Artigo. Ser Indio e Ser Caboclo Potiguar.

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mneme – revista de humanidades

ISSN 1518-3394

“Ser índio” e “ser caboclo” potiguar:


história indígena e o processo identitário
na comunidade dos Caboclos do Assú
Jailma Nunes Viana de Oliveira1

RESUMO: O presente artigo enfoca a emergência indígena na comunidade dos Caboclos, localizada no
município de Assú/RN. Logo, se faz urgente antes pontuar discussões que estão intimamente interligadas ao
modo como os Caboclos se percebem enquanto indígenas, assim como ao seu processo de territorialização, quais
sejam: a dicotomia reproduzida pela historiografia acerca do índio colonial, entre Tupi e “Tapuia”; bem como as
implicações que as divisões territoriais e de civilização e catequese pelos aldeamentos proporcionaram na
constituição dos grupos indígenas no Nordeste. Assim, a comunidade dos Caboclos reivindica seus direitos e a
posse de terras onde sempre viveram e trabalharam ao resgatar a memória da comunidade através da história da
“índia pega a casco de cavalo” e da formação da família Caboclo através de uma índia “Tapuia”. Percebe-se que a
representação e o estudo do índio no Rio Grande do Norte precisam ser renovados, de modo a corrigir visões
estáticas e/ou folclóricas presentes na historiografia oficial reproduzida ao longo do século XX. Por fim,
compreender as mobilizações indígenas mais recentes como produto de uma demanda étnica, social e política
cujos protagonistas são os próprios indígenas.
PALAVRAS-CHAVE: Caboclo. Emergência Indígena. História Indígena.

ABSTRACT: This article focuses on the indigenous community of emergency Caboclos, in the municipality of
Assú/RN. So, it is urgent before scoring discussions that are closely linked to how Caboclos perceive themselves
as indigenous, as well as its territorial process, namely: the dichotomy played by historiography about the
colonial Indian, between Tupi and "Tapuia"; and the implications that territorial divisions and civilization and
catechesis by settlements provided in the constitution of indigenous groups in the Northeast. Thus, the
community of Caboclos claim their rights and ownership of land where they have always lived and worked to
rescue the memory of the community through the history of "India takes the horse's hoof" and the formation of
Caboclo family through an Indian "Tapuia" . It is noticed that the representation and the study of the Indian in
Rio Grande do Norte have to be renewed in order to correct static and / or folkloric visions present in the official
historiography played throughout the twentieth century. Finally, understand the latest indigenous mobilizations
as product demand an ethnic, social and political whose protagonists are the indigenous people themselves.
KEYWORDS: Caboclo. Ethnohistory. Indian Emergency. Indigenous History.

Introdução

Entre os anos de 2011 e 2013, empreendeu-se uma pesquisa junto ao Programa de

Iniciação Científica (PIBIC) na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN),

coordenado por Vieira (2010). O objetivo inicial foi estudar sobre a comunidade dos

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Mestranda, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN). [email protected].
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Caboclos, inserida dentro do contexto de emergência indígena pelo qual o Brasil vem

passando, e consequentemente o Estado do Rio Grande do Norte. Ou seja, a comunidade dos

Caboclos não era o único grupo indígena no Rio Grande do Norte, durante esse período da

pesquisa, que reivindicava seu direito a terra e o reconhecimento indígena1.

Consequentemente, o estudo nos levou a descrever as formas de vida e como a

comunidade articulava o discurso da especificidade indígena, posto que se percebesse a

configuração de uma nova unidade sociocultural e a reelaboração da cultura e da relação com

o passado. Posto que os grupos étnicos acionem diferenças culturais para fabricar e refabricar

a sua individualidade. Assim, também se identificou dados demográficos e culturais que

contrastavam com outras comunidades indígenas do Rio Grande do Norte já pesquisadas por

Guerra (2007) e Silva (2007).

Nesse sentido, é interessante compreendermos que a recente mobilização de indígenas

no Rio Grande do Norte indica uma demanda étnica e política pelo reconhecimento dos

demais coletivos indígenas, pela legislação e pelo poder estatal brasileiro. A atividade desses

grupos na região contraria visões pessimistas atuais e decorrentes da historiografia de que os

indígenas potiguares estariam extintos ou que se perdeu por completo sua herança cultural e

histórica. Logo, temos em desenvolvimento um movimento que nos coloca algo novo que

merece ser analisado.

De modo que este artigo é resultado desse trabalho de pesquisa histórica e estudo

antropológico, bem como de discussões desenvolvidas na monografia de Oliveira (2013)

acerca da constituição da dualidade entre índios caracterizados como Tupi ou “Tapuia”.

Entende-se que a compreensão desse processo revela de que forma a historiografia posicionou

os indígenas brasileiros na História. Estudar o indígena na região nordeste, e nesse caso, no

Rio Grande do Norte, é remeter, quase sempre, ao que está posto pelos grandes nomes da

nossa historiografia local: Pombo (1922), Tavares de Lyra ([1921] 2008), Câmara Cascudo

(1955, [1949] 1992), dentre outros posteriores.

Apesar do tratamento histórico dado por todos os autores citados, interiorizou-se um

discurso elaborado pela elite, o objetivo do branqueamento populacional e a imagem

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folclórica representada pelos indígenas coloniais. Valendo-se do episódio da “Guerra dos

Bárbaros”, também conhecida como “Confederação Cariri”, tinha-se o argumento de um

acontecimento histórico que pôs fim aos índios. Assim, esse discurso oficial da historiografia

também se torna responsável pela ideia de apagamento das populações indígenas e de suas

tradições no RN, sobretudo no que concerne a informações dos índios habitantes do sertão.

Logo, isso traz implicações para se pensar a emergência indígena recente no Brasil e

em seus estados, sobretudo os que historicamente já haviam decretado a ausência de

indígenas, como o Rio Grande do Norte. Portanto, não seria por mero acaso que os Caboclos

estivessem inseridos em um movimento de emergência étnica, configurado pelos processos

anteriores presentes na História e que lhes relegam um legado: sua identidade indígena.

Compreendidas essas premissas, o trabalho se organiza da seguinte forma: um tópico

dedicado à discussão da representação do indígena colonial, de modo a entender a

interpretação de trabalhos posteriores e da própria população indígena e brasileira acerca de

seu passado indígena, pautados em um índio que seria aliado e outro índio pertencente a

outro extremo: o “Tapuia”; em seguida, faz-se uma breve imersão no processo de dominação

territorial no Brasil e suas implicações para os indígenas remanescentes e no contexto da

reivindicação dos Caboclos do Assú; por fim, um tópico dedicado ao processo identitário da

comunidade, especificando sua memória narrativa e elementos que os constituem como o

Caboclo.

Processo de colonização indígena: contrastes entre o Tupi e o “Tapuia”

Quais as visões que predominavam sobre o índio à época da colonização, e que

implicações esse processo teve na definição de uma visão moderna sobre o índio, sobretudo

quando nos deparamos com os trabalhos basilares da historiografia potiguar durante o século

XX? Entendendo que os europeus tiveram relações diferenciadas com os grupos indígenas da

costa e os grupos situados no sertão, cabe a compreensão do tratamento dado aos indígenas

Tupinambás e os chamados “Tapuia”2, na época da Conquista.

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O século XVI é pensado por Cunha (1990) como um período crucial para a formação

de uma representação acerca do indígena a partir do europeu. Nesse sentido, são nos contatos

iniciais e no impacto do Novo Mundo sobre o Velho continente que ocorrerão as impressões

iniciais acerca da cultura e da vida indígena a partir do olhar europeu, visões que ficarão

presentes por muitos séculos nos discursos oficiais. Assim, os indígenas que “contribuem”

para a formação da imagem dos índios no Brasil são os pertencentes aos “[...] grupos de língua

Tupi e, ancilarmente, Guarani”, não se esquecendo dos “[...] Aimoré, Ouetaca, Tapuia, ou seja

aqueles a quem os Tupi acusam de barbárie” (CUNHA, 1990, p. 21).

Abordando as castas de gentio estabelecidas pela colonização portuguesa, Monteiro

(2001) destaca a influencia da tradição historiográfica que interpreta as sociedades antigas e os

relatos sobre elas através de uma imagem estática, e a consequente supressão da ação dos

atores indígenas. Sua discussão parte dos escritos de Gabriel Soares de Sousa, um senhor de

engenho e sertanista no século XVI – e que posteriormente influenciou historiadores no

século XIX. Segundo Monteiro (2001), Gabriel Soares de Sousa foi pioneiro em estabelecer um

sentido de divisão dos indígenas em categorias como Tupi e “Tapuia” nesse contexto, no qual

“[...] fiando-se basicamente naquilo que seus informantes tupis lhes passavam, escritores

coloniais como Gabriel Soares costumavam projetar os grupos tapuias como a antítese da

sociedade tupinambá, portanto descrevendo-os quase sempre em termos negativos” (p. 18).

Ciente dessas diferenças culturais e políticas, entre os diversos grupos indígenas

habitantes da região, os colonizadores definiam os parceiros e os inimigos indígenas em

potencial, de modo que a parceria com os nativos se tornasse uma estratégia imprescindível

para o sucesso da dominação territorial frente à concorrência com outras nações

colonizadoras. Os próprios indígenas se beneficiavam dessa troca com os colonizadores, ao

empreenderem guerras contra as tribos inimigas, porém com o mesmo prejuízo frente às

demais alianças constituídas entre indígenas e europeus:

Esse (des)encontro colonial, onde os europeus serviam à lógica dos conflitos


interétnicos, e esses conflitos permitiam aos portugueses dividir para reinar,
foi fatal para os Tupi da costa, pois mesmo quando conseguiram reunir um
número considerável de aldeias em ataques combinados a posições lusitanas
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– como ocorreu com a chamada “Confederação dos Tamoios” – tiveram que


enfrentar os índios fiéis aos colonizadores, e acabaram derrotados (FAUSTO,
1992, p. 385).

Ainda sobre as alianças constituídas, vemos na narrativa de Hemming ([1978] 2007)

um fato específico aos Potiguara:

O inimigo tradicional dos potiguaras era uma tribo denominada tobajaras,


chefiada pelo cacique Pirajiba (‘Braço ou Nadadeira de Peixe’). Sendo
inimigos dos potiguares, os tobajaras eram aliados naturais dos portugueses e
estavam ligados a eles desde o casamento de Jerônimo de Albuquerque com
a filha do cacique Arcoverde (p. 249).

Todavia, destacamos aqui a necessidade de problematização e interpretação de

narrativas como essa. Apesar da narrativa acima demonstrar o que aconteceu e nos apresentar

um tipo de relação entre nativos e europeus, fazemos ressalvas, pois o próprio Hemming

(2007) se limita apenas a descrever os acontecimentos. Em determinados momentos,

privilegia a visão europeia, sem o questionamento de tendencionismos nas crônicas coloniais,

e que acarreta na consequente extinção dos índios na historiografia (HEMMING, [1978] 2007,

p. 266-269).

Há outra passagem interessante acerca das relações entre indígenas e colonizadores

encontrada em Hemming ([1978] 2007) e que reflete o modo como os nativos são

representados na escrita, levando a uma visão subjugada do indígena:

Os franceses, ao que parecia, os haviam abandonado. Assim, [os índios]


procuraram novamente celebrar a paz, entregar seus prisioneiros, submeter-
se a Portugal, concordar em serem batizados e transferir suas lealdades e a
sua aliança para os portugueses triunfantes (p. 259, grifo nosso).

Os verbos destacados acima evidenciam uma intenção precipitada de interpretar a

ação e o destino dos indígenas durante o período desses conflitos. Não obstante, muitos

relatos foram realizados por europeus imersos na dinâmica colonial, observando o indígena

como inferior e cujo fim seria, obviamente, deixar-se dominar. Cronistas, por exemplo, ao

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acompanharem as tropas e por fim, narrando uma campanha, muita das vezes evidenciavam,

sobretudo após uma vitória, o caráter subalterno dos indígenas.

Compreende-se que os indígenas desempenharam uma estratégica função na

construção e consolidação da população colonial. Logo, os indígenas também eram vistos

como grupos importantes no povoamento da terra, e com o estabelecimento dos

“descimentos”, os indígenas viviam próximos aos povoados coloniais. Como mediadores

nesse processo, temos os missionários, ativos no trabalho nos aldeamentos, agrupando

indígenas de diferentes grupos da região. Ainda, o termo “Tapuia”, antes uma denominação

de uma tribo de índios habitantes do sertão, era também utilizado pelos missionários na

identificação de um grupo diverso dos demais indígenas.

Segundo Pompa (2003, p. 37), a “comparação analógica” era um meio muito utilizado

pelos cronistas para identificar os nativos e os seus costumes. O viés teológico dominava essas

interpretações do outro, principalmente por estarem incluídos em um contexto no qual o

Novo Mundo significava uma noção de uma terra que condizia ao paraíso e o indígena era a

representação ao mesmo tempo da inocência e do diabólico. Essa visão onírica possibilitou

uma “invenção do selvagem”, destacando-se sua “humanidade monstruosa”.

Nesse sentido, o outro é conceituado a partir de um código religioso que toma o

paganismo do mundo clássico como o equivalente à religião dos nativos. Uma visão

demonológica foi utilizada para interpretar os índios e justificar a dificuldade de realizar o

projeto missionário. Mas isso se torna mais complexo, na medida em que se compreende

O trabalho de evangelização e do aprendizado do cristianismo foi um


contínuo movimento de mudanças rápidas e reajustes incessantes de
sistemas simbólicos, de um e de outro lado, para que eles pudessem
continuar a fazer sentido num mundo que não era mais o mesmo, onde
aqueles sistemas se formaram. Nunca houve, do lado indígena, a aceitação
passiva e a absorção indiscriminada da fé imposta pelos missionários, e
tampouco houve um fenômeno de “resistência” entendida como negação
total da catequese e afirmação de seus costumes tradicionais (POMPA, 2003,
p. 95).

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Dessa forma, o processo de conflitos, alianças e a catequese de indígenas levou à

compreensão acerca destes pelo europeu de maneira dualizada: índios aliados que viviam no

litoral e índios que viviam no interior, resistentes em maior escala à colonização. Logo, se os

Tupi da costa aparentavam aos europeus uma homogeneidade cultural, os índios do sertão

são percebidos a partir de uma enorme diversidade cultural e linguística.

À medida que os missionários se aprofundavam no estudo da língua tupi, as demais

línguas faladas pelos outros indígenas foram ignoradas, e consequentemente entendida

enquanto uma “língua travada”, dos “Tapuia”. Esse mesmo grupo isolado era visto como

ameaça, sobretudo ao empreendimento de colonização portuguesa, e também por alianças

com os holandeses e conversão à religião reformada. A condição geográfica também definia e

influenciava na classificação dos “índios bárbaros”.

A noção de “Tapuia” como alteridade absoluta e total vem se construindo só


ao longo do XVII, junto com as “entradas”, as “guerras justas”, e os
“descimentos” levados cada vez mais sertão adentro. Foi a partir daí,
enquanto o aldeamento dos Tupinambá e a destruição dos Caeté faziam
desses índios o modelo do “amigo” mais conveniente para os fins da colônia,
que os “Tapuia” tornaram-se os incontestados depositários das conotações
de hostilidade e barbárie, reforçada no período do domínio holandês,
quando a heresia acrescentou-se a todos os outros sinais da alteridade radical
(POMPA, 2003, p. 223).

Ressalta-se que o conceito de bárbaro não é só apenas utilizá-lo como uma

característica acentuada dos índios no tempo, mas como um termo que prosseguiu nas

narrativas intelectuais e permeou a ideia que se tinha e ainda se tem sobre os indígenas,

sobretudo, do sertão da época colonial. Ser bárbaro era uma condição de inferioridade diante

da civilização europeia. Cientes disso, o branco europeu a utilizará soluções: sejam os

missionários justificando a catequização como principal meio de transformá-los em

civilizados, seja colonos que acreditavam que a apenas a conversão não era suficiente, e,

portanto, estavam também sujeitos à escravização e assim serem úteis.

A presença holandesa na região Nordeste durante o Brasil colônia foi significativa na

divisão de grupos indígenas e consolidação de rivalidades. A derrota do projeto holandês de

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colonizar o nordeste colonial causou outra ruptura no processo de reordenamento desses

grupos indígenas, momento em que a sociedade colonial e a economia açucareira também

sofriam novas administrações e caminhos.

Nesse interim, a pecuária também sofria expansões, bem como se aumentava o

número de sesmarias doadas e expedições exploratórias do interior. A zona de conflito entre

os índios considerados “bárbaros” e o Império português também crescia em igual proporção.

Por exemplo, os “tapuias” da região do Açu, pertencentes à nação dos Janduís, reagiam aos

abusos de moradores e às posses de terras sesmariais, bem como à criação do gado. Muitos

fugiram e outros morreram devido a doenças.

O tratamento diferenciado pelo colonizador e missionários se fazia perceptível nas

políticas adotadas com índios aliados e outras com os índios considerados inimigos. Perrone-

Moisés (1992) demonstra essa dualização no tratamento ao considerar “que a existência de

duas linhas de política indigenista está provavelmente relacionada às duas reações básicas à

dominação colonial portuguesa: a aceitação do sistema ou a resistência” (p. 129). A famosa

Guerra dos Bárbaros ocorreu no período do Brasil colonial, época em que este espaço ainda

estava sendo disputado por colonizadores europeus diversos, com tratos diferenciados com os

indígenas existentes. Todos possuíam o objetivo de povoar o território e desenvolver uma

economia sólida o bastante para atender às necessidades locais.

Desse modo, a chamada Guerra do Açu (1687-1699) que abrangeu as capitanias

anexas do Rio Grande e a do Ceará, eclodiu atrapalhando o projeto colonizador de

povoamento e crescimento econômico. Entre o fim de 1687 e em 1688 esse conflito toma

proporções maiores. Segundo Puntoni (2002), ao citar um excerto do memorial de Pedro

Carrilho de Andrade datado de 1703, lê-se: “se levantaram [índios] nas ribeiras do Açu,

Moçoró e Apodi, [...] matando a toda coisa viva e depois queimando e abrasando tudo, não

deixando pau nem pedra sobre pedra de que ainda hoje aparecem ruínas” (p. 128).

A extensão dessa guerra entre índios e colonizadores causou prejuízos de ambos os

lados. Tanto financeiramente, quanto demograficamente, o projeto colonizador sofreu baixas,

assim como os indígenas sofreram com o extermínio e fragmentação de sua identidade

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política e sociocultural. Após a inserção de combatentes paulistas contra os indígenas,

chegando-se ao ápice dos conflitos, ao fim da guerra o Império português retoma o

povoamento e ocupação de regiões de fronteira, construindo-se aldeias ou fazendas de índios

em forma de arraiais.

A escravidão também foi uma prática bastante adotada pelo colonizador com os índios

inimigos apreendidos em conflitos. Todavia, a conversão era prioridade, civilizando-os e

defendendo-se a liberdade indígena. Nesse sentido, somente com a guerra justa é que a

escravidão era considerada como solução. Segundo Perrone-Moisés (1992, p. 123), “as causas

legítimas de guerra justa seriam a recusa à conversão ou o impedimento da propagação da Fé,

a prática de hostilidades contra vassalos e aliados dos portugueses [...] a quebra de pactos

celebrados”.

Assim, todo esse processo anterior nos leva a perceber como o governo colonial

português reagiu de maneira diferente com os indígenas que se submeteram ao sistema e com

aqueles que o recusaram. A escolha pela recusa declara a estratégia indígena, revelando sua

atuação direta nos conflitos entre si, com o domínio estrangeiro e na efetivação de alianças.

Como concluiu Perrone-Moisés (1992, p. 129), “a política indigenista não é mera aplicação de

um projeto a uma massa indiferenciada de habitantes da terra. É, como toda política, um

processo vivo formado por uma interação e um constante diálogo com valores culturais”.

Assim, compreender a dicotomia Tupi-“Tapuia”, leva-nos a compreender

estereotipizações e a ideia do índio que esteve presente na historiografia. Por estas impressões

vemos que posteriormente, nos séculos XIX e XX, com a demanda de se escrever uma história

nacional pautada em grupos raciais, que a historiografia nacional, como potiguar, se

concentrou na exaltação do índio colonizado e litorâneo, no qual o indígena aparece como

uma das bases essenciais para a formação do povo brasileiro.

A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, bem como Varnhagen,

segundo Monteiro (2001), já a partir do ano de 1839 começam a descobrir textos como o de

Gabriel Soares de Sousa, recuperar manuscritos e editá-los para publicação. Logo, Varnhagen

realizaria uma leitura instrumental dos relatos, o que contribuiu para a classificação dos

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indígenas em grupos fixos e atemporais. Construiu-se uma “mitografia nacional com os Tupi

ao centro”:

[...] Os Tupi foram relegados a um passado remoto, quando contribuíram de


maneira heroica à consolidação da presença portuguesa através das alianças
políticas e matrimoniais. Mas as gerações subsequentes cederam o lugar para
a civilização superior, deixando algumas marcas para a posteridade, inscritas
nos topônimos, nos descendentes mestiços e na persistência da língua geral
que, no século XIX, ainda vigorava entre algumas populações regionais e era
cultivada por setores das elites imperiais como a autêntica língua nacional.
[...] Os Tapuia, por seu turno, situavam-se no polo oposto, apesar das
abundantes evidências históricas que mostravam uma realidade mais
ambígua. Retratados no mais das vezes como inimigos, e não como aliados –
dos portugueses, bem entendido – representavam o traiçoeiro selvagem,
obstáculo no caminho da civilização, muito distinto do nobre guerreiro que
acabou se submetendo ao domínio colonial [...] (MONTEIRO, 2001, p. 29-
30).

Assim, os historiadores do Império reconfiguraram a dicotomia Tupi-“Tapuia”: o

primeiro era abordado a partir de um passo e nostalgia; enquanto que o segundo conseguiu

sobreviver e persista no século XIX. Não obstante, era disseminado o consenso de que os Tupi

eram os verdadeiros representantes dos brasileiros em sua forma original. Monteiro (2001)

alerta para a necessidade e importância da releitura dos documentos coloniais. Dessa forma, é

possível rever a tendência que congelou os indígenas em etnias fixas.

Da posse de terras indígenas no Brasil: implicações contemporâneas

Pontuamos no tópico anterior, a discussão referente à dualidade existente no

tratamento dos indígenas pelos colonizadores, em destaque Portugal – visto que será esse o

que por mais tempo administrará o Brasil até a proclamação da República, o que implicará

posteriormente na forma como o índio brasileiro deveria ser representado na História,

excluindo-se características que remetessem aos “Tapuia”. Agora levantaremos outra

discussão, acerca das terras ocupadas por indígenas, e que ao longo desse processo de domínio

e expansão colonial desencadeou a matança em massa de indígenas e a dispersão destes.

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Após a marcante Guerra dos Bárbaros, e apaziguados os conflitos, os colonizadores

ficaram receosos com as investidas indígenas, e percebe-se que o povoamento do sertão era

mais complicado que o domínio do litoral. O processo de doação de sesmarias e a colonização,

expandindo a pecuária, estabeleceram a retirada de indígenas que já habitavam as terras. Isto

foi intensificado com a doação sesmarial a soldados e oficiais, famílias tradicionais, além dos

aldeamentos missionários.

Segundo Pires (1990), a Guerra dos Bárbaros nos permite entender os conflitos de

poder entre os interessados na posse das terras habitadas pelos indígenas. Em paralelo com o

enfrentamento da resistência indígena, ocorreria uma “guerra branca”. Além das sesmarias

destinadas a soldados e oficiais paulistas que lutaram contra os indígenas, os

colonos/moradores comuns também reivindicavam terras. A divisão decorrente dessa disputa

levou a uma situação em que

[...] a má distribuição das terras gerou imensos latifúndios desocupados,


prejudicando os moradores da região [...]. A lei de 9 de janeiro de 1697, que
impedia a doação de sesmaria, não terminou com o latifundiarismo, porque
não tinha efeito retroativo. As sesmarias que já haviam sido doadas antes de
1697 estavam garantidas. Assim, o latifúndio continuou assegurado, como
no caso dos Ávilas, Guedes de Brito e outros donos de imensas terras do
sertão (PIRES, 1990, p. 112).

As alianças posteriormente firmadas ao longo do movimento de povoamento

começaram a ser negociadas com proprietários rurais e senhores de engenho, de modo a

garantir a pacificação dos indígenas e prevenir novos invasores estrangeiros ou interessados

nos territórios habitados pelos indígenas. Não demora a emergir argumentos de que os índios

já eram mestiços e “aculturados”, ou seja, discursos que neutralizavam a força de ocupação

dos indígenas sobre as terras. Assim os índios aldeados eram vistos como “misturados” e os

índios “puros” estavam restritos a um passado distante.

De forma que no início do século XIX, após esses processos de dispersão e colonização,

os índios no Nordeste eram aldeados ou já teriam morado em aldeamentos. Sobre esse

contexto, os autores Dantas, Sampaio, Carvalho (1992) analisam relatos de viajantes com

impressões acerca das condições dos indígenas. Logo, a ideia que ficou da ação desses
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aldeamentos foi de que os indígenas ali existentes não possuíam mais reação contra o domínio

do colonizador. Todavia, os autores percebem que essa perspectiva é superficial, visto que na

documentação pesquisada é demonstrado a interação variada dos indígenas com o branco,

“[...] não simplesmente como coadjuvantes emudecidos, mas como atores cujos papeis e falas

vão sendo gradativamente retirados do silêncio dos arquivos” (p. 447).

Tantos os aldeamentos, quanto o agregamento em fazendas evidenciam relações pelos

quais os indígenas tiveram que reorganizar sua forma de agir e de se verem como índios,

frente às ameaças ou ao processo decorrente da colonização:

[...] Depois do desmonte da ação missionária muitos índios sobreviveram


assentados nas fazendas sob o falso título de flâmulos (servos), ou mesmo
integrados às famílias como agregados; continuaram, compulsória ou
voluntariamente, entranhados no aparato social e familiar, e no correr dos
séculos reproduziram a forma de vida tapuia na sertaneja. [...] Uma vez
incorporados às fazendas, livres do agente regulador da Igreja, os tapuias são
aparentemente fagocitados numa casta “bastarda”, que, lenta e livremente, se
integra à sociedade colonial [...] (GALINDO, 2011, p. 196).

Com a Lei de Terras de 18503, ocorreu outro processo de desapropriação de terras,

com propriedades doadas às Câmaras Municipais, agora como propriedades particulares,

assim como de terras habitadas por indígenas. Quando da Constituição de 1891, os indígenas

não foram mencionados no texto legal, todavia o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) foi criado

posteriormente servindo como mediador entre os indígenas e o poder público em relação aos

territórios.

Considerando os processos de territorialização estudados por Pacheco de Oliveira

(1999), há uma diferenciação no modo como os indígenas vivenciaram esses processos:

sedentarizados e catequizados nos aldeamentos missionários no período colonial,

considerados aculturados e dispersos, bem como romantizados, no período imperial; no

século XX os índios passam por um contexto antiassimilacionista.

Assim, apreende-se que a comunidade dos Caboclos está inserida num contexto

complexo e pelos quais se desenvolveram relações de domínio e posse de terras muita das

vezes de maneira arbitrária e na mesma medida, de complexa resolução. De modo que a vinda

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de uma Coordenação Técnica Local da Fundação Nacional do Índio (CTL/FUNAI) em 2011

para o Rio Grande do Norte fez com que a mobilização indígena tomasse outros rumos, de

âmbito legal, a fim de que as reivindicações de terras pudessem ser atendidas, mediante o

processo de estudo e demarcação.

Logo, o período em que se empreendeu pesquisas e visitas especificamente na

comunidade dos Caboclos, entre o período de 2011 a 2013, é notável o avanço no que

concerne à atuação cultural e política dos indígenas por todo o Estado, uma maior articulação

entre elas e órgãos institucionais, objetivando a efetivação de direitos e demandas não só por

terras, mas por saúde e educação especificamente indígena.

Da índia “pega a casco de cavalo” e a “dente de cachorro”: a origem da família Caboclo

Entendendo os índios ao longo da história não como coadjuvantes ou sujeitos

passivos, mas, sobretudo enquanto um grupo que foi “sobrevivendo” ao longo do caminho,

encontra-se fatos repletos de conflitos entre o “branco civilizado” e os “nativos selvagens”.

Somente no nordeste brasileiro encontraríamos, durante os séculos XVI e XVII, uma grande

diversidade de grupos indígenas, grupos estes dos quais remanesceriam os atuais grupos por

toda a região.

O fracionamento étnico não é resultado apenas da interferência dos colonizadores, em

um processo de dominação e extermínio, doravante que os próprios índios foram agentes de

sua própria história em momentos determinantes, desencadeando para esse fim. Após a

expulsão dos colonizadores holandeses pelos portugueses – em meados do século XVII –, “ao

se referir à retomada dos aldeamentos na costa, Serafim Leite assinalará que ‘já quase tinha

passado o ciclo missionário; já começava a distinção entre ‘índios’ e ‘caboclos’’” (Serafim Leite,

1945, p. 335 apud DANTAS, SAMPAIO, CARVALHO, 1992, p. 442).

Torna-se importante compreender que se hoje os indígenas reivindicam determinados

direitos especiais sobre as suas terras, derivam-se de um contexto histórico, e, nesse sentido,

acaba sendo necessário restabelecer a memória indígena enquanto um instrumento que

confere a estes povos a legitimidade enquanto índios na contemporaneidade. Logo, também se

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evidencia a complexidade em se estudar processos de fragmentação pelos quais passaram os

grupos indígenas em todo o Brasil, desde a colonização.

A comunidade dos Caboclos se encontra dentro de um contexto de etnogênese e se

configura como um grupo que reivindica direitos indígenas, através do resgate de sua

historicidade e memória. Localiza-se entre os municípios de Açu e Paraú. Até o ano de 2013, a

comunidade contava com 37 famílias indígenas, no total de 115 pessoas; e 03 famílias não

indígenas, com o total de 08 pessoas. Logo, a área que compreende a comunidade é composta

por 40 famílias e 123 pessoas.

Desde o ano de 2005, em que data a participação de lideranças em uma audiência

pública na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte sobre os povos indígenas do

Estado, a comunidade tem se movimentado a fim de desenvolverem o processo de

reivindicação. Vale salientar que a mobilização indígena tem sido articulada com a parceria

com outros órgãos institucionais, como pesquisadores da UERN e da UFRN, o Grupo

Paraupaba (Museu Câmara Cascudo), o IBAMA e a FUNAI.

A ampliação dessa demanda frente ao poder público gerou uma maior visibilidade às

reivindicações específicas de cada comunidade no Estado. Em relação aos Caboclos, isso faz

emergir a sua historicidade e ascendência indígena na região. A partir da narração de mitos e

de ocupação espacial é que se percebe novas possibilidades de investigação tanto histórica

quanto etnológica na comunidade. A abordagem etno-histórica adotada na compreensão

dessas narrativas foi importante na medida em que se pautou questões que os próprios

indígenas ordenam e preenchem uma temporalidade e que revela a história do grupo.

Nos latifúndios formados após a disputa de terras a serem divididas entre os agentes

colonizadores, e no nosso caso, ao redor do rio Paraú, é que os Caboclos vem há no mínimo

seis gerações se mantendo e trabalhando para os fazendeiros. Isso se deu através da expulsão

dos índios de suas terras por pessoas que se intitulavam donos das terras. Sobre essa ocupação,

os Caboclos narram a demarcação “por braça”: “Eles chegaram aqui e marcaram a terra. Nesse

tempo não comprava. Eles demarcavam com o braço. Levantava e dizia: daqui pra acolá isso é

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meu” (Antonio Luiz Lopes – Zamba); “Eles montavam no burro mulo e saía demarcando e

dizendo: isso aqui é meu, isso aqui é meu, marcando...” (Damião Manoel da Silva).

Assim, a comunidade busca através de uma especificidade indígena, políticas públicas

específicas e o direito à posse da terra em que vivem. É por meio da Associação Comunitária

do Caboclo que os moradores se organizam e constroem lideranças. A principal demarcação

territorial adviria da aquisição de terras que englobam três fazendas localizadas nos arredores

da comunidade, que possuem terras adquiridas por compra e por doação. A justificativa dos

moradores da comunidade é de que as terras onde ficam as fazendas sempre foram utilizadas

por eles a partir de trabalho agrícola, pastoril, extrativista, caça e pesca.

Diante disso, por conhecerem a região em detalhes e estarem reivindicando as áreas,

temem represálias por parte dos fazendeiros. Todavia, é perceptível que a relação de amizade e

compadrio entre os caboclos e os proprietários das fazendas é bem estabelecida, fazendo com

que o uso das terras pelos moradores da comunidade seja possível, realizando as atividades

acima elencadas. Isso se deve ao fato de que as terras que atualmente ocupam só possuem

espaço para as suas residências, e não para plantação e criação de animais, por exemplo.

Figura 1 – Pesca artesanal no açude novo, em uma das fazendas (Junho/2012)

Foto: Jailma Oliveira

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Figura 2 - Coleta e queima de xique-xique para alimentar o gado em tempos de seca (Junho/2012)

Foto: Jailma Oliveira

A história da índia “pega a casco de cavalo” é transmitida ao longo dos anos, através

das pessoas mais velhas. Essa expressão advém de um episódio, em que um fazendeiro muito

rico, com seu cavalo perseguia e caçava a índia “Tapuia” e que era fugidia, a fim de usá-la

como escrava em sua fazenda. Não somente ela fugia, mas muitos outros índios que não

queriam mais ficar sob o domínio do fazendeiro. Como esconderijo, utilizava-se uma furna,

em meio às serras da região.

Atualmente, os moradores indicam a furna “Gargantinha” como um local utilizado

para abrigo. A “furna dos índios” era utilizada também como local de parada dos índios que

saiam para caçar. Além da furna, os “pilões” em pedras ao longo do rio Paraú demonstram a

atividade e a presença desses antigos indígenas.

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Figura 3 - Entrada da furna "Gargantinha" (Junho/2012)

Foto: Jailma Oliveira

Figura 4 - "Pilões" no rio Paraú (Junho/2012)

Foto: Jailma Oliveira

Em relação a episódios como o acima descrito, Santos Jr. (2008) pontua que

Embora a população masculina dos índios tapuias realmente tenha


decrescido a números quase imperceptíveis em algumas áreas da capitania
do Rio Grande devido às mortes ocorridas nos combates, as doenças e
migrações forçadas; por outro lado, foram bastante comuns no sertão
seridoense e da ribeira do Açu as notícias referentes às caboclas brabas
amansadas e pegas a dente de cachorro ou a casco de cavalo, para servirem
como domésticas ou mulheres para os vaqueiros (p. 189).

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Percebe-se que a domesticação da índia “Tapuia” demarca a passagem de um universo

selvagem, caracterizado pela bravura, resistência e ingenuidade, para um universo que a

identificará como uma cabocla, mestiça e vivendo com o branco. Segundo os moradores da

comunidade, a relação da índia selvagem “pega a dente de cachorro” e “a casco de cavalo” com

o branco dá origem a grande família Caboclo.

Morador da comunidade e descendente do “tronco velho” formado pelo casal Antonio

Francisco e Maria Luíza, o senhor Zamba, de quase 70 anos, revelou que além dessa história

contada pela sua mãe, Elina Maria, e que teria acontecido com a avó dela, também se contava

que aconteceu uma “grande queimada” nas serras do lugar, que fez com que os índios saíssem

daquela região. Os que ficaram foram perseguidos, pois sem rumo, eram facilmente

encontrados e escravizados pelos fazendeiros, pois eram selvagens. É perceptível a relação de

dependência que vai se desenvolvendo entre os indígenas e o fazendeiro, de modo que o

trabalho poderia até ser pago em troca da alimentação.

Além do trabalho na fazenda, passado de geração a geração, a construção de cercas de

pedra também foi fruto do uso da mão de obra dos índios sobreviventes. Por isso que

sobrevive a relação de meação e subjugação dos moradores na realização de atividades.

Moradores da comunidade confirmam esse trabalho, do carregamento das pedras e que

chegaram a trabalhar na construção, como afirmaram Antonio Luiz Neto, conhecido como

Bolero Novo, de 55 anos, filho do senhor Zamba e Manoel Mariano, de 61 anos.

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Figura 5 - Parte da cerca de pedra na “serrota”, mostrada pelos moradores (Junho/2012)

Foto: Jailma Oliveira

Apesar do que aconteceu aos Caboclos, em termos de território e heranças culturais,

eles vem vivendo no mesmo local, o que demonstra a resistência frente às condições de

desvantagem na forma como trabalham. O sistema de “meia” beneficia sobretudo os

fazendeiros, pois são eles que detêm a posse das terras e recebem metade do que é produzido

pelos Caboclos.

Logo, os Caboclos são bem diferenciados em comparação com o restante das famílias

que vivem próximas, nas fazendas e municípios vizinhos. São identificados ainda por

“Tapuia”, devido às suas características física e familiar peculiares, divergindo dos valores

comuns das pessoas que vivem nos arredores. Ou seja, são identificadas como pessoas que

possuem baixa estatura, pés e nariz largos, mulheres “abalofadas”, de cabelos pretos e longos

(sobretudo as que os próprios moradores da comunidade identificam como “caboclas

velhas”).

A comunidade é formada por uma única família, porém através de relações entre os

próprios Caboclos, sejam primos, parentes próximos, tio e sobrinha, tia e sobrinho, enteados.

Logo, o termo Caboclo é utilizado como apelido, principalmente pelos mais velhos: “Nós

trouxemos esse nome do início, da geração, de lá pra cá, uns acha que a gente é tapuia, outra

que a gente era turco, mas não tem nome de tribo de índio; somos tudo caboclo mesmo por

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causa da ‘caboquinha da mata’” (Antônio Luiz Lopes – Zamba). Portanto, ser Caboclo é

devido a pertencerem a uma família gerada por uma cabocla.

A comunidade tem como principais atividades econômicas a pecuária (bois e bodes), a

pesca artesanal, a agricultura extensiva de subsistência e secundariamente a extração da palha

de carnaúba. Esta última serve na produção de objetos de uso doméstico e em pequena escala,

para uso comercial. Como podemos ver a seguir:

Figura 6 - Esteira, bolsa, chapéu e vassouras confeccionados com a palha da carnaúba (Junho/2012)

Foto: Jailma Oliveira

Ainda da carnaúba se obtêm óleo e alimente para os animais. Todavia, seu uso acaba

sendo limitado, devido estarem localizadas em áreas de posse dos fazendeiros. Ainda há a

possibilidade de expansão da extração mineral de calcário, o que prejudica a reivindicação dos

Caboclos, já que a empresa responsável demonstrou interesse em comprar as faixas de terras

das fazendas, além de prejudicarem também pontos simbólicos e naturais da região.

É importante observamos que a comunidade está inserida em um contexto nos quais

os grupos que integram a emergência étnica e reivindicam direitos como índios, estão

distantes daquilo que é estereotipado pelo senso comum de um índio tradicional e em um

lugar específico: amarelo, nu ou com poucas roupas feitas de penas e vivendo em florestas.

Todavia, como pontua Pacheco de Oliveira (2011), é preciso estar atento às especificidades de

um grupo e o seu contexto de reivindicação.

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Nesse sentido, com a ampliação das políticas públicas, os grupos minoritários também

acabam inseridos, e nada mais legítimo acionarem suas estratégias e revalidarem sua

identidade, pois “[...] Sua importância tanto sociológica quanto política deriva justamente da

possibilidade de que abandonem a condição de relativa marginalidade e distanciamento em

face do campo indigenista [...]” (PACHECO DE OLIVEIRA, 2011, p. 679).

Diante das dificuldades enfrentadas, é comum os moradores da comunidade migrarem

para regiões que lhes fornecem maior qualidade de vida e oportunidades. Tanto é que algumas

famílias já migraram para municípios maiores, vizinhos, ou até mesmo para a capital do

Estado. Todavia, é muito forte o sentimento de ligação que há pela terra onde nasceram e

cresceram; logo, muitos querem permanecer e viverem na comunidade.

Conclusão

A historiografia clássica ao abordar o indígena brasileiro, estabeleceu em sua narrativa

uma visão do índio que se considerada atualmente, não condiz com a realidade. Isso se deve

ao fato de que o homem na história sofre modificações e ressignifica suas práticas e relações

culturais e políticas em sociedade. Todavia, o estudo do indígena, sobretudo na educação

básica, ainda encontra limitações temporais devido à estagnação no tempo das narrativas

disseminadas pela historiografia oficial.

O congelamento do índio e do colonizador no tempo e no espaço, em um processo de

dominação e resistência, fez com que o indígena desaparecesse pelo silenciamento de sua luta

ou da mitificação de determinados personagens. Logo, essa compreensão auxilia na

permanência de preconceitos e na disseminação de trabalhos que revisem e ampliem o estudo

do indígena na História. A partir desses fragmentos narrativos na comunidade dos Caboclos,

é possível compreender que a história da “Tapuia” selvagem e o caçador branco e civilizado de

forma a retomar a origem indígena são bastante comum na região Nordeste. Há uma

mudança radical entre o ser “Tapuia”, um índio bárbaro, ao ser Caboclo, um índio civilizado e

integrado nas relações com o branco.

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Os indígenas, na maior parte da história, estiveram inseridos dentro de uma narrativa

cristã e europeia. Os séculos iniciais da Conquista estarão permeados por perspectivas que a

todo momento se modificam em relação aos nativos: se os veem como potenciais súditos e

servos de Deus, logo depois estarão sendo tomados de forma estereotipada e depreciativa. Ou

seja, “tais representações eram distintas e contraditórias, pois distintos também foram os

sujeitos que as enunciaram, e com propósitos igualmente distintos” (FREITAS, 2011, p. 125).

Temos um deslocamento ideológico da figura do selvagem, modificada

incessantemente de acordo com a conversão e pelas alianças que foram se constituindo.

Solidificar-se-ia a visão do índio selvagem, mas civilizado e manso, um modelo que faria jus

aos antepassados brasileiros, em contraposição àqueles que praticam a barbárie e causaram

prejuízos ao progresso do empreendimento colonial português.

Desse modo, o índio Tupi estaria livre das acusações de bestialidade, adjetivo que iria

circular em outros grupos a quem a colonização e a catequese, sobretudo a portuguesa, não

alcançaria. Disso, depreende-se o quanto o indígena no decorrer da história foi subestimado.

Ao mesmo tempo, as controvérsias surgem, já que os indígenas sempre demonstraram que as

alianças e a conversão religiosa no seu cotidiano dependiam mais da vontade dos índios do

que da imposição de políticas indigenistas na viabilização prática dos objetivos colonizadores.

Atualmente, no Estado do Rio Grande do Norte, o feriado dedicado aos “Mártires de

Cunhaú e Uruaçú” é resquício de uma tendência unilateral sobre o ocorrido na historiografia

e que vai se firmando no saber popular. Se há o argumento para a laicidade do Estado quanto

à instituição do feriado, ao mesmo tempo não se pode ignorar que eventos desse tipo

aconteceram em grande número no período colonial, tanto por iniciativas de holandeses,

quanto pela iniciativa dos portugueses, dentre outros colonizadores.

Se considerarmos a base da historiografia regional, a partir dos intelectuais,

perceberemos uma ode à administração e às ações portuguesas, e assim, contemplam-se os

que foram fieis ao projeto colonial português. Logo, os indígenas existentes no RN ainda hoje

vivem sob a interpretação precipitada sobre o índio ao longo da História, como um ser que

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não sofreu alterações, influências e que não exerceu escolhas a partir de suas necessidades

políticas e culturais.

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Artigo recebido em 28 de agosto de 2015. Aprovado em 28 de setembro de 2015.

Notas

1
Trabalhos importantes na reflexão sobre esse contexto de emergência étnica foram as leituras de Macedo (2003)
e Cavignac (2011).

2
A palavra vem entre aspas porque é compreendida como uma categoria excludente, já que foi originada
posteriormente para indicar a barbaridade dos índios assim identificados, e não como um etnônimo.

3
Sobre este assunto, recomenda-se a leitura de Silva (2008).

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