Artigo. Ser Indio e Ser Caboclo Potiguar.
Artigo. Ser Indio e Ser Caboclo Potiguar.
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ISSN 1518-3394
RESUMO: O presente artigo enfoca a emergência indígena na comunidade dos Caboclos, localizada no
município de Assú/RN. Logo, se faz urgente antes pontuar discussões que estão intimamente interligadas ao
modo como os Caboclos se percebem enquanto indígenas, assim como ao seu processo de territorialização, quais
sejam: a dicotomia reproduzida pela historiografia acerca do índio colonial, entre Tupi e “Tapuia”; bem como as
implicações que as divisões territoriais e de civilização e catequese pelos aldeamentos proporcionaram na
constituição dos grupos indígenas no Nordeste. Assim, a comunidade dos Caboclos reivindica seus direitos e a
posse de terras onde sempre viveram e trabalharam ao resgatar a memória da comunidade através da história da
“índia pega a casco de cavalo” e da formação da família Caboclo através de uma índia “Tapuia”. Percebe-se que a
representação e o estudo do índio no Rio Grande do Norte precisam ser renovados, de modo a corrigir visões
estáticas e/ou folclóricas presentes na historiografia oficial reproduzida ao longo do século XX. Por fim,
compreender as mobilizações indígenas mais recentes como produto de uma demanda étnica, social e política
cujos protagonistas são os próprios indígenas.
PALAVRAS-CHAVE: Caboclo. Emergência Indígena. História Indígena.
ABSTRACT: This article focuses on the indigenous community of emergency Caboclos, in the municipality of
Assú/RN. So, it is urgent before scoring discussions that are closely linked to how Caboclos perceive themselves
as indigenous, as well as its territorial process, namely: the dichotomy played by historiography about the
colonial Indian, between Tupi and "Tapuia"; and the implications that territorial divisions and civilization and
catechesis by settlements provided in the constitution of indigenous groups in the Northeast. Thus, the
community of Caboclos claim their rights and ownership of land where they have always lived and worked to
rescue the memory of the community through the history of "India takes the horse's hoof" and the formation of
Caboclo family through an Indian "Tapuia" . It is noticed that the representation and the study of the Indian in
Rio Grande do Norte have to be renewed in order to correct static and / or folkloric visions present in the official
historiography played throughout the twentieth century. Finally, understand the latest indigenous mobilizations
as product demand an ethnic, social and political whose protagonists are the indigenous people themselves.
KEYWORDS: Caboclo. Ethnohistory. Indian Emergency. Indigenous History.
Introdução
coordenado por Vieira (2010). O objetivo inicial foi estudar sobre a comunidade dos
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Mestranda, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN). [email protected].
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Caboclos, inserida dentro do contexto de emergência indígena pelo qual o Brasil vem
Caboclos não era o único grupo indígena no Rio Grande do Norte, durante esse período da
o passado. Posto que os grupos étnicos acionem diferenças culturais para fabricar e refabricar
contrastavam com outras comunidades indígenas do Rio Grande do Norte já pesquisadas por
no Rio Grande do Norte indica uma demanda étnica e política pelo reconhecimento dos
demais coletivos indígenas, pela legislação e pelo poder estatal brasileiro. A atividade desses
indígenas potiguares estariam extintos ou que se perdeu por completo sua herança cultural e
histórica. Logo, temos em desenvolvimento um movimento que nos coloca algo novo que
De modo que este artigo é resultado desse trabalho de pesquisa histórica e estudo
Entende-se que a compreensão desse processo revela de que forma a historiografia posicionou
Rio Grande do Norte, é remeter, quase sempre, ao que está posto pelos grandes nomes da
nossa historiografia local: Pombo (1922), Tavares de Lyra ([1921] 2008), Câmara Cascudo
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acontecimento histórico que pôs fim aos índios. Assim, esse discurso oficial da historiografia
também se torna responsável pela ideia de apagamento das populações indígenas e de suas
tradições no RN, sobretudo no que concerne a informações dos índios habitantes do sertão.
Logo, isso traz implicações para se pensar a emergência indígena recente no Brasil e
indígenas, como o Rio Grande do Norte. Portanto, não seria por mero acaso que os Caboclos
anteriores presentes na História e que lhes relegam um legado: sua identidade indígena.
seu passado indígena, pautados em um índio que seria aliado e outro índio pertencente a
outro extremo: o “Tapuia”; em seguida, faz-se uma breve imersão no processo de dominação
reivindicação dos Caboclos do Assú; por fim, um tópico dedicado ao processo identitário da
Caboclo.
implicações esse processo teve na definição de uma visão moderna sobre o índio, sobretudo
quando nos deparamos com os trabalhos basilares da historiografia potiguar durante o século
XX? Entendendo que os europeus tiveram relações diferenciadas com os grupos indígenas da
costa e os grupos situados no sertão, cabe a compreensão do tratamento dado aos indígenas
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O século XVI é pensado por Cunha (1990) como um período crucial para a formação
de uma representação acerca do indígena a partir do europeu. Nesse sentido, são nos contatos
iniciais e no impacto do Novo Mundo sobre o Velho continente que ocorrerão as impressões
iniciais acerca da cultura e da vida indígena a partir do olhar europeu, visões que ficarão
presentes por muitos séculos nos discursos oficiais. Assim, os indígenas que “contribuem”
para a formação da imagem dos índios no Brasil são os pertencentes aos “[...] grupos de língua
Tupi e, ancilarmente, Guarani”, não se esquecendo dos “[...] Aimoré, Ouetaca, Tapuia, ou seja
relatos sobre elas através de uma imagem estática, e a consequente supressão da ação dos
atores indígenas. Sua discussão parte dos escritos de Gabriel Soares de Sousa, um senhor de
século XIX. Segundo Monteiro (2001), Gabriel Soares de Sousa foi pioneiro em estabelecer um
sentido de divisão dos indígenas em categorias como Tupi e “Tapuia” nesse contexto, no qual
“[...] fiando-se basicamente naquilo que seus informantes tupis lhes passavam, escritores
coloniais como Gabriel Soares costumavam projetar os grupos tapuias como a antítese da
sociedade tupinambá, portanto descrevendo-os quase sempre em termos negativos” (p. 18).
potencial, de modo que a parceria com os nativos se tornasse uma estratégia imprescindível
empreenderem guerras contra as tribos inimigas, porém com o mesmo prejuízo frente às
narrativas como essa. Apesar da narrativa acima demonstrar o que aconteceu e nos apresentar
um tipo de relação entre nativos e europeus, fazemos ressalvas, pois o próprio Hemming
e que acarreta na consequente extinção dos índios na historiografia (HEMMING, [1978] 2007,
p. 266-269).
encontrada em Hemming ([1978] 2007) e que reflete o modo como os nativos são
ação e o destino dos indígenas durante o período desses conflitos. Não obstante, muitos
relatos foram realizados por europeus imersos na dinâmica colonial, observando o indígena
como inferior e cujo fim seria, obviamente, deixar-se dominar. Cronistas, por exemplo, ao
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acompanharem as tropas e por fim, narrando uma campanha, muita das vezes evidenciavam,
indígenas de diferentes grupos da região. Ainda, o termo “Tapuia”, antes uma denominação
de uma tribo de índios habitantes do sertão, era também utilizado pelos missionários na
Segundo Pompa (2003, p. 37), a “comparação analógica” era um meio muito utilizado
pelos cronistas para identificar os nativos e os seus costumes. O viés teológico dominava essas
Novo Mundo significava uma noção de uma terra que condizia ao paraíso e o indígena era a
paganismo do mundo clássico como o equivalente à religião dos nativos. Uma visão
projeto missionário. Mas isso se torna mais complexo, na medida em que se compreende
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compreensão acerca destes pelo europeu de maneira dualizada: índios aliados que viviam no
litoral e índios que viviam no interior, resistentes em maior escala à colonização. Logo, se os
Tupi da costa aparentavam aos europeus uma homogeneidade cultural, os índios do sertão
enquanto uma “língua travada”, dos “Tapuia”. Esse mesmo grupo isolado era visto como
característica acentuada dos índios no tempo, mas como um termo que prosseguiu nas
narrativas intelectuais e permeou a ideia que se tinha e ainda se tem sobre os indígenas,
sobretudo, do sertão da época colonial. Ser bárbaro era uma condição de inferioridade diante
civilizados, seja colonos que acreditavam que a apenas a conversão não era suficiente, e,
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Por exemplo, os “tapuias” da região do Açu, pertencentes à nação dos Janduís, reagiam aos
abusos de moradores e às posses de terras sesmariais, bem como à criação do gado. Muitos
políticas adotadas com índios aliados e outras com os índios considerados inimigos. Perrone-
duas linhas de política indigenista está provavelmente relacionada às duas reações básicas à
Guerra dos Bárbaros ocorreu no período do Brasil colonial, época em que este espaço ainda
estava sendo disputado por colonizadores europeus diversos, com tratos diferenciados com os
povoamento e crescimento econômico. Entre o fim de 1687 e em 1688 esse conflito toma
Carrilho de Andrade datado de 1703, lê-se: “se levantaram [índios] nas ribeiras do Açu,
Moçoró e Apodi, [...] matando a toda coisa viva e depois queimando e abrasando tudo, não
deixando pau nem pedra sobre pedra de que ainda hoje aparecem ruínas” (p. 128).
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em forma de arraiais.
A escravidão também foi uma prática bastante adotada pelo colonizador com os índios
defendendo-se a liberdade indígena. Nesse sentido, somente com a guerra justa é que a
escravidão era considerada como solução. Segundo Perrone-Moisés (1992, p. 123), “as causas
a prática de hostilidades contra vassalos e aliados dos portugueses [...] a quebra de pactos
celebrados”.
Assim, todo esse processo anterior nos leva a perceber como o governo colonial
português reagiu de maneira diferente com os indígenas que se submeteram ao sistema e com
aqueles que o recusaram. A escolha pela recusa declara a estratégia indígena, revelando sua
atuação direta nos conflitos entre si, com o domínio estrangeiro e na efetivação de alianças.
Como concluiu Perrone-Moisés (1992, p. 129), “a política indigenista não é mera aplicação de
processo vivo formado por uma interação e um constante diálogo com valores culturais”.
estereotipizações e a ideia do índio que esteve presente na historiografia. Por estas impressões
vemos que posteriormente, nos séculos XIX e XX, com a demanda de se escrever uma história
segundo Monteiro (2001), já a partir do ano de 1839 começam a descobrir textos como o de
Gabriel Soares de Sousa, recuperar manuscritos e editá-los para publicação. Logo, Varnhagen
realizaria uma leitura instrumental dos relatos, o que contribuiu para a classificação dos
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indígenas em grupos fixos e atemporais. Construiu-se uma “mitografia nacional com os Tupi
ao centro”:
primeiro era abordado a partir de um passo e nostalgia; enquanto que o segundo conseguiu
sobreviver e persista no século XIX. Não obstante, era disseminado o consenso de que os Tupi
eram os verdadeiros representantes dos brasileiros em sua forma original. Monteiro (2001)
alerta para a necessidade e importância da releitura dos documentos coloniais. Dessa forma, é
tratamento dos indígenas pelos colonizadores, em destaque Portugal – visto que será esse o
que por mais tempo administrará o Brasil até a proclamação da República, o que implicará
discussão, acerca das terras ocupadas por indígenas, e que ao longo desse processo de domínio
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ficaram receosos com as investidas indígenas, e percebe-se que o povoamento do sertão era
foi intensificado com a doação sesmarial a soldados e oficiais, famílias tradicionais, além dos
aldeamentos missionários.
Segundo Pires (1990), a Guerra dos Bárbaros nos permite entender os conflitos de
poder entre os interessados na posse das terras habitadas pelos indígenas. Em paralelo com o
enfrentamento da resistência indígena, ocorreria uma “guerra branca”. Além das sesmarias
nos territórios habitados pelos indígenas. Não demora a emergir argumentos de que os índios
dos indígenas sobre as terras. Assim os índios aldeados eram vistos como “misturados” e os
De forma que no início do século XIX, após esses processos de dispersão e colonização,
contexto, os autores Dantas, Sampaio, Carvalho (1992) analisam relatos de viajantes com
impressões acerca das condições dos indígenas. Logo, a ideia que ficou da ação desses
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aldeamentos foi de que os indígenas ali existentes não possuíam mais reação contra o domínio
do colonizador. Todavia, os autores percebem que essa perspectiva é superficial, visto que na
“[...] não simplesmente como coadjuvantes emudecidos, mas como atores cujos papeis e falas
quais os indígenas tiveram que reorganizar sua forma de agir e de se verem como índios,
assim como de terras habitadas por indígenas. Quando da Constituição de 1891, os indígenas
não foram mencionados no texto legal, todavia o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) foi criado
posteriormente servindo como mediador entre os indígenas e o poder público em relação aos
territórios.
Assim, apreende-se que a comunidade dos Caboclos está inserida num contexto
complexo e pelos quais se desenvolveram relações de domínio e posse de terras muita das
vezes de maneira arbitrária e na mesma medida, de complexa resolução. De modo que a vinda
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para o Rio Grande do Norte fez com que a mobilização indígena tomasse outros rumos, de
âmbito legal, a fim de que as reivindicações de terras pudessem ser atendidas, mediante o
comunidade dos Caboclos, entre o período de 2011 a 2013, é notável o avanço no que
concerne à atuação cultural e política dos indígenas por todo o Estado, uma maior articulação
entre elas e órgãos institucionais, objetivando a efetivação de direitos e demandas não só por
passivos, mas, sobretudo enquanto um grupo que foi “sobrevivendo” ao longo do caminho,
Somente no nordeste brasileiro encontraríamos, durante os séculos XVI e XVII, uma grande
diversidade de grupos indígenas, grupos estes dos quais remanesceriam os atuais grupos por
toda a região.
sua própria história em momentos determinantes, desencadeando para esse fim. Após a
expulsão dos colonizadores holandeses pelos portugueses – em meados do século XVII –, “ao
se referir à retomada dos aldeamentos na costa, Serafim Leite assinalará que ‘já quase tinha
passado o ciclo missionário; já começava a distinção entre ‘índios’ e ‘caboclos’’” (Serafim Leite,
direitos especiais sobre as suas terras, derivam-se de um contexto histórico, e, nesse sentido,
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configura como um grupo que reivindica direitos indígenas, através do resgate de sua
historicidade e memória. Localiza-se entre os municípios de Açu e Paraú. Até o ano de 2013, a
comunidade contava com 37 famílias indígenas, no total de 115 pessoas; e 03 famílias não
indígenas, com o total de 08 pessoas. Logo, a área que compreende a comunidade é composta
reivindicação. Vale salientar que a mobilização indígena tem sido articulada com a parceria
A ampliação dessa demanda frente ao poder público gerou uma maior visibilidade às
reivindicações específicas de cada comunidade no Estado. Em relação aos Caboclos, isso faz
dessas narrativas foi importante na medida em que se pautou questões que os próprios
Nos latifúndios formados após a disputa de terras a serem divididas entre os agentes
colonizadores, e no nosso caso, ao redor do rio Paraú, é que os Caboclos vem há no mínimo
seis gerações se mantendo e trabalhando para os fazendeiros. Isso se deu através da expulsão
dos índios de suas terras por pessoas que se intitulavam donos das terras. Sobre essa ocupação,
os Caboclos narram a demarcação “por braça”: “Eles chegaram aqui e marcaram a terra. Nesse
tempo não comprava. Eles demarcavam com o braço. Levantava e dizia: daqui pra acolá isso é
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meu” (Antonio Luiz Lopes – Zamba); “Eles montavam no burro mulo e saía demarcando e
dizendo: isso aqui é meu, isso aqui é meu, marcando...” (Damião Manoel da Silva).
específicas e o direito à posse da terra em que vivem. É por meio da Associação Comunitária
territorial adviria da aquisição de terras que englobam três fazendas localizadas nos arredores
da comunidade, que possuem terras adquiridas por compra e por doação. A justificativa dos
moradores da comunidade é de que as terras onde ficam as fazendas sempre foram utilizadas
temem represálias por parte dos fazendeiros. Todavia, é perceptível que a relação de amizade e
compadrio entre os caboclos e os proprietários das fazendas é bem estabelecida, fazendo com
que o uso das terras pelos moradores da comunidade seja possível, realizando as atividades
acima elencadas. Isso se deve ao fato de que as terras que atualmente ocupam só possuem
espaço para as suas residências, e não para plantação e criação de animais, por exemplo.
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Figura 2 - Coleta e queima de xique-xique para alimentar o gado em tempos de seca (Junho/2012)
A história da índia “pega a casco de cavalo” é transmitida ao longo dos anos, através
das pessoas mais velhas. Essa expressão advém de um episódio, em que um fazendeiro muito
rico, com seu cavalo perseguia e caçava a índia “Tapuia” e que era fugidia, a fim de usá-la
como escrava em sua fazenda. Não somente ela fugia, mas muitos outros índios que não
queriam mais ficar sob o domínio do fazendeiro. Como esconderijo, utilizava-se uma furna,
para abrigo. A “furna dos índios” era utilizada também como local de parada dos índios que
saiam para caçar. Além da furna, os “pilões” em pedras ao longo do rio Paraú demonstram a
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Em relação a episódios como o acima descrito, Santos Jr. (2008) pontua que
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identificará como uma cabocla, mestiça e vivendo com o branco. Segundo os moradores da
comunidade, a relação da índia selvagem “pega a dente de cachorro” e “a casco de cavalo” com
Francisco e Maria Luíza, o senhor Zamba, de quase 70 anos, revelou que além dessa história
contada pela sua mãe, Elina Maria, e que teria acontecido com a avó dela, também se contava
que aconteceu uma “grande queimada” nas serras do lugar, que fez com que os índios saíssem
daquela região. Os que ficaram foram perseguidos, pois sem rumo, eram facilmente
pedra também foi fruto do uso da mão de obra dos índios sobreviventes. Por isso que
chegaram a trabalhar na construção, como afirmaram Antonio Luiz Neto, conhecido como
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eles vem vivendo no mesmo local, o que demonstra a resistência frente às condições de
fazendeiros, pois são eles que detêm a posse das terras e recebem metade do que é produzido
pelos Caboclos.
Logo, os Caboclos são bem diferenciados em comparação com o restante das famílias
que vivem próximas, nas fazendas e municípios vizinhos. São identificados ainda por
“Tapuia”, devido às suas características física e familiar peculiares, divergindo dos valores
comuns das pessoas que vivem nos arredores. Ou seja, são identificadas como pessoas que
possuem baixa estatura, pés e nariz largos, mulheres “abalofadas”, de cabelos pretos e longos
velhas”).
A comunidade é formada por uma única família, porém através de relações entre os
próprios Caboclos, sejam primos, parentes próximos, tio e sobrinha, tia e sobrinho, enteados.
Logo, o termo Caboclo é utilizado como apelido, principalmente pelos mais velhos: “Nós
trouxemos esse nome do início, da geração, de lá pra cá, uns acha que a gente é tapuia, outra
que a gente era turco, mas não tem nome de tribo de índio; somos tudo caboclo mesmo por
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causa da ‘caboquinha da mata’” (Antônio Luiz Lopes – Zamba). Portanto, ser Caboclo é
de carnaúba. Esta última serve na produção de objetos de uso doméstico e em pequena escala,
Figura 6 - Esteira, bolsa, chapéu e vassouras confeccionados com a palha da carnaúba (Junho/2012)
Ainda da carnaúba se obtêm óleo e alimente para os animais. Todavia, seu uso acaba
sendo limitado, devido estarem localizadas em áreas de posse dos fazendeiros. Ainda há a
os grupos que integram a emergência étnica e reivindicam direitos como índios, estão
lugar específico: amarelo, nu ou com poucas roupas feitas de penas e vivendo em florestas.
Todavia, como pontua Pacheco de Oliveira (2011), é preciso estar atento às especificidades de
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Nesse sentido, com a ampliação das políticas públicas, os grupos minoritários também
acabam inseridos, e nada mais legítimo acionarem suas estratégias e revalidarem sua
identidade, pois “[...] Sua importância tanto sociológica quanto política deriva justamente da
para regiões que lhes fornecem maior qualidade de vida e oportunidades. Tanto é que algumas
famílias já migraram para municípios maiores, vizinhos, ou até mesmo para a capital do
Estado. Todavia, é muito forte o sentimento de ligação que há pela terra onde nasceram e
Conclusão
uma visão do índio que se considerada atualmente, não condiz com a realidade. Isso se deve
ao fato de que o homem na história sofre modificações e ressignifica suas práticas e relações
básica, ainda encontra limitações temporais devido à estagnação no tempo das narrativas
dominação e resistência, fez com que o indígena desaparecesse pelo silenciamento de sua luta
forma a retomar a origem indígena são bastante comum na região Nordeste. Há uma
mudança radical entre o ser “Tapuia”, um índio bárbaro, ao ser Caboclo, um índio civilizado e
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cristã e europeia. Os séculos iniciais da Conquista estarão permeados por perspectivas que a
todo momento se modificam em relação aos nativos: se os veem como potenciais súditos e
servos de Deus, logo depois estarão sendo tomados de forma estereotipada e depreciativa. Ou
seja, “tais representações eram distintas e contraditórias, pois distintos também foram os
sujeitos que as enunciaram, e com propósitos igualmente distintos” (FREITAS, 2011, p. 125).
Solidificar-se-ia a visão do índio selvagem, mas civilizado e manso, um modelo que faria jus
Desse modo, o índio Tupi estaria livre das acusações de bestialidade, adjetivo que iria
alianças e a conversão religiosa no seu cotidiano dependiam mais da vontade dos índios do
e que vai se firmando no saber popular. Se há o argumento para a laicidade do Estado quanto
à instituição do feriado, ao mesmo tempo não se pode ignorar que eventos desse tipo
que foram fieis ao projeto colonial português. Logo, os indígenas existentes no RN ainda hoje
vivem sob a interpretação precipitada sobre o índio ao longo da História, como um ser que
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não sofreu alterações, influências e que não exerceu escolhas a partir de suas necessidades
políticas e culturais.
Referências
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Volume 792, [1949] 1992.
CUNHA, Manuela C. da. Imagens de Índios do Brasil: O Século XVI. Revista Estudos
Avançados. Volume 4, Número 10, 1990. p. 91-110.
DANTAS, Beatriz G.; SAMPAIO, José A. L.; CARVALHO, Maria R. G. de. Os povos
indígenas no Nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da
(Org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal
de Cultura: FAPESP, 1992. p. 431-456.
FREITAS, Ludmila G. O conceito de bárbaro e seus usos nos diferentes projetos coloniais
portugueses para os índios. Saeculum – Revista de História. Vol. 24 – João Pessoa, jan./jun.
2011. p. 125-138.
OLIVEIRA, Jailma Nunes V. de. Um herói para a nação: a escrita sobre o indígena colonial
para a história do Rio Grande do Norte no início do século XX. Monografia (Licenciatura em
História). UERN-FAFIC-DHI. Orientador: José Glebson Vieira. Mossoró, RN. 2013. 94f.
POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial.
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Vingt-Rosado, 2008. (Coleção Mossoroense, Série C, Volume 1531).
SILVA, Ligia Osorio da. Terras Devolutas e Latifúndio. 2.ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2008
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TAVARES DE LYRA, Augusto. História do Rio Grande do Norte. 3.ed. Natal: EdUFRN,
[1921] 2008. Coleção História Potiguar.
Notas
1
Trabalhos importantes na reflexão sobre esse contexto de emergência étnica foram as leituras de Macedo (2003)
e Cavignac (2011).
2
A palavra vem entre aspas porque é compreendida como uma categoria excludente, já que foi originada
posteriormente para indicar a barbaridade dos índios assim identificados, e não como um etnônimo.
3
Sobre este assunto, recomenda-se a leitura de Silva (2008).
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Caicó, v. 15, n. 35, p. 166-190, jul./dez. 2014. Dossiê Histórias Indígenas.