebro de religiosos” (MUNIZ, 2015, p. 164). Isso significa que
“a contemplação de um novo modelo de iPhone e da imagem do Cristo crucificado são
equivalentes em termos de reação neural”, o que “explica a veneração, as peregrinações e os
sacrifícios que os consumidores fiéis se dispõem a fazer para obter um novo modelo que está
prestes a se tornar obsoleto” (Ibid.). Quanto à produção de desejos uniformes maciçamente
sugeridos, uma das mais recentes técnicas a favor do capitalismo leva o nome de
83
39
Ao contrário do que escreve Erich Fromm em Ter ou Ser?, que com toda razão critica o hedonismo vulgar,
devemos dizer, a despeito de todas as distorções e deturpações promovidas pela sociedade moderna, que para
Onfray a questão de se o prazer pode ser uma das respostas fundamentais – e talvez a resposta fundamental –
para “o problema da existência humana” (Cf. FROMM, 2014, p. 27) permanece obviamente válida devido a essa
oposição entre os hedonismos vulgar e autêntico. Para Fromm, que reduz tudo ao hedonismo ruim, a resposta é
negativa (Ibid.).
84
Mas voltemos a um ponto de interesse central o qual foi apenas aludido no tópico
anterior, mas não devidamente desenvolvido, a saber, a distinção conceitual entre hedonismo
e eudemonismo, ou, por outras palavras, a diferença filosófica entre as noções de prazer e de
felicidade. Eis aqui um jogo de definições um tanto problemático com o qual nos deparamos
frequentemente. Com efeito, a consulta de qualquer bom dicionário ou manual de filosofia irá
oferecer definições distintas para cada um desses termos. Assim, do lado do hedonismo temos
o prazer concebido como o bem a que todo homem e cada mulher deve buscar como ideal
motivador da conduta ética. Já o eudemonismo, por sua vez, diz respeito à ideia de felicidade
entendida como sinônimo de bem-estar e serenidade, objetivos a que deve visar a ação moral
virtuosa. As duas expressões pertencem ao vocabulário filosófico e possuem significados
próprios e independentes, de modo que o prazer e a felicidade parecem realmente não dar
conta, indistintamente, das “mesmas situações”, “emoções” e estados “físicos e psíquicos”
(ONFRAY, 2008, p. 45): à palavra prazer imediatamente ligamos os sentidos a um estado de
satisfação do corpo em relação a um desejo ou à causa de determinada sensação prazerosa; à
felicidade associamos o estado de espírito de quem se encontra tranquilo, imperturbável,
sereno e em paz consigo mesmo. Pode-se ainda dizer que está feliz quem se encontra alegre
ou contente, porém costuma-se dissociar dessa condição o sentimento de prazer.
Não obstante, Michel Onfray vê o prazer e a felicidade menos como dois mundos
conceituais distintos ou como dois estados do corpo separados e independentes um do outro
do que como duas formas de expressar uma única e mesma realidade (Ibid.). De fato, como
pensar num estado de felicidade que exclua o prazer ligado à satisfação mesma de estar feliz?
É difícil dissociar uma coisa da outra e, observa Onfray, uma tal distinção implica em
incongruência. Se determinados tipos ou fontes de prazeres podem gerar sofrimento após sua
fruição (o consumo ou o abuso de certas drogas, por exemplo), e se nesse caso pode-se
apontar uma separação entre prazer e felicidade, por outro lado é difícil ascender a esta sem
aquele. Certos prazeres, se bem fruídos, conduzem diretamente à felicidade e à serenidade
como que por uma porta de entrada principal que seria difícil acessar sem as chaves do júbilo.
Nesse sentido podemos afirmar que a felicidade não é senão um prazer mais ameno e mais
duradouro, pois a verdadeira diferença entre o prazer e a felicidade encontra-se mais na ordem
dos graus de intensidade do que numa suposta natureza exclusiva e inerente a cada um desses
estados de espírito. Ou seja, entre ambos temos mais uma gradação harmônica composta com
picos mais extremos aqui e ali do que dois mundos independentes ou mesmo, como querem
alguns, incompatíveis entre si.
86
Esses picos de oscilação, todavia, são mais que do suficientes para marcar diferenças
significativas da experiência que envolve ambos os sentimentos. Com efeito, Onfray define o
prazer como “uma sensação bastante violenta para que provoque um curto-circuito da
consciência”, quer dizer, “no momento do gozo, há apenas ele e não há lugar para a razão, a
inteligência ou o trabalho intelectual útil para saber que se vive nesse momento emocional
específico” (Ibid., p. 46). Significa afirmar que, em virtude de sua intensidade máxima, o
prazer se apodera do “sujeito emocionado” (Ibid.), pois a força de certos prazeres é de tal
ordem que a consciência é anulada por um breve instante (Ibid.). Nesse gozo puro vive-se a
experiência de ser dominado pela força hedonística da natureza. De certo modo e em certos
casos, experimenta-se uma inconsciência resultante da consciência alterada de que Baudelaire
dá um testemunho poético em Paraísos artificiais. Todavia, não deixa de ser perigoso brincar
nos arredores desse abismo. Daí a necessidade de um trabalho seletivo da razão sobre os tipos
e as fontes dos gozos antes de entregar o organismo a uma fruição muito aguda visto que,
durante esta, não será possível qualquer escolha, e depois será, certamente, tarde demais.
Como escreve D’Holbach, “os prazeres mais vivos são comumente os menos duradouros”, no
entanto são os que “produzem as comoções mais violentas no organismo humano; de onde se
segue que um homem sábio deve ser econômico com eles, visando à sua própria conservação”
(HOLBACH, 2014, p. 17).
Quanto à felicidade, esta se encontra, explica Onfray, “a montante ou a jusante”, ou
seja, “antes do prazer esperado ou depois daquele que se teve” (ONFRAY, 2008, p. 46), mas
sempre a ele ligado. A diferença está em que ela, a felicidade, deve sua manifestação
emocional à consciência, isto é, ao fato de que toda felicidade é um estado psicológico
originário de um reconhecimento lúcido e soberano de si mesma. Quer dizer, todo indivíduo
feliz não tem dúvida de que o é e que assim se encontra – ainda que, como vimos na crítica ao
consumismo fomentado pelo capitalismo, exista uma perversão eudemonista, vale dizer, a
felicidade ilusória e enganosa a qual muitos se entregam. “O estado de felicidade”, observa o
nosso autor, é naturalmente “menos violento que o de prazer” em virtude de invocar “a
doçura, a paz, a serenidade, a calma aferentes às certezas de que um contentamento alegre
ocorrerá ou acaba de ocorrer” (Ibid.). A felicidade é, assim, dependente da mais vívida
lembrança de um prazer fruído recentemente e cuja satisfação, ainda quente no corpo, se faz
sentir na forma de um estado físico e psicológico pleno de uma alegria serena. De modo
87
40
Eudaimonía (εὐδαιμονία) é o termo grego para felicidade (Cf. SILVA, 2018, p. 129).
88
interdependentes, o cristianismo separa radicalmente essas duas instâncias e faz a vida feliz
depender da dor de existir.
Essa contaminação cristã, todavia, não atinge o hedonismo professado por Michel
Onfray porque ele se inspira em um tempo pré-cristão, mas precisamente no helenismo grego,
para poder pensar uma ética do prazer digna do nome. É da ética grega, portanto, que ele parte
e esta é, essencialmente, uma ética eudemonista. Ocorre, porém, que eleger a felicidade como
meta nos aproxima igualmente do prazer, e é nesta aproximação que Onfray insiste em As
sabedorias antigas, obra na qual inicia sua história da filosofia na perspectiva do hedonismo e
onde lemos a seguinte ideia: a de que “a ética grega é” essencialmente “eudemonista”, pois
sejam quais forem as escolas, elas convidam o homem que pratica a filosofia
a se desvencilhar do que impede sua felicidade, a trabalhar seus desejos para
rarefazê-los e torná-los inofensivos, a se desfazer de todas as amarras que
dificultam e até impossibilitam um trabalho de purificação de si mesmo. O
propósito é a autonomia, a independência, a ausência de sofrimento, de
problemas, a existência feliz e a vida filosófica [grifo nosso] que a permita.
Os exercícios espirituais, as reflexões, os diálogos, as meditações, as
relações de mestre com discípulo, tudo isso visa a construção de uma
subjetividade radiosa, solar, independente e livre. E da fabricação dessa
individualidade nasce um prazer, o prazer obtido consigo mesmo. O
eudemonismo, então, possibilita o hedonismo [grifo nosso] – definido pela
capacidade de desfrutar de si como um ser em paz consigo mesmo, com o
mundo e com os outros (Ibid., p. 47).
Onfray fala aqui de um prazer que emerge da felicidade inerente a uma arte de viver e
de saber desfrutar de si enquanto individualidade bem constituída, algo que remete à temática
do sábio que se basta a si mesmo e que é uma constante na ética filosófica antiga. Contudo,
não se trata apenas de uma questão de parentesco: o eudemonismo, aponta ele, é condição de
possibilidade para o hedonismo, assim como o inverso é ainda mais verdadeiro visto que o
filósofo hedonista deseja, precisamente, que o conjunto de seus prazeres potencialize sua vida
e a dinamize movimentando-a, porém num grau maior do que poderia admitir um
eudemonista de profissão convencido de que a calmaria ataráxica lhe é suficiente. É assim
entre os estoicos, por exemplo. No entanto, mesmo os mestres da ética da virtude austera
desfrutam, em qualquer grau que seja, do prazer contra o qual estão sempre armados, pois o
momento mesmo em que se realiza sua ação virtuosa é gerador de um inegável júbilo –
lembremos aqui a sentença de Montaigne já mencionada: “Na própria virtude o fim último a
89
41
O prazer parece mesmo estar por trás de toda ação virtuosa interpretada como um fim em si mesma e
desprovida de qualquer interesse pessoal. É o que apontam estudos científicos recentes segundo os quais atos de
cooperação social ativam “regiões cerebrais ligadas à liberação de dopamina e aos comportamentos de prazer,
sugerindo, curiosamente, que a virtude é a sua própria recompensa” (DAMÁSIO, 2004, p. 162-163). A intuição
de Montaigne estava correta e, de fato, quem, sendo virtuoso, não sente uma pontinha de júbilo ao praticar
cotidianamente a sua virtude? Também D’Holbach escreveu algo no sentido de desmistificar o altruísmo puro,
uma coisa que não existe, pois “o homem virtuoso desfruta dentro de si mesmo do bem que ele faz aos outros e
se nutre agradavelmente da ideia de ser amado por isso” (HOLBACH, 2014, p. 18). O mundo seria um lugar
melhor se mais indivíduos descobrissem o prazer que há em ser virtuoso.
90
corporais se tornam inevitáveis: é que desprezar o corpo deixa de ter qualquer sentido quando
se constata que o corpo é o verdadeiro ser que tanto se buscava intelectualmente alhures. Ou
seja, tudo depende do corpo e nenhuma apreensão da realidade é possível sem ele.
Para além de sua física pioneira, o que talvez já fosse suficiente para justificar o nome
de Leucipo no registro historiográfico como o primeiro filósofo hedonista do Ocidente,
Onfray considera ainda a existência da expressão “alegria autêntica” no corpus do pensador
pré-socrático. Com efeito, segundo o nosso autor, a aparição da palavra “alegria” atribuída a
Leucipo encontra-se em um fragmento de Clemente de Alexandria (140-150 – 215 d. C.).
Esse fragmento informa que Lykos, um aristotélico, alude a Leucipo nos seguintes termos:
Lykos teria dito achar, tal como Leucipo,42 que “a alegria autêntica é o propósito da alma e é
obtida na relação e na contemplação das coisas belas” (Cf. Ibid., p. 47). Onfray considera
então a equivalência, no grego, entre os termos kháris e hedoné, respectivamente alegria e
prazer. Segundo ele (que se baseia no dicionário grego/francês de Anatole Bailly), essas
expressões são quase sempre sinônimas em Sófocles, Platão (no Górgias e no Sofista) e em
Plutarco (Ibid., p. 48). Além disso, uma acepção sensual e sexual de kháris aparece na Ilíada
de Homero, tese confirmada por Platão e Xenofonte (Ibid.). Daí a fazer de Leucipo o primeiro
pensador hedonista da história não deixa de ser uma hipótese arriscada, risco que Onfray
reconhece como tal e o assume (Ibid., p. 39 e 48). É considerando a física de Leucipo e
atribuindo a este filósofo uma ética da alegria que Onfray conclui em favor de um hedonismo
inaugural, “pois como alvo de toda vida bem sucedida”, escreve ele, “pode-se escolher a
alegria, por sua vez parente próxima do prazer” (Ibid.). Quem duvida que o prazer seja
consubstancial a um estado de alegria e que a alegria, por sua vez, envolve a experiência do
prazer?
Todavia, se Leucipo é digno de abrir uma história da filosofia hedonista, o nome de
Aristipo de Cirene é sem dúvida aquele que concentra a quintessência dessa corrente de
pensamento na Antiguidade: a escola cirenaica é aquela que consolida a base teórica e prática
a partir da qual as éticas do prazer serão desenvolvidas e refinadas no decorrer dos séculos.
Com Leucipo e Demócrito surge o fundamento ontológico sobre o qual o hedonismo se
assenta – a física atomista, logo o materialismo, o naturalismo, o empirismo, o sensualismo,
numa palavra, o pensamento da imanência – , mas é certamente com Aristipo, logo seguido de
42
No texto original está grafado “Leucimo”, mas Onfray confirma se tratar de Leucipo porque o fragmento
encontra-se na doxografia leucipiana. Ademais, Jean-Paul Dumont corrobora nesse sentido (ONFRAY, 2008, p.
47).
93
Epicuro, seu herdeiro intelectual, que se dá efetivamente a invenção filosófica que concebe o
prazer como critério e razão para uma vida a propósito.
Advertência aos eruditos: este capítulo é dedicado à explanação dessas duas
tendências fundamentais sobre as quais variam toda ética hedonista, a saber: o cirenaísmo e o
epicurismo. No entanto, cientes de estarmos entrando aqui em um ambiente de discussão
clássica no âmbito da filosofia acadêmica, especialmente no que se refere aos estudos sobre
Epicuro e o epicurismo, salientamos aos especialistas da área que o nosso intento não é o de
nos aprofundarmos na análise teórica de toda a problemática que por ventura envolva um ou
outro conceito cirenaico ou epicurista por nós utilizados. Lemos Aristipo e Epicuro com
cuidado, dedicação e atenção, mas não alimentamos a pretensão de contribuir para discussões
canônicas e, por isso, não nos debruçamos sobre questões de ordem filológica desta ou
daquela ideia apresentada. Este não é o espaço para um estudo mais detido sobre o cirenaísmo
ou sobre o epicurismo. O nosso objetivo é apenas o de cartografar os fundamentos éticos de
ambas as filosofias, pois são elas que estão na origem do hedonismo enquanto tradição do
pensamento. Assim, nos interessamos bem mais por questões práticas como, por exemplo: de
que modo Aristipo e Epicuro concebem o prazer? O que ensinaram que nos possa ser útil para
pensar a felicidade? Como lidaram com os desejos de modo a dominá-los ou mitigá-los? Este
capítulo se justifica porque, ao estudarmos uma ética filosófica hedonista (no caso, a de
Michel Onfray), sentimos a necessidade de voltarmos às suas raízes – algo que o próprio
Onfray faz, e nisso o acompanhamos.
Nos textos de Michel Onfray há sempre uma relação direta entre ética do prazer e vida
filosófica. Ora, que outro móbil seria mais eficaz para a ação que o prazer? O hedonismo é
por excelência uma filosofia prática e seus representantes maiores sempre manifestaram, nos
termos do nosso autor, “um ardor em viver sua filosofia” tanto quanto “em pensar sua vida”
(ONFRAY, 1999a, p. 236). Que prazer mais morno seria o de se contentar com uma teoria do
prazer sem extrair suas provas da concretude da vida cotidiana? O júbilo é para ser vivido
mais que teorizado: deve-se pensar, pois, no intuito de dar vida à letra filosófica na medida
em que texto e discurso são concebidos como ocasiões para engendrar a ação e visar a um
comportamento ético específico. Na verdade, entre os hedonistas não há teoréticos, mas
pensadores pragmáticos preocupados com uma economia dos prazeres. Com eles, a ética se
94
torna “uma arte de viver no cotidiano” e em nada lhes interessa a “ciência absconsa” (Ibid.)
especializada nas abstrações teóricas puras que fazem da vida prática um impasse.
Em A gaia ciência hedonista, capítulo de A arte de ter prazer no qual faz sua primeira
abordagem historiográfica do hedonismo (anos antes do monumental projeto de uma Contra-
história da filosofia), Michel Onfray insiste em frisar que o aspecto prático dessa corrente
filosófica se deve ao fato de o corpo ocupar o centro das inquietações morais dos pensadores
que a representam. Que usos fazer do corpo? “Que liberdades para o desejo que o percorre?
Que soluções para o prazer que brota? Que beatitudes, êxtases, júbilos para a alma que jaz na
matéria, em seu próprio seio?” (Ibid.). Situados à margem da historia oficial da filosofia, os
pensadores hedonistas têm no entanto fornecido respostas concretas a estas questões que se
renovam, continuamente, a cada século e a cada geração. As mais ousadas delas foram
encenadas em uma antiga colônia grega, atual Líbia, por um pensador que fez do corpo um
aliado maior e do riso a melhor companhia de sua prática filosófica.
Pois Aristipo, dito de Cirene e socrático dissidente, é o filósofo da leveza por
excelência. Seu riso diante dos espíritos graves e demasiado sérios é irônico e cômico a um só
tempo. De fato, ele não concebe outra maneira de fornecer suas lições de sabedoria que não
seja através de galhofas, razão pela qual, nos textos em que lhe consagra, Onfray o toma como
“filósofo emblemático do hedonismo” (ONFRAY, 2008, p. 103) e personagem situado no
“meio termo entre o saltimbanco e o vagabundo” (ONFRAY, 1999a, p. 236). Decorre daí que
Aristipo, adorador dos sentidos do corpo, é o discípulo que rompe com o socratismo por não
suportar o excesso de austeridade e rigor de uma racionalidade sem corpo. Em contrapartida,
Platão, seu exato contemporâneo e igualmente aluno de Sócrates, visa sem dúvida suas teses
quando argumenta contra o prazer apesar de, não se sabe por que, tomar sempre o cuidado de
ocultar o nome de Aristipo em seus diálogos – salvo por uma única exceção, pois no Fédon o
“socrático maior” registra a ausência do filósofo dito “socrático menor” entre aqueles que
estiveram ao lado do mestre, Sócrates, em seus momentos finais de vida (PLATÃO, 2004, p.
119).
Ora, tal desprezo tem sua justificativa, visto que Aristipo é simplesmente aquele que
abandona o sóbrio traje filosófico para se travestir, se perfumar e dançar num banquete
promovido pelo tirano Dionísio, no qual Platão também se encontra: rindo e dançando com “o
corpo totalmente submerso em panos e tecidos femininos, tudo em meio a incríveis eflúvios
preciosos, pois Aristipo era homem de se perfumar” (ONFRAY, 1999a, p. 237). Eis como a
alegria pode ser sinônimo de transgressão. Onfray convida-nos até mesmo a imaginarmos o
impacto da cena sobre o homem grego médio “orgulhoso de sua virilidade acompanhada de
95
uma túnica de pano áspero e de um nariz alérgico aos belos e bons odores” (Ibid.). Platão, o
sério, cita Eurípedes para recusar o pedido de Dionísio para que se junte aos dançarinos
vestidos à moda das mulheres em sua bacanal:43 “Não poderei vestir um traje feminino”,
recita o autor de O banquete (DL, 2014, II, 78, p. 67). Aristipo, por sua vez, cita o mesmo
poeta trágico grego para justificar sua adesão às roupas de púrpura e às demais extravagâncias
festivas: “Mesmo nas festas báquicas quem for puro não se corromperá” (Ibid.). Temos aqui
representados nesta anedota duas visões do mundo cujo confronto atravessa os séculos e a
história das ideias até nossos dias: ascetismo contra hedonismo.
A virada de casaca momentânea de Aristipo não é uma provocação gratuita, mas sim a
oportunidade legítima de rir, filosofar, agir e se divertir, tudo isso a um só e mesmo tempo
visto que a verdade ligada à anedota é a de que a inversão do traje funciona como ocasião
para praticar uma “inversão de valores” morais (ONFRAY, 1999a, p. 237) passível de
demonstrar a completa arbitrariedade destes. Descendente dos sofistas, o relativismo ético
reivindicado por Aristipo causa confusão, desconstrói padrões de gêneros, endossa a
vestimenta feminina em um mundo falocrático para provar que nada é certo ou errado por
natureza, mas somente por convenção – nada mais atual em tempos de extremismo
conservador reacionário como são os nossos. Como diz Onfray a respeito, “é com as histórias
mais antigas que se fazem as melhores sabedorias” (Ibid.).
Mas isso parece não valer nada para a tradição universitária, que faz de conta que
Aristipo e os cirenaicos nunca existiram. Para além do método subversivo e provocador,
raramente considerado, o desprezo que cerca a figura e o pensamento de Aristipo certamente
se relaciona com a problemática do prazer porquanto, para o mundo da erudição pesada, a
filosofia parece ser algo incompatível com o riso e com o gozo. Pensador hedonista e filosofia
do prazer, eis os termos que os filósofos profissionais consideram contraditórios em si
mesmos. Nesse sentido, Onfray observa que eles parecem supor que a disciplina “obrigue ao
ascetismo, sujeite à austeridade, e que não podemos invocar legitimamente seu universo
asséptico se rimos, bebemos, comemos, amamos, dançamos, cantamos – simplesmente
quando vivemos...” (ONFRAY, 2008, p. 103).
O que mais esperar considerando que a tradição acadêmico/universitária foi moldada
como uma instituição cristã? A despeito de sua laicização recente, em filosofia a Universidade
continua o templo do pensamento idealista e do método escolástico oriundos da tradição
patrística onde, compreende-se, o hedonismo nunca teve muito espaço. Como cristianismo e
43
Bacanal é a festa que os antigos promoviam em honra de Baco, deus do vinho, o mesmo que orgia, que é a
solenidade em honra de Dioniso, para os gregos, ou de Baco, para os romanos.
96
prazer não combinam muito bem, a tradição repete o programa que lhe é conveniente e repele
o que não lhe é afim numa espécie de tropismo anti-hedonista. No caso, Aristipo “é o filósofo
do prazer e, como tal, não se pode perder tempo procurando nele matéria para reflexão”
(Ibid.). Sendo assim, em sua história alternativa da filosofia feita precisamente a partir da
perspectiva hedonista, Onfray não apenas revoluciona o ensino da disciplina na medida em
que apresenta diversos pensadores pouco ou jamais estudados nas universidades como
promove, igualmente, certa purificação do ambiente de pesquisa: de fato, ele faz sair a
austeridade gratuita, o enfado e a chatice desnecessários para fazer entrar um mosaico de
pensadores que celebram a alegria, a volúpia e o prazer, afetos que, por sua vez, alimentam o
esforço que o trabalho intelectual exige fazendo com que, de volta, este proporcione ainda
mais prazer, um prazer de cultura e de erudição alternativas. Assim, em seus textos de
apresentação da tradição hedonista Michel Onfray fomenta uma verdadeira libido sciendi.44
Montaigne, que denuncia essa tendência muito antiga de atribuir à filosofia “um
semblante carrancudo, sobranceiro e terrível” (MONTAIGNE, 2002, I, 26, p. 240), questiona:
“Quem a mascarou com esse falso semblante, lívido e medonho?” (Ibid.). A pergunta, irônica,
carrega em si mesma a resposta: “A escola” (Ibid., p. 241), isto é, a Escolástica cristã contra a
qual Montaigne pôde se voltar graças a recepção que fez em sua própria época da filosofia
antiga. Se Montaigne não tivesse tomado contato com Plutarco, Sócrates, Demócrito,
Diógenes de Sinope, Pirro, Epicuro, Aristipo, Sêneca e Lucrécio dificilmente poderia afirmar
que nada há de “mais alegre, mais jovial, mais vivaz e quase digo brincalhão” que a filosofia
(Ibid., p. 240). Com efeito, é preciso ter conhecido o outro lado da disciplina para poder
concluir que “ela só prega festas e bons momentos” (Ibid.) e que “a marca mais expressa da
sabedoria” é um “um júbilo constante” (Ibid., p. 241). Por isso também o autor dos Ensaios
afirma ser a virtude o objetivo maior da prática filosófica, com a diferença de que para ele a
virtude, ao contrário do que pregam os escolásticos, não é algo que está “plantada no topo de
um monte abrupto, escarpado e inacessível” (Ibid.). Ela está, como os antigos já haviam
provado,
alojada em uma bela planície fértil e florescente, de onde ela vê bem abaixo
de si todas as coisas; mas que se pode chegar lá, caso se conheça o caminho,
por estradas umbrosas, relvosas e suavemente perfumadas, prazerosamente e
por uma encosta fácil e lisa, como é a das abóbadas celestes (Ibid.).
44
Libido sciendi: expressão latina que significa desejo por conhecimento ou o prazer de estudar.
97
De modo que podemos conceber a filosofia como uma disciplina para a vida que
conduz à virtude pela estrada do prazer, desde que se opte por seguir pela vereda do júbilo.
Como dissemos acima citando o próprio Montaigne, o prazer é como um bem supremo
natural e o fim último da própria virtude é a realização desse júbilo no plano da ética ou,
noutros termos, da cultura. Virtude e prazer são inseparáveis no hedonismo. Assim, como que
dando provas de seu forte parentesco com Aristipo e Epicuro, Montaigne diz, de forma
emblemática, bela e provocativa, que a virtude é “a mãe nutriz dos prazeres humanos” porque,
Voltemos a Aristipo. O que é, então, para esse filósofo, o prazer? De início, sua
definição se relaciona tão fortemente com o tempo presente que o imperativo categórico
hedonista de um cirenaico não poderia ser senão a célebre sentença latina eternizada por
Horácio: Carpe diem, ou seja, “colha o dia”, “aproveite o momento”, “não subestime os
poderes de Cronos, esse impiedoso deus do tempo” e outras variações de sentido que
convergem, todas elas, para o incitamento de que se deve aproveitar o prazer que se oferece
na imediatez dos instantes que compõem o tempo de vida humana, esse tempo sempre urgente
porque fugaz. O hedonismo é aqui considerado a partir de um de seus principais aspectos, a
saber, o de uma arte de lidar com os momentos únicos da vida.
A maior parte dos humanos, desprovida dessa arte, se inquieta com a nostalgia do
passado ou se angustia com expectativas futuras gerando sobre si um contínuo desprazer.
Sábio hedonista, Aristipo não move uma palha, não faz o mínimo esforço para buscar um
prazer que não esteja acessível de imediato (DL, 2014, II, 66, p. 64). Segundo nos conta
Diógenes Laércio, ele nega até mesmo que haja prazer na recordação de prazeres passados
(uma ideia que Epicuro defenderá): “De fato, o movimento da alma se exaure com o tempo”
(Ibid., II, 90, p. 69), por isso uma lembrança condenada a se tornar cada vez mais vaga nem
de longe pode ser comparada à vivacidade impressa na carne por um prazer efetivo e em ato.
Eis porque Aristipo defende que o gozo verdadeiro é somente aquele que se dá no tempo
coincidente com o ápice do movimento responsável por engendrar o prazer no corpo, ou seja,
no instante presente. Daí que, como observa Onfray, “o essencial”, para o cirenaico, “consiste
98
em fruir o instante, em pedir ao presente o que ele pode dar, e nada mais” (2008, p. 118). De
certo modo essa é uma ideia que percorre sem grandes alterações a totalidade das sabedorias
antigas, hedonistas ou não, visto que ela se relaciona com a noção de felicidade, serenidade e
tranquilidade da alma comum a estoicos, pirrônicos, cirenaicos, epicuristas e mesmo a
cínicos. Como ainda diz Onfray, “o pecado pagão consiste em perder o presente” (Ibid.). 45 Na
verdade, apenas com o cristianismo é que o conceito de felicidade, reformulado, se torna
prisioneiro da perspectiva de uma esperança num futuro sempre melhor que o dia de hoje, ou
seja, um futuro post-mortem.
O hedonismo ensina que já existem dores e sofrimentos suficientes a serem
combatidos no momento em que efetivamente se vive. Por conseguinte, é tolice aumentar seu
número com angústias imaginárias ligadas ao ontem e ao amanhã, instâncias cronológicas
inexistentes porquanto apenas o hoje existe verdadeiramente.46 A preocupação maior de
Aristipo reside, assim, no aprimoramento de sua capacidade
Todavia, como o ser humano não escapa inteiramente de uma relação com o seu
passado e com o seu futuro, porquanto apenas os animais ditos irracionais têm o privilégio de
ignorar o que passou e o que está por vir para se concentrarem unicamente no presente, deve-
se, em favor do cirenaísmo, “modular esse princípio”, relativizá-lo um pouco sabendo que se
pode “fazer um uso hedonista do passado ou do futuro” (ONFRAY, 1999a, p. 238). É que a
lembrança ou a expectativa de momentos de fruição se tornam legítimas em virtude da
felicidade que origina e, portanto, a torna compatível com o hedonismo cirenaico. Contudo,
isso só é possível de ser afirmado porque felicidade não é, para Aristipo, o mesmo que prazer.
Não devemos esquecer aqui sua tese principal, qual seja, a de que “só do duro presente trata-
45
Sêneca deu uma forte razão para isso quando escreveu ao seu caro amigo Lucílio que “todo o tempo que
decorreu até ontem é tempo irrecuperável; o próprio dia em que estamos hoje, compartilhamo-lo com a morte”
(SÉNECA, 2018, 24, p. 93). Por isso ele enfatizou ao seu interlocutor o seguinte: “Tu não podes conceber de
quanta importância se reveste para mim cada dia” (Ibid., 6, p. 13).
46
Sêneca, mais uma vez: “Mesmo que seja certo um mal futuro, para quê começar a sofrer antecipadamente?
Logo sofrerás quando ele chegar; por agora, pensa em coisas mais agradáveis. Assim irás aproveitando o teu
tempo: já é uma vantagem!” (SÉNECA, 2018, 13, p. 42).
99
se de extrair a quintessência” (Ibid.), e esta é o prazer, ou seja, o soberano bem que, por sua
vez, não se confunde necessariamente com a ideia de felicidade.
Realmente, os cirenaicos admitem apenas dois estados da alma, a saber, o prazer e a
dor (DL, 2014, II, 86, p. 69), e estes, por sua vez, são concebidos como movimentos: “Sendo
o prazer um movimento suave, e a dor um movimento brusco” (Ibid.). O “fim supremo” que a
natureza impôs a todos os seres vivos é o “movimento calmo que resulta em sensação” (Ibid.,
II, 86, p. 68) agradável, ou seja, em algum tipo de gozo. O prazer é então um dado físico e
uma afecção do corpo desejada pelo conjunto dos seres vivos, que em contrapartida, rechaçam
a dor como uma afecção a ser evitada. Cada indivíduo sente e conhece assim, na própria
carne, “essa oscilação entre o atraente e o repulsivo” (ONFRAY, 1999a, p. 238), vale dizer,
entre o júbilo e a dor. Fornecendo, desse modo, uma definição “dinâmica e positiva” do
prazer Aristipo emprega em sua ética as energias e a vitalidade próprias da natureza para
assim marcar seu favorecimento junto a esse guia existencial que antecede toda cultura. Trata-
se do ideal de viver em conformidade com a natureza, sendo também este, sob perspectivas
diferentes, um ideal comum às filosofias estoicas, epicuristas e, do modo mais escandaloso
possível, cínicas.
Essa confiança na natureza é a razão pela qual os cirenaicos não hierarquizam os
prazeres: um prazer não se distingue de outro, dizem eles, e nenhum prazer é mais intenso que
um terceiro (DL, 2014, II, 87, p. 69). Ou seja, esses filósofos abstraem o prazer de todo e
qualquer contexto valorativo oriundo da sociedade, da moral e da cultura para afirmar seu
valor intrínseco. O prazer vale por si, independente do que pensam dele – donde a ausência de
hierarquização entre os gozos. Assim, o prazer, considerado de per si, pensado isoladamente,
é sempre bom, caso contrário não seria buscado instintivamente por todos. Que dores e
sofrimentos possam resultar de uma experiência de prazer são variáveis consequentes que não
atingem essa verdade primeira de que em si mesmo, enquanto é experimentado, no momento
de sua duração, quando apenas ele existe, um prazer é sempre um prazer, e nada mais. Como
escreve Onfray a respeito, “uma vez que tudo é percepção corporal subjetiva, os gozos, sejam
quais forem suas causas ou modalidades, são apenas modificações fisiológicas da matéria
corporal” (ONFRAY, 1999a, p. 239). Significa dizer que a sensação agradável do movimento
suave próprio do gozo pertence exclusiva e naturalmente ao corpo, e este ignora todo e
qualquer motivo para se abster de sensações agradáveis.
Mas a consciência, todavia, não ignora tais razões, e nem poderia. Se gozar bastasse,
se seguir os instintos e a natureza fosse suficiente, tudo seria mais simples e a ética não teria
sua razão de ser. Como somos um misto de seres biologicamente determinados mas
100
culturalmente desviados da rota natural, a vida se torna mais complexa e, assim, a relação
com o corpo e com os prazeres se torna problemática – mas não problematicamente insolúvel.
Que fique, então, bem entendido: não há gozo sem consciência em Aristipo. Não obstante, há,
em seu pensamento, uma diferença crucial, qual seja: o mestre do hedonismo não padece do
mal produzido pela moral, comum a todas as épocas e que foi denominado por Nietzsche de
“má consciência”. Esta, se não é uma doença, surge, todavia, “como sintoma de que a
vitalidade humana está malsã” (Dicionário Nietzsche, MARTON [Org.], 2016, p. 294).
Ora, a vitalidade cirenaica é elevadíssima e se lixa para os que falam mal dos prazeres
da cama, da boa mesa, da embriaguez do vinho, das cortesãs bem como das boas essências
aromáticas com as quais um homem grego da Antiguidade pode perfumar seu corpo. Fruir
com boa consciência, claro, concordemos, mas isso não significa, para Aristipo, se privar de
um prazer em razão de uma censura moral. Para isso seria necessário sofrer de uma
“vitalidade malsã” porque prisioneira da moralidade. Ao contrário, fruir de todos os prazeres,
sem discriminação, significa, para um cirenaico, um ato de esbanjamento de sua saúde.
Portanto, sem alimentar nenhum pudor, Aristipo entrega à sua carne o que ela pede: fruição,
gozo, satisfação dos desejos, prazer. Que sua vida filosófica seja dedicada a essa causa nada
há de mais subversivo em matéria de sabedoria num ambiente social e intelectual em que
predomina a desconfiança e mesmo a repugnância para com os desejos do corpo. Aristipo,
porém, sai em defesa do prazer de modo radical: para ele, “o gozo vale por aquilo que ele é,
pelo que é, não pelo que permite, além dele” (ONFRAY, 1999a, p. 239). Somente o júbilo é o
fim supremo. Tudo o mais deve ser visto como meio para atingi-lo.
Aristipo entende que o impulso ao prazer é um movimento tão conforme à nossa
constituição orgânica que para ele apenas um espírito pervertido o rejeita (DL, 2014, II, 89, p.
69), o maldiz e desdenha ir ao encontro do gozo. Inversão de valores: pervertido não é quem
vive com ou para o prazer, mas aquele que recusa esse movimento e o culpa pelas mazelas do
mundo que podem até, muitas delas, resultarem de inabilidades no uso dos prazeres, mas
estes, em si mesmos, nunca são um mal, mas sempre um bem. Para um cirenaico não há,
portanto, julgamento moral transcendente previamente estabelecido. Tudo é imanente à
natureza, e esta é uma força cega indiferente aos juízos dos homens e das mulheres acerca do
bem e do mal – que, de resto, são apenas artifícios culturais relativos a si próprios e, por isso,
passíveis de revisões, transgressões ou simplesmente dignos de desprezo por parte do sábio
hedonista. Nessa ordem de ideias, cabe somente ao filósofo, a sós consigo mesmo, formular
os próprios parâmetros éticos – por isso Aristipo afirma que, se todas as leis fossem
revogadas, ainda assim ele continuaria a viver rigorosamente tal como escolheu viver (Ibid.,
101
II, 68, p. 64), pois este é um compromisso e uma das mais fortes vantagens de sua condição
de filósofo. Sendo a retidão ética imprescindível, o hedonista de inspiração cirenaica “é por si
só sua própria lei” (ONFRAY, 1999a, p. 241), e nisso que consiste o radicalismo da ética
aristipiana tida por Onfray como “terrivelmente” subversiva (Ibid.).
Sendo assim, “que não se procure direito natural entre os cirenaicos” (Ibid.), escreve
Onfray, que acrescenta, em tom de advertência para as boas almas, que esses filósofos não
reconhecem “nem mesmo leis culturais” (Ibid.). À maneira dos cínicos, os adeptos de Aristipo
praticam uma liberdade que diríamos incivil, isto é, sem contas a prestar a nenhuma
autoridade, seja ela divina ou humana. De fato, os cirenaicos levam até as últimas
consequências o usufruto de seus próprios juízos absolutamente livres e independentes. O
único critério que seguem, e este é dinâmico, é o de um cálculo hedonista para uso próprio do
qual eles, na condição de filósofos, “são os únicos a deter a receita” (Ibid.). Significa dizer
que os cirenaicos reivindicam um relativismo ético intransigente pelo qual dispensam todo e
qualquer “imperativo social” (Ibid.). Salvo em caso de convergência acidental entre “um
mandamento ético coletivo” e um gozo cirenaico particular (Ibid.), em geral esses filósofos se
distanciam das normas comuns. Será preciso esperar Epicuro para vermos surgir os primeiros
princípios daquilo que se torna, na modernidade, o utilitarismo, ou seja, um hedonismo
preocupado com o social, portanto com a política. Por enquanto, o modelo hedonista é o do
cirenaico e este preconiza um gozo individual porque parte de uma lógica nominalista onde só
o indivíduo é efetivamente considerado.
É dessa perspectiva que se pode conceber, a partir de Aristipo, uma crítica ao Estado, à
Pátria e à Religião, verdadeiras “máquinas de romper gozos, instituições devoradoras de
vitalidades singulares” (Ibid.), portanto coisas que o cirenaísmo permite desprezar. Veremos o
quanto Michel Onfray, em sua defesa da individualidade, persiste nessa atitude de revolta
contra todas as generalidades e instituições “especializadas na absorção das energias
particulares” (Ibid.). Por ora, assinalemos aqui, a propósito de Aristipo, o predomínio dessa
íntima relação entre ética hedonista e pensamento libertário, quando não rebelde, dentro do
contexto da antiguidade grega. Com efeito, o relativismo ético que afronta a pretensa
universalidade da moral (voltaremos a esse tema) remonta às lições do discípulo de
Demócrito, Protágoras de Abdera, sofista dos mais importantes a quem é atribuída a célebre
fórmula “o homem é a medida de todas as coisas” (DL, 2014, IX, 51, p. 264). Tal sentença
102
declara a inexistência de uma moral universal única, natural e absoluta. Ela marca ainda a
origem do perspectivismo cultual reivindicado por Aristipo. Por conseguinte, esse filósofo
não poderia deixar de ser partidário do relativismo ético, um princípio de vida que, como
ressalta Onfray, “será uma constante” na “sabedoria hedonista” (ONFRAY, 1999a, p. 241).
permanecerem como tais, sem respostas, porquanto o filósofo de Cirene não se ocupou de
uma física ou mesmo de uma fisiologia sobre a qual sua ética pudesse estar mais firmemente
assentada. Ainda assim, mesmo que nenhum fragmento permita uma certeza, Onfray
considera a possibilidade de fazer “avançar a hipótese de que, em Aristipo, o corpo é a alma e
vice-versa” (Ibid.). Ora, Aristipo valoriza os cinco sentidos do corpo (Ibid.) e o conjunto
destes, por sua vez, aparece sempre como o ponto de referência maior sobre o qual gravita sua
ética hedonista, e isso é o que permite conjecturar acerca de uma alma como epifenômeno do
corpo, hipótese corroborada por passagens como esta que se encontra em Diógenes Laércio:
“Em sua opinião os prazeres somáticos são muito melhores que os psíquicos, e as dores
somáticas são muito piores que as dores psíquicas” (DL, 2014, II, 90, p. 69). O corpo detém,
portanto, uma clara proeminência sobre o espírito.
O corpo é o verdadeiro critério “do ideal hedonista” no qual se trata de perseguir o
prazer e se afastar a todo custo do desprazer (ONFRAY, 2008, p. 121), pois é nele que esses
afetos se dão da forma mais intensa. Resta fazer um bom uso do corpo, um uso ético, e, para
isso, é necessário mantê-lo livre das amarras morais tanto quanto das forças desmedidas de
suas próprias pulsões. E aqui Onfray aponta para algo muito importante em sua interpretação
do pensamento de Aristipo: é ruim o sofrimento, a dor, o penar; e é bom, por outro lado, “tudo
o que conduz o filósofo na direção do júbilo” e do “prazer corporal”, evidentemente. Porém –
pois há um porém... – , Onfray acrescenta a esse princípio a seguinte advertência: todo júbilo
é bem-vindo, “desde que este não custe o preço de uma alienação” (Ibid.). O que isso
significa? Significa que ao contrário do que dizem seus detratores (liderados por Platão) e sua
reputação histórica, Aristipo estabelece sim um limite ao júbilo e à busca da fruição. Significa
ainda que, por essa lógica, esse limite, enquanto tal, tem de necessariamente ser capaz de
superar, em grau de importância, o próprio prazer, esse prazer mesmo que até este momento
fora tomado como o soberano bem exclusivo.
É patente que esse fator o qual funciona como critério limitador do prazer e que por
isso mesmo deve superá-lo em qualidade só pode ser uma e nenhuma outra coisa, vale dizer, a
liberdade. “Nenhum prazer cirenaico”, escreve Onfray, “deve ser obtido à custa de um
desprazer presente ou futuro” (Ibid.), e este desprazer surge precisamente “quando a liberdade
do indivíduo se vê abalada” (Ibid.). Ora, colocar a liberdade acima do gozo é o mesmo que
defini-la como condição de possibilidade para este, donde sua superioridade enquanto
princípio ético. Com efeito, que prazer seria digno de um filósofo hedonista na ausência de
liberdade individual para medir, quantificar, eleger, decidir acerca de um gozo dentro de
circunstâncias específicas que se apresentam na ordem de um espaço e de um tempo únicos?
104
É preciso decidir a ação relativamente a cada situação e, sem liberdade para tal, não há
filosofia hedonista. É por isso que Onfray sublinha que “o gozo de Aristipo coincide com o de
um libertário” (Ibid.) que, por sua vez, é definido como o sujeito “que não coloca nada acima
da liberdade, inclusive, e sobretudo, o prazer...” (Ibid.).
Mas como, e por onde, a liberdade se mostra superior ao prazer numa ética hedonista?
Também aqui o princípio é assaz evidente: a superioridade da liberdade sobre o gozo se
manifesta por meio da consciência dominante e dominadora dos momentos de júbilo. Quando
a consciência comanda a fruição, conduz seus objetos e dirige seus ritmos é sinal de que a
liberdade prevalece sobre o gozo, e assim deve ser. O pensamento, a razão, a inteligência e a
consciência aguçada compõem a caixa de ferramentas com a qual o filósofo impõe sua
vontade aos prazeres esculpindo-os e dando-lhes uma forma desejada. Assim, diferentemente
do que pinta a caricatura/crítica-clássica da campanha anti-hedonista que vigora da
Antiguidade aos nossos dias, “o gozo não ocorre contra a consciência ou a despeito dela”. A
verdade é que “o primeiro necessita da segunda para existir verdadeiramente” (Ibid.).
Contrariamente, portanto, ao que afirma Platão na conclusão de seu Filebo, o prazer cem por
cento natural dos animais jamais foi uma referência ética para nenhum hedonista, menos
ainda para o mestre de todos eles, Aristipo de Cirene (Ibid.).
De fato, em sua diatribe contra o prazer e para melhor marcar a “repugnância” que
sente “pela doutrina de Filebo – que não é apenas a dele, mas também de incontáveis outros”
(PLATÃO, 2012, p. 205) hedonistas cujas ideias rondam a ágora grega antiga – , Platão não
hesita em fazer Sócrates, seu porta-voz oficial, caricaturar o hedonismo da maneira mais
simplista possível, qual seja, associando a doutrina filosófica que toma o prazer como um bem
maior ao gozo perseguido cega e instintivamente pelos animais desprovidos de razão. Assim,
na hierarquia dos bens estabelecida por Sócrates (que já de início força uma separação entre
vida de reflexão e vida de prazer cuja intenção velada é depreciar o hedonismo enquanto
proposição filosófica séria), o prazer ocupa o último lugar, ou seja, o quinto. Todavia, nem
mesmo aí ele se sustenta efetivamente visto que quando comparado à medida, à beleza, à
verdade e à inteligência o prazer é tido pelo próprio Protarco – personagem do diálogo
incumbido de defender as teses hedonistas em lugar de Filebo 47 – como o maior dos
impostores (Ibid., p. 201).
47
Marcel Conche considera que não é duvidoso que Platão se refira a Aristipo em seu diálogo dedicado ao
hedonismo (In: HUISMAN, 2001, p. 61). Outros acreditam que o personagem fictício que provavelmente é
Filebo encarna menos Aristipo de Cirene do que Eudóxio de Cnido, outro pensador hedonista da Antiguidade
(ONFRAY, 2008, p. 153), este ligado diretamente a Platão na condição de discípulo no mínimo heterodoxo (Cf.
Ibid., p. 153-158).
105
Ademais, o prazer “não seria o primeiro” dos bens “nem mesmo que todos os bois e
cavalos e todos os outros animais juntos pelo fato de perseguirem o prazer, afirmassem que
sim” (Ibid., p. 207). Entenda-se: os prazeres ditos corporais a que a passagem faz alusão, e
mesmo o próprio corpo, não interessam ao idealismo platônico que para fustigá-los como
coisas impuras e corruptíveis precisa associá-los aos bois, cavalos e outros bichos. Realmente,
a singela concessão desse último lugar feita ao prazer na hierarquia dos bens é reservada
apenas aos prazeres ditos “puros”, aqueles que Sócrates restringe às operações intelectuais da
“alma” (Ibid., p. 205) bem como a “algumas sensações” (Ibid.), notadamente à visão e à
audição, os sentidos por excelência da contemplação das belas formas abstratas. Assim, a vida
boa para Sócrates é a vida mista de pensamento inteligível e de prazeres afins. Quanto aos
júbilos “impuros” porque ligados ao corpo e à sexualidade, estes passam por serem os únicos
propriamente associados às teses dos filósofos hedonistas e, como tais, são convenientemente
tidos como coisas desprezíveis que despertam aversão e vergonha, razão pela qual devem ser
confinadas à invisibilidade noturna (Ibid., p. 203).
Por causa desse jogo dialético um tanto forçado, Onfray considera que o Sócrates do
Filebo não discute verdadeiramente as teses hedonistas, sobretudo aquelas atribuídas aos
cirenaicos, tão em voga na época. Realmente, como explicar que o Aristipo histórico,
contemporâneo comprovadamente conhecido de Platão, não seja o principal interlocutor de
Sócrates? Decerto ele seria o principal personagem a estar à altura de debater sobre um tema
no qual é a grande referência, o que forçaria o Platão escritor a uma maior verossimilhança
dialógica tal como procedeu, por exemplo, com Protágoras e com Górgias. No entanto, ao
invés do cirenaico Platão convoca, segundo observação feita por Onfray, dois “hedonistas de
pacotilha – Filebo e Protarco” (ONFRAY, 2008, p. 149) – , que são na verdade personagens
inventados48 exclusivamente para representar uma posição intelectual e uma atitude
existencial tão consideráveis na Grécia antiga que foram dignas da atenção e da crítica
platônicas. Assim, sem uma defesa digna desse nome, se torna mais fácil refutar o hedonismo
e advertir os cidadãos atenienses contra essa escola rival que valoriza os apetites do corpo.
“Um partidário do ideal ascético assim que ouve falar em prazer, lembra os animais do
galinheiro, os bois e os cavalos, conforme recomenda o fim do diálogo...” (Ibid., p. 148),
48
Segundo nota sobre a composição desse diálogo de Platão feita por Fernando Muniz, tradutor e apresentador
da edição brasileira do Filebo que utilizamos, tudo leva a crer que Filebo é de fato “um personagem fictício,
construído sob medida para defender um hedonismo extremado” (In: PLATÂO, 2012, p. 21). Quanto a Protarco,
“também um personagem obscuro”, não é impossível que se trate de “uma figura histórica, se é o mesmo que o
mencionado por Aristóteles na Física (197b10)”. De todo modo, no diálogo Protarco é um hedonista mais
manejável que Filebo, um personagem que decerto “defende com firmeza suas posições” mas que, ao fim, “cede
diante dos argumentos convincentes” do Sócrates platônico (Ibid., p. 22).
106
escreve Onfray a respeito do Filebo jogando, em seguida, a questão fundamental que não é
feita por Sócrates nem por nenhum de seus interlocutores:
49
Isso do ponto de vista humano porque, da perspectiva mais ampla da natureza regida pela lógica da seleção
natural, os espasmos nervosos ligados ao prazer têm sua razão ligada ao sistema de recompensas que serve como
guia de sobrevivência aos seres vivos jogados pelo acaso no núcleo duro da natureza. Esta, por sua vez, nunca é
gratuitamente dispendiosa.
107
comportamento animal como modelo. Ao invés disso, seu exemplo se inspira sempre a figura
do sábio.
Como foi dito, a liberdade em Aristipo está acima do prazer. Mas como seria assim se
o prazer fosse buscado sem a consciência que supõe uma inteligência tão viva quanto
possível? Somente sua educação e cultura filosóficas permitiam a Aristipo viver seus júbilos
sem entraves porquanto a elas devia seu entendimento de que o perigo não está em entrar num
bordel, por exemplo, mas “sim em ser incapaz de sair” (Ibid., II, 69, p. 65). Assim,
desdenhando de todo julgamento moral, sua sabedoria encontra-se por inteira na seguinte
máxima: “Abster-nos de prazeres não é o melhor, e sim dominá-los e não sermos prejudicados
por eles” (Ibid., II, 75, p. 66). Munido desse imperativo categórico e de uma consciência
sempre desperta é possível, na prática, possuir Laís sem ser por ela possuído (Ibid.), ou seja, é
possível satisfazer os impulsos sexuais ao mesmo tempo em que se evita ser por eles
dominado. Nenhuma privação hedônica é necessária. Com um uso soberano da razão, da
memória, da inteligência e do pensamento pode-se cultivar o prazer e simultaneamente
exercer poder sobre ele. De fato, Aristipo recusa ser escravo do que quer que seja, inclusive
da volúpia – à glória da liberdade, força maior da filosofia!
Como todo pensador hedonista digno desse nome, e não como desejam fazer crer seus
detratores, Michel Onfray deixa claro que
Evidências aristipianas para o comentário de Onfray: uma vez censurado por viver
com uma prostituta que já serviu a muitos, Aristipo responde que tal como uma casa não é
menos habitável por haver acolhido muitos moradores; e assim como não faz nenhuma
diferença se viajamos num navio nunca antes utilizado ou noutro já muito viajado; do mesmo
modo uma mulher que viveu com muitos homens não é, por isso, menos mulher (DL, 2014,
II, 74, p. 66) – lógica da não discriminação dos prazeres amorosos em razão de preconceitos e
julgamentos alheios. Noutra ocasião, se mostrando dispendioso mas consciente do exato valor
que se deve atribuir ao dinheiro, enquanto viaja numa nau em que descobre haver piratas a
bordo o filósofo simplesmente joga fora uma grande quantia e reflete: “É melhor que o
108
dinheiro se perca por causa de Aristipo que Aristipo por causa do dinheiro” (Ibid., II, 77, p.
66) – eis aqui uma lição de desprendimento eternamente válida. Outro exemplo: amante
notório de iguarias, da boa mesa, das cortesãs, mas igualmente possuidor não possuído de
Laís, em certa ocasião Aristipo é intimado por Dionísio a escolher uma dentre três belas
jovens. Compreensivelmente incapaz de decidir-se, o filósofo leva consigo as três boas moças
mas, surpreendentemente, chegando no átrio e distante dos olhos do tirano, pede, sem mais,
que elas vão embora (Ibid., II, 67, p. 64), simples assim... – lição de autocontrole,
desprendimento e autonomia na lida com os prazeres da cama. O que testemunham esses
textos? O que dizem essas anedotas filosóficas? Demonstram que existe em Aristipo uma
ascese (e ascese não é ascetismo, que seria sua versão extrema, mas sim um componente
inerente aos exercícios espirituais próprios das escolas filosóficas da antiguidade), isto é, um
apego ao controle racional dos desejos com vistas a exercer um verdadeiro domínio de si
sobre si mesmo (ONFRAY, 2002, p. 18). Trata-se, em última instância, de um exercício de
liberdade, liberdade esta afirmada sobre todas as coisas.
Um fragmento importante, presente nas Memoráveis de Xenofonte, testemunha nesse
sentido o grande apreço que Aristipo nutria por sua liberdade e autonomia. Trata-se de um
diálogo entre Sócrates e o próprio Aristipo, então seu discípulo, no qual aquele está a
argumentar em favor da abstinência dos prazeres da mesa, do vinho e da sexualidade ao
mesmo tempo em que aconselha a resistência às intempéries e à tentação da fadiga a despeito
dos gritos do corpo. A fama de Aristipo é a de alguém que se entrega a tudo isso sem a
mínima moderação. Exagero e interpretação de má-fé quando, na verdade, o verdadeiro
desejo do cirenaico é o de “levar a vida” da forma “mais doce e agradável” (XENOFONTE,
1999, II, 1, p. 122), e não imprudentemente. Todavia, Sócrates o faz concordar com a ideia de
que homens educados e treinados para ignorar o cansaço, a fome, a sede, o apetite sexual e a
se endurecerem estoicamente contra o frio, o calor e o sono são aqueles que se tornam aptos a
governar, ao passo que os que cedem a tais desejos são inaptos para o mando e, portanto,
compõem a classe das pessoas destinadas a serem governadas. Sócrates reduz assim as formas
de vida em duas categorias: a dos que mandam e a dos que obedecem. Ou seja, para ele ou
governamos os outros ou pelos outros somos governados – e tudo começa, por analogia, por
sermos senhores ou servos de nossos próprios apetites e desejos naturais. É então que
Sócrates pergunta a Aristipo qual seria, na visão dele, a vida mais feliz ou agradável, aquela
em que se é senhor, ou aquela em que se é escravo. A resposta do cirenaico é emblemática:
109
“Parece-me existir”, diz ele, “um caminho intermediário, que me esforço por trilhar, entre o
poder e a servidão: a liberdade, que mais seguramente conduz à felicidade” (Ibid.).50
A liberdade, então, está acima de tudo. Ela é o caminho que mais seguramente conduz
à felicidade porque é aquele que permite a independência de espírito e a autonomia ética
necessárias à fruição dos prazeres sem o risco de uma alienação. Todavia, em Aristipo,
hedonismo e eudemonismo, apesar de se complementarem, não se confundem. Sendo assim, e
considerando que o próprio Aristipo sugeriu o tema, abordemos a felicidade partir da
distinção feita por ele entre esta e o prazer, uma vez que se trata de um problema importante
por nos conduzir a uma clara oposição entre o mestre de Cirene e Epicuro, o sábio do Jardim.
Já sabemos que Aristipo concebe o prazer como o soberano bem. Falta-nos analisar, no
entanto, a clara distinção que ele faz entre este e a ideia de felicidade. Com efeito, Diógenes
Laércio registra que para os cirenaicos somente “o prazer isolado” é propriamente dito o “bem
supremo”, ao passo que a felicidade não é compreendida por esses filósofos senão como a
somatória “de todos os bens isolados, na qual incluem também os prazeres passados e
futuros” (DL, 2014, II, 87, p. 69). Está claro: a felicidade é o conjunto maior no qual está
contido a totalidade dos prazeres vividos e por viver, e esta é uma definição idêntica a que
apresentamos anteriormente (Cf. supra, tópico 3.5).
Não obstante, e este é o ponto, os cirenaicos negam que exista prazer na recordação ou
na expectativa dos prazeres porquanto estes só existem propriamente no instante presente em
que se manifestam no corpo. Por essa razão, prazer e felicidade só podem ser concebidos
como duas formas irredutíveis de se relacionar com o tempo, um tempo posto sob o signo da
alegria: “Se a definição temporal do gozo coincide com o instante”, explica Onfray,
50
Impossível não lembrar aqui de Nietzsche, pois, de fato, o filósofo alemão escreve em A gaia ciência ser tão
“odioso seguir” quanto “guiar”: “Obedecer? Não! E tampouco – governar!” (NIETZSCHE, 2001, “Brincadeira,
astúcia e vingança”, § 33, p. 33). Quanto à citação de Aristipo feita por Xenofonte, trata-se de um registro
doxógrafo importante de que Onfray fez uso em L’Invention du plaisir: Fragments cyrénaïques (Cf. ONFRAY,
2002, p. 49-50 e 188).
110
Recordar um júbilo ou esperar pela realização de um pode até significar uma alegre
expectativa, mas não é o mesmo que gozar. O gozo em si mesmo pertence exclusivamente a
um ato realizado no puro instante presente. Porém, condensado assim na ponta extrema de um
momento imediato fadado a tornar-se rapidamente passado, sua natureza se mostra
evanescente e seu prolongamento no tempo, impossível – donde a necessidade de se entregar
aos seus ritmos cíclicos compostos por desejos, necessidades e satisfações ininterruptamente
recorrentes. Por conseguinte, o término de um prazer vivido na carne representa o fim do
movimento fisiológico que o produziu bem como o prenúncio de um novo movimento.
Aquilo que permanece na memória corporal, a doce lembrança que resta da experiência já não
é prazer, e sim felicidade. Eis aqui a prova, segundo os cirenaicos, de que é o prazer, e não a
felicidade, o verdadeiro bem: enquanto aquele aparece sempre como o alvo almejado e o fim
a ser alcançado, esta não parece ser desejada por si mesma, mas unicamente em função do
conjunto dos prazeres que encerra (DL, 2014, II, 88, p. 69). Apenas o prazer é concretamente
vivido. A felicidade, enquanto lembrança, desejo e expectativa em relação aos prazeres
permanece, assim, como certo estado de espírito pleno e ideal, mas sem sustentação própria.
Em suma, sem os júbilos efetivamente vividos não há felicidade. E ainda que gerem
sofrimentos, os prazeres existem por si mesmos, ao passo que a felicidade, sem estes, não
passa de sonho e idealização sem nenhuma materialidade.
Donde esta outra problemática: considerando que alguns prazeres provêm de causas
geradoras de desprazeres – atente-se bem: não são os prazeres por eles mesmos que geram
dores, mas suas fontes causais quando são mal escolhidas ou mal dosadas (um exemplo
clássico disso é a alimentação e o consumo de bebidas alcoólicas que, em excesso, causam
sem dúvida prazer, ainda que este dure pouco para logo dar lugar a dores e frustrações) – , e
como a evitação da dor é um elemento estratégico imprescindível a toda ética hedonista, e
considerando, ainda, que o acúmulo de prazeres dessa natureza não produz felicidade, sendo
penoso para o indivíduo cultivá-los, tais prazeres devem, então, ser evitados de modo decisivo
(Ibid., II, 90, p. 69). Eis aqui, no cerne da doutrina cirenaica, um aparente paradoxo:
enquanto, num primeiro momento, como vimos, Aristipo não faz nenhuma distinção entre os
prazeres porquanto todos eles produzem sensações agradáveis, constatamos agora, por outro
lado, que ele preconiza um princípio qualitativo segundo o qual os júbilos devem ser
escolhidos a partir de sua potência eudemonística.
Apesar disso, Aristipo define o prazer de modo bem diferente de como ele será
concebido na doutrina epicurista. Aqui, na alvorada da história do hedonismo, o júbilo surge,
111
é inventado, como diz Michel Onfray, 51 já em seu ápice. Ou seja, ele é positivo, ativo,
cinético, dinâmico. Uma vez que prazer e dor são movimentos (um suave, o outro brusco),
portanto afecções positivas que agem sobre o corpo, Aristipo constata a impossibilidade de
existir prazer num estado de repouso em que porventura o corpo e a alma se encontrem.
Também não há, para ele, prazer em escala negativa, o que significa dizer que o alívio
proporcionado pela remoção de uma dor que nos aflige não deve ser confundido com um gozo
propriamente dito. É assim para os epicuristas, uma vez que estes defendem a ideia de que no
momento em que ocorre a extinção de uma dor surge, concomitantemente, o prazer,
precisamente o prazer de deixar de sofrer.
Oportunamente seja dito que o nosso Machado de Assis, em seu Memórias póstumas
de Brás Cubas, no capítulo intitulado A propósito de botas, ilustra com ironia literária essa
“felicidade barata” professada pelos epicuristas que contraria as teses cirenaicas. Machado
chega inclusive a mencionar o próprio Epicuro. Leiamos a passagem, pois ela é emblemática
e, como parte de toda grande obra literária, rica em ideias filosóficas:
Nos cirenaicos não é assim, porquanto consideram eles que “prazer e dor são
movimentos, ao passo que nem a ausência da dor nem a ausência do prazer são movimentos”
(DL, 2014, II, 89, p. 65). O que pensar, então, da falta de movimentos, isto é, da ausência dos
afetos fundamentais de toda vida animal? Para Aristipo, a ausência de dor definitivamente não
é um prazer, mas “a condição da pessoa adormecida” (Ibid.). É portanto um estado de
51
Em Onfray, o capítulo de As sabedorias antigas que trata de Aristipo, bem como sua obra doxográfica
dedicada aos cirenaicos se chamam, precisamente, A invenção do prazer (Cf. ONFRAY, 2008, p. 103-125 e Id.,
2002).
112
52
Aliás, recorramos aqui, mais uma vez, ao neurocientista português António Damásio para ressaltar que nem
mesmo as regulações vitais homeostáticas do corpo buscam essa neutralidade ou estado de equilíbrio das funções
orgânicas: “Não contente com as benesses da sobrevida”, escreve Damásio, “a natureza tratou de nos
proporcionar uma mais-valia: o equipamento inato da regulação da vida não está desenhado para produzir um
estado neutro, a meio caminho entre a vida e a morte. Pelo contrário, a finalidade do esforço homeostático é
produzir um estado de vida melhor do que neutro, produzir aquilo que nós, seres pensantes, identificamos com o
bem-estar” (DAMÁSIO, 2004, p. 42-43). Ou seja, nosso impulso ao prazer é algo mais profundo do que
supomos e mais: a função deste está diretamente relacionada à produção de uma maior vitalidade, portanto de
uma vida mais potente.
113
equivale a ser feliz; não sofrer não é usufruir; a ausência de negatividade não constitui uma
positividade” (Ibid.), mas sim uma espécie de neutralidade emocional que não interessa a um
Aristipo tão afeito às agitações agradáveis da vida.
Não obstante, pode-se legitimamente perguntar: o que deseja, então, um cirenaico?
Qual sua meta? Que télos para sua ética hedônica? No que se resume seu projeto filosófico?
Não parece menos genuíno responder que todos os seus fins se concentram na possibilidade
de realizações plenas no âmago mesmo do instante presente, um instante, porém, sempre em
movimento, sempre em devir. Sobre isso, Michel Onfray diz o essencial:
Anos antes de escrever essa bela passagem, a diferença entre prazer epicurista e gozo
cirenaico levou Onfray a tecer duras críticas ao sábio do Jardim quando de seu primeiro
comentário sobre Aristipo. Com efeito, em A arte de ter prazer ele qualifica os epicuristas de
“tristes” por assimilarem “o prazer à satisfação negativa, à quietude que atua nos cadáveres”
(ONFRAY, 1999a, p. 239). Mais à frente, sempre opondo a ordem estática dos epicuristas aos
desejos dinâmicos dos cirenaicos, ele escreve: “O prazer epicurista consiste simplesmente na
evitação da dor: é negativo e reativo – gozar é não sofrer – , ao passo que o dos cirenaicos é
positivo e ativo” (Ibid., p. 242). Até aí tudo bem, mas o contraste entre as duas escolas se
torna ainda mais acentuado na pena do então jovem Onfray, que se vale dessa diferença para
radicalizar seu elogio aos cirenaicos em detrimento dos epicuristas. Assim, “uns visam a
impassibilidade do cadáver, os outros a exuberância da vida” (Ibid.). Desse modo, recorrendo
à imagem do corpo inerte e sem vida para se referir à ataraxia de Epicuro, ele escreve: “O
epicurista quer destruir nele as paixões, os desejos, a tentação da volúpia: seu modelo é o
cadáver que ignora a fome e a sede, o frio e o calor, o desejo e a inquietude” (Ibid.). E mais:
“A doce impassibilidade da carne morta”, eis a meta do epicurista... em vida.
Por fim, em outra passagem o nosso autor conclui que “Epicuro não gosta da vida” e
que por isso dedica seu arsenal filosófico à prática do “ideal ascético” enquanto que Aristipo,
este sim, “gosta da existência e se rejubila na afirmação e na boa saúde” (Ibid., p. 242-243).
Onfray se refere a Epicuro até mesmo como um “pseudo-hedonista” (Ibid., p. 265), uma
114
afirmação realmente injusta que nem mesmo a lembrança feita na mesma página da dívida
que os libertinos do Grande Século têm para com o atomismo epicurista ameniza. Não é que
essas considerações sejam de todo equivocadas – elas de fato consistem numa interpretação
possível do sistema de Epicuro – , mas, sim, que esse elogio sem reservas a Aristipo em
comparação com essa crítica forte feita ao hedonismo mais morno e ameno de Epicuro nos
parece próprios de uma verve juvenil ainda muito viva nesse momento específico em que
Onfray escreve (lembremos que A arte de ter prazer data de 1991, quando o nosso autor tem
apenas 32 anos). O fato é que, posteriormente, como veremos, o amadurecimento intelectual
de Onfray trouxe consigo uma adesão quase que total ao mestre do Jardim e, ao menos em As
sabedorias antigas, a importância de Epicuro supera sobremaneira a de Aristipo que, no
entanto, permanece uma referência importante.
Para concluir com Aristipo, destaquemos um ponto interessante e não menos polêmico
da interpretação que Michel Onfray faz do pensador de Cirene, a saber, a inexistência dos
cirenaicos! Sim, é isso mesmo: segundo Onfray, não há uma escola propriamente dita
cirenaica. Ora, após passarmos as últimas páginas nos referindo alternadamente a Aristipo e
aos seus, depois de tratarmos o filósofo hedonista e os ditos cirenaicos como sinônimos, eis
que agora apresentamos a hipótese levantada por Onfray de que o mestre do hedonismo não
fundou uma escola à maneira dos pitagóricos, estoicos, céticos e epicuristas. Analisemos...
Na introdução das Vidas e doutrinas Diógenes Laércio, em sua classificação das
escolas ou seitas filosóficas, escreve que “alguns filósofos foram qualificados segundo suas
cidades natais, como os elíacos e os megáricos, os eretrianos” e... “os cirenaicos” (DL, 2014, I
17, p. 16). Entretanto, no livro II, após tratar da vida de Aristipo ele pretende passar “em
revista os filósofos da escola cirenaica” (Ibid., II, 85, p. 68), ou seja, aqueles “que derivam
dele”, de Aristipo, “embora alguns chamem seguidores de Hegesias, outros de Aníceres, e
outros ainda de Teôdoros” (Ibid.). Esta última observação feita pelo compilador grego não
pode passar despercebida porque, ao distinguir os seguidores destes últimos, ele aponta para
um distanciamento cada vez maior em relação ao próprio Aristipo, supostamente um fundador
de escola. Como discípulos de uma linhagem direta de Aristipo aparecem sua própria filha,
Areté (hipoteticamente filha, mas hipoteticamente também irmã), um neto homônimo seu,
conhecido como o metrodídaktos (discípulo da mãe); Teôdoros, chamado o Ateu, e os já
115
mencionados Hegesias e Aníceres. (Ibid., II, 86, p. 68), para ficarmos apenas com os nomes
mais representativos.
Seguindo Diógenes Laércio e outros doxógrafos da Antiguidade, toda uma tradição
tem englobado “sob o epíteto Cirenaicos uma série de nomes, obras, fragmentos, reputações,
anedotas e teses” que Onfray entende como sendo “extremamente contraditórias” (ONFRAY,
2008, p. 123). De fato, ao consultarmos qualquer manual de filosofia constataremos que sob
as rubricas Cirenaicos, Cirenaísmo ou Cirenaica diz-se tratar de uma escola filosófica
hedonista fundada por Aristipo, natural de Cirene, por sua vez discípulo de Sócrates (um
socrático dito “menor”, segundo uma classificação depreciativa clássica). Pois bem, em um
tópico chamado Os cirenaicos existem? Onfray coloca a hipótese de que o termo cirenaico
serve antes
para reunir artificialmente indivíduos que têm como único ponto em comum
o fato de terem nascido em Cirene – hoje região da Líbia – do que para
qualificar filósofos cujo corpus reúne visões de mundo semelhantes,
próximas, que diferem apenas por algumas evoluções ou transformações
(Ibid., p. 123-124).
Para sustentar essa hipótese o autor da Contra-história da filosofia aponta para uma
falta de coerência minimamente aceitável entre os ditos discípulos fiéis (DL, 2014, II, 86, p.
68) e as lições do mestre. Assim, para ser verdadeiramente um cirenaico, não basta, para
tanto, ser filósofo e natural de Cirene. Para Onfray, autor da primeira (e até agora única)
doxografia sobre Aristipo em língua francesa – L’Invention du plaisir: Fragments
cyrénaïques (A invenção do prazer: Fragmentos cirenaicos), de 2002 – ,
o que subsiste sob a rubrica dos filósofos cirenaicos parece uma casa da
sogra: Aristóteles, não o Estagirita, mas o nativo de Cirene, Antípatro,
Aristóxenes, Dionísio o Trânsfuga, Hegesias, Anicéris, Teodoro o Ateu,
todos provêm das planuras verdejantes e irrigadas da Cirenaica, com certeza,
mas o que têm em comum? O que ensinam que constitua uma escola
estruturada, coerente e digna desse nome? Infelizmente nada (ONFRAY,
2008, p. 124).
O problema maior gira em torno do nome de Hegesias, sempre destacado nos manuais
como o principal discípulo de Aristipo. Ocorre, porém, que associar aquele a este não apenas
implica em erro lógico por falta de coerência como parece, antes, trair uma tentativa velada de
desacreditar o hedonismo aristipiano. Por que? Porque Hegesias, apesar de adotar o prazer e a
dor como fins, privilegia claramente a perspectiva desta sobre aquele, o que certamente faz
116
descrédito à filosofia hedonista insinuando que ela degenera em pessimismo. Assim, conclui
Onfray, da mesma maneira que Aristipo não se orgulhava de ter engendrado uma prole –
Diógenes Laércio narra que certa vez o filósofo foi duramente criticado por rejeitar o próprio
filho; sua resposta, porém, foi a mais chocante possível: “Sabemos que o escarro e os piolhos
também provêm de nós, mas por serem inúteis jogamo-los fora e tão longe quanto possível”
(DL, 2014, II, 81, p. 67)53 – , igualmente não se preocupou em deixar para a posteridade a
herança doutrinal de uma escola filosófica que eternizasse seu nome tal como fizeram
Pitágoras, Platão, Zenão e Epicuro.
Ao que tudo indica, não interessava a Aristipo cercar-se de discípulos zelosos. Para
Onfray isso é coerente com a ideia de que o hedonismo não “suporta a cristalização de sua
dinâmica em um ensino congelado, imóvel, morto” (ONFRAY, 2008, p. 125). Com efeito, a
história do hedonismo testemunha a renovação, e não a degeneração, desse pensamento a cada
vez que ele é retomado. O hedonismo está submetido a uma mudança evolutiva constante, e
isso obriga o historiador das ideias a falar em hedonismos, no plural. Como poderia ser
diferente, se a sensibilidade filosófica é antes de tudo a manifestação de uma subjetividade
específica e se toda ética oriunda de uma sabedoria reivindica, direta ou indiretamente, o
relativismo que lhe é inerente? Nesse sentido, nada é mais próprio da história de uma corrente
de pensamento do que as “infidelidades”, as “transformações”, as “reformulações” e os
“reajustes” (Ibid.) diversos que ela sofre. A cada vez o pensamento é necessariamente
reelaborado e adaptado a uma sensibilidade sem-par. Assim, o hedonismo de Aristipo a ele
pertence, exclusivamente. Inspirar-se em sua ética e retomar suas intuições e ideias principais
significa se apropriar de sua filosofia para dela fazer outra filosofia. No entanto, um
pensamento original deve sua força e sua permanência na história das ideias precisamente a
essas apropriações necessariamente infiéis que ele suscita.
É então doutra maneira que “Aristipo faz escola”, observa Onfray: ele o faz
“perdurando, citado em sinal de cumplicidade e de benevolência nos livros de alguns filósofos
como um ponto de ligação, uma oportunidade de convivência” (Ibid.) na comunhão de ideias
afins e eletivas. Nesse sentido, a verdadeira influência exercida pelo pensamento de Aristipo
na história da filosofia “ainda está por ser escrita” (Ibid.), diferentemente daquela, muito forte,
que as ideias de Epicuro desempenharam sobre todo o pensamento materialista e hedonista
depois do período helenístico – não obstante a tentativa cristã de apagar da história todo e
qualquer vestígio dos sistemas de pensamentos incompatíveis com suas ficções. A influência
53
Montaigne faz menção a esse fato: “Viram-se filósofos que desprezavam essa costura natural – ou seja, a
ligação obrigada dos pais para com os filhos – , como prova Aristipo” (MONTAIGNE, 2002, I, 28, p. 276).
118
epicurista encontra-se bastante documentada. Todavia, uma vez que não há pensamento sem
inspiração e sem modelo, o fato é que ao abordar o hedonismo de Epicuro continuamos a
dialogar muito fortemente com Aristipo, o único “cirenaico” digno desse nome.
devem se importar tanto assim com as divindades, menos ainda temê-los. Por que? Em
primeiro lugar, se toda a realidade é composta de átomos, também os deuses, que existem, são
constituídos por esta matéria. E ainda que os “átomos divinos” sejam mais sutis não há, em
essência, uma superioridade ontológica entre humanos e divindades, pois ambos
compartilham a mesma natureza. Em segundo lugar, os deuses vivem em uma harmônica
bem-aventurança, sendo nisso modelos para os humanos. Quer dizer, a raiva, a inveja, a
inquietação, o ciúme e outros afetos incompatíveis com um estado de felicidade plena não são
cultivados pelos deuses, ao contrário do que ocorre com os humanos, e por isso estes nada
têm a temer nem a esperar daqueles. Os deuses são portanto indiferentes às ações humanas.
Eis, assim, a lição que Epicuro nos lança: cuidemos tão só de nossos próprios assuntos
imanentes. Desse modo, há cerca de vinte e três séculos atrás Epicuro fornecia aos seus
contemporâneos a fórmula que os permitia viver como se os deus não existissem, o que
significa, na prática, uma verdadeira paz de espírito para os adeptos dessa ideia tão simples
quanto eficaz.
Por sua vez, a física atomista e radicalmente imanentista de Epicuro é o mais forte
pensamento, ainda hoje, para fazer avançar uma filosofia verdadeiramente ateísta, afirmadora
da terra e, sobretudo, capaz de encarar a morte de frente, isto é, de responder à condição
trágica do ser humano recusando em absoluto o pensamento mágico e os subterfúgios
religiosos. No referido trabalho exploramos o que Onfray chama, a partir de Epicuro, de
“Salvação pelo tratamento atômico”, “morte da morte” e “santidade dos deuses indolentes”
(Cf. ONFRAY, 2008, p. 184-191 e COSTA, 2017, p. 38-40 e 59-65). São pontos fortes da
física e da ética epicuristas. Tratamos ali, pois, de nos valer do potencial crítico do
pensamento de Epicuro e de sua primeira consequência ética: a indiferença em relação aos
deuses. Trataremos aqui, neste tópico que ora iniciamos, do aspecto mais propositivo de sua
filosofia, a saber: como o ser humano deve conduzir uma existência abandonada pelos deuses
à sua própria sorte num mundo mergulhado em dores e penúrias? Se tomarmos a divisão
sugerida pelo célebre quádruplo remédio (tetraphármakon) abordamos, anteriormente, seus
dois primeiros momentos: não há nada a temer dos deuses, nem da morte. Nesta nova
oportunidade de escrever sobre Epicuro trataremos, pois, dos outros dois momentos, ou seja,
da possibilidade de aprender a suportar a dor e dos meios pelos quais a felicidade humana se
mostra efetivamente possível de ser alcançada e cultivada.
Prosseguindo, então, com a nossa proposta temática de investigar os fundamentos da
filosofia hedonista, buscaremos aqui respostas para a seguinte questão: no que consiste o
prazer para Epicuro? Que avanços e que diferenças seu pensamento promove em relação ao
120
hedonismo cirenaico? Que aproximações permanecem? Aristipo e Epicuro são as bases mais
sólidas para toda a filosofia hedonista ocidental, por isso Michel Onfray os evoca tão forte e
continuamente: é que não se propõe uma ética do prazer hoje sem um verdadeiro resgate da
tradição inaugurada pelos mestres gregos dessa arte de viver. Já dissertamos onfraysticamente
sobre o pensador de Cirene. Resta-nos encontrar o prazer de viver no Jardim cultivado pela
sabedoria epicurista.
A sabedoria epicurista é antes de tudo corporal. De fato, o corpo ocupa o centro das
atenções dessa filosofia de tal modo que, com o grego nascido na ilha de Samos em 341 a. C.
e morto em 271 a. C. reencontramos, de passagem, uma ideia que nos ocupou anteriormente,
qual seja: toda filosofia procede de uma fisiologia que lhe corresponde necessariamente. Por
outros termos, o pensamento provém de um corpo em interação com um mundo, uma época,
um lugar, um povo. Em suma, uma filosofia emerge, sempre, de um contexto biográfico.
Onfray observa que muitos séculos antes de Nietzsche viver e teorizar essa mesma ideia
Epicuro já afirmara que o pensamento se origina do corpo, e não do mundo das ideias
universais e imutáveis que se mantêm imortais por força e graça de suas reminiscências em
almas imateriais e igualmente imortais. Ao contrário, cada pensamento é único e singular
porque redutível a um estado corporal específico (ONFRAY, 2008, p. 171). Nada há de mais
antiplatônico e oposto à tradição filosófica dominante cristianizada por ideias puras e
imutáveis. “Uma fisiologia da filosofia” já existe, pois, “em pleno século IV antes de nossa
era” (Ibid.) graças à poderosa intuição de Epicuro, uma intuição que Onfray considera
A razão filosófica em Epicuro é estrita e singularmente corporal porque toda sua visão
de mundo assim o é. Seguindo as teses fundamentais de Demócrito, ele afirma que só existem
corpos e arranjos atômicos próprios a esses corpos. Átomos, um número infinito de átomos de
tamanhos e qualidades variados e seu movimento no vazio: eis os componentes básicos da
realidade, e isso dos fenômenos que nos cercam à complexa alma de um filósofo, também ela
um agregado de átomos que lhe dá forma e vida. Tudo é redutível a um arranjo atômico e, por
121
conseguinte, o todo é físico e corpóreo. Assim, para Epicuro, falar em alma imortal e
incorpórea pressupõe o devaneio e o uso de “palavras vãs” (DL, 2014, X, 67, p. 299). As
ideias procedem dos corpos humanos e, em última instância, das fisiologias e idiossincrasias
desses corpos. No caso das ideias epicuristas, por exemplo, são elas próprias inerentes e
imanentes à realidade “atômica e material” chamada... Epicuro (ONFRAY, 2008, p. 173).
Não deixa de ser interessante pensar que o epicurismo, essa filosofia hedonista que perdura
por séculos após a morte do mestre e que ainda hoje é passível de ser retomada em seus
detalhes não possui outra origem, não provém de outra fonte senão do corpo de Epicuro e de
sua maneira muito particular de ver e sentir o mundo (Ibid.).
Com efeito, o corpo desse filósofo é um corpo doente e frágil (como será o de
Nietzsche), mas por isso mesmo bastante ativo numa incansável busca por sua saúde, seu
equilíbrio e seu bem-estar. Epicuro foi de fato um homem doente – o seu discípulo Metrodoro
dedica ao tema uma obra chamada Da saúde precária de Epícuros (DL, 2014, X, 24, p. 288)
– , mas também foi médico, sobretudo médico de si mesmo – daí sua autoridade para escrever
um livro intitulado Opiniões sobre as doenças e a morte (Ibid., p. 289), infelizmente perdido
assim como centenas de outros escritos de sua autoria. Epicuro foi (como Nietzsche?) um
laboratório de experimento filosófico em si e para si mesmo. De sua constituição fisiológica
frágil em interação com um temperamento firme e sereno; do homem doente, porém exímio
na arte de perscrutar-se e de formular os cuidados adequados para si; do pensador enfermo,
contudo médico na melhor tradição hipocrática emerge, pois, um pensamento filosófico que
faz do corpo seu melhor aliado e da arte de ser feliz – isto é, de ser o menos infeliz possível –
um ideal de sabedoria prática concreta. Em suma:
Por essa passagem já percebemos as mudanças de tom e postura que Onfray assume
em relação a Epicuro se a comparamos com os trechos citados anteriormente, no tópico sobre
Aristipo. Esqueçamos aquelas críticas medonhas. A partir de agora o elogio a Epicuro vigora
absolutamente e não é por menos. Passemos, então, ao que realmente importa: que o leitor
retenha, a partir do que foi dito acima, que o hedonismo de Epicuro não poderia nunca ser
122
isolada para uma monarquia macedônia aberta ao mundo – aliás, como um mal que veio para
o bem, foi somente graças às expedições de Alexandre, o Grande, que a cultura grega se
difundiu por todos os países mediterrâneos. Em seguida o reino dos macedônios se rende ao
imperialismo romano que, por sua vez, integra a cultura grega à sua.
No epicentro dos acontecimentos políticos a perda de soberania gera instabilidade e
insegurança entre os gregos. As pessoas temem a nova ordem que se instaura pela força no
poder e, entre outros males, isso os deixa mais vulneráveis às doenças da alma geradas e
alimentadas pela superstição popular. O medo da morte paralisa frequentemente o cotidiano
dessa gente. A ignorância e a imaginação causam pavores que potencializam o efeito dos
males efetivamente existentes, além de criar aqueles restritos ao imaginário comum. Na
contramão da insensatez em que o Ocidente mergulha após a morte de Alexandre e a
consequente disputa entre seus generais pela partilha do império, o Jardim epicurista surge
com o propósito de oferecer uma terapêutica filosófica que opõe a razão à fé; a filosofia à
religião; a imanência à transcendência; uma economia dos prazeres às dores do mundo; a
liberdade à servidão; a autonomia à dependência; o individualismo comunitário à lógica
gregária da política que exige de homens e mulheres adequação às normas coletivas. Uma
sabedoria de vida em tempos de decadência, eis o projeto epicurista bem como de outras
escolas filosóficas que surgem no mesmo período dito helenístico. “Haverá algo mais
verdadeiro como justificação de uma visão filosófica do que sua aspiração soteriológica?”,
pergunta Onfray, que responde: “Pensamos para viver, sobreviver – apesar de tudo...” (Ibid.).
Nesse contexto, Epicuro se revela um pensador resistente e insubmisso aos males
provenientes do seu ambiente histórico-social – ele próprio chegou a Atenas na condição de
exilado (Ibid., p. 175). Assim, “fisicamente frágil, socialmente desclassificado, movendo-se
num momento político decadente, ele compra o Jardim, na periferia de Atenas (...), e o
transforma em enclave de resistência” (Ibid., p. 176) intelectual e cultural. Diferentemente da
tendência de boa parte dos filósofos que antecederam a época helenística, Epicuro não se
interessa em intervir na Cidade para convencer os cidadãos sobre a melhor forma de governo
ou bajular os poderosos na condição de conselheiro real – aliás, seria perigoso se o tentasse
em virtude do clima político bastante hostil de então. Como única solução possível (e
desejável) o pensamento se volta cada vez mais para a introspecção individual, para o cuidado
de si, se distancia da política, busca a independência face as circunstâncias. Como observa
Onfray, é preciso “mudar-se mais do que mudar a ordem do mundo”:
124
Passemos agora aos detalhes desse hedonismo que, ao contrário do que fizeram crer as
calúnias infundadas de seus detratores, faz o elogio do comedimento e cultiva, como virtudes
maiores, a prudência, a amizade, o riso, alegria, a liberdade, a autonomia, a construção de si e
outras “variações sobre o tema da doçura de viver e do puro prazer de existir” (Ibid., p. 180).
Um puro prazer que não pode ser vivido sem um combate ininterrupto contra o mal absoluto
para todo hedonista digno desse nome: a dor. O sofrimento parece mesmo ser a coisa mais
constante da vida, o elemento mais persistente da natureza, e é contra ele que o epicurismo
trava sua batalha maior.
Epicuro concebe o prazer como uma conformidade à natureza ao passo que a dor,
inversamente, seria uma desconformidade (DL, 2014, X, 34, p. 290). A dor é um fato natural,
mas ela existe para sinalizar um desequilíbrio do organismo ao passo que o prazer, ou a
simples eliminação da dor, manifesta um equilíbrio retomado, uma harmonia vital e uma
saúde recuperadas. Todavia, o sofrimento é abundante demais no mundo, sendo também
absurdamente universal: toda a gente e todo ser animado por um sistema nervoso sofre,
inevitavelmente. A luta mesma para escapar ao domínio da dor constitui, junto com os
esforços desmedidos para alcançar o prazer, a força motriz da vida, aquilo que a impulsiona e
a movimenta. Alcançar o prazer, no entanto, é mais difícil do que parece, como evidencia o
fato de que a maior parte das pessoas, julgando-se próxima da felicidade, não faz senão
potencializar a dor de existir escolhendo mal os tipos de prazeres por persegui-los sem
critérios racionais. Lidando de frente com a condição trágica do ser humano que parece
destinado à aflição, Epicuro “parte para guerrear contra tudo o que gera medo, temor, dor,
sofrimento”. A propósito, Michel Onfray observa que a obra de Epicuro como um todo
54
Em determinado momento de seu livro Epicuro: sabedoria e jardim, também o professor Markus Figueira
registra os efeitos desse fator histórico sobre o pensamento epicurista em particular e helenístico em geral: “A
época em que Epicuro viveu suscitou a produção de uma filosofia voltada para a superação das adversidades do
mundo externo, cujo ideal de sabedoria atrelava-se à realização da felicidade em si próprio” (SILVA, 2003, p.
77). Isso vale igualmente para as demais escolas filosóficas que surgem nessa época, como é o caso do
estoicismo, do ceticismo e do cinismo.
125
Mas isso, mesmo sendo muito, não basta, pois a dor não se restringe a questões básicas
como nutrição e hidratação do corpo. A doença, sobretudo a doença, mas igualmente
inúmeras contingências da vida humana se encarregam da produção positiva e contínua dos
sofrimentos mais diversos. O fato de ter sido obrigado a suportar o mal provocado por seus
cálculos renais rendeu a Epicuro uma sapiência empírica a partir da qual ele construiu sua
teoria de combate à dor. Sua receita procede dele mesmo. Por conseguinte, Epicuro ilustra
como se pode praticar a filosofia em socorro próprio numa época em que as técnicas da
medicina moderna não são sequer imagináveis: “Por uma reflexão sobre o mecanismo da dor,
seguida por uma decisão sobre o uso possível dessa informação” (Ibid., p. 193), eis como
procede o filósofo a fim de curar-se:
A lição de Epicuro para o enfrentamento da dor o aproxima dos estoicos nesse ponto
(ONFRAY, 2008, p. 193): trata-se aí de uma atitude para espíritos fortes e corajosos. De
certo, esses sábios não tinham escolha: sendo a dor inevitável, precisavam fazer-se duros para
suportá-la quando possível ou consolar-se com a possibilidade de a morte vir socorrê-los de
uma dor tão aguda quanto insuportável. Onfray escreve que essa “algodiceia epicurista”
demonstra a “possibilidade de uma verdadeira filosofia vivida e praticada como terapia”
(Ibid.).56
Por mais atroz que a dor do corpo possa ser, Epicuro, diferentemente de Aristipo, a
considera um mal menor em comparação com a dor da alma. Isso se deve à relação
tempo/intensidade da dor em questão. Com efeito, uma de suas sentenças vaticanas afirma
que a dor intensa necessariamente dura pouco, ao passo que qualquer outro tipo de dor, se
perdura, é por ser “tênue e portanto pode ser suportada” (EPICURO, 2014, 4, p. 16). A
55
A célebre frase de Nietzsche – “O que não me mata me fortalece” (NIETZSCHE, 2006, I, § 8, p. 10) – pode
ser lida como uma variação dessa fórmula epicurista.
56
Sêneca fornece o testemunho de um exemplo preciso disso, o do historiador romano Aufídio Basso (ou
Aufidius Bassus), a quem ele visita quando este se encontra velho, doente, fraco, “com a morte diante dos olhos”
(SÉNECA, 2018, 30, p. 111), porém lúcido e com ânimo de alma. Sêneca descreve Basso como alguém que, em
pleno estado de decadência, buscou aplicar fielmente os princípios de Epicuro em sua luta “contra a idade”
(Ibid.) muito avançada e as dores das enfermidades: “Fiel aos princípios de Epicuro, dizia ele que, para começar,
esperava que o último suspiro não fosse de forma alguma doloroso; se acaso o fosse, um pouco de alívio
encontraria na sua própria brevidade, pois nenhuma dor de fato grande pode ser muito prolongada. De resto,
mesmo no momento da separação da alma e do corpo, ainda que muito dolorosa, haveria de lembrar-se que
depois dessa dor nunca mais sentiria dor alguma” (Ibid., p. 114-115).
127
mesma ideia se encontra na máxima principal IV (Cf. DL, 2014, X, 140, p. 315): se a dor é
todo o mal para nós, escreve Epicuro, “a morte nada é para nós” (Ibid., X, 139, p. 315), razão
pela qual ela acompanha como um antídoto a dor extrema que aflige a carne, e somente a
carne, já que esse tipo de alívio inexiste quando se trata de uma dor que atormenta a alma.
Além disso, as dores deste tipo não se concentram unicamente no momento presente, como as
do corpo, mas, pelo contrário, flagela o indivíduo igualmente por seu passado bem como o
mortifica por seu futuro (Ibid., X, 137, p. 314), uma expansão no tempo que tem o efeito de
potencializar as aflições da vida humana, motivo pelo qual Epicuro considera a dor da alma
um mal maior – e os psiquiatras contemporâneos certamente lhe dão razão aqui.
Jogo de discernimento submetido à dinâmica das circunstâncias concretas da vida, o
hedonismo é portanto uma técnica, um cálculo utilitário baseado na arte da escolha e da
recusa. Se se trata de celebrar o prazer, e ainda que o objetivo seja sempre o de alcançar o
júbilo, faz parte do jogo existencial a necessidade de compor com a dor, companhia sempre
desagradável e indesejada, contudo inevitável. Nessa ordem de ideias surge em Epicuro
aquilo que Onfray chama de um “bom uso da dor”, isto é, um uso inteligente de sofrimentos
inevitáveis, porém enfrentáveis e até mesmo úteis já que, por rodeios e estratégias pode-se,
por meio deles, atingir o seu contrario, vale dizer, o gozo.
Com efeito, Epicuro afirma na Carta a Meneceu: “O prazer é nosso bem primordial e
congênito” (DL, 2014, X, 129, p. 312), logo, ele é aquilo que serve de critério às escolhas e
rejeições que compõem nossa conduta ética. Mas apenas aparentemente a coisa se mostra
simples: o fato é que a definição de prazer em Epicuro é mais complexa em relação ao papel
primordial assumido mais predominantemente pelo intelecto do que pelo corpo, não obstante
ser este, em última instância, o guia principal. De fato, Epicuro diz muito explicitamente que
“o critério de discriminação de todos os bens” são “as sensações de prazer e dor” (Ibid., p.
313) e, com isso, atribui ao corpo e à sua potência sensualista a função de guia ético. Não
obstante, sem diminuir o papel do corpo, a razão entra em cena para orientar as demandas dos
sentidos de modo a muitas vezes lhes negar uma satisfação imediata ou contrariar seus
apetites quando, na verdade, pretende servi-los mais e melhor, realizar seus fins, mas com
critérios intelectuais rígidos que visam antes a qualidade que a quantidade dos prazeres.
O corpo pelo corpo, as sensações pelas sensações, todos os prazeres são pronta,
abundante e imediatamente acolhidos, sem mais, tão logo a oportunidade se apresente –
lembremos que somos sobretudo animais instintivamente impelidos por um sistema de
recompensas (o prazer) a nos fartarmos de comida porque evoluímos nas savanas, onde os
alimentos, escassos, dependiam da caça e da sorte. A razão, a inteligência e a consciência
128
É esse “poder de escolha” conferido pela phrónesis e essa “medida natural do prazer”
própria ao modo de vida epicurista que leva o mestre do Jardim a problematizar um pouco
mais a questão do prazer. Daí sua ponderação utilitária das situações em jogo fazer com que
veja, às vezes, o mal no bem, e o bem no mal. Michel Onfray observa que precisamente “essa
preferência pelo pior que leva ao melhor” (ONFRAY, 2008, p. 202) não costuma ter o devido
destaque nos estudos dedicados a Epicuro (Ibid.). Entretanto, “a ênfase nesse ponto”, segundo
ele, “permitiria avaliar a verdadeira natureza do epicurismo”, qual seja, a de “uma força”
filosófica “considerável, uma inteligência de situações, um pensamento projetivo, qualidades
que configuram uma ascese rigorosa e revelam uma ética exigente” (Ibid.) que não deixa
espaço à acusação simplória de que o hedonismo é sinônimo de gozo grosseiro ou de
imoralidade.
O que vemos surgir a partir dessa arte ligada a um “bom uso da dor” é sem dúvida essa
ascese genuína a que se refere Onfray, uma ascese que não é aqui, ressalte-se bem, o mesmo
130
que ascetismo,57 mas sim um exercício (áskesis) inerente à filosofia prática e que é exigido
como meio para se atingir o que os gregos entendiam por vida boa, isto é, uma vida moldada
pelo ideal de sabedoria que não é outra senão a vida feliz. Faz parte desse exercício prático da
inteligência isso que Onfray chama de “artimanha da razão”, algo que permite ao filósofo
preferir circunstancialmente o “negativo” como estratégia “para gerar” o “positivo” (Ibid.).
Assim, partindo sempre de um cálculo de utilidade pessoal, tal jogo justifica os esforços
dispendiosos que envolvem, por exemplo, o processo de aprendizagem58 bem como outros
“investimentos dolorosos no momento mas produtores de prazeres sublimados” a posteriori
(Ibid., p. 202-203):
57
A esse respeito nos valemos oportunamente das palavras de André Comte-Sponville quando ele escreve que o
ascetismo é a “ascese erigida em regra de vida ou em doutrina. A regra é exagerada e a doutrina, errada. O prazer
nos ensina muito mais” (2011, p. 62). Está muito longe de Epicuro, enquanto filósofo do hedonismo, a intenção
de converter ascese em ascetismo, ou seja, em exagerar na prática da áskesis até o ponto de esta se tornar um
sistema doutrinário de mortificação do corpo. A ascese faz parte da vida filosófica epicurista bem como outras
asceses pertencem às filosofias platônica, estoica e cínica. No epicurismo, no entanto, ela encontra claramente
seus limites na fronteira que a separa do ideal ascético. O verdadeiro fim não é a ascese, mas a vida feliz que ela
permite. Só o prazer é erigido por Epicuro em doutrina e regra de vida.
58
Por isso Aristóteles dizia serem “amargas as raízes da educação”, porém “doces” os seus frutos (DL, 2014, V,
18, p. 133).
131
Mas não apenas por desvios pelo negativo chega-se ao positivo, já que uma lógica em
tudo semelhante se aplica igualmente aos casos, mais frequentes, em que é preciso exercer um
poder de escolha rigoroso quando se dispõe de um rol de positividades. Nesse caso, para não
fazer o caminho inverso, isto é, do gozo ao sofrimento, a ponderação visa evitar escolher mal
o tipo, a quantidade e a intensidade dos prazeres uma vez que errar nesse ponto conduz mais
rapidamente aos desprazeres indesejáveis. Donde uma “dietética” e uma “aritmética dos
desejos” (Ibid., p. 194). Considerando que todo desejo é desejo por prazer, é com eles, em
última instância, que é preciso lidar. Cuidemos, pois, de conhecer sua natureza a fim de
melhor controlá-los, selecioná-los e administrá-los convenientemente à produção da paz para
conosco mesmo. O que está em jogo aqui são as condições próprias em que o prazer se nos
apresenta (Ibid.), daí a célebre classificação epicurista dos desejos cujo princípio é o de que
“só uma taxinomia possibilita uma pragmática dos prazeres”. Eis mais um exemplo de como a
inteligência, a cultura e a razão intervém sobre o impulso natural que nos move.
Essa lição de sabedoria epicurista tem sua síntese na Carta a Meneceu e seus detalhes
(na medida em que detalhes são possíveis numa obra fragmentada) nas Máximas principais.
Com efeito, Epicuro ensina que alguns desejos “são naturais e ncessários”; outros “são apenas
naturais”, mas não necessários; e outros ainda são “infundados” porquanto não são “nem
naturais nem necessários”, mas sim desejos artificiais cuja existência se deve unicamente “à
imaginação ilusória” dos humanos (Cf. DL, 2014, X, 127 e 149, p. 312 e 319). Vamos aos
detalhes: o primeiro grupo concentra os desejos naturais e necessários e inclui tudo quanto é
exigido pelo corpo para a sua boa constituição física, saúde e bem-estar. Uma vez que são os
mais básicos, prementes e comuns tanto a humanos como a animais, tais desejos são de
número limitado. São eles: beber quando se tem sede; comer quando se tem fome; dormir
quando se tem sono; necessidade de proteção contra as intempéries entre os animais, o abrigo
domiciliar como o equivalente cultural humano e coisas dessa ordem estritamente natural que,
em caso de não satisfação, acarretam desequilíbrio no organismo, mal-estar e risco de morte.
O segundo grupo concentra aqueles desejos que promovem alguma variação sobre os
primeiros, mas sem os quais, segundo Epicuro, podemos passar muito bem. São os chamados
desejos naturais, mas não necessários. Se beber, comer e abrigar-se são exigências que a
natureza nos impõe, buscar a satisfação dessas necessidades à maneira dos ricos e poderosos
que ignoram a sabedoria só gera dificuldades. Assim, restaurantes caros, bebidas refinadas,
132
iguarias e casas suntuosas são desnecessários e não devem ser objetos de nossos desejos
porquanto apenas acrescentam artifícios ao que é possível satisfazer de modo simples e frugal.
O que é natural e necessário é simples e está à mão; o requintado, não. A esse respeito
conta-se que o famoso Jardim comprado por Epicuro para sua morada e fundação de sua
Escola era muito simples e modesto (Ibid., X, 11, p. 285). Além disso, o filósofo se
contentava com “um copo de vinho ordinário” (Ibid.) por dia e em geral se alimentava apenas
de pão e água. Só esporadicamente se permitia receber dos amigos “um pequeno pote de
queijo” (Ibid.), o bastante para um banquete à moda epicurista. Não se trata, porém, de fazer
votos de pobreza, mas sim de demonstrar que a liberdade e a autonomia dependem dessa
ascese rigorosa que recusa o luxo e o supérfluo quando toda uma cultura e costume sociais os
valorizam. Nisso o epicurismo se aproxima do cinismo tanto quanto do estoicismo que, por
outras vias, expressam a mesma mensagem, a saber: é escravo das posses e dos desejos quem
segue a opinião do vulgo; é livre aquele que segue os conselhos da natureza. Por outros
termos, “é dura e complicada a vida dos que confiam mais na opinião do que na natureza”,
escreve Sêneca, observando que, por outro lado, tende a ser “agradável e sem problemas a
vida” do sábio que só reconhece os mandos desta (SÉNECA, 2018, 48, p. 164).
E quanto à sexualidade, o que dizer sobre ela? Vimos que esse problema foi muito
bem resolvido na perspectiva cirenaica. Na classificação dos desejos de Epicuro, porém, o
regime sexual parece incluir-se igualmente nessa segunda categoria, ou seja, entre os desejos
que são naturais, mas não tão necessários assim. Julguemos por esta passagem de Diógenes
Laércio onde lemos o seguinte: “Os epicuristas sustentam (...) que a união carnal jamais faz
bem, e que se deve ficar contente se ela não faz mal” (DL, 2014, X, 118, p. 310). Também a
paixão amorosa é dispensada por Epicuro – “o sábio não se apaixonará” – que, aliás, vê com
desconfiança o matrimônio (Ibid., X, 118 e 119, p. 310), quase sempre visto pelos sábios
como uma ameaça à liberdade. Por isso que, ainda segundo Diógenes Laércio, em pelo menos
duas obras (Da Natureza e Problemas) Epicuro afirma que “o sábio não se casará nem gerará
filhos” (Ibid., X, 119, p. 310).59
59
Observação importante: em seu livro Sur Épicure Marcel Conche apresenta esta exata e mesma passagem,
porém em sentido contrário: “Epicuro diz que ele (o sábio) ‘se casará e terá filhos’ (DL X, 119)” – “Épicure
précise qu’il ‘se mariera et aura des enfants’” (Cf. CONCHE, 2014, p. 61). Consultamos outras edições das
Vidas e doutrinas, duas em francês, duas em inglês, sendo estas edições bilíngues grego-inglês, e constatamos
que, por estranho que pareça, as duas primeiras dizem que sim, que Epicuro é favorável ao casamento, enquanto
que as duas últimas afirmam o contrário e, portanto, correspondem ao que está escrito na edição brasileira que
utilizamos. Sendo a referência sempre a mesma (livro X, passo 119), seguem os dados bibliográficos: DIOGÈNE
LAËRCE. Vies et doctrines des philosophes illustres. Traduction française sous la direction de Marie-Odile
Goulet-Cazé. Paris: Le Livre de poche, 1999. DIOGÈNE DE LAËRTE. Vies et doctrines des philosophes de
l’antiquité. Trad. Charles Zévort. Paris: Charpentier, 1847. DIOGENES LAËRTIUS. Complete Works of
Diogenes Laertius. Trad. R. D. Hicks. Hastings, East Sussex: Delphi Classics, 2015. DIOGENES LAERTIUS.
133
De fato, mesmo sendo natural, aos olhos do filósofo preocupado com sua autonomia
de vida e serenidade de espírito, não parece necessário engendrar filhos que dificultem a
conquista da vida feliz. Esta, sendo já tão difícil e incerta para si, como pretender garanti-la a
um terceiro que viria ao mundo por um capricho de nossa parte? A responsabilidade por outro
ser é um fardo grande demais. Por outro lado, jogá-lo no mundo e deixá-lo à própria sorte é
uma irresponsabilidade grave. Aristipo, bem resolvido no que se refere ao regime sexual, foi
desastroso na lida com sua prole quando seria mais coerente com a postura de um sábio não a
ter gerado. Não, nada de filhos e, nesse caso, deve-se desobedecer a natureza. Sobre a
sexualidade em si, Onfray observa que os epicuristas que sucedem ao mestre, como Lucrécio,
Horário e os “poetas do círculo campaniense” (ONFRAY, 2008, p. 195) se mostram mais
livres em relação ao desejo sexual que eles tendem a considerá-lo como “natural, por certo,
mas também necessário” (Ibid.), e acrescenta, talvez tomando como referência o parágrafo
118 do livro X das Vidas..., que “o próprio Epicuro, em determinadas afirmações, leva a
pensar que não está longe de considerar que a sexualidade pertence ao âmbito dos desejos que
é possível satisfazer, contanto que não se sigam dissabores”. Os desejos sexuais seriam, então,
“naturais e”... “quase necessários” (Ibid.). Ora, por que não? Afinal, um pouco menos de
ascese e um pouco mais de prazer natural nunca fez mal a ninguém...
Quanto aos desejos que não são nem naturais nem necessários e que portanto devem
ser evitados por completo, estes se referem às criações exclusivamente humanas. São eles, por
exemplo, as honrarias, a riqueza, o poder político, o status social, a ambição comercial, o
acúmulo de bens materiais, o anseio por glória, fama e, hoje, celebração midiática (Cf. DL,
2014, X 149, p. 319 e ONFRAY, 2008, p. 196). Sem nenhuma relação com a natureza, o
poder que esses desejos exercem sobre os grupos sociais se deve à ignorância, à imaginação e
à falsa opinião cultivadas pelas pessoas. Inimigos da ataraxia, absolutamente culturais e
artificiais, tais desejos só existem por força das convenções humanas. Desprezíveis por
gerarem dores desnecessárias naqueles que os ambicionam, todas essas aspirações e seus
correlatos não são mais que ventos, “desejos vãos, sem objetos, vazios” (ONFRAY, 2008, p.
196). No entanto, são coisas que produzem ódio, inveja, desprezo e outros males que se deve
evitar através da razão (DL, 2014, X, 117, p. 310).
Alimentados unicamente pela insciência, pela imprudência, pela opinião popular e
imaginação ilusória, tais anseios não atendem a nenhuma necessidade natural e ainda fazem o
indivíduo ignorar todo e qualquer limite razoável e necessário à felicidade. Se almejá-los é
sofrer em vão, possuí-los é tornar-se servo deles e viver sob tormentos antes evitáveis. Tanto é
assim que, em caso de não satisfação dessa classe de desejos, não sofremos fisicamente, não
atrofiamos, não definhamos, não morremos por inanição. Todavia, os males psicológicos aí
envolvidos são consideráveis porquanto, no reino dos desejos não naturais nem necessários,
cultivam-se de fato os males e as penas da alma, aqueles que, para Epicuro, nos atormentam
mais intensa e longamente que os do corpo. Somente uma vida conforme a natureza – e
lembremos que o epicurismo é, em grande medida, um naturalismo, (ONFRAY, 2008, p. 196)
– dispensa-nos desses engodos da cidade dos homens e das mulheres sem paz.
Essa classificação dos desejos torna possível a aplicação do cálculo pragmático e
utilitário.60 Uma vez que o prazer almejado pelo epicurista concentra-se sobre os desejos
naturais e necessários, ou seja, sobre aqueles cuja satisfação plena é fácil de obter e está ao
alcance de todos, o êxito eudemonístico é quase certo: “A riqueza conforme a natureza é
limitada e fácil de obter”, escreve Epicuro, “a requerida pelas opiniões vãs estende-se ao
infinito” (Ibid., X, 144, p. 317) e, ao invés de felicidade, contribui apenas para manter a vida
em estado de ansiedade, logo, de infelicidade. A mesma ideia se encontra nesta outra máxima
principal: “Quem aprendeu a conhecer os limites da vida sabe que aquilo que remove o
sofrimento devido a necessidade e torna a vida completa é fácil de obter; sendo assim, não há
necessidade de ações que envolvam luta” (Ibid., X, 146, p. 318). Eis a receita da paz da alma
e da liberdade ética. Por prazer Epicuro entende simplesmente “a ausência de sofrimento no
corpo e a ausência de perturbação na alma” (Ibid., X, 131, p. 313), algo bastante difícil de
conseguir no mundo dos artifícios, dos caprichos, do supérfluo e das desnecessidades. Não
há, portanto, nenhum proveito em ir buscar prazeres fora do primeiro grupo dessa “taxinomia”
(ONFRAY, 2008, p. 196). O fundamento disso é o cálculo utilitário e pragmático dos
epicuristas cuja síntese é: “Conhecer a lógica dos desejos com que estamos lidando,
reconhecê-los em sua diversidade confusa e misturada, saber como responder a eles, evitá-los,
nada ignorar das consequências de uma satisfação ou de uma recusa a satisfazer” (Ibid.). Tudo
60
Em grego, o termo utilizado por Epicuro é logismós, o mesmo que cálculo ou raciocínio: “O logismós, ou
cálculo, raciocínio, ou ainda ‘mecanismo’ ou ‘instrumento’ do pensar é, para Epicuro, o que torna possível a
elaboração do pensamento (diánoia)” (SILVA, 2018, p. 86). Que por outro meio um filósofo hedonista orienta
seu modo de vida senão por sua razão raciocinante? O logismós se complementa com a phrónesis para calcular e
mensurar “o alcance e o limite da ação humana, ou seja, é através da reflexão que se dá a medida do agir” (Ibid.,
p. 86-87). Portanto, nenhuma ação às cegas, nenhum movimento ou atitude por impulso ou segundo a opinião do
vulgo, mas, antes, tudo deve passar pelo crivo da razão, o que muitas vezes leva o sábio a estar à margem da
sociedade em que se encontra: porque ele calcula, pensa e raciocina antes da agir, quase sempre precisa se
comportar na contramão das tendências populares. Aquilo que o social celebra ele é levado a desprezar. Sua
confiança está inteira na sua razão enquanto instrumento verificador das verdades concebidas e das ações
consequentes. Descartes fez disso uma fórmula famosa: “Basta bem julgar para bem proceder” (DESCARTES,
2009, p. 51).
135
isso compõe um conjunto de técnicas existenciais das quais resulta, para o sábio, uma
“verdade hedonista” (Ibid.) ao mesmo tempo que uma autenticidade eudemonista.
A verdade hedonista, porém, se torna um pouco mais problemática nos detalhes em
razão de existirem prazeres não naturais nem necessários e que, a julgar pela lógica austera
epicurista, deveriam, sem mais, ser rejeitados. Ocorre, todavia, vejam só, que tais prazeres são
tão queridos como praticados por essa escola filosófica que, de resto, deve sua existência
precisamente ao cultivo desses júbilos indubitavelmente enquadráveis no terceiro grupo da
taxinomia elaborada por Epicuro. É Michel Onfray quem aponta para essa questão dos limites
reais, mais que intelectuais, dessa “tripartição” dos desejos, uma vez que é preciso perguntar
pelo lugar a ser ocupado nessa lógica pela própria filosofia bem como pela amizade e pela
arte (Ibid., p. 197). E não há sofística capaz de forçar a inclusão destas três fontes de prazeres
entre os desejos naturais, pois os “animais os ignoram e só os humanos aspiram ao sentido, à
doçura e ao prazer estético...” (Ibid.).
A filosofia, a amizade e a arte não são desejos naturais, isto é, não nos foram
concedidos ou impostos pela natureza como uma exigência à nossa sobrevivência elementar.
Pelo contrário, tais bens surgiram apenas paulatinamente, ao longo de um processo cultural
progressivo no âmbito da civilização humana, e é isso o que eles são: bens culturais ligados ao
que de melhor os seres humanos foram capazes de criar. Quanto à questão de serem ou não
necessários, o que dizer? Ao menos para uma pequena minoria o desejo de fruir dessas
criações humanas é tão forte quanto vital. Com efeito, para alguns a vida seria mesmo
insuportável sem a arte e a amizade, por exemplo. Não obstante, há toda uma multidão
planetária que vive desde sempre uma doce e inocente felicidade ignorando tais bens da
cultura (Ibid.). De resto, e até onde se sabe, “ninguém morre por não praticar a filosofia –
senão, que hecatombe! – , a arte61 ou a amizade”. “A essa altura”, ironiza Onfray, a
humanidade já estaria extinta (Ibid.). De fato, quanta gente simples vive bem, em paz e
tranquila sem filosofar? Por outro lado, quantos não vivem satisfeitos com sua estupidez?
Grande é também o número de ignorantes e insociáveis que gozam de longevidade e saúde.
Segundo Onfray, a única conclusão a ser extraída desse problema é a seguinte: deve-se
reconhecer que “há desejos não naturais nem necessários no entanto desejáveis! Porque
geradores de prazeres” epicuristicamente “consideráveis...” (Ibid.).
61
Marcel Conche inclui os “desejos estéticos”, junto com os “desejos sexuais”, como aqueles que Epicuro
consideraria dispensáveis em virtude de não acarretarem dores e sofrimentos caso não sejam satisfeitos (Cf.
CONCHE, 2014, p. 61).
136
E mais: tais desejos podem ser cultivados sem nenhuma preocupação com a medida e
a moderação, já que todo o resto é dependente deles. Filosofemos, pois, a gosto e à vontade!
62
Em artigo sobre os cirenaicos e Epicuro o professor Markus Figueira afirma não existir, em Epicuro, esse
“estado negativo” atribuído à dor, pois esta “é afirmada como um acontecimento natural” (SILVA, 2017, p. 88),
portanto positivo, o que é, evidentemente, correto. Acrescentaríamos a isso o seguinte: nada parece ser mais
positivo no epicurismo do que a dor em razão de o próprio prazer ser definido como sua simples ausência. Ou
seja, basta que o mal deixe de se manifestar para que o bem comece a surgir, proporcionalmente. O bem é então
a ausência de um mal que se manifesta substancialmente, isto é, positivamente. Contudo, há uma negatividade
que se pode legitimamente atribuir à dor no âmbito do pensamento epicurista, desde que aplicável do ponto de
vista qualitativo e sob a perspectiva da lógica que rege toda escolha e toda rejeição. Assim, a dor é um mal,
137
portanto é negativo, eticamente falando. O prazer, por outro lado, é um bem, logo é bom, ou seja, é
positivamente querido e buscado ainda que fenomenicamente seja definido de forma negativa. Por outro lado, da
perspectiva ontológica, empírica e científica, ou seja, na condição de fenômenos naturais que afetam o estado do
organismo, tanto o prazer como a dor se manifestam sempre positivamente.
138
de colher o prazer do momento presente, “pois o filósofo asceta frágil e doentio” também
soube rejubilar-se “com prazeres instantâneos”, aqueles da ordem do dia, a saber: “A doçura,
a amizade, a conversação, a filosofia praticada, a alegria, o contentamento que são prazeres
em movimento” (Ibid.), ainda que na prática epicurista se trate de um movimento bem mais
calmo se comparado à cinética cirenaica.
No que concerne a Aristipo, se colher os frutos do instante presente lhe bastasse, como
seria possível justificar a existência de todo um “arsenal soteriológico” existente em sua obra?
Mesmo despedaçadas, as lições de sabedoria existem no corpus cirenaico (Ibid., p. 205) e
toda a preocupação de Aristipo com a cultura, com a educação, com a prática filosófica
visando a manutenção de sua autonomia e liberdade (liberdade que, como vimos, ele valoriza
acima de tudo) demonstra que ele “levava em consideração o porvir e o futuro – ao contrário
do animal, incapaz de se desprender do instante, com o qual tantas vezes” Aristipo foi
injustamente comparado (Ibid.). Daí que a diferença entre prazeres cinéticos e catastemáticos
não pode ser tão rigidamente interpretada ao ponto de concluir por dois mundos incompatíveis
entre si. Para Onfray, o que em teoria Epicuro e Aristipo afirmam representa “menos duas
concepções opostas do que duas variações sobre o mesmo tema” (Ibid., p. 204). Assim como
hedonismo e eudemonismo constituem mais um continuum de uma mesma natureza do que
duas realidades distintas, do mesmo modo a problemática que envolve os prazeres ditos em
repouso e os júbilos dinâmicos expõe muito mais uma série de variações sobre um mesmo
tom. Isso não significa dizer que diferenças não existam, mas sim que elas não são tão
radicais como se pintam porque, na prática, aquele que “conhece a cinética do júbilo” não está
preso a esta dimensão do gozo e, portanto, não está alheio e indiferente às delícias ligadas ao
gozo “de um tipo de ataraxia ou de aponia” (Ibid.). Para Onfray, a oposição efetiva entre
Epicuro e Aristipo, como não poderia deixar de ser, reside bem mais entre “dois
temperamentos” do que “entre duas concepções” do prazer “radicalmente antinômicas”
(Ibid.).
Foi o que assinalamos no início desta seção, quando afirmamos que o hedonismo de
Epicuro não poderia ser o mesmo que aquele praticado por Aristipo: ambos expressam as
exigências de duas fisiologias distintas; dois corpos atomicamente organizados de maneira
única, com especificidades próprias; dois contextos históricos diferentes, logo dois seres
irredutíveis cujos corpos produzem temperamentos únicos, um para cada tipo de filosofia
hedonista. Não obstante, é ainda da filosofia que se fala, e mais ainda do prazer, mas de
prazeres cultivados em diferentes graus de intensidades que, vez ou outra, parecem convergir
para um ponto comum, seja para a ataraxia e o repouso, seja para a dinâmica e o movimento –
139
com a diferença, sempre determinante, que maiores doses de moderação são mais exigidas por
um corpo do que por outro.
O corpo de Epicuro e dos seus discípulos têm seu refúgio no Jardim adquirido pelo
mestre, por cerca de oitenta minas (DL, 2014, X, 11, p. 285), na periferia de Atenas entre 305-
306 a. C. (ONFRAY, 2008, p. 210). No entanto, o Jardim de Epicuro, enquanto ideia,
ultrapassa essa cifra, esse local e essa datação e pode ser pensado à parte, isolada e
abstratamente, qual um conceito autônomo. Mais precisamente, ele deve ser pensado como
um personagem conceitual no sentido deleuziano da expressão, isto é, como algo que permita
que o ideal de vida filosófica comunitária transcenda a geografia e a época do Jardim original
sem deixar, todavia, de lhe ser fiel no espírito. É para esta direção que aponta a leitura que
Onfray faz do epicurismo.
Com efeito, pode-se afirmar que o Jardim é o principal personagem conceitual do
epicurismo tal como Sócrates o é do platonismo (DELEUZE, 1992, p. 77-78) e assim como
Dionísio e Zaratustra o são do nietzschianismo. Gilles Deleuze explica que um personagem
conceitual é uma espécie de “heterônimo” (Ibid., p. 78) do filósofo que o criou. Este, por sua
vez, está destinado a “transformar-se em seus” próprios “personagens conceituais” (Ibid., p.
78-79) ao mesmo tempo em que tais personagens se diferenciam de suas características
comuns ou históricas para se tornarem, eles mesmos, o espírito emblemático de um corpus
filosófico doutrinário específico. Por exemplo, o Sócrates histórico não é o Sócrates de Platão
bem como o Zaratustra lendário não se confunde com o Zaratustra de Nietzsche. Contudo, o
socratismo representa o platonismo e, da mesma maneira, Nietzsche faz de seu Zaratustra o
porta-voz oficial de sua filosofia. “O personagem conceitual” se torna assim, segundo
Deleuze, “o devir de uma filosofia” (Ibid., p. 79) e uma forma, que diríamos estética, de
retomá-la.
Michel Onfray nos convida a pensar desse modo o Jardim de Epicuro porque
considera que a principal obra deixada pelo sábio da ilha de Samos é a vida filosófica
hedonista que a sua doutrina permite (ONFRAY, 2008, p. 209), em qualquer época ou lugar,
em conexão com a ideia do Jardim. “O Jardim oferece uma microcomunidade selecionada”
(Ibid.) a partir de afinidades individuais dispostas a realizarem, por si mesmas, o ideal
epicurista da vida filosófica entre amigos, e é isso o que permite fazer dele um “objeto
filosófico” autônomo e, como tal, digno da mais alta consideração teórica. No entanto, Onfray
140
observa que não tem sido assim. Para ele, quando se trata dos estudos epicuristas a tradição
parece estar presa aos lugares comuns de forma a “comentar vagamente pela centésima vez o
quádruplo remédio, a classificação dos desejos ou a natureza dos prazeres em Epicuro” (Ibid.)
enquanto deixa de examinar o lugar tanto geográfico quanto conceitual que concentra a
experimentação prática dessas ideias. Ela esquece assim que toda a teoria ética epicurista visa
à concretização de “um tipo de vida” e de “um estilo existencial” cuja formulação última se
realiza por e no Jardim não apenas conceitualmente pensado, mas geograficamente localizado
e realmente habitado.
A vida comum é errante e desorientada. A vida filosófica é, ao contrário, precisa,
esclarecida e orientada. Como em todas as escolas helenistas, o objetivo principal do
epicurismo é propor uma verdadeira “conversão” da vida comum para a vida filosófica cujo
alcance dessa mudança de olhar sobre o mundo possa ser medido no cotidiano mais trivial do
aspirante à sabedoria. Nada de ideias puras ou palavreado vazio. No epicurismo o verbo visa à
encarnação (Ibid.) e o discípulo precisa demonstrar seu progresso intelectual através do seu
comportamento real. O Jardim é o lugar idealizado para essa experiência de conversão do
pensamento em vivência concreta, razão pela qual ele é visto por Onfray como “um tipo de
personagem conceitual”, ou seja, como “uma configuração, uma comunidade na qual se
concretizam as ideias que um filósofo digno desse nome pratica” (Ibid.) na medida em que as
supera, pois é preciso ir “além” das ideias (Ibid.). Se para o “filósofo digno desse nome”
pensar e viver consiste num só e mesmo ato, sem dúvida isso é possível somente porque ele
impõe um primado da vida sobre o pensamento ao passo que a maioria se contenta com a vida
teorética na qual faz das ideias um fim em si. No epicurismo “o Jardim deixa de lado o
discurso sobre ele mesmo para brilhar na prova da excelência das teses formuladas
anteriormente” (Ibid.). A priori, pois, temos as ideias; a posteriori vêm as provas concretas de
uma vivência por elas orientada.
Deleuze afirma que “os personagens conceituais são verdadeiros agentes de
enunciação” (DELEUZE, 1992, p. 79) de uma filosofia. Nesse sentido, o que, então, enuncia
o Jardim no epicurismo? Que intenções existenciais e que vitalidades ele exprime em ideias
que aspiram sua encarnação? Onfray escreve que “o Jardim remete ao paraíso terrestre”
(ONFRAY, 2008, p. 210), a uma espécie de mundo dentro do mundo onde ele é “um
laboratório, um exemplo” (Ibid.) do que pode ser uma sociedade inspirada num ideal diferente
daquele que efetivamente vigora entre os que fazem as cidades e sua administração pública,
seja sob a monarquia, seja sob o regime dito democrático: “Liberemos a nós mesmos da
prisão dos assuntos cotidianos e públicos”, aconselha Epicuro (EPICURO, 2014, 58, p. 55).
141
Lembremos que Epicuro cria seu Jardim em meio ao caos instalado em Atenas após as
conquistas de Alexandre e que por isso mesmo ele o concebe como uma espécie de antídoto a
uma sociedade adoecida por causa das disputas pelo poder. Com efeito, o indivíduo que adere
aos ensinamentos de Epicuro não está interessado apenas na aquisição escolar de um
vocabulário filosófico específico: o que ele deseja é a efetiva “proteção” oferecida por essa
“microssociedade seleta” (ONFRAY, 2008, p. 210) a qual pertence este vocabulário. O que
ele busca é a doutrina de pensamento tanto quanto o local ideal que permita transfigurar sua
existência. Ele se dirige, em última instância, a um modo de vida alternativo capaz de mitigar
a dor de existir em meio aos males do mundo lá fora, para além das fronteiras do Jardim.
O Jardim de Epicuro promete, então, “um Estado jubiloso no Estado decadente” (Ibid.,
p. 211), ou seja, um pequeno território autônomo e independente poupado da negatividade
que vigora na Cidade-Estado (Ibid.). Diferentemente dos estoicos expostos às turbulências das
ruas sob os pórticos dos templos ou no mercado público, os epicuristas buscam consolidar sua
liberdade num “porto de paz” escolhido a dedo. Uma vez lá, no Jardim, a felicidade não é
prometida para um futuro qualquer noutro mundo, como nas religiões de ontem e de hoje,
mas, pelo contrário, sua efetivação, mais modesta, porém realizável, se manifesta no instante
presente, no aqui e agora, no real imediato em que o indivíduo adere ao epicurismo “com o
corpo que se tem, sendo o que se é, no quadro geográfico recortado pela vontade dos homens,
na periferia de Atenas” (Ibid.). Tendo como meta maior de sua sabedoria alcançar a tão
preciosa tranquilidade da alma num mundo em que tudo conspira para agravar o estado de
aflição e de desespero humanos, Epicuro encoraja seus discípulos a uma ruptura o mais
completa possível com este mundo dos desejos vãos ligados sobretudo ao universo das
disputas políticas. Pede apenas que o façam sem estardalhaços: “Romper com a cidade”,
efetivamente, mas “não violentamente, brutalmente, ostensivamente” e sim “deixando sem
cerimônia a vida trivial e fervilhante para entrar como filosofia no Jardim em que tudo é
calma e volúpia...” (Ibid., p. 240). Assim, retirado e discreto, poupado das perturbações
porque “distante, ao abrigo, longe dos tumultos do mundo” tal como ele se encontra, torna-se
possível, para o indivíduo, “pensar numa prática existencial eficaz e incandescente”. Não é
por outra razão que se diz que Epicuro “inventa o mosteiro e a tradição cenobita” (Ibid., p.
240-241) que depois será apropriada pelo cristianismo para fins um tanto... sombrios.
De que outra forma é possível evitar o contágio da negatividade gerada pelos humanos
comuns imersos em relações triviais e hipócritas regidas pela traição e pela busca frenética
por honrarias, vantagens, riquezas e poder político que, como vimos, são desejos ilusórios
cujo estrago existencial se estende à quase totalidade do mundo dito civilizado? Como
142
cultivar uma vida filosófica, prazerosa e tranquila em meio à cegueira tirânica da maioria
sempre muito importuna? A fórmula do Jardim nos diz que é preciso tomar distância, se
afastar, isolar-se a fim de preservar-se: ao invés da competição social e política o sábio, como
diz Sêneca, “preferirá viver em paz, e não em conflito” (SÉNECA, 2018, 28, p. 105-106). A
alternativa mais viável à realização desse projeto passa pelo isolamento voluntário. Com
efeito, a solidão equivale a um bem para o filósofo na medida em que ela atende a sua
necessidade de cultivar-se como tal. Pode-se mesmo dizer que o fim último de sua formação
não é outro senão o de se construir como um indivíduo autônomo capaz de bastar-se a si
mesmo. Uma vez nessa condição que traz a paz para consigo ele busca preservá-la porque aí
descobriu, como diz Epicuro, “a fonte mais pura de proteção diante dos homens assegurada
até certo ponto por uma determinada força de rejeição”, ou seja, “a imunidade resultante de
uma vida tranquila e distante da multidão” (DL, 2014, X, 143, p. 317). E precisamente aquilo
contra o que essa “fonte pura” protege o filósofo o ameaça constantemente: a turba. Assim,
basta uma pequena desmedida no convívio social ou um contato imprudente com as multidões
para que a vida deixe de ser tranquila e os outros se convertam em nosso inferno particular.
A filosofia não é para todos, disse Epicuro.63 De fato, nem todos estão dispostos a
ouvir seus conselhos e a mudar a trajetória de suas vidas para colocarem-se inteiros nas trilhas
da sabedoria. Questão de disposição pessoal: nem toda a gente tem uma fisiologia tal que lhe
permita abraçar alguma das escolas de sabedoria disponíveis no mundo antigo. Na verdade,
para a maioria é sempre mais fácil e cômodo entregar a alma a alguma religião. “A sabedoria
é uma arte”, afirma Sêneca, e, nesse sentido, ela “deve atingir um alvo seguro, escolher
discípulos capazes de aperfeiçoamento e afastar-se dos casos desesperados” (SÉNECA, 2018,
29, p. 107). Muitos são, porém, os casos perdidos para o desespero. Entretanto, enquanto
ética, a filosofia não pode alimentar, por princípio, pretensões universais. Que a comunidade
filosófica seja seleta e componha apenas com o pequeno número dos que estão dispostos a
praticar seus princípios, é o que aparece quase como uma necessidade: o sábio não é um
pregador universal, mas um conselheiro particular, e é melhor assim.
A liberdade requerida pelo modo de vida epicurista depende, pois, desse
distanciamento e isolamento em relação à multidão que em todas as épocas é sempre
insensata.64 É preciso viver ignorado pela turba, portanto é “no campo, longe do mundo,
afastado das vilanias produzidas pelas cidades” (ONFRAY, 2008, p. 212) que o filósofo pode
63
Segundo Diógenes Laércio, Epicuro afirma que “nem toda constituição física” (leia-se: nem todo corpo) bem
como “nem toda nacionalidade permite a um homem tornar-se sábio” (DL, 2014, X, 117, p. 310).
64
Sobre isso Nietzsche escreveu: “A loucura é algo raro em indivíduos – mas em grupos, partidos, povos e
épocas é a norma” (NIETZSCHE, 1992, § 156, p. 80).
143
efetivamente realizar seu projeto, vale dizer, construir sua liberdade, fabricar “sua autonomia
peça por peça, momento por momento, pacientemente” (Ibid.). Tal como o artista esculpe sua
estátua, também o filósofo esculpirá sua própria existência (nosso próximo tema). Por
conseguinte, ele vive escondido, preservado e oculto em nome da proteção de sua
individualidade. Sozinho, dissemos, mas isso não significa um isolamento completo
porquanto o discípulo de Epicuro vive efetivamente numa comunidade de indivíduos, todos
eles igualmente zelosos de suas próprias solidões essenciais.
No Jardim, o que conecta os interesses comuns e exerce poder de governo entre os
adeptos da comunidade é o chamado “contrato hedonista”. Do que se trata? De uma espécie
de micro contrato social concebido pelos e para os membros da escola epicurista. Através dele
se estabelece as normas de convivência no interior da escola e, como princípio, serve de
modelo a toda outra comunidade filosófica inspirada neste personagem conceitual imortal que
é o Jardim de Epicuro. Como explica Michel Onfray,
mas habituado a um isolamento relativo, não é dado ao sábio epicurista o convívio com
qualquer um. Nesse sentido o lugar do outro se estabelece por uma lógica aristocrática cujo
ápice da aproximação e da convivência coincide com o ponto culminante do epicurismo
enquanto doutrina filosófica que preconiza a prática de uma virtude maior, vale dizer, a
amizade. Nisso Epicuro é preciso: “De todos os bens que a sabedoria proporciona para
produzir a felicidade por toda a vida o maior, sem comparação, é a conquista da amizade”
(DL, 2014, X, 148, p. 319). Arte de viver, o hedonismo epicurista é igualmente uma arte da
seleção daqueles com os quais a vida de sabedoria pode ser compartilhada. Bem poucos, é
verdade, até mesmo raros,65 mas o essencial aqui consiste na eleição pela vontade do filósofo
pois um amigo, sendo uma escolha de proximidade e de convívio, é, antes de tudo, “um irmão
que a gente se dá, e que se dá, ele, por liberdade”, à gente (COMTE-SPONVILLE, 2011, p.
28). A amizade é assim um ato de “amor” e de “alegria” (Ibid.) suprema, e esta é uma
definição propriamente filosófica porquanto o sábio ama o amigo assim como ama a
sabedoria. Philia é o termo grego para ambas as formas de amor que, para o filósofo, é uma só
e mesma forma. Assim, aquele que ama a sabedoria ama também as amizades “afins por
natureza” (SILVA, 2018, p. 153), já que estas são justamente aquelas voltadas para a prática
filosófica comum. Com efeito, não é possível fazer philosophia sem philia. Logo, amar a
sabedoria é também amar o amigo igualmente devotado à deusa Palas Atena.
No epicurismo, a amizade representa a efetiva realização da “excelência do
hedonismo” (ONFRAY, 2008, p. 215) na medida em que exprime um sinal evidente dos
“poderes do contrato hedonista” (Ibid., p. 213) dentro da comunidade filosófica. É “entre
amigos” epicuristas, escreve Onfray, que “o sopro dos deuses passa e difunde as felicidades e
os prazeres da ausência de perturbação”. Este é o cenário no qual transborda-se a alegria de
poder praticar “a doçura, virtude essencial” que em Epicuro encontra seu vigor precisamente
nessa “vontade de gozo a dois” e no “interesse bem compreendido do gasto e da profusão
afetiva compartilhados” (Ibid., p. 215). A doçura se torna assim um “capital de força
inestimável” que possui o potencial de reduzir um pouco a “solidão solipsista em que cada um
vive” (Ibid., p. 216). Ao mesmo tempo, para falar como Espinosa, ela proporciona alegria e
produz mais força de ação já que, compartilhada, a potência de existir é aumentada. Dessa
forma, a amizade detém todas as “potencialidades magníficas” (Ibid.) para a efetivação de
65
Não no caso de Epicuro que, segundo conta-se, possuía tantos amigos “que não podiam ser contados em
cidades inteiras” (DL, 2014, X, 9, p. 285). Mas, claro, mesmo se tratando de Epicuro é possível especular que
entre os seus muitos amigos houve os ou o amigo no sentido mais nobre do termo.
145
uma vida equilibrada e harmônica, razão pela qual o sábio a celebra. Para ele, a amizade é
realmente uma força vitalista.
Por outro lado, no extremo oposto da relação com o outro, há os que são incapazes de
amizade em qualquer grau que seja, mas que primam pela capacidade de gerar conflitos,
atritos, desconfianças e outros problemas relacionais. Nesse caso, o contrato, que é “virtude
da escolha” (Ibid.), permite que se efetue o afastamento necessário do indivíduo incômodo a
fim de evitar relações problemáticas porque geradoras de desequilíbrio e desconforto
existencial (SILVA, 2018, p. 153). O epicurista, que faz questão de amizade, evita ter de
conviver minimamente com qualquer forma de inimizade, pois trata-se da mesma diferença
entre a eleição do prazer (o amigo) e a rejeição do sofrimento evitável (o inimigo). Assim,
para o indivíduo isolado e fora de qualquer comunidade, porém decidido a moldar sua ação,
logo sua relação com o outro, a partir do mesmo princípio hedonista: manter o mais próximo
de si relações que produzem prazer e alegria; afastar-se daquelas comprovadamente geradoras
de desprazeres e tristezas. Do primeiro círculo a amizade poderá emergir; do segundo, não
interessa nenhuma inimizade mas sim a indiferença absoluta, ou seja, nenhuma relação. Ética
das afinidades eletivas, este é um legado das sabedorias antigas de que a solidão filosófica
moderna e contemporânea se fazem herdeiras – voltaremos a isso. Retenhamos, para concluir
com Epicuro, uma das principais lições de sabedoria proporcionadas pelo Jardim, a saber, a de
que
não se filosofa nem se vive uma vida filosófica sozinho, mas tampouco com
qualquer pessoa. Para aqueles que não podem entrar decentemente na
comunidade seletiva epicurista, pontual ou duradoura, geograficamente
localizável, sedentária, ou em relações com os fluxos intersubjetivos,
nômades, resta o último recurso dos materialistas, dos subversivos e dos
mestres da imanência: rir – e fruir em outro lugar... (ONFRAY, 2008, p.
216).
A batalha ética em matéria de hedonismo se fez sempre contra o ascetismo moral, algo
que passa necessariamente por reclamar o direito ao prazer, logo a um uso soberano do
próprio corpo. Perguntar o que pode o corpo é, em última instância, perguntar sobre as
potencialidades do prazer, portanto sobre os modos possíveis de viver a vida. Nessa ordem de
ideias uma estética da existência só é possível no âmbito de um relativismo ético, pois, assim
como uma obra de arte é relativa ao gênio e à singularidade que a criou, sendo portanto a
expressão de um estilo, do mesmo modo uma ética, em filosofia, só pode ser a expressão de
um modo de vida único. Para podermos seguir por essa trilha precisamos fazer, já de saída,
uma observação importante: ética e moral não são sinônimos. Adotemos, pois, uma distinção
entre esses dois termos de modo a reservarmos, para cada um deles, sentidos diferentes.
Assim, a questão ética se torna uma questão particular: como viver? A isso só podemos
responder individualmente, uma vez que não se pode dizer ao outro como ele deve viver a
própria vida. No campo da moral, por sua vez, a pergunta-chave é: o que devo fazer? Tal
questão, que não é desprezível, se relaciona com o conjunto dos nossos deveres perante a
sociedade66 e não raro extrapola esses limites para exercer poder sobre as diversas formas
conhecidas de controle social dos comportamentos humanos. A moral se torna então
moralidade.
O problema moral é da ordem do universal e muitos pretenderam fundamentá-la a
partir dessa compreensão, de teólogos a filósofos como Kant. Essa distinção entre ética e
moral aparece, por exemplo, em Marcel Conche, que a faz em simples, claras e poucas
palavras na introdução de seu livro O fundamento da moral, onde escreve o seguinte: “A ética
de Espinosa supõe o sistema desse filósofo. É portanto uma ética particular, pois somos
espinosistas ou não. O mesmo ocorre”, continua ele, “com a ética nietzschiana do super-
homem, ou com a ética epicurista, ou com a estoica, ou qualquer outra” (CONCHE, 2006, p.
X). Com efeito, a moral não é a ética, e tampouco a ética pode ser confundida com a moral,
apesar de incluí-la superando-a.67 O que é, então, a ética? Marcel Conche responde com
precisão: “A ética é a doutrina da sabedoria” e, “a cada vez, de uma sabedoria”. Mas, e a
66
Estamos aqui parafraseando as lições de André Comte-Sponville, que adota decisivamente essa distinção entre
ética e moral (Cf. COMTE-SPONVILLE, 2005, p. 88-97; bem como Id. 2011, p. 219-220).
67
Como escreve André Comte-Sponville, a noção de ética é mais ampla que a de moral, pois a ética “inclui a
moral, ao passo que a recíproca não é verdadeira (responder à pergunta ‘como viver?’ é, entre outras coisas,
determinar o lugar de seus deveres; responder à pergunta ‘que devo fazer?’ não basta para dizer como viver). Ela
é também a mais fundamental: ela diz a verdade da moral (que a moral é apenas um desejo que se toma por um
absoluto) e a sua mesma (que ela é uma espécie de moral desiludida e livre)” – (Cf. COMTE-SPONVILLE,
2011, p. 220).
148
sabedoria, o que é? “É a arte de viver a melhor vida possível. Como viver? Nosso juízo a esse
respeito será sempre este ou aquele conforme, por exemplo, concebemos a morte como um
ponto final ou uma passagem” (Ibid., p. X-XI).
Michel Onfray não segue rigorosamente essa distinção semântica entre ética particular
e moral universal. De fato, trata-se de uma inovação recente na língua francesa introduzia por
Gilles Deleuze, nos anos 1970, em seu livro Espinosa: filosofia prática (Cf. DELEUZE,
2002, p. 23-35). Como outros autores, Onfray costuma utilizar indistintamente os termos
moral e ética e em geral se refere a eles como expressões intercambiáveis. Todavia, na
prática, ainda que lançando mão de uma palavra ou outra, ele efetivamente distingue a
pretensão universalista de alguns em legislar sobre a conduta humana em geral da vontade
individual de construir um ethos próprio e independente, sendo esta a postura mais
concretamente realizável e mais sensatamente concebível, e é isso o que nos interessa aqui.
Assim, Onfray fala em moral universal e em moral particular, mas também pode utilizar o
termo ética nos mesmos sentidos. Seu livro A escultura de si, que é um livro de ética
individualista no mais alto grau, sub intitula-se, no entanto, a moral estética (e com esta
expressão, moral estética, tocamos no cerne deste capítulo). Constatamos apenas uma vez
(Cf. ONFRAY, 2010, p. 47) a distinção entre moral universal e ética particular que coincide
com a discriminação semântica de nossa preferência. No entanto, como dissemos, a distinção
fundamental prevalece em sua obra, ou seja: Onfray faz uma crítica da ética universal (ou da
moral...) em benefício de uma moral (ou de uma ética...) individual.
Pois bem, a universalidade do prazer e da dor, dissemos no nosso terceiro capítulo,
não serve como critério para fundamentar uma moral universal, algo que Onfray julga
impossível, até mesmo uma ambição tola. O prazer e a dor são fenômenos universais,
evidentemente, mas nenhuma sensibilidade humana é exatamente idêntica à outra e ao fim
cada indivíduo tem de lidar sozinho com seus afetos singulares. Não existe um padrão de
humanidade e por isso o uso dos prazeres pressupõe um uso de si impossível de ser
enquadrado em uma normatização universal sem prejuízos de ordem psíquica e identitária. A
moral, que é moral religiosa baseada em um ascetismo rigoroso, tem por séculos demonstrado
sua capacidade de produzir neuroses e provocado desastres humanos na lida com os afetos
precisamente por pretender impor uma uniformidade de comportamentos a partir de regras de
vida que julga de validade geral. Seu único sucesso, porém, tem sido o de castrar impulsos
naturais que não se manifestam exatamente da mesma forma em cada ser humano. Daí a
necessidade de demandarmos o relativismo ético contra a pretensão absolutista da moral.
Insistimos nesse ponto: “O hedonismo é uma filosofia da matéria corporal, uma sabedoria do
149
organismo” (ONFRAY, 1999a, p. 239), mas cada corpo, cada organismo, é um, é único. Cada
indivíduo deve, assim, por si próprio, aprender a se conhecer para poder aprender a lidar com
suas potencialidades sensitivas, tarefa para a qual a filosofia é de utilidade ímpar.
Portanto, o ponto de partida de toda ética é o corpo e, por conseguinte, o eu que o
acompanha, não o nós que constitui a premissa básica de toda moral. A moral tem sempre
como referência os outros, o todo, o geral. A ética se assenta na perspectiva de uma
consciência individualista, a única realmente concreta uma vez que o todo não é mais que
uma abstração. A moral – e por moral entendemos sobretudo a moral judaico-cristã que é a
nossa – tem sido historicamente a desconsideração do corpo em nome de uma suposta alma
que perde sua singularidade na medida em que está ligada à ideia de valores universais,
transcendentes e divinos que a regem de cima para baixo. Na lógica religiosa, o conceito de
alma representa a negação do corpo, uma negação que tem por efeito a anulação do eu
singular e afirmador de si em nome de um Nós de humildade, igualdade e submissão.
Enquanto a moral obriga à uniformização dos comportamentos criando uma consciência
coletiva vigilante e opressora, o hedonismo ético convida cada um a se emancipar e a se
apoderar de si mesmo a fim de afirmar-se enquanto diferença.
Donde o parentesco da ética com a estética: é que, graças às pressões morais e os
condicionamentos sociais a que somos submetidos desde o berço, a diferença não é dada a
priori, nem surge espontaneamente, mas é algo que precisa emergir pelas mãos do próprio
sujeito na condição de escultor de si mesmo a partir da expansão de sua consciência e de sua
sensibilidade individualista. Para Onfray, o filósofo hedonista é um indivíduo consciente de
suas forças que adere à liberdade existencial, liberdade esta que tanto assusta a maioria
acostumada a seguir muito mais do que guiar-se. Tal indivíduo, com coragem e sem
hesitação, toma nas próprias mãos a responsabilidade por sua existência. Ele é autônomo em
matéria de ser e de viver. Por isso é também um adepto do perspectivismo ético. Inspirando-se
na arte, ele próprio guiado por um impulso artístico criador aplicado à vida cotidiana, esse
indivíduo concebe para si mesmo um modo de vida que apenas ele pode encarnar, e ninguém
mais, pois tal vida reflete um estilo. Esse sujeito pode ser definindo como um esteta da
existência porque submete seus valores éticos àqueles da arte. Ele é, à sua maneira, um
filósofo-artista.
Se o capítulo anterior teve o propósito de apresentar a origem e os fundamentos
primeiros das éticas hedonistas (e é importante que frisemos o plural...), fundamentos estes
que encontraremos sempre, seja aqui, seja ali, este capítulo, por sua vez, visa expor o que
pode ser visto como a contribuição original de Michel Onfray para o desenvolvimento do
150
hedonismo filosófico, qual seja: a sua proposição de uma estética da existência ou, por outros
termos, a variação hedonista de uma ética do prazer e da afirmação da vida inspirada na arte,
especialmente na arte contemporânea.
Assim, explorando o sentido amplo da palavra estética, concebemos este nosso último
capítulo de acordo com a seguinte estrutura temática: uma estética em relação a si, isto é,
tomando como referência o próprio indivíduo (tópicos 5.1 e 5.2); uma estética com relação ao
outro (tópicos 5.3 e 5.4 e seus respectivos subtópicos); uma estética relacional com o mundo
(tópico 5.5 e seus subtópicos). A síntese e o sentido dessa estética da existência em prol de
uma vida hedonista nos serão apresentados por Michel de Montaigne, cuja voz finalizará este
nosso escrito.
Michel Onfray utiliza a metáfora da escultura com a qual batiza uma de suas obras68
para pensar a contraposição que a ética necessariamente assume frente à moral. Enquanto esta
se baseia na ideia mui religiosa e filosoficamente idealista 69 de uma humanidade universal, a
ética, tal como a vimos defendendo aqui, considera apenas a mui profana diferença entre os
seres humanos. Idealista, senão conceitualista, a moral cria preceitos a partir de generalidades
supostamente fundamentadas, quando não divinamente reveladas, e os toma como tábuas de
valores que abarcam toda a terra e não como uma criação humana, demasiado humana,
portanto como regras relativas e passíveis de revisões e adaptações de acordo com o progresso
das relações sociais. A moral é inflexível e essencialmente conservadora, ao passo que a ética
desconhece a Ideia, a generalidade, a Forma, o abstrato e o fundamento absoluto para
trabalhar somente a partir de princípios relativos e maleáveis que priorizem a singularidade
dos tipos humanos e as circunstâncias em questão. A ética é nominalista, por isso ela é
também consequencialista.
Persistamos nesse ponto, ele é importante em tempos de neofascismos e de
manifestações de ódio às diferenças: a ética parte do princípio de que a natureza humana é
constituída precisamente desse único elemento fundamental, a saber, a diferença. Montaigne
expressa esse fato da seguinte maneira: “A forma mais geral que a natureza seguiu foi a
variedade” (MONTAIGNE, 2006, II, 37, p. 678). Esta é, segundo o autor dos Ensaios, a “sua
68
A escultura de si: a moral estética (Cf. ONFRAY, 1995).
69
Ou realista, no sentido, próprio à querela dos universais, do partidário do realismo das ideias o que,
evidentemente, define o idealista, ou seja, aquele que crê na realidade autônoma dos conceitos universais.
151
70
Lembremos que a palavra estética vem do grego aísthesis que significa, antes de tudo, “sensação, sentido,
sensibilidade, percepção” (SILVA, 2018, p. 71). Assim, o sentido originário de estética remete ao sensório, ou
seja, ao corpo e à sua capacidade de sentir e perceber a realidade tanto quanto de viver as emoções e os
sentimentos por ela provocados. Por isso um pensador esteta (do grego aisthetés), como Nietzsche, por exemplo,
não é o racionalista que dedica sua vida ao estudo do conceito de belo ou o burguês erudito apreciador da arte
pela arte, mas, antes, é o filósofo que privilegia os sentidos sobre o intelecto porque reconhece a primazia do
corpo sobre a alma e das paixões sobre a razão. Esteta é aquele que valoriza a intuição e coloca o corpo no centro
de sua atitude existencial. Enquanto pensador do hedonismo, Michel Onfray não podia deixar de reivindicar essa
atitude estética, portanto sensorial, perante a existência. Nessa ordem de ideias, ele diz escarnecer “da razão
racionalizante, a ela” preferindo “a intuição fina e fulminante” (ONFRAY, 1995, p. 67) do artista.
153
Marcel Duchamp faz a arte perder seus valores absolutos de referência da mesma
maneira que Nietzsche declara o crepúsculo dos ídolos metafísicos e morais outrora
concebidos como eternos e imutáveis. Fim do Bem e do Mal em si; despedida do Belo e do
Feio de per si. O advento do relativismo estético em Duchamp resulta do efeito prolongado
dos golpes de martelo 71 nietzschianos em matéria de crítica da moral ocidental. É então que a
ética e a estética somam suas forças a fim de conceber novas possibilidades de existência.
Ainda sobre Duchamp, Onfray conclui o seguinte: “Para o melhor e para o pior, tudo,
absolutamente tudo, se torna matéria de arte” (Ibid., p. 44). Sendo assim, por que a mesma
ideia não poderia ser aplicada à existência? Onfray entende que se deve fazer um bom uso de
tal atitude e que portanto “cabe aos filósofos registrar nos seus domínios” éticos “essa
revolução possível” em estética. E mais: “Metafisicamente, torna-se possível a vez e hora de
uma ética estética” (Ibid., p. 44).
Donde a escultura artística como ideia inspiradora para pensar uma forma de vida
filosófica possível. Onfray lembra a utilização dessa metáfora por Plotino, nas Enéadas, onde
o neoplatônico incita cada um a ser capaz de esculpir a própria estátua uma vez que “a priori,
o ser é vazio, oco” (2010, p. 44), “a posteriori”, contudo, ele será aquilo que dele foi feito ou
o que ele fez de si mesmo, negligentemente ou não, conscientemente ou não. Daí a conhecida
“formulação moderna: a existência precede a essência” (Ibid.). Sobre isso, Onfray escreve que
“cada um é (...) parcialmente responsável pelo seu ser e pelo seu devir” (Ibid.) tal como
O que vale para o escultor em relação à sua obra se aplica igualmente à relação que o
indivíduo mantém consigo mesmo. Uma vez que a personalidade individual e o modo de vida
que lhe acompanha não são determinados a priori, mas construídos pouco a pouco, a partir da
experiência, pode-se, então, pensar a ética como uma estética praticada em prol da existência
em meio a uma profusão caótica de possibilidades de habitar este planeta. O objetivo é o de
construir uma ordem específica a fim de imprimir uma forma de vida que seja a manifestação
71
Ironicamente, foi com um martelo que em janeiro de 2006 um francês de 77 anos tentou destruir a Fonte
durante uma exposição em Paris como parte de uma grande mostra de arte Dadaísta. À polícia, o homem alegou
que se tratava de uma performance artística (inspirada por Nietzsche?) e que o próprio Marcel Duchamp teria
apreciado ver sua obra ser assim vandalizada (Cf.
https://www.bbc.com/portuguese/cultura/story/2006/01/060106_duchampataquefn.shtml – Acesso em: 03 abr.
2019).
154
de um estilo único, algo inimaginável no âmbito da moral cuja metáfora mais pertinente
talvez seja a de uma fábrica de produção em massa de onde saem apenas seres incrivelmente
semelhantes porque padronizados a partir de uns poucos moldes preestabelecidos.
Ninguém é inteiramente responsável por aquilo que é em razão de sermos lançados à
existência numa época, numa pátria, numa língua materna, numa família e numa sociedade
que nos submete a uma primeira formatação através de um tipo de educação conveniente às
normas morais reinantes no lugar e na época. São instâncias determinadas pelo acaso e que
por sua vez nos determinam à revelia de qualquer escolha possível. Os primeiros anos do
nosso ser simplesmente não nos pertence, mas sim à tribo, à comunidade, à coletividade rural
ou urbana mais ou menos livre ou prisioneira de seus próprios preconceitos em relação à vida
e aos costumes. Contudo, há o corpo e, com ele, a possibilidade de que certa fisiologia
produza uma idiossincrasia forte que não se deixe curvar completamente pelo que lhe é
estranho. Como observa Georges Palante (1862-1925),72 se uma parte de nós é sem dúvida
“modelada pelas influências sociais passadas e presentes”, uma outra parte é constituída por
“um fundo fisiológico e psicológico que lhe é próprio e que aparece como um resíduo
irredutível às influências sociais” (PALANTE, 2019, p. 22). A salvação poderá vir de um
corpo que não é, ou ao menos tem o potencial de não o ser, inteiramente fixado por
contingências. “O homem”, diz Nietzsche, “é o animal ainda não determinado”
(NIETZSCHE, 1992, § 62, p. 65). Digamos que alguns homens, os mais individualistas deles,
são ao menos não inteiramente determinados.
É possível, pois, sobrevir um ponto de nossa trajetória a partir do qual o vir a ser que
nos é próprio de fato passe a nos pertencer enquanto possibilidade de construirmos algo que
escape ao que o aleatório existencial nos reservou num primeiro momento. Podemos ver esse
instante como uma abertura para o desenvolvimento pleno do nosso ser na medida em que por
ele surge a oportunidade da escultura de si, isto é, de enfim tomarmos as rédeas do restante da
nossa formação. Trata-se de subtrair-se à moral para vivenciar escolhas que se constituirão
como nossas exclusivamente e, assim, assumirmos, com todos os riscos que isso implica, a
nossa individualidade inteira. Trata-se de algo que envolve, em última instância, a prática do
que os filósofos antigos entendiam como o mais precioso dos exercícios espirituais, a saber, o
conhecimento de si e o cultivo de si voltados para o cuidado de si. Como isso pode ser feito?
72
Provavelmente o maior pensador individualista francês, Georges Palante viveu entre o fim do século XIX e o
primeiro quarto do século XX. Autor quase desconhecido na França e totalmente desconhecido no Brasil, o
resgate de seu pensamento deve muito a Michel Onfray que lhe dedicou um estudo chamado Physiologie de
Georges Palante : Pour un nietzschéisme de gauche – Fisiologia de Georges Palante: por um nietzschianismo
de esquerda, Grasset, 2002, 2. ed. (1. ed. 1989). No Brasil, a editora Intermezzo publicou o primeiro livro desse
filósofo: chama-se As antinomias entre o indivíduo e a sociedade (Cf. PALANTE, 2019).
155
Fica claro que essa proposta filosófica de fazer da ética uma estética aplica-se somente
à primeira pessoa, não à segunda ou à terceira. Tal pretensão até mesmo horroriza o indivíduo
ético o qual tem, por necessidade, que seguir sempre no sentido oposto de todo mimetismo
social e cuidar de mudar mais seu mundo interior do que a ordem mundial exterior indiferente
156
à sua vontade pessoal. A moral, a política, a ordem econômica, o outro e os outros constituem
o conjunto dos fatores exteriores a si enquanto variáveis com as quais o indivíduo deve
compor e incluir em seu projeto ao modo de princípio de realidade porque, evidentemente,
não se pode viver em completo isolamento.73 Por outro lado, é se colocando nos antípodas da
moral e a recusando decididamente que a ética emerge e, com ela, a individualidade mesma,
pois “a moral é a grande inimiga da individualidade” (PALANTE, 2019, p. 233). Não se
deixar afetar inteiramente pelos contextos sociais, manter-se imune aos determinismos
coletivos do entorno, assim é que o filósofo-artista se torna inevitavelmente um imoralista, no
sentido nietzschiano da expressão.74
Uma ética que faz do prazer um princípio e do eu uma instância a ser afirmada como
tal, eis os ingredientes certos para os mais diversos mal-entendidos e calúnias que, vindo da
moral social, revela antes o receio desta de ter de lidar com indivíduos livres e emancipados.
É falso, porém, que o cultivo de si seja gerador de egoísmos, conforme pensa o senso comum.
A fim de esclarecer adequadamente as coisas, precisamos distinguir egoísmo de
individualismo, duas noções tão frequente e equivocadamente assimiladas. Ora, para o
egoísta, esquizofrenicamente centrado no próprio ego, o mundo gira ao seu redor e o outro
não existe com o reconhecimento e a dignidade que lhes são devidos. O indivíduo, por sua
vez, reconhece ao outro seu estatuto próprio, qual seja, o de outrem, o de um eu
absolutamente distinto, o de outra individualidade com a qual compomos uma relação de
intersubjetividade. Esse outro reconhecido em sua inteireza é aquele sem o qual nenhuma
ética é possível, inclusive a ética hedonista cuja “aritmética dos prazeres” individuais “obriga”
igualmente “a uma preocupação” com os prazeres do outro (ONFRAY, 2010, p. 55).
É o que precisa ficar muito bem esclarecido a fim de desfazer essa confusão conceitual
contemporânea muito em voga, porém errônea, entre os termos individualismo e egoísmo.
Como escreve Onfray, “aos olhos dos seus adversários, o hedonismo passa por ser sintoma da
indigência da nossa época” (Ibid.). Assim, entre “autismo, defesa do consumidor, narcisismo”
73
“O indivíduo isolado não existe”, escreve Georges Palante, lembrando “que as influências sociais intervêm
incessantemente na formação e na evolução das consciências individuais” (PALANTE, 2019, p. 32), donde a
relação tensa e eternamente conflituosa entre o indivíduo e a sociedade na qual ele está inserido.
74
Em o Léxico de Nietzsche, obra organizada por Christian Niemeyer, encontramos o essencial a ser dito para
elucidar esse sentido nietzschiano: “Do ponto de vista do conteúdo, o imoralismo é sobretudo direcionado contra
a moral cristã e, formalmente, contra a postura que vê as categorias morais como valores absolutos,
considerando-os acriticamente como verdade objetiva. Além disso, o imoralismo condena toda moralização, logo
todo presunçoso juízo moral que se dirige aos outros. O imoralismo põe em xeque a moral vigente (...),
investiga-a conforme seu valor para a vida, libertando-se para o pensamento autônomo em sentido ético, além de
estabelecer, portanto, novos valores” (Cf. NIEMEYER, 2014, p. 297). Notem a transição da recusa crítica da
moral para a afirmação de um pensamento ético cujos “novos valores”, inéditos, necessitam da capacidade
criadora do filósofo-artista para virem à tona.
157
e a apatia mórbida “para com os males da humanidade inteira” (Ibid.) que vemos em todo
lugar, o hedonista é acusado de pregar o individualismo que alimenta essa lógica quando a
palavra certa para a falsa acusação seria egoísmo. Qual a diferencia? Já o dissemos antes: o
indivíduo “afirma que só existem indivíduos”, entre os quais ele se inclui; por outro lado, o
egoísta se comporta como um verdadeiro autista, pensa que apenas ele existe e todos os
demais lhe aparecem como objetos mais ou menos úteis (Ibid.).
Georges Palante chama de “sensibilidade individualista” aquilo que se contrapõe à
“sensibilidade social” (PALANTE, 1995, p. 4) entendida como uma sensibilidade grosseira
no sentido em que Nietzsche emprega a expressão “instinto de rebanho”. Palante distingue
categoricamente essa sensibilidade individualista do que se entende por egoísmo em sua
forma mais vulgar: “O egoísta banal”, explica, é um arrivista, ou seja, um sujeito
inescrupuloso que quer vencer na vida a todo custo. Munido de uma “sensibilidade grosseira”,
o egoísta é o sujeito que “não sofre nada” com “as falsidades e mesquinhez” inerentes aos
jogos sociais de um mundo que estimula a competitividade, mas, ao contrário, ele “vive nesse
meio como um peixe na água” (Ibid.). A sensibilidade individualista é de outra ordem: ela
“supõe uma viva necessidade de independência, de sinceridade consigo mesmo e com o outro
que é apenas uma forma de independência de espírito” (Ibid.). Individualismo é, portanto,
antônimo, e não sinônimo, de egoísmo.
Nessa ordem de ideias, e dentro do contexto de uma crítica à sociedade de consumo,
Erich Fromm (1900-1980) define o egoísmo como uma espécie de desvio de caráter do sujeito
moderno. Para ele, “ser egoísta” quer dizer que “eu quero tudo para mim mesmo; que ao
possuir, não compartilhando, tenho prazer; que me devo tornar cobiçoso porque, se meu
objetivo é ter, sou mais na medida em que tenho mais” (FROMM, 2014, p. 27), razão pela
qual o egoísta está sempre “em antagonismo com todas as demais pessoas” (Ibid.). Nesse
ponto convergindo com Michel Onfray, também Gilles Lipovetsky combate a mesma
confusão social e moral que trata individualismo e egoísmo como sinônimos. Para o
conterrâneo do nosso autor, quando, por exemplo, a Igreja “usa o termo individualismo”, isso
na verdade “significa egoísmo”. Contudo, Lipovetsky esclarece que “individualismo não é
equivalente ao egoísmo” porque desde a modernidade o conceito de indivíduo diz respeito ao
“princípio segundo o qual cada um é reconhecido como” um ser “livre e semelhante aos
outros”, e esta é precisamente uma condição indispensável para que o ser humano se torne “o
158
legislador de sua própria vida”. “Nessa perspectiva”, continua ele, “individualismo não
significa egoísmo”, mas sim “liberdade”. 75
Vemos assim que o hedonismo filosófico se mostra no detalhe mais complexo e
distante dos lugares comuns. Antes de tudo, nessa ética do indivíduo “o prazer nunca se
justifica se custar o desprazer do outro” (ONFRAY, 2010, p. 55). Tal prática pertence ao
sujeito egoísta, não ao filósofo hedonista. Depois, se não se trata de idolatrar o próprio ego,
igualmente não se deve guerrear contra uma instância sem a qual não há si nem outrem, os
dois constituintes de qualquer relação ética. De fato, Onfray entende que o ego é necessário,
mas não o egoísmo, que é o culto exagerado do ego causado por uma cegueira infantil que
denota ausência de consciência do outro e que, portanto, eleva o eu para além de qualquer
medida razoável. A expansão máxima da vontade de poder de um ego sobre os demais não
interessa a Onfray. Ao contrário, ele afirma a necessidade de combater “a religião egótica, o
culto do ego” e “o narcisismo autista”. Por outro lado, recusa com igual vigor o convite moral
à repulsa de “tudo o que manifesta uma primeira pessoa”. Mantendo-se distante desses
extremos, o indivíduo ético precisa “encontrar a boa medida do Ego, sua necessária
restauração e restituição” (Ibid., p. 45), algo que cabe a cada um fazer por seus próprios
meios.
Estamos mais uma vez diante do que a razão, a consciência bem estabelecida e a
inteligência bem formada podem fazer para domar um impulso naturalmente cego e cheio de
ânsia de dominação: pois o ego, deixado por conta própria, converte-se rapidamente em
egoísmo e tende realmente a devorar os demais egos para afirmar-se com brutalidade num
mundo que estimula a competição selvagem nos sentidos civil, político e econômico da
expressão. O egoísmo certamente resulta do domínio de uma paixão sobre a lucidez e a
consciência clara. Ele é força cega, fruto de um exacerbado amor-próprio, um amor-próprio
tão natural quanto o impulso ao prazer e igualmente essencial para a preservação da vida
individual. Todavia, uma vez dominando sem freios o ser humano e suas relações
intersubjetivas, essa força se manifesta como narcisismo puro, um dos males maiores da nossa
época. Por outro lado, a moral que convida à humildade, à submissão a Deus e a outras
autoridades maiúsculas que incitam a praticar o ódio de si como indivíduo culpado e pecador
visa unicamente à impotência do eu que, enfraquecido, mais facilmente é subjugado. As
convenções sociais e os costumes estabelecidos funcionam efetivamente com este único
75
Extraímos as palavras de Gilles Lipovetsky de um vídeo intitulado O que é individualismo afinal? O mesmo
se encontra hospedado no canal do Fronteiras do Pensamento no YouTube e pode ser conferido no seguinte
endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=FuA_rii0ySs. Acesso em: 03 abr. 2019.
159
intento: promover a entropia da natureza própria de cada um. A ética estética, por sua vez,
busca a expansão desse ego natural, porém dentro de determinados parâmetros, regras e
princípios os quais, por sua vez, não serão ditados por nenhuma moral castradora. O que uma
estética existencial busca é a medida adequada à realização de uma vida com sentido e estilo.
Donde a importância do trabalho filosófico que se estabelece a partir do exame da
própria vida, da crítica às ordens sociais e da busca de uma construção positiva em matéria de
ética. “À maneira de um Descartes, que, por sua metafísica, procura e encontra um eu, trata-se
de obter um resultado semelhante para que uma ética seja enfim possível”, escreve Onfray,
lembrando que “sem ponto de partida, nenhum objeto ético é possível” (Ibid.), e o ponto de
partida de toda ética, e da ética hedonista em particular, é o eu. De onde mais se originaria
qualquer relação com os outros – e inclusive e antes de tudo consigo mesmo – , senão a partir
de um eu bem assentado?
Certo, compreende-se essa linha de raciocínio, mas, e quanto às outras pessoas que nos
cercam e com as quais conjugamos os mais variados vínculos e relações intersubjetivas? O
que dizer de todos os “Tu, Ele, Ela, Nós, Vós, Eles e Elas” (Ibid.)? Quem ou o que são essa
gente? Onfray responde que são simplesmente modalidades da alteridade. Assim, cada outro
é, evidentemente, um eu para quem todos os outros são objetos de sua perspectiva. Porque
cada qual se encontra no centro de si mesmo, encerrado nos limites do próprio corpo, é
somente a partir dessa máquina ultrassensível que é o corpo que se recebe as impressões dos
objetos exteriores que compõem o mundo, inclusive aquelas impressões vindas de todos os
outros corpos com os quais compartilhamos a existência humana. Não se escapa à lei do
solipsismo. A alteridade reside no grau de abertura da nossa consciência ética e no
reconhecimento de que é assim também para o outro, tão solipsista quanto nós, mas
igualmente capaz de praticar a alteridade. Nunca somos um átomo isolado no vazio, mas
sempre em interação constante e necessária com outros átomos.
A alteridade se define, portanto, pela aceitação do outro enquanto outro, em sua
diferença mesma e sem o desejo, por parte do indivíduo ético, de alterá-lo no que quer que
seja à sua imagem e semelhança. Nessa atitude, a individualidade, em matéria de ética, supera
a práxis moral sempre pronta a nivelar os sujeitos. A alteridade é uma virtude que “supõe uma
relação entre dois seres distintos” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 25). É o contrário, pois,
de uma relação baseada na identidade de si com o outro porque “o outro é o contrário do
160
mesmo” (Ibid.), nunca seu símile.76 De todo modo, a saudável convivência relacional com
esse outro que define toda ética digna desse nome é irrealizável se a priori uma “sadia relação
entre si e si que constrói o Eu não existir” (ONFRAY, 2010, p. 45). Por outros termos, se o
ponto de partida de toda ética, isto é, o eu, logo o corpo, não gozar de plena harmonia consigo
mesmo toda e qualquer relação intersubjetiva será deficitária. Por isso Onfray afirma que
“uma identidade falha ou ausente a si mesma veda toda ética” (Ibid.) – difícil é não constatar
que assim se passam as coisas em nosso mundo contemporâneo tão moralista quanto
antiético.
“Cada ação individual, cada modo de pensar individual provoca horror”, escreve
Nietzsche em Aurora (2004, § 9, p. 19). O pensador alemão está criticando a cultura moderna,
esta que ainda é a nossa e cuja maior exigência não é outra senão a negação do ego, a
“debilitação e anulação do indivíduo” (Ibid., § 132, p. 102) com o objetivo de camuflá-lo e
subjugá-lo no todo social. A cultura cristã do ódio ao eu encontrou terreno fértil na
modernidade onde perdura graças à cultura de massa que pretende castrar o indivíduo daquilo
que mais pode lhe ser próprio: a singularidade e a autonomia ante a vida. Ser filósofo nesse
contexto requer o uso de uma liberdade incivil que quebre os grilhões do corpo social para
tornar possível o cultivo de si. Repitamos: a moral sufoca a individualidade. Esta, por sua vez,
floresce apenas na exceção. E é sob o signo dos antigos filósofos helenistas e de Nietzsche
que Michel Onfray se constitui hoje como um dos principais pensadores do indivíduo. Ora,
ligada à noção de indivíduo está a de estilo, pois nenhuma estética da existência é possível
fora da construção de um estilo, um conceito caro a Onfray por expressar a singularidade
adquirida após um trabalho sobre si de contenção da energia caótica da vida em uma forma
determinada por um projeto filosófico.
Para pensar esse aspecto estético da ética hedonista Michel Onfray foi ao encontro de
sua inspiração junto à obra de Andrea del Verrochio (1435-1488), artista italiano da
Renascença, mais precisamente de sua estátua equestre de bronze representando o Condottiere
Bartolomeu Colleoni (1400-1475). Para Onfray, ao contrário do que diz a lenda, o
monumento que se encontra na Piazza San Zanipollo, em Veneza, Itália, não representa um
76
André Comte-Sponville aponta até mesmo para a formulação de um princípio lógico que não deixa de
interessar à nossa discussão ética: “Toda coisa, sendo idêntica a si (princípio de identidade), é diferente de todas
as outras (princípio de alteridade)” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 25).
161
longe das virtudes cristãs, essas diminuentes lógicas, contra a humildade que
definha, a culpabilidade que corrói, a má consciência que mina, o ideal
ascético que mata, o Condottiere pratica uma moral elevada e da afirmação,
uma inocência, uma audácia e uma vitalidade que transbordam. Sua ética é
também uma estética: às virtudes que amesquinham, ele prefere a elegância
e a cortesia, o estilo e a energia, a grandeza e o trágico, a prodigalidade e a
magnificência, o sublime e a eleição, o virtuosismo e o hedonismo 77 – uma
autêntica teoria das paixões destinada a produzir uma bela individualidade
(Ibid., p. 19).
77
Virtudes estas que Onfray examina com detalhes, uma a uma, na obra em questão, ou seja, A escultura de si
(Cf. ONFRAY, 1995).
162
qualquer imitação. Nesse sentido, o Condottiere está livre de todo tipo de moralina,78 essa
substância tóxica diminuidora das forças e niveladora das formas.
A moral é o oposto da ética, já o dissemos mais de uma vez: ela aniquila a
individualidade ao passo que a ética se caracteriza por sua afirmação. A moral se ocupa da
formação do “homem calculável” (ONFRAY, 1995, p. 25), o igual a todos os outros, ou seja,
o homem padronizado, sujeito mediano e medíocre porque destituído de uma singularidade
expressiva. A ética de inspiração estética, ao contrário, possibilita a manifestação de uma
individualidade forte e única, irredutível e irreplicável. Daí o encanto que a obra de Andrea
del Verrochio exerce sobre o nosso autor: para além dos “atributos de capitania e as exatidões
da soldadesca” (ONFRAY, 1995, p. 24) a que geralmente reduzem a figura do Condottiere,
trata-se de perceber nessa escultura “a expansão de uma vitalidade transbordante, contida,
mas expressiva” (Ibid., p. 25). Eis todo o simbolismo do Colleoni e seu cavalo: eles
representam a força encarnada e “suas potencialidades quando ela é dominada, circunscrita
dentro de uma forma” (Ibid., p. 25) tão única e original quanto desejada.
Para Albert Camus (1913-1960), a escultura é “a maior e mais ambiciosa de todas as
artes” (CAMUS, 2011, p. 294) precisamente devido ao empenho do escultor “em fixar nas
três dimensões a figura fugaz do homem, em restaurar a unidade do grande estilo à desordem
dos gestos” (Ibid.). Camus nos diz que o propósito da escultura não é o de imitar a realidade,
mas sim o de estilizá-la – porque o estilo não existe na natureza: ele é pura criação e capricho
humanos. A escultura deve então estilizar, estilizar um “gesto”, um “semblante”, um “olhar”
(Ibid.). Ela deve “capturar em uma expressão significativa o êxtase passageiro dos corpos ou
o redemoinho infinito das atitudes” (Ibid.) e, assim, conter o devir numa forma ideal possível.
Concordando evidentemente com essa definição, Onfray acrescentaria o seguinte: o trabalho
do escultor deve servir de inspiração para que o indivíduo torne estilizável sua existência
mesma, e isso em sua integridade e movimento próprios, pois sua forma é dinâmica, não
estática. Assim, não basta a capacidade de contemplar e de produzir obras de arte para escapar
ao niilismo inerente à realidade em sua secura natural: é preciso, ainda e sobretudo, fazer-se
artista e escultor de si mesmo. Trata-se de magnificar, engrandecer e exaltar cada gesto e cada
ato vivido, querer uma ação determinada por uma vontade buscando, assim, ser senhor de seu
78
Moralina é um neologismo criado por Nietzsche para dizer o quanto a moral é perigosa, já que produtora dessa
substância tóxica dela derivada. É a forma contagiosa da moral. Através dela os maus instintos se espalham por
povos inteiros e mesmo os espíritos mais fortes podem sucumbir a ela se não estiverem suficientemente
imunizados. A moralina cultiva os maus afetos e se caracteriza por ser diminuidora da vitalidade em seu sentido
mais amplo. Pode-se ser contaminado por esse veneno até mesmo pela alimentação – tanto que Nietzsche coloca
o seguinte problema: “Como você deve alimentar-se para alcançar seu máximo de força, de virtù no estilo da
Renascença, de virtude livre de moralina?” (NIETZSCHE, 1995, II, § 1, p. 36). Ler Ecce Homo para conhecer a
dietética nietzschiana.
163
devir. Trata-se, ainda, de brincar com os movimentos incessantes da vida bem como atuar em
suas circunstâncias imprevisíveis à maneira do artista exímio que, às vezes, improvisa.
Em meio a uma “paisagem caótica” (Ibid.) de paixões e instintos que brigam por
domínio sobre o ser, o Condottiere inspira porque excele na arte de selecionar e se deixar
comandar pelas paixões que dinamizam e potencializam a vida, decerto, mas sem o risco da
fratura, da quebra pelo excesso. Sua consciência guia seus impulsos. Sua inteligência de vida
se faz vontade de vida. Ele é o emblema da lógica dos instintos da vontade de potência
nietzschiano na medida em que “exalta a conduta, o talento para comandar as partes que, em
nós, querem o império e a onipotência” (Ibid.). Assim, submetendo a energia vital, o
Condottiere evita sucumbir a ela e exerce domínio sobre sua existência. Tal modelo de
superação do humano pode ser inatingível até certo ponto, talvez seja mesmo uma condição
inalcançável em sua plenitude, mas o interesse aqui está em que sua aura existencial inspire
outras sensibilidades ético/estéticas a proliferarem suas tentativas de esculpir a si mesmas
porque, de fato, importa menos atingir a genialidade e a perfeição que a singularidade e a
diferença. “Dar estilo ao caráter” tem mais a ver com a construção de um “gosto” próprio pela
vida do que com a qualidade ou a excelência prática “desse gosto” (DIAS, 2011, p. 113).
Escultor e criador da própria existência, o Condottiere se coloca a tarefa maior de
edificar sua identidade pessoal, isto é, aquilo que “deve jorrar do bloco de mármore disforme
que existe ao chegar-se na consciência” (ONFRAY, 1995, p. 29). Esculpir a própria vida é
precisamente isso: “Interromper a energia para contemplá-la, captar a vitalidade para domá-la
e dela se nutrir” (Ibid., p. 84) a fim de se construir. O Condottiere representa o humano de
exceção porque possui essa habilidade própria do sábio de transformar a energia informe do
real em uma forma ética determinada por uma vontade consciente. Precisamente “lá, onde o
informe trepida, escondem-se as potencialidades que cabe à forte individualidade expor, fazer
surgir” (Ibid.). Donde a metáfora do artista faustiano: “O homem faustiano é demiurgo,
intercede para gerar as forças cristalizadas” (Ibid.) como faz, por exemplo, um Michelangelo
ao encarar “um bloco de mármore de várias toneladas para dele extrair, após as tentativas
infrutíferas de um talhador de pedras de Carrara, o Davi do qual se conhece a energia, a
potência e o olhar intratável” (Ibid.).
O mesmo procedimento pode e deve ser empregado aos atos e gestos da vida cotidiana
que assim se tornam potencialmente capazes de dar forma a um modo de ser a priori
inexistente. Assim, por analogia, faustiano é também todo indivíduo ético, vale dizer, “o
praticante de uma moral sem moralina” (Ibid., p. 30) que é o sujeito hábil em transformar a
energia dionisíaca que o habita em uma forma apolínea a qual lhe conveio em detrimento a
164
inúmeras outras possibilidades de ser porque, assim como de um bloco de mármore bruto
muitas figuras imponentes eram possíveis ao artista que ao final se decidiu sobre uma em
prejuízo de todas as demais, igualmente “não há constituição de uma singularidade sem a
morte de tudo o que ela teria podido ser, fora dessa cristalização particular” (Ibid., p. 77). O
Condottiere foi bloco de mármore e escultor de si mesmo, um Michelangelo que tomou a
própria vida como matéria-prima e cuja talhadeira foi o conjunto das virtudes praticadas com
a finalidade de dar cabo a um projeto ético possível e desejado. A coerência de uma vida
virtuosa se tornou aí o objeto artístico extraído. Tomando-o como modelo, cada um poderá
constatar como as tentativas infrutíferas serão maiores ou menores tanto em número como em
dificuldades, a depender do talento que se dispõe para enfrentar as imprevisibilidades da vida.
Avesso a toda forma de ilusão, Michel Onfray não deixa de sublinhar que é da “natureza de
uma ética ser difícil” (Ibid., p. 69). Sendo assim, “os ideais que ela propõe”, precisamente por
serem ideais, estão desde já “fora do alcance e só servem”, concreta e efetivamente, “como
indicadores de direção” (Ibid.), nunca como verdades absolutas passíveis de serem
alcançadas.
Na leitura que faz do Condottiere, Onfray encontra o mesmo trajeto inaugurado por
outros grandes indicadores de caminhos possíveis, a saber, os filósofos helenísticos gregos e
romanos, verdadeiros mestres no exercício de si com vistas à construção de uma
individualidade forte, livre e autônoma:
(DIAS, 2011, p. 64), atos estes inerentes ao vir a ser, não ao ser. À diferença da escultura
propriamente dita, a arte da vida não almeja a imobilidade do que é, mas o dinamismo do
devir – sabendo que, todavia, “o tornar-se arrasta atrás de si o haver sido” (NIETZSCHE,
2004, § 49, p. 44). Não obstante, tanto na ética como na arte, o estilo é o elemento definidor
da “assinatura” de uma “identidade encarnada” (ONFRAY, 1995, p. 82), ao passo que na
moral dos costumes, sempre niveladora, reina a “caligrafia única” de “pessoas sem
personalidade, seres sem espessura, sem estilo e sem maneira” (Ibid.) própria que as distinga
da massa. Nessa ordem de ideias Onfray recorre à etimologia da palavra e nos faz saber que
estilo “tem relação com o estilete, este pequeno cinzel contemporâneo das escritas sobre as
superfícies macias” (Ibid., p. 78). Esse utensílio, o qual possibilitou a escrita em seus
primórdios, possui numa de suas extremidades uma ponta afiada e, na outra, um achatamento
que permite ao espírito hesitante ou errante voltar atrás e apagar uma mensagem talhada fora
do aspecto desejado.
Onfray lembra que do início da escrita até hoje todos os que se aventuram na arte de
manipular as palavras a partir de uma preocupação com o estilo se comprometeram com essas
duas formas de executar a tarefa, a saber: inscrever, escrever, traçar, produzir um sentido onde
não havia nenhum; mas também “aplanar a superfície sobre a qual já estão as estrias, os
signos, as caligrafias esculpidas” (Ibid.) para tentar novamente dizer o que se quer, porém de
outro modo, de forma mais precisa, talvez mais elegante. O estilo, nos diz Onfray, é
precisamente esse “compromisso entre as duas práticas, o uso da ponta e da espátula, na
perspectiva, aí também, de um equilíbrio, de uma harmonia” (Ibid., p. 79). O que mais deseja
“o homem com o estilete” (Ibid.) além de transmitir uma mensagem? Ora, para o artista da
palavra, dizer não basta por si próprio. Com efeito, ele se sente impelido a alcançar também o
como, a maneira única e a forma conveniente ao seu espírito após o trabalho de “tentativa,
busca, pesquisa e, talvez, enganos” (Ibid.). Nesse sentido, “criar um tom é tentar a produção
de uma obra de uma maneira sem duplicação possível” (Ibid.). A definição de estilo em
matéria de arte e escrita faz dele algo passível de ser aplicado à existência quando esta se
inspira na estética. O contrário disso são os padrões sociais os quais oferecem modos de ser e
de viver cuja principal característica está justamente na reprodutibilidade fácil, no convite ao
mimetismo, na imitação cômoda. Assim, os duplos são muitos em nossa sociedade de cultura
de massa. Os únicos, por sua vez, são raros.
O cinzel, então, enquanto instrumento representa “a vontade”; já a tabuleta na qual
produzir signos muito vivos é “a vida cotidiana” (Ibid.) imersa no real imediato com o tempo
fugidio que lhe é próprio. “Fazer de sua vida uma obra de arte supõe” (Ibid.) a capacidade de
166
determinar-se mais do que a de ser determinado: “Não há moral sem decisão tenaz de
estruturar a existência através do querer” (Ibid.), escreve Onfray, querendo com isso dizer que
toda ética a qual tem em mira a produção de uma “forma só é imaginável dentro do contexto
de um voluntarismo estético” (Ibid.). Trata-se, portanto, de experimentar, de ensaiar e testar
“novas possibilidades de biografia” (Ibid., p. 93) a partir do próprio querer, algo só possível
fora das “obrigações sociais (...), religiosas, metafísicas” (Ibid.) e de outros instrumentos da
moralidade castradora de toda criatividade existencial autônoma. Ora, como afirma Rosa Dias
em seu livro Nietzsche: vida como obra de arte, “criar é colocar a realidade como devir”
(DIAS, 2011, p. 65), não como ser. Significa dizer que “aos olhos do criador”, isto é, o
próprio indivíduo, “não há mundo sensível já realizado onde é preciso se integrar” (Ibid.).
Recusar o enquadramento social é então o primeiro passo para o advento da criação de si
porque “criar”, continua Rosa Dias, “não é buscar” um modelo já dado e adaptado às
convenções, ou seja, “não é buscar um lugar ao sol” em meio à multidão. Criar, escreve ela, é
“inventar um sol próprio” (Ibid., p. 65-66).79 Também aqui estão presentes as práticas
identificadas com a escultura de si sugeridas por Onfray: nelas “os corpos, o tempo, os gestos,
as palavras, as ações, o espaço, o real por inteiro, são considerados como materiais dos quais é
preciso extrair formas” (ONFRAY, 1995, p. 93), ou seja, formas de viver de um ser cuja
realidade autêntica encontra-se em devir. Não há outro instrumento que sirva a esta operação
que não seja o querer que antecede a ação, pois é “a vontade” do indivíduo que “vale como
estilete destinado a produzir uma obra” (Ibid.).
A diferença crucial é que o escriba da própria vida não dispõe da possibilidade de
corrigir qualquer palavra pronunciada, qualquer gesto ou escolha os quais, precedidos ou não
de um querer consciente, vieram à realidade para marcar definitivamente uma história inscrita
mais ao modo de um relógio solar que sobre uma tabuleta de argila que permita a correção do
ato cometido. Essa é a analogia utilizada por Michel Onfray para lembrar a condição trágica
na qual o indivíduo ético está inserido no tempo presente, o único a lhe pertencer: “Quando
não é instrumento da escrita”, escreve ele, “o estilo é também a haste do gnômon que permite
traçar os signos da sombra que fazem sentido sobre a superfície plana de uma pedra onde
estão gravados os intervalos” (Ibid., p. 79). Ora, nesse caso, o estilo se torna o “instrumento
da realeza do tempo, a haste pela qual se visualiza o que, após Platão, pode-se chamar de a
79
Rosa Dias escreve aqui inspirada no aforismo 320 de A gaia ciência de Nietzsche, cuja reprodução mais que
se justifica aqui: “A: Eu ainda o compreendo bem? Você está buscando? Onde se acham, no meio do mundo real
de agora, seu canto e sua estrela? Onde pode você deitar-se ao sol, de forma que também lhe chegue um
excedente de bem-estar e sua existência se justifique? Que cada um faça isto por si próprio – você parece me
dizer – e tire da mente as generalidades e as preocupações com os outros e a sociedade! – B: Eu quero mais, eu
não sou um buscador. Quero criar para mim meu próprio sol” (NIETZSCHE, 2001, § 320, p. 214).
167
imagem móvel da eternidade imóvel” (Ibid.). Eis, pois, a necessidade de sincronizar os atos
de vida com o tempo, esse “tempo da natureza” o qual é também o “do ser”, ou seja, “o devir
em via de devir” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 587).
O tempo é portanto o instrumento dos instrumentos. Uma vez que toda ação apenas
nele e por ele se realiza, e isso de forma definitiva porque deixando marcas indeléveis, o bom
uso do tempo exige sabedoria, e esta nos diz antes de tudo que o tempo é indiferente aos
anseios da vida humana. Consequentemente o tempo não deixa, em absoluto, nenhum espaço
para o arrependimento de uma ação desastrosa ou omissa. Melhor: ele torna esse sentimento
insignificante e vão diante do fato de que “na extremidade do traço” concretamente ensaiado
“não há mais o escriba e sua possibilidade de recorrer à espátula”, mas somente ele, “o tempo,
imperioso, indene à hesitação, à indeterminação” (ONFRAY, 1995, p. 79). O humano e seu
querer ético, essa vontade criadora de atos de vida encontra, aqui, na relação com o tempo, a
dura prova de seu projeto. Esse é o momento de lidar com o trágico e de se entregar com
coragem ao desconhecido: a incerteza e a imprevisibilidade é o que efetivamente definem o
futuro. Por outro lado, trata-se de não se arrepender das ações infrutíferas e equivocadas do
passado, mas sim de esquecê-las como condição de possibilidade para manter em aberto o que
resta a construir e, assim, praticar o exercício de uma inocência criadora tencionada
unicamente sobre o presente. A lida com o tempo exige a coragem e a solidão do sábio
trágico. Nesse jogo de risco com o tempo o projeto, o ideal, o pensamento e a reflexão devem
anteceder o máximo possível toda ação porquanto tudo se passa como num relógio solar cuja
“escrita fugaz sobre as pedras está mais próxima daquilo que pode ser a maneira na vida de
um homem” (Ibid.). Assim,
religião” que, ao contrário, “reúne, associa, agrupa e reagrupa” (Ibid.) todos num só e mesmo
todo, indistintamente. Enquanto “o estilo fragmenta, rebenta, divide” (Ibid.) para melhor
distinguir, a religião busca a síntese: ela quer a comunhão na fusão, a confusão na mescla, a
generalização na pretensa universalização (Ibid.) – por sinal, o espírito fascista desejante de
um igualitarismo total pertence, desde sempre, às religiões organizadas, especialmente
àquelas denominadas monoteístas.
Michel Onfray aponta aqui para duas forças contrárias e em embates permanentes: as
instâncias sociais, a moral e a religião trabalham em favor de um “movimento centrípeto”
com vistas a captar os sujeitos por meio de uma força de atração que os puxa para um centro
comum desde o berço (Deus, Pátria, Família, Educação, Trabalho). É em torno desse centro
de gravidade que eles devem fazer orbitar suas existências, existências que lhes foram
alienadas pela formatação social. Em sentido contrário age uma energia centrífuga inerente à
sensibilidade individualista e à vontade ética que lhe acompanha. Trata-se de uma força de
resistência a qual impele o indivíduo a afastar-se do centro que reúne tudo e todos em um
mesmo modo de vida onde a diferença é anulada em benefício do padrão coletivo e da
uniformidade social. Ora, “preocupada em estruturar a sua própria personalidade pela
expressão de um tom que lhe seja próprio, uma pessoa visará a homogeneidade dela mesma, e
não a do grupo” (Ibid., p. 80-81). Trata-se, pois, de querer “a expansão de sua própria
natureza, em total insubordinação quanto ao coletivo” (Ibid., p. 80). Daí a necessidade de se
rebelar contra os aparatos sociais que afrontam a dignidade humana individual.
Desse modo, uma vez estabelecido que em matéria de ética tudo parte do indivíduo e
pressupondo sempre que este construiu uma boa relação hedonista consigo mesmo, pode-se,
então, avançar em direção à formulação de relações hedonistas com o outro. A relação com o
outro é uma relação de troca de afetos. Aqui a consciência ética é como um espelho que nos
confronta com nossa própria capacidade de lidarmos com impulsos, desejos e paixões
constituintes da energia da vida, paixões e impulsos que por séculos a moral cristã buscou
extirpar do humano à força de muito ascetismo. Ao contrário da moral, a ética trabalha sobre
a ideia de limitar convenientemente as pulsões passionais, não em extirpá-las. O hedonismo
aqui em questão pretende tomar o ser humano pelo que ele é – um ser de afetos – e não pelo
que idealmente deveria ser – uma alma sem corpo.
O humano é um ser carregado de paixões, de pathos, um ente natural, logo animal, que
possui em seu cerne aquilo que Onfray, a partir de Bataille, chama de a parte maldita
(ONFRAY, 1995, p. 143 e 208). Pois ao contrário do que se acredita, a barbárie
contemporânea de nossa civilização ocidental em frangalhos tem menos a ver com uma
entrega generalizada às nossas pulsões animais do que com a tentativa de “erradicar pura e
simplesmente as paixões de onde elas se encontram para esvaziar o homem de sua substância
e transformá-lo em cadáver antes do tempo” (Ibid., p. 143). O hedonismo funciona como um
antídoto à lógica castradora que impera na civilização porque se quer aliado e cúmplice da
natureza e deseja antes trabalhar a partir de suas forças selvagens do que condená-las de
antemão. Enquanto “ética afirmativa”, no sentido nietzschiano da expressão, o hedonismo
defendido por Michel Onfray “quer as partes animais do homem até o limite do aceitável”
(Ibid.) e considera que o pior e o mais prejudicial pertencem aos resultados provenientes de
uma luta ascética, sempre vã, travada contra o que, no humano, é natureza. Sem a construção
de uma ética, na ausência de um trabalho de escultura sobre a matéria bruta, a natureza
despontará violentamente em algum momento e o fará produzindo efeitos desastrosos. Melhor
então domá-la numa relação de cumplicidade com suas forças. “Toda a questão ética”, lembra
Onfray, “reside na determinação dos limites: a partir de que momento essas potências
magníficas arriscam-se a tombar para o lado sombrio? Além de que marcos elas são
intoleráveis? O hedonismo permite uma resposta” (Ibid.).
Num primeiro momento é preciso ter em mente que o tropismo hedonista natural é o
princípio fundador dessa ética cultural de mesmo nome: há o “movimento natural, e universal,
que empurra os homens a buscar o prazer, em seguir em direção a ele, a desejá-lo ao mesmo
tempo que a fugir do desprazer, a afastar-se da dor, do sofrimento e das penas” (Ibid., p. 144).
Em seguida, partindo desse fato, é preciso ocupar-se da possibilidade “de realizar uma
intersubjetividade contratual na qual os sujeitos consentem, tanto um quanto o outro, a uma
álgebra dos prazeres que se instrua das partes malditas” (Ibid.). Às partes malditas estão
ligadas as paixões geradoras do riso, mas também das lágrimas; do erotismo, mas igualmente
da pulsão masoquista de morte; do egoísmo exacerbado, mas não menos do eu equilibrado e
preocupado tanto consigo mesmo como com o mundo e com os outros. Enfim, a parte
maldita é simplesmente a animalidade que nos constitui e que levamos conosco, mais ou
menos manifesto, para as relações intersubjetivas que estabelecemos numa civilização dada.
É nesse sentido que Onfray nos lembra que o hedonismo é uma arte de lidar com a
impureza que nos habita sem intervalos. De fato, o que em nós é passional e desiderativo foi
tratado historicamente como impuro porque manifesta mais explicitamente o corpo, ao passo
170
que o puro define a ausência de desejos e de paixões. A arte hedonista se posiciona contra
essa utopia delirante da moral que pretende fazer do ser humano um anjo castrado. O grande
anseio “dos apóstolos do ideal ascético” sempre foi o de “aniquilar o desejo no homem” a fim
de “produzir uma carne branca, despojada de seu sangue e de sua matéria, de seus humores e
de sua linfa, de sua vitalidade e de suas forças” (ONFRAY, 1999a, p. 165). “Transformar o
homem em anjo, a matéria em ideia” (Ibid.), o interesse próprio em moral da compaixão, eis
as ilusões compartilhadas entre sacerdotes, padres, pastores e filósofos cristãos.
Aqui Onfray aborda o tema de nossa tendência natural ao egoísmo: para ele
precisamos reconhecer essa força, não pretender extirpá-la ou dissimular sobre ela, mas contê-
la trabalhando-a para que, dentro dos limites adequados, essa energia se converta em
voluntarismo ético – inclusive e sobretudo na relação com o outro. Todos, sem exceção,
tendem ao prazer próprio. Então que o lugar do outro em nosso entorno seja ocupado a partir
da perspectiva do hedonismo e não forçosamente contra ela. Enquanto ética, o hedonismo
define-se precisamente pela consideração desse outro a partir do princípio de que “o gozo
desejado por um” indivíduo “deve imperativamente ser colocado em perspectiva com o do
outro” (ONFRAY, 1995, p. 144). Ora, na condição de puro impulso instintivo, o gozo se quer,
naturalmente, egoísta: “O egocentrismo ou o egoísmo só escutam a voz do gozo pessoal: meu
prazer, e só ele” (Ibid.). Do mundo selvagem de onde provimos (um mundo sobre o qual não
cabe julgamentos morais) até a nossa sociedade consumista e mercantil dita civilizada,
estamos diante de um continuum, ou seja, permanecemos no registro do egoísmo. A ética
surge apenas quando a razão assume a dianteira e faz avançar um esforço voluntário que visa
limitar uma paixão suscetível de gerar sofrimentos num contexto cultural complexo no qual
não se escapa à necessidade de manter relações interpessoais. Que tais relações nos sejam,
portanto, a nós e aos outros, de benefícios mútuos.
Como “um prazer pessoal, sem o outro, pode rapidamente tornar-se um prazer apesar
do outro” e mesmo “contra ele” (Ibid.), o que produz sofrimento quando se deve promover a
alegria, Onfray repete sem cessar que o hedonismo busca o oposto do egoísmo porquanto se
trata de uma atitude filosófica que implica necessariamente “uma preocupação” ativa “de
júbilo para si”, decerto, mas “ao mesmo tempo que para o outro” (Ibid.). Que não se veja aqui,
nessa consideração para com o outro, qualquer resquício da moral cristã da compaixão.
Lembremos que o hedonismo é uma ética individualista. No entanto, ela se anularia de tal
condição tão logo pendesse para alguma forma de egocentrismo, pois nessa condição toda e
qualquer ética é anulada. Complementando o que já foi dito anteriormente, repitamos que, se
a ética não é uma moral com suas pretensões universalitas, tampouco o individualismo é
171
sinônimo de egoísmo. O egoísta pensa apenas em si e pretende reduzir o mundo à sua limitada
consciência representativa de si mesmo. O indivíduo, por sua vez, entende que a experiência
única e intransferível de ser si mesmo e de sentir a vida deve, por analogia, ser reconhecida
igualmente no outro. É seu dever, então, raciocinar da seguinte maneira: “Se sofro, o outro
também sofre e inclusive pode sofrer por uma ação minha”. Por conseguinte, “se gozo e faço
gozar – conforme o princípio de Chamfort de que Onfray faz cláusula pétrea de sua filosofia –
então me constituo como agente ético porque tal só é possível na relação com um ser distinto
de mim”.
A alteridade é, pois, uma exigência ética e a dinâmica própria do hedonismo, explica
Onfray, “considera que não existe volúpia possível sem consideração do outro” (Ibid.) o que,
conforme foi assinalado, não se dá por “amor ao próximo” (Ibid.) à maneira da moral da
renúncia de si,
Todos nós somos, por natureza, seres solipsistas, mas alguns se constituem, através da
cultura e de uma educação filosófica, como indivíduos. Por sinal, apenas em contraste com o
outro é possível extrair a boa individualidade. O individualismo, portanto, não veda a
intersubjetividade: ao contrário, ela é sua própria condição de possibilidade. Por outro lado, o
egocentrismo (essa espécie de solipsismo não lapidado) interdita toda boa interação com o
outro, logo toda ética digna do nome. Como encontrar o equilíbrio que nos mantenha o
máximo possível na trilha da ética? A intersubjetividade hedonista pressupõe, para Onfray, a
prática de uma patética, ou seja, uma arte de lidar com as paixões, e não apenas as nossas
como as que pertencem àqueles com os quais nos relacionamos na medida de uma
interpretação afetiva possível. Trata-se, evidentemente, de uma arte sutil, complexa e de
difícil execução porquanto exige uma sensibilidade elevada e sempre atenta às nuances da
expressão emotiva que se dá na interação com outrem por meio da linguagem, dos gestos e
dos atos. “Uma patética é então uma estética das paixões”, elucida Onfray, acrescentando que
ela funciona como “uma poética das partes malditas” (Ibid.), isto é, um trabalho realizado
172
com aquelas partes passionais do ser humano desprezadas pela moral ascética, mas desejadas
pelo hedonismo.
A relação com nossas próprias paixões se dá de modo intuitivo, imediato, direto e, por
isso mesmo, confusa para os que são incapazes de se autoanalisarem, de conhecerem a si
mesmos, em suma, de filosofarem. Mas essa relação que experimentamos conosco evidencia a
impossibilidade de compartilhar verdadeiramente qualquer afeto de nosso corpo com o outro.
“Cada individualidade está condenada a viver sua única vida, e somente sua vida, a ressentir e
experimentar, o positivo como o negativo, para si só e por si só” (ONFRAY, 2001, p. 40).
Não obstante, o corpo alheio de fato nos toca afetivamente e, em troca, também o nosso o
afeta. Dessa interação surgem sinais, e são precisamente esses sinais produzidos a partir de
afecções mútuas que devem ser lidos pelo indivíduo ético, com todos os riscos interpretativos
que isso pressupõe.
Os corpos com os quais nos relacionamos e que nos afetam expressam paixões e
estados de alma a serem decodificados, interpretados de algum modo, depois trabalhados
racionalmente a fim de produzir, em nós, uma ação coerente com um projeto ético. Esse
processo define a boa intersubjetividade. No entanto, tudo é muito delicado, visto que o
acesso ao outro em si mesmo nos é vedado, absolutamente. Entre nós e eles/elas nenhuma
sensação, percepção ou emoção podem ser realmente transferidas, a não ser de modo
comunicativo e participativo, portanto indireto e distante (Ibid.). É o que se tem. Leiamos,
então, nas entrelinhas das manifestações comunicativas com o outro a fim de construir uma
compreensão mais próxima possível daquilo que está oculto por trás das aparências. “Para
além das peles que nunca são penetradas mas são condenadas às superfícies, às ductibilidades
superficiais, ela [a patética] visa a alma para tocar no outro, atrás da aparência, nas suas
profundezas” (ONFRAY, 1995, p. 144-145). Nesse jogo fenomenológico dos sentimentos, o
mesmo vale no sentido oposto: o esforço de nossa parte em nos fazer entender por um
terceiro.
Prisioneiros do nosso próprio eu, “cada signo emitido em direção ao outro é”, antes de
tudo, “uma tentativa de romper um pouco mais o solipsismo criando as condições de uma
ilusão de intersubjetividade” (Ibid., p. 145). Realmente, como “nunca se abandona a própria
sombra”, uma intersubjetividade radical é impossível (ao menos enquanto a biotecnologia não
consegue transportar pensamentos, sensações e emoções de um cérebro para outro). Mas isso
que Onfray chama de “quimera” das relações interpessoais se mostra suficiente para evitar os
mórbidos efeitos do “isolismo” (Ibid.), expressão utilizada por ele na acepção que Sade lhe
173
atribui80 e que devemos entender como o isolamento extremado definido pela completa
“ausência de relações com outrem” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 327). Diferentemente da
solidão, que é consubstancial ao ser humano e caracteriza uma relação “ao mesmo tempo
singular e inalienável consigo e com tudo” (Ibid.), no isolamento não existe qualquer tipo de
relação com o exterior, especialmente com outras realidades subjetivas, e essa condição tende
a definhar o indivíduo e pôr em risco sua própria personalidade. É por isso que a pena de
isolamento na solitária é uma das mais cruéis e temidas até mesmo pelos criminosos mais
perigosos. Qual Eu sobreviveria se condenado a si de forma tão radical? A interação com os
não eu é necessária até mesmo para a sobrevivência mais elementar.
A relação com o outro, ainda que superficial por natureza, é uma exigência da vida. A
esta, por sua vez, pertence uma dinâmica própria pela qual cada ser humano, movido por
interesses pessoais, instrumentaliza outro ser humano, inevitavelmente. A diferença está no
fato de que isso ocorre em graus tão variados quanto os que levam da barbárie amoral à ética
praticada por um sábio virtuoso. No jogo das relações interpessoais, o hedonista é aquele que
emprega sua energia na tentativa de fazer convergir o interesse alheio com o seu. Com qual
intenção? A de criar as condições de possibilidades que favoreçam as relações intersubjetivas
mais prazerosas e desfavoreçam, proporcionalmente, as mais sofríveis. Donde sua
necessidade de excelir como intérprete dos sinais que as intenções alheias deixam escapar em
seus gestos, feições, expressões faciais, olhares, tonalidades vocais, ruborização da face e
outras singelas e sutis manifestações do corpo as quais, não raro, dizem mais e melhor que
palavras porque provêm diretamente dos afetos. Sobre isso, escreve Onfray que:
Significa dizer que o hedonismo é uma ética muito mais sutil e complexa do que
gostariam de reconhecer seus detratores porque, para ser digno dela, é preciso possuir uma
alma leve, maleável, perspicaz e atenta como a dos sábios da Antiguidade helenística. Por trás
dessa arte da “decodificação fulgurante” encontramos uma atitude aristocrática e seletiva
80
“O isolismo é o egoísmo vazio: enquanto que o egoísta triunfa no prazer [...] o isolista morre na solidão” (La
nouvelle Justine, tomo 6, p. 95, ed. Pauvert, citado por ONFRAY, 1995, p. 207).
174
(Ibid.) bem como, se quisermos, certa impureza relacional, se por impureza for preciso
entender uma ética submetida aos interesses (Ibid.) particulares dos envolvidos. Efetivamente,
por tudo o que já dissemos até o momento, o hedonismo é, nesse sentido, assumidamente
impuro e assim deverá permanecer aos olhos dos moralistas que solicitam a crença no
altruísmo puro onde supostamente reina a ausência completa, na realização da ação moral, de
qualquer vestígio de interesse ou satisfação pessoal. Ação moral desinteressada... eis um
oximoro com que fantasiam teólogos e filósofos idealistas que pretendem o impossível:
escapar à individualidade e ao princípio de prazer a ela ligada. Ao contrário, de modo a
compor mais realisticamente com o mundo, Onfray afirma que o hedonismo necessariamente
se apresenta como “um utilitarismo”, e isso no sentido anglo-saxão do termo” (Ibid.).
Para explicar o que isso significa na perspectiva de uma ética que se quer jubilosa,
vale lançar mão da linguagem do mundo dos negócios ao modo de metáfora: o hedonismo é
um utilitarismo por envolver, sempre, entre duas pessoas, por exemplo, “um cálculo de
interesse que permite lucros para ambas: suplemento de alma, aumento de volúpias,
entesouramento de prazeres, capital jubiloso e dividendo em matéria de ser” (Ibid.). Ora, o
utilitarismo é uma ética “que necessita de um cálculo permanente visando determinar,
incessantemente, as condições de possibilidade do máximo de prazer para si e para o outro”
(Ibid.), e é isso a própria ética, ou seja, a indispensabilidade do outro. Aqui, porém, ela é
hedonista, pois não basta que a relação com o outro seja pacífica ou harmoniosa, ela tem de
ser positivamente prazerosa.
Algumas páginas mais adiante Onfray é ainda mais preciso nesse ponto: “Visto ser
impossível evitar que o outro seja objeto para mim, que ao menos ele seja creditado de um
júbilo enquanto instrumento” (Ibid., p. 152). Reciprocamente, “se devo ser uma coisa para o
outro”, continua ele, “que eu seja um pretexto que goze. O utilitarismo filosófico, o
hedonismo, quer o cálculo dos júbilos com a intenção de um máximo de benefícios para um e
para outro” (Ibid.). Ora, nada ofende mais os ouvidos das boas almas do que ouvir as palavras
“cálculo” e “prazer” ligadas à ética. Não obstante, o hedonismo mantém sua força – trata-se
de “gozar” tanto quanto “fazer gozar” (Ibid., p. 145) – e seu realismo. Há de jamais ignorar,
ainda, a existência de “uma variedade importante de modulações sobre este tema e que
existem prazeres indiretos obtidos pelo fato de proporcionar gozo, tanto quanto prazeres
diretos resultando das satisfações recebidas” (Ibid.).
Fica claro nessas linhas escritas em A escultura de si que Michel Onfray não crê em
ações éticas desinteressadas, uma vez que os ditos “prazeres indiretos” são aqueles que
resultam da satisfação pessoal de fazer o outro fruir: é que existe um sutil e por vezes intenso
175
júbilo em proporcionar alegria e felicidade a outrem. Onfray também não faz distinção entre
hedonismo e utilitarismo e, a este, acrescenta a noção de pragmatismo como sendo aquilo que
lhe dá movimento e sentido na realidade concreta. Mais uma vez contrariando os significados
comuns que associam o utilitarismo ao comportamento de quem se preocupa tão só em extrair
vantagem pessoal de suas relações sem levar em conta o interesse alheio, até mesmo em
detrimento dele, o utilitarismo, em filosofia, remete à mais alta consideração do outro no
campo da ética consequencialista cuja formulação mais acabada surgiu no século XIX com os
pensadores ingleses Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Na verdade, o utilitarismo é um
desdobramento natural do hedonismo no domínio da política uma vez que estende seus
princípios ao conjunto da sociedade, e não apenas a uma limitada comunidade de indivíduos.
É, por assim dizer, um eudemonismo social já que “o princípio de utilidade, a saber, a maior
felicidade para o maior número de pessoas, age como ponto cardeal da filosofia ética”
(ONFRAY, 2010, p. 26). Para Onfray, hedonismo e utilitarismo são inseparáveis e
compartilham a mesma gênese na história das ideias na figura de Demócrito de Abdera:
Na Antiguidade, porém, sua prática comunitária mais refinada surge, como vimos,
com Epicuro e sua escola hedonista do Jardim – uma ideia compartilha com Jean-Marie
Guyau (1854-1888). Por isso Onfray fala da criação, por parte de Epicuro, de “uma prudência
utilitarista e pragmática” de extrema atualidade:
O que vale para o indivíduo serve igualmente para o grupo que, por sua vez, se inicia
como tal já a partir do momento em que duas pessoas se envolvem numa relação de
cumplicidade ética. Assim, a utilidade diz respeito ao que garante prazer ou felicidade para
ambas as partes, ao passo que a inutilidade está associada a tudo quanto produz dor ou
176
infelicidade para um ou para os dois indivíduos. Nada a ver com o lugar comum que toma o
utilitarismo como um princípio egoísta da vantagem pessoal sobre o outro.
Quanto à noção de pragmatismo, a sociedade mercantil que é a nossa impregnou
igualmente esse termo com suas próprias obsessões: é pragmático tudo o que é suscetível de
aplicação prática para a geração de lucros e rendimentos comerciais, o que vale ainda sob o
ponto de vista dos conflitos trabalhistas uma vez que o mercado de trabalho demanda um
pragmatismo ligado à competência pessoal para liderar grupos de pessoas, gerenciar conflitos,
aumentar a eficiência da empresa e agir em seu nome a partir de uma eficácia polivalente.
Apropriação indevida, aqui também, daquilo que, em filosofia, o pragmatismo representa, a
saber, uma corrente de pensamento fundada por Charles Sanders Peirce (1839-1914) e
William James (1842-1910), dois filósofos americanos. O que é o pragmatismo? Trata-se,
como explica André Comte-Sponville em seu Dicionário filosófico (2011, p. 466), de “uma
doutrina” “que identifica a concepção de um objeto à de seus efeitos possíveis”. Por exemplo:
“Saber o que é o fogo ou a gravitação é saber que efeitos podem produzir” no real concreto, e
não na abstração conceitual. Assim, uma ideia não passa de “uma hipótese” a “ser submetida
à experimentação para determinar seu valor” (Ibid.), de modo que para um filósofo
pragmático não faz sentido atribuir qualquer valor de verdade a uma ideia se ela for incapaz
de produzir efeitos positivos na realidade efetiva. “A verdade é, portanto, para o pragmatismo,
o que tem êxito, mas – e aqui esse “mas” é de suma importância – não no sentido mercantil do
termo”, isto é, como “o que vale a pena” (Ibid.). A verdade pragmática, isso sim, é o “que
resiste eficazmente à prova experimental” e, nesse sentido, “a verdade não é um absoluto”,
mas “uma hipótese que passou pela experimentação” (Ibid.).
O mesmo vale para a ética enquanto criadora de espaços de experiências existenciais e
intersubjetivas. Já pensavam e agiam assim os antigos filósofos helenistas, para os quais o
critério de verdade era o efeito produzido por uma ideia, e não a ideia em si mesma. Ao
contrário dos metafísicos idealistas, o pensador pragmático ensina que “temos de submeter
nossas ideias à prova do real, em vez de submeter o real a uma ideia preconcebida” (Ibid.).
Por isso Onfray revindica essa tradição para fazer par com sua proposição hedonista: é que ela
contribui decisivamente para uma filosofia da imanência: “Sou por uma filosofia utilitarista e
pragmática, e não por sua irmã inimiga: idealista e conceitual” (ONFRAY, 2010, p. 25). Esse
novo positivista (Ibid., p. 27) que é o filósofo pragmático “propõe uma teoria da verdade que
rejeita o absoluto dos idealistas em benefício da relatividade epistemológica” (Ibid.). Aplicado
à ética tanto quanto à política, o pragmatismo hierarquiza as ideias não por serem belas, mas
por sua eficácia hedonista e utilitarista. Que efeitos uma ideia é capaz de produzir na vida
177
cotidiana das pessoas? No que ela é útil para a geração da felicidade para o maior número?
Colocá-la em prática gera as consequências desejadas? Assim, defendendo o caráter útil e
prático da filosofia, Onfray escreve que o “utilitarismo pragmático” proposto por ele “remete
ao consequencialismo filosófico” segundo o qual
não existem verdades absolutas, não existe bem, mal, verdadeiro, belo, justo
em si, mas relativamente a um projeto claro e distinto. É o que, numa
perspectiva própria – o hedonismo no caso – , possibilita avançar em direção
ao projeto obtendo resultados jubilosos. A ideia já está em Bentham: pensar
em função da ação e visá-la relativamente a seus efeitos (Ibid.).
Uma ética das afinidades eletivas trata da relação que estabelecemos com o outro e
com os outros a partir da nossa capacidade de eleição e de rejeição, de escolha e de recusa, de
exercer um sim e um não. Em Onfray ela define a busca por uma “intersubjetividade
178
hedonista” (ONFRAY, 2010, p. 49-56) baseada na ideia de que o prazer que o outro é capaz
de oferecer e aquele que somos capazes de proporcionar-lhe devem funcionar como princípios
reguladores de toda relação entre dois. O contrato de inspiração epicurista é aqui praticado em
conjunto com uma apropriação muito singular feita por Onfray do conceito de pathos da
distância nietzschiano. Virtudes éticas que vão da polidez a mais nobre das relações humanas,
a amizade, se fazem presente em prol da construção do que Onfray chama de “círculos éticos”
(Ibid., p. 51-54). Estes círulos devem ser convenientes a uma individualidade bem formada e
ao projeto existencial que lhe corresponde. É nesse sentido que o valor ético da aristocracia é
aqui reivindicado – de fato, o capítulo de A escultura de si que ora analisamos chama-se “Da
aristocracia ou as afinidades eletivas” (Cf. ONFRAY, 1995, p. 164-186). Não confundir,
porém, com a definição primeira do termo ligada à organização política de uma sociedade
governada por uma camada social privilegiada (os ditos “melhores” ou, no sentido grego
clássico, os áristoi). A ideia de aristocracia não é aqui empregada no sentido político, isto é,
no sentido do poder dos melhores ou supostos como tais sobre o restante da sociedade, mas,
sim, em seu significado ético onde o melhor diz respeito ao governo de si sobre si mesmo,
porém em relação à problemática da alteridade em virtude de ser a alteridade, como é sabido
desde os antigos, “o maior problema da ética” (ONFRAY, 2014a, p. 109).
Mais uma vez encontramos, nessa forma de conceber uma relação aristocrática com o
outro (ONFRAY, 1995, p. 164), traços muito nítidos das éticas filosóficas gregas e romanas
que eram, antes do cristianismo suplantá-las, tão individualistas quanto aristocráticas. Um
exemplo desse tipo de ética vigorava, como vimos, no Jardim epicurista onde, sem
discriminar mulheres e escravos, aceitavam-se a entrada de todos os interessados em compor
essa escola de filosofia com a única condição de que fossem capazes de contratar
hedonisticamente, ou seja, de cultivar a melhor relação possível com o outro a partir de uma
bem sucedida relação consigo mesmo. Daí as virtudes caras aos epicuristas tais como a doçura
e a amizade, cujas práticas eram uma exigência elementar. Toda interação sábia com outrem,
portanto todo vínculo saudável com o outro se dá, necessariamente, a partir de uma lógica
aristocrática que nos define como senhores soberanos de nossas escolhas. O eu é o centro
focal de onde se ramificam toda e qualquer relação intersubjetiva. Portanto, nenhuma
intersubjetividade se dá de modo passivo ou impessoal e toda ela deve ser a melhor para o
indivíduo no sentido de compor com suas regras éticas.
Assim, apesar de o moralismo cristão tê-lo carregado de um tom assaz pejorativo,
Onfray não abre mão do epíteto aristocracia. Ciente desse problema de interpretação
conceitual, ele reconhece “a reprovação geral que existe sobre a palavra” ao mesmo tempo em
179
que aponta a contradição presente nesse falso moralismo uma vez que, na prática, todos nós,
efetivamente, fazemos uso do princípio aristocrático (Ibid.). Donde a seguinte provocação:
O que Michel Onfray expõe, de modo frio aos olhos de muitos, mas realista e
honestamente à visão de outros, é que simplesmente “há graus dentro da intersubjetividade”
(Ibid.), ou seja, todos nós, muito naturalmente, de um modo ou de outro, praticamos alguma
forma de aristocracia relacional. O aristocrata digno desse nome, tal como Onfray o concebe,
é simplesmente “aquele que assume essa diferença” (Ibid.) e a faz valer, ou seja, é o indivíduo
que se coloca na dianteira de si para viver segundo sua própria natureza, e não segundo às
convenções morais. O aristocratismo é portanto um princípio; o utilitarismo pragmático, o
meio de realização da tarefa ética; já o fim almejado não é outro senão o hedonismo
proveniente do cultivo de relações intersubjetivas capazes de proporcionar um ganho efetivo
de nossa potência de existir mediante o prazer que geram, pois estar junto com o outro pode
ser uma riquíssima fonte de vitalidade. Essa é a atitude aristocrática reivindicada por Onfray.
Nela, a ética se mantém afirmadora da diferença do eu, por conseguinte, submetida à
individualidade que ela continuamente está a construir. Persistimos aqui na lógica da escultura
de si. Daí a necessidade de se opor, uma vez mais e sempre, à moral de rebanho forçadamente
igualitarista.
Aqui Onfray se refere, evidentemente, à moral cristã e ao seu princípio do amor ao
próximo, princípio este que, primeiro, instrumentaliza hipocritamente o outro que nunca é
amado por ele mesmo, mas apenas como meio para adular servilmente a Deus: “Amando o
outro, é a Deus que amo”, de modo que praticar a moral se resume a um ritual de oração
(ONFRAY, 2010, p. 52). Depois, o cristianismo pretende fazer do amor ao próximo um dever
que obriga o torturado a amar seu torturador já que ambos são criaturas do mesmo Criador e,
sob este, todas as almas são iguais. Ora, “que estranha perversão poderia levar a essa
prescrição inaudita: amar o autor do suplício que nos destrói?” (Ibid.). Nada é mais
antinatural, daí o caráter pervertido dessa moral. Uma crítica semelhante cabe à versão
socialista do princípio do amor ao próximo, vale dizer, o comunismo, também ele baseado em
um igualitarismo absoluto entre os indivíduos.
180
não tanto por seu rigor, sua dificuldade ou sua exigência – talvez seja lá,
aliás, que ele (o amor ao próximo) é mais justificável – mas pela
inumanidade que engendra ao suprimir todas as diferenças, todas as
riquezas, todos os méritos singulares em prol de uma indiferenciação na
alteridade (ONFRAY, 1995, p. 164).
Assim como Epicuro propõe uma aritmética dos desejos em relação às coisas, Onfray
sugere um cálculo ético pragmático e hedonista no que diz respeito às pessoas suscetíveis de
nos afetar, e o explicita nos seguintes termos:
Sou por uma geometria dos círculos éticos que, partindo de um ponto central
focal, Eu – sendo cada um o centro do seu dispositivo – , organize ao seu
redor, e de maneira concêntrica, a localização de cada um em função das
razões de manter ou não com o outro uma relação de proximidade (Ibid.).
Como tudo o que lhe atinge e a envolve, nossa vida vai se moldando, dinâmica e
continuamente, a partir do círculo ético que construímos e que, consequentemente, passará a
nos definir. Se somos, como diz acertadamente o ditado, o que comemos tanto quanto o que
fazemos, o mesmo vale, e com igual peso, à ideia segundo a qual somos formados a partir das
relações intersubjetivas que estabelecemos. O eu, nunca neutro, jamais inteiramente passivo, é
o ponto convergente de toda prática relacional. Dotado de uma hipersensibilidade, apenas a
partir dele pode haver aproximações e distanciamentos gradativos, ou seja, um movimento
centrípeto e uma dinâmica centrífuga (ONFRAY, 1995, p. 168) em relação a outrem. Quanto
mais próximas de nós mantemos as pessoas, isso deve significar que mais afetiva e amorosa,
mais prazerosa e alegre é a relação estabelecida. Quanto mais distante mantemos um ou outro
ser humano, menos positiva e mais instável ela é. No grau máximo de distanciamento, por
exemplo, no caso de um inimigo declarado (pode acontecer...), resta apenas o desprezo, essa
“forma negativa e centrípeta da afinidade eletiva” (Ibid., p. 166). Quer dizer: não se trata de
praticar a vendeta, o ódio, a guerra ou a violência supostamente justificada, menos ainda de
amar o inimigo oferecendo-lhe a outra face, mas de desprezá-lo, ou seja, instalá-lo no círculo
ético negativo a fim de fazê-lo desaparecer de nosso campo de visão, portanto de nossas
afecções. Decerto estes são casos extremos, até mesmo raros, mas nem tanto assim, como
sabem os filósofos, esses provocadores indesejáveis.
Que critérios temos para julgar o espaço que o outro ocupará em nosso círculo ético?
Quais são os detalhes dessa dinâmica relacional? Antes de tudo, o princípio hedonista, isto é,
o prazer e a dor, a tristeza e a alegria, a felicidade e a infelicidade, ou, para usar o vocabulário
de Espinosa, os bons e os maus afetos. Em seguida, devemos fazer valer os filtros de nossa
consciência e inteligência, aqueles inerentes à capacidade desenvolvida para julgar e avaliar, a
partir das informações prestadas pelo outro através de seus gestos, sinais e comportamentos
diversos, o lugar que ele ocupará em relação ao nosso próprio centro de gravidade ético
estabelecido por nosso corpo, logo por nossa subjetividade. No entanto, não é este eu que
182
Onfray concebe quatro níveis desses círculos éticos cujo princípio da afinidade eletiva
vai definindo o vínculo afetivo que mantemos com esta ou aquela pessoa. Não obstante a
complexidade prática da tarefa que exige leitura e interpretação apuradas das ações, dos
comportamentos, dos signos, dos gestos e mesmo do silêncio alheios (Ibid., p. 166),
teoricamente as alternativas são simples: trata-se de eleger ou de excluir, logo, em última
instância, de exercer um direito radical de escolha. Nos termos de Onfray, o indivíduo
mobiliza aqui duas forças: uma “força centrípeta”, outra “centrífuga”. A primeira leva a efeito
uma “aproximação” do outro “em direção a si”; a segunda ativa uma “ejeção” de outrem
“para as bordas” (ONFRAY, 2010, p. 53), portanto para um afastamento do eu. Isso ocorre,
todavia, em graus tão variados quanto são as circunstâncias em que as relações se dão dentro
dos quatro círculos éticos.
No primeiro círculo encontram-se “as afinidades superiores”, a saber, as relações de
amor e de amizade (ONFRAY, 1995, p. 166), sendo esta última a mais sublime dentre todas.
No segundo círculo estão os convívios de grande importância mantidos através da prática da
“fraternidade, camaradagem” e “simpatia” (Ibid.). Em seguida vem o terceiro círculo, e este
engloba os vínculos casuais, aqueles “que se manifestam a partir da vizinhança e da relação
obrigada, pelo trabalho, habitação e todas as formas tomadas pelos conjuntos sociais dos
quais todos participam” (Ibid.). Esses três círculos éticos concentram todo o espectro de
variações possíveis no que se referem às boas relações, que são as relações positivas. Estas
vão do amor de nossas vidas ao bom vizinho. Onfray utiliza a metáfora da entropia, conceito
da termodinâmica, para dar uma ideia dos graus de energia e de calor com que somos afetados
pelo outro, a depender se ele se encontra no primeiro, no segundo ou no terceiro círculo de
proximidade ética em relação ao eu que somos, o mesmo valendo, claro, no sentido oposto, ou
seja, de nós para o outro que goza igualmente de total autonomia para nos eleger ou nos
evitar.
Sendo assim, é preciso que haja ainda os graus zero e negativo, ou seja, aqueles em
que o outro em nada nos afeta ou nos afeta, infelizmente, negativamente. Onfray os agrupa
num quarto círculo, um “espaço definitivamente aberto para o vazio”, escreve ele, “no qual se
manifestam as degradações que vão do neutro ao negativo” (Ibid.). Os indivíduos neutros são
inofensivos para nós: se não compõem conosco uma intersubjetividade jubilosa, também não
nos prestam as dores e os sofrimentos típicos dos maus encontros. São os desconhecidos de
modo geral, os anônimos com os quais cruzamos na rua e que nos ignoram tanto quanto nós a
eles. Somos, juntos, seres que se veem sem se verem, indivíduos que não se notam e que, por
vezes, por acaso, se esbarram, mas que, em geral, é como se não se sentissem um ao outro.
184
As variáveis que animam os círculos éticos e que portanto agem sobre os rizomas são
“todas as informações dadas pelo outro, de maneira positiva, dizendo, mostrando, afirmando,
ou negativa, escondendo, dissimulando ou negligenciando” (Ibid.). Parâmetros sempre ativos,
nunca estáticos, são eles que fazem com que nenhuma relação seja estabelecida a priori ou
definitiva a posteriori: “Essa ética é dinâmica, nunca parada, sempre em movimento, em
permanente relação com o comportamento do outro. Por conseguinte, o outro é devedor dos
seus compromissos e responsável por seu lugar em meu esquema ético” (ONFRAY, 2010, p.
53). Onfray elenca um rol de virtudes práticas (“o sal da existência”) cuja presença pode
produzir o mais alto grau de um vínculo afetivo, ao passo que sua “ausência desvincula,
desliga, desata a relação” (Ibid.). São elas o amor, a afeição, a ternura e a doçura, a
prestimosidade e a delicadeza, a magnanimidade e a polidez, mas também a gentileza, a
civilidade, a prontidão, a atenção, a cortesia, a clemência, a dedicação e tudo o mais que se
pode entender por “bondade” (Ibid.).
As demonstrações dessas virtudes aproximam e conferem calor à relação, estreitam
laços e fortalecem os rizomas. As manifestações em contrário afastam e dilatam o vínculo até
torná-lo frio e distante, até mesmo “um rizoma morto” (ONFRAY, 1995, p. 167). É a entropia
agindo e fazendo oscilar o espaço que aquele ou aquela ocupa momentaneamente em nossas
vidas, pois a entropia é essa força que caracteriza a fadiga consubstancial ao movimento. A
vida em comum é dinâmica e supõe um jogo ativo entre os seres (Ibid.). Uma negligência
comportamental aqui ou ali, uma falta ética evidente, uma imperícia moral à nossa vista, um
testemunho da incapacidade de cuidar do outro, uma indiferença para com suas dores, uma
desatenção sobre seus prazeres, tudo isso compromete o convívio, esfria a relação. O
movimento centrípeto falha “nessas ocasiões, a evicção se prepara e a passagem de um círculo
ao outro, no sentido de uma degradação, é logo manifesta” (Ibid., p. 167-168).
A entropia por negligência passiva ou por provocação ativa é o motivo dos amores que
findam “ou das amizades que definham”. É a causa, portanto, de “rupturas, separações,
divórcios” (Ibid., p. 168) e outras dissoluções de vínculos interpessoais. Do mesmo modo, o
movimento inverso é evidente e, graças a ele, quem hoje se encontra “o mais próximo dos
círculos éticos não deixou de fazer o trajeto que o conduziu das margens exteriores, onde ele
não podia deixar de se encontrar, em direção ao centro, onde reside” (Ibid.). Assim, aquele
que um dia foi um anônimo, um “sem nome” para nós, hoje o nomeamos, e o fazemos com
felicidade. “Ora, nomear é”, precisamente, “fazer surgir o ser, é conferir a existência” (Ibid.)
de alguém em nossa vida dizendo-lhe que ele existe, felizmente, para nós. Assim, o indivíduo
186
que antes ignorávamos a existência passa a existir, por eleição nossa, para um convívio
próximo, senão no primeiro, certamente no segundo círculo ético. No entanto, para que se
desse tal “movimento centrípeto” foi preciso a esse alguém “fornecer as informações que o
permitem: gestos, signos, palavras, intenções, provas que autorizam os rizomas curtos e
sólidos” (Ibid.).
Lembremos, porém, que por mais curtos e sólidos que sejam os rizomas, eles nunca se
tornam imperecíveis. É que não existe, nesse jogo ético imanente, nenhuma estabilidade
relacional. Nossa própria posição no projeto ético do outro é tão instável quanto à do outro no
nosso em razão de sermos por ele continuamente monitorados e avaliados com uma
sensibilidade sismográfica. Da mesma forma, ele ou ela, eles ou elas ocupam hoje
determinado espaço de proximidade com relação à nossa vida. Amanhã ou depois, porém,
poderão estar mais próximos ou mais distantes, o que prova que “a ética parece menos um
assunto de teoria do que de prática”, ressalta Onfray, reafirmando que é o “utilitarismo
jubiloso” que “designa a regra” desse jogo cuja dinâmica é animada por “pensamentos,
palavras e ações” (ONFRAY, 2010, p. 53) que se dão em contextos específicos e inéditos a
cada vez. Significa dizer que “a ética é uma questão de vida cotidiana e de encarnações
infinitesimais no tecido fino das relações humanas, não de ideias puras ou conceitos etéreos”
(Ibid.).
Fica claro, assim, que a atitude ética aristocrática a qual rege o princípio das afinidades
eletivas não qualifica o outro a partir de critérios preconceituosos e arbitrários como os
praticados por aqueles que estão nos antípodas de toda ética filosófica, a saber, os moralistas
pedantes, os fundamentalistas religiosos, os seres arrogantes e insolentes, os racistas de toda
espécie e a gente mesquinha, egoísta e autoritária em geral. Não! Aqui, qualitativamente, é o
caráter que interessa. Assim, ninguém é definido previamente por cor, gênero, orientação
sexual, ideologia política, ascendência, sistema de crenças, classe social, etc., mas sim
qualificado ou desqualificado a partir de sua capacidade ou não de praticar as virtudes acima
elencadas. Processo empírico de resultados a posteriori porque, antes dos sinais que definirão
o outro para nós, ele não é senão uma incógnita.
O outro é, portanto, o melhor (um áristoi), não no sentido do poder político, mas tão
somente na perspectiva singular de uma ética hedonista, ou seja, em razão de favorecer um
relacionamento afetivo saudável, alegre e prazeroso. Ele é o melhor, pois, para um eu em
particular. Para um terceiro (ou para esse mesmo eu noutra circunstância), ele ou ela são ou se
tornam sujeitos a serem evitados na medida em que, na perspectiva desse terceiro,
proporcionam apenas tristezas e desprazeres. O fato é que sempre que elegemos e escolhemos
187
um amigo por atração de ideias e simpatia de vida o fazemos a partir de uma perspectiva
aristocrática em virtude de desejarmos que o melhor de nós mesmos se manifeste por e pelo o
outro enquanto dispositivo ético. Por isso também o outro deve ser o melhor para nós. Eis
porque a ética hedonista é altiva e eletiva. Eis porque ela precisa sê-lo para que inclusive
produza seus efeitos no âmbito de uma preocupação sob a forma da ataraxia, isto é, em sua
capacidade de evitar interações conflituosas responsáveis por abalar a paz de uma alma. Por
isso também “o hedonismo consiste, dentro da lógica aritmética dos prazeres (...), em
aumentar as condições de possibilidades centrífugas e em reduzir ao máximo os trajetos
centrípetos” (ONFRAY, 1995, p. 168) porque, como a experiência comprova
abundantemente, a qualidade das relações humanas se mantém na proporção inversa à sua
quantidade. Sendo assim, os melhores e mais afetivos vínculos são os de menor número.
Em tempos dominados por redes sociais e vidas virtuais que invertem essa lógica
incentivando o delírio de contabilizar milhares de “amigos” e seguidores que não valem dois
ou três amigos reais, esta continua sendo uma verdade que se impõe por si mesma: quantidade
e qualidade não se correspondem. É preciso, pois, manter o maior número dos seres com os
quais nos relacionamos à boa distância, ou seja, entre os círculos dois e três, entre os rizomas
de médio comprimento e os mais longos. A dinâmica própria da vida nos ajuda na arte da
selecionar aqueles que terão nossa permissão para proximidades mais íntimas. Como escreve
Onfray,
sabendo que não se pode congelar a paisagem dos círculos e que ela é
incessantemente submetida às estações, trata-se de preservar a paz de seu
espírito, seu equilíbrio e seu próprio prazer. O trabalho seletivo deve permitir
guardar a alma serena. O princípio das afinidades eletivas quer os prazeres
mais numerosos e de melhor qualidade (Ibid.).
Temos assim dois movimentos: visando preservar a serenidade da alma, Onfray faz o
elogio da “atenciosidade” cujo meio de realização é a polidez. Este movimento é aristocrático
e seletivo. O segundo visa não tanto a ataraxia, já garantida pelo primeiro, mas o prazer
positivo e dinâmico, o mais qualificado dentre todos, algo só possível, em sua expressão
maior, na prática da amizade. Somente aqui se aplica o sentido máximo da eleição por
afinidade.
5.4.1 A polidez
188
A polidez, afirma Michel Onfray, é menos uma virtude que “a ferramenta privilegiada
na ordem instituída pelos seres” (Ibid., p. 169). Instrumento a serviço da civilização, a polidez
é aquilo pelo qual a desordem intersubjetiva é evitada. Tal definição obriga Onfray a
imediatamente distinguir o que entende por polidez do sentido burguês da expressão, mais
corriqueiro e pejorativamente atribuído à palavra e sua prática. De fato, a burguesia fez da
polidez “uma caricatura a serviço de seus interesses”, uma “pequena codificação das mentiras
sociais” (Ibid.). Em suas mãos, a polidez se reduziu a um “princípio hipócrita visando a
permanência da etiqueta” (Ibid.), portanto da pequena ética à serviço da “reprodução das
castas” (Ibid.). Contrário a essa acepção, Onfray pensa a polidez de outra maneira: “A polidez
que tenho em vista”, escreve ele, “é princípio seletivo pelo qual se realiza aquilo que
Nietzsche chamava de o patos da distância” (Ibid., p. 170). Ora, excetuando os amigos e os
amores dignos do nome, toda outra relação com outrem se efetua justamente no registro da
polidez, o que implica certa distância. Visto que não é possível ser virtuosamente amoroso
com todos, nada impede que sejamos, para com toda a gente, indiscriminadamente respeitoso
e atencioso, ou seja, polido. A etimologia não deixa de ligar a palavra ao ato de polir: tornar-
se brilhante ou lustroso, nos diz o Michaelis, se referindo à acepção primeira do verbo. Na
acepção três, porém, polir significa fazer-se educado, refinado ou, numa palavra, civilizado.
Ser polido significa então praticar a “limpidez” (Ibid.) nos modos de tratamento, o mesmo que
ser gentil e atencioso no trato com as pessoas.
Dizíamos que a polidez não é propriamente uma virtude. Como explica André Comte-
Sponville (2011, p. 458), ela é mais a aparência de uma. Todavia, seria um erro subestimar
seu valor socialmente prático, e tanto é assim que uma segunda consideração etimológica
aproxima a polidez da política enquanto “arte de viver juntos”, com a diferença de que esta
arte em particular, segundo Comte-Sponville, cuida “mais das aparências que das relações de
força, multiplicando mais as esquivas que os compromissos” (Ibid.). Por certo é uma forma de
superar o egoísmo, mas “mais pelos modos do que pelo direito ou pela justiça” (Ibid.). A
polidez, continua Comte-Sponville citando Alain, “é a ‘arte dos sinais’”, algo “como que uma
gramática da vida intersubjetiva. Nela a intenção não conta nada, o uso é tudo” (Ibid.). Daí
seu aspecto mais real que ideal. Mais utilitário e pragmático do que moralista ou moralizador.
Se as reais intenções, na polidez, são de fato insondáveis, e por isso “seria um equívoco
deixar-se enganar por ela”, seus efeitos éticos, porém, são concretos, razão pela qual o maior
erro seria “pretender prescindir dela”. A polidez “não é senão um semblante de virtude,
moralmente sem valor”, mas “socialmente inestimável” (Ibid.).
189
Michel Onfray certamente discordaria da afirmação de que a polidez não tem valor
moral. Também não é possível concluir que sua prática jamais corresponde à verdadeira
intenção ética do sujeito e que esta esteja sempre velada, contrariada ou em dissonância com
seus atos. Menos kantiano e mais consequencialista, Onfray atribui valor moral precisamente
ao que tem utilidade social, ao que é “socialmente inestimável”. Para ele, o que é útil para a
sociedade favorecendo o princípio da maior felicidade para o maior número de indivíduos não
pode deixar de ser, moralmente falando, valorizado, sendo a polidez precisamente aquilo que
“proporciona a via de acesso às realizações morais” (ONFRAY, 2010, p. 56). Sem
superestimar a polidez, o nosso autor lhe confere entretanto um valor civilizatório: ela é para
ele uma “pequena porta de um grande castelo”, ou seja, um meio inestimável que nos “conduz
diretamente ao outro” (Ibid.), o que não é pouco, mas muito. Certamente não é tudo, mas
talvez seja o essencial uma vez que praticar a polidez é afirmar “ao outro que o vimos. Logo,
que ele é” (Ibid.). Ora, não é nada desprezível a atitude de conferir dignidade a uma pessoa
até então desconhecida para nós e com a qual passamos a estabelecer algum tipo de relação.
A partir dessa demonstração de civilidade o outro requer de nossa parte, de direito,
uma “atenção” que por sua vez supõe uma “tensão” ética (Ibid., p. 55). Esse é o momento de
fazer valer aquelas práticas que nos definem como seres humanos, e não o contrário, a saber:
“A civilidade, a delicadeza, a doçura, a cortesia, a urbanidade, o tato, a prestimosidade, a
reserva, a obsequiosidade, a generosidade, o dom, o empenho, a atenção” (Ibid., p. 56). Para
Onfray, todas estas práticas compõem, elas também, um arsenal a serviço da ética hedonista
porque, ao mesmo tempo em que tendem a evitar os aborrecimentos de uma
intersubjetividade fracassada, ou ao menos a diminuir as chances de isso ocorrer, elas
proporcionam, por outro lado, a “alegria necessária na comunidade” gerada pelas gentilezas
mútuas e multiplicáveis: “Eis como fazer ética, criar moral, encarnar valores. O saber viver
como saber ser” (Ibid.).
Nesse ponto Onfray reafirma sua inserção na tradição ética utilitarista e pragmática
uma vez que esse saber viver juntos mediante a polidez supõe, para ser efetivo, “o cálculo
hedonista” que, “como cálculo mental” que precede toda ação, exige, para se tornar mais
natural e integrado ao comportamento do indivíduo, “uma prática regular capaz de gerar a
velocidade necessária” (Ibid.). Aqui Onfray está respondendo àqueles que acusam essa ética
de ser muito racionalista e, por isso, difícil de praticar devido à tensão mental exigida por ela.
No entanto, como tudo na vida, é preciso haver instrução, educação, orientação e, depois,
prática, muita prática, pois toda ética não é senão uma habilidade adquirida. De modo que,
“quanto menos se pratica a polidez”, escreve ele, “mais ela se torna difícil de aplicar.
190
Inversamente, quanto mais você se aplica, melhor ela funciona”. Ora, um indivíduo é polido,
logo civilizado, tanto quanto foi educado ou se educou para sê-lo, e não doutro modo. As
virtudes não caem do céu e muito menos são inatas. Sua prática, portanto, não se dá de
maneira automática e natural. Como tudo o mais que é humano, também as virtudes são
objetos de aprendizagem e de assimilação cultural, depois de exercícios práticos e, por fim, de
internalização. Aprendemos a ser moral, ético, virtuoso e polido tal como aprendemos a
dominar um idioma, um instrumento musical ou uma prática esportiva. Assim, “o hábito
supõe o adestramento neuronal” (Ibid.), e isso é o que chamamos educação.
Devido a esse tom realístico muitos veem na ética consequencialista uma atitude fria e
calculista do tipo que prioriza a razão em detrimento do sentimento de compaixão ou a ação a
despeito da intenção. De fato, não há nenhum sentimentalismo puro aqui. No entanto, a
verdade é que apenas os partidários dessa ética têm a sensibilidade de utilizar a seu favor,
como critério ético, aquilo que é comum a todos os seres humanos, a saber, a busca por prazer
e felicidade. Como uma ética preocupada com a felicidade das pessoas pode ser fria, se ela se
ocupa precisamente da tentativa de promover sentimentos e afetos de prazer e de alegria?
Muitas são as morais ditas compassivas que, na prática, dedicam-se exclusivamente à
proliferação das dores e dos sofrimentos dos indivíduos sob o pretexto de um bem maior no
futuro ou no além-vida mediante o cumprimento de um dever moral agora. O fato é que o
hedonismo e o utilitarismo não são sistemas morais ascéticos e idealistas, podendo por isso
prescindir de todo princípio transcendente e de toda e qualquer religiosidade. Tratamos aqui
de éticas desencantadas que compõem com os humanos e com o mundo tais como são, motivo
pelo qual são criticadas. São éticas naturalistas, não sobrenaturalistas. Elas rompem, portanto,
com os sonhos e ilusões para se apegarem à realidade, e a realidade nos mostra sem cessar
que “fora do campo ético, encontramos apenas um campo etológico”, razão pela qual “a
impolidez” conduz diretamente à “selvageria” (Ibid.). Por conseguinte, é preferível uma
preocupação concreta sobre como nos tornarmos mais civilizados do que persistir no erro de
negligenciar a educação para a vida em comum ao mesmo tempo em que se reivindicam
morais absolutistas geradoras de intolerância para com o próximo que por ventura não
compartilhe da mesma doutrina de fé.
A polidez é, pois, uma “força arquitetônica” (ONFRAY, 1995, p. 170) que estrutura e
dinamiza em boa ordem e devida forma as relações intersubjetivas. Ela não deixa de ter o
sentido nietzschiano desejado por Onfray visto que, como se sabe, o filósofo alemão
costumava ser extremamente doce, gentil, atencioso e amável com as pessoas que, encantadas
191
81
O próprio Nietzsche confessa alegrar-se muito mais com os seus “não-leitores” e “aqueles que jamais
ouviram” seu nome “ou a palavra filosofia”, ou seja, as pessoas com quem exercitava sua moderada
sociabilidade. Em Turim, por exemplo, segundo escreve, em todos os lugares que frequenta “os rostos ficam
risonhos e bondosos ao me ver. O que até agora mais me lisonjeou é que as velhas vendedoras de frutas não
descansam até escolherem para mim as suas uvas mais doces. Até esse ponto é preciso ser filósofo...”
(NIETZSCHE, 1995, III, § 2, p. 54-55).
192
bom grado afastado da sociedade, para não sofrer nem provocar danos
(SCHOPENHAUER, 2009, p. 168-169).
A vida em comum, tal como ela pode ser suportada, vale dizer, mediante a boa
distância entre um Eu e Eles/Elas, existe graças à polidez, sinônimo de boas maneiras para
Schopenhauer. O tratamento delicado e a cortesia dispensados aos outros os mantêm à meia
distância, nem muito próximos, nem tão afastados. O indivíduo garante assim sua paz de
espírito e a proteção necessária à sua identidade própria. Contudo, Schopenhauer tem uma
clara tendência à misantropia, se é que podemos falar assim. Ele detesta mais que tudo a
mediocridade coletiva e opõe sempre o homem de qualidade intelectual superior àqueles com
inclinação exagerada para a vida em sociedade. “A sociabilidade de cada um está quase na
proporção inversa do seu valor intelectual”, escreve Schopenhauer, que reforça essa ideia da
seguinte maneira: “Dizer ‘ele é bastante insociável’ quase significa dizer ‘ele é um homem de
grandes qualidades’” (Ibid., p. 169).
Todavia, a inquietação de Schopenhauer com a sociabilidade não pode ser vista como
mera arrogância de um gênio isolado por sua condição tão distinta. Seu apreço pela solidão se
deve, isso sim, a uma preocupação hedonista ou, mais precisamente, eudemonista. Quando ele
escreve que “ter em si mesmo o bastante para não precisar da sociedade já uma grande
felicidade” (Ibid.), ele o faz por considerar que boa parte dos infortúnios humanos provém
deles mesmos quando excessivamente agrupados. Mais expostos uns aos outros, seus defeitos
ou qualidades incômodas vêm logo à superfície e causam danos mútuos. Assim, a solidão é
condição de possibilidade para a ataraxia, um estado de serenidade da alma tão caro ao autor
dos Aforismos para a sabedoria de vida quanto para a tradição epicurista visto que, para
Schopenhauer, “a tranquilidade” é, “depois da saúde”, precisamente “o elemento mais
essencial de nossa felicidade” (Ibid.). Ora, como o comércio com os humanos é uma ameaça
contínua a esse estado de espírito, a felicidade “não pode subsistir sem uma dose significativa
de solidão” (Ibid.), remata Schopenhauer, e ele tem razão.
A solidão se mostra, então, preferível ao excesso de sociabilidade, mas não o
isolamento, pois ninguém escapa, nem mesmo o sábio, à necessidade de manter na sua caixa
de ferramentas existenciais certo número de interações com o outro. Por mais comedida que
seja, algum grau de sociabilidade é também necessário à felicidade. Nesse caso, como destaca
Onfray, a fábula schopenhaueriana fornece lições hedonistas imprescindíveis: uma vez que
ela sugere um “cálculo dos prazeres”, uma “consideração das penas, das vantagens e dos
inconvenientes, dir-se-ia uma fábula destinada aos trabalhos praticados para ver funcionar
193
uma boa aritmética das paixões” (ONFRAY, 1995, p. 170). Significa dizer que é preciso abrir
mão e fazer sacrifícios, contanto que estes sejam úteis e possibilitem que a somatória dos
júbilos proporcionados supere a das penas adquiridas. “Trata-se de pagar um pouco de calor
com um pouco de desconforto e um pouco de preservação da própria identidade com um
pouco de frio” (Ibid.). Somente a polidez, uma não virtude virtuosa, permite estabelecer essa
boa distância e esse equilíbrio.
Pois é preciso atingir algo como a mediania aristotélica, porém aqui ela deve oscilar
preferencialmente mais para a solidão do que para a socialização: “Um progresso será
evidente”, escreve Onfray, “quando for praticado este patos da distância que permite um
movimento balanceado entre demasiada solidão e demasiada gregariedade” (Ibid., p. 170-
171). Todavia, em concordância com Schopenhauer, ele afirma que somos mais sábios
quando reconhecemos que existe “menos sofrimento na economia dos prazeres e das penas,
ao se preferir um excesso de solidão a um exagero nas relações com o outro” (Ibid., p. 171).
Ou seja: é preciso ter em mente que os seres humanos não são feitos nem para uma
dependência total do grupo, nem para uma solidão radical, mas para algum ponto entre um
extremo e outro (Ibid., p. 170). Essa proporção, porém, não deve ser uma mediania exata,
mas, pelo contrário, é preciso inclinar-se convenientemente para a solidão e alimentar afeição
especial pela própria companhia tomando-a como um porto seguro pois, entre dois extremos,
é melhor estar sempre sozinho que constantemente acompanhado.
Esculpimos nossa personalidade a partir de uma matéria-prima já dada pelo mundo.
Esta matéria são os outros, para os quais somos, por nossa vez, também um objeto com o qual
é necessário compor. Encontrar a distância ideal entre si e outrem, definir os rizomas, eleger
alguém ou evitar uma pessoa faz parte do complexo processo de criação da própria
individualidade e de sua afirmação. Existe uma estetização das relações humanas no qual se
busca “estabelecer as condições de possibilidade para uma boa distância, para uma relação
harmoniosa e para um equilíbrio de força experimentado”, qualidades estas que Onfray extrai
do vocabulário “das belas-artes” (Ibid., p. 173) para a vida em sociedade. Ele cria um
neologismo para definir e resumir de outra maneira essa arte das distâncias em que o eu se
aventura nos jogos intersubjetivos: Eumetria, ou seja, a medida do Eu. Enquanto se
mantém no domínio de si e criador de seu próprio destino, segue-se, a partir do indivíduo,
“uma proporção” em razão da qual, “no centro desta geografia ética, o mais próximo de si”,
estão “as quantidades mínimas e as qualidades máximas”. Ao contrário, “na periferia, é
forçoso constatar que aí se encontram as quantidades máximas e as qualidades mínimas”
(Ibid.). Sabedoria e vivência acumuladas são aqui indispensáveis para, a partir de decisões
194
racionais, fazer o outro trafegar entre essas zonas territoriais à nossa volta. O objetivo é evitar
os afetos negativos causados por uma imprudência relacional. O escultor da própria vida lança
mão do princípio da Eumetria como um método a serviço de seu projeto existencial, qual seja,
o de “evitar pôr em risco o núcleo duro da sua identidade” (ONFRAY, 2010, p. 51). Tal
princípio vale ainda como recurso imprescindível na promoção dos bons encontros,
especialmente o mais sublimes deles: a amizade.
5.4.2 A amizade
Sem retomar o que já foi dito sobre a amizade na seção dedicada a Epicuro digamos, à
guisa de complemento, que somente a amizade verdadeira, vale dizer, aquela e única relação
ética que podemos definir como “a mais fina e mais sublime” (ONFRAY, 1995, p. 173) entre
todas permite, com segurança, complementar o eu como uma identidade firme e imune às
corruptelas dos jogos sociais. Paradoxalmente, é com dois (supondo uma relação de amizade
entre dois indivíduos) que melhor se faz um. A razão disso é que na amizade protegemos a
individualidade do outro simultaneamente à sua afirmação integral porquanto, no que se
refere ao amigo, o queremos tal como ele é, não de outro modo. Os amigos são, assim, seres
que se complementam, pois é papel do amigo contribuir para essa identidade outra
compartilhando-a com a sua própria numa relação baseada na afinidade máxima, na
semelhança de caráter, até mesmo no princípio de irmandade. Apenas na presença de um
amigo somos nós mesmos, podemos ser nós mesmos, ao natural, tal como o somos na solidão
porque, como disse Francis Bacon em seus Ensaios, “um amigo é outro eu; pois um amigo é
muito mais que outro” (BACON, 2007, p. 92). Eis porque na prática da verdadeira amizade
nos tornamos, com o outro, uno.
A amizade é a sociabilidade mínima em quantidade, porém máxima em qualidade. Ela
é uma relação de caráter nobre que se basta a si mesma e que serve de proteção aos amigos
contra a gregariedade exagerada e vulgar a qual, graças a ela, podem com segurança
prescindir. Por isso Georges Palante exaltou a amizade como um “princípio de
individualização” e de “aristocratização” que se “opõe à sociabilidade cujas tendências vão do
conformismo e do nivelamento, à estagnação das inteligências” (PALANTE, 1995, p. 75-76).
Nesse sentido, a amizade é uma potência “aristocrática e associal” (ONFRAY, 1995, p. 173)
que nos blinda contra os males exteriores. Assim, “na relação com o mundo”, ela “é
provedora de uma força que isola do resto da humanidade” (Ibid.). Essa proteção contra as
relações superficiais possibilita, por outro lado, o cultivo aprofundado da mais perfeita das
195
relações humanas, aquela que é responsável pelo complemento do nosso ser. A amizade é,
nesse sentido, um fim em si mesmo. Somente ela torna possível a mais livre manifestação da
“singularidade de cada um” na medida em que “autoriza, na escultura de si, o recurso ao outro
como a um espelho que se pode interrogar sem risco de obter um reflexo infiel” (ONFRAY,
1995, p. 173-174). Essa transparência total entre dois indivíduos faz da fidelidade mútua a
principal característica da amizade.
Tal fidelidade está associada diretamente à expressão maior de uma livre escolha, algo
que faz com que a relação entre amigos supere todas as demais ligações com outrem em seu
conjunto. Nesse sentido, ela se diferencia completamente das relações sociais obrigadas,
inclusive das mais importantes dentre elas, como as que se dão entre pais e filhos. Realmente,
aqui não existe escolha possível quanto às idiossincrasias do outro nem livre arbítrio de nossa
parte. Não se escolhe os filhos nem os pais que se tem. Ambos nos são dados pela natureza
por obra do acaso e seu vínculo de amor se dá de forma muito natural e instintiva, mas
também, quando a natureza não basta para garanti-lo, o vínculo encontra sua proteção na
forma da lei, esse garantidor último das obrigações mínimas entre os parentes consanguíneos
tais como são exigidas pela sociedade civilizada. De todo modo, trata-se de uma relação
obrigada. Por outro lado, como afirma Montaigne, a quem pertence o exemplo que acabamos
de apresentar, “nosso livre arbítrio não tem manifestação que seja mais verdadeiramente sua
do que a da afeição e amizade” (MONTAIGNE, I, 28, p. 277), já que apenas na amizade
ocorre um dos fenômenos mais raros entre os indivíduos: a “concordância das vontades”
(Ibid., p. 278), algo difícil de ocorrer mesmo entre irmãos consanguíneos. Aliás, questiona
Montaigne, por que encontraríamos necessariamente nestes últimos “a correspondência e
afinidade” próprias das “amizades perfeitas?” (Ibid., p. 277). E aqui o autor dos Ensaios se
refere a uma amizade de tipo único, tal como a que ele mesmo encontrou na pessoa de
Étienne de La Boétie, a quem considerava seu verdadeiro irmão: “O nome irmão é um nome
belo e cheio de dileção, e por esse motivo nós dois, ele e eu, usamo-lo em nossa aliança”
(Ibid., p. 276).
Uma amizade assim é ainda mais especial por preservar e complementar, como
dissemos, a individualidade dos envolvidos. Em vez de exigir sacrifícios identitários – e todas
as demais relações sociais fazem essa exigência – em qualquer nível que seja, por vezes até à
anulação do indivíduo, a amizade de que Michel Onfray faz o elogio é, pelo contrário,
condição sine qua non para uma individualidade filosoficamente bem formada. E por que é
assim? Ora, pela simples razão de que, como ensina o epicurismo, não existe vida filosófica
sem amizade. Nesse sentido, “o propósito do amigo” aparece sobretudo como “a colaboração
196
Não obstante todas essas considerações emblemáticas que fazem da amizade a mais
perfeita das relações humanas, Onfray não a vê como um absoluto, ou seja, como uma união
inabalável entre dois seres. Para ele, também a amizade não é uma ligação rigorosamente
estável, pura e totalmente imune à entropia. O nosso autor não faz nenhuma concessão ao
idealismo, por mínima que seja, visto que sua concepção ética evoca o dinamismo de forças
incessantemente atuantes e constantemente empregadas, portanto passíveis de produzirem
efeitos diferentes em situações distintas. Para Onfray, não existe Amizade em si, “mas
somente provas de amizade, todas dadas nos instantes, nos momentos” (ONFRAY, 1995, p.
176) precisos de um tempo espaçado tal como ela exige. Por isso a amizade nunca está pronta,
mas em contínua construção, tal como os indivíduos que ela envolve em seus enlevos, eles
próprios sempre tornando-se o que são. Exercício, pois, incessante, a amizade só pode ser
concebida como uma sublimação prática, nunca teórica. Não se deve idealizar a amizade. Para
que ela seja, é preciso vivê-la e praticá-la porquanto ela não se sustenta por si mesma, como
uma entidade conceitual autônoma. Palavras, atos, gestos e tudo o que se pode conceber sob a
ideia de “provas de amizade” não cessam assim de lhe conferir forma e força no transcorrer
do tempo, tempo que, a seu respeito, “é um fator de embelezamento” (Ibid.) uma vez que o
tempo transcorrido é a própria expressão, quase por si só, do vigor virtuoso que une os
amigos. Não é por acaso que a autoridade do tempo costuma ser solicitada quando as pessoas
querem demonstrar a força de seus vínculos de amizade.
Em contrapartida, os tempos modernos, tais como o gênio chapliniano retratou no
cinema, não veem com bons olhos uma relação tão subversiva da ordem social e por isso tudo
fazem para inviabilizá-la. Trabalho, família, ausência de ócio e os mais diversos
compromissos ditos sociais são impedimentos poderosos para a prática viva da amizade tanto
quanto para o cultivo de si. O humano unidimensional caro ao mercado e à moral social não
tem amigos verdadeiros, apenas parentes, conhecidos ocasionais e colegas eventuais. Desde
Montaigne (portanto, desde o início da modernidade) “o que costumamos chamar de amigos e
amizades são apenas contactos e convivências entabuladas devido a alguma circunstância ou
conveniência por meio da qual” (MONTAIGNE, I, 28, p. 281) almas estranhas umas às outras
são obrigadas a se manterem juntas e estabelecerem relação. Em consequência, a amizade não
é sinônimo de coleguismo, companheirismo ou camaradagem, e é por isso que “raramente ela
suporta o distanciamento”, o “silêncio” ou “a falta de tempo” (ONFRAY, 1995, p. 176),
desculpa perene que serve para justificar todas as acomodações sociais que sinalizam a
consolidação da alienação. A amizade, no entanto, “perece de negligência e de ausência de
razão de ser”, escreve Onfray, sublinhando, em conclusão, que ela “não é um sentimento
198
etéreo sem relação com suas condições de exercício” (Ibid.). Eis mais um pensamento
herdado diretamente do epicurismo, tradição filosófica dada a praticar tudo aquilo que teoriza.
Se nas demais formas de relações humanas a prudência recomenda reserva, discrição,
fala contida, ação comedida, salvaguarda de si, intimidade e identidade confundidas nessa
proteção, na amizade, como foi dito, podemos nos revelar por inteiro ao outro como a nós
mesmos nos revelamos. Isso é permitido porque na figura do amigo nos deparamos com o
nosso confidente, algo que nos faz perceber o quanto encontrar um amigo é também, e
sobretudo, encontrar um ponto de equilíbrio na condução da nossa existência. Com efeito, a
amizade é responsável por “restaurar os equilíbrios interiores” (Ibid., p. 177) do indivíduo,
afirma Onfray, escrevendo aqui sob a inspiração de Francis Bacon:
Epicuro disse que “toda amizade deve ser buscada por si mesma, mas origina-se de
seus benefícios” (EPICURO, 2014, 23, p. 30) terapêuticos, algo que também fora apontado
por Sêneca: “Lucílio, meu excelente amigo, nada ajuda tanto um doente a recuperar como a
afeição dos amigos, nada é mais eficaz para afastar de nós a expectativa e o medo da morte”
(SÉNECA, 2018, 78, p. 329). Francis Bacon, por sua vez, escreve belamente que o principal
benefício que a amizade nos proporciona é a reconfiguração de nossos medos e angústias
mediante o “desabafo pleno dos tormentos do coração” (BACON, 2007, p. 88). O amigo é
aquele “a quem você pode manifestar pesares, alegrias, medos, esperanças, suspeitas,
deliberações, e o que estiver no coração a oprimi-lo, em um tipo de absolvição ou confissão”
(Ibid.). Essa definição da amizade reforça sua extrema raridade. A bem dizer, são mesmo
raros os indivíduos que encontram alguém a quem possam se entregar confidentemente sem
reservas numa relação de total cumplicidade ao ponto de extrair disso grandes benefícios para
as suas vidas.
Encontrar um amigo, dizíamos, é ter a sorte de encontrar um outro eu, um eu que nos
completa e graças ao qual podemos ser mais humanos. Ninguém expressou melhor essa bela
ideia do que Montaigne: “Na amizade de que falo”, escreve o mestre por trás dos Ensaios, as
almas “se mesclam e se confundem uma na outra, numa fusão tão total que apagam e não
mais encontram a costura que os uniu” (MONTAIGNE, I, 28, p. 281). Manifestação maior de
uma relação por afinidade, amar um amigo é como amar a si mesmo, assim como proteger um
199
amigo é proteger a si próprio. Por isso Montaigne conclui dizendo que, se lhe pressionassem a
responder por que ele amava tanto Étienne de La Boétie, a resposta mais sincera que poderia
dar seria esta: “Porque era ele; porque era eu” (Ibid.), simples assim! Só muito raramente
alguém tem acesso a esse tipo de felicidade.
Por fim, é preciso dizer que o amigo tem uma função claramente hedonista em nossas
vidas, pois ele possibilita uma alegria ampliada no sentido espinosiano da expressão na
medida em que faz oscilar para cima nossa força de ação no mundo. Ou seja, o amigo nos
proporciona conatus, isto é, potência de existir. No registro baconiano, Onfray escreve que a
amizade é “a arte de amenizar as dores e pulverizar” as tormentas (ONFRAY, 1995, p. 177)
existenciais. Nesse sentido, ela possui também uma “natureza catártica” e, como tal, “ajuda a
viver instaurando o equilíbrio, a paz interior, a ordem dentro de uma alma onde o
desequilíbrio” e a “guerra contra si mesmo” (Ibid.) ameaçam destruir o ser. No campo
hedonista, continua ele, “a amizade é princípio de harmonia pelo qual, ao realizar a partilha
dos afetos, aumentam-se as alegrias e diminuem as dores do amado, assim como as suas
próprias” (Ibid.). Ora, segundo o princípio epicurista, “a amenização da aflição induz
imediatamente o aumento de prazer” (Ibid.), por conseguinte, promove uma intensificação da
vida. Assim, com seu equilíbrio restaurado ou conquistado, com sua vitalidade renovada ou
fortificada, o indivíduo se apodera das condições de possibilidade para viver experiências
estéticas concernentes exclusivamente a si, a seu corpo e à matéria de que a natureza é feita,
porém partilháveis com seu quase duplo, o amigo.
“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos”, escreveu Fernando Pessoa sob o heterônimo
de Alberto Caeiro (PESSOA, 2001, O guardador de rebanhos, II, p. 26). Precisamos ponderar
sobre o significado dessa frase. Ora, o hedonismo é precisamente uma filosofia da exaltação
dos sentidos do corpo. Contudo, essa filosofia, sabemos, não foi predominante na história das
ideias, mas, pelo contrário, atravessou-a como um pensamento e uma atitude dos subsolos
(ONFRAY, 1999a, p. 213): O hedonismo foi sempre uma filosofia marginal e uma corrente
alternativa precisamente por dar importância e por fazer a sua afirmação. Já a tradição
predominante, a filosofia idealista que remonta a Platão, é negadora do corpo e tem como
principal atitude uma hostilidade em relação à natureza sensível das coisas terrenas. Filósofos
do distanciamento do mundo e dos sentidos, os idealistas criaram paraísos conceituais como
subterfúgios às exigências corporais tão manifestas quanto incômodas.
200
tempo geológico. Este é, sabemos, o reino da necessidade. Mas o que melhor define o ser
humano desde a invenção da agricultura, a cerca de dez mil anos, senão sua tendência de
escapar à necessidade de viver conforme a necessidade? Comer, beber, dormir e fazer sexo
apenas para dar, inconscientemente, o seu contributo à sobrevivência da espécie? Não para o
ser humano. Graças ao advento da civilização, este animal se desviou de sua rota estritamente
natural e deu a si próprio a possibilidade de que tudo o que lhe é vital e necessário fazer o seja
feito com arte, isto é, com um avançado grau de artifício técnico capaz de conferir prazer e
beleza às suas ações essenciais.
O filósofo hedonista, movido pelo princípio de “rematerializar a vida” (ONFRAY,
1999a, p. 214) após dois milênios de ideal ascético, filosofia idealista e religião do anti-corpo
propõe, enfim, uma alternativa existencial para o nosso tempo: transformar a necessidade
natural em experiência cultural e estética, o que para ele define o sentido pleno de seu
pensamento. Assim, é em um punhado de páginas fundamentais de A arte de ter prazer que
Michel Onfray faz um esboço do que seria, então, “uma filosofia do corpo” (Ibid., p. 213).
Nelas o nome de Ludwig Feuerbach (1804-1872) adquire importância capital uma vez que se
deve a esse pensador alemão a expressão “gozo estético”, uma criação conceitual maior para
uma filosofia do prazer: “Com esta (...) expressão – ‘gozo estético’ – o hedonismo adquire seu
pleno sentido: vontade de produzir formas únicas, de transfigurar o real em emoções, de
tomar o mundo como um pretexto para beleza, excelência e prazer”, escreve Onfray (Ibid., p.
218). Quais são os meios para essa realização? Que “instrumentos” possibilitam uma tal
“alquimia”? Ora, precisamente “os cinco sentidos” que, para tal tarefa, devem ser
“exacerbados pela consciência” (Ibid.).
A palavra estética, já o dissemos, se relaciona com o sensível e diz respeito, antes de
tudo, a apreensão da realidade pelos sentidos. Apenas por estes é que podemos sentir
realmente a vida, isto é, cheirar, ouvir, ver, tocar e provar o mundo, um mundo tão pulsante de
vitalidade quanto nosso corpo. Tudo o que a tradição idealista recusou em nome do inteligível
– o corpo, o sensível, o tocável, o experimentável, o físico, o orgânico, a matéria, o devir,
numa palavra, o real – a tradição sensualista e hedonista afirma e reivindica. O hedonismo,
repitamos, é uma filosofia que pretende reconciliar o ser humano com sua natureza própria e
com a natureza das coisas que o cercam, sendo por isso uma exigência de sua efetividade o
contínuo aprimoramento dessa relação. Para alcançar esse objetivo Michel Onfray aposta tudo
na mediação do artifício cultural que, em sua obra, aparece associado às belas-artes: ele deseja
um pensamento do belo a serviço de uma prática voltada à promoção do júbilo, uma estética
que seja não como um fim em si mesmo, mas um meio para uma ética. Vimos esse princípio
202
Nessa ordem de ideias, reafirmemos que a pulsão de morte pertence ao asceta que
nega a vida ao combater o júbilo para louvar, em seu lugar, a dor que mortifica o corpo, mas
também, no outro extremo, ao tolo que se entrega sem consciência, sem personalidade, sem
forma e sem medida aos prazeres de todos os tipos. Nesta atitude o sujeito se mantém
próximo, senão ainda inteiramente prisioneiro, do reino bestial donde todos nós provimos. Na
outra, a cultura e o pensamento abstrato estão presentes, por certo, mas, mórbidos, servem à
morte. Confirmemos, portanto, que o hedonismo filosófico é, por assim dizer, a forma
quintessenciada de o ser humano lidar com sua potência fruidora. No gozo desregrado, há
uma entrega passiva aos imperativos da natureza e à sua força cega capaz de fazer o indivíduo
sofrer, agonizar e até mesmo morrer em nome do prazer, como ocorre nos casos de
dependência química. No gozo estético, a inteligência e a consciência ampliada lançam mão
das modalidades do belo para fazer do prazer uma força maior em benefício da vida. Trata-se,
em última instância, de buscar a experiência de viver prazeres esculpidos pela arte do sentir.
Pois assim como o pensamento, também a consciência não é senão uma modalidade
corporal, ou seja, ela existe pelo e para o corpo, e não o contrário: “A consciência não é
exterior ao corpo”, afirma Onfray, “ela é, do corpo, o que melhor exprime as veleidades
apolíneas de ordem” (ONFRAY, 1999a, p. 217). Dito de outro modo, a consciência é o corpo,
corpo informado sobre si mesmo quanto à sua sensibilidade, pois a consciência é a forma pela
qual o corpo se manifesta ordenado e guiado por uma razão que lhe é inerente. Do ponto de
vista estético e utilizando o vocabulário kantiano, Onfray ensina que não é o entendimento
que comanda a sensibilidade, mas, antes, o entendimento é que está “a serviço da
sensibilidade” (Ibid., p. 115). A consciência existe, então, para servir à razão do corpo, e não
o corpo para servir à consciência. Tanto é assim que “a meditação da vontade, da consciência
e da inteligência dos acontecimentos escalona definitivamente os gozos bestiais e os prazeres
hedonistas” (Ibid., p. 217), marcando-lhes uma diferença menos de natureza do que de grau e
apontando para o que é preciso nunca perder de vista: gozar sem consciência significa
arruinar a alma (Ibid.), logo o corpo.
É a consciência, portanto, que modera o ímpeto da energia vital retendo-a sob certos
limites. A inteligência, por sua vez, se apropria dessa matéria bruta para lhe conferir formas
humanamente viáveis. Por outras palavras, “o cérebro age como um filtro que decodifica o
prazer, lhe dá sua plenitude e sua forma intelectual”, pois “o prazer sem encéfalo não pode ser
estético” (Ibid.). Vê-se o quanto a razão e a lucidez são vitais no projeto filosófico de Michel
Onfray: é que para ser estético, o prazer precisa passar por um processamento que busca
conferir determinada forma pela qual as emoções envolvidas com o gozo possam aflorar. Não
204
é qualquer forma que é aceitável, mas uma forma humanamente expressiva e eticamente
viável. Só a consciência permite fazer do gozo um critério ético porquanto não basta sentir o
júbilo, é preciso, sobretudo, “saber que se está desfrutando”, e é essa faculdade clara e
julgadora que caracteriza o “gênero humano em sua relação com o prazer” (Ibid.).
A consciência e a inteligência potencializam assim o prazer e ampliam as
possibilidades de habitar este mundo entre júbilos e alegrias, apesar de suas dores e dos seus
sofrimentos. Trata-se, aqui, de apreender a realidade de maneira ao mesmo tempo poética e
filosófica, ética e estética, passional e racional, intuitiva e científica, natural e artificial. Disso
podemos extrair uma justificada expansão da palavra prazer para muito além da circunscrição
conceitual comum que a associa exclusivamente à mera sensação agradável. Para Onfray, o
hedonismo pertence à tradição do pensamento vitalista porque concebe o prazer como uma
pulsão afirmadora da vontade de vida. De fato, os próprios ascetas corroboram desde sempre
para a verdade desta afirmação já que, em seus esforços sem fim para negar e aniquilar a
vontade de vida que lhes habita, tomaram sem cessar, em qualquer ocasião, o prazer como o
principal inimigo a ser abatido.
fundamental” (Ibid., p. 111). Para tomar isso como verdade é necessário, entretanto, ser
discípulo de Demócrito de Abdera e de Aristipo de Cirene a um só tempo. Ou seja, é preciso,
em filosofia, reivindicar um materialismo hedonista para poder, com orgulho, conceber “os
eflúvios” e “os perfumes” como instâncias realmente dignas de apreciação estética tanto
quanto de análises filosóficas. Os odores são “como certo tipo de manifestações do mundo”,
algo como uma expressão, por outros meios atômicos, de seus fenômenos e “de suas
vibrações” (Ibid.). São, portanto, tão consideráveis para a arte e para a vida como qualquer
outro fenômeno da natureza. Essa visão do mundo, demasiado sensualista, foi, à sua maneira,
combatida por Platão que, no Filebo, por exemplo, faz Sócrates dizer que “os aromas” são
“prazeres menos divinos” se comparados aos que são proporcionados pela visão e pela
audição (PLATÃO, 2012, p. 157). Convenhamos: “Menos divinos” significa, no vocabulário
platônico, mais impuros e corruptíveis. Por conseguinte, os cheiros correspondem a um prazer
mais próximo do animalesco. Trata-se de uma sutileza retórica de Platão para depreciar os
poderes das narinas e mandar um recado crítico ao filósofo Aristipo que, como se sabe, foi um
notório defensor do valor estético das essências odoríferas. Platão, porém, é idealista, e “um
idealista”, em qualquer época que seja, tem sempre “um nariz atrofiado” (ONFRAY, 1999a,
p. 111).
Onfray chama de “contenderes do nariz” tanto aqueles que difamam os cheiros, como
Platão no Filebo, como os que utilizam a faculdade olfativa para fins nada nobres,
contribuindo, desta forma, para a sua desvalorização estética. Sem nos determos nesse ponto
mencionemos, de passagem, o caso de Kant, filósofo magnânimo em seu elogio à visão, mas
que, proporcionalmente, atribui indignidade ao olfato – e talvez por isso mesmo faça tão mau
uso de sua faculdade olfativa (Ibid., p. 113). O problema não é que sua filosofia estética
negligencie o nariz: se Kant escolhe privar-se de um de seus sentidos, isso é de menor
importância. Ocorre, no entanto, que o pensador prussiano faz “um uso perverso de suas
narinas” (Ibid.), e esta é a crítica que Onfray lhe dirige: “É em oportunidades surpreendentes
que se vê o pai da crítica utilizar seu nariz” (Ibid., p. 137), como, por exemplo, para
manifestar seu racismo. Com efeito, Kant privilegia o olfato apenas para fazer valer a fantasia
de sua distinção racial, pois realmente “o filósofo das Luzes põe em cena seu apêndice nasal
para elaborar a descrição que faz das raças negras” (Ibid.). Para além de qualquer
consideração estética, a atenção de Kant sobre a questão olfativa se detém estranhamente
sobre um ponto específico: “O odor dos negros...” (Ibid.).
Kant chega até mesmo a lançar mão da química especulativa do seu século e da teoria
das combustões orgânicas para defender a ideia de que os brancos são mais vigorosos que os
206
negros e que aqueles cheiram bem enquanto estes emanam maus odores. Para demonstrar,
Onfray cita algumas linhas kantianas extraídas do opúsculo Definição do conceito de raça
humana, texto de 1785, presente no livro Filosofia da história. De fato, nesse texto podemos
ler o seguinte:
O odor forte dos Negros, que nenhum cuidado de limpeza consegue dissipar,
permite supor que sua pele elimina de seu sangue uma grande quantidade de
flogístico, 82 de modo que neles o sangue se serve dela para se desflogistizar
num grau muito superior ao nosso (KANT, 1947, p. 146).
o nariz dos filósofo não é um órgão inocente, e o uso que fizeram dele revela
o quanto associaram o olfato à recusa do outro e de seu corpo. A
desconfiança para com o nariz é cúmplice da recusa da carne, e o recurso ao
faro por parte dos pensadores evidencia suas antipatias (Ibid., p. 135).
82
Segundo o Aurélio, trata-se de um fluido imaginado pelos químicos do séc. XVIII para explicar a combustão.
83
A passagem completa é a seguinte: “O excesso de partículas de ferro que se encontra, aliás, em qualquer
sangue humano, excesso compensado no caso que nos ocupa pela liberação de ácido fosfórico (o que faz com
que todos os negros tenham esse mau cheiro)” (KANT, 1947, p. 50).
207
84
A filósofa francesa Chantal Jaquet confirma essa constatação ao mesmo tempo em que se firma como uma
exceção recente com o seu livro Filosofia do odor, de 2010 (Cf. JAQUET, Chantal. Filosofia do odor. Trad.
Michel Jean Maurice e Maria Angela Mársico da Fonseca Maia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014).
208
carne e o corpo em sua totalidade” (ONFRAY, 2008, p. 108) em contato direto com o mundo
físico. Ou seja, a recusa em atribuir o mesmo nível de dignidade estética aos cinco sentidos se
deve a um princípio de negação do mundo. Enquanto a audição e a visão afastam o ser
humano da natureza, já que se pode ver e ouvir a distância, o paladar, o olfato e o tato
aproximam demais dela, e é por isso que se confere primazia àqueles sentidos enquanto o
desprezo é dispensado a estes. Os primeiros diminuem a presença do corpo afastando-o das
coisas sensíveis e naturais enquanto promovem uma suposta maior aproximação do intelecto
com as ideias puras: afastam do mundo imanente, aproximam do mundo transcendente. Os
segundos, por sua vez, invertem a lógica: fazem pouco caso das abstrações e empiricamente
estreitam os laços entre o corpo e a natureza, reconectando assim aquele com esta.
A diferença está, portanto, no fato de que a visão e a audição são sentidos mediadores
(ONFRAY, 1999b, p. 84-85), ou seja, eles se interpõem entre os humanos e as coisas de
modo a distanciá-las deles. Dessa forma, se comprometem minimamente com a matéria
(Ibid.). Contrariamente, a pele, o nariz e a boca são sentidos da imediatidade, isto é, mantêm
uma relação de contato muito direta com os elementos dos objetos. Aqui, o corpo está
inteiramente comprometido em sua interação com os compostos dos outros corpos uma vez
que só se pode tocar, cheirar e degustar os frutos do mundo se nos entregamos a um contato
íntimo entre pele, nariz, língua e a natureza das coisas. Por outro lado, ali, no olhar e na
audição, o mundo aparece ao indivíduo como se fosse mais puro e asséptico do que realmente
é em razão de o contato com as coisas visíveis e audíveis se darem de forma distanciada e
discreta. Os olhos e os ouvidos são os sentidos da representação. O nariz, a pele e a boca são
os da experimentação.
O conde de Buffon (1707-1788), que disse belas coisas acerca dos sentidos e nos
convida ao bom uso de nossa sensibilidade física prioriza, no entanto, a visão e a audição,
expressando assim claramente o seu idealismo. Para ele, os sentidos da audição e da visão são
“mais delicados e castos” (In: DIDEROT, 2017, p. 468). Por outras palavras, são mais puros,
uma vez que são menos sensualistas. Consequentemente, as artes ligadas a esses sentidos são
privilegiadas e “merecem um lugar de distinção” (Ibid.). Assim, tanto a pintura como a
música, afirma Buffon, são artes que concentram seus prazeres, prazeres “mais inocentes” e
menos voluptuosos, “na alma: uma pelos olhos, a outra pelos ouvidos” (Ibid.). No desfrute
estético da audição e da visão o corpo está, aparentemente, menos presente, portanto é menos
solicitado para contemplar seus objetos que, por sua vez, estão razoavelmente distantes. Em
compensação, nenhuma consideração estética é feita com respeito aos três outros sentidos,
mas sim uma afirmação antissensualista e anti-hedonista generalizada: “Pode ser que os
209
prazeres dos sentidos sejam os mais vivos”, diz Buffon, “mas parecem-me”, conclui ele, “os
menos dignos do homem” (Ibid., p. 469).
De fato, para aqueles que preferem o plano das ideias a uma experiência sensual e
concreta com a natureza, apenas a visão e a audição lhes permitem uma apreciação dos
fenômenos do mundo ou, antes, a representação artística desses fenômenos, no conforto da
grande distância entre a realidade e a abstração que dela se faz. Os idealistas gostam das zonas
que protegem do mundo sensível que eles consideram impuro e corruptível. Ver e ouvir é,
esteticamente falando, o mais próximo que podem chegar do almejado prazer dito puro, o
qual é sempre um prazer associado mais ao intelecto que ao corpo, mais à alma que à carne.
Devido a essa fantasia dualista que separa corpo e mente, “quanto maior é a proximidade do
objeto, mais a repulsa invade o filósofo” (ONFRAY, 1999a, p. 117). Esse “distanciamento do
mundo” aparece aqui como “o sintoma manifesto do sacrifício ao ideal ascético”, pois “ver”,
bem como ouvir, “isola e distancia do real” (Ibid.) ao passo que tocar, cheirar ou provar
aproximam demais a realidade ao ser humano, integrando-o ao mundo mundano, pois estes
sentidos trazem para junto dele a matéria bruta de que é composta a realidade. Aqui o corpo
se faz mais evidente, mais presente, mais ativo e solícito, fato este que incomoda demasiado
os adeptos do puro espírito. Eis porque “a imagem e o som dispõem de um status intelectual
negado aos sabores, odores e percepções táteis” (ONFRAY, 2008, p. 108). Ora, “a boca, o
nariz e a pele, não apenas a polpa dos dedos, já tão restritiva, supõem as mucosas e as
secreções” (ONFRAY, 2008, p. 108), portanto evidenciam por demais o corpo em suas
indiscrições elementares tidas pelos ascetas como coisas bestiais, logo repulsivas.
Poderiam objetar que também a audição, por exemplo, só é possível devido às ondas
sonoras, após serem captadas pela orelha (que funciona como uma concha acústica), fazerem
vibrar a membrana timpânica situada bem no interior do ouvido, de modo que há aqui, sim,
uma clara interação física entre a matéria externa e o corpo humano que por ela é afetado.
Sem dúvida. Todavia, não deixa de ser igualmente evidente que esse processo, por mais físico
e mecânico que seja, é, tal como a visão, extremamente sutil quanto à percepção que podemos
ter do funcionamento do corpo humano. Se, por um lado, não vemos as ondas sonoras sendo
ricochetadas pelo ambiente até atingirem nossas orelhas, menos ainda nos damos conta do que
ocorre no interior do ouvido, este órgão de função exclusiva que funciona, assim como o olho,
com enorme discrição. Como não notamos as ondas de som e de luz que os permitem, as
faculdades de ouvir e de enxergar nos dão realmente a impressão de serem demasiado
cerebrais, visto que apenas seus efeitos, na forma de representações mentais, são percebidos.
Assim, na prática, ver e ouvir mantém certo grau de inatividade do corpo, dando a falsa ideia
210
de que o organismo não está implicado no processo, mas apenas a alma. Daí a aparência de
pureza e de assepsia no ato de olhar e de escutar a qual se vale Buffon para dizer que estes
sentidos são “mais delicados e castos” em comparação aos demais.
De fato, com os outros três sentidos o cenário é radicalmente outro: convocando sem
nenhum pudor as mucosas e as secreções, eles chafurdam, explícita e literalmente, na matéria
das coisas se fazendo sentir com muito mais intensidade física. Para isso, solicitam
movimentos corporais que insinuam algo pelo que os puros de espírito têm grande aversão,
vale dizer, o nosso parentesco com os outros animais. Para sermos mais precisos, digamos
que a excitação desses sentidos põe à vista o que para muitos deve continuar oculto: a nossa
própria animalidade. Com efeito, a língua, o nariz e a pele são rejeitados em razão de
testemunharem “a animalidade que subsiste no homem” lembrando-o constantemente que
“tocar, fungar, farejar, mastigar, engolir, deglutir são operações que invocam a digestão e a
defecação”, logo “a submissão” de cada um “às necessidades naturais” (Ibid.). O nariz, por
exemplo, é o “órgão dos animais que caçam, matam e comem” (Ibid.), uma herança que
trazemos inscrita em nosso DNA já que fomos, por milhões de anos, caçadores e coletores.
Evidenciar isso, porém, fere o orgulho de Narciso.
Contato direto com o mundo; aproximação íntima entre a natureza e o ser humano
que, intelectualmente prepotente, pretendeu abstrair-se dela; questões biológicas que fazem
dos outros bichos nossos primos e irmãos; sacrifício dos sentidos como forma experimentação
do mundo em nome de um intelectualismo ascético; por tudo isso “os filósofos oficiais”
(Ibid., p. 109) promoveram uma hierarquia da sensibilidade estabelecendo que ver e ouvir são
“sentidos nobres”, ao passo que cheirar, tocar e degustar pertencem à categoria dos “sentidos
ignóbeis” (Ibid.). Eles criaram assim um corpo amputado e, no mesmo passo, comprometeram
a experiência estética já que, na história das ideias sobre do Belo, três quintos dos sentidos
humanos estão ausentes. Em suma:
Tudo bem quanto aos primeiros [os “sentidos nobres”], aos quais se
associam sem constrangimento práticas elaboradas e técnicas sutis que
geram a arte das imagens e dos sons, a pintura e a música, todas elas
atividades incontestavelmente ligadas à estética – cuja etimologia lembra a
capacidade de... sentir.85 Em contrapartida, seria inútil procurar, nas obras de
filosofia, um elogio ao olfato, ao paladar ou ao tato, mais ainda uma
celebração de atividades artísticas associadas: ninguém reconhece a
enologia, a ciência dos perfumes, a gastronomia como disciplinas ligadas
integralmente às belas-artes (Ibid., p. 109-110).
85
Bem a propósito, a tradutora do livro de Onfray observa, em nota, que o verbo sentir em francês (“sentir” ou
“perceber”) significa também “cheirar” (In: ONFRAY, 2008, p. 109).
211
dos eflúvios discretos que lembram à memória e fazem surgir na consciência a imagem de um
ser particularmente amado” (Ibid., p. 219).
Nesse sentido, Albert Camus considera que a obra de Poust trata “da mais difícil e da
mais exigente das memórias, a que recusa a dispersão do mundo como ele é e que”, para isso,
“tira de um perfume redescoberto o segredo de um novo e antigo universo” singular
(CAMUS, 2011, p. 306). O que Proust constrói, prossegue Camus, é uma poderosa síntese,
uma unidade de sentido artístico que se dá a partir do encontro de uma “lembrança perdida”
com uma “sensação” olfativa “presente”. Ou seja, um cheiro específico produzido pela
natureza hoje é o mesmo que se manifestou em um momento singular vivido num ontem já
longínquo. Assim, um tempo há muito perdido para o espírito porque há muito foi vivido pelo
corpo, porém salvo na memória olfativa, subitamente vem à consciência para se tornar um
tempo redescoberto em toda sua grandeza emocional no instante preciso em que o cheiro a ele
associado é novamente experimentado. As doces lembranças retornam com a sua carga
emotiva original, e o dispositivo que desencadeia essa experiência estética magnífica são os
odores ou, por outras palavras, a “impressão produzida no olfato pelas emanações voláteis dos
corpos” (Cf. Aurélio, verbete “odor”).
Assim, a arte de Proust dignifica os poderes cognitivos do olfato para promover,
através da linguagem, a experiência estética de um reencontro entre um passado de memórias
felizes com uma consciência presente que recusa o esquecimento e a dispersão próprios da
realidade contingente. Podemos então afirmar que o olfato evidencia o corpo como um
“guardião fiel de um passado” que o “espírito jamais deveria esquecer” (PROUST, 2010, p.
17). O mundo romanesco de Proust não é, pois, mais do que o mundo próprio de uma
memória (CAMUS, 2011, p. 306), e nele os cheiros exercem um papel fundamental. Como
poderia ser diferente, se o olfato é um dos sentidos mais fortemente associados à memória,
sobretudo à memória afetiva de uma infância há muito desaparecida? “Respiro um odor de
uma rosa”, escreve Henri Bergson, “e imediatamente lembranças confusas de infância me
voltam à memória” (Citado por ONFRAY, 1999a, p. 219).86
Como os poderes de uma faculdade sensorial capaz de ativar no cérebro, de modo tão
vívido, experiências de um passado distante puderam ser desprezados por aqueles que se
debruçaram sobre a arte do sentir? O simples fato de cheirar uma flor, a rolha de um vinho
perfumado, o cheiro próprio e perdurante de um lugar, do bairro de nossa infância, por
exemplo, um perfume específico que de imediato ativa na memória dias e épocas peculiares
86
Não foi por acaso que Proust frequentou a Sorbonne para assistir as aulas de Bergson. Realmente, o autor de
Matéria e memória lhe foi uma grande influência (Cf. ONFRAY, 1999a, p. 219).
213
de nossa experiência de vida, tudo isso excita o cérebro e faz com que uma complexa cadeia
de redes neuronais traga à tona lembranças bastante vivas, mas há muito adormecidas nos
recônditos do sistema nervoso. O que é despertado pelo olfato é a memória corporal de uma
trajetória existencial única e irreplicável. Possuímos algo em torno de 20 a 25 milhões de
células olfativas. 87 Para fruir dessa capacidade, ainda que bastante limitada se comparada a de
outros animais,88 é preciso que a consciência e a arte humanas valorizem essa sensação
fazendo dela, como Proust e Bergson exemplarmente fizeram, uma experiência a um só tempo
poética e filosófica. É a estes mestres do sensualismo que Michel Onfray se junta quando nos
convida a aguçar o potencial olfativo: “O nariz”, afirma ele, deve ser “investido dos poderes
de fornecer do mundo uma abordagem singular” onde “a consciência aumentará seus
poderes” e “a memória seus prodígios” (ONFRAY, 1999a, p. 219). Exploremos, pois, os
cheiros que a vida nos oferece e consideremos a possibilidade de filosofar a partir dos odores.
Com exceção da pele, que cobre toda a superfície do corpo, não deixa de ser
interessante o fato de que todos os demais órgãos da sensibilidade se concentrem
anatomicamente no rosto, o que dá uma imagem de proximidade comunicativa máxima com o
cérebro, o verdadeiro centro nervoso da sensibilidade humana e não apenas humana. “O rosto,
enquanto lugar em que se inserem os órgãos dos sentidos, oferece protuberâncias e volumes,
mas sobretudo aberturas pelas quais se infiltra o mundo” (Ibid.). A boca é sem dúvida a mais
intrigante dessas “aberturas que operam a junção entre o” mundo “exterior” e o mundo
“interior” (Ibid.). Órgão da comunicação oral a serviço do pensamento, a boca é sobretudo o
órgão que nos conecta ao mundo natural por meio da necessidade que temos de nos nutrirmos
dele. Ela é então “o vestíbulo da necessidade alimentar, nutricional e vital” (Ibid.), escreve
Onfray, que já consagrou dois livros às questões dietéticas, livros nos quais propõe tanto uma
87
Cf. Lúcia Helena de Oliveira. Olfato: O sentido da vida. Disponível em:
https://super.abril.com.br/comportamento/olfato-o-sentido-da-vida/. Acesso em: 25 mai. 2019. Juliana Diana.
Olfato. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/olfato/. Acesso em: 25 mai. 2019.
88
O cachorro, por exemplo, tem uma capacidade olfativa muitas vezes superior ao do ser humano. E elefantes,
conforme aponta uma descoberta recente, são capazes até mesmo de avaliar quantidades através do olfato (Cf.
Elefantes conseguem avaliar quantidades por meio do olfato. Disponível em: www-revistaplaneta-com-
br.cdn.ampproject.org/v/s/www.revistaplaneta.com.br/amp/elefantes-conseguem-avaliar-quantidades-por-meio-
do-
olfato?usqp=mq331AQA&_js_v=0.1#aoh=15612297544485&referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.co
m&_tf=Fonte%3A%20%251%24s&share=https%3A%2F%2Fwww.revistaplaneta.com.br%2Felefantes
-conseguem-avaliar-quantidades-por-meio-do-olfato. Acesso em: 23 jun. 2019).
214
problemática sobre os hábitos e costumes alimentares dos filósofos quanto uma filosofia do
gosto propriamente dita.
Os franceses amam a cozinha. Como não fariam desta arte, também ela, objeto de suas
considerações, de suas análises e meditações filosóficas? Uma filosofia do belo e do gosto não
se reduz aos sentidos ditos nobres (ONFRAY, 1999b, p. 104), mas diz respeito, apesar da
tradição, a todos os sentidos do corpo humano e seus respectivos objetos. De fato, o nosso
autor considera que qualquer tema relacionado à vida concreta é passível de receber
tratamento filosófico, qualquer um, visto que, em verdade, “não há objeto filosófico
específico que durma num céu de ideias próprias, longe do mundo” (Ibid., p. 103): o que
existe são “tratamentos filosóficos de todos os objetos possíveis e imagináveis” (Ibid.). Ora,
como algo tão vital como a matéria alimentar, mas também a que trata dos líquidos que
hidratam ou embriagam o corpo, não seriam dignas da razão filosófica estética? Como pensar
o corpo ignorando os elementos que mais diretamente interagem com ele? Quanto ao mais,
existem questões evidentemente éticas ligadas aos hábitos alimentares. Deveríamos deixá-las
de lado?
Talvez os filósofos profissionais desprezem o paladar como objeto estético pelas
mesmas razões que o fazem em relação ao olfato: trata-se de dois sentidos do corpo muito
“generosos em mostrar o quanto o homem que pensa e medita é ao mesmo tempo um animal
que sente cheiro e saboreia”. Por isso, aponta Onfray, “o descrédito lançado a todas as
atividades estéticas que fazem apelo aos sabores e aos odores, assim como às artes da cozinha
e da bebida” (Ibid.).89 Não obstante, vem precisamente da alimentação humana o mais notório
exemplo de como uma necessidade fisiológica pode ser transformada em virtude estética, algo
que por si só torna o tema relevante, e mais que relevante. De fato, a questão da gastronomia é
emblemática porque ilustra com perfeição a diferença existente entre prazer bestial e gozo
humano; entre hedonismo natural e filosofia do prazer; entre “animalidade pura” e
“humanidade impura”, ou seja, a diferença entre a natureza entregue à sua lógica exclusiva e a
intervenção da arte, da cultura e do artifício humanos no tratamento das satisfações de nossas
necessidades mais vitais, as quais são também as mais prementemente recompensadoras do
ponto de vista do prazer: beber e comer.
A fome em si mesma pode muito bem ser saciada de “maneira sumária por uma pura e
simples ingestão de alimentos” (ONFRAY, 1999a, p. 219), independentemente da aplicação
de uma sensibilidade estética devotada à ciência dos prazeres da mesa. Uma vez que a fome
89
Citação extraída do texto de orelha da referida obra, por isso a ausência de página.
215
atiça o apetite e provoca os incômodos físicos universalmente conhecidos, muitos são os que
se satisfazem com o imediato e simples alívio da fome sem maiores preocupações com o ato
de comer como um ritual artístico provedor de prazeres sutis e de experiências estéticas
enriquecedoras. Pensando em uma humanização mais elaborada, o que exige cultura e
artifício, Michel Onfray tem outra postura: ele exalta a gastronomia como uma arte humana
ligada aos imperativos de uma natureza literal, sua matéria prima. Ao mesmo tempo, essa arte
é aquilo que permite ao ser humano se libertar um pouco dessa natura na medida em que a
transforma noutra coisa. Nesse sentido, “sair da natureza implica a ação da cultura”
(ONFRAY, 1999b, p. 95) enquanto instrumento transfigurador das necessidades naturais,
sempre manifestas, em artifícios culturais (Ibid., p. 96). Daí a importância que Onfray confere
à culinária em sua obra, tida sempre como “a cultura acrescentada à necessidade em matéria
de boca” (ONFRAY, 1999a, p. 220), o que pressupõe elementos artísticos (Ibid.) e éticos
ligados a esse ato apenas aparentemente tão simples como é o de se alimentar.
Nessa ordem de ideias, a gastronomia pode ser comparada e colocada ao lado do
erotismo, cuja prática distancia o humano de sua animalidade sexual sem, contudo, castrá-lo
de seus impulsos naturais. No estado de natureza, se o animal tem sede, a água dos rios, dos
pântanos, dos charcos ou das cachoeiras lhe satisfaz sem maiores problemas (ONFRAY,
1999b, p. 95). Se tem fome, “ele come o que encontra, o mais à mão, raízes, bagos silvestres,
presas que caça” (Ibid.). Se sente desejo sexual, ele simplesmente “copula, após algumas
exibições, alguns combates” pela parceira (Ibid.). No entanto, tudo muda no âmbito da cultura
e da civilização, onde o artifício funciona como dispositivo de transfiguração das
necessidades tornando as coisas bem mais complicadas e trabalhosas para os seres humanos,
nisso apartados do restante da natureza. Assim, quanto à sede, homens e mulheres “elaboram
complexas beberagens e fazem fermentar as bebidas, preparam o caribi, uma mistura de sidra
e de vinho” (Ibid.). Se têm fome, “eles cozinham, fabricam e inventam o grão de lótus em
geleia, os bolinhos glutinosos de arroz com osmathe, o filé de fugu, mortal quando mal
preparado, o creme de anryales com fécula, a vulva ou a teta de leitoa recheada, a língua de
pavão ou olhos de peixe cozidos na água” (Ibid., p. 96) e iguarias ad infinitum. E quanto ao
apetite sexual? Bem, em sua analogia Onfray é bastante explícito e escreve que para saciá-lo
os seres humanos se notabilizam “com a mesma engenhosidade que na cozinha e escolherão
entre a masturbação e o casamento (que, aliás, são parentes), inventarão a liga, a pornografia e
o consolo, a geleia afrodisíaca e os trajes de couro”, coisas que apimentam o ato, desviam sua
prática das leis da selva e são ignoradas pelos outros animais. Conclusão: “Os batráquios não
216
bebem uísque, os gastrópodes não cozinham, e rendas não regalam nenhum artrópode” (Ibid.).
Logo, apenas os humanos são artificiosos.
O erotismo e a gastronomia são também parentes próximos da religião, da arte e da
metafísica enquanto criações que diferenciam os seres humanos dos outros bichos. Portanto,
aquilo que a natureza exige da nossa espécie, cabe à cultura intervir para conferir-lhe novas
formas (Ibid.), dar-lhe outra roupagem. Mais uma vez estamos no cerne do hedonismo
filosófico, uma vez que:
Nem todos concordam... Assim como Kant difama a faculdade olfativa, a filosofia
encontra na figura de Jean-Paul Sartre seu desprezador dos gostos e sabores provenientes do
paladar. Com efeito, Onfray denuncia a perversão conceitual operada por Sartre que em sua
obra-mestra, O ser e o nada, expõe uma “metafísica do buraco” (ONFRAY, 1990, p. 120) que
pretende circunscrever a alimentação ao registro das forças brutas da natureza a que o ser
humano, para sua vergonha, é obrigado a se submeter. “A tendência a preencher” um buraco,
escreve o filósofo existencialista, “é certamente uma das mais fundamentais entre aquelas que
servem de base ao ato de comer”. Sendo assim, “o alimento é a ‘massa’ que obturará a boca”
e “comer, entre outras coisas, é se ‘encher’” (SARTRE, 2011, p. 747-748). Ou seja, comer é
tampar aquilo (“o buraco”) que a priori se apresenta “como um nada” (Ibid., p. 747).90
Apesar do “entre outras coisas”, Sartre parece realmente não se importar tanto com a
boca “que distingue os sabores, associa os perfumes, decanta as substâncias” (ONFRAY,
1990, p. 121) quanto com a passagem da “massa” de alimentos mastigados pelo esôfago até
sua chegada ao estômago, onde deve cumprir, segundo ele, sua função maior: preencher um
buraco após haver obturado o vazio de uma boca salivante. O apetite é assim reduzido a algo
que pura e simplesmente gera “um vácuo, um apelo do ventre vazio, do estômago deserto, e
pouco importa o que ingerimos, contanto que esse vazio seja preenchido” (ONFRAY, 1999b,
p. 137) e a fome saciada. Sartre não leva em consideração a gastronomia enquanto arte
90
Sartre usa a alimentação inclusive como comparativo à imagem que sustenta da sexualidade, também ela
reduzida à sua metafísica do buraco, e chega ele próprio a ser obsceno quando concebe o “sexo feminino” como
uma “obscenidade” “escancarada” e a mulher como um ser incompleto, uma “‘esburacada’” que clama por
outro ser para poder tornar-se plena de uma plenitude devida exclusivamente à “penetração” de “uma carne
estranha” em sua carne própria (SARTRE, 2011, p. 748).
217
de virtú no estilo da Renascenças, de virtude livre de moralina?” (Ibid.). Com isso Nietzsche
atrela sua reeducação alimentar à grande crítica teórica que faz da moral e cultura ocidentais.
Na história das ideias, Nietzsche foi em quase tudo um divisor de águas. Onfray
considera que só depois do filósofo alemão é que a gastronomia pôde, enfim, se tornar a
“ciência que vê a boca como caminho de acesso a uma estética de si” (ONFRAY, 1990, p.
26). Em sua apologia às coisas próximas e cotidianas, Nietzsche realmente coloca a questão
da alimentação no mesmo nível de importância da escolha do clima mais favorável à
manutenção da saúde, da prática dos exercícios físicos (ele era adepto de longas caminhadas
diárias), dos livros e da música como sendo escolhas fundamentais no processo de tornar-se o
que se é e do cultivo de si. Sua busca é pela consolidação de um estilo, donde sua afirmação
de que tais práticas pertencem a um “instinto de autodefesa” o qual se constitui como a
expressão de um “gosto” singular (Ibid., II, § 8, p. 47).
Nietzsche chama de “casuística do egoísmo” (Ibid.) o conjunto dessas práticas de si e,
contra o desdém dos eruditos que logo veem tais coisas como pequenas e indiferentes à
filosofia, ele responde que precisamente aí reside a imperativa necessidade de uma
reaprendizagem (Ibid., II, § 10, p. 50). Ou seja, em vez de esses senhores ficarem divagando
sobre conceitos que “não são sequer realidades”, tais como os conceitos de “Deus”, “Alma”,
“Virtude”, “Além”, “Verdade”, etc., precisam antes entender que a questão da alimentação,
do lugar, do clima e “toda a casuística do egoísmo” são incalculavelmente “mais importantes
do que tudo o que até agora tomou-se como importante” (Ibid.), pois são realidades que
determinam a fisiologia, logo a vida, portanto o corpo, o comportamento, a força do caráter e
o potencial do pensamento. O ser humano é formado diretamente por essas coisas reais da
experiência cotidiana, e não pelos conceitos maiúsculos criados pela imaginação dos
metafísicos idealistas, puros produtos de ordem intelectual tomados como fim em si mesmos.
Em outras palavras, trata-se primeiramente de praticar o “cuidado de si” (Ibid., II, § 2, p. 40) e
o cultivo de si. Somente assim, como consequência, o filósofo poderá, talvez, estar em
condições de lidar com as grandes tarefas no âmbito da cultura.
Nietzschiano à sua maneira, Onfray faz do regime alimentar uma preocupação maior,
e isso ao ponto de ter feito deste o tema de abertura de sua carreira literária com o livro O
ventre dos filósofos: crítica da razão dietética, publicado em 1989. Nesta obra Onfray
persegue as pistas metodológicas deixadas por Nietzsche em torno da relação entre atitude
existencial e fisiologia; entre, enfim, os usos do corpo e as ideias; entre as doutrinas
filosóficas, o pensamento moral e os hábitos alimentares; entre os atos de comer e de beber e
as formas assumidas por um sistema de pensamento. Assim, que relações existem entre a
219
recusa de Diógenes de Sinope pelas convenções sociais e sua preferência cínica por comer
polvo cru? Que ideias são sustentadas por um Nietzsche que condena as bebidas alcoólicas e
prega o bom uso das fontes naturais de água? O pensador alemão, que preconiza refeições
leves, tem no entanto um estranho gosto por... salsichas. Já o filósofo idealista e crente pietista
Kant, por sua vez, foi um assíduo frequentador de bares e todos os dias, ao meio-dia, tomava
seu vinho sagrado (Ibid., p. 55). Apologista da vida natural e primitiva em detrimento da
civilização moderna, Rousseau só poderia defender uma alimentação a propósito, isto é, uma
que fosse rústica e simples, com o mínimo de preparo possível (Ibid., p. 45). Seria esse
defensor do vegetarianismo em pleno século XVIII um expoente ilustre do veganismo dos
tempos atuais?
Esse passeio gastronômico pela vida de filósofos ilustres não é de maneira nenhuma
fora de propósito, pois, como assinalamos, se é legítimo empreender um pensamento sobre o
corpo e suas façanhas, então falar sobre o que neste corpo se acumula na forma de nutrientes
está mais que justificado. O objetivo de Onfray é entender as razões corporais por trás de uma
obra filosófica e, no caso, ele considera que a razão dietética compõe esse rol de razões
outras. Se um determinado tipo de alimentação forma um tipo específico de homem (ou de
mulher), por que seu sistema teórico e sua ética não seriam também afetados? Onfray não
duvida dessa relação e em O ventre dos filósofos segue os rastros genealógicos da moral dos
filósofos a partir de seus hábitos alimentares precisamente por considerar que “toda culinária
revela um corpo, um estilo ou até um universo” (Ibid., p. 9). Seis anos depois o nosso autor
volta a abordar o tema da alimentação em A razão gulosa: filosofia do gosto. Aqui, no
entanto, propõe uma estética gastronômica de efeitos éticos, ou seja, uma investigação
filosófica da gastronomia enquanto verdadeira ciência hedonista a serviço da ética estética. E
“o hedonismo gastronômico é ético” porque, escreve Onfray, “permite estilizar nosso corpo e,
portanto, nosso espírito” (ONFRAY, 1999b, p. 96). Em ambas as obras Onfray está
perseguindo fiel e respectivamente duas grandes questões formuladas por Nietzsche em A
gaia ciência (2001, I § 7, p. 59), a saber: “Conhece-se os efeitos morais dos alimentos?” –
donde O ventre dos filósofos – ; “Existe uma filosofia da alimentação?” – eis as páginas de A
razão gulosa.
Antes de Onfray, e como mais uma de suas inspirações, temos Michel Foucault,
efetivamente um dos poucos pensadores contemporâneos a compreender a casuística do
egoísmo nietzschiano no que se refere à dieta (ONFRAY, 1990, p. 26). Com efeito, na última
fase do filósofo francês, na qual suas preocupações giram em torno da estilística da existência
ligada à arte de viver dos antigos gregos, especialmente no segundo volume de sua História
220
da sexualidade, chamado O uso dos prazeres, Foucault, estudando a relação dos filósofos da
Antiguidade com o prazer, a moral, a liberdade, a verdade e a sabedoria percebe a importância
que eles atribuíam à problemática do regime alimentar e dedica uma parte do seu livro à
abordagem do tema. Das análises foucaultianas, Onfray destaca uma conclusão: “A escolha
de um alimento torna-se realmente o que ela é: uma escolha existencial, pela qual se chega à
constituição de si mesmo” (Ibid., p. 27). Permanecemos, aqui também, no registro da
escultura de si própria de uma arte de viver. Assim, munidos de uma sabedoria ímpar, os
filósofos antigos não negligenciavam nada que, interagindo com o corpo, tivesse o potencial
de influenciar também o caráter, o comportamento, a conduta na vida, inclusive e
especialmente no que se refere ao regime alimentar. Não é por acaso que Onfray enfatiza as
seguintes palavras de Foucault:
Dentro das preocupações do filósofo antigo para alcançar a vida boa, que é a vida
virtuosa dedicada à sabedoria, o regime alimentar é uma oportunidade preciosa de fazer do
corpo um importante aliado. Desse corpo se exige eficácia, daí uma atenção contínua com os
“numerosos elementos da vida física de um homem” (Ibid., p. 130). Com efeito, a dieta
“problematiza a relação com o corpo” e permite desenvolver um modo de vida “cujas formas,
escolhas e variáveis são determinadas” precisamente por esse “cuidado com o corpo” (Ibid.).
Os gregos, como bons fisiólogos que eram, sabiam que cuidar da saúde e da boa forma física
significava cuidar simultaneamente do espírito, portanto do pensamento e do caráter, razão
pela qual a dietética inclui ainda uma preocupação com os exercícios físicos. De fato,
Foucault observa que esse processo se dá justamente por esses dois registros complementares:
uma preocupação com a “boa saúde”; uma atenção especial ao “bom estado da alma”, duas
instâncias do cuidado de si que implicam a prática de dois regimes que “se induzem”
mutuamente: o regime físico da prática da ginástica, e o regime alimentar. Ambos os regimes
funcionam como modalidades dos exercícios disciplinares de uma ética filosófica, algo que
Foucault sublinha claramente: “A resolução de seguir um regime medido e razoável, assim
221
como a aplicação com que a ele se dedica, dependem por si mesmas de uma indispensável
firmeza moral” (Ibid., p. 131).
Exercitar essa “firmeza moral” é, no que concerne ao regime alimentar, praticar o
autodomínio exigido por uma economia dos prazeres da mesa. O aspirante à sabedoria não
pode comer qualquer coisa, de qualquer forma e em qualquer quantidade. O comportamento
filosófico exemplar começa e termina, por assim dizer, à mesa. Cálculos e regras são então
determinados por cada escola de sabedoria a qual pertencem eleições e proibições alimentares
exclusivas (Ibid., p. 135) e, por conseguinte, críticas ou adesões aos célebres banquetes.
Assim é que “a dietética” funciona como “uma técnica da existência” (Ibid.), ou seja, como
uma ética estética que escapa a preceitos universais porquanto é, “por parte do indivíduo, uma
prática refletida de si mesmo e de seu corpo” (Ibid., p. 136). Vimos um exemplo disso em
Epicuro e o próprio Sócrates orientava nesse sentido seus discípulos (Ibid.), pois também ele
enxergava o exercício do regime alimentar como um dos elementos essenciais pertencentes a
“toda uma maneira de se construir como um sujeito que tem por seu corpo o cuidado justo,
necessário e suficiente” (Ibid., p. 137). Sendo assim, o que é ingerido em cada refeição, sua
qualidade para a boa saúde e sua quantidade adequada não são de forma alguma preocupações
menores. Pelo contrário, trata-se realmente de um
cuidado que atravessa a vida cotidiana; que faz das atividades maiores ou
rotineiras da existência uma questão ao mesmo tempo de saúde e de moral;
que define entre o corpo e os elementos que o envolvem uma estratégia
circunstancial; e que, enfim, visa armar o próprio indivíduo com uma
conduta racional (Ibid.).
É nesse sentido que para Onfray “ética e estética” se fundem na arte maior de esculpir
uma bela individualidade: é que no âmbito de uma vida hedonista a questão de tornar-se o que
se é passa pela ciência da alimentação porque esta, enquanto “sapiência estética”, envolve
uma preocupação eudemonista. Onfray usa a expressão “diet’ética” (ONFRAY, 1990, p. 146)
para designar essa “ciência do agir” entendida como “arte de viver” (Ibid.) com prazer. Não
por acaso ele recupera, em A razão gulosa, a importância filosófica de um mestre maior do
sensualismo, o francês Brillat-Savarin (1755-1836), autor de uma obra célebre chamada A
fisiologia do gosto. Trata-se de um pensador que dedicou todo o seu talento filosófico à arte
da mesa. É a ele, aliás, que devemos este notório aforismo: “Dize-me o que comes e te direi
quem és” (SAVARIN, 1995, p. 21). De sua pena saíram ainda outras máximas ligadas aos
fundamentos de uma estética do gosto. Exemplos: “Os animais se repastam; o homem come;
somente o homem de espírito sabe comer” – donde uma filosofia da alimentação; “O destino
222
das nações depende da maneira como elas se alimentam” – Nietzsche teria lido Savarin? Pois
o filósofo alemão disse algo parecido (vide supra, p. 195); “A gastronomia é um ato de nosso
julgamento, pelo qual damos preferência às coisas que são agradáveis ao paladar em vez
daquelas que não têm essa qualidade” – tropismo hedonista natural aplicado ao julgamento do
gosto cultural; “A descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao gênero humano
que a descoberta de uma estrela” – lição de casuística do egoísmo que prima pela valorização
das coisas próximas e úteis; Por fim, Savarin escreve: “Os que se empanturram ou se
embriagam não sabem comer nem beber” (Ibid.) – porque prisioneiros do hedonismo vulgar,
quando não bestial.
Aproveitemos essa alusão de Savarin à arte de saber beber e passemos a falar do vinho
que, como se sabe, é o néctar dos gastrônomos. Quanto a esse assunto, e desta vez se detendo
mais diretamente na exploração das potencialidades sensórias do palato, é com reverência que
Onfray lembra o trabalho de Michel Serres (1930-2019) em Os cinco sentidos: filosofia dos
corpos misturados I, uma obra sensualista por excelência. É nesse livro que Michel Serres faz
do Châteu d’Yquem, um vinho tido como um dos mais refinados e preciosos, um objeto
filosófico digno de análises, senão conceituais, certamente sensuais (Cf. SERRES, 2001, p.
153-170): “Enfim uma realidade sensual apreendida sem conceito numa língua de sabores
deliciosos”, escreve Onfray (1999a, p. 221) acerca da meditação enológica empreendida por
seu conterrâneo. Todavia, podemos aqui dispensar-nos de trazer às nossas páginas as análises
de Michel Serres, bem como o respectivo comentário que Onfray lhe dedica, para preferir
uma pequena amostra de um experimento estético/filosófico semelhante que o próprio Onfray
empreende em um de seus livros mais recentes. Nos referimos a Cosmos: uma ontologia
materialista, de 2015.
No primeiro capítulo desse livro, chamado O tempo, há um tópico no qual o nosso
autor registra a experiência de sabores e emoções que apenas o vinho pode proporcionar. De
fato, é com um grupo seleto de amigos que Onfray faz de uma histórica sessão de degustação
de vinhos a ocasião perfeita para um intenso exercício estético, poético e filosófico como
somente um pensador hedonista pode conceber. Trata-se de um experimento vinicultor no
qual é posto em jogo uma reflexão sobre o tempo, mais precisamente sobre “as formas
líquidas do tempo” (ONFRAY, 2018a, p. 33-56). Daí a convocação não da teoria, do
escritório e dos livros que falam sobre o conceito de tempo, mas, antes, da tentativa de
transmutar empiricamente uma experiência sensorial em experiência temporal: “Eu queria sair
em busca do tempo não de forma conceitual, numênica, mas de modo nominalista”, escreve
Onfray, ressaltando seu desejo de reencontrar “um tempo perdido, não o tempo perdido”
223
91
Sugeridas por seus amigos, essas datas tem significação biográfica para Onfray e representam,
respectivamente, o ano de criação da Universidade Popular do Gosto de Argentan; o ano de criação da
Universidade Popular de Caen; a data em que o nosso autor ingressa no ensino secundário como professor de
filosofia; seu ano de nascimento; e, por último, o ano de nascimento de seu pai. Trata-se, portanto, de uma
biografia de vinhos, mais uma razão de ser do tempo que se busca.
224
aplicada” (Ibid., p. 42). Sem dúvida, pois em se tratando de vinho, o paladar, em comunhão
com o olfato, permite experimentar concretamente o ser e o devir, o que foi e permanece
sendo bem como as transformações gradativas que o conduzirão ao seu desaparecimento
completo no não-ser. Assim, “o passado do vinho permite ir de suas condições de
possibilidade ao seu ser; seu presente: ir de seu estar à sua dispersão; seu futuro: ir de suas
metamorfoses à sua morte” (Ibid.), com o que “a vida de um vinho replica (...) a de um
humano” (Ibid.). Toda a atenção sensorial se volta desse modo à captação do que está
destinado a logo desaparecer, mas não antes de imprimir algumas ideias na memória afetiva.
Mas, como sugere David Hume (1711-1776), o que são as ideias senão impressões
tênues quando comparadas às sensações vívidas que lhes deram origem? (HUME, 2004, p.
35-36). É sobre estas que reside todo o efêmero, porém intenso momento “presente da
degustação” (ONFRAY, 2018a, p. 45), momento este que funciona como um genuíno
“exercício espiritual” (Ibid.): “À maneira das práticas filosóficas que permitiam aos filósofos
da Antiguidade (...) aumentar sua presença no mundo”, degustar um vinho “consiste em
praticar a ampliação de si no mundo, ou mesmo a redução do mundo a si – algo permitido
pelo vinho champanhe” (Ibid.). Para tanto é preciso estar inteiro na experiência, deixar
trabalhar a memória e as emoções correspondentes por ela estocadas (Ibid., p. 49) nos
meandros do cérebro, pois “o vinho”, afirma Onfray como um discípulo um tanto heterodoxo
de Epicuro (já que, como se sabe, o mestre do Jardim reprova as bebidas refinadas), “se prova
com a alma, a parte anatomicamente mais sutil do corpo” (Ibid., p. 51). Mas chega de teoria e
peguemos, como ilustração prática desse exercício de materialismo hedonista, dois exemplos,
os das garrafas de 2006 e 2002. Quanto à primeira, Onfray registrou as seguintes linhas:
Tal como os filósofos, também os enólogos possuem um vocabulário próprio por meio
do qual esforçam-se por traduzir em palavras sensações que em tudo as superam.
Acompanhemos Onfray em sua lição de enologia anotada: o vinho em questão é descrito, ao
olhar, como contendo uma “coloração pálida” e “reflexos esverdeados” (Ibid., p. 50). Da
contemplação passa-se para a olfação: “Ao primeiro nariz, percebem-se frutas apenas
maduras – pêssego, manga, banana, com notas de maturidade, pimenta branca, sílex, pasta de
225
92
“Numa degustação, primeira sensação trazida por um vinho em contato com a boca” (Nota da tradutora, in:
ONFRAY, 2018a, p. 50).
93
Atanor é um fornilho antigo feito de barro utilizado pelos alquimistas da Antiguidade.
94
FLARYS, Flavio. Dicionário dos vinhos: entenda e utilize os termos dos especialistas. Disponível em:
http://g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/2014/05/dicionario-dos-vinhos-entenda-e-utilize-os-termos-dos-
especialistas.html. Acesso em: 30 mai. 2019.
226
95
Nota da tradutora: “Sensação que fica depois que se cospe ou ingere o vinho durante a degustação” (In:
ONFRAY, 2018a, p. 50).
227
A filosofia do gosto de Michel Onfray deve ser entendida como a proposição de uma
filosofia do corpo. Ora, o que mais marca a presença de um corpo humano que cheira, ver,
ouve e experimenta sabores do que sua pele, essa complexa rede sensível que envolve toda
sua extensão e que mais diretamente marca a fronteira entre o eu, os outros e o mundo? Como
se diz, o tato é o “sentido mais sensível” 96. Todavia, no campo das ideias estéticas, ele é o
mais esquecidos deles, ainda que seja o mais proeminente. Esse esquecimento não será em
razão de o tato ser o sentido que mais diretamente remete aos... sentidos? O platonismo
histórico, ao declarar guerra aos sentidos do corpo afirmando que estes nos enganam, expressa
certamente uma repulsa pelo tatear, um ato que põe o ser humano em contato íntimo com o
mundo dos fenômenos e com todas as coisas próximas da experiência sensível mantendo-o,
assim, distante das ideias puras. O tato é por excelência o sentido da empiria.
Por isso a pele, toda a pele, “é o sentido mais erótico” (ONFRAY, 1999a, p. 222). É
um erro, portanto, reduzi-lo, como frequentemente ocorre, “ao que os dedos” e “as mãos são
capazes de captar” (Ibid.), pois ao tato “concerne”, na verdade, “à pele em seu conjunto”
(Ibid.), logo à totalidade do corpo, não a uma parte isolada com função exclusiva. Quem
melhor compreendeu a natureza sensorial da pele foram os mestres orientais do erotismo: eles
perceberam bem que a pele faz de todo o corpo uma zona erógena em potencial graças às
terminações nervosas que o revestem integralmente, ao passo que os ocidentais tenderam a
reduzir a sexualidade aos órgãos reprodutores. No entanto, a pele, toda ela, participa do
erotismo, essa técnica cultural refinada concebida para transformar a necessidade sexual em
um ato artístico.
Por outro lado, pode-se ter a impressão de que falta à exploração do tato seu objeto
estético próprio. O ouvido tem seus sons e sua música, o nariz desfruta de seus perfumes, o
olho contempla a sua paisagem ou a sua pintura, a boca do gourmet, por sua vez, sabe
valorizar os bons pratos e degustar os bons vinhos. E para a pele, nada além do óbvio? Ou
96
10 fatos sobre o tato, seu sentido mais sensível. Disponível em: https://www.bol.uol.com.br/listas/10-fatos-
sobre-o-tato-seu-sentido-mais-sensivel.htm. Acesso em: 02 jun. 2019.
228
seja, nada além daquilo que se pega e se manipula com os dedos e com as mãos para depois
ser apreciado pela visão, em se tratando de artes plásticas, ou pelo paladar, no caso de uma
especiaria culinária, mas não especificamente para si mesma? Ora, essa é uma falsa impressão
porque, na verdade, a pele é o grande órgão da sensação tanto quanto é aquele que reúne e
torna comum todos os demais sentidos do corpo (SERRES, 2001, p. 49). Como escreve
Michel Serres em Os cinco sentidos, “nosso corpo se cobre de pele, fecha-se sob ela” e,
todavia, é ela, a pele, que “se abre para os sentidos” (Ibid., p. 50). Quer dizer: ao mesmo
tempo em que a pele é, ela própria, o órgão de um sentido autônomo, o tato, é também aquele
que é comum a todos os demais sentidos na medida em que os recebe todos juntos para lhes
servir “de elo, ponte, passagem entre eles” (Ibid., p. 66). A verdade é que nenhum sentido
existe isoladamente, como que prescindindo da pele, mas a pele é que, ao contrário, por
formar uma espécie de “tela de fundo” e um “suporte” para todos eles ou um “contínuo” que
os interliga deve, por seu turno, ser concebida como o “denominador comum” (Ibid., p. 66) da
sensibilidade do corpo. O tato é, assim, o mais predominante dos sentidos e,
consequentemente, todos os objetos estéticos feitos para estimular a visão, a audição, o
paladar e o olfato lhe pertencem igualmente, uma vez que ele participa, direta ou
indiretamente, de todas estas sensações.
Devemos à pele o fato de todo o corpo ser ele mesmo um grande órgão da sensação. É
por esse motivo, aliás, que a pele, segundo as análises de Michel Serres, deve ser considerada
como um órgão “multissensorial” (Ibid., p. 78), porquanto “cada sentido, proveniente dela,
exprime-a intensamente à maneira e na qualidade de cada um” (Ibid.). De resto, os receptores
sensitivos espalhados por toda sua extensão fazem do tato o mais completo dos sentidos bem
como o mais abrangente, uma abrangência que ganha em complexidade precisamente porque
os demais órgãos da sensação estão concentrados na pele, integrando-a em suas percepções
próprias. Todas as sensações, de alguma forma, são táteis. Por isso Michel Serres (2001, p.
47) diz que a pele, devido às “suas concentrações singulares, desenvolve a sensibilidade” em
sua inteireza: é que ela tem a capacidade de fazer convergir sobre si a “variedade de nossos
sentidos” que, nela, se misturam (Ibid.). Como não seria assim, uma vez que “cada órgão dos
sentidos invagina-se na mesma pele”? (Ibid., p. 49). Serres e Onfray compreendem a pele
como um invólucro que abarca o interior do ser humano delimitando o espaço próprio do seu
corpo. Esse invólucro, contudo, possui “portas erguidas” para o mundo e estas são
precisamente “os órgãos dos sentidos externos”: é “por estas portas”, escreve Serres, que
“vemos, ouvimos, sentimos os gostos e as fragrâncias” (Ibid., p. 50). E mais: “Por estas
paredes, mesmo fechadas, nós tocamos” (Ibid.). Como resultado, é a pele que “estremece,
229
exprime, respira, escuta, vê, ama e se deixa amar, recebe, recusa, recua” (Ibid., p. 47)
manifestando assim, em sua superfície, os efeitos de uma interação direta do corpo com os
demais corpos, ou seja, com o mundo simplesmente.
Pois é através da pele que lemos o mundo e nele nos orientamos já que, efetivamente,
por ela passam toda textura, brisa, sensação térmica, pressão, umidade, dor, prazer e vibração
que provêm dos objetos exteriores e dos fenômenos naturais. A pele, na medida em que é o
maior órgão do corpo humano (HORSTIMAN, 2010, p. 30),97 está associada diretamente à
orientação deste corpo no espaço que ele ocupa e sua locomoção nesse espaço é dependente
dela. Assim, devemos às sensações táteis o essencial no que se refere aos movimentos do
corpo. É também através do tato que o cérebro calcula, por exemplo, a força necessária a ser
empregada pelo organismo na manipulação dos objetos (Ibid.).98 De modo geral, é graças à
pele que podemos ter uma percepção ampliada do mundo e sentir nossa presença nesse
mundo. Estejamos conscientes disso ou não, “a sensibilidade, alerta aberta a todas as
mensagens, ocupa mais a pele que o olho, a boca ou a orelha” (SERRES, 2001, p. 66), e é
através desse tecido ultrassensível que sentimos ininterruptamente, sem nenhuma
possibilidade de deixarmos de sentir o que quer que seja, salvo na condição de cadáver. Cabe
ao tato, portanto, sofrer “todos os contatos, involuntários ou não, entre o invólucro exterior do
corpo e o mundo” (ONFRAY, 1999a, p. 222), um mundo que nos cerca e que deixa suas
marcas sobre nossa pele à guisa de tatuá-la de vivências que se acumulam.
“A pele é”, assim, “uma variedade de contingência”, escreve Serres. “Nela, por ela,
com ela tocam-se o mundo e o meu corpo, o que sente e o que é sentido”. Desse modo, a pele
pode ser definida como uma “borda comum” entre o corpo e o mundo (SERRES, 2001, p.
77). Nessa ordem de ideias, Serres fala de uma “contingência” que significa “tangência
comum”, o mesmo que dizer que “mundo e corpo cortam-se” na pele e “acariciam-se nela”
(Ibid.). De fato, os fenômenos atingem a pele em fluxo contínuo e ininterrupto, condição pela
qual o corpo está constantemente a processar informações táteis, o que permite ao indivíduo o
desenvolvimento de uma sapiência empírica precisa. É o caso do marinheiro que compreende
“uma brisa em seu rosto”, por mais sutil que esta seja, “como uma informação sobre a
velocidade de seu barco”. Da mesma forma, “o camponês capta, pela umidade, pela suavidade
e pela untuosidade de um vento crepuscular qual o tempo que se anuncia para o dia seguinte”
97
Para saber mais sobre a pele enquanto órgão e sobre o tato enquanto sensação fundamental para a nossa
humanidade, ver o artigo Os cinco sentidos - O tato, de autoria de Mírian Ribeiro, disponível em:
http://www.jornaldaorla.com.br/noticias/8675-os-cinco-sentidos-o-tato/. Acesso em: 05 jul. 2019.
98
Paradoxalmente, a superfície do cérebro, que é o órgão para onde é transmitido todo e qualquer sinal da
sensibilidade, é completamente insensível ao toque (HORSTIMAN, 2010, p. 30). Quer dizer, sentimos tudo com
o cérebro, mas ele próprio é “insensível”.
230
(ONFRAY, 1999a, p. 222). São dois exemplos com os quais Onfray ilustra uma estética
epistemológica onde herdeiros de uma sabedoria milenar, o homem do mar e o homem do
campo, primeiro sentem a natureza, deixam-se infiltrar por ela, se fundem com ela antes de
proferirem qualquer leitura de suas intenções. E aqui é interessante que Onfray recorra às
palavras de Michel Serres, tão pertinentes quanto possível para a relevância de uma reflexão
sobre as sensações táteis. “Nosso amplo e longo invólucro variável”, escreve Serres, sempre
no registro da escrita sensual,
99
A intuição filosófica de Michel Serres acerca do parentesco entre tato e audição parece encontrar hoje, ao
menos em parte, sua comprovação científica: “O tato e a audição são os únicos dois sentidos que dependem da
transformação de força mecânica em sinais elétricos, e estão intimamente ligados. Existem mais de 70 genes que
podem causar perda de audição, mas não foi encontrado nenhum que influencie nosso senso de toque. Mesmo
assim, é comum que pessoas com baixa audição tenham um baixo nível de tato” (Cf. 10 fatos sobre o tato, seu
sentido mais sensível. Disponível em: https://www.bol.uol.com.br/listas/10-fatos-sobre-o-tato-seu-sentido-mais-
sensivel.htm. Acesso em: 02 jun. 2019).
100
Estudos sugerem que pessoas que sentem calafrios ouvindo suas músicas favoritas são mais suscetíveis a
emoções intensas. Uma pesquisa recente aponta que tais indivíduos têm no cérebro um maior volume de fibras
conectando o córtex auditivo às áreas cerebrais ligadas ao processamento das emoções, indicando assim uma
comunicação mais eficiente entre essas regiões (Cf. Pessoas que sentem arrepios ouvindo música podem ter
cérebros especiais. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2017/09/pessoas-que-sentem-arrepios-
ouvindo-musica-podem-ter-cerebros-especiais/. Acesso em: 03 jun. 2019. Se você sente arrepios quando
escuta música, seu cérebro pode ser especial. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-
231
arrepio resultante da forte emoção que algumas pessoas experimentam ao ouvir suas canções
prediletas. Nesse caso, o frisson pode ser compreendido como uma onda de prazer que
perpassa toda a extensão da pele, uma experiência estética tão intensa que já foi chamada
convenientemente de “orgasmo da pele”:101 dentre todas as ondas que, no dizer de Serres,
“impregnam” e “inundam a pele”, algumas literalmente a fazem gozar. Os cientistas explicam
que o fato de o corpo reagir do mesmo modo a estímulos diferentes (seja o arrepio provocado
por um susto, seja aquele proveniente de um júbilo) demonstra a unidade do sistema
orgânico.102 O arrepio da pele comprova tanto o monismo da nossa natureza quanto a tênue
linha divisória que separa a dor e o prazer.
Esquecida pelos filósofos, exceto por raríssimas exceções (sendo Condillac a maior
delas), a pele é uma “tela sutil estendida entre os órgãos e o real, o sangue e o ar” (ONFRAY,
1999a, p. 223), ou seja, ela é aquilo que define a extensão do corpo e, assim, o nosso mundo
interior e o mundo exterior são por essa superfície ultrassensível demarcados como dois
mundos distintos, ainda que, em contato, ambos se misturem e tornem-se comum. Apesar
dessa importância ontológica, a pele não recebeu da filosofia nenhuma atenção. Em
contrapartida, ela parece existir apenas “para o cirurgião que a incisa” e para “o
dermatologista que a inspeciona, e apenas para eles” (Ibid.). Trata-se de uma negligência
estética surpreendente considerando que é na pele que “se inscrevem as emoções e as
memórias, as tragédias e os vincos do riso, o tempo e o avanço da morte” (Ibid.), de modo que
ela, a pele, funciona como um “pergaminho” (Ibid.) destinado a registrar permanentemente
uma trajetória existencial única, “pergaminho virgem por pouco tempo”, depois, nas palavras
de Onfray, um “impossível palimpsesto” (Ibid.) onde a vida deixa indelevelmente sua marca.
Por isso Michel Serres diz admiravelmente que “trazemos na pele singularidades feitas
de pele” (SERRES, 2001, p. 66). É que é na pele, e não em outra parte do corpo, o lugar no
qual se revelam as “gravuras” singulares de um tempo vivido, ou seja, as “rugas” únicas
“escritas a estilo” (Ibid., p. 72). É preciso estar a decifrar e a refletir continuamente sobre tais
noticias/redacao/2017/09/05/se-voce-sente-arrepios-quando-escuta-musica-seu-cerebro-pode-ser-especial.htm.
Acesso em: 03 jun. 2019).
101
Cf. David Robson. O misterioso “orgasmo da pele” provocado por certas músicas. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150811_vert_fut_orgasmo_pele_musicas_pai. Acesso em: 03
jun. 2019. Merelyn Cerqueira. Qual a ciência por trás dos arrepios? É verdade que existe o “orgasmo de
pele”?. Disponível em: https://www.jornalciencia.com/qual-a-ciencia-por-tras-dos-arrepios-e-verdade-que-
existe-o-orgasmo-de-pele/. Acesso em: 03 jun. 2019; Por que temos arrepios e calafrios quando estamos com
medo? Disponível em: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI276317-17770,00-
POR+QUE+TEMOS+ARREPIOS+E+CALAFRIOS+QUANDO+ESTAMOS+COM+MEDO.html. Acesso em:
03 jun. 2019.
102
Cf. Carla Soares. Por que arrepiamos? Disponível em: https://super.abril.com.br/ciencia/por-que-
arrepiamos/. Acesso em: 03 jun. 2019.
232
gravuras pois, enquanto viver, a alma de um filósofo “frequenta” justamente “este couro”
físico “coberto de inscrições” (Ibid.). Mas quantos filósofos levam em consideração sua
própria pele – logo sua vida – em suas meditações ditas metafísicas?
Quanto aos demais sentidos do corpo, a visão e a audição que, como dissemos acima,
desfrutam do status de nobreza por parte da tradição filosófica, em A arte de ter prazer
Onfray tece algumas considerações pertinentes acerca da música mas evita, nesta obra, fazer
uma “lista fastidiosa das belas-artes que dependem do olhar” (ONFRAY, 1999a, p. 223) a fim
de se deter um pouco mais exclusivamente sobre essa “arte divina que é a música” (Ibid.).
Isso não significa que o nosso filósofo rejeite as artes visuais, muito pelo contrário. Na
verdade, e isso não surpreende, Michel Onfray é um grande esteta e desde o início de sua
carreira se dedica a escrever livros sobre as artes em geral e sobre a arte contemporânea em
particular, como os que celebram a pintura de Jacques Pasquier, Monsù Desiderio, Vladimir
Velickovic, Ernest Pignon-Ernest e Valerio Adami; a fotografia de Willy Ronis e Bettina
Rheims; a escultura de Pollès; a música de Pascal Dusapin e Éric Tanguy; a literatura de
Miguel de Cervantes ou do contemporâneo Michel Houellebecq; além de ele próprio ter
escrito uma dezena de livros de poesia. 103 Quanto a nós, no que se refere a esse “corpo
hedonista” capaz de gozar esteticamente a partir do conjunto de suas potencialidades
sensitivas, portanto explorando a audição, a visão, o olfato, o paladar e o tato, nos designamos
à tarefa de destacar, nesta dissertação, as reflexões que Onfray oferece acerca destes três
últimos sentidos do corpo os quais, como foi suficientemente dito, são os sentidos
desprezados pela maioria dos filósofos, sempre mais propensos ao ideal ascético que ao
hedonismo sensualista. Se tais filósofos escolheram privilegiar em suas análises um sentido
ou dois, fizemos aqui a opção por três.
Tudo de belo e verdadeiro foi e continua sendo dito sobre as artes visuais, o sentido da
visão e principalmente acerca das emoções provocadas pelos sons harmoniosos. Seria
interessante seguir as ideias apresentadas por Onfray sobre a música e, a partir delas,
convocar Schopenhauer e Nietzsche, estes dois grandes melômanos para os quais a vida sem
música seria um erro grotesco, para enriquecer nossas análises. Contudo, já é hora de nos
encaminharmos para a conclusão deste trabalho e, para essa tarefa, preferiremos outro
103
Todos os textos de Michel Onfray dedicados à estética, e eles são muitos, foram recentemente reunidos num
único volume intitulado La danse des simulacres: une philosophie du goût. Paris: Ed. Robert Laffont, 2019.
233
caminho, a saber, as considerações finais que Onfray nos oferece sobre seu projeto filosófico
em A arte de ter prazer, uma conclusão que anuncia seu livro seguinte, precisamente A
escultura de si de que o nosso presente capítulo procurou fazer o comentário – trata-se de um
livro no qual Onfray visa conceber, na esteira de Nietzsche, um “corpo artístico” capaz de
fazer frente ao niilismo ascético de nossa época a partir da emergência de novas e jubilosas
possibilidades de existência, aquelas propensas a integrarem suas vidas e seus corpos ao
sentido da Terra. Tais palavras são uma verdadeira síntese de tudo o que aqui procuramos
expressar. Assim, leiamos Onfray, que finaliza da seguinte maneira o capítulo intitulado
Corpo de A arte de ter prazer:
Fazer da própria vida uma obra de arte, tentar estar sempre no domínio de sua conduta,
ser artífice de uma existência única elegendo o prazer como guia... Como não lembrar aqui de
Michel de Montaigne, ele que, no final dos seus Ensaios, foi magnânimo na expressão dessas
ideias e cuja obra representa um modelo maior para um pensamento hedonista moderno. De
fato, Montaigne celebra a construção de si e a vida filosófica hedonista, essa sabedoria do
corpo e da terra. Lemos sob sua pena, por exemplo, que “compor nosso comportamento é
nosso ofício” (MONTAIGNE, 2001, III, 13, p. 488), o que significa dizer que o essencial na
existência é “conquistar” uma “ordem” e uma “tranquilidade” próprias (Ibid.), ou seja, como
disse Onfray acima, “uma carne em paz consigo mesma”. Mas quando o autor dos Ensaios
afirma que “nossa grande e gloriosa obra-prima é viver adequadamente” (Ibid.), é preciso dar-
lhe a palavra final porquanto, com essa frase emblemática, Montaigne nos fala da necessidade
de viver de acordo com os ditames da natureza, porém impondo-lhes uma vontade resoluta a
fim de dominá-los e não ser por eles dominados. É nisso que consiste esculpir a própria vida.
Montaigne é realmente um artista hedonista. Por exemplo, se for preciso, na vida,
lançar mão da justa medida – “Considero desagradar-se das voluptuosidades naturais tão
incorreto quanto agradar-se excessivamente delas” (Ibid., p. 486) – , ele o faz na perspectiva
de alcançar a melhor estratégia para atingir bem seu verdadeiro objetivo, qual seja, o de
234
querer aquilo que sua natureza exige, vale dizer, o prazer. Por isso, sobre as voluptuosidades,
ele diz que “não é preciso nem segui-las nem fugir delas”, mas sim “aceitá-las” (Ibid.) como
um movimento natural o qual precisa apenas ser guiado, não contido. Todavia, Montaigne não
esconde que seu movimento de orientação não se mantém necessariamente numa espécie de
mediania aristotélica, mas, se as condições forem favoráveis, toma sempre, ainda que de
forma moderada por uma razão de prudência, o partido dos prazeres, ao qual aceita “um
pouco mais ampla e favoravelmente”, deixando-se assim “levar de melhor grado para a
inclinação natural” (Ibid.). Montaigne é um filósofo à maneira antiga: seu objetivo é
incontestavelmente o de viver de acordo com a natureza. Ele reata, assim, com o ideal grego e
romano do epicurismo ao evidenciar sem pejo sua adesão às voluptuosidades que os sentidos
oferecem já que, no fim, esta é uma adesão em favor da vida humana em conformidade com
sua natureza própria. Donde sua crítica ao ascetismo, essa atitude antinatural de ódio ao
corpo, desdém pelos sentidos e desprezo pelos prazeres: “Eu, que só vivo terra a terra, detesto
essa sapiência desumana que quer tornar-nos indiferentes e hostis à cultura do corpo” (Ibid.,
p. 485-486). Montaigne se opõe, portanto, às lições sem vida dos desprezadores do corpo.
Como poderia ser diferente, se o gênio montaigniano, herdeiro do epicurismo e do
cirenaísmo, fez do corpo um aliado maior? De fato, o autor dos Ensaios se posiciona muito
decisivamente contra os detratores do corpo que em todos os tempos são identificados por
seus discursos e práticas de mortificação da carne, portanto da vida. As palavras de
Montaigne impõem uma força contrária lembrando que defender o prazer é efetivamente fazer
a apologia do corpo e, consequentemente, da vida, pois a vida é a vida do corpo. Ora, se os
sábios ascetas sentem-se tão mal assim com as insinuações da volúpia em seus corpos,
especialmente com aquelas associadas à sexualidade, então por que eles não abdiquem de
uma vez da própria existência? A volúpia é inerente ao corpo e faz parte da vida como o que
lhe há de mais natural. No entanto “há indivíduos que, com uma feroz estupidez (...), não
gostam” dos prazeres. Então, com humor, Montaigne os provoca: “Por que não renunciam
também de respirar?” (Ibid., p. 487). O prazer define o ritmo natural da vida. Cultivá-lo é,
assim, optar por viver de acordo com a razão universal a qual aponta, através da manifestação
dos desejos, os caminhos da transformação da necessidade em virtude: “A natureza observou
maternalmente isso – que os atos que ela nos impôs como uma necessidade nos fossem
também voluptuosos – e incita-nos a eles não apenas pela razão mas também pelo desejo; é
errado quebrar suas normas” (Ibid., p. 488). Lição sempre atual: promover a união dos desejos
com a razão.
235
O que não quer dizer que seja tarefa fácil. Como já dissemos suficientemente, viver de
acordo com nossa inclinação natural ao prazer não significa seguir cegamente nossos desejos
e instintos. Uma inclinação é uma tendência, não um determinismo. Como o ser humano é
tanto um ser de cultura como de natureza, seu lado artificial está integrado, ainda que de
forma um tanto conflituosa, no que nele é natural. Por isso a virtude é o produto de um
esforço sem fim, algo que Montaigne expressa nestas tão sublimes quanto transparentes
palavras: “Não há nada tão belo e legítimo quanto desempenhar bem e adequadamente o
papel de homem, nem ciência tão árdua quanto a de saber viver bem e naturalmente esta vida”
(Ibid., p. 492). “Esta vida”, que é vida única e que apenas na afirmação de si só pode ser
inteiramente vivida porquanto, de todas as “nossas doenças”, prossegue Montaigne, “a mais
selvagem é menosprezar nosso ser” (Ibid.).
Nessa difícil arte de viver cabe à alma, isto é, à consciência, a tarefa não só de
conduzir como também a de tomar parte ativamente dos prazeres do corpo num ato de
cumplicidade íntima. Significa dizer que ela, a alma, deve não apenas assistir e favorecer as
inclinações do corpo como tem de realmente “participar de seus prazeres naturais”. E mais:
talvez sua principal função seja precisamente a de “comprazer-se conjugalmente neles,
acrescentando-lhes, se for mais sábia, a moderação, para evitar que por descomedimento eles
se confundam com o desprazer” (Ibid., p. 492-493). O autor dos Ensaios faz valer aqui a lição
epicurista segundo a qual “a intemperança” bem pode ser “a peste da voluptuosidade”, já que
produz desprazeres, mas “a temperança”, por sua vez, não deve ser “seu flagelo”, e sim “seu
tempero” (Ibid., p. 493). Com isso Montaigne depura o conceito de temperança, erroneamente
associado às práticas ascéticas quando ele tem, na verdade, a função de refinar, e não a de
interditar os prazeres. A temperança é, por definição, “a moderação nos prazeres sensuais”
(COMTE-SPOVILLE, 2011, p. 586), mas isso não significa privar-se deles. Moderar os
prazeres quer dizer temperá-los, até mesmo apimentá-los, não restringi-los, pois “não se trata
de não gozar (temperança não é ascetismo), mas de gozar melhor – o que supõe ser senhor de
seus desejos” (Ibid.). Existe fórmula mais apropriada para expressar o hedonismo filosófico?
Não cremos.
Nossa opção por concluir este escrito com o ensaio Da experiência, de Montaigne, não
se deve a nenhum acaso. Esse é o capítulo que fecha a monumental obra de sabedoria que são
os Ensaios, se constituindo principalmente no testemunho final do filósofo de Bordeaux que
aqui se firma como o pensador emblemático do hedonismo. Continuando a decretar os
deveres da alma para com os afetos fundamentais do corpo, Montaigne diz ordenar à sua
236
que olhe tanto a dor como a voluptuosidade com olhos igualmente bem
ajustados (...) e igualmente firmes, mas alegremente uma, severamente a
outra, e, dependendo do que ela puder acrescentar-lhes, tão zelosos em
extinguir uma quanto em estender a outra (MONTAIGNE, 2001, III, 13, p.
493).
A dor é inevitável, faz parte da vida, mas isso não a impede de ser um mal. Por seu
turno, o prazer é sempre uma conquista num mundo em que a dor parece fazer a lei, é uma
recompensa pela recuperação da saúde ou pela satisfação de uma necessidade vital. Portanto,
é um bem a ser adquirido e que nunca é dado a priori. Ora, porque não fazer uso da
inteligência e da arte para tornar mais presente e moderadamente intenso esse bem? “Passo o
tempo, quando ele é mau e desagradável”, escreve Montaigne, “quando é bom, não quaro
passá-lo, esquadrinho-o, detenho-me nele” (Ibid.). Em seguida, o grande ensaísta francês
expressa o princípio ao qual se aferra, o mesmo de todo filósofo hedonista: “É preciso”, diz
ele, “correr do mau e ficar no bom” (Ibid.). A dor, quando não é possível de ser evitada, deve
ser suportada com uma firmeza quase estoica. O prazer, porém, quando se apresenta, deve ser
cultivado e apreciado com vagar, arte, moderação, empenho e boa vontade para com ele, pois
o prazer é, por definição, o bom e o agradável. Eis porque Montaigne critica igualmente, para
além dos contendores do prazer e dos detratores do corpo, esses ascetas involuntários e
desprezadores da vida por imprudência que são os sujeitos que a deixam escoar gratuitamente
por pura falta de uma consciência capaz de esquadrinhar o bom para nele ficar: “Só podemos
culpar a nós mesmos se ela”, a vida, “pesar-nos e se escapar-nos inutilmente” (Ibid., p. 494).
Montaigne convida-nos a aprender a viver a vida em sua inteireza valorizando cada
instante agradável que ela oferece, tarefa para a qual se exige uma consciência sempre alerta e
pronta a contribuir, no que lhe for possível, na intensificação dos momentos aprazíveis. Nos
Ensaios, ele afirma, quanto à vida, que “há arte em desfrutá-la” e, depois, reconhece
abertamente que a desfruta “o dobro dos outros” porque “na fruição a medida depende do
maior ou menor empenho que lhe dedicamos” (Ibid.). Daí a necessidade de um projeto
filosófico hedonista para administrar a existência em favor de seu máximo de fruição e de
gozo. A razão é o instrumento a ser mobilizado não apenas para moderar os prazeres a fim de
que estes não se convertam em desprazeres, mas sobretudo para sondá-los com o objetivo de
intensificá-los o quanto for possível no tempo e no espaço em que se dão à experiência. O
filósofo hedonista goza tendo a razão como sua cúmplice e colaboradora ou simplesmente não
goza. Ou seja, sentir os prazeres sem a participação ativa da consciência é senti-los apenas de
“passagem e ligeiramente” (Ibid.) e, deste modo, a vida passa sem que dela nos apercebamos.
Tal é o gozo do tolo, o gozo inocente daquele que ignora a arte de viver, e este é o tipo de
237
gozo que Montaigne, como um sábio digno do nome, rejeita. Ele quer que o seu prazer seja
tão lúcido quanto vivaz. Como isso é possível? Precisamente fazendo valer os poderes da
consciência a fim de saber que se está desfrutando ao ponto de ser capaz de analisar
racionalmente a natureza do gozo que se experimenta. Com qual propósito? O de garantir que
se vive tal como se deseja viver.
Nessa ordem de ideias práticas, eis um exemplo do que significa, para Montaigne, um
exercício de pensamento voltado para a arte da fruição:
Nos deparamos aqui, mais uma vez, com a aplicação do verdadeiro sentido da
expressão latina carpe diem, fórmula de Horácio tão cara a Aristipo e à tradição hedonista,
mas que também ecoa na sabedoria estoica, como atestam estas palavras de Sêneca, um autor
caro a Montaigne: “Por muito breve que esse momento seja, a nossa capacidade para
aproveitá-lo fá-lo-á parecer longo. Conforme diz Posidónio, ‘um único dia da vida de um
sábio é mais rico do que a existência interminável de um ignorante’” (SÉNECA, 2018, 78, p.
337). É a partir dessa capacidade para aproveitar e colher o dia, ou mesmo um instante
específico de um dia qualquer, que podemos interpretar a seguinte injunção montaigniana:
“Controlemos o uso do tempo; ainda nos resta muito dele ocioso e mal empregado”
(MONTAIGNE, 2001, III, 13, p. 499).
Um pessimista consumado poderia, no entanto, objetar o seguinte: para quê se
empenhar em tantas estratégias destinadas a circunscrever os bons momentos e a intensificar
os prazeres se tudo está, de qualquer modo, destinado ao desaparecimento definitivo? Por que
esse bom uso do corpo e essa dedicação ao cultivo de si se a consciência não sobrevive à
morte? E as objeções continuam: de que vale tanta preocupação em fazer da necessidade uma
virtude estética se, na visão radicalmente imanente do materialismo filosófico, com a morte
advém a destruição do corpo e o nada absoluto? Nada se prolongará para além desta
existência mesma que, de resto, não passa de um efêmero instante entre dois nadas, o nada
que a precedeu e o nada que a seguirá. Para quê, então, entusiasmar-se com o prazer e a
alegria se tudo dura tão pouco, se tudo acaba tão logo? Ora, pelo mesmo motivo, qual seja, a
condição trágica da vida definida por seu fim, podemos inverter o problema: por que, se a
vida é tão breve, única e condenada a desaparecer completamente, se não há outro mundo
238
além deste, se a alma morre com o corpo e a consciência é aniquilada, por que, perguntamos,
optar por viver de modo anti-hedonista, ou seja, mergulhado em dor, sofrimento, melancolia,
profundo pessimismo e desespero angustiante? Apenas porque não repetiremos a experiência
da vida? Tão só por esta durar tão pouco? Então quer dizer que a existência apenas seria digna
de ser desfrutada caso perdurasse indefinidamente?
“Nenhuma gaia ciência está isenta de uma concepção trágica do real”, dissemos acima
com Onfray (Cf. infra, capítulo 2, tópico 2.10). De fato, desde o início deste nosso escrito
procuramos dar provas de que o hedonismo não é de forma alguma uma filosofia
incompatível com a condição trágica da existência, mas, pelo contrário, é a sua própria
afirmação na medida em que representa uma atitude ética de escolha pelo prazer de viver...
apesar da dor de existir. Ora, a dor e o prazer são o verso e o reverso de uma mesma medalha
existencial, a nossa. Contudo, tendemos a suportar melhor aquele (a dor) se optarmos por
cultivar este (o prazer). De resto, isso está de pleno acordo com os ditames da natureza, esta
mesma natureza que fez da vida o que ela é: um breve instante de consciência e de
sensibilidade destinado ao desaparecimento completo no Cosmos inconsciente, indiferente e
insensível donde proveio. Sejamos pessimistas ou otimistas, tristes ou alegres, ascéticos ou
hedonistas, a natureza efêmera da vida é comum a todos. Cabe-nos, pois, sem ilusões,
escolher como queremos viver o que logo vai desaparecer.
“Quanto a mim”, lemos agora numa bela passagem dos Ensaios, “amo a vida e
cultivo-a” (Ibid., p. 496) tal como ela é, e não como idealmente deveria ser. A vida que logo
acaba ainda é uma vida, e nunca existiu outra. Se diante da eternidade do nada tudo é vão,
mesmo os prazeres e as alegrias, então essa vanidade mesma é que deve ser afirmada.
Hedonista e trágico a um só tempo, Montaigne continua sua reflexão da seguinte maneira:
que despreza a morte apesar da morte, afirma a vida tal como ela é e recusa o não ser, posto
que viver é ser. Se a vida é efêmera, então essa efemeridade mesma é que deve ser exaltada: o
hedonismo “é uma resposta (...) à filosofia trágica” (ONFRAY, 1999b, p. 190). Por certo a
morte, sempre à espreita, dará a última cartada e vencerá, “mas pelo menos a existência não se
terá pautado por suas cores nem se terá dado sob seu domínio” (Ibid.). Vitalismo contra
mortalismo. Filosofia do prazer, ainda que concebida “sobre um cenário trágico” (Ibid., p.
46), contra os sistemas de pensamento pessimistas em conluio com o ideal ascético. Questão
de escolha e de atitude existencial. Mas nisso, como em tudo o mais, o hedonista se diferencia
por ao menos respeitar e tentar seguir sua “doce” e verdadeira “guia”, vale dizer, “a natureza”
(MONTAIGNE, 2001, III, 13, p. 497).
Temos na consciência o fato de que toda vida “é para cada um o ato de seu corpo”
(Paul Valéry, citado por ONFRAY, 1999a, p. 107). Que se dê, pois, “o devido valor à
voluptuosidade corporal” (MONTAIGNE, 2001, III, 13, p. 497): corpo voluptuoso, decerto,
porém munido de uma consciência parceira da vontade de explorar as potencialidades
magníficas de que este corpo é portador. A inteligência e a consciência devem estar a serviço
do desejo. Ora, foi o próprio Zeus que consentiu no casamento de Psiqué com Eros (KURY,
2003, p. 342-343), e foi justamente essa união da alma com a carne, nos primórdios do
tempo, que engendrou Hedonê, a daemon grega do prazer cultuada por Epicuro porque ligada
tanto ao corpo como ao espírito, à paixão assim como à razão, ao júbilo tanto quanto à
inteligência. O gozo, por si só, já o dissemos, não basta, já que reduz o humano à besta. Logo,
para que o hedonismo o seja de fato, e esta é a mensagem principal da obra onfrayriana (nisso
herdeira do pensamento montaigniano), é preciso que ao prazer preceda e prevaleça a moldura
estabelecida por estes suplementos de alma que são a arte e a cultura humanas. Nesse sentido,
Onfray escreve que:
quê? A resposta é que precisamente nesse momento ele (ou ela) terá se dado conta de que
viveu com plenitude sua efêmera existência a qual soube, graças à sua arte, aproveitá-la. Terá
o filósofo vivido de forma hedonista e jubilosa “antes que Tanatos venha cobrar o seu tributo”
(Ibid., p. 190)? Terá ele, esse candidato a sábio, exaltado “o efêmero” e criado “momentos
magníficos” de vida “apesar da morte” (Ibid.)? Terá sabido extrair de si próprio matéria prima
suficiente com a qual construir uma forma de viver bem e harmoniosamente consigo mesmo,
com os outros e com o mundo? Se assim foi, se esse é o seu sentimento, ele estará então em
condições de perceber, em relação a si e segundo as belas palavras de um sábio epicurista,
algo de sublime: há “uma perfeição absoluta, e como que divinal, saber desfrutar 104 lealmente
de seu ser” (MONTAIGNE, 2001, III, 13, p. 500).
104
O termo em francês utilizado por Montaigne é jouir, daí que algumas traduções o vertem para o verbo
português “gozar”, e este deve ter sido, muito provavelmente, o sentido em que Montaigne empregou a palavra.
241
6 CONCLUSÃO
confiante em seu voluntarismo ético. Nossa essência é uma construção sobre a nossa
existência. A nossa natureza está em nosso corpo e nas paixões que lhes são consubstanciais.
Esta é a matéria sobre a qual agem uma cultura e uma educação enquanto instrumentos
construtores de uma humanidade. Tanto melhor se formos nós mesmos os artífices de nossa
própria vida humana – nunca demasiado humana.
Cada um deve, pois, perscrutar o próprio corpo, conhecer-se no sentido do imperativo
socrático do conhece-te a ti mesmo, meditar sobre que tendências, inclinações, tropismos e
prazeres convêm para compor a busca de uma medida própria, vale dizer, uma medida que
seja a mais harmônica possível entre o animal que somos desde sempre e o ser humano o qual
visamos nos tornar. Nesse jogo existencial, aquilo que Onfray chama de forças malditas, ou
seja, as paixões que nos habitam, não são extirpadas, mas valorizadas e administradas em
favor da afirmação da vida. Trata-se de cultivar uma relação de contrastes que se
complementam: esta que se estabelece entre as forças da natureza e os poderes da cultura,
entre o corpo e o pensamento, entre a physis e o ethos, entre Dioniso e Apolo. Devemos então
dizer, acerca de Onfray, o mesmo que ele disse sobre Albert Camus, um modelo de vida
filosófica hedonista para ele: “Camus não queria o apolíneo sem o dionisíaco, nem o inverso,
mas a medida e a vida, isto é, a vida medida” (ONFRAY, 2012b, p. 27). Construir uma
subjetividade, no entanto, pressupõe a descoberta, na experiência viva, dessa medida única
que dá forma a um eu o qual não é dado a priori, mas sim esculpido, durante toda uma
existência e nos gestos praticados no cotidiano, a posteriori. Tornar-se o que se é implica
revelar um ser antes desconhecido porque inexistente e o qual surge somente a partir dos atos
concretos da experiência viva, registro único de seu devir, portanto de sua realidade factual. A
forma apolínea de cada um poderá ser a expressão de um estilo, a marca única de uma
singularidade que se manifesta aos poucos, à guisa de uma escultura, sobre a matéria
dionisíaca original.
Ao fim e ao cabo, somente uma ética estética, crê Onfray, possibilita a plenitude entre
si e si, entre si e o mundo e, principalmente, entre si e o outro, visto que o não reconhecimento
e a não afirmação do outro enquanto outro significam a morte de toda ética, mesmo para a
mais individualista delas. Ora, o filósofo hedonista deseja a construção de círculos éticos e a
comunhão entre indivíduos livres e autônomos. Sua ética é, portanto, uma abertura ao outro.
De fato, ele quer um ambiente social onde sua individualidade possa aflorar sem entraves e
onde a possibilidade de uma verdadeira prática da amizade possa emergir. Daí sua afirmação
da diversidade, da multiplicidade e da pluralidade de modos de vida contra toda
homogeneidade dos tipos e caracteres porquanto apenas num cenário de liberdade plena dos
243
modos de ser e de viver é possível a construção, para cada um, do seu si mesmo. Donde o tom
libertário dessa ética aguerrida contra o capitalismo, essa potência homogeneizadora. Apenas
as identidades firmes e sólidas podem fazer frente ao niilismo contemporâneo e à sua
produção maciça de subjetividades dúbias, incompletas, fragmentadas, cegamente obedientes,
francamente emuladoras porque submissas à lógica mercantil. Personalidades estas, em suma,
adoecidas e potencialmente suicidas – quando não assassinas...
Esse espírito libertário é o que talvez mais permaneça de Aristipo de Cirene na obra
onfrayriana, e isso concomitante, evidentemente, ao elogio que o nosso autor faz do prazer
positivo e do relativismo ético, instâncias que, como vimos, Onfray subscreve quase sem
restrição. Entretanto, não suportar nenhuma autoridade, cuidar para não exercê-la sobre
ninguém e a ela não se submeter jamais (ONFRAY, 2014b, p. 113) é o imperativo categórico
de Michel Onfray tanto em matéria de política (um tema que merece um estudo exclusivo)
quanto de ética. Suas influências primeiras nesse ponto são certamente Proudhon e Nietzsche,
mas imaginamos que não foi dos menores o entusiasmo de sua descoberta de um pensamento
libertário num conjunto de fragmentos cirenaicos que ele mesmo organizou, em L’Invention
du plaisir, sob o título Une politique critique – Uma política crítica (Cf. ONFRAY, 2002, p.
164-191; ver especialmente o tópico C. Ni comander, ni obéir – Nem comandar, nem
obedecer – , Ibid., p.183-191).
A propósito, considerando que Onfray é um crítico ferrenho do neoliberalismo ao
mesmo tempo em que se contrapõe às soluções marxistas/leninistas, um dos aspectos mais
férteis em sua obra está precisamente no seu pensamento político. Aqui é necessário lembrar
que os socialismos são múltiplos e que o comunismo é apenas aquele que venceu a batalha
das ideias dominando-a historicamente, logo academicamente. Reivindicando socialismos
alternativos pertencentes à linhagem libertária representada por autores como Proudhon,
Bakunin, Fourier, Stuart Mill e, mais recentemente, Camus, o pensamento político de Onfray
é um campo vasto a ser explorado.105 A pesquisa poderia, por exemplo, partir do seu A
política do rebelde (1997), chegar aos livros políticos mais recentes, como Théorie de la
dictature (Teoria da ditadura, Robert Laffont, 2019), e analisá-los à luz de suas constantes
intervenções no debate político da França de que o atual Décoloniser les provinces:
contribution aux présidentielles (Descolonizando as províncias: contribuição para as
105
O francês Henri de Monvallier vem se destacando nesse campo investigativo. Ele é autor de um recente Le
tribun de la plèbe: introduction à la pensée politique de Michel Onfray (A tribuna da plebe: introdução ao
pensamento político de Michel Onfray, Editions de l’Observatoire, 2019). Uma interessante entrevista com Henri
de Monvallier acerca de seu livro sobre Onfray pode ser conferida em:
https://linactuelle.fr/index.php/2019/06/11/michel-onfray-henri-de-monvallier/. Acesso em: 28 out. 2019.
244
106
Sobre a Universidade Popular de Caen criada por Michel Onfray, ver o excelente documentário Le plaisir
d’exister (France 3, 2006) disponível no YouTube em: https://www.youtube.com/watch?v=-I4xKh4NZEw.
Acesso em: 29 out. 2019. O filme mostra em detalhes o funcionamento da instituição, os bastidores da
preparação dos cursos e uma série muito rica de depoimentos por parte dos frequentadores. Para uma amostra
mais rápida desse projeto, indicamos esta matéria de um telejornal francês:
https://www.youtube.com/watch?v=m-KCRGUgNpw. Acesso em: 29 out. 2019. Em 2013 a Revista Brasileira
de Estudos Pedagógicos (v. 94, n. 238, p. 881-884) publicou o texto A universidade popular na perspectiva de
Michel Onfray. Trata-se de uma resenha da edição espanhola do livro La communauté philosophique: manifeste
pour l’université populaire (A comunidade filosófica: manifesto pela universidade popular, Galilée, 2004). Cf.
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-66812013000300012. Acesso em: 29 out.
2019. Ver, ainda, o site oficial da Universidade Popular de Caen: http://upc.michelonfray.fr/. Acesso em: 29 out.
2019.
107
Onfray escreveu isso em um texto intitulado Misérias (e grandeza) da filosofia, de 2004, publicado no Le
Monde diplomatique. Há uma versão em português desse texto disponível em:
https://diplomatique.org.br/miserias-e-grandeza-da-filosofia/. Acesso em: 29 out. 2019. Trata-se de um texto
importante uma vez que nele Onfray expõe as razões que o levaram a fundar a Universidade Popular.
108
ONFRAY, Michel. Misérias (e grandeza) da filosofia. Disponível em: https://diplomatique.org.br/miserias-
e-grandeza-da-filosofia/. Acesso em: 29 out. 2019).
245
saber elitista, porém transmitido em uma linguagem clara e precisa que dá às costas ao
vocabulário obscurantista praticado por acadêmicos profissionais, a todos os cidadãos, sem
restrição de cor, idade, gênero, orientação sexual, política ou quaisquer outros parâmetros
discriminatórios – por isso Universidade Popular. A gratuidade e o acesso realmente
democrático formam assim os princípios fundadores do projeto.
A Universidade Popular é plural, porém seus conteúdos pedagógicos são livres e
libertários e, nesse sentido, suas cores vibram à esquerda do espectro político/ideológico.
Assim, se Onfray ministra seus cursos sobre a contra-história da filosofia, o restante da
comunidade, composto por professores voluntários, todos amigos, ministram outras
disciplinas e correntes de pensamento: Séverine Auffret e o feminismo; Gérard Pouloin e a
política crítica “no espírito da Escola de Frunkfurt”109; Françoise Gorog e a psicanálise
existencial; Arno Gaillard e o cinema; Jean-Pierre Le Goff e a epistemologia; Nicolas Béniès
e o jazz; Françoise Niay e a arte contemporânea; Gilles Geneviève e sua oficina de filosofia
para crianças, dentre outros colaboradores. Onfray afirma que a Universidade Popular
funciona sob o princípio do “intelectual coletivo”. 110 Sendo, pois, composta de indivíduos
livres e autônomos, “essa comunidade filosófica não visa a uma univocidade ideológica, mas
a uma coerência: uma prática existencial, feliz e política da filosofia”. 111 Sim, “uma prática
existencial da filosofia”, pois o conhecimento produzido na Universidade Popular pretende
ser “uma vitalidade suscetível de ajudar a construir”112 “individualidades esclarecidas, fortes,
serenas, poderosas, decididas, dotadas de uma vontade firme, bem consigo mesmas – que é a
condição para se estar bem com os outros”.113 Daí, por conseguinte, uma prática feliz
porquanto o que se visa é a condução de uma vida filosófica a qual tem, como meta, a
felicidade no sentido que os gregos atribuíam a esta palavra. Nesse sentido o projeto envolve,
naturalmente, uma prática política contemporânea, já que o conjunto desses elementos
permite à comunidade firmar-se como um ponto de resistência ao poder do neoliberalismo e
ao “microfascismo”114 a ele associado.
Dito isso, que modelo de comunidade filosófica e de instituição de ensino inspirou
Michel Onfray na criação da sua Universidade Popular? Não foi a Sorbonne, nem o College
de France, mas, segundo suas próprias palavras, o modelo é o “Jardim de Epicuro, onde a
109
Ibid.
110
Ibid.
111
Ibid.
112
Entrevista concedida a Matheus Moura para a Revista Conhecimento Prático Filosofia, Nº 37, [s/d], p. 13.
113
ONFRAY, Michel. Misérias (e grandeza) da filosofia. Disponível em: https://diplomatique.org.br/miserias-
e-grandeza-da-filosofia/. Acesso em: 29 out. 2019).
114
Ibid.
246
amizade é a lei, onde se ensina um modo de viver, envelhecer, amar, partilhar, sofrer e
morrer”.115 Ora, o Jardim de Epicuro é, enquanto personagem conceitual (ver a esse respeito o
nosso tópico 4.2.5), reativado por Onfray em espírito, teoria e prática no campo de ação
próprio do seu projeto educacional, ou seja, longe do grande centro intelectual e político que é
Paris, mas instalado na província como um manifesto de resistência ao tradicional sistema de
ensino da filosofia. O seu epicurismo está, assim, expresso, patente e encarnado na
comunidade filosófica libertária que ele e seu grupo de amigos fundaram com enorme sucesso
na França. Nessa ordem de ideias, esse projeto funciona como uma espécie de “anti-república
de Platão (fechada, cercada, totalitária, hierarquizada, racial)”, ao passo que o modelo do
Jardim epicurista o permite ser um “espaço aberto, livre, igualitário, amigável,
cosmopolita”.116
Poderiam objetar que a criação, em 2006, da Universidade Popular do Gosto, em
Argentan, bem como sua estima por uma estética gastronômica contrariam o epicurismo
reivindicado por como modelo inspirador, sobretudo quando se sabe que há um sentido vulgar
de epicurismo muito em voga hoje, o qual diz respeito precisamente à valorização de uma
gastronomia de luxo para consumidores abastados. Ora, de forma alguma esse tipo de crítica
se sustenta, pois, primeiramente, ser epicurista não significa ser Epicuro e imitá-lo em sua
paixão ascética pela exclusividade do pãozinho com água; depois, significa menos ainda
subscrever o sentido vulgar e antifilosófico que o epíteto adquiriu, de modo que aqui é preciso
muita má-fé para confundir uma coisa com outra. A Universidade Popular do Gosto117 de
Onfray e amigos é epicurista porque é hedonista, e isso no sentido propriamente filosófico da
expressão. A um jornal brasileiro o nosso autor responde sobre o ideal deste seu outro projeto
que é como uma extensão natural da Universidade Popular original. Podemos citar as suas
palavras e até mesmo reivindicá-las como uma síntese possível a este trabalho que ora
concluímos. Leiamo-las:
115
Revista Conhecimento Prático Filosofia, Nº 37, [s/d], p. 13.
116
ONFRAY, Michel. Misérias (e grandeza) da filosofia. Disponível em: https://diplomatique.org.br/miserias-
e-grandeza-da-filosofia/. Acesso em: 29 out. 2019).
117
Cf. o site oficial: http://upa.michelonfray.fr/. Acesso em: 31 out. 2019.
247
consagrada a Camus (...) juntou 600 pessoas e nós servimos 400 refeições
em Argentan, cidade onde nasci, onde moro e onde organizo as jornadas. 118
118
Maria da Paz Trefaut. Um homem de esquerda livre. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-
e/noticia/2012/10/05/um-homem-de-esquerda-livre.ghtml. Acesso em: 07 jan. 2020.
119
Alexis Feertchak. Privé de France Culture, Michel Onfray arrête l’Université populaire de Caen.
Disponível em: https://www.lefigaro.fr/actualite-france/2018/09/28/01016-20180928ARTFIG00356-prive-de-
france-culture-michel-onfray-arrete-l-universite-populaire-de-caen.php. Acesso em: 07 jan. 2020.
120
Naissance de l’Université populaire nômade. Disponível em: https://michelonfray.com/interventions-
hebdomadaires/naissance-de-l-universite-populaire-nomade. Acesso em: 07 jan. 2020.
121
Revista Conhecimento Prático Filosofia, Nº 37, [s/d], p. 13.
248
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