Gloria Ladson-Billings

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PARA ALÉM DE UMA EDUCAÇÃO MULTICULTURAL:

TEORIA RACIAL CRÍTICA, PEDAGOGIA CULTURALMENTE


RELEVANTE E FORMAÇÃO DOCENTE (ENTREVISTA
COM A PROFESSORA GLORIA LADSON-BILLINGS)

LUÍS ARMANDO GANDIN*


JÚLIO EMÍLIO DINIZ-PEREIRA**
ÁLVARO MOREIRA HYPOLITO***

RESUMO: O presente texto traz a entrevista da Professora Gloria


Ladson-Billings, da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos.
Nessa entrevista, a professora Ladson-Billings analisa conceitos como o
de ‘teoria racial crítica’ e ‘pedagogia culturalmente relevante’, mostra a
importância desses conceitos para a superação de modelos conservado-
res de Educação Multicultural, bem como discute os desafios que ainda
precisam ser enfrentados no campo do currículo e da formação docen-
te, principalmente em relação às questões raciais. Finalmente, ela fala a
respeito do que conhece sobre a realidade educacional brasileira e de
como o Brasil poderia participar de um movimento de construção de
uma consciência racial crítica mundial.
Palavras-chave: Teoria racial crítica. Pedagogia culturalmente relevante.
Educação multicultural. Formação docente.

BEYOND MULTICULTURAL EDUCATION: CRITICAL RACE THEORY,


CULTURALLY RELEVANT PEDAGOGY AND TEACHER TRAINING
(INTERVIEW WITH PROFESSOR GLORIA LADSON-BILLINGS)
ABSTRACT: In this interview, Professor Gloria Ladson-Billings analyzes
the concepts of ‘critical race theory’ and ‘culturally relevant pedagogy’,
emphasizes the importance of these concepts in the process of overcoming

* Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail:


[email protected]
** Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected]
*** Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: [email protected]

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conservative models of multicultural education, and discusses the
challenges for those working in the field of curriculum and teacher
education, especially when they deal with the issue of race. Finally, she
comments on her knowledge of the Brazilian educational reality and
argues that Brazil should participate in a movement for the creation of a
global critical race consciousness.
Key words: Critical Race Theory. Culturally Relevant Pedagogy.
Multicultural Education. Teacher Training.

Apresentação

N esta entrevista, a professora Gloria Ladson-Billings aborda temas


importantes para a superação de modelos conservadores de
Educação Multicultural. Conceitos tais como o de ‘teoria racial
crítica’ e ‘pedagogia culturalmente relevante’ são centrais em sua argumen-
tação sobre a necessidade de se teorizar a questão racial em educação.
Ladson-Billings também discute as relações raciais no Brasil e defende a
idéia de que o Brasil participe de um movimento de construção de uma
consciência racial crítica mundial.
Gloria Ladson-Billings é professora do Departamento de Currículo
e Ensino (Curriculum and Instruction) da Universidade de Wisconsin,
nos Estados Unidos, e uma intelectual internacionalmente respeitada
por seus trabalhos no campo do Currículo e Educação Multicultural. A
professora Ladson-Billings concedeu esta entrevista em setembro de 2001,
em seu gabinete.
Entrevistadores: – Você, William Tate e outros são responsáveis por
introduzir a teoria racial crítica no campo da educação. Por favor, explique
quais são as premissas da teoria racial crítica e porque é importante incor-
porá-la às teorias e práticas educacionais?
Gloria Ladson-Billings: – Uma das premissas é que a noção de raça
não tem sido suficientemente teorizada. Há significativa teorização a
respeito de classe e gênero, mas há muito pouco sobre a questão da raça.
Parte do que existe apenas enfatiza a inferioridade genética e mesmo o
marxismo e o neo-marxismo não falam suficientemente de raça. No
entanto, sabemos que raça é uma categoria importante. Essa é, portanto,
a base do esforço de constituir a teoria racial crítica. Em uma sociedade
capitalista, essa teoria é profundamente necessária porque a sociedade
fundamenta-se na propriedade e no direito de propriedade. Uma das
coisas absurdas que aconteceu na história dos Estados Unidos é que seres
humanos foram transformados em propriedade. Depois disso, o que

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ocorreu foi a transmutação de propriedade para cidadão. Essa não foi
uma transição suave e contínua, ainda há muita tensão envolvida: Quem
é o outro? De que maneira esse outro passou a ter algum direito como
cidadão? Isso sintetiza as intenções e os questionamentos dessa teoria.
A teoria racial crítica oferece um questionamento do direito tradi-
cional. O direito estadunidense é baseado em precedentes de casos
judiciais. Além desse questionamento, buscam-se outras versões, histórias
alternativas. Quando surge algo numa corte, ou em um dossiê judiciário
neste país, o que temos é um simples “Esta é a história”. O que a teoria
racial crítica diz: “Há uma outra história a ser contada”. Ela baseia-se
fortemente na recuperação da história e da memória em oposição ao
tradicional, empírico e estéril “Estes são os fatos”; “Isto foi o que acon-
teceu”. A teoria racial crítica também se baseia em uma combinação de
disciplinas, não se limitando ao Direito. Na Educação, por exemplo,
outras áreas do conhecimento, tais como Sociologia, Antropologia e uma
variedade de outras disciplinas são usadas para analisar os fenômenos
educacionais desde uma perspectiva crítica. Essas são as premissas básicas
da teoria racial crítica. O que tentamos fazer no campo da educação foi
partir da perspectiva de que raça é importante, mesmo que pouco teori-
zada, direitos de propriedade são, por assim dizer, o que sustentam a
sociedade e, portanto, a intersecção entre raça e propriedade oferece um
interessante objeto de estudo. Passamos a nos interessar por temas ligados
à educação escolar. Se olharmos, por exemplo, para o currículo, ele é
‘racializado’ mas também é uma propriedade intelectual. Nas escolas
pobres que atendem crianças não brancas a qualidade da propriedade
intelectual é inferior a das crianças brancas de escolas de classe média. O
financiamento é diferente. A própria infraestrutura oferecida às crianças
das comunidades empobrecidas está em condições precárias. A metodo-
logia é diferente. Nas escolas que atendem crianças pobres, negras e de
outras minorias raciais, encontra-se um tipo de ensino ‘de cima para
baixo’, muito autoritário, que apenas reforça o baixo status dessas crianças.
Esse tipo de educação não constitui um empreendimento intelectual;
procura-se manter o corpo dessas crianças sob controle, mantê-las quietas
na sua carteira sem fazer perguntas, não criticando o sistema e apenas
fazendo o que se ordena.
É importante ressaltar que o nosso trabalho neste momento tem
sido a construção de um instrumental teórico e não uma fixação nas
questões pragmáticas. Mesmo no campo do Direito, onde a teoria racial
crítica surgiu, não há evidência até o momento da sua aplicação direta
em tribunais. Permitam-me citar um exemplo de como a aplicação prática

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dessa teoria ainda é problemática. Lani Guinier, uma pessoa interessada
em questões de raça, mas não necessariamente uma estudiosa da teoria
racial crítica, quando foi nomeada por Clinton para a Secretaria de Direitos
Civis, foi crucificada por suas declarações de que enquanto tivermos
minorias na sociedade, a fórmula ‘uma pessoa, um voto’ nunca assegurará
que a voz dessas minorias seja ouvida. Essa posição foi considerada uma
heresia. Ela foi acusada de ser ‘antipatriótica’. Mas, na realidade, ela se
referia aos brancos da África do Sul no período pós-apartheid. A fórmula
‘uma pessoa, um voto’ não permitiria que a voz dos brancos fosse ouvida
na ‘nova’ África do Sul. A fórmula ‘uma pessoa, um voto’ é um ponto
nevrálgico nesta sociedade e, por isso, o seu questionamento fez com que
as pessoas lhe criticassem. Este exemplo mostra que a teoria racial crítica
ainda não se firmou na prática do Direito. Não há ainda advogados que
defendam seu caso baseado na teoria racial crítica. Na educação, essa
teoria tem servido como uma ferramenta analítica para o exame das desi-
gualdades.
E: – Você tem conhecimento de algum estudo empírico que use a
teoria racial crítica e que procure implementá-la como princípio teórico?
GLB: – O Direito baseia-se em precedentes e, por isso, as pessoas
que se interessam por teoria racial crítica no Direito examinam atenta-
mente esses precedentes e os rearticulam. Um exemplo de estudo relacio-
nado com essa teoria é a pesquisa conduzida por uma professora que
trabalhou na Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-
Madison, mas que agora está na Vanderbilt University, chamada Beverley
Moran. Ela é uma advogada especializada em causas fiscais e fez uma
análise empírica que avaliava os impostos pagos ao longo dos anos. Ela
conclui que os negros pagam mais impostos, pois não têm os recursos
para contratar um contador ou alguém que cuide da sua declaração de
renda e planeje suas finanças e, portanto, acabam não obtendo todas as
deduções possíveis garantidas por lei. Isso faz com que, ao longo do
tempo, os negros paguem mais impostos do que os pagos por uma pessoa
branca de classe média. Este é um exemplo de estudo empírico que usa
elementos da teoria racial crítica para afirmar que há uma desigualdade
racial no pagamento dos impostos.
E: – E na educação? Há exemplos de estudos empíricos baseados
nessa teorização?
GLB: – Há uma nova corrente de estudiosos surgindo, chamada
LatCrits (estudiosos dos temas latinos que usam a teorização racial crítica),
pessoas como Daniel Solorzano, Sofia Villenas e Kris Gutiérrez estão
examinando há algum tempo questões ligadas a essa teorização, mas não

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acho que alguém já tenha feito estudos empíricos totalmente baseados
na teoria racial crítica.
Além disso, há uma intersecção entre as áreas do Direito e da
Educação. Derek Bell, por exemplo, dedicou grande parte de seus estudos
na área do Direito ao exame do fim da segregação escolar. Um de seus
argumentos básicos, fundamentados em seus estudos e na teoria racial
crítica, é que nunca houve nenhuma legislação de direito civil proposta
ou votada nos EUA que não tenha beneficiado os brancos. Ele, na
realidade, examinou alguns exemplos do passado, através de narrativas
históricas. Ao examinar, por exemplo, o movimento de eliminação da
segregação escolar – que deveria estar ajudando as crianças negras ou
latinas que passam a freqüentar as ‘escolas melhores’ –, Bell demonstra
que o que essa legislação costuma fazer é criar mais fundos nessas escolas
brancas para contratar mais docentes, contratar profissionais para traba-
lhar com o professorado, contratar mais motoristas de ônibus escolares
para transportar as crianças e para comprar mais material de consumo.
Assim, há mais recursos destinados às chamadas ‘escolas sem segregação’,
mas estes não são necessariamente destinados às crianças e à sua educação.
E: – Como você responderia às criticas que afirmam que ao se privi-
legiar demasiadamente a raça em detrimento da classe, em particular,
mais também do gênero e da sexualidade, a teoria racial crítica não nos
ajuda a entender e a agir melhor numa sociedade em que as opressões
raciais de gênero, de sexualidade e de classes são tão estreitamente entre-
meadas?
GLB: – Esta é uma ótima pergunta. Bem, permitam-me voltar,
primeiro, ao meu argumento de que a raça tem carecido de teorização.
Academicamente, a noção de raça vive um importante momento de recupe-
ração, no qual se tem buscado uma maior precisão a respeito do que
queremos dizer quando usamos esta noção. Mas se lermos atentamente
o trabalho dos estudiosos1 da teoria racial crítica, vamos perceber que
este também está interessado nas questões de classe e de gênero. Por
exemplo, tenho uma ex-aluna que recorre a uma análise de classes no seu
trabalho, mas o centro do seu interesse é o desenvolvimento de estratégias
anti-racistas. Não creio que um exclua o outro. O fato de dizer que faço
uma análise crítica de raça não significa que eu ignore as questões de
gênero. Também não significa que não estou considerando as questões
de classe. Todas essas categorias estão entremeadas. Mas necessitamos de
uma ferramenta em nossa análise, de um ponto de entrada. O que
costuma acontecer quando achamos estar usando todas essas ferramentas
ao mesmo tempo, é que acabamos por lutar para tentar fazer com que a

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análise faça sentido. A teoria racial crítica usa a raça como este ponto de
partida para a análise.
A noção de raça tem que ser, no entanto, complexificada. Classes
sociais são reais no sentido de que podemos encaixar as pessoas na
hierarquia econômica. Gênero é real no sentido de que podemos pelo
menos falar um pouco a respeito de biologia, de sexualidade. Mas a raça
é um alvo móvel. O que é branco neste lugar não o é naquele. Isto acon-
tece mesmo nos Estados Unidos. Há um livro maravilhoso chamado
How the Irish became white (Como os irlandeses se tornaram brancos). Os
irlandeses não foram sempre brancos nos Estados Unidos: ser branco é
um privilégio social concedido às pessoas. Se formos checar suas verda-
deiras bases, ser branco não tem uma relação direta com a biologia. O
exemplo mais notável disto é o caso O. J. Simpson. Este é um dos
exemplos mais explícitos do quão mutável é o significado da raça. A meu
ver, o verdadeiro crime que Simpson cometeu não foi simplesmente ter
assassinado duas pessoas, mas ter recebido por tanto tempo uma espécie
de ‘branquidade’ honorária e a ter traído. Ele tinha ascendido econômica,
social e politicamente no espaço dos brancos e eles o tinham aceitado.
Quando veio o julgamento, os brancos se sentiram traídos: “Achávamos
que ele fosse um dos nossos”. Há algo que mostra com muita clareza este
sentimento: no segundo processo sofrido por Simpson – o processo civil
no qual se determinaria o quanto ele teria que pagar em danos –, ele foi
condenado a pagar uma quantia astronômica de dinheiro. Entretanto,
foram até a sua casa para confiscar duas coisas: o troféu Heisman (aquele
troféu dado a jogadores de futebol americano que mesmo se for derretido
não tem qualquer valor monetário) e os seus tacos de golfe. Isso não tem
nada a ver com a condenação multimilionária. O verdadeiro significado
deste gesto é a expropriação desses símbolos da branquidade que lhe
haviam sido concedidos. “Você não vai mais ter tacos de golfe”.
Assim, não peço desculpas por usar a noção de raça como uma
maneira de olhar para as desigualdades sociais, porque sei muito bem que
há várias pessoas que continuam a estudar gênero, a estudar sexualidade.
Se, através de uma análise racial, eu encontro uma boa resposta acerca das
desigualdades sociais, não vou guardá-la só para mim. As pessoas que
trabalham com gênero e classe são muito mais do que bem-vindas se
quiserem usá-la.
Um problema que enfrentei ao usar a noção de classes sociais na
minha tese foi que, ao olhar para as classes entre as comunidades de
jovens cidadãos afro-americanos e brancos na Califórnia, esbarrei no fato
de que classe tem significados diferentes na comunidade negra e na

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branca. Entretanto, a maioria dos sociólogos, os antigos da Escola de
Chicago, tal como Talcott Parsons, havia determinado um sentido certo
e único para o conceito de classe. Contudo, o que é classe operária para
os brancos nesta sociedade costuma ser classe média para os negros. Se
pensarmos em empregos como motorista de ônibus, funcionário dos
correios, são empregos da classe operária, na sociedade mais ampla.
Contudo, um funcionário dos correios numa comunidade negra é conside-
rado da classe média, pois possui estabilidade de emprego, benefícios
sociais e pode comprar a casa própria. E isto explica porque os políticos,
nesta sociedade, falam acerca da classe média. Em nenhum outro lugar
do mundo, alguém tentaria ser eleito dizendo que vai tentar ajudar a
classe média. Seria ridículo tentar ser eleito no México dizendo: “Vamos
fazer todo o possível para ajudar a classe média”. Mas nos Estados Unidos,
todo candidato diz que temos que ajudar a classe média. Por quê? Porque
nos Estados Unidos quase todos acabam encontrando um jeito de se
considerarem classe média. E os que não o fazem estão privados de seus
direitos cívicos a tal ponto que não vão sequer votar. Mesmo aqueles que
mal conseguem pagar suas contas vão lhe dizer que pertencem à classe
média. A discussão que não temos em nossa sociedade é a de saber o que
aconteceu com a classe operária. A literatura a respeito dos afro-ameri-
canos costuma enfocar os pobres e as chamadas subclasses. Existe alguma
literatura a respeito da classe média negra, porque ela surgiu, por assim
dizer, da revolução cultural das lutas a respeito dos direitos cíveis. Mas a
classe operária negra, que é o maior grupo, é ignorada. Fizeram com que
pensasse a si mesma como classe média.
E: – No seu livro The dreamkeepers: Successful teachers of African-
American children (Os guardiões dos sonhos: Professores bem-sucedidos de
crianças afro-americanas), publicado em 1994, você usa o conceito de
pedagogia culturalmente relevante. Poderia nos explicar em que consiste
este conceito? Há alguma influência de Freire nesta sua formulação?
GLB: – Penso basicamente na pedagogia culturalmente relevante
como um triângulo ou um tripé. Uso esta imagem para evitar a idéia de
uma hierarquia de componentes, o que não é o caso. Um dos vértices é o
que chamei de desempenho escolar. Este vértice insiste que as crianças
precisam aprender na escola. Não faz sentido mandarmos as crianças para
a escola todos os dias, todos os anos se elas não aprenderem nada. Não
podemos aceitar que elas saiam da escola sem saber ler, sem saber nada de
matemática, de história. Entretanto, e isto é essencial, a abordagem de
desempenho escolar na pedagogia culturalmente relevante não se limita a
incutir informações nas crianças. Ela ajuda as crianças a desenvolverem

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uma análise crítica a respeito do que estão aprendendo, a levantarem questões
do tipo: “Mas porque é desse jeito?”. Ensina as crianças a tomarem as
rédeas de seu próprio aprendizado, a irem atrás do tipo de coisas que
acham importantes. A verdade é que não podemos justificar o pagamento
de quem não faz aquilo que é pago para fazer: ensinar. E, na realidade, isso
é o que acontece em uma parte substancial das escolas de periferia. Na
realidade, elas não ensinam muito. São locais onde as crianças passam os
seus dias, sem aprender quase nada. E estas são as boas escolas, porque as
ruins são prisões que apenas prendem as crianças neste espaço. Por estas
razões eu insisto que o desempenho escolar tem que ser um dos objetivos
desta pedagogia.
O segundo vértice é o que chamo de competência cultural. Com
este conceito quero me referir à capacidade das crianças entenderem quem
elas são, de onde vêm e porque estas coisas são importantes para ajudá-las
na aprendizagem. E isto nada tem a ver com um professor que diz: “Tudo
bem, vamos afixar pôsteres de Michael Jordan ou vamos escutar músicas
do Ricky Martin”. Esta é uma abordagem muito superficial – um dos
meus alunos chamava isso de ‘rapinagem cultural’: “Vou pegar só um
pouquinho de tuas coisas e colocar aqui”. Isto, na verdade, não serve para
nada. Ou, pior, no caso das crianças negras, traz um perigo muito grande
que é tornar a cultura dos rapazes negros em uma mercadoria incrível.
Não há lugar neste mundo, praticamente, em que não se escute música
rap. Não há lugar, praticamente, em que não vemos roupas e posturas da
cultura dos rapazes negros. Está nos filmes, nos vídeos. Entretanto, isto
não é exatamente cultura negra, é cultura jovem; todo grupo de jovens
cria sua própria cultura. O que as crianças afro-americanas não sabem – e
o que a pedagogia culturalmente relevante busca ajudá-las a entender – é
que parte central da sua cultura é a luta pela educação. Os afro-americanos
lutaram e alguns morreram para obter educação. É uma cultura que não
se opôs a educação, mas que insistiu na necessidade de conquistá-la. É
uma cultura de pessoas que, mesmo com leis que as proibiam de aprender
a ler, insistiam nesta busca. Esse é um processo, portanto, quase arqueo-
lógico de escavar, de desenterrar estes elementos da cultura afro-americana.
Esta é uma forma de ajudar as crianças e adolescentes a entenderem que
elas podem ser inteligentes e ‘legais’ ao mesmo tempo. Na verdade, a
maioria delas não pensa assim. Eles acham que têm que escolher: ou sou
‘C.d.F.’ (“Não tenho contatos com minha comunidade, só vou para escola
e sou bom aluno”) ou sou ‘malandro’ (“Participo das atividades da minha
comunidade e a escola não serve para nada”). A noção de competência
cultural ajuda os alunos e os professores a fundirem esses dois tipos.

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Isto nos leva ao terceiro vértice, que é a consciência sociopolítica,
e é aqui que a influência de Freire aparece. A noção de consciência
sociopolítica nos ajuda a entender que se temos apenas crianças e ado-
lescentes inteligentes e culturalmente seguras, então temos apenas um
grupo de indivíduos que pensam ‘sou inteligente, sou legal’ e não sei
porque vocês não são. Eles acham que chegaram aí sozinhos. A consciência
sociopolítica serve para fazer com que eles entendam que os estudos que
fazem na escola e o que aprendem aí têm um objetivo social maior. Este
aprendizado deveria estender-se além da sala de aula, deveria prepará-
los para perguntar: “Por que existem esses padrões de desempenho
escolar?”, “Por que crianças que falam uma linguagem diferente parecem
nunca ter acesso às classes avançadas de matemática?”, “Por que tantas
crianças e adolescentes de cor abandonam a escola?”. Este é o tipo de
perguntas que a consciência sociopolítica ajuda a fazer. Ela ajuda as
crianças e adolescentes a olharem não apenas para o seu próprio
desempenho escolar. Numa sociedade que glorifica o desempenho
individual, isto é absolutamente necessário. Eu vi professores trabalharem
problemas sociais com crianças bastante jovens com bastante sucesso.
No meu novo livro, eu trago o exemplo de uma professora que fez um
trabalho com os seus alunos e os fez perceber que o restaurante Pizza
Hut é parte do grupo empresarial da Pepsi-Cola e que a Pepsi-Cola apoiou
a opressão no Tibete e em Burma. As crianças não sabiam onde era Burma.
Também não entendiam exatamente o que era opressão. Mas o que ela
fez eles entenderem é que quando um grupo faz algo ruim para muitas
pessoas e ao mesmo tempo lhe oferece algo que diz ser muito bom, será
que o que estão lhe oferecendo é tão bom assim? As crianças, neste caso,
poderão começar a se dar conta: “Não, na verdade isso não é tão bom”.
Eles gostam da pizza do Pizza Hut. É o tipo de comida que as crianças
adoram. Como a gente lida com isso? Estas crianças acabaram colocando
cartazes por toda a escola pedindo para que os outros alunos boicotassem
a pizza do Pizza Hut e tentaram fazer com que a escola contratasse outra
empresa de pizza. Em outras palavras, as crianças passaram a pensar:
“Isto é um assunto mais importante que o meu gosto. Adoraria comer
um pedaço de pizza do Pizza Hut, mas tenho que ver o problema que é
maior do que a minha vontade individual”. Este é o tipo de trabalho que
professoras como esta estão conseguindo fazer. Penso que aqui há uma
relação com o trabalho de Paulo Freire. Creio que este tipo de engajamento
com temas que vão além do individual é libertador: “Não posso pensar
só em mim”. O que realmente me deixa frustrada quando falo com
crianças que estão com dificuldades na escola é elas pensarem que a

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culpa é delas e somente delas. Elas vivem dizendo-nos porque elas são as
culpadas: “Não fiz isso. Deveria ter feito aquilo”. É muito difícil para
elas enxergarem o quadro social mais amplo. Professores que trabalham
com a pedagogia culturalmente relevante têm começado a insistir nestes
aspectos sociais mais amplos com as crianças muito jovens. Eles estão
começando a colocar esse tipo de perguntas e as crianças e adolescentes
nas escolas estão começando a entender que elas precisam buscar espaços
para reagir, que elas podem fazer alguma coisa. Dia desses, vi um exemplo
numa escola que parece meio bobo, mas é bastante interessante. Uma
menina tinha visto que o menu de almoço para aquele dia previa um
sanduíche feito com croissant. Ela foi feliz comprar o sanduíche, que,
para sua surpresa, era feito com pão de hambúrguer. E ela ficou tão
chateada com isto que organizou um movimento de protesto com todas
as outras crianças: “Porque estão mentindo para a gente? Se quiserem
servir isto, tudo bem, mas nos digam que vai ser assim”. Isto fez com que
as outras crianças pensassem em quais eram as outras maneiras em que a
escola não estava dizendo a verdade, de que outras maneiras elas eram
enganadas. Com isto chegaram a uma espécie de análise crítica das diversas
propagandas que vêem na televisão, e assim por diante. Se conseguirmos
criar este tipo de cidadãos, então não teremos porque nos preocupar
com o tipo de políticos que existirão na sociedade. No momento, contudo,
não há muitas pessoas capazes de serem críticas, motivo pelo qual temos
todas essas dificuldades. Somos incapazes de ver além da superfície, somos
incapazes de ver além do que a propaganda nos mostra.
E: – No seu último livro, Crossing over to Canaan: The journey of
new teachers in diverse classrooms (Travessia para Canaã: A jornada dos
novos professores para salas de aula com diversidade cultural), publicado
nos Estados Unidos, em 2001, você analisa a situação dos professores
nos Estados Unidos e, em particular, o programa chamado “Teach for
diversity” (“Ensinar para a diversidade”). Você poderia relatar algumas
das suas conclusões neste livro, principalmente acerca dos problemas de
formação de professores e a implementação de abordagens multiculturais
em escolas públicas?
GLB: – Bem, essa questão é difícil, pois eu poderia falar por várias
horas sobre a questão da formação de professores. No livro eu ofereço
uma metáfora: a formação de professores é como uma estrada com pedágio.
Dirigimos na estrada e chegamos num exame de admissão. Continuamos
dirigindo e temos que fazer vários créditos na faculdade. Dirigimos um
pouco mais e temos que fazer um estágio. Todo mundo está dirigindo na
mesma estrada e passando pelos mesmos pedágios. Mas nem todo mundo

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é igual e o desenvolvimento de cada um não é levado em consideração. A
formação de professores, particularmente nos Estados Unidos, não está
fundamentada em uma base teórica e intelectual. Não nos importamos
muito com a vida intelectual de nossos professores. Entretanto, há quem
diga: “Eles não sabem muita coisa e, portanto, não ensinam quase nada”.
O problema é que a formação de professores é regida pela burocracia
estatal e por isso pode acontecer de se ter alguém que não entende nada
de educação ou, pior, que crê que entende, como o responsável por
formular as diretrizes dessa formação. Assim, temos coisas sem pé nem
cabeça incluídas na formação de professores. Temos um organismo externo
controlando a formação dos professores e este organismo não tem muito
interesse em ajudar a criar espaços e oportunidades para que as pessoas
se desenvolvam intelectualmente. É por isso que o conceito de Henry
Giroux de ‘professores como intelectuais transformadores’ é totalmente
estranho para o professorado estadunidense de hoje. E as pessoas quase
nunca percebem isto até estarem envolvidas a bastante tempo com o
trabalho docente. E aí dizem: “Eu não estou fazendo muito, não estou
ajudando muito”. Mas até se conscientizarem disto leva um tempo.
Uma das minhas preocupações é que ficamos educando pessoas
com 18, 19 anos para ensinar nos ambientes mais difíceis, a respeito dos
quais não têm a menor experiência. Elas chegam cheias de boa vontade
e são inteligentes, no sentido convencional. São bem informadas, passam
nos exames, mas chegam com uma experiência muito limitada para
trabalhar com pessoas que são diferentes delas. Eles chegam com uma
experiência de mundo muito limitada. Muitas delas viajaram muito,
mas apenas como turistas, não vivenciaram nenhum lugar diferente de
verdade. E quando mostramos a elas, por exemplo, como os Estados
Unidos, em suas relações com o resto do mundo, ajudaram a criar as
desigualdades globais, eles não têm condições de conduzir essas conversas,
não têm mesmo. E se não são capazes de conduzir essas conversas, não
estão preparadas para ajudar as crianças nas escolas a participarem desse
tipo de conversas. Assim, temos um enorme problema de conhecimento
e da relação deste conhecimento com o social.
Um outro aspecto é a falta de experiência dos candidatos a professor.
Se você tem 19 anos, não pode ser condenado por ter essa idade, mas
você pode não estar realmente pronto para ser professor.
Além disso, temos uma tensão no professorado dos Estados Unidos
– algo que está relacionado ao meu comentário anterior sobre todos se
considerarem classe média. O professorado é ambivalente: não sabem se
são trabalhadores ou profissionais. Quando chega o momento de negociar

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o contrato de trabalho eles se consideram trabalhadores, mas em muitas
outras oportunidades desejam ser considerados profissionais: querem ser
empreendedores, querem trabalhar sozinhos, não querem trabalhar em
projetos coletivos de elaboração do currículo, não querem trabalhar
coletivamente para mudar as desigualdades de financiamento e as situações
que afastam algumas crianças e adolescentes das melhores oportunidades.
Estes são os problemas gerais na formação docente, mas também
existem problemas mais específicos a respeito da noção de educação
multicultural. Não acho que a formação de professores nos Estados Unidos,
em geral, seja muito boa. As dificuldades aumentam quando introduzimos
essa noção de que temos de ser capazes de educar bem todas as crianças,
que devemos ser capazes de nos tornarmos mais multiculturais. Eu tenho
questionado a utilidade deste termo, multicultural, pois ele, hoje,
praticamente perdeu toda a sua força, uma vez que todos se acham multi-
culturais, até as grandes lojas de departamento. Então o que significa ser
multicultural? Eu prefiro insistir em discutir como podemos construir
consciências críticas nas escolas. Se conseguirmos construir esta consciên-
cia crítica, estaremos lidando com as questões culturais, de raça, classe,
gênero, linguagem e todo o tipo de diferenças. Se o professorado não
tem vida intelectual, não é capaz de ser crítico. Devo enfatizar que não
entendo intelectual, aqui, como aquele que lê muitos livros. Intelectual
para mim é quem é capaz de engajar-se em um diálogo crítico com o
mundo. Conheço muitas pessoas que não têm educação formal, mas são
muito mais críticas do que as que passaram pela formação de professores.
Muitas das pessoas que passaram por essa formação não aprenderam a
ler nas entrelinhas e além das páginas de um texto. Elas apenas dizem:
“Olha, está no livro, é isto que acontece”. E, quando você lhes dá um
livro que as desafia, elas simplesmente não aceitam ou dizem: “Tenho
este livro que diz X e aquele que diz Y, e não sei como chegar a um
entendimento que seja meu partindo dessas duas noções conflituosas”.
No nosso programa, seguidamente indicamos textos de Howard Zinn
(um historiador estadunidense que questiona a ‘história oficial’ dos Estados
Unidos) para leitura e muitos dos nossos simplesmente os rejeitam. Isto
acontece porque estes textos mostram uma história que contradiz aquela
que lhes foi ensinada como verdadeira. Existem algumas ‘verdades’
intocáveis em nossa história. Por exemplo, quando se ‘celebrou’ os
quinhentos anos da chegada de Colombo à América, houve um debate
muito grande sobre o que dizer a respeito de Colombo. Os próprios
historiadores declaravam: “As pessoas estão chocadas com o que estamos
mostrando sobre Colombo. Temos muito mais a dizer sobre Thomas

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Jefferson (o terceiro presidente estadunidense), mas não ousamos dizê-
lo agora, porque as pessoas ainda estão irritadas sobre o que dissemos a
respeito de Colombo”. Se alguém se identifica como intelectual, uma
das coisas que deve fazer é tentar obter uma idéia cada vez mais apurada
da realidade, dos fenômenos sociais. Desse modo, a verdade da terça-
feira pode não ser a da quarta-feira, não porque há múltiplas verdades,
mas porque se trata de um processo de aproximação dessa verdade. Se
você parou no tempo e decidiu: “Esta é a verdade: Jefferson é uma pessoa
admirável”, então você não pode levantar questões a respeito das
contradições entre Jefferson, o homem da liberdade, e Jefferson, o dono
de escravos. Não pode falar sobre Jefferson, a pessoa que visivelmente
detestava os negros e pensava que eles eram inferiores, e Jefferson, o
homem que ia para a cama com uma mulher negra e teve vários filhos
com ela. Mesmo a ‘ciência’, tão reverenciada no Ocidente, revela por
meio de exames de DNA que Jefferson era pai dessas crianças. As pessoas
não querem falar sobre isso, não se pode conversar a respeito. Não há
uma disposição para nos aproximarmos da verdade. Já decidimos qual é
a verdade. E queremos que nossas escolas sejam organizadas desse modo.
Nossos professores apóiam-se nesse mesmo paradigma: “Já conheço a
verdade; ensinem-me apenas como transmitir tudo isso aos alunos”.
Conseqüentemente, estou realmente preocupada com a vida inte-
lectual dos nossos docentes. Se tivesse que remodelar a formação de
professores, eu exigiria que os estudantes se especializassem em uma área
do conhecimento. Poderia ser História, Inglês, Matemática, Economia ou
qualquer outra área. Assim eles teriam ferramentas intelectuais para
enriquecer o seu processo de formação profissional. Hoje em dia, há muitas
pessoas que decidem se tornar professores puramente pela emoção. Elas
gostam de crianças: “Ah! Adoro crianças”. E eu respondo: “E o que você faz
com as crianças quando elas não são tão adoráveis?” (risos). Elas estão aí e
nem todas são adoráveis. Mas todos têm direito à educação. Essas pessoas
não conseguem ir além dessa visão romântica.
E: – Você poderia nos falar a respeito do programa de formação de
professores da Universidade de Wisconsin e dos seus desafios para cons-
truir uma formação mais multicultural e anti-racista?
GLB: – A Universidade de Wisconsin assumiu o compromisso,
pelo menos conceitualmente, com essa concepção de formação. Se olhar-
mos para quem são os ‘arquitetos’ do programa de formação docente
para o ensino fundamental – Kenneth Zeichner, Michael Apple, Carl
Grant, Tom Popkewitz –, essas pessoas lidam diretamente com questões
de diversidade cultural, desigualdade social... Entretanto, o sistema de

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premiação da Universidade é organizado de tal modo que os professores
universitários se afastam cada vez mais desse programa de formação de
professores. Esse é um problema estrutural que estamos enfrentando.
Na verdade, mesmo se todos estivéssemos trabalhando diretamente com
os alunos, ainda assim não seríamos suficientes em número para assumir
todas as disciplinas do programa. E, mesmo se fôssemos numericamente
suficientes, teríamos problemas para manter os alunos de pós-graduação,
uma vez que não haveria financiamento para eles. Criamos um sistema
que, superficialmente, parece bom, mas que na verdade enfrenta vários
problemas. Precisamos constantemente re-assegurar que os alunos de
pós-graduação, trabalhando como professores do programa, estejam
comprometidos com os princípios que fundamentam a proposta de forma-
ção, uma vez que eles têm uma responsabilidade enorme nesse programa.
Mesmo que esses alunos de pós-graduação, que atuam como professores,
assumam esse compromisso – e eu diria que a maioria dos alunos com
quem trabalho assume esse compromisso, pois esse é um dos motivos
que os trazem à Universidade de Wisconsin –, eles não possuem o status
dos professores titulares. Por uma questão de autoridade, quando eu
assumo um curso e me dirijo aos alunos e afirmo: “Este curso é todo ele
voltado para a discussão de como fazer com que as crianças se tornem
cidadãs num mundo cada mais diverso e multicultural. Não vamos ter
apenas uma aula sobre multiculturalismo. O curso inteiro é sobre isso”,
eles aceitam sem questionar. O mesmo, quando dito por um aluno da
pós-graduação atuando como professor tem um valor bastante diferente.
Portanto, essa diferença de status dificulta a implementação dos princípios
do programa. Um ponto favorável é que os alunos de pós-graduação são
forçados a enfrentar esses conflitos.
E: – Em seus cursos de pós-graduação, você recorre a inúmeras
técnicas para que seus alunos se engajem não apenas em discussões
teóricas, mas também em uma reflexão sobre identidade. Gostaríamos
que você falasse da sua própria experiência docente e do que norteia suas
decisões metodológicas e teóricas como educadora.
GLB: – Penso que o que melhor caracteriza minha abordagem de
trabalho é a seriedade com que trato o ensino. Não acho que a metodologia
seja uma questão secundária. Estou sempre pensando: “Como posso
expressar melhor essa idéia, como levar os alunos a uma nova maneira de
pensar?” Eu sei que as aulas expositivas não funcionam bem para mim.
Há pessoas que são realmente boas nisso. Penso que as pessoas devem
envolver-se em seu próprio aprendizado, que elas devem expressar a sua
opinião sem sentirem-se reprimidas. E uma das maneiras de conseguir

288 Educação & Sociedade, ano XXIII, no 79, Agosto/2002


isto é dividir as pessoas em grupos. As pessoas falam mais e todos parti-
cipam. Elas se arriscam mais nesse ambiente. Portanto, eu privilegio
grupos de discussão menores. Além disso, preocupo-me em buscar
diferentes modos de trabalhar informações e conhecimentos na sala de
aula. Algumas vezes uso fitas de vídeo, outras vezes fitas cassete ou ainda
literatura popular. Tenho um compromisso com a teoria. Penso que ela é
extremamente importante. Entretanto, a fronteira entre teoria e prática
não é rígida, é uma ‘membrana permeável’. Assim, quando abordo um
conceito teórico, estou interessada em mostrar aos alunos como esse se
manifesta na prática. Dessa maneira, os estudantes podem mover-se de
um modo mais fluido entre teoria e prática.
Estou muito interessada numa teoria de ensino e, mesmo que isso
possa soar estranho, creio que um dos motivos pelos quais o ensino é tão
ruim é exatamente a falta de uma teorização sobre o ensino. Muitos
pensam que ensinar é simplesmente transmitir conhecimento. Profissio-
nais que são referência em sua área muitas vezes não ensinam bem. Os
alunos toleram isso porque sabem mover-se bem nesse sistema. É nas
escolas de educação infantil que se encontra uma excelente metodologia
de ensino. Nessas escolas, os alunos não são facilmente cooptáveis. Eles
não permanecem passivos no processo de aprendizagem. Os professores
sabem que para ensinar precisam adotar múltiplas metodologias.
O que estou tentando fazer em minhas aulas é envolver os alunos
na avaliação das metodologias que desenvolvo. Quero que eles entendam
que não é por acaso que chegamos a um determinado resultado na sala
de aula. Esse resultado é fruto de uma concepção metodológica. Resu-
mindo, preocupo-me bastante com a metodologia de ensino. Cheguei
na pós-graduação em Currículo pensando que bastava ter o conteúdo
‘adequado’ para que as coisas funcionassem. Abandonei essa posição ao
entender que o conteúdo é apenas um dos componentes e que a metodo-
logia é muito mais importante do que pensava. Ainda mais importante
é o que está subjacente à concepção de ensino, ou seja, um conjunto de
crenças e o compromisso político das pessoas. Então, mesmo que alguém
use um tipo de ensino bastante tradicional, isso pode funcionar porque
o que está subjacente na prática dessa pessoa é um pensamento do tipo:
“Essas crianças podem aprender e ninguém é capaz de me convencer do
contrário”. Logo, não se trata apenas de olhar para a relação professor-
aluno na sala de aula, mas também pensar nas relações sociais mais amplas
e na nossa posição em relação ao conhecimento. Se somos críticos a
respeito do conhecimento, se entendemos que esse conhecimento está
sendo constantemente recriado, reciclado, e que os professores não são

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os detentores de todo o conhecimento, os estudantes são certamente
beneficiados. Portanto, eu me ‘converti’ nos meus últimos anos na Univer-
sidade de Stanford. Eu passei a entender que nem tudo dependia do
conteúdo. Infelizmente, isso aconteceu quando já havia submetido minha
tese que era sobre conteúdo. Eu odiava minha tese, não via a hora de
terminá-la, pois o foco estava inteiramente centrado no conteúdo.
E: – Para concluir nossa entrevista, sabemos que você tem contatos
com educadores brasileiros como Petronilha Gonçalves e Silva (Professora
da Universidade Federal de São Carlos) e outros. Provavelmente pelas
suas conversas com eles, você deve ter alguma idéia a respeito de como
essas questões de raça e educação se desenvolvem no Brasil. Você poderia
falar a respeito do que conhece da realidade brasileira? Algumas das idéias
que você apresentou nesta entrevista podem ser úteis em nossa realidade?
GLB: – Preciso inicialmente apresentar o contexto do meu enten-
dimento sobre o Brasil. Assisti ao filme Orfeu negro quando era muito
jovem. Mas, antes de assisti-lo, tinha uma imagem de que o Brasil era o
que aparecia nos cartazes das agências de viagem e, até onde saiba, a
Garota de Ipanema era branca e loira. Então, algumas coisas aconte-
ceram... Primeiro, assisti a Orfeu negro e isso me deixou boquiaberta.
Pensei: “Meu Deus!”. E isso fez realmente crescer meu interesse pelo
Brasil como um lugar real, diferente daquela representação da indústria
do turismo em que as pessoas são brancas ou se são morenas é porque
foram à praia e ficaram bronzeadas. Então esse filme fez minha visão do
Brasil mudar. Obviamente, conhecer Petronilha foi também muito
importante. Além dela, conheci uma outra professora que veio trabalhar
com Michael Apple, a Regina Leite Garcia (Professora da Universidade
Federal Fluminense). Ela acabava de chegar da Inglaterra. Eu a convenci
a participar do encontro da AERA (Associação de Pesquisa Educacional
dos Estados Unidos). Então fomos a New Orleans juntas. E quando
estou na AERA, pareço uma pessoa diferente porque estou com colegas
negros que conheço do país inteiro, e pessoas da Inglaterra e de outros
lugares. Então ela encontrou-se com pessoas negras o tempo todo. Então,
ela me disse: “Gloria, não há nada parecido com isto no Brasil. Você
nunca veria tantos intelectuais negros juntos deste modo”. Portanto, eu
construí essas duas visões conflituosas sobre o Brasil. De um lado, a que
o Orfeu negro havia me oferecido, essa noção de que existe um Brasil
negro e de outro, que as desigualdades ainda existem. Outra fonte de
informações sobre o Brasil que tenho é por meio do meu irmão que viaja
para lá talvez duas vezes por ano. Segundo ele, no Brasil, as pessoas lhe
param na rua para dizer: “Você não é daqui”. Porque ele anda de terno e

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não é comum que pessoas de cor no Brasil se vistam dessa maneira,
entrando e saindo de prédios como aqueles que ele costuma ir. Então, eu
tinha essa noção do Brasil como uma ‘democracia cultural’. Outra fonte
que tinha a respeito do Brasil vem de um homem que teve muita influên-
cia sobre minha decisão de fazer a pós-graduação. Ele pertencia à minha
igreja e ficamos amigos com o passar do tempo. Ele era um pastor, mas
não um pastor convencional, no sentido cristão. O mínimo que se pode
dizer é que ele estava na vanguarda da teologia da libertação. E ele nunca
quis ser um pregador. Estava muito mais interessado em saber como
conseguir difundir um evangelho de ação social. Ele trabalhava para o
Conselho Mundial das Igrejas em Genebra. Seu vizinho era Paulo Freire.
Então, havia essa espécie de relação indireta com o Brasil. Quando
começamos a trabalhar na Universidade de Santa Clara, Joyce King e eu
pensávamos no que poderíamos fazer para ‘sacudir’ a instituição. Não
sabíamos o que fazer. Havia apenas cinco professores negros em todo o
campus. Então resolvemos convidar Paulo Freire para vir à Santa Clara.
Essa experiência foi muito comovente. Foi fascinante conhecer a respeito
do seu trabalho e o quanto era parecido com o que foi realizado nas
décadas de 1950 e 1960 no sul dos Estados Unidos. Então, sinto uma
espécie de conexão particular com o Brasil. Eu costumava dizer a Petro-
nilha: “O Brasil tem os negros ‘ruins’, tão ‘ruins’ que não foram trazidos
para os Estados Unidos”. A escravidão promovida pelos europeus na África
foi um processo de amansamento e como havia escravos que eles não
conseguiam ‘domar’, eles os deixavam no Caribe ou na América do Sul,
senão esses escravos poderiam causar-lhes problemas. Por isto costumo
brincar com uma de nossas alunas da Jamaica: “Vocês são os negros ‘ruins’”
(risos). Então penso no Brasil como um país cheio de negros ‘ruins’ (risos),
o que faz com que meu coração queira sempre estar lá. E também tenho
muito interesse pelo movimento de consciência negra no Brasil. Os negros
com os quais tenho contato no Brasil finalmente começaram a se livrar
dessa mentalidade colonialista, dessa mentalidade de escravo. É preciso
entender que existe uma conexão entre os negros da diáspora. Então,
este é por assim dizer o pano de fundo sobre o qual penso o Brasil.
A luta que me parece estar acontecendo no Brasil é contra o tipo
particular de racismo que existe lá. O Brasil é um país onde é muito
difícil para uma pessoa negra avançar. Ao mesmo tempo, há uma com-
binação de uma dinâmica racial única e de dinâmicas de classe, pois há
muitos pobres que não são negros – não quero classificá-los como brancos,
pois há uma categoria de ‘mestiços’, nem branca nem negra, que é
profundamente pobre também. Eles descobriram que têm muito a ver

Educação & Sociedade, ano XXIII, no 79, Agosto/2002 291


com os negros. Vemos ocorrer, ainda, uma espécie de sub-educação maciça
(os brancos, no entanto, educam seus filhos em escolas particulares). Por
outro lado, na minha opinião – eu posso estar sendo muito romântica
neste ponto – vocês têm um cidadão muito mais consciente, politica-
mente. Acho que vocês têm pessoas que entendem que há uma dinâmica
bem maior do que simplesmente ‘trabalhar duro e chegar lá’. As pessoas
estão envolvidas em discussões políticas sobre vários ângulos. Um motivo
que faz com que eu ache que vocês têm cidadãos mais conscientes
politicamente é que as pessoas nas universidades são consideradas
‘perigosas’. Nos Estados Unidos, as pessoas nas universidades não são
‘perigosas’, mesmo que produzam coisas que pareçam ‘perigosas’, elas
são bastante domesticadas pelas armadilhas das relações da classe média
e o capitalismo e por toda essas vantagens que elas têm, e, portanto, não
se expõem para liderar movimentos sociais ou mesmo participar desses
movimentos. No Brasil, vocês têm pessoas nas universidades que querem
estar na linha de frente das mudanças sociais. Penso que esse é o lado
positivo. Mas a parte pavorosa, com essa incrível globalização, é como
conseguir se livrar dessa terrível dívida social? Como tornar a educação
de crianças negras e mestiças uma prioridade? Esse me parece ser um
enorme desafio, e Petronilha e eu temos falado a respeito das crianças
negras e mestiças nas ruas das cidades e da necessidade de que se faça
algo por elas. Acho necessário um empreendimento maciço que não pode
ocorrer sem a construção de coalizões. E o Brasil está em uma posição
incômoda, porque está cercado por países de língua espanhola que, de
algum modo, toleram vocês (risos). Eles deixam vocês serem latinos,
mas não querem que vocês realmente sejam latinos. Querem que vocês
falem espanhol (risos).
O grande desafio é conectar o Brasil com a diáspora Africana,
porque assim se possibilitaria um movimento mais mundial. Um dos
motivos pelo qual Petronilha continua trabalhando conosco é porque
temos procurado discutir o estado precário da educação dos negros como
um fenômeno mundial mais amplo. Não apenas em Chicago ou em
Milwaukee, mas também na Inglaterra, África, América do Sul e Caribe,
a educação dos negros é terrível. Em qualquer lugar do mundo onde
houver negros, a educação deles é muito ruim. E o Brasil há de participar
dessa coalizão de pessoas que estão lutando pela educação dos negros,
porque, apesar de ser difícil acreditar nisso, estou convencida de que
uma melhoria na educação dos negros significa uma melhoria na educação
de todos. Não concordo com a idéia de que melhorando a educação dos
negros a educação para outras pessoas tornar-se-ia pior. Penso que é uma

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maneira de dizer: “Se estamos mesmo indo em direção à educação para
aqueles que estão nas camadas mais baixas, vamos melhorar a educação
porque vamos aprender algumas coisas a respeito da maneira como todos
podem ser melhor atendidos”. Francamente, os brancos não têm uma
educação tão boa assim. Na verdade, eles têm muitas outras coisas que
os ajudam a ter sucesso.

Recebido em novembro de 2001 e aprovado em maio de 2002.

Nota
1. Na língua inglesa, a maioria dos substantivos é neutra em relação ao gênero. Sabemos
que essa mesma ‘neutralidade’ não é facilmente traduzida na língua portuguesa. No en-
tanto, a Professora Ladson-Billings é sensível às questões de gênero no conteúdo de sua
entrevista.

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