Impactos de Mudanças No Financiamento Eleitoral Na Subrepresentação de Mulheres e Pessoas Negras

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IMPACTOS DE MUDANÇAS NO FINANCIAMENTO ELEITORAL NA

SUBREPRESENTAÇÃO POLÍTICA DE MULHERES E PESSOAS NEGRAS


NATÁLIA LUCCIOLA
https://orcid.org/0000-0001-8811-4923
<[email protected]>
Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO: A compreensão dos determinantes da sub-representação política de mulheres e


de pessoas negras no poder institucional no Brasil persiste sendo um desafio para a Ciência
Política nacional. Entre as explicações exploradas por pesquisadores, o sistema de
financiamento de campanhas eleitorais passou por mudanças drásticas ao longo dos últimos
anos. Em teoria, parte delas buscava contribuir para romper com a exclusão política de
grupos minorizados. Este estudo analisa os resultados das eleições para deputado federal
entre 2014 e 2022 com o objetivo e emprega o método de diferenças em diferenças para
estimar o impacto da mudança no financiamento de campanha sobre a representação política
de mulheres e pessoas negras. Seus resultados indicam que o novo sistema de financiamento
contribui para aumentar as chances eleitorais de candidaturas femininas, sem, no entanto,
dar evidências de efeito similar para candidatos pretos e pardos.

Palavras-chave: Gênero, raça, sub-representação, financiamento, eleições.

IMPACTS OF CHANGES IN ELECTORAL FINANCING ON THE POLITICAL


UNDERREPRESENTATION OF WOMEN AND BLACK INDIVIDUALS

ABSTRACT: Understanding the determinants of political underrepresentation of women


and black individuals in institutional power in Brazil continues to pose a challenge for the
national Political Science community. Among the explanations explored by researchers, the
campaign financing system has undergone drastic changes over the past years. In theory,
some of these changes aimed to contribute to breaking the political exclusion of marginalized
groups. This study analyzes the results of federal deputy elections between 2014 and 2022
with the objective of employing the differences-in-differences method to estimate the impact
of the campaign financing change on the political representation of women and black
individuals. Its findings indicate that the new financing system contributes to increasing the
electoral chances of female candidates, albeit without providing evidence of a similar effect
for black and mixed-race candidates.

Keywords: Gender, race, underrepresentation, campaign financing.


INTRODUÇÃO
Apesar de serem maioria na população, mulheres (51,8%) e pessoas negras (56%),
ainda estão ausentes dos espaços onde se exerce o poder político institucionalizado. Apesar
disso, enquanto este artigo é escrito está em discussão no Congresso Federal uma Proposta
de Emenda à Constituição Federal1 que, entre outras coisas, enfraquece os poucos
mecanismos institucionais criados ao longo dos últimos anos no sentido de fortalecer a
representação negra e feminina do legislativo nacional.

Em 2022, as mulheres alcançaram seu maior percentual histórico de eleição para a


Câmara dos Deputados, ocupando 18,2% das cadeiras disponíveis. Somente 3,2% serão
ocupadas por mulheres pardas e 2,5%, pretas. Homens pretos eleitos equivalem a 2,7% da
composição da Câmara, enquanto pardos totalizaram 17,9% dos eleitos. Pesquisadores já
buscaram diferentes alternativas para explicar a persistência histórica desse quadro, desde a
falta de candidaturas suficientes nos pleitos aos possíveis vieses estereotipados de eleitores.
A literatura aponta para o financiamento eleitora como fator determinante para a
elegibilidade de candidatos no Brasil (Samuels, 2001). Há evidências que de como a falta de
acesso a recursos para campanha explicaria a falta de competitividade eleitoral de mulheres
e pessoas negras, mesmo diante do crescimento desse perfil de candidatura (Rios e Paz,
2021). Esta restrição impõe-se como um obstáculo para grupos minorizados que têm,
historicamente, menos capital político, menor patrimônio próprio e com potenciais
financiadores (Bueno e Dunning, 2013; Campos e Machado, 2015).

Mudanças legislativas foram adotadas desde a redemocratização para ampliar o


acesso à representação política por parte de grupos sociais sub-representados, em especial de
mulheres. É o caso das cotas para gênero sobre listas eleitorais, criadas em 1995 e alteradas
posteriormente com o intuito, em teoria, de torná-las mais efetivas. No entanto, mais
determinante sobre o sistema eleitoral brasileiro, inclusive para a questão da sub-
representação, pode ter sido a alteração da regulamentação sobre o financiamento de
campanhas.

O país, que costumava ter campanhas entre as mais caras do mundo, transformou o
perfil do financiamento eleitoral, depois que denúncias de corrupção ligadas ao investimento
corporativo em campanhas levaram o Supremo Tribunal Federal (STF) a vedá-lo. O perfil

1
https://www.camara.leg.br/noticias/997047-pedidos-de-vista-adiam-a-votacao-da-pec-que-anistia-
partidos-por-descumprirem-cota-
feminina/#:~:text=Um%20pedido%20de%20vista%20coletivo,ra%C3%A7a%20nas%20elei%C3%A7%
C3%B5es%20de%202022., consultado em 18/09/2023
se transformou, de essencialmente privado e corporativo, para majoritariamente público.
Essa mudança acirrou a disputa por recursos financeiros, agora mais escassos.

Ainda que a fonte agora fosse o partido, o perfil de candidatos que conseguiam
acessá-las não parece ter se alterado. Mulheres, negros e outros grupos minoritários
permaneceram subfinanciados. Somente após as eleições de 2018, novas decisões emanadas
pelo próprio STF e pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinaram que os recursos
financeiros aplicáveis às campanhas fossem distribuídos pelos partidos de forma
proporcional, considerando-se recortes de gênero e de raça.

Este trabalho de pesquisa pretende investigar se o novo marco normativo sobre o


financiamento de campanha, vigente pela primeira vez em eleições para deputado federal,
contribuiu para tornar candidaturas de mulheres e pessoas negras mais competitivas. Qual o
efeito das mudanças e em que medida elas foram suficientes para promover uma
representação política mais equânime, considerando-se gênero e raça?

Tentando responder esta pergunta, este trabalho conduz uma análise quantitativa de
diferenças-em-diferenças considerando resultados de eleições para deputado federal
realizadas entre 2014 e 2022, período que compreende eleições antes e depois das medidas
que impactaram o financiamento de campanha de candidaturas femininas e negras. Os
resultados indicam haver evidências empíricas de que a mudança já produziu efeitos positivos
na probabilidade de candidaturas femininas terem sucesso eleitoral. Não há evidências
estatísticas até o momento deste mesmo efeito com relação às mudanças com recorte de
raça, que ocorreram posteriormente.

Após esta introdução, o artigo apresenta uma breve revisão da literatura dedicada à
pesquisa sobre a relação entre financiamento eleitoral e a sub-representação descritiva de
grupos sociais. A seguir, são descritas as principais mudanças normativas que impactaram o
financiamento de campanhas no Brasil no período após 2014 e analisados os dados
descritivos sobre os resultados eleitorais no período considerado. A seção seguinte apresenta
a metodologia empregada e analisa os resultados do modelo de diferenças-em-diferenças.
Por fim, os resultados são discutidos à luz das hipóteses levantadas. A conclusão encerra o
artigo apresentando limites do trabalho realizado e indicando caminhos para pesquisas
futuras no tema.
A RELAÇÃO ENTRE SUB-REPRESENÇÃO E FINANCIAMENTO
ELEITORAL
A maneira pela qual o poder político se organiza numa sociedade tem efeitos diretos
sobre quem tem acesso a ocupar tais posições. O caso brasileiro é o de um sistema muito
centrado na figura do candidato, pessoalmente, em oposição a sistemas em que os partidos
políticos têm relevância central. O sistema eleitoral proporcional de lista aberta implica numa
forte competição entre candidatos de um mesmo partido pela preferência do eleitor, já que
a ordem de votação obtida individualmente será determinante para a definição de quais
candidatos serão contemplados pelas vagas a serem obtidas pelo partido de forma
proporcional (Calvo et al, 2015). O próprio ato do voto é centrado no candidato
individualmente, já que depende de o eleitor ter consigo o número do candidato para digitar
na urna eletrônica, ao invés de escolher um entre uma lista de candidatos apresentada, como
ocorre em outros países.

Outra característica marcante do sistema eleitoral brasileiro decorrente do sistema


eleitoral de lista aberta é a forte tendência para fragmentação partidária e formação de
coligações. Segundo Calvo, Guarnieri e Limongi (2015), as regras eleitorais criam incentivos
para que partidos pequenos adotem como estratégia concentrar-se em uma candidatura
específica, ao invés de diversificá-las. Novamente, há um reforço da personalização do voto
pelas instituições.

A personalização da competição eleitoral tem como efeitos o encarecimento das


campanhas individuais e, com isso, a consequente exclusão permanente de candidatos
marginalizados (Samuels, 2001). É o caso de mulheres, negros e indígenas, grupos que
historicamente não têm acesso aos recursos financeiros ou políticos necessários para
tornarem-se candidatos efetivamente competitivos (Campos e Machado, 2015; Bueno e
Dunning, 2013; Janusz, 2016). Além disso, as mulheres, assim como negros de ambos os
gêneros, costumam enfrentar como barreiras de entrada na política institucional a falta de
capital político – de rede de influência, de acesso às posições de liderança em partidos, ou
diretamente de recursos financeiros para promover campanhas (Sacchet e Speck, 2012;
Campos e Machado, 2015; Rios e Paz, 2021).

A falta de financiamento para campanhas competitivas explica, em grande medida, o


pouco sucesso eleitoral de mulheres e outros grupos minoritários (Bueno e Dunning, 2013;
Janusz, 2016). É por meio do uso desses recursos financeiros que pode ocorrer o contato
entre candidatos e eleitores, para que os primeiros possam divulgar suas propostas para os
últimos, que têm direito a conhecer seus representantes em potencial para tomar a decisão
sobre o voto. A má distribuição de recursos entre candidatos homens e mulheres sempre foi
um ponto decisivo no processo de afastamento de mulheres da probabilidade de conseguir
serem eleitas. Novamente, o mesmo tipo de candidato é favorecido – aquele que já detém
acesso aos espaços de poder, seja econômico, seja partidário (Nicolau, 2019).

Como evidenciam os estudos conduzidos por Campos e Machado (2015) a respeito


dos fatores que explicam a sub-representação entre candidatos não brancos, essas
candidaturas recebiam em média 37% menos recursos do que candidatos brancos, mesmo
controlando-se por diferenças de gênero e de formação educacional. Chama ainda mais
atenção a disparidade de gênero vigente até então, uma vez que as mulheres recebiam 69%
menos recursos do que os homens, mesmo considerando-se a raça do candidato e formação.

Corroborando essas sugestões, as evidências apresentadas por Janusz (2016) são


ainda mais robustas, tanto porque os resultados foram obtidos com base na primeira leva de
dados de autodeclaração de cor e raça pelos próprios candidatos, quanto por ampliarem a
validade externa dos achados, já que são usados modelos de inferência causal e não de
experimentos com candidaturas e eleições fictícias, como no caso de Bueno e Dunning
(2013). Apesar de convergir quanto à importância do gasto eleitoral enquanto preditor do
sucesso eleitoral, os dois artigos divergem em suas conclusões sobre o papel da raça/cor
sobre o comportamento eleitoral. Enquanto o primeiro autor encontra evidências de que,
tudo o mais constante, eleitores tendem a votar mais em candidatos brancos, Bueno e
Dunning não encontram em seus experimentos este viés discriminatório.

Cabe ressaltar que os resultados obtidos pelos pesquisadores que usaram dados
observacionais das eleições brasileiras se referem às eleições legislativas municipais de 2012,
quando a principal fonte de financiamento para campanhas era a doação privada de caráter
corporativo. As mudanças normativas que viriam adiante alterariam este cenário, ao menos
em parte. Até 2015, o financiamento de campanhas políticas no Brasil tinha como fonte
predominante doações privadas corporativas – doações estas que ora eram destinadas aos
partidos, cujas direções definiam a alocação de recursos entre candidaturas, ora diretamente
aos candidatos. Em qualquer uma das opções, os maiores beneficiários das doações privadas
eram os candidatos homens, incumbentes, ligados ao poder partidário ou econômico
(Nicolau, 2019).
MUDANÇAS RECENTES NO FINANCIAMENTO ELEITORAL
A principal mudança, que levou à inversão dos padrões de financiamento eleitoral no
Brasil, não foi fruto de iniciativa legislativa, mas conduzida por uma decisão do STF. A
Suprema Corte considerou as doações empresariais para campanhas inconstitucionais em
2015. A decisão de 2015 veio provocada pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.650,
proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que questionou a
constitucionalidade das doações corporativas a campanhas eleitorais no formato previsto na
Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97) e na Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95). O
julgamento da ADI 4.6502 durou mais de dois anos e a tese que preponderou foi a da vedação
à tal modalidade de financiamento, por infringir o caráter republicano da Constituição
Federal.

No mesmo ano em que o STF determinou a mudança mais drástica na forma de


financiamento das campanhas eleitorais no país, o Congresso Nacional aprovou a chamada
“minirreforma eleitoral” (Lei nº 13.165/15). A reforma, em tese, definia como prioridade
ampliar a participação política de mulheres. Mas os “avanços” da nova legislação incluíam
não só a destinação mínima de 5% e, assim como a máxima, de 15%, dos recursos Fundo
Partidário para financiar campanhas femininas. Como sintetizado por Fabris (2019), foi o
reconhecimento e a formalização da desigualdade no acesso a recursos financeiros
partidários, já que as mulheres obrigatoriamente seriam 30% das candidatas, mas só
receberiam no máximo 15% dos recursos.

A reforma eleitoral de 2015 não só retirou verbas que financiavam campanhas


femininas, mas também diminuiu em 80 vezes a multa pelo descumprimento da obrigação
de investir recursos partidários na formação de quadros femininos. Foi nesse contexto que
houve a proposição da ADIN 5.617, pela Procuradoria-Geral da República, questionando a
validade constitucional da desigualdade institucionalizada pela Lei 13.165/15.

A decisão foi favorável ao pedido apresentado pela PGR no sentido de declarar


inconstitucionais os limites mínimo e máximo de dispêndio com campanhas femininas nos
termos da Lei nº 13.165/15. Foi decidido que o mínimo de recursos do Fundo Partidário
destinados à campanha de mulheres seria o de 30%, equivalente à proporção de candidatas
exigida pela legislação.3. O julgamento da ADI 5.617 ocorreu em 15 de março de 2019, dia
seguinte ao trágico e chocante assassinato de Marielle Franco, vereadora negra do Rio de

2
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4136819
3
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748354101
Janeiro, eleita em 2016 com a quinta candidatura mais votada, dando maior simbologia à
conquista.

Apesar de vitoriosa, a ação parece ter sido insuficiente no sentido de assegurar a


promoção de candidaturas femininas de forma mais equânime considerando o novo cenário
de financiamento para campanhas políticas. A principal fonte de recursos disponível, após a
proibição de financiamento corporativo, passou a ser o Fundo Especial de Financiamento
de Campanha, usualmente referido como Fundo Eleitoral, criado pelo Congresso Federal
em 2017. Além de ser composto por um montante maior de recursos em comparação com
o Fundo Partidário, o Fundo Eleitoral é exclusivamente dedicado ao financiamento de
campanhas, enquanto o Partidário é aplicado no financiamento de demais atividades
partidárias fora do ciclo eleitoral.

Nesse sentido, a decisão do STF a respeito da proporcionalidade de gênero na


aplicação do Fundo Partidário tornou-se insuficiente para equilibrar a competição eleitoral.
Um grupo de deputadas e senadoras realizou então uma consulta formal junto ao TSE para
estabelecer as diretrizes sobre a obediência, no uso do Fundo Eleitoral, às normas de
equidade definidas para o Fundo Partidário definidas a partir do julgamento da ADI 5.617.
A decisão do plenário da corte do TSE, emitida por meio da Resolução nº 23.575 de 2018,
foi favorável ao pedido apresentado, passando então todo o financiamento público de
campanhas a estar submetido à norma da proporcionalidade de gênero entre candidatos.

Uma última mudança normativa a ser considerada é a decisão do mesmo TSE de


estender a lógica da proporcionalidade da alocação de recursos públicos de campanha
também considerando cor e raça como recorte de sub-representação política. Foi a primeira
dentre as tantas mudanças normativas implementadas no sistema eleitoral brasileiro que
tocou na temática de cor e raça, para além de gênero, de acordo com Rios e Paz (2021).
Benedita da Silva, deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores do Rio de Janeiro,
formulou uma consulta ao Tribunal a respeito da aplicação específica de incentivos similares
àqueles dispendidos às candidaturas femininas para candidatas negras (Rios e Paz, 2021). O
TSE decidiu, ao menos em parte, favoravelmente ao pedido apresentado, definindo que os
recursos financeiros e o tempo de campanha em rádio e televisão sejam proporcionais ao
número de candidatos negros registrados no partido, a despeito do gênero do candidato.

As recentes mudanças interpretativas da aplicação da legislação eleitoral criaram


oportunidade para uma efetiva aplicação das cotas de gênero no Brasil. É essa a conclusão
expressa pelo relatório “Desigualdades de gênero e raça na política brasileira”, produzido
pelo Instituto Alziras em parceria com a Oxfam Brasil4. As evidências coletadas em relação
ao financiamento público, combinado às novas regras de distribuição de recursos de
campanhas para mulheres, assim como as mais recentes cotas raciais de financiamento,
“surtiram efeitos positivos, mesmo que ainda tímidos, para reduzir as desigualdades de
gênero e raça na corrida eleitoral brasileira”. É preciso, contudo, cautela e análises mais
consistentes antes de concluir que a mudança promovida no sistema de financiamento
eleitoral contribuiu para melhorar a representação política de mulheres e negros. É esta a
lacuna que este estudo pretende suprir.

METODOLOGIA E DADOS
Esta seção pretende descrever qual foi a estratégia de identificação causal dos efeitos
de mudanças legais na sistemática do financiamento eleitoral brasileiro sobre a representação
política de pessoas negras e mulheres e analisar seus resultados. Pretende-se, assim, estimar
o efeito causado pela mudança institucional promovida na interpretação da legislação
aplicável ao financiamento de campanha sobre a chance de sucesso de candidaturas negras e
femininas. Foram consideradas as eleições para o cargo de deputado federal realizadas em
2014, 2018 e 2022, de tal forma que haja pela menos uma eleição anterior à mudança
normativa que impactou o financiamento eleitoral para candidaturas de mulheres e de
pessoas negras. Os dados aqui empregados foram coletados diretamente no site do Tribunal
Superior Eleitoral5.

Dados

Num primeiro momento, foram produzidas algumas estatísticas descritivas das


variáveis de interesse, como o número de candidaturas e de eleitos por gênero e raça, além
da proporção dos recursos partidários acessados por esses grupos. Como mostrado nas
Figuras 1 e 2, houve uma trajetória de ascensão dos grupos aqui considerados como sub-
representados na proporção total de candidaturas ao cargo de deputado federal. As mulheres
eram cerca de 29% das candidatas em 2014 e passaram a ser mais de 35% do total. As pessoas
pretas e pardas, por sua vez, saíram de 39,9% do total de candidatos para 47,9%, um

4
https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pesquisa-nos-e-as-
desigualdades/pesquisa-nos-e-as-desigualdades-
2022/?gclid=Cj0KCQjwqoibBhDUARIsAH2OpWgB5GW1AN3Nm0wSErJptQFtX2UzOTBWhrrOFhZ
2C6TiHDlwBj7a7KkaAvzLEALw_wcB
5
https://www.tse.jus.br/eleicoes/resultados-eleicoes, consultado em 10/09/2022
contingente muito mais próximo da sua representação na população brasileira como um
todo.

Figura 1: Trajetória de candidaturas por Figura 2: Trajetória de candidaturas por raça.


gênero.

O acesso aos recursos partidários para campanha eleitoral também mudou ao longo
do tempo sob as perspectivas de gênero e raça. As figuras 3 e 4 ilustram a trajetória da
proporção de recursos partidários distribuídas entre mulheres e homens, assim como entre
pessoas negras ou não, entre 2014 e 2022.

As candidaturas femininas tinham 12,9% dos recursos disponibilizados por partidos


em 2014. Cabe lembrar aqui que, naquela eleição, o financiamento privado empresarial se
mantinha como principal fonte de recursos empregados em campanhas políticas. Ainda
assim, a disparidade de recursos públicos acessados pelas mulheres é relevante, que, à época,
já eram quase 30% das candidaturas. Já em 2022, 31,8% das receitas partidárias foram
alocadas com mulheres. No caso das pessoas pretas e pardas, observa-se que o acesso a
recursos se mantém desproporcional ao contingente de candidaturas, ainda que tenha havido
uma evolução importante na proporção dos recursos de financiamento acessados entre 2014
e 2022, quando alcançaram o patamar de 37,9% das receitas partidárias.
Figura 3: Trajetória da receita partidária por Figura 4: Trajetória da receita partidária por
candidatura por gênero e raça. candidatura por gênero e raça.

Outra análise descritiva importante a ser considerada, em termos de resultados


eleitorais, é a porcentagem do total de candidaturas que efetivamente consegue se eleger. O
sistema político no Brasil é conhecido por sua alta fragmentação partidária e elevado número
de candidatos (Zucco e Power, 2019). A chance de sucesso de uma candidatura é, em geral,
muito baixa. Ainda assim, ela segue sendo mais baixa para grupos sub-representados, como
mulheres e pessoas negras.

A variação do percentual de candidaturas eleitas antes e depois das mudanças


normativas que alteraram o financiamento eleitoral para mulheres e pessoas negras está
detalhada nas figuras 5 a 8. Nelas é possível observar como, ainda que tenham uma taxa de
sucesso inferior à dos grupos majoritários, as chances de sucesso grupos sub-representados
parecem ter sofrido menos nos últimos anos. A trajetória da variação entre esses grupos
mostra que vencer uma eleição para deputado federal se tornou menos provável com o
tempo para homens. Antes, a cada 100 candidatos homens, 10 eram eleitos, passando para 7
após 2018. O mesmo ocorreu para pessoas não negras, com a taxa de sucesso eleitoral
variando de 8,5% para 6,4%.

Figura 5: Percentual médio de eleitos antes das Figura 6: Percentual médio de eleitos depois das
mudanças normativas por gênero. mudanças normativas por gênero.
Figura 7: Percentual médio de eleitos antes das Figura 8: Percentual médio de eleitos depois das
mudanças normativas por raça. mudanças normativas por raça.

Adicionalmente, foi feito um exercício de incorporar a ideologia dos partidos das


candidaturas ao modelo inicial. Com isso, buscou-se entender se a variação da chance de
sucesso eleitoral de candidaturas negras e femininas foi diferente para partidos à direita ou à
esquerda do espectro político.

Para estimar a variável relativa ao posicionamento ideológico do partido do


candidato, foi adotada a medida de posicionamento ideológico de partidos políticos
brasileiros formulada a partir da Brazilian Legislative Survey, formulada por Zucco e Power
(2019). Uma limitação importante para o presente estudo é que a medida, calculada para cada
partido a cada legislatura, só tem públicos valores até o ano de 2017. Para superar a limitação
da indisponibilidade de dados, a posição ideológica de cada partido foi considerada a mesma
em todos os períodos analisados no modelo, usando como referência os valores de 2017. A
medida é calculada para cada partido dentro de uma escala que varia entre -1, quanto mais à
esquerda está o partido, a 1, mais à direita do espectro político.

As figuras 9 e 10 descrevem a distribuição ideológica de candidaturas femininas e


masculinas nas eleições realizadas antes (fig. 9) e depois (fig. 10) da mudança que alterou a
regra para o financiamento de campanhas femininas, com a obrigatoriedade da
proporcionalidade da distribuição de recursos partidários de acordo com a cota de
participação de mulheres na lista de candidatos. As figuras 11 e 12 mostram essa mesma
distribuição ao longo do espectro político, mas com um recorte racial no lugar do gênero.
São comparadas candidaturas negras e não negras nos anos de 2014 e 2018 (fig. 11) e 2022
(fig. 12).
Figura 9: Ideologia de candidaturas por Figura 10: Ideologia de candidaturas eleitas por
gênero. gênero.

Figura 11: Ideologia de candidaturas por Figura 12: Ideologia de candidaturas eleitas por
raça. raça.

Metodologia

A metodologia de "diferenças em diferenças" essencialmente compara grupos de


tratamento e controle em termos de mudanças nos resultados ao longo do tempo em relação
aos resultados observados em um período anterior à intervenção estudada. Ou seja, dada
uma configuração de dois períodos, um anterior e outro posterior ao “tratamento”
implantado, estima-se o efeito da intervenção a partir do cálculo da diferença entre as
diferenças existentes entre os dois grupos em uma variável de interesse (Angrist e Pischke,
2009).

No caso do presente estudo, busca-se estimar o efeito da alteração normativa sobre


a divisão proporcional por gênero (a partir de 2018) e por raça (em 2022) dos recursos
partidários para campanhas eleitorais. Isso foi feito comparando o resultado observado em
cada período em termos de sucesso eleitoral dessas candidaturas, ou seja, a probabilidade de
uma candidatura ter sido eleita em cada um dos períodos considerados. O modelo tem como
variável dependente a probabilidade de eleição das candidaturas femininas e negras,
assumindo valor 1 quando a candidatura foi eleita e 0, quando não. Adicionalmente, a variável
“Ideologia partidária” foi incluída na análise estatística, para entender se existe um viés
ideológico no impacto da mudança do financiamento de campanhas sobre candidaturas
femininas e de pessoas negras.

RESULTADOS
O efeito causal estimado no modelo de diferenças em diferenças corresponde ao
coeficiente relativo à interação entre o grupo considerado, no caso, candidaturas femininas,
e o período “pós-tratamento”, aqui abrangido pelas eleições de 2018 e de 2022, quando a
nova regra de financiamento eleitoral, que exigia proporcionalidade de aplicação de recursos
de acordo com o contingente de candidatas, foi implementada. No caso das candidaturas de
pessoas negras, o período “pós-tratamento” considerado foi somente 2022, em função da
mudança específica da regulamentação eleitoral determinada para aquele período para este
grupo.

As tabelas 1 e 2, a seguir, detalham os resultados dos modelos estatísticos executados.


A diferença entre os modelos 1 e 2 em cada uma das tabelas é a adoção de efeitos-fixos por
partido no modelo 2, mais completo e, portanto, com resultados mais robustos
estatisticamente. Ao utilizar efeitos-fixos, busca-se eliminar outras diferenças particulares que
poderiam existir entre os períodos que estivessem atreladas a características não observáveis
dos grupos comparados. O modelo 3, por sua vez, estima também o efeito da ideologia do
partido como um controle para a regressão linear.

Na tabela 1, a variável “candidaturas femininas” estima a diferença média em termos


de probabilidade de sucesso eleitoral de mulheres candidatas a deputado federal em
comparação com candidatos homens antes do tratamento, ou seja, em 2014. O resultado
indica que candidaturas femininas tinham menos probabilidade de ser eleitas, em consistência
com o que indicava a análise descritiva preliminar. A variável “mudança normativa” estima
o resultado dos candidatos do grupo de controle após a implementação do tratamento, ou
seja, a média do resultado de homens nas eleições de 2018 e 2022. A variável “Candidaturas
femininas após a mudança” representa a interação entre o gênero da candidatura e o
momento da eleição, após a adoção da mudança normativa, ou seja, o grupo de tratamento
após o tratamento.
Tabela 1: Resultados do modelo de diferenças em diferenças para gênero.

Tabela 2: Resultados do modelo de diferenças em diferenças para raça.


A tabela 1 apresenta os resultados da estratégia de diferenças em diferenças aplicado
para o recorte de gênero dos candidatos. Os resultados do modelo mais robusto indicam que
há evidências estatisticamente significantes de que a mudança normativa sobre a aplicação
dos recursos partidários em campanhas eleitorais teve um efeito positivo sobre candidaturas
femininas (β = 0,054, p-valor < 0,01). A chance de uma candidata mulher ser eleita, em
comparação com um homem, após a mudança no financiamento ainda o peso da interação
entre a candidatura feminina e a ideologia do partido neste contexto pós-mudança das regras
de financiamento. O coeficiente de regressão negativo observado mostra que há um efeito
estatisticamente significante para candidaturas femininas de esquerda neste contexto “pós-
tratamento” (β = -0,067, p-valor < 0,01).

No caso de pessoas negras, a tabela 2 descreve o resultado dos coeficientes da


regressão por diferenças em diferenças. Apesar dos valores estarem na direção esperada, foi
observado nenhum efeito estatisticamente significante em nenhum dos modelos
implementados que evidencie o impacto da mudança normativa sobre o financiamento de
campanhas de candidatos negros nas eleições de 2022. O único efeito estatisticamente
significante observado foi a relação entre ideologia partidária mais à esquerda e as
candidaturas negras em 2022, ainda assim, com menor nível de significância (β = -0,031, p-
valor < 0,1).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo buscou contribuir para identificar os impactos das mudanças
recentemente implantadas na legislação referente ao financiamento de campanha no Brasil.
Para isso, foi conduzida uma análise de diferenças em diferenças considerando como os
novos mecanismos de obrigatoriedade do financiamento de candidaturas minoritárias
contribuiu para promover para promover uma representação política mais equânime,
considerando-se gênero e raça, no Brasil.

Os resultados contribuem para a compreensão dos efeitos positivos dessas mudanças


normativas a respeito do financiamento de campanha, uma vez que candidaturas femininas
se tornaram mais competitivas. No caso de pessoas negras, ainda que os efeitos identificados
não sejam significantes estatisticamente, há também uma relação positiva entre a nova regra
de distribuição dos recursos públicos de campanha e a probabilidade de sucesso de
candidaturas.

Resultados como os produzidos por este trabalho poderiam servir de subsídio para a
avaliação do mecanismo de financiamento de forma a subsidiar a decisão política em torno
das reformas necessárias ao sistema eleitoral nacional. A despeito das evidências favoráveis,
o Congresso Federal deve alterar nas próximas semanas as regras consideradas aqui como
favoráveis à promoção da equidade de gênero e raça na representação política. A resistência
da elite política em aceitar mecanismos de promoção de uma democracia efetivamente
representativa indica que mulheres, negros e outros grupos minorizados seguirão de fora
dessa elite ainda por muito tempo.
REFERÊNCIAS

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DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Todo o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo foi publicado no artigo e na
seção "Materiais suplementares".

FINANCIAMENTO
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior – Brasil (CAPES)

CONTRIBUIÇÃO DA AUTORA:

Não se aplica.

DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSE

A autora declara que não há conflito de interesses a mencionar

MINIBIOGRAFIA DA AUTORA DO PAPER

Doutoranda em Ciência Política no IESP/UERJ. Mestre em Administração pela EBAPE-


FGV, graduada em Direito e Administração Pública, com experiência profissional no setor
público, com foco em políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação e educação básica.

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