Projeto Mestrado
Projeto Mestrado
Projeto Mestrado
Introdução
A proposta desta pesquisa é a defesa de uma educação para a vida, que valorize o
desenvolvimento da sensibilidade de tal maneira quanto às ciências exatas (as ditas
“racionais”), uma educação emancipadora, segundo Theodor Adorno. Abordar aspectos da
sensibilidade, a autonomia estética, perceptiva e simbólica como propiciadores de uma
formação autônoma, plena, aparenta praticamente uma utopia numa época em que os saberes
intelectivos, pragmáticos, mensuráveis, dirigidos à competividade e ao consumo são os
privilegiados pelo mercado e, portanto, almejados pela sociedade.
Reflexões desta natureza foram abordadas por diferentes autores, dentre eles Adorno e
Horkeimer, Schiller, Kant, Bauman, Marcuse, dentre outros. Uma razão emancipatória
mescla-se por aspectos da sensibilidade, em seus estudos acerca de Adorno, Romeiro (2015)
afirma que a racionalidade é inerente à vida e a história do ser humano, desdobrando-se e
permeando a ética, política e estética. Sendo assim, apenas uma razão capaz de aproximar
ciência, ética e estética propiciará uma educação esclarecedora e formadora. Neste mesmo
sentido, a “cultura estética”, para Schiller (em Suzuki, 2002) “é aquilo que deve conduzir a
natureza humana à plenitude de seu desenvolvimento, à conjunção de suas forças sensíveis e
racionais, enfim, à união de dignidade moral e felicidade”.
Perpassando por pensamentos similares e acumulativos, a finalidade principal deste estudo é
o entendimento da sensibilidade como um dos pilares da inteligência humana, essencial tanto
quanto a inteligência cognitiva, e assim, discutir a importância de ser amplamente
desenvolvida nos meios educativos, contribuindo para uma sociedade mais humana.
Faz-se indispensável entender como a sensibilidade, ou melhor, sua ausência, tem se tornado
o alicerce das sociedades contemporâneas, a nível global. Almejando uma visão sistêmica da
questão, abarcaremos assuntos amplamente discutidos por Zygmunt Bauman e Theodor
Adorno, dentre os quais: o perfil da subjetividade atual tendo o consumismo capitalista como
ideologia, a cultura como desenvolvimento econômico e as tecnologias de comunicação a
transformar o modo de sentir, pensar e agir no mundo, o papel da educação hoje e o saber
estético como desenvolvimento da moral, do senso crítico e da autonomia. Esperamos
alcançar, através dos contributos de autores, investigadores, educadores e profissionais da
cultura, o alargamento da concepção que entendemos que a cultura e a arte compreendam,
para assim, demonstrar sua envergadura frente ao desenvolvimento da sensibilidade e de uma
educação para uma formação humana plena. Propomos a propagação da expressão, da crítica,
do equilíbrio emocional, a construção de sentidos, a evolução do sensível e a emancipação do
indivíduo.
Tanto os estudos científicos e empíricos indicam que o sujeito contemporâneo se encontra
cada vez mais individualista, todavia, sua individualidade também é diluída por sistema
líquido, denominado “Modernidade Líquida” por Zygmunt Bauman. Tal sistema
mercadológico e ideológico, intenciona nivelar a todos, ao ditar comportamentos, aparências,
padrões de moda e de modos de vida (Amorim, 2008). O consumismo não se restringe à
aquisição de bens materiais, indo muito além, incorporando costumes, padrões culturais,
modos de comportamento e de estilo de vida, designado “Indústria Cultural”, já no século
passado, por Theodor Adorno.
O amplo desenvolvimento dos meios de comunicação, com o advento da Internet e das mídias
digitais acabaram por favorecer ainda mais o cenário consumista, além disso, modificaram
por total o modo de vida das pessoas, tanto a nível pessoal, social, educacional e profissional.
Estas novas tecnologias deram uma total impressão de encolhimento do mundo, ao conectar
os indivíduos entre si e as infindáveis quantias de textos e imagens, pela possibilidade de
compartilhar e interagir com as mais diferentes realidades, informações, conhecimentos e
experiências. A internet abrange a maior enciclopédia de todo o planeta, com isso, mudanças
rápidas e imensuráveis no campo da educação são reais e inevitáveis, entretanto, é
imprescindível o questionamento do como estas ferramentas são introduzidas educativamente,
visto que a quantidade de informações disponível no mundo digital não é nem nunca será
sinônimo de qualidade. Faz-se necessário um exame sobretudo do estilo de vida que impomos
a nós próprios e à sociedade como um todo, com o apogeu do universo on line; furtando-nos
tempo e sensibilidade, a nova realidade rouba-nos também possibilidades de transcendência
humana. As novas relações atuais de tempo e o espaço, modificadas pela economia capitalista
e suas tecnologias, transformam consequentemente e de modo drástico o contato do ser
humano consigo mesmo, com seu semelhante e com o universo que o rodeia.
Embora o cenário pareça totalmente antagônico à formação sensível e verdadeiramente
humana, observamos algumas iniciativas, que ao menos em teoria, apontam a busca de uma
educação formadora, que tem na cultura e na arte, fortes aliadas. Ainda em fase de
implementação, no Brasil, a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e em Portugal o PNA
(Programa Nacional de Arte) podem representar, ao menos ideologicamente, um suspiro em
meio ao aparente caos. Analisamos alguns dos pontos principais que norteiam estes
programas educativos e por meio de entrevistas inquirimos profissionais envolvidos nos
processos de formatação e implementação dos projetos mencionados, visando entender a
importância da sensibilidade, da estética, da arte e da cultura na educação atual e futura,
segundo os dois programas de educação. E, de modo a corroborar com as hipóteses levantadas
neste projeto de pesquisa, realizamos uma investigação junto a uma instituição de ensino no
Brasil, o colégio Libere Vivere* acerca de sua prática e experiências com arte e cultura
voltadas à formação humana.
*O colégio Libere Vivere é uma instituição privada de educação básica na cidade de Serra Negra, interior de São
Paulo – Brasil. Esta instituição desenvolve permeando o currículo comum, um trabalho de cidadania, educação
emocional e estética que tem tido um resultado muito interessante, abordaremos alguns pontos principais como
um exemplo positivo da possibilidade da arte na escola para a formação humana.
Metodologia
Este estudo se desenvolverá em dois pilares, um de natureza teórica, pela realização de uma
investigação bibliográfica alicerçada fundamentalmente em estudos acerca de pensamentos de
Bauman e Adorno, também de seus adeptos e partidários, conduzindo à justificativa para
nossa tese, e um segundo, de natureza prática – compreendendo uma pesquisa qualitativa por
meio de entrevistas a profissionais envolvidos nos processos de formatação e implementação
do PNA, em Portugal e da BNCC, no Brasil, visando entender como estes projetos enxergam
a sensibilidade, a estética, a arte e a cultura na educação, ainda, para rematar a tese em
questão, realizamos uma pesquisa junto ao Colégio Libere Vivere acerca de suas
metodologias e experiências com a arte para a formação integral dos alunos, o qual vem
apresentando resultados palpáveis acerca do reflexo da educação estética na vida de alunos e
ex-alunos do colégio.
Aporte Teórico
Teoria Crítica, Teoria Estética, Marxismo.
Faz-se importante ressaltar que o intuito deste estudo é o confronto de elementos, propostas e
considerações, contribuindo com novas reflexões e, sobretudo, para propor novos
questionamentos sobre a educação da sensibilidade para a formação humana.
São grandes e velozes transformações que, conforme Colombo (ibidem) afetam de tal forma o
modo de vida do sujeito moderno e que permeiam “a formação e a construção de identidades,
de relações sociais e vínculos afetivos”.
Numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto
pronto para uso imediato, o prazer passageiro e a satisfação
instantânea, quer se acreditar nas relações humanas e no amor à
semelhança de outras mercadorias. (...) “Uma inédita fluidez,
fragilidade e transitoriedade em construção (a famosa “flexibilidade”)
marcam todas as espécies de vínculos sociais...”, afirma Bauman
(2004: 112-113 em Mantello, 2014)
Entregues à compulsão globalizante que se instaura e “cegos para olhar a nós mesmos e ao
outro, substituindo relações por vícios, trabalho desenfreado e cacarecos pós-modernos,
aumentando a sensação de impaciência em relação ao outro.” (Campos, 2010, p.4 apud
Mantello, 2014). Durabilidade não é uma qualidade que se espera das coisas e das relações,
ambas são úteis por um "tempo fixo" e esquecidas ou eliminadas quando se tornam inúteis
(Bauman, entrevista Educação 2009). Os relacionamentos amorosos, afetivos, entre amigos,
familiares, conhecidos, tornam-se cada vez mais superficiais. Padrões de comportamentos
cada vez mais voláteis - expressão do próprio Bauman – ilustrada pelas relações passageiras
entre as pessoas, gerando “novas angústias aos cidadãos de nossa sociedade de consumo.”
(Mantello, 2014). A mutabilidade sem tréguas é geradora de inquietudes, incertezas,
ansiedades, medos, revoltas e intolerâncias; para Colombo (2012) estamos na “era das
transformações”, da desconstrução de valores consolidados, da transformação da cultura e do
fracasso de certas ideologias clássicas da sociedade, a era em que certezas supostamente
inabaláveis estão sendo derrubadas.” Impulsionado pelos discursos de Bauman e a
modernidade liquida, Amorim assegura que
A (pós-)modernidade é marcada por este discurso amorfo, em que as
ideias fluidamente mudam de posição, amoldando-se a interesses
políticos, cujo pano de fundo são ideias bastante solidificadas.
(AMORIM, 2008)
Sendo assim, interesses políticos e das instituições dominantes competem neste jogo de poder
e dominação, materializadas por meio da massificação de ideias e comportamentos. A política
é só mais uma das áreas humanas afetadas pela insensibilidade moral, alega Bauman (?).
Fianco (2010) aponta que a hegemonia da estrutura social mesmo não exercendo um domínio
pela violência física, como ameaça de um estado totalitário contra o indivíduo; exerce
pressão, força, dominação psicológica e provoca um
“esvaziamento da subjetividade e elimina com ela qualquer
possibilidade de atitude crítica que possa barrar ou amenizar este
processo de coisificação do mundo e das relações humanas e avaliação
de todo o existente a partir do ponto de vista da quantificação
monetária e da possibilidade de lucro ou de expansão de mercado
consumidor” (Fianco, 2010).
Além consumismo exacerbado, apontado como uma das maiores causas da insensibilidade
atual, as noções tanto temporais como espaciais tem tomado outros formatos, gerando novas
sensações, transformações contínuas no que concerne “às formas de experimentar o tempo –
cada vez mais acelerado – e o espaço – cada vez mais flexibilizado (Frezza, 2009)”. Vivemos
uma “intensa fase de compressão do tempo-espaço que tem tido um impacto desorientador e
destrutivo sobre as práticas político-econômicas, sobre o equilíbrio do poder de classe, bem
como sobre a vida social e cultural” (Harvey, 2004, p. 257 apud Frezza, 2009). O tempo é
sinônimo de azáfama (pressa) e o espaço, conceito volátil, com as alterações recorrentes do
progresso nos âmbitos tecnológico, cultural e social, intensas disrupturas se instalam e abrem
à sociedade global relações espaço-temporais de complexidade ímpar, uma revolução efetiva,
sem precedentes, fronteiras ou volta.
O desenvolvimento das tecnologias de informação, produção e transportes, dos
gerenciamentos das empresas e das formas de relacionamentos sociais afetam diretamente
nossas sensações espaço-temporais, ao mesmo tempo que estes direcionamentos são também
afetados por estas categorias, afirma (Frezza, ibid).” Oliveira (apud Pires, 2017) elucida com
propriedade este ponto
O tempo social contemporâneo é marcado pela escassez. Ninguém
tem tempo! O que é feito do tempo? Foi comido pela aceleração? Está
a ser comido pela transparência dos ecrãs que nos seduzem o olhar?
Dilui-se na liquidificação das relações e dos processos sociais? A
egotização das relações sugam o tempo? A (ego) narcisação absorve a
atenção engolindo o tempo num processo de suavização da existência?
A overdose informacional, a overdose relacional, a paradoxilização da
existência no processo ambivalente caleidoscópio que não permite a
lucidez da paragem, da quietude, da contemplação...Talvez tudo isso
junto e algo mais. Oliveira (apud Pires, 2017)
Há a frequente sensação de descontinuidade e de supervalorização do momento presente: um
tempo pontilhista descontínuo (Bauman, Cegueira Moral 2014, p. 137) “tal como o
pontilhismo na pintura, transforma a impressão ou o estado momentâneo numa coisa mais real
que os projetos de longo prazo, a história, os cânones clássicos e o passado (ibidem). Acerca
da lógica do ciberespaço, o on line, Bauman (Sobre educação e juventude, 2013) assevera que
não há mais distinções entre próximo ou distante, aqui ou lá, essa “ é a condição a que a
glocalização – o processo de despir a localidade de sua importância ao mesmo tempo que se
aumenta sua significação – visava desde o início”. Fomos empurrados até lá, ou, sob outro
ângulo, trouxeram-na até nós.
A monetização das relações sociais, a perseguição de objetivos econômicos e a lógica de que
“quanto mais rápida a recuperação do capital posto em circulação, tanto maior o lucro obtido”
(Harvey, 2004, p. 209), aceleram os processos de produção, reconstroem o espaço para a
circulação dos produtos e serviços, transformando a vida social, vertiginosamente. (Frezza,
2009).
“O espaço midiático (eletrônico ou virtual), a “televivência” e a “telerrealidade” são os
maiores “ladrões” de tempo, a “sociabilidade está entrelaçada e umbilicalmente associada a
essa conjunção de disposições”, afirma Rubim (2008), a experiência do on-line, causa a
sensação do tempo a passar rápido, não deixa espaços para outras atividades, pensamentos e
discurso, e o pior, não deixa marcas significativas no sujeito, apenas breve recordação, uma
memória difusa, escassa (Oliveira, apud Pires 2017 p.80). O tempo on line, o “tempo entre”
iguala-se ao “estar entre”, completa Oliveira (ibidem), não se está nem aqui, nem lá, a fruição
do espaço é suspendida, sugando a sensorialidade do lugar, o aroma do tempo e do espaço”.
Hoje, a mais escassa mercadoria no mercado é a atenção humana, afirma Donskis (Cegueira
Moral, 2013, p.59), esta tem se reduzido ao tamanho e duração de mensagens escritas,
enviadas e recebidas, e a linguagem, se tornou a vítima elementar da vida apressada e da
tirania do momento, cada vez mais simplificada, reificada, vulgarizada e vazia.
O excesso comportamental contemporâneo tem gerado um vazio existencial, a liberdade de
escolha aumenta mais as incertezas e nada é visto como suficientemente excessivo (Bauman,
2007 apud Colombo, 2012).
Duas manifestações do novo mal: a insensibilidade ao sofrimento
humano e o desejo de colonizar a privacidade apoderando-se do
segredo de uma pessoa, aquela coisa de que nunca se deveria falar,
que jamais poderia se tornar pública. O uso global de biografias,
intimidades, vidas e experiências de outras pessoas é um sintoma de
insensibilidade e falta de sentido. (Donskis, Cegueira Moral, 2013 –
p.14)
As narrativas (sociais, políticas e culturais – adendo nosso) são criadas no espaço virtual
(ibidem) e não fazer parte deste mundo é estar fora do mundo. Pelbart (2000 apud Frezza,
2009) ressalta que as mudanças relacionadas ao espaço e tempo definem a vida cotidiana: o
que era privado (o tempo de lazer, das relações familiares, esfera da fé) perde autonomia e é
amplamente penetrado. Donskis (Cegueira Moral, 2013 – p.12) afirma que se você “não está
disponível nas redes sociais, não está em lugar algum. O mundo não lhe perdoará essa
traição.” Bauman (Cegueira Moral, 2013 – p.36) fala sobre “a morte do anonimato” por
cortesia da internet submetemos “à matança nossos direitos de privacidade por vontade
própria. Ou talvez apenas consintamos em perder a privacidade como preço razoável pelas
maravilhas oferecidas em troca”. O que era privado, hoje é feito em público e fica disponível
para o consumo público, pois a internet não esquece (ibidem).
“Celebridades” é o nome genérico para as pessoas que se amoldam às normas estabelecidas
nos estatutos da mídia e, na expressão de Daniel J. Boorstin, citado por Bauman (Cegueira
Moral, 2013, p. 86) “são muito conhecidas por serem muito conhecidas, e cujos nomes com
frequência valem mais que os serviços que prestam”. Neste cenário de fama e poder, a
tecnologia ultrapassou a política, sendo que esta última deixou de representar o poder de
transformar problemas privados em questões públicas, ou internalizar questões públicas
transformando-as em problemas privados ou existenciais. Hoje a política tem se ocupado com
frequência com problemas privados de figuras públicas (Donskis, ibidem). Discorrendo a
política na indústria do entretenimento, Bauman assinala que
Ou o “noticiário político” se submete docilmente ao domínio do
“infotenimento”, ou não tem a chance de ser oferecido a mais de um
“nicho de audiência” reduzido e em geral marginalizado. (...) reciclar
qualquer tema político em matérias de entretenimento; e a si mesmos
em celebridades, vistas todos os dias em função de sua posição atual
na competição por popularidade, e não pelo peso das coisas que
poderiam ter dito com credibilidade ou qualquer outro valor que não o
entretenimento. (Bauman, Cegueira Moral, 2013, p.86)
Políticos já não vivem sem os imagólogos, diz Donskis citando Kundera (Cegueira Moral,
2013, p.89), sem o mundo do entretenimento, entretanto o humor político atual está muito
mais próximo do ódio disfarçado que de piadas e risos (ibidem). Escritores de literaturas
distópicas, afirma Donskis (Cegueira moral, 2013, p.88), já previram estas profundas
simulações de realidade e fabricações de consciências, características dos meios de
comunicação de massa que moldam as nossas percepções de mundo. Tanto a mídia quanto a
publicidade são conduzidas por profissionais qualificados na arte de seduzir e induzir
comportamentos, conforme Donskis (ibidem) a imagologia é “a arte de construir conjuntos de
ideais, anti-ideais e imagens de valor que as pessoas supostamente seguem sem pensar ou
questionar de maneira crítica”.
Reforçamos a importância de uma educação formadora, emancipatória, autônoma, que possa
desenvolver nos indivíduos o pensamento crítico e a inteligência emocional para que sejam
sujeitos dominantes dentro das suas relações, sejam elas virtuais ou físicas e não dominados
pela situação, levados por modismos ou pela intenção do mercado massificador que se revela
um condutor de ideologias e opressor de pensamentos autônomos. É imperioso que as pessoas
aprendam a utilizar conscientemente e produtivamente a tecnologias e desenvolvam um grau
de sensibilidade que as comprometam com a sustentabilidade do planeta, com as pessoas e
consigo mesmas.
Por mais que a internet, em muitos momentos tenha se mostrado um forte veículo de
liberdade e força de expressão popular em questões sociais e humanitárias, o apontamento a
seguir se faz muito sensato: “a tecnologia em si não vai ‘promover o avanço da democracia e
dos direitos humanos’ por você ( e em seu lugar)” (Bauman, Cegueira Moral, 2013, p.73);
trocando em miúdos, se tais discursos não deixarem o campo virtual para se tornarem prática
cotidiana dos cidadãos, visando o bem estar comum, pouco ou nada adiantam.
A história nos tem mostrado que o mal não está nas coisas em si, entretanto, no que se faz
delas, não seria diferente no campo das tecnologias. Oliveira (apud Pires, 2017) chama nossa
atenção para o quanto preenchemos nosso cotidiano quiçá para não termos tempo disponível
para pensarmos nos sentidos ontológicos da vida, ou para respondermos performaticamente às
pressões da sociedade “cada vez mais e melhor em menos tempo, mas todo o tempo;
incorporando o carrasco, a ponto de uma percentagem de pessoas com depressão ser cada vez
maior(...) de modo a estar “colado ao presente, e às recompensas imediatas do presente”,
Oliveira (ibidem), sem se ligar ao passado, ao futuro e a um presente que transcenda o instinto
de sobrevivência e as satisfações físicas.
É bem provável (salvo alguma revolução cultural ou uma catástrofe a nível global) que, daqui
há algumas décadas as possibilidades provocadoras de reflexões de profundidade ontológica e
que transcendam o senso comum se tornem cada vez mais raras, estes raros momentos serão
salvaguardados sobretudo pela cultura e pela arte.
Neste império do efêmero, apontado por Colombo (2012), tudo tem caráter transitório e vão.
A mídia, nos “bombardeia constantemente com imagens de sucesso, poder, beleza e fama,
mostrando-nos o Olimpo (...)” (Volpi, 2003). O efeito para o emocional das pessoas pode ser
altamente prejudicial
“Isso tem um efeito altamente nocivo. Sabemos que a publicidade em
si é, muitas vezes, enganosa, uma falácia. Para vender seu produto,
impõem padrões absolutamente irrealísticos e falsos veiculados
massivamente, aos quais a grande maioria reage com desejo,
instigando seus traços narcisistas... (Volpi, 2003)”
O narcisismo é uma marca da personalidade coletiva, onde o indivíduo expõe sua imagem e
seu cotidiano, de modo a superiorizar-se, individualizar-se, porém, sem perceber, realiza
exatamente o inverso, ao fazer isso, iguala-se à massa, perde sua identidade. Observa
Germaine Greer, em Bauman (Vida para consumo, p. 21), que na era da informação, há muito
pouco além da mídia e a invisibilidade equivale à morte (esquecimento, adendo nosso).
A aculturação, conforme Taylor, é regida por leis sociais semelhante à evolução das espécies
para os biólogos evolucionistas, o conceito de cultura de Taylor é o que mais se aproxima do
qual estamos habituados
Inspirada nos ideais iluministas e regida pelos princípios de iluminação, a teoria evolucionista
buscava o refinamento dos costumes e a aproximação do povo dos que estavam no topo,
atribuindo “à sociedade ‘desenvolvida’ a função de converter os demais habitantes do
planeta” (Bauman, A cultura no mundo..., 2011, p.15). Entretanto, o efeito mobilizador que a
cultura deveria suscitar, revelou-se estabilizante, pela própria padronização a que se propôs
(ibidem) – axioma consonante ao conceito de Industria Cultural de Theodor Adorno, que
trataremos mais adiante.
As tarefas iluministas eram: esclarecer, cultivar o povo, formar um “novo homem”, cidadãos
para uma “nação moderna”. Para tanto, era necessário liberar as pessoas das velhas crenças e
superstições, das regras da tradição, dos obstáculos que corroíam e atrofiavam a sociedade;
moldar a população segundo os preceitos da razão, disseminar a cultura, com um conceito
análogo ao de agricultura, neste caso, o cultivo de pessoas, propagando o universalismo (em
real, o eurocentrismo). Esta concepção científica, “fala por todos e de todos, já que foi
pensada, conduzida e instituída a partir dos interesses e das questões daqueles, cujas vozes
pretenderam (e pretendem) representar toda a humanidade”. Feita por ocidentais, brancos, de
classes dominantes, dotados de uma “capacidade extraordinária”, que, supostamente,
perguntaram e ao mesmo tempo responderam o que seria importante para todas as pessoas.
(LOURO, 2007, p. 143 apud Furlan, 2016, p.291).
Até este período, os modelos culturais das camadas dominantes eram impostos às sociedades,
entretanto, no decorrer das últimas décadas, a cultura foi perdendo seu papel na manutenção
do status quo, da previsibilidade, como também sua função missionária (Bauman, A cultura
no mundo... 2011, p. ...). Vários processos levaram a sociedade a passar de um período
predominantemente sólido (estável, duradouro), para uma fase líquida, imprevisível, efêmera,
aponta Bauman (ibidem), fatores que pouco a pouco atingiram todos os setores da sociedade.
A cultura “agora é capaz de se concentrar em atender às necessidades dos indivíduos, resolver
problemas e conflitos individuais(...)” (ibidem, p. 17 e 18), “. Bourdieu (em Bauman, ibidem)
assinala que, ao não se preocupar com proibições, regulamentação de normas ou busca do
cumprimento de deveres, a cultura na era líquida (como mais um produto mercadológico –
acréscimo nosso) demanda por mudanças constantes, se ocupando em ofertar, estabelecer
tentações, atrair, seduzir, propor novos desejos.
Na fase sólida existia uma elite cultural delimitada e almejada (os membros desta elite a
impunham como ideal). Acerca das hierarquias culturais, (John Goldthorpe apud Bauman
ibidem) revela a impossibilidade de distinguir uma elite cultural hoje em dia através dos
signos de outrora: frequência a concertos, valorização da "grande arte" (arte erudita) e
menosprezo ao popular. Na atualidade, a elite cultural é caracterizada como "onívora",
consumidora do máximo de gêneros simultaneamente; segundo Peterson (in Bauman,
ibidem), não significa a não existência de intelectuais do primeiro grupo, porém, sua
coexistência com os do segundo. Ao empregar o verbo consumir, Bauman (ibidem) aponta
que a cultura foi tragada pelo sistema, ao ponto em que os próprios objetos culturais se
tornaram produtos de consumo.
A razão é imprescindível para o homem, o que não é compreensível é uma sociedade racional
capaz de tantas atrocidades e desumanidade. Conforme Maar (1995), como aceitar um mundo
onde a fome ainda é avassaladora, sendo que, de um ponto de vista científico-técnico já
poderia ter sido extinguida? Ou, um mundo onde o desenvolvimento científico está tão
avançado, ainda ver-se tamanha miséria? Adorno (Dialética Negativa, p.303) assegura que o
auge deste sistema foi Auschwitz, que demonstrou de forma esmagadora o fracasso da
cultura. Contudo, antagonicamente, Auschwitz foi ao mesmo tempo a vitória da indústria da
cultura, conseguindo moldar e controlar as pessoas a uma postura de eficiência, pragmatismo
irrefletido e crueldade insonháveis; deste modo, é a prova integral da formação danificada.
A superioridade do ser humano está no saber, e disso não há dúvidas (Romeiro, 2015), para
Bacon (Dialética do Esclarecimento, p. 17 apud Romeiro, 2015) a pergunta seria: “que razão é
esta e que saber é este, que conduz os homens à barbárie?” Adorno e Horkheimer em
momento algum nos propõem um distanciamento da razão, mas o oposto, procuram sua
retomada; convém questionar qual o tipo de racionalidade tem um caráter emancipatório,
humanizador
“a racionalidade é essencialmente determinante do ser humano e de
sua história, sendo, portanto, inerente à vida humana e, dessa maneira,
desdobra-se e permeia todas as concepções éticas, políticas e estéticas.
(…) “Somente um modelo de racionalidade capaz de aproximar
ciência, ética e estética viabilizará uma educação para emancipação”
(Romeiro, ibidem).
A racionalidade se constitui por nuances da cultura, pelo convívio social, pelas experiências
pessoais, por sentimentos e sensações, extrapolando normas e convenções, é ainda construção
individual, muito além da transmissão de saberes. O impacto da racionalidade do capitalismo
hostil nas relações sociais transforma “as relações imediatas em secundárias, o indivíduo é
aquilo que possui.” (ibidem)
Romeiro (2015) admite que para Adorno a arte, a cultura – quando vivenciadas – são
possibilidades que conduzem o indivíduo a reflexão, imaginação, experimentação, projeção e
sublimação, proporcionando meios para a autoconsciência e emancipação. “A redução da
razão à dimensão instrumental, desvinculada de sua força emancipatória e libertadora, é razão
reificada, coisificada”. É necessário “resgatar a razão enquanto esclarecimento e libertação,
enquanto verdadeira práxis que conduz à emancipação política, ética e estética”. (ibidem)
“Como as obras de arte, sendo objetos da cultura, podem ser constitutivas de autonomia, já
que a própria cultura é apropriada pelo capitalismo e também reproduz a racionalidade do
capital?” (Chaves, 2014). A indústria cultural atribuída por Adorno carrega todos os
elementos peculiares do mundo industrial moderno; os objetos de arte, produzidos e
consumidos segundo os critérios capitalistas se rebaixam ao estatuto de mercadoria, perdendo
assim seu potencial crítico e contestatório.
“quando a Indústria Cultural privilegia um produto pseudo-artístico
padronizado, calculado tecnicamente para surtir efeitos determinados
de modo a serem por todos desejados e repetidos, na forma e na
medida adequados a garantir o poder e o lucro do sistema dominante,
gera uma necessidade compulsiva generalizada que afasta o “não-
idêntico” como exótico, indesejado, incômodo ou doente. Tal
repetição vem camuflada com outros produtos que, não obstante a
variação aparente, repetem os mesmos modelos, esquemas ou
características impostas, tendendo a manter o público sob controle,
cada vez mais massificado, inconsciente e compulsivamente preso à
corrente de produção. (Reis, 1996, p. 44-45 apud Bertoni, 2001)
A realidade sustenta-se numa rede tanto individual como global e a esperança em que os
governos possam resolver os problemas dos países e da população são cada vez mais
diminutas. Mesmo sem instrução adequada para uma crítica inteligente, a maioria das pessoas
já não são tão submissas como costumavam ser, ou acreditavam que fossem, é mais difícil
coagi-las a fazerem o que os poderes desejam, contudo, são mais propensas à sedução
(Cegueira Moral, 2013, p.109). Um mundo cada vez mais complexo e global, para endossar a
morte da homeostasia, a globalização e a migração em massa introduziram uma era de
diásporas: “Trata-se de um arquipélago de colônias étnicas, religiosas e linguísticas (Bauman
ibidem, p.37). É “impossível negar que as ‘forças de mercado’ em movimento livre
contribuem muito para a crescente mobilidade dos migrantes ‘econômicos’” (ibidem).
Praticamente nenhum país hoje é exclusivamente um lugar de imigração ou emigração, uma
grande complexidade assola as migrações atuais, as vizinhanças caracterizam-se por
“fronteiras ondulantes, flutuantes e porosas”, é difícil definir quem é de dentro e quem é
estranho. (ibidem, p.38). O aprendizado do convívio e respeito às diferenças se faz urgente e
vital, exigindo habilidades sociais e políticas para que esta realidade seja benéfica, para
migrantes e nativos, nisso, os direitos humanos vêm estabelecendo um alicerce mínimo para
uma tolerância mútua, todavia, está longe de administrar uma solidariedade mútua. Cabe
salientar que, para os governos, as desuniões são positivas, pois assim, não constituem forças
contra o sistema e, ainda mais, Richard Rorty (apud Bauman, ibidem) afirma que concentrar a
população em problemas como: hostilidades étnicas, religiosas, ou de gêneros sexuais,
constitui em uma excelente estratégia para o não afrontamento social, político ou econômico.
Uma aceitação do “pluralismo cultural”, na prática tem se tornado uma nova indiferença à
diferença, através da prática política denominada “multiculturalismo”, aparentemente guiada
pela tolerância liberal e pelo apoio aos direitos às identidades escolhidas ou herdadas pelas
comunidades (Bauman, A cultura no mundo..., p. 46). Tal política, não estabelece a
interculturalidade ou o incentivo e valorização real das culturas em desvantagens; agindo de
forma extremamente conservadora, sob a égide de “diversidade cultural, consiste em
apresentar
Resposta mais frequente das classes influentes sobre quais caminhos seguir nesta era de
incertezas, o multiculturalismo tornou-se uma resposta clichê para amenizar os conflitos
causados pela incerteza e ignorância da classe intelectual frente às perguntas que exigem no
mínimo uma boa dose de empatia e senso de humanidade (ibidem). Gademer, em Bauman
(2011, p. 81) assinala que o caminho da compreensão passa por uma “fusão de horizontes”,
um trabalho demorado, de progresso lento, completa Bauman. A era líquida é inconstante,
dinâmica, permitindo, que as “mutações culturais” busquem caminhos, níveis diferentes dos
atuais, pois tudo é transitório, nada é definitivo ou irrevogável, é uma jornada “rumo ao
desconhecido” (ibidem, p.83).
Fraser apud Nancy Bauman (2011, p.86) protesta contra a fenda cada vez maior entre
políticas culturais de diferença e de igualdade, também contra a injustiça cometida a
indivíduos ou grupos em que são negadas condições de interação social por sua categoria
cultural. Na exclusão cultural, nega-se o direito social e a garantia de oportunidades iguais, até
onde a tolerância é sinal de humanidade, trégua, descaso ou raiva contida em relação ao outro.
Num mundo “multicultural” as culturas coexistem, porém, a política multiculturalista não tem
facilitado a coexistência dialógica, harmoniosa, em relações culturais frutíferas,
reconhecendo-se os direitos de cada um (Bauman, ibidem).
Assimilações, existe culturais não é uma realidade nova desde sempre na história das
civilizações, os meios de comunicação e o fenômeno da globalização com as migrações cada
vez mais acentuadas, tem se encarregado de mudar de forma acentuada o cenário cultural dos
países, favorecendo o encontro de culturas e tornando-as híbridas, compostas. Culturas
verdadeiramente “puras” (se um dia realmente existiram), não são imagináveis num mundo
líquido e global. Referindo ao processo migratório na Europa, Bauman alega que a métissage
(hibridização) cultural que a entrada de recém-chegados acaba por romper é inevitável e
“a mistura de inspirações culturais é fonte de enriquecimento e motor
da criatividade – tanto para a civilização europeia como para qualquer
outra. Da mesma forma, há somente uma linha tênue a separar esse
enriquecimento de uma perda da identidade cultural; para evitar que a
coexistência entre autóctones (habitantes nativos) e alóctones (os que
vieram de outros lugares) venha a solapar o patrimônio cultural”
Bauman (Sobre Educação e Juventude, 2013 p. 06)
A era das pressões assimilatórias parece ter ficado no passado, no entanto a ambivalência
tomou seu lugar no cenário contemporâneo. Nesse sentido, a modernidade líquida “é o
período do desencaixe sem o reencaixe” (Furlan, 2016). O respeito e a coexistência entre
múltiplas culturas, opções sexuais, religiosas e ideológicas, inclusão de todo tipo e
diversidade, são tópicos primordiais para as pastas de todos os níveis governamentais, por se
tratarem de realidades cada vez mais frequente no mundo atual, todavia, de uma
complexidade que não requer apenas soluções políticas vindas “de cima”, como também da
bom senso, da empatia e da sensibilidade de cada indivíduo.
Inúmeras pesquisas apontam que o ser humano é involuntariamente influenciado pelo meio,
embora não exista uma exatidão no grau desta influência, pois que esta dependerá do
indivíduo, de sua liberdade de escolha e de seu desenvolvimento pessoal (formação).
Esvaziada de sentidos capazes de transcender o aqui e agora, como a civilização será capaz de
desenvolver nos indivíduos um pensamento verdadeiramente humano, autônomo e
emancipador? É provável que a única solução, capaz de, ao menos amenizar os danos sofridos
por uma formação reificada, seja uma “revolução cultural”, como aponta Bauman, se assim o
for, esta conseguirá se estabelecer através da educação (como formadora do indivíduo e da
sensibilidade humana).