Tempo - O Sonho de Matar Chronos - Guido Tonelli

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DADOS DE ODINRIGHT

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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Introdução

parte i: O encanto dos piões


1. O desejo de dominar o tempo
2. O nosso tempo

parte ii:Onde o tempo para


3. A estranha dupla
4. A longa história do tempo
5. Quando o tempo para

parte iii:Entre existências efêmeras e vidas eternas


6. Vida de partículas
7. O tempo do infinitamente pequeno
8. Uma relação muito especial
9. Pode-se inverter a flecha do tempo?
10. O sonho de matar Chronos
Epílogo: O tempo breve

Agradecimentos
Sobre o autor
Créditos
Aos meus filhos corajosos, Diego e Giulia
O tempo, consumidor das coisas…
Leonardo da Vinci, Codice Arundel

Alice: Por quanto tempo é para sempre?


Coelho Branco: Às vezes, só um segundo.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Forever is composed of nows.


Emily Dickinson, Poems

The time is gone, the song is over


Thought I’d something more to say.
Roger Waters, “Time”
Introdução

Emílio Folegnani trabalhava na pedreira da Walton, nos Alpes


Apuanos, onde se extrai o mármore branco mais famoso
do mundo. Era um homem robusto, com mãos enormes,
ásperas pelo trabalho. Cinzelava o mármore, um ofício
que hoje não existe mais: dava acabamento com macete
e cinzel aos blocos recém-separados do veio.
Como todos os escavadores, Emílio parecia um homem
de pedra, duro como o mármore bruto que tirava das
montanhas, e falava pouco: muitos monossílabos,
algumas frases curtas. A sua profissão era perigosa,
manuseava bananas de dinamite e, quando se
movimentavam as grandes rochas, punha em risco a
vida, como todos os escavadores. Não era fácil
impressionar gente assim.
Uma das raras vezes em que ele falou por mais de
cinco minutos seguidos foi na primavera de 1961, um
ano antes da sua morte. Contou o que havia acontecido
em 15 de fevereiro daquele ano, por volta das oito e
meia da manhã.
Nas semanas mais rigorosas do inverno, o trabalho nas
pedreiras era suspenso, porque no alto havia neve
demais e tudo ficava sepultado pelo gelo. Mas naquele
período nenhum dos escavadores ficava de braços
cruzados. Cada um tinha o seu pequeno terreno, onde
cultivava batatas, couves ou forragem para o gado.
Emílio também se encontrava no campo, em Scasso,
um minúsculo sítio numa ribanceira que conquistara com
anos de trabalho: havia desmatado um trecho da colina e
retirara as pedras para organizá-la em pequenos terraços
para cultivo. Enquanto estava ali carpindo, a luz da
manhã se atenuou e depois escureceu. “É o fim do
mundo”, pensou enquanto as lágrimas escorriam pela
face, e começou a rezar de joelhos, com as mãos unidas.
E enquanto contava isso, no seu olhar ainda se
percebiam a emoção e o medo. Depois de um breve
intervalo que lhe pareceu uma eternidade, o Sol voltou a
iluminar a Terra e tudo recuperou vida.
Meu avô Emílio havia assistido ao seu primeiro e único
eclipse total do Sol. Jornais e televisões haviam
comentado muito o assunto, mas a notícia não chegara a
Equi, o vilarejo de trezentos habitantes em meio aos
Alpes Apuanos onde ele vivia. Ou talvez ele não tivesse
prestado atenção.

Hoje, quando se prevê um eclipse em alguma região do


planeta, há grande expectativa e muita excitação. O
fenômeno é filmado por todos os ângulos e o aspecto
espetacular prevalece sobre a inquietude. Mas nem
sempre foi assim. O testemunho do meu avô nos permite
entender como era profunda a angústia que sentiam os
nossos antepassados quando subitamente se interrompia
o ritmo regular que determinava a alternância do dia e
da noite e a passagem das estações.
Algum resíduo daquele medo atávico chegou até nós.
Por isso, ainda hoje, quando algo inesperado parece
perturbar a regularidade daqueles fenômenos
maravilhosos, temos a impressão de que o tempo sai dos
eixos e somos tomados pelo temor de que o mundo
inteiro pode se desfazer em mil pedaços.
Isso sempre acontece quando uma comunidade
humana, grande ou pequena que seja, é atingida por
uma desgraça repentina. Quando uma explosão ou um
forte terremoto devasta uma cidade, subverte-se o
sentido do tempo que rege a vida cotidiana dos seus
habitantes. Os relatos dos sobreviventes são todos
parecidos. Os instantes de pavor transformam cada
segundo num longuíssimo intervalo de tempo, cujos
detalhes são lembrados nitidamente. O trauma divide
para sempre a vida de milhares de indivíduos num
“antes” e num “depois”. Uma brusca descontinuidade
separa as duas fases da existência de pessoas que já não
são as mesmas. A catástrofe causou uma súbita
mudança nelas; algo se rompeu irremediavelmente e o
tempo parece correr de maneira desordenada e caótica.
O futuro, impregnado de incerteza, gera angústia e o
passado-que-não-passa não lhes dá paz: a experiência
traumática, fixada pelo pânico na memória emocional
mais profunda, se reapresenta o tempo inteiro e arde.
Em tempos de pandemia, essa experiência abrange o
mundo todo. No momento em que escrevo, olhamos as
nossas vidas de poucos meses atrás e parece que se
passaram anos. O medo sentido nos dias mais duros, que
pensávamos ter superado, se reapresenta inalterado a
cada vez que os contágios voltam a aumentar.
Perguntamo-nos ansiosos sobre o futuro e já medimos as
várias coisas que mudaram e talvez nunca voltem a ser
como antes.
“O tempo está fora dos eixos. Oh, maldita sorte ter
nascido para endireitá-lo!” Quando Hamlet profere essa
frase, a cadeia de eventos que ocupará o resto da
tragédia já está delineada com clareza. Acabou de
ocorrer a mais terrível das contaminações: o mundo dos
espectros se mesclou com o dos homens. O pai,
assassinado à traição pelo irmão Cláudio, apareceu ao
filho para lhe contar a verdade e pedir que faça justiça.
Um crime horrendo subvertera a ordem constituída. O
veneno derramado no ouvido do rei perturbou o ritmo
das genealogias, mudou a cadência regular da sucessão
das gerações, e tudo apodrece como num monstruoso
emaranhado de ervas selvagens. Caberá a Hamlet, o
relutante, recolocar o tempo nos eixos e restabelecer a
verdade.
Ninguém melhor do que Shakespeare soube reconstruir
o clima claustrofóbico e alucinado que se vive nas épocas
em que o fluxo ordenado do tempo se despedaça. Na
Dinamarca, o fratricídio, a violência para com o próprio
sangue, abalou todas as relações entre os seres
humanos. O crime de Caim, precursor de todas as
violências de que os homens são capazes, subverte o
ritmo regular que preside à ordem cósmica. Tudo é
infectado por uma doença maligna. Anarquia e desordem
abalam as articulações da sociedade, até penetrar nos
meandros mais ocultos da alma humana. O tempo,
tornando-se tóxico pelo sangue derramado, leva o
veneno para as profundezas do espírito e constitui um
perigo mortal para todos. Para sobreviver, Hamlet
encontrará refúgio na loucura e recorrerá à chave da
narração. Quando a trupe de atores representar o
homicídio do pai na esfera da ficção por antonomásia, o
palco, a verdade será conhecida por todos. Metáfora do
poder que a arte tem de salvar o mundo.

E aqui estamos, quatrocentos anos depois, numa época em


que, para nós também, o tempo parece ter saído dos
eixos, interrogando-nos sobre um enigma que intriga a
humanidade há milênios. O que é o tempo?
Conseguiremos algum dia derrotar o seu avanço
inexorável? Pode-se inverter a flecha do tempo? Ele tem
realmente existência própria ou trata-se apenas de uma
ilusão gigantesca?
Para entrar nessa questão, será preciso entender como
nasceu o sentido do tempo e quando essa organização
em passado, presente e futuro se apresentou pela
primeira vez aos nossos distantes antepassados. Mas,
acima de tudo, será importante indagar o que é o tempo
para os objetos materiais que nos rodeiam.
A ciência moderna nos permite explorar os cantos mais
recônditos do universo e, quando se analisam os
fenômenos que ocorrem na escala das dimensões
subnucleares, o tempo adquire características muito
diferentes daquelas a que estamos acostumados. O
mesmo acontece quando se observam os objetos
gigantescos que povoam o cosmo nas grandes
distâncias, as galáxias ou os aglomerados de galáxias.
Nesses dois mundos tão distantes entre si, aquela
passagem harmoniosa e constante do tempo, que nos
encanta há milênios, se contorce, se liquefaz, se
despedaça. Espaço e tempo nos aparecem como um par
indissociável; não um conceito abstrato, mas uma
substância material que ocupa o universo inteiro, que
vibra, oscila e se deforma.
Descobriremos juntos a longa história do tempo, o seu
nascimento furioso e a sua bizarra evolução. Viajaremos
com a imaginação para os lugares assustadores onde o
tempo para, e exploraremos assombrados a estreita
relação que o liga à energia. Uma relação tão especial
que consegue fazer brotar do vácuo um maravilhoso
universo material.

Os antigos gregos representaram Chronos como um Titã, filho


de Urano e de Gaia, que devorava os próprios filhos
porque lhe fora profetizado que um deles o deporia. Um
dos seus herdeiros viria repetir com ele o ato de rebelião
que o levara a castrar o pai e tomar o seu lugar. Como os
seus filhos eram seres divinos, Chronos não podia matá-
los, e assim, para neutralizá-los, devorava-os. Terrível
metáfora das nossas angústias mais profundas: que o
tempo consome e destrói não só a nós próprios, mas
também toda a nossa progênie e, com ela, as obras que
imaginamos mais duradouras. Somente Zeus conseguiu
escapar ao seu destino, porque Chronos, enganado pela
esposa-irmã Rea, engoliu uma pedra em lugar do recém-
nascido. Assim, envenenando o pai, Zeus realizou a
profecia e tomou o seu lugar como senhor da criação.
Desde então, o sonho de matar Chronos é recorrente
na comunidade humana sob a forma do desejo de parar
o tempo, ou da ilusão de poder retirá-lo do lugar central
que ocupa na natureza. Mas poderemos realmente,
algum dia, nos libertar de Chronos?
parte i

O encanto dos piões


1. O desejo de dominar o tempo

Meu netinho mais novo se chama Jacopo e é um menino


robusto. Jorra energia por todos os poros e, um gigante
em miniatura, parece muito maior do que os seus dezoito
meses. É brincalhão e curioso e, como todas as crianças
da sua idade, agarra e manuseia qualquer coisa que lhe
chegue às mãos. Como ocorre com frequência nesses
casos, pais e avós saqueiam as lojas de brinquedos para
pôr à sua disposição construções caras e coloridas de
madeira. São objetos lindos, concebidos para
desenvolver a curiosidade das crianças e treinar a
destreza delas. Jacopo lhes dedica um olhar distraído, ou
brinca com eles, desinteressado, por poucos minutos.
Depois regressa à sua ocupação principal.
É atraído por objetos simplicíssimos: coleciona todos os
tipos de tampas, desde as de champanha às de plástico
das garrafas de leite. Entusiasma-se por algum pote
cilíndrico, como os dos hidratantes usados por sua mãe,
mas também se interessa por pequenos objetos de forma
irregular. O importante é que possam se transformar em
piões. Encontra, por tentativa, os eixos de simetria dos
vários corpos que maneja e age com sistemática
determinação até conseguir produzir a mágica rotação.
Então olha encantado o pequeno objeto que permanece
em equilíbrio rodando sobre si mesmo, e pode-se ler nos
seus olhos o orgulho por ter realizado a façanha. Sente-
se reconfortado que a magia se reproduza, sente-se
tranquilo porque o mundo lhe obedece.
A perfeita regularidade dos movimentos periódicos tem
um fascínio irresistível também para os humanos adultos.
Apesar dos progressos da ciência, que desvendou muitos
dos seus segredos, e das inúmeras missões de
exploração, ainda ficamos encantados a cada aparição
da Lua num belo céu estrelado. Exatamente como
Jacopo, olhamos extasiados esse pião maravilhoso que
gira ao nosso redor e ficamos fascinados pela repetição
das suas fases.
Nas profundezas da nossa alma ainda ressoa o
assombro da humanidade criança diante do Sol que
completa o seu percurso no céu, do brilho das estrelas
que se acende na escuridão da noite, do dia que se
alterna à noite.
Os grandes corpos celestes que giram em perfeita
harmonia nos hipnotizam há milênios. Os mecanismos
que regulam os seus movimentos se mantiveram
obscuros para nós até poucos séculos atrás, e durante
muito tempo tudo foi divinizado. Cada cultura elaborou
uma narrativa própria, dando nomes diferentes ao
mesmo protagonista: Rá para os egípcios, Apolo para os
gregos, Itzamna para os maias. A divindade garantirá o
surgimento da luz e a alternância das estações, e da sua
benevolência dependerão colheitas abundantes ou
terríveis secas. Comunidades inteiras prosperaram
graças a chuvas periódicas, ou a enchentes benéficas de
um grande rio que fertilizava os campos cultivados. Por
um tempo indeterminável, o pesadelo mais assustador
para qualquer povo de criadores ou agricultores foi que o
Sol não aparecesse e os dias mergulhassem numa
escuridão sem fim. Para esconjurar essa eventualidade,
edificaram-se templos magníficos e organizaram-se
importantes cerimônias. Ritos, sacrifícios, atos de
submissão às divindades que deviam manter a
estabilidade desses ciclos imprimiram ritmo à vida de
civilizações inteiras.
Quando a magia se rompe

O nosso sentido do tempo, como cadência regular de


eventos que se repetem desde o alvorecer da
humanidade, tem raízes nessa história milenar. Qualquer
coisa que ameaçasse esse mecanismo perfeito constituía
um perigo para a sobrevivência de toda a espécie
humana. Não por acaso o poder era confiado a
sacerdotes e astrônomos, os mais sábios na organização
de um calendário, no conhecimento dos segredos ocultos
nesse fluxo regular. Quem compreende as leis da
passagem do tempo domina o mundo, quem é capaz de
corrigir aquele sutil desvio na sucessão dos dias e das
estações que a torna imperceptivelmente irregular pode
exercer um poder imenso sobre os homens.
A repetição cíclica é harmonia e tranquilização.
Dominando os obscuros saberes dos quais depende a
regularidade do movimento dos astros, os sábios
reconhecem e controlam as irregularidades do tempo.
São capazes de assimilá-las com reformas periódicas dos
calendários e têm a capacidade de prever os eventos
anômalos, como os eclipses, aquelas noites em que a
Lua perde subitamente o seu esplendor ou os dias
terríveis em que o Sol se torna negro e a escuridão das
trevas envolve o mundo.
Daqui nasce o poder oculto e misterioso das elites: elas
detêm o poder porque compreendem as leis do tempo. A
elas é confiada a organização da estrutura social, porque
colocaram ordem no mundo externo do qual depende a
vida de toda a comunidade.

Hoje sabemos que tudo isso deriva de um conjunto de


circunstâncias muito peculiares que colocaram os seres
humanos no centro de um complexo sistema de corpos
celestes. A Terra gira sobre si mesma a cerca de 1700
quilômetros por hora; acompanhada pelo seu grande
satélite, a Lua, orbita ao redor do Sol a mais de 100 mil
quilômetros por hora. O sistema solar inteiro percorre
uma gigantesca trajetória circular em torno de
Sagittarius-A*, o buraco negro que domina o centro da
nossa Via Láctea; a velocidade parece enorme, 850 mil
quilômetros por hora, mas são necessários mais de 200
milhões de anos para realizar uma revolução completa; a
galáxia inteira, por fim, se move a cerca de 2 milhões de
quilômetros por hora, em direção a uma zona de alta
densidade de matéria, onde se encontram o Grande
Atrator, uma família de aglomerados e, principalmente, o
Superaglomerado Shapley, uma verdadeira megalópole
de galáxias, a cerca de 600 milhões de anos-luz da Terra.
Para tornar tudo ainda mais complicado, a nossa louca
corrida parece nos levar numa rota de colisão com a
grande galáxia de Andrômeda.
O ritmo regular do nosso tempo, a sua periodicidade
quase perfeita, nasce desse conjunto intricado e
complexo de piões maravilhosos. Observado numa
escala temporal infinitesimal em comparação aos
processos cósmicos, o cantinho de universo que
ocupamos nos parece pacífico e tranquilo. Nós o
habitamos há poucos milhões de anos, e as primeiras
observações de que temos testemunho remontam a
alguns milhares de anos. Uma ninharia para um sistema
que está em evolução há bilhões de anos. A nossa
ignorância e um certo grau de arrogância nos
convenceram a estender ao universo inteiro as condições
que observamos nessa minúscula porção do todo. Por
isso imaginamos que a passagem fluida e regular do
tempo, marcada por fenômenos periódicos tão
reconfortantes para nós, seria uma característica do
universo no seu conjunto.
Na verdade, não é assim. As zonas turbulentas,
aquelas dominadas por fenômenos caóticos ou
caracterizadas por enormes catástrofes, os lugares
obscuros onde as nossas observações nos levam a supor
sistemas solares inteiros despedaçados por explosões de
supernovas, ou galáxias distantes devastadas por
núcleos galácticos ativos, são muito mais comuns do que
imaginamos. Esses mundos distantes são um desafio ao
nosso conceito do tempo como um fluxo contínuo e
regular.
Hoje sabemos que, mesmo no nosso sistema solar,
realmente não é preciso uma grande diferença para
romper esse equilíbrio delicado. Se as dimensões da Lua
fossem muito menores do que as atuais, o eixo de
rotação da Terra não seria tão estável. A nossa plácida
Lua age como um grande giroscópio que estabiliza o eixo
de rotação terrestre e restringe suas mudanças a
pequenas oscilações em relação ao plano da órbita. Esse
efeito é decisivo para definir as zonas climáticas
terrestres e garantir a constância das estações nas zonas
tropicais e temperadas em escalas temporais muito
longas. Tudo isso teve um papel determinante no
desenvolvimento de formas de vida vegetal e animal
extremamente diferenciadas e na sobrevivência dos
respectivos nichos ecológicos. Se, pelo contrário, as
dimensões da Lua fossem maiores do que as atuais,
haveria grandes efeitos de maré no nosso planeta e
significativas perturbações da órbita terrestre. Em ambos
os casos, o nosso conceito de tempo como ciclo
ordenado seria posto em séria discussão.
Mas durante milênios ignoramos tudo isso. Se não
habitássemos num canto do universo caracterizado por
fenômenos periódicos e regulares que desde sempre nos
fascinam, nunca teríamos desenvolvido a noção comum
de tempo. Embalamo-nos na ilusão de estar no centro de
um mecanismo perfeitamente concebido, eterno e
imutável. Por isso todos os episódios que rompem o
encantamento nos fazem mergulhar na angústia.
O tempo da vida

Na primeira vez em que eu o vi, fiquei sem fôlego.


Giorgione é um grande pintor que nos deixou
pouquíssimas obras; desde jovem eu o tenho entre os
meus preferidos, e procurei as suas obras em todos os
museus do mundo. Ainda lembro a emoção que senti
quando me encontrei diante das Três idades do homem,
na Galeria Palatina de Florença.
Com um estratagema clássico, a obra nos apresenta
uma reflexão sobre a precariedade da condição humana.
O mesmo personagem é representado quando jovem,
depois como adulto e, por fim, já velho; as três figuras
interagem amavelmente, camuflando com a mais plena
naturalidade uma absurda sincronia de eventos
separados por décadas. À esquerda, o idoso cansado, já
próximo do fim, volta-se em nossa direção e perfura o
quadro com um olhar decidido e pesaroso, que penetra
diretamente nas pupilas do observador: “E você, pensa
que a coisa não lhe diz respeito? Terá talvez a ilusão de
que você mesmo não faz parte dessa representação?”.
Essa terrível advertência contra qualquer forma de
vanitas se tornará uma espécie de obsessão que, um
século depois, atormentará outro grande nome da
pintura.
Rembrandt van Rijn nos deixou dezenas de
autorretratos: trinta águas-fortes, doze desenhos e não
menos de quarenta pinturas. Todas elas eram obras que
executava e guardava para si, nenhuma ia para as mãos
dos clientes ricos de toda a Europa que acorriam a ele. E
assim pode-se ver ainda hoje a minuciosidade com que
ele quis registrar o avanço inexorável do tempo: a pele
do rosto que se torna cada vez mais flácida, os olhos que
perdem firmeza, pequenas veias que afloram por toda
parte não agridem mais as rugas e os traços do pincel
que acompanham, com uma marca que se desfaz na cor,
essa progressiva liquefação da vitalidade. Desse modo,
Rembrandt nos presenteia com uma série magistral de
autorretratos em que parece antecipar os modernos
softwares de face morphing, capazes de, em poucos
segundos, transformar o rostinho fresco de um recém-
nascido no rosto decrépito de um centenário.
A sensação do lento consumir-se da nossa existência
terrena — a mais comum, talvez, das experiências
humanas — intrigou artistas de todas as épocas e
continua a intrigar ainda hoje, porque relembra a todos o
traço mais básico da condição humana. Como já cantava
Lorenzo, o Magnífico, nas Rimas, Soneto xlii: “Tudo é
fugaz e pouco dura, e a Fortuna no mundo é mal
constante; só permanece e sempre dura a Morte”.
A consciência da nossa precariedade e o fim inelutável
que nos aguarda podem tornar dramático o senso da
passagem do tempo. Quanto mais se aproxima o ocaso,
mais se aguça a consciência de que, ao contrário dos
fenômenos naturais, em cujo andamento cíclico se
alternam morte e renascimento, a nossa vida individual
se assemelha a uma linha reta rompida: teve um início e
depois de várias passagens terminará, de modo mais ou
menos brusco, e terá se acabado para sempre. O tempo
que passa torna-se vida fugindo entre os dedos,
implacavelmente.
Dessa sutil inquietação brotaram coisas maravilhosas,
como as grandes arquiteturas do pensamento, os
sistemas filosóficos e as crenças religiosas. O temor de
que tudo possa acabar no nada impeliu os indivíduos
mais capazes a tentarem realizar obras imortais ou a
praticarem proezas memoráveis, na esperança de que
fossem lembradas por milênios. As inúmeras obras-
primas da arte que ainda admiramos séculos depois e as
mais profundas elaborações do pensamento são frutos
magníficos desse humaníssimo medo.
A nossa linhagem, frágil e mortal, que tem uma breve
existência no cenário grandioso de uma natureza
aparentemente perfeita e imutável, vive essa condição
de absoluta precariedade como um xeque-mate. As
coisas mais belas produzidas pela humanidade nascem
do sonho de deixar uma marca indelével dessa fugaz
passagem. Desde sempre desafiamos o tempo dispondo
grandes pedras em círculo ou pintando um cortejo de
animais numa gruta escura; na tentativa de rivalizar com
a eterna recorrência dos movimentos celestes, erigimos
construções gigantescas ou desenvolvemos teorias para
explicar o mundo.
Assim nascem a filosofia, a arte e a ciência, e também
as crenças milenares que imaginam uma vida após a
morte. Se a nossa existência individual prosseguisse sob
formas diferentes após o fim terreno, tornar-se-ia
possível reparar injustiças e sofrimentos. Inseridas num
quadro mais grandioso, as inúmeras incongruências
desse mundo adquiririam um sentido. O poder
consolador das grandes religiões alivia a dor e atenua o
medo, colocando num quadro mais amplo a existência
individual de cada um de nós. Na perspectiva de um
“além” fundaram-se sistemas éticos, regras de
comportamento, proibições e tabus que caracterizaram
civilizações inteiras. Uma visão de mundo que incorpora
as existências individuais numa trama de eternidade
ganha a autoridade necessária para definir regras e
hierarquias sociais às quais toda a comunidade deve se
ater. Pondo ordem no fluxo angustiante do nosso tempo
de vida, libertando-nos do medo de que a nossa
existência seja apenas uma passagem desprovida de
sentido, tal visão constrói os fundamentos de uma ordem
capaz de organizar comunidades muito complexas e de
realizar obras grandiosas.
Vasos e sepulturas: o nascimento de presente, passado,
futuro

Os rituais de sepultamento — práticas ancestrais que


remontam à aurora dos tempos — são uma
demonstração inequívoca das profundas raízes da
organização mental do tempo em passado, presente e
futuro, entranhadas dentro de nós, homens modernos.
A descoberta de tumbas e corpos sepultados nos
transporta para culturas distantes, cujas características
nunca conseguiremos reconstituir plenamente, mas que,
com toda certeza, imaginavam um futuro após a morte.
Reuniram-se provas irrefutáveis de rituais funerários já
praticados pelos neandertais, que povoavam a Europa
dezenas de milhares de anos antes da chegada dos
Sapiens. Os esqueletos dispostos em posição fetal, as
marcas de ocre vermelho, a presença de conchas e
resíduos de pólen de flores nos revelam atividades
complexas e dispendiosas. Naquela Europa gélida,
atingida por terríveis glaciações, as pequenas
comunidades deviam concentrar grande parte das suas
energias na sobrevivência cotidiana. Se uma quantidade
considerável de tempo e esforço era subtraída da
espasmódica busca de alimento, isso significa que se
atribuía aos rituais fúnebres uma importância
fundamental. As cerimônias consolidavam o grupo, o luto
coletivo elaborado pelo clã selava um pacto de apoio
entre gerações: os jovens adultos da comunidade
renovavam a sua proteção em relação aos mais frágeis,
aos idosos e às crianças.
Nada sabemos sobre tais cerimônias, ignoramos se
havia um xamã a guiar o rito, nem conhecemos a
linguagem que era utilizada e se as palavras eram
acompanhadas por sons ou movimentos ritmados do
corpo. Mas os cadáveres sepultados em posição fetal ou
pintados com a cor do sangue nos permitem conjeturas
muito plausíveis. Tudo leva a pensar que o cadáver era
preparado para um novo nascimento, que a morte era
considerada uma passagem e, portanto, que se
imaginava um futuro para o indivíduo que acabara de
deixar o grupo. Por isso embelezavam o corpo com um
enxoval funerário e incluíam, talvez, pequenos
instrumentos para ajudá-lo a enfrentar a nova existência.
Presente, passado e futuro, relato e sepultamento,
constituíram a arquitrave em torno da qual se formaram
os primeiros embriões de civilização, a ponto de
podermos considerá-los elementos fundadores do nosso
devir humano.

Outro símbolo tangível dessa nova organização do tempo é


a produção de vasilhames. A introdução do vaso de argila
é um marco na história da Antiguidade. O aparecimento
dos primeiros recipientes define uma fase crucial da
evolução humana. Os pequenos grupos que inventam
recipientes para conservar água ou reservas de alimento
organizam de uma nova maneira o espaço que os rodeia,
e a transformação é irreversível. Não será mais possível
voltar atrás. A argila maleável lhes permite construir um
vazio, uma cavidade que divide o mundo entre um fora e
um dentro; este último pode con-ter e, portanto,
transformar-se em um cheio.
Essa organização diferente do espaço traz em si uma
drástica transformação do conceito de tempo: a
separação rompe o eterno presente que havia
caracterizado a vida cotidiana — “há fartura de
alimentos, comamos tudo” — para construir uma
sequência em que o futuro ocupa um lugar central. Não
consumimos hoje todos os recursos de que dispomos,
porque amanhã poderemos precisar deles. A vasilha
atesta um projeto, a ideia de um grupo que se organiza
para construir o seu amanhã. E aqui estamos nós,
empregando ainda hoje a mesma sequência temporal
ordenada.
Na palavra “tempo” ressoam témno, corto, separo, e
témenos, recinto cercado, que indica a separação de um
intervalo. Por outro lado, na ideia do presente como
sucessão de átimos, instantes sem espessura, encontra-
se a mesma raiz de átomo, indivisível. As sutilezas do
tempo não escaparam aos sábios da Grécia clássica, que,
não por acaso, utilizavam palavras diferentes para
ressaltar as suas diversas acepções.
Chrónos é o tempo que passa, aquele que marca, com
Anaximandro, o inevitável retorno ao absoluto com a
morte: destino último de todos os seres que se
separaram do infinito, formando-se como entidades
individuais e diferenciadas. E é também o nosso tempo
de vida, o tempo dos seres humanos, aquele em que se
desenvolve a história. Aión é o tempo místico ou
metafísico, que se pode traduzir por eternidade ou,
simplesmente, vida; é o tempo sem tempo, o instante
perfeito congelado para sempre, o espírito vital
personificado no menino que joga dados, de Heráclito.
Kairós para os sofistas é o momento oportuno, um
instante intersticial entre Chrónos e Aión, sob a égide de
Hermes. Átimo sem espessura, que foge veloz como o
deus alado. Eniautós pode significar ano, mas também
período, e é uma medida de Chrónos, projetada também
no infinito como ciclo que se repete indefinidamente.
E a reflexão filosófica decorrente se revela de imediato
repleta de armadilhas e paradoxos. Para Parmênides o
tempo é apenas uma ilusão, filha do devir que contrasta
com a imutabilidade do Ser. Ele considera absurda essa
subdivisão que encerra o presente — instantâneo e, por
definição, fora do fluxo do tempo — entre um passado
que não é, porque já foi, e um futuro que não é, porque
ainda virá a ser. Platão resolverá o dilema, pelo menos
parcialmente, aceitando o tempo como sequência de
passado, presente e futuro apenas para o mundo
material, imperfeito e corruptível, enquanto ao mundo
das formas, essência perfeita e imutável das coisas,
caberá um eterno presente sem tempo. Na mesma linha,
Aristóteles distinguirá entre o tempo cíclico, definido pelo
movimento regular e perfeito das esferas celestes, e o
primeiro motor imóvel, situado na eternidade, fora do
tempo, concepção que dominará o pensamento ocidental
desde o alvorecer da era moderna.
Será um pensador cristão, Agostinho de Hipona, o
primeiro a interiorizar com profunda consciência o
conceito de tempo: “É em você, minha alma, que meço o
tempo”. Ele coloca em discussão a realidade de passado,
presente e futuro, uma vez que o primeiro não é mais, o
terceiro ainda não é e mesmo o próprio tempo presente,
se fosse sempre presente, sem se tornar passado, não
seria mais tempo e sim eternidade. Mas, enquanto
desintegra a sua substância, Agostinho recupera o
conceito de tempo como sucessão de estados de
consciência: “Percebemos os intervalos de tempo”. Os
três tempos existem somente na nossa alma: “O
presente do passado é a memória, o presente do
presente é a visão, o presente do futuro é a espera”.
Interiorizando o tempo e reduzindo-o a uma extensão
da alma, Agostinho, no século iv, antecipa aquilo que o
desenvolvimento das neurociências modernas nos fez
entender com uma quantidade impressionante de
evidências: a forte presença do sentido do tempo na
percepção humana, como instrumento indispensável
para a sobrevivência da espécie.
2. O nosso tempo

Como muitos animais e inúmeros seres vivos do planeta, nós


humanos também percebemos nitidamente o passar do
tempo. Isso nos é necessário para ligar os eventos entre
si, pô-los em sequência e entender as suas relações
causais. Permite-nos evitar perigos e aproveitar
oportunidades; numa palavra, é um instrumento
essencial para a sobrevivência.
Muitos ciclos vitais do nosso corpo têm um andamento
periódico: batimento cardíaco, respiração, alternância de
sono e vigília. O controle da sua regularidade é quase
sempre inconsciente, mas basta uma perturbação,
mesmo que mínima, para que o alarme dispare
imediatamente. Ocorre algo parecido também em
relação ao ambiente que nos rodeia.
À diferença do que ocorre com os sentidos tradicionais,
como a visão e a audição, não temos um órgão
especializado para o sentido do tempo. Diversas regiões
do cérebro se ocupam de avaliar a espera de um evento,
comparando o intervalo de tempo passado com outros
armazenados na memória, colocam em sequência os
eventos e os ordenam no espaço. Um processo muito
complicado no qual usamos todo o corpo e ao mesmo
tempo os nossos sentidos, mas em que é a nossa mente
que realiza a função mais importante. Dela participam
muitas zonas do córtex frontal e parietal, mas também os
gânglios da base, o cerebelo e o hipocampo, que preside
ao sentido de espaço e organiza as emoções e a
memória.
A consciência do tempo é um produto do nosso
cérebro, conforme foi dramaticamente comprovado em
indivíduos que sofreram graves lesões cerebrais. Louise
K. era uma funcionária exemplar que realizava o seu
trabalho com grande precisão. Depois de um derrame, do
tratamento e de um período de reabilitação, havia
retomado o trabalho sem muitas dificuldades. Até o dia
em que se levantou da escrivaninha para verificar uma
data no calendário e os colegas a viram ficar absorta, por
mais de uma hora, diante da parede. Na sua mente essa
ação durara poucos segundos, mas no mundo regulado
pelos relógios ocupara-a durante uma parte significativa
da manhã.
Há pacientes afetados por tumores cerebrais, ou
vítimas de acidentes, que manifestam alterações
impressionantes do sentido do tempo e, às vezes, o
perdem por completo. A vida dessas pessoas é muito
difícil. A mais simples operação cotidiana, como levantar
da cama para tomar café da manhã ou tirar as roupas
antes de ir dormir, torna-se um desafio excruciante.
Qualquer atividade baseada no controle de sequências
temporais bem definidas, como falar, andar ou interagir
com outras pessoas, torna-se uma tarefa impossível. A
sua existência se desagrega numa série de eventos não
ligados entre si, totalmente casuais.
O sentido do tempo

As neurociências modernas têm dado passos gigantescos


na compreensão dos processos que nos permitem
“sentir” o tempo. Descobriu-se que as lembranças
abrangem o espaço e o tempo em que foram vividas e
que também os nossos sonhos são organizados numa
sequência temporal. O sentido do tempo está em
atividade mesmo quando não estamos conscientes, e o
nosso cérebro elabora processos temporais mesmo na
ausência de percepções externas.
Para compreender melhor alguns dos mecanismos
elementares, conduziram-se muitos estudos sobre o
comportamento animal e realizaram-se experimentos até
mesmo com insetos. A conclusão é que mesmo seres
vivos dotados de estruturas cerebrais muito mais simples
do que as nossas conseguem organizar sequências
temporais, estimar a sua duração, avaliar os intervalos
de tempo e organizar a espera.
Os exemplos mais comuns são os animais que, para
sobreviver ao inverno, escondem alimentos em diversos
lugares; ou os insetos sociais, como as formigas, que
conseguem organizar complexas estruturas hierárquicas
e se orientar nos labirínticos formigueiros — atividades
que seriam impossíveis sem um forte sentido do tempo e
do espaço.
São famosos alguns experimentos realizados com
ratos, pombos e até com abelhas. Colocando alimento
em lugares diferentes e em horários diferentes,
observaram-se abelhas que voam no momento certo,
precisamente para o lugar em que surgirá o alimento. Na
verdade, nenhum inseto sobreviveria se fosse totalmente
desprovido de mecanismos que lhe permitam se orientar
no espaço e no tempo. Em alguns, parece confirmada até
mesmo uma forma elementar de avaliação quantitativa,
muito/pouco, que orienta as suas escolhas. Trata-se de
mecanismos primordiais da evolução animal, que
chegaram a nós porque se revelaram muito eficientes.
Reconstruir uma sequência de acontecimentos
temporalmente ligados nos permite estabelecer nexos de
causalidade e gera consciência: sei o que acontecerá
depois e consigo também estimar a duração da espera. O
sentido do tempo me beneficia na busca de alimentos,
permite que eu me prepare para a ação ou para fugir de
um perigo. São os nossos genes que nos transmitem
esse instrumento fundamental para nos orientarmos no
mundo.

As emoções e a memória desempenham um papel importante na


construção do sentido do tempo nos seres humanos. É
por isso que o tempo subjetivo pode se mostrar muito
diferente do tempo medido pelo relógio. Uma série de
fatores pode deformá-lo significativamente. Se estamos
tranquilos e relaxados, estimamos durações inferiores às
reais; no entanto, quando um criminoso nos ameaça, por
exemplo, o tempo passa muito mais devagar e a
angústia amplia cada instante; a experiência traumática
é gravada na memória como se a vivêssemos em câmera
lenta.
Quando temos um compromisso importante, põe-se em
ação no nosso cérebro o mecanismo da espera e se
produz uma previsão genérica sobre a sua duração.
Conforme o tempo passa, com a inquietação que
aumenta porque ninguém aparece, mecanismos
automáticos comparam a espera efetiva e a espera
prevista e avaliam a diferença; daqui nascem os
mecanismos de ansiedade que nos levam a consultar
compulsivamente o relógio ou o celular. Também nesse
caso poucos minutos podem se tornar uma espera
interminável.
O sentido do tempo permite que a consciência coloque
ordem no ambiente externo e o organize de modo
coerente, mas isso se dá de modo levemente diferente
para cada um de nós. O tempo individual, subjetivo e
pessoal, difere do tempo marcado pelos relógios porque
pode ser desmesuradamente dilatado ou comprimido
pelas nossas emoções.
Ainda mais intrigante é o que se descobriu sobre a
ilusão do presente e da simultaneidade. Se estou diante
do espelho e decido tocar o meu nariz, vejo o meu
indicador roçando a ponta do nariz e percebo ao mesmo
tempo a sensação tátil, mas tudo isso é um artefato. Os
sinais visuais e táteis se moveram em velocidades
diferentes no meu corpo e foram processados em zonas
diferentes do cérebro. Cada uma extraiu a informação
recorrendo a bancos de memória e experiências
precedentes e, por fim, tudo foi reajustado no plano da
consciência sincronizando o conjunto dos sinais que me
dará a ilusão de que tudo ocorreu simultânea e
instantaneamente. Na verdade, esse processo levou
cerca de meio segundo, que é o retardo típico com que
tomamos consciência do presente. Os mecanismos
cerebrais que produzem a consciência ajustam as
latências, comprimem os tempos de transmissão e
anulam as diferenças que produziriam uma visão
incoerente do mundo que nos rodeia. Sob certos
aspectos, nunca vivemos no presente-presente, e sim
num presente que se passou cerca de meio segundo
atrás, que é lembrado e reelaborado pelo nosso cérebro.
Meio segundo não é pouco. Se não existissem
mecanismos semiautomáticos desencadeando a ação
bem antes que a consciência do evento se forme, seria
um grande problema. Os corredores que competem nos
cem metros levam pouco mais de um décimo de segundo
para reagir ao disparo do revólver do juiz dando a
largada. Aptidões individuais e treinamento constante os
levam a automatizar a reação disparo-largada, e só
depois de já terem percorrido alguns metros é que
tomam consciência de que, de fato, houve a largada. O
mesmo ocorre quando vemos o carro à nossa frente
parar de repente; o reflexo semiconsciente que nos faz
pisar no freio dispara bem antes que se forme a plena
consciência de que corremos o risco de bater.
O presente que vivemos é, portanto, um artefato
bastante complicado. Mas o nosso passado também é
muito diferente do catálogo imutável das experiências
vividas que imaginamos. Com efeito, a nossa memória é
plástica: a cada vez que nos lembramos de um episódio,
de certa forma o revivemos, acrescentando ou retirando
algo à experiência original. As nossas emoções, até
mesmo o estado de ânimo de um momento, podem
modificar significativamente a experiência vivida. Basta o
odor inesperado de um biscoito, de uma madeleine
mergulhada no chá de tília, para despertar em Marcel
Proust a saudade de um mundo inteiro. Sem esse evento
fortuito, as experiências tão vívidas que Em busca do
tempo perdido descreve teriam talvez continuado
sepultadas para sempre na sua memória.
Mas há também um passado que nunca passa, como
acontece com Christian, protagonista de Festa de família,
a obra-prima cinematográfica de Vinterberg que estreou
em 1998. Cabe a ele, filho primogênito, fazer o brinde de
aniversário ao pai, por ocasião da grande festa pelos
sessenta anos do chefe da família. Os Klingenfeldt são
magnatas do aço, o ambiente é de alta burguesia e tudo
emana elegância e polidez. Mas, no momento em que
Christian ergue a taça, o passado-que-não-passa assume
o controle e irrompe como um rio na enchente. Num
silêncio gélido, o filho censura o pai pela violência sofrida
quando criança. Na ocasião parece não acontecer nada;
apesar daquelas palavras terríveis, o jantar prossegue
numa atmosfera surreal. Mas alguma coisa se rompe e,
lentamente, tudo soçobra na catástrofe.
Foi Sigmund Freud o primeiro a entender que uma
experiência traumática pode se incrustar por anos nos
meandros mais obscuros da alma humana e corroer toda
a energia vital. Sepultada no inconsciente mais profundo,
a dor de um episódio perturbador pode se reapresentar
de súbito, com efeitos devastadores. No nosso tempo
psíquico, o passado se entrelaça com o presente, às
vezes morde-o e lhe injeta veneno.
Tampouco a relação com o futuro é simples. O nosso
porvir não são as experiências que faremos e as coisas
que irão acontecer. Sob certos aspectos, ele nos
acompanha cotidianamente. O diálogo com o futuro,
imaginado ou temido, condiciona os nossos dias. As
expectativas, os sonhos que temos ou os medos
inconfessáveis que se aninham dentro de nós se
entrelaçam com o cotidiano vivido; o amálgama assim
decorrente, enriquecido pelas experiências que vivemos,
reorganiza-se como futuro coerente.
Para todos nós, parece uma coisa óbvia que o que nos
acontece no presente sempre condiciona e, às vezes,
determina o nosso futuro. Mas frequentemente acontece
também o contrário — por exemplo quando nos ocorre
um evento inesperado, que parece mandar pelos ares os
nossos projetos para o futuro. Às vezes descobrimos
retrospectivamente que aquele episódio do passado que,
no momento, havíamos considerado uma verdadeira
desgraça na verdade nos permitiu depois alcançar metas
inimagináveis.
Em suma, o nosso sentido do tempo é
indiscutivelmente concreto, mas a questão é muito mais
complicada do que nos parece. Mesmo porque hoje
vivemos numa sociedade complexa, em que o tempo
desempenha um papel de rígido regulador de todas as
nossas atividades e das nossas próprias vidas. Mas nem
sempre foi assim.
Quando Chronos corria livre e selvagem

Em 10 de abril de 1815, uma gigantesca coluna de


fumaça e poeira se ergueu do vulcão Tambora, na
Indonésia. A enorme erupção, uma das maiores da
história, resultou em dezenas de milhares de vítimas e
produziu uma mudança global do clima. O ano seguinte,
1816, será lembrado no mundo inteiro como o ano sem
verão e dará início a uma série de invernos muito frios,
que dizimarão as colheitas. A explosão lançara na
atmosfera uma quantidade realmente extraordinária de
pedras, cinzas e outros materiais, demonstrando como
podem ser devastadores os fenômenos do paroxismo
vulcânico. Mas, mesmo graves, nenhum desses desastres
nunca poderá competir com a catástrofe produzida pelo
impacto de um asteroide.
A última das grandes colisões cósmicas que abalaram
o nosso planeta remonta a 65 milhões de anos atrás. Um
enorme bólido, de mais de dez quilômetros de diâmetro,
atingiu a península de Iucatã, no México, perto da atual
aldeia de Chicxulub. Podemos entender o que ocorreu
naquela circunstância pela análise dos sedimentos e
pelas prospecções efetuadas no mundo todo. O impacto
produziu uma cratera com 180 quilômetros de diâmetro e
profundidade de trinta quilômetros, e lançou na
atmosfera mais de 1 milhão de quilômetros cúbicos de
material. A imensa quantidade de poeira e detritos
obscureceu o céu por muitos séculos e desencadeou as
terríveis convulsões climáticas que levariam ao fim dos
grandes répteis. Foi a última das cinco extinções em
massa conhecidas no nosso planeta.
Quando os primeiros hominídeos apareceram na Terra,
a era das grandes catástrofes já terminara muito tempo
antes. Nem os nossos antepassados mais remotos
viveram uma época em que algum cataclismo tenha
devastado por décadas a alternância tranquilizadora do
dia e da noite.
Dias escuros, frequentemente devido a erupções
vulcânicas que escureceram o céu, foram documentados
historicamente em muitos países, mas eram sempre
episódios isolados, logo esquecidos quando as coisas
voltavam à normalidade. A família dos primatas à qual
pertencemos acostumou-se a viver no centro de um
sistema ordenado e regular, que nos parece imutável.
Nesse nosso passado remoto, a humanidade não
precisava medir a passagem do tempo. Durante milhares
de gerações, os nossos antepassados caçadores-
coletores organizaram as suas atividades seguindo o
ciclo natural de sucessão do dia e da noite e da
alternância das estações. O Sol, a Lua e planetas
constituíam os ponteiros do grande relógio celeste que
ritmava as suas existências.
Quis o acaso que o planeta que ocupa a terceira órbita
do sistema solar gire sobre si mesmo 365 vezes
enquanto realiza um giro completo em torno do Sol. No
mesmo período, por um conjunto de circunstâncias ainda
mais curiosas, a Lua se mostra aos habitantes da Terra
em todo o seu esplendor, plenamente iluminada, numa
dúzia de ocasiões. Essa combinação acompanhou por
milênios a vida e a atividade da longa sequência de
gerações que nos antecederam.
Naquelas épocas distantes, o tempo era apenas uma
sucessão de dias marcada por ciclos lunares e estações
que retornavam regularmente. Acordava-se ao nascer do
Sol; comia-se quando se estava com fome, desde que
houvesse alimento suficiente, o que era muito raro de
acontecer; quando chegava a noite, descansava-se. O
ciclo natural e o relógio biológico produzido pela
evolução caminhavam em perfeita harmonia.
Tal como aconteceu com inúmeras espécies vivas,
também no caso humano várias atividades se
sincronizaram com o ciclo natural do dia e da noite.
Plantas muito comuns, como a Mimosa pudica, têm
folhas que se fecham quando escurece e se abrem de
novo à primeira luz da manhã. O surpreendente é que
esse ciclo permanece praticamente inalterado mesmo
quando a planta é mantida sempre no escuro. Clara
evidência de um mecanismo interno, um relógio biológico
geneticamente determinado, que opera prescindindo dos
sinais luminosos.
De alguma forma, todos os seres vivos do planeta Terra
devem se adequar às mudanças cotidianas produzidas
pela rotação terrestre. A evolução selecionou genes
temporizadores dos mecanismos bioquímicos das células,
que lançam as suas raízes nas profundezas da nossa vida
ancestral e que se desenvolvem em ciclos de 24 horas,
os ritmos circadianos, termo derivado de circa diem,
“cerca de um dia”.
Alguns supõem que esse andamento periódico foi uma
vantagem evolutiva para as protocélulas, que na
duplicação do dna podiam se proteger dos altos níveis de
radiação ultravioleta da luz solar. Com efeito, existem
fungos que replicam o seu patrimônio genético nas horas
noturnas, mas ainda estamos distantes, talvez, de ter
compreendido todas as sutilezas. Também se comprovou
a presença de relógios circadianos nas cianobactérias
procariotas, uma das formas de vida mais antigas do
planeta, cuja origem remonta a 3,5 bilhões de anos atrás.
Disso nasce o nosso ritmo circadiano — de nós,
humanos —, um complexo jogo de produção e supressão
de melatonina, secreção de cortisol, variações da
temperatura e de outros parâmetros ligados ao sistema
cardiocirculatório que se desenvolve, justamente, nas 24
horas. No nosso corpo agem bilhões de células
especializadas, que contêm, porém, o mesmo código de
informações hereditárias e têm uma frequência própria
de oscilação. O sistema nervoso central, como um
grande maestro, coordena todas as suas atividades e se
empenha para que não haja grandes perturbações.
Os mecanismos que governam os ciclos circadianos
nos seres humanos são muito complexos, mas não há
dúvida de que fomos programados biologicamente para
sermos animais diurnos, muito mais ativos de dia do que
à noite. O nosso comportamento, o metabolismo e a
fisiologia do nosso corpo são sincronizados nesse ciclo de
24 horas. As nossas pálpebras fechadas, que são
semitransparentes, deixam passar cerca de 20% da luz,
determinando um mecanismo de sinais neurais de luz e
de escuridão. Mesmo quando dormimos, o nosso aparato
visual dialoga com o sistema nervoso central para
regular os ritmos circadianos, sincronizando-os com os
ciclos de sono e vigília. É por isso que, como já
aconteceu a todos nós, às vezes acordamos de repente,
embora ainda cansadíssimos, só porque a janela estava
entreaberta e um raio de sol matutino penetrou no
quarto.
Jeffrey C. Hall, Michael Rosbash e Michael W. Young, os
cientistas que demonstraram os mecanismos
moleculares que controlam os ritmos circadianos do
homem, foram agraciados com o prêmio Nobel de
medicina em 2017.
Assim, durante longuíssimo tempo, os relógios fomos
nós. O nosso relógio interno, que hoje perturbamos a
cada vez que cumprimos turnos à noite ou fazemos
viagens intercontinentais, lembra-nos implacavelmente
de sua existência, gerando várias formas de mal-estar.
Engaiolar o tempo

Não sabemos onde estava nem a que atividade se


dedicava aquele primeiro ser humano que teve a ideia de
explorar a sombra de uma vara cravada no solo. Bastava
usar como referência alguns seixos espalhados no
terreno para ter uma ideia bastante precisa do tempo
que restava à disposição. Talvez fosse um coletor que se
afastara demais da caverna que abrigava o seu clã. Ou
um pastor em busca de novos pastos, que receava
perder o caminho de volta para retornar ao seu refúgio,
no cair da noite. Com toda probabilidade, desde tempos
imemoriais observava-se a altura do Sol no céu para
estimar quanto faltava para vir a escuridão. Pois com a
escuridão vinham os perigos. O matagal se tornava o
reino dos grandes predadores noturnos e o caminho para
o abrigo podia esconder indivíduos hostis, prontos para a
emboscada.
As primeiras gaiolas de Chronos foram relógios solares
e calendários, que precedem os relógios em milhares de
anos. Tem-se a sua grande difusão com a revolução
agrícola, o nascimento dos comércios, a formação das
primeiras comunidades urbanas e das grandes
civilizações. Os novos métodos de cultivo permitem que
as populosas comunidades de indivíduos acumulem
alimentos e recursos. Mas tudo isso traz a necessidade
de seguir o ritmo das estações ou de prever as cheias
periódicas de um grande rio, para organizar as
semeaduras e as colheitas. Assim as lunações, o
solstício, o período do retorno regular dos produtos da
terra, silvestres ou cultivados, tornaram-se a base de
uma nova relação com o tempo.
Em muitas culturas, os mitos fundadores se
entrelaçaram com a construção do calendário, por meio
do qual definiram uma data de início dos tempos. Para os
maias, era 11 de agosto de 3114 a.C.; para a Bíblia, a
criação do mundo se dera em 6 de outubro de 3761 a.C.,
data ainda hoje usada pelos judeus ortodoxos que
seguem o calendário tradicional.
O instrumento de medição mais antigo, documentado
no Egito por volta de 1500 a.C., era um relógio solar
rudimentar, que explorava a sombra projetada no terreno
por uma estela ou um obelisco. Para medir o tempo,
desenvolveram-se também relógios d’água e clepsidras.
O movimento aparente do Sol, o aparecimento da estrela
Sirius e a Lua, com o seu ciclo quase mensal,
constituíram a base dos primeiros calendários. Para os
egípcios, o ano começava em 20 de junho, dia em que a
cheia do Nilo alcançava Mênfis, e era subdividido em três
estações de quatro meses cada: a inundação, o
reaparecimento da terra após o refluxo e a colheita.
Desde 2150 a.C. os egípcios dividiam a noite em
segmentos. O dia era subdividido em duas partes iguais,
de doze horas cada uma. A divisão do dia em 24 horas
certamente remonta aos caldeus e aos assírio-babilônios,
por volta do século viii a.C. A eles devem-se também a
divisão sexagesimal das horas e a do ângulo completo
em 360 partes.
Os assírio-babilônios, a partir do segundo milênio a.C.,
possuíam um calendário lunar de doze meses, cada um
com 29 ou trinta dias. Havia festas em todos os meses
para o plenilúnio e para o novilúnio, e tornou-se natural
subdividi-los nas quatro fases principais do ciclo lunar. Já
com Hamurábi, por volta de 1800 a.C., apareceu um
sacrifício no sétimo dia, no final da primeira fase lunar;
mais tarde, quando se introduziu uma celebração no
início da terceira fase lunar, havia nascido a semana.
Tudo isso chegará a nós por vias indiretas, transmitindo-
se antes a judeus e gregos e depois, com Roma,
difundindo-se para todas as regiões do Império.
Segundo a tradição mitológica, o calendário romano foi
instituído por Rômulo, fundador e primeiro rei da nova
cidade. Na verdade, a data de nascimento da Urbe foi
estabelecida já em plena República, nos tempos de Júlio
César, por um grande erudito: Marco Terêncio Varrão.
Desde então, começou-se a contar os anos a partir de 21
de abril de 753 a.C., considerada a data de fundação da
cidade, ab urbe condita, com a sigla auc. Deve-se a Júlio
César a primeira grande reforma do calendário, que se
tornou, precisamente, o calendário juliano.
A era cristã, isto é, a prática de começar a contar os
anos a partir do nascimento de Jesus Cristo, foi
introduzida em 525 d.C. por Dionísio, o Exíguo, um
monge católico de origem cita, especialista bíblico, além
de astrônomo e matemático. Um processo análogo
ocorreu algum tempo depois no mundo islâmico, onde a
contagem dos anos se iniciava a partir de 622 d.C., data
da Hégira, quando Maomé deixou Meca para ir a Medina.
O calendário mais difundido atualmente, exportado pelos
europeus para os outros continentes e utilizado com
finalidades civis em todo o mundo, é o calendário
gregoriano, uma modificação do calendário juliano
introduzida pelo papa Gregório xiii em 1582.
Clock, o termo inglês para relógio, deriva do alemão
Glocke, sino, recordando que, durante muitos séculos, na
Europa da Alta Idade Média, era o som dos sinos das
igrejas e dos mosteiros que marcava a vida da
comunidade. As badaladas ritmavam o dia e a noite,
anunciavam festas ou reuniões políticas. Eram os sinos
que despertavam o burgo para que iniciasse o trabalho e
prenunciavam o crepúsculo para que todos voltassem às
suas casas. Os sinos a rebate convocavam à reunião para
apagar um incêndio ou repelir um ataque inimigo; os
lúgubres convocavam à oração por alguém que entrara
em agonia. O som dos sinos estava tão enraizado na vida
das cidades medievais que gerou hábitos que persistiram
por muito tempo, sobrevivendo durante séculos à
introdução dos primeiros relógios.
A necessidade de construir instrumentos mais
sofisticados para medir o tempo se desenvolve com o
renascimento das cidades e da economia urbana no final
da Idade Média. O tempo dos mercadores gradualmente
adquire primazia sobre o tempo da Igreja.
Os primeiríssimos relógios, além de obras-primas do
engenho humano, eram verdadeiras obras de arte, mas
exigiam ajustes constantes para funcionar com
regularidade. Engastados nas torres e nos campanários
das praças centrais das cidades, enriquecidos com os
movimentos mecânicos de autômatos e marionetes que
marcavam as horas ou os momentos de destaque do dia,
eles despertavam admiração e sempre atraíam uma
pequena multidão de crianças ou camponeses em visita.
Mas eram capazes também de se tornar símbolo de
invejas e conflitos. Nas guerras de então, quando se
depredava a cidade derrotada os vencedores se
apossavam dos relógios, que eram exibidos como butim.
Ainda hoje, no campanário de Notre-Dame em Dijon, na
França, destaca-se aquele que muitos consideram ser o
primeiro relógio mecânico fabricado na Europa. Trata-se
de uma maravilha da técnica construída no século xiv
para a cidade flamenga de Courtrai, que foi desmontado
e transferido para a sua capital pelo duque de Borgonha,
Filipe ii, o Temerário, quando saqueou Flandres, em 1383.
Os primeiros relógios mecânicos de engrenagens
circulares são dotados de uma roda de escape, um
sistema que traduz o movimento oscilatório do balancim
em rotação de uma engrenagem. A representação do
decurso do tempo numa face circular permite explorar
melhor o andamento cíclico do tempo cotidiano e avaliar
num olhar o tempo decorrido desde aquele momento e o
tempo restante para concluir uma determinada
atividade.
A precisão dos movimentos mecânicos possibilita uma
subdivisão muito acurada do tempo, que atende às
exigências de uma sociedade em que se multiplicam as
trocas e relações. As oficinas de artesãos se tornam as
primeiras grandes manufaturas e põem em movimento
atividades comerciais em escala continental que
requerem uma gestão mais precisa do tempo.
O ponteiro dos minutos fez o seu aparecimento nos
relógios no final do século xvii; pouco depois, surgiu nos
dispositivos mais sofisticados o pequeno ponteiro que
marcava os segundos. Mas Galileu, quando fazia os seus
primeiros experimentos, ainda usava a batida regular do
pulso para medir os intervalos de tempo. Posteriormente,
utilizando uma clepsidra, ele conseguirá atingir um grau
de precisão da ordem de um décimo de segundo,
suficiente para analisar a dinâmica de um movimento de
pequenas esferas que descem de um plano inclinado. Os
seus próprios estudos sobre o isocronismo das oscilações
do pêndulo incentivarão o desenvolvimento de novos
dispositivos sempre mais avançados, que serão utilizados
para aumentar a precisão das observações astronômicas
e serão fundamentais para a navegação. Cronômetros
mais precisos permitirão uma melhor determinação da
longitude em mar aberto, parâmetro decisivo para o
sucesso dos tráfegos marítimos que nascerão das
grandes explorações.
O triunfo de Chronos

O advento da Revolução Industrial assinala o triunfo do


tempo, que se torna onipresente e permeia todos os
aspectos da vida: marca o ritmo dos dias nos locais de
trabalho, define as pausas concedidas aos operários,
mede os seus salários, regula e estabelece com precisão
também os períodos dedicados ao lazer ou ao descanso
para recuperar as energias. Os humanos, com os seus
sonhos de engaiolar Chronos, descobrem horrorizados
que, na verdade, aprisionaram apenas a si mesmos.
Surgem milhares de relógios nas fábricas e nos locais
públicos das cidades, depois entram nas casas e se
tornam acessórios pessoais indispensáveis. Começam a
aparecer nos bolsos dos senhores e acabam por se
alastrar no pulso de todos. Inclui-se uma multidão de
cronômetros em todos os instrumentos de trabalho, de
transporte ou de comunicação. O clock define os ciclos
dos processadores nos celulares, nos computadores, nos
gps, em todos os tipos de máquinas de processamento.

Tudo se move ao ritmo cadenciado produzido por bilhões


de relógios. Levantamo-nos da cama não quando
estamos totalmente descansados, mas no momento em
que toca o despertador; comemos não porque estamos
com fome, mas porque vemos que chegou a hora da
refeição; deitamo-nos não porque estamos cansados,
mas quando o relógio nos autoriza a ir dormir.
O triunfo de Chronos na sociedade moderna é absoluto.
A nossa concepção de tempo, que costumamos utilizar
para cada tarefa cotidiana, pressupõe uma espécie de
relógio universal cujo tique-taque prossegue
imperturbável, preciso e regular, desdenhosamente
indiferente a tudo. Se numa manhã acordamos tarde e
vamos correndo para o escritório, sabemos que a hora
assinalada no nosso relógio ou celular é a mesma que o
nosso chefe está verificando, perplexo, enquanto
contempla a nossa escrivaninha ainda vazia. Se
imaginamos que, naquele mesmo instante, os pilotos do
avião que vemos passar entre as nuvens ou um grupo de
alpinistas que está no alto de uma montanha nas
redondezas estão consultando o relógio, não temos
dúvida de que todos estão lendo a mesma hora.
Sim, sabemos que, quando tomamos um voo de Roma
a Nova York, temos de levar em conta a diferença de seis
horas que separa o horário das duas cidades. Por alguns
dias o nosso corpo se lembra disso, com os estímulos da
fome e do sono que intervêm nos momentos errados do
dia; sabemos que os 24 fusos horários no globo definem
horas diferentes para o mesmo número de fatias em que
o nosso planeta é subdividido idealmente. Mas, tão logo
nos habituamos a esse mecanismo, tudo segue tranquilo;
afinal, o novo fuso horário sempre tem como referência o
Tempo Médio de Greenwich (gmt, na sigla em inglês),
identificável com o grande relógio imaginário que rege,
em perfeita sincronia, a orquestra de todos os relógios do
mundo.
Estamos convencidos de que o tempo é absoluto, que o
seu decurso é igual na Terra, na Lua, em Marte, em
qualquer lugar do universo. Em nível inconsciente,
imaginamos um centro nevrálgico que define o ritmo
subterrâneo com que todos os mecanismos da ordem
universal estão sincronizados.
As bases teóricas de uma ideia tão difundida foram
lançadas por Isaac Newton, o grande cientista inglês que
publicou em 1687 uma das suas afirmações mais
famosas: “O tempo absoluto, verdadeiro e matemático,
por si e por sua própria natureza, flui uniformemente sem
relação com qualquer coisa externa, e é também
chamado de duração”.
Para descrever as leis do movimento, Newton precisa
imaginar o espaço e o tempo como axiomas absolutos;
um pano de fundo eterno, imutável e imperturbável ao
qual os movimentos se sobrepõem. O parâmetro t, que
descreve o tempo, cuja variação elementar dt define
uma pequena duração, deve ser independente do todo. O
espaço e o tempo assim se tornam dois recipientes
eternos e incorruptíveis. Os acontecimentos do universo
se desenrolam no conjunto desse cenário imutável, cujo
olhar é de suma indiferença. O tempo de Newton é um
tempo absoluto, totalmente independente da matéria
cósmica, e por isso o filósofo George Berkeley,
contemporâneo seu, irá acusá-lo de reintroduzir a
metafísica na ciência. O tempo absoluto implica a
simultaneidade dos eventos, pode-se sempre definir o
instante preciso em que dois fenômenos ocorrem
simultaneamente a uma enorme distância entre eles, e
virtualmente também a uma distância infinita.
É a abordagem que nos é mais familiar. É a que nos
permitiu utilizar o tempo para, primeiramente, torná-lo
um instrumento de sobrevivência da espécie e, depois,
para permitir que nós, estranhos macacos
antropomorfos, ocupemos todos os nichos ecológicos do
planeta. Mas, no exato momento em que tivemos a
ilusão de dominar o tempo, rompendo-o em fragmentos
cada vez menores, quando pensávamos que realmente o
agarráramos, mais uma vez ele escapou das nossas
mãos.
Essa concepção do tempo absoluto foi, de fato,
seriamente questionada pela física moderna. No
momento do máximo triunfo do tempo, quando todos os
ritmos vitais da sociedade já estão dominados por
Chronos, quando a precisão alcançada no exame dos
meandros mais sutis do tempo parece não ter fronteiras,
eis que o tempo entra em crise, começa a vacilar, se
contorce e acaba por se estilhaçar em mil fragmentos.
parte ii

Onde o tempo para


3. A estranha dupla

Há uma frase famosa que o New York Times atribuiu a Albert


Einstein, embora não haja nenhum testemunho direto de
que ele realmente a tenha dito. É citada com frequência
porque sempre impressiona o imaginário coletivo:
“Sente-se por duas horas ao lado de uma moça bonita e
vai parecer que se passou um minuto. Mas sente-se em
cima de um aquecedor em brasa por um minuto e vai
parecer que se passaram duas horas. Isso é a
relatividade”. Na verdade, não tem nada a ver com a
teoria que mudou a nossa forma de olhar o tempo.
O tempo absoluto de Newton funcionou muito bem
para construir sociedades humanas sempre mais
complexas. Organizando as nossas atividades no ritmo
sincronizado de uma multidão de relógios, conseguimos
povoar todos os cantos da Terra com bilhões de
semelhantes nossos. Mas essa grandiosa arquitetura
mental, tão bem concebida, desmoronou por causa de
um detalhe aparentemente insignificante. Ocorreu nos
primeiros anos do século xx, quando alguns cientistas
tentaram entender melhor o eletromagnetismo.
Entre eles, Einstein foi o primeiro a se dar conta de
que, se continuássemos a considerar o tempo absoluto —
isto é, livre de qualquer ligação com a matéria, medido
por um relógio imperturbável, que prossegue a uma
velocidade fixa e independente de tudo —, ficaríamos
enredados num emaranhado de paradoxos.
Tempo que se liquefaz e se despedaça

Para Newton e Galileu as coisas eram simples: se,


estando parado, atiro uma pedra e a sua velocidade em
relação ao solo é de trinta quilômetros por hora, quando
a lanço com a mesma força estando num cavalo que
galopa a cinquenta quilômetros por hora a sua
velocidade passa a ser de oitenta quilômetros por hora.
Tudo claro e verificável por qualquer pessoa. Chama-se
lei de adição das velocidades.
Mas as coisas mudam radicalmente se o cavaleiro, em
vez da pedra, atirar fótons, isto é, partículas de luz — ou
seja, simplificando: se acende uma lanterna ou usa um
pequeno laser. Os fenômenos eletromagnéticos
produzidos por corpos em movimento são cheios de
armadilhas, porque a velocidade com que a luz se
propaga no vazio é constante e sempre igual a c. Nada
pode correr a uma velocidade superior.
Nesse ponto estamos numa armadilha: ou renunciamos
à hipótese de que a velocidade da luz é constante ou
somos obrigados a concluir que, para o cavaleiro a
galope, espaço e tempo são deformados. Somente assim
é possível justificar a observação de que a luz não
aumenta a sua velocidade de propagação, embora o
laser que a emite corra à mesma velocidade do cavalo. O
caminho percorrido pela luz a cada segundo se mantém
o mesmo. Para o cavaleiro, observado do exterior, o
espaço se contrai e o tempo se dilata. Para simplificar, o
relógio no pulso de quem cavalga anda mais devagar em
comparação ao relógio idêntico de quem observa a sua
corrida com um binóculo.
Ficamos perplexos e desconcertados com isso
simplesmente porque, no nosso mundo, jamais vimos
coisas desse gênero. Mas se, por exemplo, pudéssemos
nos mover à velocidade dos elétrons das máquinas de
raios X usadas para as radiografias nos hospitais, não
ficaríamos tão surpresos. Faria parte da nossa
experiência ver que tudo ao nosso redor muda de forma,
e não nos surpreenderíamos em encontrar grandes
diferenças na hora marcada pelos relógios. Mas ninguém
jamais conseguiu fazer uma experiência desse tipo
porque somos pesados demais.
A teoria da relatividade desfere um tremendo golpe no
tempo absoluto de Newton, que, além de não ser rígido e
imutável, perde também a sua independência em relação
ao espaço. Espaço e tempo se mostram estreitamente
ligados entre si e ambos dependem da velocidade dos
corpos. Para um objeto que se move em relação a um
observador externo, o tempo se dilata e o espaço se
contrai na direção do movimento. Os dois fenômenos
estão intimamente ligados porque somente assim a
velocidade da luz permanece constante em todos os
referenciais inerciais. Não existe mais um tempo idêntico
para todos os possíveis observadores do universo.
As consequências são perturbadoras: dois eventos que
são simultâneos num referencial podem não o ser em
outro. Assim, o relógio universal de Newton se fragmenta
numa infinidade de tempos locais que desorganiza o
sistema ordenado e coerente que havíamos imaginado. O
observador em movimento vê ocorrerem numa
sequência temporal diferente eventos que localmente
são simultâneos.
Mas até que ponto pode chegar essa subversão das
sequências temporais ordinárias? Podemos imaginar um
observador em movimento para o qual o futuro precede
o passado? Podemos embaralhar também o princípio de
causalidade?
Para nossa sorte, isso não é possível. Nenhuma
sequência relacionada causalmente como antes-depois,
causa-efeito, pode ser invertida. Nenhum observador que
olha de longe o planeta Terra poderia me ver brincando
com meus filhos e, algum tempo depois, ver o primeiro
beijo dos meus pais. A proteção se deve também ao fato
de que nenhum fenômeno pode ocorrer em velocidade
superior a c. Se alguém visse o efeito antes da causa, por
exemplo a bola que balança a rede antes que Cristiano
Ronaldo a chute da marca do pênalti, isso significaria que
a ação do gol ocorreu a uma velocidade superluminal —
o que a relatividade não permite nem aos melhores
jogadores de futebol. A consequência desse limite é que,
em qualquer referencial inercial, todo observador verá
necessariamente a causa precedendo o efeito.
Outra consequência da relatividade especial é que c se
torna uma velocidade-limite para os corpos materiais,
dotados de massa. Somente os objetos desprovidos de
massa, como os fótons, podem viajar a c. Corpos ou
partículas dotadas de massa poderão se aproximar da
velocidade da luz, mas jamais a alcançarão. Ao se aplicar
uma aceleração constante a um corpo material,
aumenta-se a sua energia, porque a velocidade cresce.
Mas, quando não é possível aumentar a velocidade, a
energia transmitida ao corpo se transforma em massa.
Aproximando-se de velocidades relativísticas, qualquer
corpo aumenta desmedidamente a sua massa: energia e
massa são dois modos diferentes de indicar a mesma
coisa: E = mc2.
Como se essas primeiras subversões já não fossem
suficientemente clamorosas, dez anos depois Einstein
desferiu um segundo golpe, esse sim mortal.
Para a relatividade especial, espaço e tempo estão
indissociavelmente ligados e formam uma estrutura
contínua e quadridimensional: o espaço-tempo. A
primeira formulação dessa nova representação se deve a
um jovem matemático lituano, Hermann Minkowski. Ao
expor a sua ideia no congresso dos médicos e
naturalistas alemães ocorrido em Colônia em 21 de
setembro de 1908, poucos meses antes de morrer em
consequência de uma banal crise de apendicite, ele
extraiu lucidamente as suas consequências: “De agora
em diante, o espaço em si e o tempo em si estão
condenados a se dissolver em meras sombras, e
somente uma espécie de união dos dois manterá uma
realidade independente”. Reza a lenda que, no leito de
morte, nos intervalos das dores lancinantes devidas à
peritonite, ele continuava a fazer anotações e cálculos
para desenvolver as suas teorias.
Os relógios moles

Port Lligat é um minúsculo vilarejo da Catalunha, na


Espanha, a poucos quilômetros da fronteira com a
França. Em 1930, Salvador Dalí se encanta com o local e
compra uma pequena casa de pescadores, para onde se
muda com Gala — o apelido afetuoso pelo qual ele trata
Elena Ivanovna Diakonova, a sua companheira e musa
inspiradora. Os dois estão profundamente envolvidos no
movimento surrealista, a corrente artística fundada em
1924 por André Breton e Paul Éluard, poeta com quem
Gala fora casada ante de se unir a Dalí. Fortemente
influenciados pelos trabalhos de Freud sobre a psique, os
surrealistas dão grande espaço nas suas obras ao mundo
do inconsciente: desenvolvem técnicas de automatismo
psíquico, põem formas oníricas no centro das suas
representações e combatem qualquer tentativa de
controle racional da expressão, dando livre espaço à
potência evocadora dos sonhos.
Em 1931, na sua casa de praia, Dalí pinta uma
pequena tela de 24 × 33 centímetros, que se tornaria um
dos seus quadros mais famosos. O pano de fundo é a
paisagem marinha de Port Lligat, uma praia deserta com
os recifes submersos numa luz transparente e
melancólica. No primeiro plano, há uma estrutura
geométrica, uma árvore desfolhada e três relógios
deformados, quase liquefeitos. Aparentemente
funcionando, cada um deles marca uma hora diferente.
Um quarto relógio de cabeça para baixo está coberto de
formigas. No chão uma forma indistinta, talvez um
fragmento de autorretrato em perfil do próprio pintor. Por
muito tempo o título do quadro é Os relógios moles; mais
tarde, o próprio Dalí o substitui por A persistência da
memória, e com esse nome a tela se encontra
atualmente exposta no MoMA de Nova York.
Anos depois, para explicar com uma pitada de
provocação a origem do quadro, Dalí contou que a ideia
dos relógios moles lhe viera porque ele e Gala, naquela
noite, tinham comido ao jantar um ótimo Camembert e,
antes de pegar os pincéis e a paleta, havia refletido
longamente sobre a maciez e o aspecto quase liquefeito
do famoso queijo francês. Num escrito publicado na
revista Minotaure, no inverno de 1935, Dalí afirmava: “O
tempo é a dimensão delirante e surrealista por
excelência” — palavras que ecoavam aquelas
pronunciadas por Minkowski poucos meses antes de
morrer.
Dalí sempre mostrou curiosidade pelas novidades
científicas; lia artigos de divulgação sobre a relatividade
e queria conhecer Einstein, como conseguira fazer com
Freud, mas o encontro nunca ocorreu. Vivia, certamente,
numa época em que intuições e descobertas ligadas à
relatividade estavam se difundindo para além do círculo
restrito dos especialistas.
Em 1915, partindo do espaço-tempo quadrimensional
de Minkowski, Einstein ampliara o seu modelo anterior
com a teoria da relatividade geral: a massa e a energia
curvavam o espaço-tempo, e o efeito dessa curvatura é o
que chamamos de gravidade.
Onde quer que haja uma certa quantidade de energia,
ou uma massa, o espaço-tempo se deforma. O grau de
curvatura depende da quantidade de massa ou de
energia, e os corpos materiais circundantes seguirão as
linhas deformadas da nova geometria. O Sol, com a sua
massa enorme, curva o espaço-tempo, formando uma
espécie de buraco em quatro dimensões, e a Terra não
pode senão seguir a órbita que o circunda. É uma nova
maneira de ver aquela gravidade que Newton havia tão
sabiamente descrito.
Porém na relatividade geral há muito mais, pois o
tempo também se deforma. Curvando o espaço-tempo, a
massa e a energia modificam localmente também o
decurso do tempo. Quanto mais o espaço se deforma,
mais o tempo se dilata. Perto das grandes massas, onde
o campo gravitacional é mais forte, o tempo passa mais
devagar em relação a observadores situados em zonas
de campo mais fraco.
O tempo universal de Newton se desfaz numa espécie
de poeira, um caleidoscópio de minúsculos relógios
locais, cujo tique-taque não só está fora de sincronia com
todo o resto como também varia de modo contínuo,
incessantemente. A cada ponto corresponde uma
curvatura específica, que depende da distribuição de
energia e massa do universo inteiro em relação àquela
posição específica, em cada momento. O tempo passa
com ritmos diferentes em cada ponto do universo, e o
seu fluxo varia no tempo e também ponto por ponto, em
função das mudanças dinâmicas na distribuição de
massa e energia do universo inteiro.
Com a relatividade geral, o tempo absoluto de Newton
recebe outro tremendo golpe, e só lhe resta ir à lona.
Uma fantástica precisão

Mas por que não tínhamos percebido nada disso? Porque,


no nosso mundo cotidiano, as diferenças são
infinitesimais; nenhum de nós consegue viajar a
velocidades remotamente comparáveis à da luz. Na
verdade, 300 mil quilômetros por segundo é uma
velocidade tão desmesurada que nem nos diz muita
coisa. Talvez comecemos a entender se falarmos de 1
bilhão de quilômetros por hora. A essa velocidade, num
segundo poderia se dar mais de sete voltas ao redor da
Terra, ou chegar num salto à Lua.
Nem mesmo os astronautas da Estação Espacial
Internacional (iss, na sigla em inglês), que também
orbitam em torno de nós à considerável velocidade de
quase 28 mil quilômetros por hora, estão sujeitos a
efeitos relativísticos significativos. Por causa da grande
velocidade, para cada ano de permanência em voo eles
ganham 10,4 milissegundos de vida. Mas, como a
astronave orbita a 408 quilômetros acima da superfície
terrestre, o campo gravitacional lá no alto é mais fraco e
o tempo corre mais rápido, e por isso perdem cerca de
1,4 milissegundos por ano. No fim, o ganho líquido, por
assim dizer, seria de nove milissegundos de vida para
cada ano passado em órbita. Samantha Cristoforetti, a
astronauta italiana que ficou mais de seis meses a bordo
da iss, ganhou, portanto, cerca de cinco milissegundos. É
difícil encontrar uma confirmação desse cálculo, ainda
mais porque o corpo dos astronautas em órbita é
submetido a numerosos estresses, devido aos raios
cósmicos e às condições de microgravidade, que sem
dúvida são mais danosos para a saúde, em comparação
aos eventuais benefícios decorrentes da relatividade.
Se os efeitos relativísticos são tão pequenos para as
astronaves mais velozes que conseguimos construir,
tornam-se absolutamente desprezíveis em todos os
aspectos da nossa vida cotidiana. O interessante, porém,
é que há algumas décadas somos capazes de mensurá-
los com grande precisão e de verificar em detalhe as
previsões de Einstein.
Para medir o tempo, sempre se utilizaram fenômenos
periódicos: o batimento do pulso, o movimento aparente
do Sol ao redor da Terra ou um pêndulo que realiza
pequenas oscilações. Na história da medição do tempo, a
precisão foi sempre aumentando conforme se utilizassem
fenômenos físicos caracterizados por oscilações de
frequência cada vez maior. Por isso houve a passagem
dos relógios de pêndulo para os de quartzo, chegando
depois aos relógios atômicos. A revolução científica do
início do século xx nos deu instrumentos para entender e
investigar os fenômenos característicos dos sistemas
atômicos, e ali se encontraram transições periódicas de
altíssima frequência, que seguem um ritmo mais regular
e mais preciso do que qualquer outro fenômeno natural
utilizado até então.
Os primeiros relógios atômicos foram desenvolvidos
por volta dos anos 1950 e logo se revelaram, de longe,
os instrumentos de medição de tempo mais exatos,
estáveis e reprodutíveis.
Utilizando átomos de um metal bastante raro, o césio,
resfriados a uma temperatura próxima do zero absoluto,
é possível obter oscilações periódicas muito precisas:
com uma solicitação externa adequada, os elétrons
atômicos mudam de nível energético, depois voltando
rapidamente ao estado original e retomando desde o
início toda a sequência. As oscilações dos elétrons do
césio se mostraram tão precisas que, em 1967, decidiu-
se tomá-las como base para a nova definição de
segundo. Para se ter uma ideia do salto de qualidade,
basta lembrar que um bom relógio de quartzo pode ter
um erro de alguns segundos por ano, enquanto os
relógios atômicos erram um segundo em alguns milhões
de anos. Recentemente foi possível construir protótipos
experimentais que errariam um segundo a cada 15
bilhões de anos, um tempo superior à atual idade do
universo.
Os esforços para melhorar ainda mais a precisão nas
medições do tempo prosseguem incessantes. Por que
essa obsessão? Na história da física, sempre que se
encontrou um modo mais preciso de medir o tempo,
fizeram-se descobertas cruciais. Alguns pensam, por
exemplo, em tentar verificar se as constantes
fundamentais da física são realmente constantes no
tempo. A precisão extrema desses novos dispositivos
permitiria submeter a estresse os princípios basilares do
eletromagnetismo, da gravidade e da mecânica quântica.
Nas fronteiras dessa pesquisa situa-se o trabalho do
cientista americano David Wineland, que ganhou o
prêmio Nobel de física em 2012 junto com o francês
Serge Haroche. Wineland está tentando usar as
transições rapidíssimas e extremamente estáveis de
cada íon preso em sistemas ultrafrios. Ele tenta explorar
as propriedades da mecânica quântica para obter
relógios ainda mais precisos do que os melhores relógios
atômicos.
Os resultados obtidos são promissores a ponto de
permitir medições que até algumas décadas atrás eram
impensáveis. Com seus relógios quânticos, Wineland
consegue medir o campo gravitacional que enfraquece
quando o seu aparato é elevado algumas dezenas de
centímetros. E com isso pode-se considerar que se
fechou o círculo. Depois de, por milênios, ter utilizado o
espaço para medir o tempo, hoje somos capazes de fazer
também o oposto, isto é, medir a altura de um objeto
registrando a minúscula variação do tempo devida à
relatividade geral.
Ganhar dinheiro com a relatividade

Explorando a precisão dos primeiros relógios atômicos,


foi possível verificar em detalhe os efeitos sobre o tempo
postulados por Einstein. Registraram-se as diferenças
previstas pela relatividade especial e geral em relógios
idênticos colocados em aviões comerciais que sobrevoam
a Terra em direções opostas, ou instalados em Turim e
nos Alpes, no Plateau Rosa, 3250 metros acima do nível
do mar.
Porém ainda mais surpreendente foi descobrir a que
ponto as correções das medidas do tempo devidas a
efeitos relativísticos eram fundamentais para o
desenvolvimento de um sistema global de comunicações.
Quando Einstein escreveu o famoso artigo de 1915,
ninguém poderia imaginar que, um século depois, o
Google ganharia rios de dinheiro explorando a
relatividade geral.
O nosso planeta é cercado por uma teia de satélites
que são usados para as finalidades mais variadas. Muitos
nos permitem telefonar e receber canais de televisão do
mundo todo. Outros controlam a meteorologia, ou
produzem imagens de cada região do globo para estimar
recursos e prevenir incêndios; outros ainda fazem parte
de um sistema de espionagem militar a partir do espaço.
Famílias de satélites especializados seguem o
deslocamento de meios móveis para dar segurança à
navegação aérea e naval. Alguns fornecem o serviço de
um sistema global de posicionamento, o gps, que nos
permite ver num mapa a posição do nosso celular do
automóvel em que viajamos.
É uma rede planetária constituída por milhares de
satélites que ocupam órbitas entre trezentos e cerca de
36 mil quilômetros de altitude. Essa última é a faixa
muito cobiçada dos satélites geoestacionários, isto é, que
dão a volta ao redor da Terra em cerca de 24 horas, de
modo que a sua posição aparente se mostra fixa no céu.
Os números estão destinados a aumentar ainda mais,
devido às iniciativas com vistas a oferecer acesso à
internet, de qualquer lugar do mundo, por meio de uma
miríade de microssatélites.
A sincronização das comunicações desse sistema tão
complicado é um notável desafio tecnológico, e logo se
descobriu que ela não seria possível sem levar em conta
as correções relativísticas do tempo. Os satélites orbitam
a grande velocidade e se encontram num campo
gravitacional mais fraco em comparação às estações
baseadas no solo. Esses dois efeitos impõem correções
sem as quais muitas funções seriam impossíveis. Em
especial, todos os sistemas de geolocalização são
baseados em triangulações de sinais de rádio e, se não
se corrigissem os tempos de chegada aos vários locais, a
precisão atual, que no caso dos sistemas militares pode
ser até de alguns centímetros, pioraria a ponto de tornar
totalmente inútil esse sistema tão dispendioso.
O atual gps é constituído por uma constelação de 31
satélites dispostos em órbitas quase circulares a 20 mil
quilômetros de altitude e distribuídos de modo que, em
cada momento, pelo menos três deles sejam visíveis de
qualquer ponto da Terra. Medindo com precisão o tempo
de chegada dos sinais de rádio emitidos pelos satélites, é
possível fazer a triangulação que identifica a posição do
receptor. Em todos os satélites há relógios atômicos que
são sincronizados com grande precisão. Para a
sincronização, é preciso levar em conta os numerosos
efeitos, inclusive os relativísticos. A velocidade com que
os satélites orbitam ao redor da Terra demanda uma
correção no retardo de cerca de sete microssegundos —
isto é, milionésimos de segundo — ao dia. O campo
gravitacional menor produz, no entanto, uma
antecipação de cerca de 45 microssegundos, ainda
nessas mesmas 24 horas. Se não se fizesse a correção
para esses 38 microssegundos, a resolução espacial se
degradaria alguns quilômetros por dia, anulando a
utilidade do sistema. Em suma, a cada vez que usamos o
Google Maps, pensemos um instante em Albert Einstein,
sem o qual jamais conseguiríamos alcançar a pessoa
com quem temos um encontro marcado ou aquele
restaurantezinho fora de mão recomendado por um
amigo.
Grandes filósofos e Chapeuzinho Vermelho

Antes de se tornar objeto de investigação científica, a


relação entre tempo e espaço esteve no centro da
reflexão filosófica desde a Antiguidade. Uma das
enunciações mais lúcidas se encontra no De rerum
natura, de Lucrécio: “É impossível perceber o tempo
separado do movimento das coisas”. E as coisas se
movem no espaço.
Ninguém jamais explorou uma região do espaço do
lado de fora do tempo, nem pôde medir um intervalo de
tempo a não ser num lugar específico. Conceber o tempo
sem o espaço é impossível. E, no entanto, essa ligação
sempre pareceu uma relação bastante fraca, quase
acessória e, em todo caso, diferente de como a
consideramos hoje. À luz dos conhecimentos atuais, as
grandes batalhas entre gigantes do pensamento do
passado parecem se dar à superfície de um oceano
profundo. Concentravam-se em fenômenos ligados ao
movimento ondulatório, indo às turras em infinitos
detalhes, sem compreender nada do que se movia no
abismo abaixo.
O tema do tempo também foi explorado, entre outros,
por Gottfried Wilhelm von Leibniz, grande filósofo e
excelente cientista, a quem se deve, junto com Newton,
a invenção do cálculo infinitesimal. Mas ele não se sentia
minimamente convencido pela ideia do tempo absoluto
do grande cientista inglês, e combateu-a vigorosamente.
Para Leibniz, o tempo representa a ordem da sucessão,
enquanto o espaço representa a ordem da coexistência;
para ele, tempo e espaço não podem ser concebidos fora
da matéria, dos entes do mundo e da mente. Uma
posição, como se vê, muito moderna, mas por sua vez
contestada por Immanuel Kant, que, pelo contrário, situa
espaço e tempo entre os a priori da nossa mente, assim
dando apoio à concepção de Newton, que viria a dominar
a ciência moderna até o início do século xx.
Mas ninguém, nem mesmo entre as mentes mais
agudas e rigorosas da história, jamais ousara conceber
uma união entre espaço e tempo tão íntima que se
traduzisse numa nova forma de estrutura material.
Com Einstein, a mudança de paradigma é radical. O
grande cientista rompe o quadro, irremediavelmente,
definitivamente. Rasga a tela com um talho seco, como
fazia Lucio Fontana com seu estilete Stanley quando
realizava os seus Conceitos Espaciais. O artista nos
mostrava que por baixo da superfície ocultava-se uma
outra dimensão que, nas pinturas tradicionais,
permanecia totalmente inacessível. A teoria da
relatividade nos fez vislumbrar o que se oculta naquela
sombra escura que surge do talho. E o que descobrimos
nos encheu de espanto.
Não é só que não se pode pensar num tempo sem
espaço ou num espaço congelado no tempo. Há por
baixo algo mais profundo. O espaço e o tempo se
revelam intimamente interconectados e, caso se tente
separar um termo do outro, nada mais se mantém de pé.
Quando o espaço-tempo entra em cena, não se poderá
mais tirar o tempo do espaço ou vice-versa: a ligação é
constitutiva, irredutível, original.
Ainda mais surpreendente será descobrir que o espaço-
tempo não pode prescindir da massa-energia. São os
constituintes fundamentais do nosso universo, tão
profundamente entrelaçados que se torna difícil imaginá-
los separados. Mesmo o espaço-tempo é uma estrutura
material, que se deforma, vibra e pode transmitir energia
a grande distância. Massa-energia decidem como se
deve curvar o espaço-tempo, que, por sua vez, indica aos
objetos materiais como devem se mover, enquanto
ordena aos relógios como devem tiquetaquear.
Com o seu tempo absoluto, Newton nos colocava no
centro de uma maravilhosa engrenagem, perfeitamente
sincronizada. A harmonia, o equilíbrio, o perfeito
sincronismo de todos os componentes do imenso
mecanismo que presidia à dinâmica do universo nos
tranquilizavam e consolavam.
Tudo isso se despedaça, transportando-nos para um
sistema altamente caótico em que a ordem e a
regularidade se tornam intrinsecamente locais e
temporárias. Cada evento do universo, aprisionado no
seu cone de luz, concentrado na sua sequência local de
passado, presente e futuro, vive o seu tempo
irremediavelmente diferente do tempo de todo o resto. O
mecanismo perfeito se esfarela num imenso
caleidoscópio de miudíssimos fragmentos.
Há algo na nossa desorientação que faz lembrar os
famosos versos publicados por John Donne em 1611:
“Tudo se despedaça, toda a coesão desapareceu”. O
poeta elisabetano, contemporâneo de Shakespeare,
assim expressava a sua consternação diante da nova
ciência de Copérnico e Galileu, que questionava a própria
estrutura do universo como fora entendida por séculos.
Quando se diz que o tempo passa, remete-se à
metáfora de um rio, atribuída a Heráclito: “Não se pode
entrar duas vezes no mesmo rio e não se pode tocar
duas vezes uma substância mortal no mesmo estado,
mas por causa da impetuosidade e da velocidade da
transformação ela se dispersa e se reúne, vem e vai”. O
rio do tempo de Einstein explode numa infinidade de
eventos temporais independentes. Mas pudemos ignorar
tudo isso durante milênios porque somos corpos
macroscópicos, que vivem num potencial gravitacional
constante e se movem em velocidades irrisórias.
A física moderna, em suma, nos fez entender que em
torno da questão do tempo esconde-se um intricado
labirinto de paradoxos. Para tentar compreendê-lo,
portanto, teremos de entender como o tempo se
comporta em mundos muito distantes de nós, nas
distâncias infinitesimais exploradas pelos aceleradores
de partículas ou nas dimensões gigantescas investigadas
pelos mais potentes telescópios.
Como Chapeuzinho Vermelho, atravessaremos um
bosque cheio de perigos ocultos; começaremos a viagem
um pouco assustados, mas talvez também atraídos por
aquilo que poderemos descobrir. Em muitas ocasiões,
iremos nos encontrar num denso emaranhado de
conceitos e talvez tenhamos encontros perigosos. Será
preciso coragem e força de vontade para enfrentar
visões que podem nos fazer perder a cabeça, e corremos
o risco de nos perder e não voltar para casa. Para tornar
tudo ainda mais inquietante, temos certeza de que não
haverá nenhum caçador garantindo um final feliz. Iremos
nos afastar das certezas tranquilizadoras que orientam a
nossa vida cotidiana, mas, quando chegarmos ao término
da aventura, teremos adquirido uma nova consciência,
que nos tornará mais fortes.
Pegue a cestinha e vista a capa vermelha: vamos nos
aventurar no bosque.
4. A longa história do tempo

Hoje sabemos que o espaço e o tempo andam de braços


dados desde quandos imemoriais, mas nem sempre foi
assim: nasceram juntos com massa-energia quase 14
bilhões de anos atrás, e o nascimento deles foi muito
turbulento. Resumindo, e ignorando a contradição nos
termos, pode-se dizer que existiu um tempo em que o
tempo não existia.
A temática do início do tempo foi muito desenvolvida
pelos Pais da Igreja, sendo santo Agostinho um dos
primeiros. A hipótese de que o tempo também foi criado
do nada não guarda qualquer contradição com o cenário
de um Deus criador de tudo. Nesse aspecto, sempre me
intrigou a resposta irônica de Agostinho à objeção: “Mas
o que Deus estava fazendo antes de criar o tempo?”.
Brincando consigo mesmo, o bispo de Hipona se
respondia: “Estava pensando sobre o castigo a aplicar
em quem ousasse fazer tal pergunta”.
Mesmo os pensadores da Grécia clássica, que
imaginavam um mundo ciclicamente regenerado, não se
incomodavam muito com a origem do tempo. Tanto
Platão quanto o jovem Aristóteles formulavam hipóteses
de catástrofes periódicas devido ao calor excessivo, a
variações na inclinação do eixo terrestre ou a dilúvios
universais que obrigavam as civilizações a repercorrer a
cada vez o próprio caminho até o cataclismo seguinte.
Eram visões bastante difundidas que os estoicos haviam
codificado em ciclos de 36 mil ou 72 mil anos, depois dos
quais, em datas fixas, o mundo inteiro se incendiava e
tudo recomeçava da mesma forma. “E haverá um novo
Sócrates e um novo Platão, e cada homem será o mesmo
com os mesmos amigos e concidadãos.”
Agostinho rompe essa sugestão de andamento cíclico
perene e considera o tempo dos homens um breve
parêntese da eternidade. O tempo nasce com a Criação e
morre com o Juízo Final — e ponto.
Para os cientistas do início do século xx, a origem do
tempo não constituía um problema interessante. O
tempo, de algum modo, era dado como certo, assim
como o universo, a matéria, a energia. O tema começou
a ocupar o centro da cena devido a dois eventos
concomitantes que convenceram mesmo os mais
relutantes a considerar a ideia surpreendente de que o
tempo, como o universo, podia ter tido um início.
O início do tempo

Em 1927, Georges Lemaître, um jovem físico belga,


padre católico, formula uma solução para a equação de
Einstein dependente do tempo. No seu cenário, o espaço-
tempo do universo se expande e as galáxias mais
distantes recuam, isto é, se afastam de tudo, com uma
velocidade tanto mais elevada quanto maior for a
distância. Invertendo o fenômeno da expansão, como
acontece quando se projeta um filme ao contrário, ele
conclui que tudo devia ter nascido entre 10 bilhões e 20
bilhões de anos atrás, de um ponto minúsculo e muito
singular, um átomo primordial. É o embrião da moderna
teoria do Big Bang.
Quando Edwin Hubble, jovem astrônomo americano,
começou a reunir dados sobre o movimento aparente das
galáxias usando o telescópio mais potente do
Observatório de Monte Wilson, ele desconhecia
inteiramente as especulações de Lemaître. Contudo, as
observações de Hubble deixaram poucas dúvidas: todas
as galáxias estão se afastando e a velocidade com que
recuam é proporcional à sua distância. Hoje sabemos
que, na verdade, elas não se movem; pelo contrário, é o
espaço-tempo que se expande, mas as observações de
Hubble, apresentadas em 1929, convenceram até
mesmo Albert Einstein, inicialmente muito cético, de que
Lemaître tinha razão: o espaço-tempo teve uma data de
nascimento. No prazo de pouco mais de uma década
desde a formulação da relatividade geral, o universo
descrito com rigor e elegância pela equação de Einstein
havia se tornado um sistema imensamente grande, que
tivera um nascimento e continuava a se expandir. A física
havia mudado para sempre.
Desde então, os progressos realizados pela teoria
moderna do Big Bang foram impressionantes. A
cosmologia do século xx pode reconstituir
detalhadamente a evolução do universo porque mede
com precisão as características das suas estruturas mais
imponentes. Observando galáxias e aglomerados de
galáxias à distância de bilhões de anos-luz, pode-se ver
“ao vivo” fenômenos que fazem parte do nosso passado
distante.
Uma das fontes mais ricas de informações é a radiação
cósmica de fundo, ou cmb (Cosmic Microwave
Background). A presença de um fluxo uniforme de fótons
de baixa energia, provenientes de todas as direções, é
uma das previsões mais importantes da teoria do Big
Bang. Quando essa radiação foi descoberta, quase por
acaso, por Arno Penzias e Robert Wilson em 1964,
mesmo os mais céticos se viram obrigados a aceitar que
o tempo tivera um início.
A luz primordial é o resíduo fóssil de um momento
muito específico. Quando o universo chegou a 380 mil
anos de idade e o consequente resfriamento da
expansão fez com que a temperatura baixasse a menos
de 3000 Kelvin, elétrons e núcleos leves puderam pela
primeira vez se combinar para formar átomos neutros.
De repente o espaço ficou transparente à radiação e a
luz começou a se propagar por toda parte. Esses
primeiríssimos fótons livres, atenuados e alongados pela
expansão do espaço-tempo, ainda flutuam ao nosso
redor, carregados de informações.
Em especial, as minúsculas anisotropias da cmb são
uma verdadeira mina de informações sobre propriedades
fundamentais do universo. Delas obtivemos uma data de
nascimento para o espaço-tempo razoavelmente precisa:
13,8 bilhões de anos atrás. E descobrimos que as suas
propriedades, nos primeiríssimos instantes de vida, eram
ainda mais impressionantes. Ele foi capaz de se inflar a
uma velocidade espantosa, num intervalo de tempo
ridiculamente pequeno, atravessando uma fase, sob
certos aspectos ainda obscura, que chamamos de
“inflação cósmica”. Mas, embora a expansão paroxística
inicial tenha se desvanecido imediatamente, o espaço-
tempo manteve essa sua propriedade de se dilatar, de se
expandir indefinidamente. Continua a fazê-lo ainda hoje,
embora de forma enormemente atenuada em
comparação à loucura dos primeiríssimos instantes.
A cmb é como um imenso banco de memória dos
acontecimentos de espaço-tempo e massa-energia. O
universo inteiro está em equilíbrio térmico com esse
banho de fótons que o envolve há bilhões de anos, e isso
nos permite obter informações preciosas sobre a sua
longa história. Muitos segredos ainda se ocultam nele.
Os fótons primordiais ficaram confinados pela matéria
durante centenas de milhares de anos, depois se
desvincularam dessa rede e começaram a correr livres
por todas as partes. Por outro lado, as ondas
gravitacionais primigênias, as terríveis perturbações
emitidas quando o espaço-tempo se expandiu
freneticamente, protegidas pela sua própria fraqueza,
vagaram livres desde o primeiro instante. Interagem tão
fracamente com tudo que nem sequer a matéria
quentíssima e densíssima do universo primordial
conseguiu absorvê-las. Essa perambulação inquieta lhes
permitiu deixarem sinais sutilíssimos, quase
imperceptíveis, nos fótons da cmb com que interagiram. A
sua assinatura característica seria uma elusiva forma de
polarização, uma orientação espacial ordenada na cmb

que se procura sem sucesso há décadas e que, quando


for encontrada, permitiria entender as partes ainda
obscuras da fase inflacionária.
Mas o sonho de todos os cientistas é registrar as ondas
gravitacionais fósseis, aquelas originadas diretamente
pelo Big Bang. Ainda hoje flutuam, ao nosso redor, essas
imperceptíveis perturbações do espaço-tempo, resíduo
do turbilhão de ondas gravitacionais emitidas nesses
primeiríssimos instantes. Quem conseguisse levar a
sensibilidade dos instrumentos atuais a ponto de as
revelar poderia reconstruir aquele momento
extraordinário em todos os seus detalhes. Em certos
aspectos, o relato do nascimento do tempo ainda ressoa
em torno de nós; o desafio extraordinário é conseguir
perceber esse levíssimo murmúrio, lembrança distante
do lancinante vagido com que o tempo se iniciou.
O fim do tempo

O azul lápis-lazúli que ocupa o forro e se reapresenta em


muitos painéis é de tirar o fôlego. Tão logo passamos
pela pequena porta que dá acesso ao grandioso
ambiente da capela degli Scrovegni em Pádua,
entendemos (se nunca a experimentamos antes) o que
significa a síndrome de Stendhal.
A pequena igreja, vista de fora, parece bastante
anódina, uma construção medieval edificada na encosta
dos restos do anfiteatro romano. Os romanos haviam
erguido em Pádua, como em todas as cidades de certa
importância, uma grande construção para os espetáculos
públicos, mas ela foi muito mal conservada. As pedras
foram utilizadas para construir os edifícios da cidade e da
grandiosa construção sobraram apenas alguns arcos e o
muro perimetral que delineia o seu traçado elíptico. O
anfiteatro de Pádua não domina imponente o centro da
cidade, como a famosa Arena de Verona, praticamente
intacta e até hoje utilizada para grandes espetáculos e
óperas líricas. Se não houvesse a capela, seria apenas
uma entre muitas zonas arqueológicas da Itália, sem
atrativos especiais. Mas aqui, no século xiii, elevava-se o
esplêndido palácio de família dos banqueiros mais ricos
da cidade, os Scrovegni.
O brasão deles não era especialmente atraente;
apresentava, em campo branco, uma porca azul prenha
que remetia ao nome da família. E eles tampouco se
destacavam pela fama. Todos na cidade os temiam, mas
falavam mal deles porque, como frequentemente ocorre,
tinham enriquecido praticando a usura. Dante Alighieri
colocara no inferno o patriarca da família, Rinaldo ou
Reginaldo, que não devia ter sido muito amado, pois
quando morreu, em 1290, o seu palácio foi atacado por
uma multidão enfurecida. Foi para apagar esse passado
que o filho, Enrico, decidido a recuperar uma certa
respeitabilidade social e ser aceito pela Igreja e pela
nobreza, resolveu investir uma soma considerável para
erigir uma capela. Para os afrescos, chamou o melhor
pintor da época, Giotto de Bondone.
A capela degli Scrovegni foi edificada em 1300,
primeiro ano do jubileu, e Giotto pintou os afrescos em
poucos anos; em 1305, a obra-prima estava concluída.
Com essa obra, ele se afasta irreversivelmente dos
cânones formais e estereotipados da pintura bizantina:
os traços são mais suaves, as formas são mais naturais e
realistas. Com a capela degli Scrovegni, Giotto se torna o
primeiro pintor moderno. O ciclo de afrescos é não por
acaso considerado uma das obras de arte mais
importantes de todos os tempos, uma das poucas que
podem se equiparar à capela Sistina de Michelangelo
Buonarotti.
Nas paredes, Giotto representa histórias extraídas do
Antigo e do Novo Testamentos numa exaltação de luzes e
cores em que se mesclam páthos e humanidade, força da
fé e senso histórico. Tudo culmina na morte e na
ressurreição de Cristo e no Juízo Final, afresco que ocupa
toda a parede do fundo. À esquerda os beatos, acolhidos
pelas legiões dos anjos; à direita os condenados,
submetidos às penas terríveis do inferno.
Mas o que me impressiona especialmente são as duas
figuras no alto, aos lados do grande trifório que se abre
na parede. Dois anjos fecham a abóbada estrelada,
enrolando-a como se fosse uma cortina.
Giotto representa o fim do tempo com uma remissão
evidente ao Apocalipse de João, que discorre sobre as
estrelas que caem e o céu que se enrola. Termina o breve
intervalo do tempo histórico, e começa a eternidade. O
tempo é recolocado, enrolado junto com o universo
material com o qual foi criado. Retorna-se ao ponto “em
que todos os tempos são presente” apresentado por
Dante Alighieri no canto xvii do Paraíso, que não vive no
tempo dos homens, mas na eternidade em que todos os
tempos terrenos são simultâneos.
O fim do tempo, tão bem representado por Giotto,
também interroga a nós, modernos. Se o tempo teve
uma origem, poderia ter um fim? O que significaria o fim
do tempo para o nosso universo material? A questão
pode ser formulada em termos científicos, investigando
as hipóteses elaboradas sobre o fim do universo.
O fim do tempo poderia acontecer, por exemplo, se a
corrida ensandecida do espaço-tempo se expandindo
indefinidamente se interrompesse. Se as galáxias, em
vez de se afastar, começassem a se aproximar, as
interações que se criariam entre elas iriam destruí-las;
teria início um processo ao cabo do qual elas acabariam
se aglomerando num conjunto material indistinto, até o
momento em que toda a matéria colapsaria num ponto
singular. Seria aquilo que os cientistas chamam de Big
Crunch, e, com o espaço-tempo retornando a dimensões
puntiformes, o tempo se desagregaria assinalando o seu
próprio fim. Completado um ciclo, abre-se um novo, com
outro Big Bang e um novo espaço-tempo que renasceria
das cinzas do anterior. Mas essa visão de momentos
furiosos de expansão e compressão não encontra apoio
nas observações.
Nenhum dado indica que a expansão do espaço-tempo
venha a primeiro se desacelerar e depois inverter a sua
corrida. Pelo contrário, tudo parece sugerir que o seu
crescimento está destinado a se intensificar, a se tornar
progressivamente mais poderoso. Esse mecanismo que
impele tudo para longe de tudo, numa velocidade
crescente, se chama “energia escura”. Não sabemos se é
um novo tipo de força, uma espécie de gravidade
repulsiva, ou se é uma estranha propriedade do espaço-
tempo, que acelera a sua expansão conforme aumenta o
tempo. Mas certamente, se não houver a intervenção de
outros mecanismos, a energia escura determinará o fim
do nosso universo.
Tudo se afastará de tudo e o universo se tornará tão
escuro, tão frio e tão inóspito que, lenta mas
inexoravelmente, irão se interromper os ciclos que
permitem a formação das estrelas e as trocas de energia
que permitem a dinâmica dos sistemas solares e a vida
dos habitantes dos seus planetas. Uma espécie de triste
sudário acabará por cobrir um universo que continuará a
sobreviver por um tempo inimaginável, como inútil e
imensa necrópole de estrelas mortas.
A perspectiva da morte térmica do nosso universo não
deixa esperanças, é muito mais sombria do que o próprio
Apocalipse de João. Se todas as estrelas também
recuassem, com o espaço-tempo continuando a sua
expansão, um tempo inútil iria se reproduzir ao infinito,
marcando transformações cada vez mais lentas e
cadenciando ritmos tão desacelerados que se tornariam
extenuantes, vazios e acabariam por se perder no nada.
O tempo no mundo das grandes distâncias cósmicas

Não por acaso, as primeiras confirmações da relatividade


geral de Einstein provieram da observação de fenômenos
cósmicos. Entendemos melhor as características do
espaço-tempo encurvado pela massa-energia quando
nos afastamos do nosso planeta e nos aventuramos no
mundo das grandes distâncias.
Naturalmente os efeitos da relatividade geral também
estão presentes aqui na Terra, mas são em escala tão
pequena que podemos ignorá-los — a não ser em
operações que demandem uma grande precisão, como a
sincronização dos diversos relógios atômicos do sistema
global de posicionamento.
Mas, assim que começamos a explorar o nosso sistema
solar, o comportamento do espaço-tempo nessas
dimensões torna lógicos e compreensíveis os fenômenos
que de outro modo permaneceriam inteiramente
misteriosos.
A primeira confirmação da relatividade geral se deve
ao astrofísico inglês Sir Arthur Stanley Eddington, que
anunciou os seus resultados em novembro de 1919. Logo
depois do seu seminário na Royal Society, a notícia
estampou a primeira página do Times e foi republicada
pelos maiores jornais. Antes ainda de receber o Nobel,
Einstein se torna um dos cientistas mais famosos do
planeta.
Na verdade, quando ele publicou a sua teoria em 1915
já estávamos em plena guerra mundial e poucos
estudiosos britânicos se interessavam pelas ideias de um
cientista alemão. Mas Eddington era uma figura
extravagante, um quacre e pacifista convicto, que se
recusa a se alistar para a Grande Guerra, correndo o
risco de ser preso. Salva-se do cárcere somente graças a
Frank W. Dyson, astrônomo real, que o tirou do tribunal
militar com a desculpa de que Eddington precisava
procurar financiamentos a fim de poder verificar a teoria
de Einstein.
Estava previsto para 29 de maio de 1919 um eclipse
solar total no hemisfério Sul, e Eddington organiza uma
expedição até a ilha de São Tomé, no golfo da Guiné. O
seu objetivo é fotografar com um telescópio um
aglomerado de estrelas, cuja luz passava próxima ao Sol,
no exato momento em que, no ápice do eclipse, o disco
solar seria escurecido pela Lua. Se, como sustentava
Einstein, o Sol curva o espaço-tempo, a grande massa do
Sol iria desviar levemente os raios luminosos
provenientes das estrelas e modificar a sua posição
aparente. Em suma, durante o eclipse as estrelas
apareceriam numa posição diferente da habitual.
Eddington precisa enfrentar infinitas vicissitudes,
incluído o mau tempo que se prolonga durante o dia
todo, dando até o fim a impressão de que impedirá que
ele tire as fotos. Então, de repente as nuvens se dissipam
e o astrônomo britânico consegue algumas chapas
fotográficas que leva de volta para Cambridge. Serão
necessários alguns meses para analisar os resultados,
mas no fim Eddington elimina qualquer dúvida: numa das
chapas fotográficas há um deslocamento evidente da
posição aparente das estrelas, que coincide com as
previsões de Einstein. A relatividade geral, essa estranha
teoria que via o espaço se contrair e o tempo se dilatar
nas proximidades dos grandes corpos celestes, estava
correta.*
A Wasp-12 é uma estrela anã da constelação do
Cocheiro, em torno da qual foi identificado um planeta
gasoso, semelhante a Júpiter. O raio da órbita do grande
corpo celeste é bastante pequeno; o planeta está tão
perto da estrela-mãe que leva pouco mais de um dia
para fazer uma revolução completa. A atração
gravitacional entre os dois corpos é muito violenta e as
forças de maré deformam o gigante gasoso,
comprimindo-o nos polos, fazendo-o adquirir uma forma
ovoide. O telescópio espacial Hubble mostrou que, na
verdade, a Wasp-12 está arrancando matéria do seu
planeta, em suma, está dilacerando-o e acabará por
devorá-lo. É um fenômeno de canibalismo cósmico
bastante raro, porque ocorre entre uma estrela e um
planeta seu, ao passo que existem inúmeros exemplos
de galáxias que devoram outras galáxias ou de estrelas
que engolem outras estrelas nas proximidades.
Apontando os telescópios para a Wasp-12,
presenciamos ao vivo um crime cósmico, mas referente a
um sistema solar a cerca de 1400 anos-luz de distância,
ou seja, o episódio ocorreu há vários séculos, no período
em que Maomé começava a pregar a nova religião
monoteísta. O céu nos conta diariamente eventos
maravilhosos ou terríveis catástrofes ocorridas num
passado muito distante.
Os progressos realizados pela astrofísica nos últimos
cem anos, a partir da experiência pioneira de Eddington,
são impressionantes. O nosso universo visível, isto é, o
que conseguimos explorar com os grandes telescópios, é
um “objeto” gigantesco, tão descomunal que temos
dificuldade de abrangê-lo com a nossa imaginação. É
uma imensa teia de galáxias, mais de 100 bilhões,
separadas por enormes espaços vazios. Cada galáxia,
por sua vez, contém centenas de bilhões de estrelas
comparáveis ao nosso Sol, grandes concentrações de gás
e poeira e uma infinidade de corpos celestes menores.
Mas tudo isso é apenas uma fração quase insignificante
do que existe lá fora. Há corpos que não emitem luz,
como os buracos negros; há os grandes filamentos de
gás intergaláctico, as diferentes formas de radiação e,
principalmente, a matéria e a energia escuras, que
constituem, sem sombra de dúvida, os componentes
principais do todo.
Quando os números se tornam tão grandes, facilmente
se perde o sentido das dimensões. Pode ser útil, então,
recorrer ao estratagema do alfinete. Pegamos um desses
pequenos apetrechos metálicos utilizados para manter a
forma das camisas nas suas embalagens e o seguramos
entre os dedos pelo lado afiado. Se esticarmos o braço
para o céu, a parte de abóbada celeste que fica coberta
pela minúscula cabeça do alfinete é realmente pequena,
mas sob ela se ocultam milhares de galáxias, cada uma
constituída por centenas de bilhões de estrelas. Quando
os grandes telescópios foram posicionados para
vasculhar zonas aparentemente despovoadas do
universo, bastou saber esperar para descobrir que em
todas as partes se ocultam miríades de mundos.

As distâncias entre o Sol e os planetas do nosso sistema


solar são enormes se comparadas aos nossos
deslocamentos habituais sobre a Terra, mas são ínfimas
em comparação à distância entre as estrelas. A Terra fica
a 150 milhões de quilômetros do Sol, mas a 4,2 anos-luz
de Proxima Centauri, que é a estrela mais perto do Sol. E
um ano-luz corresponde a cerca de 9,5 trilhões de
quilômetros.
Para ter ideia das dimensões de uma galáxia,
considere-se que, só para alcançar o centro da nossa Via
Láctea, temos de cobrir uma distância de cerca de 26 mil
anos-luz. Mas, se quiséssemos visitar Andrômeda, a
galáxia mais próxima, teríamos de nos equipar para uma
viagem de 2,54 milhões de anos-luz. E ainda estaríamos
na pequena região de universo ocupada pelo nosso
grupo local, a família de galáxias de que fazemos parte.
Quando as distâncias são tão imensas, o conceito de
agora e a ideia de simultaneidade perdem qualquer
consistência, e entende-se melhor o que significa dizer
que o tempo é local. Que sentido há em se perguntar o
que acontece nesse momento em mundos tão distantes?
A nossa noção comum de tempo não funciona no mundo
das grandes distâncias. É um instrumento formidável
para sobreviver no nosso ambiente, mas nos engana tão
logo tentamos entender como funciona o mundo fora do
nosso pequeno planeta.
Diante da tangível impossibilidade de que o nosso
tempo presente seja simultaneamente o presente de um
outro lugar muito distante, somos tomados por uma
grande perturbação. Estamos tão acostumados a viver
num espaço restrito que nem de longe nos aflora a ideia
de que a comunicação não possa ser instantânea em
todos os lugares. Se telefonamos para um amigo que
mora em Nova York, podemos trocar informações e
contar os problemas que tivemos, compartilhando o
mesmo presente. Para se propagar entre nós a
comunicação requer algumas frações de segundo, e esse
minúsculo retardo pode ser tranquilamente anulado. Mas,
se as distâncias são tais que até a luz precisa de milhares
de anos para cobri-las, a própria ideia de um presente
comum se desintegra.
Magníficas ilusões e fantásticas quimeras

Quando observamos objetos muito distantes, vemos hoje


fenômenos ocorridos num passado longínquo, e toda
observação astronômica se converte numa viagem de
volta no tempo. Se as distâncias são pequenas, por assim
dizer, tendemos a ignorar o retardo e fazemos de conta
que é possível estender o nosso conceito de tempo ao
espaço que nos cerca. Por exemplo, a luz do Sol precisa
de pouco mais de oito minutos para alcançar a Terra,
mas essa diferença é suficientemente pequena para que
possamos desprezá-la. Ninguém suspeita que, nos oito
minutos decorridos entre a emissão dos fótons da
superfície do Sol e o registro deles pela nossa retina,
possa ter acontecido alguma coisa de sério à nossa
querida estrela. Mas, quando o intervalo de tempo se
torna considerável, tudo muda.
Hoje, quando usamos os nossos telescópios e
registramos uma bela imagem de Andrômeda, sabemos
que a luz percorreu um enorme caminho; deixou a
galáxia irmã da nossa Via Láctea no período em que, em
algum lugar no Chifre da África, ocorria a primeira
diferenciação do gênero Homo, aquele a que nós,
Sapiens, pertencemos, do Australopiteco africano. Quis o
acaso que esses fótons partissem bem no momento em
que uma estranha família de macacos começava a dar os
primeiros passos num longo caminho; a evolução a
levaria a desenvolver consciência e instrumentos
tecnológicos cada vez mais refinados, até inventar
aqueles aparatos fotossensíveis que iriam absorver os
fótons quando chegassem ao planeta Terra. A nova
espécie surgiu e desenvolveu a sua história durante o
longo período em que eles percorriam a enorme
extensão de vazio que separa as duas galáxias.
O grandioso céu estrelado que se ergue acima de nós
nas noites claras e que tem inspirado gerações de poetas
é um maravilhoso artefato. Esse conjunto ordenado de
corpos celestes, que os antigos organizaram em
constelações nas quais ecoavam ainda os grandes
relatos mitológicos, é uma gigantesca ilusão de ótica.
Sirius, a estrela mais brilhante da noite, é, na verdade,
um sistema de duas estrelas que orbitam uma ao redor
da outra a 8,6 anos-luz de distância do Sol. Deneb, a
estrela principal do Cisne, brilha a 2600 anos-luz de
distância, enquanto Polaris-a, uma supergigante amarela,
a mais luminosa do sistema de três estrelas que nos
aparecem como uma única Estrela Polar, está a 325
anos-luz de nós.
Corpos celestes distribuídos a distâncias tão diferentes
entre si emitiram no passado, em momentos distintos, a
luz que hoje os nossos olhos registram no mesmo
instante. Na escuridão da noite reconstruímos uma
imagem que é a sobreposição, totalmente artificial, de
eventos distribuídos no tempo a intervalos de milhares
de anos. O céu estrelado é uma maravilhosa
representação de uma realidade muito mais complicada
do que nos parece.
Como já aconteceu com a questão do Sol girando em
volta da Terra, o que vemos pode se revelar um engano
bem arquitetado. Às vezes os nossos olhos nos fazem ver
coisas que não existem, e com frequência não vemos as
coisas que existem.
Mas os artefatos produzidos pelo espaço-tempo em
escala cósmica são múltiplos. Alguns deixaram os
próprios astrônomos boquiabertos. Foi quando,
fotografando corpos celestes muito distantes, viram-se
diante de uma espécie de miragem. A imagem da fonte
parecia quadruplicada, formando uma espécie de cruz.
Esse fenômeno também é consequência da relatividade
geral. Ocorre quando um objeto muito maciço se interpõe
entre a fonte luminosa e o observador, e a deformação
do espaço-tempo desvia o caminho dos diversos raios
luminosos. As posições aparentes se distribuem de forma
radial ao redor da fonte e produzem a chamada “cruz de
Einstein”. Esse também é um artefato, uma visão ilusória
que faz com que apareçam nas imagens de partes
distantes do céu cópias múltiplas, absolutamente
idênticas, de estrelas e galáxias. Na verdade, esses
fenômenos são uma fonte preciosa de informações: os
astrônomos usam essas imagens para obter dados sobre
a massa e a distribuição dos objetos astronômicos
envolvidos.
Quando a energia de três Sóis surfa tranquilamente nas
ondas do espaço-tempo

As numerosas observações astronômicas que confirmam


a relatividade geral nos dizem que o espaço-tempo não é
um conceito abstrato, uma simples representação da
geometria do universo; pelo contrário, essa sutilíssima
estrutura é, de fato, substância material que vibra,
oscila, flutua e transmite todas as formas de
perturbação, como ocorre com a superfície líquida de um
lago.
O fato de que ela é deformada pela massa-energia e
que dessa relação nasce a gravidade já deveria ter
despertado em nós alguma suspeita sobre a sua
verdadeira natureza. O espaço-tempo não é um
recipiente passivo de fenômenos naturais, mas é parte
essencial do jogo; intervém na dinâmica dos corpos
celestes, é perturbado por eles e, por sua vez, faz com
que se movam e determina a velocidade do fluxo do
tempo em que estão localmente envolvidos. Massa e
energia não se movem no tempo num espaço vazio e
inerte; pelo contrário, as várias distribuições de matéria
em movimento se entrelaçam com o espaço-tempo num
conjunto de configurações, às vezes periódicas e
regulares, e com frequência perturbadas por fenômenos
catastróficos. É um conjunto dinâmico e cambiante no
qual grandes quantidades de energia são trocadas.
As equações da relatividade geral são bastante difíceis
de resolver porque o espaço-tempo é parte tanto da
equação quanto da sua solução. As suas propriedades,
em suma, entram nas equações, e a sua curvatura seria
a solução das próprias equações. Entende-se melhor
tudo isso quando se leva em conta que a curvatura
gravitacional contém energia, a qual, por sua vez, gera
outra curvatura. Essa dificuldade submeteu o seu próprio
descobridor, Albert Einstein, a duras provas, mas ele
conseguiu encontrar uma solução aproximativa no caso
em que a curvatura do espaço-tempo fosse bastante
pequena. Para a sua grande surpresa, ele obteve
equações muito semelhantes às do eletromagnetismo,
com uma solução que continha ondas gravitacionais que
se propagavam à velocidade da luz, exatamente como as
ondas eletromagnéticas.
Se o espaço-tempo oscila, essas deformações,
propagando-se, transportam energia por grandes
distâncias. A energia gravitacional também pode ser
emitida e absorvida, tal como acontece com a energia
irradiada das cargas elétricas aceleradas, e transportada
pelas oscilações do campo eletromagnético.
Mas o próprio Einstein expressou um considerável
ceticismo quanto à possibilidade de que essa solução
fosse capaz de descrever um fenômeno físico real. E
tinha ótimas razões para duvidar. Antes de mais nada, a
debilidade da força de gravidade, que tem uma
intensidade insignificante comparada à eletromagnética.
Produzir ondas eletromagnéticas é muito fácil: basta
acelerar os levíssimos elétrons e logo eles emitem fótons
em todas as direções. Mas, para induzir uma curvatura
significativa do espaço-tempo, são necessárias massas
enormes; se então quisermos produzir perturbações que
se propagam como ondas, essas mesmas massas devem
ser submetidas a acelerações monstruosas. Estrelas e
planetas, porém, não suportariam as enormes demandas
mecânicas, e pode-se facilmente demonstrar que se
despedaçariam no mesmo instante. Assim, eram corretas
as objeções de que as ondas gravitacionais jamais
seriam observadas.
Ninguém podia imaginar, nas primeiras décadas do
século passado, que fosse possível haver corpos celestes
muito mais maciços e densos do que as estrelas comuns,
astros tão compactos que podiam aguentar as
prodigiosas acelerações que são necessárias para a
emissão de ondas gravitacionais.
Os buracos negros são objetos muito densos que
podem conter a massa de muitos Sóis num volume com
um diâmetro de poucas dezenas de quilômetros. Foram
esses objetos tão maciços e robustos, unidos por uma
monstruosa força de gravidade, que produziram
fenômenos permitindo identificar as primeiras ondas
gravitacionais.
A flagrante confirmação de que o espaço-tempo pode
transportar energia a grande distância foi obtida quando
conseguimos registrar o eco de uma terrível catástrofe
que devastou uma galáxia distante.
Tudo aconteceu quando dois buracos negros, pesando
cada um o equivalente a trinta Sóis, entraram em
interação, produzindo uma sequência espetacular de
eventos. Atraindo-se, os dois corpos começaram a girar
alucinadamente em volta do centro de gravidade comum
e acabaram se arremessando um contra o outro numa
velocidade próxima à da luz. Fundindo-se, deram origem
a um buraco negro de cerca de sessenta massas solares,
mas, nas fases paroxísticas anteriores à colisão, emitiram
numa fração de segundo uma quantidade assustadora de
energia, equivalente a três massas solares, sob a forma
de ondas gravitacionais. Esses objetos ultracompactos
conseguiram distorcer o espaço-tempo de uma maneira
tão violenta que produziram ondas que se propagaram
por todo o universo, até alcançar o nosso planeta, depois
de percorrerem uma distância de 1,4 bilhão de anos-luz.
Como um habilíssimo surfista, a energia de três Sóis
dropou a onda do espaço-tempo mantendo-se em
equilíbrio por 1,4 bilhão de anos.
Apesar de ser uma substância material incrivelmente
rígida, existem fenômenos naturais de uma tal potência
que conseguem deformar o espaço-tempo e fazê-lo
oscilar como se fosse uma rede elástica normal. A
“marretada” decorrente da colisão dos dois buracos
negros o encrespou e o fez vibrar, exatamente como uma
pedra num lago.
Depois da primeira revelação, com a utilização de
outros instrumentos e o contínuo aprimoramento das
técnicas, foi possível registrar um catálogo inteiro de
novos eventos. Recolheram-se sinais de ondas
gravitacionais emitidas por outras duplas de buracos
negros e por estrelas de nêutrons, uma outra família de
corpos celestes compactos, embora muito menos densos
e maciços.
Com a astronomia gravitacional abriu-se uma
perspectiva inteiramente nova para a observação e a
compreensão do universo. A energia emitida sob forma
de ondas gravitacionais nos fornece informações
preciosas sobre a presença e as características dos
buracos negros. Hóspedes tenebrosos, de cuja existência
mal suspeitávamos, podem ser estudados em detalhe
para lançar luz sobre o papel que desempenham na
dinâmica do universo e nos permitir compreender melhor
o seu lado obscuro.

* A expedição inglesa, na verdade, foi composta por duas equipes. A


chefiada por Eddington teve como base a ilha de Príncipe, na costa atlântica
da África. A outra, liderada por Andrew Crommelin, veio ao Brasil, mais
especificamente a Sobral (ce). Como as condições meteorológicas em
Príncipe ficaram longe das ideais, foram as imagens obtidas em Sobral que
permitiram, de fato, a comprovação das previsões de Einstein — que tinha
total consciência disso, dado que, em 1925, em visita ao Rio de Janeiro,
afirmou “O problema concebido em minha mente foi resolvido pelo luminoso
céu do Brasil”. (N. R. T.)
5. Quando o tempo para

Sabemos muito sobre o universo e podemos investigar as suas


grandes extensões, mas, com a ampliação dos nossos
conhecimentos, também encontramos obstáculos
inesperados. Por exemplo, há zonas tão turbulentas que
se torna difícil estender a elas as leis que obtivemos com
o estudo das partes pacíficas e tranquilas, semelhantes
àquela onde vivemos.
Consideremos as regiões situadas nas proximidades
dos buracos negros. Não são pequenas zonas marginais
do universo; às vezes ocupam grandes porções de
galáxias inteiras. Algumas contêm núcleos galácticos
habitados por buracos negros de dimensões gigantescas,
que vivem num estado paroxístico de absorção de
estrelas e outros materiais. Engolindo mundos inteiros, o
buraco negro emite jorros de matéria, expulsos a
velocidades ultrarrelativísticas e acompanhados de jorros
de raios X ou gama, monstruosamente potentes. A
galáxia inteira que o hospeda é assolada por cataclismos
cósmicos, devastações tão violentas que se torna difícil
reconstruir a sua exata dinâmica.
As leis da física que desenvolvemos descrevem bem
situações de estabilidade, em que predominam o
equilíbrio e a regularidade. Os nossos instrumentos
matemáticos e por vezes até as nossas próprias
estruturas mentais rangem quando devem tratar de
sistemas complexos, especialmente quando estão
distantes de condições de equilíbrio. Por exemplo, se o
nosso sistema solar tivesse se formado ao redor de um
sistema binário de estrelas, isto é, se a Terra girasse ao
redor de dois Sóis, por sua vez em rotação em torno do
centro de massa do sistema, a órbita terrestre teria um
caráter altamente caótico. Mesmo que, nessas
condições, existissem os pressupostos para o
desenvolvimento da vida, o que não é nada certo, seria
complicadíssimo, para não dizer impossível, obter as leis
do movimento dos planetas.
Por muitos séculos pudemos ignorar tudo isso. Olhando
o mundo do nosso pacífico ponto de observação,
supomos que existe uma ordem de caráter geral, que
estendemos arbitrariamente ao universo inteiro. Faz
tempo que entendemos que essa é uma atitude
presunçosa, fruto apenas da nossa ignorância. A ciência
moderna nos diz que há muitas regiões onde essa
regularidade simplesmente não existe; outras totalmente
inacessíveis, onde não sabemos o que acontece; e outras
ainda tão peculiares que fazem com que fenômenos
ordinários, como o passar do tempo, assumam
características, para dizer o mínimo, extravagantes.
Os relógios da Comuna de Paris

Na primavera de 1871, Paris viveu uma das suas muitas


experiências de revolta. Depois da grande Revolução
iniciada em 14 de julho de 1789 e do conturbado período
napoleônico, o povo parisiense continuava a manifestar
descontentamento em várias ocasiões. Como ocorreu
nos três dias em finais de julho de 1830, quando mais
uma vez se desencadeou uma rebelião contra a
monarquia; erguendo barricadas nas ruas e enfrentando
o exército com armas em punho, os revoltosos haviam
decretado o fim dos Bourbon e conduziram ao poder Luís
Filipe d’Orléans, o primeiro monarca constitucional da
França. Ocorreu novamente em 1848, um período muito
turbulento para toda a Europa. No final de fevereiro, os
revoltosos haviam assumido o controle de Paris e Luís
Filipe fora obrigado a abdicar. Nasce a Segunda
República, abole-se a escravidão e se estabelece o voto
universal masculino. Mas, no verão, uma terrível crise
econômica, que atinge fortemente operários e artesãos
da capital, leva a um novo levante. O exército se livra
das barricadas a tiros de canhão e Napoleão iii, sobrinho
de Napoleão Bonaparte, sobe ao poder e, com um golpe
de Estado, instaura o Segundo Império.
O rancor dos operários parisienses pela chacina de
1848 e pelo desfecho infeliz da grande revolta fica
incubado sob as cinzas e depois volta a explodir, com
enorme violência, no final da guerra franco-prussiana.
Em 1871, humilhada pela derrota, Paris se recusa a se
submeter e desencadeia-se a insurreição operária.
Dessa vez, trata-se realmente de uma nova revolução,
que luta por um objetivo radical: instaurar uma forma
nova de Estado, a Comuna. Os revoltosos abolem o
exército permanente e distribuem armas aos cidadãos.
Para se distanciar do passado e dos erros do Terror
jacobino, incendeiam a guilhotina. Para cortar as pontes
com qualquer nostalgia imperial, demolem a coluna
napoleônica da praça Vendôme.
Pretende-se construir um Estado radicalmente novo,
que encarne os sonhos e as expectativas do povo de
Paris. Implanta-se o ensino laico e gratuito, os cargos da
magistratura e do funcionalismo passam a ser eletivos, e
os representantes do povo são remunerados com salários
semelhantes aos dos operários. Dessa vez deseja-se
mudar tudo: a arte, a ciência, a literatura e a vida de
todos.
Nos primeiros dias da revolta, os revolucionários da
Comuna atiram sistematicamente contra os relógios
públicos, despedaçando-os. O mundo novo que queriam
construir deveria parar o tempo que lhes roubava a vida
e destruía as suas famílias. Detendo os relógios,
procuravam mudar os seus inelutáveis destinos
marcados pelo tempo da opressão.
Na grande Revolução de 1789, houvera a decisão
consciente de mudar o calendário. A nova era devia
marcar uma separação com o passado também na forma
de medir o tempo. Com o fim da monarquia concluíra-se
a época da mentira e da escravidão. Os nomes dos novos
meses ecoavam o clima da França: Nivoso, Brumário, ou
as recorrências agrícolas principais: Messidor, Vindimiário
e assim por diante.
A Comuna reintroduziu por poucas semanas o velho
calendário republicano que fora eliminado por Napoleão
em 1805. Mas agora isso não basta. A ruptura é ainda
mais radical. Deseja-se parar o tempo para que ele
reinicie em bases completamente novas.
As esperanças e as ilusões daqueles meses serão
afogadas em sangue. A derrota foi implacável, com
dezenas de milhares de mortos. Mas essa tentativa de
assalto aos céus, para subverter tudo, continuará no
pano de fundo das lutas sociais durante o resto do
século, depois desembocando nos movimentos
revolucionários da Rússia do início do século xx.
Algumas das ideias “loucas” daquele período de
grande efervescência social continuarão a circular, de
forma cársica, nas profundezas das agitações no campo
artístico e literário.
Entre os milhares de communards, há também um
ceramista, filho de um carpinteiro, que entra para a
Guarda Nacional e se torna capitão da Terceira
Companhia do 12o Batalhão Federal. É um bom soldado e
se torna amigo do capitão Charles de Sivry, filho de
Antoinette-Flore Mauté, que desde o ano anterior era
sogra de Paul Verlaine, o poeta. Charles de Sivry é um
grande apaixonado por música e a mãe, madame Mauté,
é uma ótima pianista. As duas famílias de communards
se frequentam e logo os dois músicos percebem as
qualidades de Achille-Claude, o filho do ceramista, que
teve algumas aulas de piano e aos nove anos já mostra
um talento excepcional. São os primeiros passos da
formação de Claude Debussy, um dos maiores
compositores franceses de todos os tempos.
O jovem músico logo se tornará um dos alunos mais
talentosos e indisciplinados do Conservatório de Paris e,
com pouco mais de trinta anos, em 1894, comporá o
breve Prélude à l’après-midi d’un faune, que muitos
consideram a obra que abriu o caminho para toda a
música do século xx. Incidentalmente, inspirado pela
ruptura musical produzida por Debussy, o bailarino e
coreógrafo russo Vaclav Nijinski criará em 1912, sobre a
música do Prélude, o balé que, rompendo
definitivamente com a tradição do balé clássico, lançará
as bases da dança contemporânea.
Na sua obra-prima, o jovem Debussy transforma a
música num quadro sonoro. Modifica em profundidade o
desenvolvimento do tempo musical, não se apoia em
nenhuma pulsação, nem sugere um ritmo claramente
definido. As suas harmonias delicadas se desenvolvem
sobre os timbres dos diversos instrumentos para
construir uma versão onírica da linguagem musical.
Terá talvez transbordado nessa busca de Debussy de
dissolver o tempo na música algo da experiência do pai
communard? O eco de alguma lembrança da época em
que, em Paris, tentou-se parar o tempo e assaltar os
céus?
Os lugares infernais onde o tempo se desvanece

Nenhum dos communards jamais imaginaria que, pouco


mais de um século depois da desventurada revolta,
cientistas visionários iriam teorizar a existência de
lugares no universo onde o tempo realmente para.
Em 2020, o prêmio Nobel de física foi atribuído
conjuntamente a Roger Penrose, Andrea Ghez e Reinhard
Genzel pelas suas contribuições à compreensão dos
buracos negros. Esse reconhecimento consagra o papel
cada vez mais relevante que essa estranhíssima família
de corpos celestes vem adquirindo na ciência moderna.
Mais uma vez, trata-se de uma das múltiplas
consequências da relatividade geral de Einstein. E,
também nesse caso, pensou-se por muito tempo que
eram apenas curiosidades matemáticas, sem qualquer
relação com a realidade.
Karl Schwarzschild era um físico alemão que, com
pouco mais de quarenta anos, alistara-se na Primeira
Guerra Mundial e combatia no fronte russo no comando
de um regimento de artilharia. Em 1916, consegue que
lhe enviem o artigo de Einstein que mudará a história da
física. O desafortunado e genial cientista, durante as
pausas dos combates, concentra-se na tentativa de
descrever a curvatura do espaço-tempo perto de estrelas
estacionárias e perfeitamente esféricas. Para simplificar
os cálculos, ele introduziu um novo sistema de
coordenadas. Num espaço-tempo de simetria esférica, as
equações de Einstein encontram soluções exatas, e para
cada massa é possível definir um raio, que será chamado
de “raio de Schwarzschild”, sob o qual nasce uma
singularidade: uma curvatura do espaço-tempo tão
elevada que consegue aprisionar até mesmo a luz. Nada
no interior desse raio pode escapar à atração
gravitacional, porque a sua velocidade de escape teria de
ser superior à da luz.
Einstein recebeu por carta os cálculos de
Schwarzschild; os resultados eram tão intrigantes que ele
decidiu apresentá-los imediatamente na Academia das
Ciências da Prússia, em nome do colega engajado no
conflito. A solução era elegante, mas nem Einstein nem o
próprio Schwarzschild ousaram escrever ou sequer
imaginar que, por trás da formulação matemática,
pudesse se encontrar uma nova classe de corpos
celestes. Nenhum fenômeno conhecido poderia
concentrar uma quantidade tão grande de matéria num
espaço tão restrito. Infelizmente, o diálogo entre os dois
cientistas não durou muito tempo. No início de 1916,
Schwarzschild adoeceu gravemente e morreu poucos
meses depois.
Será preciso esperar os anos 1960 para surgirem os
primeiros trabalhos com a hipótese de que eram objetos
astronômicos reais. Roger Penrose foi um dos primeiros a
sustentar a ideia de que o colapso de estrelas muito
maciças podia levar ao surgimento de singularidades
gravitacionais. A sua tese, exposta num artigo de 1965,
será reconhecida muitos anos depois como o ponto de
partida do novo campo de pesquisa. Penrose e o jovem
Stephen Hawking publicaram uma série de estudos
fundamentais sobre essa nova família de estranhos
objetos. Os dois cientistas sustentaram que havia no
nosso universo singularidades espaçotemporais em que
o tempo parava, perdia significado, se desvanecia.
Chegara o momento de procurar sinais da sua presença e
de estudar as suas características.
Em 1967, o físico americano John Wheeler, não sem
uma ponta de forte ironia, cunhava o termo buraco negro
para designar aquelas que até então eram chamadas de
estrelas escuras. Para deixar mais explícito o duplo
sentido, Wheeler enunciava o teorema dito no-hair,
literalmente “os buracos negros não têm pelos”,
ressaltando a escolha de uma nomenclatura mais uma
vez provocadora. Desde então, desencadeou-se a caça a
todos os possíveis sinais que pudessem sugerir a sua
presença, e os resultados marcaram profundamente a
astrofísica moderna.
Enxergar diretamente um buraco negro é, por
definição, uma missão impossível. A gravidade
desprendida pelo objeto é tão violenta que qualquer
fóton emitido pelo corpo fatalmente será atraído de volta
à superfície, como ao lançarmos uma pedra para o alto. A
superfície definida pelo raio de Schwarzschild se chama
“horizonte de eventos”, porque nenhuma informação
proveniente do volume por ela delimitado pode se
propagar para o resto do universo. A cortina escura
separa irremediavelmente o nosso mundo e o da
singularidade; oculta ao nosso olhar os lugares onde o
tempo perde significado, como que para nos proteger de
um contato com situações paradoxais para nós.
Quando um buraco negro interage com o material das
estrelas comuns ou com outro buraco negro, o encontro
é espetacular e produz vários tipos de sinais que
aprendemos a registrar e reconhecer. Desde o final dos
anos 1970, o catálogo desses estranhíssimos corpos
celestes vem se enriquecendo ano após ano.
Os buracos negros descobertos até agora se dividem
em duas categorias principais: os estelares e os
supermassivos. São objetos muito diferentes entre si, não
só pelas dimensões e características, mas também pelas
dinâmicas das quais nascem e pela evolução que sofrem.
Os buracos negros estelares são corpos astronômicos
de uma densidade monstruosa. Comparados a uma
estrela ou a um planeta, são realmente minúsculos; se,
numa hipótese por absurdo, descobríssemos uma
maneira de trazer um buraco negro para a Terra sem a
destruir num instante, mesmo os maiores deles caberiam
confortavelmente no perímetro de uma grande área
metropolitana, como Paris ou Londres. Mas nesse
volume, afinal bastante modesto, os buracos negros
concentram a massa de dezenas de Sóis. Quando a
gravidade consegue conter quantidades de matéria tão
anormais em volumes tão pequenos, a densidade atinge
valores assustadores.
As coisas se complicam ainda mais se considerarmos
que a massa de cada buraco negro não se distribui de
modo uniforme no esferoide escuro delimitado pelo seu
raio de Schwarzschild. Pelo contrário, pensa-se que ela se
concentra inteiramente no ponto central do volume; essa
zona, de dimensões infinitesimais, torna-se uma região
com curvatura infinita, uma singularidade do espaço-
tempo. Como se pensa que a maioria dos buracos negros
tem um momento angular, isto é, gira vertiginosamente
sobre si mesmo, o esferoide seria achatado nos polos e
toda a matéria se concentraria no volume de uma
pequena rosquinha contida no seu recesso mais
profundo. Uma tal concentração de matéria produz uma
curvatura do espaço-tempo que tende ao infinito, o que
significa que o espaço e o tempo, naquela zona, perdem
significado. Para tornar as coisas ainda mais
inquietantes, essa concentração puntiforme violaria o
princípio da incerteza, um dos pilares da mecânica
quântica.
Aí está a voragem sem fim, o redemoinho sem fundo
que engole tudo o que circula nas proximidades. O mais
terrível dos nossos pesadelos ancestrais se transformou
em realidade. Lá embaixo, no centro dessas regiões
protegidas pelo horizonte de eventos, escondem-se as
zonas misteriosas onde o tempo se desvanece e os
princípios mais sólidos da física moderna oscilam.
O fim espetacular de Betelgeuse

Betelgeuse é uma estrela na constelação de Órion,


visível a olho nu nos nossos céus. É uma supergigante
vermelha cuja luminosidade varia sensivelmente porque
está atravessando as fases finais da sua longa existência.
Vista através de telescópios potentes, tem uma forma
levemente irregular e uma massa enorme: é cerca de
vinte vezes mais pesada do que o Sol. O seu diâmetro é
tão grande que, se a colocássemos no centro do nosso
sistema solar, engoliria num instante Mercúrio, Vênus,
Terra e Marte, e chegaria perto da órbita de Júpiter.
Betelgeuse está enviando sinais inequívocos de que o
combustível nuclear que a alimenta está se esgotando e
de que o colapso final se aproxima. Poderia explodir a
qualquer momento, transformando-se numa gigantesca
supernova, mas ninguém é capaz de prever exatamente
quando isso vai ocorrer. Considerando as incertezas
características desses fenômenos, a sua grande agonia
pode se prolongar ainda por muitos milhares de anos.
Mas temos certeza de que, quando explodir, o espetáculo
será inesquecível.
Brilhará no céu uma nova estrela, visível mesmo de dia
e mais luminosa do que a Lua cheia; na Terra, por muitas
semanas a escuridão da noite não virá; depois, o novo
astro reduzirá lentamente a sua intensidade, mas
continuará visível por alguns séculos. No momento
culminante da crise, as camadas externas da enorme
estrela serão expulsas por toda a sua volta a grande
velocidade, enquanto o seu centro mais interno e
profundo, pulverizado e comprimido pelo colapso
gravitacional, se compactará e formará um objeto
escuro, com um raio de poucas dezenas de quilômetros.
Os seres terrestres que assistirem ao espetáculo
maravilhoso e inquietante que ocorrerá acima de suas
cabeças, a seiscentos anos-luz de distância, poderão
dizer que viram a morte de uma estrela e o nascimento
de um buraco negro estelar.
Os mecanismos de formação desses corpos
compreendem também as estrelas de nêutrons. Podem
se transformar em buracos negros estelares quando
alcançam a massa crítica, absorvendo matéria de
estrelas comuns com que interagem em sistemas
binários, ou por meio da fusão com outras estrelas de
nêutrons.
Se não temos a sorte de assistir a um desses
fenômenos, a única esperança de ver um buraco negro é
procurar comportamentos anômalos das estrelas
comuns. Se interagem com um desses objetos escuros,
as estrelas podem percorrer órbitas muito estranhas ou
mostrar sinais de deformação. Uma das técnicas que se
mostraram mais eficazes na caça aos buracos negros
estelares é a busca de sistemas binários que emitem
raios X.
Quando dois corpos astronômicos estão tão próximos
que a atração gravitacional recíproca faz com que ambos
orbitem em torno do baricentro, estamos diante de um
sistema binário. Se um dos dois corpos for um buraco
negro, a sua tremenda força de gravidade pode
conseguir arrancar da estrela grandes quantidades de
gás ionizado. O plasma sugado forma uma espécie de
longo penacho que começa a cair na direção do buraco
negro, orbitando-o a uma distância cada vez mais
próxima.
Em volta do buraco negro forma-se um enorme halo de
matéria ionizada, que recebe o nome de disco de
acreção. A conservação do momento angular faz com
que a sua velocidade aumente gradualmente, conforme
aumenta a proximidade ao centro de atração. As porções
de plasma arrancadas da estrela sofrem colisões
catastróficas e são envolvidas em fenômenos
turbulentos. O gás ionizado, que orbita a uma velocidade
alucinante, gera enormes campos magnéticos que, por
sua vez, interagem caoticamente com o material caindo
em direção à singularidade. O plasma se aquece a
dezenas de milhões de graus de temperatura e emite
fótons em todos os comprimentos de onda. Do disco de
acreção saem grandes jorros de fótons de alta energia: o
buraco negro se torna uma fonte astronômica de raios X.
Um sistema binário formado por uma estrela “invisível”,
que emite raios X, e uma companheira que também se
pode identificar visivelmente é um bom candidato a
conter um buraco negro estelar.
Em alguns casos, veem-se buracos negros emitindo
jorros de matéria também pelos polos. São imensos
penachos simétricos, finos filamentos de matéria
expulsos em velocidades relativísticas. Propagam-se por
distâncias monstruosas e podem dar origem, por sua
vez, a jatos de radiação eletromagnética de alta energia
ou a jorros de partículas carregadas.
A presença de um disco de acreção e de jatos
relativísticos nos polos converte toda a zona em torno do
buraco negro num ambiente infernal. Os buracos negros
estelares são objetos muito perigosos porque podem
esmigalhar qualquer corpo celeste que se encontre nas
proximidades. Depois, quando a matéria do disco de
acreção é arrastada para perto do horizonte de eventos,
desencadeiam-se as forças de maré e tudo é
estraçalhado.
Diz-se que um corpo é submetido a forças de maré
quando a atração gravitacional que o envolve tem um
forte gradiente, isto é, quando há uma grande diferença
de gravidade entre os dois extremos do corpo. O nome
deriva do fenômeno das marés propriamente ditas, que
nasce da diferente intensidade da atração lunar sobre as
duas faces opostas da Terra. É essa diferença que produz
a elevação periódica do nível dos mares e também os
efeitos, de menor intensidade, nas rochas terrestres. Nos
buracos negros estelares, essas forças podem ser
monstruosas já a milhares de quilômetros de distância do
horizonte de eventos. Um objeto compacto, pesando
dezenas de massas solares, pode desintegrar à distância
tudo o que se aproxima dele: um asteroide rochoso de
alguns quilômetros ou uma astronave com alguns
corajosos exploradores a bordo. Quando as forças de
maré superam em muito as forças de coesão do material,
tudo se deforma, se alonga, se fragmenta, acabando por
se desfazer num fino gás de componentes elementares.
A zona circundante dos buracos negros estelares, bem
antes de alcançar o horizonte de eventos, é um ambiente
muito perigoso. Melhor não se aproximar para uma
espiada.
Até agora, foram identificados na nossa galáxia cerca
de quinze buracos negros estelares. Os menores, se
assim se pode dizer, são cinco vezes mais pesados do
que o Sol. Os maiores podem alcançar massas superiores
a setenta massas solares. São objetos bastante raros,
mas, apesar disso, povoam em grandes quantidades
todas as galáxias, inclusive a nossa. As estimativas mais
recentes falam em 100 milhões de buracos negros que
vagueiam pela Via Láctea.
Já vimos que é possível detectar buracos negros
estelares fundindo-se entre si com o registro das ondas
gravitacionais emitidas nas fases finais da colisão. Há
alguns anos, a instrumentação com que podemos
ampliar a lista desse tipo de corpos foi enriquecida com
novos aparatos. Os interferômetros por ondas
gravitacionais nos permitiram identificar cerca de doze
duplas de buracos negros estelares, mas ainda estamos
apenas no início de um novo campo de pesquisa.
A astronomia gravitacional nos permitirá construir
novos mapas do céu e talvez descobrir algumas das
propriedades que os buracos negros estelares ocultam
atrás do horizonte de eventos. Na colisão, o buraco negro
se dilacera e a energia que um instante antes estava
aprisionada no interior do horizonte de eventos é
liberada e difundida por todo o universo. Daqui a algum
tempo, talvez, as ondas gravitacionais nos ajudarão a
entender o que acontece além da barreira de fogo que
esconde de nossas vistas os lugares assustadores onde o
tempo para.
Os campeões do terror

Se você se impressionou com os buracos negros, segure-


se firme porque agora chegam os autênticos campeões
do terror. Os buracos negros supermassivos são
verdadeiros monstros dos quais ninguém, em sã
consciência, gostaria de se aproximar. Estamos falando
de objetos assustadores cujas manifestações fazem com
que as catástrofes produzidas pelos buracos negros
estelares pareçam brincadeira de criança. Se esses
últimos são pequenas esferas compactas com poucas
dezenas de quilômetros de diâmetro, os buracos negros
supermassivos podem alcançar dimensões de muitos
bilhões de quilômetros. São, de longe, os corpos celestes
mais gigantescos do universo inteiro. Alguns deles
poderiam conter com folga todo o sistema solar. Se os
buracos negros estelares podiam ter o peso de cem Sóis,
a massa dos supermassivos se mede em milhões ou
mesmo bilhões de massas solares.
Reinhard Genzel e Andrea Ghez, os dois astrônomos
que dividiram com Penrose o Nobel em 2020, foram
premiados por terem demonstrado que Sagittarius-A* é
um buraco negro supermassivo que se encontra no
centro da nossa galáxia. Pesa mais de 4 milhões de Sóis
e, como todos os seus semelhantes, não pode ser
observado diretamente. No início, os dois astrônomos
pensavam que se tratava de uma fonte de rádio
compacta (pulsar), mas depois, examinando as estranhas
órbitas de algumas estrelas nas suas proximidades,
começaram a pensar na hipótese de que poderia ser um
buraco negro gigantesco. Com efeito, havia estrelas que
corriam a velocidades inacreditáveis, superiores a 20 mil
quilômetros por segundo, e se moviam em órbitas
elípticas muito pronunciadas. Não é normal ver estrelas
se movendo a 7% da velocidade da luz e, se fazem
órbitas tão loucas, significa que o centro de gravidade
que as mantém ligadas possui uma força monstruosa.
Depois descobriram-se enormes nuvens de gás que
seguiam a 100 mil quilômetros por segundo, um terço de
c, em direção a esse “nada” que parecia atrair qualquer
coisa nas proximidades. A seguir, reuniram-se indicações
sobre a presença de um disco de acreção e a emissão de
sinais variáveis no espectro x, coisas que acontecem
quando o buraco negro engloba grandes quantidades de
matéria. Por fim, viu-se que a luz das estrelas que
orbitam ao seu redor perde energia quando elas
atravessam a parte mais intensa do campo gravitacional,
e isso removeu as últimas dúvidas: Sagittarius-A* é um
enorme buraco negro. Mesmo a nossa plácida Via Láctea
esconde no seu interior o mais inquietante e turbulento
dos corpos celestes: um buraco negro supermassivo.
Agora está claro que toda grande galáxia gira em torno
de um desses objetos tão imensos. Parece quase uma
brincadeira do destino que os grandes piões cósmicos,
aqueles que nos encantam desde sempre e que, com o
seu movimento periódico e regular, construíram a nossa
visão do tempo, tenham se agregado em torno dos
pontos onde o tempo não existe. O eixo central, em torno
do qual o maravilhoso carrossel do tempo gira
imperturbável, é “vazio” de tempo.

Sagittarius-A* tem uma massa certamente monstruosa, mas


empalidece diante da massa de alguns de seus colegas.
O buraco negro no centro da ngc-4261, uma galáxia na
constelação de Virgem, pesa mais de 1 bilhão de massas
solares; mas o recorde absoluto pertence, por ora, ao
J2157, que tem uma massa de 34 bilhões de Sóis. Um
buraco negro que pesa como uma galáxia médio-
pequena inteira e faz com que Sagittarius-A* pareça um
brinquedo inofensivo.
Esses monstros foram descobertos investigando-se os
núcleos galácticos ativos, isto é, galáxias que exibiam
uma enorme luminosidade, numa ampla região do
espectro eletromagnético, proveniente de uma pequena
região compacta, situada no seu centro. Foram
identificadas várias famílias de núcleos galácticos ativos
que apresentam processos muito diferentes entre si.
Algumas são poderosíssimas fontes de rádio, outras
exibem jorros relativísticos de dimensões monstruosas,
outras ainda mostram impressionantes jatos de energia
no espectro dos raios X ou gama. Todos esses fenômenos
se originam de um mesmo processo: a queda de matéria
na direção de um buraco negro supermassivo que ocupa
o seu centro. São os resíduos de mundos inteiros que são
triturados pelo buraco negro central e que irradiam
energia enquanto despencam em direção ao abismo. No
silêncio absoluto do cosmo, a atividade incessante dos
buracos negros supermassivos nos narra uma sequência
interminável de impressionantes catástrofes de
proporções inauditas, capazes de destruir milhares de
estrelas.
O M87* é o supergigante mais próximo de nós.
Encontra-se na constelação de Virgem, no centro da
galáxia elíptica Messier 87, a uma distância aproximada
de 53,5 milhões de anos-luz. Tem uma massa estimada
em pouco mais de 6 bilhões de massas solares, à qual
corresponde um horizonte de eventos de 38 bilhões de
quilômetros. As suas proporções são tão descomunais
que poderia conter folgadamente todo o sistema solar,
inclusive a órbita excêntrica de Plutão, rebaixado a
planeta anão em 2006. O M87* ficou famoso porque os
astrônomos do eht (Event Horizon Telescope) reuniram
dezenas de radiotelescópios, conseguindo reconstruir
uma imagem sua, que correu o mundo. Vê-se claramente
o disco de acreção que o rodeia, bem como o gigantesco
horizonte de eventos que adquire forma sobre o seu
fundo.
Há várias hipóteses sobre a formação desses corpos
celestes tão volumosos, mas nenhuma parece oferecer
uma explicação convincente das suas dimensões.
Sabemos que o buraco negro, tão logo se instala no
centro de uma galáxia, pode crescer desmedidamente,
engolindo lentamente tudo aquilo que o circunda. Mas
foram observados buracos negros gigantescos no centro
de galáxias muito jovens e, nesse caso, não haveria
tempo suficiente. Outros pensam que, poucos segundos
depois do Big Bang, produziram-se buracos negros
primordiais. Há hipóteses até sobre objetos
microscópicos, do tamanho de um átomo, mas capazes
de conter a massa do Everest; teriam se formado quando
as grandes flutuações de densidade do universo recém-
nascido podiam levar pequenas porções de matéria ao
colapso gravitacional. Fundindo-se entre si, teriam
constituído corpos cada vez mais maciços, assim
evitando evaporar e se desagregar. Outras teorias
preveem a agregação das imensas nebulosas de gás
primordial em quase-estrelas, objetos altamente
instáveis que colapsaram em enormes buracos negros
em vez de evoluir para estrelas comuns.
O único aspecto positivo desses monstros é que as
forças de maré no horizonte de eventos são muito
pequenas. A sua dimensão anormal os torna,
aparentemente, menos agressivos do que os seus irmãos
“menores”, os buracos negros estelares. Os
supermassivos têm uma densidade média muito baixa:
quanto mais pesados, menos densos são.
Os buracos negros de 1 bilhão de massas solares têm a
densidade média da água, e os mais maciços podem ser
rarefeitos como o ar. Isso se traduz em forças de maré
muito pequenas, quase inexistentes, no horizonte de
eventos. Tornam-se significativas apenas quando nos
aproximamos da singularidade central que, dadas as
dimensões desses monstros, pode demorar para ser
alcançada, muito tempo depois de ter atravessado o seu
horizonte. Em suma, no caso dos buracos negros
supermassivos, sob algumas condições poderíamos
ultrapassar o horizonte de eventos não só sem sermos
esmigalhados, mas, literalmente, sem nos apercebermos
de nada e ainda prosseguirmos a nossa viagem por
muito tempo.
A física nos pontos vazios de tempo

Não por acaso, é sempre o diabo que, na literatura, para


o tempo. O doutor Fausto de Goethe, na obra mais
importante da literatura romântica alemã, faz um acordo
com Mefistófeles. E Dorian Gray, o protagonista do
romance de Oscar Wilde, perseguindo o sonho da eterna
juventude, empreende uma espécie de descida aos
infernos.
O aspecto quase infernal dos ambientes que cercam os
buracos negros parece confirmar esse antigo
preconceito. É a gravidade que para o tempo, faz o
espaço-tempo se retorcer sobre si mesmo até se esvaziar
de sentido. Mas, no círculo de fogo que cerca o horizonte
de eventos, ressoa algo de ancestral: lugares secretos e
terríveis — como a Geena, repleta de chamas, onde reina
Moloch, o devorador de crianças —, ou protegidos por
terríveis guardiães como Medusa, a Górgona que, com o
olhar, transforma em pedra quem ousa se aventurar no
reino dos ínferos.
Aqueles invólucros monstruosos, que ocultam as zonas
onde o tempo para, circundam lugares certamente
assustadores, mas talvez guardem os segredos
científicos que estamos procurando há anos. O sonho de
todo cientista é conseguir decifrar as leis da física que
vigoram nas redondezas das singularidades do espaço-
tempo. Poder explorar diretamente as zonas dentro do
horizonte de eventos é um sonho que beira a loucura,
pois todos sabem que é impossível fazer essa viagem e,
mesmo que fosse possível, seria fatal para quem
quisesse se aventurar. Mas não custa nada empregar a
imaginação. E aqui iniciamos com a fantasia aquela
proeza que as leis da física não nos permitem realizar.

Stephen Hawking era um brincalhão que adorava fazer apostas


extravagantes com os amigos e colegas. Por exemplo,
apostou cem dólares com Gordon Kane, um dos teóricos
da Super-Simetria, que nunca se encontraria a partícula
de Higgs. Depois da nossa descoberta em 2012, ele
pagou de bom grado a aposta, admitindo que, na
verdade, estava muito feliz em perdê-la. No mesmo
espírito, levemente provocador, em 1974 havia apostado
com Kip Thorne que Cygnus X-1, na época a fonte de
raios X mais promissora para ser considerada um buraco
negro, não tinha nada a ver com os objetos astronômicos
aos quais dedicara grande parte da sua pesquisa. Para
entender o espírito de Hawking, é interessante ler a
declaração que ele publicou anos depois:
A aposta com Kip era uma espécie de apólice de seguro. Fiz um monte de
trabalhos sobre os buracos negros e tudo teria sido um enorme
desperdício de tempo caso se descobrisse que eles não existem. Mas, se
assim fosse, eu me consolaria com o prêmio da aposta, que me garantiria
uma assinatura de quatro anos da revista Private Eye.
Em 1990, quando os dados confirmaram que Cygnus X-
1 era um sistema binário formado por uma estrela e um
buraco negro, Hawking ficou muito feliz em pagar a
aposta a Thorne; era, aliás, uma assinatura de um ano da
Penthouse, a revista com mulheres nuas.
Nesse espírito, eu gosto de imaginar uma outra aposta
entre os dois. Kip Thorne, prêmio Nobel pela descoberta
das ondas gravitacionais, foi, junto com Hawking, um dos
mais convictos defensores de que os buracos negros
eram objetos astronômicos. Por isso podemos imaginar
os dois amigos arriscando a aposta de ser possível
explorar um deles.
Em primeiro lugar, convém escolher um supermassivo.
A viagem, de qualquer forma, será muito perigosa,
certamente fatal, mas, caso se escolhesse um buraco
negro estelar, as probabilidades de ultrapassar o
horizonte de eventos seriam nulas. Os dois se põem de
acordo e escolhem o M87*, já famoso pois a sua
fotografia ocupara as capas do mundo todo.
Imaginemos duas astronaves gêmeas, uma comandada
por Hawking, que escolheu orbitar a uma distância de
segurança ao redor do M87*. Thorne, mais corajoso,
apostou que conseguiria atravessar o horizonte de
eventos para dar uma olhada no que há lá dentro.
Recorrendo à imaginação, podemos ignorar alguns
“detalhes”. Por exemplo, como as duas astronaves
fizeram para cobrir os cinquenta e poucos milhões de
anos-luz que nos separam da Messier87? Ou ainda: como
conseguiram atravessar ilesos o ambiente infernal do
disco de acreção do M87*, cujos efeitos se fazem sentir
bem antes de se alcançar o horizonte de eventos?
Deixemos tudo isso de lado e nos concentremos no
essencial.
Para ficarem em comunicação, as duas astronaves
enviam uma à outra uma mensagem de rádio, um blip
que é emitido pela antena de Thorne a cada segundo. O
contato com o horizonte de eventos é previsto para a
meia-noite, e até as 23h59min57seg os blips continuam
a chegar, regularmente, a cada segundo. Depois algo
acontece: o blip das 23:59:58 parece se atrasar um
tiquinho, o das 23:59:59 chega após uma hora e muito
distorcido e, depois disso, mais nada. Hawking vai
embora e sabe que perdeu a aposta; Thorne atravessou
o horizonte de eventos e agora ele teria de esperar uma
eternidade para receber o blip das 00:00:00.
A bordo da astronave de Thorne, porém, ninguém se
deu conta de nada. O horizonte foi ultrapassado numa
fração de segundo e tudo parece seguir como sempre,
embora o destino já esteja traçado. As forças de maré do
M87* àquela distância da singularidade são
imperceptíveis e ninguém notou nada de estranho. O
momento histórico em que a astronave terrestre
atravessou um horizonte de eventos passou sem que se
percebesse a menor perturbação. Thorne e a sua
tripulação abrem garrafas de champanhe e comemoram
o resultado alcançado, embora transpareça nos seus
olhares um véu de preocupação. Sabem que a viagem
ainda durará muito tempo, mas o seu destino está
traçado. Quando a astronave se aproximar da
singularidade em que se concentra toda a massa, nada
poderá impedir que a gravidade a despedace com todos
os seus tripulantes. O tempo parou para os observadores
externos, mas ninguém na astronave de Thorne se
apercebeu disso. Só poderiam se dar conta do ocorrido
se tivessem a possibilidade de voltar para trás. E então
veriam que aquilo que para eles pareceu um segundo, o
tempo curtíssimo que empregaram para atravessar o
horizonte de eventos, teria significado uma duração
infinita para o resto do universo. Mas sabem muito bem
que isso não é possível.
Agora Thorne já está se dirigindo inexoravelmente para
o ponto que marca o fim do tempo. A navegação ainda
poderá se prolongar muito, mas o mergulho no buraco
negro será uma viagem apenas de ida. As forças de maré
crescerão de intensidade até despedaçar e reduzir tudo a
fragmentos tão miúdos que até os quarks parecerão
objetos monstruosamente grandes. A matéria esmagada
pela gravidade perderá qualquer consistência, irá se
tornar pura geometria, vazio sem espaço e sem tempo,
prenhe de quantidades imensas de energia.
Se Hawking tivesse a bordo um telescópio potente para
acompanhar a astronave de Thorne, iria vê-la diminuir de
velocidade e então parar, imóvel, perto da borda escura
que marca o horizonte de eventos. A débil luz emitida
pela astronave de Thorne se tornaria cada vez mais
vermelha e fraca, como se tivesse congelado, até
desaparecer de vista.
Inversamente, se Thorne pudesse olhar para trás na
direção da astronave de Hawking, iria ver, mas apenas
por uma infinitésima fração de segundo, que ela se
tornava cada vez mais azul e aumentava
desmesuradamente de velocidade. Depois, tão logo
superasse o horizonte de eventos, o que acontece no
exterior teria se fundido em um brilho ofuscante. A
fronteira recém-transposta separa definitivamente os
dois mundos. Aproximando-se do mundo sem tempo
encerrado no coração do buraco negro, Thorne poderia
repetir as palavras com que o doutor Fausto se dirige a
Mefistófeles, para selar o pacto que haviam estipulado
décadas antes: “Ao instante direi: ‘És tão belo, para!’” —
mas nem os maravilhosos versos de Goethe
conseguiriam domar uma gravidade agora
desencadeada.
parte iii

Entre existências
efêmeras e vidas eternas
6. Vida de partículas

Justo agora que estávamos nos acostumando com as


extravagâncias do tempo que habita os espaços
cósmicos mais gigantescos, temos de dar uma
destemida cambalhota para trás. E, das gigantescas
dimensões dos objetos maiores do que a mente humana
é capaz de conceber, despencaremos de súbito para as
dimensões infinitesimais dos componentes mais
elementares da matéria. O afastamento é
impressionante porque num instante saltam-se cerca de
cinquenta ordens de grandeza: uma queda vertiginosa.
Um vírus, como aquele que produziu a terrível
pandemia de covid-19, é tão pequeno que é invisível ao
olho humano. As suas dimensões estão entre sessenta e
140 nanômetros, isto é, bilionésimos de metro. Se mil
vírus se espremessem juntos, um ao lado do outro, a
pequena multidão compacta teria a espessura de um fio
de cabelo. Só é possível ver agentes patógenos tão
minúsculos com aparelhos especiais, como os
microscópios eletrônicos, com capacidade de ampliação
de dezenas de milhares de vezes. E, no entanto,
comparado a uma partícula elementar, um vírus é um
monstro gigantesco. Entre um quark e um vírus há uma
diferença descomunal de proporções, a mesma que há
entre uma bola de futebol infantil e a esfera terrestre.
Quanto à massa, as partículas elementares são
realmente leves. Algumas, como o fóton, têm até massa
de repouso nula. Mas mesmo os pesos-pesados da
categoria, como o quark top, são objetos evanescentes,
em comparação não só a estrelas e planetas, mas
também aos corpos macroscópicos mais miúdos, como
um grão de poeira.
Entrando no mundo das distâncias infinitesimais,
ingressaremos num reino dominado pela mecânica
quântica e pela relatividade especial, e isso envolverá
aquele restinho da nossa ideia convencional de tempo.
Um mundo cheio de extravagâncias

A matéria é feita de partículas que interagem


transformando-se em outras partículas. Assim podemos
resumir, numa frase só, a teoria que nos permite
entender em que consiste o perfume de uma rosa ou o
plasma comprimido que ruge no coração das estrelas.
A pesquisa dos constituintes elementares da matéria
tem uma história milenar. Estamos por volta de 600 a.C.,
quando os primeiros filósofos gregos começam a
procurar uma explicação naturalista do mundo. Hoje
usamos estranhos nomes para indicar as partículas
elementares, mas as regras do jogo não mudaram muito
desde o tempo de Anaxímenes de Mileto, que reduzia
tudo a terra, fogo, água e ar. Os cientistas do século xxi
também procuram os ingredientes fundamentais que,
combinando-se mutuamente, permitem entender a
grande variedade dos corpos materiais que nos rodeiam.
A resposta moderna à antiquíssima questão se chama
Modelo Padrão. É uma teoria nascida no final dos anos
1960, coroando um século de observações e resultados
experimentais. Desde que foi adotada, desencadeou-se a
corrida para discuti-la e tentar produzir alguma das suas
previsões. Mas, até agora, ninguém conseguiu.
Sabemos que é uma teoria incompleta, e por muitos
motivos, sendo o principal deles o fato de não
contemplar a gravidade. Pode parecer curioso, porém a
mais comum das forças que regulam o universo não está
incluída entre as interações descritas pelo Modelo
Padrão. Isso não deve surpreender muito, visto que, em
escala microscópica, os efeitos da gravidade são
desprezíveis. A força que domina o mundo dos espaços
cósmicos, quando os corpos que interagem têm massas
enormes e se encontram a grandes distâncias, se mostra
totalmente irrelevante para descrever o comportamento
dos constituintes de base da matéria. As interações entre
partículas elementares, pelo menos na escala de energia
que exploramos até hoje, são dominadas por outros
fenômenos que ultrapassam em muitas ordens de
grandeza os efeitos da atração gravitacional entre
massas.
O Modelo Padrão, porém, não fornece nenhuma
explicação para diversos outros fenômenos: não explica
a abundância de energia e de matéria escura no
universo, não nos permite entender onde foi parar a
antimatéria, não contém as partículas responsáveis pela
inflação cósmica e assim por diante. Em suma, não nos
satisfaz em muitos aspectos, mas, mesmo assim, possui
um poder preditivo impressionante: permitiu-nos calcular
com grande precisão as características mais ínfimas de
fenômenos altamente elusivos e todos eles, um após o
outro, foram sistematicamente observados; previu
minúsculos desvios em alguns parâmetros fundamentais,
que foram confirmados por experimentos
sofisticadíssimos. Resumindo, mais cedo ou mais tarde
precisaremos de uma teoria mais completa e geral, que
explicará os muitos fenômenos que ainda nos parecem
misteriosos e incluirá o Modelo Padrão como um caso
particular, válido apenas em baixa energia. Um dia,
quando fizermos experimentos numa escala de energia
em que a teoria de que tanto nos orgulhamos entrará
definitivamente em crise, encontraremos novas
partículas ou interações desconhecidas que nos
permitirão construir uma teoria mais ampla. Mas por ora
ela tem resistido a todas as tentativas de questioná-la e
constitui a melhor referência de que dispomos para
explicar o mundo.
No Modelo Padrão, tudo se reduz a uma questão de
partículas. As partículas que compõem a matéria são
organizadas em duas grandes famílias. De um lado os
seis quarks, do outro lado os seis léptons; cada família
tem três ramos, cada qual composto por dois
componentes. As duplas de quarks up e down, charm e
strange, top e bottom são, todas elas, constituídas por
partículas dotadas de carga elétrica. Entre os léptons, o
elétron, o múon e o tau são carregados, e cada um forma
um par com um correspondente neutrino que, por sua
vez, é neutro.
Os quarks e os léptons são duas famílias um tanto
estranhas entre si, que não gostam de se misturar; se
parecem com os clãs hostis dos Montecchio e dos
Capuleto no Romeu e Julieta de Shakespeare. Quem
tenta criar a paz entre eles são os mediadores, ou
portadores de forças, uma terceira família cujos
componentes interagem com os dois grupos, às vezes
somente com alguns dos seus vários membros, e
produzem movimentos e uniões.
Os mediadores são o fóton, portador da força
eletromagnética que age sobre todas as partículas
dotadas de carga elétrica; o glúon, que transmite a força
forte e interage com os quarks que são dotados de carga
forte, ou carga de cor, mas ignora os léptons que, pelo
contrário, são desprovidos dela; por fim, os bósons
vetoriais intermediários, W e Z, portadores da força fraca
que se acoplam tanto com os quarks quanto com os
léptons, porque todos têm carga fraca. Nesse quadro,
fica um pouco à parte o último a chegar: o bóson de
Higgs, que, interagindo com as outras partículas, define
as suas massas.
As partículas do Modelo Padrão são tão pequenas que
não faria sentido empregar as unidades de medida
habituais, porque seria preciso usar submúltiplos
extremos pouco manejáveis. Trata-se de objetos tão
minúsculos que não conseguimos ainda estabelecer se
são puntiformes ou se têm uma dimensão finita. Por
exemplo, se quarks e léptons tivessem uma estrutura
qualquer, ela teria de ser menor do que 10-19 metros.
Algo do gênero vale também para as massas. Se
tivéssemos de exprimir em quilogramas a massa de um
elétron, teríamos de escrever 9,1 × 10−31 quilos. Para
evitar essas dificuldades, costuma-se medir as massas
em GeV (giga-elétron-volt, 1 bilhão de elétrons-volt). É
uma unidade de medida muito prática, pela qual a
partícula mais pesada de todas, o quark top, apresenta
uma massa de 173 GeV. Todas as outras são mais leves
do que o peso-pesado da categoria; algumas, como os
neutrinos, são realmente levíssimas.
O mundo das ínfimas distâncias em que as partículas
se movem é o reino da relatividade e da mecânica
quântica. Para um elétron, mover-se a velocidades
próximas às da luz é uma brincadeira de criança. Como
ele está carregado eletricamente, é preciso pouco para
acelerá-lo: basta mantê-lo no vácuo e submetê-lo a um
forte campo elétrico que ele imediatamente dispara em
velocidades formidáveis. Não são necessários
instrumentos muito sofisticados: os aparelhos de
radiografia dos hospitais fazem os elétrons, que devem
gerar os raios X, correrem à metade da velocidade da
luz.
Em objetos tão minúsculos e leves, as leis da física que
governam o infinitamente pequeno produzem
comportamentos tão diferentes dos costumeiros para nós
que nos parecem bizarros. O estado de um sistema, o
espaço e o tempo, a massa e a energia — tudo se torna
extravagante no mundo das partículas elementares.
Massas que explodem e tempos que se dilatam
desmesuradamente

Para levar os levíssimos elétrons a velocidades


indistinguíveis de c, basta dispor de fortes campos
elétricos. É o que acontece nos aceleradores modernos
de partículas, equipamentos que nos permitem produzir
partículas ultrarrelativísticas, isto é, que viajam
praticamente a c. Por princípio, a velocidade da luz é
inalcançável, mas nada impede que nos aproximemos
cada vez mais do valor-limite. Assim, caso se consiga
superar um certo número de dificuldades técnicas não
banais, é possível levar as partículas a viajarem a 99%
de c, depois a 99,99%, a seguir a 99,9999% e assim por
diante.
Os elétrons têm carga elétrica negativa e, portanto,
uma diferença de potencial positiva os atrai
irresistivelmente. É óbvio que, enquanto adquirem
velocidade, é preciso evitar que se choquem contra
qualquer outro componente material, porque a colisão
faria com que perdessem energia e diminuiria
drasticamente a sua velocidade. Por isso, são acelerados
no interior de um tubo em que se tem o vácuo mais
rigoroso, evacuando o ar e qualquer outro resíduo de
gás.
Para evitar campos elétricos elevados demais, usam-se
máquinas circulares nas quais os elétrons passam várias
vezes na mesma região de aceleração. Outros campos
magnéticos distribuídos adequadamente no percurso
dobram as suas trajetórias, para mantê-los em órbita ao
longo da circunferência e levá-los à colisão.
Um problema a ser resolvido é o do crescimento
relativístico da massa. Quanto mais nos aproximamos da
velocidade da luz, tanto mais a aceleração sofrida pelo
elétron faz com que a sua velocidade cresça apenas
marginalmente e, por outro lado, aumenta a sua massa.
A energia cedida ao elétron pelo campo eletromagnético
que o acelera faz com que ele “engorde”
desmedidamente. É mais um dos efeitos da relatividade
especial, que muito nos surpreende, pois nunca tivemos
uma experiência direta dele. No nosso mundo, quando se
exerce uma aceleração constante, vemos aumentar
sempre a velocidade, nunca a massa. Por exemplo, se
estamos numa autoestrada e pisamos no acelerador,
podemos acompanhar no velocímetro o aumento da
velocidade. Mas tudo isso funciona porque os 130
quilômetros por hora que alcançamos com o nosso carro
são uma velocidade ridícula em relação à da luz. Quando
nos aproximamos de c, a energia introduzida no sistema
não consegue mais fazer com que a velocidade aumente,
porque c se mantém como valor-limite e, portanto, acaba
por aumentar a massa do objeto. Verifica-se mais uma
vez a equivalência entre massa e energia típica da
relatividade. Na experiência comum do cotidiano, a
massa de um corpo permanece constante enquanto
acelera, ao passo que, se nos aproximamos do limite
intransponível da velocidade da luz, é a massa do corpo
que continua a aumentar enquanto a sua velocidade
permanece praticamente constante.
Nos aceleradores modernos, os feixes de partículas
viajam praticamente a c e adquirem massas muito
superiores às das partículas em repouso. Quando
ocorrem as colisões, a energia concentrada nas suas
massas gigantescas percute o vazio e faz com que
jorrem novas partículas. Nos choques, a energia se
transforma novamente em massa e, por uma fração de
segundo, voltam a surgir formas de matéria
desaparecidas logo após o Big Bang. Desse modo, as
grandes infraestruturas de pesquisa se tornam fábricas
de partículas extintas, verdadeiras máquinas do tempo
que nos levam de volta a bilhões de anos atrás e nos
permitem reproduzir e estudar os fenômenos na origem
do nosso universo.
Atenção: conforme as partículas se aproximam da
velocidade da luz, a sua massa cresce exponencialmente
apenas para nós que as vemos correrem no grande tubo
a vácuo. Se um observador viajasse junto com elas, iria
vê-las paradas, e nesse sistema de referência em
movimento a sua massa não tem qualquer mudança. Tal
como a contração do espaço na direção do movimento e
a dilatação do tempo, a explosão da massa das
partículas relativísticas também é um fenômeno que vale
apenas para um observador externo, parado em relação
ao corpo em movimento.
Em todo caso, os elétrons que circulam no lep (Grande
Colisor de Elétrons e Pósitrons, na sigla em inglês) do
cern, no verão de 2000 pesavam 200 mil vezes mais do

que os seus irmãozinhos que orbitam tranquilos em


todos os átomos da matéria. Tudo isso, obviamente,
acarreta notáveis problemas de sincronização e controle
dos parâmetros do acelerador, que devem acompanhar
esse crescimento exponencial da massa produzida pela
fase de aceleração.
Os efeitos são impressionantes também na aceleração
dos prótons. Nesse caso, não se trata de partículas
elementares, mas de um amálgama de três quarks (dois
up e um down), aqueles da primeira família, com
diversos glúons, fundamentais para manter tudo unido
no aperto formidável da força forte. Os prótons têm uma
massa de cerca de um GeV e têm carga positiva; podem
ser acelerados de maneira análoga ao que se faz com os
elétrons, bastando inverter a polaridade do campo
elétrico. Como são objetos complicados e maciços e
pesam 2 mil vezes mais do que um elétron, para levá-los
a velocidades relativísticas é necessário gastar muita
energia. Mas o peso lhes dá uma grande vantagem.
Um dos principais limites à utilização dos elétrons nos
aceleradores mais potentes está ligado à sua leveza.
Como todas as partículas carregadas que percorrem uma
órbita circular, os elétrons tendem a perder energia
emitindo fótons. A irradiação é tão mais importante
quanto mais leves são as partículas em órbita, e ela
aumenta rapidamente com o crescimento da energia.
Para os prótons, que são muito mais pesados do que os
elétrons, as perdas de energia por irradiação são muito
reduzidas e, portanto, é mais fácil levá-los a energias
mais elevadas.
O acelerador mais potente atualmente em uso é o lhc

(Grande Colisor de Hádrons, na sigla em inglês), no qual


dois feixes de prótons circulam em direções opostas num
tubo a vácuo com 27 quilômetros de circunferência. A
energia das colisões do lhc é de treze TeV (teraelétron-
volt, equivalente a mil GeV), o que significa que os
prótons de cada feixe têm massa de 6,5 TeV, isto é,
aumentaram a sua massa em 6500 vezes. Como os
prótons são feitos de quarks e glúons, as suas colisões
são bastante complicadas, e somente uma parte da
energia disponível, alguns TeV, consegue se transformar
em partículas maciças. Para o futuro, discute-se o
desenvolvimento de novos magnetos e a construção de
um novo túnel de cem quilômetros, que permitiria
alcançar cem TeV de energia e produzir novas partículas,
se existirem, até massas de algumas dezenas de TeV.
Os aceleradores de elétrons têm uma função
complementar. Sendo partículas puntiformes, as suas
colisões são muito mais simples. São as máquinas ideais
para fazer medições de grande precisão e procurar
descobrir a nova física através da pesquisa de sutis
anomalias. A desvantagem dos aceleradores de elétrons
é que não permitem alcançar energias muito elevadas.
Os novos projetos para aceleradores circulares de
elétrons preveem trabalhar entre 250 e quinhentos GeV,
enquanto há propostas de se alcançar energias de alguns
TeV, mas apenas desenvolvendo novos aceleradores
lineares.
Em todo caso, trata-se de objetos ultrarrelativísticos,
isto é, partículas levadas a velocidades tão próximas de c
que a sua massa se torna enorme. É o caso tanto dos
elétrons do lep quanto dos prótons do lhc e, em ambas as
situações, para essas partículas o tempo desacelera de
maneira impressionante.
Tomemos o caso do lhc: depois de ser acelerados e
levados à colisão, os feixes permanecem em circulação
estacionária por muitas horas. Durante esse período,
cruzam-se uma quantidade inumerável de vezes, e os
físicos dos experimentos registram as partículas
produzidas pelas colisões mais interessantes. Depois de
muitas horas, a intensidade diminui, extraem-se do
acelerador os feixes de prótons residuais e injetam-se
novos. Em alguns casos especialmente afortunados, esse
ciclo dura um dia inteiro.
Agora, para entender melhor o que acontece,
suponhamos por um instante que, como nos desenhos
animados, os prótons tenham uma voz, possuam um
relógio e possam se comunicar com a sala central de
controle do lhc. Imaginemos a bizarra conversa que
ocorreria. “Aqui fala a sala de controle. Ei, prótons, hora
de sair do carrossel.” “Mas como, já? A gente estava se
divertindo tanto; têm certeza? Entramos faz tão pouco
tempo.” “Não, a festa acabou, vocês estão aí faz mais de
24 horas, precisam deixar os outros se divertirem
também. Sinto muito.” “Não, deve ter algo errado. Estou
olhando o meu cronômetro; faz só treze segundos que
entramos no lhc. Confiram aí o relógio, certamente está
com defeito.” “Já conferimos, tudo sob controle. É a
relatividade, meus caros.”
Para os prótons do lhc, o tempo passa no ritmo habitual
e a sua massa não muda. Se observados de um sistema
de referência externo, porém, nós os vemos correndo à
velocidade da luz e pesando 6500 vezes mais; e, acima
de tudo, no tempo que o relógio deles marca um
segundo, na sala de controle do lhc passam-se quase
duas horas.
Superaceleradores cósmicos

Os fenômenos turbulentos que envolvem grandes


estrelas ou gigantescos buracos negros também
produzem enormes quantidades de partículas
ultrarrelativísticas. São eles os campeões do esporte
radical de lançar no espaço projéteis que viajam às
velocidades mais próximas de c, cuja massa cresce
imensamente devido aos efeitos relativísticos, e para os
quais o tempo tem uma desaceleração descomunal.
O nosso planeta é inundado por uma chuva incessante
de partículas vindas de todas as direções, sobre cuja
origem alguns progressos começam a ser feitos. Foram
chamados de raios cósmicos porque nascem nas
profundezas do espaço que os rodeia. Geralmente são
prótons e núcleos de hélio que viajam a velocidades
indistinguíveis de c; muito mais raramente encontraram-
se núcleos carregados de elementos mais pesados, até o
chumbo. Raríssimos são os que se devem a elétrons,
neutrinos e fótons de altíssima energia. Quando
partículas carregadas muito energéticas penetram nas
camadas superiores da atmosfera, produzem-se choques
espetaculares com as moléculas de gás. Neles são
gerados jorros de partículas secundárias, semelhantes às
que surgem das colisões de lhc, que acabam inundando o
solo com uma chuva de partículas.
Entre os raios cósmicos encontram-se as partículas
mais energéticas que já foram observadas. As de energia
mais elevada fazem com que os prótons do lhc, mesmo
aumentados pelos efeitos relativísticos, pareçam objetos
minúsculos e inócuos. A energia dos raios cósmicos mais
extremos é 100 milhões de vezes superior à que se pode
alcançar no acelerador mais potente do planeta Terra.
Mas que mecanismos podem lançar no cosmo prótons
de energia tão elevada? Que fenômenos podem simular
o funcionamento dos autênticos superaceleradores
cósmicos, tão potentes que fazem empalidecer o orgulho
da ciência e da técnica terrestres?
A imensa maioria dos raios cósmicos provém da nossa
própria galáxia. Pensa-se que seriam produzidos pelas
explosões de tipo supernova das grandes estrelas que
esgotam o seu combustível nuclear. No cataclismo, junto
com o material das camadas externas da estrela também
são emitidos, a alta velocidade, fortíssimos campos
magnéticos, que podem acelerar as partículas
carregadas com um mecanismo chamado onda de
choque magnética. As forças eletromagnéticas podem
aprisionar as partículas carregadas e obrigá-las a
movimentos periódicos em ressonância nos quais
ganham velocidade. Observaram-se fenômenos físicos de
aceleração de choque magnético também no nosso Sol,
quando grandes trechos de campo magnético se liberam
do plasma. Nesse caso, porém, a energia dos raios
cósmicos que alcançam a Terra é modesta. Mas as coisas
mudam quando a onda de choque é produzida por uma
supernova, e as partículas podem chegar a energias
realmente notáveis, milhares de vezes superiores às do
lhc.

Mas o mecanismo da aceleração por onda de choque


não permitiria explicar os raios cósmicos mais extremos,
milhões de vezes mais energéticos que os do lhc. A sua
origem é, com toda probabilidade, extragaláctica; pensa-
se que tenham sido produzidos por núcleos galácticos
ativos, isto é, buracos negros supermassivos em fase
paroxística, quando o disco de acreção regurgita material
e se desenvolvem imensos jorros relativísticos,
filamentos de matéria emitidos pelos polos. Se o eixo dos
jorros é orientado na nossa direção, as partículas mais
energéticas ali geradas podem chegar ao nosso planeta.
O mecanismo com que essas energias podem ser
atingidas ainda não está claro, mas é certo que, quando
for compreendido, poderemos dizer que descobrimos o
segredo dos mais potentes aceleradores de partículas do
cosmo.
Os efeitos relativísticos sobre os prótons dos raios
cósmicos mais energéticos são monstruosos. A massa
deles cresceu 100 bilhões de vezes, e o tempo
empregado para percorrerem as distâncias de centenas
de anos-luz se mostra contraído por um fator idêntico:
um segundo vivido por esses prótons corresponde a 3170
anos nossos.
Esses mensageiros tão especiais, que com a sua
própria existência celebram o triunfo da relatividade,
trazem-nos notícias pouco tranquilizadoras. Chegam até
nós, nesse canto de cosmo tão tranquilo, como que para
nos advertir: “Cuidado, terrestres. Não confiem demais
na calma e na regularidade que os cercam. O universo
também pode ser um lugar hostil e muito perigoso”.
São mensageiros possessos e alucinados, como os
aedos da antiga Grécia. Não falam, mas com a sua
própria existência nos põem em contato com lugares
muito distantes, onde ocorrem fatos terríveis e
maravilhosos. Narram a morte de uma grande estrela ou
a catástrofe que se produziu quando um buraco negro
englobou mundos inteiros no seu disco de acreção. Para
isso, atravessaram as enormes distâncias que separam
as galáxias entre si, mas, movendo-se quase à
velocidade da luz, o percurso se deu num piscar de
olhos. Para nós, habitantes da Terra, passaram-se
centenas ou talvez milhares de anos — mas eles, que
competiam com a luz ao percorrer esses espaços
intermináveis, nem se deram conta.
A pequena casa de tijolos brancos e vermelhos

Delft, uma pequena cidade holandesa a poucos


quilômetros de Haia e Roterdã, poderia ser confundida
com um dos seus subúrbios se não tivesse uma forte
identidade e uma história gloriosa por trás de si. Hoje
tem cerca de 100 mil habitantes e vive como que
imprensada entre as duas cidades maiores, mas no
século xvii, o século de ouro de Flandres, era um
importante centro econômico e político. No pequeno
burgo murado e cercado por um fosso estabeleceram-se
excelentes artesãos: tecelões de tapeçarias preciosas e
principalmente ceramistas, que haviam importado da
Itália as técnicas mais refinadas. Em Delft, produziam-se
para todas as cortes da Europa as faianças brancas e
azuis, bem como azulejos e objetos de cerâmica que
tentavam competir com as porcelanas Ming, importadas
da China pela Companhia das Índias Orientais. E, acima
de tudo, era a cidade da família dos Orange-Nassau.
Desde que Guilherme de Orange lá se estabelecera, o
pequeno centro ganhara a alcunha de “cidade dos
príncipes”.
Ainda hoje, visitando-a, é possível deparar-se com
monumentos que lembram os faustos daquele glorioso
passado: a grande praça do mercado, o edifício da
prefeitura e a Oude Kerk, a igreja mais antiga da cidade,
cujo campanário é inclinado como a Torre de Pisa. No seu
interior, há no piso uma pequena lápide cinzenta,
indicando o local onde está sepultado Johannes Vermeer,
um dos maiores pintores de todos os tempos.
Andando a pé pela cidade velha, perdendo-nos entre as
vielas e ruazinhas, podemos retraçar os seus passos.
Encontramos o edifício onde Vermeer nasceu em 1632,
que hoje hospeda um restaurante, a casa de tijolos
brancos e vermelhos onde viveu com a esposa por toda a
vida e a sede da corporação de São Lucas, guilda dos
pintores em que era preciso se inscrever para exercer o
ofício, e à qual Vermeer foi admitido aos 21 anos de
idade.
Toda a vida do pintor se desenrolou entre os muros de
Delft e foi um combate incessante com os credores. Um
verdadeiro pesadelo, desde a morte, em 1652, do pai,
que deixou ao filho uma enorme dívida a pagar. Tudo leva
a pensar que Vermeer era sinceramente apaixonado pela
esposa, Catharina Bolnes, uma católica de traços
delicados com quem se casou no ano seguinte à morte
do pai e a quem pintará em muitos retratos de interiores.
Tiveram nada menos que quinze filhos, outras tantas
bocas para alimentar e corpos para vestir. Os pequenos
quadros de tema íntimo que Vermeer pintava tinham
alguns admiradores entre os comerciantes mais
abastados de Delft, mas os pequenos proventos
auferidos não eram suficientes. Ele nunca teve nenhuma
grande encomenda das ricas corporações, nenhuma
verdadeira notoriedade fora dos limites da cidade, nada
comparável às vidas dos artistas mais famosos da época,
como Frans Hals ou Rembrandt.
A vida de Vermeer é curta; morre em 1675, aos 43
anos de idade, sempre atolado em dívidas, deixando
cerca de quarenta telas pequenas que, na época,
ninguém considerava de qualquer interesse. Hoje, os
seus quadros de interiores onde assomam os famosos
azulejos brancos e azuis de Delft, as cenas da vida
cotidiana entre as paredes daquela casa de tijolos
brancos e vermelhos ou os gestos delicados de uma
moça pesando as pérolas têm um valor inestimável. Os
bilionários mais ricos do planeta e os museus mais
importantes estariam dispostos a pagar valores
estratosféricos para obter uma dessas obras-primas.
Assim, o futuro modificou o passado, transformando
alguém cujos coetâneos consideravam um modesto
pintor de província num dos maiores artistas da história.
Tudo começou em 1866, quando Théophile Thoré-
Bürger, um crítico francês, propôs elevar o anônimo
pintor de Delft ao mesmo nível dos mestres do século de
ouro holandês. Desde então foi como uma enchente, que
se alastrou entre artistas e intelectuais até envolver o
grande público. Vermeer se tornou um ícone estilístico,
foi tema de inúmeros livros e fizeram-se muitos filmes
sobre ele, fazendo-o entrar por força no imaginário
coletivo.
O que ocorreu com o pintor de Delft é um dos muitos
casos em que percebemos a grandeza de um artista ou
de um filósofo depois de muitos séculos, às vezes
milênios. Fitamos o passado com outros olhos e,
reelaborando-o, modificamos os seus traços,
reescrevemos a história. Como dizia Jorge Luis Borges:
“Todo escritor cria seus precursores. A sua obra muda a
nossa concepção do passado, assim como muda o
futuro”.
Mas esse fenômeno, que ocorre habitualmente no
campo do pensamento, poderia ocorrer também no
mundo material? Pode-se imaginar uma ação do presente
que modifique o passado?
A coisa não é de forma alguma estranha, pois no
comportamento peculiar da matéria em escala
microscópica, onde reinam a relatividade e a mecânica
quântica, o passar do tempo adquire, como vimos,
características realmente bizarras.
Para esse fim, conduziram-se numerosos experimentos
utilizando sistemas muito simples, regidos pelas leis da
mecânica quântica. Quando se manejam fótons ou
átomos individuais, ou dispositivos quânticos em geral, o
estado do sistema permanece intrinsecamente indefinido
enquanto a medição não intervier. Um fóton pode se
comportar como onda ou partícula, um átomo pode ter o
spin virado para cima ou para baixo, um dispositivo
quântico pode ou não conduzir corrente, isto é,
encontrar-se no estado 1 ou 0. Antes de efetuar a
medição, não sabemos qual é o estado do sistema;
ignorando o que acontece, supomos que o sistema
atravessa todos os estados, isto é, vive uma
sobreposição de estados que colapsa em um específico
apenas no momento em que é perturbado pela operação
de medição.
Atenção: essa incerteza não é um defeito da teoria,
nem decorre de um insuficiente conhecimento nosso das
condições iniciais. O estado da partícula ou do sistema se
mostra indefinido até o momento em que é feita a
medição, que força a partícula a se congelar numa
determinada condição.
Recentemente foram desenvolvidos métodos de
medição “fracos”, isto é, que não fazem o sistema
original colapsar de maneira irreversível. São
perturbações leves e delicadas que não o alteram de
modo significativo. Com as medições fracas, em geral, as
informações obtidas são de pouca utilidade, resultados
puramente casuais, quando não totalmente óbvios: esse
sistema, que não sabemos se está num estado 1 ou 0,
tem a probabilidade de 50% de estar em cada um desses
estados. Em suma, após uma série de medições fracas
sabemos tanto quanto antes.
No entanto, um grupo de engenhosos pesquisadores
capitaneados por Kater Murch, professor na Washington
University de Saint Louis, no Missouri, conduziu um
experimento com medições fracas que forneceu
resultados surpreendentes. Usaram um simples circuito
supercondutor, que se comporta como um átomo
artificial quando é resfriado a temperaturas próximas do
zero absoluto. Especificamente, o dispositivo tem dois
níveis energéticos, correspondentes a 1 e 0, entre os
quais há um número infinito de combinações, isto é,
sobreposições de estados quânticos.
Para realizar a medição fraca, faz-se com que o
dispositivo interaja com uma quantidade limitada de
fótons de baixa energia, que não são capazes de produzir
a transição entre os dois níveis e, portanto, não obrigam
o sistema a colapsar num estado. O sistema não é
perturbado, mas mesmo a informação transportada pelos
fótons sobre o seu estado é marginal. Analisando-a, a
única coisa que se pode dizer é que o sistema tem 50%
de probabilidade de se encontrar num dos dois estados.
Depois se realiza a medição “forte”, ou seja, faz-se com
que o sistema interaja com fótons que têm a energia
certa para produzir a transição entre os dois estados
quânticos. O sistema aniquila a sobreposição e se
bloqueia num estado bem definido, mas os
experimentadores mantêm essa medição oculta,
tornando o resultado inacessível. Depois de realizar a
medição forte, fazem uma outra série de medições fracas
e finalmente analisam o conjunto das medições fracas
obtidas antes e depois da medição forte. O resultado é
estonteante: agora obtém-se das medições fracas uma
probabilidade de 90% de que o sistema esteja num
estado específico entre os dois possíveis e, abrindo a
caixa que escondia o resultado da medição forte,
descobre-se que a previsão está correta. Atenção: as
coisas só funcionam se também forem levadas em
consideração as medições fracas realizadas antes da
medição forte, aquelas que, sozinhas, não tinham dado
nenhum resultado. Tudo se comporta como se o que
obtivemos hoje, o conjunto das medições fracas
realizadas depois da medição forte, mudasse aquilo que
fizemos ontem, as medições fracas que havíamos
realizado anteriormente.
Não há dúvida de que o resultado é intrigante, pois
realmente pareceria indicar a possibilidade, para os
sistemas quânticos, de um evento futuro que muda
materialmente o passado ou, pelo menos, de alguma
forma de informação que pode recuar no tempo,
modificando as medições fracas efetuadas anteriormente
com base no resultado obtido com a medição forte.
Apresentado pelos meios de comunicação de massa, o
experimento logo se tornou a prova, para o grande
público, de que o tempo pode recuar, ou de que as
viagens no tempo são possíveis. Como sempre, a
imaginação corre muito mais depressa do que a nossa
compreensão dos fenômenos sutis que se aninham no
mundo do infinitamente pequeno.
Eu sugeriria termos, neste caso, como em outros,
extrema cautela. A mecânica quântica contém infinitas
sutilezas que ainda não compreendemos. Nada impede
que possa haver uma explicação muito mais simples e
menos fantasiosa. O fato de que o método, para
funcionar, demanda a realização de medições fracas
também depois da medição forte deveria acionar em nós
algum sinal de alerta. Os eventos transcorridos podem
ser influenciados por eventos futuros? Pareceria que sim,
desde que, porém, se conheça o resultado que eles
produziriam. Antes de nos lançarmos em elucubrações
fantasiosas, devemos ter clareza de que a mecânica
quântica funciona muito bem e a usamos todos os dias,
mas ainda não entendemos exatamente o porquê. Assim,
por ora, a ideia de que o futuro pode alterar o passado
dos sistemas materiais microscópicos é somente uma
sugestão. Pode se revelar um tremendo engano ou abrir
caminho para novas formas de compreensão da
natureza.
7. O tempo do infinitamente pequeno

O monte Olimpo, na Grécia, é uma montanha bastante


anódina. É a mais alta do país, mas, não fosse o mito que
a converteu na morada dos deuses, poderíamos passar
ao seu lado sem notá-la. Mitikas, o seu topo, beira os 3
mil metros de altura, frequentemente envolto em
nuvens. Foi isso o que a tornou especial aos olhos de
comunidades que colocavam os seus numes protetores
no alto das montanhas: as Musas no Hélicon; a morada
de Pã nas encostas do Mênalo, na Arcádia; Apolo no
Parnaso. Alguns especulam que, na época pré-homérica,
ocorriam em torno do topo fenômenos de aurora boreal;
a fantasmagoria de luzes móveis e coloridas levou a que
se imaginasse o tilintar das armas da batalha entre os
Gigantes. Em suma, os antigos acreditavam que lá se
encontravam a morada dos deuses e o trono de Zeus,
senhor do raio. Uma dúzia de seres sobrenaturais,
destinados à eternidade pela ambrosia, o alimento que
concede imortalidade. Divindades que acompanhavam
do alto os acontecimentos dos humanos; raramente com
“olímpica” indiferença, na maioria das vezes com
ardorosa participação, amiúde misturando-se
pessoalmente ao que ocorria com os mortais, para
compartilhar os seus aspectos mais nobres, mas também
os mais mesquinhos.
A combinação das partículas elementares do Modelo
Padrão pode produzir centenas de diversos estados
materiais, mas a grande maioria dura apenas um
brevíssimo lapso de tempo. Toda a matéria estável que
povoa o universo é feita de elétrons, prótons, nêutrons,
fótons e neutrinos: um pequeno grupo de componentes,
que não decaem em outras partículas e têm uma
descomunal duração de vida, a ponto de serem
considerados praticamente eternos. Um punhado de
eleitos que podem observar a evolução e as vicissitudes
de todas as outras formas materiais, ignorando o passar
do tempo e sem perder o aplomb de quem já viu de tudo.
O curioso é que, caso se considerem as respectivas
antipartículas — três neutrinos e três antineutrinos,
elétron e pósitron, próton e antipróton, nêutron e
antinêutron — e mais o fóton, a família conta com treze
componentes, um número muito próximo às doze
divindades do Olimpo. E, como convém nesses casos, a
presença dos fótons garante que essa família possa
dispor de raios, as armas que protegeram por longo
tempo o reino de Zeus.
Um punhado de eleitos

Repitamos: a imensa maioria das partículas elementares


consome a sua existência numa fração quase
imperceptível de segundo. Até as moscas de fruta, os
insetos mais amados pelos geneticistas — pois sua
expectativa de vida não ultrapassa duas semanas e num
ano é possível estudar dezenas de gerações —, têm uma
existência de duração infinita comparada à das partículas
elementares mais instáveis. A vida de alguns desses
componentes fundamentais da matéria pode se consumir
em milésimos de bilionésimos de segundo; para outros,
ela é tão breve que nem sequer dispomos de termos
apropriados para descrevê-la, visto que seria bastante
ridículo falar em decimilionésimos de bilionésimos de
bilionésimos de segundo. Nesses casos, é preciso
recorrer à matemática, que nos permite escrever 10−25
segundos, embora a nossa imaginação tenha dificuldade
em entender o que intervalos de tempo tão minúsculos
realmente significam.
As exceções mais importantes a existências tão
efêmeras são as dos elétrons e prótons. Em agudo
contraste com durações tão evanescentes, eles têm vida
praticamente eterna. Os elétrons são os léptons mais
leves e são carregados. Essas duas características os
protegem de decair. Simplesmente não existem outras
partículas em que eles possam se desintegrar sem violar
algum princípio de conservação. Todas as partículas
carregadas são muito mais pesadas, e o decaimento é
vetado pela conservação da energia; entre as neutras, há
muitas levíssimas, por exemplo os neutrinos, mas
também esse caminho está bloqueado, porque violaria o
princípio de conservação da carga. Em suma, o elétron é
condenado a viver eternamente, a jamais morrer. E, de
fato, os experimentos mais complexos e sofisticados, que
tentaram medir algum raríssimo decaimento do elétron,
tiveram de desistir sem ver qualquer decaimento, e
desse resultado obtiveram-se limites sobre a sua vida
média, que é superior a 1024 anos. Para um termo de
comparação, do Big Bang até hoje transcorreram 1,4 ×
1010 anos. Ou seja, os elétrons que circulam nos fios
elétricos que temos em casa, ou os que ocupam os
orbitais atômicos das pontas dos nossos dedos,
nasceram nos primeiros instantes de vida do universo.
São velhíssimos, mas ainda trabalham cumprindo as suas
funções, realmente indispensáveis, como se fossem
jovenzinhos cheios de energia.
Ainda mais surpreendente é a existência eterna dos
prótons. Nesse caso, não se trata de partículas
elementares; já vimos que um próton é feito dos quarks
mais leves, dois up e um down, que trocam entre si a
força forte trazida pelos glúons. Os três quarks têm uma
massa total de ~0,01 GeV e se mantêm juntos devido a
uma energia de ligação de ~1 GeV, isto é, cem vezes
superior. É um aperto formidável que esmaga tudo num
minúsculo volume, formando uma estrutura
extremamente compacta e robusta.
O próton é um sistema tão bem estruturado que são
poucos os ambientes naturais onde ele não fica à
vontade. Nem as altíssimas pressões e temperaturas que
se registram no coração das estrelas conseguem afetar a
sua imperturbabilidade. No máximo, os prótons são
obrigados a se fundir mutuamente para formar núcleos
mais pesados, porém nem mesmo essas energias
monstruosas são suficientes para desintegrá-los. O
obstáculo é a enorme muralha de energia que mantém
os seus constituintes unidos e representa uma barreira
quase intransponível. Para produzir a fragmentação de
prótons, é preciso recorrer aos raios cósmicos de alta
energia ou aos aceleradores de partículas modernos, ou
então procurar nos jorros relativísticos de matéria
emitidos pelos buracos negros supermassivos ou em
outras catástrofes cósmicas de potência equivalente.
Quanto ao resto, os prótons participam, indiferentes,
de todos os principais estados da matéria, sem jamais se
desintegrar em partículas mais leves. Quando os
cientistas tentaram identificar algum raríssimo
decaimento seu, tiveram de se render à evidência: nem
nos equipamentos mais mastodônticos, mantidos sob
observação por anos, foi possível observar uma única
desintegração. Até onde sabemos, o próton é um estado
da matéria praticamente eterno, uma partícula estável
cuja vida média ultrapassa 1033 anos. Mesmo que o
nosso universo tivesse vivido uma vida interminável,
bilhões de vezes mais longa do que a lentíssima história
que levou à formação de estrelas, galáxias e sistemas
solares, tudo faz pensar que os prótons teriam passado
por ela sem ser minimamente afetados.
Ainda mais curiosa é a história do nêutron, uma
espécie de primo do próton, ao qual se assemelha muito
na composição. Ele também é feito de quarks leves, mas
nesse caso são dois quarks down e um up, todos unidos
pela força forte trazida pelos glúons. Disso deriva uma
partícula desprovida de carga elétrica e com uma massa
semelhante, levemente superior à do próton. Como ele é
mais pesado do que o primo carregado, o nêutron
poderia decair num próton sem violar a conservação da
energia. E, de fato, é o que acontece quando está livre,
isto é, quando não está esmagado junto com os prótons
para formar um núcleo atômico. Nesse caso, o nêutron
não segue um longo caminho: decai rapidamente num
próton, num elétron e num antineutrino, com uma vida
média de cerca de quinze minutos. Uma coisa
impressionante é que isso não ocorre quando ele está
dentro de um núcleo atômico. Obrigado a interagir com
outros nêutrons e prótons do núcleo, está demasiado
ocupado para pensar em decair, e a sua vida média se
mostra superior a 1031 anos.
Os neutrinos e os fótons também são constituintes
estáveis. Podem ser absorvidos e interagir com outras
formas de matéria, mas, se deixados sozinhos, nunca
decaem em outras partículas.
Uma enorme nuvem fina dessas partículas tímidas e
leves ocupa o universo inteiro. Elas vagueiam pelas
grandes distâncias cósmicas, imperturbáveis, desde
quando, bilhões de anos atrás, se separaram do abraço
da matéria. Os neutrinos conseguiram se liberar quase
imediatamente, apenas um segundo depois do Big Bang,
mas para os fótons foi tudo mais complicado. Tiveram de
esperar pacientemente durante 380 mil anos, até que a
expansão do espaço-tempo resfriasse suficientemente
tudo. Nesse ponto, de súbito conseguiram escapar da
matéria a que estavam mesclados até um instante antes,
e a partir de então ficaram livres. Continuaram a voar por
toda parte, atenuando-se conforme o universo
prosseguia a sua expansão, e agora nos inundam de
radiação cósmica primordial, proveniente de todas as
direções.
As partículas estáveis constituem a base de todas as
formas permanentes de matéria que conhecemos. Elas
nos permitem explicar o bater de asas de uma borboleta
ou a dinâmica de uma estrela de nêutrons, onde a
matéria é tão densa que a quantidade contida numa
colherinha de café pesaria 300 milhões de toneladas.
Os séculos passam, os milênios se sucedem, mas os
mecanismos perfeitos que regulam a dinâmica dessas
minúsculas partículas agem impassíveis. Nenhum sinal
de desgaste, nenhuma consunção; o tempo, nesse
mundo incorruptível, passa sem deixar a menor marca
atrás de si. Tudo induz a pensar que para eles o tempo
não existe.
Excluindo os prótons e os nêutrons, não sabemos se as
outras partículas têm alguma constituição interna; se
tiverem, há de ser algo muito bem organizado, que age
por tempo indefinido, sem dissipação nem desperdício.
É graças a elas que estamos aqui. Um mundo material
que não fosse estável e persistente não poderia dar vida
a organismos complexos como os biológicos, cujo
desenvolvimento exige bilhões de anos. Durarão
indefinidamente, embora tenham uma data de
nascimento muito precisa, que podemos reconstituir em
cada detalhe. Não sabemos se para elas haverá um fim.
Se houver, com toda probabilidade não dependerá de
nenhuma fraqueza interna, mas de algo totalmente
inesperado que romperá o mecanismo perfeito que as
mantém, desde tempos imemoriais, e que parece poder
durar infinitamente.
No reino evanescente do efêmero

Acabamos de celebrar a glória dos componentes estáveis


da matéria com uma sinfonia que se abriu num tom
maior, tranquilizador e majestoso, quando de repente um
trítono, totalmente inesperado, nos mergulha na
ansiedade.
O mosteiro de Fonte Avellana foi construído na encosta
da montanha, entre os bosques do monte Catria, nos
Apeninos da região das Marcas. Encontra-se a cerca de
cinquenta quilômetros da maravilhosa cidade
renascentista de Urbino, e as suas origens se situam no
final do século x. Foi por volta de 980, de fato, que alguns
eremitas escolheram viver ali, isolados do mundo. É um
dos mosteiros mais antigos da Europa, centro de difusão
dos frades camaldulenses, uma ordem beneditina cujo
nome provém do eremitério de Camaldoli, nas
proximidades de Arezzo.
O mosteiro é um edifício complexo, com uma estrutura
labiríntica, fruto de sucessivos acréscimos e diversas
transformações: ainda se pode ver a antiga mesa de
trabalho, bem iluminada, onde os copistas transcreviam
os livros mais antigos. Os manuscritos mais preciosos são
guardados numa maravilhosa biblioteca, em cuja entrada
se destaca uma frase em grego, síntese da maravilhosa
importância da cultura: Psychés iatreíon, “local que cura
a alma”.
Os frades que o administram permitem que os
viajantes durmam nas antigas celas, se assim quiserem.
Elas foram modernizadas, mas ainda conservam a
memória dos monges mais famosos que lá estiveram,
cujos nomes se destacam nas portinholas de entrada.
Quis o acaso que me designassem a cela do monge
Guido, ou Guido de Arezzo, e assim tive a experiência de
dormir na cela daquele que foi o primeiro a codificar a
linguagem musical moderna.
O frade beneditino foi prior do mosteiro de Fonte
Avellana entre 1035 e 1040 e, se pedirmos autorização, é
possível ver, sem tocar, alguns dos seus manuscritos
conservados na biblioteca. O monge Guido foi o
idealizador da notação musical moderna, ou seja, as
notas que ainda hoje, mil anos depois, são indicadas com
as sílabas iniciais dos versos do hino a são João Batista.
Guido de Arezzo foi um dos primeiros a apontar que o
trítono, duas notas com distância de três tons, criava
uma desarmonia insuportável para o ouvido humano. A
passagem musical gelava o sangue nas veias dos
ouvintes e, desde então, julgava-se que o diabo ali
metera a sua colher. Não por acaso o diabolus in musica
foi usado nos riffs mais famosos do Black Sabbath, grupo
de heavy metal dos anos 1970 e na trilha sonora de
muitos filmes de horror, bem como nas sirenes da polícia
e dos bombeiros.
O trítono cria alarme, assusta, porque prenuncia algo
terrível. E assim cabe-nos também mudar rapidamente
de tom, precipitando-nos do mundo tranquilizador e
glorioso da matéria estável para o mundo inquieto e
angustiante das formas mais efêmeras. A passagem é
brusca. A grande sinfonia compacta e ordenada da qual
participam todos os naipes da orquestra interrompe-se
de chofre e cede lugar a uma atmosfera rarefeita, que
nos desperta inquietação, envolvendo-nos numa
sequência aleatória de trinados e murmúrios e um
distante ribombo de percussão.
O acorde diabólico nos faz mergulhar no círculo infernal
das partículas instáveis. Formas de matéria de cuja
existência, até pouco tempo atrás, não tínhamos o menor
indício, que aparecem por uma fração de segundo e
imediatamente mudam de forma. Um mundo de objetos
efêmeros que vivem uma existência quase insignificante,
que se assemelha àquele mundo dos espectros que
lançam Hamlet no mais sombrio desespero.
As outras partículas elementares e todas as formas de
matéria que se podem construir com elas são altamente
instáveis. Desvanecem logo depois de produzidas,
desintegrando-se num minúsculo fogo de artifício.
Formas exóticas de matéria podem nascer de colisões de
raios cósmicos com a matéria ordinária, ou são
produzidas nas máquinas aceleradoras, mas têm vida
brevíssima, porque se transformam imediatamente nas
partículas estáveis.
O processo de desintegração é guiado por mecanismos
aleatórios. Partículas mais maciças decaem em partículas
mais leves, desde que respeitados os princípios de
conservação da energia, da carga e assim por diante. E
tudo prossegue até que, no fim da cadeia, partículas
estáveis são produzidas e o processo se interrompe. A
transição é espontânea e intervém de modo incontrolável
com probabilidade uniforme no tempo. Por exemplo, se
num dado intervalo de tempo um terço das partículas
decai, isto é, trinta em noventa decaem, no intervalo
seguinte morrerão vinte das sessenta sobreviventes, e
assim por diante.
Esse mecanismo totalmente aleatório faz com que os
processos de vida e morte das partículas sejam muito
diferentes dos fenômenos referentes aos organismos
vivos. Para quem pertence a uma população com uma
expectativa de vida média de oitenta anos, a fração de
indivíduos que vai morrer na infância ou muito jovem é
pequena; a fração cresce com o aumento da idade,
atinge o máximo quando chega em torno da expectativa
de vida média e depois cai rapidamente. Muitos
chegarão a uma idade avançada, alguns se tornarão
centenários, mas ninguém poderá esperar viver alguns
séculos. Para as partículas elementares é tudo diferente,
porque a probabilidade de decair é constante no tempo;
haverá muitas que se desintegrarão imediatamente, mas
algumas, as mais afortunadas, poderão viver o quíntuplo
ou o décuplo da vida média.
A vida média das partículas elementares instáveis
depende das forças que as fazem se desintegrar: quanto
maior é a intensidade da força que determina o
decaimento, tanto mais breve é a vida média. As mais
afortunadas, isto é, as partículas que vivem mais tempo,
por assim dizer, são as que se desintegram por causa de
reações produzidas pela força fraca. Nesse caso,
sobrevivem por intervalos de tempo da ordem de
~10−6‒10−13 segundos. Se o que produz o decaimento
é a força eletromagnética, a vida média cai para
~10−16‒10−20 segundos, enquanto as partículas
ligadas a interações fortes são brevíssimas, em torno de
10−23 segundos.
O que regula esses fenômenos? Há alguma espécie de
relógio interno? Não sabemos. Podemos apenas dizer que
decaimentos são processos aleatórios, dominados pelas
flutuações de energia ligadas ao comportamento
quântico das partículas. Na verdade, esses estados da
matéria, tão efêmeros que pudemos ignorá-los até um
século atrás, se demonstraram importantíssimos para
entender as leis que regem a matéria. No mínimo porque
eram eles que povoavam o universo criança nas
condições extremas imediatamente posteriores ao Big
Bang. A possibilidade de estudá-los nos nossos
laboratórios nos permitiu entender o que aconteceu nos
primeiros instantes de vida do universo e quais as
transformações que ele sofreu antes de se organizar nas
formas materiais estáveis que o caracterizam hoje. Mas,
acima de tudo, esse mundo de estados instáveis e
mutáveis nos permitiu compreender as profundas
simetrias que regulam os componentes elementares da
matéria. Sem a ajuda dos “espectros”, os cientistas,
assim como Hamlet, jamais teriam entendido o que
realmente aconteceu.
A vida temerária dos múons

Os múons são partículas carregadas como os elétrons e,


portanto, são afetados pela ação de campos elétricos e
magnéticos. Mas, como pesam cerca de duzentas vezes
mais do que os elétrons, sofrem acelerações bem
menores e, portanto, é raro que irradiem fótons. Por isso,
são muito mais penetrantes do que os elétrons, perdendo
apenas para os neutrinos, que, sendo neutros, interagem
apenas fracamente com a matéria. Os múons podem
atravessar imperturbáveis quilômetros de rocha
compacta, e é sempre muito difícil pará-los.
Um limite ao seu poder de penetração se deve ao fato
de serem instáveis e decaírem em elétrons e neutrinos. O
que os leva à desintegração é a interação fraca, e por
isso têm uma vida média de 2,2 microssegundos. Pouco
mais de dois milionésimos de segundo pode parecer um
tempo infinitesimal, mas, em comparação ao tempo
característico de outras partículas instáveis, pode-se
dizer que os múons têm uma expectativa de vida
invejável. Quando então se movem a velocidades
próximas a c, a vida deles pode ser bastante temerária e
se tornar realmente interessante. Como pesam cerca de
0,1 GeV, é bastante fácil produzir múons relativísticos ou
ultrarrelativísticos e, nesse caso, a vida média deles pode
se ampliar consideravelmente.
O exemplo mais comum são os múons dos raios
cósmicos, partículas que nos atravessam sem nos causar
muitos danos, como uma chuva fina e invisível que
provém de todas as direções. São produzidas pelos
prótons de alta energia que, depois de ter atravessado as
profundezas dos espaços cósmicos, interagem com os
átomos das camadas superiores da atmosfera, entre
quinze e vinte quilômetros de altitude. Os múons são
produtos secundários dessas colisões, mas, se não
sofressem fortes efeitos relativísticos, não haveria
nenhuma possibilidade de alcançarem a superfície
terrestre. Mesmo viajando a c, a velocidade máxima, não
poderiam percorrer mais de setecentos metros. E, no
entanto, encontramos um fluxo constante de múons
também no nível do mar ou nas cavernas subterrâneas
mais profundas. É uma confirmação adicional da
relatividade especial. Pouco menos da metade dos
múons produzidos na alta atmosfera viaja a mais de 99,9
% da velocidade da luz; vivem, portanto, 25 vezes mais
do que a sua vida média e podem atravessar sem
problemas mais de dezesseis quilômetros de atmosfera.
Habitualmente, no seu sistema de referência o tempo
não muda, decaem regularmente com vida média de 2,2
microssegundos, mas para nós, que os observamos do
exterior, o tempo de existência deles se dilata. Por isso
uma fração de múons consegue nos alcançar mesmo que
estejamos tomando sol na praia ou trabalhando na
caverna do experimento cms (Solenoide Compacto de
Múon, na sigla em inglês), a cem metros de
profundidade, perto de Genebra.
Imitando o major Kong, que cavalga uma bomba
atômica no filme Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick,
podemos nos imaginar voando montados num múon;
mas precisamos estar preparados para não nos espantar
com os estranhos fenômenos que ocorreriam nesse caso.
Os múons que emergem das colisões produzidas pelos
aceleradores de partículas modernos podem alcançar
energias de milhares de GeV. Os efeitos da dilatação
relativística sobre as suas vidas médias são muito
grandes. A vida média dos múons de 1 TeV produzidos
pelo lhc é de cerca de dois centésimos de segundo, o que
significa que aqueles emitidos na direção certa podem
atravessar a Terra de um lado ao outro e ressurgir
imperturbáveis no Pacífico, nos arredores da Nova
Zelândia. Os campeões de energia entre os múons são os
produzidos pelos raios cósmicos mais violentos, que
podem alcançar valores até cem vezes superiores aos do
lhce chegar a viver alguns segundos.
Esse poder de penetração dos múons cósmicos teve
também aplicações totalmente inesperadas. Alguns anos
atrás, os jornais publicaram a notícia da descoberta de
uma câmara secreta no interior da pirâmide de Quéops,
em Gizé, no Egito. O anúncio despertou admiração
sobretudo pela técnica com que a grande cavidade foi
identificada. Não foram arqueólogos aventureiros tipo
Indiana Jones que descobriram o “Grande Vazio”, como
foi apelidada a nova câmara; não foi preciso descobrir
acessos escondidos ou atravessar túneis perigosos: a
descoberta foi feita por uma equipe de arqueólogos-
cientistas que usaram a muografia, isto é, exploraram o
fluxo de múons que atravessa a pirâmide para fazer uma
radiografia da antiga construção. Os múons, de fato,
podem ser usados tal como os raios X que atravessam o
nosso corpo quando fazemos uma tomografia num
hospital. Se o meio atravessado não é homogêneo, onde
há menor densidade devido à presença de uma
cavidade, há menos interações de múons, e torna-se
possível construir uma imagem gravando as variações no
fluxo de partículas. A técnica utilizada para investigar o
interior das pirâmides foi aplicada também em outros
estudos, por exemplo para realizar imagens das câmaras
magmáticas dos grandes vulcões.
Essa possibilidade de dilatar a vida média dos múons
deu início a um projeto recente, que prevê construir um
acelerador para os múons. As vantagens de uma
máquina desse tipo seriam enormes. Os múons
permitiriam colisões muito limpas, porque os choques
ocorreriam entre objetos puntiformes, exatamente como
os elétrons, mas poderíamos alcançar altíssimas
energias, porque os múons podem ser acelerados até
algumas dezenas de TeV sem irradiar de modo
significativo, exatamente como acontece com os prótons.
Uma vantagem não negligenciável seria a possibilidade
de usar anéis de proporções muito mais reduzidas se
comparadas a gigantes como o fcc (Futuro Colisor
Circular, na sigla em inglês). Um acelerador para múons
poderia ser instalado num túnel de dimensões muito
menores, com notável economia nos custos dos
magnetos e das infraestruturas.
Para fazer com que os pacotes de múons vivam por
tempo suficiente a fim de podermos injetá-los num
acelerador, fazê-los circular e levá-los à colisão, bastaria
prever um estágio de pré-aceleração de algumas
dezenas de GeV, valor suficiente para dilatar a sua vida
média algumas centenas de vezes.
O principal obstáculo a ser vencido para realizarmos
essa espécie de máquina dos sonhos é conseguir
produzir múons em grande quantidade com
características adequadas para serem injetados e
acelerados num colisor. Há pelo menos dois estudos que
estão procurando encontrar as soluções técnicas
corretas. Se tiverem sucesso, irá se abrir um novo
caminho no campo das máquinas aceleradoras, e os
aceleradores de múons poderão se pôr ao lado das duas
linhas de pesquisa tradicionais baseadas em máquinas a
elétrons ou a prótons.
Beleza, encanto e timidez dos quarks

Os dois quarks pesados b e c receberam nomes muito


sugestivos: beauty* e charm, beleza e charme, fascínio.
Eles também são instáveis e decaem por interação fraca
como o múon, mas têm vida média bem mais breve.
Situam-se entre os 10−12 e os 10−13 segundos. São
intervalos de tempo tão minúsculos que representam um
desafio até para os relógios mais sofisticados. Também
nesse caso a dilatação relativística do tempo vem em
nosso socorro.
Os dois quarks são bastante maciços: o charm pesa
cerca de 1,3 GeV e o beauty, mais de quatro GeV;
sozinho, cada um deles pesa mais do que um próton.
Quando se combinam com outros quarks, formam
estados da matéria muito mais pesados e instáveis que
os usuais. Como têm massas tão elevadas, não é fácil
fazer com que se tornem relativísticos, o que é rápido de
acontecer quando se lida com elétrons e múons. O
beauty e o charm precisam ser levados a massas de
algumas dezenas de GeV; com os aceleradores de
partículas modernos, isso é bastante fácil.
Para medir tempos tão pequenos como as vidas
médias de b e c, passa-se pelo espaço, isto é, o
procedimento consiste em criar equipamentos para
medir as minúsculas distâncias percorridas por
corpúsculos que se movem à velocidade da luz, antes de
decaírem num jorro de partículas secundárias. Os quarks
nascem “nus”, mas não podem ser vistos nesse estado;
uma espécie de segregação da interação forte nos
impede de estudá-los como quarks individuais. A força
forte, de que estão carregados, tem uma intensidade
furiosa que os obriga a se ligarem imediatamente com
outros quarks. É como se os quarks nus fossem
supertímidos, aterrorizados com a ideia de que alguém
viesse a espiar as suas formas mais íntimas; logo que
surgem das colisões de alta energia, cercam-se
imediatamente com outros quarks com que interagem,
revestindo-se com eles, para adquirir um aspecto mais
ordenado e composto. Mas a sua presença se faz
inequívoca tão logo a nova partícula decai.
Reconhecendo a vida média característica dos b ou dos
c, tem-se a prova incontestável de que sob aquela
camuflagem oculta-se a beleza ou o charme.
O verdadeiro desafio é reconstruir os chamados
vértices secundários da interação. O ponto médio em que
o encontro dos feixes acelerados ocorre é conhecido com
razoável precisão; além disso, para cada colisão pode-se
reconstruir o ponto exato em que, por exemplo, no lhc, os
dois prótons se chocaram e deram origem a novas
partículas. Chama-se vértice primário da interação e
pode ser reconstituído procurando-se a intersecção entre
as faixas carregadas que surgem da zona de colisão. Para
medir a vida média de um quark b, é preciso identificar o
ponto em que ele se desintegra, produzindo um
minúsculo fogo de artifício. Nesse caso, procurando o
ponto em comum das faixas carregadas que surgem do
decaimento, será possível reconstituir um vértice
secundário, distante e separado do primário.
Tudo se reduz a uma questão de precisão de medição
das faixas. Estamos falando de distâncias espaciais
minúsculas; por vezes tentamos distinguir vértices que
distam somente uma fração de milímetro, o que só é
possível com os mais modernos equipamentos de
reconstrução das faixas. Graças ao desenvolvimento de
novos sensores, ultrassensíveis e extremamente
precisos, aquilo que até algumas décadas atrás parecia
um sonho tornou-se uma prática rotineira.
Com a chegada dos novos detectores, hoje é possível
medir as faixas com uma precisão inferior a dez
micrômetros (um micrômetro (µm) é um milésimo de
milímetro) e reconstituir vértices secundários que
estejam a menos de cem micrômetros de distância do
primário. Com instrumentos tão potentes, não há
dificuldade em medir vidas médias de até 10−13
segundos, que se traduziriam em distâncias da ordem de
trinta micrômetros antes de decaírem. Se então
considerarmos que os quarks b e c produzidos nas
colisões de lhc são ultrarrelativísticos, as distâncias
percorridas antes do decaimento se tornam da ordem do
milímetro e podem ser medidas com grande precisão.
Isso, porém, assinala o limite atual da técnica em usar o
tempo de voo das partículas instáveis para medir a sua
vida útil.
Se quisermos explorar a região até vidas médias de
10−16 segundos, podemos tentar algo especial, mas
então é preciso abrir mão de um colisor e recorrer a
feixes em alvo fixo. Assim é possível produzir dilatações
dos tempos superiores a 10 mil vezes, mas tampouco
essa técnica extrema permite alcançar as vidas médias
infinitesimais ligadas à interação forte.
A capacidade de identificar vértices secundários e de
assim reconstruir a presença de quarks pesados na
colisão tem se mostrado decisiva para muitas
descobertas, inclusive a do quark mais pesado de todos,
o top.
O campeão de massa entre todas as partículas
conhecidas decai imediatamente após ser produzido. Ele
tem tanta pressa em desaparecer de circulação que nem
consegue se revestir antes de se desintegrar. É o único
quark que morre completamente “nu”. A sua vida média
é de 5 × 10−25 segundos, e o caminho que percorre
antes de decair é impossível de medir. O decaimento se
deve à interação fraca, mas ocorre em tempos
infinitesimais porque o top, devido à sua enorme massa,
não consegue sobreviver sequer um instante no
ambiente frio e inóspito para o qual foi catapultado. Só
consegue ficar tranquilo quando a densidade de energia
a cercá-lo é imensa. Viveu um brevíssimo período de
felicidade, uma efêmera idade de ouro, nos primeiros
instantes de vida do universo, quando as temperaturas
eram tão elevadas que lhe permitiam saracotear à
vontade, junto com os outros quarks e os glúons. Mas
tudo acabou de repente assim que o universo recém-
nascido se resfriou.
O interessante é que no decaimento do top há sempre
a presença de um bóson W e de um quark b, que, por
sua vez, decai depois de ter percorrido um trecho
mensurável. Portanto, reconstruindo os decaimentos dos
quarks b é possível identificar aquela fração que vem do
top. Basta associar-lhes um bóson W e o jogo está
montado. Graças a essa assinatura inequívoca foi
possível descobrir em 1995 o primeiro punhado de
eventos contendo o mais maciço dos quarks, no Colisor
Tevatron do Fermilab, nos Estados Unidos. Ainda hoje
usam-se técnicas semelhantes no lhc para reconstruir
milhões de tops e estudar em detalhe todas as suas
características.
O bóson de Higgs, outro objeto muito maciço, embora
mais leve do que o top, também tem uma vida
brevíssima. Os seus produtos de decaimento, as
partículas em que se desintegra, saem praticamente do
vértice primário da interação. Estima-se que a sua vida
média é da ordem de 10−22 segundos. Mais uma missão
quase impossível para os físicos experimentais. Como
medir vidas médias tão pequenas? Veremos no próximo
capítulo, mas precisaremos, mais uma vez, da mecânica
quântica.

* Mais comumente chamado de bottom, mas mantivemos a opção do autor.


(N. R. T.)
8. Uma relação muito especial

Como o top e o Higgs, o W e o Z também são muito


instáveis. O mesmo destino une as partículas mais
maciças do Modelo Padrão: morrem logo depois de
produzidas, numa fração infinitesimal de segundo. Se
comparamos as suas massas colossais às das outras
partículas elementares, não há dúvida: é a linhagem dos
“Gigantes”. Mas as suas dimensões são desprezíveis:
são, para todos os efeitos, partículas puntiformes, que
chegam a concentrar num volume infinitésimo a massa
de um átomo de ouro; como numa espécie de
compensação, estão destinadas à existência mais
efêmera de todas.
A sua vida média oscila entre 10−22 e 10−25
segundos, e nenhum instrumento conseguiria captar o
caminho que percorrem antes de decair. Mesmo viajando
a c, cobririam distâncias compreendidas entre as
dimensões de um próton e as de um quark. Além disso,
sendo muito maciças, nem as máquinas aceleradoras
mais potentes conseguiriam lhes imprimir energia
suficiente para dilatar a sua vida média em milhões ou
bilhões de vezes, o que seria necessário para termos
alguma esperança de medir o seu tempo de voo.
Para estudar intervalos de tempo tão infinitesimais, é
preciso recorrer a algo especial, um método
completamente diferente, que explora as estranhas
propriedades que se desenvolvem na matéria quando é
fragmentada nos seus componentes elementares.
Vida de Dióscuros

Todas as partículas obedecem às leis da mecânica


quântica. Por mais estranhas que possam nos parecer,
elas dominam o comportamento da matéria no plano
microscópico e foram verificadas uma infinidade de
vezes. Foi por conhecê-las detalhadamente que pudemos
construir os instrumentos muito sofisticados que estão
na base de quase todas as atividades humanas nas
sociedades modernas. Se de repente, por alguma
estranha brincadeira do destino, a física dos quanta
deixasse de funcionar, tudo pararia: aviões e
automóveis, hospitais e centros de comunicação,
celulares e computadores, fábricas e sistemas logísticos.
Um dos eixos da mecânica quântica é o princípio da
incerteza, e foi justamente aqui que se encontrou a
chave para medir as vidas médias mais minúsculas.
Na física clássica, podem-se escolher duas grandezas
físicas quaisquer, por exemplo a velocidade e a posição
de uma Ferrari que atravessa a linha de chegada de uma
corrida de Fórmula Um, e não há limites para a precisão
com que se podem conhecer ambas ao mesmo tempo.
Isso não é mais possível na física quântica, na qual uma
nova regra proíbe que as grandezas ditas incompatíveis
sejam medidas juntas com altíssima precisão. Se
reduzimos a zero a incerteza com que conhecemos uma
delas, aumentamos ao infinito a indeterminação da
outra. A dupla de grandezas posição e quantidade de
movimento, isto é, o produto da massa pela velocidade,
é o exemplo clássico de grandezas incompatíveis.
Muitas vezes justifica-se o princípio da incerteza como
incerteza ligada às perturbações intrínsecas à operação
de medição. Para conhecer com precisão a posição de
um pacote de elétrons, posso usar fótons de alta energia
e medir o ângulo em que estão difundidos; mas,
interagindo com os elétrons, eles acabam por mudar a
sua velocidade. Na verdade, a relação de Heisenberg,
assim chamada por ter sido esse físico alemão o primeiro
a introduzi-la, em 1927, tem uma validade mais
profunda. Refere-se a uma propriedade característica dos
sistemas quânticos, que oscilam continuamente,
atravessando todos os estados possíveis, e, quando a
operação de medição intervém, congelam-se de repente
num dos estados permitidos.
Para usar um exemplo banal, consideremos a moeda
que o árbitro lança ao ar para atribuir o pontapé inicial
da partida. Enquanto dá voltas no ar, a moeda fica
passando de um estado a outro entre os estados
possíveis; é como se fosse ao mesmo tempo cara e
coroa. A sobreposição dos dois estados excludentes só se
romperá quando a moeda pousar, e nesse ponto não
haverá mais ambiguidade: será cara ou coroa.
Tudo nos leva a pensar que, na evolução de um
sistema, mesmo na ausência de alterações ligadas à
medição, o objeto quântico não pode assumir valores
definidos com precisão simultaneamente para duas
grandezas incompatíveis. Quando efetuamos a medição,
registramos essa indeterminação para o estado particular
ao qual o sistema colapsa, mas essa mesma
indeterminação pareceria valer para todos os estados. A
liberdade dos sistemas quânticos de atravessar todas as
existências possíveis não é ilimitada; há regras férreas a
serem seguidas, cujo sentido, sob muitos aspectos, ainda
nos escapa. O princípio da incerteza é uma delas:
constitui uma espécie de rígido tabu, que ninguém pode
violar.
É uma das inúmeras coisas que ainda não
compreendemos na mecânica quântica. Uma teoria que
funciona muito bem, que usamos o tempo todo, embora
ainda nos seja um tanto obscura. “Ninguém entende a
mecânica quântica”, sustentava o prêmio Nobel Richard
Feynman nos anos 1970, e a sua afirmativa ainda
continua válida. Sob o princípio da incerteza, como sob
outras regras e fenômenos que verificamos todos os dias,
há algo que nos escapa, talvez uma camada oculta em
que agem simetrias e leis de conservação totalmente
desconhecidas para nós. Enquanto não formos capazes
de explorá-lo, temos de aceitar a frustração de continuar
a usar a física quântica sem saber responder a todos os
porquês.
A energia e o tempo também são grandezas
incompatíveis, às quais se aplica a relação de
Heisenberg. Se quisermos conhecer com alta precisão
uma das duas, teremos de aceitar uma grande
indeterminação sobre a outra. A incerteza sobre a
energia de uma partícula ΔE, multiplicada pela incerteza
sobre o tempo Δt, deve ser maior ou igual a h/4π. Como
h, a constante de Planck, tem um valor extremamente
pequeno, no nosso mundo macroscópico podemos
ignorar tranquilamente esses efeitos; mesmo quando
procuramos efetuar uma medição muito precisa não
conseguimos perceber os limites impostos pelo princípio
da incerteza, porque as incertezas experimentais são
muito superiores.
Ligados indissoluvelmente pelo princípio da incerteza,
a energia e o tempo vivem realidades complementares.
Se a precisão de uma sobe aos céus, a da outra desce
aos infernos e vice-versa.
Lembramo-nos do mito dos Dióscuros, Cástor e Pólux,
irmãos gêmeos que viviam em simbiose. O primeiro
experiente domador de cavalos, o outro imbatível no
pugilato, os dois participavam juntos de infinitas batalhas
e célebres façanhas; a mais famosa de todas é a viagem
dos Argonautas para a Cólquida, em busca do Velocino
de Ouro. Ambos eram filhos de Leda e, segundo a
tradição, o pai de Cástor era Tíndaro, rei de Esparta, o
legítimo esposo, enquanto Pólux era o fruto do amor da
belíssima rainha com Zeus, que se transformara em
cisne para conquistá-la. Leda os teria concebido
separadamente, na mesma noite unindo-se ao rei do
Olimpo, primeiro, e ao legítimo esposo, depois.
Crescendo juntos, os dois gêmeos eram unidos por uma
ligação muito forte, mas Cástor era mortal, enquanto
Pólux gozava do dom da imortalidade.
Quando Cástor morre em batalha, Pólux se sente tão
devastado de dor que implora ao pai que o torne mortal,
para poder se juntar ao irmão no Hades e ficarem juntos
para sempre no reino dos mortos. Para não perder o filho,
Zeus concede a Cástor que passe um dia no Olimpo e o
dia seguinte no reino dos ínferos, permitindo assim que
os gêmeos continuem a viver juntos, alternando-se entre
o mundo da luz e o mundo das trevas.
Daí em diante Cástor e Pólux se tornam os dois
Dióscuros, filhos ou crianças de Zeus, e o termo será
usado para designar, por extensão, alguém que fica
dilacerado pela perda de uma irmã ou de um irmão a
quem era muito ligado. Associou-se a eles a alternância
entre Héspero, a estrela do crepúsculo, e Fósforo, que
anuncia a manhã, antes que se soubesse que se trata
sempre de Vênus, o planeta que se apresenta mais
luminoso do que as estrelas logo após o crepúsculo e um
pouco antes da alvorada. Por isso os pitagóricos
escolheram a representação dos Dióscuros para
simbolizar a harmonia do universo e a sucessão
ininterrupta das duas semiesferas celestes que
passavam, alternadamente, acima e abaixo da Terra. A
união dos dois irmãos se torna símbolo de imortalidade e
aparece em muitos sarcófagos romanos, e ainda hoje as
imponentes estátuas de Cástor e Pólux acolhem os
inúmeros grupos de turistas que visitam a praça do
Campidoglio em Roma.
Agarrar Kairós pelos cabelos

O mesmo princípio que parece limitar as nossas


capacidades de conhecimento pode ser usado para
expandi-las. Se invertermos o ponto de vista, podemos
ler a relação de Heisenberg da seguinte maneira: para
intervalos de tempo reduzidíssimos, a incerteza sobre a
energia do sistema pode se tornar muito grande. No seu
flutuar contínuo entre todos os estados possíveis, o
sistema atravessará também estados em que terá uma
energia muito superior. Isso será possível desde que o
intervalo de tempo da ocorrência seja muito pequeno.
Uma das várias implicações desse fenômeno é que
assim se explica o decaimento das partículas instáveis.
Por exemplo, como os múons fazem para decair por
interação fraca? Para se desintegrar em elétrons e
neutrinos eles precisam emitir um W, o portador da força
fraca, que é um monstro de oitenta GeV. Mas como
partículas que pesam um décimo de GeV conseguem
gerar objetos com peso oitocentas vezes maior?
Pareceria impossível, a não ser que se viole o princípio de
conservação de energia.
Na verdade, o processo ocorre em duas fases: na
primeira, brevíssima, por flutuação casual o múon se
transforma em neutrino, emitindo o pesado W. Se o
tempo do processo é tão breve que se encaixa nos
limites estabelecidos pelo princípio de indeterminação,
não se viola nenhuma regra, nem se comete nenhum
ilícito. O importante é que W desapareça imediatamente
da cena do crime, desintegrando-se num elétron e em
outro neutrino. No início do processo havia um múon
carregado; no final, após um intervalo de tempo muito
pequeno, há um elétron, também ele carregado, e dois
levíssimos neutrinos. A massa do estado final é inferior à
do estado inicial, o que significa que elétrons e neutrinos
não ficarão parados e sim terão energia cinética. Em
última análise, a energia da partícula que decai e a dos
produtos finais são iguais. Nenhum processo violou as
férreas leis de conservação da energia e da carga. Como
a probabilidade de flutuar e emitir o W que leva ao
decaimento é puramente casual, a fração de múons que
decairá será sempre a mesma para cada dado intervalo
de tempo. A mecânica quântica e o princípio da incerteza
nos permitem entender o andamento característico das
curvas de decaimento das partículas instáveis.
O que cabe ressaltar é que o processo de decaimento
ocorreu com o concurso de uma partícula mediadora de
altíssima energia. O princípio da incerteza lhe permitiu
agir, desde que a sua aparição fosse fugaz a ponto de
impedir qualquer registro. Chamamos virtuais às
partículas cuja existência é restrita a intervalos tão
breves que impedem a observação direta. São presenças
fantasmagóricas, que pairam ao redor das partículas
reais por intervalos de tempo tão breves que escapam a
qualquer observação.
É explorando o princípio da incerteza que podemos
medir a vida média das partículas mais maciças e
instáveis. O truque é se concentrar em medir a sua
massa ou energia do melhor modo possível.
No caso de uma partícula estável, de vida média
praticamente infinita, haveria todo o tempo do mundo
para efetuar inumeráveis medições da massa e obter
uma distribuição muito bem definida, porque a
indeterminação decorrente do princípio de Heisenberg
seria desprezível. Mas, se forem partículas de vida média
muito breve, a massa não pode ser medida diretamente,
porque o tempo não seria suficiente.
Podemos, porém, medir a energia de todas as
partículas produzidas no seu decaimento e assim
encontrar a massa da partícula-mãe. O que se deve notar
é que, mesmo que tivéssemos uma precisão
experimental ilimitada, todas as medições dariam
resultados levemente diferentes. Cumpre lembrar que é
a energia própria da partícula-mãe que flutua, nos
tempos infinitesimais da sua breve vida. Quando formos
reconstruir o valor da massa da partícula de partida,
encontraremos uma distribuição de probabilidade
gaussiana, em forma de sino, chamada curva normal.
Tem um máximo em correspondência do valor central da
massa, e é tão mais larga quanto mais breve é a vida da
partícula. Este é o truque genial: medindo a largura
dessa distribuição, o ΔE que aparece no princípio de
Heisenberg, podemos obter o Δt, a sua vida média.
O princípio da incerteza nos permite agarrar até
mesmo Kairós, o momento fugaz, o instante tão fugaz
que não pode ser mensurável. Os gregos o
representavam como um jovem com uma estranha
cabeleira que hoje diríamos punk: um topete na frente e
a cabeça toda raspada na parte de trás. É um deus
caprichoso que representa o momento mágico, a
oportunidade a se agarrar, o instante inesperado que
mudará tudo. É a Fortuna imperatrix mundi [Sorte,
imperatriz do mundo] cantada na Carmina Burana de
Carl Orff.
O princípio da incerteza nos oferece a possibilidade de
agarrar Kairós pela longa mecha de cabelos que lhe
desce pela testa antes que, num átimo, ele nos vire as
costas mostrando-nos a nuca calva por onde não
teremos como pegá-lo. O princípio de Heisenberg, que
parecia limitar a nossa capacidade de medição, torna-se
o estratagema para agarrarmos os tempos de vida
infinitesimais das partículas elementares mais pesadas.
Medir o tempo com a energia

Quando usamos o princípio da incerteza para avaliar a


vida média das partículas, deparamo-nos com outro
paradoxo. O ΔE, a incerteza sobre a massa da partícula
que decai e que queremos medir, é inversamente
proporcional ao Δt, a sua vida média. De súbito, tudo se
inverte. Até agora tínhamos medido sem problemas as
vidas médias mais longas, e a nossa dificuldade era
medir as mais breves. Agora acontece o exato contrário:
quanto menor a vida média, maior a largura da
gaussiana que descreve a massa da partícula, e mais
fácil medi-la com precisão. Por exemplo, uma largura de
alguns GeV pode ser medida com bastante facilidade
com os equipamentos modernos, mas ela corresponde a
vidas médias muito pequenas, que se situam nas
proximidades de 10−25 segundos. Se quisermos estudar
as maiores, precisamos conseguir medir larguras
minúsculas, o que não é nada simples. Isso explica por
que as vidas médias de Z, W e top foram determinadas
com precisão mas ainda estamos sofrendo para medir a
do bóson de Higgs. Para este último, espera-se uma vida
média mil vezes superior à dos seus companheiros, à
qual corresponde uma largura muito pequena, na
verdade até imperceptível mesmo para os equipamentos
mais sofisticados.
Entre os “Gigantes” das partículas, a vida média com
melhor medição é a de Z. Foi possível medi-la graças ao
lep, o acelerador do Cern que antecedeu o lhc. Um
acelerador de elétrons e pósitrons, objetos puntiformes
cujas colisões extremamente “limpas” são as mais
adequadas para esse tipo de medições, o lep esteve em
funcionamento de 1989 a 2000 e produziu milhões de Z,
e assim foi possível medir a largura de sua distribuição
de energia com ótima precisão: em torno de 2,5 GeV, a
que corresponde a brevíssima vida média de 2,2 ×
10−25 segundos.
O lep produziu também uma quantidade notável de W
e, nesse caso, a largura medida foi de cerca de 2,1 GeV,
um pouco menor que a de Z, e por isso W tem uma vida
média levemente superior, 3 × 10−25 segundos.
O lep não tinha energia suficiente para produzir duplas
de tops ou bósons de Higgs, e assim não foi possível
medir a vida média deles num ambiente ideal. Foram
estimadas no lhc com vários estratagemas. Mas as
colisões entre prótons, que são objetos compósitos, são
bastante complicadas, e a medição é muito difícil. Por
ora, obtiveram-se estimativas ainda grosseiras para a
sua largura e os valores correspondentes de vida média.
A largura, para o top, seria cerca de 1,3 GeV, com erros
experimentais ainda consideráveis, ao que
corresponderia uma vida média por volta de 4 × 10−25
segundos.
O Higgs merece um discurso à parte. A largura prevista
pelo Modelo Padrão para um Higgs de 125 GeV de massa
é de apenas 0,004 GeV. A indeterminação sobre a massa
de Higgs é minúscula, a sua curva de ressonância é
estreitíssima e nenhum equipamento experimental de lhc
conseguiria medi-la diretamente. Com um pouco de
engenho, ajustaram-se métodos indiretos que permitem
estimá-la. O resultado obtido até agora nos diz que o
Higgs não pode ter uma largura superior a 0,020 GeV.
Desse modo, obtém-se um limite inferior para a sua vida
média: o Higgs deve viver mais de 3 × 10−23 segundos,
mas estamos ainda distantes de ter conseguido medir a
sua verdadeira vida média.
Por que é tão importante medir a largura da
distribuição de energia e a vida média das partículas
mais maciças e, em especial, do Higgs? Em primeiro
lugar, para verificar se as previsões do Modelo Padrão
estão corretas, e sobretudo porque essa medição poderia
nos levar a novas descobertas. Uma largura ou uma vida
média do Higgs diferente da prevista pode indicar modos
de decaimento “exóticos”, em que o Higgs se combina
com partículas desconhecidas. Quem conseguisse ser o
primeiro a demonstrar uma discrepância significativa
poria em crise o Modelo Padrão e abriria caminho para a
nova física. Esses estudos poderiam nos levar a descobrir
novas partículas, talvez invisíveis, e, quem sabe, alguns
misteriosos componentes da matéria escura.
O estágio inicial do fcc, o gigantesco acelerador que
deve ser o herdeiro de lhc, conseguiria medir com
precisão a largura e a vida média de todas as partículas
mais pesadas. Seria uma máquina aceleradora de
elétrons e pósitrons que produziria colisões
extremamente fáceis de estudar, visto que se trata de
objetos puntiformes, como no lep. Mas a energia dessa
vez seria suficiente para estudar detalhadamente toda a
linhagem dos “Gigantes”: W, Z, Higgs e top.
O projeto prevê produzir enormes quantidades de
todas as partículas mais pesadas do Modelo Padrão para
medir suas propriedades em busca das menores
anomalias. As atuais medições de largura e vida média
de Z e W seriam aperfeiçoadas em ordens de grandeza,
ao passo que, para o top e o Higgs, espera-se uma
precisão da ordem da porcentagem.
As incursões dos mensageiros, os protegidos de Hermes

A villa dos Papiros, que despontava sobre o mar em


Herculano, foi sepultada pela erupção do Vesúvio sob
uma manta de detritos com trinta metros de espessura e
ali descansou por quase 1700 anos.
É a mansão dos Pisões, que Lúcio Calpúrnio Pisão,
sogro de Júlio César, mandou construir, mais de um
século antes da erupção, para mostrar a importância da
sua gens. Pisão era um erudito, grande amante da
cultura e protetor de filósofos seguidores de Epicuro. As
escavações trouxeram à luz centenas de papiros
carbonizados, e foi essa descoberta que deu nome ao
palacete.
É uma construção imponente, com mais de 250 metros
de comprimento e cinquenta de largura, com o corpo
principal articulado em três níveis. Quem quiser conferir
a sua grandiosidade pode visitar o Paul Getty Museum,
em Pacific Palisades, perto de Los Angeles. O excêntrico
bilionário americano deu orientação explícita aos seus
arquitetos para que o museu fosse uma réplica fiel da
magnífica residência em Herculano.
Os tesouros inestimáveis lá encontrados não se
resumem aos mais de 1800 papiros. As escavações
trouxeram à luz paredes com elegantes afrescos,
mosaicos preciosos, pisos policromáticos em mármore e
nada menos que 87 estátuas: 58 em bronze, as demais
em mármore. Algumas são verdadeiras obras-primas,
que podem ser admiradas na sala dedicada a elas no
Museu Arqueológico Nacional de Nápoles. Uma em
especial sempre me encantou: a estátua de Hermes, que
muitos estudiosos consideram uma cópia romana de um
original grego atribuído ao grande escultor Lisipo.
É um jovenzinho de olhar absorto, concentrado,
sentado, com as pernas um pouco abertas, a direita
estendida para a frente, a esquerda flexionada, com o pé
mais atrás. Os membros superiores invertem a simetria:
a mão esquerda abandonada à frente, com o antebraço
apoiado na coxa, enquanto a direita está deslocada para
trás, a palma pousada na rocha que serve de assento,
levemente voltada para fora.
Embora o tema seja estático — um rapaz sentado,
parado, descansando —, a postura é dinâmica. A torsão
do busto do jovem, embora apenas esboçada, convida o
espectador a rodear a estátua para apreciá-la por várias
perspectivas e pontos de vista diferentes.
Os talares, pequenos calçados alados que ornam os
tornozelos, não deixam dúvida sobre o personagem: é
Hermes, o filho de Zeus e da ninfa Maia, o mais rápido
dos deuses, ágil quando precisa voar de um lugar a
outro, mas rapidíssimo também no raciocínio, de
inteligência brilhante, mestre de argúcia.
Nascido de manhã, já ao meio-dia saíra do berço e,
encontrando a casca de uma tartaruga, fizera uma lira.
Naquela mesma noite desafiara o irmão, o poderosíssimo
Apolo, roubando cinquenta novilhas dos seus rebanhos. E
saíra impune.
Ao deus da velocidade e da destreza Zeus confiará o
papel de intermediário entre o mundo dos deuses e o
mundo dos homens. É a divindade que dá nome ao
planeta mais veloz, o ágil Mercúrio,* que se move rápido
pelos céus, pondo os mortais em comunicação com a
ordem divina de Zeus. São as incursões de Hermes, o
mais nobre dos mensageiros, que unem os
incongruentes, que ligam os intrinsecamente dissímiles.
As interações fundamentais são transportadas por
partículas muitos específicas, chamadas mediadoras, que
se assemelham a mensageiros especiais. Como o deus
de calçados alados, elas também ligam mundos
heterogêneos e, sob certos aspectos, irredutíveis. Põem
em comunicação quarks e léptons, criam interações
entre eles ou os transformam, e, por vezes, decretam o
seu fim.
Aqui entra em jogo outra consequência da estranha
relação entre energia e tempo codificada pelo princípio
de Heisenberg. A interação eletromagnética de duas
partículas carregadas pode ser vista da seguinte forma: a
primeira partícula emite um fóton de energia ΔE, que é
imediatamente absorvido pela segunda. Tudo bem, mas
há um intervalo de tempo infinitesimal em que tanto as
duas partículas quanto o fóton emitido coexistem, o que
seria violar a conservação da energia. Nada de grave
desde que esse intervalo de tempo seja inferior a Δt,
definido pelo princípio de indeterminação. Esse tempo é
tão mais breve quanto maior for a energia transportada
ΔE, e por isso o máximo espaço percorrido pelo
mediador, cΔt, estará em correspondência com o mínimo
de energia transferida. Como nenhum mediador pode
levar menos energia do que a equivalente à sua massa,
estabelece-se uma relação entre o raio de ação de uma
determinada interação e a massa do mediador.
Para a interação eletromagnética, as coisas são
simples. O fóton tem massa nula e, portanto, o seu raio
de ação é infinito. Qualquer partícula carregada interage
com todas as outras partículas carregadas do universo
inteiro, onde quer que estejam distribuídas.
Os bósons W e Z, mensageiros da interação fraca, são
partículas muito pesadas, e o princípio de
indeterminação impede que voem por grandes
distâncias. O raio de ação de partículas de oitenta a
noventa GeV se limita às distâncias subnucleares. Por
isso a interação fraca morre bem antes de chegar às
bordas do núcleo atômico. Estando confinada em
dimensões tão minúsculas, não admira que a
humanidade tenha levado milhares de anos até se dar
conta da sua existência.
Essa distinção entre forças fundamentais da natureza
foi decisiva para dar uma estrutura ao nosso universo. Os
velozes mensageiros dividiram entre si os papéis e zonas
de influência e fizeram incursões em territórios bem
definidos. Protegidos por Hermes, organizaram
esplendidamente o nosso mundo material, construindo
proporções e harmonia.
A dupla perfeita

A energia e o tempo formam uma dupla que se


complementa muito bem. Estão ligados numa relação
indissolúvel pelo princípio da incerteza, que os obriga a
dinâmicas complementares em perfeita sincronia.
Quando a primeira cresce desmesuradamente, o outro é
comprimido a valores infinitesimais, e vice-versa. Se a
primeira vai para o centro da cena, o outro some à
distância, mas os papéis podem se inverter num
instante.
Mesmo parecendo inconciliáveis, estão, na verdade,
unidos por algo muito profundo: um poderosíssimo
vínculo cujas raízes imergem na trama mais sutil do
nosso universo material. Pressente-se de imediato que se
trata da conservação de energia, uma das leis universais
mais temidas e respeitadas. Na sua forma mais
elementar encontra-se uma relação especial com o
tempo.
Sabe-se que a toda simetria contínua das leis da física
corresponde uma lei de conservação, isto é, uma
quantidade física mensurável que permanece inalterada.
Assim, se as leis do movimento não mudam quando
muda a origem do eixo dos tempos, isso significa que a
energia do sistema se conserva. Uma relação tão
poderosa que une para sempre duas quantidades entre si
irredutíveis e aparentemente estranhas.
No centro dessa ligação tão especial oculta-se o maior
segredo de todos. Graças ao princípio da incerteza, que
regula a dinâmica dessa estranha dupla, o vazio pode se
transformar num maravilhoso universo material.
Atenção: o vazio é um estado material como todos os
outros. Não é o nada, embora não contenha nenhuma
forma de matéria, não seja atravessado por partículas
materiais e não abrigue qualquer espécie de campo. Se,
perturbando-o, pudéssemos medir a energia com uma
sucessão de experimentos, encontraríamos uma
sequência de valores casuais, distribuídos em torno de
zero. Tem energia média nula e isso significa que, em
nível microscópico, passa por uma sequência
interminável de flutuações, pequenas oscilações casuais,
reguladas pelo princípio de Heisenberg, que o fazem
bruxulear incessantemente.
O conjunto das observações efetuadas nas últimas
décadas parece convergir para a conclusão, nada
evidente, de que tudo se originou justamente de uma
dessas minúsculas flutuações. Mesmo o vazio deve
respeitar o princípio da incerteza, e por isso não pode se
manter igual a si mesmo, imóvel, congelado. Dele podem
surgir continuamente duplas de partículas e
antipartículas, que depois de uma brevíssima existência
são reabsorvidas no estado original. Graças ao princípio
da incerteza, o vazio pode se tornar uma espécie de
jazida inesgotável de matéria e antimatéria e de campos
de forças que flutuam, atravessando todas as
configurações.
E então, numa dessas minúsculas flutuações, que
podemos imaginar como bolhinhas de dimensões
insignificantes, muito menores que os nossos quarks,
acontece algo estranho. Por aquele fenômeno que ainda
apresenta alguns aspectos obscuros, e que chamamos de
inflação cósmica, a bolhinha indisciplinada, em vez de
voltar a se fechar imediatamente e retornar ao estado
original, de repente começa a se expandir e subitamente
adquire dimensões enormes.
No tempo ridículo de 10−35 segundos, a insignificante
anomalia infla até se tornar uma coisa macroscópica.
Dois ingredientes perfeitamente amalgamados se
entrelaçaram num estado que ainda possui os mesmos
números quânticos do vazio, mas já se apresenta como
algo muito mais interessante.
O estratagema adotado é ao mesmo tempo muito
simples e genial. Basta combinar os dois ingredientes
complementares, um capaz de absorver a mesma
quantidade de energia que é demandada para criar o
outro, e pronto.
Para criar massa-energia, é preciso tomar de
empréstimo a energia necessária, porque o vazio tem
energia nula. Isso pode ser feito, desde que o
empréstimo seja saldado o quanto antes. Mas se do vazio
se origina, junto com a massa-energia, uma estrutura
espaçotemporal, então milagrosamente tudo se
compensa. Qualquer forma de massa ou energia nela
colocada sofre atração gravitacional por parte de todas
as outras formas de massa ou energia. Quando se
estabelece uma ligação entre dois corpos, cria-se um
estado com energia negativa, pois para liberá-los é
preciso gastar energia. É a gravidade, que nasce da
deformação do espaço-tempo, que paga a dívida
contraída com o vazio para que emane matéria. A
energia negativa compensa exatamente a positiva. A
dívida é quitada imediatamente, antes que alguém no
banco do vazio tenha a ideia de cobrá-la recorrendo a
maus modos.
O espaço-tempo se expandiu de súbito, a uma
velocidade assustadora, muito superior a c, e
imediatamente se encheu de energia. Atenção: nesse
caso, o limite da velocidade da luz não se aplica. No
interior do espaço-tempo, nada pode se mover a
velocidades superiores a c, mas se é ele mesmo que está
inflando, pode crescer num ritmo mais insano.
Como todos os objetos microscópicos, essa bolhinha
primordial, na qual tudo teve origem, era percorrida por
ondulações infinitesimais. Isso ocorre em todos os
sistemas em que vigoram as leis da mecânica quântica.
A extraordinária expansão devida à inflação dilatou
desmesuradamente essas minúsculas flutuações de
densidade e as expandiu a dimensões cósmicas. As
grandes estruturas que nos cercam, galáxias e
aglomerados de galáxias, agregaram-se em torno dessas
ínfimas inomogeneidades que a inflação fez expandir
numa escala astronômica. O céu de uma noite clara nos
mostra que a mecânica quântica, acostumada a dominar
inconteste as distâncias mais insignificantes, deixou uma
marca indiscutível da sua presença também nos imensos
espaços cósmicos.
Sem o tempo, que brinca de esconde-esconde com a
energia, não estaríamos aqui para contar essa história.

* Na mitologia romana, Mercúrio é o equivalente de Hermes. (N. T.)


9. Pode-se inverter a flecha do tempo?

“Se ao menos eu pudesse voltar no tempo…” Quem nunca


disse essa frase pelo menos uma vez na vida,
lamentando uma escolha do passado? Talvez naquela
ocasião em que perdemos uma chance que poderia ter
mudado a nossa existência, ou cometemos um erro que
causou sofrimento a uma pessoa querida. Em contextos
mais dramáticos, palavras semelhantes foram
murmuradas ao ouvido de um sacerdote, ou ecoaram
entre as paredes de uma cela.
A ideia de trazer de volta à aljava a flecha que voa
para despedaçar o nosso coração é uma sugestão
poderosa, que acompanha a humanidade desde tempos
imemoriais. Os grandes poetas narram o remorso de
Orfeu, que perde Eurídice para sempre só por não ter
resistido à tentação de olhá-la por um instante; ou o
desespero de Otelo por ter matado Desdêmona,
enganado pela perfídia de Iago.
Por volta do final do século xix, o que até então só
podia ser imaginado adquire de repente uma
consistência quase tangível; subitamente o impossível se
torna visível e reaviva o antigo sonho de voltar atrás no
curso dos acontecimentos. Por efeito dos progressos
técnicos e das novas invenções, ressurge a discussão
sobre a natureza irreversível do tempo; entra em crise
aquela consciência que fora peremptoriamente
formulada desde o século iv a.C., por pensadores como
Epicuro: “Não se pode desfazer o que foi feito”.
Com o advento do cinema, as primeiras projeções dos
irmãos Lumière permitiam que os espectadores
experimentassem visualmente os efeitos da inversão
temporal.
Os geniais inventores do cinematógrafo haviam usado
a sua fábrica de chapas fotográficas em Lyon como
ambientação do seu curta-metragem A saída das oficinas
Lumière. O primeiro filme da história foi apresentado ao
público em 1895 e despertou extraordinário interesse. Os
parisienses acorreram em massa para assistir à grande
novidade e imediatamente pôs-se a questão de
apresentar novas películas, cada vez mais
surpreendentes, capazes de renovar a curiosidade do
público. Logo os Lumière se deram conta do efeito
hipnótico que podiam criar nos espectadores rodando a
película ao contrário.
Essa técnica foi usada pela primeira vez em Demolição
de um muro, filmado por Louis Lumière em 1896. A cena
se desenrola, também nesse caso, na empresa da
família. Dessa vez o protagonista é Auguste, o irmão
mais velho, que dirige a demolição de um velho muro por
um grupo de operários munidos de picaretas e de um
macaco. Quando ele vai ao chão, se esfarela numa
nuvem de poeira e detritos. Pouco depois, sem
interrupção de continuidade, o muro se recompõe como
que por milagre: fica inteiro e se recoloca de pé com
elegância, cercado pelos movimentos dos operários que
parecem acompanhá-lo com delicadeza nessa obra de
reconstrução.
Está comprometida a imagem granítica do tempo que
avança inelutável. Com o auxílio do cinema, os
espectadores podem ver com os próprios olhos, com o
realismo intrínseco que é congênito à visão, coisas
impossíveis de acontecer. Sentados numa poltrona,
assistem aos estranhos eventos que ocorrem quando se
inverte a flecha do tempo. A ideia de que o que
aconteceu seja reprodutível em todos os detalhes e se
possa rever indefinidamente, modificando a passagem
do tempo, para a frente ou para trás, acelerando-se ou
desacelerando-se à vontade, traz de volta à atualidade a
antiga questão da reversibilidade do tempo.
Uma equação nos revela um mundo de cuja existência
ninguém suspeitava

A sugestão coletiva gerada pelos primeiros filmes, e


pelos filmes cada vez mais sofisticados produzidos pela
nascente indústria cinematográfica, segue a par da
revolução científica das primeiras décadas do século xx.
No final da década de 1920, ainda não completara
trinta anos o jovem cientista inglês Paul Adrien Maurice
Dirac, nome que indica seu pertencimento a uma família
que emigrou para a Inglaterra a partir de Valais, um dos
cantões da Suíça francófona. A tese com que, em 1926,
ele obtivera o doutorado no Saint John’s College de
Cambridge tinha um título simples: Mecânica quântica.
Dirac parece ter sido o primeiro estudante no mundo a
ter a coragem de escolher como tema de tese a nova
teoria que, naqueles anos, estava ainda em
desenvolvimento.
Logo a seguir, ele se lançou de cabeça na tentativa de
conciliar relatividade e mecânica quântica, as duas
revoluções com que o século se iniciara. Essa conciliação
era necessária para descrever o comportamento das
partículas subatômicas de alta energia. Para a sua
grande surpresa, Dirac logo percebeu que a equação que
obtivera para o elétron, de carga negativa, admitia uma
solução também para partículas semelhantes ao elétron,
mas com carga oposta, positiva. Isso, de início, parecia
absurdo. Somente alguns anos depois, em 1932,
viríamos a entender o significado físico daquilo que por
algum tempo parecia ser uma mera curiosidade formal —
quando um outro jovem cientista, Carl David Anderson,
descobriu os primeiros pósitrons. Ele encontrou entre os
raios cósmicos partículas inteiramente similares aos
elétrons exceto por, dentro de um magneto, elas se
curvarem na direção oposta, e teve de concluir que
tinham carga positiva.
Com a descoberta dos pósitrons, evidenciou-se para
todos que na equação de Dirac estava oculta uma boa
metade do mundo material. De repente, graças ao jovem
estudioso, esquivo e de pouquíssimas palavras, era
preciso admitir que a toda partícula corresponde uma
outra, de massa idêntica e carga oposta, a que hoje
chamamos de antipartícula. Aquela equação tão elegante
nos fez descobrir um mundo que até então permanecera
totalmente desconhecido, de cuja existência ninguém
suspeitava.
Com o advento da antimatéria, reabre-se a questão da
reversibilidade do tempo no mundo microscópico das
partículas elementares. A simetria das equações é tal
que uma partícula de matéria que avança no tempo é
equivalente a uma partícula de antimatéria que se
propaga para trás no tempo. Em outros termos, fazer um
elétron aparecer num certo ponto do espaço é
equivalente a fazer um pósitron desaparecer no mesmo
ponto. Graças à antimatéria, pode-se usar energia para
extrair do vazio pares de partículas e antipartículas. E o
processo pode ser invertido temporalmente: colocando-
os em contato, os pares desaparecem de circulação.
Aniquilam-se, deixando atrás de si um jorro de energia.
O pressuposto de que o tempo dos processos no
mundo das partículas elementares poderia ser invertido
sem nenhum vínculo durou muito tempo. Parecia a todos
a solução mais simples, quase óbvia. Por outro lado, no
formalismo utilizado para estudar os choques entre
partículas elementares a hipótese era plausível, quer se
observasse o fenômeno com o tempo regular, que flui em
frente, quer se o observasse com o tempo invertido. Por
exemplo, duas partículas que interagem e saem da
colisão com trajetórias levemente desviadas seguem um
comportamento coerente com as leis da física, embora o
fenômeno seja observado com o tempo fluindo para trás.
Nesse caso, veem-se as duas partículas do estado final
que se movem em direções opostas, chegam a se chocar
e saem da colisão com velocidades opostas às do estado
inicial originário.
Tudo parece se desenvolver exatamente como se o
filme da colisão fosse projetado ao contrário. O mundo
microscópico das partículas elementares parecia de fato
funcionar como aquela representação da realidade com a
flecha do tempo invertida popularizada pelos irmãos
Lumière.
Na verdade, as coisas se revelaram muito mais
complicadas. Com o início de experimentos sofisticados
sobre a inversão do tempo e da carga em alguns
processos de decaimento, descobriram-se efeitos que
contradiziam a hipótese inicial de total simetria. Nem
mesmo a física das partículas elementares era simétrica
por inversão do tempo. Nesse estranho mundo,
distinguia-se também entre passado e futuro e não
bastava inverter o tempo para obter processos
perfeitamente simétricos.
Os estudos sobre a inversão temporal no mundo do
infinitamente pequeno são bastante complicados porque
se procuram minúsculos desvios, fenômenos elusivos,
geralmente muito raros.
Sobre essas pesquisas há uma anedota divertida, cuja
autenticidade jamais pude verificar, mas que ouvi no
laboratório do Instituto Nacional de Física Nuclear em
Frascati, nos arredores de Roma. É sobre Bruno Touschek,
um genial físico vienense, que veio a desenvolver as suas
atividades na Itália a partir dos anos 1950. Foi ele quem
propôs, em 1960, a construção do ada, acrônimo para
Anel De Acumulação, o primeiro acelerador no mundo
hospedando elétrons e pósitrons no mesmo circuito
magnético. Fazendo uma partícula e a sua antipartícula
circularem na mesma órbita, mas em direções opostas,
obtinham-se colisões em que toda a energia da
aniquilação era utilizada para produzir novas partículas.
A máquina operou com sucesso e a ideia genial de
Touschek abriu o caminho e nos levou aos modernos
aceleradores de partículas.
Durante a sua carreira, infelizmente encerrada por uma
morte prematura, Touschek se ocupou bastante desses
processos raros que pareciam violar a simetria da
inversão temporal. Foi exatamente nessa época que ele
sofreu um acidente na estrada cheia de curvas que leva
ao laboratório, nas encostas do monte Tuscolo, pouco
abaixo de Frascati. Como acontece nesses casos, o
motorista do carro acidentado foi levado ao pronto-
socorro do hospital mais próximo. O protocolo prevê que
o médico faça perguntas ao ferido para apurar se as
respostas são adequadas e com isso excluir que tenha
sofrido danos no cérebro ou traumas que tenham
prejudicado a lucidez. Assim, o médico lhe perguntou
sobre o trabalho que fazia e pelo que se interessava
naquele momento, ao que Touschek respondeu com
seriedade: “Sou físico e lido com a inversão temporal”.
Com o que o médico não hesitou: internação de urgência,
com diagnóstico de sério traumatismo craniano.
O Santo Graal da simetria

Não admira muito que a mera menção à inversão do


tempo tenha preocupado o médico de Frascati. No
mundo material complexo em que se desenrolam as
nossas existências cotidianas, vigora uma nítida
separação entre passado e futuro. Quando um copo cai
da nossa mesa, prontamente vemos que ele se quebra
no chão. Se alguém gravou a cena com um celular e a
projeta ao contrário, percebemos imediatamente que a
filmagem foi editada e o sentido, invertido. Vemos os
cacos saltarem do chão para a mesa, recompondo-se
elegantemente para formar o copo original. É uma cena a
que nunca assistimos no mundo real.
Mas no mundo dos objetos muito simples, como as
partículas elementares, submetidas a um punhado de
interações, tudo poderia se desenrolar de maneira mais
simétrica e ordenada, e mesmo o tempo poderia escapar
à condenação de correr sempre numa única direção.
Poderíamos ter reações e decaimentos que se
desenvolvem em perfeita simetria. A única possibilidade
é verificar se isso realmente acontece, e tentar entender
se existe na natureza uma simetria forte, válida em todas
as circunstâncias.
O exemplo mais comum de simetria é a especular.
Podemos verificá-la todas as manhãs, quando nos
olhamos no espelho, enquanto escovamos os dentes ou
nos penteamos. A imagem nos é familiar e nos
reconhecemos imediatamente nela, embora o indivíduo
que vemos, mesmo sendo parecido conosco em todos os
detalhes, seja muito diferente de nós. A sua mão direita
corresponde à nossa esquerda, e vice-versa. Basta usar
um pente ou uma gilete para perceber a diferença. Essa
é a brincadeira da simetria especular, em que os dois
objetos, o real e a sua imagem, são não iguais mas sim
simétricos por reflexão. É um artefato que todos
conhecem bem desde os tempos mais remotos. Foi
graças a esse fenômeno que muitos pintores puderam
pintar o próprio autorretrato quando as máquinas
fotográficas ainda não tinham sido inventadas. Eles
posavam diante do espelho e reproduziam na tela a
imagem refletida. Foi como Caravaggio pintou a si
mesmo, ainda muito jovem, nas vestes de Baco, naquele
famoso autorretrato exposto na Galleria Borghese, em
Roma, que muitos conhecem como Bacchino malato
[Baquinho doente]. Vê-se um jovem pálido, de ar doentio,
uma coroa de hera na cabeça e um cacho de uvas
brancas na mão. A obra remonta a 1593-4, os primeiros
anos da estada de Caravaggio em Roma, onde
encontrara trabalho como aprendiz no ateliê de Cavalier
d’Arpino, um pintor muito famoso na cidade dos papas
do final do século xvi. Alguns críticos pensam que
Caravaggio pintou o quadro durante um período de
descanso forçado que passou em casa após levar um
coice de um cavalo. Olhando a tela, pode-se imaginar a
cena: ele pinta com a mão direita, e por isso precisa
segurar com a esquerda o fruto da videira que aparece
no quadro; mas a simetria especular inverte a situação e,
na pequena obra-prima, Baco será imortalizado com o
cacho de uvas na mão direita.
A simetria era uma espécie de obsessão para Jorge Luis
Borges, em cujos contos fantásticos frequentemente
aparecem reflexos, labirintos, mundos paralelos. Um dos
mais poderosos se chama “Os teólogos”, e está presente
na famosa coletânea O aleph, publicada em 1949. O
conto discorre sobre uma disputa até a morte,
alimentada pela obsessão de combater a heresia, entre
dois doutores da cristandade, Aureliano e João de
Panônia, a respeito da questão do tempo circular. No
pano de fundo dos dois protagonistas agitam-se as várias
seitas heréticas gnósticas, que o grande escritor
argentino enriquece com a imaginação.
Os gnósticos veem a matéria como degradante. Tudo o
que vive no tempo e no espaço é corrompido. O mundo é
um lugar infernal, onde estamos destinados a existir na
angústia e na miséria. Nesse contexto Borges imagina a
seita dos especulares, ou cainitas, ou histriões:
Certas comunidades toleravam o roubo; outras, o homicídio; outras, a
sodomia, o incesto e o bestialismo. [Sustentavam] que o mundo inferior é
reflexo do superior. Os histriões fundaram sua doutrina sobre uma
perversão dessa ideia. […] Imaginaram que todo homem é dois homens e
que o verdadeiro é o outro, o que está no céu. Também imaginaram que
nossos atos projetam um reflexo invertido, de modo que, se velamos, o
outro dorme, se fornicamos, o outro é casto, se roubamos, o outro é
generoso. Mortos, nós nos uniremos a ele e seremos ele. […] Também
diziam que não ser um malvado é uma soberba satânica...*

Assim, no mundo invertido dos heréticos imaginados


por Borges, o grande espelho inverte não a imagem
física, mas o conteúdo ético da ação. O dever de todo
bom cristão é cometer os pecados mais atrozes. Quanto
mais maldade se semear no mundo terreno, maior será a
glória no reino dos céus.
Os espelhos e os seus estranhos jogos de reflexos
entraram desde longa data no mundo das partículas
elementares. Tem-se uma transformação similar à que se
dá quando o indivíduo destro se reflete no espelho e se
torna canhoto na imagem especular, e que se chama
transformação de paridade, termo usualmente indicado
com a maiúscula P. No caso geral de uma partícula,
teríamos de imaginar um espelho muito específico, capaz
de inverter todas as coordenadas espaciais (x, y, z) da
partícula, transformando-as em (‒x, ‒y, ‒z).
No início, tomados pelo entusiasmo, os cientistas
acreditaram que todas as forças mudavam o modo de
agir se fossem aplicadas sobre um determinado sistema
ou sobre a sua versão especular. Isto é, pensava-se que a
simetria era conservada por inversão espacial ou
transformação de paridade, P. Parecia natural imaginar
que os processos físicos observados num experimento
real não se distinguiriam dos observados no mesmo
experimento visto no espelho. Analogamente, pensava-
se que tudo se manteria simétrico se as partículas do
sistema se transformassem em antipartículas,
transformação de carga, C.
De fato, essas simetrias se mantinham quando se
lidava com a força forte, aquela que age entre os quarks,
ou com a força eletromagnética, que nasce entre as
partículas carregadas. Mas logo se percebeu que isso não
ocorria no caso da interação fraca. A mais elusiva das
forças tinha um comportamento muito estranho. Agia de
modo diferente sobre sistemas ligados entre si por uma
simples transformação de paridade ou de conjugação de
carga; reconhecia imediatamente que alguma coisa
havia acontecido e tratava os sistemas de modo
diferente.
Há muito tempo sabemos que a força fraca rompe a
simetria de carga C e a de paridade P. Havia bons
motivos para suspeitar que o mesmo aconteceria
também com o tempo, mas apenas em data recente foi
possível demonstrar experimentalmente que tampouco a
força fraca respeita a transformação do tempo, T. Isto é,
caso se mude t por ‒t, e se faça o tempo correr para trás,
a força fraca rompe a simetria e produz efeitos diferentes
nos dois sistemas. Observaram-se fenômenos que
ocorrem com probabilidade diferente dependendo da
direção em que corre o tempo. Para usar uma metáfora
arriscada, poderíamos dizer que, como os membros da
seita dos histriões de Borges, a força fraca distingue
muito bem entre o mundo terreno e o mundo celeste, e
em cada caso se comporta de maneira diferente.
Com esse resultado teve-se a prova inequívoca da
irreversibilidade das leis físicas também no nível
microscópico. Se a direção do tempo for invertida,
mesmo em sistemas simples dominados pela mecânica
quântica produzem-se processos físicos não
equivalentes. Chronos pretende que o seu domínio seja
absoluto, e não aceita ser excluído do mundo das
partículas. Se pudéssemos ver esses fenômenos num
filme semelhante ao dos irmãos Lumière retratando a
queda do muro, seríamos capazes de distinguir entre a
dinâmica real e a artificial, produzida rodando-se a
película ao contrário.
Por algum tempo, acreditou-se que, mesmo sendo C e
P violadas individualmente, a combinação das duas
transformações poderia representar uma simetria
inviolável. Caso se invertam as coordenadas espaciais e,
simultaneamente, as partículas forem substituídas por
antipartículas, aplicamos uma transformação CP. Logo se
demonstrou que tampouco isso era verdade, pois a
interação fraca não abre exceção para ninguém e viola
também a simetria combinada CP. E aqui entra em jogo a
verdadeira novidade. Se, além da carga e da paridade,
invertermos também o tempo, reencontramos uma
simetria perfeita.
As leis da física não distinguem apenas entre passado
e futuro para transformações simultâneas CPT: troca
entre partículas e antipartículas, mais inversão das
coordenadas espaciais e inversão do tempo, com a
inversão do movimento de todas as partículas. Nenhum
processo físico parece violar esse conjunto combinado de
transformações.
A simetria CPT aparece como o Santo Graal há tanto
tempo procurado pelos físicos do mundo todo. A tríade
de transformações forma um grupo compacto e
extremamente sólido, que nenhum processo parece
capaz de romper. A simetria que a transformação CPT
protege é respeitada por todas as interações
fundamentais, sem qualquer exceção. Ela constitui mais
um indício de algo muito profundo que liga o tempo ao
espaço e estabelece uma relação de ambos com a
matéria e a antimatéria. Uma ligação que age em nível
fundamental e confere ao tempo um papel de extrema
importância mesmo no mundo das mais diminutas
distâncias.
O segredo de uma poesia ou de um bom vinho

O ambiente em que a nossa existência cotidiana se


desenrola é caracterizado pela presença de corpos
macroscópicos, ou seja, sistemas materiais formados por
um número muito elevado de componentes elementares.
Apesar das aparências, mesmo o Sars-CoV-2, o
minúsculo vírus que nos está causando tantos
sofrimentos, é um corpo grande. É um filamento de rna,
cercado e protegido por um aglomerado de proteínas, e
contém mais de 200 milhões de átomos, cada um
formado por quarks, glúons e elétrons. E estamos falando
de sistemas tão pequenos que são imperceptíveis ao
olho humano. Quando se considera algo visível, por
exemplo um insignificante grão de areia que brilha ao
sol, o número dos seus átomos supera facilmente o
milhão de bilhões.
A evolução de cada um dos inumeráveis componentes
desses sistemas segue as leis da física, e a nossa vida se
tornaria impossível se, para fazer previsões sobre o
comportamento desses objetos, tivéssemos de conhecer
em detalhe, instante por instante, a posição, a
velocidade e as interações de cada um dos seus
constituintes elementares.
Por sorte, as leis que determinam a dinâmica dos
corpos complexos, aquelas que indicamos como física
clássica, química, biologia e assim por diante, são
suficientemente acuradas e nos permitem organizar
bastante bem a nossa vida cotidiana. Não precisamos de
instrumentos demasiado sofisticados para chegar ao
nosso local de trabalho, nos alimentar de maneira
adequada e interagir com os nossos amigos ou parentes.
Podemos viver muito bem ignorando tudo o que circula
no mundo do infinitamente pequeno e o que se esconde
por trás da aparente estabilidade e persistência das
coisas materiais que usamos todos os dias.
No entanto, existem princípios gerais, cuja origem está
encerrada naquele mundo microscópico que parece não
ter influência alguma sobre as nossas existências, que
determinam a evolução e a dinâmica dos corpos
materiais macroscópicos. Se ignorássemos esses
princípios, não conseguiríamos explicar uma quantidade
embaraçosa de fenômenos naturais que fazem parte da
nossa experiência cotidiana. Alguns, como o
envelhecimento e a morte, nos afetam profundamente, a
ponto de condicionarem de maneira maciça a existência
e a visão de mundo de todos nós. Um desses princípios é
o aumento da entropia, fenômeno que tem um papel
decisivo em determinar a concepção comum da
irreversibilidade do tempo.
Se quiséssemos resumir numa única frase a dinâmica
do universo inteiro, poderíamos dizer que se trata de um
sistema fechado, no qual todos os componentes evoluem
e interagem de maneira que a energia total do sistema
permanece constante, enquanto a entropia aumenta
incessantemente.
A energia é um conceito bastante familiar, porque é
usado em muitos contextos. Todos conhecem o princípio
de que não é possível criar energia do nada. A entropia,
porém, é algo bem mais misterioso: fora do âmbito
científico, não se entende com grande clareza o que ela
representa e, principalmente, não está claro por que
deve sempre aumentar. Muitas vezes ouve-se falar em
ordem e desordem em relação à entropia, mas essa
representação, por mais que possa nos aproximar do
conceito de base, esconde diversos aspectos desviantes.
Para entender realmente a entropia, precisamos
reentrar no mundo das distâncias ínfimas, aquele dos
componentes elementares da matéria. Sob certos
aspectos, a entropia é a manifestação mais evidente da
importância fundamental que o mundo microscópico dos
átomos e das partículas elementares tem na decisão do
destino do mundo macroscópico, de tudo, inclusive nós
humanos.
O ponto de partida é a constatação de que esse mundo
é dominado somente pelo acaso e pelas leis da física, e é
precisamente essa formidável junção que permite a
instauração da mais perfeita das democracias.
Suponhamos que estamos em casa, ao fim de um
jantar entre amigos. A conversa prossegue animada e,
enquanto o café está sendo preparado na cozinha, as
xícaras já estão na mesa. O estado de cada componente
desse objeto tão comum deve obedecer às leis da física.
Cada um dos seus incontáveis átomos se encontra
cercado por outros a que está ligado, está submetido à
força de gravidade terrestre e interage com os da mesa,
que tenderia a deformar com o seu peso; todo átomo
tem movimentos mecânicos de vibração, e está
mergulhado em campos eletromagnéticos bastante
complicados, tem núcleos compostos por prótons e
nêutrons que trocam entre si algum resíduo de força
forte e, por sua vez, contêm quarks e glúons que sofrem
dinâmicas muito complexas.
Por sorte, a natureza é organizada segundo uma rígida
estrutura hierárquica: os quarks são irrelevantes para a
compreensão da estrutura tridimensional das proteínas,
e os átomos são uma distração inútil quando se trata de
calcular a velocidade com que devemos atravessar a rua
para não sermos atropelados pelos automóveis. Em
suma, é possível obter informações importantes sobre os
corpos materiais ao nosso redor mesmo ignorando
muitos detalhes do seu estado interno. E, para todas
aquelas atividades em que não se pode menosprezar o
papel dos átomos, na maioria das vezes basta usar
aproximações grosseiras, como as descritas por Richard
Feynman, o pai da eletrodinâmica quântica: “Os átomos
podem ser considerados pequenas partículas que se
deslocam em movimento perpétuo, atraindo-se uma à
outra quando estão suficientemente próximas, mas
repelindo-se quando são comprimidas uma contra a
outra”.
Em todo caso, o evidente para todos os convidados é
que a nossa xícara se apresenta como uma estrutura
estável e estacionária, fica ali parada e tranquila, mesmo
sendo constituída por inúmeros átomos que fervilham em
várias atividades, atravessando uma infinidade de
estados microscópicos levemente diferentes um do outro.
E é exatamente aqui que se encontra a essência da
história toda. Ao estado macroscópico — ou seja, a nossa
xícara imóvel sobre a mesa e em equilíbrio térmico com
o ambiente circundante — corresponde um número
muito elevado de estados diferentes. Basta deslocar
minimamente um dos seus átomos, ou permutá-lo com
outros, ou aumentar um pouco a sua energia cinética
vibracional, e imediatamente tem-se no plano
microscópico um estado diferente, mas nenhum dos
amigos com que estamos conversando perceberia isso.
Se considerarmos a quantidade de diferentes
combinações que se pode obter jogando com o número
impressionante de átomos que compõem a xícara,
percebemos que estamos falando de uma quantidade
enorme de estados diferentes. E é aqui que entra o
acaso, com a hipótese da igual probabilidade a priori:
dado um sistema isolado e em equilíbrio, cada um dos
seus inumeráveis estados microscópicos tem igual
probabilidade de se manifestar. Esse é o regime
“democrático” que mencionamos acima. O sistema
passará o mesmo intervalo de tempo em cada um dos
estados admitidos. Mesmo os mais improváveis, aqueles
realmente extravagantes, desde que permitidos pelas
leis da física mais cedo ou mais tarde serão obtidos
casualmente e terão o seu momento de glória: nenhum
privilégio, oportunidades iguais para todos. No mundo
microscópico, todos governam alternadamente, embora
o domínio de cada um dure apenas um instante.
Chama-se entropia de um estado a grandeza que mede
o número de estados microscópicos correspondentes ao
mesmo estado macroscópico. Os estados de baixa
entropia são aqueles determinados por um pequeno
número de combinações de estados microscópicos
equivalentes. Alta entropia significa que inumeráveis
estados microscópicos são indistinguíveis no plano
macroscópico.
Por analogia, podemos levar em consideração “O
infinito”, o famosíssimo poema de Giacomo Leopardi.
Composto por 104 palavras, não é muito complicado
pedir a um computador que mescle todas elas de todas
as maneiras possíveis e apresente as várias
combinações. Na imensa maioria das vezes, resultarão
trechos totalmente desprovidos de sentido. Nos
raríssimos casos em que o conjunto pode ter algum
significado, mesmo assim ele soará banal ou
contraditório. O esplendor poético de Leopardi, a
perfeição absoluta e inigualável do seu poema, ocorrerá
uma única vez entre uma quantidade impressionante de
possibilidades. Em relação a todos os conjuntos possíveis
das 104 palavras que compõem “O infinito”, aquela
especialíssima combinação que constrói o poema é
única.
Algo similar ocorre quando se executa uma obra-prima
musical, como “A paixão segundo são Mateus”, de Johann
Sebastian Bach, ou quando se avaliam os sabores e
aromas inigualáveis de um grande vinho, como um
Sassicaia ou um Château Latour. Basta um vacilo entre o
coro, ou alguns dias de chuva na semana errada, para
romper irreversivelmente aquele equilíbrio mágico, no
qual o mais ínfimo detalhe deve estar no seu lugar.
Entropia e irreversibilidade do tempo

Voltemos ao nosso jantar: o café está pronto e é servido


na xícara. Os entendedores dizem que deveríamos
apreciá-lo imediatamente, pois, esfriando, perdem-se os
aromas. Os bares de Nápoles, onde se degusta o melhor
café do mundo, são famosos porque nos servem a bebida
em xícaras preaquecidas a temperaturas vulcânicas. Mas
nós, distraídos pela agradável conversa, demoramos um
pouco demais e, quando começamos a bebericá-lo, o
café já esfriou e a xícara se aqueceu. Ocorreu uma
transformação espontânea. A entropia nos permite
entender a razão.
Ao novo estado de equilíbrio que se formou, com xícara
e café alcançando temperaturas semelhantes,
corresponde uma entropia maior em relação ao estado
original. O estado inicial do sistema, com as moléculas do
café fervente em forte agitação térmica e as da xícara
em temperatura ambiente e portanto dotadas de menor
energia, era um estado de entropia mais baixa.
O fato de que numa parte do sistema (o café) houvesse
uma densidade de energia mais elevada do que em outra
(a xícara), mesmo os dois componentes estando em
contato, comportava uma entropia mais baixa. Toda vez
que uma das moléculas do café se chocava com uma das
moléculas da xícara, uma parte da energia era cedida no
choque, o café se esfriava e a xícara se aquecia. Se a
energia térmica não permanece concentrada apenas
numa parte do sistema e é distribuída em todo o volume,
aumenta imensamente a quantidade de combinações
microscópicas possíveis a que corresponde o mesmo
estado macroscópico. Assistimos a uma típica
transformação irreversível.
Em teoria, todas as moléculas da xícara poderiam se
pôr de acordo e devolver ao café, de uma vez só, toda a
energia térmica que receberam, mas essa configuração
macroscópica agora se tornou muito especial e, portanto,
altamente improvável. Na loteria das inúmeras
possibilidades, é muito raro que o bilhete vencedor saia.
Até pode acontecer, mas a probabilidade é tão pequena
que há o risco de ficarmos desiludidos mesmo depois de
bilhões de anos de espera.
É o mesmo princípio pelo qual, se derramarmos um
copo de líquido malcheiroso num tonel de Brunello di
Montalcino, todo o precioso vinho ali contido se estragará
irremediavelmente. Os estados de baixa entropia estão
sempre destinados a ser suplantados por aqueles de
entropia maior, se não houver obstáculos que impeçam a
sua transformação.
Esse mecanismo determina em que lado vemos ocorrer
os fenômenos. A entropia que aumenta nos explica como
leis microscópicas reversíveis podem ceder lugar a
dinâmicas macroscópicas irreversíveis. A ideia usual do
fluxo do tempo e a ideia associada de uma direção
privilegiada, uma flecha que voa sempre no mesmo
sentido, derivam desse conjunto de experiências. A
evolução do universo é uma consequência da
irreversibilidade dos processos espontâneos. O nosso
sistema é um sistema isolado que se dirige
inelutavelmente rumo aos estados de máxima entropia.
Essa evolução natural dos fenômenos no tempo não está
ligada a uma assimetria das leis físicas de base. A
reversibilidade em nível fundamental é subjugada pela
complexidade dos sistemas macroscópicos.
Para a nossa sorte, isso não significa que não possam
ocorrer, localmente, fenômenos que tendem a reduzir a
entropia de um determinado sistema. Isso é possível,
mas sob duas condições: que se gaste energia e que a
redução de entropia local seja compensada pelo seu
aumento no resto do mundo. O exemplo mais banal é a
geladeira de casa, que, resfriando os nossos alimentos,
reduz a entropia deles, mas consome energia e aquece
toda a cozinha.
É mais interessante incluir entre as exceções aquelas
formas químicas complexas que chamamos de
organismos vivos. Um grão de trigo semeado num
terreno úmido e aquecido pelo Sol germina e produz uma
planta da qual nascem outros grãos. Os átomos extraídos
do terreno se organizaram em moléculas orgânicas, uma
estrutura de baixa entropia, mas o processo demandou
energia, e a entropia do campo, cujas moléculas
inorgânicas foram desagregadas para formar e nutrir a
plantinha, aumentou. Processos de aumento de entropia
envolveram também o Sol, que forneceu a energia, ou a
chuva, da qual se obteve a umidade necessária. Todos os
organismos vivos comportam um consumo de energia
que, consequentemente, faz com que aumente a
entropia do ambiente onde habitam.
Os mesmos mecanismos que possibilitam a vida
marcam o seu destino, porque provocam desgaste,
envelhecimento e morte. Há quem brinque com o
conceito: a vida é um salmão que nada contra a corrente.
Nesse nosso mundo, enquanto os componentes
elementares continuam impavidamente a sua frenética
existência, todos os objetos macroscópicos se
deterioram, se consomem e perdem pedaços. Com
rochas e montanhas isso se dá muito lentamente, ao
passo que o processo de degradação das formas vivas,
como plantas e animais, é muito mais rápido. É ainda o
crescimento da entropia que domina o fenômeno.
Se um bloco de rocha das Dolomitas cai vale abaixo e
se despedaça em mil fragmentos, isso ocorre porque os
estados microscópicos que correspondem a essa situação
são muito mais numerosos do que os estados em que os
componentes individuais estavam agregados entre si
para formar o bloco.
Nas formas vivas esses processos são inevitáveis. O
material orgânico é matéria organizada numa forma
complexa, energívora e muito delicada. Para que os
ciclos vitais se mantenham, ele precisa ser renovado e
rearrumado continuamente. O mecanismo pode
funcionar por algum tempo, porém mais cedo ou mais
tarde o impulso de aumento da entropia prevalece.
Algumas centenas de anos, no máximo, para os animais
mais longevos, alguns milhares de anos para algumas
plantas muito especiais, mas para todos chega o
momento em que as estruturas orgânicas complexas,
cada vez mais danificadas, agora cópias desbotadas das
originais, oxidam-se irremediavelmente. A ligação com o
oxigênio forma compostos mais simples, quase
elementares, e principalmente muito mais estáveis, que
não precisam de energia para sobreviver, à qual
corresponde uma entropia consideravelmente maior. Na
nossa cultura de macacos antropomórficos, demos um
nome especial a essa repentina queda dos processos de
oxidação: morte.
Chegamos ao processo irreversível por antonomásia, e
assim a nossa experiência cotidiana, unida à consciência
do envelhecimento e da vida que se finda, determina a
forte concepção de tempo irreversível que domina a
nossa visão de mundo.

* Citado na tradução de Davi Arrigucci Jr. para O aleph, São Paulo:


Companhia das Letras, 2008.
10. O sonho de matar Chronos

O crescimento inelutável da entropia nos obriga a reconhecer


que a flecha do tempo não pode inverter a sua direção:
Orfeu não pode voltar atrás para evitar se virar uma
última vez em direção a Eurídice, e tampouco a Otelo
será dada a possibilidade de remediar os erros
cometidos.
Mas é possível, sem violar nenhuma lei da física,
reconduzir um sistema à mesma configuração ordenada
da qual partiu. Seria apenas um sucedâneo do recuo no
tempo, pois, de todo modo, estaríamos nos movendo em
frente. Não se voltaria ao passado, mas, conhecendo
bem o estado de todos os componentes do sistema
naquele instante anterior, poderíamos procurar
exatamente a mesma condição, uma espécie de
minuciosíssima reconstrução histórica de um fato do
passado.
O experimento foi realizado com sistemas quânticos
muito simples, cuja evolução espontânea foi invertida
gastando energia. Mais do que inversão, nesses casos
fala-se de reflexão temporal. Com uma intervenção
externa, reconduz-se o sistema ao seu estado original.
Mas mesmo essa operação funciona apenas para
sistemas formados por um mero punhado de
componentes elementares.
Para os sistemas complexos ou corpos macroscópicos,
não há nenhuma possibilidade de escapar ao destino
inelutável que os espera. A evidência de uma direção
privilegiada do tempo encontra confirmação em âmbitos
demais para que possamos nos iludir. O nosso sentido do
tempo, que distingue tão nitidamente entre passado e
futuro, indica uma flecha que segue a mesma direção
dos processos termodinâmicos, dominados pelo aumento
da entropia, e da evolução cosmológica do universo, que
tem uma data exata de nascimento e continua a se
expandir no tempo. Não temos escapatória.
A antiga sugestão de parar o tempo

Se inverter o curso do tempo não é possível, resta-nos


apenas a esperança de pará-lo. Mas mesmo o viver num
tempo congelado — que é uma condição natural para
partículas desprovidas de massa como os fótons, ou para
tudo o que se encontre na singularidade dentro de um
buraco negro — está absolutamente vedado aos seres
humanos. As leis da natureza são muito claras a respeito,
mas nada nos impede de imaginar uma intervenção
sobrenatural.
O sonho de parar o tempo encantou a humanidade
desde a Antiguidade, e essa prerrogativa foi atribuída,
desde sempre, à divindade. Somente quem vive fora do
tempo pode dominá-lo. No mundo dos escravos de
Chronos triunfa o devir, com a sua sucessão inelutável de
nascimento, vida e morte. No mundo sem tempo reina a
perene imobilidade, onde o Ser é; não existe, não muda.
A eternidade é a negação do tempo e insinua a dúvida de
que ele é um mero engano, um sonho do qual podemos
acordar a qualquer instante. O fluir do tempo é
desvalorizado, torna-se mera representação, que pode
ser interrompida a qualquer momento.
A fim de parar o tempo podemos nos dirigir a Yahweh,
o deus do tetragrama, como faz Josué no relato bíblico.
Agredidos pelos cinco reis maldosos da terra de Canaã,
os gibeonitas enviaram uma mensagem pedindo a sua
ajuda. Josué e as suas tropas marcham durante toda a
noite, mas, quando chegam ao campo de batalha, o Sol
está para se pôr. Os soldados inimigos fogem, logo a
escuridão cairá e muitos se salvarão protegidos pelas
trevas. Mas Josué invoca o deus de nome impronunciável
para que proteja o seu desejo de vingança, e o tempo
para. Enquanto o Sol continua a brilhar e a Lua se
mantém imóvel no céu, os filhos de Israel dizimam os
inimigos sob a égide de um terrível castigo divino.
Milhares de anos depois, a cena se repete, ainda num
contexto dramático. Um jovem judeu invoca Deus para
que pare o tempo, mas nesse caso o objetivo é muito
mais nobre. Dessa vez o protagonista é Jaromir Hladik, o
dramaturgo condenado ao fuzilamento em “Milagre
secreto”, o conto de Borges publicado em 1943 na
coletânea Ficções.
Preso em Praga pela Gestapo na noite de 19 de março
de 1939, Hladik é condenado à morte. É judeu e assinou
uma petição contra o Anschluss, a anexação da Áustria à
Alemanha. Isso basta para mandá-lo ao pelotão de
execução. A data marcada é 29 de março, às nove da
manhã.
Borges imagina Hladik como autor de importantes
trabalhos sobre o tempo, por exemplo a Vindicação da
eternidade, obra fictícia que ecoava, mesclando os
títulos, dois trabalhos importantes do próprio Borges:
História da eternidade e “Uma vindicação da Cabala”. No
primeiro volume da obra imaginária, passavam-se em
revista todas as formas de eternidade idealizadas pela
humanidade, desde o Ser imóvel de Parmênides até o
passado modificável de Charles Howard Hinton, um
matemático britânico do final do século xix, autor de
obras de ficção científica que em algumas delas se
detivera sobre uma quarta dimensão. No segundo livro,
sempre na imaginação de Borges, Hadlik demonstrava
que todos os fatos do universo não podiam construir uma
série temporal coerente.
Na angústia da espera, diante da perspectiva da morte
iminente, a principal preocupação de Hladik é completar
a sua última tragédia, Os inimigos, a sua obra mais
importante, destinada a marcar as vicissitudes dos
homens. A obsessão em terminá-la ocupa todos os seus
pensamentos, mas faltam poucos dias para a execução e
ele nunca conseguirá.
Assim, chegando à última noite, a mais atroz, Hladik
reza: invoca Deus para que pare o tempo e lhe conceda
mais um ano para levar a cabo o seu trabalho. Passa uma
noite terrível, feita de sonhos angustiantes e despertares
atormentados. Engaja-se numa luta pessoal contra o
tempo, ou a ilusão do tempo, em meio ao alvoroço dos
relógios que, inexoráveis, nunca param de tiquetaquear.
Ao alvorecer, quando é conduzido ao pelotão de
fuzilamento, Hladik já havia perdido qualquer esperança.
Os soldados já estão alinhados no pátio, com os rifles
apontados, e o sargento dá a ordem para atirar. E então
ocorre o milagre secreto que dá título ao conto.
O mundo inteiro congela. Hladik não pode se mexer,
mas nenhuma bala o atinge. O braço do sargento
permanece suspenso no ar, enquanto o pesado pingo de
chuva que rolara pela sua face após lhe ter roçado a
têmpora parou de correr. O vento se deteve e uma
abelha que voava perto do muro do pátio ficou imóvel no
ar, com a sua sombra fixa projetada num tijolo. Superado
o espanto, Hladik entende que a sua oração foi ouvida.
Terá um ano de tempo para completar a sua obra, mas
precisará fazê-la mentalmente, compondo, ampliando e
revendo em sua cabeça os versos faltantes,
impossibilitado que está de se mover, como tudo ao seu
redor.
Após um ano de esforços inenarráveis, a obra está
completa; ele pôs em ordem todos os detalhes, com
plena satisfação. Falta apenas um último adjetivo.
Encontra-o também. O pingo de chuva volta a escorrer
sobre a face, a abelha voa e vai embora, as quatro balas
dos fuzis fazem o seu corpo estremecer. Hladik morre às
9h02 de 29 de março de 1939.
No nosso mundo contemporâneo, em sociedades que
esvaziaram o sentido da beleza e do sagrado e dedicam
todas as energias à posse de bens materiais e à
aparência, a imaginação literária de parar o tempo para
concluir uma obra de arte não goza de muita
popularidade. Ao contrário, a antiga sugestão toma a
forma de uma espécie de loucura narcisista. Uma luta
pessoal, quase um corpo a corpo individual contra o
passar do tempo, que tem motivações muito menos
nobres que as imaginadas por Borges.
Desde sempre os humanos demonstraram grande
atenção ao cuidado com a própria imagem. Cuidam do
seu aspecto porque são conscientes de que em qualquer
comunidade a linguagem do corpo é fundamental para
estabelecer relações e hierarquias. Ornamentos e
penteados, tatuagens e máscaras, roupas e cores são
poderosos meios de comunicação: podem significar
agressividade ou condescendência, incutir respeito ou
ser instrumentos de sedução.
Cuidar do próprio corpo e disfarçar defeitos e sinais da
idade são práticas documentadas há milhares de anos.
Colares, joias, traços de pigmentos foram encontrados
em muitas sepulturas pré-históricas. São famosos os
inumeráveis testemunhos de cuidados corporais e
práticas cosméticas entre a elite do antigo Egito e da
civilização greco-romana. A velhice, sinônimo de
sabedoria, era respeitada, mas poucos entre os
poderosos resistiam à tentação de mostrar um aspecto
juvenil, enérgico, vigoroso.
O uso de truques e estratagemas para combater o
avanço do tempo é, portanto, uma prática antiquíssima,
mas a nossa civilização a transformou numa obsessão.
Sobre ela se desenvolve uma indústria muito próspera;
não só hospitais e farmacêuticas que se ocupam da
saúde, mas uma verdadeira fábrica da eterna juventude,
que se constrói sobre a ilusão de parar o tempo só para
si, deixando todos os não privilegiados à mercê do
domínio de Chronos.
O sonho de continuar eternamente jovem não cega
apenas bilionários ou estrelas do cinema. A loucura já se
insinuou em muitas camadas da sociedade. Todo
sacrifício é bem aceito desde que devolva a rostos e
corpos já desgastados um eterno frescor e apague
qualquer sinal que nos lembre o nosso destino inelutável.
Ao contrário do que fez Rembrandt com os seus
autorretratos, essas pessoas gostariam de ver no
espelho, conforme os anos passam, uma imagem de si
mesmas sempre mais jovem e fresca. Sonham poder
girar ao contrário a moviola da vida.
Assim, circulam entre nós indivíduos de aspecto
inquietante que, para esconder os sinais da idade,
mascaram-nos com efeitos frequentemente mais
assustadores do que as rugas e os defeitos que querem
ocultar das vistas. Acreditam realizar o sonho de Dorian
Gray e não percebem que exibem em público, no seu
rosto, os traços deformados e grotescos do autorretrato
que pensavam guardar no sótão, longe dos olhos de
todos.
O tolo, quando procura atalhos para deter Chronos,
frequentemente fica cego, sem perceber.
Os assassinos do tempo

A poderosa sugestão de matar o tempo, que aflorou em


várias ocasiões na nossa história, reapresenta-se
continuamente, fascinante e tentadora. O antigo sonho
de eliminar Chronos definitivamente, de uma vez por
todas, volta a ser atual sob as vestes de novas teorias e
modernas hipóteses científicas que vale a pena
investigar.
E se o tempo for só uma ilusão? Talvez a humanidade
tenha se preocupado durante milênios com algo
indevido, uma entidade absolutamente evanescente.
Desde que os paradigmas da física foram abalados
pela revolução do início do século xx, gerações de
cientistas se lançaram ao trabalho para combinar
relatividade geral e mecânica quântica. A tentativa de
construir uma descrição quântica da gravidade
atravessou o século passado, porque se revelou muito
mais complicada do que o previsto. O esforço sobre-
humano de conseguir quantizar a mais popular das
interações continua ainda hoje engajando centenas das
melhores mentes do planeta. Há algumas décadas, esse
trabalho levou a se reconsiderar a própria noção de
tempo.
Tudo partiu do trabalho de dois físicos norte-
americanos, John Wheeler e Bryce DeWitt, e está
relacionado com uma espera demasiado longa num
aeroporto. John era professor em Princeton, na mesma
universidade de Einstein, desde os anos 1930. No
período da guerra, havia trabalhado em Los Alamos no
projeto Manhattan, e depois seguira Edward Teller até a
construção da primeira bomba H. Voltando ao trabalho
universitário, decidira dedicar-se à tarefa mais arriscada
e difícil: combinar relatividade e física dos quanta.
Colaborava com DeWitt, outro brilhante físico teórico,
cerca de doze anos mais novo e caríssimo amigo seu,
que vivia na Carolina do Norte. Em meados dos anos
1960, durante uma das suas frequentes viagens, Wheeler
teria de fazer uma escala no aeroporto de Raleigh-
Durham. Como o primeiro avião para a Filadélfia, para
onde se dirigia, partiria somente em algumas horas, ele
resolveu telefonar ao seu amigo Bryce, que morava nos
arredores. Perguntou-lhe se queria aproveitar a ocasião
para discutir o estado das suas pesquisas. Bryce aceitou
com entusiasmo e correu para o aeroporto com as suas
anotações sobre uma fórmula em que estava
trabalhando. Naquelas poucas horas, os dois teriam os
primeiros “tijolos” daquilo que Stephen Hawking alguns
anos depois viria a definir como “a equação que
descreve a função de onda do universo”.
A equação de Wheeler-DeWitt não resolverá todos os
problemas da gravidade quântica, mas será a base de
muitos outros desenvolvimentos. O que cabe ressaltar é
que o tempo não aparece nela. Pela primeira vez
apresenta-se entre os físicos a terrível suspeita, ou a
secreta esperança, de que o tempo não seja um
ingrediente fundamental da realidade. Isto é, de que para
descrever o universo no nível fundamental não há
necessidade do tempo.
Wheeler e DeWitt descrevem um universo congelado
no tempo, que não evolui, como se estivesse bloqueado
num só instante de eternidade. Uma visão que traz à
mente alguns místicos medievais, com o tempo parado
no êxtase da comunhão com o eterno.
Nos anos seguintes, serão desenvolvidas diversas
abordagens da gravidade quântica. As duas mais
promissoras constituem ainda hoje verdadeiras escolas
de pensamento, sob certos aspectos contrapostas e
muitas vezes fortemente antagônicas entre si. A primeira
é a teoria das cordas e a segunda é a gravidade quântica
em loop, ou lqg (Loop Quantum Gravity).
O nome de teoria das cordas abarca, na verdade, um
conjunto variado de modelos teóricos. O que os une é o
fato de postularem que os constituintes elementares da
matéria não seriam corpúsculos de dimensão nula, isto é,
puntiformes, mas estruturas infinitesimais de uma
dimensão, fios ou minúsculas cordas vibrantes. As
partículas elementares do Modelo Padrão se tornariam
assim a manifestação mensurável do movimento no
espaço dessas minúsculas cordinhas. A teoria permitiria
devolver unidade às interações fundamentais e unificar a
mecânica quântica e a relatividade geral, desde que se
postule um número elevado de dimensões espaciais
extra. Esses novos graus de liberdade seriam acessíveis
apenas nos primeiros instantes de vida do universo,
quando as energias em jogo eram enormes. No mundo
frio e velho que nos cerca, elas estão encerradas em
dimensões tão pequenas que nem usando as colisões do
lhcfoi possível explorá-las.
O primeiro a propor a teoria das cordas, no final dos
anos 1960, foi o grande físico teórico italiano Gabriele
Veneziano, que então trabalhava no Cern. Edward Witten,
físico e matemático norte-americano e professor em
Princeton, é, por sua vez, considerado o pai de alguns
dos modelos mais completos e promissores, como a
teoria das supercordas e a teoria M, uma generalização
posterior da mesma abordagem.
No outro campo, o da gravidade quântica em loop, o
ponto de partida é totalmente diferente. A atenção se
concentra não tanto na composição da matéria mas nas
propriedades do cenário em que ela se apresenta, o
próprio espaço-tempo. A estrutura regular postulada por
Einstein se torna um sistema finamente granular. O
espaço, observado em ínfimas dimensões, não seria mais
um continuum como nos pareceu até agora, mas teria
uma trama descontínua de minúsculos grãos, chamados
loops ou anéis. Partindo dessa hipótese, a quantização da
gravidade se torna uma consequência natural, porém
descobrimos que o tempo desaparece das equações
fundamentais, mais ou menos como havia acontecido
com a equação de Wheeler-DeWitt.
Os primeiros a propor a chamada lqg, em 1988, foram
Lee Smolin, norte-americano, atualmente no Perimeter
Institute de Waterloo, nas proximidades de Toronto, no
Canadá, e Carlo Rovelli, um físico teórico italiano, hoje
muito conhecido também pelos seus livros de divulgação
científica, difundidos no mundo todo.
Causou um grande impacto o fato de que, na lqg, as
equações fundamentais que descrevem o mundo não
contêm a variável tempo. No nível de constituintes de
base, o tempo se tornaria um conceito inútil. Para os
defensores de lqg, entenderíamos melhor como o
universo funciona na sua trama mais sutil se
abandonássemos esse fardo inútil de uma vez por todas.
Afirmações muito peremptórias, frequentemente
amplificadas pelos meios de comunicação de massa,
produziram manchetes de efeito: “O tempo não existe”,
“A física não precisa do tempo”, “O tempo é só uma
ilusão”. Por essa razão, Smolin e Rovelli foram apelidados
de “os assassinos do tempo”.
Nosferatu

Não é a primeira adaptação cinematográfica do conto de


Bram Stoker, mas o filme impressionou tanto o
imaginário coletivo que ainda hoje, a quase cem anos de
distância, continua a ser fonte de inspiração para todos
os filmes do gênero horror. Com o personagem do
misterioso conde Orlok, Friedrich Wilhelm Murnau,
mestre do expressionismo alemão, criou um arquétipo de
horror. Nosferatu, o “nunca-morto” que se refugia da luz
do Sol dentro de um caixão e se alimenta de sangue
humano, tornou-se o precursor de uma longa série de
vampiros cinematográficos que continuam a aterrorizar e
ao mesmo tempo fascinar gerações de espectadores.
Nascem dessa obra-prima as infinitas variantes do
relato desse ser monstruoso, atormentado e infeliz,
condenado a uma existência de solidão. Um personagem
muitas vezes angustiado justamente por causa da sua
condição de imortalidade e pela necessidade de matar
todas as noites a fim de perpetuá-la.
Como na saga do “nunca-morto”, o tempo também
parece renascer continuamente. Levanta-se do caixão e
segue circulando entre nós, desfazendo qualquer ilusão e
frustrando as tentativas de matá-lo e sepultá-lo
definitivamente.
Também para as teorias científicas que postulam o
desaparecimento, como a lqg, na verdade as coisas são
bem mais complicadas do que parecem. Antes de mais
nada, os próprios defensores ressaltam enfaticamente
que o tempo não desaparece tout court: quando o
espaço se desfaz numa espécie de espuma infinitesimal,
o tempo desaparece da camada fundamental, ou seja,
não é mais um componente crucial do mundo
microscópico. Mas eles também evitam negar a realidade
do tempo, que vemos em ação no mundo. Ele apenas
surgiria como propriedade secundária, derivada, que só
nasce quando os sistemas se tornam complexos. Valeria
somente quando vastos aglomerados de partículas e
átomos se agregam no espaço. O tempo térmico, aquele
regulado pela termodinâmica e pela entropia que cresce
indefinidamente, permanece como um dos atores
decisivos do mundo macroscópico. A perda da sua
identidade como elemento constituinte não enfraquece a
sua ação incessante nos processos de degradação,
envelhecimento e morte que caracterizam o nosso
universo material.
É preciso também lembrar que, tanto no caso da teoria
das cordas quanto para a lqg, trata-se somente de
conjecturas, sem dúvida elegantes mas de forma alguma
provadas experimentalmente. Enquanto não houver
resultados experimentais convincentes, ninguém pode
fazer afirmações peremptórias como as que se leem em
alguns jornais, tipo “A física nos diz que vivemos num
mundo de dez dimensões” ou “A ciência descobriu que o
tempo é só uma ilusão”.
O nosso trabalho, como físicos experimentais, é levar a
sério todos os modelos desenvolvidos pelos físicos
teóricos, que no caso da gravidade quântica são
dezenas. Sabemos que a maioria dessas conjecturas está
errada, até porque umas com frequência contradizem as
outras, mas nós, democraticamente, submetemos todas
à verificação. Serão os dados experimentais que
decidirão quem está certo e quem está errado. É preciso
levar em consideração até mesmo a hipótese de que
todas estejam erradas, porque a natureza poderia ter
escolhido caminhos totalmente diferentes dos
imaginados até agora. Isso aconteceu outras vezes no
passado e, portanto, devemos estar preparados também
para este cenário: que os dados experimentais nos
apresentem algo totalmente inesperado, um novo
fenômeno que nenhum teórico havia previsto.
O dado realmente irrefutável é que até agora, após
anos de pesquisas, não foi possível trazer provas
convincentes em apoio de uma ou da outra hipótese
sobre a gravidade quântica. Ambas são plausíveis, mas
nenhuma das duas foi verificada. Não se encontraram
novos estados da matéria que pudessem indicar a
presença de dimensões espaciais extra, nem as
partículas supersimétricas previstas pela teoria das
supercordas. Os “grãos de espaço” da lqg são tão
pequenos, 10−35 metros, que não se pode pensar em
poder observá-los diretamente, mas, se a teoria fosse
verdadeira, haveria sutis efeitos em escala cósmica.
Contudo, nenhum desses estranhos fenômenos jamais foi
observado.
Isso pode ter ocorrido porque os nossos instrumentos
não têm sensibilidade suficiente, ou porque uma ou outra
dessas elegantes conjecturas está completamente
errada. Ou talvez a solução correta ainda não tenha sido
imaginada, e então as duas teorias seriam ambas falsas.
Viver na dúvida e na incerteza é uma das prerrogativas
mais fascinantes do nosso trabalho.

Nesse meio-tempo, confirmando a rapidez com que as coisas


podem evoluir no campo das conjecturas, Lee Smolin, um
dos mais impiedosos “assassinos do tempo”, parece ter
se arrependido da transgressão. Em alguns trabalhos
recentes, ele muda radicalmente de perspectiva,
propondo uma nova versão da teoria em que o tempo
volta a ser uma variável fundamental e o espaço é que
se torna uma ilusão.
Smolin toma como ponto de partida o entanglement,
ou seja, o entrelaçamento quântico, um processo que
une estados materiais correlatos. É um dos tantos
fenômenos incompreensíveis da física dos quanta que,
mesmo tendo sido verificado em nível experimental
numa infinidade de casos, ainda não sabemos explicar.
Quando se produz num acelerador uma dupla partícula-
antipartícula, as propriedades combinadas do sistema
são conhecidas, mas as características individuais das
partículas continuam indeterminadas até se efetuar uma
medição. A mecânica quântica nos diz que as duas
partículas oscilarão enquanto estiverem voando. Depois
de se separar, poderão seguir também em direções
opostas, passando por todos os estados possíveis e
transformando-se continuamente uma na outra. Essa
total liberdade acaba no momento em que uma das duas
interage com um detector. A medição a faz colapsar num
estado bem definido, suponhamos que de antipartícula.
Nesse ponto, e disso podemos ter certeza, a sua
companheira, talvez a uma distância de quilômetros, não
será mais livre: a partir daí deverá obrigatoriamente se
comportar como partícula.
O entanglement parecia sugerir uma ação instantânea
à distância porque não se tem a menor ideia de como a
informação pode se transmitir a velocidade infinita.
Alguns o consideram prova do caráter não local da teoria,
outros pensam numa nova lei de conservação que nos é
completamente desconhecida.
Em vez de uma ação sem tempo, Smolin considera isso
a prova mais evidente de um fenômeno indiferente ao
espaço, que funciona como se a distância espacial entre
duas partículas não existisse. E aí se inverte o ponto de
vista: o tempo é um constituinte fundamental, enquanto
o espaço é um subproduto, uma estrutura que emerge
dele e adquire as características de uma ilusão.
Essencialmente o universo é feito de eventos que entram
em relação com outros eventos, e esse conjunto constitui
uma teia de relações. O espaço nasce como uma
descrição grosseira e muito aproximativa dessa rede de
relações.
Como se vê, a criatividade dos cientistas em procurar o
caminho certo para vencer o desafio do século, qual seja,
encontrar a teoria de gravidade quântica que será
verificada pelos experimentos, não tem limites. Em
algumas dessas hipóteses, o tempo parece se
desvanecer no mundo das ilusões, mas a conjectura, por
mais fascinante que seja, não só nunca foi verificada
como também deixaria em aberto toda uma série de
problemas.
Pelo que sabemos, o tempo tem uma função de imensa
importância, e não só no mundo dos corpos
macroscópicos, onde a matéria se transforma sem
solução de continuidade e os organismos biológicos
envelhecem e morrem. Como vimos, o tempo segue
tendo papel essencial também no mundo microscópico
das partículas elementares. Está estreitamente ligado ao
espaço na relatividade geral, à energia no princípio da
incerteza, às poderosas simetrias gerais de carga e
paridade que governam os processos elementares.
Tirando-se o tempo, muitas leis fundamentais da física,
tão essenciais que constituem uma espécie de espinha
dorsal do nosso universo material, correm o risco de
oscilar, pondo em risco a estabilidade do edifício inteiro.
Apesar das inúmeras tentativas de matá-lo ou
marginalizá-lo definitivamente, Chronos dá ainda
inequívocos sinais de grande vitalidade.
Epílogo
O tempo breve

Naquele mês de janeiro de 1941 fazia um frio do cão em


Görlitz, uma cidadezinha no extremo leste da Alemanha,
bem na fronteira com a Polônia. Desde que Hitler
anexara a Silésia, os exércitos do Terceiro Reich haviam
estabelecido ali um campo de prisioneiros chamado
Stalag viii-A. Com a eclosão do conflito, o que fora um
acampamento da Hitlerjugend foi ampliado e
transformado para encarcerar milhares de poloneses
capturados durante a primeira fase da guerra. Em
seguida, os poloneses foram transferidos para outros
campos e para Görlitz foram remetidos os soldados
belgas e franceses capturados durante a campanha da
França. Lá ficaram recolhidos, em condições miseráveis,
mais de 30 mil prisioneiros, entre eles um jovem músico
francês, Olivier Messiaen.
Ele descobrira a sua grande paixão pela música desde
criança, ouvindo Pelléas et Mélisande, uma ópera em
cinco atos de Claude Debussy, o filho do communard.
Aos onze anos entrara para o Conservatório de Paris,
onde fora um dos melhores alunos e obtivera prêmios e
reconhecimentos. É um excelente pianista, compondo
músicas, tocando como organista em várias igrejas da
capital. E um católico fervoroso, com grande apego à
tradição e paixão por todas as formas musicais, inclusive
as sonoridades primitivas do mundo grego e os ritmos da
tradição indiana. Tem um interesse tão grande em
estudar o canto dos pássaros que acabou se tornando
um exímio ornitologista. Em 1932, aos 24 anos, casa-se
com Claire Delbos, violinista e compositora, também
aluna do conservatório. São loucamente apaixonados,
apresentam-se juntos, e Olivier compõe músicas para
celebrar a felicidade deles, por exemplo quando do
nascimento do filho Pascal, em 1937.
Com a chegada da guerra, esse quadro idílico se
desintegra por completo. Messiaen é convocado para o
exército como soldado raso, ainda que como músico no
centro musical e teatral do Segundo Exército. Com outros
artistas, tem a tarefa de organizar espetáculos para
levantar o moral das tropas, mas as Panzerdivisionen da
Blitzkrieg de Hitler destroçam o sistema de defesa
francês e Messiaen é feito prisioneiro junto com milhares
de outros soldados.
A vida no campo de Görlitz é duríssima. As condições
são desumanas e diariamente dezenas de prisioneiros
perdem a vida. O ânimo daqueles jovens soldados é
tomado pelo mais sombrio desespero, nenhum deles
sabe se conseguirá rever os entes queridos ou se estará
vivo no dia seguinte.
Naquelas terríveis condições, Messiaen se lança de
cabeça na composição de uma música de câmera e, ideia
ainda mais louca, decide executá-la no campo, para os
prisioneiros. É o dia 15 de janeiro de 1941 e o
termômetro fora do barracão marca vários graus abaixo
de zero; Messiaen começa a tocar piano, acompanhado
por outros três músicos, eles também prisioneiros: Jean
Le Boulaire no violino, Henri Akoka no clarinete e Étienne
Pasquier no violoncelo. Os instrumentos são
improvisados, faltam algumas cordas aos de arco e as
teclas do piano estão duras devido ao frio. É a primeira
execução de Quarteto para o fim dos tempos.
Messiaen o compusera inspirando-se nos versículos do
Apocalipse de São João. Decidira utilizar o curto tempo
que lhe restava, cuja duração ninguém poderia prever,
para compor uma obra que tentava resgatar aqueles dias
terríveis, vividos no horror. Graças à música, ele e os
outros prisioneiros seriam levados para além do frio, da
fome, das humilhações cotidianas. A reflexão musical
sobre o fim do tempo serviria para dar conforto ao
compositor, aos músicos que a executavam e
principalmente às centenas de prisioneiros que ouviam a
obra, em absoluto silêncio, emudecidos e em lágrimas.
Como Jaromir Hladik, também Olivier Messiaen havia
decidido usar os poucos instantes que o separavam do
impacto dilacerador das balas para presentear a si, aos
companheiros de desventura e ao mundo inteiro com
uma nova obra de arte. Em torno desse lampejo de
beleza, mesmo os grupos humanos mais desagregados e
humilhados poderiam encontrar conforto e reconstruir
um senso de comunidade.
As histórias de Hladik e Messiaen nos lembram que o
tempo da nossa existência, com que tanto nos
preocupamos, nos é concedido sem nenhuma
contrapartida, sem que se peça nada em troca. Grande
ou pequeno que seja, é um patrimônio que nos foi
confiado incondicionalmente. Todos reclamamos do
passar do tempo e nos angustiamos com a ideia de que a
nossa existência pode acabar demasiado cedo,
esquecendo-nos de que não tivemos de fazer nada para
ingressar no tempo das gerações. Um mecanismo
biológico e material muito maior do que nós determinou
que fizéssemos parte desse longo ciclo de alternância de
vida e de morte. Quando ingressamos, por puro acaso,
no ritmo das genealogias, devemos tratar apenas de
utilizar bem o tempo que foi gratuitamente posto à nossa
disposição. Mesmo que sejam poucos instantes.
Fica a pergunta sobre o sentido mais profundo do
tempo. Depois de analisar os numerosos aspectos sobre
os quais a ciência moderna reuniu uma impressionante
quantidade de dados, ainda restam muitíssimas
interrogações em aberto.
Na verdade, ainda não sabemos o que é o tempo, mas
vimos que ele tem um papel fundamental em todos os
ângulos explorados pela física — e é útil lembrar que são
cerca de quarenta ordens de grandeza. Decerto muito
tempo irá se passar antes de conseguirmos descrever o
mundo que nos cerca sem recorrer a esse conceito.
Por enquanto, ninguém pode dizer se algum dia
chegará o tempo em que a ciência não precisará do
tempo.
Agradecimentos

Desejo agradecer às várias pessoas que me forneceram


indicações para a realização deste livro.
Gostaria, antes de mais nada, de relembrar Remo
Bodei, um amigo que nos deixou recentemente e com
quem estive em encontros com o público, que foram
igualmente ocasiões para trocas de ideias e
interessantes discussões. Algumas delas ressoam em
várias partes do livro.
Um agradecimento especial a Angelo Tonelli, que foi
meu guia quando precisei me aventurar nos meandros
mais ocultos da concepção de tempo para os antigos
gregos.
Sou agradecido a Emmanuela Minnai e Alessia Dimitri
pelo entusiasmo com que me levaram a trabalhar neste
livro.
Sou grato aos meus caríssimos amigos Beppe Corlito,
Nanni Odoni, Antonello Mattone, Andreina Tocco e
Antonio Capitta pelos seus conselhos e sugestões.
Um agradecimento especial, por fim, a Luciana, não só
por ter fornecido uma quantidade de contribuições
preciosas, mas também por ter lido o manuscrito com
cuidado e atenção, apontando-me incompletudes e
quedas de tom. Sem a sua incansável ajuda e o
encorajamento contínuo para melhorar tudo, este livro
não teria visto a luz.
adolfo frediani

guido tonelli é professor da Universidade de Pisa, na Itália, e


cientista visitante do Cern (Organização Europeia para a
Pesquisa Nuclear), em Genebra, Suíça. Por suas contribuições
à física, recebeu distinções diversas, entre elas o
Fundamental Physics Prize, prêmio de maior valor no mundo
acadêmico. Dele, a Zahar publicou Gênesis.
Copyright © Giangiacomo Feltrinelli Editore, Milão
Primeira edição: abril de 2021

Publicado sob licença de Giangiacomo Feltrinelli Editore, Milão, Itália

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Tempo: Il sogno di uccidere Chrónos

Capa e ilustração
Rafael Nobre

Preparação
Júlia Lobão

Revisão técnica
Alexandre Cherman

Revisão
Carmen T. S. Costa
Thiago Passos

Versão digital
Rafael Alt

isbn 978-65-5979-136-1

Todos os direitos desta edição reservados à


editora schwarcz s.a.

Praça Floriano, 19, sala 3001 — Cinelândia


20031-050 — Rio de Janeiro — rj
Telefone: (21) 3993-7510
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twitter.com/editorazahar
Gênesis

Tonelli, Guido
9786557821183
240 páginas

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Um relato fascinante que explica os sete


momentos mais significativos da criação do
Universo a partir das últimas descobertas da
física.

Evocando o mito bíblico da criação, Guido Tonelli narra


aqui a extraordinária história do nascimento do mundo e
da vida em nosso planeta. Em linguagem ágil e
descomplicada, o físico italiano — um dos pais da
descoberta do bóson de Higgs — conduz o leitor pelos
sete momentos mais significativos da criação do cosmo,
explicando eventos e conceitos à luz da ciência do século
XXI.
A origem do universo está no cerne da nossa experiência
de mundo, gerando desde sempre encantamento e a
busca de uma questão apaixonante: o que aconteceu
exatamente durante aqueles primeiros momentos?
Gênesis é uma viagem vertiginosa de volta no tempo, ao
primeiro mistério das coisas, para nos mostrar de que
modo o cosmo foi criado por uma transformação sutil no
estado de vácuo, que gradualmente produziu espaço e
tempo, matéria e energia, os planetas, as galáxias e
todos os seres vivos. Ao explicar a física fundamental do
mundo, Tonelli se encanta com a profunda maravilha de
nossa existência.

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O contrato racial

Mills, Charles W.
9786559791378
232 páginas

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"O sistema político mais importante da história


global recente — o sistema de dominação através
do qual os brancos historicamente governaram e,
em certos aspectos importantes, continuam a
governar pessoas não-brancas — não é visto de
maneira alguma como um sistema político. Este
livro é uma tentativa de redirecionar seu olhar, de
fazer você ver o que, de certa forma, sempre
esteve lá."

O contrato racial é uma das obras pioneiras — e mais


importantes — de um vasto campo de pesquisas e
produção intelectual que vem se consolidando sob a
rubrica de teoria racial crítica (critical race theory).
De forma ágil e precisa, Mills analisa um seleto grupo de
expoentes da teoria do contrato social clássico (Hobbes,
Locke, Rousseau e Kant) a fim de demonstrar que o
Iluminismo — bússola moral e cognitiva da modernidade
ocidental — é a face filosófica de uma política identitária
branca.
Lançada originalmente em 1997, a obra tem desde então
ensejado uma profunda revisão nos modos de se
conceber o surgimento do Estado, da democracia e da
esfera pública nas sociedades modernas. Não por acaso,
as teses de Mills influenciaram decisivamente
intelectuais como Sueli Carneiro, Lia Vainer Schucman e
Denise Ferreira da Silva, cujas obras têm possibilitado a
construção de um novo marco interpretativo acerca do
lugar das relações raciais na formação do Brasil.

"Um dos mais importantes estudos já escritos sobre a


relação entre racismo e sistema político. Com rigor e
concisão, Charles Mills explica não apenas como uma
sociedade mais justa deveria ser formada, mas
sobretudo como veio a existir uma sociedade tão injusta.
O lançamento da obra no Brasil — mais de um quarto de
século depois da publicação original — ajuda a suprir
uma importante lacuna no debate sobre antirracismo em
nosso país." — Sueli Carneiro

"O que faz parecer natural o 'privilégio' branco de


dominar os recursos econômicos e os mecanismos
políticos, jurídicos e culturais que regulam a vida de
outros grupos raciais no ocidente? O contrato racial
oferece uma brilhante resposta a esta pergunta. É obra
incontornável para compreender como se deu esse pacto
de poder no qual todas as pessoas brancas, mesmo sem
serem signatárias, são beneficiárias." — Lia Vainer
Schucman
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Como as democracias morrem

Levitsky, Steven
9788537818053
272 páginas

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Uma análise crua e perturbadora das ameaças às


democracias em todo o mundo.

Democracias tradicionais entram em colapso? Essa é a


questão que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt – dois
conceituados professores de Harvard – respondem ao
discutir o modo como a eleição de Donald Trump se
tornou possível.
Para isso comparam o caso de Trump com exemplos
históricos de rompimento da democracia nos últimos
cem anos: da ascensão de Hitler e Mussolini nos anos
1930 à atual onda populista de extrema-direita na
Europa, passando pelas ditaduras militares da América
Latina dos anos 1970. E alertam: a democracia
atualmente não termina com uma ruptura violenta nos
moldes de uma revolução ou de um golpe militar; agora,
a escalada do autoritarismo se dá com o
enfraquecimento lento e constante de instituições
críticas – como o judiciário e a imprensa – e a erosão
gradual de normas políticas de longa data.
Sucesso de público e de crítica nos Estados Unidos e na
Europa, esta é uma obra fundamental para o momento
conturbado que vivemos no Brasil e em boa parte do
mundo e um guia indispensável para manter e recuperar
democracias ameaçadas.

"Talvez o livro mais valioso para a compreensão do


fenômeno do ressurgimento do autoritarismo ... Essencial
para entender a política atual, e alerta os brasileiros
sobre os perigos para a nossa democracia." – Estadão

"Abrangente, esclarecedor e assustadoramente


oportuno." – The New York Times Book Review

"Livraço ... A melhor análise até agora sobre o risco que a


eleição de Donald Trump representa para a democracia
norte-americana ... [Para o leitor brasileiro] a história
parece muito mais familiar do que seria desejável." –
Celso Rocha de Barros, Folha de S. Paulo

"Levitsky e Ziblatt mostram como as democracias podem


entrar em colapso em qualquer lugar – não apenas por
meio de golpes violentos, mas, de modo mais comum (e
insidioso), através de um deslizamento gradual para o
autoritarismo. Um guia lúcido e essencial." – The New
York Times

"O grande livro político de 2018 até agora." – The


Philadelphia Inquirer
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Diferentes

Waal, Frans de
9786559791330
576 páginas

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Pelas lentes de um dos mais renomados


primatologistas da atualidade, uma nova
perspectiva sobre as relações entre sexo e gênero.
Com humor, clareza e empatia, este livro procura
ampliar o debate, abraçando as diferenças em vez
de negá-las.

As diferenças entre os sexos nos animais e nos humanos


suscitam questões que estão no cerne de quase todos os
debates sobre gênero na nossa espécie. O
comportamento de homens e mulheres difere de maneira
natural ou socialmente construída? E quanto ele é
realmente diverso?
Em Diferentes, Frans de Waal baseia-se em décadas de
estudo do comportamento de grandes primatas para
defender que, apesar da ligação entre gênero e sexo
biológico, a biologia não sustenta automaticamente os
papéis tradicionais de gênero nas sociedades humanas.
A partir da observação de chimpanzés e bonobos —
parentes geneticamente muito próximos de nós —, De
Waal analisa nossa história evolutiva comparada à deles
e desafia crenças amplamente aceitas sobre
masculinidade e feminilidade, além de suposições
comuns sobre autoridade, cooperação, competição e
laços parentais. Ele abrange também temas que vão do
comportamento materno e paterno à orientação sexual,
passando pela identidade de gênero e pelas limitações
do binarismo, sempre ilustrando seus argumentos com
exemplos irresistíveis das personalidades e ações dos
animais que acompanhou de perto.

"Um livro brilhante que traz uma abordagem científica,


compassiva e equilibrada sobre sexo e gênero." — Yuval
Noah Harari

"Movendo-se com fluidez e graça entre exemplos animais


e humanos, Frans de Waal demonstra como preconceitos
sociais comuns que consideramos 'naturais' são, na
verdade, tudo menos isso." — Andrew Solomon

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O Negócio do Jair

Piva, Juliana Dal


9786557826669
328 páginas

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A mais completa investigação sobre as origens do


patrimônio político e financeiro de Jair Bolsonaro e
sua família.

Resultado de mais de três anos de apuração, O Negócio


do Jair: A história proibida do clã Bolsonaro desvenda o
passado secreto da família que hoje comanda o Brasil. A
jornalista Juliana Dal Piva parte do escândalo das
rachadinhas exposto pelo caso Queiroz, a partir de
dezembro de 2018, para contar uma história que
remonta à entrada de Jair Bolsonaro na política na
década de 1990.
No centro do passado que o clã tenta abafar, está um
esquema de corrupção conhecido entre os participantes
como o "Negócio do Jair". O arranjo ocorria nos gabinetes
funcionais ocupados pela família de Bolsonaro em seus
mandatos políticos, seja de vereador, deputado estadual
ou federal, e envolvia seus três filhos mais velhos, as
duas ex-esposas e a atual, amigos, familiares — muitos
deles atuando como funcionários fantasmas —, além de
advogados e milicianos.
Com base em depoimentos exclusivos, cópias sigilosas
dos autos judiciais, mais de cinquenta entrevistas, mil
páginas em documentos, vídeos e gravações de áudio, a
autora demonstra como, à sombra dos grandes
esquemas partidários, o clã acumulou milhões de reais e
construiu o projeto político autoritário e regressivo que
conduziria o chefe da família ao posto mais alto da
República.

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