Perto Demais de Sua Propria Desaparicao
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Vladimir Safatle∗
Abstract: This article aims to discuss the aesthetic autonomy as a model for social emanci-
pation. It starts from the contemporary challenges for the defense of aesthetic autonomy,
using autonomy for criticizing discourses that seems to sustain a possible conciliation
between life and art that not take into account the problems resulting from the connection
between culture and capitalistic production.
Keywords: Autonomy. Emancipation. Popular Art. Cultural Industry. Contra Hegemony.
∗ Professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). Doutor em Filosofia pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4428-0131.
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ticas indicavam a irredutibilidade das mente para um estado atual das obras,
contradições sociais efetivas. e sim para uma estratégia necessária no
Essa não era apenas uma descrição interior de seus procedimentos de com-
do horizonte político-social da época. posição e criação. Para existir nesse mo-
Os próprios campos da produção es- mento histórico, as obras de arte pre-
tética pareciam animados por experi- cisavam estar muito próximas de sua
ências em vias de aprofundamento de própria desaparição. Elas precisavam
sua capacidade crítica e de elaboração se construir a partir de sua própria im-
formal, seja no cinema, nas artes visu- possibilidade, sentir o risco iminente
ais, na literatura, no teatro e mesmo de sua mudez, lutar contra as tendên-
na música, que Theodor Adorno, o au- cias internas de seus materiais.
tor da afirmação em questão, conhecia A estratégia apontava para os pro-
tão bem. Talvez fosse o caso de lem- blemas resultantes da consolidação dos
brar que o momento histórico no qual processos de integração psíquica e libi-
ele insiste na insegurança estrutural a dinal que se mostrarão uma das bases
tudo referente à arte era o momento de mais sólidas do capitalismo. Essa in-
plena produção de Boulez, Berio, Li- tegração se dava de forma preferencial
geti, Cage, Feldman, Stockhausen, mas não através dos sistemas de reprodução
também de John Coltrane, Thelonius material de instituições como a famí-
Monk, Astor Piazzolla, entre tantos ou- lia, as práticas religiosas, a escola ou
tros. Adorno conhecia bem as poten- os hospitais. Todos esses sistemas es-
cialidades da produção musical de seu tavam submetidos a um microssistema
tempo, que encontrava nos seminários que colonizava os demais, dando-lhes
de Darmstadt um local privilegiado de seu ritmo, suas estruturas narrativas,
debate e apresentação. Mais ou menos organizando suas intensidades, seus li-
à mesma época em que escreveu a afir- mites, suas “pessoas”, seus conflitos,
mação que comentamos, ele apresen- sua “visibilidade”. Pois não haveria in-
tava um texto-manifesto, Vers une mu- tegração social ao capitalismo sem a in-
sique informelle, no qual defendia o que tegração psíquica produzida pela res-
entendia ser um campo de potenciali- trição dos usos da linguagem às formas
dades imanentes da produção musical avalizadas por uma junção em plena
de sua época. ascensão entre cultura e produção in-
Poderia então parecer algo contra- dustrial. Junção que recebia uma alcu-
ditório e talvez mesmo extemporâneo nha conhecida, “indústria cultural”, e
enunciar exatamente nesse momento que ficaria mais compacta e coesa com
que sequer o direito de existência da o passar do tempo. Essa integração po-
arte era autoevidente. Mas o diagnós- deria perdurar, como de fato ocorreu,
tico em questão não apontava exata- mesmo depois da dessolidarização com
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ser descrito exatamente como um de- teria restado outra coisa senão ser mera
fensor da autonomia da arte. art pour l’art. Não podendo transformar
No entanto, não serão poucos os que o mundo através da realização de ideais
questionarão essa compreensão da au- reformadores que viam na circulação
tonomia estética em sua relevância po- das obras de arte um potencial “edu-
lítica. Pois um dos esquemas mais utili- cador” e de reforma social, ela teria
zados de compreensão da arte em nos- se voltado a uma reflexão estéril sobre
sos dias parte do pressuposto de que, na si mesma. Lembremos, por exemplo,
verdade, a consolidação da autonomia do que fala Pierre Bourdieu a respeito
estética seria expressão de algo exata- da formação do campo literário e artís-
mente contrário, a saber, de uma forma tico, com suas exigências de autonomia
de compensação social. Sem mais po- da arte e dos artistas, na França da se-
der alimentar a ilusão de que seria o gunda metade do século XIX:
motor a impulsionar as transformações
do mundo, a impulsionar as mudanças Como não supor que a expe-
radicais em seus modos de apresenta- riência política desta geração,
ção, ou ainda, sem mais poder alimen- com o fracasso da revolução de
tar a ilusão de ter a força de interdi- 1848 e com o golpe de estado
tar a circulação nesse mundo, não teria de Luís Napoleão Bonaparte,
restado à arte outra coisa que se voltar além da longa desolação do Se-
a si mesma, tomar a si própria como gundo Império, não tenha de-
seu objeto, criando com isto uma dinâ- sempenhado um papel na ela-
mica autorreferencial que apenas de- boração da visão desencantada
nunciaria sua impotência efetiva em ser do mundo político e social que
uma prática social com capacidade de segue o culto da arte pela arte?
transformação de outras esferas sociais Esta religião exclusiva é o úl-
de valores. Essa perspectiva defende timo recurso dos que recusam a
que a experiência moderna de autote- submissão e a demissão (BOUR-
matização da forma seria herdeira de DIEU , 1998, p. 104).
certa decepção histórica. Sobretudo, ela
defende que autonomia é autolegisla-
ção (o que não é tão evidente quanto Afirmações desta natureza procuram
possa inicialmente parecer, ao menos sustentar que a sequência de decep-
quando estamos a falar de autonomia ções históricas na Europa do século XIX
estética). Diante da incapacidade histó- (1830, 1848, 1871) teria mostrado à li-
rica da arte ser motor de transformação teratura, em especial, e à arte, em geral,
social, isto a partir principalmente da sua impotência em se colocar como mo-
segunda metade do século XIX, não lhe tor do processo de transformação so-
cial. Recusar a submissão do artista
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1 Sendo que valeria meditar sobre afirmações de Adorno como: “Desde os primórdios da era burguesa, a raison d’ëtre de toda arte
autônoma consiste em que somente aquilo que não tem utilidade responde por aquilo que o útil poderia ser um dia, o uso feliz, o
contato com as coisas para além da antítese entre o utilizar e a falta de utilidade. Isso faz com que as pessoas que querem algo melhor
rebelem-se contra o que é prático” (ADORNO, 2021, pp. 184-185).
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2 Ver, a esse respeito, FRÜCHLT, 2011; 2014. A crítica a posições dessa natureza tinha sido feita previamente por PRADO JUNIOR,
2007.
3 Sobre a compreensão da obra de arte como acontecimento, ver sobretudo BADIOU, 1998.
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tros), mas dos processos de criação que precisam assumir um limite. Pois seria
se constroem deliberadamente contra interessante se perguntar sobre o que
as garantias comunicacionais do senso práticas contra-hegemônicas precisam
comum. preservar para organizar o antagonismo
Seria melhor levar em conta tal na forma da “contra-hegemonia”, o que
excesso ao invés de defender al- elas não devem tocar e questionar. O
guma forma possível de uso “contra- quanto contra-hegemonia é dependente
hegemônico” do senso comum, como da preservação da hegemonia. Ou se
se fosse possível transformá-lo através quisermos: o que quanto tal preserva-
de ações como essas que visam: “tor- ção não implicará movimento em um
nar visível o que o consenso dominante primeiro momento e paralisia em um
tende a obscurecer e obliterar, dando segundo momento? Exatamente como
voz a todos os silenciados no interior vimos de forma exaustiva nas práticas
da estrutura da hegemonia existente” políticas populistas de esquerda.
(MOUFFE, 2013, P. 93). Por mais po- Uma forma de começar por pensar
liticamente engajada que tais perspec- sobre tal paralisia consiste em lembrar
tivas possam parecer, elas cometem os que, quando Kant escreve a Crítica do
mesmos erros que as estratégias popu- Juízo, nos encontrávamos no momento
listas de esquerda em política, a saber, histórico em que a experiência esté-
compor forças em direção à hegemo- tica lutava por se livrar de funções so-
nia, mas acabar por encontrar a parali- ciais específicas, de sua submissão às
sia. Uma paralisia que nunca é tema- demandas comunicacionais da lingua-
tizada a partir das contradições ima- gem e a programas de edificação moral
nentes às próprias cadeias populistas e pedagógica em nome de uma nova es-
de equivalência. Pois seria o caso de truturação da sensibilidade. Essa luta
se perguntar sobre o riscos de práticas produzirá, na verdade, a pressão pelo
contra-hegemômicas que precisam ope- que não tem lugar no interior da vida
rar com a pressuposição de um senso social com seus modelos hegemônicos
comum no interior do qual se desdo- de reprodução material e de determi-
brará os antagonismos. Pois há uma nação subjetiva. Nesse sentido, a te-
exigência, ao menos quando estamos a mática da experiência estética como vi-
falar do campo estético, de certa res- olência contra a imaginação (que apa-
trição do domínio da luta, pois se trata rece em Kant, mas quando o sublime
de lutar no interior de uma gramática entra em cena) deve ser compreendida
pressuposta, para desviar seus elemen- como a tentativa de liberar a sensibi-
tos, hackear seus procedimentos, rede- lidade, o tempo e o espaço dos mo-
finir seus agentes. Tais operações, por delos de colonização produzidos pelo
mais que tenham seu interesse e valor, primado histórico da consciência, com
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4 “A percepção imediata de um dado, por exemplo, desta casa, já contém necessariamente uma vista prévia esquematizadora da
visão em geral, é apenas através desta vista prévia [Vor-stellung] que o ente reencontrado pode se manifestar como casa, pode ofe-
recer a vista de uma ‘casa dada’” (HEIDEGGER, 2019, p. 130). Essa vista prévia é conformação do mundo à natureza projetiva da
representação do sujeito. Na verdade, ela é o eixo de um “psicologismo” que habitaria a estética transcendental kantiana.
5 Cf. FRÜCHLT, MENKE, REBENTISCH, 2012, pp. 126-135. Do ponto de vista antropológico, não é a imaginação que pode
nos fornecer um espaço de desdobramento das conexões e produções produzidas por uma estética da força. Melhor seria procurar
tematizar diretamente o conceito de “pulsão”.
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que quer que seja, para que um outro importantes da vida legal e es-
campo de experiência seja possível. A piritual da humanidade em ge-
arte mostrará saber, melhor que qual- ral é o fato de que aquele que
quer outra práxis, que “César é tam- possui o verdadeiro poder é ca-
bém senhor da gramática”, que o exer- paz de determinar o conteúdo
cício do poder encontra-se fundamen- dos conceitos e das palavras.
tado na elaboração das condições sin- Cæsar dominus et supra gramma-
táticas da vida social, na imposição de ticam: César também é senhor
uma gramática que regulará o sentido da gramática (SCHMITT, 1994,
das ações, o horizonte dos problemas, a p. 202).
configuração das soluções, a estrutura
dos sujeitos agentes, a urgência das de-
cisões. Todo desejo de incomunicabi- Há de se lembrar disso no momento
lidade, de inexistência, de inexpressão histórico que é o nosso, em que nada
que a arte parece mobilizar, de forma referente à arte é autoevidente mais. A
cada vez mais insistente desde o final falta de evidência da arte talvez esteja
do século XVIII, apoiando-se preferen- ligada a outra falta de evidência, esta
cialmente em sua dimensão de auto- concernente à possibilidade de trans-
nomia, ganhando força inicialmente no formações estruturais da vida social. A
interior de certas correntes do roman- partir do momento em que a arte asso-
tismo para chegar até nós, aponta para ciou seu destino à emergência da pres-
o questionamento de tal domínio gra- são por rupturas sociais, ela parece ter
matical6 . Vale para a experiência esté- selado seu destino em um horizonte de
tica o que disse Carl Schmitt a respeito aparente retração revolucionária, como
da política: o que conhecemos atualmente, onde até
mesmo as forças que deveriam ser as
mais dispostas à ruptura acomodam-se
No que diz respeito a concei- ao horizonte de ajustes da sociedade ca-
tos políticos decisivos, interessa pitalista, mesmo quando esses ajustes
justamente quem os interpreta, se vendem como formas de “estéticas
define e aplica; quem, através da intervenção”. Vale ainda hoje o que
da decisão concreta, diz o que disse um dia Walter Benjamin a respeito
é paz, desarmamento, interven- de obras de arte que, a despeito de seu
ção, ordem pública e segurança. conteúdo de ruptura, preservavam as
Uma das manifestações mais técnicas e modalidades de circulação
6 Sobre a relação entre romantismo e processo revolucionário, ver sobretudo LÖWY, SAYRE, 2015. É de Michael Löwy algumas das
formulações mais significativas sobre a natureza de crítica social a animar o romantismo, na qual o recurso a horizontes pré-modernos
pode servir tanto como empuxo conservador como desvio para a projeção de energias utópicas. Ver também LÖWY, 2012.
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7 Como os clássicos estudos de mídia baseados nas teorias dos usos e gratificações, por exemplo BLUMLER, KATZ, 1974.
8 Ver, por exemplo, SHUSTERMAN, 2000.
9 Como nos quer fazer crer VIRNO, 2004, pp. 57-59.
10 O tempo apenas mostrou a adequação de afirmações como: “Tudo está tão estreitamente justaposto que a concentração do espí-
rito atinge um volume tal que lhe permite passar por cima da linha de demarcação entre as diferentes firmas e setores técnicos. A
unidade implacável da indústria cultural atesta a unidade em formação da política” (ADORNO, HORKHEIMER, 1991, p. 116). Para
uma análise consistente da economia política da mídia, ver MOSCO, 2009.
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uma era histórica na qual as obras de recuperado pelo país oficial via, exata-
arte chegam a nós como a constatação mente, seu aparato de indústria cultu-
de que o povo falta, e esta é a única pos- ral16 .
sibilidade de que elas efetivamente “le- Seria ainda o caso de lembrar que a
vem a uma terra aberta”. Não são os própria temática da crítica da indús-
artistas “populares ou populistas” que tria cultural exige certa topologia, pois
nos mostram essa operação na qual uma nem todos os lugares em seu interior
terra aberta começa por um povo que são iguais. Haveríamos, por exemplo,
falta, mas são exatamente aqueles que de levar em conta a possibilidade de
chegam muito próximo do nada, como processos através dos quais é possível
Mallarmé. O mesmo Mallarmé que di- partir de formas aparentemente estere-
zia: “escavando o verso a esse ponto, otipadas para explodi-las do seu inte-
encontrei dois abismos que me desespe- rior e desenvolvê-las de forma tal a sair
ram. Um é o Nada”15 . por completo do horizonte da indústria
Isso não significa em absoluto que cultural. O caso do jazz entre Charlie
a reflexão sobre a experiência estética Parker e o free jazz é um exemplo para-
deva ignorar as dinâmicas do que vem digmático nesse sentido, onde mesmo a
de uma multiplicidade de espaços e tra- improvisação saí por completo do hori-
dições no interior da vida social. Na zonte de variação até então tipificado17 .
verdade, a crítica do “popular” é uma O caso do tango e de Astor Piazzolla
das condições necessárias para liberar com seu enriquecimento progressivo da
tais dinâmicas múltiplas de sua colo- forma pelo uso de contrapontos, recur-
nização unitária, seja ela mercantil ou sos a canons, composições de fugas, é
nacional-identitária, permitindo a me- outro. Além disso, mesmo dentro da in-
lhor compreensão das expressões que dústria cultural, nem todos os lugares
se levantaram contra processos de co- são idênticos.
lonização no interior de um imaginário Além disso, mesmo dentro da in-
popular-nacional ou mesmo, em nosso dústria cultural nem todos os luga-
caso brasileiro, do imaginário “antropo- res são idênticos, nem tudo está igual-
fágico” hegemônico de um “país não- mente perto do centro. Há lugares nos
oficial” que é, diga-se de passagem, quais dinâmicas temporárias de mar-
apenas o reverso complementar do país gem, algo como a versão cultural das
oficial. Reverso que a todo momento é “zonas autônomas temporárias”, per-
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Recibido: 16/11/2021
Aprobado: 23/11/2021
Publicado: 31/12/2021
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