O Custo de Vida Deborah Levy
O Custo de Vida Deborah Levy
O Custo de Vida Deborah Levy
Na página 67, a frase "E eu adoro a chuva" faz referência a um verso de "April Rain Song" [Canção da
chuva de abril], poema de Langston Hughes.
Deborah Levy faz referências ao ensaio "On Fashion and Freedom" [Sobre moda e liberdade], de sua
autoria, encomendado conjuntamente pelo Manchester Literature Festival 2016, pela Manchester Art
Gallery e pelo 14–18 NOW.
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Editora.
EDITORAS RESPONSÁVEIS
Ana Elisa Ribeiro
Rafaela Lamas
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Sonia Junqueira
REVISÃO
Marina Guedes
CAPA
Allesblau
IMAGEM DE CAPA
Rafaela Pascotto
DIAGRAMAÇÃO
Waldênia Alvarenga
Levy, Deborah
O custo de vida [livro eletrônico] / Deborah Levy ; tradução Adriana Lisboa. -- 1. ed. -- Belo
Horizonte, MG : Autêntica Contemporânea, 2023.
ePub
www.grupoautentica.com.br
SAC: [email protected]
Somos sempre mais irreais que o outro.
Marguerite Duras, A vida material (1987)
1
O Prateado
Ela lhe perguntou o que estava pescando em sua tigela com os chips de
tortilha. Ele disse que era ceviche, peixe cru marinado em suco de limão, que
estava escrito no cardápio em inglês como sexvice — “Vem com uma
camisinha”, ele disse. Quando ela sorriu, eu sabia que estava apostando em ser
alguém mais corajosa do que se sentia, alguém que poderia viajar livremente e
desacompanhada, ler um livro e bebericar uma cerveja sozinha num bar à
noite, alguém que poderia arriscar uma conversa incrivelmente complicada
com um estranho. Ela aceitou sua oferta de provar o ceviche, depois se
esquivou da oferta de ir com ele nadar à noite numa parte isolada da praia
local, que, ele assegurou, ficava “longe das pedras”.
Depois de um tempo, ele disse, “Não gosto de mergulhar. Se eu tivesse
que ir até o fundo, seria em busca de ouro”.
“Ah”, ela disse. “Engraçado você dizer isso. Eu estava pensando que o
nome que eu daria para você seria Prateado.”
“Por que Prateado?”
“Era o nome do barco de mergulho.”
Ele sacudiu a cabeça, perplexo, e desviou o olhar dos seios dela para o
sinal de neon na porta, indicando a saída. Ela sorriu de novo, mas contra a
vontade. Acho que sabia que precisava acalmar a turbulência que havia trazido
consigo do México para a Colômbia. Decidiu retirar suas palavras.
“Não, Prateado por causa do seu cabelo e do brinco na sua sobrancelha.”
“Eu sou só um barco à deriva”, ele disse. “Sigo à deriva por aí.”
Ela pagou a própria conta e lhe pediu para pegar o livro que ele derrubara
no chão, o que significava que ele precisava se curvar e se esticar por baixo da
mesa, puxando o livro com o pé. Levou um tempo e, quando ele reapareceu
com o livro na mão, ela não se mostrou agradecida nem descortês. Disse
apenas, “Obrigada”.
Enquanto a garçonete pegava pratos com montes de patas de caranguejo e
ossos de peixe, eu me lembrei da citação de Oscar Wilde: “Seja você mesmo;
todas as outras personalidades já têm dono”. Não era bem verdade no caso
dela. Precisava apostar num eu dono de liberdades que o Prateado tinha como
pressupostas – afinal de contas, ele não tinha dificuldade para ser ele mesmo.
Você fala muito, hein?
Exprimir nossa vida tal como a sentimos é uma liberdade que geralmente
escolhemos não assumir, mas me parece que as palavras que ela queria dizer
estavam vivas dentro dela, misteriosas para ela tanto quanto para qualquer
outra pessoa.
Quando o amor começa a rachar, a noite entra. Não acaba nunca. É cheia
de pensamentos raivosos e acusações. Esses monólogos internos
atormentadores não param quando o sol nasce. Isto era o que mais me
magoava: que minha mente tivesse sido abduzida e estivesse cheia Dele. Não
era nada menos que uma ocupação. Minha própria infelicidade estava
começando a se tornar um hábito, da maneira como Beckett descreveu o pesar
tornando-se “algo que você pode continuar aumentando durante toda a sua
vida [...] feito uma coleção de selos ou de ovos”.
Chorei feito uma mulher quando soube que meu casamento tinha
acabado. Já vi um homem chorar feito uma mulher, mas não tenho certeza de
ter visto uma mulher chorar feito um homem. O homem que chorou feito
uma mulher estava num funeral e mais gemia, soluçava e se lamentava do que
chorava; suas lágrimas eram muito fortes. Seus ombros se sacudiam, seu rosto
estava cheio de manchas, ele metia a mão no bolso do paletó e tirava dali
lenços de papel que apertava contra os olhos. Cada um deles se desintegrava.
Sons estranhos saíam do seu diafragma. Era um luto muito manifestado.
Achei que ele chorava por todos nós naquele momento. Todas as outras
pessoas choravam de modo mais socialmente consciente. Quando falei com ele
no velório, ele me disse que seu luto o havia despertado para o fato de que em
sua própria vida “O amor tinha assinado o nome no livro de visitas, mas nunca
chegado para morar”.
Ele se perguntava o que o havia impedido de ser mais ousado. Estávamos
bebendo um bom uísque irlandês, uma marca apreciada pelo homem
excepcional que tinha morrido. Perguntei-lhe se ele e aquele homem tinham
sido amantes. Ele disse que sim, com idas e vindas durante muitos anos, mas
nunca tinham corrido o risco de se deixarem ficar vulneráveis um para o outro.
Nunca tinham assumido o seu amor. Quando ele me perguntou por que meu
casamento estava naufragando, sua própria honestidade tornou possível para
mim falar mais abertamente. Depois que eu tinha falado durante algum
tempo, ele disse, “Parece-me que seria melhor para você encontrar outra
maneira de viver”.
Imaginei a conversa que eu nunca tinha tido com o pai dos meus filhos
sendo encontrada, um dia, na caixa- preta arremessada no fundo do oceano
quando o barco naufragou. Numa tarde chuvosa de terça-feira, no futuro
distante, ela seria finalmente encontrada por uma forma de vida artificial que
haveria de se agrupar ao redor dela para escutar as tristes e fortes vozes de seres
humanos em sofrimento.
A melhor coisa que eu fiz foi não nadar de volta para o barco. Mas aonde
eu deveria ir?
3
Redes
Era inútil tentar fazer caber uma vida antiga numa vida nova. A velha
geladeira era grande demais para a nova cozinha; o sofá, grande demais para a
sala; as camas tinham o formato errado para os quartos. A maior parte dos
meus livros estava em caixas na garagem, com o resto da casa da família. Mais
urgente: eu já não tinha um escritório no momento profissionalmente mais
agitado da minha vida. Escrevia onde podia e me concentrava em criar um lar
para minhas filhas. Poderia dizer que aqueles foram os anos de maior sacrifício
pessoal, e não os anos que passei na nossa unidade de família nuclear. Ainda
assim, estar criando aquele tipo de lar, um espaço para uma mãe e suas filhas,
era tão difícil e humilhante, tão profundo e interessante que, para minha
surpresa, descobri ser capaz de trabalhar muito bem no caos daquele momento.
Eu pensava com clareza e lucidez; a mudança para o alto da ladeira e a
nova situação haviam libertado algo que antes estava encurralado e reprimido.
Tornei-me fisicamente forte aos cinquenta anos, bem no momento em que
meus ossos teoricamente deveriam estar perdendo sua força. Eu tinha energia
porque não havia outra escolha a não ser ter energia. Precisava escrever para
sustentar minhas filhas e precisava levantar todos aqueles pesos. A liberdade
nunca é de graça. Quem quer que tenha lutado para ser livre sabe o quanto
custa.
Gostaria que a fama tivesse dado a Emily Dickinson uma asa quando ela
estava viva. Eu sabia como era se sentir subjugada e como, assim ela nos disse, a
esperança é a coisa com asas que nunca para de cantar, apesar do
desencorajamento e da negligência. Emily Dickinson tinha se tornado uma
reclusa. Talvez estivesse punindo a si mesma por seu anseio de liberdade, seu
anseio de não ser dominada? Outro de seus poemas veio de lugar nenhum, o
que é sempre algum lugar, e tinha a palavra esposa. Só conseguia me lembrar do
primeiro verso:
Minha amiga Gemma me disse, “Você vai ter que fazer seu quarto
funcionar para você. Construir uma escrivaninha. Construir uma estante.
Trazer as caixas da garagem e desempacotar seus livros. Experimentar viver com
cores”. Com isso ela queria dizer pintar as paredes de uma cor que não fosse
branca. “Amarelo seria bom para você”, insistiu. “Purifica as emoções e nos dá
um senso maior das coisas.” Quando ela disse isso, eu me lembrei de ter
pintado o teto do quarto na casa da família com uma cor chamada Claraboia
Inglesa. O teto parecia um céu baço e cor de chumbo. Até mesmo quando fazia
sol lá fora, chovia dentro de casa. Todos os dias e todas as noites.
Na minha nova vida, eu ia me comprometer com uma vida a cores.
Pintei de amarelo as paredes do meu quarto. Comprei suntuosas cortinas
de seda laranja numa loja de caridade. Pendurei um escudo africano feito de
penas de galinha que tinham sido tingidas de rosa. Tinha sessenta centímetros
de largura e parecia uma flor imensa. O escudo era costurado de tal maneira
que permitia que se abrisse e se fechasse. Porém, preso à parede ele estava
sempre aberto, num momento em que eu estava emocionalmente fechada.
Precisava de um escudo para me defender da ira da minha antiga vida.
Acho que podia dizer que agora tinha como escudo uma flor. Uma das
minhas heroínas era a artista sul-africana Esther Mahlangu, de 81 anos, que se
tornou artista de forma autodidata aos dez anos de idade ao observar sua mãe e
sua avó pintando com penas de galinha. Ela própria era uma obra de arte – as
contas em suas roupas, as pulseiras em suas mãos, seu pescoço e seus pés. Eu
queria falar com ela, mas não sabia o que queria dizer.
Esther, não sei como viver em amarelo. Não sei como viver em minha vida.
As paredes amarelas estavam me deixando louca. As cortinas de seda
laranja eram como acordar com uma erupção na pele.
Tirei o escudo da parede e pintei todas as paredes de branco outra vez,
exceto uma. Substituí o escudo por uma gravura emoldurada de Oscar Wilde.
Então fui enfrentar as traças na cozinha. Elas eram como algo saído de um
romance de García Márquez, voando por ali feito pequeninos demônios cegos,
saciadas da farinha de trigo com fermento e da aveia que as atraíam aos
armários da minha cozinha.
Celia veio em meu socorro. Ela era uma atriz e livreira com seus oitenta e
poucos anos. Certa noite, em sua cozinha, no fim de janeiro, começou a cantar
alguma coisa para mim em galês. Eu lhe disse que não entendia galês.
“Bem, eu nasci no País de Gales e você não, mas o que estava pensando
enquanto cantava é que você precisa de um lugar onde escrever.”
Apontou para o depósito nos fundos do seu jardim. Era onde seu marido,
o grande e falecido poeta Adrian Mitchell, às vezes escrevia, na primavera e no
verão. Tinha sido construído debaixo de uma macieira. Em três segundos,
concordei em alugá-lo dela. Celia sabia que eu era financeiramente responsável
por “uma multidão”, como dizia, então selamos um acordo razoável com um
copo do rum de Havana do qual ela gostava e que preferia misturar com Coca-
Cola. Todas as vezes que bebia rum de Havana, ela erguia o copo e fazia um
brinde ao milagre dos altos índices de alfabetização em Cuba. “Aliás,” disse, “da
próxima vez que o boiler comunitário não estiver funcionando no seu
apartamento, vocês façam o favor de vir para cá tomar um banho quente de
banheira.”
Todo mundo merece um anjo da guarda como Celia.
Meu anjo da guarda, que era feroz e adorava gritar com todo mundo –
quando não estava gritando num protesto para salvar o Sistema Nacional de
Saúde –, insistia em deixar seu freezer sobressalente no depósito. Havia
momentos em que as únicas coisas naquele freezer, que chegava à minha
cintura, eram vinte tubos plásticos de maçãs cortadas, colhidas da árvore no
outono. Celia tinha prazer em fazer tortas de maçã ao longo do ano, enquanto
Myvy, o Caolho Cão de Guerra, apoiava-se em suas canelas, em completa
devoção. Não me surpreenderia se aquele cão de caça desgrenhado começasse a
cantar em galês.
Eu disse a Celia que Freud ficava intrigado que, nos sonhos, seus
pacientes mais empenhados em parecer racionais fossem os mais felizes quando
um cachorro citava um verso de algum poema. Ela disse que se Myvy algum
dia fosse recitar poesia, teria que ter sido escrita por Adrian. Aparentemente, o
nome galês completo de Myvy era Myfanwy, que significava Meu Querido,
embora também pudesse significar Minha Preciosidade, Minha Mulher ou
Minha Amada. Achei melhor não jogar mais Freud em cima dela enquanto
estivesse com uma faca na mão.
Isto começa com o saber e o não saber, um copo de leite, chuva, uma
reprimenda, uma porta batendo, a língua afiada de uma mãe, um caracol,
um desejo, unhas roídas, uma janela aberta. Às vezes isto é fácil e às vezes é
insuportável.
O que era isto? Não sei. Mas o copo de leite é uma pista. Talvez fosse o
início de um romance que eu ia escrever mais tarde naquele depósito, e que
intitularia Hot Milk [Leite quente]. Havia dois diários que registravam o
encontro com o homem com quem eu ia me casar e minha certeza de que
estávamos destinados um ao outro. Naquela época, eu não conseguia ver o
sentido da minha vida sem ele. Dei-me conta, lendo aqueles diários, de que
praticamente não havíamos tido vida juntos antes de termos filhas. Um ano
depois de o nosso romance começar, estávamos morando juntos e eu estava
grávida. Foi uma descoberta feliz. Semeamos grama no jardinzinho da casa que
alugávamos para que ela crescesse a tempo da chegada da nossa primeira filha.
Enquanto isso, tinha que usar toda a minha criatividade para aquecer o
apartamento na ladeira quando os boilers comunitários dos anos 1930 se
recusavam a cooperar com o século XXI, e precisava aquecer o depósito. É
claro que queria instalar um aquecedor a lenha no depósito (o que faria com o
freezer?) e viver a vida de um escritor romântico – de preferência a vida de
Lord Byron, escrevendo poesia com um blazer de veludo, esperando que a
inspiração me arrebatasse enquanto a fragrante madeira estalava e crepitava etc.
Ai de mim, naquele momento financeiramente austero isso não era possível,
mas, como Celia observou, “Contemplar as chamas não ajuda na contagem de
palavras, de todo modo”. Eu entendia o que ela queria dizer. A vida da escrita
tem a ver sobretudo com energia. Alcançar a linha de chegada requer que a
escrita se torne mais interessante do que a vida cotidiana, e uma lareira, como a
vida cotidiana, nunca é tediosa.
Tive a grande sorte de Celia ficar alarmada com o frio polar e comprar
um aquecedor portátil a gás no estilo de um forno provençal a lenha. Era feito
de espesso ferro batido e muito pesado, o botijão de gás discretamente
escondido dentro de seu corpo de ferro batido. Acho que, em tese, era para ele
se parecer com um antigo aquecedor a lenha numa grandiosa casa de fazenda
francesa do século XIX. Celia ligava-o no máximo em sua cozinha, junto com
o aquecimento central. Quando ela começou a descer para o almoço de short e
camiseta e se sentir mole e fraca demais para gritar com quem quer que fosse,
soube que ele precisava se mudar para o depósito. Era um aquecedor muito
pouco prático e possivelmente perigoso para um pequeno depósito, com o
freezer ressoando ali do lado. Primeiro achei que mandaria transportar o
impostor provençal ladeira acima até meu apartamento, mas os boilers
comunitários estavam agora se recuperando.
O clima no abrigo começou a se parecer com um úmido resort costeiro
nos trópicos. Comprei uma garrafa térmica para chá, que bebericava durante o
dia enquanto as chamas azuis tremeluziam e a neve caía na macieira. O
encanto da escrita, como eu a entendia, era um convite para penetrar no
intervalo entre a aparente realidade das coisas, ver não somente a árvore, mas
também os insetos que vivem em sua infraestrutura, descobrir que tudo está
conectado na ecologia da linguagem e da vida. “Ecologia”, do grego para “casa”
ou “relações entre seres vivos”. Não leva mais do que três meses de vida para
descobrir que estamos todos conectados à crueldade e à gentileza uns dos
outros.
O aquecedor estiloso me lembrava os aquecedores a gás mais feios que
usávamos para aquecer a sala de ensaio cheia de correntes de ar nos tempos em
que eu escrevia peças de teatro. Ensaiávamos durante muitas horas, fumávamos
um cigarro atrás do outro, bebíamos café instantâneo, depois íamos tropeçando
para casa, tarde da noite, com uma dor de cabeça insuportável. Quando
estávamos ensaiando uma peça que eu tinha escrito, intitulada As falsas
memórias de Macbeth, tínhamos um aquecedor a gás dinossáurico ligado. O
diretor havia feito o ator principal repetir um monólogo específico pelo menos
doze vezes. Ele fazia o papel de um empreendedor italiano, Lavelli, um avatar
de muitos dos temas que eu inseriria na minha ficção. Lavelli trabalhava
detectando notas e cartões de crédito falsificados. Mais tarde foi assassinado
por seu colega, um homem deprimido e emocionalmente insensível chamado
Bennet.
Numa terça-feira, alguns anos antes, eu tinha ido ao cinema com o pai
das minhas filhas ver o filme A. I. – Inteligência Artificial, de Steven Spielberg.
Sentamos um ao lado do outro no escuro, próximos mas separados. O filme era
sobre um menino-robô feito num laboratório, que era especial porque fora
programado para ser capaz de amar. Sua mãe adotiva ficou amedrontada com a
afeição do filho-robô e o abandonou na floresta. Milhares de anos mais tarde, o
menino-robô é descoberto no fundo de um rio congelado por estranhas e belas
criaturas que são vida artificial. Elas têm corpos altos e magros, similares aos
das figuras nas antigas pinturas das cavernas, e são muito respeitosas com o
menino-robô. Dão-se conta de que ele é seu último contato com os seres
humanos, porque foi um humano que o programou. Foi durante aquele filme
que eu soube que o nosso casamento tinha acabado. Também precisávamos
encontrar um menino-robô, porque ele tinha sido programado para amar. Ele
tinha dentro de si algo que precisávamos que estivesse dentro de nós.
Quando contei a Celia sobre Jean, ela disse, “Da próxima vez que ela te
assediar, diga-lhe que você já não é mais uma criança”. Fiquei levemente
chocada quando ela disse isso. Quando deixei sua cozinha naquela noite, após
o habitual copinho do melhor rum de Havana, ouvi-a sussurrar a algum dos
seus amigos “Não entendo por que ela usa pérolas para escrever naquele velho
depósito empoeirado”. Meu melhor amigo, que estava prestes a se casar pela
terceira vez, não conseguia entender por que eu não dizia a Jean que não me
enchesse mais o saco. Eu perguntei a ele o que ia usar no seu terceiro
casamento. Ele estava aparentemente tentado a ostentar um paletó amarelo
vivo que tinha visto numa butique em Carnaby Street.
“O que quer que você faça,” eu disse, “não chegue perto do amarelo.”
“Talvez”, ele respondeu, “eu pergunte à minha esposa o que ela acha. Aliás,
como andam as coisas? Já consertaram os Corredores do Amor?”
“Não, os corredores ainda estão aguardando serem restaurados. Fora isso,
aproveito cada dia. Minha vida está cheia com minhas filhas e seus amigos. Há
um bocado de gritos e tempestades hormonais por toda parte e portas batendo
regularmente e muitas contas. Aliás, sua nova esposa tem um nome?”
“Você sabe que o nome dela é Nadia”, ele disse.
Ele preparou uma omelete para nós dois e então, como marido em série,
quis saber mais sobre por que eu não nadara de volta ao barco furado que era
meu casamento.
“Ora, por que eu nadaria de volta a um barco que vai bater e afundar?”,
perguntei.
“Oferece proteção simbólica”, ele disse, espiando por entre os dentes do
garfo a aliança de ouro em seu dedo.
Na vez seguinte que Jean me parou em minha bicicleta, sorri de volta para
ela.
“Sabe, é muito pesado carregar todas essas coisas desde o estacionamento
dos fundos, e eu não sou mais uma criança.” Eu não podia acreditar que tinha
dito aquelas palavras naquele tom gentil e compreensivo. Jean piscou os olhos e
mentalmente engoliu mais cinco potes de mel. Então disse, “Bem, como você
está ocupada ocupada ocupada, já pensou em pedir ao supermercado para
entregar suas compras?”.
Fiquei obcecada por minha bicicleta elétrica. Eu tinha rodas. Certa noite
fui com ela a uma festa a pelo menos trinta quilômetros de distância. Zumbia
pelas ruas com meu vestido voando no vento atrás de mim. Era difícil não
gritar de alegria. Talvez minhas filhas e minha bicicleta elétrica fossem minha
única felicidade. Quando cheguei à festa, um homem alto de cabelo prateado
veio falar comigo. Disse-me que escrevia biografias militares, sobretudo acerca
da Primeira Guerra Mundial, e me pediu que lhe passasse um canapé.
Eu estava desamarrando os tênis para trocá-los pelos sapatos mais
glamourosos que tinha trazido comigo e ignorei seu pedido, embora pegar um
canapé numa bandeja de prata fosse moleza após todo o levantamento de peso
habitual.
Ele era alto e magro, provavelmente com seus sessenta e muitos anos, e
parecia desejar minha companhia. Falou sobre seus livros por algum tempo e
sobre como sua esposa (sem nome) não estava se sentindo bem, em casa. Não
me fez uma única pergunta, nem mesmo qual era meu nome. Aparentemente,
o que ele precisava era de uma mulher devotada e encantadora ao seu lado para
pegar canapés para ele e que entendesse que ele era a totalidade do assunto.
Com seu cabelo prateado e suas sobrancelhas prateadas, comecei a pensar nele
como o Prateado. Se ele saísse do personagem e me fizesse algumas perguntas,
o que eu efetivamente diria ao Prateado? Se ele perguntasse o obrigatório “E
então, o que você faz?”, suponho que pudesse botá-lo para correr dizendo a
verdade.
“Já que você perguntou, passei o dia de hoje metida com as dificuldades
de escrever com verbos no presente. É difícil permanecer interessado na
subjetividade de uma pessoa. Há truques para inserir outras subjetividades
nesse tempo verbal, mas é um desafio.”
Não, eu nunca começaria esse tipo de conversa com o Prateado. Estava
relendo os romances do início da carreira e vários ensaios e entrevistas de James
Baldwin, e seu título Ninguém sabe meu nome me ajudava a compreender por
que eu desaprovava o fato de meu companheiro de caminhadas jamais se
lembrar dos nomes das mulheres – a mesma coisa com meu melhor amigo
(também conhecido como Barba Azul), cujas esposas nunca eram citadas pelo
nome até ele se divorciar delas. Numa entrevista com Studs Terkel nos anos
1960, Baldwin, falando sobre racismo nos Estados Unidos, propusera um
desafio: “Para aprender seu nome, você vai ter que aprender o meu”. Sim,
pensei, o que eu realmente deveria dizer ao Prateado é algo como, “Você vai ter que
aprender meu nome para que eu possa aprender o seu”. Ele ficaria desconcertado.
Para ser honesta, eu estava desconcertada. Era misterioso. Simone de Beauvoir
descrevera O segundo sexo como uma exposição da “abrangência e intensidade e
mistério da história da opressão das mulheres”.
Era tão misterioso querer reprimir as mulheres. É ainda mais misterioso
quando mulheres querem reprimir mulheres. Só consigo pensar que somos tão
poderosas que precisamos ser reprimidas o tempo todo. Seja como for, como
James Baldwin me ensinara, eu tinha que decidir quem era e então convencer
todas as pessoas na festa de que aquela era quem eu era, mas infelizmente
naquela fase eu ainda estava tentando juntar coragem. Tinha que sobreviver às
minhas perdas e encontrar alguns rituais para celebrá-las.
Quando voltei para casa, passei uma hora na internet conversando com
Gupta, na Índia, sobre meu Microsoft Word defeituoso.
Quando olhei em seguida para a caixa de bate-papo, Gupta tinha escrito
Não se preocupe. Eu estou aqui para te ajudar.
Por algum motivo, a palavra eu na tela estava piscando e saltando e
tremendo.
Era assim que eu me sentia também.
7
A escuridão preta e azulada
Certa tarde, fui do depósito onde escrevia a uma reunião sobre a possível
venda dos direitos de um dos meus romances para o cinema. Eu devia ter ido
de metrô, mas de algum modo minha bicicleta parecia particularmente
sedutora, alta e forte sob a macieira. Em Mornington Crescent, fui obrigada a
virar a bicicleta de cabeça para baixo no asfalto e consertar a corrente, que
tinha emperrado.
Minhas mãos ficaram cobertas de graxa, e eu tive que entrar numa birosca
asiática, comprar uma xícara de chá verde e então lavar minhas mãos no
banheiro; não havia espelho, nem sabão, nem água quente. Era muito
importante não chegar atrasada àquela reunião. Havia viagens com a escola a
pagar e a conta do gás e também o terror do meu computador começando a
fazer estranhos estalos quando se recusava a desligar.
Sim, meu jardim iluminado pelo sol da Califórnia seria cheio de pássaros
coloridos cantarolando. O relógio de pássaros no meu apartamento em
Londres era apenas um ensaio para aquela realidade. No fim do dia, destroçada
pela busca de técnicas para arrastar o passado ao tempo verbal do presente sem
um único flashback, eu nadaria à luz da lua com o meu escolhido – enquanto
todos os personagens secundários e principais no meu roteiro de cinema
aguardavam pacientemente que eu os saudasse pela manhã. O meu escolhido
era um personagem secundário ou principal? Principal, obviamente. E onde
estavam minhas filhas? Ah, não! Elas estariam crescidas, vivendo suas próprias
vidas, temendo um telefonema da mãe – É ela, está na Califórnia.
E o que eu poderia dizer às minhas filhas? “Hum, não sou como essas
mães que viveram através de vocês, não não, de jeito nenhum. Tenho um
personagem principal na piscina comigo. Estou levando uma vida plena e
excitante. Aliás, o que vocês vão fazer no Natal? Sabem que aqui o clima é
tropical ?”
Entrei no Tesco Express e comprei um frango para assar para minha filha
e suas amigas. Acabei comprando também um único galhinho de alecrim num
saquinho selado.
Separar-se do amor é viver uma vida livre de riscos. Qual o sentido desse
tipo de vida? Enquanto eu pedalava minha bicicleta elétrica através do parque a
caminho do depósito onde escrevia, minhas mãos tinham ficado azuis de frio.
Eu desistira de usar luvas porque estava sempre tateando no escuro em busca
das chaves. Parei junto à fonte, só para descobrir que havia sido desligada. Uma
placa da administração dizia, Esta fonte foi invernada.
Acho que era o que tinha acontecido comigo também.
E quanto aos homens que, assim como Algren, queriam um lar, filhos e
amor? No meu hotel em Boston, eu tinha visto de relance um homem sentado
com sua companheira na mesa de um café dando para o porto. Ele estava
apaixonado por ela, era atencioso e delicado e gentil. Ela havia tirado as
sandálias e o casaco e os óculos escuros e a pulseira de ouro do punho.
Enquanto ele pressionava os lábios na pele reluzente de seus braços nus, ela
olhava para longe e então saiu andando, afastando-se dos lábios dele e do sol.
Depois de um instante, ele recolheu suas sandálias, a pulseira, os óculos escuros
e a bolsa, sua própria câmera, o protetor solar, o telefone e caminhou até a
mesa na sombra. Algo ou alguém em sua vida tornara-o corajoso o suficiente
para carregar aquilo tudo e dar todos aqueles beijos. Se ele a queria mais do que
ela a ele, como ela começaria essa conversa de uma forma que não destruísse a
coragem dele?
E eu adoro a chuva.
Agora que os pássaros já não gritavam por cima de sua própria e poderosa
voz, a aluna me disse que era difícil reivindicar aquela força. Assustava-a.
Quando eu lhe disse que acreditava que ela possuía uma abundância de
talento, ela começou a chorar. Então disse, “Desculpe, ainda não tomei o café
da manhã”. Remexeu na mochila e tirou dali duas pequeninas samosas. Quando
abriu o guardanapo em que estavam embrulhadas e o usou para enxugar os
olhos, estava nervosa, e suas mãos tremiam um pouco. Mais tarde naquele dia,
vi que ela deixara as samosas na mesa do meu escritório. Tive que descer dois
lances de escadas para encontrá-la e, quando as coloquei em sua mão, ela olhou
para mim e disse, “Ah, mas eu deixei para você”.
“Bem, obrigada”, respondi. “Mas você não tem que me dar nada por eu te
informar que você é um gênio.”
O jardineiro que vinha uma vez por mês cuidar da macieira e das plantas
era um ator de seus cinquenta e poucos anos. Tinha uma voz profunda e
relaxante e olhos muito azuis. Com frequência, falávamos de livros que
estávamos lendo e de seus vários trabalhos como ator e de por que ele escolhera
profissões tão precárias. Ele parecia preocupado que o depósito fosse um lugar
desconfortável e austero para se trabalhar no inverno. Às vezes pegava um maço
de ervas e flores de inverno no jardim e trazia para mim no depósito. Eu não
podia lhe dizer que eram as flores que disparavam algumas das mais dolorosas
memórias da minha antiga vida. Como pode uma flor inflamar uma ferida?
Pode, e é o que acontece se for um portal para o passado. Como pode uma flor
revelar informações sobre personagens secundários e principais? Pode, e é o que
acontece. Como pode uma flor se parecer com um criminoso? Para o escritor e
criminoso Jean Genet, o uniforme listrado dos condenados recordava flores.
Tanto as flores quanto as bandeiras devem falar muito por nós, mas não tenho
certeza de saber o que estão dizendo.
Um jardineiro é sempre um futurista com uma visão de como uma planta
pequena e humilde vai brotar e resplandecer com o tempo. Será que os
futuristas têm flashbacks ou só flash-forwards? Eu gostava de pensar que o
passado, tal como o experimentava, teria o mesmo fim de Ziggy Stardust. Eu o
mandava embora e ele voltava dos mortos com inúmeras roupas incríveis. Sim,
eu estava com Ziggy e estava com Kierkegaard em todos os sentidos: “A vida só
pode ser compreendida de frente para trás, mas deve ser vivida de trás para a
frente”.
Em nossas várias pausas da escrita e da jardinagem, ele me levava para ver
os diferentes tipos de menta que estava cultivando em vasos, ou explicava por
que estava podando a macieira de forma tão severa. Eu tinha me afeiçoado
àquela árvore, em especial por causa da forma inspiradora com que os esquilos,
correndo tronco acima e tronco abaixo, viravam-se de repente para mim
enquanto eu estava sentada sozinha no depósito. Embora parecessem
alarmados, sabiam que eu estava ali antes de se virarem para olhar. Esse havia
sido meu tema em Coisas que não quero saber, livro no qual especulava que as
coisas que não queremos saber são as coisas que sabemos de todo modo, mas
não queremos olhar muito de perto. Freud descreveu como esquecimento
motivado esse desejo de desconhecer aquilo que conhecemos.
Alegrava-me compartilhar aquele jardim com os esquilos. Eu havia
passado duas décadas procurando plantas que fossem acolhedoras a pássaros e
abelhas e borboletas na casa da nossa família, mas naquele momento de
ruptura só queria uma mesa onde escrever e uma cadeira na solidão da minha
cabana.
Aquele jardineiro tinha o dom de parecer dar a todas as pessoas com
quem falava toda a sua atenção, como se estivesse cuidando de uma planta,
avaliando como ela responderia ao clima, ao solo, à coexistência com outras
plantas. Eu podia ver, pelo seu intenso olhar azul, que ele era um ator. Sentia-se
curioso acerca de tudo e de todos. A arte dramática é uma estranha ocupação
em que o ator passa a residir dentro de outra pessoa.
Ainda tento fazer seu truque, mas só consigo flutuar por dez segundos
antes de começar a afundar. Do mesmo modo, quando dirijo a mente à morte
da minha mãe, só consigo fazer isso por dez segundos antes de começar a
afundar.
Guardei uma foto da minha mãe na altura dos seus vinte e muitos anos.
Ela está sentada numa pedra, num piquenique com amigos. Seu cabelo está
molhado porque acabara de nadar. Há uma introspeção em sua expressão que
agora relaciono ao que havia de melhor nela. Posso ver que está próxima a si
mesma nesse momento aleatório. Não tenho certeza de achar que a
introspecção era o que havia de melhor nela quando eu era criança e
adolescente. Para que precisamos de mães sonhadoras? Não queremos mães
cujo olhar se perca para lá de nós, desejosas de estar em outra parte. Queremos
que ela seja deste mundo, vivaz, capaz, inteiramente presente para as nossas
necessidades.
Quando eu era adolescente, a maioria das discussões com minha mãe era
por causa de roupas. Ela ficava perplexa com aquilo que havia dentro de mim e
que se expressava do lado de fora. Não conseguia mais me alcançar ou me
reconhecer. E era precisamente esse o objetivo. Eu estava criando uma persona
que fosse mais corajosa do que eu de fato me sentia. Arriscava-me a ouvir
zombarias nos ônibus e nas ruas dos subúrbios onde morava. A mensagem
secreta à espreita no zíper das minhas botas de plataforma prateadas era que eu
não queria ser como as pessoas que estavam zombando de mim. Às vezes
queremos despertencer tanto quanto queremos pertencer. Num mau dia,
minha mãe me perguntava, “Quem você pensa que é?”. Eu não tinha ideia de
como responder a essa pergunta aos quinze anos de idade, mas estava em busca
do tipo de liberdade que uma jovem mulher dos anos 1970 não possuía
socialmente. O que mais havia para fazer? Tornar-se a pessoa que outro alguém
imaginou para nós não é liberdade – é empenhar nossa vida ao medo de outra
pessoa.
Se não podemos pelo menos imaginar que somos livres, estamos levando
uma vida que é errada para nós.
Minha mãe foi mais corajosa em sua vida do que eu jamais tinha sido.
Escapara da família protestante de classe alta, branca e anglo-saxã que amava e
se casara com um historiador judeu sem um centavo. Envolveu-se com ele na
luta pelos direitos humanos na África do Sul da sua geração. Inteligente,
glamourosa e sagaz, ela não chegou à universidade na altura dos seus vinte e
poucos anos. Ninguém achava necessário lhe dizer que tinha uma abundância
de talento. Esperava-se que as mulheres da sua classe social se casassem assim
que saíssem de casa ou depois de seu primeiro emprego. Que deveria ser um
emprego qualquer e não uma carreira séria. Minha mãe aprendeu a
datilografar, aprendeu estenografia e a usar roupas que agradavam aos seus
chefes. Desejava ter sido uma secretária menos talentosa, mas foi sua rapidez na
datilografia que alimentou e vestiu seus filhos quando meu pai se tornou
prisioneiro político. Ela me deu muito trabalho, além do esperado para uma
filha obediente, mas agora vejo que eu não queria deixar que ela fosse ela
mesma, para o bem ou para o mal.
Nas últimas semanas do processo da sua morte, ela não conseguia comer
ou beber água. Descobri, porém, que conseguia lamber e engolir uma marca
específica de picolé. Vinha em três sabores – limão era o seu favorito, depois
morango, e por último a temida laranja. O inverno não era a melhor época
para essa marca específica de picolé estar disponível nas lojas, mas encontrei
um estoque deles no freezer do quiosque local de jornais e revistas, de
propriedade de três irmãos turcos. Eles com frequência vendiam cogumelos
numa caixa colocada sobre a tampa de um freezer comprido e baixo,
posicionado no meio da loja. Também havia sobre a tampa bilhetes de loteria,
produtos de limpeza em promoção, latas de refrigerantes, graxa para sapato,
pilhas e doces. Dentro desse freezer estavam os picolés que eram o único
conforto da minha mãe enquanto morria. Naquela época, eu estava tão
devastada por meu casamento naufragado e pelo diagnóstico do câncer da
minha mãe, ocorridos em menos de um ano um do outro, que não conseguia
explicar aos irmãos turcos por que comprava picolés todos os dias em fevereiro.
Chegava com a cara abatida, os olhos sempre úmidos, a bicicleta parada do
lado de fora. Sem dizer uma palavra, começava a retirar os cogumelos, os
bilhetes de loteria, produtos de limpeza em promoção, latas de refrigerantes,
graxa para sapato, pilhas e doces e colocava de um dos lados do freezer. Então,
deslizava a porta para abri-la e procurava os picolés – um triunfo quando
encontrava os de limão, bom se encontrasse os de morango, aceitável quando
encontrava os de laranja. Sempre comprava dois, e então pedalava até o
hospital ao pé da ladeira onde minha mãe estava morrendo.
Sentava-me perto da sua cama e segurava o picolé junto aos seus lábios,
satisfeita ao ouvir seus “oohs” e “aahs” de prazer. Ela estava sempre com uma
sede insaciável. Havia uma geladeira em seu quarto, mas não um freezer, então
o segundo picolé derretia, mas meu ritual era sempre comprar dois. Olhando
retrospectivamente para isso, não sei por que não comprei todos os picolés no
quiosque e coloquei no meu próprio freezer, mas de algum modo isso não me
ocorreu naquele momento difícil. Então, um dia, algo terrível aconteceu no
esquema dos picolés. Como de hábito, pedalei até o quiosque, varri para o lado
tudo o que estava sobre a tampa do freezer e, observada pelos perplexos irmãos
turcos, deslizei a porta do freezer. E eis que havia um quarto sabor. Os irmãos
estavam sem limão, morango e mesmo a temida laranja. Ergui os olhos do
freezer, fitando diretamente os olhos castanhos e gentis do irmão mais novo.
“Por que vocês só têm sabor chiclete?”, comecei a gritar – por que alguém
se daria ao trabalho de fazer um picolé de chiclete e ainda por cima vendê-lo?
Qual era o sentido, e será que eles poderiam se reabastecer com urgência dos
outros sabores, particularmente limão?
O irmão não gritou de volta. Só ficou ali parado num silêncio perplexo
enquanto eu comprava, irritada, dois picolés sabor chiclete. A sensação era de
catástrofe enquanto eu pedalava até o hospital, e de fato era uma catástrofe,
porque eles eram mais ou menos as únicas coisas que manteriam minha mãe
viva por mais um dia.
Tentei mais algumas lojas no caminho do hospital, mas nenhuma delas
tinha em estoque a marca que era fácil de engolir. Então me sentei junto ao
leito da minha esquelética mãe, abri o picolé de chiclete e levei-o até os seus
lábios. Ela lambeu, fez uma careta, tentou de novo e então sacudiu a cabeça.
Quando lhe contei como esbravejara feito louca na loja, uns pequenos ruídos
saíram de sua boca, seu peito subindo e descendo. Eu sabia que ela estava
rindo, e essa é uma das minhas memórias preferidas de nosso último dia juntas.
Naquela noite, quando lia um livro junto ao seu leito, olhei com remorso para
o picolé de chiclete derretendo numa poça cor-de-rosa na pia. Eu não lia de
verdade, só passava os olhos pela página, mas me reconfortava estar perto dela.
Quando o médico veio até o quarto fazer sua última visita, minha mãe
levantou a mão magra e, de algum modo, conseguiu fazer com que o fiapo de
voz que tinha a essa altura soasse imperioso e autoritário: “Arranje uma luz.
Minha filha está lendo no escuro”.
Até hoje aquela xícara marca a partida da minha mãe do mundo. Nunca
disse a ele que às vezes, quando escrevo, faço café turco numa pequena chaleira
de cobre, sirvo exatamente nessa xícara e então cubro com a tampa de prata.
Tornou-se parte do meu ritual de escrita. Beber café forte e aromático da meia-
noite até as altas horas da madrugada sempre traz algo interessante para a
página. Eu me tornei uma andarilha noturna sem sair da cadeira onde escrevo.
A noite é mais suave do que o dia, mais quieta, mais triste, mais calma, o som
do vento batucando nas janelas, o assoviar dos canos, a entropia que faz as
tábuas do piso estalarem, o fantasmagórico ônibus noturno que vem e vai – e
sempre, nas cidades, um som muito distante que lembra o mar mas é somente
a vida, mais vida. Dei-me conta de que era o que eu queria após a morte da
minha mãe. Mais vida.
De algum modo, achei que ela morreria e continuaria viva. Gostaria de
pensar que ela está em algum lugar naquele som distante que lembra o mar
onde ela me ensinou a nadar, mas ela não está ali. Ela se foi, deslizou para
longe, desapareceu.
Alguns meses depois da sua morte, eu lia passagens de Coisas que não
quero saber num festival em Berlim. A tradutora estava sentada ao meu lado.
Combinamos que eu leria três linhas em inglês e ela traduziria aquelas três
linhas para o público alemão. Comecei a ler e então cheguei a uma passagem
em que tenho sete anos e estou deitada nos braços da minha mãe. Era um
choque que eu não havia previsto, um encontro fantasmagórico.
Após minha leitura em Berlim, estava sentada com minha editora alemã
do lado de fora da tenda dos autores. Ela tinha uma pergunta para me fazer.
“Quando você lê em voz alta, é uma atriz?”
Referia-se ao modo altamente emocional com o qual aquelas linhas
haviam por fim sido lidas para o público. Era minha oportunidade de explicar
que minha mãe tinha morrido recentemente e como era um choque
reencontrá-la nas páginas do meu livro. Mas não disse isso. Não disse nada.
Então, os irmãos turcos foram mais bem-sucedidos do que a minha editora.
“Você está muito pálida”, ela disse. Eu também não sabia como responder
a isso.
Depois de um tempo, apontei para um quiosque na área do festival
vendendo currywurst e contei a ela que queria escrever sobre um personagem,
um personagem masculino principal, que ficaria parado junto a um quiosque
de currywurst na neve de Berlim, esperando por alguém que ele havia traído.
“Currywurst não é um prato romântico”, ela me interrompeu.
“Sim,” respondi, “mas o amor é como a guerra: sempre encontra um
caminho.”
À
fim cedi. Ele mais ou menos sabia para onde estava indo. Às vezes seu novo
amante, Geoff, se juntava a nós no trajeto. Uma outra vez, havia uma estranha
sentada no carro. Era a mulher de cabelo preto e comprido, Clara, que estava
sentada no sofá de veludo vermelho na festa. Era colega dele, uma acadêmica
da América do Sul que estava de licença no Reino Unido com uma bolsa de
pesquisa. Eu não sabia ao certo por que Clara estava no carro conosco, mas ela
parecia gostar do passeio. Quando ficamos presos no tráfego, ela pegou a
caneta e começou a escrever alguma coisa num pedaço de papel. Parecia
levemente atormentada, como se estivesse tentando desenredar um
pensamento difícil, então olhei por cima do seu ombro a fim de ver o que
escrevia.
O homem que tinha chorado no funeral me disse que Clara era uma
professora ilustre e que seus alunos não chegavam na hora para suas aulas,
chegavam mais cedo. Ela estava pesquisando levantes populares contra elites
militares e burocráticas. Por acaso, Clara gostava de nadar todos os dias.
Concordamos que podíamos nadar juntas, mas só se uma não falasse com a
outra na água. Desembarcamos em várias piscinas em Londres e descobrimos
que tínhamos muito o que conversar entre as rodadas de crawl. Ela trançava o
cabelo quando nadava. Quando perdeu seu anel de turquesa na água, pediu ao
salva-vidas que esvaziasse a piscina. Ele achou que ela estava brincando, mas ela
falava sério. No fim, encontramos seu anel ao lado da piscina, onde ela o havia
deixado metido dentro de seu livro. Nosso chofer estava sempre ali para nos
buscar depois, toalhas molhadas enroladas debaixo dos nossos braços. Íamos
almoçar em pubs e caminhávamos nos parques de Londres. Era primavera e os
dentes-de-leão despontavam em meio à grama. Em certo sentido, ter um
chofer era como ter um pai ou mãe, mas sem a história.
Uma jovem sentou-se ao meu lado, uns dezessete anos, o cabelo pintado
de azul. Estava plugada, com fones de ouvido ligados ao laptop, aprendendo
francês com um programa básico de línguas. Pedia-lhe que repetisse em voz
alta as palavras ditas por uma voz de robô falando francês. Ela obviamente não
podia dizer as palavras em voz alta no nosso vagão, mas seus lábios, com um
pequeno piercing de prata, moviam-se enquanto ela sussurrava verbos e
substantivos. Olhei de relance para sua tela em nossa mesa compartilhada e vi
uma nota que lhe dizia que o francês tinha dois gêneros gramaticais, masculino
e feminino; uma mulher era feminino, mas uma cadeira também era, enquanto
cabelo era masculino.
Ela havia trançado seu cabelo azul para a viagem, duas tranças, as pontas
presas com fitas nas quais havia pequenos botões de rosa de algodão
costurados. Era um cabelo muito expressivo. Ela me dissera que era de Devon
e, quando lhe perguntei onde em Devon, ela disse, “O campo”.
Quando o Eurostar chegou à estação internacional de Ashford, a última
parada antes de atravessar o túnel debaixo do mar, um homem de seus setenta e
poucos anos sentou-se no assento diante de nós. Perguntou à adolescente se ela
se importava de mudar o computador de lugar para que ele tivesse mais espaço
na mesa. Ela o transferiu para o colo. Era um pequeno reajuste do espaço, mas
o resultado significava que ela se removera completamente da mesa para abrir
espaço para o jornal, o sanduíche e a maçã dele.
Um aviso foi feito em inglês e depois em francês para nos dizer que
estávamos prestes a entrar no túnel. Houve mais informações em duas línguas.
Viajaríamos sob o mar por 38 quilômetros e isso levaria catorze minutos.
Sua mãe, que hoje já está morta, cortou sua franja torta com tesoura de
unha. Ela sou eu e está andando no trem em direção à casa da minha família,
em direção à minha antiga vida. Minha vida de casada. O endereço está escrito
em seu braço, ainda bronzeado, embora ela já more na Inglaterra há dois
meses. Usa um vestido de verão e está descalça. Parou obedientemente no robô
vermelho, que aprendeu a chamar de traffic light na Inglaterra, assim como
molho de tomate se chama ketchup e uma batata frita é um crisp. Ela pede
informações em seu sotaque estranho. As pessoas são gentis. Ela sorri o tempo
todo, é encantadora e bonita. Seus olhos são verdes, suas sobrancelhas são
pretas. Há pessoas gentis o suficiente para lhe indicar o caminho correto.
Algumas estão surpresas por ela não usar sapatos, mas sempre que possível ela
anda sem sapatos. Encontra a rua que sai da Holloway Road perto do
Whittington Park. Está procurando a casa vitoriana onde o seu eu de meia-
idade, agora na altura dos quarenta e poucos anos, fez um lar para sua família.
Quando bate à porta da casa vitoriana, uma mulher grita, Quem é você?
Seu sotaque é inglês, sua voz é profunda.
Sou você, a garota grita de volta com um forte sotaque sul-africano.
A chuva continua caindo na criança presa do lado de fora da porta do seu
eu mais velho, inglês mais ou menos assimilado, que se esconde covardemente
do outro lado da porta. O que vai acontecer se ela convidar essa menina de
nove anos para entrar na casa com seu encanamento vitoriano e suas filhas
inglesas, uma com doze anos, a outra com seis, ambas assistindo a The Great
British Bake Off na tevê da sala?
A menina estrangeira é obstinada e não vai embora. Ela tem cheiro de
outro lugar. De plantas que cresceram no solo africano, das quentes calçadas de
cimento depois de uma tempestade, de quando se tira a casca grossa das lichias.
Tem a luz do sol na ponta do cabelo, só nadou em oceanos nos quais foram
colocadas redes para deter os tubarões, chorou com a visão da caixa de correio
onde postou cartas para o pai. Durante os quatro anos em que ele foi
prisioneiro político na luta pela democracia no sul da África, ela ficou
praticamente muda por um ano de sua vida, mas agora, ousada, está
esmurrando a porta. Quando esta por fim se abre, ela entra. Seus pés molhados
e úmidos deixam uma trilha no corredor. Ela vira à esquerda para ir à sala e
pula no sofá com as crianças inglesas. São as filhas que dará à luz na altura dos
seus trinta e poucos anos.
Eles vão viver juntos por mais de duas décadas nessa casa. Então seu
casamento, em vez de vergar, vai se quebrar. Eles vão guardar todos os
apetrechos de culinária e tirar o relógio da parede da cozinha.
A vida só vale a pena ser vivida porque esperamos que ela vá melhorar e que
vamos todos chegar em casa com segurança.
12
O começo de tudo
Meu melhor amigo estava agora casado pela terceira vez. Ele havia
insistido em comprar, para usar no casamento, o paletó amarelo ao qual eu
agora me referia como seu Papel de Parede Amarelo. No livro de mesmo título,
escrito por Charlotte Perkins Gilman, uma esposa tenta fugir de seu marido e
de sua vida através do papel de parede amarelo da casa da família.
Certa noite, meu melhor amigo chegou ao meu apartamento, sem ter sido
convidado, às onze horas da noite, usando esse paletó que, peculiarmente,
ainda tinha o alfinete com que ele prendera o ramalhete de centáureas-azuis na
lapela. Ele não parecia querer ir para casa. Por volta da meia-noite, estávamos
de pé na sacada do meu malconservado prédio na ladeira quando vimos
alguma coisa voando em nossa direção. No início não conseguimos descobrir o
que era, então vimos que não era uma coisa, e sim três. Eram aves. Quando
pousaram no parapeito da sacada, ele começou a tossir, uma tosse bastante
seca, mas isso não pareceu assustá-las. As aves tinham virado a cabeça para o
lado, como se estivessem olhando na outra direção, mas sabíamos que nos
fitavam. Quando nos inclinamos mais para perto a fim de ver as penas da
crista, achamos que talvez fossem papagaios. Não gostavam de ser observadas
tão abertamente, na verdade isso parecia perturbá-las mais do que o som da
tosse seca dele. A ave mais magrinha começou a puxar as próprias penas, o que
nos deixou desconfortáveis, então decidimos voltar para dentro e procurá-las
na internet.
Enquanto eu pegava meu laptop, confessamos que, quando vimos as aves
vindo em nossa direção, inicialmente todo tipo de ideia nos ocorrera.
Pensamos que poderiam ser drones ou mesmo mísseis. Abri o laptop e comecei
a buscar os papagaios no Google. Ele se sentou ao meu lado, cotovelos na
mesa, servindo mais vinho, nossos olhos na tela.
“Sabe,” eu disse, “este ano está cheio de pássaros. Não sei o que está
acontecendo. Tudo começou com meu relógio de pássaros.”
Aparentemente, havia colônias de papagaios selvagens vivendo em
Londres. Chegamos à conclusão de que as aves se pareciam mais com cacatuas.
Gostavam de comer pequenos lagartos, sementes, frutas, raízes e vegetais.
Voltamos à sacada para dar mais uma olhada nelas. A ave no fim da fila, a
magrinha que estava antes puxando as próprias penas, tinha agora trocado de
lugar com a mais rechonchuda, no meio. As penas amarelas em suas asas
combinavam com a foto das cacatuas que acabávamos de estudar na tela.
Achamos que devíamos alimentá-las, então cortamos uma maçã e uma banana
e colocamos as frutas na mesinha redonda sob o parapeito. Elas não pareceram
interessadas, então viramos as costas e entramos para terminar a garrafa de
vinho.
Ele ergueu a taça. “Um brinde ao fato de nos conhecermos por todos esses
anos e à nossa longa amizade.”
Toquei minha taça na sua.
“A quando tínhamos quinze anos e éramos imortais”, ele continuou. “E
aos nossos pobres pais, que deixávamos tão ansiosos o tempo todo. E à nossa
recuperação dos golpes dos últimos anos. Já não estamos só ralados. Na
verdade estamos machucados.”
O telefone dele recebia mensagens.
“Deve ser Nadia”, eu disse.
“Não, não é minha esposa”, ele afirmou. “É um robô vendendo seguro.
Nadia não se importa em saber onde eu estou. Eu a entedio, nada do que digo
lhe interessa. Ela aparentemente sempre sabe o que estou prestes a dizer e se
incomoda em ter que tolerar o tempo que levo para dizê-lo. Na verdade, ela
mal pode olhar para mim, está sempre muito ocupada e parece sentir repulsa
pelo meu corpo também.”
“Você deveria ir para casa”, eu disse.
“Não,” ele agora gritava, “você não está escutando. Já não me sinto mais
bem-vindo na minha própria casa.”
“Sinto saber disso.”
“Não, não, você não entende,” seus dedos puxavam o que restava de seu
cabelo, “‘eu a amo, e isso é o começo e o fim de tudo’.”
Ele me disse que era uma citação de F. Scott Fitzgerald.
“Na verdade, não sou uma pessoa assim tão incrível, mas também não sou
o pior partido. Você concorda?”
Eu disse que concordava. E, pelo que me dizia respeito, ele era um
personagem principal na minha vida.
“O que você quer dizer com personagem? Não sou um personagem.”
Eu lhe contei que os executivos do filme tinham me pedido para fazer
uma lista de personagens secundários e principais.
“Na verdade,” eu disse, “você é um personagem principal secundário.”
“O quê? Fui rebaixado?”
“Sim.”
Eu podia ver a ele e a Nadia numa paródia de um filme de Jean-Luc
Godard, ambos sussurrando num café junto a uma estação de trem, revezando-
se para transmitir à câmera (num fragmentado voice-over) como tudo era tão
impossível e como seu fracasso em comunicar seu amor só aprofundava sua
solidão e como eles se sentiam esmagados pelo desprezo um do outro.
Estou infeliz com você e estou infeliz sozinho.
O problema, do ponto de vista de um roteirista, era que ele jamais
poderia ser um personagem principal de Godard, porque seus dentes eram
demasiadamente brancos e ele não era pensativo o suficiente para fazer um
longo monólogo interno.
“Não sou assim tão inteligente, é verdade”, ele disse. “Nadia também me
acha intelectualmente deficiente. Ela é muito mais inteligente do que eu. Mas
seja como for,” ele pegou minha mão e a beijou feito um gigolô de
antigamente, “não quero esfregar sal na ferida, mas estar sozinha não combina
com você tanto quanto você pensa.”
Fiz café turco e servi em duas xicrinhas.
Seria verdade que estar sozinha não combinava comigo? Na minha antiga
vida eu às vezes parecia irreal a mim mesma. O que irreal queria dizer?
Se eu em algum momento me sentisse livre o bastante para escrever
minha vida tal como a sentia, será que o objetivo seria me sentir mais real? O
que exatamente eu buscava? Não era mais realidade, isso com certeza.
Certamente não queria escrever o personagem principal feminino que sempre
fora escrito para Ela. Estava mais interessada num personagem principal
feminino ainda não escrito.
Podíamos ouvir as aves através das paredes quando o telefone dele recebeu
outra mensagem.
Dessa vez ele achava que era o recibo do seu Uber.
“Você veio de Uber?”
“Sim.”
“Por que não vai para casa de Uber?”
“Vou chamar um táxi.”
Ele tirou o paletó amarelo e se deitou de costas no chão, mãos atrás da
nuca, fitando o teto. Eu me deitei no sofá, tirei os sapatos com um chute e
estiquei as pernas. Era divertido ficar à toa com alguém no fim do dia. Não ter
que falar ou pedir ao outro para levar o lixo ou consertar algo que estava
quebrado ou discutir sobre nossos filhos (embora com frequência fizéssemos
isso) e saber que verdadeiramente desejamos o melhor um para o outro – e não
o pior. Devo ter cochilado, porque acordei com algo roçando no meu rosto.
Primeiro achei que as aves tinham voado para dentro do apartamento, mas era
só um fiapo solto do sofá. A campainha, agora consertada, estava tocando. Era
Nadia, alta e majestosa, envolta num pesado casaco de inverno.
“Ele está aqui?”
“Sim.”
“São quatro horas da manhã”, ela disse. “Ele tem que ir buscar meu pai
em Heathrow às oito.”
Eu lhe disse para entrar e ela olhou de relance para o marido adormecido
no chão. Cutucou a barriga dele com a ponta da bota e apertou o couro com
firmeza até que ele abrisse os olhos.
“Olá, Nadia.” Ele estendeu os braços para que ela pudesse ajudá-lo a se
levantar do chão. Ela não aceitou o convite e ele ficou ali encalhado, com os
braços esticados, enquanto as mãos dela permaneciam nos bolsos do grande
casaco de inverno.
A imagem ficou comigo por um bom tempo.
Falo com minha mãe pela primeira vez desde sua morte. Ela está
escutando. Eu estou escutando. Isso faz toda diferença. Digo-lhe que estou
escrevendo um romance sobre uma mãe e uma filha. Um longo silêncio. Como
você está, mãe minha, onde quer que esteja? Espero que haja corujas por perto.
Você sempre adorou as corujas. Sabe que alguns dias depois da sua morte,
enquanto eu espiava as coisas numa loja de departamentos em Oxford Street,
vi um par de brincos em formato de coruja com olhos verdes de vidro. Fui
subitamente invadida por uma felicidade inexplicável. Vou comprar estes brincos
para minha mãe.
Encontrei-me com o pai das minhas filhas para discutir o Natal. Era o
segundo Natal desde que nos separamos, embora tenhamos caminhado lado a
lado, juntos mas separados, por muitos anos. Falamos sobre o cardápio e quem
ia cozinhar o que naquele dia, e compartilhamos ideias para os presentes das
nossas filhas. Estávamos num café desses de franquia, sentados em poltronas de
couro marrom, um de frente para o outro. Uma canção de Joni Mitchell tocava
nos alto-falantes. Falava sobre odiar e amar alguém, mas fingimos não reparar.
Quando uma mulher tem que encontrar uma nova forma de viver e
rompe com a história social que apagou seu nome, espera-se que tenha um
ódio doentio por si mesma, que esteja enlouquecida de sofrimento, lacrimosa
de remorso. Essas são as joias reservadas para ela na coroa do patriarcado,
sempre ali ao alcance da mão. Há lágrimas o bastante, mas é melhor caminhar
pela escuridão preta e azulada do que tentar alcançar essas joias inúteis.
Marguerite Duras sugeriu, num devaneio que lhe veio na calma de sua
última casa, uma casa que ela criara para agradar a si mesma, que “a escrita
chega como o vento”.
É nua, é de tinta, é a escrita, e passa como nada mais passa na vida, nada
mais, exceto ela, a vida.
(Relicário, 2021)
A escrita que você está lendo agora é feita de custo de vida, e é feita com
tinta digital.
Bens imobiliários (Trilogia Autobiografia Viva,
vol. 3)
Levy, Deborah
9786559282272
192 páginas