ULFD113640 Tese

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE DIREITO

CONTRATOS DE DIREITOS DE PERSONALIDADE


A pessoa humana como ser social perante o Direito e
a possibilidade da sua tutela na Via Arbitral

LIC. JOANA BIONE BOUSQUET

MESTRADO EM DIREITO
ÁREA DE ESPECIALIZAÇÃO: CIÊNCIAS JURÍDICAS

DISSERTAÇÃO ORIENTADA PELO PROFESSOR


DOUTOR JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO

2009
Aos meus Pais, Avós, Bel e amigos,
pelo apoio e amor incondicionais.

Mas, em especial, a Erika e a Thereza, mulheres


tão próximas, que são exemplos da busca
constante pelo conhecimento.

2
“.............................
Fundamental é mesmo o amor
É impossível ser feliz sozinho...”
(Antonio Carlos Jobim – 1967)

3
RESUMO: O presente trabalho busca realizar um estudo acerca da pessoa humana como uma
ser social perante o Estado e o Direito. E assim prosseguimos ao apreciar a esfera de
autodeterminação da pessoa, que no exercício do livre desenvolvimento da sua personalidade,
celebra contratos que têm como objeto direitos de personalidade. Diante dessa realidade,
procedemos a uma análise acerca das peculiariedades deste contrato, tendo em vista as
características do direito envolvido. Por fim, apreciamos a possibilidade de submeter os
litígios decorrentes destes contratos ao Tribunal Arbitral.

PALAVRAS–CHAVE: Pessoa humana, Estado e Direito. Direitos de personalidade.


Limitação Voluntária. Tutela Arbitral. Brasil e Portugal.

4
ABSTRACT: The following essay addresses a study on the human being as a social creature,
from the perspective of his relation to the State and the Law. We also examine the self-
determination of the person, who on the exercise of the free development of his personality
executes contracts that concerns personality rights. Facing this environment, we study the
peculiarities of the referred contracts, regarding the aspects of the involved rights. Finally, we
analyze the possibility of submitting disputes arising from these contracts to the Arbitration
Court.

KEY-WORDS: Human being, State and Law. Personality Rights. Voluntary Limitation.
Arbitration. Brazil and Portugal.

5
ÍNDICE

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................PÁG. 07

2. O DIREITO E A PESSOA HUMANA


2.1. RECONHECIMENTO DOS DIREITOS DA PESSOA.....................................PÁG. 10
2.2. O ESTADO SOCIAL DE DIREITO...................................................................PÁG. 48
2.3. DISTINÇÃO TERMINOLÓGICA DOS DIREITOS.........................................PÁG. 59
2.4. DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO....................................................PÁG. 63

3. TUTELA CIVIL DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE


3.1. PRINCÍPIO GERAL...........................................................................................PÁG. 71
3.2. DIREITO À PRIVACIDADE.............................................................................PÁG. 74
3.3. DIREITO À IMAGEM.......................................................................................PÁG. 77
3.4. DIREITO À VOZ.............................................................................................. .PÁG. 80
3.5. DIREITO AO NOME.........................................................................................PÁG. 81
3.6. CARACTERÍSTICAS GERAIS DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE....PÁG. 84

4. DIREITOS DE PERSONALIDADE E AUTODETERMINAÇÃO


4.1. DIREITO OBJETIVO E SUBJETIVO DE PERSONALIDADE.......................PÁG. 88
4.2. O LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE............................PÁG. 91
4.3. LIMITAÇÃO VOLUNTÁRIA...........................................................................PÁG. 97

5. CONTRATOS DE DIREITO DE PERSONALIDADE


5.1. REQUISITOS......................................................................................................PÁG. 105
5.2. REVOGABILIDADE......................................................................................... .PÁG. 111
5.3. OBSERVÂNCIA ORDEM PÚBLICA...............................................................PÁG. 116
5.4. CONTRATOS DE DIREITOS DE PERSONALIDADE E TERCEIROS.........PÁG. 118

6. ARBITRAGEM

6.1. ORIGEM HISTÓRICA DO INSTITUTO DA ARBITRAGEM.........................PÁG. 125


6.2. NOÇÕES GERAIS.................................................................... ..........................PÁG. 129
6.3. RELEVÂNCIA DA ARBITRAGEM NO CENÁRIO ATUAL...........................PÁG. 133
6.4. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA.............................................................PÁG. 135
6.5. ARBITRABILIDADE.........................................................................................PÁG. 141

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................PÁG. 149

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................PÁG. 151

6
1. INTRODUÇÃO

Os direitos de personalidade por estarem intimamente relacionados com a pessoa humana e


conseqüentemente ao contexto social no qual estão inseridos consistem em uma matéria em
constante evolução. Assim, não apenas o rol de direitos está relacionado aos padrões éticos e
morais das sociedades, como também o seu grau de tutela.

A indisponibilidade e a não-patrimonialidade, como veremos mais adiante, é apontada por


diversos doutrinadores como uma das principais características dos direitos de personalidade.
No entanto, a realidade atual nos mostra uma disparidade entre a teoria e a realidade, pois
como se explicariam as doações de órgãos, lícitas, legítimas e inclusive incentivadas pelo
Estado? A interrupção voluntária da gravidez permitido em diversos países e recentemente
legalizado em Portugal? Os contratos sobre direitos da imagem, voz, nome ou a vida privada?

Essas questões nos levaram a refletir sobre a disponibilidade e patrimonialidade desses


direitos e mais especificamente sobre os contratos que tem como objeto a autorização de sua
utilização por terceiros, mediante retorno financeiro ao seu titular. Diante desta problemática,
ao percebermos que embora estes contratos tenham um relevante conteúdo econômico, nos
preocupamos com o seu objeto: a pessoa.

Dessa forma, buscando demonstrar a importância do ser humano em seus diversos aspectos,
traçamos algumas considerações históricas acerca da origem do Direito, da positivação dos
direitos da pessoa no ordenamento jurídico e principalmente no que se refere à posição do
homem perante o Estado ao longo da história da humanidade. Após uma incursão sobre esta
evolução, chegamos ao Estado Social de Direito. Neste tópico, procuramos abordar questões
atuais sobre a pessoa na sociedade.

Em seguida, ocupamo-nos da definição de alguns conceitos gerais de Direito, como: a


distinção terminológica dos direitos hoje presentes nos ordenamentos jurídicos e a relação
existente entre Direito público e Direito Privado. Já com uma visão geral dos direitos,
passamos a tratar dos direitos de personalidade.

Iniciamos tecendo algumas considerações acerca da sua tutela civil dos direitos de
personalidade para, em seguida, tratarmos da esfera de autodeterminação dos titulares do

7
direito. Só então chegamos aos contratos que tem como objeto a autorização concedida a
terceiros para uso comercial dos direitos de personalidade mediante uma remuneração ao seu
titular.

Após esta etapa, passamos à análise do instituto da arbitragem, iniciando com a definição de
determinadas noções gerais para em seguida analisarmos a arbitrabilidade objetiva e ao fim
demonstrarmos a possibilidade de submeter os conflitos decorrentes dos contratos de direitos
de personalidade ao procedimento arbitral.

Como será demonstrado ao longo desse trabalho, os direitos de personalidade requerem um


grau de tutela mais elevado, que garanta o máximo de proteção à dignidade da pessoa. E para
tanto, muitas vezes, a jurisdição estatal pode não ser a opção mais adequada.

Isto porque, em razão da natureza da máquina estatal, embora exista a possibilidade de se


atribuir segredo de justiça a um processo, este muitas vezes não é suficiente a assegurar o
sigilo necessário quando se trata de questões tão delicadas, como os direitos de personalidade.
Tanto é assim que é muito comum vermos no noticiário pessoas de renome chegando a uma
audiência no foro estatal acompanhadas de uma legião de jornalistas ávidos por notícia.

Além disso, é inegável que o Estado, no exercício de sua jurisdição, não tem sido capaz de
compor com eficiência e qualidade os conflitos para os quais é provocado. A sociedade
encontra-se diante de um Poder Judiciário sobrecarregado de processos, que tramitam de
forma lenta e complexa, o que em geral agrava ainda mais eventuais ofensas aos direitos a
serem tutelados.

Portanto, o atual desafio do Direito Processual Civil passa pelo fornecimento de mecanismos
que garantam à população uma Justiça mais eficaz. Dessa forma, os ordenamentos jurídicos
devem estar comprometidos com a garantia do acesso à justiça, seja pela mitigação das
formalidades exigidas nos processos jurisdicionais, seja pela criação de métodos aptos a
solucionar controvérsias paralelamente à intervenção do Estado.

Neste contexto, a arbitragem vem ao encontro dessa perspectiva contemporânea do Direito


Processual, uma vez que através do Juízo Arbitral as partes poderão solucionar a lide de

8
forma sigilosa, célere e eficaz, assegurando-se, assim, um maior grau de proteção à dignidade
da pessoa humana em seus diversos aspectos.

Note-se que todo este percurso foi necessário à desmistificação de determinadas


características dos direitos de personalidade e a definição dos seus contornos, uma vez que
apenas dessa forma é possível compreendermos as peculiaridades dos contratos objeto de
análise e a possibilidade de submetê-los ao procedimento arbitral para assegurar o grau
adequado de tutela que estes direitos reclamam.

Ademais, gostaríamos de salientar que esta dissertação foi desenvolvida com base em um
estudo comparado das legislações portuguesa e brasileira, estando escrita conforme a língua
portuguesa do Brasil.

9
2. O DIREITO E A PESSOA

2.1. RECONHECIMENTO DOS DIREITOS DA PESSOA

Como aprendemos nas lições de Introdução à Ciência do Direito e Teoria Geral do Estado,
existem autores que defendem a existência de um período no qual o homem1 vivia isolado, em
uma economia de subsistência, tendo ampla liberdade para reger a sua vida da maneira que
melhor lhe aprouvesse. Era o período denominado como “Estado de Natureza”. Segundo os
defensores dessa teoria, apenas em um estágio posterior, o homem teria passado a viver em
sociedade e celebrado um acordo, chamado “contrato social” 2. Trata-se dos adeptos à teoria
contratualista sobre a origem do Estado.

Não compartilhamos desta posição, pois nos filiamos às teorias não-contratualistas, que tem
como grande precursor ARISTÓTELES. No século IV a.C., este filósofo já reconhecia que o
homem naturalmente tende a viver em sociedade3, uma vez que este desde os primórdios
sempre dependeu do outro para sobreviver, seja por necessidades físicas ou sócio-afetivas4.
Dessa forma, tendo em vista que “a sociabilidade é inata ao homem”5, reconhecemos a
existência de regras de conduta anteriores ao Direito6.

No entanto, há que se destacar que muito embora o homem necessite do outro, ele deve ser
reconhecido por si só e não como uma parte integrante da sociedade. Ou seja, diferente do que
pensava Aristóteles, “o estado de natureza é o estado de cada homem, considerado
individualmente, antes de qualquer vínculo social”7.

1
Utilizaremos neste trabalho as palavras pessoa, homem e ser humano como sinônimas, sem fazer qualquer
distinção em razão de sexo, mas simplesmente para nos referirmos à raça humana como um todo.
2
José de Oliveira Ascensão, O Direito, 13ª Edição, Lisboa: Almedina, 2005, pág. 24.
3
“... É evidente, portanto, que toda a Cidade pertence à natureza e que o homem é naturalmente feito para a
sociedade política... Também o homem é um animal político, mais social do que as abelhas e outros animais que
vivem em comunidades.” Aristóteles, Tratado de Política. Tradução de M. De Campos, 2ª edição, Publicações
Europa-América, págs. 07 e 08.
4
Também neste sentido: Diogo Leite de Campos, Nós – Estudos sobre o Direito das Pessoas, Coimbra:
Almedina, 2004, págs. 5-12.
5
José de Oliveira Ascensão, O Direito, op.cit., pág. 24.
6
Ao mencionarmos o termo Direito, ao longo deste trabalho, estaremos o utilizando em seu sentido mais amplo,
como uma ordem da sociedade, e não apenas ao conjunto normativo que exprime o ordenamento jurídico, direito
objetivo.
7
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós – Estudos sobre o Direito das Pessoas,
Coimbra: Almedina, 2004, pág. 43.

10
Mas, independente da posição que se adote, é certo que o Estado, a Sociedade e o Direito
existem por causa e para o homem8. O Estado é expressão do poder político prevalente em
uma sociedade, que com base na ordem jurídica pretende ordenar a vida social9. Por sua vez,
o Direito consiste em um fenômeno humano e social10, que para além de reconhecer os
direitos inatos do homem, é imprescindível para regular o viver do homem em sociedade.

Tanto é assim que desde as civilizações primitivas constatamos exigências feitas ao homem,
como o respeito ao próximo, o não matarás. Reconhecia-se aos outros a mesma dignidade do
próprio11. Deste modo, a pessoa naturalmente possui tanto direitos como deveres. E estes
poderes-deveres não são apenas para com o outro, mas também em relação ao próprio. Por
outro lado, como reflexo de um consenso sobre a importância do direito à vida, tínhamos que
não se deve matar a si e nem o próximo. Veda-se assim o suicídio12.

Portanto, é certo que o Direito não surge com a civilização, mas sim com o viver em
sociedade. Este fato é comprovado pela presença de diversas normas de conduta e meios de
solução de controvérsias nas sociedades tradicionais ainda hoje existentes. Dessa forma,
podemos dizer que existe o Direito dos povos tradicionais e o Direito dos civilizados13.

O Direito dos povos civilizados nada mais é que uma forma técnica de vida social fruto da
evolução dos homens, que surgiu quando estes começaram a se especializar e acabou por
tornar necessária a criação de instrumentos adequados a se viabilizar o desenvolvimento das
relações de troca. A distinção aqui está em que o Direito dos povos tradicionais está
relacionado ao instinto, enquanto o Direito dos civilizados está repleto de normas de conduta,
que tem a sua origem no momento em que o homem começa a organizar a sua convivência
além do instinto14.

8
A. Barbosa de Melo, Democracia e Utopia (Reflexões), Porto, 1980, pág. 29. Apud Paulo Otero, Instituições
Políticas e Constitucionais, 1ª Edição, Lisboa, Almedina, 2007, pág. 30.
9
Para uma distinção precisa entre Estado e Direito: Fernando J. Bronze, Pessoa, Direito e Estado – algumas
reflexões, In: Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. I, Lisboa: Almedina,
2008, págs. 291 e seguintes.
10
José de Oliveira Ascensão, O Direito, op.cit., pág. 23.
11
António Maria M. Pinheiro Torres. Acerca dos Direitos de Personalidade, Lisboa: Editora Rei dos Livros,
2000, pág. 13.
12
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós, op. cit., pág. 15.
13
José de Oliveira Ascensão, O Direito, op.cit., págs. 147 e seguintes.
14
Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Curso de Direito administrativo, 14ª Edição, Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2006, pág. 16.

11
Em um primeiro momento, tivemos a sociedade nômade, composta por caçadores que viviam
em grupo migrando de uma região a outra em busca de alimento, mas a sua organização era
bastante primitiva. Posteriormente, surge na Grécia Antiga uma sociedade mais sofisticada, na
qual há, inclusive, a divisão do trabalho.

Neste período, o Direito estava mais vinculado aos direitos patrimoniais15, pois o seu objetivo
era assegurar a autonomia privada dos cidadãos livres, que clamavam por mecanismos que
possibilitassem a obtenção da finalidade pretendida: as relações negociais. Prevalecia uma
concepção mecanicista do homem16, em que ele era considerado apenas como parte de uma
relação negocial e como tal era titular de direitos e obrigações estritamente relacionados com
o respectivo negócio.

O homem enquanto pessoa dotada de individualidade só veio a aparecer muito recentemente.


Até então, o ser humano era visto como um mero ser integrante da natureza e da sociedade17.
Ainda não existia a noção de pessoa ou qualquer preocupação com esta em si ou com o
complexo de necessidades vitais, direitos e valores que ela envolve. A noção acerca do
indivíduo, como pessoa singular, que possui corpo e alma, veio surgindo muito lentamente na
história da humanidade.

No período pré-socrático, a filosofia buscava explicar o mundo através de uma reflexão


centrada na cosmologia, mas por volta do século VI antes de Cristo identificamos uma
crescente preocupação com o homem. Aqui já era possível verificarmos uma tentativa de
explicação racional da origem do homem e do mundo, bem como, da relação entre o homem e
a divindade18.

No entanto, a idéia de liberdade inata ao homem existente neste período não é a mesma que
temos hoje. A liberdade na Grécia antiga não é aquela que reconhece o homem como titular

15
António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo III, 2ª edição, Lisboa:
Almedina, 2007, págs. 29 e seguintes.
16
Roxana Cardoso Brasileiro Borges. Disponibilidade dos Direitos de Personalidade e Autonomia Privada, Ed.
Saraiva, 2005, págs. 09 e 10.
17
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós, op. cit., págs. 13 e 14.
18
É assim que podemos ver em Eurípedes a idéia de que o homem é livre por natureza e em Sócrates que este é
dotado de razão. Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, 1ª Edição, Lisboa, Almedina, 2007, págs.
62-64.

12
de direitos autônomos perante o Estado, mas apenas permite a participação do cidadão nos
“negócios públicos da cidade”, subordinado às “leis da cidade”19.

As leis da cidade, por sua vez, não seriam únicas. Acreditava-se que além das leis criadas pelo
homem, existiria “uma ordem natural, formada por leis não escritas dirigidas a todos os
homens, as quais não são de hoje ou de ontem, antes sempre existiram, e em relação às quais
nenhuma lei humana pode transgredir”20.

Ou seja, o poder não seria ilimitado, mas estaria sujeito a restrições impostas por uma ordem
natural. Assim, na hipótese de ser desrespeitada essa ordem natural pelo poder político, os
atos praticados não seriam considerados válidos e, consequentemente, os cidadãos não eram
obrigados a respeitar essas normas. Portanto, o Direito não corresponderia apenas ao conjunto
de regras escritas emanadas pelos poder político, mas também às leis não escritas que por
natureza sempre existiram.

Assim, PAULO OTERO afirma que a democracia tem a sua origem na Grécia antiga,
intimamente relacionada com a defesa dos direitos da pessoa. A liberdade era o seu
fundamento, a igualdade entre as pessoas determinava a participação política e a maioria era o
critério para determinar a vontade decisória21.

Segundo o professor, a democracia ateniense estava baseada nas idéias de (i) igualdade, na
medida em que as leis conferiam tratamento idêntico a todos no âmbito de seus conflitos
privados; (ii) liberdade, ao conferir a cada cidadão o direito de se expressar nas assembléias; e
(iii) fraternidade entre os cidadãos. Já aqui o Estado teria começado a sofrer limitações em
relação às pessoas, não podendo intervir nas relações privadas22.

Mas LEITE DE CAMPOS destaca que na sociedade grega apenas os nobres eram
reconhecidos como indivíduos singulares. Estes considerados semi-deuses, enquanto os
demais eram vistos como meros integrantes da coletividade, sem qualquer individualidade23.
Além disso, não existia uma cisão entre o político e o religioso (Estado e igreja caminhavam

19
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 66 e 67.
20
Ibidem, pág. 67.
21
Ibidem, págs. 255 e 256.
22
Ibidem, págs. 71 e 73.
23
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós, op. cit., pág. 17.

13
juntos). As cidades estavam repletas de deuses e o dever de respeito às leis da cidade tinham
um fundamento divino24.

É assim que em PLATÃO, é possível percebermos que o Estado25 não existe para o homem,
não tem o objetivo de satisfazer as necessidades de seus cidadãos; muito pelo contrário, o
indivíduo existe para o Estado. Não há direitos da pessoa humana, mas prevalece o interesse
da coletividade em detrimento do individual. Assim, “Platão personifica a anticonstituição”.26
Para ele as leis não decorrem da vontade do povo, mas sim do filósofo, pois este seria dotado
de um poder absoluto27.

Note-se que em PLATÃO encontramos os alicerces ideológicos do nazismo, pois neste


filósofo já está presente a preocupação com a conservação da pureza da raça. Mais tarde, ao
proceder a uma análise crítica da influência da tradição judaico-cristã na sociedade,
NIETZSCHE reforça esta concepção ao deixar claro que os homens não seriam iguais. Para
ele os homens “mais fortes e independentes, preparados e predestinados para o comando”28 se
utilizam da religião como um meio para dominar os demais.

Como alerta PAULO OTERO, ao afastar a idéia de igualdade entre os homens, Nietzsche
acaba por defender um modelo de Estado totalmente afastado de quaisquer limites morais, no
qual não há o reconhecimento da dignidade dos homens29. Estão lançados aí os ideiais que
tanto influenciaram os Estados totalitários da primeira metade do século XX.

Não se distanciando tanto desta concepção, ARISTÓTELES afirma que o poder decorre da
própria natureza, uma vez que “todos os seres, desde o primeiro instante do seu nascimento,
estão, por assim dizer, marcados pela natureza, uns para mandar, outros para obedecer.” 30 E
como reflexo de uma concepção segundo a qual o indivíduo apenas tem importância quando

24
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós, op. cit., pág. 19.
25
Segundo Fernando J. Bronze, ressalvado o precedente na fase do Império Romano, o Estado apenas teria
surgido na Idade Moderna, pois até o século XVIII o poder político pertencia à sociedade civil organizada.
Fernando J. Bronze, Pessoa, Direito e Estado – algumas reflexões, In: Estudos em Honra do Professor Doutor
José de Oliveira Ascensão, vol. I, Lisboa: Almedina, 2008.
26
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 79.
27
Michel Villey, La Formation de la Pensée Juridique Moderne. Paris: Presses Universitaires de France, 2003,
págs. 73 -77.
28
Friedrich Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução Carlos
Morujão. Círculo de Leitores, 1996, pág. 81.
29
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 316.
30
Aristóteles, Tratado de Política,op. cit., pág. 12

14
integrado na sociedade, também é possível identificar neste filósofo a importância da lei, na
medida em que esta representaria o interesse comum da coletividade. Portanto, as pessoas que
cumprem a lei são consideradas justas31 e ao jurista cabe apenas assegurar o justo32.

Em Esparta também não há qualquer idéia de direitos do homem e o Estado é extremamente


intervencionista na vida privada das pessoas. O ser humano não é visto como titular de
direitos individuais, mas é uma peça na sociedade, que possui apenas deveres em função da
coletividade33.

Mas, na filosofia estóica, podemos perceber um rompimento com o pensamento grego


clássico. Nesta, a individualidade do homem é reconhecida e a pessoa é vista como um ser
essencialmente livre. Vigoram os princípios da liberdade e igualdade, decorrentes de um
direito natural que tem como principal fundamento o homem, com suas características. Mas
LEITE DE CAMPOS salienta que não seria possível atribuirmos aos estóicos a descoberta da
categoria de pessoa, uma vez a sua base metafísica apenas lhe foi atribuída pelo
cristianismo34.

Sob clara influência da escola estóica, a idéia de um direito natural universal e imutável, uma
lei que decorre da natureza do homem, também tem seu desenvolvimento em CÍCERO. No
Período Romano já se entendia que o Direito não decorreria da vontade dos povos ou do
poder, mas sim da própria natureza do homem. Portanto, CÍCERO entende que a lei natural
jamais pode ser ignorada e todos são livres e iguais35.

No que se refere aos direitos de personalidade, é possível detectar a sua presença, no Direito
Romano. Seria o reconhecimento da necessidade de se tutelar a pessoa, mas estes ainda não
eram previstos nos moldes que hoje o concebemos36. Mas já notávamos o surgimento da

31
Aristóteles, Ética a Nicômacos, 4ª edição, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, pág. 92.
32
“Aussi bien l‟office du juriste, selon cette philosophie, n‟est point le service de l‟individu, la satisfaction de ses
désirs, ...; le juriste est «prêtre de la justice» (sacerdotes justiae, dit Ulpien des jurisprudents). Il porsuit le
juste,...” Michel Villey, La Formation de la Pensée Juridique Moderne, op. cit., pág. 243.
33
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 75 e 76.
34
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós, op. cit., págs. 17 e 18.
35
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 90 a 94.
36
Luiz Roldão de Freitas Gomes, Noção de Pessoa no Direito Brasileiro, In: Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, Vol. LXIX, Coimbra, 1993, pág. 31 e seguintes; e Gustavo Tepedino, A Tutela da
Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro, In: Temas de Direito Civil, 4ª Edição, Renovar,
2008, pág. 26. Neste artigo, Tepedino esclarece que o Direito Romano concebia apenas “a ação contra a injúria

15
noção de dignidade da pessoa humana, que assegurava ao indivíduo a mais elevada
conceituação. Esta concepção é introduzida pela tradição judaico-cristã37, que tem como base
da sua doutrina a idéia de que o homem teria sido criado à imagem e semelhança de Deus38.
Ocorre que, nesse período inicial, a dignidade estava relacionada com a divindade, apenas
passando para o próprio homem tempos depois.

O cristianismo representou uma verdadeira ruptura com o pensamento grego. Nas culturas
oriental e grega clássica, a pessoa era vista como mero integrante da sociedade, como objeto,
mas com o cristianismo surge uma busca da individualidade autônoma, em que o homem
passa a ser portador de valores39. A liberdade e a igualdade são reconhecidas como inatas a
toda pessoa humana, sem distinção de classe social. Surgem os direitos do homem, que irão
limitar o poder do Estado.

A liberdade é reconhecida quando Deus permite que Adão e Eva, no exercício de sua
autodeterminação, optem por desobedecer à proibição estabelecida por ele e escolham o
pecado. Então, se o próprio Deus respeita a liberdade da pessoa humana, é claro que o Estado
deve estar limitado por ela. Por sua vez, a igualdade entre os homens também está presente,
quando o cristianismo reconhece que todos os homens são filhos de Deus e Jesus Cristo é
enviado para salvar a humanidade.

Assim estes ideais estarão refletidos nas obras clássicas dos grandes pensadores da Igreja. Em
SANTO AGOSTINHO, encontramos as bases da dignidade do homem, na medida em que ao
afirmar que os seres humanos são filhos de Deus por serem dotados de racionalidade e
inteligência, reconhece a liberdade humana e a igualdade entre as pessoas40. Além disso, este

que, no espírito prático dos romanos, abrangia qualquer atentado à pessoa física ou moral do cidadão, hoje
associado à tutela da personalidade”.
37
António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo III, 2ª edição, Lisboa:
Almedina, 2007, págs. 31 e seguintes.
38
Diogo Leite de Campos, O Direito e os Direitos da Personalidade, In: Nós, op. cit., pág. 111. Também neste
sentido, Manuel Duarte Gomes da Silva, Esboço de uma concepção personalista do direito: reflexões em torno
da utilização do cadáver humano para fins terapeuticos e científicos, In: Separata da Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, vol. XVII, 1965, pág. 133.
39
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós, op. cit., pág. 16.
40
“O que a ordem natural prescreve é isto, pois foi assim que Deus criou o homem: „Domine sobre os peixes do
mar, as aves do céu e todos os répteis que rastejam sobre a terra‟. Não quis ele, ser reacional feito à sua
imagem, dominasse senão sobre os irracionais – e não que o homem sobre o homem,mas o homem sobre o
animal. Por isso é que os primeiros justos foram instituídos mais como pastores de gado do que como reis de
homens. Era mesmo desta forma que Deus sugeria o que a ordem das criaturas reclamava e o que a sanças do
pecado exige.” Santo Agostinho, A Cidade de Deus, vol. III, 2ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2000, Livro XIX, capítulo XV, pág. 1923.

16
filósofo deixa claro que a justiça é o fundamento de validade de todo o Direito. Percebemos
esta concepção, quando ao buscar esclarecer as definições utilizadas por Cipião nos livros de
Cícero acerca Da República, demonstra que em verdade não existiu o Estado Romano, uma
vez que a república depende de uma ordem justa, mas isto não era o que prevalecia em
Roma41.

Por sua vez, em SANTO ISIDORO percebemos o desenvolvimento da concepção sobre o


ideal de justiça e acerca da existência de uma ordem natural. Deste modo, afirma que apenas
poderá ser considerada lei aquela que estiver garantida pela razão e distingue o Direito
Natural, o Direito Civil e o Direito das Gentes. O Direito Natural seria aquele “comum a
todos os povos, que existe em todas as partes pelo simples instinto da natureza, e não por
nenhuma promulgação legal” 42, ou seja, não seria produto do legislador. O Direito das Gentes
seria o que hoje entendemos por Direito Internacional Público, que trata de assuntos como
guerra, paz e se aplica a quase todos os povos43.

Prosseguindo com uma preocupação em torno do homem, ao analisar o significado dos


termos pessoa em geral e pessoa divina, SÃO TOMÁS DE AQUINO esclarece que pessoa em
geral significa substância individual de natureza racional44. No entanto, acaba por justificar a
escravatura e a desigualdade entre as pessoas, quando afirma que no estado de inocência não
existia o domínio de um homem sobre o outro, mas em razão do pecado original este foi
imposto.

Prosseguindo, SÃO TOMÁS DE AQUINO legitima o poder dos governantes, quando alega
que como o indivíduo é por natureza um ser social45, a vida em sociedade exige que alguém

41
“... E no diálogo explica o que entende por adopção de um direito, mostrando que a República não pode ser
governada sem a justiça. Portanto, onde não houver verdadeira justiça, não pode haver direito. O que se faz
conforme o direito faz-se com justiça; o que se faz injustamente não se pode fazer conforme o direito.” Santo
Agostinho, A Cidade de Deus, vol. III, op. cit., Livro XIX, capítulo XXI, pág. 1941.
42
“El derecho puede ser natural, civil o de gentes. Derecho natural es el que es común a todos los pueblos, y
existe en todas as partes por el simple instinto de la natureza, y no por ninguna promulgación legal.”San Isidoro
de Sevilla, Etimologias, I, 2ª edição, Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, Livro V, 4., pág. 511.
43
San Isidoro de Sevilla, Etimologias, I, op. cit., Livro V, 6., pág. 513.
44
“En effet, la personne en genéral signifie, comme on l‟a dit, la substance individuelle de nature raisonable.”
Thomas D‟ Aquin, Somme Theologique, Paris: Les Éditions du Cerf, 1984, Tome 1, Question 29, Article 4, pág.
373.
45
“Premièrement,parce que l‟homme est par nature un animal social, si bien que dans l‟état d‟innocence les
hommes auraient eu une vie sociale. Mais la vie sociale d‟une multitude ne pourrait exister sans un dirigeat qui
necessairement plusieurs buts, mais un seul n‟en recherche qu‟un.” Thomas D‟ Aquin, Somme Theologique, op.
cit., pág. 819.

17
esteja à frente dos demais para dirigi-la no sentido do bem comum46. E deste modo a posição
do governante perante o seu povo é equiparada à relação entre Deus e o mundo, o que acaba
por vincular o rei a buscar sempre o bem47. Além disso, tanto os seres humanos como as
entidades criadas por estes no viver em sociedade seriam existentes em si mesmas,
decorrentes da própria ordem natural48.

É neste contexto que distingue as leis dos homens em justas e injustas. As justas são aquelas
que têm força obrigatória49, pois se destinam ao bem comum, mas as injustas são as que estão
em desacordo com o comando divino. A estas o povo não estaria vinculado, não seria
obrigado a respeitá-las50. Vê-se pois que o homem deixa de ser visto como componente do
Estado e a ser considerado pessoa, titular de direitos, que goza de autonomia perante o
poder51.

Em sentido contrário, GUILHERME DE OCCAM52 nega a existência do universal. Apenas


os indivíduos singulares são dotados de existência real. Dessa forma, surge o nominalismo em
oposição ao realismo, e é demarcada a passagem do direito clássico para o direito moderno. A
lei seria produto da criação do homem e de Deus, expressão da vontade do legislador e da
vontade divina.

OCCAM53 rejeita firmemente a existência de um direito natural. Apenas reconhece o direito


positivo, que seria de dois tipos: as leis divinas e as leis humanas. Como o legislador positivo
é legitimado através de numa delegação de poderes, o Direito teria como única fonte a
vontade individual, seja ela a do indivíduo Deus, seja a dos indivíduos homens. E acrescenta

46
Thomas D‟ Aquin, Somme Theologique, Paris: Les Éditions du Cerf, 1984, Tome 1, Question 96, Article 4,
págs. 819 e 820.
47
“Luego el rey debe conocer que ha asumido este cargo, que es en su reino como el del alma en el cuerpo y el
de Dios en el mundo. Si observase esto con diligencia, se encendería en él, por un lado, el celo por la justicia, al
considerarse colocado para ejercerla en su reino en lugar de Dios; por otro, adquiriría la benignidad de la
mansedumbre y la clemencia al juzgar a cada uno de los que se hallan bajo su gobierno como miembros
propios.” Santo Tomás de Aquino, La monarquia. Tradução de Laureano Robles y Ángel Chueca, 3ª Edição,
Madrid: Editorial Tecnos, 1995, pág. 64.
48
Michel Villey, La Formation de la Pensée Juridique Moderne, op. cit., pág. 224.
49
“Les lois que portent les hommes sont justes ou injustes. Si elles sont justes, elles tiennent leus force
d‟obligation,...” Thomas D‟ Aquin, Somme Theologique, Paris: Les Éditions du Cerf, 1984, Tome 2, Question
96, Article 4, pág. 606.
50
Ibidem, págs. 606 e 607.
51
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós, op. cit., pág. 41.
52
Michel Villey, La Formation de la Pensée Juridique Moderne, op. cit., pág. 220 e seguintes.
53
“... toute autorité procède du consentement originel des assujettis...” Michel Villey, op. cit., págs. 240.

18
que todo o direito, no fim, é composto de poderes individuais54, na medida em que existiria
uma cascata de poderes, todos decorrentes do poder absoluto divino, hierarquicamente, por
uma série de concessões sucessivas55.

Rompendo com o pensamento exclusivamente cristão, MARSÍLIO DE PÁDUA se ocupa da


separação entre o plano religioso e o mundano56. Como destaca PAULO OTERO, este
filósofo antecipa a modernidade constitucional e tem grande importância no desenvolvimento
do regime democrático57, pois a partir da idéia de que todos são iguais58, reconhece a
supremacia do poder legislativo59 e afirma que o povo é o único soberano legítimo60, sendo a
eleição o método preferencial de escolha dos governantes.

Assim, temos que a razão de ser do Direito está no homem. Ou seja, o Direito existe por causa
do homem e para o homem. No entanto, a verdade é que a centralidade da pessoa como
instrumento a se limitar o poder do Estado se espalhou por todo o ocidente com a Revolução
Francesa, mas o embrião deste ideal é identificado no século XIII, com a Magna Carta
britânica. Esta Carta consagra a liberdade da pessoa humana, o devido processo legal, a
inviolabilidade da propriedade privada, dentre outros direitos do homem.

Conforme destacado por PAULO OTERO, a evolução constitucional britânica é anterior e


qualitativamente superior ao contributo francês “em matéria de direitos humanos na limitação
do poder político”61. Isto porque, a liberdade pessoal e os direitos individuais são a base do
Direito Constitucional britânico, os direitos são apenas reconhecidos na lei fundamental e não

54
De sorte que tout le droit,à la fin, se compose depouvoirs individuels. Michel Villey, op. cit., pág. 265.
55
Telle est cette cascade de pouvoirs,tous découlant de la puissance absolute divine, hiérarchiquement, par une
série de concessions sucessives. Michel Villey, op. cit., págs. 266.
56
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós, op. cit., pág. 42.
57
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 113-121 e 256.
58
Vale destacar que esta igualdade não se aplica às crianças, escravos, estrangeiros e mulheres. Neste sentido,
“Llamo ciudadano según Aristóteles, 3.º de la Política, caps. 1.º, 3.º y 7.º, a aquél que en la comunidad civil
participa del gobierno consultivo o judicial según su grado. Por esta delimitación quedan fuera de la condición
de ciudadano los niños,los esclavos, los forasteros y las mujeres, aunque por razones diversas”. Marsilio de
Padua, El defensor de la paz. Tradução de Luis Martinez Gomez. Madrid: Editorial Tecnos, 1989, pág. 55.
59
“§ 10. La elección de cualquier principado o de otro oficio que se ha de instituir por elección, principalmente
del que tiene fuerza coactiva, depende de la sola vontad expresada por el legislador. (...) § 25. A ningún
obispo,ni colegial ni individualmente, en cuanto tal, corresponde conceder la licencia de enseñar o de ejercer en
público un arte o discipina, sino que esto pertenece al legislador, al menos si es fiel, o, con su autoridad, al
gobernante. Marsilio de Padua, El defensor de la paz, op. cit., pág. 536.
60
“... el legislador o la causa eficiente primera y propia de la ley es el pueblo...” Marsilio de Padua, El defensor
de la paz, op. cit., pág. 54.
61
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 59.

19
resultado do texto constitucional, como ocorreu nas demais experiências constitucionais
européias.

Ocorre que, à exceção do contributo britânico, ainda não temos a sua positivação ou a noção
de que todo o ser humano tem igual qualidade. Esta idéia foi se difundido na Europa muito
lentamente, através de uma longa evolução do pensamento ocidental.

É certo que a tradição judaico-cristã trouxe a noção de pessoa, de que os homens são
igualmente livres e titulares de direitos. Todavia, esses ideais ficaram por muito tempo
aprisionados aos interesses políticos da época. O Estado absoluto não tolerava a idéia de ter
seus poderes limitados pela vontade soberana do povo. Assim, vemos “uma permanente
contradição em toda a História da evolução do relacionamento entre o Poder e os direitos da
pessoa nos Estados europeus cristãos”62.

Como exemplo dessa problemática, podemos citar a época das grandes navegações e a
colonização do continente americano. Como compatibilizar a imposição da cultura européia e
a escravidão dos nativos destes territórios, se o cristianismo prega a idéia de igualdade entre
todos os homens, como filhos do criador? É certo que o debate em torno deste tema foi vasto:
houve quem acreditasse na possibilidade de um homem dominar outro através da instituição
da escravatura63, enquanto outros defendiam a liberdade como valor inato ao homem64.

Assim temos a conhecida doutrina de MAQUIAVEL65, segundo a qual os fins justificam os


meios. A crueldade poderá ser praticada pelos titulares do poder político desde que
necessárias à segurança e à ordem66. No entanto, os direitos de conteúdo patrimonial devem

62
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 132.
63
Apenas como exemplo é possível citar Aristóteles. “O homem que, por natureza, não pertence a si próprio,
mas a outro, é, por natureza, escravo: é um objecto de posse e uminstrumento para agir separadamente e sob as
ordens do seu patrão.” Aristóteles, Tratado da Política, op. cit., pág. 12.
64
Neste sentido, apenas como exemplo, estão Santo Agostinho e Bartolomeu de las Casas: “Da liberdade, que é
natural, e da servidão que tem como primeira causa o pecado – porque o homem de vontade má, mesmo que não
seja propriedade de outro homem, é escravo das suas próprias paixões.” Santo Agostinho, A Cidade de Deus,
vol. III, 2ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, Livro XIX, capítulo XV, pág. 1923; “Desde el
principio del género humano, todos los hombres,todas las tierras y todas las otras cosas, por derecho natural y
de gentes, fueron libres y alodiales, o sea francas y no sujetas a servidumbre.” Bartolomé de las Casas, De Regia
Potestate, volume VIII do Corpus Hispanorum de Pace, Madrid: Consejo Superior de Investigaciones
Cientificas, 1984.
65
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 136-139.
66
É sob este fundamento que Maquiavel demonstra a importância do direito de acusação pública para a
manutenção da liberdade em uma república. Nicolo Machiavelli, Comentários sobre a primeira década de Tito
Lívio. Tradução de Sérgio Bath, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, 2ª edição, pág. 41.

20
limitar a atuação do poder político, uma vez que estes seriam direitos de maior importância,
inclusive, em relação a aqueles de natureza estritamente pessoal.

Em sentido oposto, podemos citar PICO DELLA MIRANDOLA, que valoriza a pessoa e a vê
como um ser que naturalmente é dotado de razão e liberdade. Para ele, quando Deus concluiu
a criação, desejou que alguém fosse capaz de compreender a razão de sua obra, então decidiu
criar o homem67. Assim, a dignidade surge como uma “qualidade de valor natural, inalienável
e incondicionado”68.

Embora o cristianismo difundisse a importância do homem e suas características essenciais,


na ordem jurídica vigente até os séculos XVIII e XIX não havia a previsão dos direitos da
personalidade. Eram os usos e costumes que determinavam os deveres do homem em relação
a Deus, à família e aos demais. O Direito apenas intervinha nas hipóteses de graves violações
à ordem social69.

Nesta época, o direito à privacidade era inconcebível, uma vez que a vida particular das
pessoas a todos interessava. Tudo que hoje consideramos como privado era público, pois
desse modo era possível que uns controlassem o comportamento dos demais com o objetivo
de verificar se as normas sociais de conduta estavam sendo observadas. Estas normas de
conduta nada mais eram que os usos e costumes, modelos de comportamento criados pela
própria natureza humana70.

O Direito Romano71, que até hoje influencia a legislação do mundo ocidental, era o Direito
Privado adotado em praticamente toda a Europa Continental. Em Roma, para ser pessoa não
bastava ser homem, mas necessariamente deveria possuir existência física completamente
autônoma, ser livre e cidadão romano. Os escravos eram vistos como meras coisas, que não
possuíam quaisquer direitos e não tinham capacidade jurídica.

Os direitos positivados não eram assegurados a todos. Na verdade, o que existia eram
liberdades e privilégios de apenas algumas pessoas, como eclesiásticos e nobres. Toda a

67
Giovanni Pico Della Mirandola, Discurso sobre a Dignidade do Homem. Tradução de Maria de Lurdes
Sirgado Ganho, Lisboa: Edições 70, pág. 51.
68
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 136.
69
Diogo Leite de Campos, O Direito e os Direitos da Personalidade, In: Nós, op. cit., págs. 115 e 116.
70
Ibidem, págs. 112 -117.
71
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 144 e 145.

21
preocupação em torno da pessoa girava em torno de interesses de natureza patrimonial.
Assim, o nascimento e a morte tinham importância para delimitar o momento da aquisição de
direitos patrimoniais e o fim da personalidade jurídica, pois desse modo eram definidos os
aspectos sucessórios. Não havia qualquer preocupação com os direitos do nascituro, que era
visto como uma parte do corpo da mãe72.

Neste contexto, a tutela jurídico-civil da pessoa humana permaneceu por muito tempo baseada
numa perspectiva patrimonial, imperava a desigualdade jurídica das pessoas. A escravatura
era vista como algo natural. Tanto que até a Revolução de 1789, temos no direito francês a
presença de três classes de homens: os livres, os servos (que eram vinculados ao sistema
feudal) e os escravos. Em Portugal, até 1773, os seres humanos eram divididos entre livres e
escravos. No Brasil, essa divisão só acabou muito mais tarde, em 1888, com a abolição da
escravatura.

Note-se que esta não era a única distinção que vigorava no período, pois a mulher era tida
como uma pessoa com capacidade diminuída e mesmo entre os homens livres existiam
algumas diferenças que produziam reflexos em sua capacidade jurídica73. Não existia uma
idéia universal de pessoa.

Além disso, as normas raramente eram criadas pelo indivíduo, mas sim determinadas por
modelos de comportamento que regulavam todos os aspectos da vida das pessoas de acordo
com o seu status social74. Estas regras tinham o seu fundamento no Direito Natural. E assim o
indivíduo era conduzido em nome de mecanismos sociais. Prevalecia o coletivo em
detrimento do individual. O outro não era visto como obstáculo ao exercício dos direitos de
cada um, mas como elemento que o ajuda no caminho para a sua salvação75.

O Direito Penal foi ainda mais rígido às influências cristãs. Sob a influência da justiça de
Talião, permaneceu repleto de ofensas à dignidade da pessoa humana até o século XIX, sendo
cruel e desumano. Dentre as diversas violações a direitos da pessoa, admitia-se a tortura como

72
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 152-156.
73
Ibidem, págs. 151 e 152.
74
Diogo Leite de Campos, O Direito e os Direitos da Personalidade, In: Nós, op. cit., pág. 113.
75
Diogo Leite de Campos, O cidadão-absoluto e o estado, o direito e a democracia, In: Nós, op. cit., págs. 140 e
seguintes.

22
meio de prova, a pena não era pessoal e a responsabilidade criminal poderia recair sobre um
terceiro76.

Diante deste contexto, não poderíamos deixar de destacar o importante contributo de TOMÁS
MORE e de THOMAS HOBBES, nos séculos XVI e XVII77. MORE foi muito influenciado
por Santo Agostinho e Picco della Mirandola, podendo ser considerado um humanista. Na sua
principal obra, Utopia, em decorrência de uma reflexão sobre as desigualdades sociais
existentes, cria uma ilha imaginária, na qual não há propriedade privada, todos são iguais e o
Estado, detentor da propriedade, deverá fornecer saúde, educação, alimentação e previdência
social. Está lançada a idéia do Estado do bem-estar social, que em prol do bem comum poderá
cercear a liberdade das pessoas.

Por sua vez, HOBBES, precursor da teoria contratualista da origem do Estado, reconhece a
individualidade da pessoa e verifica que os homens possuem diversos direitos naturais que
são inalienáveis, como a vida e a liberdade78. Mas possui uma visão extremamente pessimista
com relação ao homem, pois entende que caso ele permaneça nesta liberdade natural, viverá
em guerra. Assim, se dois homens desejam a mesma coisa e caso ambos não a possam tê-la ao
mesmo tempo, irão se esforçar para destruir o outro. Portanto, seria necessário que as pessoas,
com o objetivo de ter a paz, instituam um poder comum, ou seja, o Estado79.

É dessa forma que HOBBES cai em um paradoxo que até hoje tem forte influência no mundo
ocidental, pois ao mesmo tempo que assegura os direitos do homem, acaba por criar Estados
totalitários80. Em busca de segurança a todos, justifica limites a liberdade individual e a
criação de um poder soberano absoluto, ilimitado, indivisível, que está acima dos súditos81,
exercendo a sua soberania fundado na força e no medo. Além disso, como a instituição do
Estado foi uma necessidade do povo, o soberano seria o único legislador e as leis ditadas por
este nunca seriam injustas82.

76
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 156-159.
77
Ibidem, págs. 160-170.
78
Thomas Hobbes, Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, Primeira Parte, Capítulo XIV, págs. 117.
79
Thomas Hobbes, Leviatã, op.cit., Primeira Parte, Capítulo XIII, págs. 109-113.
80
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 170.
81
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós, op. cit., págs. 43 e 44.
82
“Não devemos todavia concluir que com essa liberdade fica abolido ou limitado o poder soberano de vida e de
morte. Porque já foi mostrado que nada que o soberano representante faça a um súbdito pode, sob qualquer
pretexto, ser propriamente chamado injustiça ou injúria. Porque cada súbdito é autor de todos os actos praticados
pelo soberano, de modo que a este nunca falta o direito seja ao que for, a não ser na medida em que ele próprio é

23
Embora possamos identificar uma crescente preocupação com a tutela dos direitos do homem,
a verdade é que a história da humanidade nos mostra que o seu real desenvolvimento
geralmente está associado às grandes transformações políticas e a períodos marcados por
graves ofensas a estes direitos. Tanto é assim que as normas jurídicas só passaram a se dirigir
a todos com igualdade de condições com as revoluções liberais.

A Revolução Inglesa iniciada em 1640 alterou o quadro político dominante e lançou uma das
bases do constitucionalismo moderno ao defender a igualdade política, com o voto universal,
a separação entre Estado e Igreja, bem como, a idéia de um governo com uma base de comum
acordo, que agisse para proveito e segurança de todos. É certo que esses ideais não foram
imediatamente implementados, mas influenciou a História política do mundo ocidental dos
últimos duzentos anos83.

Além disso, embora a concretização desses ideais tenha levado um longo tempo para ocorrer,
vemos na Inglaterra que após a Magna Carta foram publicados diversos atos com o objetivo
de garantir direitos à pessoa: Petition of Right, em 1628, lei de Habeas Corpus, em 1679, Bill
of Rights, em 1689 e Act of Settlement, em 170184.

Note-se que a tutela desses direitos estava intimamente relacionada com as necessidades da
sociedade britânica da época, que tinha como características a tolerância cívica e a
prosperidade material baseada numa inabalável fé na ciência, que faziam da liberdade um
valor absoluto. Esse contexto além de justificar a preocupação com a tutela dos direitos do
homem, dá origem aos principais precursores ideológicos do liberalismo85.

No restante da Europa, a positivação desses direitos individuais nos textos constitucionais só


ocorreu mais tarde, com as revoluções dos séculos XVIII e XIX, que marcam o fim do Estado
absoluto e o surgimento do Estado Constitucional. Estes direitos positivados e consagrados
nas Constituições tiveram um papel altamente relevante na nova ordem política que se

subdito de Deus, e consequentemente obrigado a respeitar as leis de natureza. Thomas Hobbes, Leviatã, op.cit.,
Segunda Parte, Capítulo XXI, pág. 177.
83
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 175 e 176.
84
Ibidem, pág. 177.
85
Ibidem, pág. 178.

24
instaurava, uma vez que apesar de sujeitarem o poder político a determinadas limitações, o
legitimava.

LEITE DE CAMPOS86 divide os direitos da personalidade em públicos e privados. Estes


compreenderiam os direitos à vida, à integridade física, dentre outros, e sempre teriam sido
protegidos. Mas os direitos públicos apesar de já estarem presentes no século XVIII,
encontravam-se em uma fase de reconhecimento menos avançada.

No que se refere ao liberalismo, PAULO OTERO87 destaca que este teve como seus alicerces
históricos: (i) a igualdade de todos perante a lei, (ii) as liberdades de ação, pensamento e
divulgação de idéias, (iii) a defesa da propriedade privada, “sujeitando-se sempre qualquer
intervenção às exigências de legalidade, necessidade e compensação”, e (iv) limitação do
poder.

A burguesia, composta por letrados, comerciantes e industriais não nobres insatisfeitos por
estarem privados do poder, se voltam contra o poder real e dos nobres através de um discurso
baseado nos direitos da pessoa e mais especificamente nas idéias de liberdade e igualdade. A
liberdade estaria associada à libertação do povo do poder absoluto do rei e da supremacia dos
nobres, enquanto a igualdade de todos os cidadãos seria alcançada através da destruição dos
privilégios. Todo esse discurso fundado nos direitos da pessoa e na vontade geral nada mais
era do que uma justificativa à tomada do poder pela burguesia88.

Dentre os pensadores da segunda metade do século XVII e início do século XVIII, que viviam
sob o Estado absolutista, podemos constatar que todos defendem a garantia de direitos do
homem perante o Estado, em função da necessidade de o ser humano viver em sociedade e de
ser dotado de razão. Ou seja, tendo em vista que o homem por natureza vive em sociedade89,
estes estudiosos demonstram a importância de se impor limites ao Estado com o objetivo de
assegurar os direitos individuais, como vida, propriedade e liberdades.

86
Diogo Leite de Campos, Os Direitos da Personalidade: Categoria em Reapreciação, In: Nós – Estudos sobre o
Direito das Pessoas, Coimbra: Almedina, 2004, pág. 155.
87
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 179.
88
Diogo Leite de Campos, Os Direitos da Personalidade: Categoria em Reapreciação, In: Nós, op. cit., pág. 156.
89
Apesar de Locke e Rousseau acreditarem que o homem nasceu livre e que enquanto vivia no estado de
natureza não existiam desigualdades, com o surgimento da propriedade privada surge a necessidade do Estado
para evitar as disputas em torno desta.

25
Seguindo esta lógica, SAMUEL PUFENDORF desenvolve a noção de liberdade eticamente
vinculada a deveres para com os demais. Em outras palavras, tendo em vista que todos são
livres e iguais, a liberdade de cada um é limitada pelas necessidades do outro. Mas o grande
contributo de PUFENDORF está na introdução da idéia de dignidade da pessoa humana como
algo decorrente da sua própria natureza. Assim, como todas as pessoas têm igual natureza
humana, a todas deve ser reconhecida a mesma dignidade e todos devem ser tratados como
iguais9091.

Por sua vez, SPINOZA considera a democracia como o melhor modelo político92 e afirma que
todos deverão respeitar a vontade da sociedade, uma vez que esta é a vontade de todos 93. Ao
contrário de Maquiavel, entende que a obediência dos homens ao Estado não deve se fundar
no medo, mas estes devem ser guiados de forma sutil, de maneira que acreditem ser livres e
estarem vivendo de acordo com o seu livre arbítrio94. E ressalta que a paz e a segurança
deverão ser os fins do Estado95.

Também no sentido de que todos devem se submeter ao Estado na medida em que este é
expressão da vontade geral, ROUSSEAU já advertia “que quanto mais o Estado cresce, mais

90
“... Nay, there seems to him to be somewhat of „Dignity‟ in the Appellation of Man: so that the last and most
efficacious Argument to curb the Arrogance of insulting Men, is usually, „I am not a Dog, but a Man as well as
your self‟. (...) It follows that, among those „Duties which Men owe to each other‟, this obtains the „second‟
Place, That „every Man esteem and treat another‟, as naturally „equal to himself, or as one who is a Man as well
as he‟.” Samuel Pufendorf, The Whole Duty of Man, According to the Law of Nature. Tradução de Andrew
Tooke, Indianapolis: Liberty Fund, 2003, Capítulo VII, I, pág. 100.
91
Como assinala Ingo Sarlet, para Pufendorf “mesmo omonarca deveria respeitar a dignidade da pessoa
humana, considerada esta como a liberdade do ser humano de optar de acordo com sua razão e agir conforme o
seu entendimento e sua opção.” Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais,
6ª edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, pág. 33.
92
Esta noção foi claramente demonstrada já no prêmbulo do seu Tratado Político: “En que se demuestra de qué
modo hay que construir una Monarquía y a una aristocracia para que no degeneren en tiranía, y para que lapaz
y libertad de los súbditos permanezcan intactas.” Baruch Spinoza, Tratado Político. Tradução de Enrique Tierno
Galván, 3ª edição, Madrid: Tecnos, 1985, pág. 137 .
93
“... Por consecuencia, la voluntad de la República es tenida por la voluntad de todos y los actos,declarados
justos y buenos por la República, lo son también, por este hecho, por cada uno de los súbditos. Así, aunque uno
de estos súbditos estimase las decisiones de la República perfectamentinicuas, no por ello estaría menos
obligado a obedecerlas.” Baruch Spinoza, Tratado Político, op. cit., Capítulo III, 5), pág. 158.
94
“Desde luego, un Estado que sólo intentase gobernar a los hombres por el miedo, podría ser que no tuviera
defectos, pero tampoco tendría virtudes. Los hombres tienen que ser gobernados de tal modo que no sientan
conducidos e imaginen que viven a su gosto y en virtude de una libre decisión. De este modo, para guardalos no
habrá que recurrir más que el amor por la libertad, al deseo de aumentar sus bienes y la esperanza de lograr
honores.” Baruch Spinoza, Tratado Político, op. cit., Capítulo X, 8), págs. 255 e 256.
95
“Es fácil saber cuál sea la mejor forma de gobierno si conocemos el fin del estado político. Este fin no es otro
que la paz y la seguridad de la vida. El mejor Estado,por tanto, es aquel en el cual los hombres viven en
concordia y cuyas leyes no se vulneran.” Baruch Spinoza, Tratado Político, op. cit., Capítulo v, 2), págs. 171 e
172.

26
diminui a liberdade” 96
. Ao homem não era reconhecida qualquer individualidade, pois não
seria nada mais que uma entidade numérica a integrar a sociedade97. Como a vontade geral é
manifestada pelo soberano e esta é superior às vontades individuais, voltamos ao modelo de
Hobbes, em que o governante está acima dos súditos98.

Para LOCKE, no estado de natureza, o homem vivia em perfeita liberdade e igualdade 99, mas
em razão da necessidade de defesa da propriedade, ele opta por se subordinar ao poder do
Estado através do consenso. No entanto, além do dever de proteção da propriedade, também
constitui finalidade do Estado a tutela da vida, integridade do corpo e das liberdades100,
inclusive a religiosa101.

Assim, LOCKE traça uma separação nítida entre Estado e religião 102, como também, afirma
que o legislativo além de ser o poder supremo do Estado, é sagrado e não pode ser retirado
das mãos de quem a comunidade elegeu, pois é este o responsável por expressar o consenso
da sociedade103. Todavia, destaca que a lei produzida pelo legislativo deve ter como objetivo
determinar os direitos e proteger a propriedade, não podendo ser arbitrária104.

96
“D‟où il suit que plus l‟État s‟agrandit, plus la liberté diminue.” Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat Social.
Paris: Garnier-Flammarion,1966, pág. 99.
97
“Ces clauses bien entendues se réduisent toutes à une seule, savoir l‟aliénation totale de chaque associé avec
tous ses droits à toute la communauté. Car, premièrement, chacun se donnant tout entier, la condition est égale
pour tous, et la condition étant égale pour tous, nul n‟a intérêt de la rendre onéreuse aux autres.” Jean-Jacques
Rousseau, Du Contrat Social. Paris: Garnier-Flammarion,1966, pág. 51.
98
“...To avoid these inconveniencies,wich disorder men‟s properties in the state of nature, men unite into
societies, that they may have the united strenght of the whole society to secure and defend their properties,and
may have standing roules to bound it, by which every one may know what is his.” John Locke, The Second
Treatise of Government: An Essay Concerning the True Original Extent and End of Civil Government, Great
Britain: Basil Blackwell, 1976, capítulo XI, 136., pág. 69.
99
John Locke, The Second Treatise of Government,op. cit., capítulo II, 4., pág. 4.
100
John Locke, Carta sobre a Tolerância. Tradução de João da Silva Gama Lisboa: Edições 70, pág. 92.
101
Ibidem, pág. 105.
102
“Mas, para que ninguém refira como pretexto para uma perseguição e uma crueladade pouco cristãs a
preocupação do Estado e o respeito pelas leis; para que, em contrapartida, outros, em nome da religião, não
busquem a licença dos costumes e a impunidade dos seus crimes; para que, digo eu, ninguém, quer como súbdito
fiel do príncipe, quer como crente sincero, a imponha a si ou aos outros, julgo que é preciso, antes de mais nada,
distinguir entre os assuntos da cidade e os da religião e definir os limites exactos entre a Igreja e o Estado.” John
Locke, Carta sobre a Tolerância. op. cit., pág. 92.
103
“...This legislative is not only the supreme power of the commonwealth, but sacred and unalterable in the
hands where the community have once placed it;...” John Locke, The Second Treatise of Government,op. cit.,
capítulo XI, 134., pág. 67.
104
John Locke, The Second Treatise of Government,op. cit., capítulo XI, 135., pág. 68.

27
MONTESQUIEU defende a separação de poderes como a única forma de se limitar o poder105
e destaca a importância do legislativo, pois será através de seus representantes que a vontade
do povo será manifestada. No entanto, esta concepção acaba por transformar o indivíduo em
súbdito de si mesmo106, pois a sua liberdade está restrita a fazer apenas o que a lei permite107,
uma vez que esta reflete a vontade geral.

Também neste sentido, podemos destacar HUME, que não deixa dúvidas sobre a importância
da sociedade para os homens108 e assinala a relevância da obediência ao governo para a
manutenção da sociedade. Mas admite uma resistência ao Estado em hipóteses
extraordinárias, quando o povo estiver correndo risco de violência ou tirania109.

Seguindo os filósofos do seu tempo, KANT assinala a importância do Direito na sociedade110


e afirma que o Estado deve se fundar nos princípios de liberdade, igualdade e independência
de cada membro da nação111. O ser humano seria dotado de um único direito inato e
inalienável, que seria a liberdade, na medida em que esta abrangeria os demais princípios
como o da igualdade e de respeito ao próximo112.

105
“Il y a dans chaque État trois sortes de pouvoirs: la puissance législative, la puissance exécutrice des choses
que dépendent du droit des gens, et la puissance exécutrice de celles qui dépendent du droit civil. (...) La liberté
politique dans un citoyen est cette tranquillité d‟esprit qui provient de l‟opinion que chacun a de sa sûreté; et
pour qu‟on ait cette liberté, il faut que le gouvernement soit tel qu‟un citoyen ne puisse pas craindre un autre
citoyen.(...) Tout seroit perdu si le même homme,ou le même corps des principaux,ou des nobles, ou du peuple,
exerçoient ces trois pouvoirs: celui de faire les lois, celui d‟exécuter les résolutions publiques, et celui de juger
les crimes ou les diférends des particuliers. Dans la plupart des royaumes de l‟Europe, le gouvernement est
modéré, parce que le prince, que a les deux premiers pouvoirs, laisse à ses sujets l‟exercice du trosième. Chez
les Turcs, où ces trois pouvoirs sont réunis sur la tête du sultan, il règne un affreux despotisme.” Montesquieu,
De L‟Esprit des lois, Paris: Librairie Garnier Fréres, Tomo I, Livro XI, capítulo VI, págs. 152 e 153.
106
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós, op. cit., pág. 44.
107
“Pour qu‟on ne puisse abuser du pouvoir, il faut que, par la disposition des choses, le pouvoir arrête le
pouvoir. Une constitution peut être telle que personne ne sera contraint de faire les choses auxquelles la loi ne
l‟oblige pas, et à ne point faire celles que la loi permet.” Montesquieu, De L‟Esprit des lois, Paris: Librairie
Garnier Fréres, Tomo I, Livro XI, capítulo IV, pág. 151.
108
“É somente por meio da sociedade que o homem é capaz de suprir aospróprios defeitos e elevar-se a um pé de
igualdade com as outras criaturas, chegando mesmo a adquirir certa superioridade sôbre elas.” David Hume,
Ensaios Políticos. Tradução de E. Jacy Monteiro, São Paulo: Instituto Brasileiro de Difusão Cultural, Pág. 29
109
David Hume, Ensaios Políticos. Tradução de E. Jacy Monteiro, São Paulo: Instituto Brasileiro de Difusão
Cultural, pág. 64.
110
“O direito é a limitação da liberdade de cada um à condição da sua consonância com a liberdade de todos,
enquanto esta é possível segundo uma lei universal; e o direito público é o conjunto das leis exteriores que
tornam possível semelhante acordo universal.” Immanuel Kant, A Paz Perpétua e outros Opúsculos, Lisboa:
edições 70, Pág. 74
111
Immanuel Kant, A Paz Perpétua e outros Opúsculos, Lisboa: edições 70, Pág. 75
112
Immanuel Kant, A Metafísica dos Costumes, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 56.

28
Mas seu principal contributo será em torno da construção do princípio da humanidade, que
nada mais é que o reconhecimento da dignidade da pessoa humana113. Assim, KANT afirma
que o homem nunca deve ser visto ou utilizado como meio, mas sempre como um fim em si
mesmo, que tem o dever de respeito ao próximo, pois todos são iguais114. Outra conseqüência
do princípio da humanidade que tem especial relevância no âmbito deste trabalho é a criação
de um limite ao próprio homem, chamados pelo autor de “deveres para consigo próprio”115.
Desse modo nem a própria pessoa poderá renunciar a sua dignidade.

Por sua vez, HEGEL assinala a importância do Estado. Isto porque, embora entenda que o
homem seja um ser racional e livre, acredita que é neste que o homem tem uma vida ética116.
Apenas no Estado esta liberdade inata se realiza e, portanto, os interesses individuais deverão
integrá-lo, pois só terão sentido se estiverem de acordo com o interesse geral da sociedade
tutelado pelo Estado117. Ou seja, voltamos ao governante de Hobbes, que está acima dos
súditos. A vontade geral é a do Estado e esta é mais importante que as vontades individuais118.

Percebe-se em HEGEL traços característicos do totalitarismo que veio a ser implementado em


diversos países na primeira metade do século XX, pois este acredita no Estado como uma
instituição forte, absoluta, no qual o individual se dissolve no coletivo. Segundo este
pensador, as pessoas são subordinadas ao Estado e este é o responsável por estabelecer os
limites da liberdade dos indivíduos119. Esta concepção acaba por transformar o “indivíduo em
súbdito de si mesmo”120, pois a sua liberdade estará limitada a fazer apenas o que a lei permite

113
Complementa Ingo Sarlet que para Kant a “concepção de dignidade parte da autonomia ética do ser humano,
considerando esta (a autonomia) como fundamento da dignidade do homem, além de sustentar que o ser humano
(o indivíduo não pode ser tratado – nem por ele próprio – como objeto”. Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da
Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, op. cit., pág. 33.
114
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 203-211.
115
Immanuel Kant, A Metafísica dos Costumes, op. cit., pág. 339.
116
Ibidem, pág. 120.
117
“L‟État est la réalité en acte de la liberté concrète; or, la liberté concrète consiste en ceci que l‟individualité
personnelle et ses intérêts particuliers reçoivent leur plein développement et la reconnaissance de leur droits
pour soi (dans les systèmes de la famille et de la société civile), en même temps que d‟eux-mêmes ils s‟intègrent
à l‟interêt général, ou bien le reconnaissant consciemment et volontairement comme la substance de leur propre
espirit, et agissent pour lui, comme leur but final.” Hegel, Principles de la Philosophie du Droit, 5ª edição,
Librairie Gallimard , 1940, pág. 195.
118
Diogo Leite de Campos, O Direito e os direitos da personalidade, In: Nós, op. cit., pág. 121.
119
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 317-319.
120
Diogo Leite de Campos, O Direito e os direitos da personalidade, In: Nós, op. cit., pág. 121.

29
Discordando de HEGEL, SHOPENHAUER acredita que o Estado é uma representação, ou
seja, foi criado pela pessoa e apenas existe em função desta, para ela 121. Valoriza a
individualidade, como sendo algo que jamais pode ser renunciado e considera que o homem é
mais importante do que o Estado, já que este é abstrato e a pessoa é real. No entanto, ao
afirmar que a individualidade de cada homem e a manifestação ou concretização de sua
vontade livre dependerá das capacidades inatas e da personalidade de cada um, acaba por
justificar a desigualdade entre raças e sexos122.

Analisando as Revoluções Francesa e Norte-America, THOMAS PAINE123 constata que a


soberania passou a pertencer ao povo, sendo a Constituição um ato do povo a instituir o
Estado124. Dessa forma, assinala que o poder não deve estar nas mãos do soberano, mas sim
na lei125.

Além disso, PAINE distingue os direitos em: naturais, que seriam aqueles que decorrem da
própria existência dos seres humanos, e civis, que são os que a pessoa tem em razão de ser
membro da sociedade126. Mas registra que no que se refere à história da criação, apesar de ser
possível que haja uma variação de opinião ou crença sobre certas particularidades, todos
concordam com a unidade do homem, ou seja, todos os homens são iguais, uma vez que todos
nascem iguais e possuem os mesmos direitos naturais127.

JOHN STUART MILL foi um dos pensadores mais importantes do liberalismo inglês, que,
em suma, defendia a democracia representativa, com a participação de todos em igualdade de

121
“Tudo o que o mundo encerra ou pode encerrar está nesta dependência necessária frente ao sujeito, e apenas
existe para o sujeito. O mundo é pois representação.” Arthur Schopenhauer, O Mundo como Vontade e
Representação. Tradução de M.F.Sá Correia, Porto: Rés Editora, pág. 8.
122
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 222 e seguintes.
123
Ibidem, págs. 227 e seguintes.
124
“... A constitution is not the act of a government, but of a people constituting a government; and government
without a constitution,is power without a right.” Thomas Paine, Rights of Man, United States of America:
Penguin Books, Parte 2, Capítulo 4, pág. 185.
125
“The government of a free country, properly speaking,is not in the persons,but in the laws.” Thomas Paine,
Rights of Man, United States of America: Penguin Books, Parte 2, Capítulo 3, pág. 184.
126
“A few words will explain this. Natural rights are those wich appertain to man in right of his existance. (...)
Civil rights are those which appertain to man in right of his being a member of society.” Thomas Paine, Rights
of Man, op. cit., Parte 1, pág. 68.
127
“Every history of the creation, and every tradiotionary account, whether from the lettered or unlettered
world, however they may vary in their opinion or beilef of certain particulars,all agree in establishing one point,
„the unity of man‟; by which I mean,that men are all of „one degree‟, and consequently that all men are born
equal, and with equal natural right, in the same manner as if posterity had been continued by „creation‟ instead
of generation, ...” Thomas Paine, Rights of Man, op. cit., Parte 1, pág. 66.

30
condições, e um Estado reduzido, cuja única finalidade é proporcionar segurança128. Dessa
forma, a única justificativa para que o Estado ou as pessoas pudessem intervir sobre a
liberdade das demais é a „autoproteção‟129.

Para este autor a liberdade de consciência, de pensamento, sentimento e opinião, como


também, a liberdade de associação e o livre desenvolvimento da personalidade são garantias
absolutas, que não podem sofrer qualquer intervenção, mesmo que pela decisão de uma
maioria política130. O único limite que existe para essa liberdade é o outro, ou seja, para
justificar uma restrição à liberdade individual “é necessário que se preveja que a conduta de
que se deseja demovê-la cause um mal a outra pessoa”131.

No entanto, ao prosseguir acaba por afirmar que nem todas as pessoas são iguais, existindo
aqueles que ainda necessitam do cuidado dos demais. É o que ocorre com crianças, jovens que
não atingiram a maioridade civil e mulheres, como também, civilizações retrógradas, que
ainda estejam em um estágio inicial da evolução. No que se refere a essas civilizações,
STUART MILL chega a afirmar que o despotismo seria uma forma legítima de governo, pois
o objetivo seria o desenvolvimento destes povos.132

Mas PAULO OTERO destaca que a liberdade individual defendida por este filósofo não
compreende em si a faculdade de o seu titular se privar desta. Dessa forma, uma pessoa não
pode se vender ou permitir que outro a venda133.

128
“En réalité, cette question repose sur une autre plus fondamentale encore: à savoir, quel est entre les deux
types ordinaires de caractère celui qu‟il est le plus désirable de voir prédominer pour le bien général de
l‟humanité, le type actif ou le type passif, celui qui se plie aux circunstances ou celui qui entreprend de les faire
plier. Les lieus communs de la morale, et les sympathies générales de l‟humanité sont en faveur du type passif.”
John-Stuart Mill, Le Gouvernement Représentatif. Tradução de M. Dupont-White, Paris: Guillaumin et C., 1877,
Pág. 78
129
“... É o princípio de que o único fim em função do qual as pessoas têm justificação, individual ou
colectivamente, para interferir na liberdade de acção de outro, é a autoproteção. É o princípio de que o único fim
em função do qual o poder pode ser correctamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade
civilizada, contra a sua vontade, é o de prevenir dano a outros.” John-Stuart Mill, Sobre a Liberdade. Tradução
de Pedro Madeira, Lisboa: Edições 70, págs. 39 e 40.
130
Stuart Mill não utiliza o termo direito ao livre desenvolvimento à personalidade, mas fala na liberdade “de
moldar o nosso plano de vida de modo a adequar-se ao nosso carácter; de fazer o que quisermos, sofrendo
quaisquer consequências que daí resultem...” John-Stuart Mill, Sobre a Liberdade. Tradução de Pedro Madeira,
Lisboa: Edições 70, págs. 43 e 44.
131
John-Stuart Mill, Sobre a Liberdade. Tradução de Pedro Madeira, Lisboa: Edições 70, pág. 40.
132
Ibidem, págs. 40 e 41.
133
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 233.

31
BENJAMIN CONSTANT teve grande importância no regime liberal francês, uma vez que o
seu discurso estava baseado na importância dos direitos individuais134 e da independência que
a pessoa deve conservar na sua vida privada135. E posiciona-se favoravelmente ao sufrágio
eleitoral censitário136, mas a titularidade da propriedade seria uma condição para o exercício
de direitos políticos137.

Por outro lado, CONSTANT defende a soberania do povo e não de uma única pessoa, mas
mesmo esta soberania deve ser limitada pelos direitos da pessoa138. Direitos estes que não são
criados pelo Estado, mas existem independentemente de qualquer autoridade social ou
política. Assim, a justiça e os direitos fundamentais limitam a vontade popular139.

Percebemos uma grande influência do individualismo no discurso filosófico-político deste


período, na medida em que há uma valorização da liberdade negativa do indivíduo, como
conseqüência da sua própria natureza. Estes ideais constituíram as bases do liberalismo, pois
com a evolução técnica, o crescimento do mercado capitalista e a extrema divisão do trabalho
é interessante a construção de um ser humano isolado, sem características próprias, adaptado à
produção mecânica. A religião, os usos e costumes tradicionais também darão lugar a uma
uniformização cultural e lingüística140.

Embora já houvesse uma preocupação com a tutela dos direitos individuais e as Constituições
contemplassem um rol de direitos, tratava-se do Estado Liberal, em que as partes eram livres
para celebrar negócios jurídicos entre si, sem a interferência estatal. Prevalecia o livre jogo
das forças de mercado, em que a vontade das partes determinava a vinculação aos contratos,
mediante a prévia fixação das cláusulas e condições contratuais, ou seja, já estavam presentes
os princípios clássicos do contrato, notadamente, a autonomia da vontade e a pacta sunt
servanda.

134
Benjamin Constant, Cours de Politique Constitutionnelle, Tomo I, Paris: Didier, págs. 124 e seguintes.
135
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 234.
136
Benjamin Constant, Cours de Politique Constitutionnelle, Tomo II, Paris: Didier, págs. 11 e seguintes.
137
“II. Sont aptes à exercer les droits politiques tous les Français qui possèdent, soit une propriété foncière, soit
une propriété industrielle, payant un impôt déterminé, soit une ferme, en vertu d‟un bail suffisamment long et
non résiliable, est qui, par cette possession, exitent sans le secours d‟un salire qui les rende dépendans
d‟autrui.” Benjamin Constant, Cours de Politique Constitutionnelle, Tomo I, Paris: Didier, pág. 116.
138
Benjamin Constant, Cours de Politique Constitutionnelle, Tomo I, op. cit., págs. 161 e seguintes.
139
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 236.
140
Diogo Leite de Campos, O Direito e os direitos da personalidade, In: Nós, op. cit., págs. 119 e 120.

32
No que se refere às declarações de direitos da época, verificamos que estas têm em comum os
seguintes valores constitucionais liberais: (i) a importância dos direitos à liberdade,
propriedade e segurança como finalidade precípua do Estado, (ii) limitação do poder do
Estado pela lei, (iii) legitimação do poder pelo povo, e (iv) igualdade de todos perante a lei.
Assim, a democracia permanece ligada às idéias de liberdade e igualdade141.

Nos Estados Unidos, temos três instrumentos de grande relevância que seguem estes valores
liberais142: (i) a Declaração de Direitos de Virgínia, em junho de 1776, que também assegura
garantias ao processo criminal, bem como, as liberdades de imprensa e religiosa, (ii) o Bill of
Rights, aprovados em 1789 e ratificados em 1791, mas antes deste está (iii) a Declaração de
Independência dos Estados Unidos de julho de 1776. Este instrumento constitui o marco da
primeira experiência constitucional gerada pelo liberalismo e consagra a idéia de que o Estado
existe para servir e garantir os direitos do homem. Dentre os aditamentos à Constituição
americana, merece destaque o IX, que traz a primeira cláusula aberta de direitos fundamentais
e assim deixa claro que “as normas emergentes da Constituição formal não são a única fonte
reveladora dos direitos fundamentais”143.

Na França, foi elaborada a tão emblemática Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
de 1789, que teve como objetivo reconhecer, através de uma declaração solene, os direitos
naturais, inatos e inalienáveis do Homem e, seguindo o modelo da época, consagra os valores
constitucionais liberais144. Note-se que esta declaração é apontada “como o fundamento de
criação da personalidade”145.

Por sua vez, Constituição francesa de 1793 teve grande relevância ao consagrar que a pessoa
não se pode vender ou ser vendida e que a liberdade de cada um esbarra em um limite moral
que é o dever de não fazer aos outros o que não gostaria que fizessem a você mesmo. Mas
nem esta Constituição ou a Declaração que a integrava chegaram a entrar em vigor. Diferente
das demais declarações que valorizavam mais a propriedade, a francesa de 1793 estava
centrada na pessoa humana146.

141
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 250 e 256.
142
Ibidem, págs. 237-240, 242 e 243.
143
Ibidem, pág. 243.
144
Ibidem, pág. 240.
145
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós, op. cit., pág. 53.
146
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 245 e 246.

33
Embora os ideais liberais fossem comuns, há um traço distintivo relevante entre o modelo
democrático da Europa continental e o norte-americano, influenciado pelo inglês. No
primeiro, há a diluição da liberdade e dos direitos fundamentais na coletividade, o que veio a
justificar regimes de governo totalitários. Enquanto o modelo norte-americano tem como
pressuposto a tutela das liberdades e garantias do indivíduo perante o poder, sendo este o
vigente no mundo Ocidental, desde a 2ª Guerra Mundial147.

Note-se que já nesta época os direitos do homem eram vistos como algo decorrente da sua
própria natureza, inerentes aos seres-humanos. Os direitos não eram criados pelas
Declarações, mas sim pré-existentes a elas, que apenas os reconhecia. No entanto, tratava-se
do Estado mínimo, que para assegurar estes direitos deveria ser limitado. O poder seria
limitado tanto no seu interior, através da separação de poderes (legislativo, executivo e
judicial), como no seu aspecto externo, só podendo interferir sobre a esfera da sociedade
mediante lei autorizativa. Mas é certo que o poder legislativo era aquele que tinha grande
importância, pois representava a vontade coletiva148.

A propriedade também tinha especial importância, sendo a sua titularidade que determinava a
possibilidade de participação política. O Estado tinha como principal finalidade proporcionar
segurança, pois este era o pressuposto da garantia da liberdade e da propriedade. Em regra, o
Estado não poderia intervir na propriedade e na liberdade das pessoas, mas caso isto tivesse
que ocorrer deveria estar fundada em uma habilitação legislativa para tanto.

Apesar de ter fracassado em muitos pontos, não há como negar que o liberalismo representou
uma evolução na tutela dos direitos da pessoa. Além do direito à liberdade, era difundida a
idéia de igualdade entre todos. Mas o avanço parava no seu reconhecimento, na medida em
que esta igualdade de todos perante a lei era utópica, pois existiam diferenças de tratamento
em razão de raça, sexo, a escravatura ainda era legítima e o voto era censitário149.

As Revoluções Liberais pautadas nos ideais de liberdade e igualdade nada mais eram que uma
justificativa para uma substituição no poder: assumia a burguesia e saiam o rei e a nobreza. O
povo e as mulheres permaneciam oprimidos, pois não podiam eleger os soberanos absolutos e

147
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 264 e 265.
148
Ibidem, págs. 251, 252 e 253.
149
Ibidem, págs. 254 e 255.

34
nem serem eleitos. Tratou-se de mero processo de transferência do poder e assim o Direito e
os direitos da pessoa eram determinados pela classe dominante150.

Na segunda metade do século XIX, as falhas do modelo liberal começam a ficar evidentes. E
diante de um quadro de super-exploração salarial, horas excessivas de trabalho, condições
subumanas de alimentação e moradia, contratos excessivamente onerosos para uma das
partes, restou evidente que as forças do mercado não eram suficientes para assegurar uma
relação de igualdade. Surgem, então, os movimentos sociais, que deram origem ao dirigismo
contratual e ao Estado Social intervencionista151. Da mesma forma, o individualismo vai
perdendo força e a liberdade positiva do ser humano volta a ser destacada. A concepção em
torno da existência de uma ordem natural, na qual o homem deve ser conduzido segundo
mecanismos sociais, também volta a ser valorizada152.

Conforme destaca PAULO OTERO, existiram três principais grupos de críticas ideológicas
ao liberalismo, que produziram reflexos constitucionais no que se refere aos direitos da pessoa
humana: (i) “o pensamento contra-revolucionário”, (ii) “o socialismo”, e (iii) “a doutrina
social da igreja” 153.

O pensamento contra-revolucionário apresenta duras críticas ao modelo liberal,


principalmente no tocante à separação de poderes através da limitação da autoridade do rei
pelo parlamento e pelas leis. O monarca é o soberano natural, segundo as leis divinas, e o
costume deve ter muito mais valor que a lei. Assim, a liberdade e os direitos das pessoas
devem se fundar na Constituição natural existente nas nações e não em Constituições escritas
pelos homens.

Na Carta Constitucional francesa de 1814 podemos perceber uma forte influência deste
pensamento, com a retomada do trono pelos Bourbons e uma redução da importância do
parlamento. Embora permaneça consagrando a separação de poderes, a Carta deixa claro que

150
Diogo Leite de Campos, Os Direitos da Personalidade: Categoria em Reapreciação, In: Nós, op. cit., págs.
157 e 158.
151
Arnoldo Wald, Obrigações e Contratos, v. 2, 13ª Edição, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1998, p. 185.
152
Diogo Leite de Campos, O Direito e os direitos da personalidade, In: Nós, op. cit., pág. 120.
153
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 268 -275.

35
a soberania constituinte reside no monarca e não no parlamento. O rei, através do poder
moderador, era o responsável por toda a organização política154.

Este modelo político chegou ao Brasil já no período de regência de D. João e foi positivado na
Constituição de 1824, outorgada pelo imperador D. Pedro I. Esta carta constitucional
representou um grande avanço, na medida em que contemplava um rol de direitos individuais,
adotava a separação de poderes e mantinha o regime monárquico, que vigorou no Brasil até
1889155.

Mas a eleição por sufrágio direto da nação e maioria absoluta de votos só veio a substituir o
voto censitário, na Constituição de 1891. Esta Carta Constitucional também foi responsável
por instituir a República Federativa, como forma de governo, por positivar as garantias
constitucionais e suprimir as penas de galés, de banimento judicial e morte156.

O socialismo se subdivide em (i) cristão e não-matxista, destacando-se dentre os seus


pensadores Henri de Saint-Simon, Pierre Joseph Proudhon e Ferdinand Lassale, (ii) marxista,
cujos grandes ideólogos foram Karl Marx e Friedrich Engels, e, posteriormente, (iii) lenista,
em razão do contributo de Lenine157.

Como será possível perceber, o discurso de SAINT-SIMON e LASSALE influenciaram no


desenvolvimento da doutrina social da igreja. Isto porque, ao criticar o Estado abstencionista
liberal, LASSALE158 defende um modelo de Estado mais ativo, que intervenha mais nos
aspectos sociais e econômicos da sociedade, com o objetivo de conduzir os indivíduos ao seu
próprio desenvolvimento. E SAINT-SIMON159 difunde a idéia de fraternidade, segundo a
qual todas as pessoas e os monarcas devem ter uma atuação no sentido de implementar uma
melhoria nas condições de existência física e moral da classe mais pobre.

154
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 275 e 277.
155
Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, 20ª Edição, São Paulo: Saraiva, 1999, págs. 97 e
seguintes.
156
Ibidem, págs. 105 e seguintes.
157
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 278-287.
158
Ibidem, pág. 283.
159
“«Je travaille à la formation d‟une société libre ayant pour objet de propager le développement des principes
qui doivent servir de base au nouveau système. (...) Cette entreprise est de même nature que la fondation du
christianisme: elle a pour objet direct d‟améliorer le sort de la dernière classe de la société et pour but général
de rendre tous les hommes heureux quels que soient leus rang et leur position».” H. De Saint-Simon, Le
nouveau christianisme – et les écrits sur la religion, Paris: Éditions du Seuil, 1969, pág. 40.

36
Tendo em vista que a Constituição francesa de 1793 não chegou a entrar em vigor 160, a
Constituição portuguesa de 1822 pode ser considerada como a primeira a romper com o
modelo liberal, no qual o Estado apenas tinha o dever de proporcionar segurança. Na
Constituição de 1822 além da presença dos direitos clássicos do liberalismo (liberdade,
segurança e propriedade), foram consagrados direitos que exigiam uma atuação dos
governantes, no sentido de assegurar direitos à saúde e à educação, por exemplo. Assim, o
Estado deixava de ter uma postura meramente abstencionista perante os direitos individuais
para ter deveres relacionados à construção e manutenção de escolas públicas e hospitais161.

Na França, estes ideais apenas entraram em vigor com a Constituição de 1848. Além de
consagrar direitos que exigem uma atuação positiva do Estado, resultado da influência do
pensamento de Saint-Simon, esta carta teve grande importância ao abolir a escravatura e a
pena de morte em razão de questões políticas. E, assim como a Constituição portuguesa de
1822, proibiu qualquer tipo de censura à imprensa e reconheceu a liberdade de ensino 162.

Por fim, segundo o marxismo-lenismo, a propriedade privada deve ser abolida, bem como o
Estado e as leis liberais, pois estas nada mais são do que expressão da vontade da burguesia.
Então, para que ocorra a ruptura com este modelo liberal, é necessária a intervenção do
Estado, em um primeiro momento163.

Nesta primeira fase, teríamos um Estado extremamente intervencionista para destruir a


sociedade burguesa e instituir uma sociedade de iguais. Na etapa seguinte a este período
intervencionista, o Estado não mais seria necessário, uma vez que inexistiria propriedade
privada, os meios de produção seriam coletivos e saúde, transporte, educação e moradia
seriam disponibilizados a todos.

Ocorre que nos países que implementaram o socialismo, esta segunda fase não chegou a ser
conhecida. A Rússia foi o primeiro país a adotar o marxismo-lenismo, logo após a Revolução
de Outubro, em 1917, sendo mantido até fins do século XX. Em seguida, muitos países

160
A Constituição francesa de 1793 já trazia em seu corpo direitos que exigiam uma atuação positiva do Estado,
uma vez que previa direitos sociais como o dever de oferecer emprego e o direito à educação.
161
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 246-248.
162
Ibidem, págs. 249, 250 e 280.
163
Ibidem, págs. 283-289.

37
aderiram ao socialismo, mas, hoje, apenas a Coréia do Norte, Cuba e China, sendo que esta
com algumas alterações, permanecem a adotá-lo.

A experiência dos países que seguiram o socialismo marxista-lenista nos mostra a presença de
Estados totalitários, que interferem e violam os direitos da pessoa, sob a alegação de que
assim o fazem em prol da manutenção do socialismo e em benefício do próprio povo.
Infelizmente, a sociedade de iguais almejada pelos ideólogos do marxismo, em que todos
gozam de plena liberdade e os seus direitos individuais são observados, jamais chegou a ser
implementada.

Por fim, a doutrina social da igreja, desenvolvida por influência de SAINT-SIMON e


LASSALE, teve os seus ideais expostos nas Cartas Encíclicas dos Papas Pio IX, Leão XIII e
Pio XI e exerceu um papel relevante na formação do Estado Social, na medida em que
podemos perceber a preocupação com o bem-estar material dos cidadãos, principalmente com
os mais pobres, conferindo-lhes o direito de exigir uma atuação do Estado no âmbito social,
econômico e cultural164.

Esta doutrina propõe uma ruptura com o modelo liberal abstencionista, através da qual a livre
concorrência deveria deixar de ser o princípio diretivo da economia para dar lugar a um
corporativismo orgânico e social. Agora, o principal objetivo do Estado deveria ser primar
pela dignidade da pessoa humana, bem como pela harmonia entre as classes e profissões,
fixando regras trabalhistas como um salário justo e a limitação das horas de trabalho. A
propriedade seria um direito natural do homem e como tal deve ser assegurado pelo Estado.

Na verdade, esta concepção no sentido da necessidade de uma atuação positiva do Estado para
tutela dos direitos da pessoa já estava presente no pensamento de filósofos muito anteriores ao
liberalismo. Assim, notamos a influência da democracia de Péricles na Grécia Antiga, de
Marsílio de Pádua, Tomás More, Kant e Hegel165. No entanto, esses ideais apenas ganharam
expressivo reflexo nos ordenamentos jurídicos do pós I Guerra Mundial, em razão da grande
depressão econômica que a seguiu.

164
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 290-300.
165
Ibidem., pág. 334.

38
A Constituição de Weimar, de 1919, sofreu clara influência da doutrina social da igreja, ao
consagrar deveres prestacionais do Estado no tocante ao seu compromisso de assegurar o
bem-estar público166. Esta Carta surgiu no auge da crise do modelo Liberal e representou a
ascensão do Estado Social, na medida em que consagrou direitos sociais, como os à educação,
à cultura, à previdência e no que se refere às relações de produção e de trabalho. Note-se, que
o termo „direitos fundamentais‟, para designar os direitos do homem positivados na
Constituição, foi pela primeira vez utilizado em Weimar, passando, então, a ser largamente
adotado.167

Em Portugal, esta doutrina encontrou acolhida na Constituição de 1933, que permaneceu


vigente até 1974168. No Brasil, podemos notar a sua influência na Constituição de 1934, que
sepultou a antiga democracia liberal e instituiu a democracia social, como também, o sufrágio
feminino e o voto secreto. Tal era o prestígio da doutrina social da igreja nesta Carta
Constitucional que o nome de Deus constava em seu preâmbulo169.

Podemos afirmar que o Estado Social é uma evolução do Estado Liberal, em termos de tutela
dos direitos da pessoa humana. Ao rol de direitos individuais, também chamados de direitos
de 1ª geração, são acrescidos os direitos sociais, ou de 2ª geração. Ocorre que essa evolução
na tutela dos direitos da pessoa não foi linear. Após a falência do modelo econômico liberal, a
necessidade de um Estado interventor acabou servindo como justificativa para a instauração
de regimes totalitários, como o fascismo, nazismo e socialismo. Estes regimes utilizaram a
vontade geral do povo para fundamentar as sucessivas violações aos seus direitos170,
representando verdadeiro retrocesso na garantia e tutela dos direitos da pessoa humana e
atirando “o indivíduo para uma fase do processo histórico anterior ao cristianismo”171.

166
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 299 e 300.
167
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 3ª Edição, Coimbra
Editora, 2000, pág. 51. No entanto, cabe destacar que a expressão já havia sido utilizada antes. Prova disso é a
obra publicada por Lopes Praça, em 1826: A Constituição de 22 no seu artigo 1º mantinha igualmente e pela
mesma ordem a liberdade, segurança e propriedade de todos portuguezes, mais prudente nos parece a
Constituição de 38 em quanto, nem incidentalmente, classifica os direitos fundamentais. Lopes Praça. Direito
Constitucional Portuguez – Estudos sobre a Carta Constitucional de 1826, Parte I, Coimbra: Imprensa Literária,
1878, págs. 25 e 26.
168
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 301 e 302.
169
Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, op. cit., pág. 113.
170
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós, op. cit., pág. 45.
171
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 307.

39
O Estado totalitário rompe com a tradição liberal e rejeita o valor universal e inviolável da
dignidade da pessoa humana. O indivíduo passa a ser visto como mero integrante da
sociedade, diluído nesta, privado de liberdade e dos direitos fundamentais de natureza pessoal
e de participação política. O interesse geral tutelado pelo Estado tem maior importância e se
sobrepõe aos interesses particulares dos indivíduos. Assim, a pessoa deixa de ser entendida
como fim em si mesmo e passa a ser um meio à serviço dos fins do Estado, torna-se mero
objeto172.

A ofensa à dignidade da pessoa humana, na primeira metade do século XX, foi tão grave, que
inspirada nas idéias de Platão e Nietzsche sobre a importância de uma raça pura, a Alemanha
nazista justificava a manutenção de campos de concentração e o extermínio dos judeus. Por
outro lado, apesar dessas graves ofensas, não há como negar que o Estado nazista assumiu
preocupações sociais e culturais.

O positivismo jurídico, inicialmente desenvolvido por Augusto Comte, foi utilizado como
base dos regimes totalitários, na medida em que pregava uma obediência cega à norma,
consequentemente reflexo da vontade de quem exercia o poder. Dessa forma, utilizando o
próprio ordenamento jurídico, expressão da vontade geral, os governos totalitários
encontravam a sua legitimidade e aniquilavam o fundamento ético do Direito173.

Mas, foi BENITO MUSSOLINI174 quem, conjugando os ideais totalitaristas já presentes em


Platão, Hobbes, Hegel e Nietzsche, criou a mais completa formulação conceitual do
totalitarismo. MUSSOLINI175 rejeita os ideais liberais e aqueles desenvolvidos pela Doutrina
Social da Igreja para defender o Estado como um valor absoluto perante o indivíduo. A Igreja
não tinha qualquer relevância, pois os governantes seriam a entidade máxima, que está acima
do bem e do mal. É no mínimo intrigante verificar que um regime que envolve uma oposição
radical a uma religião tenha surgido em sociedades cristãs.

172
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 303-310.
173
Diogo Leite de Campos, Os Direitos da Personalidade: Categoria em Reapreciação, In: Nós, op. cit., pág. 159.
174
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 311 e 312.
175
Benito Mussolini, La Dottrina del Fascismo, Milão: Treves-Treccani-Tumminelli, 1933, págs. 1-7. Cabe
destacar alguns trechos das idéias fundamentais do fascismo, segundo Mussolini: “5. – Il fascismo è una
concezione religiosa (7),in cui l‟uomo è veduto nel suo immane rapporto con una legge superiore, con una
Volontà obiettiva che trascende l‟individuo particolare e lo eleva a membro consapevole di una società
spirituale. Chi nella politica religiosa del regime fascista si è fermato a considerazioni di mera opportunità, non
ha intenso che il fascismo, oltre a essere un sistema di governo, è anche, e prima di tutto, un sistema di pensiero.
“7.- Antiindividualistica, la concezione fascista è per lo Stato; ed è per lindividuo in quanto esso coincide con lo
Stato,coscienza e volontà universale dell‟uomo nella sua esistenza storica...”

40
Conforme salienta PAULO OTERO, o totalitarismo se baseia nas seguintes premissas: “(i)
preferência do colectivo face ao individual, (ii) da autoridade perante a liberdade, (iii) da
soberania das elites em relação à democracia, (iv) do instinto face à razão e (v) da violência
perante o humanismo”176. Há ainda a hipervalorização do Estado, a concentração de poderes
nas mãos de uma pessoa e uma desigualdade natural entre os homens.

Registre-se ainda que o domínio sobre o povo não era feito unicamente através do medo e da
força, mas também com o uso das novas tecnologias e o controle integral das instituições de
educação e meios de comunicação. Dessa forma, o Estado uniformizava as consciências e
convicções pessoais da população177.

No Brasil, a influência fascista esteve presente na Constituição de 1937, que representou um


grande retrocesso, na medida em que põe fim ao Estado democrático e adota um regime
extremamente autoritário. Na verdade, esta constituição não chegou a viger, uma vez que
dependia de um plebiscito que nunca veio a ocorrer. Vigorava o Estado Novo, no qual
prevalecia a vontade do ditador Getúlio Vargas178.

Mas com o término da II Guerra Mundial e a vitória dos Aliados, há uma retomada da
preocupação com a tutela dos direitos da pessoa humana. Assim, os ideais difundidos pela
doutrina social da igreja têm forte impulso, sendo apenas neste momento que os direitos de
personalidade ganham os seus contornos atuais.

Após um período de graves violações aos direitos da pessoa, passamos a um modelo de


Estado voltado ao bem-estar social, empenhado na realização da justiça social e da
solidariedade. As Constituições, refletindo estes ideais, passam a prever a implementação dos
direitos sociais como incumbência prioritária dos governos e para tanto é instituído um
sistema fiscal.

Através do sistema fiscal implantado nos países é possível promover a redistribuição da


riqueza e obter recursos para a implementação das políticas sociais previstas nas

176
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 304.
177
Ibidem, págs. 326 e 327.
178
Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, op. cit., pág. 118 e seguintes.

41
Constituições. No entanto, o princípio do bem-estar social não está atrelado apenas a aspectos
materiais, mas também a uma vertente imaterial da qualidade de vida. Ou seja, para que se
alcance o pleno desenvolvimento da pessoa, o Estado não é mais responsável apenas pela
promoção de saúde, educação, moradia e trabalho, mas deve assegurar os direitos políticas,
culturais e ambientais179.

Além disso, como reflexo dos direitos fundamentais assegurados a categorias determinadas de
pessoas, são adotadas políticas estatais de interferência no Direito Privado. Cite-se como
exemplos: as Leis Trabalhistas, do Inquilinato, Securitárias, os Códigos de Defesa do
Consumidor dentre outros.

Agora, ao contrário do que ocorria no Estado Liberal, o legislativo perde a sua posição de
protagonista para o executivo, pois será este o responsável pela implementação das políticas
relativas ao bem-estar social. Neste sentido, PAULO OTERO afirma que “a satisfação dos
direitos sociais torna o ser humano mais dependente da actuação do poder administrativo do
que de qualquer acção do legislador”180.

E assim o mencionado autor181, ao analisar os textos constitucionais do Estado Social, aponta


três fases na evolução do rol de direitos fundamentais (i) os textos proclamados nos anos
quarenta do século XX já contemplavam uma formulação da função social da propriedade e
tinham como característica a preocupação com os direitos ao trabalho, da segurança social,
saúde, educação e cultura; (ii) aqueles dos anos setenta e oitenta do século XX, acrescentam
ao rol de direitos matérias relacionadas à preocupação com as gerações futuras, como os
deveres de proteção do ambiente, ecologia e do patrimônio artístico e cultural; (iii) nos textos
publicados nos anos noventa do século XX é acrescentada uma nova geração de direitos
fundamentais, que surgem em razão do progresso científico e tecnológico nas áreas da
genética e biomedicina.

Neste contexto, temos a Constituição francesa de 1946 como a primeira carta européia a
consagrar uma cláusula de bem-estar social. Após, veio a Constituição italiana de 1947 e a Lei
Fundamental de Bona de 1949, encontrando-se nesta os alicerces do Estado Social de

179
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 342.
180
Ibidem, pág. 345.
181
Ibidem, págs. 359-361.

42
Direito182. Em Portugal, o modelo de Estado Democrático de Direito, baseado na dignidade da
pessoa humana, no respeito pela vontade popular e compromissado a promover o bem-estar
social e garantir os direitos fundamentais, apenas veio a ser previsto na Constituição de 1976.

No Brasil, com a queda de Getúlio Vargas em 1945, a Constituição de 1946 rompe com o
regime totalitário do Estado Novo para retornarmos a um regime democrático, que conciliava
um pensamento libertário no plano político, sem deixar de se preocupar com o campo social e
com a tutela dos direitos individuais183.

Mas em 1964, as Forças Armadas tomam o poder e após sucessivas emendas à Constituição e
Atos Institucionais, é elaborada a Carta Constitucional de 1967. Com esta retornamos ao
regime autoritário, no qual houve a redução da autonomia individual, voltou a ser possível a
suspensão de direitos e garantias constitucionais e notou-se uma extrema concentração de
poderes nas mãos do Executivo184.

É somente na Constituição brasileira de 1988 que retornaremos ao Estado Democrático de


Direito, baseado na dignidade da pessoa humana, nos moldes das Constituições européias do
pós Segunda Guerra Mundial, mas já com a presença dos deveres de proteção do ambiente,
ecologia e do patrimônio artístico e cultural no rol de direitos fundamentais185.

Paralelamente à preocupação dos Estados em refletir nos seus textos constitucionais a


preocupação com a tutela dos direitos da pessoa humana, após a Segunda Guerra Mundial,
verificamos uma universalização dos direitos individuais, com a proclamação de instrumentos
normativos de âmbito global e com a criação de estruturas internacionais de controle186.

Dentre os instrumentos normativos internacionais, que refletiram claras preocupações sociais,


podemos citar a Carta das Nações Unidas, de 26.06.1945, e a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, proclamada em 10.12.1948, no âmbito da Assembléia Geral das Nações

182
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 348 e 349.
183
Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, op. cit., pág. 126.
184
Ibidem, pág. 132 e seguintes.
185
Artigo 5º, LXXIII, da Constituição Federal brasileira.
186
António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, op. cit., págs. 133 e134.

43
Unidas. Tal é a importância desta declaração que ela possui uma força hierárquico normativa
superior aos demais atos internos ou internacionais187.

Além destes textos internacionais, foram aprovados diversos outros também dotados de
aplicação universal e heterovinculativos relativamente aos Estados: Convenção Internacional
para Supressão do Tráfico de Seres Humanos e da Exploração de Outrem, em 1950,
Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, em
1965, Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos do Homem, em 1997,
dentre outros.

Note-se que ainda surgiram instrumentos regionais com o objetivo de assegurar os direitos da
pessoa humana. Nas Américas, podemos citar a Declaração Americana de Direitos e Deveres
do Homem e a Carta Americana das Garantias Sociais, ambas em 1948, como também, o
Pacto de São José da Costa Rica, em 1969.

No Brasil, até recentemente muito se discutia sobre a hierarquia normativa dos tratados
internacionais que versam sobre direitos humanos. Muitos afirmavam que teriam a mesma
hierarquia de norma constitucional, enquanto outros entendiam que seriam equivalentes a leis
ordinárias, e por fim havia os que defendiam a posição dos tratados acima das leis ordinárias,
mas abaixo da Constituição.

Com a Emenda Constitucional n.º 45 e a introdução do artigo 5º, parágrafo 3º, da Constituição
Federal, restou estabelecido que os tratados aprovados em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, por maioria de três quintos dos votos dos respectivos membros, adquirem
status constitucional. Ou seja, para que os Tratados Internacionais sejam considerados normas
constitucionais deverão se submeter à mesma sistemática de aprovação de emendas.

Mas ainda restava por ser definida a posição no direito interno dos Tratados que não
houvessem se submetido ao referido sistema de votação. Assim, o Plenário do Supremo
Tribunal Federal brasileiro pacificou a questão no sentido de se filiar à corrente que defende o
status supralegal dos Tratados Internacionais sobre direitos humanos. Esta posição foi adotada

187
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 36.

44
pelo Supremo ao concluir pela impossibilidade de prisão civil de alienante fiduciário infiel,
uma vez que esta é veda pelo Pacto de São José da Costa Rica e o Brasil é seu signatário188.

Todavia, hoje ganham maior relevância os acordos que surgiram no âmbito regional, com o
objetivo de incentivar a atividade econômica dos Estados. Dentre eles, podemos citar, no
continente Americano, temo a Área de Livre Comércio das Américas e, na América do Sul, o
MERCOSUL. Todavia, ambos estão em estágio de desenvolvimento integracionista muito
inferior ao que encontramos no continente Europeu.

Na Europa, merece destaque a Convenção Européia para a Proteção dos Direitos do Homem e
das Liberdades Fundamentais, em 1950, a Carta Social Européia, em 1961, e a Convenção
sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina, todos no âmbito do Conselho da Europa.

Registre-se que os instrumentos regionais que surgiram neste continente tinham uma
característica especial, pois tratava-se do passo mais relevante no longo caminho de
construção de uma Europa. Esta intenção apesar de estar presente nos tempos mais remotos,
ganha forte impulso no pós II Guerra Mundial, numa Europa devastada pela guerra em todos
os setores e que sofria a ameaça de invasão soviética.

Neste quadro, temos o nítido objetivo de reconstrução dos Estados Europeus, através da
criação de mecanismos de cooperação nos planos político, econômico e de defesa, que
culminaram com a constituição, em 1947, do Comitê Internacional de Coordenação dos
Movimentos para a Unidade Européia e a realização de um Congresso, em Haia, no período
de 07 a 10 de maio do mesmo ano.

Já no Congresso de Haia, temos duas tendências integracionistas marcadamente distintas189: a


corrente federalista, que defendia a criação de uma federação política, e a pragmática 190, que

188
Notícia veiculada na página eletrônica do Supremo Tribunal Federal, em 03.12.2008, e acessada por nós em
25.05.2009: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=100258. Vale também citar a
liminar concedida pelo Ministro Celso de Mello no Habeas Corpus n.º 98893, para suspender a prisão civil de
depositário judicial infiel - notícia acessada em 10.06.2009, no site:
http://www.editoramagister.com/noticia_ler.php?id=36864. Note-se que este entendimento já foi adotado em
decisão monocrática no Tribunal Reginal do Trabalho da 23ª Região: Habeas Corpus n.º 00161.2009.000.23.00-
4, Relator Desembargador Tarcísio Valente, notícia acessada em 28.05.2009 no site:
http://www.editoramagister.com/noticia_ler.php?id=36539; e no Tribunal de Justiça de Mato Grosso: Habeas
Corpus n.º 112573/2008, Relator Juiz Substituto Marcelo Souza de Barros, notícia acessada em 01.06.2009 no
site: http://www.editoramagister.com/noticia_ler.php?id=36621.

45
defendia a criação de organismos intergovernamentais, com a manutenção da soberania dos
Estados-membros.

Inicialmente, tanto no Tratado de Paris191, de 1951, como nos Tratados de Roma192, de 1957,
vemos que o modelo pragmático vingou. No entanto, em Maastricht temos a criação de uma
dupla via de unificação européia193, marcada pelo sistema dos pilares: comunitário, no qual os
Estados-membros limitam parte de sua soberania e a delegam para a União Européia; e
intergovernamentais, nos quais permanece assegurada a soberania dos Estados-membros.

Note-se que desde a fase inicial da integração européia até os dias atuais o principal ponto de
divergência dos Estados Europeus está nos limites de delegação de parte da sua soberania
para uma entidade comum. A recente tentativa de ratificação do Tratado que instituía uma
Constituição para a Europa (TECE) demonstra claramente esta tensão194.

Por fim, é fundamental esclarecer que não consideramos os Tratados institutivos que surgiram
no âmbito europeu como Tratados Internacionais. E o principal motivo para tanto está na
limitação da soberania dos Estados-membros. Isto porque, estes instrumentos acabaram por
delegar determinadas matérias a União Européia (UE), de onde decorre o princípio do
primado, através do qual a norma comunitária prevalece sobre a nacional. Tal fato, jamais
poderia ocorrer no âmbito do Direito Internacional Público.

189
João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos. Manual de Direito Comunitário, 5ª Edição, Coimbra
Editora, 2007, Pág. 37 e 38; e Ana Maria Guerra Martins, Curso de Direito Constitucional da União Européia,
Almedina, 2004, pág. 47.
190
Maria Luísa Duarte fala em corrente “unionista” para se referir ao grupo que propunha a cooperação
intergovernamental. A autora entende que a criação do Conselho da Europa seria resultado das aspirações dessa
corrente e que os “federalistas” teriam adotado uma posição mais flexível a fim de priorizar a idéia de integração
econômica, o que teria culminado na criação das Comunidades Européias. Direito da União Europeia e das
Comunidades, 2001, vol. I, Tomo I, Lex, págs. 34 e 35.
191
Tratado da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA).
192
Tratados da Comunidade Econômica Européia (CEE) e da Comunidade Européia de Energia Atômica
(CEEA).
193
Neste sentido, Maria Luísa Duarte afirma que o 1º pilar seria marcado pela integração das soberanias e os
demais pilares seriam relativos à cooperação intergovernamental. Direito da União Europeia e das
Comunidades, op. cit., pág. 72.
194
Em razão do resultado negativo dos referendos realizados na França e nos Países Baixos, Estados membros da
UE, o TECE não chegou a ser ratificado, sendo portanto necessária a elaboração de um novo Tratado. Deste
modo, em 13.12.2007, foi assinado o Tratado de Lisboa, hoje em vigor. Maria José Rangel de Mesquita, Sobre o
mandado da Conferência Intergovernamental definido pelo Conselho Europeu de Bruxelas: É o Tratado de
Lisboa um Novo Tratado?, In: Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. I, Lisboa:
Almedina, 2008, págs. 551 e seguintes.

46
Por outro lado, por razões óbvias, os Tratados institutivos não podem ser considerados como
uma Constituição formal. Trata-se, deste modo, de uma Constituição material195, porque (i)
além de os tratados institutivos criarem a UE e estabelecerem o seu modo de funcionamento,
são hierarquicamente superiores tanto na ordem jurídica da UE, como com relação ao direito
dos Estados-membros; e (ii) o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (TJCE) atua
como um tribunal constitucional196, na medida em que possui competência para fiscalizar a
constitucionalidade e a legalidade comunitárias.

Pelo exposto, foi possível perceber que ao longo da evolução do Direito, tivemos uma fase na
qual a pessoa era absorvida pelo coletivo, não lhe sendo reconhecida qualquer
individualidade. O poder do soberano era incontestável, pois estava fundado na vontade
divina. Com o advento do Estado Liberal passamos a um modelo completamente
individualista, no qual prevalecia uma ampla liberdade. O único limite à liberdade estava no
outro. Em seguida, temos a ascensão dos Estados totalitários, com o retorno da predominância
completa do social sobre o individual.

Por fim, chegamos ao Estado Social de Direito, no qual são assegurados direitos individuais e
sociais. Neste, podemos afirmar que há o reconhecimento do indivíduo, mas que como ser
naturalmente dependente do outro está inserido na sociedade. Busca-se aqui um equilíbrio
entre o individual e o social. Ocorre que, como veremos a seguir este modelo de Estado já
vem apresentando diversos problemas.

Paralelamente ao reconhecimento dos direitos no plano interno, vimos a sua presença em


diversos instrumentos internacionais, inclusive com a criação de organismos próprios para
atuar na sua tutela, como o Tribunal Penal Internacional, a Organização das Nações Unidas e
outros.

Neste âmbito, é preciso fazermos uma ressalva no que se refere às intervenções de um Estado
em outro, sob o fundamento de salvaguardar os Direitos do Homem. Mais especificamente,
estamos aqui a nos referir à presença dos Estados Unidos, com tropas militares, nos países

195
Para maiores aprofundamentos sobre a natureza constitucional dos tratados institutivos: Ana Maria Martins,
Curso de Direito Constitucional da União Européia, op. cit., págs. 121 e seguintes; e Fausto de Quadros,
Direito da União Europeia, Lisboa: Almedina, 2004, págs. 23, 78, 79, 80 e 337.
196
Para uma análise do Tribunal de Justiça como tribunal constitucional: Nuno Piçarra, A Justiça Constitucional
da União Européia, In: Estudos jurídicos e econômicos em homenagem ao Professor Doutor António de Sousa
Franco, vol. 3, Lisboa: 2006.

47
árabes, que adotam a religião mulçumana. Esta ocupação tem sido feita sob o argumento do
combate ao terrorismo e na defesa dos direitos da pessoa.

Neste ponto, encontramos dificuldades em aferir a possibilidade dessas intervenções face à


soberania dos Estados e ao direito à identidade cultural. E assim questionamos se seria justa
ou legítima a imposição de valores do mundo ocidental a aquelas sociedades. Por outro lado,
como admitir as flagrantes violações aos direitos da mulher ocorridas naqueles Estados197?
Confessamos que não temos uma resposta a esses questionamentos tão atuais, mas
registramos que esta é uma questão que merece reflexão. Todavia, não temos dúvidas em
afirmar que a proteção dos direitos da pessoa não pode servir de pretexto para o domínio de
um país sobre o outro198.

Por fim, destacamos que outro fenômeno muito atual é a tendência integracionista, com a
criação de blocos regionais voltados principalmente ao desenvolvimento econômico dos
Estados-membros. Mas no continente europeu tal é o estágio de integração, que não mais
estão envolvidos apenas aspectos econômicos, como também diversas outras matérias, que
acabam por colocar em questão a soberania dos Estados.

Deste modo, passaremos a analisar no tópico seguinte este modelo de Estado Social de Direito
predominante no cenário atual e adotado por Portugal e Brasil, que tem a pessoa humana
como fundamento de seus respectivos ordenamentos jurídicos.

2.2. O ESTADO SOCIAL DE DIREITO

O Estado Social de Direito, sob o prisma jurídico, apenas guarda sentido quando a serviço da
dignidade da pessoa humana, expressamente prevista nos artigos 1º das Constituições
brasileira e portuguesa. Constitui premissa máxima a inspirar todo o ordenamento jurídico199.

197
No romance A Thousand Splendid Suns, o médico afegão Khaled Hosseini naturalizado estadunidense busca
demonstrar as constantes violações aos direitos da mulher ocorridas em países mulçulmanos e mais
especificamente no Afeganistão.
198
Sobre o tema: José de Oliveira Ascensão, Pessoa, Direitos Fundamentais e Direito da Personalidade, In:
Revista Mestrado em Direito, Ano 6, n.º 1, Osasco: 2006, pág. 151 e seguintes.
199
Sobre a dignidade da pessoa humana: J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
5ª Edição, Coimbra: Almedina, 2002, págs. 225 e 226, e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional,
Tomo IV, op. cit., págs. 180 e seguintes.

48
Assim, a pessoa é colocada como valor supremo, como sujeito, fundamento e fim do
Direito200.

Mas o que seria a dignidade da pessoa humana? Para responder a este questionamento,
tomamos de empréstimo os ensinamentos do professor PAULO OTERO, que afirma: “a
palavra homem envolve já, por si, a idéia de dignidade”201. Ou seja, não é por ser cidadão,
membro de um determinado Estado que a pessoa deve ser tutelada, mas sim por ser humano é
que a pessoa tem dignidade, devendo o Direito e o Estado se ocupar de fornecer à pessoa as
condições necessárias ao seu pleno desenvolvimento e bem-estar.

Vale também destacar os dizeres de INGO SARLET no sentido de que a dignidade consiste
em uma “qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano”, devendo a
observância desta constituir uma meta permanente e contínua de toda a humanidade, do
Estado e do Direito202.

Esse dever de proteção da dignidade da pessoa humana implica na atribuição de direitos que
representem ao mesmo tempo um mínimo, a assegurar um espaço de liberdade ao seu titular,
e um máximo, tendo em vista que está em causa a pessoa203. Todavia, além desses direitos, as
pessoas também possuem deveres, que estão relacionados ao respeito ao próximo e ao
exercício dos direitos de forma solidária204.

Neste sentido, vale citar os esclarecimentos dos constitucionalistas brasileiros BARROSO e


A.P. BARCELLOS acerca da dignidade da pessoa humana. Para eles, “a dignidade relaciona-
se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de
subsistência”205.

200
José de Oliveira Ascensão, Pessoa, Direitos Fundamentais e Direito da Personalidade, In: Revista Mestrado
em Direito, Ano 6, n.º 1, Osasco: 2006, pág. 166.
201
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., págs. 363-365.
202
Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, op. cit., pág. 27.
203
José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. I, Introdução, As pessoas. Os Bens, 2ª edição,
Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pág. 72.
204
Sobre o tema: José de Oliveira Ascensão, Pessoa, Direitos Fundamentais e Direito da Personalidade, op. cit.,
págs. 159 e seguintes.
205
Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, O Começo da história. A Nova Interpretação Constitucionl e
o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro, In: Revista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro,
v. 6, n. 23, 2003, pág. 60.

49
Por sua vez, a intervenção do Estado na esfera particular dos indivíduos deve ser vista com
muita cautela, pois não podemos nos esquecer das origens do Direito: assegurar o direito do
homem ao seu livre desenvolvimento206. Ou seja, o Direito existe para satisfazer as
necessidades do homem e por isso ao longo do tempo vai sofrendo alterações para se adaptar
ao desenvolvimento humano.

Vale aqui transcrever as precisas palavras do professor ASCENSÃO neste sentido:

“Pelo contrário, o Direito pretende ordenar os aspectos fundamentais


da convivência, criando as condições exteriores que permitam a
conservação da sociedade e a realização pessoal dos seus membros. O
Direito porém não pode nem pretender arcar directamente com esta
realização pessoal, e por isso ele não assenta na ordem interna das
acções humanas.” 207

O Direito deverá tutelar a pessoa na complexidade de aspectos que esta envolve, pois é a
“dignidade de cada pessoa humana viva e concreta o fundamento de validade de toda a ordem
jurídica e a razão de ser do Estado”208. Portanto, não deve ser a vontade soberana popular que
determina quais os direitos que merecem tutela, mas sim o valor do próprio ser humano209.
Como o homem é anterior e superior à sociedade, a sua dignidade deve ser total e
incondicionalmente respeitada, independentemente da conjuntura histórica, política,
econômica ou social da época210.

Ocorre que, a dignidade humana não depende apenas da atividade do Estado, mas antes
envolve uma tarefa da própria pessoa, pois é esta que se constrói e traça as características de
sua dignidade. Assim, na sua construção, a pessoa deve ter em vista valores éticos e o respeito
a si própria211.

206
A preocupação com a intervenção do Estado nos contratos já estava presente em obra produzida por VAZ
SERRA, em 1958: “As expressões «intervenção do Estado nos contratos», «contrato forçado» e outras traduzem
com maior ou menor rigor,uma tendência do direito moderno para o enfraquecimento, quer da liberdade das
partes na formação das suas convenções, quer no respeito da sua vontade na execução delas.” Adriano Paes da
Silva Vaz Serra. Efeitos dos Contratos: Princípios Gerais, In: Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º
74, Lisboa: 1958, pág. 35.
207
José de Oliveira Ascensão, O Direito, op.cit., pág. 102.
208
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, op.cit., pág. 28.
209
Uma ordem jurídica válida é aquela que compreende cada homem como pessoa,ou seja, “como um ser ético,
comum carácter relacional, aberto à historicidade da praxis, em contínuo processo de realização”. Fernando J.
Bronze, Pessoa, Direito e Estado – algumas reflexões, In: Estudos em Honra do Professor Doutor José de
Oliveira Ascensão, vol. I, Lisboa: Almedina, 2008, págs. 317 e 318.
210
Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In: Nós, op. cit., pág. 45.
211
Diogo Leite de Campos, A Relação da Pessoa Consigo Mesma, In: Nós, op. cit., págs. 92.

50
No que concerne à consagração dos direitos da pessoa humana nos textos formais da
atualidade, assistimos a um empolamento no rol de direitos. As garantias fundamentais que
deveriam ter como objetivo regular o viver em sociedade, acabam por ter em seu rol a
consagração de direitos que exprimem os interesses de determinados grupos e classes, mas
que nada tem a ver com o que é verdadeiramente constitucional212.

Tal situação também ocorre no âmbito da lei civil, quando são incluídos como direitos de
personalidade situações que não estão relacionadas com a pessoa humana. Como veremos na
seção seguinte, “o direito de personalidade é a projecção da personalidade”213 e como a
personalidade é “a qualidade de ser pessoa”214, estes direitos deverão ter como único objetivo
a pessoa concreta. Ao alargar esta proteção à pessoa jurídica215 e aos bens imateriais, por
exemplo, acabamos por desvirtuar o instituto e por enfraquecer a tutela que o ser humano
merece.

Na doutrina brasileira, os autores chegam a falar em direitos da personalidade no âmbito


intelectual, como sendo aqueles que têm como objetivo a “proteção conferida ao elemento
216
criativo, típico da inteligência humana” . Ora, a produção intelectual da pessoa não está
relacionada a sua personalidade, devendo ser objeto de proteção pelo ramo do Direito que lhe
é próprio, a Lei de Proteção da Propriedade Intelectual e não pelos Direitos de Personalidade.

Baseado na doutrina predominante no Brasil, o Superior Tribunal de Justiça chega a falar em


direito à “personalidade comercial para proteger a marca”. Foi este o entendimento adotado
pela Terceira Turma daquele Tribunal, ao considerar cabível indenização por dano moral à
empresa que teve marca copiada por outra. “Para os ministros, a usurpação da marca alheia
viola direito essencial à personalidade comercial do titular, pela diluição da identidade do

212
José de Oliveira Ascensão, Pessoa, Direitos Fundamentais e Direito da Personalidade, op. cit., págs. 150 e
seguintes.
213
José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, , op. cit., pág. 77.
214
Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 3ª Edição, Lisboa: Almedina, 2005, págs. 35
e seguintes.
215
Em defesa pela extensão dos direitos de personalidade à pessoa jurídica: Alexandre Ferreira de Assunção
Alves, A Pessoa Jurídica e os Direitos de Personalidade, Rio de Janeiro: Renovar, 1998. No sentido contrário,
rejeitando-a, Danilo Doneda acertadamente esclarece que o direito de personalidade é exclusivo da pessoa
humana: Danilo Doneda. Os Direitos da Personalidade no Código Civil, In: Revista da Faculdade de Direito de
Campos, Ano VI, n.º 6, junho de 2005, págs. 90 e seguintes; como também, António Menezes Cordeiro, Tratado
de Direito Civil Português, op. cit., págs. 111 e seguintes.
216
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direito Civil – Teoria Geral, 7ª Edição, Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2008, págs. 150 e seguintes.

51
produto junto aos consumidores.” A relatora do processo, Ministra Nancy Andrighi, chegou a
afirmar que no atual sistema legal brasileiro, “o dano moral da pessoa jurídica corresponde à
lesão ao direito de personalidade”217.

Registre-se, no entanto, que muitas situações jurídicas acabam por atingir os direitos de
personalidade. Isto ocorre quando atingem a imagem, honra, nome e integridade física da
pessoa humana. Nestas hipóteses, o instituto dos direitos de personalidade deve ser aplicado
com o objetivo de proteger a pessoa. Como exemplo, podemos citar o caso das biografias não
autorizadas, em que um terceiro publica fatos da vida privada de pessoas públicas sem o seu
consentimento. Há aqui uma clara violação ao direito à privacidade e à imagem da pessoa e,
portanto, as regras de direitos de personalidade devem ser aplicadas.

Ocorre que esta problemática não está apenas no texto formal, mas também quando o
aplicador do direito acaba por considerar como direito fundamental situações da vida privada
das pessoas que estão longe de ter tal relevância. Neste sentido, vale aqui destacar o
importante voto divergente do juiz Grimm no julgamento do caso Reiten im Walde perante o
Tribunal Constitucional Federal alemão218.

No mencionado caso discutia-se eventual ofensa à liberdade geral de ação do reclamante por
Lei Estadual que disciplinava o acesso e utilização de determinada área florestal. Esta lei
limitava as cavalgadas a determinadas ruas e caminhos próprios para tal finalidade.
Analisando a questão, o juiz Grimm entendeu que o ato de cavalgar não merece uma proteção
de direito fundamental. Isto porque não deve ser considerado direito fundamental qualquer
comportamento humano, mas apenas aquele que tenha especial relevância, que esteja
relacionado à integridade do indivíduo em suas relações básicas.

Consideramos acertadas as considerações feitas pelo juiz Grimm, pois de fato o


desenvolvimento da personalidade individual não depende da possibilidade de cavalgar na
floresta. Os direitos da pessoa devem se ocupar daquilo que realmente lhe é essencial, sob
pena de banalizarmos o instituto.

217
Notícia acessada em 21.06.2009, na página eletrônica: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.
wsp?tmp.area=398&tmp.texto=92418.
218
Jürgen Schwabe, Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão.
Organização e Introdução de Leonardo Martins. Tradução de Beatriz Henning, Leonardo Martins, Mariana
Bigelli de Carvalho, Terza Maria de Castro e Vivianne Geraldes Ferreira. Editora Konrad-Adenauer-Stiftung
E.V., 2005, págs. 228 - 233.

52
Não bastasse a problemática em torno da dificuldade de definirmos quais seriam os direitos
que merecem tutela, assistimos a uma inversão de valores na sociedade moderna. As pessoas
que são referência na atualidade deixaram de ser os intelectuais e filósofos do passado para
dar lugar a modelos e atletas profissionais219. O culto ao corpo parece ter maior importância
que a educação. O direito à privacidade perde cada vez mais importância diante das demais
demandas da sociedade, como segurança ou mesmo na busca por dinheiro. As leis deixaram
de refletir a vontade popular, pois o legislativo é cada vez mais influenciado por interesses
políticos resultado dos lobbies das grandes empresas220. Deste modo, determinar o que está de
acordo com a ordem pública torna-se uma questão de difícil definição.

Por outro lado, se ao indivíduo devem ser assegurados uma infinidade de direitos, não se
admite a criação de deveres. Vivemos a era do „é proibido proibir‟! As normas de conduta
jurídicas e morais teriam desaparecido, pois não seria possível impor limites à liberdade
humana, mas apenas direitos.

Como alerta, LEITE DE CAMPOS, A pessoa teria deixado de ser vista como um ser ético-
jurídico integrado na sociedade, passando a constituir um ser individual, que tem a vontade
como característica comum a todos os outros. Os valores sociais teriam desaparecido ou se
transformado em valores individuais absolutos de proteção de cada indivíduo, que nada mais
seriam que interesses221. E o Direito teria deixado de limitar a vontade do sujeito. Ocorre que
como a vontade de um naturalmente esbarra na do seu semelhante, na ausência de qualquer
fundamento ético, o que acaba por prevalecer é a vontade do mais forte, de quem detém o
poder222.

Assim, as sociedades modernas estariam diante de um discurso do poder, no qual o legislador


começa a perder sentido e eficácia social, pois o Direito não mais se apresenta como ordem

219
Neste sentido, Diogo Leite de Campos, O Direito e os direitos da personalidade, In: Nós, op. cit., págs. 122 e
123.
220
Ibidem, pág. 123.
221
Diogo Leite de Campos, O cidadão-absoluto e o estado, o direito e a democracia, In: Nós – Estudos sobre o
Direito das Pessoas, Coimbra: Almedina, 2004, pág. 137.
222
Diogo Leite de Campos, Os Direitos da Personalidade: Categoria em Reapreciação, op.cit., págs. 161 e 162.

53
prévia fundada nos ideais de justiça, mas reflete a vontade do mais forte com decisões diante
do caso concreto223.

Abordando questões acerca da disponibilidade do próprio corpo, PAULO OTERO224


demonstra que a sociedade atual de origem cristã está em contradição com a sua evolução
histórica cultural. Isto porque, em sendo o dever de respeito à vida e ao próprio corpo um dos
preceitos fundamentais da igreja católica, como se justificariam as discussões acerca da
interrupção voluntária da gravidez225 e do direito à eutanásia.

E assim demonstra que em alguns setores políticos e intelectuais, é possível verificar a defesa
por uma total disponibilidade do corpo humano de acordo com a vontade do respectivo
sujeito. Dessa forma, a liberdade acaba por ser considerada um valor absoluto e a dignidade
da pessoa humana um direito determinado segundo a autonomia da vontade do seu titular,
sem quaisquer limites.

Ora, como visto o indivíduo é um ser social, que depende do outro para se desenvolver.
Portanto, deve existir um justo equilíbrio entre o individual e o social, no qual cada um deve
exercer os seus direitos de forma ética, respeitando a si e o próximo. Do contrário, estaríamos
retornando a períodos da história, em que o homem era visto como um mero meio a serviço
da sociedade e não como um fim em si mesmo.

No aspecto econômico, estamos em plena crise mundial. A sociedade norte-americana que


inspirou o mundo com o seu way of life começa a mostrar as suas falhas. O consumo
acelerado incentivado pela concessão de crédito entra em colapso. Grandes bancos e empresas
anunciam a sua péssima situação financeira. E a solução dos governos em todo o mundo tem
consistido na injeção de recursos dos Estados no sistema financeiro.

223
Diogo Leite de Campos, Os Direitos da Personalidade: Categoria em Reapreciação, In: Nós – Estudos sobre o
Direito das Pessoas, Coimbra: Almedina, 2004, págs. 153 e seguintes.
224
Paulo Otero, Disponibilidade do Próprio Corpo e Dignidade da Pessoa Humana, In: Estudos em Honra do
Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. I, Lisboa: Almedina, 2008, págs. 117 e seguintes.
225
No que se refere ao aborto, o direito de autodeterminação da mulher atinge diretamente direitos de terceiros,
como o direito à vida do feto e o direito à paternidade do progenitor. Sobre os direitos do progenitor: Pedro Pais
de Vasconcelos. A Posição Jurídica do Pai na Interrupção Voluntária da Gravidez, In: Estudos em Honra do
Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. I, Lisboa: Almedina, 2008, págs. 139 e seguintes. Neste artigo
o autor demonstra que diante da decisão da mulher em interromper a gravidez, o pai poderá se opor através do
exercício de um direito próprio de personalidade, que designa como direito à paternidade, e ainda poderá, no
exercício do poder paternal, representar o nascituro na defesa do seu direito à vida. Mas destaca que estes
direitos deverão ser exercidos de acordo com o interesse do menor.

54
Desse modo, assim como ocorreu após a crise do liberalismo, vemos a intervenção dos
governos para regular a economia. Está mais do que demonstrado que a iniciativa privada
exige uma partipação ativa do Estado, no entanto, a justa medida dessa intervenção é algo que
ainda está por ser definida.

Além do importante papel do executivo, também prevalece o sistema de concentração no


Estado do poder de julgar controvérsias dos particulares, por meio de magistrados a quem o
Poder Público investe deste poder jurisdicional. Todavia, buscaremos demonstrar ao longo
dessa dissertação que este muitas vezes não se mostra o meio mais adequado à solução de
determinadas controvérsias.

É inegável que a jurisdição estatal passa por uma crise. No Brasil, o Tribunal Constitucional
vem exercendo um papel de centralidade no cenário econômico político, deixando de ser um
mero guardião da Constituição para atuar como protagonista. Isto porque o Supremo Tribunal
Federal passou a ser o responsável pela última palavra nas questões de maior relevância no
país226, seja na interpretação do texto constitucional, na supressão de lacunas ou mesmo
atuando como legislador positivo em diversos casos.

Apenas a título de exemplo da intervenção do poder judiciário na esfera do executivo,


podemos citar as diversas decisões sobre o fornecimento de medicamentos227. Tal é o volume
de casos submetidos aos magistrados que, em abril e maio de 2009, o Supremo Tribunal
Federal promoveu uma audiência pública durante seis dias, na qual pessoas e entidades
ligadas ao setor de saúde pública se manifestaram sobre as decisões judiciais que obrigam a

226
Como casos recentes da mais alta relevância que envolveram acirradas discussões, podemos citar a
demarcação de terras na região da Raposa Serra do Sol. Neste caso, o Supremo teve que decidir o conflito entre
os direitos indígenas à demarcação contínua da região, com a retirada dos não índios e o direito à propriedade
privada de diversos produtores agrícolas, que se destinam principalmente à produção de arroz. Em março de
2009, o STF acabou por determinar pela demarcação contínua da região. No entanto, em brilhante voto
divergente elaborado pelo Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello foram suscitadas questões da mais
alta relevância, como a importância da atividade exercida pelos produtores rurais para a sustentabilidade da
região (Petição n.º 3388, Relator Ministro Carlos Ayres Britto). Além deste caso, também foi submetido ao
perante o STF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no que se refere à possibilidade da
realização de aborto em fetos anencéfalos. Neste processo, está em causa o direito à vida, à dignidade da pessoa
humana, da saúde, da liberdade, da autonomia da manifestação da vontade e da legalidade. (Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 54, Relator Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello).
227
Suspensão de Tutela Antecipada n.º 328, pedente de distribuição no Supremo Tribunal Federal brasileiro.
Notícia acessada em 10.06.2009, no site: http://www.editoramagister.com/noticia_ler.php?id=36828.

55
União, Estados e Municípios a fornecer medicamentos de alto custo a pacientes do Sistema
Único de Saúde (SUS).

O artigo 196 da Constituição Federal brasileira garante a saúde como direito de todos e dever
do Estado, ocorre que muitas vezes não há recursos suficientes para o fornecimento de todos
os medicamentos e tratamentos necessários à população. Dessa forma, como compete ao
poder executivo o gerenciamento do sistema público de saúde, muitos pedidos acabam sendo
negados e diante desta resposta, a população recorre ao judiciário para obtê-los.

Ora, esta freqüente intervenção do poder judiciário coloca em risco o sistema da separação de
poderes, o princípio da legalidade, a cláusula da reserva do financeiramente possível e,
consequentemente, o próprio sistema público de saúde, pois cabe ao executivo definir os
critérios de necessidade e prioridade no atendimento à população.

Assim, ao deferir o fornecimento de tratamentos e/ou medicamentos, muitas vezes de


altíssimo custo, o correto gerenciamento das contas públicas acaba sendo prejudicado, na
medida em que obriga o agente público encarregado de administrar o SUS a remanejar a
verba destinada a determinado serviço para outras áreas, reduzindo a possibilidade de serem
fornecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade.

Não bastasse esta problemática, o crescimento acelerado do judiciário apresenta diversos


riscos. Dentre eles podemos citar a saturação dos mecanismos estatais de tutela. O número de
magistrados e funcionários nunca é suficiente para atender às demandas da população, em
tempo razoável. A quantidade de recursos previstos na lei processual em nome do acesso à
jurisdição acaba tornando absurdo o tempo de duração de um processo.

E ainda há que se falar nas constantes ofensas à segurança jurídica. Isto porque em razão do
número de recursos o processo é submetido a diversos magistrados, sendo frequentes as
mudanças de entendimento. Além disso, o constante recurso aos direitos fundamentais acaba
justificando as mais diversas decisões, mesmo contrárias à lei.

Por outro lado, apesar da criação de Tribunais especializados, como a Justiça do Trabalho,
Federal e Estadual e dentro desses com a subdivisão em Varas Criminais, Cíveis,
Empresariais, de Família, dentre outras, muitas vezes falta aos magistrados uma

56
especialização para julgar casos especiais, o que sequer seria exigível. Assim, causas
envolvendo questões muito específicas (como downstream, grandes operações financeiras e
outras) acabam não tendo o julgamento mais adequado.

Neste contexto, o instituto da arbitragem voluntária ressurge como uma alternativa para a
composição de litígios sem necessidade do crivo do Judiciário. Cresce vertiginosamente a
demanda por um instrumento mais célere e eficiente de pacificação social, diante da notável
incapacidade do Estado de suprir esta função. E coube justamente à arbitragem preencher essa
lacuna estatal, como será demonstrado na seção 6.

Note-se, que o papel central do Tribunal Constitucional brasileiro está intimamente


relacionado à posição que a Constituição ocupa no ordenamento jurídico daquele país. A
quase que unanimidade da doutrina brasileira aderiu à teoria de um Direito segundo a
Constituição, quando na verdade a preocupação deveria ser com a centralidade da pessoa.
Assim fala-se em Direito Civil Constitucional, Direito Administrativo Constitucional, Direito
Processual Civil Constitucional etc228.

Na Europa, esta questão vem sendo superada. Com a criação do Conselho da Europa e da
União Européia, os tribunais constitucionais nacionais deixaram de exercer um papel central,
deixando de ser os únicos responsáveis pela última palavra em matéria de direitos humanos.
Agora, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, os Tribunais Comunitários e os Tribunais
Nacionais possuem o objetivo comum de tutelar os direitos fundamentais da pessoa humana.
Fenômeno este denominado pela professora Maria Luísa DUARTE como: “triângulo judicial
europeu”229.

Assim, no cenário europeu passou a prevalecer a idéia de um diálogo aberto, de caráter plural
e internormativo entre os Tribunais, no qual os juízes comunitários fazem concessões
recíprocas para permitir uma cooperação entre eles, não existindo uma relação de hierarquia,
mas uma idéia de subsidiariedade e cooperação judicial230.

228
Desenvolveremos melhor o tema no tópico „Direito Público e Direito Privado‟.
229
Terminologia sugerida por Maria Luísa Duarte em O Direito da União Europeia e o Direito Europeu dos
Direitos do Homem – Uma Defesa do “Triângulo Judicial Europeu” . In: Estudos de Direito da União e das
Comunidades Européias, vol. II. Lisboa: Coimbra Editora, 2000.
230
Maria Luísa Duarte, União Européia e Direitos Fundamentais: No Espaço da Internormatividade. Lisboa:
AAFDL, 2006, págs. 374 e 375.

57
No entanto, também podemos encontrar constitucionalistas portugueses a alegar um suposto
“Tendencial vazio do Direito Civil”, que estaria restrito a uma preocupação com o conteúdo
econômico do direito. Neste sentido, podemos citar PAULO OTERO, que apesar de admitir a
existência de princípios gerais na legislação civil231, salienta que as questões sobre a validade
ou invalidade dos atos civis podem ser colocadas em causa, na hipótese de ser extraída da
Constituição um fundamentação de posição contrária.

Ora, como desenvolveremos melhor no tópico 2.3. infra, a centralidade da pessoa humana
deve ser aplicada em todo ordenamento jurídico, não sendo necessário irmos à Constituição
para retirarmos os direitos relativos à pessoa, como aquele que assegura o livre
desenvolvimento da personalidade232, por exemplo. Estes decorrem da própria natureza da
espécie humana, são inatos, não dependem de positivação, pois sempre existiram. Dessa
forma, não é a Constituição que determina a interpretação do Direito, mas sim a própria
natureza das coisas.

Portanto, como veremos no tópico relativo aos Contratos de Direitos de Personalidade é


perfeitamente possível afastarmos regras gerais de Direito Civil e mais especificamente de
Direito das Obrigações, quando está em causa a pessoa. E isto não representa um desvio às
regras do instituto233, mas sim uma interpretação deste de acordo com a centralidade da
pessoa humana no ordenamento jurídico.

Registre-se, por fim, que não estamos aqui desconsiderando a importância dos Tribunais
estatais na garantia dos direitos do homem. Muito pelo contrário, reconhecemos a relevância
do seu papel na formação do Estado Social de Direito brasileiro e português234.

231
Princípios estes que, segundo Paulo Otero, conduzem à extracomercialidade do corpo humano, à proibição de
atos em que reste configurado o abuso de direito, como também, à invalidade dos negócios jurídicos que
representem ofensas aos bons costumes. Paulo Otero, Disponibilidade do Próprio Corpo e Dignidade da Pessoa
Humana, op. cit., págs. 120 e seguintes.
232
Cabe observar aqui que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade sequer está previsto na
Constituição, mas não é por este motivo que deixa de ser tutelado no ordenamento jurídico deste país, como
demonstraremos no tópico 4.2.
233
Em sentido contrário, Paulo Otero, Disponibilidade do Próprio Corpo e Dignidade da Pessoa Humana, op.
cit., pág. 138.
234
Merece especial destaque a presença recorrente dos direitos humanos na atuação do Superior Tribunal de
Justiça brasileiro, que em diversos precedentes tem reafirmado os valores fundamentais consagrados na
Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas, de 10.12.1948. Neste sentido,
notícia consultada em 16.06.2009, na página eletrônica: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/
engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=92435.

58
A compreensão destas noções é essencial para o desenvolvimento deste trabalho, pois apenas
percebendo a centralidade da pessoa humana no Direito é que será possível delimitarmos o
espaço de disponibilidade dos direitos de personalidade e a importância de assegurar meios
efetivos à tutela desses, que inegavelmente estão profundamente vinculados à pessoa e,
portanto, são aqueles de maior importância em nosso ordenamento jurídico.

2.3. DISTINÇÃO TERMINOLÓGICA DOS DIREITOS

Como vimos, a preocupação com a tutela dos direitos de personalidade está presente na
história da civilização desde o Direito Romano até os dias atuais. O Direito só existe em
função da pessoa, portanto, a dignidade da pessoa humana é a premissa máxima a inspirar
todo o ordenamento jurídico, sendo desta que surgiram os direitos do homem, originários,
fundamentais e, finalmente, os de personalidade.

Tendo em vista essa origem comum dos direitos e o fato de que o surgimento de um novo
direito não exclui o outro, ao confrontarmos os catálogos de direitos do homem com os
direitos fundamentais e com os direitos de personalidade, percebemos que alguns direitos são
coincidentes. Dessa forma, cumpre esclarecer o que entendemos por direitos do homem,
fundamentais e de personalidade, bem como, a relação existente entre eles.

Apesar de alguns autores utilizarem as expressões direitos do homem e direitos fundamentais


como sinônimas, entendemos que os direitos do homem se referem a aqueles direitos
inerentes a pessoa humana, reconhecidos pelo Direito Natural e pelo Direito Internacional;
enquanto os direitos fundamentais constituem o acervo de direitos constitucionalmente
positivados e garantidos pelos ordenamentos jurídicos nacionais, sendo certo que este acervo
não se limita aos direitos decorrentes do direito natural, mas incluem outros positivados pelo
legislador235.

No que se refere aos direitos fundamentais e aos direitos de personalidade, JORGE


MIRANDA, apesar de reconhecer a existência de largas zonas de coincidência, diferencia-

235
Neste sentido está a doutrina majoritária portuguesa: Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo
IV, Direitos Fundamentais, op. cit., págs. 52 e ss.; J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, op. cit., pág. 391; José de Melo Alexandrino, Direitos Fundamentais – Introdução Geral, Principia,
2007, págs. 33 e seguintes; e António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, op. cit., pág. 130.

59
os.236 Os direitos fundamentais teriam uma incidência predominantemente publicista, no qual
predomina uma relação direta com o Estado, enquanto os direitos de personalidade não
possuiriam uma projeção especial face ao poder público, mas pressuporiam uma relação de
igualdade, incidindo nas relações entre particulares.

Seguindo o entendimento adotado por Jorge Miranda, ALEXANDRINO237 afirma que diante
dessa identidade, temos que quando o direito está previsto na Constituição seria um direito
fundamental e quando está previsto no Código Civil trata-se de um direito da personalidade.
Para o autor um direito da personalidade não consta na constituição, assim, um direito não
pode ser fundamental e da personalidade, ao mesmo tempo.

No mesmo sentido, o professor ASCENSÃO238 entende que não existe equivalência entre os
direitos da personalidade e os direitos fundamentais, uma vez que a abordagem seria feita de
forma diferente. Os direitos fundamentais tutelam a posição do cidadão perante o Estado, se
ocupam da “conformação de relações que se desenvolvem na sociedade politicamente
organizada”239.

Enquanto os direitos da personalidade têm como objeto a tutela da pessoa e o atendimento das
“às emanações da personalidade humana em si, prévias à estruturação política”240. No entanto,
o professor não deixa de registrar que embora os direitos fundamentais apenas lateralmente
tenham como objeto a pessoa, este não se ocupa apenas de tutelar a posição do cidadão
perante o Estado, mas também são aplicáveis às relações privadas.

E acrescenta que embora o artigo 16.º, n.º 1, da Constituição portuguesa contemple catálogo
aberto de direitos fundamentais, nem todos os direitos da personalidade previstos em leis
ordinárias devem ser considerados direitos fundamentais, uma vez que a preocupação
constitucional é diferente e mais restrita que a das leis ordinárias241.

236
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, op. cit., pág. 58. “Os direitos fundamentais pressupõem
relações de poder, os direitos de personalidade relações de igualdade. Os direitos fundamentais têm uma
incidência publicística imediata, ainda quando ocorram efeitos nas relações entre os particulares (...); os direitos
de personalidade uma incidência privatística, ainda quando sobreposta ou subposta à dos direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais pertencem ao domínio do Direito constitucional, os direitos de personalidade ao do
Direito civil.”
237
José de Melo Alexandrino, Direitos Fundamentais – Introdução Geral, op. cit., págs. 23 e seguintes.
238
José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, op. cit., pág. 75.
239
José de Oliveira Ascensão, Pessoa, Direitos Fundamentais e Direito da Personalidade, op. cit., pág. 150.
240
José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, op. cit., pág. 75.
241
Ibidem., pág. 104.

60
Em sentido contrário, CANOTILHO admite uma coincidência entre estes direitos, pois para
ele “muitos dos direitos fundamentais são direitos de personalidade, mas nem todos os
direitos fundamentais são direitos de personalidade”242. Em sentido similar, PAIS DE
VASCONCELOS afirma que “os direitos de personalidade estão consagrados na Constituição
da República e no Código Civil”.243

MENEZES CORDEIRO distingue duas categorias de direitos fundamentais: públicos e


privados, considerando que os direitos fundamentais privados seriam os “direitos
fundamentais de personalidade”244. Para o autor, quando um direito de personalidade é
previsto na Constituição dentro do acervo de direitos fundamentais a sua tutela é reforçada.

No Direito brasileiro, LUIZ ROLDÃO e J. MARINHO falam em previsão de direitos de


personalidade na Constituição Federal Brasileira, mais especificamente, no artigo 5.º, ou seja,
onde estão previstos os direitos fundamentais na Constituição brasileira245.

PAULO LOBO246, entende que os direitos da personalidade são pluridisciplinares, uma vez
que situam-se no direito civil, no direito constitucional ou na filosofia do direito, com
exclusividade. Prosseguindo, afirma que o reconhecimento desses direitos na Constituição os
assegurou maior visibilidade, mas isto não significa que tenha ficado restrito aos direitos
fundamentais.

Do mesmo modo, a previsão em capítulo próprio no Código Civil não os restringem ao


âmbito do direito civil. Para ele, deverá prevalecer “o estudo unitário da matéria, em suas
dimensões constitucionais e civis”, notadamente no âmbito do direito civil constitucional,
uma vez que tem sido melhor sistematizado, na medida em que harmoniza o seu estudo de
forma integrada.

242
J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, op. cit., pág. 394.
243
Pedro Pais de Vasconcelos. Teoria Geral do Direito Civil, op. cit., págs. 38 e 39.
244
António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, op. cit., págs. 137 e 138.
245
Luiz Roldão de Freitas Gomes, Noção de Pessoa no Direito Brasileiro, op. cit., pág. 342; e Josaphat Marinho,
Os Direitos da Personalidade no Projeto de Novo Código Civil Brasileiro, In: Boletim da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra, Portugal-Brasil - Ano 2000, Coimbra Editora, 1999, pág. 250 e 251.
246
Paulo Luiz Netto Lobo, Danos morais e direitos da personalidade. In: Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 119,
31 out. 2003. Acessado em 21.06.2009, no site: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4445>.

61
Para nós os direitos do homem, fundamentais e da personalidade têm como objetivo a tutela
da pessoa humana, mas cada um se ocupa de uma ótica distinta. Os direitos do homem
possuem um escopo mais amplo, pois pretende tutelar as necessidades mais básicas do
indivíduo em um contexto extraterritorial. Os direitos de personalidade se ocupam da pessoa
em si, das suas necessidades mais íntimas, enquanto os direitos fundamentais têm como
objeto o cidadão, a pessoa enquanto membro da sociedade, nas suas relações com o Estado.

É no âmbito dos direitos fundamentais que estarão consagrados além dos direitos individuais,
os direitos políticos, sociais, econômicos, ambientais e culturais, devendo o Estado atuar não
apenas numa perspectiva passiva de mero garantidor de ofensa, mas assumir também um
papel ativo, no sentido de fornecer as condições básicas para que o indivíduo possa deles
usufruir247. Trata-se do binômio imperativo de tutela e da proibição de intervenção, defendido
na doutrina alemã por CANARIS248.Como veremos em seguida, a obrigação do Estado neste
sentido não pode ser repassada ao particular.

À iniciativa privada cabe um direito-dever, no sentido de usufruir desses direitos de forma


solidária. Ou seja, o indivíduo deve exercer os direitos que lhe são assegurados de forma a
não violar os interesses do outro e sempre de acordo com a moral e os bons costumes
prevalentes no contexto em que está inserido. Dessa forma, não vemos porque estabelecer
uma nítida separação entre os direitos.

A importância está em interpretar todo o ordenamento jurídico tomando a pessoa como o seu
fundamento. E aqui vale citar as palavras de CAIO MARIO, no sentido de que “a finalidade
precípua do direito que se positiva e se afirma no propósito de garantir e proteger o bem-estar
do indivíduo in concreto...”249. É segundo esta perspectiva que passamos a análise do Direito
Público e do Direito Privado.

247
Em uma abordagem sobre as dificuldades do Estado em promover estes direitos, em razão da escassez de
recursos públicos, Ana Paula de Barcellos faz uma análise da teoria de Robert Alexy. Segundo esta, na
ponderação dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade real perante a separação de poderes,
sempre prevalecerá a garantia de um mínimo existencial, pois esta seria uma regra constitucional. Ana Paula de
Barcellos, A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, págs. 117 e
seguintes.
248
Claus-Wilhelm Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo
Mota Pinto, Coimbra: Almedina, 2006, págs. 68, 106 e seguintes.
249
Estamos de acordo com o autor sobre a finalidade do Direito de garantia do bem-estar do indivíduo, mas
discordamos do seu entendimento acerca de uma “tendência à publicização da norma jurídica”. Para nós as
interveções do Estado em matérias que cabiam apenas aos particulares decorre da tendência humanitária do
Direito, da sua interpretação sob a ótica da pessoa. Mas isto não é reflexo de uma publicização do Direito

62
2.4. DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO

A divisão clássica entre Direito Público e Direito Privado era bastante rígida no Estado
Liberal, em que as partes regulavam com ampla liberdade as relações privadas250. Mas com o
advento do Estado Social de Direito, percebemos o crescimento de um movimento no sentido
da aproximação desses ramos do Direito, principalmente em razão da necessidade de
intervenção do poder público nas relações entre particulares no sentido de assegurar que estas
estejam de acordo com os princípios norteadores da nova ordem jurídica251.

Dentre os diversos critérios utilizados para distinguir o Direito Público do Privado,


seguiremos a solução apontada pelo professor ASCENSÃO, que considera o Direito Público
como aquele relacionado com a constituição e organização do Estado e outros entes públicos,
destinado a regular a sua atividade como entidade dotada de ius imperii; enquanto o Direito
Privado se ocuparia das “situações em que os sujeitos estão em posição de paridade”252.

Na doutrina brasileira, CAIO MARIO considera satisfatória a definição dada por Ruggiero no
sentido de que o direito público é aquele que tem como objeto regular as relações entre
Estados e entre estes e os seus súditos, enquanto o Direito Privado se encarrega de disciplinar
as relações entre particulares253.

Embora o Direito Privado não seja composto apenas pelo Direito Civil, este constitui a sua
parte fundamental, sendo aquele que abrange o relacionamento comum entre particulares e,
portanto, tradicionalmente conceituado como direito comum. Neste ramo do direito, temos
como idéia central o poder de autodeterminação das pessoas, que possuem a liberdade de

Privado. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, volume I, 22ª Edição revista e atualizada por
Maria Celina Bodin de Moraes, Rio de Janeiro: Forense, 2007, pág. 18.
250
Daniel Sarmento, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006,
págs. 70 e seguintes.
251
Assim como o professor Caio Mário da Silva Pereira, Daniel Sarmento fala em uma publicização do direito
privado. Concepção esta da qual ousamos discordar. Daniel Sarmento, Direitos Fundamentais e Relações
Privadas, op. cit., págs. 71 e seguintes.
252
José de Oliveira Ascensão, O Direito, op.cit., pág. 335.
253
Ruggiero, Instituições, I, § 8º, pág. 59, apud Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, op.
cit., págs. 17 e 18. Também neste sentido, Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil: parte geral, 4ª edição, São
Paulo: Atlas, 2004, pág. 90.

63
reger a sua vida e estabelecer regras entre si254. Portanto, a autonomia privada é tida como a
idéia central no Direito Privado, pois é este “o domínio natural da liberdade de agir”255.

No Brasil, como ocorre em diversos outros países, vemos que o Direito Civil, ao contrário da
Constituição, é muito mais sólido e menos influenciável pelas forças políticas256. Então, as
novas concepções oriundas do Estado Social, como os princípios sociais do contrato, levaram
muito mais tempo para serem introduzidas no Código Civil. Dessa forma, diante do antigo
Código, que datava de 1916 e ainda estava impregnado pelas já superadas concepções do
Estado Liberal, tivemos uma inflação normativa, que pretendia suprir estas falhas257.

É neste contexto que, por inspiração italiana, a teoria desenvolvida por Pietro Perlingieri sobre
a Constitucionalização do Direito Civil258 chega ao Brasil e conquista o mundo acadêmico259.
Assim, como ocorreu na Itália, enquanto o Código Civil ainda refletia os ideais do
liberalismo, a Constituição já contemplava os novos ideais do Estado Social de Direito. Dessa
forma, a Carta Constitucional brasileira de 1988 se apresentava como um importante
instrumento unificador e de tutela da dignidade da pessoa humana.

Entre os constitucionalistas brasileiros, podemos destacar o renomado jurista BARROSO, que


defende o pós-positivismo como uma terceira via entre as concepções positivistas e
jusnaturalista260 e afirma que a Constituição teria deixado de ser apenas um sistema em si,
para passar a consistir em um “modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito”.
E assim prossegue afirmando que “este fenômeno, identificado por alguns autores como

254
“O Direito Civil representa um núcleo, dentro do Direito Privado, que é positivamente caracterizado e
justificado. Funda-se na necessidade de assegurar um espaço em que o homem desenvolva livremente a sua
personalidade.” José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, op. cit., pág. 12.
255
Ibidem, pág. 12.
256
Em sentido diametralmente oposto, Sarmento afirma que “a rigidez da Constituição torna-a, sob o ângulo
normativo, mais estável do que a legislação ordinária”. Daniel Sarmento, Direitos Fundamentais e Relações
Privadas, op. cit., pág. 83.
257
Gustavo Tepedino, Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil, In: Temas de
Direito Civil, 3ª Edição, Rio de Janeiro: 2004, págs. 03 e seguintes.
258
Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria
Cristina de Cicco, Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
259
Gustavo Tepedino, Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil, op. cit., págs. 01 e
seguintes. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, op. cit., págs. 20 e seguintes. Cristiano
Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direito Civil,op. cit., págs. 18 e seguintes.
260
Luís Roberto Barroso, A Reconstrução Democrática do Direito Público no Brasil, In: A Reconstrução
Democrática do Direito Público no Brasil. Organizador Luís Roberto Barroso, Rio de Janeiro: Renovar, 2007,
pág. 06.

64
„filtragem constitucional‟, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida
sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados”261.

Seguindo os seus caminhos, SARMENTO afirma que a constitucionalização do Direito


Privado não é sequer uma escolha do intérprete, uma vez que o próprio constituinte optou por
disciplinar inúmeros institutos do Direito Privado262.

Dentre os civilistas, podemos citar TEPEDINO. Ao analisar o texto liberal do Código Civil de
1916 e a inflação normativa que o seguiu, o doutrinador afirma que diante da incorporação
dos ideais do Estado Social de Direito na Constituição de 1988, tornou-se necessária uma
reformulação do direito civil à luz da nova lei maior263.

Especificamente no que se refere aos direitos de personalidade, TEPEDINO chega a afirmar


que como estes direitos teriam sido criados sob o paradigma dos direitos patrimoniais, acabam
por representar um mecanismo de proteção da parte mais forte264, sendo portanto necessária a
interpretação do Direito Civil segundo a Constituição. Registre-se desde já que não é esta a
nossa posição.

Diante do Código Civil de 1916, uma interpretação segundo a Constituição tinha a sua razão
de ser, pois era necessário adaptar o Direito Privado à nova ordem política e social instituída.
Ocorre que, com o advento do Código Civil de 2002, a constitucionalização do Direito Civil
perde sentido265.

Apesar de existirem críticas relativas ao fato de o Código já ter nascido velho, é certo que ele
reflete as concepções do Estado Social de Direito, pois trouxe regras e princípios próprios à

261
Luís Roberto Barroso, Fundamentos Teóricos e Filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro, In:
Temas de Direito Constitucional, Tomo II, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pág. 43.
262
Daniel Sarmento, Eficácia Privada dos Direitos Fundamentais, In: A Reconstrução Democrática do Direito
Público no Brasil. Organizador Luís Roberto Barroso, Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pág. 341.
263
“Diante do novo texto constitucional, forçoso parece ser para o intérprete redesenhar o tecido do direito civil
à luz da nova Constituição.” Gustavo Tepedino, Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito
Civil, op. cit., pág. 13.
264
Gustavo Tepedino, A Incorporação dos Direitos Fundamentais pelo Ordenamento Brasileiro: sua eficácia nas
relações jurídicas privadas, In: Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, Ano XXXII, n.º 100,
dezembro de 2005, págs. 155 e 156.
265
Em sentido contrário, Sarmento afirma que “o advento do novo Código Civil, recentemente editado, não teve
o condão de reunificar sob a sua égide todo o Direito Privado, deslocando a Constituição do centro do sistema.
Para isso faltariam poderes ao legislador ordinário, que não teria como subverter a hierarquia do ordenamento”
Daniel Sarmento, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, op. cit., pág. 76. Como também, Cristiano
Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direito Civil,op. cit., págs. 28 e seguintes.

65
tutela da pessoa nas relações privadas. Como exemplos podemos citar a função social do
contrato e da propriedade, a boa fé objetiva, os direitos de personalidade etc.

Com o advento do Código Civil de 2002, não há mais que se falar em Direito Civil
Constitucional, mas sim em uma leitura de acordo com o preceito da dignidade da pessoa
humana. Todavia, esta leitura dever ser feita utilizando-se das regras e características que lhe
são próprias. Registre-se, que não estamos aqui rejeitando o fundamento constitucional do
Direito Civil. Na medida em que a lei maior “consagra os princípios considerados nucleares
numa ordem jurídica”266, todos os ramos do Direito possuem fundamento constitucional.

Para nós, as normas constitucionais podem e devem nortear o aplicador do direito na


interpretação e definição de conceitos e normas de Direito Privado, bem como, oferecer os
parâmetros de ponderação perante o conflito de direitos da pessoa humana. E não poderia ser
diferente, pois se a dignidade da pessoa humana consagrada na Constituição inspira todo o
ordenamento jurídico, os ramos do direito deverão estar de acordo com esta.

Mas não é por este motivo que deveria ocorrer uma constitucionalização do Direito Privado.
Em cada ramo do Direito devem ser desenvolvidos mecanismos próprios para a tutela da
pessoa. E isto foi o que ocorreu com o advento no Código Civil de 2002, com a introdução
das cláusulas gerais da boa-fé, função social do contrato, dentre outras.

Entretanto, como se tratam de cláusulas gerais o seu conteúdo deve ser preenchido de acordo
com os valores consagrados na constituição267, mas sempre tendo em vista as características
do Direito Privado, como a autonomia da vontade, por exemplo. Como vimos, nas relações
privadas o grau de autonomia assegurado às partes é de suma relevância.

Deste modo, embora a pessoa seja o valor máximo de todo o Direito, devendo ser protegida
tanto nas suas relações com o Estado, como nas com os particulares, a interferência na vida
privada das pessoas deve se limitar a hipóteses extremamente necessárias, sob pena de

266
José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, op. cit., pág. 29.
267
Estamos aqui nos referindo a uma interpretação que tome como base fundamental a pessoa nos diversos
aspectos que esta envolve, através de uma leitura moral das relações jurídicas privadas, com base nos princípios
do Estado Social de Direito. Trata-se de uma dogmática que muito se aproxima da concepção pós-positivista,
defendida por Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos no artigo O Começo da história. A Nova
Interpretação Constitucionl e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro, op. cit., pág. 60.

66
violarmos o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e chegarmos a um
totalitarismo.

E aqui nos aproximamos de um tema que já foi objeto de diversos estudos doutrinários: a
chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais na esfera privada.268. Embora não seja
a nossa intenção nos alongar sobre o tema, cumpre destacar que temos algumas restrições à
eficácia horizontal dos direitos fundamentais, principalmente a direta defendida pela doutrina
majoritária brasileira269.

Mas também não somos favoráveis a um retorno ao Estado Liberal, que já se mostrou
fracassado. Hoje, está mais do que claro que o poder público deve assumir um papel ativo na
garantia e promoção dos direitos da pessoa, mesmo na esfera privada. Os direitos da pessoa,
em geral, sejam eles considerados direitos humanos, fundamentais ou de personalidade,
devem ser obrigatoriamente observados nas relações entre particulares. Todavia não nos
afigura admissível uma transferência das obrigações do poder público ao particular.

Ao Estado cabe a promoção dos direitos fundamentais sociais, econômicos, ambientais e


culturais. Deste modo a insuficiência de recursos ou mesmo uma falta de estrutura pública
jamais poderá ser utilizada como argumento a justificar uma transferência dessas obrigações
aos particulares.

Por outro lado, não se mostra adequado um modelo intervencionista/paternalista de Estado. O


poder público deve sim regular as relações privadas, mas precisa estar atento aos limites
impostos pela autonomia privada. Portanto, aproximamo-nos mais da concepção
predominante no direito alemão, que defende a aplicação mediata dos direitos fundamentais
nas relações privadas270.

Tratando do direito geral de personalidade que perante o ordenamento jurídico alemão


decorre da dignidade humana e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade,
268
Conforme esclarece Marcelo Schenk, esta expressão foi utilizada por Alexy para se referir à intensidade e ao
modo de vinculação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Marcelo Schenk Duque, Direitos
Fundamentais e Direito Privado: a busca de um critério para o controle do conteúdo dos contratos, In: A Nova
Crise do Contrato. Organidora Cláudia Lima Marques, Revista dos Tribunais, 2007, pág. 93.
269
Daniel Sarmento, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, op. cit.; Cristiano Chaves de Farias e Nelson
Rosenvald, Direito Civil,op. cit., págs. 30 e seguintes.
270
Neste sentido, podemos citar: Marcelo Schenk Duque, Direitos Fundamentais e Direito Privado, op. cit., pág.
93; e Claus-Wilhelm Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, op. cit., págs. 52 e seguintes.

67
consagrados nos §§ 1º e 2º de sua Constituição, o Tribunal Constitucional Federal271 já deixou
claro que este direito possui aplicação direta apenas em face do Estado, constituindo seu dever
a proteção do indivíduo das ameaças à personalidade provenientes de terceiros.

Assim, caso os aplicadores do direito não observem os parâmetros decorrentes dos direitos
fundamentais, restará configurada violação não apenas ao direito constitucional objetivo,
como também aos direitos subjetivos fundamentais do indivíduo. Mas, destaque-se, os
direitos fundamentais e nem o direito geral de personalidade possuem aplicação direta em
face dos particulares.

Por sua vez, MANUEL FRADA afirma que, “como regra, é certamente de concordar ser
impossível transformar os direitos fundamentais em deveres para os seus titulares”, uma vez
que isto representaria uma exclusão do estado de liberdade. O imperativo de proteção dos
direitos da pessoa humana cabe ao Estado e não aos particulares. A este cabe tão somente o
poder-dever de exercê-los de acordo com a moral e os bons costumes, sempre respeitando o
próximo272.

E, por fim, SOUSA RIBEIRO esclarece que “a qualificação do direito civil como direito
constitucional concretizado não retrata, com fidelidade, a complexidade das relações entre
ambos os complexos normativos.” Para o civilista português, os direitos fundamentais não
constituem uma ordem fechada e acabada, da qual seja possível inferirmos regulações
concretas a moldar as relações civis. As garantias constitucionais possuem uma textura
normativa aberta, que acaba por deixar margem para delicadas tarefas de compatibilização e
de desenvolvimento de seus preceitos, por instrumentos de direito civil273.

Para nós, as garantias constitucionais devem ser utilizadas como vetores interpretativos de
todo ordenamento jurídico, como “linhas diretivas de interpretação” das cláusulas gerais de

271
Caso Scientology, BVERFGE 99, 185. Jürgen Schwabe, Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal
Constitucional Federal Alemão, op. cit., págs. 202 e 203.
272
Manuel A. Carneiro da Frada, A própria vida como dano? : dimensões civis e constitucionais de uma questão-
limite , In: Estudos em honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. I, Coimbra, 2008, págs. 189 e
190.
273
Joaquim de Sousa Ribeiro, Constitucionalização do Direito Civil, In: Direito dos Contratos – estudos,
Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pág. 32.

68
direito civil, “clarificando-as, acentuando ou desacentuando determinados elementos do seu
conteúdo”274. Mas esta tarefa deve ser feita sempre dentro do espírito do Direito Privado.

Além disso, cumpre destacar que estamos de acordo com a dogmática pós-positivista275 no
tocante à aproximação entre o Direito e a ética, quando esta determina uma leitura moral das
normas jurídicas, e também, no que se refere ao reconhecimento da normatividade dos
princípios e da essencialidade dos direitos da pessoa276. Mas apenas divergimos no que se
refere à constitucionalização do Direito277 e portanto nos afastamos da concepção
neoconstitucionalista tão defendida na doutrina brasileira278.

Retomando a dicotomia entre Direito Público e Privado, apesar de considerarmos salutar uma
aproximação entre eles, acreditamos que esta deve ser feita com cautela. Como a pessoa
humana é o fundamento e a finalidade do Direito, a sua dignidade deve informar todos os seus
ramos, não devendo prevalecer uma distinção rígida entre eles. Desse modo, cada ramo do
Direito deve se preocupar com a sua respectiva esfera, mantendo um diálogo aberto em que
um pode emprestar preceitos que lhe são próprios ao outro, desde que respeitadas as
características básicas de cada um.

Assim, vemos que alguns institutos essencialmente patrimoniais, como os negócios jurídicos
e patrimoniais, passam a estar vinculados a determinados princípios como a função social, a
boa-fé objetiva e o equilíbrio das prestações. Nesta relação entre o público e o privado, o
principal objetivo está em garantir a própria liberdade das partes, dando a elas os instrumentos

274
Marcelo Schenk Duque, Direitos Fundamentais e Direito Privado, op. cit., pág. 133.
275
Conforme esclarecem BARROSO e A.P. BARCELLOS, “pós-positivismo é a designação provisória e
genérica de um ideário difuso, no qual se incluem o resgate dos valores, a distinção qualitativa entre princípios e
regras, a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre o Direito e a Ética. A estes elementos
devem-se agregar, em um país como o Brasil, uma perpectiva do Direito que permita a superação da ideologia da
desigualdade e a incorporação à cidadania da parcela da população deixada à margem da civilização e do
consumo. É preciso transpor a fronteira da reflexão filosófica, ingressar na prática jurisprudencial e produzir
efeitos positivos sobre a realidade.” Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, O Começo da história. A
Nova Interpretação Constitucionl e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro, op. cit., pág. 60.
276
Luís Roberto Barroso, Fundamentos Teóricos e Filosóficos do novo Direito Constitucional Brasileiro, op. cit.,
pág. 43.
277
Luís Roberto Barroso, A Reconstrução Democrática do Direito Público no Brasil, op. cit., págs. 21 e
seguintes.
278
O neoconstitucionalismo é o termo utilizado pelos constitucionalistas para se referir ao conjunto de
transformações que consideram ter ocorrido no Estado e no direito constitucional atual. Dentre elas detacam: (i)
a formação do Estado constitucional de Direito; (ii) o pós-positivismo, que reaproxima o Direito da ética e
confere centralidade aos direitos fundamentais; (iii) a força normativa da Constituição; e (iv) o desenvolvimento
de uma nova dogmática de interpretação constitucional. E em razão dessas transformações, teriam resultado duas
consequências: a constitucionalização do Direito e a judicialização das relações sociais e de questões políticas.
Luís Roberto Barroso, A Reconstrução Democrática do Direito Público no Brasil, op. cit., págs. 21 e seguintes.

69
necessários a se assegurar, por exemplo, uma relação de igualdade, essencial para qualquer
negócio jurídico.

Pelo exposto, não defendemos uma supressão da distinção entre Direito Público e Privado,
mas reconhecemos como positiva essa aproximação entre esses ramos do Direito, que tem em
comum a pessoa humana como valor máximo. Para nós, a distinção entre Público e Privado
ainda existe e deve permanecer a existir, na medida em que tendo objetivos, fundamentos e
princípios distintos, é essencial à organização das normas e condutas279.

279
Tepedino entende que a distinção entre direito público e privado teria deixado de ser qualitativa para passar a
ser quantitativa, sendo impossível “definir qual exatamente é o território do direito público e qual o território do
direito privado”. Gustavo Tepedino, Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil, op.
cit., pág. 20.

70
3. TUTELA CIVIL DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE

3.1. PRINCÍPIO GERAL

Feitas estas considerações acerca da pessoa humana perante o Direito, já é possível perceber
que para nós os direitos de personalidade surgem com a pessoa, ou seja, a personalidade é “a
qualidade de ser pessoa”280. Trata-se de direito inato do homem, direito natural reconhecido
pelo ordenamento jurídico281282, que pertence ao homem pelo simples reconhecimento de sua
dignidade e humanidade. Assim, os direitos de personalidade estão consagrados nas Leis
Civis brasileira e portuguesa.

Na doutrina brasileira, Francisco AMARAL conceitua os direitos de personalidade como


sendo “direitos subjetivos que têm por objeto os bens e valores essenciais da pessoa, no seu
aspecto físico, moral e intelectual”283. E BITTAR284 os define como sendo aqueles que se
referem às relações da pessoa consigo mesma, às características intrínsecas do ser e suas
qualificações psíquicas e morais.

Ora, se o direito da personalidade tem como titular a pessoa, sendo ela una, entendemos que
existe um único e específico direito285, que oferece uma tutela geral à dignidade da pessoa
humana e se desdobra em direitos especiais para proteger os bens da personalidade286, que
nada mais são que manifestações desta. O homem é um ser complexo e portanto a sua
personalidade envolve múltiplos aspectos a exigir tutela.

280
Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, op. cit., págs. 35 e seguintes: “A personalidade é
uma qualidade: a qualidade de ser pessoa. É uma qualidade que o Direito se limita a constatar e respeitar e que
não pode ser ignorada ou recusada. É um dado extrajurídico que se impõe ao direito”.
281
Neste sentido, Adriano de Cupis, Os Direitos de Personalidade, tradução portuguesa de A. Vera Jardim e M.
Caeiro, Lisboa: 1961 Lisboa: 1961, Livraria Morais Editora; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria
Geral, op. cit., pág. 44: “Todo o estudo da pessoa deve assim partir da análise desta realidade fundamental. Será
ela que iluminará a noção de personalidade jurídica e não vice-versa. Não se parte da regra para a pessoa mas da
pessoa para a regra, porque aquela é prévia à valoração positiva.”; Luiz Roldão de Freitas Gomes, Noção de
Pessoa no Direito Brasileiro, op. cit., pág. 330; Diogo Leite de Campos, A Génese dos Direitos da Pessoa, In:
Nós, op. cit., pág. 54.
282
Em sentido contrário, Gustavo Tepedino, A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional
Brasileiro, In: Temas de Direito Civil, 4ª Edição, Renovar, 2008, págs. 42 e seguintes. Cristiano Chaves de
Farias e Nelson Rosenvald, Direito Civil,op. cit., págs. 110 e seguintes.
283
Francisco Amaral, Direito Civil: introdução, 6ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pág. 247.
284
Carlos Alberto Bittar, Direito de autor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.2.
285
Pedro Pais de Vasconcelos, Direitos de Personalidade, Lisboa: Almedina, 2006, pág. 64.
286
José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, op. cit., págs. 90 e 91.

71
Desse modo, à pessoa una e concreta corresponde a tutela geral, enquanto os vários bens da
personalidade darão lugar aos direitos especiais de personalidade, como os direitos à vida, à
honra, à privacidade, à imagem, dentre muitos outros. Estes aspectos fazem parte da pessoa,
mas são abstratamente passíveis de autonomização, tornando-se bens da personalidade.

É sob esta ótica que interpretamos o critério adotado nos Códigos Civis português e brasileiro
para a tutela dos direitos da personalidade: existe em ambos dispositivo legal de tutela
genérica, ou seja, para que um direito da personalidade seja reconhecido não é necessária
previsão legal específica, uma vez que o rol de direitos não é taxativo, mas exemplificativo.

No entanto, a legislação civil não se limitou à regra geral prevista nos artigos 70.º, n.º 1, do
Código Civil português e 12 do Código Civil brasileiro, mas cuidou de prever os direitos
especiais de personalidade: direito à vida, direito à integridade física e psíquica, direito à
identidade pessoal, direito ao nome, direito à honra, direito à voz, direito à privacidade, direito
à imagem, dentre outros.

Ao reconhecermos a existência de uma regra geral, não estamos nos referindo ao Direito
Geral de Personalidade, que sob a influência do direito alemão é defendido pela doutrina
brasileira287 e na portuguesa por CAPELO DE SOUSA288 e LEITE DE CAMPOS289.

O Direito Geral de Personalidade foi desenvolvido na Alemanha, uma vez que a sua lei civil
estabelece um rol taxativo de direitos de personalidade. Deste modo, eventuais ofensas a bens
da personalidade não positivados, ficavam a carecer de tutela. Diante desta problemática, foi
necessário desenvolver a partir do preceito da dignidade da pessoa humana e do direito ao
livre desenvolvimento da personalidade, previstos nos §§ 1º e 2º de sua Constituição, uma
cláusula geral, da qual fosse possível retirar novos direitos sempre que necessário: o Direito
Geral de Personalidade290.

287
Francisco Amaral, Direito Civil, op. cit., pág. 251. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direito
Civil,op. cit., págs. 114 e seguintes. Danilo Doneda também defende a existência de uma cláusula geral a se
tutelar os direitos de personalidade, mas a extrai da Constiuição Federal, notadamente da cidadania, da dignidade
da pessoa humana e das garantias de iguadade material e formal, previstas nos aritgos 1º, II e III, 3º, III, e 5º da
Constituição Federal. Danilo Doneda. Os Direitos da Personalidade no Código Civil, In: Revista da Faculdade
de Direito de Campos, Ano VI, n.º 6, junho de 2005, pág. 82.
288
Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra: Coimbra Editora, 1995,
págs 513 e seguintes.
289
Diogo Leite de Campos, Lições de Direitos da Personalidade, In: Separata do Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXVI, 2ª edição, 1992, págs. 49 e seguintes.
290
Pedro Pais de Vasconcelos, Direitos de Personalidade, op. cit., págs. 61 e 62.

72
No Tribunal Constitucional Federal alemão são diversos os julgados sobre o tema. Dentre eles
podemos citar o caso Scientology, julgado em 10.11.1998291, em que o reclamante alegava
que o seu direito geral de personalidade teria sido ofendido em razão de artigo publicado pela
revista “Celebrity”. Isto porque, segundo o mencionado artigo, o reclamante seria líder e
sacerdote de determinada seita religiosa, que foi objeto de muita polêmica na Alemanha, pois
a mesma foi acusada de ter pretensões políticas totalitárias. E assim esta afirmação ocasionou
diversos prejuízos ao reclamante.

Analisando a questão, o Tribunal julgou procedente a reclamação para reformar a decisão


impugnada, pois esta teria violado o direito geral de personalidade do reclamante quando
divulgou informação equivocada relativa a sua filiação à seita religiosa292, já que essa
atribuição produziu repercussões negativas para a personalidade e para a imagem pública do
reclamante.

Ocorre que, conforme alerta ASCENSÃO, perante os ordenamentos jurídicos brasileiro e


português, não é necessária a criação de um Direito Geral de Personalidade, na medida em
que da regra geral prevista em ambos os códigos podemos retirar direitos especiais a tutelar os
bens da personalidade, conferindo um maior grau de segurança jurídica293. Todavia, como
alerta PAIS DE VASCONCELOS, o liame é tênue294.

Por fim, vale citar a crítica feita por TEPEDINO à teoria pluralista dos direitos de
personalidade295, defensora da existência de diversos direitos da personalidade, e monista, que
foi a adotada por nós. Para ele ambas as teorias estariam muito preocupadas com a estrutura
subjetiva e patrimonialista das relações jurídicas e, dessa forma, afirma que a personalidade

291
Art. 28. A atividade do atleta profissional, de todas as modalidades desportivas, é caracterizada por
remuneração pactuada em contrato formal de trabalho firmado com entidade de prática desportiva, pessoa
jurídica de direito privado, que deverá conter, obrigatoriamente, cláusula penal para as hipóteses de
descumprimento, rompimento ou rescisão unilateral.
292
O reclamante não mais era filiado à seita religiosa.
293
José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, op. cit., pág. 87.
294
Pedro Pais de Vasconcelos, Direitos de Personalidade, op. cit., pág. 64.
295
Podemos afirmar que Caio Mário da Silva Pereira adota a teoria pluralista, na medida em que ao tratar dos
direitos de personalidade esclarece que este não constitui „um direito‟ e considera equivocado afirmar que o
homem tem direito à personalidade. Mas se aproxima da concepção por nós adotada, quando entende que da
personalidade “irradiam-se direitos” e considera correta a afirmação no sentido “de que a personalidade é o
ponto de apoio de todos os direitos e obrigações”. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, op.
cit., pág. 241.

73
deve ser tida “como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, capaz
de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de validade”296.

Ora, ao falarmos em uma cláusula geral a tutelar a pessoa concreta e da qual decorrem os
direitos especiais de personalidade para a garantia dos bens de personalidade, que nada mais
são do que o reflexo dos múltiplos aspectos que a pessoa humana envolve, não estamos
retirando esta da centralidade que ocupa no ordenamento jurídico. Muito pelo contrário, a
estamos reconhecendo.

Feitas estas considerações, passamos à análise dos direitos especiais de personalidade. Como
delimitamos o presente trabalho ao estudo dos contratos que tenham como objeto os direitos à
privacidade, imagem, voz e nome, buscaremos traçar os contornos desses direitos apenas na
sua ótica positiva.

3.2. DIREITO À PRIVACIDADE

O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada e familiar ou direito à privacidade,


como denominado no Brasil, em Portugal, está previsto nos artigos 26.º, n.º 1, da Constituição
e 80.º do Código Civil. No Brasil, temos a sua previsão nos artigos 5º, X e LX, da
Constituição e 21 do Código Civil.

A delimitação do âmbito deste direito é algo de difícil determinação, na medida em que varia
de acordo com os costumes de cada sociedade e com a pessoa objeto de tutela. Dessa forma, a
esfera de privacidade de cada pessoa é relativa, pois, como demonstraremos adiante,
dependerá do comportamento do titular no exercício do seu direito ao livre desenvolvimento
da personalidade.

No caso das pessoas públicas, por exemplo, como políticos, artistas, cantores, a definição dos
limites dessa privacidade tem suscitado diversas discussões. Mas desde já destacamos que
estas pessoas com notoriedade pública continuam a ser homens privados, não sendo
admissível que alguém interfira na sua esfera privada.

296
Gustavo Tepedino, A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro, In: Temas de
Direito Civil, op. cit., págs. 53 e seguintes.

74
Para nós, o direito à privacidade não se resume ao direito à intimidade da vida privada, que se
refere à intimidade do espaço familiar, da casa onde a família resida, mas também não chega a
configurar o privacy297, norte-americano, pois este se ocupa apenas dos valores não
patrimoniais da personalidade.

A privacidade se refere ao direito à intimidade não apenas quando o seu titular está dentro de
sua residência, mas também nas suas relações cotidianas, ou seja, seria o direito conferido à
pessoa de impedir o acesso e a divulgação por terceiros de fatos que digam respeito a sua vida
privada.

ASCENSÃO destaca que o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada não deve ser
resumido ao right to be alone, afastado de qualquer justificação substancial, mas deve ser
interpretado de acordo com um conteúdo ético e não como um direito absoluto. Prosseguindo,
esclarece que “a vida privada cessa pois onde começa a vida pública”. Mas salienta que as
pessoas de grande notoriedade não deixam de ter assegurado o direito à vida privada.

Na doutrina brasileira, o direito à vida privada é definido por C. CHAVES e ROSENVALD


como sendo “o refúgio impenetrável pela coletividade”. Ou seja, refere-se ao legítimo
interesse da pessoa de preservar do conhecimento dos demais todas as questões que sejam
relativas a sua esfera íntima. E acrescenta que é perfeitamente possível ocorrer uma violação
do direito à privacidade, sem que seja atingido o direito à imagem ou à honra298.

Por fim, apenas para ilustrar hipóteses de ofensa a este direito, podemos citar um caso que foi
objeto de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça. Tratava-se do pedido de indenização
por danos morais formulado por uma vítima de estupro, que teve o seu nome divulgado por
uma das empresas do Grupo Gazeta de Mato Grosso, sem a sua autorização.

Em sua decisão, a relatora do processo, Ministra Nancy Andrighi, condenou a empresa pagar
indenização por danos morais à autora da ação, tendo ressaltado que o direito à informação é
um dos pilares do Estado democrático de direito. Mas, o direito à informação não se sobrepõe

297
David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem – Contributo para um
Estudo do seu Aproveitamento Consentido Inter Vivos, Lisboa: Coimbra Editora, 2009, págs. 30 e seguintes.
298
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direito Civil,op. cit., págs. 146 e seguintes.

75
a quaisquer das outras garantias individuais, principalmente a honra e a intimidade. E
concluiu no sentido de que cabe ao jurista delimitar a fronteira entre o legítimo e o abusivo
exercício da liberdade de informação299.

Também merece destaque para a posição adotada pelo Tribunal Constitucional Federal
alemão, no julgamento do caso Scientology300, no que se refere aos limites da liberdade de
expressão. O Tribunal buscou esclarecer que o direito geral de personalidade e a liberdade de
expressão não são garantidos sem reservas, mas encontram limites nas leis gerais e no direito
à honra pessoal. Assim, apenas se admite declarações ofensivas à honra, caso estas
representem interesses justificados.

Portanto, diante do caso concreto, o magistrado deverá proceder a uma ponderação de


interesses entre a gravidade do prejuízo causado ao titular do direito de personalidade pela
declaração e as perdas sofridas pela liberdade de expressão, caso proibida a declaração. Ao
exercer tal tarefa o aplicador do direito deverá ter em vista as circunstâncias especiais do caso
concreto e o contexto dos elementos típicos do direito infraconstitucional a serem
interpretados301.

Mas mesmo após destacar que esta ponderação deverá ser feita diante do caso concreto, o
Tribunal destacou que já existe jurisprudência dominante no que se refere à prevalência de
determinadas regras. Dentre elas, menciona que o direito de personalidade irá prevalecer
sobre a liberdade de expressão sempre que esta configurar um ataque à dignidade humana,
uma crítica degradante ou uma ofensa formal.

Por outro lado, as informações verdadeiras sobre fatos302, em regra, devem ser toleradas,
mesmo quando prejudiciais à pessoa. Mas destaca que os direitos de personalidade podem

299
Notícia acessada em 16.01.2009, no site: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.
area=398&tmp.texto=92435.
300
Jürgen Schwabe, Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, op. cit.,
págs. 203 e 204.
301
Para maiores desenvolvimentos sobre o tema: Jónatas E.M. Machado, Liberdade de Expressão: Dimensões
Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, Coimbra Editora, 2002, págs. 743 e seguintes.
Especificamente sobre os limites à liberdade de expressão perante o direito à privacidade: J.J. Gomes Canotilho
e Jónatas E.M. Machado, “Reality Shows” e Liberdade de Programação, Coimbra Editora, 2003, págs. 50 e
seguintes.
302
Nos Tribunais brasileiros é frequente a condenação das empresas de telecomunicação ao pagamento de
indenização por danos morais, quando veículadas informações inverídicas sobre determinadas pessoas. Apenas
como exemplo podemos citar dois casos (i) nos autos do processo n.º 1.0479.08.146161-4/001, a 13ª Câmara

76
excepcionalmente prevalecer sobre a liberdade de expressão, mesmo tratando-se de fatos
verdadeiros, quando as declarações atingem as esferas íntima, privada ou confidencial e esta
ofensa não é justificada pelo interesse de informação da opinião pública ou ainda quando o
dano ao direito de personalidade é desproporcional ao interesse na divulgação da verdade.

3.3. DIREITO À IMAGEM

Na Lei Brasileira, o direito à imagem está previsto nos artigos 5º, V, X e XXVIII, „a‟ da
Constituição e no artigo 20 do Código Civil, enquanto, na lei portuguesa, encontramos a sua
previsão nos artigos 26.º, n.º 1 da Constituição e no artigo 79.º do Código Civil.

Embora muitos autores afirmem que o direito à imagem tenha surgido do direito à intimidade,
é certo que possuem enfoques distintos. O direito à imagem tutela a projeção do eu, refere-se
à imagem individual e cognoscível da pessoa singular. Assim, é possível que ocorra uma
ofensa à intimidade sem que haja uma ofensa ao direito de imagem e vice-versa.

Na doutrina brasileira, SYDNEI GUERRA que o direito à imagem consiste no direito que a
própria pessoa tem sobre a projeção de sua personalidade física ou moral em face da
sociedade, incidindo assim sobre um conjunto de caracteres que vai identificá-la no meio
social em que vive.

Para PAIS DE VASCONCELOS303 este direito tem como objetivo a tutela da “pessoa contra
a exposição, reprodução, comercialização do seu retrato, sem o seu consentimento”. Mas

Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais condenou empresa jornalística a indenizar W.C.C., por danos
morais, no valor de R$ 8 mil, em razão de uma matéria publicada no jornal da cidade, em que seu nome foi
inserido em um rol de grandes traficantes apreendidos após uma operação da polícia local. Mas como restou
demonstrado nos autos que W.C.C. não esteve envolvido no ocorrido, como também os danos morais sofridos ao
ter seu nome associado ao tráfico de drogas, foi imposta a mencionada condenação - notícia veículada em
10.06.2009, no site http://www.editoramagister.com/noticia_ler.php?id=36874; (ii) nos autos da apelação cível
n.º 2009.017935-7, a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Santa Catarina confirmou a condenação da
Rádio Sociedade Oeste Catarinense Ltda. e do seu apresentador ao pagamento de indenização por danos morais a
um militar aposentado no valor de R$ 5 mil, uma vez que o radialista teria dirigido ofensas pessoais ao militar
em seu programa naquela rádio, não tendo usado de impessoalidade jornalística e feito críticas pessoais que
foram além dos limites da razoabilidade, ultrapassando o poder de repassar a informação. Além de afirmar que o
aposentado havia estuprado uma adolescente, imputou a ele palavras que lhe agrediram a moral e a reputação
dentro da cidade, já que é conhecido por muitos na região, atingindo diretamente a sua honra – notícia veículada
em 05.06.2009, no site http://www.editoramagister.com/noticia_ler.php?id=36772.
303
Pedro Pais de Vasconcelos, Direitos de Personalidade, op. cit., pág. 83.

77
ASCENSÃO304 destaca que a imagem da pessoa também poderá restar atingida através de
representações plásticas.

Nos termos do artigo 79.º, n.º 1, do Código Civil português, a divulgação, reprodução e
comercialização do retrato305 de uma pessoa dependerá do seu prévio consentimento, mas no
n.º 2 deste artigo estão previstas as hipóteses de dispensa do consentimento306 e o n.º 3 veda a
divulgação de retratos que possam resultar em prejuízo a honra, reputação ou simples decoro
da pessoa retratada.

Registre-se que a proibição prevista no artigo 79, n.º 3, suscita divergências na doutrina307, no
que se refere a sua aplicabilidade aos n.ºs 1 e 2 ou apenas ao n.º 2. Ou seja, a vedação à
divulgação de retratos que representem ofensa ao direito à honra da pessoa retratada se aplica
apenas às hipóteses em que não é necessário o consentimento para a divulgação das mesmas
ou também nos demais casos, mesmo que diante de autorização expressa do titular do direito.

Para nós, o artigo 79, n.º 3, apenas se aplicaria às situações previstas no n.º 2, em que é
dispensável o consentimento da parte para a divulgação do retrato, pois, caso não haja ofensa
à ordem pública e aos bons costumes, o titular do direito poderá autorizar a exposição de sua
imagem. Isto porque, como demonstraremos mais adiante, esta faculdade está situada na
esfera de autodeterminação da pessoa308.

Dessa forma, mesmo nas hipóteses previstas no artigo 79, n.º 2, o retrato apenas poderá ser
divulgado, caso não haja o risco de acarretar prejuízos à honra, reputação ou decoro da pessoa
retratada. Do contrário, sempre se exigirá o consentimento do titular do direito.

304
José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, op. cit., pág. 116.
305
Sobre retrato e direito à imagem, David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à
Imagem. op. cit. , págs. 51, 52, 53, 240 e seguintes.
306
Não dependerá de autorização a divulgação da imagem de uma pessoa, num grupo, em local público, quando
a sua presença seja meramente acessória. Como exemplo, podemos citar as fotografias publicadas em jornais e
revistas de pessoas participando de manifestações políticas. Também é considerada lícita a divulgação da
imagem de uma pessoa quando esta tenha caráter informativo, como é o caso das fotografias de crianças
desaparecidas, por exemplo. Este artigo ainda menciona a notoriedade pública da pessoa, no entanto, esta
exceção levanta diversas discussões no que se refere às condições dessa permissão, uma vez que a pessoa
pública permanece sendo titular de direitos de personalidade. Dessa forma, não restam dúvidas de que a
divulgação do retrato para comercialização da imagem sem a respectiva autorização é vedada.
307
Sobre o tema: Cláudia Trabuco, Dos Contratos Relativos ao Direito à Imagem, In: Separata da Revista O
Direito, op.cit., págs. 438 e seguintes; Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade,
op. cit., pág. 255, nota 589; e Mário de Brito, Código Civil Anotado, op.cit., 1967, págs. 95 e 96.
308
David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit., págs. 287 e
seguintes.

78
Note-se que o artigo 20 do Código Civil brasileiro é muito similar ao artigo 79.º do Código
Civil português e também dispõe sobre a autodeterminação do titular em relação ao seu
direito à imagem, traçando os seus limites309.

Registre-se que, embora o Código Civil português se refira ao retrato, devemos entender que
o bem objeto de tutela é a imagem da pessoa humana, ou seja, qualquer reprodução desta
capaz de identificá-la.

Apenas para ilustrar hipóteses de discussões envolvendo alegações de ofensa a direito de


imagem, podemos citar a ação judicial ajuizada pela primeira-dama francesa, Carla Bruni
Sarkosy. Na ação, Bruni pretendia que fossem recolhidas e destruídas bolsas desenvolvidas
pelo estilista francês Pardon, que tinham como estampa uma sua imagem nua. Na ação, Carla
alega que o seu direito de imagem estaria sendo violado, na medida em que a sua imagem
estava sendo utilizada com finalidade comercial, sem o seu consentimento310.

Por fim, encontramos na doutrina brasileira uma distinção relativa à imagem-retrato e


imagem-atributo. A primeira se refere à “representação do corpo de uma pessoa por pelo o
menos uma das partes que a identifica”. Enquanto a imagem-atributo seria “o conjunto de
características associadas a ela pelos seus conhecidos”311.

Ora, para nós a imagem-atributo está relacionada ao direito à honra e não à imagem. Embora
não se confundam, é de admitir que estes direitos estão muito próximos312. Neste sentido,
DAVID FESTAS esclarece que “o direito à honra tem um domínio de actuação próprio que
transcende a exposição ou publicação do retrato”, mas assinala que “o bem jurídico honra
também é tutelado pelo direito de imagem”313. Tal é a proximidade que muitas vezes se faz
necessária proteção de ambos de forma concomitante.

309
David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit., págs. 276 e
seguintes.
310
Notícia acessada em 24.06.2009, no site: http://www.peoplestar.co.uk/index.html?news=294.
311
Fabio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Civil, volume 1, São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 205. Também neste
sentido, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direito Civil,op. cit., págs. 140 e 141.
312
Em sentido contrário, Francisco Amaral afirma que “o direito à integridade moral consiste na proteção que a
ordem jurídica concede à pessoa no tocante à sua honra, liberdade, recato, imagem e nome”. Francisco Amaral,
Direito Civil, op. cit., pág. 268.
313
David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit., págs. 80 e 81.

79
Como exemplo de uma situação que envolveu a violação a ambos os direitos, honra e
imagem, podemos citar a decisão pelo Tribunal Constitucional alemão no já mencionado caso
Scientology. Nesta oportunidade, o Tribunal se manifestou no sentido de que o direito geral de
personalidade abrange a tutela contra declarações que tenham como objetivo denegrir a
imagem de uma pessoa junto à opinião pública. Mas destaca que isto não significa que este
direito concede ao indivíduo o direito de ser apresentado publicamente como se vê ou como
gostaria de ser visto pelos demais314.

Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça brasileiro manteve decisão que condenou a Igreja
Universal do Reino de Deus a pagar indenização aos filhos e ao marido da mãe-de-santo
Gildásia dos Santos, já falecida quando do ajuizamento da ação, em razão da publicação de
uma foto desta em um contexto ofensivo no jornal Folha Universal, veículo de divulgação da
igreja. Sob a foto de Gildásia constava o título “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a
vida dos clientes”315.

3.4. DIREITO À VOZ

O direito à voz vem previsto no artigo 5º, XXVIII, „a‟, da Constituição brasileira, bem como,
no artigo 20 do Código civil brasileiro, na medida em que o legislador infraconstitucional
afirma que a transmissão da palavra de uma pessoa poderá ser proibida por seu titular. Ora,
assim como a imagem, a voz consiste em elemento identificador da pessoa, uma vez que esta
pode ser reconhecida pelo som da sua voz.

No direito português não é um direito típico, mas partindo da concepção de que o artigo 70.º
do Código Civil contempla uma regra geral de proteção à personalidade humana, e que o rol
de direitos previsto na lei civil não é taxativo, a voz também deve ser considerada perante o
ordenamento jurídico português como um direito de personalidade, já que corresponde a um
bem existente e determinado.

314
Caso Scientology, BVERFGE 99, 185. Jürgen Schwabe, Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal
Constitucional Federal Alemão, op. cit., pág. 202.
315
Notícia acessada em 16.01.2009, no site: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.
area=398&tmp.texto=92435.

80
Na doutrina brasileira, C. CHAVES e ROSENVALD consideram que a voz integraria o
direito à imagem e, desse modo, falam em direito à imagem-voz, como sendo aquela
“caracterizada pelo timbre sonoro”, capaz de identificar uma pessoa. E acrescenta que não
seria possível imaginar que a personalidade “se evidencia menos na voz que nas
características fisionômicas”316. Não é este o nosso entendimento. Para nós, a voz corresponde
a um bem da personalidade específico, que merece tutela distinta da imagem317.

Cabe ressaltar que não estamos aqui nos referindo a direitos intelectuais relativos à produção
artística, por exemplo, mas sim a um bem da personalidade como elemento integrante da
pessoa. Desse modo, quando estiver em causa questões que envolvam direitos intelectuais,
que possam ensejar o direito à indenização, principalmente quando utilizados com fins
comerciais, nos afastamos do âmbito dos direitos de personalidade e ingressamos no instituto
da propriedade intelectual318.

Note-se que a previsão do direito à voz perante o Direito brasileiro foi feita junto com o
direito de imagem, na medida que ambos constituem um elemento que possibilita a
identificação de determinada pessoa. Portanto, aplicam-se aqui as mesmas considerações
acima expostas sobre a sua divulgação da imagem sem a autorização do titular e sobre a
possibilidade de autodeterminação do titular do direito através do seu consentimento.

3.5. DIREITO AO NOME

Da mesma forma que a imagem, o nome também exerce a função de identificação do seu
titular e está previsto nos artigos 16 a 19 do Código Civil brasileiro e nos artigos 72.º, 73.º e
74.º da Lei Civil portuguesa.

O direito ao nome confere ao seu titular o direito de usá-lo e de não ser privado deste,
dispondo dos mecanismos da tutela da personalidade para impedir o seu uso por terceiros. O
nome é formado pelo prenome e pelo patronímico, mais conhecido, como sobrenome, e
consiste no termo utilizado para individuar as pessoas, situando-a numa determinada família.

316
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direito Civil,op. cit., págs. 140 e 141.
317
Neste sentido, David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit.,
pág. 78, nota 223.
318
Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil, op. cit., pág. 157.

81
O prenome é escolhido livremente dentro dos usos e costumes sociais. Em Portugal, esta
escolha deverá ser feita entre os nomes próprios previstos na onomástica nacional, nos termos
em que previsto no artigo 103.º do Código de Registro Civil de 1995. Enquanto no Brasil não
existe esta regra, sendo muito comum a adoção de nomes de pessoas com notoriedade
pública, inclusive em língua estrangeira. Note-se que o modelo brasileiro se aproxima muito
do norte americano.

Embora prevaleça uma ampla liberdade na escolha do prenome no Brasil, o Estado deverá
intervir para garantir a observância dos usos e costumes, bem como, impedir a escolha de
nomes degradantes para o seu titular, conforme dispõe o parágrafo único do artigo 55 da Lei
de Registros Públicos brasileira (Lei n.º 6.015, de 31.12.1973)319.

O Estado também deve intervir para impedir a escolha de prenomes que possam gerar
confusão com outras pessoas e não permitam referência a sua família. Enquanto o sobrenome,
atenderá a determinadas regras de direito de família, que, em geral, busca traçar as origens do
indivíduo, o identificando a uma família.

Nos artigos 17 e 18 da lei civil brasileira está prevista a proteção contra o uso do nome por
terceiros em publicações ou representações com caráter difamatório ou que comprometa a
honra do seu titular, bem como, a exigência de autorização específica para o uso deste em
propaganda comercial. Trata-se de uma possibilidade de aproveitamento econômico do nome
expressamente previsto na lei brasileira.

Tutela muito semelhante é conferida pela lei portuguesa, quando confere no artigo 72º o
direito ao uso do nome pelo seu titular, bem como, a faculdade de o mesmo se opor a que
terceiros o utilize ilicitamente para sua identificação ou outros fins.

A proteção ao nome estende-se a nomes artísticos e apelidos pelos quais as pessoas possam
ser identificadas, conforme dispõe os artigos 19 do Código Civil brasileiro e 74º da lei
portuguesa. Note-se que, muitas vezes, o pseudônimo clama por uma tutela ainda maior que o

319
“Art. 55. (…) Parágrafo único. Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao
ridículo os seus portadores. Quando os pais não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por
escrito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente.”

82
próprio nome. Cite-se como exemplo a Xuxa, o Pelé etc. O pseudônimo dessas pessoas possui
uma notoriedade muito superior ao nome destes.

FRANCISCO AMARAL entende que o direito ao nome seria o direito à identidade pessoal e
estaria inserido dentro do gênero do direito à honra, na medida em que “a pessoa deve ser
reconhecida em sociedade por denominação própria, que a identifica e diferencia”320.

Embora muitas vezes o uso do nome por terceiros possa acarretar danos à honra do seu titular,
nem sempre isto ocorre. Como exemplo podemos citar a vinculação do nome de uma pessoa
famosa a determinada marca, sem a sua autorização. Em regra, não ocorrerá qualquer ofensa à
honra da pessoa, mas sim ao direito ao nome. Deste modo, consideramos o nome um bem da
personalidade a merecer tutela autônoma, na medida em que é uma forma de identificação do
indivíduo.

Por sua vez, ASCENSÃO esclarece que ao contrário dos demais direitos de personalidade, o
direito ao nome não é um direito originário, na medida em que a pessoa não nasce com um
nome, mas o adquire depois. Dessa forma, “o que verdadeiramente surge como direito de
personalidade é o direito à identidade pessoal”. Portanto, o nome seria um bem incorpóreo,
imposto sobre o direito de personalidade, notadamente, o direito à identidade pessoal321.

Não é este o nosso entendimento. Para nós o direito ao nome é um direito da personalidade,
uma vez que podemos identificá-lo. Trata-se, como mencionamos, de uma forma de
identificação da pessoa tal como o direito à imagem e o direito à voz.

Registre-se, por fim, que quando a Constituição portuguesa se refere, no artigo 26.º, I, ao
direito ao bom nome e à reputação, entendemos que trata-se do direito à honra322, que embora
muito relacionada aos direitos aqui desenvolvidos, não será objeto do presente estudo.

320
Francisco Amaral, Direito Civil, op. cit., págs. 270 e 271.
321
José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, op. cit., pág. 111.
322
Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, op. cit., págs. 120-122, e Teoria Geral do Direito Civil,
op. cit., págs. 60-63.

83
3.6. CARACTERÍSTICAS GERAIS DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE

Com relação às características gerais dos direitos de personalidade, o artigo 11 do Código


Civil brasileiro prevê expressamente a irrenunciabilidade e a intransmissibilidade, que
consistem na impossibilidade de sucessão ou transferência dos direitos de personalidade a
terceiros.

Deste modo, VENOSA afirma que a lei brasileira se refere a apenas duas características dos
direitos de personalidade, que são a intransmissibilidade, irrenunciabilidade e
indisponibilidade323.

Tratando da intransmissibilidade, Adriano de CUPIS afirma que dela decorre a


indisponibilidade dos direitos de personalidade. “Não podendo, pela natureza do próprio
objecto, mudar de sujeito, nem mesmo pela vontade do seu titular”. E, em seguida, o autor
trata da irrenunciabilidade, esclarecendo que estes direitos “não podem ser eliminados por
vontade do seu titular”324.

No direito português, ASCENSÃO entende que a indisponibilidade implicaria na


intransmissibilidade, na irrenunciabilidade e na possibilidade de serem “escassamente
restringíveis através de negócio jurídico”.325

Embora não iremos nos alongar nesta matéria, cumpre registrar que a intransmissibilidade
destes direitos é muito discutida no âmbito da tutela dos direitos de personalidade após a
morte, prevista no artigo 71.º do Código Civil português e no § único do artigo 20 da Lei
Civil brasileira, pois alguns autores entendem que ocorreria uma transmissão causa mortis326.

323
Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil, op. cit., pág. 151.
324
Adriano de Cupis, Os Direitos de Personalidade, op. cit., págs. 45 e seguintes.
325
José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, op. cit., págs. 92 e 93.
326
Sobre o tema: Rabindranath V.A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, op. cit., pág. 404; José
de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, op. cit.. págs. 100 e seguintes. Caio Mário da Silva Pereira,
Instituições de Direito Civil, op. cit., pág. 243.

84
Registre-se que este não é o nosso entendimento, pois a possibilidade de tutela dos direitos de
personalidade do de cujus conferida aos seus familiares, pretende proteger a honra destes, que
não gostariam de assistir a ofensas a um membro de sua família.327

Além da indisponibilidade, irrenunciabilidade e intransmissibilidade, apontamos também


como características dos direitos de personalidade que estes são gerais ou inatos, absolutos,
pessoais, não-patrimoniais, gozam de dupla inerência, imprescritíveis, dentre outras.

Conforme previsto no artigo 66.º do Código Civil português e no artigo 2º do Código Civil
brasileiro, o nascimento completo e com vida confere a todos os seres humanos os direitos de
personalidade. Assim, temos que estes direitos são gerais ou inatos328, pois são inerentes à
condição humana, se aplicando a todas pessoas.

LEONI esclarece que “o vocábulo inato indica o que nasce com o indivíduo, isto é, congênito,
conato”329. Também neste sentido, FRANCISCO AMARAL considera que os direitos de
personalidade são essenciais, inatos e permanentes, na medida em que nasce com a pessoa e a
acompanha por toda a sua existência330.

Os direitos de personalidade são absolutos, pois geram para todos o dever geral de abstenção,
de não-intromissão nos direitos de personalidade dos demais, ou seja, são oponíveis erga
omnes.331 Também adotando este entendimento, LEONI afirma que “os direitos subjetivos da
personalidade se dizem absolutos porque se opõem erga omnes”332.

MENEZES CORDEIRO aponta três acepções ao caráter absoluto333: (i) oponibilidade erga
omnes, podendo o titular atuá-los por si em qualquer direção; (ii) não exigiriam relações
jurídicas, mas permitiriam o seu aproveitamento pelo particular; e (iii) devem ser sempre
respeitados por todos, ou seja, dispõem de uma tutela aquiliana que vincula a todos.

327
Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, op. cit., págs. 120-122, e Teoria Geral do Direito Civil,
op. cit., págs. 49-52.
328
Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, fala em direitos inatos para se referir a sua origem no direito natural. O
Direito Geral de Personalidade, op. cit., págs. 415 e seguintes.
329
J. M. Leoni Lopes de Oliveira, Novo Código Civil Anotado, Parte Geral, Vol. I, 3ª edição, Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2006, págs. 45 e 46.
330
Francisco Amaral, Direito Civil, op. cit., págs. 250.
331
Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, op. cit., págs. 401 e 402.
332
J. M. Leoni Lopes de Oliveira, Novo Código Civil Anotado, op. cit., págs. 46 e 47.
333
António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, op. cit., págs. 103 e seguintes.

85
Com relação às duas primeiras acepções, o autor esclarece que o caráter absoluto não é
aplicável a todos os direitos de personalidade, uma vez que há certos direitos que apenas são
oponíveis inter partes e que envolvem uma relação jurídica. Como exemplo o professor cita a
confidencialidade. Assim, temos que na concepção de MENEZES CORDEIRO, o direito de
personalidade seria absoluto, no sentido de exigir que todos o respeitem.

Mesmo que se reconheça que estes direitos sejam suscetíveis de tradução pecuniária, como
demonstraremos mais adiante, não deixam de ser direitos que possuem uma relação incindível
com o seu titular, ou seja, não se autonomizam. É desta característica que podemos retirar a
distinção destes direitos dos bens imateriais.

Os bens imateriais são aqueles que mesmo quando derivados da personalidade se


autonomizam desta e, assim, são livremente disponíveis e comercializáveis; enquanto os
direitos de personalidade estão sempre ligados ao titular334. Como exemplo podemos citar a
marca, que mesmo sendo produto da criação de uma pessoa, se desvincula desta e pode ser
comercializada livremente; por outro lado, o direito à imagem nunca se desvinculará da
pessoa, pois trata-se da projeção do próprio indivíduo. Assim, mesmo quando uma modelo
profissional celebra um contrato cujo objeto é a divulgação de sua imagem em revistas,
cartazes etc, a sua imagem não se desvinculará da modelo.

Em sendo direitos pessoais, que não se autonomizam do titular, CAPELO DE SOUSA aponta
a não patrimonialidade destes direitos335, ou seja, não teriam alcance econômico, que
possibilitasse a sua avaliação em dinheiro. De fato, alguns direitos de personalidade não
admitem uma tradução pecuniária, como o direito à vida, por exemplo, mas outros, como o
direito à imagem336 e ao nome, têm sido suscetíveis de avaliação em pecúnia, como
demonstraremos mais adiante.

334
Tratando da distinção entre o direito à imagem e o direito autoral, CLÁUDIA POSSI destaca que o direito de
personalidade é autônomo, não podendo ser considerado um direito conexo ao de autor e, portanto, não está
sujeito às limitações previstas na Lei de Direitos Autorais. Cláudia Possi Lopes, Limitações aos direitos de autor
e de imagem, In: Revista Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, nº 35, São Paulo: ago./1998.
335
Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, op. cit., págs. 414 e 415.
336
Sobre o conteúdo patrimonial do direito à imagem, David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo
Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit..

86
MENEZES CORDEIRO aponta como outra característica do direito de personalidade a sua
dupla inerência, que corresponderia à “dupla e indissociável ligação do direito de
personalidade ao seu titular e ao seu objeto”. Desta noção decorreria a intransmissibilidade e
inalienabilidade, pois mesmo que o titular do direito permita o seu uso jamais irá a transferir
definitivamente337.

Da regra constante do artigo 198.º do Código Civil português no sentido de que não são
suscetíveis a prescrição dos direitos indisponíveis, conclui-se que os direitos de personalidade
não se extinguem pelo decurso do tempo338. Também neste sentido, FRANCISCO AMARAL
que os direitos de personalidade são imprescritíveis, uma vez que “não há prazo para o seu
exercício. Não se extinguem pelo não uso, assim como sua aquisição não resulta do curso do
tempo”339.

Procuramos aqui fazer uma breve abordagem geral do regime comum aplicável a todos os
direitos de personalidade. No tópico a seguir tentaremos demonstrar como os direitos de
personalidade podem ser utilizados pelo seu titular e então retornaremos às características ao
abordarmos a possibilidade de limitação voluntária destes direitos.

337
António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, op. cit., págs. 106 e 107.
338
Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, op. cit., págs. 413 e 414; e António
Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, op. cit., págs. 116 e 117.
339
Francisco Amaral, Direito Civil, op. cit., pág. 250.

87
4. DIREITOS DE PERSONALIDADE E AUTODETERMINAÇÃO

4.1. DIREITO OBJETIVO E SUBJETIVO DE PERSONALIDADE

Embora não possamos nos aprofundar acerca do tema relativo aos direitos objetivo e
subjetivo, a compreensão destes conceitos é fundamental para a analisarmos a possibilidade
de limitação voluntária de alguns direitos de personalidade.

Sobre o tema, ORLANDO GOMES340 esclarece que, segundo a concepção jusnaturalista, o


direito subjetivo seria preexistente ao direito objetivo e, dessa forma, este teria a função de
garantir aquele através da coação. Mas de acordo com a concepção positivista ocorreria
exatamente o contrário, ou seja, o direito objetivo seria anterior ao subjetivo.

Prosseguindo, o civilista afirma que seria inconcebível a existência de uma ordem jurídica na
qual não houvesse direitos objetivo e subjetivo, na medida em que um não existe sem o outro.
Portanto, o direito subjetivo corresponde a uma faculdade de agir, enquanto o objetivo é uma
norma de ação.

Nestes termos, o direito objetivo seria aquele consagrado no ordenamento jurídico, que impõe
um dever e está fora da disponibilidade do particular, a não ser quando permitido
expressamente. Constitui produto de normas jurídicas proibitivas ou impositivas.

Com relação ao direito subjetivo, após tecer precisas considerações históricas sobre a
evolução deste direito, PAIS DE VACONCELOS341, numa análise da doutrina portuguesa,
aponta a coexistência das construções subjetivista e objetivista.

Em linhas gerais, o mencionado autor entende que embora o direito subjetivo tenha como
característica principal a liberdade, ou seja, o poder de autodeterminação do seu titular, este
possui um conteúdo complexo e móvel, que varia de acordo com as circunstâncias e
dificuldades que enfrenta na realização do seu fim.

340
Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil. Revista atualizada e aumentada, de acordo com o Código Civil
de 2002, por Edvaldo Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2008, pág. 97.
341
Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2ª edição, Almedina, págs.
443 e seguintes.

88
Dessa forma, segundo PAIS DE VASCONCELOS342, o direito subjetivo poderá conter além
dos poderes, deveres, vinculações, adstrições e ônus. Como exemplo o autor cita os direitos
subjetivos de personalidade, que estão em constante evolução, culminando na criação de
novos poderes e meios defensivos contra as novas ofensas a tais direitos.

Por fim, conclui no sentido de considerar o direito subjetivo como “uma posição jurídica
pessoal de vantagem, de livre exercício, dominantemente activa, inerente à afectação, com
êxito, de bens e dos correspondentes meios, isto é, de poderes jurídicos e materiais,
necessários, convenientes ou simplesmente úteis, à realização de fins específicos e um seu
concreto titular”343.

Em sentido bastante semelhante, LEITE DE CAMPOS344 considera incompleto pensar no


direito subjetivo como mero poder de vontade segundo os interesses do seu titular, pois há
uma outra face, que é o dever do titular desse direito para com a outra parte e seus respectivos
interesses. Assim, este dever ético-jurídico para com os demais nada mais é que um poder-
dever, um veículo de colaboração, pois o direito de cada um possui um limite externo que é o
outro e o próprio. “O poder está ao serviço do eu – que não se confunde com a vontade – e
dos outros”345.

Por sua vez, ASCENSÃO esclarece que a liberdade conferida ao homem não se limita a uma
mera capacidade de opção, mas está indissociavelmente ligada a uma dimensão ética. Desse
modo, as pessoas não são titulares de direitos apenas, mas possuem deveres, sendo que estes
são emanações vindas da solidariedade346.

Como tivemos a oportunidade de demonstrar, entendemos que os direitos de personalidade


são direitos inatos, inerentes ao homem, que permitem ao seu titular se defender de agressões
não apenas nas relações privadas, mas também perante o Estado. Sendo assim, as pessoas não
poderiam depender da positivação desses direitos.

342
Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, op. cit., págs. 475 e 476.
343
Ibidem, pág. 478.
344
Diogo Leite de Campos, Os Direitos da Personalidade: Categoria em Reapreciação, In: Nós, op. cit., págs.
162 e 163.
345
Ibidem, pág. 132.
346
José de Oliveira Ascensão, Pessoa, Direitos Fundamentais e Direito da Personalidade, op. cit., págs. 159 e
seguintes.

89
Além disso, não podemos nos esquecer da necessidade de se assegurar a liberdade a todas as
pessoas na conformação das regras a reger a sua vida, ou seja, na construção dos contornos da
sua personalidade. Estamos aqui na esfera dos direitos subjetivos.

Mas, por outro lado, o espaço de livre desenvolvimento do direito de personalidade não é
total, pois também contempla zonas indisponíveis decorrentes do preceito geral da dignidade
da pessoa humana, que impede a renúncia ou transmissão dos direitos de personalidade.
Como por exemplo o direito à vida.

É aqui que LEITE DE CAMPOS347 destaca que o direito à vida não confere ao seu titular a
prerrogativa de dispor desta, mas antes gera um dever de respeitá-la e defendê-la. Da mesma
forma, o direito à constituição de família deve ter por escopo a realização individual e
também a de cada um dos demais.

Cabe ainda ressaltar que a perspectiva objetiva dos direitos não abrange apenas o dever do
próprio para consigo e com os demais, mas também está situado neste âmbito o dever de
tutela do Estado. O poder público não deve apenas se abster de violar os direitos, mas deve os
proteger. Trata-se do imperativo de proteção do Estado, defendido na doutrina alemã por
CANARIS348, já analisado por nós n seção 2.4. supra.

Pelo exposto, tendo em vista que a tutela da personalidade é una349, acreditamos a mesma
possui uma vertente subjetiva e outra objetiva350, pois os direitos da personalidade possuem a
peculiaridade de impor obrigações, tendo como primeiro destinatário a própria pessoa e, ao
mesmo tempo, confere direitos a este mesmo indivíduo, beneficiando-o. É daí que surge a
noção de pessoa humana como titular de direitos e obrigações.

Assim, o direito objetivo de personalidade se refere ao espaço de indisponibilidade, resultante


das normas proibitivas ou impositivas e principalmente do dever de agir de forma ética;
347
Diogo Leite de Campos, Os Direitos da Personalidade: Categoria em Reapreciação, In: Nós, op. cit., págs.
162 e 163.
348
Manuel A. Carneiro da Frada, A própria vida como dano? : dimensões civis e constitucionais de uma questão-
limite , In: Estudos em honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. I, Coimbra, 2008, págs. 189 e
190.
349
No tópico a seguir, quando tratarmos na patrimonialidade dos direitos de personalidade, iremos expor com
maiores detalhes as correntes monista e dualista.
350
Neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, op. cit., pág. 39 e seguintes.

90
enquanto, o direito subjetivo de personalidade resultaria das normas permissivas, que
conferem à pessoa a faculdade de exigir o respeito a sua dignidade, independentemente da
atuação do Estado.

4.2. O LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE

Tendo em vista que a vertente subjetiva do direito de personalidade corresponde ao espaço de


autodeterminação, esta nada mais é que o reconhecimento ao direito ao livre desenvolvimento
da personalidade, consagrado no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa.

Ora, como expomos nas considerações iniciais deste relatório, o Direito surge para fornecer
ao indivíduo mecanismos que assegurem a sua liberdade na definição dos contornos do seu
viver social, nos limites da ordem pública e dos bons costumes. Dessa forma, não faria
sentido a consagração de direitos, que consistissem numa anulação dessa liberdade.

No Direito brasileiro não há previsão expressa do direito ao livre desenvolvimento da


personalidade, mas entendemos que este é assegurado pela dignidade da pessoa humana e
pelos direitos e garantias fundamentais, notadamente o direito à liberdade, consagrados na
Constituição.

Além disso, cabe salientar que o artigo 29.º351 da Declaração Universal dos Direitos do
Homem assegura o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Portanto, tendo em
vista que como o Brasil é seu signatário não temos dúvidas em reconhecer a sua presença
naquele ordenamento jurídico.

Por outro lado, cabe situar o direito ao livre desenvolvimento da personalidade dentro do rol
de direitos fundamentais. Como esclarece ASCENSÃO, ao Estado cabe assegurar as
condições necessárias a tornar possível o desenvolvimento da personalidade humana e ao

351
Artigo 29º - 1. O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno
desenvolvimento da sua personalidade. 2. No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém está
sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o
respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública
e do bem-estar numa sociedade democrática. 3. Em caso algum estes direitos e liberdades poderão ser exercidos
contrariamente aos fins e aos princípios das Nações Unidas.

91
indivíduo compete exercê-lo. Ou seja, “ninguém substitui a pessoa no autodesenvolvimento
da personalidade, mas a organização social deve ser propícia ao seu desempenho”352.

Definidas estas premissas, cumpre-nos distinguir a forma pela qual a pessoa humana deve
exercer o direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade: através da definição dos
contornos do direito, pelo consentimento ou pela sua limitação voluntária.

Quando falamos em definição dos contornos do direito de personalidade estamos nos


referindo ao comportamento adotado pela pessoa no seu viver em sociedade353, à forma pela
qual esta constrói a sua dignidade.

Esta noção é fundamental para o direito à privacidade em que o comportamento do titular do


direito é essencial para avaliar o grau de tutela que lhe poderá ser conferido. Como exemplo,
podemos citar a hipótese de pessoas comuns que adotam um comportamento mais discreto,
não se expondo ao círculo onde vivem, em contraposição, há a hipótese das pessoas mais
sociáveis, que tendem a gerir a sua vida com maior publicidade. Ora, o grau de tutela do
direito à privacidade não será o mesmo para estes indivíduos. Da mesma forma, ocorre com as
personalidades públicas. Mesmo entre estas é possível tecermos distinções dependendo do
comportamento de cada qual, mais ou menos exposto à mídia.

Por sua vez, o consentimento é aquele, que, nos termos do artigo 340.º, n.º 1, do Código Civil
português, justifica ou exclui a ilicitude de um ato lesivo do direito354, ou seja, trata-se da
hipótese em que o titular do direito, diante de uma violação ou ameaça de ofensa aos seus
direitos, abstêm-se de tomar as medidas cabíveis “a evitar a consumação da ameaça ou
atenuar os efeitos da ofensa cometida”. Seria o que CAPELO DE SOUSA chama de
“consentimento tolerante”355.

352
José de Oliveira Ascensão, Pessoa, Direitos Fundamentais e Direito da Personalidade, op. cit., pág. 162.
353
Paulo Mota Pinto. A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, In:
Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. 2, Coimbra Editora, pág. 552.
354
Adriano de Cupis já reconhecia o consentimento na lesão como uma possibilidade de disposição do direito de
personalidade. Os Direitos de Personalidade, op. cit., págs. 53 e seguintes.
355
Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, op. cit., págs. 411 e 412; Paulo
Mota Pinto. A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, In: Estudos em
Homenagem a Cunha Rodrigues, op. cit., pág. 552.

92
Por fim, a limitação voluntária seria o acordo celebrado ou uma declaração unilateral no
sentido expresso de limitar o direito356, o que exclui a existência de lesão. Aqui o titular do
direito autoriza a prática dos atos lesivos e, conseqüentemente, este ato terá uma dupla
vertente, pois confere a outra parte um poder jurídico e cria para si um compromisso jurídico
em tolerar o ato autorizado, salvaguardado o seu direito de revogação da autorização a
qualquer tempo, nos termos do artigo 81.º, n.º 2, do Código Civil português. Nesta hipótese,
podemos afirmar que sequer tenha ocorrido uma lesão, sendo afastada a tipicidade.

CAPELO DE SOUSA e PAULO MOTA PINTO adotam o termo “consentimento


autorizante”, no que se refere ao poder jurídico conferido a outra parte através da limitação
voluntária, e “consentimento vinculante”, que vai além do “consentimento autorizante”, para
se referir à vinculação gerada ao titular do direito357.

A possibilidade de limitação voluntária desses direitos, desde que não seja contrária aos
princípios da ordem pública é reconhecida expressamente no Código Civil português, no
artigo 81.º, n.º 1, e no 79.º, n.º 1. Mas o artigo 11 do Código Civil brasileiro a proíbe.

No entanto, tomando o ordenamento jurídico brasileiro como um todo, podemos dar ao


mencionado artigo uma interpretação no sentido de impedir apenas uma completa alienação
deste direito. Até porque assim como no Direito português, a Constituição brasileira
contempla a dignidade da pessoa humana como premissa máxima. Dessa forma, seria
impensável a adoção de uma tutela da personalidade que impedisse o seu livre
desenvolvimento.

Por outro lado, os artigos 18 e 20 do Código Civil brasileiro prevêem expressamente a


possibilidade de limitação voluntária desses direitos e, assim como ocorre em Portugal, é
muito comum no Brasil a celebração de contratos de direitos de personalidade, como os das
modelos profissionais, artistas, jogadores de futebol e até mesmo de pessoas comuns.

356
David de Oliveira Festas demonstra a divergência doutrinária no que se refere à natureza jurídica dessa
limitação voluntária: ato jurídico não negocial ou negócio jurídico. O Conteúdo Patrimonial do Direito à
Imagem, op. cit.,págs. 295 e seguintes.
357
Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, op. cit., pág. 350, nota 873. Paulo
Mota Pinto, A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, op. cit., págs. 552
e 553.

93
Deste modo, registramos desde já que a doutrina brasileira é quase que uníssona em
reconhecer a possibilidade de limitação voluntária de direitos de personalidade 358. Tanto é
assim já na I Jornada de Direito Civil foi formulado o Enunciado n.º 4, o qual prevê
expressamente que “o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação
voluntária, desde que não seja permanente nem geral”359.

Por sua vez, o Enunciado n.º 139 da III Jornada de Direito Civil prevê que “os direitos da
personalidade podem sofrer limitações, ainda que não especificamente previstas em lei, não
podendo ser exercidos com abuso de direito de seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e
aos bons costumes”360.

Na doutrina, FRANCISCO AMARAL afirma que a indisponibilidade dos direitos de


personalidade não é absoluta, na medida em que poderá ser objeto de acordo, “como ocorre
no caso de cessão do direito de imagem para fins de publicidade”, de “disposição gratuita de
tecidos, órgãos e partes do corpo humano”, seja em vida ou após a morte361.

TEPEDINO , H. BARBOZA e C. BODIN apontam como características dos direitos de


personalidade a sua extrapatrimonialidade e indisponibilidade, mas destacam que podem
ocorrer temperamentos a estes, “no sentido da concessão de uso de alguns de tais direitos,
como a imagem e o direito de autor e do livre desenvolvimento da personalidade, que implica
transformações”362.

CAIO MARIO afirma que em regra os direitos de personalidade não pode ser objeto de
autolimitação pelo seu titular, mas no que se refere ao efeitos patrimoniais delesemanados,
seria possível, “até onde não ofendam os direitos em si mesmos, ser objeto de renúncia,
transação, transferência ou limitações”. E acrescenta que algumas vezes a ordem jurídicas

358
“Os bens jurídicos nos quais incidem não são suscetíveis de avaliação pecuniária, embora possam alguns
constituir objeto de negócio jurídico patrimonial...” Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, op. cit., pág.
137. Também neste sentido: Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direito Civil,op. cit., pág. 112, 143
e seguintes. J. M. Leoni Lopes de Oliveira, Novo Código Civil Anotado, op. cit., págs. 47 e seguintes. Sílvio de
Salvo Venosa, Direito Civil, op. cit., pág. 151, embora admita a celebração de contratos de direitos de
personalidade, fala em renúncia a estes direitos.
359
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direito Civil,op. cit., pág. 112.
360
Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza, Maria Celina Bodin de Moraes, Código Civil Interpretado
conforme a Constituição da República, 2ª Edição revista e atualizada, Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pág. 34.
361
Francisco Amaral, Direito Civil, op. cit., pág. 250.
362
Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza, Maria Celina Bodin de Moraes, Código Civil Interpretado
conforme a Constituição da República, pág. 34.

94
estabelece limites a “esses atributos ou ao seu exercício” com o objetivo de tutelar o indivíduo
ou a sociedade.363

Embora PAULO NADER reconheça a possibilidade de uma pessoa autorizar que alguém
utilize o seu nome em propaganda comercial, salienta que o titular de direitos de
personalidade não possui disponibilidade sobre os mesmos, não podendo, dessa forma,
“voluntariamente consentir a sua limitação”, conforme previsto no artigo 11 do Código Civil
brasileiro. E acrescenta que deve ser considerado “nulo, de pleno direito, o negócio jurídico
que tenha por objeto a alienação de uma peça anatômica” .364

E ULHOA COELHO afirma que em regra os direitos de personalidade são indisponíveis e


extrapatrimoniais, mas alega que as pessoas famosas teriam um “direito patrimonial à
imagem”. Dentro deste direito inclui “todo e qualquer atributo que identifique a pessoa
famosa”365.

Por fim, cumpre ainda esclarecer que o direito ao livre desenvolvimento constitui expressão
da personalidade366, do qual se pode extrair as noções de autonomia privada e liberdade
contratual. Dessa forma, permite-se ao titular dos direitos de personalidade fazer disposições
voluntárias sobre eles, mas limitados pelos padrões éticos e vigentes em sua época.

A autonomia privada, prevista no artigo 405.º do Código Civil português e no artigo 421 da
lei civil brasileira, é a principal manifestação da autodeterminação da pessoa humana367, uma
vez que é através dela que a pessoa possui a faculdade para estabelecer as suas relações com
os outros, tanto na esfera patrimonial como pessoal, sendo certo que o Estado apenas poderá
intervir para assegurar esta liberdade e a igualdade entre as partes, bem como para garantir
outros valores fundamentais da coletividade.

363
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, volume I, 22ª Edição revista e atualizada por Maria
Celina Bodin de Moraes, Rio de Janeiro: Forense, 2007, pág. 242.
364
Paulo Nader, Curso de Direito Civil, parte geral, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2008, pág. 167.
365
Fabio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Civil, volume 1, São Paulo: Saraiva, 2003, págs. 209 e seguintes.
366
Paulo Mota Pinto, O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade, In: Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, Portugal-Brasil, Ano 2000, Coimbra Editora, 1999, pág. 147.
367
“...a autonomia da vontade do sujeito, expressão da respectiva liberdade de autodeterminação,...” Paulo Otero,
Disponibilidade do Próprio Corpo e Dignidade da Pessoa Humana, In: Estudos em Honra do Professor Doutor
José de Oliveira Ascensão, vol. I, Lisboa: Almedina, 2008, pág. 108. Para Pedro Pais de Vasconcelos autonomia
em sentido amplo abrangeria a autodeterminação, constituindo “o poder que as pessoas têm de se dar leis
próprias e de se reger por elas”, e num sentido restrito corresponderia a autonomia privada, como sendo o
“espaço de liberdade em que as pessoas comuns podem reger os seus interesses entre si,...” Teoria Geral do
Direito Civil, op. cit., págs. 15 e 16.

95
A intervenção do Estado na autonomia privada ocorre, porque a mesma está sujeita (i) a um
limite externo, que é a declaração de vontade correspondente da outra parte, e (ii) a limites
internos, que estão relacionados aos princípios sociais do contrato, como a boa fé e a função
social do contrato, e também à observância da ordem pública e dos bons costumes368.

Dessa forma, o Estado deverá ter uma atuação no sentido de assegurar o cumprimento destes
limites. Mas, como demonstramos na seção 2., a intervenção do Estado na esfera privada deve
ser vista com cautela, na medida em que o poder de autodeterminação da pessoa deve ser
garantido.

Portanto, não podemos concordar com a afirmação de John Stuart Mill no sentido de que
“sobre si, sobre o próprio corpo e a sua própria mente, o indivíduo é soberano”369. O homem
não possui ampla liberdade sobre si, mas as limitações aos seus direitos devem ter como
finalidade o livre desenvolvimento de sua personalidade de acordo com valores éticos370.

Como acertadamente afirma LEITE DE CAMPOS, a liberdade contratual deve ser vista
“como um instrumento de colaboração entre os seres humanos; um meio de promover a
circulação de bens em termos de equilíbrio de interesses, de igualdade”371. A relação
contratual nunca deverá estar baseada em atos de poder, mas em atos de colaboração com o
objetivo de obter um justo equilíbrio de interesses. Assim, caso a própria pessoa estabeleça
restrições aos seus direitos de forma a constituir uma agressão a si mesma, cabe ao Estado
coibir tal ato.

Sobre o tema, também não poderíamos deixar de citar o contributo de VAZ SERRA372. Este
autor destaca que independentemente de se considerar a liberdade de contratar como um
direito natural decorrente da dignidade da pessoa humana ou como uma concessão que o
Direito faz ao indivíduo, ele é a base da vida jurídica civil. E como tal, apenas deverá ser
limitado quando o interesse social seja melhor atendido por outros meios ou ainda para
assegurar a justiça e necessidades sociais.

368
Diogo Leite de Campos, O Direito e os direitos de personalidade, In: Nós, op. cit., pág. 126.
369
John-Stuart Mill, Sobre a Liberdade. Tradução de Pedro Madeira, Lisboa: Edições 70, pág. 40.
370
Diogo Leite de Campos, A Relação da Pessoa Consigo Mesma, In: Nós, op. cit., pág. 92.
371
Diogo Leite de Campos, O Direito e os direitos de personalidade, In: Nós, op. cit., pág. 126.
372
Adriano Paes da Silva Vaz Serra. Efeitos dos Contratos, op.cit., págs. 35 e seguintes.

96
Embora o acordo e a declaração sejam os instrumentos utilizados pelo titular do direito para,
no exercício da sua autonomia privada, exercer o seu direito à limitação voluntária do seu
direito de personalidade, de forma, a muitas vezes poder extrair deste um conteúdo
econômico, nos limitaremos a uma abordagem acerca dos contratos de direitos de
personalidade, que como será demonstrado, para nós, estaria dentro da idéia de
“consentimento autorizante”.

4.3. LIMITAÇÃO VOLUNTÁRIA

Tendo em vista que os direitos de personalidade possuem uma vertente subjetiva que é
traduzida pelo poder de autodeterminação, antes de tratarmos dos contratos que tem como
objeto direitos de personalidade, cumpre-nos fazer algumas considerações acerca da
possibilidade de limitação voluntária destes perante as características de indisponibilidade,
não-patrimonialidade e intransmissibilidade que lhes são apontadas.

Partindo da premissa de que o direito de personalidade tutela a pessoa na amplitude de


aspectos que a mesma envolve, verificamos que é uma matéria em constante evolução, que
vai se adaptando ao desenvolvimento da pessoa, sempre vinculado ao contexto social no qual
ela está inserida. Dessa forma, não apenas o rol de direitos deve estar relacionado com
padrões éticos e morais das sociedades, como também os limites do seu exercício e o grau de
tutela que lhe é conferido.

Tanto é assim que a evolução das tecnologias e o conseqüente crescimento da mídia


colocaram em questão direitos de personalidade, como a imagem, nome, voz e privacidade.
Agora, temos a celebração de diversos contratos com conteúdo patrimonial que tratam do uso
desses direitos, o que evidencia um crescimento da tolerância no que se refere ao seu grau de
disponibilidade. Ou seja, a indisponibilidade dos direitos de personalidade é relativizada,
sendo comum vermos limitações aos mesmos.

Como vimos no tópico anterior, a legalidade destes contratos pode ser retirada do próprio
ordenamento jurídico, tendo em vista o direito fundamental ao livre desenvolvimento da

97
personalidade e a previsão expressa da possibilidade de limitação voluntária destes direitos
nos artigos 81.º e 79.º do Código Civil português.

Mas é certo que embora para os contratos em geral também seja exigida a observância dos
princípios da ordem pública e o respeito aos bons costumes, é preciso termos em conta que
aqui o ser humano está pessoalmente envolvido, o que determina que reste assegurado um
grau de tutela mais elevado.

Por outro lado, notamos um crescente reconhecimento de uma dimensão patrimonial em


muitos direitos de personalidade, em correspondência com a prática social da atualidade.
Note-se que no direito brasileiro já encontramos manifestações no sentido de se reconhecer a
patrimonialidade desses direitos, antes mesmo de estes direitos estarem previstos no Código
Civil 373.

Diante desta realidade, a doutrina se dividiu em duas correntes: monista e da dualista. Os


defensores da corrente dualista foram muito influenciados pelo right of privacy e pelo right of
publicity norte-americanos374. Deste modo, defendem uma dissociação dos valores pessoais
dos patrimoniais de personalidade. Em linhas gerais, o right of privacy é responsável pela
defesa dos valores não patrimoniais de personalidade, enquanto o right of publicity se
encarrega da vertente patrimonial dos direitos de personalidade.

Por sua vez, os defensores da corrente monista acreditam na existência de um direito unitário,
em que os aspectos pessoais e patrimoniais são tutelados por um único direito. Ou seja,
reconhecem uma vertente subjetiva e outra objetiva aos direitos de personalidade.

Assim como os monistas, acreditamos em um direito único, uma vez que, ao contrário dos
bens imateriais, os direitos de personalidade não se autonomizam da pessoa, não sendo
livremente disponíveis. Mas, embora exista um único direito de personalidade, estes possuem
valores pessoais, que se traduzem na autodeterminação da pessoa sobre o mesmo, e valores
patrimoniais, que se referem a todos os rendimentos obtidos através do aproveitamento

373
O Código Civil de 1916 não continha previsão de direitos de personalidade, que apenas foi inserido no
Código de 2002. Luiz Roldão de Freitas Gomes, Noção de Pessoa no Direito Brasileiro, op. cit., pág. 346 e 347.
374
Para uma leitura mais aprofundada sobre as correntes dualista e monista, bem como sobre o right of privacy e
o right of publicity, David Fernandes de Oliveira Festas, O Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit..

98
econômico do direito. Ora, como o aproveitamento econômico decorre exatamente da
autodeterminação, é certo que estes valores são indissociáveis375.

Para MENEZES CORDEIRO existiriam os direitos de personalidade376 (i) não patrimoniais


em sentido forte, que corresponderia aos direitos que não admitem uma tradução pecuniária e
cita como exemplo o direito à vida, à saúde e à integridade corporal, (ii) não-patrimoniais em
sentido fraco, como aqueles que podem ter um alcance patrimonial, embora respeitando certas
regras, citando como exemplo o direito à saúde e à integridade física, quando utilizados para
fins científicos, desde que não irreversivelmente atingidos, e (iii) patrimoniais, que seriam
aqueles negociáveis no mercado, mas que permanecem sendo tutelados pelas regras
específicas dos direitos de personalidade por se referirem aos bens de personalidade, tendo
mencionado como exemplo os direitos ao nome, imagem e os decorrentes de atividade
intelectual.

Sobre a disponibilidade o mencionado autor afirma que: “Os direitos de personalidade


representam, como quaisquer outros direitos subjetivos, posições de liberdade, reconhecidas
ao seu beneficiário. Nessa qualidade, eles implicam disponibilidade”377.

No entanto, como demonstramos, é preciso ter muito cuidado ao se afirmar que os direitos de
personalidade seriam apenas direitos subjetivos, pois se assim entendermos estaremos
conferindo ao indivíduo um direito absoluto e retirando qualquer obrigação para com o
próximo, consigo e com a sociedade378.

Por sua vez, o professor ASCENSÃO entende que determinados direitos da personalidade,
como a imagem ou a reserva da intimidade da vida privada, “ganham um aspecto tão vasto
que ultrapassam o que é eticamente exigido”, deixando de ser direitos de personalidade e
passando a ser direitos meramente pessoais. Assim, estes direitos seriam livremente

375
Neste sentido, David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit.,
págs. 49 e seguintes.
376
António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, op. cit., págs. 105 e 106.
377
Ibidem, pág. 115.
378
Neste sentido, ainda que não se referindo expressamente aos direitos de personalidade, mas ao direito
subjetivo decorrente das obrigações em geral, Leite de Campos alerta: “Afirmar o direito subjectivo como um
poder da vontade ao serviço dos interesses do seu titular e, pelo menos, unilateral e incompleto. Esquece-se o
«sujeito passivo» - que não é «sujeito» nem «passivo»; esquece-se a dimensão social, solidaristica, de qualquer
direito, de qualquer instrumento de inter-relacionação”. Diogo Leite de Campos, O Direito e os Direitos da
Personalidade, In: Nós, op. cit., pág. 131.

99
disponíveis, ou seja, transferidos para a esfera da outra parte contratante e desse modo não
podem ser revogados a qualquer tempo.379

Avançando sobre o assunto, ao analisar os diferentes tipos de direitos de personalidade, o


professor ASCENSÃO os distingue em três zonas380: (i) o “núcleo”, que sempre mereceria
proteção, (ii) a “periferia”, que se refere a aspectos que estão compreendidos em um tipo, mas
não estão relacionados com o conteúdo propriamente dos direitos de personalidade381 e, por
fim, (iii) a “orla”, que seria constituída por situações que estão mais afastadas dos aspectos
nucleares da pessoa, estando, portanto, sujeitas à limitação voluntária de acordo com os
princípios de ordem pública.

Esta análise dos direitos de personalidade em diferentes zonas em muito se assemelha à teoria
do núcleo da personalidade, defendida no direito alemão por Peters. De acordo com a mesma,
existiriam camadas ou esferas da personalidade que mereceriam tutela diferenciada. A “esfera
íntima” seria aquela que deveria ter um nível de proteção superior ao das esferas privada e
social382.

Embora esta teoria tenha enfrentado diversas críticas em razão de dificuldades em se


determinar as fronteiras entre estas esferas, o Tribunal Constitucional Federal alemão dela não
se afasta e divide os direitos de personalidade em dois ramos: o direito geral da personalidade
e a liberdade geral de ação383.

Como exemplo de hipótese em que foi reconhecido o aspecto patrimonial do direito de


personalidade, podemos citar a ação judicial ajuizada por Carla Bruni e Nicolas Sarkosy
contra a companhia aérea Ryanair. Nesta ação, a companhia aérea foi condenada a pagar

379
José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, op. cit., págs. 94 e 95.
380
José de Oliveira Ascensão, Pessoa, Direitos Fundamentais e Direito da Personalidade, op. cit., pág. 158.
381
Como exemplo o professor Ascensão cita os aspectos mais banais da vida privada, aqueles que não
constituem o objetivo substancial da defesa da intimidade da pessoa humana.
382
Jürgen Schwabe, Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, op. cit.,
págs. 187 e 188.
383
No que se refere à liberdade geral de ação vale destacar a decisão Elfes (BverfGE 6, 32): “... ao cidadão está
constitucionalmente reservada uma esfera de vida privada, existindo, portanto, um último âmbito intangível de
liberdade humana que não se submete à ação do poder público como um todo.” Note-se que a adesão do
Tribunal Constitucional alemão à teoria do núcleo da personalidade resta evidente neste julgado, pois ao longo
da decisão há algumas referências ao núcleo essencial da personalidade e à liberdade de ação em sentido amplo.
Esta teoria também foi adotada no caso Reiten Im Walde, quando este fala em proteção absoluta de um núcleo
essencial da vida privada e afirma que a garantia geral de ação poderá ser restringida pelo poder público
(BverfGE 80, 137). Jürgen Schwabe, Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal
Alemão, op. cit., pág. 188, 190-195 e 218-228.

100
indenização ao casal por ter utilizado uma fotografia de ambos em campanha publicitária, sem
que houvesse sido concedida autorização para tanto. Na sentença, a justiça reconheceu que
houve prejuízo patrimonial para a ex-modelo e cantora, por sua imagem ter um valor de
mercado e, no que se refere a Nicolas Sarkozy, foi ressaltado que o mesmo tem direito
exclusivo e absoluto sobre sua imagem384.

Por fim, a intransmissibilidade seria para nós a vertente objetiva dos direitos de personalidade,
que não está no âmbito de autonomia da parte. Tal fato é comprovado na redação do artigo
81.º, n.º 2, do Código Civil português que prevê a possibilidade de revogação385 da limitação
voluntária destes direitos a qualquer momento pelo titular. Assim, quando a parte celebra
contrato autorizando o uso de um direito de personalidade, estamos diante de uma cessão e
não uma transferência.

Para nós, embora os direitos de personalidade sejam intransmissíveis, as características da


não-patrimonialidade e indisponibilidade foram relativizadas. Dessa forma, estes direitos
poderão ter um conteúdo patrimonial e o seu titular terá um certo grau de disponibilidade.
Ocorre que esta liberdade para usufruir dos direitos de personalidade, deverão sempre
observar valores éticos e os bons costumes, sendo certo que jamais podem ser alienados. Isto
porque, os bens de personalidade jamais se desvinculam da pessoa. Note-se que entendemos
como disponibilidade o poder de o titular do direito autorizar o seu uso, aproveitamento, mas
jamais poderá se privar deste ou cedê-lo.

Por outro lado, cabe salientar que determinados direitos de personalidade não admitem
qualquer relativização quanto a sua indisponibilidade e não-patrimonialidade. São direitos que
estão fora da esfera da autonomia privada do seu titular. No entanto, as discussões sobre a
abrangência deste “núcleo duro” é o cerne de toda a controvérsia sobre a matéria.

Um exemplo de questão objeto de debate que acaba sempre por preponderar é o direito à vida.
Este direito vem sendo considerado como um direito absoluto, que não admite qualquer
restrição. Entretanto, podemos verificar que nem mesmo este direito deixa de ser colocado em

384
Notícia acessada em 25.06.2009, na página eletrônica: http://www.rfi.fr/actubr/articles/098/article_11938.asp.
385
Embora o legislador tenha utilizado o termo revogabilidade, Menezes Cordeiro considera que a expressão
correta seria denúncia, já que a figura procede em situações duradouras e não tem eficácia retroativa. António
Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, op. cit., pág. 115.

101
xeque, na medida em que são freqüentes as discussões acerca da possibilidade de interrupção
voluntária da gravidez, eutanásia e mesmo um „direito à não existir‟.

Este suposto „direito à não existir‟ vem sendo alegado por pessoas portadoras de deficiência
grave, sob o fundamento de que a sua vida constituiria um dano. Dessa forma, já foram objeto
de apreciação pelos tribunais dos países europeus pleitos indenizatórios formulados por
crianças contra o médico que deixou de informar à mãe sobre a possibilidade da deficiência e
portanto impediu que os pais optassem pela interrupção voluntária da gravidez386.

Em Portugal, o Supremo Tribunal de Justiça já indeferiu um pedido como estes, sendo que
um dos fundamentos adotados foi o de que o direito à vida possui um caráter supremo na
ordem jurídica portuguesa, sendo incompatível com qualquer direito que tenha como objeto a
eliminação da própria vida.

Vê-se, pois, que a questão central da controvérsia seja no que se refere ao aborto de crianças
portadoras de anomalias graves, seja na eutanásia para pacientes terminais, está em verificar
se a boa-fé e os bons costumes admitiriam uma restrição ao direito à vida, diante de questões
limites. Questiona-se se obrigar a pessoa a viver nessas condições não seria por si só mais
ofensivo a sua dignidade do que uma restrição ao direito à vida.

Tratando da disponibilidade sobre o próprio corpo, PAULO OTERO387 esclarece que o


respeito à reserva da vida privada de cada pessoa e à liberdade individual não são absolutos,
pois nem todas as condutas carecem de “intersubjectividade” ou de repercussão social
negativa. Dessa forma, embora em regra prevaleça a liberdade de autodeterminação da
pessoa, a intervenção do Direito nesta esfera deverá estar fundada na “natureza
intersubjectiva” dos meios que envolve ou dos efeitos que produz e ainda na relevância social
da conduta em causa.

Avançando sobre o assunto, o professor alerta que diante da colisão dos direitos à liberdade
de autodeterminação e à indisponibilidade do corpo humano, a ponderação desses direitos

386
Manuel A. Carneiro da Frada, A própria vida como dano? : dimensões civis e constitucionais de uma questão-
limite , In: Estudos em honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. I, Coimbra, 2008, págs. 171,
172, 188 e segs.
387
Como exemplo de condutas de disposição do próprio corpo que carecem de intersubjetividade, Paulo Otero
cita a prostituição, o aluguel de útero e os transplantes de órgãos ou tecidos. Paulo Otero, Disponibilidade do
Próprio Corpo e Dignidade da Pessoa Humana, op. cit., págs. 113 e 114.

102
deve ter em vista o alcance vinculativo do princípio da dignidade da pessoa humana. Ou seja,
a autonomia da vontade é limitada pelo mencionado preceito fundamental388.

Assim, o constitucionalista português alerta que apenas serão admissíveis disposições sobre o
próprio corpo, caso estas não ofendam ao mencionado princípio e estejam de acordo com os
valores de solidariedade e fraternidade. E deste modo conclui que “a ninguém será lícito
utilizar a sua liberdade de autodeterminação para, de forma atentatória à sua própria dignidade
como pessoa humana, dispor do respectivo corpo.

Por fim, são freqüentes as discussões em torno dos conflitos entre o direito de imagem e à
liberdade de expressão ou o direito à informação. Questiona-se qual destes deve prevalecer.
Como exemplo de casos que envolveram esta polêmica, podemos citar o vídeo amplamente
divulgado na internet com imagens da modelo brasileira Daniela Cicarelli em posições
amorosas com o seu namorado em uma praia na Espanha.

No caso, estava em questão o interesse público em se tomar conhecimento de tal conduta, ou


seja, era necessário verificar se tal informação era suficientemente relevante para a população
a justificar a exposição de sua imagem, bem como, sofrer restrições a sua privacidade e abalos
ao direito à honra. Ajuizada a ação pela modelo com pedido de liminar, esta foi concedida,
tendo sido determinado que todas as páginas eletrônicas que contivessem o vídeo, o retirasse
do ar, sob pena de pagamento de indenização389.

Como visto, em geral, estão em confronto direitos de personalidade e direitos que decorrem
do preceito geral de liberdade, como o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à
liberdade de imprensa. Tal é a polêmica envolvendo o assunto que na IV Jornada de Direito
Civil foi elaborado o enunciado n.º 279 para buscar oferecer parâmetros de ponderação ao
magistrado:

388
Paulo Otero, Disponibilidade do Próprio Corpo e Dignidade da Pessoa Humana, op. cit., págs. 122 e
seguintes.
389
“Pedido de antecipação de sentença por violação do direito à imagem, privacidade, intimidade e honra de
pessoas fotografadas e filmadas em posições amorosas em areia e mar espanhóis - Tutela inibitória que se revela
adequada para fazer cessar a exposição dos filmes e fotografias em web-sites, por ser verossímil a presunção de
falta de consentimento para a publicação [art. 273, do CPC] - Interpretação do art. 461, do CPC e 12 e 21, do CC
- Provimento, com cominação de multa diária de R$ 250.000,00, para inibir transgressão ao comando de
abstenção.” Agravo de Instrumento n.º 472.738-4, 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São
Paulo, Relator Desembargador Ênio Santarelli Zuliani. Como também, notícia acessada em 25.06.2009, na
página eletrônica http://www.jusbrasil.com.br/noticias/12924/sites-sao-proibidos-de-exibir-ima.

103
“279 – Art.20. A proteção à imagem deve ser ponderada com outros
interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do
direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em
caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos
fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as
características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica),
privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de
informações.”390

Para nós, na ponderação entre estes direitos, é preciso ter em vista a pessoa como ente dotado
de liberdade, que depende do outro para viver. Desse modo, a balança sempre recairá sobre a
conduta que conferir o menor dano possível à pessoa e estiver mais de acordo com a moral e
os bons costumes. Este será o critério de prevalência: a pessoa humana!

390
Enunciados da IV Jornada de Direito Civil obtidos em 25.06.2009, na página eletrônica
http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/enunciados/EN_IVJOR_CN.doc.

104
5. CONTRATOS DE DIREITOS DE PERSONALIDADE

5.1. REQUISITOS

Os contratos consistem em um negócio jurídico bilateral, por meio do qual as partes


disciplinam interesses econômicos ou patrimoniais, sendo uma fonte de direitos e obrigações,
que subordina as partes a suas cláusulas e condições, obrigando-as a observar condutas aptas à
plena consecução dos interesses visados.

Em sendo negócio jurídico, todos os contratos deverão atender aos requisitos gerais previstos
no Código Civil. Na Lei civil brasileira, estes requisitos estão previstos no artigo 104,
enquanto na portuguesa estão nos artigos 280.º e 281.º. Assim, temos que o contrato deve ser
celebrado por pessoa capaz, ter um objeto determinável, que não seja contrário à lei e nem
que seja física ou legalmente impossível, como também, deverá atender à ordem pública e aos
bons costumes.

Ora, como demonstramos, os direitos de personalidade atendem a estes requisitos, na medida


em que correspondem a bens da personalidade. Cite-se como exemplo a imagem de uma
pessoa. Embora esta não se autonomize do seu titular, estará refletida através de uma
fotografia, caricatura etc, mas trata-se de um objeto determinado física e legalmente possível.

Dessa forma, a celebração de contratos de direitos de personalidade é perfeitamente


admissível, mas tratando-se do objeto em questão, este deverá atender além dos requisitos
gerais, a alguns específicos previstos no artigo 81.º do Código Civil português, sendo certo
que a ordem pública e os bons costumes devem ser observados com mais atenção.

Embora o direito brasileiro não contemple dispositivo legal semelhante ao artigo 81.º
português, entendemos que as regras previstas neste artigo decorrem da natureza do objeto em
causa: os direitos de personalidade. Assim, todas as considerações feitas a seguir serão
aplicáveis aos contratos brasileiros e portugueses, devendo respeitar um regime de
“negociabilidade limitada”.391

391
David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit., pág. 386.

105
Também consideramos possível que aos contratos promessa, previstos nos artigos 410.º e
seguintes do Código Civil português, bem como, nos artigos 462 e seguintes do Código Civil
brasileiro, envolvam direitos de personalidade, se aplicando a estes as mesmas considerações
com relação aos contratos.

No que se refere à declaração de vontade, exige-se (i) a capacidade jurídica, e (ii) a


integridade do consentimento, ou seja, que a declaração de vontade esteja de acordo com os
artigos 236.º e seguintes do Código Civil português e, no Direito brasileiro, com os artigos
107 e seguintes. Note-se que a declaração deve ter sido manifestada de forma livre, não
podendo estar presentes os vícios de vontade.

Já há muito restou superada a confusão que se fazia entre ser titular de direitos de
personalidade e possuir capacidade jurídica. Hoje, sabemos que mesmo os incapazes são
titulares de direitos de personalidade e, portanto, têm o direito ao livre desenvolvimento da
personalidade.

No entanto, embora o menor tenha o direito ao livre desenvolvimento dos seus direitos de
personalidade, é certo que para a validade do contrato será necessária a atuação do seu
representante legal, que praticará os atos negociais no interesse do representado, sempre
respeitando a moral e os bons costumes, conforme previsto nos artigos 124.º do Código Civil
português e 116 da Lei Civil brasileira.

Além disso, temos que a vontade do menor será altamente relevante nestas hipóteses, não
podendo o seu representante atuar em sentido contrário a esta, sob pena de sua
responsabilização e nulidade do contrato celebrado392.

Paulo MOTA PINTO, entende que a solução deveria ser buscada na natureza dos interesses
em questão, assim, caso o incapaz já tenha o discernimento necessário e dependendo da
relevância do seu conteúdo, lhe será reconhecida a competência para dar o consentimento, do
contrário será necessária a atuação do representante. No entanto, nas hipóteses que
envolverem “compromissos jurídico-negociais, cuja violação pode dar lugar a uma obrigação

392
Também neste sentido, Paulo Mota Pinto. A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Intimidade da
Vida Privada, In: Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, op. cit., pág. 544; e David Fernandes de Oliveira
Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit., pág. 312 e seguintes.

106
de indenização”, ou seja, quando está envolvida uma “verdadeira actuação negocial”, será
necessária a atuação do seu representante em conjunto com a do menor. Registre-se, ainda,
que segundo o autor, os proventos relativos a essa declaração pertencerão ao incapaz, embora
seja do representante a legitimidade ativa para exigir o seu cumprimento393.

David de Oliveira FESTAS também partindo da noção de discernimento necessário do


incapaz, a que chama de “capacidade natural”, exige tanto a atuação do menor quanto a do
seu representante legal.394

Para nós, o consentimento expresso do menor é recomendável na celebração dos contratos


que envolvem limitação voluntária dos seus direitos de personalidade, mas não pode ser
considerado requisito essencial.

O artigo 1889 do Código Civil português prevê a necessidade de autorização judicial prévia
para atos de disposição de direitos de natureza patrimonial, mas é silente quanto aos direitos
de personalidade, o que, a nosso ver, é correto, pois através dos contratos de direito de
personalidade não ocorre a disposição do direito, mas apenas uma autorização ao uso.

Portanto, entendemos que de fato não é necessária a autorização judicial para celebração
desses contratos, mas o Ministério Público deverá atuar na fiscalização do atendimento dos
interesses do menor. Como exemplo podemos citar o caso dos menores cantores de funk, um
estilo musical brasileiro típico de zonas muito carentes do Rio de Janeiro. Exercendo a sua
função fiscalizatória, o Ministério Publico considerou como ofensivo aos interesses do menor
e contrário à moral e aos bons costumes, a atuação destes jovens músicos, que cantavam letras
musicais com conotação sexual e participavam de ambientes inadequados.

Além deste exemplo atualmente está sob discussão no Brasil o caso da apresentadora de TV,
Maisa da Silva Andrade, de sete anos395. O Ministério Público do Trabalho promoveu ação
civil pública para exigir mais controle sobre o trabalho da menina, afirmando que a mesma
tem autorização para gravar apenas nas tardes de quarta-feira. Toda esta polêmica surgiu após

393
Paulo Mota Pinto. A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, In:
Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, op. cit., págs. 542 e seguintes.
394
David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit., págs. 308 e
seguintes.
395
Informação acessada em 14.06.2209, em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u571248.shtml.

107
a participação da apresentadora no “Programa Silvio Santos”. Neste, instigada pelo
apresentador Silvio Santos, Maisa não resistiu e se demonstrou profundamente abalada pelas
provocações, tendo chegado a chorar no ar.

E, portanto, além de a procuradoria exigir um maior controle sobre o trabalho de Maisa, pede
a condenação da emissora de TV SBT ao pagamento de 1 milhão reais, a título de indenização
por lesão a direitos coletivos. Isto porque, Maisa teria sido exposta a medo, susto e dor física
no “Programa Silvio Santos”, o que é vedado pelas normas que protegem os menores de
idade396.

No entanto, a ação civil pública não cita apenas os episódios nos quais a apresentadora
chorou, mas também o fato de a menina ter substituído os apresentadores Yudi e Priscilla
durante as férias dos mesmos em janeiro. Além disso, a procuradoria salienta que o trabalho
para menores de 16 anos é proibido. Sendo certo que apenas é autorizado em algumas
manifestações artísticas desde que se cumpram alguns requisitos, como: poupança para a
menor, que não seja a renda principal da família, que não prejudique a escola, entre outros
pontos.

Por fim, os artigos 217.º e 219.º do Código Civil português e 107 da lei civil brasileira
prevêem o princípio da liberdade de forma, podendo a declaração ser oral ou escrita e
expressa ou tácita. No entanto, como os contratos de personalidade gozam de certa
peculiaridade, cumpre-nos tecer alguns comentários sobre a liberdade de forma e a definição
do objeto.

Entendemos que a natureza deste contrato exige muito cuidado na delimitação do alcance da
autorização concedida, ou seja, este deverá conter cláusulas que especifiquem com precisão o
objeto da limitação, bem como, ser celebrado por tempo determinado, uma vez que não
poderá abranger acontecimentos futuros, tendo em vista a imprevisibilidade destes. Um
consentimento ilimitado pode ser considerado como uma renúncia a direitos de
personalidade397.

396
Notícia acessada em 14.05.2009, na página eletrônica:
http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL1167092-5605,00-MINISTERIO+PUBLICO+ O+TRABALHO+
PROPOE+ACAO+CONTRA+SBT+APOS+CHORO+DE+MAISA.html.
397
Se referindo à declaração de vontade, Paulo Mota Pinto. A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a
Intimidade da Vida Privada, In: Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, op. cit., pág. 540.

108
Assim, na celebração do contrato de direitos de personalidade apontamos a preferência pela
forma escrita e expressa para que não restem dúvidas acerca da autorização concedida.

Registre-se que declarações que não especifiquem com precisão o objeto da limitação, que
tenha sido dada por tempo indeterminado deve ser considerada nula, assim, como as
limitações voluntárias que ofendam à ordem pública e os bons costumes conforme previsto
nos artigos 81.º, 280.º e 340.º do Código Civil português.

Dessa forma, os contratos de direitos de personalidade devem ter os seus contornos


cuidadosamente delimitados pelo titular do direito, que possui ampla liberdade na
conformação dos poderes jurídicos que pretende atribuir a outra parte, desde que respeitados
os requisitos legais acima expostos, a ordem pública e os bons costumes. Conseqüência disso
é a vinculação da outra parte ao respeito desses limites negociais398.

Neste sentido é a posição adotada por CLÁUDIA POSSI ao tratar do direito à imagem. Esta
menciona que a interpretação do escopo de uma eventual autorização para utilização da
imagem é restritiva. Ou seja, a autorização de uso será interpretada como sendo apenas para
as finalidades e condições estipuladas no contrato ou acordo celebrado com a pessoa
retratada399.

Para ilustrar essa necessidade de definição do objeto dos direitos de personalidade, bem como
a sua limitação temporal, podemos citar o caso do jogador de futebol Velli e os contratos de
direitos de personalidade celebrados pelo mesmo.

398
Sobre a importância de se traçar os limites da autorização e a vinculação da outra parte a estes, cite-se o
acórdão RLx n.º 1086/2003-7, de 28.9.2004, SANTOS MARTINS, disponível em http://www.dgsi.pt, em
19.09.2005. Neste caso, o Tribunal da Relação de Lisboa reconheceu uma autorização tácita ao uso da imagem
do autor da ação na capa de um álbum musical, mas considerou que o uso da respectiva imagem em cartazes
afixados em lugares públicos teria extrapolado os limites da autorização concedida: “Em conclusão: a dita
ampliação das aludidas fotografias do autor/apelado, por parte da apelante, para cartazes, sem o prévio
consentimento, por qualquer forma, daquele, sendo afixadas nos locais públicos já indicados, visando beneficiar
de publicidade e promoção gratuitas, traduziu-se, portanto, numa acção ilícita, dado que, nessas circunstâncias,
violou o direito à imagem daquele, em especial e designadamente, a salvaguarda do direito de personalidade do
mesmo, daí decorrendo, a seu favor, o direito a uma indemnização, não podendo deixar de atender-se, para este
efeito, à especificidade e natureza da sua actividade profissional, com todos os efeitos que, necessariamente, ela
comporta.”
399
Cláudia Possi Lopes, Limitações aos direitos de autor e de imagem, In: Revista da Associação Brasileira da
Propriedade Intelectual, n.º 35, São Paulo: agosto/1998.

109
O jogador de futebol Velli celebrou com a empresa autora da ação contrato cujo objeto era a
cessão dos direitos à exploração econômica da sua imagem. Mais tarde, Velli celebra contrato
de trabalho com uma sociedade anônima desportiva (empresa ré). Em paralelo, a empresa
autora celebra com a ré contrato designado pelas partes como “contrato de cedência de
imagem”, que tinha como objeto a exploração econômica da imagem do futebolista, mediante
o pagamento de determinada quantia à empresa autora. Note-se que o jogador deu
expressamente o seu acordo neste “contrato de cedência de imagem”.

Ajuizada a ação de cobrança, o Tribunal da Relação400 entendeu que o objeto dos contratos de
direito de personalidade envolveriam a transferência do direito à imagem do futebolista, pois,
no seu entender, não se “reporta à disponibilidade de uma concreta imagem mas sim a toda e
qualquer imagem do jogador no plano desportivo”, o que seria contrário à ordem pública.
Assim, o Tribunal entendeu pela improcedência da ação por nulidade dos contratos de direitos
de personalidade celebrados.

A questão foi levada ao Supremo Tribunal de Justiça português401, que reformou o acórdão do
Tribunal da Relação, sob o fundamento de que os contratos não envolviam uma transferência
do direito à imagem, sem fixação de prazo. Pelo contrário, estava em causa uma autorização
para exploração econômica da imagem por prazo determinado402.

Registre-se, por fim, que a ofensa à ordem pública e aos bons costumes poderia ocorrer na
mencionada hipótese, caso o uso da imagem do jogador seja feito de forma inadequada, ou

400
RLx n.º 2788/04-3, de 24.2.2005, BERNARDO DOMINGOS, disponível em http://www.dgsi.pt, em
19.09.2005.
401
STJ n.º 05A2577, SILVA SALAZAR, disponível em http://www.dgsi.pt, consultado em setembro de 2007:
“Só que, na hipótese dos autos, o que está em causa não é o poder de dispor em geral da imagem da pessoa para
fins comerciais, o poder de lançar no comércio todos e quaisquer retratos de que alguém, não titular do
respectivo direito à imagem, disponha. O que está em causa é apenas a exploração comercial, durante um
período determinado e com proveito económico para o próprio desportista, da imagem de desportista profissional
de um futebolista - à qual a própria lei reconhece portanto valor económico -, por meio dos retratos, filmes,
desenhos ou outras formas de exibição que, apenas nessa qualidade e durante esse período, sejam produzidos
com base na sua imagem, e não no que possa respeitar a todo e qualquer aspecto da sua vida íntima e privada.
Ora, não se vê em que possa ofender a ordem pública a exploração comercial dessa imagem por entidade distinta
do respectivo titular, por um período de tempo limitado, permitida por lei quanto aos praticantes desportivos sem
a restrição que em face do disposto no art.º 79º, n.º 1, do Cód. Civil, se possa entender existir para as pessoas em
geral, e livremente consentida pelo titular do direito à imagem, que, sem deixar de ser titular desse direito, sem a
ele renunciar por meio da cedência em causa, consegue, mediante o recurso directo ou indirecto a tal exploração
ou por cedência remunerada, a terceiros, da mesma, extrair rendimentos dela aproveitando a notoriedade que
com o tempo e o esforço que dedique à actividade desportiva que pratique consiga alcançar.”
402
Esse também é o entendimento de Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, 2006,
págs. 158 e seguintes.

110
seja, a ofender a sua honra. No entanto, o que nos parece é exatamente o contrário: as
empresas em questão promovem o jogador e este é conseqüentemente beneficiado com tal
atividade.

Caso polêmico envolvendo direitos de personalidade e o direito à liberdade de expressão


envolveu a apresentadora de TV Maria da Graça Xuxa Meneghel. Em ação judicial ajuizada
pela apresentadora contra a Rede Bandeirantes de TV - Rádio e Televisão Bandeirantes Ltda.,
em razão de a emissora ter exibido em programa televiso fotografias de Xuxa nua, tiradas
para uma revista masculina, há mais de vinte anos403.

Na sentença404, a rede de TV foi condenada ao pagamento de indenização, sob o fundamento


de que as fotos teriam sido feitas para utilização exclusiva pela revista, não sendo lícito aos
demais meios de comunicação a sua exploração sem autorização expressa de Xuxa para tanto.

Além disso, cumpre destacar que o magistrado esclarece que mesmo a revista Playboy, com
quem Xuxa celebrou contrato envolvendo direito de imagem, não poderia reeditar a revista
posto que o contrato se firmou para a exposição por uma única vez das fotos tiradas.
Consideramos acertada a decisão na medida em que os contratos de personalidade devem ser
interpretados sempre de forma restrita e buscando minimizar os danos aos direitos da pessoa.

Estas são as regras que consideramos essenciais a um contrato de direitos de personalidade.


Passamos agora a análise da regra de revogabilidade unilateral prevista no artigo 81.º, n.º 2,
do Código Civil português e também aplicável no Brasil.

5.2. REVOGABILIDADE

Como fonte de obrigações, não se poderia imaginar um contrato sem que suas cláusulas
obrigassem as partes contratantes. Surge, então, o Princípio da Obrigatoriedade dos Contratos,
ou pacta sunt servanda. E a justificativa, em parte, para este princípio, encontra-se em outro:
a autonomia de vontade. Ora, partindo do pressuposto segundo o qual as partes conjugaram

403
Notícia acessada em 25.06.2009, na página eletrônica http://www.bonde.com.br/bonde.php?id_bonde=1-26--
43-20090623.
404
Processo n.º 2008.001.069035-3, em curso na 48ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado do Rio de
Janeiro. A íntegra da decisão foi obtida em 25.06.2009, na página eletrônica http://www.tj.rj.gov.br/.

111
suas vontades, livres e sem vício, e celebraram um contrato, nada mais natural que deste
resultem condutas obrigatórias para elas.

Da pacta sunt servanda decorrem as regras gerais previstas nas Leis Civis portuguesa e
brasileira, respectivamente: artigos 230.º e 427, que prevê a irrevogabilidade da proposta de
contrato, bem como, 406.º, n.º 1, e 472 no sentido de que a modificação ou extinção do
contrato deverá ocorrer por comum acordo.

Ocorre que, como dissemos, o contrato de direitos de personalidade deverá atender a regras
específicas e a mais peculiar destas está prevista no artigo 81.º, n.º 2, do Código Civil
português405, que possibilita ao titular do direito revogar a todo tempo a autorização
concedida, mediante o pagamento de indenização das legítimas expectativas que tenham sido
frustradas.

Ora, embora a lei brasileira não contemple dispositivo semelhante, esta regra também é
aplicável aos contratos de direitos de personalidade celebrados no Brasil, uma vez que decorre
da própria natureza do objeto negocial. Como demonstramos no tópico anterior, o bem de
personalidade é intransmissível. Portanto, embora possa ter o seu uso autorizado, jamais será
transferido a terceiro ou sairá do domínio do seu titular. Trata-se da vertente objetiva destes
direitos, que está fora do âmbito da autonomia das partes.

Note-se que temos aqui uma exceção à pacta sunt servanda apenas com relação ao titular do
direito, em razão da proteção que este merece. Assim, o titular se vincula ao contrato, mas
poderá se desvincular unilateralmente a qualquer momento. Tal poder justifica-se pela
natureza desses direitos, que se referindo a aspectos da dignidade da pessoa humana, o seu
titular jamais poderá perder seu controle definitivo.

PAIS DE VASCONCELOS entende que este contrato seria vinculante apenas para uma das
partes, na medida em que o titular do direito de personalidade conserva o direito a

405
Cabelo de Sousa entende que a possibilidade de revogação da limitação voluntária apenas poderá ser exercida
quando estivermos diante de autênticas limitações ao exercício dos direitos de personalidade, que apenas
ocorreria quando o conjunto houver uma diminuição dos bens de personalidade, sem que esta seja recompensada
com o aumento ou desenvolvimento de outro bem da mesma personalidade. Rabindranath V. A. Capelo de
Sousa, O Direito Geral de Personalidade, op. cit., pág. 410.

112
revogabilidade e a outra não406. Para o professor, “os negócios de personalidade têm uma
eficácia mais legitimadora e reguladora do que vinculativa”407.

No right of publicity norte-americano não há esta possibilidade de revogação a qualquer


momento e nem sequer para alterar as condições de uso do direito de personalidade, o que
implica numa verdadeira transmissão do direito408. Ora, não consideramos adequada esta
solução, uma vez que para nós apenas é admissível uma autorização ao uso, mas nunca uma
transmissão.

Como demonstramos acima, OLIVEIRA ASCENSÃO409, em construção que acreditamos ser


similar ao right of publicity, entende que determinados direitos da personalidade, com forte
conteúdo patrimonial, acabam deixando de ser direitos de personalidade e passam a ser
direitos meramente pessoais. Assim, estes direitos seriam livremente disponíveis, ou seja,
transferidos para a esfera da outra parte contratante. Portanto, adotado este entendimento estes
contratos não poderiam ser revogados a qualquer tempo.

Por sua vez, CAPELO DE SOUSA e P. MOTA PINTO entendem que nas hipóteses de
“consentimento vinculante” não seria possível a revogabilidade prevista no artigo 81.º, n.º 2,
do Código Civil português.410 411

David FESTAS considera que a revogabilidade se dirige apenas ao conteúdo pessoal do


direito de personalidade, mas que como o aspecto patrimonial e pessoal são incindíveis,
deverá ser avaliado o “fundamento concreto do exercício do poder de revogar”, que deverá ser
de natureza pessoal412.

406
Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, op. cit., pág. 54.
407
Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, op. cit., pág. 166.
408
David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit., págs.228 e
seguintes.
409
José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, op. cit., págs. 94 e 95.
410
Rabindranath V. A. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, op. cit., pág. 350, nota 873; e Paulo
Mota Pinto, A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, op. cit., págs. 552
e 553.
411
Adotando uma posição crítica sobre a tripartição do consentimento (tolerante, autorizante e vinculante), Pedro
Pais de Vasconcelos entende que a defendida impossibilidade de revogação na hipótese de consentimento seria
ilícita. “Trata-se de uma tendência reprovável para a comercialização da personalidade ou de alguns dos seus
bens. Nesta matéria, importa ser claro: a dignidade humana e os bens de personalidade não são
comercializáveis”. Também nos posicionamos neste sentido com relação. Direito de Personalidade, op. cit.,
págs. 153-155.
412
David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit., págs. 376 e
seguintes.

113
Consideramos a construção de FESTAS muito interessante, mas não conseguimos visualizar
como seria solucionada a hipótese, por exemplo, de um jogador de futebol que celebre um
contrato com uma empresa, a fim de vincular a sua imagem e nome à marca desta, mediante o
pagamento de determinada quantia. Tempos depois, este jogador recebe uma proposta de
valor superior para vincular a sua imagem e nome a outra empresa. Temos aqui como
fundamento à revogação aspecto unicamente patrimonial, mas como seria possível obrigar a
este jogador a ter sua imagem vinculada a antiga empresa?

Note-se que não consideramos possível a execução forçada deste contrato de modo a compelir
o titular do direito a cumprir a obrigação contratual, em razão, do objeto em causa, mas o
contrário é admissível413.

Por outro lado, questão que também suscita alguma polêmica é a possibilidade de revogação
da limitação voluntária, quando este integra a atividade profissional do seu titular, como é o
caso dos jogadores de futebol, artistas, cantores e modelos.

Nestas hipóteses há quem defenda a formulação de restrições à revogabilidade da limitação


voluntária ou que esta possibilidade fique subordinada aos casos em que a especificidade e o
significado do direito em questão o exijam, ou, ainda, nos casos de alteração das
circunstâncias414.

Não concordamos com esta solução, uma vez que os direitos de personalidade são
intransmissíveis, ou seja, o seu titular não pode abdicar deste, mas se limita a permitir o seu
uso. Assim a conservação da possibilidade de revogação pelo titular constitui uma condição a
sua exploração econômica415.

Cumpre deixar claro que não estamos aqui defendendo uma conduta ofensiva à ordem
pública, à boa-fé objetiva e à função social do contrato, mas não vemos como conceber uma
transmissibilidade de direitos de personalidade, mesmo com relação aos aspectos

413
Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, op. cit., pág. 168.
414
Paulo Mota Pinto. A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, In:
Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, op. cit., pág. 557.
415
Neste sentido, Paulo Mota Pinto. A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida
Privada, In: Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, op. cit., pág. 558.

114
patrimoniais. Assim, consideramos que os contratos de direitos de personalidade são sempre
revogáveis, mediante o pagamento de indenização.

A previsão de indenização das legitimas expectativas contida no artigo 81.º, n.º 2, do Código
Civil português também deve ser assegurada perante o Direito brasileiro, uma vez que se trata
de negócio jurídico que gera uma expectativa de cumprimento a outra parte. Portanto, a
revogação do consentimento representa uma verdadeira ruptura do contrato.

Entende-se por indenização das legítimas expectativas os danos emergentes e os lucros


cessantes416. Note-se que o regime da livre revogação é resultado da intransmissibilidade
desse direito, tendo em vista a sua relevância, dessa forma, a fixação da indenização deve ser
feita com muito cuidado, pois um valor elevado pode acabar por impedir que o titular do
direito exerça o seu direito de revogação417.

Cabe registrar aqui que embora consideramos admissível a estipulação no contrato de uma
previsão de indenização cabível na hipótese de revogação da limitação voluntária, não
admitimos a cláusula penal compulsória, por considerar que esta seria incompatível com a
natureza do objeto do contrato418.

Por fim, também consideramos possível a aplicação das regras relativas ao abuso do direito,
previstas nos artigos 187 e 334.º dos Códigos Civis brasileiro e português, respectivamente.
Assim, comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Pelo exposto, podemos perceber a importância da indenização, que deverá sempre observar a
razoabilidade de forma a (i) não consistir em impedimento a revogação unilateral, que poderia
acarretar na transmissibilidade do direito, e (ii) garantir hipóteses de abuso de direitos ou
ofensas à boa-fé objetiva e à função social do contrato.

416
David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit., pág. 385.
417
Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, op. cit., pág. 168.
418
António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, op. cit., págs. 115 e 116.

115
5.3. OBSERVÂNCIA DA ORDEM PÚBLICA

Como visto, requisito essencial à celebração dos contratos em geral é o respeito à ordem
pública e aos bons costumes, mas com relação aos direitos de personalidade entendemos que
estes merecem uma atenção ainda mais especial, em razão dos interesses envolvidos419.

Tratando da ordem pública, MOTA PINTO afirma que esta não poderia ser utilizada como
mecanismo de “proteção do homem contra si mesmo”, uma vez que embora reconheça a
dignidade da pessoa como valor a inspirar toda a ordem jurídica, entende que o indivíduo no
exercício da autodeterminação seria livre para estabelecer os limites da sua personalidade,
desde que não impliquem lesões graves ou uma destruição irreversível destes direitos420.

Assim, o autor adota uma concepção no sentido de que a pessoa teria “a liberdade de se
despojar, de forma praticamente total, do controlo sobre a captação e divulgação de
informação sobre a vida privada durante um período de tempo mais ou menos lato (embora
sempre de forma revogável)” 421.

Como exemplo dessa possibilidade o autor cita o conhecido concurso televisivo, Big Brother,
exibido no Brasil e em diversos países europeus. Neste programa, um grupo de pessoas passa
meses trancado dentro de uma casa, sendo monitorado por câmeras 24 horas por dia. Como
visto, estas pessoas dispõem da reserva sobre a sua intimidade em grau máximo, uma vez que
os aspectos mais íntimos de sua personalidade são exibidos para o público em geral, 24 horas
por dia. 422

Na Alemanha o mencionado programa televisivo foi considerado contrário à dignidade da


pessoa humana e a exposição pública dos participantes, por uma hora, acabou sendo excluída.
No entanto, o autor discorda desse entendimento, na medida em que o considera

419
Sobre ordem pública e bons costumes, destacando que “a cláusula geral da ordem pública deve ser
interpretada de modo mais exigente em sede de limitações voluntárias ao exercício de direitos de personalidade
do que aquela a que deve estar sujeita relativamente aos negócios jurídicos patrimoniais.” David Fernandes de
Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit., págs. 318 e seguintes.
420
Paulo Mota Pinto. A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, In:
Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, op. cit., págs. 547 e seguintes.
421
Paulo Mota Pinto. A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, In:
Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, op. cit., pág. 549.
422
Também abordando o tema: J.J. Gomes Canotilho e Jónatas E.M. Machado, “Reality Shows” e Liberdade de
Programação, Coimbra Editora, 2003, págs. 67 e seguintes.

116
“paternalista” e esclarece que este apenas violaria os direitos de personalidade, caso a forma
como expostos os fatos possam ser considerados ofensivos à imagem moral dos participantes.
Acrescenta, ainda, que se trata “de um problema de interpretação do consentimento e da
comparação do seu sentido com a captação e a divulgação efectuadas”423.

A nosso ver, a intervenção do Estado realmente deve ocorrer apenas em hipóteses extremas,
em que estejam ocorrendo graves ofensas à moral e aos bons costumes. Como exemplo
podemos citar o caso do “arremesso de anões” ocorrido na França. Em algumas discotecas da
região metropolitana de Paris e arredores, uma empresa de entretenimentos tinha como
atração, a prática nada usual, conhecida como "arremesso de anão" (lancer de nain), de lançar
pela platéia um indivíduo de pequena estatura (um anão) de um ponto a outro do
estabelecimento, tal como se fosse um projétil.

Tomando conhecimento do caso, o prefeito de Morsang-sur-Orge interditou a prática de tal


atração, com fundamento no artigo 3º da Convenção Européia de Direitos Humanos e no
artigo 131 do Código dos Municípios. Anulada a decisão pelo Tribunal Administrativo de
Versailles, o caso chegou ao Conselho de Estado, que conclui no sentido de que o
consentimento do lesado não é suficiente para extrair a ilicitude de ofensas à sua vida,
integridade física e moral, pois tais bens são indisponíveis.

Como fundamento o Conselho declarou que o respeito à dignidade da pessoa humana é um


dos componentes da noção de ordem pública, cabendo à autoridade administrativa, no uso do
poder de polícia, interditar espetáculo atentatório a tão importante valor.

Da deliberação, algumas constatações ainda podem ser destacadas: (i) a dignidade da pessoa
humana representa uma limitação à liberdade individual, à liberdade de contratar, tutelando,
assim, o indivíduo contra si próprio; além disso (ii) baseado na noção da Corte Européia dos
Direitos Humanos explicitada no caso Tyer, o Conselho entende como tratamento degradante
a atitude "que humilha grosseiramente o indivíduo diante de outrem ou o leva a agir contra a
sua vontade ou sua consciência".424

423
Paulo Mota Pinto. A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, In:
Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, op. cit., págs. 549 e 550, nota 48.
424
Edilson Pereira Nobre Júnior, O Direito Brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana, In:
http://www.infojus.com.br/area3/edilsonnobre.htm, em 09/05/2007, às 18:10.

117
Assim, temos que embora a intervenção estatal na esfera das relações privadas e no âmbito de
autodeterminação da pessoa não possa violar o direito ao livre desenvolvimento da
personalidade, o Estado tem o dever de impedir que ocorram situações que impliquem lesões
graves, destruição irreversível de direitos da pessoa ou situações que ofendam a ordem
pública e os bons costumes. Isto porque, a pessoa não possui apenas direitos, mas também
deveres perante terceiros e para com ela própria.

5.4. CONTRATOS DE DIREITOS DE PERSONALIDADE E TERCEIROS

Decorrente da autonomia da vontade, os artigos 406.º, n.º 2, do Código Civil português e 422
da lei civil brasileira dispõem que, em princípio o contrato apenas produz efeitos inter partes,
só atingindo terceiros em hipóteses especiais.

Os efeitos dos contratos perante terceiros há muito vem sendo abordado na doutrina. É assim
que VAZ SERRA425, em obra publicada em 1958, já analisava esta matéria. Para o autor, em
regra, os contratos apenas produzem efeitos entre as partes, mas poderá atingir terceiros,
quando a lei o permitir.

Além disso, VAZ SERRA faz uma distinção entre efeitos diretos dos contratos, que apenas
atingem as partes, e efeitos reflexos, como sendo aqueles que se projetam indiretamente para
além da esfera jurídica das partes. E, dentre outros aspectos analisados, afirma que os
contratos produzem efeitos erga omnes, na medida em que todos devem reconhecer os seus
efeitos entre as partes, podendo até chegar a ser prejudicados por eles, caso não tenham direito
preferente.

Os contratos de direitos de personalidade, por sua vez, além de seguirem esta regra geral,
envolvem uma autorização concedida intuitus personae, que inicialmente se dirige apenas ao
destinatário da limitação, não havendo que se falar na hipótese de transferência do direito ou
das faculdades jurídicas que o integram. Mas é certo que estas questões poderão vir definidas
no contrato, ou seja, a extensão e transferência da autorização a terceiros426.

425
Adriano Paes da Silva Vaz Serra. Efeitos dos Contratos, op.cit., págs. 6 e seguintes.
426
Paulo Mota Pinto. A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, In:
Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, op. cit., pág. 554.

118
Por outro lado, decorrente dessa natureza pessoal, na hipótese de não existir previsão em
contrário, entendemos que caso a execução do contrato dependa da atividade do titular do
direito de personalidade em questão, será este quem deverá executá-lo e não terceiro427.

Outra questão que merece análise é a conservação pelo titular do direito do poder de autorizar
a limitação voluntária em benefício de outrem, mesmo diante de uma cláusula de
exclusividade. Entendemos que esta faculdade decorre do poder de revogação previsto no
artigo 81.º, n.º 2, do Código Civil português, que também tem como fundamento a
intransmissibilidade do direito.

Como exemplo, podemos citar o famoso caso ocorrido no Brasil, em que Jessé Gomes da
Silva, conhecido sambista, cujo nome artístico é Zeca Pagodinho, foi contratado pela Primo
Schincariol Indústria de Cervejas e Refrigerantes S.A. para figurar em comercial publicitário
de divulgação da cerveja produzida e comercializada por aquela empresa, tendo sido
estabelecida no contrato uma cláusula de exclusividade que vedava ao músico aparecer em
público segurando/bebendo cerveja produzida por outra empresa, pelo prazo de 12 meses.

No entanto, Zeca Pagodinho é conhecido como apreciador e grande consumidor de uma


cerveja concorrente, a Brahma, produzida pela Companhia de Bebidas das Américas -
AMBEV. Diante do contrato celebrado com a Schincariol, Zeca se via impedido de consumir
a sua cerveja preferida em locais públicos. Assim, após algumas discussões com a Schincariol
e diante da nova proposta feita pela AMBEV para figurar em campanha publicitária desta
cervejaria, aceitou a proposta e conseqüentemente violou a cláusula de exclusividade prevista
no contrato celebrado com a Schincariol.

A questão foi levada ao Tribunal de Justiça de São Paulo e envolve diversas ações 428, que não
serão examinadas por nós, porque o Tribunal paulista adotou uma perspectiva exclusivamente
contratual, sem ter em vista as peculiaridades dos direitos envolvidos. Na verdade, o mérito
deste processo sequer será examinado, uma vez que as partes celebraram acordo, que já se
encontra homologado pelo juízo.

427
David Fernandes de Oliveira Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem, op. cit., pág. 387.
428
Informações processuais obtidas no site http://www.tj.sp.gov.br/consulta/Processos.aspx. Processos n.ºs
583.00.2004.031717-8, 583.00.2004.027488-9, 583.00.2004.027488-0 e 583.00.2004.046251-7, em curso na 36ª
Vara Cível da Comarca da Capital do Estado de São Paulo, Fórum Central Cível João Mendes Júnior.

119
Portanto, iremos nos limitar a analisar o caso, sob a perspectiva que consideramos adequada.
Na hipótese, está em causa um contrato de direitos de personalidade, em que o mencionado
músico autoriza a vinculação de sua imagem, nome e voz à marca de cerveja Schincariol, com
exclusividade pelo prazo de 12 meses.

Como estão em causa um bens de personalidade e estes são necessariamente intransmissíveis,


o titular do direito, Zeca Pagodinho, a nosso ver, conserva o poder de autorizar a limitação
voluntária em benefício de outrem, mesmo em desrespeito à cláusula contratual expressa em
sentido contrário.

Note-se, no entanto, que não estamos aqui procurando justificar a conduta do músico, que no
caso sob análise violou as legitimas expectativas da Schincariol, bem como, a boa-fé objetiva
e a função social do contrato. A nosso ver, Zeca poderia revogar o contrato a qualquer
momento, mas ao celebrar contrato com a cervejaria concorrente age de forma contrária à
moral e aos bons costumes.

Mas caso o músico não tivesse celebrado novo contrato com a AMBEV, ainda que
considerássemos que a revogabilidade unilateral apenas seria possível com relação aos
aspectos pessoais, seria de admitir. Isto porque, na análise do caso percebemos que seria
exatamente o aspecto pessoal dos direitos de personalidade que estariam em causa, a
autodeterminação do músico, ou seja, a liberdade de consumir a bebida de determinada marca
que considera preferível e de vincular a sua imagem, voz e nome a quem lhe interessar.

Dessa forma, houve aqui o exercício do direito à revogabilidade unilateral, aplicando-se ao


caso uma indenização pela frustração das legítimas expectativas, bem como, pela violação da
boa-fé objetiva e da função social do contrato.

Por fim, cumpre verificarmos a eficácia perante terceiros da situação decorrente da limitação
voluntária, ou seja, se o titular do direito de personalidade poderá conferir a outra pessoa
poderes de aproveitamento econômico dos seus direitos.

Como se sabe, grande parte da renda dos clubes decorre do patrocínio desportivo, que é uma
forma especial de publicidade. O patrocinador paga determinada quantia aos clubes para ter a

120
sua marca vinculada a eles. Mas como os grandes astros das equipes são os atletas
profissionais, surge uma problemática no que se refere ao uso da imagem dos jogadores
individualmente pelo patrocinador. Ora, como o patrocínio é concedido ao clube ou a equipe
de determinada categoria esportiva, o contrato é celebrado entre estas partes e não com os
jogadores individualmente.

A Lei n.º 28/98, de 26.06, que disciplina o contrato de trabalho do praticante desportivo,
prevê no artigo 10 que o atleta profissional possui ampla liberdade na utilização de sua
imagem relacionada à pratica desportiva, mas destaca que o uso de imagem do coletivo de
praticantes poderá ser objeto de regulamentação específica429.

Na Itália, as equipes da Associação Nacional de Futebol e os órgãos representativos dos


jogadores profissionais elaboraram uma Convenção, que permite a utilização dos direitos de
imagem, nome e voz pelos atletas, mediante retornos financeiros, desde que não associados a
símbolos das equipes integrantes da Liga. Além disso, o patrocinador da equipe de futebol
apenas poderá utilizar a imagem dos jogadores para fins publicitários, caso os mesmos
tenham concedido autorização expressa à equipe de futebol para tanto430.

No Brasil, em geral, os atletas profissionais assinam simultaneamente o contrato de trabalho


desportivo e um contrato de autorização de uso da imagem, sendo que é neste que consta a
previsão do valor real da remuneração a ser paga pelos clubes. Isto ocorre em razão de
aspectos fiscais da legislação brasileira, pois como se trata de um contrato de natureza civil
não são devidos os encargos trabalhistas e os tributos são mais baixos. No entanto, cabe
destacar que o prazo destes contratos está limitado a um ano, nos termos do artigo 28, § 7º da
Lei 9.615, de 15.05.2003.431

429
Artigo 10.° (Direito de imagem)
1 - Todo o praticante desportivo profissional tem direito a utilizar a sua imagem pública ligada à prática
desportiva e a opor-se a que outrem a use ilicitamente para exploração comercial ou para outros fins económicos.
2 - Fica ressalvado o direito de uso de imagem do colectivo dos praticantes, o qual poderá ser objecto de
regulamentação em sede de contratação colectiva.
430
Alexandre Libório Dias Pereira, Do Patrocínio Desportivo («Sponsoring»), In: Separata de Desporto &
Direito, Revista Jurídica do Desporto, Ano II, n. 6, maio-agosto 2005, Coimbra Editora, pág. 363.
431
Artigo 28. A atividade do atleta profissional, de todas as modalidades desportivas, é caracterizada por
remuneração pactuada em contrato formal de trabalho firmado com entidade de prática desportiva, pessoa
jurídica de direito privado, que deverá conter, obrigatoriamente, cláusula penal para as hipóteses de
descumprimento, rompimento ou rescisão unilateral.
.....................................................................................................................................................................................
§ 7o É vedada a outorga de poderes mediante instrumento procuratório público ou particular relacionados a
vínculo desportivo e uso de imagem de atletas profissionais em prazo superior a um ano.

121
Por sua vez, o artigo 42 da mesma lei estabelece que cabe às entidades desportivas celebrar
contratos sobre a transmissão ou retransmissão de eventos desportivos, mas vinte por cento
deste valor necessariamente deverá ser dividido entre os atletas participantes do evento, nos
termos do § 1º do mencionado artigo.432

A nosso ver, o clube apenas poderá celebrar contrato com terceiros autorizando o uso
individual da imagem dos jogadores, caso exista uma previsão expressa neste sentido. Para
nós, o contrato celebrado entre o atleta e o clube se refere a uma autorização ao clube para uso
de sua imagem e não para que este ceda a terceiros este direito.

Aplica-se também à presente hipótese o princípio da intransmissibilidade do direito de


personalidade. O titular do direito apenas autoriza o uso deste pela outra parte nos limites
expressamente previstos no contrato. Além disso, a oponibilidade perante terceiros e a
legitimidade ativa para se buscar os mecanismos processuais a tutela será uma faculdade que
permanece na esfera do titular.

Este foi o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) português no
julgamento da ação proposta por Panini Portugal Editores Lda. contra Mabilgráfica-estudos
gráficos Lda433.

Estava em causa a autorização concedida à Panini pela Federação Portuguesa de Futebol para
negociar a comercialização de uma coleção de cromos da seleção nacional de futebol e dos
retratos dos respectivos jogadores com o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol,
que, por sua vez, possui a autorização dos jogadores profissionais de futebol filiados para, em
seu nome, negociar contratos relacionados com a exploração comercial da sua imagem.

432
Art. 42 - Às entidades de prática desportiva pertence o direito de negociar, autorizar e proibir a fixação, a
transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculo ou eventos desportivos de que participem.
§ 1º - Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço total da autorização, como mínimo, será
distribuído, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes, do espetáculo ou evento.
§ 2º - O disposto neste artigo não se aplica a flagrantes de espetáculo ou evento desportivo para fins,
exclusivamente, jornalísticos ou educativos, cuja duração, no conjunto, não exceda de três por cento do total do
tempo previsto para o espetáculo.
433
Acórdão do STJ, de 08.11.2001, QUIRINO SOARES, CJ/Supremo IX (2001) 3, págs. 113-115.

122
Concedida a autorização ao uso exclusivo do direito de imagem para aquela finalidade pelo
Sindicato à Panini, a empresa Mabilgráfica, sem autorização da Panini, comercializou os
mencionados cromos com a imagem da seleção de futebol e dos respectivos jogadores.

Diante destes fatos, o STJ português concluiu pela improcedência da ação, por ausência de
legitimidade substantiva da Panini, bem como, pela nulidade dos contratos celebrados entre
os jogadores de futebol e o Sindicato e entre a Panini e o Sindicato. No entender do STJ, o
direito à imagem seria intransmissível, assim, o que os jogadores de futebol cedem ao
sindicato é apenas o direito à exploração da sua imagem nos limites contratuais fixados, que,
por sua vez, poderão celebrar contratos com terceiros nos limites do direito que lhe foi
conferido.

Registre-se que estamos de acordo com a posição do STJ no que se refere à “legitimidade
substantiva” para ingressar com a ação de uso indevido da imagem, pois esta faculdade será
sempre exclusiva do titular do direito, mas pelas mesmas razões expostas quando da análise
do caso Velli, no item 5.1. supra, entendemos que não há que se falar em nulidade dos
contratos, pois consideramos perfeitamente possível a autorização de exploração econômica
dos direitos de personalidade. Para nós não se trata de transferência do direito de
personalidade, o que seria inadmissível, mas de mera autorização para exploração econômica.

Hipótese que também envolvia a reprodução de fotografias de jogadores de futebol para


compor álbum de figurinhas foi submetida ao Superior Tribunal de Justiça brasileiro. No
entanto, neste caso, discutia-se os limites do direito à divulgação da imagem do jogador.
Assim como em Portugal, no Brasil é possível a divulgação da imagem do atleta quando da
transmissão ou retransmissão do espetáculo esportivo. Trata-se do direito de arena, mas este
estará limitado ao uso da imagem do jogador durante o evento esportivo, conforme
esclarecido pelo Tribunal brasileiro434.

Pelo exposto, temos que os contratos de direitos de personalidade apenas produzem efeitos
inter partes, sendo que em razão do seu caráter personalíssimo, em princípio, (i) impõem que

434
Recurso Especial n.º 46.420, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma do Superior Tribunal de
Justiça, publicado no Diário da Justiça de 05.12.1994. Decisão acessada em 25.06.2009, na página eletrônica:
http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Justica/detalhe.asp?numreg=199400093551&pv=000000000000.

123
a obrigação seja prestada pelo titular do direito; e (ii) apenas se dirigem às partes do contrato,
não podendo serem transferidos a terceiros.

Por sua vez, em decorrência da intransmissibilidade do direito em causa, temos (i) a


possibilidade de limitação voluntária em favor de terceiro, mesmo em violação a uma cláusula
de exclusividade; e (ii) a inoponibilidade erga omnes para o beneficiário da limitação, pois
ocorre aqui mera autorização ao uso do direito, mas não uma transferência.

124
6. ARBITRAGEM

6.1. ORIGEM HISTÓRICA DO INSTITUTO DA ARBITRAGEM

Como demonstrado na seção 2.2., verificamos um crescimento da busca pela solução de


litígios na via arbitral. Mas a arbitragem está longe de ser um mecanismo recente de solução
de controvérsias. Há quem afirme que o organismo do compromisso arbitral já podia ser
encontrado na Lei das Doze Tábuas435.

Por sua vez, CELSO MELLO assinala que “o direito arbitral tem origem consuetudinária”436,
podendo ser encontrado desde 3100 a.C., no tratado entre Eanatum e os homens de Umma.
Antes ainda do advento do Direito Romano, encontramos o registro da utilização da
arbitragem em Platão, ao afirmar que o Tribunal mais importante seria aquele que as partes
criaram e elegeram em comum acordo.

Mas é na Antiguidade Clássica que a arbitragem tem seu verdadeiro berço, tendo se
desenvolvido nas cidades-Estado gregas com o propósito de solucionar litígios na área de
Direito Internacional Privado, ou seja, tinha como objeto direitos e interesses de cidadãos
estrangeiros437.

Na Grécia antiga, existia a arbitragem obrigatória e a compromissória. Nesta, os árbitros e o


objeto do litígio vinham previstos no compromisso arbitral. Mas o processo arbitral ainda não
tinha como característica a confidencialidade, pois a sentença era gravada em placas de metal
ou de mármore e afixada nos principais templos das cidades para lhe dar publicidade. 438

Com o fortalecimento do Estado, e conseqüentemente a sua maior interferência na esfera de


liberdade dos particulares, passou-se ao Poder Público o ônus de nomear o árbitro. Logo, a
arbitragem deixou de ser facultativa, implantando-se o sistema de arbitragem obrigatória. E,

435
J.E.Carreira Alvim, Direito Arbitral, 3ª Edição, Rio de Janeiro, Editora Forense, 2007, págs. 3 e 4.
436
Celso D. De Albuquerque Mello, Curso de Direito Internacional Público, 14ª Edição, Rio de Janeiro,
Renovar, 2002, vol. II, pág. 1400.
437
Celso D. De Albuquerque Mello, Curso de Direito Internacional Público, op. cit., pág. 1400.
438
Celso D. De Albuquerque Mello, Curso de Direito Internacional Público, op. cit., pág. 1400.

125
com o crescimento da figura do Estado dentro das sociedades, aos poucos, o poder de ditar
decisões resolutivas dos litígios começou a ser transferido do árbitro para autoridades estatais.

Na Idade Média, em razão dos esforços da Igreja, a arbitragem foi muito utilizada tanto no
âmbito do direito internacional, como no interior da Igreja, da sociedade feudal e entre os
núcleos urbanos existentes neste período, as comunas439. Em geral, cabia aos sacerdotes e aos
anciãos a tarefa de “árbitros”, porque em princípio teriam maior capacidade de produzir
decisões justas e acertadas.

A partir da dinastia dos Tudors, nos séculos XV e XVI, a justiça arbitral ganhou destaque na
Inglaterra, especialmente nas questões de comércio marítimo. Todavia, apesar dos esforços, a
arbitragem permaneceu ficando a margem da justiça estatal.440

Nos séculos XVI e XVII, durante o Estado absolutista, tentou-se revitalizar o instituto da
arbitragem na França. Chegou-se a prever a arbitragem compulsória para os litígios de índole
mercantil, regra esta que foi adotada pelo legislador brasileiro, em 1850.

Atualmente, sob a influência da Teoria da Separação dos Poderes, desenvolvida por


Montesquieu, temos o Estado dividido em legislativo, executivo e judiciário. O legislativo é o
órgão estatal responsável pela criação do conjunto de normas gerais e abstratas, o direito
objetivo; ao executivo cabe a satisfação das necessidades gerais ou coletivas de acordo com a
ordem jurídica; e, por fim, o judiciário é o órgão estatal responsável pela solução dos litígios.
E paralelamente a este está o juízo arbitral, que diferente do judiciário é instituído pela
vontade das partes. Mas a sua instituição só é possível, em razão do consentimento do Estado.

Em Portugal441, a arbitragem já era objeto dos títulos 16 e 33-8 das Ordenações Filipinas no
século XVII. Mais tarde esteve presente no Decreto-lei, de 21 de maio de 1841 e no primeiro
Código de Processo Civil, em 1876. No século XX, o procedimento arbitral foi objeto de
regulamentação nos Códigos de Processo Civil de 1939 e 1961, no Decreto-lei n.º 243/84 e
finalmente na Lei n.º 31/86, de 29 de agosto de 1986 (Lei de Arbitragem Voluntária – LAV),

439
Celso D. De Albuquerque Mello, Curso de Direito Internacional Público, op. cit., pág. 1400 e 1401.
440
J. M. Othon Sidou, Processo Civil Comparado, Rio de Janeiro: Forense, 1996. pág. 275-276
441
Dário Moura Vicente, L‟Évolution Recente du Droit de L‟Arbitrage au Portugal, In: Direito Internacional
Privado – Ensaios, vol. 1, Lisboa: 2002, pág. 327 e seguintes.

126
que permanece em vigor a regular o instituto. Além disso, os Tribunais Arbitrais também
encontram previsão na Constituição portuguesa, no artigo 211, n.º 2.

No Brasil442, a arbitragem esteve presente na Constituição Imperial de 1824, no Código


Comercial de 1850, no Código Civil de 1916 e nos Códigos de Processo Civil de 1939 e
1973. Salvo a previsão contida na Constituição de 1934, que teve uma curtíssima duração, foi
apenas com a Constituição de 1988 que a arbitragem voltou a ter o status constitucional de
que dispunha na época da vigência da Constituição do Império. Todavia, a menção é singela,
e restringe-se à arbitragem trabalhista para composição de dissídios coletivos, no artigo 114,
§§1º e 2º.

Mas seria com a entrada em vigor da Lei 9.307, em 23 de setembro de 1996 (Lei de
Arbitragem Brasileira - LAB), que o Brasil finalmente passou a ter uma legislação
contemporânea em matéria arbitral, de acordo com todas as tendências de sua época que
regulavam o instituto. Note-se que a Lei foi fruto de um amplo estudo feito por instituições e
juristas nacionais com grande conhecimento sobre o tema. Através dela, a sociedade pôde
finalmente beneficiar-se de uma medida alternativa para compor os conflitos que porventura
possam surgir.

Embora a arbitragem estivesse presente em grande número de referências normativas, nunca


houve uma real preocupação em desenvolver técnicas que possibilitassem a utilidade efetiva
do mecanismo. No Brasil, até 1996, as barreiras enfrentadas pelo indivíduo que tivesse
interesse em se utilizar da arbitragem eram tantas que o processo judicial, mesmo lento,
burocrático e dispendioso, mostrava-se como o meio mais adequado para a composição de
conflitos443.

A arbitragem ainda era muito dependente do Judiciário brasileiro. E o principal motivo para
isto era a necessidade de prévia homologação do laudo arbitral pela jurisdição estatal. Apenas
após ser submetido ao crivo do judiciário a decisão proferida perante o Tribunal arbitral
estava apta a ser executada. Além disso, não se prestigiava a cláusula compromissória, de

442
Pedro A. Batista Martins, Arbitragem através dos Tempos. Obstáculos e Preconceitos à sua Implementação
no Brasil, In: A Arbitragem na Era da Globalização. Coordenador José Maria Rossani Garcez, Rio de Janeiro:
Forense, 1999, págs. 42 e seguintes.
443
Para um maior aprofundamento sobre o tema: Pedro A. Batista Martins, Arbitragem através dos Tempos.
Obstáculos e Preconceitos à sua Implementação no Brasil, op. cit., págs. 35 e seguintes.

127
forma que a mesma não a afastava a Justiça estatal por si só. Para tanto, era necessário a
assinatura de posterior compromisso.

Mesmo que tivesse sido ajustada pelas partes uma cláusula compromissória, não havia
qualquer possibilidade de compelir a parte que se negasse a cumpri-la a assinar o
compromisso ou a se submeter à arbitragem. Portanto, a disposição contratual que previsse a
submissão de controvérsia futura à arbitragem era praticamente ineficaz, sendo garantida
apenas eventual indenização por perdas e danos444. Como dificilmente as partes aceitam
negociar um compromisso arbitral, quando o conflito já está instaurado, a realidade apontava
para a total inoperabilidade do instituto.

Além destes fatores, BATISTA MARTINS enumera outros motivos para a resistência ao
juízo arbitral, como a insegurança de advogados em atuar em uma realidade diferente do
processo judicial, e a renitência do próprio Judiciário em defender um sistema que é
apresentado como solução para sua própria incapacidade445. Tudo indicava que havia um
certo receio de que o instrumento pudesse ser utilizado para retirar da esfera do Judiciário
situações que perpetuassem injustiças ou desequilíbrios; ou que fosse utilizado por pessoas de
má-fé, com a eleição de árbitros corruptos.

Desse modo, apesar das diversas legislações ao redor do mundo que já regulavam a matéria,
até 1996 o Brasil permanecia ignorando a necessidade de se instituir um mecanismo de
composição célere, eficiente e sigilosa dos litígios. Em países como Portugal, França,
Espanha, Estados Unidos e Itália, a arbitragem já era largamente adotada. Além disso,
inúmeras convenções internacionais sobre o tema já eram aplicadas nas relações envolvendo
comércio internacional, ao passo que o Brasil, mesmo tendo-as ratificado ainda não as
aplicava446.

444
Joel Dias Figueira Junior, Manual da Arbitragem. São Paulo: Editora RT, 1997, pág. 44.
445
Pedro A. Batista Martins, Aspectos fundamentais da lei de arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 31.
446
Apenas em 2002, com a promulgação do Decreto nº 4.311/02, a Convenção Internacional sobre
Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras passou a integrar o ordenamento jurídico
brasileiro. Enquanto Portugal já havia aderito a esta desde 1995. Também passou a compor as legislações
portuguesa e brasileira a Convenção Interamericana de Arbitragem Comercial Internacional (Panamá, 1975), em
1995, no Brasil, e em 2002, em Portugal. Dário Moura Vicente, A Manifestação do Consentimento na
Convenção de Arbitragem, In: Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. 43,
n.º 2, Lisboa: Coimbra Editora, 2002, págs. 987 e 988.

128
6.2. NOÇÕES GERAIS

De fato, a arbitragem constitui atualmente uma alternativa às partes na resolução dos litígios,
sendo uma exceção ao monopólio estatal da função jurisdicional447. Esta opção está no âmbito
da autonomia das partes e será exercida através de um acordo, que é a convenção de
arbitragem, e culminará com uma decisão final com eficácia jurisdicional.

No entanto, a função jurisdicional do Estado não é completamente substituída pela autonomia


privada, pois ainda lhe fica reservado o poder de regular e fiscalizar tanto o processo como a
decisão arbitral, de modo a assegurar a segurança jurídica e o respeito aos bons costumes,
evitando assim que se cheguem a situações arbitrárias.

É nesse sentido que, nas legislações nacionais pesquisadas, verificamos que apesar de ser
conferida grande liberdade às partes no processo arbitral, foram estabelecidas garantias
mínimas, ou seja, princípios que deverão ser respeitados no curso da arbitragem448, como
também, algumas regras processuais a serem observadas, como o atendimento dos requisitos
formais da sentença arbitral, prazos recursais, dentre outras.

Estes preceitos fundamentais e regras processuais são assegurados pelo Poder Judiciário
através da possibilidade de propositura da ação anulatória prevista nas legislações brasileira e
portuguesa449, como também da interposição de recursos, no ordenamento jurídico
português450.

Uma importante novidade introduzida pela LAB, e que reforça a idéia de autonomia da
vontade, diz respeito à cláusula compromissória. Agora, tanto o compromisso arbitral quanto
a cláusula compromissória são aptas a afastar a jurisdição estatal. Dessa forma, se um contrato

447
Baseado em dados estatísticos, Lima Pinheiro considera que a arbitragem transnacional constitui o modo
normal de resolução de diferendos no comércio internacional. Luís de Lima Pinheiro, Arbitragem
Transnacional: a Determinação do Estatuto da Arbitragem, Coimbra: Almedina, 2005, pág. 23.
448
Artigos 21, § 2º, da LAB e 16 da LAV. Sobre o tema: no direito português, Luís de Lima Pinheiro,
Arbitragem Transnacional, op. cit., pág. 145; no direito brasileiro, Carlos Alberto Carmona, Arbitragem e
Processo, op. cit., págs. 250 e 251 ; e, no direito francês, Philippe Fouchard, Emmanuel Gaillard e Berthold
Goldman, Traité de l‟arbitrage commercial international, Paris: Libraire de la Cour de cassation, 1996, pág.
666 : “La liberté absolue donnée aux parties et aux arbitres dans la détermination - ou même dans l‟invention –
de la procédure arbitrale ne peut en effet être jugée qu‟en tenant compte des contraintes qui résultent par
ailleurs du régime des recours en annulation et des procédures d‟exequatur.”
449
Artigos 32 e 33 da LAB, bem como, 27 e 28 da LAV.
450
Artigo 29 da LAV.

129
prevê que futuros conflitos serão dirimidos pela via arbitral, já estipulando quem seriam os
árbitros e o procedimento cabível, estaremos diante de uma cláusula cheia. Assim, a
arbitragem poderá ser diretamente instaurada, sem necessidade de firmar posterior
compromisso arbitral451.

E mesmo que estejamos diante de uma cláusula vazia, ou seja, aquela que não contenha
previsão acerca da quantidade de árbitros, tribunal arbitral ou procedimento a ser adotado, a
cláusula produzirá seus efeitos, já que a LAB a conferiu eficácia executiva. Ou seja, com a
nova sistemática da Lei arbitral, a parte prejudicada pode ir a juízo pleitear a lavratura do
compromisso arbitral, conforme art. 7º, caput e §§, da LAB. Com este artigo a Lei busca
tutelar as legitimas expectativas das partes, que ao pactuarem a cláusula arbitral manifestaram
o seu interesse em ver os litígios decorrentes de sua relação negocial solucionadas pela via
arbitral.

Mas este dispositivo legal, que regulava a cláusula compromissória e sua eficácia executiva,
enfrentou diversos problemas antes de ser efetivamente aceito. Tanto é assim que a questão
chegou a ser apreciada pelo Supremo Tribunal brasileiro. Em 2001, no julgamento da
Sentença Estrangeira 5206-7/Espanha, o Ministro Sepúlveda Pertence, relator do processo,
suscitou a inconstitucionalidade do artigo 7º da LAB, que possibilita a execução específica da
cláusula compromissória, em face do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal
brasileira. Mas felizmente o Supremo acabou por decidir, via controle difuso, pela
constitucionalidade dos dispositivos da Lei arbitral.

Alegava o referido ministro que a renúncia ao processo judicial através de uma cláusula
contratual que obrigasse as partes a renunciarem ao processo judicial em favor da arbitragem,
antes mesmo do surgimento do conflito, feria o princípio do Acesso à Justiça. Mas a maioria
dos ministros sustentou que o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal não veda que
as partes, pela autonomia da vontade, afastem a apreciação de causa futura pelo Judiciário. O
que se veda, na realidade, é que uma norma legal venha a afastar determinadas controvérsias

451
Este também é o sistema em vigor em portugal, na medida em que o Decreto-lei n.º 38/2003 introduziu
alterações na LAV para eliminar a necessidade acionar a Justiça Estatal, na hipótese de as partes não chegarem a
um acordo sobre a matéria que será objeto de submissão ao tribunal arbitral. Assim, a cláusula arbitral já seria
suficiente para remeter os litígios à arbitragem, não sendo necessária a celebração do compromisso arbitral. João
Morais Leitão e Dário Moura Vicente, Portugal, In: International Handbook on Commercial Arbitration, supl.
45, Janeiro de 2006.

130
da análise judicial, sendo certo que a LAB apenas autoriza que as partes assim convencionem,
sem impor este distanciamento do Judiciário.

No que se refere ao acesso à justiça, como muito bem salientado pelo ex-ministro JOSÉ
DELGADO, ao contrário de ferir esta garantia constitucional, devemos reconhecer que a
arbitragem busca valorizá-la, na medida em que consiste em um instrumento processual que,
ainda que de natureza privada, é composto por princípios que estão em harmonia com as
exigências econômico, financeira e social da atualidade452.

Vale dizer ainda que a LAB e a LAV prestigiaram significativamente o princípio da


autonomia da vontade também quando asseguraram às partes a liberdade para conformar as
regras processuais a serem seguidas no processo arbitral 453. Nesse sentido, a arbitragem
oferece aos litigantes uma maleabilidade impensável no processo civil judicial, já que se pode
optar por conformar diretamente as regras processuais ou por remeter para complexos
normativos existentes de qualquer natureza, ou seja, para um regulamento de arbitragem, uma
lei nacional (o código de processo civil454, por exemplo) ou até mesmo uma lei estrangeira.

Na prática, vemos que raramente as partes cuidam de conformar diretamente as regras


processuais, conhecida como arbitragem ad hoc, sendo muito mais usual a hipótese de
remissão a um regulamento de arbitragem. Vale ressaltar, contudo, que a mera remissão a um
regulamento de arbitragem não significa, por si só, que se optou pela arbitragem
institucionalizada, uma vez que embora as partes se submetam às regras previstas em tal
regulamento, a arbitragem poderá não ser administrada por aquele órgão455. Nesta hipótese,
portanto, também estaremos diante de uma arbitragem ad hoc456.

452
José Augusto Delgado, A Arbitragem no Brasil: evolução histórica e conceitual. Acessado em 13.06.2009, em
http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/8302, págs. 26 e 27. Também neste sentido: Cláudio Vianna de Lima,
A Arbitragem no Tempo. O Tempo na Arbitragem, In: In: A Arbitragem na Era da Globalização. Coordenador
José Maria Rossani Garcez, Rio de Janeiro: Forense, 1999, pág. 10.
453
Artigos 21 da LAB e 15 da LAV.
454
Com relação à adoção de lei processual civil, Lima Pinheiro aponta como aspecto negativo a sujeição da
arbitragem aos formalismos desta lei, já que com a arbitragem o que as partes buscam evitar é exatamente isto.
Luís de Lima Pinheiro, Arbitragem Transnacional, op. cit., pág. 143.
455
Esta distinção resulta clara no texto do artigo 15, n.º 2, da LAV.
456
Carlos Alberto Carmona, Arbitragem e Processo, : um comentário à Lei 9.307/96. 2.ª ed., São Paulo: Atlas,
2006, pág. 250.

131
Dessa forma, só há arbitragem institucionalizada457 quando determinado órgão arbitral fica
encarregado da administração do processo arbitral, que seguirá as regras previstas no
regulamento por este adotado. Todavia, entendemos que para afastar a arbitragem
institucionalizada, as partes deverão deixar claro na convenção de arbitragem que estão
adotando apenas as regras do órgão arbitral, sem que isso implique na administração do
processo por este órgão458.

Por outro lado, as partes também poderão dispor também sobre quais as regras aplicáveis para
solução do mérito litígio. Tem-se, desta forma, duas espécies de arbitragem: de direito e de
equidade. Nos termos dos artigos 11, inciso II, da LAB e 22 da LAV, a arbitragem por
eqüidade pode ser livremente estipulada, mas a autorização deve constar expressamente na
convenção ou em instrumento subscrito até a aceitação do primeiro árbitro, como dispõe a
LAV459.

Por fim, a discrição e o sigilo obtidos na via arbitral são características que seriam
impensáveis no processo estatal, onde reina o princípio da publicidade dos atos judiciais. Esta
qualidade da arbitragem mostra-se especialmente relevante quando se analisa a importância
dada atualmente ao sigilo de informação, principalmente nas questões que envolvem direitos
da pessoa humana ou comerciais, como forma de proteção da concorrência.

É certo que o magistrado pode determinar o segredo de justiça nos processos judiciais, no
entanto, em razão do número de funcionários presentes na jurisdição estatal e do volume de
processos, muitas vezes este não é assegurado de forma plena. Neste contexto, a arbitragem
oferece uma excelente alternativa, na medida em que se as partes assim acordarem, conferirá
uma considerável privacidade à matéria sob análise460. Note-se que mesmo que a

457
Sobre a arbitragem institucionalizada em Portugal: Marcos Perestrello, A Arbitragem Institucionalizada: três
passos para o seu desenvolvimento, In: Resolução Alternativa de Litígios, colectânea de textos publicados na
Newsletter DGAE, Ministério da Justiça, 2006, págs. 13 e seguintes.
458
Seguimos aqui a orientação de Carlos Alberto Carmona, Arbitragem e Processo, op. cit., pág. 250, nota 9.
459
Sobre o tema: Dário Moura Vicente, Aplicable Law in Voluntary Arbitrations in Portugal, In : Direito
Internacional Privado, Ensaios I, Coimbra: Almedina, 2002, pág. 362 e seguintes.
460
Também neste sentido: John Henn, Onde resolver os seus litígios de negócios? Por arbitragem ou em tribunal
judicial?, In: Resolução Alternativa de Litígios, colectânea de textos publicados na Newsletter DGAE, Ministério
da Justiça, 2006, págs. 30.

132
confidencialidade não venha expressamente prevista, em geral, esta é a regra adotada pelos
Tribunais Arbitrais, uma vez que consiste em um de seus princípios461.

Deste modo, podemos afirmar que a arbitragem é hoje um mecanismo pacificador que
propicia diversas vantagens àqueles que a adotam, como já ressaltou JOEL FIGUEIRA
462
JÚNIOR . Dentre elas está a simplicidade e objetividade do procedimento arbitral, que
pode se ajustar conforme a vontade demonstrada pelas partes na convenção. Os árbitros, por
sua vez, podem ser escolhidos pelas partes conforme os conhecimentos técnicos e específicos
que dominam, sendo certo que tais conhecimentos por vezes faltam aos magistrados. A
irrecorribilidade da sentença arbitral, juntamente com a desnecessidade de homologação
judicial da mesma, também são fatores que contribuem para a celeridade do procedimento.

Essas características trazem maior segurança e rapidez ao julgamento da controvérsia. Nesse


sentido, mesmo que os gastos financeiros com a arbitragem possam muitas vezes ser
superiores aos efetuados no processo judicial, o custo-benefício, em regra, compensa a adoção
da via arbitral, diante da ausência de formalismos excessivos e da maior celeridade conferida.

6.3. RELEVÂNCIA DA ARBITRAGEM NO CENÁRIO ATUAL

Como visto, arbitragem é fenômeno praticado há séculos, que inclusive precede a jurisdição
estatal na composição de conflitos. Muitos atribuem o recente crescimento da busca pelo
Juízo Arbitral à chamada a crise do Judiciário. Segundo estes, o surgimento de meios
alternativos de resolução de litígios (conhecidos como ADR‟s – Alternative Dispute
Resolution) ocorre porque os países têm enfrentado dificuldades crescentes em garantir que o
processo judicial realmente seja instrumento apto a apaziguar litígios, uma vez que o mesmo
estaria corroído por formalismos e morosidade.

De fato, a Jurisdição Estatal vem enfrentando muitas dificuldades, pois o número de processos
se multiplica a cada ano e a legislação processual possibilita a propositura de diversos
recursos. Assim, o processo se torna demorado, custoso e burocrático, sendo mais difícil

461
“However,even if these rules are not laid down in writing, they are observed in arbitration practice.” Pieter
Sanders, Quo Vadis Arbitration? – Sixty Years of Arbitration Practice, Kluwer Law International, págs. 04 e 05.
462
Joel Dias Figueira Junior, Manual da Arbitragem, op. cit., pg. 48-50.

133
conseguir que as partes se conciliem, pois assim se aumentam as animosidades e, ao final de
todo o procedimento, raramente se tem ao menos uma das partes satisfeita. É claro que neste
contexto as conseqüências são perversas para a sociedade.

Além disso, no âmbito da legislação processual civil brasileira, pode-se dizer, sem nos
esquecermos dos esforços de tantos que se empenharam em desenvolvê-la de acordo com o
que há de mais avançado no meio científico, que ela também peca por “deixar-se aprisionar
na teia das abstrações e perder contato com a realidade cotidiana463”. Há um excesso de
formalismo que impede o desenvolvimento eficaz do processo judicial.

Diante deste quadro desanimador, a obra italiana “Acesso à Justiça”, de Mauro Cappelletti e
Bryant Garth, se apresentou como um marco evidenciador da necessidade de transformação
do processo civil, que se encontrava, e ainda se encontra, em crise464. Era necessário dar um
novo enfoque a esta ciência jurídica, superando “uma visão supersimplificada da realidade,
que vislumbra o Direito apenas em seu aspecto normativo, esquecendo-se de seus nexos
sociais, culturais, políticos e até ideológicos”465.

Mas é importante salientar que o fortalecimento da Arbitragem como meio de resolução de


litígios não se dá apenas em razão da suposta crise do Judiciário. Em muitos casos é este o
mecanismo mais apropriado, seja por estarem envolvidas matérias muito específicas, seja por
terem como objeto matérias que exigem uma tutela especial de forma sigilosa.

No caso dos contratos que tem como objeto direitos de personalidade o sigilo é algo
fundamental, sob pena de termos agravadas as ofensas à pessoa. Perante a Jurisdição Estatal,
embora haja a previsão do segredo de justiça, muitas vezes este não é plenamente assegurado,
sendo freqüente vermos questões íntimas das pessoas sendo expostas a um grande número de
pessoas.

Além disso, diante de um mercado altamente especializado, do desenvolvimento de novas


tecnologias e do aumento da litigiosidade, o Poder Judiciário não tem se mostrado capaz de

463
José Carlos Barbosa Moreira, Temas de Direito Processual. 8ª série. Rio de Janeiro: Saraiva, 2004, pp. 1-13
464
Mauro Cappelletti e Bryant Garth. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
Fabris, 1988.
465
Luiz Roberto Ayoub. Arbitragem: o acesso à justiça e a efetividade do processo: uma nova proposta, 1ª
edição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 14

134
acompanhar as mudanças e mostra-se ineficiente ao atendimento das necessidades
empresariais.

Neste contexto, surge a arbitragem como mecanismo colocado ao dispor das partes que busca
lhes dar respostas eficientes no ritmo exigido pelo mercado. Para atingir este objetivo,
verificamos que as legislações procuram dar ao processo arbitral a flexibilidade necessária a
sua conformação aos casos concretos, com um reduzido rol de requisitos formais.

Podemos afirmar que a arbitragem surge em decorrência da necessidade de um instrumento de


efetivação de direitos essenciais ao bem-estar dos indivíduos, o que exige uma maior
preocupação com as suas implicações concretas. A busca da eficácia real do processo deve
nortear o legislador para “impedir que se fosse dramaticamente avolumando, a ponto de
atingir níveis alarmantes, a insatisfação, por assim dizer universal, com o rendimento do
mecanismo da justiça civil."466

É claro que, como ocorre com praticamente todas as inovações, a arbitragem foi inicialmente
vista com desconfiança. Mas a criação de Centros de Arbitragem sérios e o seu
desenvolvimento mostraram as vantagens do processo arbitral, de modo que este instituto
passou a ser reconhecido no meio jurídico e empresarial como um ótimo mecanismo de
solução de controvérsias.

A relevância que esses mecanismos têm alcançado nos últimos anos demonstra que, para a
sociedade, o importante é a pacificação do conflito de forma eficiente, independentemente do
meio que a produza ser público ou privado. Nesse sentido, ganharam destaque a conciliação, a
mediação e a arbitragem, como instrumentos capazes de solucionar disputas de forma eficaz,
prescindindo da intervenção estatal.

6.4. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA

A Arbitragem pode ser definida como um mecanismo de solução de controvérsias, que tenha
como objeto direitos disponíveis, e no qual as partes envolvidas concedem a um terceiro

466
José Carlos Barbosa Moreira. Tendências Contemporâneas do Direito Processual Civil, Revista de Processo,
ano 31, Editora Revista dos Tribunais, p. 200.

135
imparcial, por meio de uma convenção privada, poderes para analisar e decidir o conflito, sem
que haja intervenção estatal. Esta decisão proferida pelo árbitro será dotada de eficácia
equivalente a de sentenças judiciais, conforme estabelecido em lei.

Na doutrina portuguesa, o Professor MOURA VICENTE define a arbitragem como “um meio
de composição de litígios que se caracteriza pela atribuição da competência a fim de julgá-los
a uma ou mais pessoas, escolhidas pelas próprias partes ou por terceiros, cujas decisões têm a
mesma eficácia jurídica que possuem as sentenças judiciais”467.

Carlos Alberto Carmona, um dos maiores especialistas brasileiros no tema, conceitua a


arbitragem como:

“- meio alternativo de solução de controvérsias através da intervenção


de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção
privada, decidindo com base nela, sem intervenção estatal, sendo a
decisão destinada a assumir eficácia da sentença judicial – é colocada
à disposição de quem quer que seja,para solução de conflitos relativos
a direitos patrimoniais acerca dos quais os litigantes possam
dispor.”468

Ou seja, trata-se de meio privado de resolução de litígios, pois caberá a um terceiro particular,
escolhido pelos litigantes, proferir a decisão que solucionará o conflito que lhe foi
apresentado. Desta forma, a arbitragem tem natureza extrajudicial, o que não impede que a
decisão do árbitro seja dotada de força impositiva, na forma da lei, tendo as partes a obrigação
de cumpri-la469.

Esta eficácia equivalente entre o laudo arbitral e a sentença judicial, mencionada por Carmona
e Moura Vicente em suas definições, é um dos principais atrativos do instituto em questão.
Isto porque o laudo arbitral, que também faz coisa julgada e é título executivo judicial,
assegura à parte vencedora que, em caso de descumprimento da obrigação prevista no laudo,
poderá utilizar-se dos mesmos mecanismos executórios de que disporia caso tivesse optado
pela via judicial ao invés da arbitragem.

467
Dário Moura Vicente, Problemática Internacional da Sociedade da Informação, In: Direito Internacional
Privado, Lisboa: Almedina, 2005, pág. 357.
468
Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e Processo: Um Comentário à Lei 9.307/96. 2ª edição. São Paulo: Ed.
Atlas, 2006, pág. 51.
469
Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e Processo, op. cit., págs. 51 e 52.

136
Na arbitragem, o poder de julgar atribuído aos árbitros decorre da autonomia da vontade. As
partes, ao livremente estipularem a via arbitral como mecanismo a ser utilizado para dirimir
conflitos, atuais ou futuros, entre as mesmas, transferem ao julgador escolhido o dever de
resolver a lide. A origem deste poder está justamente na convenção firmada entre elas, de
forma que o árbitro escolhido terá sua atuação limitada de acordo com o que foi pactuado no
instrumento convencional.

A lei autoriza que as partes concedam, em comum acordo, o poder de solucionar


determinadas controvérsias a esse árbitro, afastando-se assim a jurisdição estatal da causa. Na
arbitragem, a legislação confere à decisão do árbitro a mesma força impositiva de uma
sentença judicial daria. É aqui que está a principal diferença entre a arbitragem, a conciliação
e a mediação, pois apenas naquela a solução dada pelo terceiro imparcial se impõe, ao passo
que nas demais o terceiro somente auxilia as partes para que as próprias alcancem à solução
adequada.

As convenções arbitrais podem ser estabelecidas anteriormente ao surgimento do conflito,


como cláusulas contratuais em que as partes se obrigam a submeter eventual litígio decorrente
daquele contrato ao juízo arbitral. Neste caso será chamada de cláusula compromissória. Ou
podem ser pactuadas quando o conflito já tenha se instaurado. Trata-se do compromisso
arbitral.

Somente as pessoas capazes de contrair direitos e deveres podem pactuar, mediante uma
convenção arbitral, a instituição da arbitragem470. Nesse sentido, pode-se dizer que o juízo
arbitral destina-se a pessoas físicas e jurídicas dotadas de capacidade civil. Esta capacidade
deve ser examinada à luz dos artigos 1º e segs. do Código Civil brasileiro e artigos 67, 122 e
seguintes do Código Civil português.

No que se refere à natureza jurídica da arbitragem, a doutrina está dividida entre defensores
da teoria contratualista, jurisdicional e mista. Sabe-se que atualmente a pacificação de
conflitos é tarefa ainda concentrada no Estado. Ao ponto que esta atividade, nomeada de
jurisdição, é considerada, juntamente com a legislativa e administrativa, função típica e
essencial do Poder Público.

470
Alexandre Freitas Camara, Arbitragem,: Lei 9.307/96, 4ª edição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 15.

137
No entanto, com o ressurgimento da arbitragem e diante da legislação que regula o assunto,
verificamos a popularização deste outro método de heterocomposição de conflitos, paralelo a
atividade do juiz estatal. Tanto a arbitragem quanto o processo civil estatal têm como função a
pacificação social. Em ambos, um terceiro, estranho à relação em conflito, substitui a vontade
das partes envolvidas para, de forma imparcial, buscar a pacificação da divergência, com
justiça. Nos dois casos, a decisão proferida, após o processo arbitral ou judicial, possui
eficácia imperativa.

Além disso, uma vez estabelecido pelas partes que os conflitos preexistentes ou futuros serão
submetidos à arbitragem, afasta-se a possibilidade do Judiciário vir a apreciar estas
controvérsias. Portanto, quando celebrada a convenção arbitral, retira-se do juiz estatal a
competência para análise das questões sujeitas ao juízo arbitral.

Por essas razões, consolidou-se a eficácia equivalente entre os institutos da arbitragem e do


processo judicial. Diante disso, e tendo em vista a semelhança dos dois sistemas, arbitral e
estatal, no que se refere ao seu objetivo de pacificação social, muitos doutrinadores afirmam
que a arbitragem tem natureza jurisdicional.

Mas, muitos processualistas discordam desse entendimento por entender que a jurisdição é
monopólio do Estado, sendo impossível denominar de jurisdicional uma atividade exercida no
âmbito privado471. Assim, estes autores afirmam que mesmo sendo a jurisdição identificada
como atividade de composição de litígios por um terceiro julgador, por meio de um processo,
sua caracterização sempre esteve atrelada ao Estado, como uma de suas funções estatais.

Como expõe ALEXANDRE CÂMARA, não estaria em causa a função pública da arbitragem,
já que esta funciona como um método de justiça e pacificação social de incontestável
interesse público, mas público não se confunde com estatal, de maneira que não se pode
conceder natureza jurisdicional à arbitragem. A jurisdição seria, a seu ver, um monopólio do
Estado472.

471
Antônio Carlos de Araújo Cintra, Cândido Rangel Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover, Teoria Geral do
Processo, 21ª edição. São Paulo: Malheiros, 2005, págs. 141.
472
Alexandre Camara, Arbitragem, op. cit., págs. 11-15.

138
No entanto, vale destacar que a tese da jurisdicionalidade da arbitragem tem ganhado muitos
adeptos. Dentre eles, podemos citar o renomado processualista brasileiro ARNOLDO WALD,
que ao discorrer sobre o assunto, afirma que “a natureza jurisdicional da arbitragem já foi
reconhecida pela doutrina e jurisprudência nacionais, que não hesitam, nos dias de hoje, em
reconhecer-lhe tal caráter”473.

Por sua vez, FIGUEIRA JÚNIOR entende que a natureza jurisdicional ou não da arbitragem
está relacionada ao conceito de jurisdição adotado. Para uma corrente, apenas os juízes
togados exercem jurisdição, pois apenas estes detêm ius imperium, de forma que a força
imperativa de seus atos seja uma decorrência lógica deste poder. Mas, há os que afirmam que
a função jurisdicional pode ser exercida por particulares, desde que a lei reconheça a eles a
possibilidade de emanar atos aptos a compor conflitos, com natureza imperativa474.

Filiando-se a segunda corrente, o mencionado doutrinador sustenta a natureza jurisdicional da


arbitragem, pois a LAB conferiu à sentença arbitral efeitos equivalentes à proferida em sede
judicial, de forma a vincular às partes litigantes ao cumprimento de seu comando. Nesse
sentido, a lei arbitral delegou ao árbitro a iudicium, com todas as suas implicações Seria, deste
modo, uma jurisdição privada.

Também neste sentido, CARMONA defende a natureza jurisdicional da arbitragem.


Utilizando-se das lições de Giovanni Verde, o processualista brasileiro sustenta que não se
pode mais cultivar o mito de que o Estado é onipotente e centralizador, do qual faz parte a
idéia de que a justiça deva ser administrada exclusivamente por juízes. Por este motivo,
entende que o conceito de jurisdição, em crise há muitos anos, deve ser flexibilizado para
adequar-se à realidade arbitral.

DINAMARCO, que já defendeu a função jurisdicional do juízo arbitral, atualmente sustenta a


natureza parajurisdicional475 do instituto. O renomado processualista entende que existe uma
grande proximidade da arbitragem com a atividade jurisdicional, pois ambas tem escopo

473
Arnoldo Wald, A recente evolução da arbitragem no direito brasileiro (1996-2001), In: Reflexões sobre
arbitragem: in memoriam do Desembargador Cláudio Vianna de Lima, coordenadores Pedro A. Batista Martins
e José Maria Rossani Garcez. São Paulo: LTR, 2002, pág. 156.
474
Joel Dias Figueira Junior, op. cit., págs. 91-97.
475
Também no sentido de que a arbitragem seria um método parajurisdicional para solução de conflitos de
natureza privada: José Maria Rossani Garcez, Introdução, In: A Arbitragem na Era da Globalização.
Coordenador José Maria Rossani Garcez, Rio de Janeiro: Forense, 1999, pág. 01.

139
social pacificador. Entretanto, ambas não se confundem, na medida em que o árbitro não tem
escopo jurídico de atuar a vontade da lei476.

Por fim, SÁLVIO DE FIGUEIREDO entende que a arbitragem teria natureza paraestatal, na
medida em que estaria situada entre um sistema de composição particular e estatal da lide,
pois embora seja um particular a proferir a decisão, esta permanece sob a garantia do
Estado477.

Em Portugal, tudo indica que o legislador optou pela adoção da teoria mista, já que no
Preâmbulo da primeira Lei de Arbitragem consta:

“É certo que a arbitragem reveste uma componente essencial e


determinante contratualista, que conforma a sua natureza jurídica. Mas
é certo que reveste também uma componente jurisdicional quanto à
sentença arbitral e sua equiparação à sentença judicial nos seus efeitos
mais marcantes: eficácia do caso julgado e execução judicial.”

No entanto, este não é o entendimento adotado por SÉRVULO CORREIA. Este autor entende
que, quando o artigo 211., n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, admite a atividade
de tribunais arbitrais em um preceito que descreve as categorias de tribunais admissíveis em
Portugal, acaba por demonstrar que, “na ordem jurídica portuguesa, a decisão arbitral dos
conflitos é uma actividade jurisdicional e não uma atividade negocial”478.

FERRER CORREIA, que ao buscar definir o termo „Arbitragem‟ afirma que embora a
administração da justiça seja uma função e dever do Estado, este não a exerce em monopólio,
pois seria admissível ao lado desta a justiça ministrada por particulares designados pelas
partes litigantes479.

Acompanhando o professor LIMA PINHEIRO, para nós a arbitragem possui natureza jurídica
contratual-jurisdicional, pois é inegável que esta nasce do acordo de vontades, a convenção de

476
Cândido Rangel Dinamarco, Limites da sentença arbitral e de seu controle jurisdicional, In: Reflexões sobre
arbitragem: in memoriam do Desembargador Cláudio Vianna de Lima, coordenadores Pedro A. Batista Martins
e José Maria Rossani Garcez. São Paulo: LTR, 2002, p. 327.
477
Sálvio de Figueiredo Teixeira, A Arbitragem no Sistema Jurídico Brasileiro, In: A Arbitragem na Era da
Globalização. Coordenador José Maria Rossani Garcez, Rio de Janeiro: Forense, 1999, págs. 24 e 25.
478
José Manuel Sérvulo Correia, A Arbitragem Voluntária no Domínio dos Contratos Administrativos, In.
Estudos em Memória do Professor João de Castro Mendes, vol. 1, pág. 231.
479
A. Ferrer Correia, Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado, Coimbra: Almedina, 1989,
pág. 177.

140
arbitragem, e conduz a uma decisão com eficácia jurisdicional480. Também parece ser este o
entendimento adotado por CAIVANO481, na medida em que a seria uma jurisdição instituída
por meio de um negócio particular, teria uma raiz contratual, mas os árbitros exerceriam uma
função jurisdicional.

6.5. ARBITRABILIDADE

Como visto, o exercício da jurisdição é atividade privativa do Estado, mas, no intuito, de


permitir meios mais eficazes à solução de litígios, este permite a adoção de mecanismos
alternativos de solução de litígios, dentre os quais está a arbitragem. Mas quando o legislador
permite a adoção da arbitragem e confere à sentença arbitral os mesmos efeitos da judicial, ele
impõe certos limites e exige a observância de diversos princípios.

É assim que a LAB, no artigo 1º, dispõe que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-
se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. E a LAV,
no artigo 1º, n.º 1, dispõe que “Desde que por lei especial não esteja submetido
exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, qualquer litígio que não respeite
a direitos indisponíveis pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à
decisão de árbitros”.

Embora a LAV não se refira expressamente à necessidade de as partes terem capacidade


jurídica para celebrar convenção de arbitragem, não há dúvidas de que este é um requisito
essencial em ambas as leis482, uma vez que se trata da capacidade exigida para celebrar
negócios jurídicos em geral. Dessa forma, o legislador impõe limites objetivos e subjetivos à
adoção da arbitragem.

Diante desses limites, cumpre verificar quais litígios podem ser submetidos à arbitragem, a
chamada arbitrabilidade objetiva, e quem possui capacidade para pactuar neste sentido, a

480
Luís de Lima Pinheiro, Arbitragem Transnacional, op. cit., págs. 181 e seguintes.
481
Roque J. Caivano, Arbitrage: su eficacia como sistema alternativo de resolución de conflictos, Buenos Aires :
Ad-Hoc, 1993, pág. 98 e seguintes.
482
Raúl Ventura, Convenção de Arbitragem, In: Revista da Ordem dos Advogados, Ano 46, Lisboa:
setembro/1986, págs. 304 e seguintes.

141
arbitrabilidade subjetiva483. No âmbito deste trabalho iremos nos ocupar fundamentalmente
da arbitrabilidade objetiva.

No tocante à arbitrabilidade subjetiva, cumpre apenas destacar que aplicam-se as regras gerais
de direito civil no que se refere à capacidade das pessoas singulares e jurídicas de direito
privado para celebrar negócios jurídicos em geral. Mas questão que já suscitou muita
polêmica na doutrina é aquela relacionada à possibilidade das pessoas jurídicas de direito
público interno se submeterem à arbitragem484.

Ao contrário da LAB, que é silente sobre a matéria485, a LAV andou bem ao prever no seu
Artigo 1º, n.º 4, que “O Estado e outras pessoas jurídicas de direito público podem celebrar
convenções de arbitragem, se para tanto forem autorizadas por lei especial ou se elas tiverem
por objecto litígios respeitantes a relações de direito privado.”

O ponto central da controvérsia sobre as pessoas jurídicas de direito público interno se dá em


razão da supremacia do interesse público e consequentemente da indisponibilidade dos bens
da Fazenda Pública. Assim, muitos doutrinadores apenas admitem que estas pessoas jurídicas
se valham deste expediente quando esteja em causa litígio decorrente de relação jurídica de
natureza contratual privada, estando excluídas as situações em que o Estado atua como poder
público486.

483
Arbitrabilidade é o termo utilizado para determinar a possibilidade de um litígio ser submetido à jurisdição
arbitral. Note-se que em artigo publicado por Raul Ventura,em 1986, este afirmava que apenas utiliza o termo
porque lhe seria cômodo, mas trata-se na realidade de um neologismo.
484
Em Portugal podemos citar apenas a título exemplificativos: Mario Aroso de Almeida, Arbitragem em
matéria administrativa, In: Resolução Alternativa de Litígios, colectânea de textos publicados na Newsletter
DGAE, Ministério da Justiça, 2006, págs. 15 e seguintes; João Caupers, A arbitragem nos litígios entre a
administração pública e os particulares, In: Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 18, novembro/dezembro
1999, págs. 03 e seguintes, e A arbitragem na nova justiça administrativa, In: Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 34, julho/agosto 2002, págs 65 e seguintes; José Manuel Sérvulo Correia. A Arbitragem
Voluntária no Domínio dos Contratos Administrativos, In: Estudos em Memória do Professor João de Castro
Mendes, vol. 1, pág. 229 e seguintes; Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública: o sentido da vinculação
administrativa à juridicidade, Coimbra: Almedina, 2003, pág. 1057, José Luís Esquível, Os Contratos
Administrativos e a Arbitragem, Lisboa: Almedina, 2004. No Brasil: Maçal Justen Filho, Comentários à Lei de
Licitações e Contratos Administrativos, São Paulo: Dialética, 2001, pág. 513; Eros Roberto Grau, Arbitragem e
Contrato Administrativo, In: Revista Trimestral de Direito Público, 32/200, Malheiros Editores; Maria Sylvia
Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 12ª edição, São Paulo: Atlas, 2000, pág. 63.
485
Apesar de a LAB não ter se manifestado sobre o assunto, é certo que o legislador previu expressamente a
possibilidade de adoção da arbitragem nas Leis 9.478, de 06.08.1997, 10.233, de 05.06.2001, 10.848, de
15.03.2004, 11.079, de 30.12.2004, e 8.987, de 13.02.1995, em razão das alterações implementadas pela Lei
11.196, de 21.11.2005.
486
Sobre a matéria já há algumas manifestações dos Tribunais brasileiros: Mandado de Segurança n.º 11308/DF,
Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, decisão publicada no Diário da
Justiça de 19.05.2008 e acessada em 14.06.2009, na página eletrônica:

142
Note-se que, nos últimos anos, o Superior Tribunal de Justiça brasileiro tem se manifestado de
forma favorável ao instituto da arbitragem, mesmo quando não há legislação específica a
autorizando. O Egrégio Tribunal tem se baseado no artigo 173, § 1º, da Constituição Federal,
que estabelece que sociedades de economia mista e empresas públicas, por atuarem no campo
da atividade econômica, seriam equiparadas às empresas privadas do ramo. Por conseqüência,
se essas empresas particulares podem se submeter à arbitragem, as públicas e de capital misto,
quando no exercício de atividade econômica, também poderiam487.

Feitas estas considerações gerais, passemos à arbitrabilidade objetiva, ou seja, à analise das
matérias que podem ser objeto de submissão à jurisdição arbitral pelas partes. Nas legislações
que cuidam da matéria vemos uma alternância entre a adoção dos seguintes critérios: (i) da
ligação do litígio em causa com questões de ordem pública; (ii) da natureza patrimonial da
controvérsia; e (iii) da disponibilidade do direito sobre o qual se funda a pretensão488.

O critério da ligação do litígio com a ordem pública é adotado na legislação francesa.


Inicialmente, prevalecia um critério extremamente restritivo, no qual qualquer alegação por
uma das partes de uma norma de ordem pública já era suficiente para afastar a jurisdição
arbitral. Assim, a doutrina e a jurisprudência cuidaram de suavizar esta regra, passando a
prevalecer o entendimento segundo o qual se a matéria é disponível e a lei apenas impõe
alguns limites, o arbitro poderá analisar o mérito da causa para verificar se o objeto do litígio
realmente toca à ordem pública489.

http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?acao=imprimir&livre=arbitragem&&b=ACOR&p=true&t=
&l=10&i=7 ; Agravo de Instrumento n.º 52181, Relator Ministro Bilac Pinto, Tribunal Pleno do Supremo
Tribunal Federal, decisão publicada no Diário da Justiça de 15.02.1974, acessada em 14.06.2009, no site:
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(52181.NUME.%20OU%2052181.ACM
S.)&base=baseAcordaos.
487
Carmen Tiburcio, A Arbitragem envolvendo a Adminsitração Pública: REsp nº 606.345/RS, In: Revista de
Direito do Estado, ano 2, nº 6, abr-jun/2007, págs. 341 e seguintes.
488
Antonio Sampaio Caramelo, A Disponibilidade do Direito como Critério de Arbitrabilidade do Litígio –
Reflexões de jure condendo, In: Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, dezembro de 2006, pág. 1235.
489
Antonio Sampaio Caramelo, A Disponibilidade do Direito como Critério de Arbitrabilidade do Litígio,
op.cit., págs. 1236 e seguintes. E também: Jean Robert, L‟Arbitrage, droit interne droit international privé, 6ª
edição, Dalloz, págs. 28 e seguintes; e Bernard Hanotiau, L‟arbitrabilité, In: Recueil de Cours, Martinus Nijhoff
Publishers, 2003, págs. 97 e seguintes, que considera o critério da ordem pública obsoleto e cita diversos outros
países que o adotam.

143
A natureza patrimonial da pretensão é o critério adotado no direito suíço para a arbitragem
internacional e na Lei alemã. Assim, poderão ser objeto de convenção de arbitragem matérias
suscetíveis de avaliação em dinheiro490.

Por fim, o critério da disponibilidade do direito é o adotado pela LAV. Segundo este apenas
poderão ser submetidos ao Tribunal Arbitral litígios que versem sobre questões sobre as quais
as partes possam dispor, ou seja, direitos e deveres cuja aquisição ou perda estão no âmbito da
autonomia da vontade das partes.

Algumas legislações utilizam a expressão “direitos disponíveis”, enquanto outras adotam


“direitos transigíveis”. O Código de Processo Civil brasileiro de 1973 falava em
arbitrabilidade dos direitos patrimoniais que admitissem transação, na esteira da legislação
arbitral alemã e italiana. Com a LAB, a arbitragem passou a restringir-se a direitos
patrimoniais disponíveis, à semelhança da lei espanhola.

Todavia, a diferença praticamente se limita à nomenclatura (disponíveis ou transigíveis), uma


vez que ambas apontam para uma mesma vertente: há a liberdade do titular para dispor sobre
aquele direito, sem que haja norma cogente impondo o cumprimento do preceito, sob pena de
nulidade ou anulabilidade do ato praticado. No Brasil, conjugou-se o critério da
disponibilidade e patrimonialidade da matéria objeto de controvérsia. Dessa forma, a
arbitragem só pode ser utilizada para direitos que possam ser definidos em dinheiro e ser
cedidos, negociados, renunciados ou transacionados.

No entanto, definir quais direitos são disponíveis não é tarefa simples. Na doutrina, vemos
que é muito comum serem apontados como exemplo os direitos de personalidade, direitos de
família, quanto ao estado das pessoas, direito das sucessões, ou penais. Assim, estes direitos
em regra não poderiam ser submetidos à arbitragem. No entanto, como acertadamente alerta
CARMONA, esta análise deverá ser feita caso a caso, porque, algumas vezes, ainda que sob o
rótulo de algum desses direitos, tem-se apenas um direito patrimonial plenamente disponível,
sem que a utilização da arbitragem, no caso, venha a ferir a ordem publica491.

490
Antonio Sampaio Caramelo, A Disponibilidade do Direito como Critério de Arbitrabilidade do Litígio,
op.cit., págs. 1241 e seguintes.
491
Carlos Alberto Carmona, Arbitragem e processo, op. cit., pág. 56.

144
Na Doutrina, tem-se dedicado muitos estudos sobre a arbitrabilidade de certas matérias, em
especial para as relativas a direito do consumidor e trabalhista. Em brevíssima síntese, nos
assuntos relativos ao direito do consumidor, o principal argumento para vedar o uso da
arbitragem é que nestas relações, de maneira geral, os contratos são de adesão. Dessa forma, a
cláusula estipulando convenção arbitral será considerada abusiva, por colocar o consumidor
em situação vulnerável. Além disso, a via arbitral colocaria em risco a garantia do equilíbrio
processual das partes, na medida em que o consumidor é hipossuficiente, merecendo uma
proteção mais elevada.

A hipossuficiência também é alegada no âmbito dos dissídios trabalhistas individuais492, pois


caso submetidos à arbitragem, o trabalhador poderá não dispor da proteção processual que o
procedimento trabalhista judicial o confere com vistas a equilibrar a relação jurídica entre as
partes. Muitos autores, especialmente os envolvidos com o Direito do Trabalho, são
contrários à arbitragem envolvendo questões trabalhistas, por entenderem que esses direitos
não são disponíveis.

No entanto, a hipossuficiência do trabalhador e do consumidor não é suficiente per si para


retirar a validade da cláusula compromissória inserida em contratos trabalhistas ou de
consumo. O que se deve buscar é uma proteção especial a estas pessoas mais vulneráveis
economicamente, quando submetidas à jurisdição arbitral.

Deste modo, quando consumidores e trabalhadores forem partes em um processo arbitral, os


árbitros deverão dar maior atenção para evitar que venham a participar desta de forma
forçada, imposta, seja por desconhecerem a presença de uma cláusula arbitral, seja por não
conhecer o seu significado. Nessas hipóteses, o árbitro deve estar atento para a aplicação do
artigo 4º, §2º, da LAB, que dispõe que os contratos de adesão só terão convenção arbitral
válida se o aderente assim o quiser, ou manifestar de forma incontestável a sua vontade neste
sentido. Portanto, caso os contratantes considerados hipossuficientes propuserem a

492
No Brasil, não há discussões sobre a possibilidade de submeter os dissídio trabalhistas coletivos à arbitragem,
na medida em que estes têm disposição favorável expressa no artigo 114, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal. Em
Portugal, esta previsão está nos artigos 2.º, n.º 2, 505.º e seguintes do Código do Trabalho. Sobre a arbitragem
em matéria de dissídios trabalhistas coletivos: Dário Moura Vicente, Arbitragem de Conflitos Colectivos de
Trabalho, In: Separata da obra Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, Coimbra: Almedina, 2003, págs. 249
e seguintes.

145
arbitragem, ou manifestarem seu consentimento de maneira inequívoca, a via arbitral é
perfeitamente cabível493.

No que se refere aos dissídios trabalhistas individuais, cresce o entendimento segundo o qual
os reflexos financeiros dos contratos de trabalho seriam passíveis de arbitragem. Neste sentido
foi o entendimento adotado no Brasil, em 15.10.2008, pela Sétima Turma do Tribunal
Superior do Trabalho494, e, em 17.12.2008, pela Quarta Turma do Tribunal Regional do
Trabalho495

No entanto, a questão está longe de ser pacífica, uma vez que em recente precedente da
Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho foi rejeitada esta possibilidade de adoção
da arbitragem nos litígios trabalhistas individuais, sob a invocação da hipossuficiência do
trabalhador, ou seja, os empregados não teriam, em regra, condições de igualdade com os
patrões para manifestar vontade496.

493
Arnoldo Wald, A recente evolução da arbitragem no direito brasileiro (1996-2001), , op.cit., págs. 164-166.
494
Agravo de Instrumento em Recurso de Revista. Juízo Arbitral. Coisa Julgada. Lei Nº 9.307/96.
Constitucionalidade. O art. 5º, XXXV, da Constituição Federal dispõe sobre a garantia constitucional da
universalidade da jurisdição, a qual, por definir que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da
apreciação do Poder Judiciário, não se incompatibiliza com o compromisso arbitral e os efeitos de coisa julgada
de que trata a Lei nº 9.307/96. É que a arbitragem se caracteriza como forma alternativa de prevenção ou solução
de conflitos à qual as partes aderem, por força de suas próprias vontades, e o inciso XXXV do art. 5º da
Constituição Federal não impõe o direito à ação como um dever, no sentido de que todo e qualquer litígio deve
ser submetido ao Poder Judiciário. Dessa forma, as partes, ao adotarem a arbitragem, tão-só por isso, não
praticam ato de lesão ou ameaça à direito. Assim, reconhecido pela Corte Regional que a sentença arbitral foi
proferida nos termos da lei e que não há vício na decisão proferida pelo juízo arbitral, não se há de falar em
afronta ao mencionado dispositivo constitucional ou em inconstitucionalidade da Lei nº 9.307/96. Despicienda a
discussão em torno dos arts. 940 do Código Civil e 477 da CLT ou de que o termo de arbitragem não é válido
por falta de juntada de documentos, haja vista que reconhecido pelo Tribunal Regional que a sentença arbitral
observou os termos da Lei nº 9.307/96 - a qual não exige a observação daqueles dispositivos legais - e não tratou
da necessidade de apresentação de documentos (aplicação das Súmulas nºs 126 e 422 do TST). Os arestos
apresentados para confronto de teses são inservíveis, a teor da alínea -a- do artigo 896 da CLT e da Súmula nº
296 desta Corte. Agravo de instrumento a que se nega provimento.” Processo n.º TST-AIRR-1475/2000-193-05-
00.7, Relator Ministro Pedro Paulo Manus, acessado em 14.06.2009, em
http://aplicacao.tst.jus.br/consultaunificada2/.
495
Processo n.º 00259-2008-075-03-00-2 RO, Desembargador Relator Antonio Alvares da Silva, decisão
publicada em 31.01.2009 e acessada em 14.06.2009, em
http://as1.trt3.jus.br/consultaunificada/mostrarDetalheLupa.do?evento=Detalhar&idProcesso=RO++0819829&id
Andamento=RO++0819829PACO20090202+++++9385600.
496
Notícia acessada em 14.06.2009, na página eletrônica: http://www.jornaldaordem.com.br/noticia_ler.
php?id=13909 .

146
Por fim, matéria que vem sendo enfrentada pela doutrina portuguesa é aquela sobre a
possibilidade da adoção da arbitragem no âmbito do direito tributário497. Neste sentido,
podemos citar o professor LEITE DE CAMPOS498:

“A sociedade civil, libertando-se progressivamente do poder do


estado, tem vindo a entender que, tendo legitimidade para criar as suas
próprias relações intersubjetivas, para criar o seu próprio Direito para
além do Direito legislado, também deve ter legitimidade para resolver
os seus próprios conflitos. Quem celebra um contrato deve resolver os
conflitos inerentes.
.................................................................................................................
Também em Direito fiscal a sociedade civil pretende afirmar-se, não
como sujeita ao poder político em termos de impostos, mas como
dialogando consigo mesma em termos de contribuições... Portanto, a
arbitragem em Direito tributário está próxima, embora continue a
defrontar com a relutância da classe dirigente em abandonar os
últimos instrumentos de controlo da sua principal fonte de poder.”

Mas a matéria também foi objeto de reflexão por LIÉGE CABRAL499, com base nos
ordenamentos jurídicos brasileiro e português. Após concluir pela possibilidade de adoção em
ambos os sistemas, a autora esclarece que a sua possibilidade no Brasil apenas poderia ocorrer
em razão da natureza jurisdicional da arbitragem.

A nosso ver, o caminho restou mais facilitado, tendo em vista que, como demonstrado, é
crescente o entendimento segundo o qual mesmo quando não há lei específica a permitir a
submissão de um litígio aos Tribunais Arbitrais, este poderá ser adotado quando o litígio tiver
como objeto interesses econômicos. No entanto, acreditamos que ainda há sérios obstáculos a
serem enfrentados, uma vez a matéria tributária envolve interesse público e a Administração
Direta.

Vê-se, pelo exposto, que a arbitragem está em crescente evolução, e aos poucos vai superando
alguns dogmas que se argüiam para impedir a sua expansão em determinadas áreas do Direito.

497
Diogo Leite de Campos, A Arbitragem em Direito Tributário, In: Separata de Estudos Jurídicos e
Económicos em Homenagem ao Professor Doutor António de Sousa Franco, Edição da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, págs. 739 e seguintes.
498
Diogo Leite de Campos, Certeza e Segurança no Direito Tributário: A Arbitragem, In: Revista da Ordem dos
Advogados, Ano 65, Lisboa: setembro/2005, págs. 324 e 325.
499
Liege Meireles Câncio dos Santos Cabral, A Arbitragem no Âmbito do Direito Tributário – reflexões com
base nos ordenamentos brasileiro e português, Coimbra: Dissertação aprsentada ao Curso de Mestrado da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em 2007.

147
Sendo assim, tem-se dado um papel importante ao instituto, principalmente em virtude do
congestionamento dos tribunais pátrios e do aumento da especialização e da complexidade
das questões nas quais surgem conflitos de interesse.

148
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como bem destacou CAPELO DE SOUSA:

“...sendo a liberdade um bem essencial da personalidade humana e


sustentáculo da própria dignidade da pessoa humana... tem
necessariamente de haver um largo e aberto espaço de autonomia
privada, com os inerentes poderes individuais de autodeterminação e
de autogestão da respectiva esfera de interesses pessoais, no
reconhecimento e no exercício do direito geral de personalidade... Só
quando haja excesso manifesto dos limites impostos pelo fim social ou
económico desse direito é que será ilegítimo o aparente exercício
desse direito.”500

Assim, temos que é sob a vertente subjetiva dos direitos de personalidade que está uma das
principais manifestações da autonomia privada, na medida em que esta assegura um espaço
em que as pessoas podem reger os seus interesses, ou seja, se autodeterminar, desde que
exercidos de forma ética e solidária, respeitando os limites da lei, da moral e da ordem
pública.

Neste contexto, podemos afirmar que embora intransmissíveis, o titular do direito de


personalidade, no exercício da vertente subjetiva deste direito, possui uma liberdade para
exercê-lo de forma a obter benefícios econômicos. E, portanto, são perfeitamente válidos os
contratos de direitos de personalidade celebrados por artistas, músicos, modelos e atletas
profissionais, que envolvam os direitos à privacidade, imagem, voz e nome, desde que
respeitados os requisitos acima expostos.

Note-se que estamos diante de um negócio jurídico, digamos, sui generis, em que o titular do
direito de personalidade possui uma posição, de certa forma, privilegiada, na medida em que
poderá revogar o seu consentimento a qualquer momento, não se sujeitando aos
procedimentos de execução forçada501. E ainda, a limitação ao direito possui eficácia erga
omnes apenas para ele.

Dessa forma, embora reconheçamos a possibilidade de aproveitamento econômico dos


direitos de personalidade, entendemos que nunca será possível perder de vista a natureza

500
Rabindranath V.A. Capelo de Souza, O Direito Geral de Personalidade, op. cit., págs. 519 e 520.
501
Neste sentido, Adriano de Cupis, Os Direitos de Personalidade, op. cit., pág. 57.

149
direito envolvido e dos interesses em causa, pois não concebemos a possibilidade de que
qualquer pessoa possa ser privada dos seus direitos de personalidade. Desse modo, embora os
contratos que envolvem direitos de personalidade possam ter um expressivo conteúdo
econômico, é fundamental observar que está em causa a pessoa humana, objeto e fim
primordial de todo o Direito posto.

É sob esta ótica que não vemos porque impedir as partes de submeter os litígios decorrentes
destes contratos à jurisdição arbitral. Isto porque, além de o Tribunal Arbitral estar vinculado
a observar as garantias mínimas estabelecidas nas leis, geralmente apresenta uma resposta
célere e eficaz às partes, acabando por oferecer um grau de tutela muito superior ao
assegurado na Jurisdição Estatal, principalmente, no tocante ao princípio da
confidencialidade.

Por outro lado, a indisponibilidade de determinados direitos de personalidade vem sendo


mitigada, uma vez que podem ser objeto de limitação voluntária por seu titular, através da
celebração de negócios jurídicos com conteúdo patrimonial. Dessa forma, o aspecto
econômico destes direitos pode ser submetido à apreciação do Tribunal Arbitral.

No entanto, cumpre ressaltar que os altos custos da arbitragem são o principal obstáculo à
adoção desta no âmbito dos contratos que envolvem direitos de personalidade. Dessa forma,
será apenas diante do caso concreto que deverá ser apreciada a viabilidade e a possibilidade
de submeter determinado litígio à via arbitral.

Por fim, nunca é demais ressaltar que a finalidade do Direito está em assegurar as condições
necessárias ao desenvolvimento da personalidade da pessoa humana, nos diversos aspectos
que esta envolve, com desejos, obrigações e necessidades vitais de um ser que naturalmente
depende do outro para viver.

150
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