É Tudo Ser Humano: Invisibilizando A Diversidade Sexual em Contexto Escolar

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PERSPECTIVAS EM DIÁLOGO: Revista de Educação e Sociedade

ISSN 2358-1840
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“É TUDO SER HUMANO”: INVISIBILIZANDO A DIVERSIDADE SEXUAL EM
CONTEXTO ESCOLAR

Douglas Paulino Barreiros 1 e José Roberto da Silva Brêtas 2

Resumo

O presente artigo fundamenta-se em um segmento de uma tese de doutorado


defendida em 2021 na Universidade Federal de São Paulo (USP). O período de
realização da pesquisa foi precedido pela circulação de suposições de que as
escolas estariam trabalhando com a “ideologia de gênero”, algo que colocaria
em risco crianças, adolescentes e famílias. Sabendo-se que as representações
sociais são roteiros para ação, o trabalho teve por objetivo levantar e analisar
as representações sociais de docentes acerca da diversidade sexual em contexto
escolar a fim de identificar os meios pelos quais docentes estariam trabalhando,
ou não, com a diversidade sexual nas salas de aula. Assim, foram
entrevistadas/os trinta docentes de uma escola da periferia de Guarulhos-SP. As
entrevistas foram coletadas, transcritas e analisadas à luz da Teoria das
Representações Sociais, enquanto método, e da Análise de Conteúdo. Tais
procedimentos metodológicos fizeram emergir oito categorias temáticas de
análise. Dentre elas destacamos a que foi nomeada de “É tudo ser humano:
invisibilizando as diferenças”. Os resultados das análises dessa categoria
revelaram que contrariando pânicos morais produzidos por setores
conservadores, as/os docentes não abordam questões de gênero e da
diversidade sexual em contexto escolar. Antes, invisibilizam as diferenças e
negam os diferentes tipos de discriminação e preconceito gerados pelas
homotransfobias que circulam no contexto escolar, pois ancoram suas
representações acerca da diversidade em fundamentalismos religiosos e
moralismos conservadores. Conclui-se que existem grandes desafios para a
construção de projetos pedagógicos que objetivem combater expressões
discriminatórias.

Palavras-chave: Educação sexual; Diversidade; Gênero; Representações


sociais.

“IT'S ALL HUMAN BEINGS”: INVISIBILIZING SEXUAL DIVERSITY IN A


SCHOOL CONTEXT

Abstract

This article is based on a segment of the doctoral thesis that was defended in
2021 at the Federal University of São Paulo (USP). The research period was
preceded by the circulation of assumptions that schools were working with
1
Doutor em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Trabalha na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEDUC-SP).
2
Doutor em Enfermagem pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor do Programa de Pós-Graduação
em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP.

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“gender ideology”, something that would put children, adolescents and families
at risk. Knowing that social representations are guidelines for action, the
objective of this study was to survey and analyze the social representations of
teachers about sexual diversity in the school context in order to identify the
means by which teachers would be dealing with sexual diversity in classrooms.
classroom. Thus, thirty teachers from a school on the outskirts of Guarulhos-SP
were interviewed. The interviews were collected, transcribed and analyzed
through the Theory of Social Representations, as a method, and Content
Analysis. Such methodological procedures gave rise to eight thematic categories
of analysis. Among them, we highlight the one that was named “It’a all human
beings: making differences invisible”. The results of the analysis of this category
revealed that contrary to moral panics produced by conservative sectors,
teachers do not address issues of gender and sexual diversity in the school
context. Rather, they make differences invisible and deny the different types of
discrimination and prejudice generated by homotransphobias that circulate in
the school context. In fact, they make differences invisible and deny the different
types of discrimination and prejudice generated by homotransphobias that
circulate in the school context, as they anchor their representations of diversity
in religious fundamentalisms and conservative moralisms. It is concluded that
there are great challenges for the construction of pedagogical projects that aim
to combat discriminatory expressions.

Keywords: Sex education; Diversity; Gender; Social representations.

1. Introdução

Na contemporaneidade, a abordagem da sexualidade permanece como


uma temática de considerável complexidade, derivada de preconceitos, tabus e
mitos que a circundam. Quando direcionada às pessoas homo/transexuais e
transgênero, essa questão adquire níveis adicionais de complexidade, uma vez
que indivíduos que se afastam da heteronormatividade e do binarismo de gênero
são frequentemente percebidos como desviantes. Nesse contexto, instituições
educacionais, caracterizadas pela propensão ao disciplinamento e à
normalização, enfrentam desafios substanciais ao lidar com a diversidade
sexual, que tende a ser ignorada, silenciada, desprezada ou, quando abordada,
tratada com fundamentos moralistas ou até mesmo fundamentalistas. Em outras
instâncias, a perspectiva adotada pode assumir uma abordagem higienista ou
de prevenção de gravidez e Infecções Sexualmente Transmissíveis.
A recorrente dificuldade institucional em abordar a diversidade sexual
tornou-se evidente em uma instituição educacional situada na periferia de
Guarulhos. A presença de pessoas percebidas como desviantes dentro do
ambiente escolar deu origem a situações embaraçosas e, por vezes,
conflituosas, manifestando-se tanto entre as/os estudantes quanto entre
estas/es e o corpo docente. Em várias instâncias, a estratégia adotada pela
comunidade escolar consistiu em evitar abordar a temática durante os períodos
de formação docente, nos projetos pedagógicos ou durante reuniões de
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alinhamento pedagógico. A manifesta incapacidade de abordar adequadamente
as questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero foi evidenciada, por
exemplo, quando um grupo de professoras/es organizou um abaixo-assinado
solicitando a remoção de um cartaz com temática LGBTQIAPN+, o qual foi
elaborado por um conjunto de estudantes lésbicas do Ensino Médio e exibido em
uma exposição de arte promovida pela referida instituição de ensino.
Episódios constrangedores envolvendo bullying, preconceito e
discriminação contra pessoas homo/transexuais e transgênero também foram
observados em outras dezenove escolas guarulhenses acompanhadas por um
Coletivo Sindical de Combate às Opressões. Esse agrupamento buscava apurar
casos de homofobia e transfobia nas escolas oferecendo apoio às vítimas, além
de propostas de formação docente acerca do tema diversidade sexual e de
gênero. Contudo, algo intrigante marcou a trajetória de sete anos de
acompanhamento dessas escolas pelo Coletivo Sindical. Das vinte escolas
acompanhadas, apenas uma abriu espaço para discussão coletiva acerca da
diversidade sexual, o que não ocorreu quanto às temáticas racismo e
sexismo/machismo. Essa experiência colocou em dúvida discursos políticos
conservadores e amplamente difundidos por meio de projetos, como o “Escola
sem partido”, e propagandas contrárias à denominada “ideologia de gênero”.
Assim, quando o Coletivo se dissolveu ficou o questionamento: sob a perspectiva
docente que trabalha com crianças dos anos finais do ensino fundamental e
adolescentes do ensino médio, quais razões e desafios dificultam a tratativa com
a questão da diversidade sexual e de gênero em contexto escolar?
Diante de tal indagação, e tendo em vista que as representações sociais
são o conjunto de imagens, opiniões e conhecimentos que sustentam a ação
prática das pessoas e dos grupos sociais (Moscovici, 2015), uma pesquisa de
doutorado buscou levantar e analisar as representações sociais de docentes
acerca da diversidade sexual em contexto escolar. Desse modo, objetivou
compreender o que de fato embasa a recusa do grupo estudado em abordar a
temática da diversidade sexual e de gênero na escola. Para isso, foram
analisadas, à luz da Teoria das Representações Sociais enquanto método e da
Análise de Conteúdo, trinta entrevistas com docentes dos ensinos fundamental
e médio.
Os procedimentos metodológicos fizeram emergir oito categorias de
análise, dentre elas a que se intitulou "É tudo ser humano: Invisibilizando as
diferenças” e que será abordada no presente trabalho. Essa categoria analítica
se mostrou importante, pois revelou que contrariamente aos discursos políticos
conservadores, a escola não trata as questões da diversidade sexual e de
gênero, antes as silenciam ou quando enfrentam a questão, o fazem por meio
da negação das diferenças ou pelo viés conservador e fundamentalista.

2. Ancoragem teórica

A homotransfobia se caracteriza como condição de vulnerabilidade à vida


e bem estar de pessoas cuja sexualidade de algum modo se distancia das

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expectativas sociais de reconhecimento das sexualidades legítimas, a saber,
heterossexual e cisgênero - expressão empregada para designar pessoa que se
identifica integralmente com o gênero que lhe foi conferido no nascimento.
Desse modo, a representação social da superioridade heterossexual e cisgênero
gera sofrimento, segregação, opressão e silenciamento de sujeitos dissidentes
da heteronormatividade - mecanismo biopolítico que estipula a
heterossexualidade como padrão sexual legítimo (Borrillo, 2013). Ou seja, a
homotransfobia refere-se à discriminação, preconceito e violência direcionados
a pessoas com base em sua orientação sexual e/ou identidade de gênero. O
termo abrange tanto a homofobia quanto a transfobia, reconhecendo que as
experiências de discriminação podem estar interligadas, especialmente para
pessoas que são simultaneamente homossexuais e transgêneras (Santos,
2016).
A homofobia está relacionada à aversão, intolerância ou hostilidade em
relação a indivíduos com orientação sexual não heterossexual, como gays,
lésbicas e bissexuais. Por outro lado, a transfobia refere-se à discriminação e
preconceito contra pessoas transgênero, ou seja, aquelas cuja identidade de
gênero difere do sexo atribuído no nascimento. Assim, quando se fala em
homotransfobia, está-se abordando a interseção dessas formas de
discriminação, reconhecendo que indivíduos podem enfrentar desafios adicionais
quando são alvo de preconceito tanto devido à sua orientação sexual quanto à
sua identidade de gênero. Este termo destaca a necessidade de combater e
superar as diversas formas de discriminação relacionadas à diversidade sexual
e de gênero (Simões; Facchini, 2009).
A homotransfobia social transcende os limites institucionais da escola,
manifestando-se internamente por meio de diversos mecanismos discretos,
porém persistentes, que refletem o privilégio heteronormativo. No âmbito
escolar, elementos como o currículo, as práticas pedagógicas, os espaços físicos,
a rotina diária, a linguagem empregada, os materiais didáticos, as atividades
recreativas e os métodos de avaliação são intrínseca e "naturalmente"
permeados pela diferenciação de gênero e orientação sexual. Em virtude de
causarem sofrimento e degradação a diversos indivíduos, todas essas práticas
educacionais demandam uma análise crítica e cética, devendo ser reconhecidas
como construções sociais e não como manifestações naturais. Destarte, torna-
se imperativo direcionar particular atenção à linguagem adotada na esfera
escolar, a fim de identificar e problematizar o sexismo, a homofobia, o racismo
e o etnocentrismo que ela inadvertidamente reproduz e institucionaliza (Louro,
2014).
Desse modo, a homotransfobia no contexto escolar é uma manifestação
nociva que acarreta prejuízos substanciais para a saúde mental e bem-estar
das/os estudantes. Essa forma de discriminação, que abrange tanto a homofobia
quanto a transfobia, perpetua um ambiente hostil e desfavorável para indivíduos
cujas orientações sexuais e identidades de gênero diferem das normas
hegemônicas. A presença de mecanismos de privilégio heteronormativo na
escola se traduz em marginalização, isolamento social e, frequentemente, em
situações de vitimização, conduzindo a um ambiente de aprendizado permeado

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por tensões e constrangimentos. O currículo, as interações interpessoais, a
linguagem institucional e as práticas pedagógicas, quando marcadas por
preconceitos homotransfóbicos, contribuem para a perpetuação de estigmas e
estereótipos prejudiciais. Além disso, tais práticas desencadeiam um impacto
significativo na autoestima e no desenvolvimento emocional dos estudantes,
comprometendo seu desempenho acadêmico e restringindo o pleno exercício de
seus direitos. Assim, a homotransfobia no ambiente escolar não apenas contraria
os princípios fundamentais de equidade e inclusão, mas também representa um
obstáculo substancial ao desenvolvimento integral e saudável das/os
educandas/os (Lopes et al., 2018).
Apesar disso, a abordagem das temáticas relacionadas à diversidade
sexual e de gênero revela-se uma empreitada complexa no contexto escolar. Tal
complexidade emerge em virtude de a instituição escolar constituir-se como um
componente intrínseco da estrutura social, continuamente gerando e reiterando
normas heterocentradas de sexualidade e gênero. A força regulatória dessa
construção normativa delimita, difunde e legitima corpos socialmente
significativos, estabelecendo como fronteira os corpos identificados como
abjetos. Nesse sentido, corpos considerados indesejáveis, repulsivos e abjetos
evocam a concepção psicanalítica de uma força de forclusão que fundamenta a
constituição do sujeito. Em outras palavras, o espectro fantasmagórico que se
impõe como aquilo que é absolutamente proibido ou mesmo remotamente
admissível, conforme discutido por Butler (2019), permeia a compreensão das
identidades e expressões que desafiam as normativas vigentes no contexto
educacional.
Nesse contexto, docentes, enquanto agentes sociais e políticos,
participam ativamente das práticas que normatizam e regulamentam as esferas
de gênero e sexualidade. A instituição escolar, por sua vez, desempenha um
papel significativo na reprodução interna das normas sociais associadas a gênero
e sexualidade, favorecendo aquelas consideradas normativas e socialmente
aceitas. Além disso, é necessário considerar o impacto das políticas públicas de
gestão educacional, historicamente permeadas pelo conservadorismo, as quais
sustentam um modelo educativo que, lamentavelmente, contribui para a
perpetuação de práticas excludentes. Este alinhamento com paradigmas
conservadores não apenas restringe a capacidade da escola de promover
ambientes inclusivos, mas também limita a abordagem das diversidades de
gênero e sexualidade no ambiente educacional, reforçando, assim, a reprodução
de normativas que marginalizam determinados sujeitos (Ferreiro; Silva, 2019).
Nesse sentido, as práticas educacionais e as representações sociais
desempenham um papel intrinsecamente interligado na construção e reprodução
das normas de gênero e sexualidade no ambiente escolar. A ativa participação
dos docentes como agentes sociais e políticos envolvidos na normatização
dessas esferas reflete não apenas a execução de políticas institucionais, mas
também a internalização e disseminação de representações sociais subjacentes.
A instituição escolar, ao funcionar como um microcosmo social, não apenas
reflete, mas também molda e reforça as representações sociais em torno de
gênero e sexualidade, contribuindo para a perpetuação de estereótipos e

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normativas que marginalizam certos grupos. O impacto das políticas
educacionais conservadoras ressoa na conformidade dessas representações,
limitando a amplitude de abordagens inclusivas e fomentando práticas
excludentes. Dessa forma, a interação entre práticas educacionais,
representações sociais e políticas institucionais forma uma rede complexa que
exerce influência significativa na construção da realidade social no contexto
escolar (Souza et al., 2015).
Além disso, observa-se a ascensão da ideologia conservadora promovida
por grupos identificados com a Escola Sem Partido, Associação Nacional de
Educação Domiciliar (ANED) e movimentos "pró-vida". A atuação conjunta
desses agrupamentos, aliada à participação de parlamentares, adquiriu
significativa influência política, notadamente a partir do pleito presidencial de
2018. Essas entidades impulsionam discursos de ódio mediante a produção de
memes, vídeos e notícias falsas, difundindo na sociedade argumentos que
sugerem que as instituições de ensino, especialmente as públicas, tornaram-se
veículos para a disseminação da "ideologia de gênero". Desse modo, propaga-
se a ideia de que educadores doutrinadores, bem como indivíduos identificados
como gays, lésbicas, usuários de substâncias psicoativas e comunistas, estariam
exercendo influência prejudicial sobre crianças e adolescentes, colocando em
risco a integridade das famílias tradicionais (Ferreiro; Silva, 2019).
O termo "ideologia de gênero" surge no cenário sociopolítico na década
de 90 como parte de uma estratégia da Igreja Católica para contrapor-se às
conquistas políticas alcançadas por setores historicamente marginalizados,
notadamente mulheres e indivíduos LGBTQIAPN+. A origem da expressão
remonta aos escritos do cardeal Joseph Aloisius Ratzinger, que, em 1997,
elaborou um documento em resposta à Conferência Mundial de Beijing sobre a
Mulher, promovida pelas Nações Unidas em 1995. Subsequentemente,
movimentos identificados como "pró-vida", comunidades evangélicas e
agremiações políticas de orientação ultradireitista engajaram-se ativamente na
"batalha" contra a suposta "ideologia de gênero", alinhando-se com ideais
ultraconservadores. Importante ressaltar que esta concepção representa uma
deturpação do conceito de gênero, resultante de um conjunto de estudos sobre
a sexualidade humana conduzidos em diversos campos acadêmicos, como
literatura, filosofia, sociologia e antropologia, conforme amplamente discutido
por Miskolci e Campana (2017).
No contexto contemporâneo, a expressão "ideologia de gênero"
transcende sua origem vinculada à tradição religiosa católica, adquirindo uma
conotação predominantemente política e ultraconservadora. Observa-se que o
termo, inicialmente utilizado para designar a crítica religiosa a determinadas
perspectivas sobre identidade de gênero e sexualidade, evoluiu para uma
ferramenta conceitual mobilizada por atores políticos ultraconservadores em prol
da consecução de um projeto de sociedade e poder ancorado em valores
tradicionais. Este fenômeno denota não apenas uma expansão semântica, mas
também uma mudança significativa no modo como a "ideologia de gênero" é
instrumentalizada, assumindo uma função estratégica no embate político
contemporâneo. Assim, a compreensão desse termo não está circunscrita

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apenas ao seu caráter originalmente religioso, mas compreendido de modo mais
abrangente considerando sua apropriação e ressignificação no contexto político,
revelando suas implicações mais amplas na formulação de discursos e políticas
ultraconservadoras (Junqueira, 2022).
Nesse contexto, por um lado, é plausível reconhecer a gênese social da
normatização de gênero e sexualidades, com uma centralidade na
heteronormatividade. Por outro, observa-se a intervenção política dos
agrupamentos ultraconservadores em torno da noção de "ideologia de gênero",
os quais disseminam um pânico moral associado à ideia de que os educadores,
por meio de uma suposta "doutrinação", representam uma ameaça à infância,
adolescência e à instituição familiar. Diante dessa dicotomia, emerge a
necessidade premente de uma reflexão crítica acerca das práticas docentes,
visando a compreensão sobre se tais práticas reproduzem conservadorismo,
promovem a disseminação da suposta "ideologia de gênero" ou se, de fato,
engendram uma pedagogia emancipatória. Nesse sentido, a análise das
Representações Sociais (Moscovici, 2015) dos docentes sobre gênero e
sexualidade assume uma importância reconhecida, visto que pode elucidar as
bases que as configuram, lançando luz sobre a realidade educacional em relação
a essa temática.

3. Metodologia

O presente estudo exploratório/descritivo com abordagem qualitativa


(Gil, 2006). Participaram do estudo trinta professoras/es dos anos finais do
Ensino Fundamental e Médio de uma escola pública localizada na região
periférica da cidade de Guarulhos/SP. Esse local foi selecionado por fazer parte
de um conjunto de vinte escolas acompanhadas por um Coletivo Sindical de
Combate às Opressões. Durante os sete anos de acompanhamento, o Coletivo
pode vivenciar momentos em que a ação pedagógica revelou-se débil e
contraditória quando diantes de questẽos da diversidade sexual e de gênero.
Os participantes do estudo foram selecionados atendendo a critérios de
inclusão: professoras/es que lecionam nos anos finais do ensino fundamental e
no médio; que lessem e assinassem termo de consentimento livre e esclarecido.
A solicitação para participação na pesquisa foi dirigida a mulheres e homens, de
acordo com a auto identificação/auto declaração de gênero. Buscou-se convidar
pessoas de segmentos diversificados como cristãos (católicos e protestantes),
de religião de matriz africana, agnósticos, integrantes de movimento sindical e
social, casadas/os e solteiras/os para assegurar a variedade da amostragem.
Os dados foram produzidos em entrevistas orientadas por roteiro
semiestruturado (Gil, 2006) com perguntas abertas acerca da percepção da
diversidade sexual e de gênero no contexto escolar; do reconhecimento da
discriminação e preconceito com relação à diversidade sexual e de gênero; a
respeito da intervenção pedagógia em casos de bullying, preconceito e
discriminação na escola. As entrevistas foram gravadas nas dependências da
escola em horários previamente estabelecidos. Os áudios foram transcritos

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integralmente e os participantes identificados pela letra E seguida do número de
execução da entrevista.
Utilizou-se da análise temática dos dados (Bardin, 2006). Na pré-análise,
a leitura flutuante possibilitou desmembrar as transcrições em quatro gemas
gerais; (I) Formação profissional em diversidade sexual e de gênero; (II)
Diversidade Sexual e educação; (III) Saberes docentes acerca da diversidade
sexual e de gênero; (IV) Escola e diversidade sexual. O tratamento do material
partiu do desmembramento dos temas gerais em 72 unidades de registro
codificadas em 17 unidades de contexto. As unidades de registro foram
enumeradas a partir de sua frequência. Esses procedimentos metodológicos
fizeram emergir oito categorias analíticas, dentre elas a denominada “É tudo ser
humano: invisibilizando as diferenças”.
Essa categoria de análise, como as outras, foi analisada à luz da Teoria
das Representações Sociais (Moscovici, 2015). Assim, as unidades de registro
codificadas em unidades de contexto indicaram as categorias temáticas que
ancoram as representações sendo, portanto, fundamental para a descrição do
conteúdo das mensagens e suas inferências.
A ética da pesquisa foi devidamente analisada e aprovada pelo comitê de
ética em pesquisa da Universidade Federal de São Paulo sob o parecer
4.332.428.

4. Resultados e discussões

A consensualidade entre as/os entrevistadas/os foi notável ao afirmarem


categoricamente a existência de discriminação e preconceito dirigidos às pessoas
LGBTQIAPN+ no ambiente escolar. A análise das narrativas revelou relatos de
experiências de homofobia cotidiana, incidindo não apenas nas interações entre
estudantes, mas também na dinâmica de convivência com membros da equipe
pedagógica e administrativa. Além disso, foram destacadas situações em que a
homofobia se manifestou nas interações com familiares de estudantes,
ampliando o escopo da violência para além das relações intraescolares.
Diversos/as entrevistados/as compartilharam relatos pessoais de terem sido
alvo desse tipo de violência, enquanto outros/as mencionaram conhecer tanto
docentes quanto estudantes que também enfrentaram situações similares no
contexto escolar. Essas revelações denotam uma preocupante pervasividade de
atitudes discriminatórias na escola, evidenciando a necessidade urgente de
abordagens pedagógicas e estratégias institucionais que promovam a equidade
e a inclusão (Louro, 2017).

Ah, isso é muito comum. As pessoas têm dificuldade para lidar com
o diferente, ainda mais no Ensino Médio, onde estão todos tentando
se auto afirmar e marcar posição no grupo. Então quando veem
um menino gay ou uma menina sapatona discriminam mesmo,
fazem piadas, riem e ridicularizam. (E 2)

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Claro que sim e não é só com aluno não, viu! Eu mesmo passo por
isso direto aqui dentro. Os alunos falam e riem de mim, alguns
imitam meu jeito de falar, de andar. Vira e mexe eu ouço alguma
voz gritando “viado” pelos corredores da escola. Outro dia mesmo
foi um pai que quando me viu perguntou logo pra secretária: “esse
cara esquisito aí que é professor do meu filho?”. Pra você ver como
é. Só sei dizer que a vida da gente não é fácil. (E 5)

Para a maioria das/os participantes entrevistadas/os, a identidade


LGBTQIAPN+ é comumente interpretada como uma escolha, percebida como
não natural e dissociada de uma orientação sexual legítima. Essa perspectiva é
frequentemente fundamentada na percepção de que a expressão de orientações
sexuais não heteronormativas, como ser lésbica ou gay, é atualmente percebida
como uma tendência da moda, sendo imposta de maneira ofensiva, perigosa e
desrespeitosa à sociedade em geral (Butler, 2019). Nesse contexto, destaca-se
a recorrência de argumentos que atribuem à mídia, em especial à Rede Globo
de televisão, a responsabilidade por uma suposta "inversão de valores",
argumentando que a influência exercida por esses meios de comunicação
contribuiria para a disseminação dessa percepção. Essas representações sociais
moldam a compreensão coletiva sobre as identidades LGBTQIAPN+, refletindo
e, por vezes, reforçando concepções que perpetuam estigmatizações e
desigualdades no âmbito social e educacional (Borrillo, 2013).

No caso da heterossexualidade é o normal, pelo menos é o que


deveria ser, né, mas ainda é o normal. Pelo menos eu acho mais
normal, não estou falando contra os outros casos aí que escolher
ser gays e lésbicas, não estou falando desse pessoal, não , tá?!
Mas é que homem e mulher têm mais jeito de ser da normalidade,
até mesmo pela parte física, de genital mais ainda, entende?! Você
vê que se encaixa mais certinho, inclusive pra fazer filho, né?! (E
4)

Pra você ver… agora é modinha esse negócio de homem com


homem, mulher com mulher, homem que se veste de mulher, uma
confusão. Mas tudo isso é por causa da Rede Globo que fica
divulgando isso daí e incentivando esse tipo de coisa. A gente sabe
que é assim porque a gente acompanha, mas o pior de tudo é que
esse tipo de coisa acaba chegando aqui na escola. Um absurdo! (E
24)

Sei lá, pra mim não tem nada demais, o que não está certo é essas
pessoas quererem impor esse tipo de coisa pra todo mundo goela
a baixo. Eu acho que ficam forçando a gente a ter que tolerar esse
tipo de comportamento. Sei lá, acho isso uma total inversão de
valores. Na verdade, quem não aceita a gente são eles… Oxi…, se
escolheram ser diferentes, que me importa, mas daí me obrigar a
ter de aceitar isso é demais.(E 30)

Dentre participantes evangélicos, o nível de desconforto experimentado


foi exacerbado, destacando-se ainda maior entre os indivíduos mais idosos. Esse
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segmento demográfico expressou sua aversão por meio de formulações como
"sou contra", "não acho isso correto", "isso contraria a natureza" e "Deus
abomina tal conduta", particularmente no contexto escolar (Junqueira, 2022).
Em relação à articulação do movimento LGBTQIAPN+, identifica-se uma
proeminência de representações negativas associadas a esse grupo social. Essas
representações ancoram-se nas manifestações públicas, notadamente
observadas em protestos e na Parada do Orgulho Gay, que são percebidas como
extravagantes e obscenas (Simões; Facchini, 2019). Estas ações são
interpretadas como uma imposição coerciva para a aceitação incondicional
dessas identidades, sendo este percebido como um custo inaceitável para a
sociedade em geral.

Então, eu sou pessoa de Deus, sou cristã e por isso não aceito isso
daí de jeito nenhum, principalmente aqui na escola que é lugar de
respeito onde convivem muitas pessoas. (E 7)

Eu não concordo com isso de ficar se expondo na rua. Quer coisa


mais escandalosa que aquele pessoal lá da Parada Gay que todo
ano sai na Paulista vestido de mulher, se agarrando homem com
homem, mulher com mulher, uma sem vergonhice. Um atentado a
todos os valores que a gente considera importante para uma
sociedade. (E 13)

A aceitação e respeito pela homossexualidade são condicionados, na


percepção das/os entrevistadas/os, à sua manifestação discreta (Lopes;
Oliveira, 2018). Manifestações públicas de afeto entre indivíduos do mesmo sexo
e/ou gênero são interpretadas como ofensivas, transgressoras da "moral e dos
bons costumes", sendo consideradas uma afronta aos princípios dos "cidadãos
de bem". A maioria expressiva das/os entrevistadas/os sustenta a intolerância
em relação às pessoas homossexuais que se apresentam de maneira percebida
como "afetada" ou "muito efeminada", especialmente no ambiente escolar
(Souza; Silva, 2015). Para estes, tais comportamentos são entendidos como
perturbadores da inocência infantil e interferentes no desenvolvimento sexual
das crianças e dos adolescentes (Junqueira, 2022).
Quanto às pessoas travestis, transexuais e transgênero, a presença delas
no ambiente escolar é rejeitada pela ampla maioria das/os participantes da
pesquisa. Essas expressões são consideradas toleráveis apenas em ambientes
privados e em contextos que não estejam vinculados à educação (Souza; Silva,
2015). As representações acerca das pessoas travestis e transexuais são
fundamentadas no essencialismo biológico, concebendo-as como simulações de
mulheres, uma vez que não possuem órgãos sexuais reprodutores femininos,
como vagina e útero (Butler, 2019).

Sei lá, mas tenho pra mim que devemos respeitar as escolhas de
cada um. Eu não tenho nada a ver com o que as pessoas fazem
nas quatro paredes, mas ficar se expondo na rua, no público daí
não! A não ser que sejam discretos, né!? Depois ficam aí se
mostrando, fazendo escândalo e quando são xingados ainda se
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sentem ofendidos. E a gente, não se ofende não?! Pior ainda é
querer ficar se mostrando na escola. (E 22)

Travestis, no caso, é quem escolhe se transformar, né?! Eu sei que


tem uns que é pra fazer espetáculos e tudo mais. Mas eu não sei
disso direito, mas na minha concepção é uma opção da mulher que
se veste de homem e do homem que se veste de mulher. Não tem
nada demais, desde que seja num lugar apropriado, uma casa de
show, uma boate, algo assim. Agora aqui na escola as pessoas têm
de ter respeito pelas normas de conduta e civilidade. (E 16)

Eu acho até bonito os travestis, esses homens que se vestem de


mulher, eu acho bonito mesmo e respeito, só não acho conveniente
virem para escola assim, pois pode assustar os outros porque por
mais que queiram ser mulher, nunca serão, porque nasceram
homem, com tudo de homem, entende?! Mas que nem estou
falando pra você, tem de ser respeitado. (E 28)

Determinados docentes do sexo masculino, de etnia branca e


heterossexuais, enfatizaram a redução da homofobia no ambiente escolar,
sugerindo que, em muitas situações, indivíduos LGBTQIAPN+ tendem a
interpretar mal brincadeiras comuns e inofensivas, atribuindo-lhes um caráter
exagerado. Este posicionamento reflete uma representação social docente que,
notadamente, invisibiliza a diversidade sexual e de gênero. O argumento
sustentado por esses educadores do sexo masculino, brancos e heterossexuais
não apenas minimiza a prevalência da homofobia na escola, mas também lança
mão de estereótipos ao sugerir que as experiências de pessoas LGBTQIAPN+
são frequentemente exageradas. Essa visão é, em última instância, enraizada
em uma perspectiva que desconsidera as nuances das dinâmicas interativas e
cotidianas vivenciadas por indivíduos que não se enquadram nas normas
hegemônicas de sexualidade e gênero (Lopes; Oliveira, 2018).
O fenômeno da invisibilização da diversidade sexual, portanto, emerge
como um componente significativo dessa representação docente, contribuindo
para a perpetuação de ambientes escolares onde as experiências de grupos
historicamente marginalizados permanecem marginalizadas e desconsideradas
(Louro, 2014). Essa abordagem, por sua vez, demanda uma análise mais
profunda das representações sociais dos docentes, visando compreender as
implicações mais amplas dessas perspectivas na construção de ambientes
educacionais inclusivos e respeitosos da diversidade (Moscovici, 2015).
Argumentaram, ademais, que pessoas LGBTQIAPN+ instrumentalizam sua
condição diferenciada para buscar vantagens junto ao Estado. Paralelamente,
destacaram uma suposta inversão de valores nos últimos anos, alegando que
pessoas heterossexuais e cisgênero estariam enfrentando situações de
opressão.
Este conjunto de perspectivas expressa a complexidade de
representações e narrativas subjacentes à percepção docente acerca das
dinâmicas relacionadas à diversidade sexual e de gênero no contexto
educacional (Souza; Silva, 2015).
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Ah, esse negócio de homofobia aí é tudo balela. Não tem isso na
escola não, o que tem é um monte de gente chata e mal humorada
que não gosta de brincadeira e leva tudo muito a sério. Sim, porque
agora tá tudo assim, não se pode falar nada que é preconceito,
machismo, homofobia, racismo e essas besteiras aí! (E 29)

Não é porque você é preto, pobre, gay e sei lá mais o quê, que tem
que ter tratamento diferenciado. Todo mundo merece respeito
igual. Esse pessoal aí que fica se vitimizando quer mesmo é ter
privilégio, cota racial e até cota pra travesti eu ouvi falar. Agora
eles tem até dia espcial, já a gente não não o dia do orgulho hétero,
o dia do homem, nem dia da consciência branca. Então… sso sim é
discriminação! (E18)

Quando indagadas/os sobre a abordagem adotada em relação a essa


temática, docentes heterossexuais manifestaram a percepção de que as pessoas
LGBTQIAPN+ frequentemente se vitimizam excessivamente, empregando a
expressão "mi-mi-mi" para caracterizar essa atitude. Em contrapartida,
aquelas/es que reconheceram vivenciar situações de constrangimento e
humilhação homofóbica relataram uma postura de tolerância para com “os
diferentes” (Butler, 2017), optando por relevar tais ocorrências a fim de
preservar seus empregos e evitar conflitos mais intensos. Esta atitude é
motivada pela percepção de falta de respaldo moral e jurídico para pleitear um
tratamento diferenciado e respeitoso, destacando a necessidade de uma análise
mais aprofundada das dinâmicas presentes na interação entre docentes e a
diversidade sexual e de gênero no contexto educacional.

O mundo está ficando é muito chato, isso sim. Não pode falar nada
que vem esse povo ai falar que é homofobia, que é isso que é
aquilo. Muito “mi-mi-mi”, não tenho paciência pra isso não. Um tal
de vitimismo, de chororô que não tem tamanho. Tá chato isso daí,
viu! (E 17)

Eu já me acostumei, sabe!? Eu tentei falar alguma vezes, mas foi


ainda mais ridicularizado, então agora deixo pra lá. Às vezes finjo
que não escuto, outras vezes olho e fico quieto porque preciso
desse emprego e não é fácil encontrar trabalho hoje em dia. E além
do mais, quem é que vai defender a gente aqui na escola? A maioria
tem preconceito e zomba da gente. Então, assim…. eu fico na
minha, faço meu serviço e como diz o outro… vou chorar na cama,
que é lugar quente [risos]. (E 3)

Uma minoria das/os entrevistadas/os demonstrou interesse em


empreender intervenções pedagógicas contra a homotransfobia no ambiente
escolar. Contudo, elas/es indicaram a não implementação de tais intervenções
devido ao receio de possíveis represálias por parte de familiares, gestores e
autoridades governamentais. Frequentemente, fundamentam suas
representações na crença de que a abordagem sobre gêneros e sexualidades
estaria legalmente vedada no contexto nacional (Junqueira, 2022).

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Então, eu acho muito errado o que fazem com os gays dentro da
escola. Eu acho um absurdo seja entre os alunos, seja entre
professores, enfim… isso não pode acontecer, pois prejudica muito
o bem estar do coletivo, mas infelizmente eu não tenho coragem
de falar abertamente sobre essas questões porque tenho medo de
como isso pode chegar nas famílias e na gestão. Ainda mais agora
com essa história de proibir a gente de falar sobre gênero e
sexualidade na escola. Eu tenho muito medo, mas fazer o que, né?!
(E 27)

A ampla maioria das/os participantes desta pesquisa rejeitou a


pertinência de discutir a temática da diversidade sexual e de gênero no contexto
escolar, fundamentando tal posicionamento em representações sociais que
advogam pela igualdade intrínseca entre todos os indivíduos. Essas/es docentes
mobilizam o argumento de que abordar questões relacionadas à diversidade
sexual e de gênero é, de fato, propulsor de diferenciações e privilégios, uma vez
que supostamente reduziria as pessoas LGBTQIAPN+ à condição de vítimas.
Nesse contexto, a discussão dessas temáticas na escola seria interpretada como
uma evidência destacada de um grupo que, segundo essa perspectiva, optou
por desviar-se da normatividade heterossexual (Ferreiro; Silva, 2019).

Eu não sou professora de gay, de lésbica, de negro. Sou professora


de inglês. Dentro da sala de aula eu não tenho gay, lésbica, negro,
nada disso. Eu tenho aluno, ponto. Enquanto aluno, são todos
iguais, são todos seres humanos igualmente merecedores de
consideração e respeito. Repito e reafirmo; é tudo ser humano!
Pon-to! (E 21)

Essa fala revela uma ancoragem da representação social (Moscovici,


2014) de docentes acerca da diversidade sexual em contexto escolar centrada
na noção de neutralidade e igualdade. A docente ressalta a sua identidade
profissional, afirmando ser professora de inglês e, ao fazer isso, busca enfatizar
uma abordagem imparcial no tratamento de suas/seus alunas/alunos. A
ancoragem está fundamentada na ideia de que, dentro da sala de aula, as
categorias identitárias, como orientação sexual (gay, lésbica) e raça (negro),
não devem ser consideradas ou destacadas. Em vez disso, a ênfase recai na
condição universal de "aluno", na qual todos seriam percebidos como iguais e
merecedores de consideração e respeito (Ferreiro; Silva, 2019).
A docente enfatiza a expressão "são todos seres humanos igualmente
merecedores de consideração e respeito" para reforçar a sua perspectiva de que
a identidade individual das/os alunas/os não deve influenciar a abordagem
pedagógica. A repetição enfática da palavra "aluno" e a ênfase na igualdade
reforçam a ideia de que, na sala de aula, as diferenças individuais são
subsumidas sob uma identidade comum, marcada pela neutralidade e
imparcialidade (Lopes; Oliveira, 2018). Essa ancoragem sugere que a docente
concebe a diversidade sexual e racial como aspectos secundários, subjugados à
identidade geral de “aluno”. No entanto, é importante reconhecer que essa
abordagem pode inadvertidamente contribuir para a invisibilização das

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experiências e identidades específicas dos alunos, deixando de reconhecer e
abordar as questões relacionadas à diversidade de forma mais explícita e
inclusiva (Simões; Facchini, 2009).
As análises evidenciaram que quando ocorre a abordagem docente em
relação às questões da diversidade sexual, em determinados momentos, ela
acontece permeada por um viés higienista e centrado na saúde sexual,
notadamente na prevenção de infecções sexualmente transmissíveis e gravidez.
Tal abordagem, embora abranja aspectos cruciais da educação sexual, pode, em
alguns casos, negligenciar a complexidade intrínseca à diversidade sexual,
relegando a discussão a uma perspectiva puramente biomédica. Ao se
concentrar predominantemente em tópicos relacionados à prevenção de riscos
físicos, a dimensão psicossocial da diversidade sexual pode ser subestimada,
limitando a compreensão das/os estudantes a respeito das nuances culturais,
identitárias e sociais inerentes a essa temática. Desse modo, uma abordagem
mais abrangente e contextualizada se faz necessária, promovendo uma
educação sexual inclusiva e respeitosa, que reconheça e contemple a diversidade
de experiências e identidades sexuais.

5. Considerações finais

O estudo sinalizou que a inserção de indivíduos LGBTQIAPN+ no


ambiente escolar pode, em algumas instâncias, ser submetida a uma dinâmica
social que os posiciona como corpos abjetos. A questão do corpo abjeto,
desenvolvida por Judith Butler (2017), oferece uma lente conceitual para
compreender essa marginalização, onde corpos e identidades sexuais não
conformes são relegados a uma condição de repulsa social. Nesse contexto, as
experiências de pessoas LGBTQIAPN+ na escola podem ser influenciadas por
processos de exclusão, estigmatização e discriminação, o que contribui para a
produção de corpos que são percebidos como desviantes em relação às normas
sociais e culturais vigentes. Essa dinâmica complexa destaca a importância de
investigações aprofundadas nas representações sociais e práticas discursivas
que contribuem para a categorização de corpos LGBTQIAPN+ como abjetos no
contexto educacional, visando promover ambientes mais inclusivos e
respeitosos.
À medida que as entrevistas foram conduzidas, emergiu de forma
incontestável a complexidade subjacente à comunicação com indivíduos que
expressam perspectivas tão divergentes das nossas, a ponto de suscitar
desconforto e hostilidade. Este desafio foi particularmente acentuado em um
contexto político marcado pela polarização, extremismos, fundamentalismos e
negacionismos. Contudo, sustentamos a convicção de que a promoção da
conquista de direitos pode se efetivar mediante a desmistificação de
preconceitos e estigmas. Assim sendo, depositamos a esperança de que esta
pesquisa possa contribuir substancialmente para este propósito, identificando
barreiras a serem superadas e delineando possíveis avanços.
A constatação de que a homotransfobia permeia as relações sociais e
pedagógicas, resultando em dor, sofrimento e segregação, permanece distante

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da percepção docente. Essa falta de consciência impede a busca por propostas
pedagógicas que possam modificar essa realidade, mantendo-a à margem do
horizonte educacional. Paralelamente, a ampla aceitação de que a
homotransfobia causa sofrimento diário às/aos estudantes, sugere um
reconhecimento incipiente de que as aflições sociais persistem e necessitam ser
erradicadas.
Entretanto, o maior obstáculo identificado nesta temática está
relacionado à concepção que preconiza a igualdade universal, negligenciando as
opressões que demandam combate. Sob essa perspectiva, onde todos são
tratados de maneira uniforme, as diferenças são desconsideradas, e
consequentemente, as necessidades que emanam delas são ignoradas,
comprometendo a proposição de estratégias educacionais equitativas.
Ao explorar as representações sociais de docentes acerca da diversidade
sexual em contexto escolar, o presente estudo se concretizou como uma
contribuição significativa para o entendimento das dinâmicas subjacentes que
permeiam essa temática no âmbito educacional. Os resultados revelaram que,
de maneira geral, as/os docentes abstêm-se de abordar abertamente a
diversidade sexual na escola, refletindo um silêncio institucional que tem
implicações marcantes nas percepções e práticas educacionais. As
representações sociais identificadas revelaram a presença de estereótipos,
fundamentos essencialistas e perspectivas fundamentalistas que, coletivamente,
contribuem para a reprodução de ambientes escolares pouco inclusivos e
marcados por marginalizações.
Diante desse cenário, o estudo apresenta uma relevância ao evidenciar a
necessidade premente de abordagens pedagógicas mais inclusivas e informadas
sobre a diversidade sexual. Para isso, faz-se imprescindível a inclusão dessa
temática nas formações iniciais e continuadas das/dos professoras/es. Além
disso, as representações identificadas neste estudo fornecem um ponto de
partida crucial para futuras pesquisas, sugerindo a urgência de investigações
mais aprofundadas sobre as origens e consequências dessas representações,
bem como estratégias eficazes para promover uma cultura escolar que respeite
e celebre a diversidade sexual. Em última análise, o estudo não apenas ilumina
as complexidades subjacentes às representações sociais de docentes, mas
também delineia uma agenda de pesquisa que visa transformar atitudes e
práticas educacionais em direção a ambientes mais inclusivos e respeitosos da
diversidade sexual.
Por fim, a pesquisa evidenciou que, em contraste com as alegações de
militantes de grupos ultraconservadores e fundamentalistas, a escola está longe
de engajar-se em projetos pedagógicos politicamente comprometidos com a
diversidade sexual e de gênero. Contrariamente às narrativas de uma suposta
doutrinação "gayzista" e imposição da "ideologia de gênero", a realidade
cotidiana da escola revelou que o grupo investigado orienta suas práticas com
base em representações sociais ancoradas em pressupostos morais
conservadores, reacionários e fundamentalistas. Essa constatação desmistifica
falácias e acusações infundadas, reforçando a necessidade imperativa de

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compreender as representações sociais dos docentes como uma âncora para o
silenciamento do tema na escola.

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Recebido em: 03 de setembro de 2023.


Aceito em: 15 de setembro de 2023.
Publicado em: 03 de janeiro de 2024.

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