E-Book Dialogoaic Vol10

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Diálogo Ambiental,

Constitucional e
Internacional Volume 10

JORGE MIRANDA | CARLA AMADO GOMES


SUSANA BORRÀS PENTINAT
(Coordenadores)

BLEINE QUEIROZ CAÚLA


RÔMULO GUILHERME LEITÃO
(Organizadores)
Diálogo Ambiental,
Constitucional e
Internacional
E-BOOK INTERNACIONAL VOLUME 10

EDIÇÃO ESPECIAL
Homenagem ao Chanceler Airton Queiroz
(in memoriam)

JORGE MIRANDA
CARLA AMADO GOMES
SUSANA BORRÀS PENTINAT
(Coordenadores)

BLEINE QUEIROZ CAÚLA


RÔMULO GUILHERME LEITÃO
(Organizadores)
Edição Especial
Homenagem ao Chanceler Airton Queiroz (in memoriam)
Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Centro de Investigação de Direito Público
-
www.icjp.pt
[email protected]
-
Abril de 2020
ISBN: 978-989-8722-42-3

Alameda da Universidade
1649-014 Lisboa
www.fd.ulisboa.pt
-
Imagem da capa:
Foto de Carla Amado Gomes
Revisão ortográfica:
Maria Ângela Barbosa Lopes
Revisão ABTN:
Júlia Maia de Meneses Coutinho (primeira revisão)
Bleine Queiroz Caúla (segunda revisão)
-
Produzido por:
OH! Multimédia
[email protected]

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Comissão Científica

Alexandre Sousa Pinheiro – ASP Formação e Consultoria

Ângela Issa Haonat – UFT

Ana Maria D’Ávila Lopes – Universidade de Fortaleza

Ana Paula Araújo de Holanda – Universidade de Fortaleza

Anna Ciammariconi – Università degli Studi di Teramo

André Leite – Universidade de Vilnius

Beatriz Souza Costa – ESDHC

Bleine Queiroz Caúla – Universidade de Fortaleza

Carla Amado Gomes – Universidade de Lisboa

César Barros Leal – UFC

Claudia do Amaral Furquim – IDEM

Claudia Ribeiro Pereira Nunes – Yale University

Dayse Braga Martins – Universidade de Fortaleza

Délton Winter de Carvalho – UNISINOS

Elvira Domínguez-Redondo – Middlesex University

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Fernando González Botija – Universidade Complutense de Madrid

Francisco Lisboa Rodrigues – FATENE

Horácio Wanderlei Rodrigues – UFSC

Jefferson Aparecido Dias – UNIMAR

João Pedro Oliveira de Miranda – Universidade de Lisboa

Jorge Miranda – Universidade de Lisboa

Katherinne de Macedo Maciel Mihaliuc – Universidade de Fortaleza

Leonel Severo Rocha – UNISINOS

Martonio Mont’Alverne Barreto Lima – Universidade de Fortaleza

Orides Mezzaroba – UFSC

Rômulo Guilherme Leitão – Universidade de Fortaleza

Susana Borràs Pentinat – Universitat Rovira i Virgili

Valério de Oliveira Mazzuoli – UFMT

Valter Moura do Carmo – UNIMAR

Wagner Menezes – USP

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Coordenadores

Jorge Miranda

Licenciado em Direito (1963) e doutor em Ciências Jurídico-Políticas


(1979), é professor catedrático das Faculdades de Direito da Universidade de
Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa. Nas duas Faculdades já exer-
ceu a regência de todas as disciplinas do Grupo de Ciências Jurídico-Políticas,
mantendo hoje a seu cargo as de Direito Constitucional e Direitos Fundamen-
tais. Também na Faculdade de Direito de Lisboa, exerceu funções como presi-
dente do Conselho Científico (1988-1990 e 2004-2007) e presidente do Con-
selho Directivo (1991-2001). Integrou ainda Comissão Científica da Escola de
Direito da Universidade do Minho (1973-2005) e coordenou a licenciatura em
Direito da Universidade Católica Portuguesa (1983-1989). Eleito nas listas do
Partido Popular Democrático, foi deputado à Assembleia Constituinte (1975-
1976), tendo tido um papel importante na feitura da Constituição da Repúbli-
ca Portuguesa de 1976. A sua colaboração estendeu-se também à elaboração
das Constituições de São Tomé e Príncipe (1990), de Moçambique (1990),
da Guiné-Bissau (1991) e de Timor-Leste (2001). Foi membro da Comissão
Constitucional (1976-1980), órgão precursor do atual Tribunal Constitucional.
É Doutor Honoris Causa em Direito, pela Universidade de Pau (França, 1996),
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Brasil, 2000), Universidade Católica
de Lovaina (Bélgica, 2003) e pela Universidade do Porto (2005). ). Presidente
Honorário Vitalício do Instituto Luso Brasileiro de Direito Público.

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Carla Amado Gomes

Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de


Lisboa. Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universi-
dade Católica Portuguesa (Porto). Foi Vice-Presidente do Instituto da
Cooperação Jurídica da Faculdade de Direito de Lisboa (2006-2014).
Foi Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universidade
Nova de Lisboa (2007-2013). Foi assessora no Tribunal Constitucio-
nal (1998/1999). Lecciona cursos de Mestrado e Pós-Graduação em
Direito do Ambiente, Direito Administrativo e Direito da Energia em
Angola, Moçambique e Brasil. Colabora regularmente em acções de
formação no Centro de Estudos Judiciários.

Susana Borrràs Pentinat

Profesora doctora de Derecho internacional Público y Relaciones


Internacionales de la Universidad Rovira i Virgili (Tarragona-España)
e investigadora del Centro de Estudios de Derecho Ambiental de Tar-
ragona (CEDAT). PROJECT “PROYECTO DE I+D: La constitución climática
global: gobernanza y Derecho en un contexto complejo” (CONCLIMA‐
DER2016‐80011‐P), (MINECO/FEDER, UE), Programa Estatal de Fomen-
to de la Investigación Científica y Técnica de Excelencia, subprograma
Estatal de Generación del Conocimiento, en el marco del Plan Estatal
de Investigación Científica y Técnica y de Innovación 2013‐2016, efec-
tuada por resolución de 17 de junio de 2015 (BOE de 23 de junio) de la
Secretaría de Estado de Investigación, Desarrollo e Innovación (SEIDI),
Ministerio de Economía y Competitividad, España.

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Organizadores

Bleine Queiroz Caúla

Doutora em Direito, linha Estratégia Global para o Desenvolvimento Sus-


tentável - Universidade Rovira i Virgili, Tarragona, Espanha. Professora As-
sistente da Universidade de Fortaleza. Pedagoga. Advogada agraciada com
o V Prêmio Innovare, 2008 (Projeto Cidadania Ativa – gestão 2005-2008).
Coordenadora Científica do Seminário Diálogo Ambiental, Constitucional e
Internacional. Principais obras publicadas: O Direito Constitucional e a In-
dependência dos Tribunais Brasileiros e Portugueses: aspectos relevantes;
Direitos Fundamentais: uma perspectiva de futuro; O direito administrativo
na perspectiva luso-brasileira; A Lacuna entre o Direito e a Gestão do Ambi-
ente: os 20 anos de melodia das agendas 21 locais. E-mail: bleinequeiroz@
yahoo.com.br. ORCID Id http://orcid.org/0000-0002-0033-8242.

Rômulo Guilherme Leitão

Mestrado em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza


(2008). Doutor em Direito Constitucional; professor do Mestrado Pro-
fissional em Direito e Gestão de Conflitos e do Programa de Pós-Grad-
uação (mestrado e doutorado) em Direito Constitucional da Universi-
dade de Fortaleza (UNIFOR), e procurador do Município de Fortaleza.
E-mail: [email protected].

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Autores

Aquilino Paulo Antunes


Doutor e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade
de Lisboa. Advogado.

Anna Ciammariconi
Ricercatrice di Diritto pubblico comparato. Facoltà di Scienze politi-
che. Università di Teramo (Italia).

Antonio Rulli Junior (In Memoriam)


Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(1982). Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (1972). Doutor
em Direito do Estado, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(1984). Atualmente é professor do Centro Universitário UniFmu nos cursos
de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado/Doutorado); desembargador
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, eleito pelo egrégio Órgão
Especial para o biênio 2008-2009, para o cargo de diretor da Escola Pau-
lista da Magistratura (EPM) do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
(conforme Portaria nº 7.487, de 2007). Eleito presidente, por unanimida-
de, do Colégio Permanente de Diretores das Escolas Estaduais da Magistra-
tura (COPEDEM), para o biênio 2009-2011. Membro do Conselho Superior

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (EN-


FAM), do Superior Tribunal de Justiça, para o biênio 2010-2012.

Beatriz Souza Costa


Mestre e Doutora pela UFMG em Direito Constitucional; professora no
Curso de Pós-Graduação, Mestrado em Direito Ambiental e Desenvolvi-
mento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara. Pró-Reitora de
Pesquisa da ESDHC. (Belo Horizonte). E-mail: [email protected].

César Barros Leal


Procurador del Estado de Ceará; Profesor jubilado de la Facultad
de Derecho de la Universidad Federal de Ceará; Doctor en Derecho
(UNAM); Posdoctor en Estudios Latinoamericanos (Facultad de Cien-
cias Políticas y Sociales de la UNAM); Posdoctor en Derecho (Univer-
sidad Federal de Santa Catarina). Presidente del Instituto Brasileño de
Derechos Humanos; Miembro de la Asamblea General del Instituto In-
teramericano de Derechos Humanos.

Daniela Zago Gonçalves da Cunda


Doutora e mestre em Direito pela PUC/RS. Conselheira substituta do
Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. E-mails para contato:
[email protected] e [email protected].

Ernani Contipelli
Pós-Doutor em Direito Político Comparado – Universidad Pompeu Fa-
bra. Pós-Doutor em Direito Constitucional Comparado – Universidad Com-
plutense de Madrid. Doutor em Direito do Estado – PUC/SP. Mestre em
Filosofia do Direito e do Estado – PUC/SP. Especialista em Direito Tributário

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– PUC/SP. Bacharel em Direito – Mackenzie/SP. Professor do Programa de
Mestrado em Direito da Universidade Comunitária da Região de Chapecó
(Brasil). Pesquisador do Center for European Strategic Research (Itália).

Francisco Lisboa Rodrigues


Procurador do Município de Fortaleza. Mestre e Doutor em Direito Cons-
titucional pela UNIFOR. Pós-Doutorando pela Faculdade de Direito da Uni-
versidade de Lisboa- FDUL, Professor de Direito Constitucional da FATENE.

João Felipe Bezerra Bastos


Mestre em Ordem Jurídica Constitucional, pela Universidade Federal
do Ceará (UFC). Especialista em Direito Processual Civil, pela Universi-
dade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Pós-Graduando em Direito e
Processo Eleitoral, pela Universidade de Fortaleza. Membro da Comissão
de Direito Eleitoral da OAB/CE. E-mail: [email protected]

Jorge Bheron Rocha


Defensor Público. Doutorando em Direito Constitucional (Universida-
de de Fortaleza). Mestre em Ciências Jurídico-Criminais, pela Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra, com estágio na Georg- -August-
-Universität Göttingen, Alemanha. Pós-Graduado em Processo Civil, pela
Escola Superior do Ministério Público. Membro da Associação Brasileira
de Direito Processual (ABDPro). Professor de Penal e Processo Penal de
Graduação e Pós-Graduação. E-mail: [email protected].

Jorge Di Ciero Miranda


Doutorando (ingresso em 2018) e mestre (conclusão em 2016) em
Direito Constitucional (Universidade de Fortaleza. Ciclo básico da AMAN

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

87/88 e da Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) 89/90. Graduado


em Direito pela Universidade Federal do Ceará 95 (UFC). Especialista em
Processo Civil pela UVA e Processo Penal pela UFC. Cursou mestrado em
Samford University – Alabama – Cumberland Law School. Juiz estadual
do Ceará, desde 1998. Atualmente é titular da Vara de Trânsito em Forta-
leza. E-mail: [email protected].

Júlia Maia de Meneses Coutinho

Professora do Curso de Direito da Faculdade de Tecnologia de Horizonte –


FATHOR. Doutoranda em Direito Constitucional Público e Teoria Política pela
Universidade de Fortaleza. Mestra em Direito Constitucional pela Universi-
dade de Fortaleza (bolsista Funcap). Participante do Grupo de Pesquisa da
“Constituição de 1937”, sob a orientação do Prof. Dr. Martonio Mont’Alverne.
Especialista em Marketing e Direito Público. Graduada em Publicidade e Pro-
paganda e Direito (bolsista FEQ). E-mail: [email protected].

Manuela Vieira Costa

Acadêmica de direito na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). E-mail:


[email protected].

Marco Anthony Steveson Villas Boas

Mestre em Direito Constitucional, pela Faculdade de Direito da Uni-


versidade de Lisboa, Portugal. Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas,
pela mesma universidade. Diretor Geral da Escola Superior da Magistra-
tura Tocantinense. Vice-Presidente do Colégio Permanente de Diretores
das Escolas Estaduais da Magistratura (COPEDEM). Membro da Acade-
mia Tocantinense de Letras. Presidente do Tribunal Regional Eleitoral do
Tocantins. Ex-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins,

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do Colégio de Presidentes dos Tribunais Eleitorais do Brasil (COPTREL) e
do Colégio de Corregedores Eleitorais do Brasil (COCEL).

Monique Mosca Gonçalves


Mestre em Ciências Jurídico-Ambientais na Universidade de Lis-
boa. Pós-graduada em Direito Penal pela Universidade Anhanguera/
UNIDERP. Promotora de Justiça do Estado de Minas Gerais. E-mail:
[email protected].

Rodrigo Martiniano Ayres Lins


Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza
(UNIFOR). Especialista em Direito Eleitoral (PUC/MG), em Direito Proces-
sual Civil (UNICAP) e em Direito Público (ESMAPE). Atualmente é Procu-
rador-Geral da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará e Professor de
Cursos de Pós-Graduação em Direito. Membro Fundador da Academia
Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP) e do Instituto Luso-
-Brasileiro de Direito Público (ILBDP).

Valério de Oliveira Mazzuoli


Professor-associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Mato Grosso – UFMT (Brasil). Pós-Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela
Universidade Clássica de Lisboa. Doutor summa cum laude em Direito Inter-
nacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (Brasil).
Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” – UNESP (Brasil). Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Direito
Internacional – SBDI e da Associação Brasileira de Constitucionalistas Demo-
cratas – ABCD. Membro-consultor da Comissão Especial de Direito Interna-
cional do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Homenagem ao Chanceler Airton Queiroz

Após alguns dias em que o Dr. Airton Queiroz passou a observar a


Unifor por outra dimensão, ele deve estar feliz com a grandiosidade des-
sa obra que administrou por 35 anos. Deve estar concluindo que não há
um recanto do campus em que não esteja impressa sua presença, sua
criatividade e o tirocínio voltado para um futuro que se fez presente. O
verde dos jardins, simbolizando um futuro melhor para toda a comuni-
dade interna e externa, demonstra também um exemplo de sustentabi-
lidade em que fauna e flora se dão as mãos como lição para a pujante
juventude sempre ali presente.

O ambiente universitário, construído onde antes vigorava o ermo de


uma savana, tanto foi burilado, primeiro pelo Chanceler Edson Queiroz,
depois pelo Dr. Airton, seu continuador, que o estudante, ao ingressar
no campus, já está aprendendo antes de entrar em sala de aula. Para
isso, as grandes exposições de artes, os concertos musicais, as peças te-
atrais encenadas, a Biblioteca com centenas de milhares de volumes e o
acervo especial adquirido de famosos colecionadores comprovam que a
aprendizagem extrapola as quatro paredes da sala de aula. Difícil, pois,
um adjetivo definitivo para corresponder à personalidade do Chanceler

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Airton Queiroz: arguto, perspicaz, sensível, empreendedor, dinâmico,
discreto, corajoso, ágil, sonhador e objetivo são qualificações captadas
entre aqueles com quem privava.

Uma coisa é certa, pelo fato de ter sido dicotômico, binário, razão e
emoção se dão as mãos no seu perfil. A objetividade do administrador de
um conglomerado de empresas e a subjetividade do profundo aprecia-
dor das artes e da ecologia tornaram-no um homem marcado pela notur-
nidade e diuturnidade bachelardiana. Personalidade singular, Dr. Airton,
com sua aguçada visão do futuro, transformava o presente em dinâmica
de longo curso, como se seu pensamento calçasse botas de sete léguas.
Entretanto não deixava de trazer também para o presente as culminân-
cias do passado, daí suas exposições de artes seculares, seus acervos de
livros históricos e suas visitas ao exterior, a museus diversos e monumen-
tos dos antepassados. Por isso que, na geografia do campus da Unifor, é
possível encontrar signos desse gosto marcado pela universalidade. Sua
aguçada visão empresarial vislumbrava na educação uma solução para
o desenvolvimento do Ceará. Sua criatividade fez com que os jardins da
Unifor viessem a ser forte contribuidor para a microrregião climática em
que se tornou essa área onde a amenidade do clima diferencia-se do res-
tante de Fortaleza. Também com relação aos três pilares formadores das
universidades: Ensino, Pesquisa e Extensão, ele criou uma quarta pilastra
- no caso, a cultura.

No momento em que o Chanceler passou a ver de cima sua Unifor, deve


ter notado que sua paixão pelo verde, emanado dos verdes mares bravios
que um dia Alencar também vislumbrou, alastrou-se pelo rio Cocó e seu
parque ribeirinho, pousou nas alamedas da Universidade e ramificou-se
até os jardins de sua residência. É o equilíbrio ecológico antecipando-se ao
equilíbrio humano como lição para uma juventude altaneira que convive
em harmonia com uma natureza festiva. É bem verdade que a seriema que

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

passava o dia cantando no campus emudeceu com sua partida, mas temos
certeza de que o luto das aves não vira melancolia.

O seu compromisso com o social concretizou-se com a transforma-


ção do antigo Dendê em verdadeiro laboratório para as transformações
operadas no entorno do campus: a Escola Yolanda Queiroz, com mais
de cinco centenas de crianças do bairro, o Escritório de Prática Jurídica
para atendimento àquela população e o Nami com seus atendimentos
médicos aos mais necessitados. Sua cosmovisão vez ver que se muda
para melhor quem muda também seus circunstantes. Daí que o corpo
funcional da Universidade se tornou composto de pessoal selecionado
e treinado para o trabalho, entre os moradores desse bairro que evoluiu
para melhor com a criação da Unifor.

O frescor permanente do clima do campus está ali posto desde a


ideia inicial de trazer a Universidade para o leste da Capital. Ali a Unifor
veio ver o sol nascer mais cedo. Veio abrir suas portas para a alvorada,
e o Chanceler abriu as cancelas do horizonte, botando a cidade a andar
para aquela direção e toda uma comunidade a se extasiar com o nas-
cer dos novos tempos da educação. A consolidação do empreendimento
Unifor tornou a Universidade um marco na educação da nossa Região. A
Unifor possui o DNA do Dr. Airton, e essa sua criação será indestrutível,
pois educação é uma herança que o tempo não destrói.

Fortaleza, 21 de novembro de 2017.

Batista de Lima
Professor da Universidade de Fortaleza

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Prefácio

Foi com enorme satisfação e alegria que acitei o amável convite for-
mulado pela dinâmica professora Bleine Queiroz Caúla para prefaciar o
volume 10 de DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIO-
NAL, sobretudo em se tratando de uma edição que encerra homenagem
póstuma ao Chanceler Airton Queiroz. O Professor Airton Queiroz, dando
seguimento à tradição libertária do estado do Ceará que, como sabemos,
foi o primeiro rincão do Brasil a dizer não à escravidão, com o brado he-
roico de “Dragão do Mar” e seus seguidores, humildes jangadeiros, no
ano de 1881, dedicou-se à alforria das ideias e ao combate à escravidão
gerada pela ignorância. A Universidade de Fortaleza e os seus parceiros
institucionais, com a realização dos diálogos estão firmes no bom com-
bate que é educar à nossa juventude, tão necessitada de bons exemplos.
Justíssima a homenagem.

A obra ora prefaciada é contemporânea, na medida em que traz a


lume osprincipais debates de nossos dias relativos aos temas abordados
no volume. O meio ambiente e as questões jurídicas, legais a filosóficas
por ele representadas, estão presentes no livro com 5 (cinco) artigos de

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

fôlego e que traçam um panorama bastante significativo da realidade da


proteção do meio ambiente e de suas implicações sociais no contexto
da América Latina e do Brasil. Há também, um olhar muito peculiar e
importante para a Amazônia, para a Selva que tanto espanto ainda causa
naqueles que não a conhecem.

Na sessão destinada ao Direito Constitucional, assm como naquela


que a antecede, verifica-se uma constante preocupação com o que vem
dando características ao direito brasileiro moderno que é a sua preocu-
pação sócio-ambiental, conjugando proteção e melhoria das condições
da natureza que nos cerca, com a melhoria das condições nas quais deve
florescer a naureza humana. A preocupação com a transformação da
norma abstrata em resultados concretos é uma característica que se so-
bressaí nos diversos textos que compõem o volume 10.

Na terceira seção (internacional) também se encontra um viés ambiental


relevante, desta vez dirigido para os animais ditos irracionais, cuida-se de
tendência atual e que, seguramente, não poderia ficar ausente dos diálogos.

Estas são as linhas gerais do trabalho ora prefaciado, todavia, a gran-


de contribuição da obra – sem qualquer desmerecimento dos trabalhos
que a compõem – está na textura aberta de seu título: diálogos. Diálogo
é troca, é abertura, é predisposição para escutar e tentar entender o
argumento do outro. Em momento no qual a surdez conveniente é uma
mazela que se espalha pelas sociedades, uma obra destinada ao diálo-
go é algo que merece ser celebrado com ênfase e entusiasmo. Esta é a
essência do ensino e, em especial, do ensino universitário. Possibilitar o
diálogo entre instituições, países e sobretudo pessoas é o grande objeti-
vo do trabalho que tenho a honra de prefaciar. Tal objetivo, como o lei-

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tor poderá constatar, foi plenamente atingido. Os autores são da melhor
qualidade, os temas interessantes e atuais, o debate forte e vigoroso.

Cuida-se, sem dúvida, de um belo trabalho que faz justiça ao homenageado

Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2017

Paulo de Bessa Antunes


Professor Associado da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro-
UNIRIO

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Apresentação
A publicação do e-Book internacional pelo Instituto de Ciências Jurídi-
co-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa tem como
madrinha a Professora Carla Amado Gomes, coordenadora acadêmica do
Diálogo ACI. Seu entusiamo e visão continental permitiram a ampliação do
universo da leitura dos textos acadêmicos produzidos em todas as edições
do Seminário. Uma incontestável defensora do “notável percurso do Diálo-
go Ambiental, Constitucional e Internacional”.

O Seminário Internacional Diálogo Ambiental, Constitucional e Inter-


nacional tem seu berço em Fortaleza, no ano de 2012, na Universidade de
Fortaleza (UNIFOR). A partir da V Edição ganhou espaço nas Universida-
des estrangeiras – Universidade de Lisboa (UL), Universidade Rovira i Vigili
(URV) e Universidade do Porto (UP) – e em outras Instituições de Ensino
Superior (IES) como a Unama em Belém e Escola Superior Dom Helder
Câmara (ESDHC) em Belo Horizonte. É também acarinhado pela Escola Su-
perior da Magistratura Tocantinense (ESMAT) e Escola Superior da Magis-
tratura do Estado do Ceará (ESMEC), numa demonstração de que o Poder
Judiciário dialoga com a pesquisa jurídica.

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O Volume 10 é uma edição especial que homenageia o Chanceler da
Universidade de Fortaleza, Airton Queiroz (in memoriam). Compila os arti-
gos de palestrantes e autores da IX Edição, realizada, em 2016, na Univer-
sidade Rovira i Virgili, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
e na Escola Superior dos Magistrados do Ceará (ESMEC), nos meses de
setembro, outubro e novembro. Os anais desta edição reúnem artigos de
19 autores brasileiros e estrangeiros. A obra promove a pesquisa das áreas
Ambiental (5 artigos); Constitucional (8 artigos) e Internacional (3 artigos).

O professor Jorge Miranda, presidente de Honra, renova a sua parti-


cipação na Coordenação dos Anais, juntamente com as professoras Carla
Amado Gomes e Susana Borràs Pentinat, coordenadoras acadêmicas. O
diferencial do trabalho acadêmico desenvolvido está na promoção da ini-
ciação à pesquisa, diálogo entre diferentes áreas do Direito, compromisso
científico e qualidade metodológica dos artigos publicados.

A contribuição de instituições como Coordenação de Apoio de Pessoal


de Nível Superior (CAPES), Escola Superior da Magistratura Tocantinense
(ESMAT), Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, Universidade Rovira i Vigili, Centro de Estudos de
Direito Ambiental de Tarragona (CEDAT), Centro de Ciências Jurídicas (CCJ)
e da Vice-Reitoria da Pós-Graduação da Unifor foi fundamental para que o
evento chegasse à sua XI Edição, em 2017.

Lisboa, 2 de outubro de 2019.

Bleine Queiroz Caúla


Coordenadora Cientifica

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Índice

I AMBIENTAL

25 In dubio pro natura: un principio transformador del


Derecho Ambiental en América Latina
Susana Borràs Pentinat

71 Direitos Humanos e meio ambiente na encruzilhada do


neoconstitucionalismo com o novo constitucionalismo
da América Latina
Marco Anthony Steveson Villas Boas

89 A Panamazônia e o ordenamento jurídico ambiental


Beatriz Souza Costa

134 O socioambientalismo indígena sob a ótica do princípio da


igualdade: crítica à teoria de Marco Villas Boas a partir das
ideias de John Rawls, Thomaz Piketty e Amarthya Sen
Antonio Rulli Júnior

149 Equívocos conceituais que dificultam o proveito da


análise econômica do Direito na defesa ambiental
Jorge Di Ciero Miranda

21
II CONSTITUCIONAL

194 Le affirmative actions nell’ordinamento costituzionale


del Brasile: spunti di riflessione in prospettiva comparata
Anna Ciammariconi

213 O Estado de Coisas Inconstitucional – transplante da


Colômbia para o Brasil – uma interpretação análoga
para o Direito Fundamental ao Meio Ambiente
Bleine Queiroz Caúla e Francisco Lisboa Rodrigues

239 Novamente os problemas do acesso a medicamentos em


Portugal suscitados pelo Tribunal Unificado de Patentes
Aquilino Paulo Antunes

273 Judicialização da saúde em Fortaleza: o caso das vagas


em leitos de UTI
Rômulo Guilherme Leitão e Manuela Vieira Costa

293 Controle de sustentabilidade pelos Tribunais de Contas


e a necessária ênfase à dimensão ambiental
Daniela Zago Gonçalves da Cunda

342 A Era Vargas como vanguarda do sistema partidário na


democracia brasileira
Júlia Maia de Meneses Coutinho

375 Conflito interna corporis no âmbito dos partidos políticos e


sua judicialização: da destituição e substituição unilateral
de dirigentes partidários em face da horizontalidade dos
direitos fundamentais
Rodrigo Martiniano Ayres Lins e João Felipe Bezerra Bastos

22
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

397 Breves notas sobre Defensoria Pública e acesso à justiça no


novo Código de Processo Civil
Jorge Bheron Rocha

III INTERNACIONAL

414 O Direito da Agricultura Biológica: notas sobre o regime


jurídico português
Carla Amado Gomes

454 El pacto internacional de derechos civiles y políticos y


la audiencia de custodia
César Barros Leal

479 Bem-estar e produção animal no Direito Europeu:


estágio atual e novas perspectivas
Monique Mosca Gonçalves

541 Globalização, Estado Constitucional Cooperativo


e meio ambiente
Ernani Contipelli

568 Responsabilidade internacional dos Estados por epidemias


e pandemias transnacionais: o caso da Covid-19 provinda
da República Popular da China
Valério de Oliveira Mazzuoli

23
I. AMBIENTAL

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24
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

In dubio pro Natura:


un principio transformador
del derecho ambiental en
América Latina
In dubio pro Nature:
a transforming principle
of environmental law in
Latin America
SUSANA BORRÀS

Resumen

El presente estudio se centra en el análisis del origen y la evolución


del principio in dubio pro natura, existente en diferentes ordenamientos
jurídicos latinoamericanos, así como del estudio de su contenido jurídico,
muy vinculado al principio de precaución y al principio de prevención, y
su utilización en sede judicial, como postulado hermenéutico y aplicativo
del derecho por los jueces y tribunales, ante un eventual conflicto político-
normativo que implica derechos fundamentales ambientales. Este princi-
pio en expansión en la región latinoamericana, emerge como un principio
positivo y transformador del Derecho ambiental, frente al principio de no
regresión de la protección ambiental. Su manifestación se impone tanto
en un plano material, procurando una función hermenéutica de la norma

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ambiental más próxima al carácter biocentrista, que al tradicional sentido
antropocentrista de la norma ambiental; como en un plano procesal, con-
tribuyendo a fundamentar la adopción de medidas cautelares e inversión
de la carga probatoria en el ámbito de un proceso judicial. La evolución y la
función transformadora de este principio conducen a defender su contri-
bución en forjar un verdadero estado de derecho ambiental.

Palabras clave: Principio in dubio pro natura. Biocentrismo. Antropocen-


trismo. Principio de precaución. Principio de prevención. Derecho ambiental.

Abstract

The present study focuses on the analysis of the origin and evolution of
the principle in dubio pro natura, existing in different Latin American legal
systems, as well as the study of its legal content, closely linked to the pre-
cautionary principle and the principle of prevention, and its Use in judicial
office, as a hermeneutical and application of the law by the judges and
courts, before any political-normative conflict that implies fundamental en-
vironmental rights. This expanding principle in the Latin American region
emerges as a positive and a transforming principle of environmental Law, in
the face of the principle of non-regression of environmental protection. Its
manifestation is imposed both on a material level, and seeks a hermeneutic
function of the environmental norm closer to the biocentric nature, than to
the traditional anthropocentrist sense of the environmental norm; as in a
procedural part, contributing to the basis of the adoption of precautionary
measures and investment of the probative burden in the field of a judicial
process. The evolution and the transformative function of this principle lead
to defend their contribution in forging a true state of environmental law.

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Keywords: In dubio pro natura principle. Biocentrism. Anthropocen-


trism. Precautionary principle. Prevention principle. Environmental law.

INTRODUCCIÓN

El principio in dubio pro natura es un principio que se inserta y de-


sarrolla, actualmente, en la legislación de varios países de América Lati-
na. Este principio expresa una comprensión específica del principio de
precaución, que mediante su aplicación se permite dar el beneficio de
la duda al medio ambiente, es decir: “En caso de duda, a favor de la natu-
raleza”. Así, ante cualquier incertidumbre debe resolverse a favor de una
mayor protección y conservación de la naturaleza. Si bien su concepción
tradicional se vincula al principio de precaución, su aplicación práctica
en este contexto geográfico ha derivado a una ampliación conceptual,
que flexibiliza los requisitos del principio precautorio. Según este nuevo
principio, la inexistencia de evidencias prácticas sobre daños potenciales
no es razón válida para no establecer las normas que se consideren nece-
sarias para prevenir la ocurrencia de resultados perjudiciales.

En este orden de ideas, el objetivo de este estudio es analizar el origen


y evolución del principio in dubio pro natura, existente en diferentes orde-
namientos jurídicos latinoamericanos, así como del estudio de su conteni-
do jurídico, muy vinculado al principio de precaución y al principio de pre-
vención, y su utilización en sede judicial, como postulado hermenéutico y
aplicativo del derecho por los jueces y tribunales, ante un eventual conflic-
to político-normativo que implica derechos fundamentales ambientales.
Este principio en expansión en la región latinoamericana, emerge como
un principio de transformación progresiva del Derecho ambiental, tanto
en un plano material, procurando una función hermenéutica de la norma

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27
ambiental más próxima al carácter biocentrista, que al tradicional sentido
antropocentrista de la norma ambiental; como en un plano procesal, con-
tribuyendo a fundamentar la adopción de medidas cautelares e inversión
de la carga probatoria en el ámbito de un proceso judicial. La evolución y la
función transformadora de este principio conducen a defender su contri-
bución en forjar un verdadero estado de derecho ambiental1.

1 ORIGEN Y EVOLUCIÓN: DEL PRINCIPIO DE PRECAUCIÓN AL PRIN-


CIPIO DE DEFENSA DE LA NATURALEZA

En 1992, el establecimiento del paradigma del desarrollo sostenible


permitió un gran desarrollo en el Derecho ambiental, ya que la meta de la
sostenibilidad permitía transformar o bien limitar el principio in dubio pro
libertate a favor de un emergente principio in dubio pro natura. No obs-
tante, con los años junto con una creciente degradación del medio am-
biente, se empieza hablar, ya en 2012, del surgimiento de otro principio,
el de no regresión como principal argumento para procurar la protección
del medio ambiente y frenar el ritmo acelerado de deterioro ambiental,
así como promover y mantener la progresión de los logros ambientales.
La aplicación de carácter más positivo de este principio es, precisamente,
promover defensa de la naturaleza o del “principio in dubio pro natura”2

1 DE SOUZA LEHFELD, L.; FREITAS DE OLIVEIRA, R. M. Estado socioambiental de di-


reito e o constitucionalismo garantista. O princípio in dubio pro natura como mecanismo de
controle do ativismo judicial contrário à tutela dos direitos fundamentais ambientais, IV Encon-
tro internacional do conpedi/oñati estado, constitucionalismo e sociedade, 2016. Disponible en:
http://www.conpedi.org.br/publicacoes/c50o2gn1/2l2559so/JUORPBaakN1ZQ94c.pdf.
2 The applications of this rule are explored in In Dubio Pro Natura (the proceedings
of the Brazilian Association of Magistrates’ First International Conference on Environmental
Law, 8-11 August 2011, Manaus (published by the Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB), 2013, with the support of the Konrad Adenauer Stiftung, ISBN 978-85-7504-178-9).

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28
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

o también conocido como “principio pro ambiente”. Este principio tiene


su virtualidad ante el posible conflicto entre normas, el operador jurídico
debe priorizarla norma más favorable al medio ambiente. Es decir, ante
la duda debe favorecerse la protección ambiente frente al riesgo o ame-
naza de degradación. Por lo tanto, el principio in dubio pro natura, des
de una concepción amplia, “se constituye como un principio inspirador
de interpretación. Esto significa que, en caso de no ser posible una inter-
pretación unívoca, la elección debe recaer sobre la interpretación más
favorable a la protección ambiental”3.

Así, ante un posible conflicto entre dos normas en materia ambiental


debe prevalecer aquella más ventajosa o beneficiosa para la naturaleza,
con el fin de prevenir que se produzca algún daño ambiental.

Según Farias (2007a, p. 1),

El principio in dubio pro naturaleza, según el cual en caso


de duda el medio ambiente debe salvaguardarse, indepen-
dientemente de cualquier valor, es otro logro de la ciudada-
nía que contribuye al mantenimiento de las condiciones de
vida. Por supuesto, estos avances han sido precedidos por
todo un movimiento de conciencia ecológica de que la fuer-
za obtenida de grandes desastres ambientales en los años
sesenta, como el que ocurrió en Francia con el petrolero To-
rrey Canyon, y la revelación de ciertos hechos, tales como el
calentamiento global y el cambio del eje del planeta.

3 FARIAS, P. J. L. Competência Federativa e Proteção Ambiental. Porto Alegre:


Sergio Antônio Fabris Editor, 1999, p. 356.

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29
Tradicionalmente, el principio in dubio pro natura se ha vinculado al
principio de precaución, contemplado en la Declaración de Río de 19924,
en su Principio 15, según el cual:

Con el fin de proteger el medio ambiente, los Estados de-


berán aplicar ampliamente el criterio de precaución con-
forme a sus capacidades. Cuando haya peligro de daño
grave o irreversible, la falta de certeza científica absoluta
no deberá utilizarse como razón para postergar la adop-
ción de medidas eficaces en función de los costos para
impedir la degradación del medio ambiente.

Para la operatividad del principio de precaución suelen exigirse los


siguientes requisitos: 1. Incertidumbre científica; 2. Proporcionalidad
y no discriminación; 3. Gravedad y urgencia; 3. Carácter transitorio; 4.
Desarrollo ulterior de investigaciones destinadas a una evaluación más
objetiva del riesgo; y, 5. comunicación al público5.

Acorde con esta definición, el principio consiste en entender que el


interés es siempre que ante las dudas que tenga la técnica y la ciencia
sobre una determinada actividad, exista la obligación para quien quiera
producir, de probar que puede garantizar todas las medidas de mitiga-
ción posibles para no afectar la salud y el equilibrio de los ecosistemas y
de no ser así la interpretación es a favor del equilibrio de ambos.

4 Vid. Declaration on Environment and Development, Report of the UN Confer-


ence on Environment and Development, New York, 1992, UN. Doc. A/CONF.151/26/Rev.1.
5 ICARD, PH., “L’articulation de l’ordre communautaire et des ordres nationaux
dans l’application du principe de précaution”, Revue juridique de l’environnement, n°
spécial, 2000, p. 29.

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30
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

El despliegue del principio puede llevar a la prohibición temporal de


una actividad o a la adopción de medidas efectivas y proporcionadas des-
tinadas a prevenir un riesgo de daño al ambiente. Por este motivo, en
caso de una prohibición absoluta sine die no puede invocarse el principio
de precaución o cautela, sino el de prevención.

En este sentido, es posible señalar que en la metodología para la pues-


ta en acción del principio, al menos, han de considerarse los siguientes
aspectos: se debe recurrir al principio precautorio cuando se determine la
posibilidad de efectos nocivos para la salud o el medio ambiente y una eva-
luación científica preliminar, a tenor de los datos disponibles, no permita
establecer con certeza el nivel de riesgo; el recurso al principio presupone
que los efectos potencialmente peligrosos han sido identificados, si bien la
evaluación científica no permite determinar el riesgo con suficiente certe-
za; el procedimiento de toma de decisiones para el manejo de esos riesgos,
debe ser transparente e incluir, desde el inicio, todos los intereses involu-
crados; las medidas fundadas en el principio precautorio, deberán: ser pro-
porcionadas al nivel de protección elegido; estar basadas en los posibles
beneficios y los costes de la acción o inacción; someterse a un continuo
proceso de revisión a la luz de nuevas evidencias científicas, por lo que, por
naturaleza, se trata de medidas reversibles y revisables.

BETANCOR señala que entre el principio precautorio y el preventivo exis-


te un fuerte vínculo, y se relacionan entre sí. En concreto se refiere a que

El principio de cautela ha de inspirar la acción preventiva,


es decir, establece una directriz de actuación que refuer-
za la prevención en tanto que establece un parámetro de
actuación en un contexto que es, sin embargo, muy fre-
cuente: el de la incertidumbre.6

6 BETANCOR RODRÍGUEZ, A. Instituciones de Derecho Ambiental, La Ley, Madrid, 2001.

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31
Evidentemente, este principio pone de manifiesto la interdisciplinarie-
dad del Derecho Ambiental, en tanto son otros saberes como la biología,
la ingeniería, entre otros, los que dictan los parámetros para autorizar o no
una determinada actividad. Así, como a continuación se procede a analizar,
la concepción integradora de ambos principios, se ha visto reflejada en el
reconocimiento jurídico del principio in dubio pro natura en diferentes or-
denamientos jurídicos, especialmente, del contexto latinoamericano.

2 RECONOCIMIENTO JURÍDICO DE UN PRINCIPIO OPERATIVO DE


DERECHOS Y DEBERES CONSTITUCIONALES

La raíz constitucional del principio in dubio pro natura se encuentra


en la declaración de interés general a la protección ambiental y es para-
lelo al principio in dubio pro operario, en el campo del Derecho Laboral,
desde que tanto el ambiente como el trabajador, exhiben una vulnerabi-
lidad que tiene como respuesta jurídica una protección elevada.

Si la implicación operativa de este principio permite afirmar que en


caso de duda se aplicará la norma en el sentido más favorable a la natu-
raleza, su reconocimiento jurídico, incluso en muchos ordenamientos en
la misma norma constitucional, contribuye a una configuración transfor-
madora del Derecho ambiental tradicional: en el sentido que su articu-
lación contribuye, por una parte, a desarrollar un nuevo derecho de la
naturaleza como fase evolutiva del Derecho ambiental, consistente en
que las autoridades públicas y jurisdiccionales, deben aplicar el derecho
a favor de la naturaleza por encima de los demás derechos personales y,
por otra, en el refuerzo de la garantía de la protección de los derechos
humanos más fundamentales, condicionados por un necesario alto gra-
do de protección del medio ambiente.

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32
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Esta doble dimensión responde a lo que ya establecía el Principio 1 de


la Declaración de Estocolmo de 1972:

El hombre tiene el derecho fundamental a la libertad, la


igualdad y el disfrute de condiciones de vida adecuadas
en un medio de calidad tal que le permita llevar una vida
digna y gozar de bienestar, y tiene la solemne obligación
de proteger y mejorar el medio para las generaciones
presentes y futuras.7

Al respecto, es importante enfatizar como este precepto reconoce el


derecho a un medio ambiente de calidad adecuada, pero también el de-
ber de contribuir a esta protección. Así, aunque la visión antropogénica
de protección de los llamados “derechos ambientales” ha sido una de
las vías tradicionales de protección ambiental, el reconocimiento de los
llamados “deberes ambientales” o, si se prefiere “contenido obligacional
de los derechos ambientales”, exige una actitud, no solo conservadora,
sino pro activa de protección del entorno, incluso por encima de la pers-
pectiva de derechos, promoviendo una visión biocéntrica o ecocéntri-
ca de los derechos fundamentales, junto con el reconocimiento de una
perspectiva basada en “deberes fundamentales”. El principio in dubio pro
natura llega a conciliar ambas perspectivas en beneficio recíproco, del
medio ambiente y del ser humano. En cierta forma se trata de un para-
digma ambiental, que viene a romper con el paradigma individualista de
corte exclusivamente antropocentrista del derecho, generando nuevos
retos, dificultades, pero también posibilidades interesantes en el ámbito

7 Declaración de la Conferencia de las Naciones Unidas sobre el Medio Am-


biente Humano, 16 de junio de 1972, U.N. Doc. A/.CONF.48/14/Rev.1 Nº 3, 1973. Pmbl;
reimpreso en: 11 I.L.M. 1416, 1972.

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33
jurídico, que trascienden la tendencia de revertir los logros ambientales
en beneficio de intereses privatistas de los recursos naturales. Este nuevo
paradigma ambiental pasa a ser caracterizado por la protección de los
bienes de titularidad difusa y de valor extrapatrimonial, cuya protección
se asegura independientemente de su beneficio para el ser humano. En
esta línea de conceptualización transformadora del derecho se encuen-
tra Ecuador. La consagración de la norma in dubio pro natura se ha ma-
terializado en sede constitucional. En concreto, en su Constitución8, en el
artículo 395, número 4 establece que “En caso de duda sobre el alcance
de las disposiciones legales en materia ambiental, éstas se aplicarán en el
sentido más favorable a la protección de la naturaleza”.

Aun así, la Constitución de Ecuador no solo reconoce a la naturaleza


como titular de derechos, otorgándole a su favor el beneficio de la duda,
sino que también consagra el derecho a un medio ambiente sano y eco-
lógicamente equilibrado, que garantice la sostenibilidad y el buen vivir, a
favor de la población ecuatoriana.

La aproximación al carácter biocentrista y antropocentrista de la nor-


ma protectora del medio ambiente, deviene más compleja si se plantea
la hipótesis de la aplicación de este principio pro natura frente a la apli-
cación de los principios propios del régimen de los derechos humanos,
entre los que existe el principio in dubio pro homine; el cual predispone
que en caso de dudas o conflictos entre normas jurídicas, las normas
deben ser interpretadas en el sentido que más favorezcan a la protección
de los seres humanos. Este sería el caso hipotético de valorar un caso ex-
tremo, que ante la pobreza y la situación que reflejan los indicadores de

8 CONSTITUCION DE LA REPUBLICA DEL ECUADOR 2008. Decreto Legislativo


0, Registro Oficial 449, de 20-oct-2008. Última modificación: 13 jul. 2011. Disponible en:
http://www.asambleanacional.gov.ec/documentos/constitucion_de_bolsillo.pdf

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34
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

desarrollo humano, la sociedad ecuatoriana demande del Estado ecua-


toriano una respuesta urgente: la de explotar los recursos de las áreas
protegidas, lo cual conlleva diferentes derechos e intereses en juego. Por
un lado, los derechos humanos al trabajo, al desarrollo económico, etc.
Y por otro lado, los derechos de la naturaleza con el derecho al manteni-
miento de sus ciclos vitales. En este caso, el conflicto de aplicación de la
norma pro homine estaría en coalición con el principio pro natura.

En este orden de ideas, por ejemplo, si se considera lo establecido en


el artículo 407 de la Constitución ecuatoriana, que dispone:

Se prohíbe la actividad extractiva de recursos no reno-


vables en las áreas protegidas y en zonas declaradas
como intangibles, incluida la explotación forestal. Ex-
cepcionalmente dichos recursos se podrán explotar a
petición fundamentada de la Presidencia de la Repúbli-
ca y previa declaratoria de interés nacional por parte de
la Asamblea Nacional, que, de estimarlo conveniente,
podrá convocar a consulta popular.

Ciertamente que al colisionar los principios pro homine y pro na-


tura, la sola definición o alcances de ambos conceptos no son sufi-
cientes, por lo tanto, deben buscarse respuestas en otros escenarios
jurídicos: como la ponderación entre los bienes jurídicos a proteger,
la proporcionalidad, la integralidad de la norma, el derecho mejor
protegido, la necesidad, etc., deben ser algunos de los parámetros
para una correcta aplicación de ambos principios.

Lo que parece estar claro es que por su rango constitucional, este


principio debe prevalecer frente a la normativa secundaria. Así, en

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35
el caso de existir alguna duda o conflicto entre las leyes, como por
ejemplo, entre una ley de explotación de recursos naturales (petró-
leo, minería, biodiversidad) y las disposiciones constitucionales o
leyes secundarias posteriores sobre protección de la naturaleza, los
funcionarios públicos y judiciales tienen que aplicar las normas que
más favorezcan a la naturaleza, en el caso de presentarse una colisión
en la aplicación de la norma, de tal manera que los derechos de las
personas y los derechos de la naturaleza sean de real y plena vigencia.

En una segunda línea de protección ambiental, de carácter más an-


tropocéntrica, está el caso de Brasil, cuya Constitución Federal de 1988,
ápice del Derecho ambiental, no solo establece derechos y deberes
fundamentales de protección ambiental, sino que asegura mecanismos
jurisdiccionales efectivos, con el fin de sancionar conductas lesivas para
el medio ambiente, como son: la acción popular, la acción civil pública
y el control de constitucionalidad, entre las más importantes. En este
parámetro de protección constitucional, a pesar de no estar referen-
ciado el principio in dubio pro natura, este ha sido profusamente desa-
rrollado a la par con el artículo 225, es decir, vinculando la protección
ambiental con el disfrute de un derecho a un medio ambiente sano9.
Una visión antropocéntrica, que también ha contribuido a desarrollar
esta otra dimensión del principio in dubio pro natura.

9 BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil.


Brasília: Senado Federal, 1988. “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologi-
camente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para
as presentes e futuras gerações”.

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36
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

También la Constitución de la República de Uruguay de 199710, en su


artículo 47 regula que “La protección del medio ambiente es de interés
general y las personas deberán abstenerse de cualquier acto que cause
depredación, destrucción o contaminación graves al medio ambiente.”.
Este deber se extiende al Estado, en el sentido que este tiene el deber
fundamental de proteger el ambiente, y si este fuera deteriorado, recu-
perarlo o exigir que sea recuperado.

Con todo, esto lleva a suponer que el Derecho ambiental adquiere


una doble dimensión: derechos ambientales de las personas, por una
parte; y, derechos de la naturaleza por otra, pero unidos bajo la misma
trayectoria, las mismas que en determinadas circunstancias pueden coli-
sionar, pero que al mismo tiempo pueden ser complementarias para que
ninguno de los sujetos de derechos involucrados (personas y naturaleza)
sean perjudicados o se dejen en una posición de desventaja.

Aun así, el reconocimiento del principio in dubio pro natura es de re-


levante importancia para el litigio de casos ambientales en los diferentes
países del contexto geográfico latinoamericano, pues supone que aun
habiéndose obtenido una determinada concesión para explotación de
recursos naturales, o habiéndose obtenido la respectiva licencia ambien-
tal para realizar las actividades extractivas de conformidad con la ley, si
se evidencia el riesgo o la propia existencia de una amenaza que pongan
en peligro los derechos de la naturaleza, sea por la contaminación de sus
elementos ecosistémicos (agua, suelo, aire) o por otros impactos, que
pudieran generar las actividades autorizadas, puede solicitarse a la auto-

10 Constitución de la República, Constitución 1967 con las modificaciones plebi-


scitadas el 26 de noviembre de 1989, el 26 de noviembre de 1994, el 8 de diciembre
de 1996 y el 31 de octubre de 2004. Texto disponible en: https://parlamento.gub.uy/
documentosyleyes/constitucion

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37
ridad judicial la revisión de tal autorización, la cual aunque haya pasado
por un procediendo legal estaría vulnerando derechos constitucionales
de tutela de los derechos de la naturaleza, por lo cual sería perfectamen-
te válido la aplicación del principio in dubio pro natura.

Esto implica, como se analizará en adelante, que la legislación secun-


daria y la jurisprudencia de los jueces y las cortes deban ir configurando
unas líneas de aplicación de modo que se vaya determinando de forma
clara los alcances de los derechos de las personas en las actividades que
implican una afectación al régimen jurídico de los derechos de naturale-
za, a fin de que en la práctica no se contrapongan dichos derechos sino
que existan una armonía y complementariedad entre ambos.

En esta misma línea, recientemente, el 11 de enero 2017, la ciudad


de México adoptó el reconocimiento de los derechos de la Naturaleza, en
concreto, en el artículo 18.2 y 3 de la Constitución. Estas disposiciones,
que se espera que entren en vigor el 5 de febrero de 2017 en conme-
moración del centenario de la adopción de la Constitución de los Esta-
dos Unidos de México por el Congreso constitucional el 5 de febrero de
191711. Asimismo, después de varios años de intentar llevar a cabo una
reforma constitucional integral en el Estado de Guerrero, la LX Legislatura
del Congreso de Estado consiguió impulsarla y cristalizarla12. El resultado
fue una Constitución con 200 artículos y 22 transitorios. A efectos de esta
investigación es importante resaltar su artículo 2 que regula “Los dere-
chos de la naturaleza”, que reza de la siguiente manera:

11 CONSTITUCIÓN POLÍTICA DE LA CIUDAD DE MÉXICO. Artículos aprobados por


el Pleno de la Asamblea Constituyente en sesión del 11 de enero de 2017. Texto dispo-
nible en: https://gallery.mailchimp.com/7975b23bc2eeddeb6d016bf4f/files/Constitu-
cion_Mexico_DF_Art.18.pdf
12 ONSTITUCIÓN POLÍTICA DEL ESTADO LIBRE Y SOBERANO DE GUERRERO, Texto dispo-
nible en: http://www.guerrero.gob.mx/consejeriajuridica [email protected]

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38
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

En el Estado de Guerrero la dignidad es la base de los de-


rechos humanos, individuales y colectivos de la persona.

El principio pro natura, será la base del desarrollo econó-


mico con rostro humano.

Son valores superiores del orden jurídico, político y social


la libertad, el pluralismo democrático e ideológico, el lai-
cismo, la diversidad, el respeto y la protección a la vida.

Son deberes fundamentales del Estado, promover el pro-


greso social y económico, individual o colectivo, el desa-
rrollo sustentable, la seguridad y la paz social, y el acceso
de todos los guerrerenses en los asuntos políticos y en
la cultura, atendiendo en todo momento al principio de
equidad; garantizar y proteger los derechos de la natura-
leza de conformidad con la ley respectiva.

En este sentido, la redacción de este artículo de la Constitución del


Estado de Guerrero es interesante puesto que incluye principios de los
derechos humanos y de los derechos de la naturaleza. Este artículo con-
tiene tres aspectos fundamentales: El principio pro natura, como base
del desarrollo económico con rostro humano; la protección a la vida y
la protección de los derechos de la naturaleza de conformidad con la
ley respectiva. De estos elementos incluidos en esta disposición consti-
tucional, se deriva que no hay pugna entre la perspectiva biocéntrica y
antropocéntrica, al contrario, se necesitan y complementan13.

13 Consultar: GARZA GRIMALDO, J. G. Comentarios a la Ley de protección de la tierra


del Distrito Federal y la reforma constitucional integral en el estado de Guerrero, Congreso RE-
DIPAL VIRTUAL VII Red de Investigadores Parlamentarios en Línea Enero-agosto 2014 Febrero,
2014. Disponible en: http://www.diputados.gob.mx/sedia/sia/redipal/CRV-VII-29_14.pdf.

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39
3 EL RECONOCIMIENTO DE UNA NUEVA HERMENÉUTICA LEGISLA-
TIVA DE PROTECCIÓN DEL MEDIO AMBIENTE

A diferencia del principio in dubio pro reo, propio del Derecho penal,
el principio in dubio pro natura no es una regla operativa, para que el juez
pueda decidir cuando exista una duda. El principio in dubio pro natura de-
termina que la interpretación del derecho debe favorecer una de las par-
tes. Se trata de un verdadero mecanismo de represión y de contingencia
para los casos en que varias decisiones serian jurídicamente posibles, a
pesar de que no todas son convenientes a la luz de una determinada po-
lítica ambiental. Este principio no deja de ser un reflejo del Principio 3 de
la Declaración de Río, que determina que “el derecho al desarrollo debe
ejercerse en forma tal que responda equitativamente a las necesidades de
desarrollo y ambientales de las generaciones presentes y futuras”14.

La aplicación de este principio no tiene como resultado necesaria-


mente un aumento de la protección ambiental, sino la creación de un
sistema artificial de seguridad, en la línea del principio de no regresión,
donde el autor de la acción sobre el medio ambiente corre con los gastos
de compensación y estos costos se incorporarán en los costos de produc-
ción (y, por lo tanto, en los precios finales de bienes y servicios), mientras
los daños se sigan produciendo.

Como ya se ha comentado, anteriormente, el reconocimiento y la


conceptualización, a nivel legislativo, del principio pro natura se ha vin-
culado al principio de precaución y, en otras ocasiones, a un principio
verdaderamente de defensa de la naturaleza, convirtiéndose, como se
refiere la profesora Voigt, en un verdadero “[…] rule of law for Nature”15.

14 Declaración de Rio de 1992, Cit. Supra.


15 VOIGT, C., A Rule of Law for Nature, Cambridge University Press, 2013.

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40
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

En este sentido, en Costa Rica, la Ley de Biodiversidad N°7788 del


30 de abril de 198816, en su Artículo 11 inciso 2, establece el criterio de
precaución o in dubio pro natura, en concreto “Cuando exista peligro
o amenaza de daños graves o inminentes a los elementos de la biodi-
versidad y al conocimiento asociado con estos, la ausencia de certeza
científica no deberá utilizarse como razón para postergar la adopción
de medidas eficaces de protección” 17.

El juez brasileño Antonio BENJAMÍN18 apunta, en este sentido, que la ne-


cesidad de una tutela de anticipación, se impone de este modo, consideran-
do la amenaza de que acaezcan daños graves e irreversibles cuyas secuelas
pueden propagarse en el espacio a través del tiempo. La falta de certeza
científica acerca de la etiología de determinados procesos medioambienta-
les y de los alcances de muchas relaciones ecológicas básicas contribuye a
acentuar las dudas sobre el encuadramiento legal del ambiente como pre-
ciado bien jurídico. El deber de precaución obliga a tener en cuenta la pro-
babilidad de importantes daños en la biosfera, situación que determina la
exigencia de un mayor celo y cuidado ante la fundada sospecha de que se
encuentre comprometida la integridad del medio ambiente.

En Argentina, por ejemplo, la Ley General del Ambiente número


25.675, de 2002 concibe la defensa de la naturaleza a través del principio
precautorio, de la siguiente manera:

16 Texto disponible en línea en: http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/le-


yes/leypenal/leybiodiversidad.htm
17 Ver Sentencia 14596-11, 16316-11. Disponibles, respectivamente en:
http://sitios.poder-judicial.go.cr/salaconstitucional/Constitucion%20Politica/Senten-
cias/2011/11-014596.html y http://sitios.poder-judicial.go.cr/salaconstitucional/Consti-
tucion%20Politica/Sentencias/2011/11-016316.html.
18 BENJAMÍN, A. E. “Derechos de la naturaleza”, p. 31 y ss., en la obra colectiva
Obligaciones y Contratos en los albores del siglo XXI, Abeledo- Perrot, 2001.

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41
Cuando haya peligro de daño grave e irreversible la au-
sencia de información o certeza científica no deberá uti-
lizarse como razón para postergar la adopción de medi-
das eficaces, en función de los costos para la impedir la
degradación del ambiente.

En Uruguay, la base filosófica del principio precautorio, recogido en


el art. 6 de la Ley 17.283: “cuando hubiere peligro de daño grave o irre-
versible, no podrá alegarse la falta de certeza técnica o científica abso-
luta como razón para no adoptar medidas preventivas”19. Así, los jueces
deben aplicar principio ‘in dubio pro’ ambiente cuando exista duda en
la resolución de procesos relacionados con la vulneración del derecho
colectivo al goce del entorno natural. El juez debe aplicar el principio
in dubio pro ambiente, que, como su nombre lo indica, implica resolver
toda duda a favor del medio ambiente.

En el caso de Colombia, la aplicación del principio ha partido del reco-


nocimiento del derecho a un ambiente sano y ecológicamente equilibrado,
incluido en el artículo 50 de la Constitución Política, y se ha reconocido
igualmente el denominado “principio precautorio en materia ambiental”,
vinculado al principio in dubio pro natura, cuya observancia implica que
todas las actuaciones de la administración pública en temas sensibles al
ambiente, sean realizadas con el celo adecuado para evitar riesgos y daños
graves e irreversibles. En otras palabras, si se carece de certeza sobre la
inocuidad de la actividad en cuanto a provocar un daño grave e irreparable,
la administración debe abstenerse de realizar este tipo de actividades.

19 Publicada D.O. 12 dic/000 - Nº 25663, Ley Nº 17.283 Declarase de interés gen-


eral, de conformidad con lo establecido en el artículo 47 de la Constitución de la República,
que refiere a la protección del medio ambiente, adoptada por el Senado y la Cámara de
Representantes de la República Oriental del Uruguay, reunidos en Asamblea General. Dis-
ponible en: https://legislativo.parlamento.gub.uy/temporales/leytemp1711770.htm.

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42
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Más allá de la caracterización antropocéntrica del principio, el reco-


nocimiento del principio pro natura, concebido de una forma más amplia
de defensa de la naturaleza se ha producido, al igual que en el caso del
Ecuador que se mencionaba anteriormente, también un reconocimiento
a nivel normativo de los derechos de la naturaleza. Así, en Guatemala, la
Ley Marco para Regular la Reducción de la Vulnerabilidad, la Adaptación
Obligatoria ante los Efectos del Cambio Climático y la Mitigación de Gases
de Efecto Invernadero se refiere, expresamente a que “Ante la duda, fa-
vorecer la naturaleza”20. En este sentido, el principio implica que cuando
exista duda de una acción u omisión que pueda afectar al ambiente, las
decisiones que se tomen deben orientarse a su protección y se distingue
del segundo principio, el de “Precaución”, según el cual: “Se tomarán me-
didas de precaución para prever, prevenir o reducir al mínimo las causas
del cambio climático y mitigar sus efectos adversos. Cuando haya ame-
naza de daño grave o irreversible, no debería utilizarse la falta de total
certidumbre científica como razón para posponer tales medidas”.

Un paso más allá ha sido el caso de México, en concreto, en el estado


de Guerrero. El cambio de nombre de Ley Ambiental, por el de Ley de
Protección de la Tierra21, representa una transición jurídica de una visión

20 Decreto 7-2013, Ley Marco para Regular la Reducción de la Vulnerabilidad, la


Adaptación Obligatoria ante los Efectos del Cambio Climático y la Mitigación de Gases de Efec-
to Invernadero. Disponible en línea en: http://www.marn.gob.gt/Multimedios/2682.pdf.
21 En la Gaceta Oficial del Distrito Federal del 17 de septiembre del 2013, se publicó el
Decreto por el que se cambia el nombre de la Ley Ambiental por el de Ley de Protección de la
Tierra y se reforman y adicionan diversas disposiciones de la Ley Ambiental; así como se refor-
man diversas disposiciones de la Ley Orgánica de la Procuraduría Ambiental y del Ordenamiento
Territorial del Distrito Federal. El documento reforma los artículos 1, 2 ,5, 9, 20, 23, 69, 70 Bis, 73,
80 y 111; se adiciona en el Título Cuarto un Capítulo I Bis “De la Tierra y sus recursos naturales”
y en los artículos 86 Bis 1, 86 Bis 2, 86 Bis 3, 86 Bis 4, 86 Bis 5 y 86 Bis 6, así como los artículos
3, 5, 15 Bis, 4 y 23 de la Ley Orgánica de la Procuraduría Ambiental y del Ordenamiento Terri-
torial del Distrito Federal, con los cuales se busca garantizar y promover el respeto protección,
defensa y conservación que provee la Tierra a la humanidad. Disponible en: www.ordenjuridico.
gob.mx/.../Estatal/Distrito%20Federal/wo85642.pdf. Consultar a GARZA GRIMALDO, J. G. Cit.
Supra. Disponible en: http://www.diputados.gob.mx/sedia/sia/redipal/CRV-VII-29_14.pdf.

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43
antropocéntrica a una visión biocéntrica. La nueva Ley de protección de
la Tierra mantiene el derecho a un medio ambiente sano (antropocen-
trismo), pero además, reconoce los derechos de la naturaleza (biocen-
trismo); reivindica el valor primordial de la vida: los seres vivos tienen el
mismo derecho a existir, a desarrollarse y a expresarse con autonomía,
merecen respeto al tener el mismo valor. Su artículo 395.4 establece que
“En caso de duda sobre el alcance de las disposiciones legales en materia
ambiental, éstas se aplicarán en el sentido más favorable a la protección
de la naturaleza”. Ahora bien, el artículo 395.4 utiliza la expresión “en
caso de duda” como condición para determinar el alcance de disposi-
ciones en materia ambiental en el sentido más favorable a la protección
de la naturaleza. Si hay normas que reconocen un derecho y una lo hace
de un modo más favorable que otra, se debe aplicar la primera indepen-
dientemente de su jerarquía, conforme con el número 5 del artículo 11
de la Constitución. Pero ese no es un caso de duda. En lo interpretativo,
en cambio, si quien va a aplicar una norma puede darle más de un senti-
do y alcance, y duda sobre cual debe darle, pues será el más favorable al
derecho fundamental, aunque, insisto, eso no solo se produce en casos
de duda sino siempre: si a una norma se le puede dar más de un sentido
y alcance que claramente no tengan, o que se pretenda aplicar normas
impertinentes alegando el principio pro natura.

El reconocimiento progresivo, a nivel constitucional y legislativo, en


este contexto geográfico denota sin duda, que independientemente de
la perspectiva biocéntrica o antropocéntrica, la voluntad de acuñar el
principio pro natura como base del desarrollo económico, como elemen-
to equilibrador entre la protección ambiental y los derechos humanos y
como elemento corrector ante eventuales conflictos, que prioricen inte-
reses privatistas de los recursos naturales en detrimento de la satisfac-
ción de los derechos fundamentales.

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44
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

4 LA APLICACIÓN DEL PRINCIPIO “IN DUBIO, PRO NATURA”: LA RE-


TROACTIVIDAD Y LA IRREVERSIBILIDAD DE LA NORMA AMBIENTAL

La aplicación del principio in dubio pro natura ha venido caracteri-


zada por una prominente posición hermenéutica innovadora, llegando
incluso a establecer las bases para la readaptación del principio de la
irretroactividad de la ley. La perennidad del principio de irretroactividad
se quiebra cuando éste se contrasta con los principios ambientales, tales
como el principio objeto de estudio, el principio de progresividad y el de
no regresión. El resultado es el fortalecimiento de una suerte de orden
público ambiental, como parte del llamado “Estado Social y Ambiental de
Derecho”22. Así, este principio se convierte en una suerte de “metanor-
ma” rectora de la aplicación del derecho, razón por la cual limita y vincula
la actuación jurisdiccional del Estado en la resolución de eventuales coli-
siones entre derechos fundamentales. Se tratat de un control jurisdiccio-
nal, con un fundamento constitucional fuertemente garantista y basado
en la sostenibilidad23. En virtud de ello, es posible aseverar, según Mon-
toro, que “[…] la protección del medio ambiente puede fundamentarse
no sólo [sic] en la categoría de los derechos, sino también en el mandato
constitucional que atribuye a los poderes públicos su protección […]”24.

22 MORATO LEITE, J. R.; NEIVA MELCHIOR, G. O Estado de direito ambiental e a


particularidade de uma hermêutica jurídica. Brasil, Seqüencia. N° 60, 2010, pp. 291-318.
También FERNSTERSEIFER, T. Estado socioambiental de derecho y el principio de solidari-
dad como su marco jurídico constitucional. Disponible en: http://jus.com.br.
23 DE SOUZA LEHFELD, L.; FREITAS DE OLIVEIRA, R, M. Estado socioambiental de
direito e o constitucionalismog arantista. o princípio in dubio pro natura como mecanismo
de controle do ativismo judicial contrário à tutela dos direitos fundamentais ambientais. In:
RODRIGUES PETTERLE, S.; URQUHART DE CADEMARTORI, S. Estado, constitucionalismo e
sociedade. IV Encontro Internacional do CONPEDI-OÑATI. Conselho Nacional de Pesquisa
e Pós-Graduação em Direito, Oñati, 2016.
24 MONTORO CHINER, M. J. El Estado Ambiental de derecho. Bases Constituciona-
les. In: SOSA, Wagner Francisco (Coord.). El derecho Administrativo en el siglo XXI - Home-
naje al prof. Dr. D. Ramón Martín Mateo. España: Tirant lo Blanch, 2000, t. III, p. 3443.

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45
Justamente, es ese deber el que vincula al Estado a las normas de dere-
cho ambiental en sus actuaciones, y que sirve de límite a su actuación en
razón del cuidado del entorno.

En este sentido, los principios de Derecho ambiental permiten intro-


ducir un grado de flexibilidad de las normas más tradicionales del De-
recho y que permiten a su vez, su transformación y su evolución, para
procurar la promoción de la función de tutela de los intereses colectivos
y difusos, frente a los individuales y concretos.

Precisamente, el principio de progresividad y el de no regresión del


Derecho ambiental permiten que la norma ambiental posterior deba ser
más rigurosa que aquella promulgada con anterioridad y, por tanto, debe
descartarse la aplicación de la regla de lex posterior derogat priori en
la medida que lo que se busca es, precisamente, mejorar los niveles de
protección mediante la aplicación de la norma más estricta y protectora
para el ambiente. Bajo esta lógica es absolutamente posible, e incluso en
ocasiones necesaria, la aplicación retroactiva de la normativa ambiental,
en la medida que esto conlleve mayores niveles de protección del bien
común o del interés común ambiental.

El principio de irretroactividad de la norma ambiental implica la im-


posibilidad de aplicar normas nuevas a hechos acaecidos con anteriori-
dad a su promulgación. La irretroactividad normativa conlleva a su vez la
irreversibilidad, es decir, la imposibilidad de que se promulguen nuevas
normas o se apliquen procedimientos menos favorables a los existentes;
de manera que toda norma posterior significa un avance, o al menos no
un retroceso, respecto a la norma anterior que deroga. La retroactividad
encuentra su justificación o su operatividad en el ámbito ambiental, en
el que toda norma posterior debe extender un grado de protección igual
o superior a la del pasado, derogado estas. La principal consecuencia es

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46
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

que la ley anterior de ser más protectora continúe en vigor, hasta que no
se adopte otra norma aún más protectora; cualquier norma posterior
que reduzca este grado de protección hará prevalecer la norma anterior
más protectora. En realidad, el criterio de jerarquización de las normas
ambientales se basa en el grado de protección desplazando el criterio
temporal de priorización.

En consecuencia, la aplicación de este principio genera la obligación


para los operadores jurídicos de derogación y la obligatoriedad de apli-
car, entre dos normas diferentes para el mismo caso, aquella más favora-
ble, sin que se aplique la jerarquía normativa basada en la posterioridad
temporal de la norma. Por lo demás, esta obligación no implica que esta
sea la mejor protección no exige un avance, sino impedir un retroceso
en el grado de protección. En definitiva, representa una inhibición por
parte del Estado, al igual que los derechos civiles y políticos, tal y como
se reconoce en el Pacto de los Derechos Civiles y Políticos25, en su ar-
tículo 5. Esta obligación se observa, igualmente, en el artículo 5.2 del
Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales26, de
donde emana del propio principio de progresividad, en base al cual los
Estados se comprometen a aumentar el nivel de protección, es decir, la
obligación de comprometerse a no degradar los niveles de protección y
sustento ya logrados. Así, el principio de progresividad de los derechos

25 Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos. Adoptado y abierto a la fir-


ma, ratificación y adhesión por la Asamblea General en su resolución 2200 A (XXI), de 16 de
diciembre de 1966. Entrada en vigor: 23 de marzo de 1976, de conformidad con el artículo
49 Lista de los Estados que han ratificado el pacto.
26 Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, Adoptado y abi-
erto a la firma, ratificación y adhesión por la Asamblea General en su resolución 2200 A (XXI), de
16 de diciembre de 1966. Entrada en vigor: 3 de enero de 1976, de conformidad con el artículo
27. Texto disponible en: http://www.ohchr.org/SP/ProfessionalInterest/Pages/CESCR.aspx.

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47
pasa, en primer término, por no permitir ninguna merma o retorno a
situaciones ya superadas. Así, el profesor Prieur defiende el principio de
no regresión e incluso ha tenido cierto reconocimiento en sede judicial27.

Esta misma obligación, explicitada en los acuerdos internacionales de


carácter universal, también se encuentra presente en acuerdos regionales,
como es el artículo 29 de la Convención Americana de Derechos Humanos28.

Esta obligación de no retorno o de irreversabilidad, supone un límite


en la actuación del Estado, pero también una obligación correlativa de
promover un desarrollo positivo y garantía de los derechos. Así, en el
preámbulo de la Declaración Universal de Derechos Humanos, expresa-
mente hace referencia a que los pueblos y naciones deben asegurar, “por
medidas progresivas de carácter nacional e internacional, su reconoci-
miento y aplicación universales y efectivos…”. Por su parte, el Pacto In-
ternacional de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales, lo recoge
en el artículo 2.1, y la Convención Americana sobre Derechos Humanos
hace lo propio en el artículo 26.

27 Ver, por ejemplo, la Decisión sobre la demanda de Constantino Gonzales Rodríguez


de declarar nula la Resolución No AG- 0072-2009 de la Autoridad Nacional Ambiental (ANAM),
publicada Gaceta Oficial No. 26,221 (11 Febrero 2009), Entrada no. 123-12, Corte Suprema de la
República de Panamá, Tercera Sala de Derecho Administrativo (23 Diciembre 2013), disponible en:
http://es.scribd.com/doc/193671950/Setencuia-Bahia-Panama-Principio-No-Regresion. Sobre
este principio consultar a PRIEUR, M. “Urgently Acknowledging the Principle of ‘Non-Regression’
in Environmental Rights”, IUCN Academy of Environmental Law eJournal Issue 2011(1), available
at http://www.iucnael.org/en/e-jouinral/previous-issues/157-issue20111.html. También a ROB-
INSON, N. A., “The Resilience Principle”, 5 IUCN Academy of Environmental Law eJournal 19, 2014.
Disponible en: http://digitalcommons.pace.edu/ lawfaculty/953/. Y THOMÉ, R. Princípio da veda-
ção do retrocesso socioambiental: no contexto da sociedade de risco. Bahia: Juspodivm, 2014.
28 Convención americana sobre derechos humanos, suscrita en la Conferencia es-
pecializada interamericana sobre derechos humanos (B-32), San José, Costa Rica, 7 al 22 de
noviembre de 1969. Texto disponible en: http://www.oas.org/dil/esp/tratados_b-32_con-
vencion_americana_sobre_derechos_humanos.htm.

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48
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Así, la aplicación del principio in dubio pro natura inspira una proac-
ción, que en sede judicial, como se analizará a continuación, ha sido ope-
rado en la solución de distintos casos a favor de la protección ambiental.

5 LA AFIRMACIÓN JURISPRUDENCIAL DEL PRINCIPIO IN DUBIO


PRO NATURA

La aplicación del principio in dubio pro natura en sede judicial ha


sido especialmente interesante en América Latina y ha contribuido a
determinadas transformaciones en la solución judicial de conflictos so-
cioambientales: por ejemplo, incentivando la aplicación retroactiva de
la norma más favorable a la protección ambiental, la inversión de la
carga probatoria, la adopción de medidas cautelares o de suspensión
de actividades nocivas para el medio ambiente, etc. Todo ello resultan-
do a favor del interés ambiental legítimo de la colectividad frente a los
intereses económicos particulares.

Las soluciones judiciales a conflictos socio-ambientales han sido ca-


lificadas como de “activismo judicial”, mediante una interpretación her-
menéutica favorable y evolutiva de la protección de la naturaleza. No
obstante, la aplicación del principio in dubio pro natura restringe, preci-
samente, cualquier posible discrecionalidad jurisdiccional en caso de un
eventual conflicto normativo, exigiendo la prevalencia de la tutela am-
biental más restrictiva. En caso lagunas en el sistema político-normativo,
este principio permite prevalecer la tutela del ambiente y de los dere-
chos fundamentales ambientales.

Esta actividad interpretativa de la norma jurídica en foro judicial, hasta el


punto de colmar posibles lagunas normativas, ha sido ciertamente criticada
por constituir una suerte de desviación del poder, quebrando la tradicional

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49
división de poderes judicial, legislativo y político29. Sin embargo, hay diversas
razones para entender que este activismo judicial debiera ser una actividad
normalizada ante la determinación de la protección ambiental: en primer
lugar, las omisiones y/o actuaciones insuficientes de los Estados en su deber
de proteger el medio ambiente y de garantizar, correlativamente, el derecho
a un medio ambiente sano; en segundo lugar, la situación de peligro o daño
ambiental generada en consecuencia; y, en tercer lugar, la misma aplicación
de la norma jurídica protectora, justifica sin duda la admisión de un refuerzo
interpretativo pro ambiente en razón del bien o interés público.

La tutela jurisdiccional ambiental, a partir del reconocimiento y pro-


tección del principio pro natura ha contribuido al reconocimiento y ga-
rantía efectiva, por una parte, del derecho a un medio ambiente sano y
por otra, de la defensa de la naturaleza. Tal y como se pretende con la
regulación constitucional y/o legislativa de la protección del medio am-
biente, ya sea desde una perspectiva biocéntrica y/o antropocéntrica.

Al respecto, el antecedente judicial más remoto se encuentra en


Argentina, con un fallo histórico de la Corte Suprema de Justicia de Ar-
gentina CXVIII, 278 y XXXI, 23, Podestá, Santiago y otros c/ Provincia
de Buenos Aires s/ indemnización de daños y perjuicios, de fecha 14
de mayo de 1887, que faculta aplicar la norma ambiental a situacio-
nes creadas, sin violentar el principio de retroactividad, basándose no
estrictamente en el deber de proteger el medio ambiente, sino, por la
época en que se emite esta decisión, más en el deber de proteger la
salud pública, contra la cual no existen derechos adquiridos30.

29 BARROSO, L. R. et. al. As novas faces do ativismo judicial- Constituição, democracia


e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Salvador: JusPodivm, 2011.
También RAMOS, E. S. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.
30 Código Civil, art. 2611. Leyes de la Provincia de Buenos Aires del 31 de mayo de
1822 y de 6 de septiembre de 1881. Ley 13, Título 32, Partida 3°.

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50
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

En el caso de Costa Rica, la implementación del principio pro natura


ha permitido un mayor desarrollo con la inversión de la carga probatoria,
como una de las principales aportaciones de suma importancia. Es nu-
merosa la jurisprudencia de la Corte Constitucional de Costa Rica, en la
aplicación de este principio desarrollado de manera explícita. En general,
la aplicación jurisdiccional de este principio, como ya se ha mencionado
anteriormente, se ha producido en una estrecha relación con el principio
de precaución. En particular, por la Sala Constitucional de Costa Rica, que
en su Voto N° 5893-95 estableció que:

[…] en la Declaración de Río sobre Medio Ambiente y el


Desarrollo, entre otras cosas, quedó establecido el de-
recho soberano de los estados a definir sus políticas de
desarrollo. Se enuncia también, el principio precautorio
(principio 15 de la Declaración de Río), según el cual
“con el fin de proteger el ambiente, los Estados deberán
aplicar ampliamente el criterio de precaución conforme
a sus capacidades. Cuando haya peligro de daño grave
o irreversible, la falta de certeza científica absoluta no
deberá utilizarse como razón para postergar la adopción
de medidas eficaces en función de los costos para im-
pedir la degradación del ambiente”. De modo que, en la
protección de nuestros recursos naturales, debe existir
una actitud preventiva, es decir, si la degradación y el
deterioro deben ser minimizados, es necesario que la
precaución y la prevención sean los principios dominan-
tes, lo cual lleva a la necesidad de plantear el principio in
dubio pro natura que puede extraerse, analógicamente,
de otras ramas del Derecho y que es, en un todo, acorde
con la naturaleza. No obstante, la tarea de protección al
ambiente, se dificulta toda vez que arrastramos una con-

Ir para o índice
51
cepción rígida con respecto al derecho de propiedad, que
impide avanzar en pro del ambiente, sin el cual no podría
existir el derecho a la vida, al trabajo, a la propiedad o
a la salud. No se debe perder de vista el hecho de que
estamos en un terreno del derecho, en el que las nor-
mas más importantes son las que puedan prevenir todo
tipo de daño al ambiente, porque no hay norma alguna
que repare, a posteriori, el daño ya hecho; necesidad de
prevención que resulta más urgente cuando de países en
vías de desarrollo se trata. En este sentido, la Declaración
de Estocolmo afirmó “...que en los países en desarrollo la
mayoría de los problemas ambientales son causados por
el mismo subdesarrollo. Millones continúan viviendo por
debajo de los estándares mínimos de salud y salubridad.
Por lo tanto los países en desarrollo deben dirigir todos
sus esfuerzos hacia el desarrollo, teniendo en mente las
prioridades y necesidades para salvaguardar y mejorar el
ambiente. Por la misma razón los países industrializados
deberían hacer esfuerzos para reducir la brecha entre
ellos y los países en desarrollo.31

En una decisión posterior, en el Voto 2150-99, del 19 de febrero de


1999, la Sala Constitucional sostuvo que:

[…] es innegable la violación al artículo 7 constitucional al


contrariarse los Convenios Internacionales, pues este de-
creto autoriza la caza de la tortuga verde para su consumo y

31 Exp.0201-C-91 N° 5893-95 SALA CONSTITUCIONAL DE LA CORTE SUPREMA DE


JUSTICIA. Disponible en línea en: http://www.asamblea.go.cr/sd/Reglamento_Asamblea/
RAL%202014/Resoluciones%20Sala/5893-95.pdf.

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52
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

su captura para el comercio sin bases científicas suficientes


para acertar que eso es posible y en qué medida, despro-
tegiéndolas irresponsablemente con la sola existencia de la
duda que gira en torno a la sobrevivencia de éstas, lo que
hace a esta normativa inconstitucional según el principio
“in dubio pro natura”, donde sólo la duda del perjuicio que
se le pueda causar al equilibrio ecológico es suficiente para
protegerlo y con mucho más razón cuando existen estudios
científicos que exigen su máxima protección.

En otro voto de la Sala Constitucional, el 10465-2000, de 24 de no-


viembre del 2000, se establece con mayor claridad que de conformidad
con el artículo 50 de la Constitución Política, en relación con el principio
número 15 de la Declaración de Río y el numeral 11 de la Ley de Biodiver-
sidad, el principio precautorio en materia ambiental implica la potestad
de asumir decisiones que impongan restricciones a las actividades priva-
das que puedan lesionar componentes del medio ambiente, como puede
ser el caso de los recursos marinos. En este sentido, la Sala Constitucional
ha indicado que:

IV. Sobre el fondo.- Tratándose del derecho a vivir en un


medio ambiente “sano y ecológicamente equilibrado”
la Sala Constitucional ha reconocido la existencia de un
interés difuso a favor de todos los habitantes de la Repú-
blica, siendo consistente en sus pronunciamientos desti-
nados a la tutela efectiva de los derechos y libertades de
las personas. Así, en sentencia número 2219- 99 de 24 de
marzo de 1999, la Sala indicó:

V.- El objetivo primordial del uso y protección del am-


biente es obtener un desarrollo y evolución favorable

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53
al ser humano. La calidad ambiental es un parámetro
fundamental de la calidad de vida; al igual que la salud,
alimentación, trabajo vivienda, educación, entre otros.
El derecho a un ambiente sano y ecológicamente equi-
librado, reconocido en el artículo 50 de la Constitución
Política, garantiza el derecho del hombre a hacer uso
del ambiente para su propio desarrollo, lo que implica el
correlativo deber de proteger y preservar el medio, me-
diante el ejercicio racional y el disfrute útil del derecho
mismo. El Estado también tiene la obligación de procurar
una protección adecuada al ambiente; consecuentemen-
te, debe tomar las medidas necesarias para evitar la con-
taminación y, en general, las alteraciones producidas por
el hombre que constituyan una lesión al medio.

En este sentido, es importante resaltar, por ejemplo, el Voto 3705-


9332 en que la Sala se refiere a la suscripción y no a la ratificación de
los tratados internacionales, de modo que sigue la actual tendencia que
reconoce la existencia de principios generales necesarios para la super-
vivencia de la raza humana, los cuales deben ser respetados por cada
país sin importar si están o no ratificados. Así entonces, con referencia a
la calidad de vida, otro valor intrínseco dentro de la temática ambiental,
esta sentencia -reiterada en otras ocasiones- agregó:

Por ejemplo, se producen problemas ambientales cuan-


do las modalidades de explotación de los recursos na-
turales dan lugar a una degradación de los ecosistemas

32 Sobre esta Sentencia consultar a CABRERA MEDAGLIA, J. “Comentario a la sentencia


3705-93 de la Sala Constitucional”, publicado en 20 años de jurisprudencia de la Sala Constitu-
cional, Ana Virginia Calzada et al (eds), UNED y Corte Suprema de Justicia, San José, 2009.

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54
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

superior a su capacidad de regeneración, lo que conduce


a que amplios sectores de la población resulten perjudi-
cados y se genere un alto costo ambiental y social que
redunda en un deterioro de la calidad de vida; pues pre-
cisamente el objetivo primordial del uso y protección del
ambiente es obtener un desarrollo y evolución favorable
al ser humano. La calidad ambiental es un parámetro
fundamental de esa calidad de vida; otros parámetros no
menos importantes son salud, alimentación, trabajo, vi-
vienda, educación, etc., pero más importante que ello es
entender que si bien el hombre tiene el derecho de hacer
uso del ambiente para su propio desarrollo, también tie-
ne el deber de protegerlo y preservarlo para el uso de las
generaciones presentes y futuras […] 33.

En este orden de interpretación, en otras Sentencias de la Corte


Constitucional de Costa Rica, la nº. 14421-06, así como en la nº. 18051-
06, se precisa que

[…] resulta completamente contraria a los principios que in-


forman el derecho ambiental, en particular, al in dubio pro
natura y al principio precautorio, así como al interés público
ambiental, la interpretación del gestionante de que está ex-
cluida la obligación del estudio de impacto ambiental previo
al otorgamiento de la concesión de explotación minera.

33 Carlos Roberto Mejía Chacón Case, Voto No. 3705-93, July 30, 1993 (espa-
ñol). Disponible en línea en: https://www.elaw.org/content/costa-rica-carlos-roberto-
mej%C3%AD-chac%C3%B3n-case-voto-no-3705-93-july-30-1993-espa%C3%B1ol.

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55
Según esta interpretación, la responsabilidad consiste en equilibrar
la protección del ambiente, el desarrollo económico y las actividades de
los particulares, que justifique la intervención del Estado. Lo anterior, por
cuanto una protección excesiva del ambiente que anule toda actividad
económica, puede hacer incurrir a los particulares en costos despro-
porcionados e innecesarios, tornando algunas actividades productivas
en ruinosas y generando pobreza y desempleo, lo cual impactaría ne-
gativamente a la gente. Pero de igual modo, una actividad económica
descontrolada e irresponsable puede producir un daño irreversible en
el ecosistema, razón por la cual se impone la aplicación del principio in
dubio pro natura, en el sentido de que si existe duda sobre si una activi-
dad produce o no daños al ambiente, debe priorizarse en su protección
y en consecuencia, limitarse o prohibirse dicha actividad. No obstante, la
determinación de esa duda, no puede, ni debe, quedar al arbitrio de los
grupos sea cual sea, sino de estudios técnicos, pues este aplicará cuando
haya peligro de daño grave o irreversible en el ambiente. Así se pronuncia
la Corte Constitucional de Costa Rica en su Sentencia 17155-09 y la Sen-
tencia 18855-10 del mismo Tribunal.

En esta última Sentencia 18855-10, en virtud del principio precautorio


o in dubio pro natura, que opera en materia ambiental, se fundamenta en
la necesidad de tomar y asumir todas las medidas precautorias para evitar
contener la posible afectación del ambiente o la salud de las personas. Si-
guiendo este argumento, la Sala Constitucional de Costa Rica, en este sen-
tido, acoge el amparo y ordena la solución del problema de contaminación
ambiental verificado por las autoridades recurridas en el caso del cauce del
Río Corrogres, a la altura del centro comercial “El Paseo”, en Santa Ana, a
fin de evitar mayores daños al ambiente en el lugar. La Sala considera que el
vertimiento de aguas al Río Corrogres por parte de las empresas denuncia-
das debía haberse suspendido, hasta tanto se corrija la situación de conta-

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56
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

minación, que tal actividad está generando; sin embargo, no se ha procedi-


do de tal manera, lo que hace imperativa la estimatoria del recurso34.

El caso más paradigmático, acaecido en este país, fue el “Caso Crucitas”


de 2008, de la Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia (Expe-
diente n. 08-014068-0007-CO recurso de amparo Edgardo Araya Sibaja,
hecho IV)35. El caso examinaba un proyecto de minería de cielo abierto
por Industrias Infinito y su posible contradicción con el Decreto Ejecutivo
DE-30477-MINAE, adoptado el 5 de junio de 2002, por el cual se establecía
la moratoria indefinida de actividad minera a cielo abierto. Sin embargo,
con posterioridad, se produjo la suspensión de esta moratoria mediante
Decreto Ejecutivo número 34801-MINAET de la tala de árboles y del desa-
rrollo de infraestructuras. Este caso es particularmente interesante porque
el principio in dubio pro natura se utiliza como un parámetro de aplicación
de normas, priorizando las de protección ambiental frente aquéllas que
serían aplicables en virtud del principio lex posterior derrogat lex anterior,
poniendo de manifiesto una particularidad de las normas de protección
ambiental, la retroactividad de la norma, en caso de colisión con una nor-
ma menos protectora del ambiente. Es decir, en este caso, el principio pre-
cautorio (in dubio pro natura) debe de reconocerse y utilizarse en todas las
actuaciones administrativas, pero claramente en relación con el derecho
humano a un medio ambiente sano (artículo 50 Constitución).

En Brasil, la mayor protección se justifica por la mayor importancia


del bien jurídico a proteger, como el medio ambiente. Al respecto, el STJ

34 Consultar Sentencia nº 08001 de Sala Constitucional de la Corte Suprema de


Justicia, de 21 de Julio de 2004.
35 Sobre el Caso Crucitas consultar: AIDA, Descripción del Proyecto Minero Cru-
citas Violaciones al derecho internacional y posibles impactos ambientales, 2008. Dis-
ponible en línea en: https://www.conflictosmineros.net/agregar-documento/estudios-e-
informes/contaminacion/descripcion-crucitas/download.

Ir para o índice
57
decretó que “las normas de protección de los sujetos vulnerables e inte-
reses difusos y colectivos deben ser interpretados de la manera que es
más de apoyo y puede proporcionar mejor, de la eficacia del plan, la asis-
tencia judicial y la ratio essendi de la norma de fondo y procedimental.
La hermenéutica jurídica y ambiental se rige por el principio in dubio pro
natura”. (STJ, 2º T., resp Nº 1.114.893 / MG).

Asimismo el principio in dubio pro natura fue invocado para justificar


la existencia de un daño moral colectivo en los casos de daño ambiental
(REsp 1.367.923/RJ). Constando a su vez que “sería un contra senso jurídi-
co la admisión de resarcimiento por lesión o daño moral individual, sin que
se pudiese dar a la colectividad el mismo tratamiento, después de todo,
si se ve afectado el honor de cada uno de los individuos de este grupo,
el daño está sujeto a una indemnización”. En este sentido, el principio in
dubio pro natura parece prescindir de la demostración de esta suposición,
pero es precisamente el reconocimiento de la diferencia entre el individuo
y la colectividad, el que permite la protección de esta última como algo
diferente a la mera suma de individuos. Para el individuo, la asunción de
daño moral es la protección de su subjetividad, el concepto incompatible
con la noción de colectividad (que es subjetivo no puede ser colectiva).

En el caso de Colombia, el principio in dubio pro natura también se


ha interpretado estrechamente vinculado al principio de precaución. A
través de la Sentencia C-339 de 2002, la Corte relacionó el principio de
precaución con la máxima in dubio pro ambiente, para sostener que, en
caso de duda sobre los efectos nocivos que puedan ocasionarse en el
medio ambiente con el desarrollo de una actividad, esta cederá para la
protección de aquel. Sobre el particular indicó:

En la aplicación del inciso 3 se debe seguir el principio de


precaución, principio que se puede expresar con la ex-

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58
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

presión ‘in dubio pro ambiente’. El mismo principio debe


aplicarse respecto del inciso cuarto del artículo 34 y que
este debe ser observado también al estudiar y evaluar los
métodos y sistemas de extracción, en consonancia con el
principio número 25 de la Declaración de Río de Janeiro
que postula: ‘La paz, el desarrollo y la protección del me-
dio ambiente son interdependientes e inseparables’.[…]
Para el asunto que nos ocupa, esto quiere decir que en
caso de presentarse una falta de certeza científica abso-
luta frente a la exploración o explotación minera de una
zona determinada; la decisión debe inclinarse necesaria-
mente hacia la protección de medio ambiente, pues si se
adelanta la actividad minera y luego se demuestra que
ocasionaba una grave daño ambiental, sería imposible
revertir sus consecuencias.

En la misma línea, la Sentencia C-339 establece que:

En materia del servicio público de saneamiento ambien-


tal, se ha determinado que los niveles permisibles de
contaminación deben establecerse anticipada y científi-
camente, conforme con los niveles de resiliencia del eco-
sistema, cuyos estándares han de actualizarse periódica-
mente, y siguiendo los principios rectores de prevención
y precaución. La incidencia que tiene el daño ambiental,
hace que el margen de lo tolerable deba disminuirse, fi-
jándose cada vez de manera más rigurosa, empleando
mecanismos eficaces para establecer si los niveles de
contaminación se han reducido, y obligando al empleo
de tecnologías amigables o más limpias, bajo la aplica-
ción del principio in dubio pro ambiens.

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59
Asimismo, un ejemplo claro de aplicación de este principio, lo exhibe
la Sentencia C­399 del 2002 del Consejo de Estado de la República de
Colombia, donde se afirma

[…] el principio de protección prioritaria de la biodiver-


sidad del país junto con un aprovechamiento en forma
sostenible, de acuerdo con los principios universales y de
desarrollo sostenible contenidos en la Declaración de Río
de Janeiro de junio de 1992, ratificada por Colombia.

Con base en estos argumentos, la Sección Primera del Consejo de


Estado ordenó la suspensión provisional de las actividades de aprove-
chamiento forestal que adelantaba el Consejo Comunitario General de
la Costa Pacífica del Norte del Chocó “Los Delfines” y REM Internacio-
nal CISA, en Mecana (Bahía Solano – Chocó). Según la Sección, son nu-
merosas las disposiciones que obligan al operador a tener en cuenta la
precaución como parámetro para determinar la procedencia de medidas
cautelares en esta materia. Tal es el caso del artículo 15 de la Declaración
de Río de Janeiro sobre el Medio Ambiente y Desarrollo de 1992 y del el
numeral 3° del artículo 3° de la Convención Marco de las Naciones Uni-
das sobre el Cambio Climático, suscrita en Nueva York en 1992 y aproba-
da por la Ley 164 de 1994.

A juicio de la Sala, el aprovechamiento forestal dispuesto


por la Resolución No. 2293 de 2006, constituye una ame-
naza para el medio ambiente, pues según lo señalado por
el informe técnico contenido en la Resolución 0096 de
2011 por la cual el Ministerio de Ambiente, Vivienda y
Desarrollo Territorial, ejerce temporalmente el conoci-
miento de los asuntos asignados a Codechocó, no se está
dando cabal cumplimiento a las obligaciones contenidas

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60
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

en el plan de manejo forestal al momento de otorgar el


permiso de aprovechamiento.

El expediente fue devuelto al Tribunal Administrativo del Chocó, para que


resuelva de fondo la acción popular que interpusieron las comunidades que
habitan en las zonas donde se realizan dichas actividades económicas36.

Posteriormente, la Sentencia de la Corte Constitucional C-449/15 re-


lativa a la Facultad conferida al Ministerio del ambiente, para definir las
bases de depreciación de recursos naturales por contaminación y fijación
de tasas retributivas y compensatorias37, ha contribuido a la determinación
interpretativa del principio en cuestión. En concreto se establece que:

[…] el cambio de paradigma que ha venido operando con


el paso del tiempo ha implicado un redimensionamiento
de los principios rectores de protección del medio ambien-
te, como su fortalecimiento y aplicación más rigurosa bajo
el criterio superior del in dubio pro ambiente o in dubio pro
natura, consistente en que ante una tensión entre princi-
pios y derechos en conflicto la autoridad debe propender
por la interpretación que resulte más acorde con la garan-
tía y disfrute de un ambiente sano, respecto de aquella que
lo suspenda, limite o restrinja. Ante el deterioro ambiental
a que se enfrenta el planeta, del cual el ser humano hace
parte, es preciso seguir implementando objetivos que bus-
quen preservar la naturaleza, bajo regulaciones y políticas
públicas que se muestren serias y más estrictas para con

36 Consejo de Estado, Sección Primera, Auto 2700123310002011.


37 Disponible en: http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2015/C-449-15.
htm. Consultada el: 14 oct. 2016.

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61
su garantía y protección, incentivando un compromiso real
y la participación de todos con la finalidad de avanzar ha-
cia un mundo respetuoso con los demás. Se impone una
mayor consciencia, efectividad y drasticidad en la política
defensora del medio ambiente (6.5).

En México, el principio se aplicó por el Segundo Tribunal Colegiado


en Materia Administrativa del Séptimo Circuito, en Boca del Río Veracruz,
juicio de amparo 1697/2014, 23 abril 2015. En 2011, las comunidades
indígenas de Veracruz, México, presentaron una denuncia contra la em-
presa hidroeléctrica Impulsa Generación Responsable (IGR) para detener
la construcción de tres plantas hidroeléctricas a lo largo del río Jalacingo,
un proyecto que había sido aprobado por las autoridades locales. Los
denunciantes aseguran que dicho proyecto interferirá con su derecho
al agua ya que el curso del río será alterado y sus fuentes tradicionales
de agua serán interrumpidas. IGR argumenta que obtuvo los permisos
necesarios de las autoridades luego de presentar la correspondiente eva-
luación de impacto ambiental. En este caso, los magistrados integran-
tes del Tribunal Colegiado estimaron que había suficiente indicio para la
prevención de un daño ecológico irreparable de un sector desprotegido,
resultando imperante la necesidad de establecer acciones que impidie-
ran una catástrofe ecológica y social, derivada del daño irreparable a los
manantiales de las comunidades indígenas. En este sentido, se entendió
que la medida de suspensión evitará que se afecte el entorno ecológi-
co de las comunidades indígenas, en particular del derecho humano al
agua, evitándose un daño irreversible en los manantiales situados en di-
chos sectores desprotegidos de la vida nacional. Además se vincula la
protección de la naturaleza, representado por este principio in dubio pro
natura con el principio de que “toda persona tiene derecho de acceso,
disposición y saneamiento de agua para consumo personal y doméstico

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62
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

en forma suficiente, salubre, aceptable y asequible”, y que el Estado es el


responsable de garantizar este derecho. Sobre la base de esta argumen-
tación, el Tribunal concedió una suspensión definitiva que “protege el en-
torno ecológico y el derecho humano al agua de comunidades indígenas
y suspende la construcción de minicentrales hidroeléctricas”.

Otro caso en el que ha habido oportunidad de aplicar este principio


en sede judicial fue el conocido por el Juzgado Séptimo de Distrito de Los
Mochis, Sinaloa, mediante el cual prohibió la entrada a México de patata
fresca proveniente de Estados Unidos. (40/2016 – Consejo de la Judi-
catura Federal)38, por entender la Secretaría de Agricultura, Ganadería,
Desarrollo Rural, Pesca y Alimentación (Sagarpa), no adoptó las medidas
fitosanitarias adecuadas para su ingreso seguro y declaró inconstitucio-
nales las medidas fitosanitarias adoptadas SAGARPA establecidas en el
Acuerdo de Mitigación de Riesgo para la Importación del tubérculo de
papa proveniente de los Estados Unidos de América (EUA), todo ello am-
parándose en el derecho a la alimentación/seguridad alimentaria y dere-
cho a un ambiente saludable, ambos reconocidos constitucionalmente.
En este caso, la aplicación del principio permitió proteger y reforzar otros
derechos fundamentales, que dependen inexorablemente de unas con-
diciones ambientales óptimas para su satisfacción y disfrute.

Todos estos pronunciamientos jurisprudenciales constituyen una


suerte de judicialización estratégica de casos ambientales, pues en la
medida que el sistema judicial es pro activo en la defensa del ambiente
se irán desarrollando jurisprudencia vinculante que puede ser transcen-
dental para la solución de futuros conflictos ambientales.

38 Consultar el caso en: https://www.cjf.gob.mx/documentos/notasInformati-


vas/docsNotasInformativas/2014/notaInformativa84.pdf.

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63
CONCLUSIONES Y REPLANTEAMIENTOS TRANSFORMADORES DEL
DERECHO AMBIENTAL

La región de América Latina ha sido reconocida como un laboratorio


de soluciones innovadoras para la adaptación a la transformación del De-
recho ambiental para enfrentar los retos que plantea la progresiva degra-
dación de sus recursos naturales. En este sentido, principios protectores,
como los expuestos en este análisis, tales como el in dubio pro natura,
el de progresividad, y el de no regresividad, obligan al operador jurídico,
en caso de un eventual conflicto normativo o político-administrativo, a
aplicar las reglas de la norma más favorable y de la condición más bene-
ficiosa para el interés público ambiental, incluso más allá de su rango o
nivel jerárquico, de tratarse de una norma de carácter general o especial,
o de su promulgación en el tiempo.

La regulación y reconocimiento del principio in dubio pro natura en


sede constitucional en muchos países de la región, principalmente en
Costa Rica, Brasil, Argentina y Ecuador, ha promovido una interpretación
garantista y ecosistémica, con el establecimiento de reglas claras, profun-
damente ecológicas y abiertamente participativas para la observancia y
cumplimiento tanto del Estado, los particulares y las empresas, en donde
se establecen categorías conceptuales de aplicación directa como la res-
ponsabilidad subjetiva, reversión de la carga de la prueba, intangibilidad
de áreas naturales protegidas, imprescriptibilidad de acciones para san-
cionar daños ambientales, etc. Este principio se convierte en efectivo, en
el momento en que el Estado lo asuma y lo incorpore de forma inherente
a las prácticas ambientales y no como simples aspiraciones ecologistas. De
forma de la operatividad de este principio se condiciona a la voluntariedad
política del Estado para apostar por la protección ambiental en beneficio
del bien público y no al servicio de intereses privados y particulares.

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64
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Pero es en sede judicial, donde el principio in dubio pro natura ha


transgredido con el esquema hegemónico tradicional del Derecho, para
convertirse en una de las garantías rectoras de una exigibilidad judi-
cial moderna del derecho y en una acción para el logro de la justicia
ambiental. En este sentido, el principio se presenta en el contexto de
muchos países latinoamericanos, como un nuevo paradigma jurídico
transformador, rompiendo con el concepto antropocéntrico del dere-
cho ambiental y se sitúa en una categoría biocentrista del derecho en
expansión en otros Estados de la región.

Con todo lo analizado anteriormente, es pertinente considerar que


el aspecto más trascendental del reconocimiento como de su aplicación
práctica del principio in dubio pro natura es que favorece y contribuye a
la interpretación progresiva del derecho. En realidad, esta función deriva
de la función de progresividad y no regresión del Derecho ambiental,
afirmado especialmente por el profesor Prieur.

Asimismo, a través de la aplicación judicial de este principio se evi-


dencia cómo el poder judicial juega un papel clave en la protección
efectiva del medio natural, mediante: la protección efectiva de los es-
pacios naturales comunes, especialmente sensibles y que representan
intereses difusos y mediante la actio popularis en defensa de los inte-
reses colectivos, potenciando la noción de justicia relacionada con la
naturaleza y aplicada más allá del escenario humano. El principio in
dubio pro natura es un postulado hermenéutico, derivado de la función
social de la propiedad, que amerita de un onus argumentativo pro am-
biente, en beneficio del bien colectivo y como respuesta a la creciente
degradación del medio ambiente en la región.

Seguramente, el reto en relación con este principio recae en su aplica-


ción en la definición, elaboración e implementación de todas las políticas

Ir para o índice
65
gubernamentales. Lo que está claro es que, en sede judicial se distingue
el principio in dubio pro natura del principio precautorio pues este sirve
para la solución de incertezas científicas, mientras que el primero sirve de
guión para las incertezas legales, como un principio interpretativo. Con el
reconocimiento de este principio, el juez no puede inventar algo que no
está, expresa o implícitamente, en el dispositivo, pero habiendo pluralidad
de sentidos posibles, debe elegir el que mejor garantice el ambiente.

En definitiva, este principio se dirige a potenciar el enfoque preventi-


vo, precautorio y la reparación integral, con el fin de revertir los efectos
causados por los humanos y de replantear el modelo de desarrollo ac-
tualmente imperante en nuestras sociedades, para poder promover una
transición hacia un modelo pro natura.

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70
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Os Direitos Humanos e do Ambiente na


encruzilhada do neoconstitucionalismo
com o novo constitucionalismo
latino-americano
Human Rights and the Environment at the
crossroads of neoconstitutionalism with
the new latin american constitutionalism

MARCO ANTHONY STEVESON VILLAS BOAS

INTRODUÇÃO
A construção do sistema de proteção do ambiente como direito hu-
mano, integrante da terceira dimensão ou geração de direitos, repou-
sa na responsabilidade solidária e no dever fundamental de o Estado
protegê-lo, na perspectiva de garantir a qualidade de vida, a dignidade
do homem e sua sobrevivência no Planeta.
As Constituições da Espanha1 e de Portugal, esta com mais ênfase a
partir da revisão de 1997, adotaram o sistema de proteção objetiva da

1 GIMENO, José Pascual Fernández; MARTÍNEZ, Gloria Gamborino. El medio am-


biente: conceptos generales. In: LOPES, Maria José Reyes (Coord.). Medio ambiente espa-
ñol. Valência: Tirant lo Blanc, 2001, p. 25.

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71
natureza e, ao mesmo tempo, com características de direito fundamen-
tal, razão pela qual defende o professor Vasco Pereira da Silva2, que não
se deve excluir a proteção do ambiente a partir dos interesses particu-
lares e, consequentemente, dos direitos subjetivos públicos, os quais se
associam na defesa do Estado de Direito Ambiental.

1 DIREITOS HUMANOS E DO MEIO AMBIENTE NAS CONSTITUIÇÕES


LATINO-AMERICANAS

O Brasil foi o primeiro país latino-americano, entre o primeiro e o segun-


do ciclo de reformas constitucionais na América Latina, a acolher as inova-
ções ibéricas, com significativa influência das novas ideias em ebulição no
Direito Internacional, principalmente em relação ao pluralismo e ao multi-
culturalismo dos povos indígenas, mais tarde escritos na Convenção nº 169
da OIT, desencadeando-se, então, uma série de transformações nos sistemas
jurídicos insulares em matéria de Direitos Humanos e do Ambiente.

O primeiro ciclo de reformas constitucionais se desenvolveu na década


de 80 do século XX, a partir da introdução dos direitos individuais e coleti-
vos dos indígenas nos Textos Constitucionais do Canadá (1982), Guatemala
(1985), Nicarágua (1987) e Brasil (1988). Raquel Fajardo rememora que o
multiculturalismo canadense inspirou Guatemala e Nicarágua a saírem do
processo belicoso interno e a reconhecer os direitos dos seus povos indíge-
nas, mas, no caso do Brasil, houve maior avanço, haja vista a Constituição,
de 1988, ter incorporado o que havia de mais avançado em termos de di-

2 SILVA, Vasco Pereira da. Verdes são também os direitos do homem. Cascais:
Principia, 2001, p. 17-22.

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72
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

reitos indígenas e pluralismo no âmbito das Nações Unidas, antecedendo


até mesmo a publicação do Convênio nº 169 da OIT, no ano seguinte, e,
consequentemente, o segundo ciclo de reformas3.

No segundo ciclo, desencadeado nos anos 90 do século XX, fundado


no pluralismo jurídico, foram incorporados, nas Constituições da Colôm-
bia (1991), México (1992), Paraguai (1992), Peru (1993), Bolívia (1994),
Argentina (1994), Equador (1996 e 1998), Venezuela (1999), os direitos
individual e coletivo à identidade e diversidade cultural do primeiro ciclo,
e desenvolvido o “[...] conceito de “nação multiétnica” e “estado plu-
ricultural”, qualificando a natureza da população e avançando rumo ao
caráter do Estado. Entretanto, as reformas também abriram espaços para
as multinacionais se instalarem nesses países, entrando em conflito com
diversos povos indígenas e tradicionais”4.

O terceiro ciclo emergiu na primeira década do século XXI, do diálogo en-


tre os processos constitucionais da Bolívia (2007-2008) e do Equador (2008),
“[...] um debate ainda não resolvido [...] sobre o “Estado Plurinacional” e um
modelo de pluralismo legal igualitário, baseado no diálogo intercultural [...]”,
no qual os povos indígenas não pretendem ser reconhecidos apenas como
“[...] “culturas diversas”, mas como nações originárias ou sujeitos políticos
coletivos com direito a participar nos novos pactos do Estado, que se configu-
rariam, assim, como Estados plurinacionais [...]”, mormente para enfrentar o
avanço das transnacionais sobre seus territórios e sobre suas vidas5.

3 FAJARDO, Raquel Z. Yrigoyen. Aos 20 anos do Convênio 169 da OIT: Balanço e


desafios da implementação dos direitos dos povos indígenas na América Latina. In: VER-
DUM, Ridardo (Ed.). Povos indígenas: Constituições e reformas políticas na América Latina.
Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos Coronário, 2009, p. 25-27.
4 Idem, p. 25-27.
5 Ibidem, p. 25-27.

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73
A questão tem se revelado mais complexa e antagônica nos siste-
mas latino-americanos, pois a ideia de Direitos Humanos ou fundamen-
tais específicos dos povos indígenas, apesar de ter o ponto de partida
na estabilização jurídica de uma carga discriminatória, evoluiu para o
reconhecimento da situação de fragilidade e de necessidade de prote-
ção constitucional, inicialmente como minorias sujeitas a maior risco
na sociedade pós-moderna, e a partir daí o reconhecimento da condi-
ção de sujeitos coletivos de direitos e consequente proteção aos seus
direitos fundamentais, construídos no evoluir das cinco gerações ou
dimensões preconizadas por Karel Vasack6.

Apesar das conquistas jurídicas e do fim das concepções assimilacio-


nistas e integracionistas, a situação precária das comunidades indígenas
ainda demanda proteção em grau mais elevado, mormente nos casos em
que são minorias, nos quais se torna mais explícita a desigualdade entre
índios e não índios, decorrente dos dois modos de vida totalmente distin-
tos, praticamente inconciliáveis, peculiaridades que demandam estudo
mais aprofundado acerca dos impactos ocasionados pelo capitalismo no
modo de vida e de produção dessas economias.

Vendo o homem rodeado por toda espécie de poluição, Félix Gua-


tari profetizou a necessidade de uma releitura transversal e holística
do ambiente, de modo a aproximar cultura e natureza e neutralizar as
causas desse sofrimento, oriundas do próprio modo de proceder do
homem, salientando que “[...] Mais do que nunca a natureza não pode
ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar “transversal-

6 VASAK, Karel. Por um direito internacional específico dos direitos do homem. In:
VASAK, Karel (redator geral). As dimensões internacionais dos direitos do homem. Lisboa:
ONU/Editora Portuguesa de Livros Técnicos e Científicos, 1978.

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74
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

mente” as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de


referência sociais e individuais7”.

Homem e meio ambiente estão intimamente relacionados no cotidia-


no da América Latina, em virtude da marcante heterogeneidade popula-
cional e da presença de povos indígenas e outras populações tradicionais
extremamente dependentes do meio ambiente saudável para sobrevive-
rem. Em países como a Bolívia, o México e a Guatemala, chegam a ser
maioria populacional, conforme dito alhures.

Nesse contexto, os povos indígenas trouxeram para o direito uma


diferenciada cosmovisão, evidenciada nos diversos movimentos revolu-
cionários desencadeados no curso da história latino-americana, os quais
contribuíram para a democratização e inserção constitucional dos direi-
tos humanos e do ambiente, iniciando-se pela Guatemala, em 1985; Ni-
carágua, em 1987; e pela Constituição do Brasil, de 1988.

A Constituição do Brasil, de certo modo, incorporou um pluralismo mo-


derado, ou antropocentrismo alargado, influenciada pela Constituição de
Portugal, de 1976, no que se refere à proteção do ambiente, conforme
visto alhures, a qual permeou significativa parte do Texto Constitucional.
A transversalidade do direito do ambiente na Constituição do Brasil, des-
sa forma, perpassa os demais subsistemas, principalmente os da cultura,
das populações tradicionais e indígenas, além dos subsistemas dos direitos
fundamentais, da saúde e da economia, dentre outros. Dessarte, não ex-
clui o homem do seu contexto, justamente por essa transversalidade, da
qual resulta uma proteção socioambiental, na qual o homem é beneficiá-
rio e responsável pelo ambiente em que vive. A proteção socioambiental

7 GUATARI, Felix. GUATTARI, Felix. As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F.


Bittencourt. Paris: Éditions Galilée, 1989, p. 25.

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75
surge na Constituição do Brasil sob a mesma inspiração europeia da ética
intergeracional, da qual resulta o princípio responsabilidade, no dizer de
Hans Jonas8, fundamentada na solidariedade intergeracional, decorrente
da fraternidade, terceira dimensão dos direitos humanos.

A inserção constitucional dos direitos humanos dos povos indígenas,


mesclados ao direito do ambiente, contemplados em todo um capítu-
lo distribuído em dois artigos com onze disposições, explicita a peculiar
“vontade de constituição”, visivelmente pluralista, nitidamente influen-
ciada pelo constitucionalismo fraternal, solidário9, que tem por diretriz
a concreção da igualdade civil e moral de minorias, como verdadeiros
trunfos contra a maioria10, centrada na dignidade da pessoa humana,
mormente no que se refere à compensação das desvantagens e perdas
perpetradas ao longo da história.

2 NOVOS RUMOS DOS DIREITOS HUMANOS E DO AMBIENTE NA


AMÉRICA LATINA

No entanto, os teóricos propõem um novo sistema constitucional


para países multinacionais e pluriétnicos, denominado Novo Constitu-
cionalismo Latino-Americano, o qual trasborda das teorias da liberdade e

8 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civili-


zação tecnológica. Tradução do original alemão por Matijane Lisboa e Luiz Barros Montez.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
9 ANDRADE, Maria Inês Chaves de. A fraternidade como direito fundamental
entre o ser e o dever ser na dialética dos opostos de Hegel. Coimbra: Coimbra Editora,
2010, p. 241.
10 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais e justiça constitucional em estado
de direito democrático. Coimbra: Coimbra, 2012, p. 55.

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76
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

da igualdade vistas sob a ótica política, para tratá-las sob o ponto de vis-
ta socioeconômico, pluralista e inclusivo, harmonizador da vida humana
com a natureza, em uma nova cultura do bem viver.

O Novo Constitucionalismo pressupõe ampla participação popular no


processo constitucional, diferentemente do sistema de representação in-
direta das assembleias constituintes inspiradas no modelo liberal eurocên-
trico, procurando, desse modo, dar maior legitimidade e força normativa
ao Texto Constitucional, aproximando-se mais da ideia habermasiana de
democracia deliberativa do que as demais Constituições Ocidentais.

Ademais, há um marcante diferencial entre ambos os modelos, pois,


diferentemente do constitucionalismo tradicional, o Novo Constitucio-
nalismo Latino-Americano trata o ambiente na perspectiva de Direito
Humano, enquanto patrimônio comum da América Latina, a exemplo do
reconhecimento do direito fundamental à água e aos recursos hídricos pe-
las Nações Unidas, na Resolução A/RES/64/292, de 28 de julho de 2010,
conforme proposto pela Bolívia, não se olvidando de que no Brasil a água
já vinha sendo tratada como recurso ambiental fundamental às funções
vitais, desde a década de 80 do século XX, nos termos do artigo 3º, V, da
Lei nº 6.368, de 1981, bem como do artigo 2º, IV, da Lei nº 9.885, de 2000.

A reconstrução dos Direitos Humanos a partir desse novo conceito, atre-


lando-os ao ambiente natural, gravita em torno da ideia de que não se pode
atribuir valor econômico à natureza, notadamente por ser o princípio funda-
mental da vida, sob a perspectiva do princípio responsabilidade, a demandar
ações comunitárias inclusivas, participativas e pluralistas, no verdadeiro sen-
tido de governança ambiental para gerir e proteger seus recursos naturais11.

11 WOLKMER, Antonio Carlos; AUGUSTIN, Sérgio; WOLKMER, Maria de Fátima


S. O novo direito à agua no constitucionalismo da América Latina. Revista Internacional
Interdisciplinar INTERThesis. vol. 9, n. 1, jan./jun. 2012.

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77
Nesse contexto, o Novo Constitucionalismo propõe um sistema bio-
cêntrico, sem rejeitar o antropocentrismo, e inclui no texto das Consti-
tuições andinas o ecocentrismo, com o objetivo de romper com a ideia
do homem como único sujeito de direitos e obrigações em suas relações
com a natureza, concepção individualista e reducionista, segundo Wolk-
mer, própria do modelo capitalista, que não distribui riquezas e aprofun-
da as desigualdades entre os países. “[...] Assim, a racionalidade quantifi-
cadora que ignora a vida e a diversidade cultural está sendo questionada
por visões mais abrangentes e solidárias que tentam frear o processo
que está destruindo a Mãe Terra”12.

3 CONSTITUCIONALISMO ENCRUZILHADO

O Constitucionalismo Latino-Americano está numa encruzilhada, pois


um novo paradigma de constitucionalismo atravessou o caminho do neo-
constitucionalismo nas últimas décadas, no contexto de novas realidades
plurais, oferecendo opções biocêntricas para a proteção da natureza e dos
recursos naturais, sob o prisma comunitário. Esse novo constitucionalismo
se apresenta como plural, indígena ou mestiço, a exemplo da Constituição
do Equador, de 2008, “[...] por seu arrojado – giro biocêntrico, admitindo
direitos próprios da natureza e direitos ao desenvolvimento do – bem vi-
ver [...]”, situação, segundo Wolkmer13, que não restringe direitos coletivos
“[...] – direitos das comunidades, povos e nacionalidades, destacando a
ampliação de seus sujeitos, dentre as nacionalidades indígenas, os afro-
-equatorianos, os comunais e os povos costeiros (arts. 56 e 57)”.

12 Idem.
13 Ibidem.

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78
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Desse modo, a Constituição do Equador rompeu com o constituciona-


lismo ocidental ao admitir a natureza como sujeito de direitos e sobrepôs
aos valores antropocêntricos das Constituições do Ocidente uma mudança
radical que pretende influenciar o constitucionalismo latino-americano.

A força motriz desse constitucionalismo, segundo Diana Suárez, está no


conceito de “bien vivir” ou “Sumak Kawsay”, que significa “boa vida, pro-
veniente e sintonizado”, conforme tradução literal do Quechua, sob o pris-
ma da “[...] cosmovisión de armonía de las comunidades humanas com la
naturaleza, em la cual lo ser humano es parte de uma comunidade de per-
sonas que, a sua vez, es um elemento constituyente de la misma pachama-
ma, o madre tierra14,” da qual se toma apenas o necessário. A partir dessa
concepção, busca-se tratar juridicamente a natureza como um “espacio de
vida”, atribuindo-lhe personalidade jurídica, com amplitude ecocêntrica.

Adverte Wolkmer15 que há diferentes cosmovisões da Pachamama,


devido ao pluralismo das próprias comunidades indígenas, muitas das
quais não são biocêntricas, aproximando-se, nesse aspecto, das “[...] pro-
postas do desenvolvimento sustentável e do ambiente ecologicamente
equilibrado [...]”, o qual encontra referência na Constituição Equatoria-
na como “[...] concreta realização dos bens comuns (água, alimentação,
ambiente sadio, cultura, educação, habitat, moradia, saúde, trabalho e
segurança) como bens essenciais à vida e ao – bem viver em harmonia
com a natureza [...]”, decorrendo dessa amplitude de proteção o direito

14 SUÁREZ, Diana Quirola. Sumak Kawsay. Hacia un nuevo Pacto Social en Armonía
con la Naturaleza. In: ACOSTA, Alberto; MARTÍNEZ, Esperanza (Compiladores). El Buen Vi-
vir: una vía para el desarrollo. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2009, p. 104-107.
15 WOLKMER, Antonio Carlos; AUGUSTIN, Sérgio; WOLKMER, Maria de Fátima S. O
novo direito à agua no constitucionalismo da América Latina. Revista Internacional Inter-
disciplinar INTERThesis. vol. 9, n. 1, jan./jun. 2012.

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79
humano fundamental e irrenunciável à água, vértice da construção jurí-
dica dos direitos da Pachamama.

A mescla de direitos humanos e do ambiente no sistema constitucio-


nal equatoriano estende o fundamento do princípio do bem viver para
instituir os direitos ao ambiente e alimentos saudáveis, habitat e moradia
seguros e saudáveis e uma vida urbana calcada na sustentabilidade, com
direito aos espaços públicos e acesso ao sistema de saúde, com obriga-
ções compartilhadas entre estado e comunidade.

A Constituição da Bolívia, de 2009, num segundo giro, acolhe o prin-


cípio do bem viver, clarificando ainda mais sua amplitude intergeracional
para beneficiar as coletividades presentes e futuras, contemplando em
seu texto a mescla dos direitos humanos com o direito do ambiente, sob
a inspiração biocêntrica.

4 DIREITOS HUMANOS E DO AMBIENTE NA CORTE INTERAMERICA-


NA DE DIREITOS HUMANOS

Apesar dos avanços na inserção de direitos nas Constituições Latino-


-Americanas, a violação aos direitos humanos e a degradação do ambien-
te subsistem em ambos os sistemas, tanto no Neoconstitucionalismo,
quanto no Novo Constitucionalismo, expondo as vísceras de sistemas
semânticos, de baixa força normativa, que ainda assim se encruzilham
nos caminhos do constitucionalismo continental.

São inúmeros os conflitos socioambientais sem solução ou tardia-


mente solucionados nos sistemas jurídicos insulares, alguns dos quais
levados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e daí à Corte
Interamericana de Direitos Humanos.

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80
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Três casos clássicos decididos pela Corte IDH16, em países declarados


pluralistas, revelam que tanto o Neoconstitucionalismo quanto o Novo
Constitucionalismo ainda não têm respostas definitivas sobre a questão
dos direitos humanos, principalmente no que se refere aos índios, e bem
assim do ambiente, razão pela qual esses povos enfrentam de diversos
modos a força do desenvolvimentismo e do poder econômico dos gran-
des grupos ou interesses internacionais.

O caso dos Yanomami (Resolução no 12, de 1985, Caso no 7.615 – Bra-


sil –, constante do Relatório Anual da CIDH 1984-85) envolveu a constru-
ção de uma estrada para trânsito de pessoas estranhas, não indígenas.
Além de contaminarem os índios com doenças às quais não têm resis-
tência, a presença de estranhos trouxe diversos outros malefícios àquele
povo. Constataram-se, nesse caso, várias violações à Declaração Ameri-
cana dos Direitos e Deveres do Homem, no que diz respeito ao direito
à vida, à liberdade e à segurança pessoal, e ao direito à preservação da
saúde e do bem-estar. Apesar de ter sido apresentado e julgado antes da
Constituição, de 1988, não houve evolução significativa na situação da
política indigenista e do ambiente nas terras indígenas do Brasil.

O caso da comunidade indígena Awas Tingni Mayagna (Sumo) contra


a Nicarágua diz respeito à demarcação de suas terras. O caso foi enca-
minhado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos à Corte
Interamericana, sob a alegação de que o fracasso da demarcação e o
reconhecimento do território, ante a perspectiva do desmatamento san-
cionado pelo governo nessas terras, constituíam violação da Convenção
Americana, tendo a Corte decidido, em agosto de 2001, que o Estado

16 VILLAS BOAS, Marco Anthony Steveson. Repercussões ambientais do indigena-


to. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; ARAGÃO, Alexandra (Diretores). Revista CEDOUA,
n. 31, ano XVI, 1.13. COIMBRA: Almedina/Tip. Lousanense, 2013, p. 84.

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81
violara os arts. 21 e 25 da Convenção Americana (direito à proprieda-
de privada e proteção judicial, respectivamente), recomendando que se
efetivasse a demarcação das terras dos Awas Tingni. No caso da Nicará-
gua, cuja Constituição integrou o primeiro ciclo do giro constitucionalista
latino-americano, a riqueza do Texto Constitucional não alcançou a força
normativa necessária para efetivar os direitos dos Awas Tingni.

No caso Sarayaku, envolvendo o Equador, país em que o pluralismo


é mais extremado e biocêntrico, houve violação de direitos dos índios
Sarayaku, da Amazônia Equatoriana, vítimas da instalação de complexo
petrolífero em suas terras sem prévia consulta. A reclamação foi levada
à Comissão Interamericana, e, em 25 de julho de 2011, a Corte IDH deu
ganho de causa aos Sarayaku e reconheceu que o Estado do Equador
é responsável pela exposição desses indígenas a perigo, em razão da
instalação de mais de 1.400kg de explosivos pela empresa petroleira
em suas terras. Os dados foram divulgados pela Anistia Internacional
e comemorados como alvissareiros precedentes, tendo em vista que
a Corte entrou no mérito sobre o processo de consulta e explicitou a
forma e o alcance da sua realização17.

O direito dos índios voluntariamente isolados ou semi-isolados, de


se manterem nesse estado, tem proteção constitucional nos países la-
tino-americanos, e ganhou força com o precedente do caso Yanomamy,
na Corte Interamericana de Direitos Humanos; entretanto, ainda não se
enfrentou judicialmente a situação de povos que, em estado de acul-
turação e integração à sociedade nacional, retornam ao estado de iso-
lamento ou semi-isolamento, em razão de violações aos seus direitos

17 ANISTIA Internacional (AI) Brasil. Disponível em: http://anistia.org.br/. Acesso


em: 22 dez. 2013.

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82
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

humanos, até o de terem um ambiente sadio e propício à sobrevivência


de conformidade com seus costumes ancestrais.

Os direitos em questão justificados nos direitos fundamentais, em suas


diversas dimensões construídas a partir das ideias de liberdade, igualdade
e fraternidade, as quais incluem os direitos à vida, à saúde, à livre deter-
minação, aos direitos religiosos, culturais, políticos e ambientais, garantem
essa iniciativa, como direito de resistência e estratégia de sobrevivência
(mínimo existencial), não se configurando retrocesso social, tampouco
ruptura com o pacto federativo, pois o Direito Internacional e as diversas
Constituições pluralistas da América Latina, ao garantirem esses direitos
fundamentais aos povos indígenas, incluem nesse rol o direito de autoges-
tão e ao etnodesenvolvimento, sob o prisma socioambiental.

Karel Vasak18 já sustentava, na amplitude dos Pactos dos Direitos do


Homem das Nações Unidas, que a autodeterminação é direito humano,
e que “[...] os povos têm direito de dispor de si próprios. Em virtude des-
te direito determinam livremente seu estatuto político e garantem livre-
mente os seus desenvolvimentos econômico, social e cultural”.

Nesse aspecto, mesmo que a questão seja analisada sob a ótica do ra-
cionalismo e da teoria piagetiana da evolução cultural em etapas, encon-
traria na concepção mítica de mundo, própria da cosmovisão indígena,
ainda que incorporada racionalmente no agir comunicativo, a diferença
fundamental em relação à sociedade ocidental. É a partir dessa diferença
que se constituem os pressupostos pluralistas possibilitadores da livre
determinação de natureza coletiva.

18 VASAK, Karel. A realidade jurídica dos direitos do homem. In: VASAK, Karel. As
dimensões internacionais dos direitos do homem. Lisboa: ONU/Editora Portuguesa de
Livros Técnicos e Científicos, 1978, p. 21.

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83
Ainda se deve considerar, sob o ponto de vista habermasiano, que no
pluralismo, devido ao seu caráter fragmentário, há dificuldades para a cons-
trução de mútuos entendimentos, justamente por conta das diferenças cul-
turais e de crenças entre essas diversas culturas, assim como em relação à
sociedade ocidental, principalmente, a impedir a universalização. Disso re-
sultam, geralmente, acordos ad hoc, nos casos das populações indígenas,
notadamente em razão da baixa participação política dessas comunidades
no processo democrático, entregues à vontade da maioria, constituindo-se
em obstáculo intransponível à ideia de igualdade, ainda que instrumental,
situação que afasta a compreensão e solução desse problema específico a
partir da ideia de justiça como equidade, defendida por John Rawls19.

Desse modo, ante a fragilidade desses acordos, os quais não podem


perpetuamente subjugar os povos indígenas, minorias étnicas e culturais,
a volta ao estado de vida natural constitucionalmente garantido pelos
princípios socioambiental e da livre determinação, é direito fundamental
que não coloca em risco o direito fundamental ao desenvolvimento de
ambas as sociedades, tampouco o pacto federativo ou a soberania na-
cional, haja vista que índios continuam cidadãos nacionais em quaisquer
hipóteses, mesmo habitando em áreas transfronteiriças, conforme re-
centemente decidiu o Supremo Tribunal Federal do Brasil, no caso “Terra
Indígena Raposa Serra do Sol”20.

No Brasil, há o precedente histórico dos Uru Eu Wau Wau, que tiveram


suas cultura, saúde, crenças, tradições e vida social degradadas pelo con-
tato com os não índios, e, às vésperas da extinção da etnia, os membros

19 RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução Irene A. Paternot. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2002, p. 207-209.
20 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Brasil. Petição no 3.388. Rel. Min. Carlos Ayres
Brito. In: REVISTA Trimestral de Jurisprudência. Brasília: STF, v. 212, abr./jun. de 2010, p. 87.

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84
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

restantes decidiram voltar ao isolamento com o apoio dos órgãos governa-


mentais, notadamente da Funai e do Ministério Público Federal21.

De outro modo, no caso dos sistemas pluralistas mais extremados,


onde há maior abertura para a participação das comunidades indígenas
no processo de construção democrático, os mecanismos de correção do
sistema podem funcionar melhor do que no constitucionalismo tradicio-
nal. Todavia, principalmente em virtude da matriz pluralista, a opção pelo
modo de vida em isolamento, em casos de violações aos seus direitos
fundamentais, estaria mais amplamente fundamentada nos princípios
constitucionais emanados do buen vivir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caminho a seguir nessa encruzilhada, ou a opção pelo grau de in-


tensidade do pluralismo e descolonização, seja sob a ótica sociopolítica
ou socioeconômica, antropocêntrica ou biocêntrica, não pode ser uni-
versalizado, pois a realidade fragmentária e as peculiaridades de cada
caso recomendam que a própria sociedade escolha o caminho a seguir,
conforme suas necessidades e prioridades, que variam de um para outro
país da América Latina, notadamente em relação ao contingente popu-
lacional indígena, pois ambos os sistemas apresentam o mesmo proble-
ma das Constituições semânticas, e dependem das políticas públicas, da
correção judicial, e da própria sociedade para alcançarem maior concre-
ção. Ambos estão interconectados no plano continental e internacional,

21 COWELL, Adrian; RIOS, Vicente. 1990. A década da destruição: Na trilha dos


Uru Eu Wau Wau (vídeo documentário). Disponível em: http://imagensamazonia.pucgoias.
edu.br/acervo.html. Acesso em: 9 dez. 2013.

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85
inspirados e instigados pela legislação internacional e pelos sistemas de
proteção dos Direitos Humanos, principalmente pela Corte Interamerica-
na de Direitos Humanos, cuja atuação tem sido significativa na busca pela
efetivação dos Direitos Humanos, com destaque para os casos de po-
pulações minoritárias ou marginalizadas que têm sua qualidade de vida
ameaçada por atividades desenvolvimentistas impactantes.

REFERÊNCIAS

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damental entre o ser e o dever ser na dialética dos opostos de Hegel.
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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

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-1384.2012v9n1p51. Acesso em: 14 set. 2016.

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88
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A Pan-Amazônia e o ordenamento
jurídico ambiental
The Pan-Amazon and the environmental
legal system

BEATRIZ SOUZA COSTA

RESUMO

A Pan-Amazônia é constituída por 8 países e um departamento na


América do Sul. Eles ocupam cerca de 40% do território; são eles: Bolí-
via, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Surina-
me e Venezuela. Proteger, especificamente, a floresta Amazônica, de
todos os países envolvidos, é desafio. Há de se deixar claro que, pela
proposição do trabalho, não haverá tempo para abordar estudos mais
específicos sobre a qualificação política dos países. Este capítulo apre-
sentará a legislação ambiental, que protege cada país, concernente aos
recursos hídricos, recursos biológicos e minerais. Escolheu-se iniciar
essa pesquisa pela Bolívia seguinte assim a ordem alfabética de cada
país. Está nítido, na pesquisa, que a Amazônia convive com uma inume-
rável quantidade de legislações e políticas ambientais que hora se apro-
ximam hora se afastam. Esse contexto não tem ajudado na proteção

Ir para o índice
89
geral socioambiental. O Tratado de Cooperação Amazônico se mostra,
muitas vezes, ineficaz, para a proteção desse bioma precioso.

Palavras-chave: Pan-Amazônia. Legislação. Proteção Ambiental. Re-


cursos Ambientais.

ABSTRACT

Pan-Amazon is composed of 8 countries and a department in South


America. They occupy about 40% of the territory. They are: Bolivia, Brazil,
Colombia, Ecuador, Guyana, French Guiana, Peru, Suriname and Venezue-
la. Protecting, specifically, the Amazonian forest, of all the countries invol-
ved, is a challenge. It should be made clear that, by proposing the work,
there will be no time to address more specific studies on the political qua-
lification of countries. This chapter will present environmental legislation,
which protects each country, concerning water resources, biological resour-
ces and minerals. It was chosen to start this search for Bolivia following the
alphabetical order of each country. It is clear, in the research, that the Ama-
zon coexists with an innumerable number of environmental legislations
and policies that are very diffences. This context has not helped in general
socio-environmental protection. The Amazon Cooperation Treaty is often
ineffective for the protection of this precious biome.

Keywords: Pan-Amazon. Frame works. Environmental Protection. En-


vironmental Resources.

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90
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

INTRODUÇÃO

A Pan-Amazônia é constituída por 8 países e um departamento na


América do Sul. Eles ocupam cerca de 40% do território. É reconhecida-
mente uma das regiões mais ricas em biodiversidade do mundo. O Brasil,
com a maior parcela da floresta em sua jurisdição, cerca de 60% tem tido
avanços na legislação que a protege, mas a política de meio ambiente e
a implementação de todo o arcabouço jurídico são lentos, porque neces-
sariamente dependem de vontade política e orçamento para tanto.

A Bolívia é país fronteiriço com o Brasil; possui pequena parte da


floresta. O país busca proteger essa área com legislação especial como
a Lei Mãe Terra, 300/12, e a sua Constituição, promulgada em 2009. A
legislação observa a importância da região e estabelece que a área “é
um espaço especial para o desenvolvimento integral do país”. Vê-se o
empenho de seu povo na proteção sem esquecer-se do desenvolvimen-
to, porque o Decreto Supremo nº 25.906, de 2000, que dispõe sobre a
Reserva Nacional de Vida Silvestre Amazônica, também estabelece que,
em casos excepcionais, é possível a exploração de recursos naturais, afi-
nal vive-se deles.

Por sua vez, a Amazônia colombiana ocupa cerca de 40% do país e


segue com as características de toda a floresta, ou seja, a menos povo-
ada. Quanto à legislação específica de proteção de recursos naturais,
como os hídricos, fica devendo, apesar de possuir o Decreto nº 2.811,
de 1974, que trata de modo geral sobre os recursos naturais e meio
ambiente. O país tem criado planos de desenvolvimento o SINCHI, Ins-
tituto Amazônico de Investigações Científicas dedicado a estudos de
alto nível. Esse Instituto tem o objetivo de fornecer informações preci-
sas relacionadas com a realidade biológica, social e ecológica da região

Ir para o índice
91
amazônica. Mas segue com problemas em elaborar legislação específi-
ca sobre determinados recursos naturais.

Percebe-se que proteger a floresta Amazônica, de todos os países en-


volvidos, é desafio imensurável.

Com a república peruana, não é diferente. Ela encontra-se na região


ocidental da América do Sul fazendo fronteira ao norte, com o Equador e
a Venezuela; a leste com o Brasil e a Bolívia; ao sul, com o Chile; e a oeste
banhado pelo Oceano Pacífico.

O Peru é o 3º país mais extenso da América do Sul. A Amazônia peru-


ana está localizada na porção leste do país, estende-se também de norte
a sul, e ocupa quase dois terços do território nacional. A legislação sobre
recursos hídricos é de 2009, e, em 2011, entra em vigor a legislação flo-
restal com maior proteção, a Lei nº 29.763. Esta Lei foi criada sob pres-
são da população indígena do país, a qual tem ingerência na exploração
e utilização da floresta, após lutas com exploradores estrangeiros e do
próprio país. Permanece, no entanto, a dúvida em saber se foi uma con-
quista ou perda para a floresta.

Em relação, e pouco conhecida, a República do Suriname está situada


na fronteira com o Brasil, Guiana e Guiana Francesa. A capital é Parama-
ribo, e a proteção da floresta é delicada. A constituição do país ressalva a
preocupação sobre criar e melhorar as condições necessárias para a pro-
teção da natureza e para a preservação do equilíbrio ecológico. Assim,
como os países citados acima, o Suriname aderiu ao Tratado de Coopera-
ção Amazônica, OTCA, em 2014. O país tem legislação extensa sobre re-
cursos hídricos, de 1972, e também lei de proteção à Natureza, de 1954,
mas mostra-se deficiente em proteger de forma global seus recursos na-
turais, principalmente no que se refere à sua população indígena.

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92
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

O Equador é um país situado na linha equatorial, latitude zero, e


possui uma pequena parte da floresta amazônica. Todavia, essa parte
da floresta representa possibilidades infinitas de riquezas. Em 2013, foi
autorizada pelo Congresso equatoriano a exploração de petróleo no par-
que nacional de Yasuní, onde guarda também sua maior biodiversidade.
São os paradoxos da floresta, e, por isso, o Papa Francisco, em sua visita
ao país, em julho de 2015, pediu pela preservação da Amazônia com a
exploração responsável de seus recursos.

Portaria nº 012, de 2017 – Revogação/Nomeação de Portaria nº 14,


de 2014 – A Guiana, cuja capital é Georgetown, é conhecida como a “ter-
ra de muitas águas”, por seus numerosos rios. O país tem 214.969km2,
destes, mais de 80% é composto de selva. Ela é uma das florestas tropi-
cais virgens da América do Sul. É um território com alto índice de biopi-
rataria devido à porosidade de suas fronteiras, seguida de sua vizinha
Guiana Francesa.

A Guiana Francesa é um departamento ultramarino da França na


Costa da América do Sul. A superfície dela é composta de 84.000km2,
limitada ao norte pelo Oceano Atlântico, a leste e a sul pelo Brasil e a
oeste pelo Suriname. Possui uma rede de áreas protegidas, com a política
francesa, no entanto, por seu aspecto ainda não dominado, é motivo de
cobiça por suas riquezas naturais. A legislação do departamento segue à
do país, e logicamente da União Europeia.

A Venezuela, ou República bolivariana da Venezuela, possui uma área


territorial de 916.445km2, e a área do Estado da Amazônia, criado em
1992, é constituído de 177.617km2. Essa região é a de menor densidade
demográfica do país. O Estado da Amazônia está localizado no extremo
sul do país, fazendo fronteira com a Colômbia, Brasil e Guiana. A Legis-
lação, principalmente a Constitucional, de 1999, tem certa preocupação,

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93
em todo o texto, com o tema ambiental, em específico com a Amazônia
de seu país. Todavia, como ocorre nos demais países, principalmente nas
fronteiras, a falta de fiscalização e a aplicabilidade da legislação existentes
quanto à biopirataria e à exploração da floresta são problemas recorrentes.

Há de se deixar claro que, pela proposição do trabalho, não haverá


tempo para abordar estudos mais específicos sobre a qualificação po-
lítica dos países. Este capítulo apresentará a Legislação Ambiental, con-
cernentes aos recursos hídricos, mineração e recursos biológicos, que
protege cada país, e as dificuldades encontradas para essa efetivação.

1. O ORDENAMENTO JURÍDICO AMBIENTAL NA PROTEÇÃO DA


AMAZÔNIA BOLIVARIANA

A Bolívia é uma república representativa democrática e pluricultural.


O país é dividido em nove departamentos. Ele faz fronteira com o Brasil
ao norte e a leste. Também fronteira com a Argentina e Paraguai ao sul,
e com Peru e Chile a oeste.

Em se tratando de legislação ambiental, Marcelo Kokke observa que


“as leis ambientais bolivianas [...] optam pela estratégia funcional de fixa-
ção de regras gerais, cabendo aos regulamentos tecerem à concretização
normativa”1. No entanto, de forma geral foi dedicado na Constituição ca-
pítulo específico, como demonstra o autor:

1 KOKKE, Marcelo. A Bolívia e a Amazônia. In: COSTA, Beatriz Souza (org). Pan-Ama-
zônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioambientais e da proteção
ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 22.

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94
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A Constituição boliviana possui capítulo específico tra-


tando dos recursos naturais, definindo-os como de cará-
ter estratégico e de interesse público para o desenvolvi-
mento do país. A titularidade dos recursos naturais é do
povo boliviano, cabendo ao Estado sua administração em
função do interesse coletivo. A opção constitucional foi
de atrair ao Estado a gestão e diretiva dos recursos natu-
rais, com forte centralização, embora abra espaços para
a atuação de pessoas privadas. A gestão centralizada, não
obstante, está prevista com referências contínuas à par-
ticipação popular comunitária, prescrevendo a Constitui-
ção que a exploração de recursos naturais deve passar
pela consulta à população afetada, com especial distin-
ção à consulta às populações indígenas, tendência que
também se estende à legislação infraconstitucional2.

A Constituição da Bolívia, de 2009, estabelece um artigo específico


sobre os recursos naturais3 do país destacando entre eles a água, o ar, o
solo, o subsolo, os minerais dentre outros recursos.

A questão da água na Bolívia já levou a conflitos sérios, principalmen-


te na região de Cochabamba no que se trata de privatização da água.
Após esse episódio, ocorrido em 2000, a Constituição bolivariana incluiu

2 Idem, p. 24.
3 Artículo 348. I. Son recursos naturales los minerales en todos sus estados, los
hidrocarburos, el agua, el aire, el suelo y el subsuelo, los bosques, la biodiversidad, el espe-
ctro electromagnético y todos aquellos elementos y fuerzas físicas susceptibles de aprove-
chamiento. II. Los recursos naturales son de carácter estratégico y de interés público para
el desarrollo del país.

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95
no artigo 3734 que é função essencial do Estado promover e garantir o
aproveitamento responsável dos recursos naturais, como explica Kokke5.
A água possui nesse artigo, a sua importância no contexto de proteção,
sendo tratada como questão de soberania nacional.

1.1 A Lei da Mãe Terra na Bolívia

A Bolívia, em 2012, edita a Lei da Mãe Terra, ou seja, a Ley Marco de


La Madre Tierra y Desarollo Integral para Vivir Bien, Ley 300. Como expõe
Kokke: “Não se pode adentrar na análise da disciplina dos recursos natu-
rais na legislação boliviana sem ter-se em conta os pilares hermenêuticos
estabelecidos pela Lei da Mãe Terra”6.

Em relação à água potável existe também a Lei nº 2.066, de 2000, que


estabelece a classificação e a destinação das águas7.

Os recursos minerais, por sua vez, são regulados pela Lei nº 1.333, de
1992; entretanto, não impede a exploração ilegal, desse bem. Isso ocorre
por falta de fiscalização ostensiva por parte do governo.

4 Artículo 373. I. El agua constituye un derecho fundamentalísimo para la vida, en


el marco de la soberanía del pueblo. El Estado promoverá el uso y acceso al agua sobre la
base de principios de solidaridad, complementariedad, reciprocidad, equidad, diversidad
y sustentabilidad. II. Los recursos hídricos en todos sus estados, superficiales y subterrá-
neos, constituyen recursos finitos, vulnerables, estratégicos y cumplen una función social,
cultural y ambiental. Estos recursos no podrán ser objeto de apropiaciones privadas y tanto
ellos como sus servicios no serán concesionados y están sujetos a un régimen de licencias,
registros y autorizaciones conforme a ley.
5 KOKKE, Marcelo. A Bolívia e a Amazônia. In: COSTA, Beatriz Souza (org.). Pan-Ama-
zônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioambientais e da proteção
ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016.
6 Idem, p.23.
7 Idem.

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96
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Os recursos biológicos são regulamentados pelo Decreto Supremo nº


24.676, de 1997, como ensina Kokke:

[...] são divididos em dois polos principais: a regulamen-


tação do regime comum de acesso aos recursos genéti-
cos e o regulamento de biossegurança. O Regulamento
Geral de Áreas Protegidas está presente no Decreto Su-
premo n. 24781, de 31 de julho de 1997, havendo previ-
sões específicas no Decreto Supremo n. 2.366, de 20 de
maio de 2015. Esse último Decreto Supremo permite a
exploração de atividades com alto grau de potencial po-
luidor nas áreas de proteção, inclusive de atividade rela-
tivas à hidrocarbonetos e recursos minerais8.

Nessa senda, os recursos biológicos são protegidos na escala macro


e micro pelo Decreto Supremo nº 24.676, de 1977, mas não se pode es-
quecer de que a Lei da Mãe Terra aborda várias questões relacionadas a
esses recursos, e na qual se deve retornar sempre.

A Bolívia possui vasta área de parques e de monumentos naturais a


qual é protegida, como informa Kokke

O Regulamento Geral de Áreas Protegidas está presente


no Decreto Supremo n. 24781, de 31 de julho de 1997,
havendo previsões específicas no Decreto Supremo n.
2.366, de 20 de maio de 2015. Esse último Decreto Su-
premo permite a exploração de atividades com alto grau
de potencial poluidor nas áreas de proteção, inclusive de
atividade relativas à hidrocarbonetos e recursos mine-

8 Idem, p.38.

Ir para o índice
97
rais. Não há dúvidas de que a medida é preocupante em
termos de efetiva proteção ambiental, salientando previ-
são anterior restritiva prevista no Regulamento Geral. A
norma prevê mesmo uma espécie de compensação am-
biental a ser revertida para a área de proteção, em valor
pecuniário, em razão dos impactos e riscos provocados.
O Regulamento Geral de Áreas Protegidas prevê formali-
zação de planos de manejos, com possibilidade de delimi-
tação de zonas de amortecimento, corredores biológicos
e áreas de influência, com restrições ao direito de pro-
priedade. As áreas protegidas podem ser configuradas
com caráter nacional ou regional, podendo ainda haver
áreas protegidas de propriedade privada. O Regulamento
ainda estabelece as seguintes categorias de manejo para
fins de áreas protegidas: parque, santuário, monumento
natural, reserva da vida silvestre, área natural de manejo
integrado, reserva natural de imobilização9.

Em uma visão resumida, a Legislação boliviana foi enriquecida,


sem dúvida alguma, pela Constituição, de 2009, na qual se interliga o
tripé fundamental para um desenvolvimento, ou seja, a área social, a
ambiental e a econômica dando nova interpretação aos bens ambien-
tais. A Constituição brasileira já trilhava, desde 1988, esse caminho,
como se pode ver a seguir.

9 KOKKE, Marcelo. A Bolívia e a Amazônia. In: COSTA, Beatriz Souza (org). Pan-
-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioambientais e da pro-
teção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 45.

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98
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

2. A AMAZÔNIA BRASILEIRA E O ORDENAMENTO JURÍDICO AMBIENTAL

Falar sobre a Amazônia sem descrever a sua grandiosidade é muito di-


fícil, porque é a região compreendida pela bacia do rio Amazonas e a mais
extensa do Planeta “formada por 25.000 km², de rios navegáveis, em cerca
de 6.900.000 km², dos quais aproximadamente 3.800.000 km² estão no
Brasil”10. A Amazônia brasileira representa 59% do território brasileiro11.

O estado do Amazonas é o maior do Brasil, possuindo 1.559.148,890km².


Já foi o tempo em considerar somente os grandes problemas do território
amazônico, o vazio demográfico e a geopolítica. Atualmente, os problemas
se agravaram com a violência de todo gênero, como o desmatamento, a
biopirataria, a propriedade intelectual de bens ambientais e o tráfico de en-
torpecentes. No entanto, neste capítulo não há possibilidade de descrever
problemas tão graves, pois não é o objetivo primeiro, mas em se tratando
de desmatamento o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM),
publicou, neste mês de janeiro de 2017, que o “desmatamento aumentou
nos Estados do Amazonas (54%), Acre (47%) e Pará (41%)”. A conclusão da
pesquisa é que, em 2016, o desmatamento foi o maior, desde 200812.

Nesse pano de fundo, de notícias ruins, deve-se pensar se a le-


gislação ambiental tem sido eficiente, já que a própria Constituição
Federal dispõe em seu artigo 225 caput, e parágrafo 4º, especifica-
mente sobre a proteção da Amazônia.

10 IBGE, 2017, online.


11 Idem.
12 VENEZUELA, 2017c.

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99
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologica-
mente equilibrado, bem de uso comum do povo e essen-
cial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Pú-
blico e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações. [...] § 4º - A Floresta
Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o
Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimô-
nio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, den-
tro de condições que assegurem a preservação do meio
ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.13

Portanto, a Floresta Amazônica é considerada patrimônio nacional, e


assim deve ser protegida. Atualmente a proteção ambiental no Brasil é
interligada, logo se estende para o ar, a água e solo. Assim, em se tratan-
do de recursos hídricos foi criada a Lei nº 9.433, de 1997.

2.1 A Proteção dos Recursos Hídricos na Amazônia

Ao desenvolver estudo sobre a proteção de recursos hídricos, im-


portante a informação de que cerca de “97% de toda água na Terra
são salgadas. Menos de 2,5% são doces e estão distribuídas entre as
calotas polares (68,9%), e os aquíferos (29,9%), rios e lagos (0,3%) e
outros reservatórios (0,9%)”14. Portanto, percebe-se que a maior dis-
ponibilidade de água doce na Terra encontra-se praticamente em nível
subterrâneo, mesmo assim a movimentação dessas aguas é complexa
e depende de uma infinidade de fatores que não se pode incluir neste

13 BRASIL, 2017a, online.


14 HIRATA, Ricardo. Recursos Hídricos. In: TEIXEIRA, Wilson et. al (org.). Deci-
frando a Terra. 3. ed. São Paulo: Companhia Nacional, 2008, p. 422.

Ir para o índice
100
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

trabalho15. Todavia, é informação importante para a presente e futuras


gerações, porque dela depende sua sobrevivência. A preocupação com
a água doce deve ser realmente muito séria.

Nesse contexto, da necessidade de proteção de recursos hídricos, a Lei


nº 9.433, de 1997, faz 20 anos. Ela trouxe novidades na sua promulgação, ou
seja, estabeleceu a água como um bem econômico e escasso. A lei protege a
água como um todo no país, de forma que inclui os rios da Amazônia.

A Constituição Federal, nesse sentido, dispõe:

Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos


minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem
propriedade distinta da do solo, para efeito de explora-
ção ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida
ao concessionário a propriedade do produto da lavra. 16

Ainda sobre a proteção da água, a Lei nº 9.605, de 1998, Lei de crimes


ambientais, dispõe, no seu artigo 54, que o causador de poluição, de
qualquer natureza, capaz de causar danos à saúde humana ou provocar
mortandade de animais ou destruir a flora, pode sofrer reclusão de um a
quatro anos, e multa. No mesmo artigo, a Lei aumenta a pena para reclu-
são de um a cinco anos, no caso de poluição hídrica, que torne necessá-
ria a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade.

Retomando o artigo 176, observa-se que os potenciais de energia


hidráulica pertencem à União, e nesse mesmo contexto também os re-
cursos minerais.

15 Ver estudos de Colombo C. G. Tassinari (2008, p. 102).


16 BRASIL, 2017a.

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101
2.2 Recursos Minerais na Amazônia Brasileira e sua Proteção

Como dito supra, a Constituição Federal estabelece que os recursos mi-


nerais são bens da União, sendo assegurada, nos termos da lei, aos demais
entes federativos, a participação no resultado da lavra. Também é explícito
que incumbe à União a competência legislativa sobre o tema, como se
verifica no artigo 20, § 1º, e artigo 22, inciso XII, da Constituição Federal.

De outro modo, é competência comum de todos os entes federativos


registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa
e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios, nos ter-
mos do artigo 23 da Constituição Federal.

Os recursos minerais, assim como os potenciais de energia hidráu-


lica, constituem propriedade distinta da do solo, e sua pesquisa e lavra
somente poderão ser efetuadas após ordem da União.

A região Amazônica já sofreu explorações minerais de longas datas


na história. De forma resumida, podem-se destacar três ocasiões bem
marcantes. A primeira delas teve início no Amapá, Serra do Navio, com a
exploração do manganês, em 194717. A segunda foi a fase da exploração
da bauxita, em 1970, próximo ao rio Trombetas, no município paraense
de Oriximiná. A última fase, e mais divulgada, foi a que ocorreu na Serra
dos Carajás, Pará, de 1980 a 1990, como explica Monteiro:

No período em que se assistiu à corrosão da base de susten-


tação do regime militar e sua queda, houve também grande
elevação no preço do ouro no mercado mundial. Isto im-

17 MONTEIRO, Maurilio de Abreu. Meio século de mineração industrial na Amazô-


nia e sua implicações para o desenvolvimento regional. Revista Estudos Avançados. v. 19,
n. 53. São Paulo jan./ab. 2005, s/p.

Ir para o índice
102
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

pulsionou a expansão da valorização do ouro na Amazônia,


uma dinâmica que implicou choques entre empresas mine-
radoras e garimpeiros em diversas áreas da região18.

A mineração no Brasil ainda é regida pelo Código de Mineração, Decre-


to-Lei nº 227, de 1967, mas em vias de sofrer sua revogação. O Decreto
conceitua, dentre outros, o que seja mineração e jazida. A importância da
mineração, muitas vezes, passa despercebida pelo homem em sua vida
diária, pois, como Silvestre chama a atenção, “O homem ignora, por exem-
plo, que mais de 90% das coisas que o cercam são de origem mineral”19.
Sem citar também a ignorância quanto aos bens biológicos da região.

2.3 A Proteção dos Recursos Biológicos

A partir da Conferência, de 1992, ou seja, a Eco-92 no Rio de Janeiro,


passou-se a se preocupar com a diversidade biológica. Logo, a Conven-
ção de Diversidade Biológica foi documento primordial na proteção de
bens ambientais, como especificam Medeiros e Albuquerque:

O Brasil desempenhou papel de destaque na negocia-


ção da CDB, não apenas por ser o país-sede da CNUMD,
mas principalmente em razão do patrimônio genético e
da biodiversidade que possui. Falar de biodiversidade no
Brasil é quase como falar da biodiversidade no mundo
em razão do número impactante que a nossa biodiver-
sidade representa no sistema global. Conforme dados

18 Idem.
19 SILVESTRE, Mariel. Mineração em área de preservação permanente: inter-
venção possível e necessária. São Paulo: Signus. 2007, p. 9.

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103
do Ministério do Meio Ambiente (2014), o Brasil abriga
mais de 20% do número total de espécies da Terra, o que
destaca a posição do país entre as 17 nações com maior
biodiversidade no mundo, como ja foi mencionado20.

O Brasil tem uma gama de legislações com o objetivo de proteger os


seus bens ambientais. Citam-se algumas, como a Lei nº 9.985, de 2000,
que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC);
a Lei citada acima sobre defesa dos recursos hídricos, a Lei nº 11.428,
de 2006, com o objetivo de proteger a mata atlântica, além de outras.
Entretanto, somente em 2015 foi promulgada a Lei nº 13.123, que dis-
põe sobre bens, direitos e obrigações relativos ao acesso ao patrimônio
genético do país, ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio
genético, além de várias matérias conexas. Dessa forma, ainda se deve
esperar pelo Decreto regulamentador dessa matéria no Brasil.

Outro país vizinho, que possui território amazônico, é a Colômbia,


que demonstra uma legislação de proteção de seus recursos naturais no
mesmo caminho brasileiro.

3. A AMAZÔNIA COLOMBIANA E A PROTEÇÃO AMBIENTAL

A República Colombiana faz fronteira a leste com o Brasil e a Vene-


zuela e, de acordo com Ramos, “foi um dos primeiros países da América

20 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; ALBUQUERQUE, Letícia. A quem pertence


a biodiversidade? Um olhar acerca do marco regulatório brasileiro. Veredas do Direito: Direito
Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, [S.l.], v. 12, n. 23, p. 195-216, jan. 2016, p. 199.

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104
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Latina a apresentar normas específicas sobre a proteção dos recursos


naturais e do meio ambiente”21.

A Colômbia é conhecida como um dos países da América Latina


mega diverso, pois possui uma diversidade biológica riquíssima, devido
ao seu território amazônico.

Informa Ramos que a proteção dos recursos hídricos não possui lei
específica, mas algumas legislações fragmentárias nesse sentido:

A bacia amazônica colombiana compreende 16,14% do


território do país e é composta por seis principais rios:
Rio Amazonas, Rio Japurá, Rio Putumayo, Rio Guaviare,
Rio Apaporis e Rio Uapés. O país não possui leis espe-
cíficas de organização estrutural e instrumental, na ges-
tão das águas. Uma dessas legislações é o Decreto nº
2.811 de 1974, Código Nacional de Recursos Naturais
Renováveis e de Proteção ao Meio Ambiente, fundado
no princípio de que o ambiente é patrimônio comum
da humanidade, necessário para a sobrevivência e de-
senvolvimento econômico e social dos povos (art.1º).
Já o Decreto nº 1.449 de 1977 dispõe, dentre outros
aspectos, sobre a conservação e proteção das águas, no
tocante às propriedades rurais [...]22.

21 RAMOS, Ana Virgínia Gabrich Fonseca Freire. A Amazônia Colombiana. In: COS-
TA, Beatriz Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das ques-
tões socioambientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p.97.
22 RAMOS, Ana Virgínia Gabrich Fonseca Freire. A Amazônia Colombiana. In: COS-
TA, Beatriz Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das ques-
tões socioambientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p.98.

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105
Quanto aos recursos minerais, a Colômbia, sendo um país tradicional-
mente formado por populações indígenas, tem alguns aspectos peculia-
res quanto a essa exploração. Mas o país tem tido um desenvolvimento
exponencial, principalmente na exploração de ouro.

Explica Ramos que o Sistema de Información Minero Colombiano (SI-


MCO), em seu

Catastro y Registro Minero que a região amazônica pos-


sui cerca de 140 títulos de mineração vigentes, o que
abrange uma área aproximada de 100.000 hectares, em
sua grande parte, dedicada à exploração de ouro. Em ter-
mos legais, a Colômbia possui um Código de Minas (ley
nº 685/01) cujo objetivo, de acordo com o art. 1º, é fo-
mentar a exploração técnica e a explotação dos recursos
minerais de propriedades estatal e privada23.

O Código de Minas, estabelecido pela Lei nº 685, de 2001, tem sido


alvo de críticas contundentes, como a de Sema, pois a seu ver “[...] En-
tregou de forma perpétua os recursos do subsolo a multinacionais”, e
também “[...] retira lucros de exploração de recursos das comunidades
afrodescendentes e indígenas por meio da Lei nº 70, de 1993 [...]”24. Essa
interpretação pode ser observada no artigo 5º da Lei:

Artículo 5° Propiedad de los Recursos Mineros. Los mine-


rales de cualquier clase y ubicación, yacentes en el suelo

23 RAMOS, Ana Virgínia Gabrich Fonseca Freire. A Amazônia Colombiana. In: COS-
TA, Beatriz Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das ques-
tões socioambientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 104.
24 Idem.

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106
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

el subsuelo, en cualquier estado físico natural, son de la


exclusiva propiedad del Estado, sin consideración a que
la propiedad, posesión tenencia de los correspondien-
tes terrenos, sean de otras entidades públicas, de par-
ticulares de comunidades o grupos. Quedan a salvo las
situaciones jurídicas individuales, subjetivas y concretas
provenientes de títulos de propiedad privada de minas
perfeccionadas con arreglo a las leyes preexistentes.25

O Código de Mineração Colombiano ao ressalvar as situações ju-


rídicas anteriores abre realmente um precedente perigoso. Mas, no
capítulo sobre regimes especiais, a lei observa os direitos de grupos
étnicos, e Ramos explica:

O artigo 121 afirma que é obrigação do explorador


de minas realizar suas atividades respeitando os valo-
res culturais, sociais e econômicos das comunidades e
grupos étnicos ocupantes da área. Os artigos seguintes
regulamentarão a exploração mineral em terras indíge-
nas e comunidades negras, considerando, também, as
zonas mistas, isto é, que abranjam as duas situações.
Entretanto, novamente não há menção específica ao
território amazônico, podendo-se inferir que as minas
que se encontrarem em tais condições especiais no
território amazônico deverão obedecer ao disposto no
capítulo XIV do Código.26

25 VENEZUELA, 2017.
26 RAMOS, Ana Virgínia Gabrich Fonseca Freire. A Amazônia Colombiana. In: COS-
TA, Beatriz Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das ques-
tões socioambientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 105.

Ir para o índice
107
Não é nenhuma novidade que na América Latina, principalmente em
terras amazônicas, a Legislação de Proteção Ambiental não seja eficiente,
na qual ficam à margem da lei povos indígenas e comunidades ribeirinhas,
apesar de a Lei os incluir. Esse fato ainda é mais preocupante quando na
cultura indígena se entende que a exploração do “ouro e demais minerais
têm sua origem no sol, na lua e nas estrelas, ou seja, são uma espécie de
“pegadas” que demonstram a relação dos astros com a terra [...]”27.

Quanto à questão sobre os recursos biológicos, a Colômbia possui a Lei


nº 165, de 1994, promulgada dois anos depois da Eco/92, no Brasil, dando
estímulo pelo desenvolvimento e proteção da biodiversidade. Seguindo
essa linha de proteção, também foi criada a Lei nº 388, de 1997, na qual se
estabelece o ordenamento do território e reconhece as áreas protegidas,
que foram especificamente consideradas no Decreto nº 2.372, de 2010.

Apesar de a Colômbia ter se empenhado, até com uma Constituição


recente, 1991, os problemas ambientais são desafios constantes.

4. A AMAZÔNIA EQUATORIANA

A Constituição da República do Equador foi promulgada em 2008. É


uma Constituição inovadora, totalmente dedicada ao tema de proteção
aos seus recursos naturais. Desde seu preâmbulo, reconhece a natureza
intitulada “Pacha Mama” que tem um significado especial, ou seja, é ne-
cessária a existência de todos os humanos e não humanos. Em seu artigo
1º deixa claro sua formação:

27 Idem, p. 105.

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108
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

O Equador é um Estado constitucional de direitos e justi-


ça, social, democrático, soberano, independente, unitário,
intercultural, plurinacional e laico. É organizado como re-
pública e governado de forma descentralizada. A soberania
reside no povo cuja vontade é o fundamento da autoridade
e é exercida através dos órgãos do poder público e das for-
mas de participação direta previstas na Constituição [...]. 28

A Constituição equatoriana deu um “giro biocêntrico” e deixou para


trás as demais constituições dos países da América Latina. Isso se deve ao
reconhecimento da natureza como sujeito de direitos. Também quanto
aos impactos ambientais graves, estabelece o artigo 72:

[…] en los casos de impacto ambiental grave o


permanente, incluidos los ocasionados por la ex-
plotación de los recursos naturales no renovables,
el Estado establecerá los mecanismos más eficaces
para alcanzar la restauración, y adoptará las medi-
das adecuadas para eliminar o mitigar las conse-
cuencias ambientales nocivas29.

O texto constitucional, segundo Bizawu e Cunha, “dispõe que os re-


cursos naturais não renováveis do território do Estado pertencem a seu
patrimônio inalienável, irrenunciável e imprescritível”30.

28 ECUADOR, 2016.
29 ECUADOR, 2016.
30 CUNHA, Lorena Rogues Belo da; BIZAWU, Kiwonghi. O Equador e a Região
Amazônica. In: COSTA, Beatriz Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na
perspectiva das questões socioambientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte:
Dom Helder, 2016, p. 146.

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109
O Equador teve a preocupação de destacar, em sua constituição, os
cuidados com seus bens ambientais e reservar às comunidades tradicio-
nais a participação de uso e administração, conservação dos recursos na-
turais renováveis que se encontram em suas terras, artigo 57.

Em relação aos recursos hídricos, o Equador possui uma Legislação


muito recente. É a Lei Orgânica dos Recursos Hídricos de uso e aprovei-
tamento da água. O objetivo da Lei é garantir o direito humano à agua,
bem como regular e controlar a autorização, a gestão, a preservação,
conservação, restauração, dos recursos hídricos.31

Para a fiscalização de exploração mineral, o Equador conta com uma


Agência de Regulação. Esta é um órgão técnico-administrativo apoiado
pela intitulada Ley de Minería, de 2009.

Sobre a proteção da diversidade biológica, a própria Constituição


equatoriana, além de considerar a natureza sujeito de direitos32, ain-
da torna público,

No que diz respeito à prevenção dos danos à natureza, a


Constituição do Equador reservou o artigo 73 para tratar
do assunto. De acordo com esse dispositivo, é compe-
tência do Estado aplicar as medidas de precaução e es-
tabelecer restrições para atividades que possam levar à

31 ECUADOR, 2016.
32 [...] la naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene
derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración
de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos. Toda persona, comunidad,
pueblo o nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos
de la naturaleza (ECUADOR, 2016).

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110
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

extinção de espécies, à destruição de ecossistemas ou à


alteração permanente dos ciclos naturais33.

Não é novidade que existem problemas quanto à proteção dos bens


ambientais no Equador, pois, como se pode observar, a Legislação é re-
cente e depende de vontade política para que elas sejam implementa-
das. Da mesma forma, poder-se-á analisar a Legislação da Guiana, ante-
riormente denominada Guiana Inglesa.

5. A GUIANA E A AMAZÔNIA

A Guiana, embora não seja um país latino, faz parte da América


do Sul e também compõe a Organização do Tratado de Cooperação
Amazônica (OTCA).

Conforme Oliveira e Brito:

A Guiana integra a Commonwealth Britânica. Desde


1970 é uma república e, a partir de 1980, adota o
sistema semipresidencialista de governo. Em 1980,
com a entrada em vigor da sua última Constituição,
o Estado tornou-se uma democracia constitucional.
Em 1989, a Guiana iniciou um processo de renova-
ção e de recuperação de seu sistema econômico

33 CUNHA, Lorena Rogues Belo da; BIZAWU, Kiwonghi. O Equador e a Re-


gião Amazônica. In: COSTA, Beatriz Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na
perspectiva das questões socioambientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom
Helder, 2016, p. 146.

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111
pelo qual deixou o modelo socialista de economia
controlada e planificada pelo Estado para instituir o
modelo capitalista de livre mercado. No ano de 2003,
a Constituição passou por importantes reformas, de
modo a aprimorar seu sistema político-econômico34.

O território da Guiana é extensamente coberto por florestas, e so-


mente 2,5% é cultivado. A proteção sob a forma de Legislação é bem
recente. Informa o site da OTCA35.

Somente a partir de 1990, o país passou a adotar normas específicas


relacionadas ao meio ambiente. Pode-se citar a Lei de Proteção Ambien-
tal Lei nº 11, de 1996, que pode ser considerada uma norma geral. Ela foi
atualizada pela Lei nº 17, de 2005.

A Lei em pauta tem aplicação quanto ao manejo, conservação, pro-


teção e melhoria do meio ambiente, prevenção e controle da poluição,
avaliação de impacto do desenvolvimento econômico no meio ambiente,
uso sustentável de recursos naturais, e estabelece responsabilidades por
dano ao meio ambiente.

Informam, quanto às demais leis protetivas do meio ambiente,


Oliveira e Brito:

Dentre os chamados “regulamentos subsidiários” da


Lei de Proteção Ambiental, destacam-se: a) a legislação
sobre a proteção de espécies (Regulamentos de 1999 e

34 OLIVEIRA, Márcio Luís de; BRITO, Franclim Jorge Sobral de. A Guiana e a Amazô-
nia. In: COSTA, Beatriz Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das
questões socioambientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 170.
35 BRASIL, 2017c.

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112
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

suas atualizações), b) legislação sobre a qualidade dos


recursos hídricos (Regulamento nº 6, de 2000); c) a legis-
lação sobre a gestão de resíduos perigosos (Regulamento
nº 7, de 2000, e Regulamento nº 13, de 2005); d) a legis-
lação de proteção sonora (Regulamento nº 8, de 2000);
e) a legislação da qualidade do ar (Regulamento nº 9, de
2000); f) a legislação sobre licenciamentos e autorizações
ambientais (Regulamento nº 10, de 2000, e Regulamento
nº 14, de 2005); g) a legislação sobre o lixo (Regulamento
nº 7, de 2013); h) a legislação de gestão e conservação da
vida selvagem (Regulamento nº 6, de 2013); i) a legisla-
ção de compliance e de execução de normas ambientais
(Regulamentos de 2014)36.

Apesar da colonização britânica, a situação da Guiana vem se trans-


formando gradativamente. Esse processo tem sido denominado “‘sul-
-americanização” que dialogam mais fortemente com a nova projeção
do Brasil [...]”, como entende Iuri Cavlak.

Porém, existe uma necessidade de união dos países amazônicos para


agilizar a defesa desse território.

6. A GUIANA FRANCESA E A AMAZÔNIA

A Guiana Francesa não faz parte da OTCA, por não ser considerado
um país independente. Ela compõe o Estado Francês, por mais que isso

36 OLIVEIRA, Márcio Luís de; BRITO, Franclim Jorge Sobral de. A Guiana e a Amazônia.
In: COSTA, Beatriz Souza (org). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das ques-
tões socioambientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 176.

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113
cause estranheza. No entanto, não se pode desconsiderar que a Guiana
Francesa possui território amazônico. Toledo entende que,

Em virtude da distância existente entre a Guiana Francesa


e a França metropolitana, separadas pelo Atlântico, aquela
sofre os malefícios do isolamento em relação a esta, o que
tem lhe impedido de exercer plenamente suas potenciali-
dades. Uma alternativa capaz de enfrentar esse isolamen-
to seria integrar-se cada vez mais à região sul-americana,
especialmente na categoria de países amazônicos, uma
vez que apresenta o mesmo ecossistema florestal. Toda e
qualquer legislação referente à meio ambiente, recursos
hídricos, minerais são do Estado Francês37.

Toledo explica que a Guiana Francesa “é uma coletividade territorial


integrada à República Francesa, com o mesmo estatuto dos 95 departa-
mentos da França metropolitana”38. Dessa forma, toda a Legislação vi-
gente relativa aos bens ambientais é válida também para a Guiana Fran-
cesa ultramarina. Sendo assim, esse departamento deve se submeter às
normas jurídicas do país de origem.

A questão ambiental está expressa no preâmbulo da Constituição France-


sa e, portanto, faz parte da hierarquia constitucional como demonstra Toledo:

O povo francês proclama solenemente o seu compromisso


com os direitos humanos e os princípios da soberania na-

37 TOLEDO, André de Paiva. A Guiana Francesa e a Amazônia. In: COSTA, Beatriz


Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioam-
bientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 184.
38 Idem, p. 188.

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114
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

cional, conforme definido pela Declaração de 1789, con-


firmada e completada pelo Preâmbulo da Constituição de
1946, bem como com os direitos e deveres definidos na
Carta Ambiental de 2004. Em virtude desses princípios e
da livre determinação dos povos, a República oferece aos
territórios ultramarinos que expressam a vontade de ade-
rir a eles instituições novas fundadas sobre o ideal comum
de liberdade, de igualdade e de fraternidade, e concebido
com o propósito da sua evolução democrática39.

Logo, ao tratar dos territórios ultramarinos, a Constituição Francesa


os inclui também nesse ordenamento fundamental, e dispõe em seu ar-
tigo 34 questões de proteção ambiental, como mencionado por Toledo
“que A lei determina os princípios fundamentais: [...] da preservação do
meio ambiente”. No Capítulo XI, destinado ao Conselho Econômico, So-
cial e Ambiental, o artigo 69 estabelece a sua função de relator de proje-
tos normativos relacionados a matérias de sua competência”40.

O tratamento de proteção ambiental dos recursos hídricos, mi-


nerários e biológicos também é alvo da Legislação Francesa metropolita-
na. Seria um trabalho imensurável transcrever toda a Legislação que, cer-
tamente, não tem aplicabilidade na Guiana, pois se trata de realidades
completamente distintas. No entanto, a Legislação que dispõe sobre a
proteção dos recursos hídricos está disposta no Código Ambiental, artigo
211-1, como explica Toledo, “artigo inserido pela Lei sobre a Água, de 3
de janeiro de 1992, no qual determina que o ordenamento jurídico dedi-

39 Idem, p. 193.
40 TOLEDO, André de Paiva. A Guiana Francesa e a Amazônia. In: COSTA, Beatriz
Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioam-
bientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 194.

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115
cado à água tenha como objetivo o alcance e a realização de um manejo
equilibrado dos diversos recursos hídricos”41.

No que diz respeito aos recursos minerais, o departamento ultramari-


no deve se ater ao Código de Mineração, de 1810, no qual esses recursos
pertencem ao Estado Francês. Ensina Toledo que a exploração

[...] deve ser feita sempre por meio de uma autorização


por parte deste, titular da soberania sobre os recursos na-
turais. De fato, na França, essa autorização se dá por ato do
Poder Executivo, que se reveste sob a forma de um título
de mineração. Esse título pode ser uma concessão ou uma
permissão de exploração, atribuído por decreto do Conse-
lho de Estado, após longo procedimento de análise42.

Relativamente aos recursos biológicos, a França, primeiramente “em


1994, por intermédio da Lei 94-477, ratificou a Convenção sobre a Diver-
sidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro, em 1992”43.

Esse foi um passo importante para uma floresta amazônica que


está ainda 95% intacta, nesse território. Destaca-se que uma das pou-
cas legislações instituídas, exclusivamente para proteção ambiental,
foi o Decreto nº 2007-266, de 27 de fevereiro de 2007, para a criação
do Parque Amazônico da Guiana, mas, como informa Toledo, existe a
dificuldade de sua regulamentação.

41 TOLEDO, André de Paiva. A Guiana Francesa e a Amazônia. In: COSTA, Beatriz


Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioam-
bientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 197.
42 Idem, 205.
43 Idem, 212.

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116
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A Guiana Francesa tem muitos desafios pela frente, um deles é a ile-


galidade da imigração. Toledo informa que “A imigração ilegal de brasilei-
ros para a Guiana Francesa é, realmente, uma preocupação das autori-
dades francesas, especialmente pelo fato de o destino desses imigrantes
ser, normalmente, os garimpos clandestinos”44.

7. A AMAZÔNIA PERUANA

A República do Peru ocupa um território com cerca de 1.285.220km²


e situa-se na região ocidental da América do Sul45. Oliveira e Sampaio
informam que

A Amazônia, ou Selva peruana, está localizada na porção


leste do país e estende-se também de norte a sul, ocupan-
do 59% do território do Peru. A região apresenta densa
selva de montanha, caracterizada por bosques enevoados
e mata baixa. Na selva, encontram-se importantes bacias
hidrográficas, dentre as quais se destaca a do rio Amazo-
nas, que nasce da junção dos rios Marañón e Ucavali.46

Em se tratando de proteção de recursos hídricos, o Peru sofre crí-


ticas em sua gestão, apesar de a Lei nº 29.338, de 2009, em seu artigo
64, estabelecer a proteção das águas para as comunidades campe-

44 TOLEDO, André de Paiva. A Guiana Francesa e a Amazônia. In: COSTA, Beatriz


Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioam-
bientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 191.
45 PERU, 2017.
46 OLIVEIRA, Márcio Luís de; SAMPAIO, José Adércio Leite. A Amazônia Peruana. In:
COSTA, Beatriz Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das ques-
tões socioambientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 245.

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117
sinas. Entretanto, há contrassenso a respeito dessa proteção, como
demonstram Oliveira e Sampaio

[...] na política pública de águas, há problemas sérios a


serem enfrentados, uma vez que o consumo da água no
país é crescente em todos os segmentos de demanda,
embora permaneça factualmente submetido à seguinte
proporção: 80% destina-se ao setor agrícola; 18% à po-
pulação e à indústria; e 2% à atividade de mineração.47

Referente à mineração, esse país é famoso por suas jazidas de ouro,


mas muito rico também em cobre, alumínio, zinco, prata, chumbo, ferro,
petróleo e gás natural.

A mineração no país é regida pela Lei Suprema nº 014-92-EM, deno-


minada Lei Geral de Mineração. Mas a extração de minérios no Peru tem
provocado impactos ambientais graves. Também a facilidade em modifi-
cação da Lei pelo Poder Executivo leva à insegurança jurídica. A exemplo
disso, foi a modificação da Lei Geral, no dia 5 de janeiro de 2017, por
meio do Decreto Legislativo nº 1.320. Este documento modifica os arti-
gos 40 e 41 que estabeleciam o tempo de exploração de jazidas.

No que concerne à proteção de fauna e flora, Oliveira e Sampaio evi-


denciam que no país,

[...] desde a década de 1960, o Peru já teve cinco legis-


lações de proteção, ocupação, uso e exploração de suas
florestas e, em certa medida, da sua biodiversidade, sobre-
tudo sob o regime de concessões públicas, com participa-

47 Idem, p. 249.

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118
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

ção dos povos nativos. Em 2011, entrou em vigor a Lei nº


29.763 – uma espécie de código florestal –, cuja elabora-
ção foi motivada por pressão dos grupos nativos48.

Constata-se que o país ainda necessita de gestão pública, implemen-


tação e fiscalização de suas leis para auferir o desenvolvimento sustentá-
vel. Como sinalizam Oliveira e Sampaio, o problema ambiental peruano
transcende a esfera normativa. Para alcançar um legítimo desenvolvi-
mento, deve-se investir na gestão eficiente, e isso só se adquire com in-
vestimento na educação, de forma generalizada.

8. O SURINAME E A REGIÃO AMAZÔNICA

A República do Suriname é uma ex Guiana Holandesa. Ela está locali-


zada ao norte da América Latina, mas não se pode considerá-la como um
país latino. Isso ocorre também com as demais Guianas, ou seja, a France-
sa e a ex Guiana Britânica. Elas formam “uma região geopolítica própria,
voltadas, para o Caribe, apesar de cobertas pela floresta amazônica”49.

Esse país tem “uma superfície total de 163 mil km2 e uma população
total de 493 mil habitantes, mais da metade da população é urbana, so-
mente a capital Paramaribo tem em torno de 243 mil habitantes”50.

48 OLIVEIRA, Márcio Luís de; SAMPAIO, José Adércio Leite. A Amazônia Peruana. In:
COSTA, Beatriz Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das ques-
tões socioambientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 254.
49 VISENTINI, Paulo Fagundes. Guiana e Suriname: uma outra América do Sul. Re-
vista conjuntura Austral, v. 1 n. 1; ago/set. 2010, p. 28.
50 Idem, p. 66.

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119
A maior parte da população surinamesa “é dos chamados hindus-
tani (indianos do norte), a mistura étnica pode ser evidenciada em
algumas manifestações culturais, religiosas e linguística (crioulo). O
idioma neerlandês é a língua oficial, mas também falam outras lín-
guas como o javanês e o indonésio”51.

O Suriname foi colonizado em 1616 pelos holandeses e obteve sua


independência somente em 1975, após várias ocupações e conflitos de
todo gênero.

Entre 1980 e 1990, o país foi palco de golpes militares. Cinco anos após
o rompimento de seus laços coloniais com os Países Baixos, militares dispu-
seram o Governo Civil, proclamando a República Socialista do Suriname52.

Com uma independência tardia, a Constituição da República do Su-


riname foi promulgada em 1987. Contudo, em 1978, o país assinou o
Tratado de Cooperação da Amazônia e incorporou em sua Constituição a
proteção ambiental, como informa Cunha:

Assim, atendendo a esses princípios de proteção ao meio


ambiente, o artigo 6º da Constituição do Suriname esta-
belece, em sua alínea g) que um dos objetivos sociais do
Estado é “criar e melhorar as condições necessárias para
a proteção da natureza e para a preservação do equilíbrio
ecológico” (SURINAME, 1987, tradução nossa). É impor-
tante destacar o artigo 41, que também pode ser elencado
com um dos exemplos de dispositivos constitucionais que
integram o direito ao meio ambiente. O artigo em questão

51 Idem.
52 PROCÓPIO, Argemiro. A Amazônia Caribenha. Revista Brasileira de Política
Internacional, v. 50 Rev. bras. polít. int. vol.50 n. 2 Brasília July/Dec. 2007.

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120
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

dispõe que “riquezas naturais e recursos são de proprieda-


de da nação e devem ser utilizados para promover o de-
senvolvimento econômico, social e cultural [...]53.

Não há dúvidas de que o Suriname precisa de desenvolvimento so-


cial, econômico e ambiental. A Legislação Ambiental ainda é precária,
mas, apesar de esparsa, existe uma legislação sobre recursos hídricos
dentro da Lei de proteção à natureza, de 195454.

Ressalta Cunha a existência, também no Código Penal suridanês, da


tipificação, como crime, da poluição das águas55.

Quanto à mineração, o Suriname apresenta o Código de Mineração,


de 1986. Cunha expõe que neste Decreto “todos os minerais localizados
dentro do território do Suriname, incluindo o mar territorial, leito e sub-
solo são propriedades do Estado”56. Enfatiza a autora, que o Código esta-
belece a preferência dos surinameses para a exploração mineral, tendo
em vista a violação de suas terras pela imigração ilegal.

A legislação de recursos biológicos está inserida na Lei já citada, ou


seja, a Lei de Proteção à Natureza, de 1958, conforme expõe Cunha:

Conforme seu artigo 5º, “é proibido na natureza: a) in-


tencionalmente, ou por negligência, causar danos ao
solo, à paisagem, à fauna, à flora ou efetuar operações,

53 CUNHA, Lorena Rodrigues Belo da. O Suriname e a Região Amazônica. In: COS-
TA, Beatriz Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das ques-
tões socioambientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 268.
54 Idem.
55 Idem, p. 271.
56 Idem, p. 273.

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121
comprometendo assim o valor da reserva como tal (...).”
(SURINAME, 1954, tradução nossa). A partir do enuncia-
do, pode-se afirmar que a lei em análise proíbe não só
as condutas dolosas, como também as culposas, desde
que causem danos aos recursos biológicos, visto que
solo, paisagem, fauna e flora, por serem componentes
de ecossistemas e possuírem real e potencial valor para a
humanidade, podem ser assim considerados nos termos
da definição elaborada pela CDB57.

Percebe-se que o Suriname ainda tem muito a avançar na senda da


proteção socioambiental. É necessária a união dos países insulares e de-
mais países amazônicos nessa direção, para que riquezas humanas e am-
bientais não sejam desperdiçadas.

9. A AMAZÔNIA VENEZUELANA

A República Bolivariana da Venezuela encontra-se ao norte da Améri-


ca do Sul, tendo como fronteiras o Brasil, a Colômbia e Guiana, confron-
tando-se também com o Oceano Atlântico e o Mar do Caribe.

A área territorial do país é composta por 916.445km2, sendo este o


33º país com maior território do mundo.

A Constituição da Venezuela, promulgada em 15 de dezembro de 1999,


em substituição à de 1961, é a vigésima sexta da história do país. Em seu arti-
go 1º, o Estado passou a ser denominado República Bolivariana da Venezuela.

57 CUNHA, Lorena Rodrigues Belo da. O Suriname e a Região Amazônica. In: COSTA,
Beatriz Souza (org.). Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das questões so-
cioambientais e da proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 276.

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122
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A Constituição da Venezuela trouxe, em seu arcabouço, inovações


quanto à proteção ambiental em vários aspectos. No que se refere à edu-
cação e à proteção cultural, como um todo, encontram-se os artigos de
98 a 102, e, de forma especial, a educação ambiental.

Tratando-se designadamente de proteção ambiental, a Constituição


Bolivariana estabelece, no capítulo IX, os Direitos Ambientais:

[...] Artigo 127. É um direito e dever de cada geração


proteger e manter o ambiente para o benefício de si e
do mundo futuro. Todos têm o direito, individualmente
e coletivamente, de desfrutar de uma vida e um ambien-
te seguro, sadio e ecologicamente equilibrado. O Estado
deve proteger o meio ambiente, biodiversidade, recursos
genéticos, processos ecológicos, parques nacionais e mo-
numentos naturais e outras áreas de importância ecoló-
gica especial. O genoma de organismos vivos não pode
ser patenteado, e a lei que se refere aos princípios bioéti-
cos regulamentará esta matéria. É uma obrigação funda-
mental do Estado, com a participação ativa da sociedade,
garantir que a população viva em um ambiente livre de
poluição, onde o ar, água, solo, costas, clima, ozônio, es-
pécies vivas sejam especialmente protegidas por lei.

Artigo 128. O Estado desenvolverá uma política de plane-


jamento atendendo as realidades ecológica, geográfica,
demográfica, social, cultural, econômica, política, de acordo
com as premissas do desenvolvimento sustentável, incluin-
do a informação, consulta e participação. Uma lei orgânica
deve desenvolver os princípios e critérios para esse fim.

Artigo 129. Todas as atividades suscetíveis de causar danos


aos ecossistemas devem ser precedidas de estudos de im-

Ir para o índice
123
pacto ambiental e socioculturais. O Estado deve impedir a
entrada no país de resíduos tóxicos e perigosos e a fabrica-
ção e uso de armas nucleares, químicas e biológicas. Uma
lei especial regulará a utilização, manuseio, transporte e
armazenamento de substâncias tóxicas e perigosas.

Nos contratos que a República celebre com pessoas


naturais ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras, que
conceda ou outorgue, exploração de recursos naturais,
considerar-se-á incluída, mesmo que não esteja expres-
sa, manter o equilíbrio ecológico, para permitir o acesso
à tecnologia e transferi-lo em termos mutuamente acor-
dados e restaurar o ambiente afetado ao seu estado na-
tural, na forma prevista pela lei.[...]58.

Quanto aos seus recursos hídricos, o país possui uma legislação espe-
cífica, ou seja, a Lei nº 38.595, de 2 de janeiro de 2007, composta por 127
artigos e 16 disposições transitórias.59

Esta Lei, em seu artigo 17, estabelece os seguintes princípios para a


organização institucional e gestão das águas:

Artículo 20. Principios. La organización institucional para


la gestión de las aguas atenderá a los principios de: 1.-
Desconcentración, descentralicación, eficiencia y eficacia
administrativa. 2.- Participación ciudadana. 3.- Corres-

58 VENEZUELA, 2017a.
59 COSTA, Beatriz Souza. A Amazônia Venezuelana. In: COSTA, Beatriz Souza (org.).
Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioambientais e da
proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 301.

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124
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

ponsabilidad en la toma de decisiones. 4.- Cooperación


interinstitucional. 5.- Flexibilidad para adaptarse a las
particularidades y necesidades regionales y locales.60

Esta lei versa sobre a proteção de todas as bacias hidrográficas do


país, até mesmo a bacia do Orinoco e a da Amazônia venezuelana.

A riqueza mineral mais importante da República Bolivariana da Ve-


nezuela são as bacias petrolíferas. Todavia, elas se encontram fora do
estado do Amazonas. Assinala Costa que “ao sul do Rio Orinoco encon-
tram-se oitenta por cento dos recursos minerais do país. Eles podem ser
exemplificados com as grandes reservas de manganês, ferro, ouro, titâ-
nio, diamantes, urânio, molibdênio, bauxita, estanho e cromo”.61

A Legislação mineral é constituída pelo Decreto nº 295, editado em


5 de novembro de 1999. Tal Decreto, chamado de Lei Mineral, é com-
posto por 136 artigos e tem como objetivo principal regular as minas e
os minerais existentes no território nacional, seja qual for sua origem ou
apresentação, até mesmo sua exploração e explotação, assim como seu
benefício, armazenamento, circulação, transporte e comercialização.

Dentre outras matérias, o Decreto nº 295 estabelece também san-


ções quanto à exploração ilegal, pois considera as minas e as jazidas mi-
nerais, em seu artigo 2º, sejam elas de qualquer classe, pertencentes à
República e de domínio público, inalienáveis e imprescritíveis.62

60 VENEZUELA, 2017f.
61 COSTA, Beatriz Souza. A Amazônia Venezuelana. In: COSTA, Beatriz Souza (org.).
Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioambientais e da
proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 305.
62 VENEZUELA, 2017a.

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125
As riquezas biológicas da Venezuela são protegidas pela Lei de Gestão
de Diversidade Biológica, Lei nº 39.074, de 2008, cujo objetivo é estabe-
lecer os princípios regentes para a conservação de sua diversidade bio-
lógica. O texto é extenso, constituindo-se de 143 artigos, mais algumas
disposições transitórias explicativas.

Em relação aos bens ambientais, informa Costa que já existia, nos


idos de 1970, a Lei de Proteção à Fauna, Lei nº 29.289. Esta Lei estabe-
lece, em seu artigo 6º, como dever do Estado, “desenvolver investigação
científica, assim como organizar os serviços para este fim”, relativamente
à proteção de animais silvestres e domésticos.63

Costa ainda informa que, “atendendo à Constituição da República, alguns


planos de ordenação territorial foram criados, assim como o órgão ambien-
tal denominado Áreas de Bajo Régimen de Administración Especial (ABRAE),
com o objetivo de conservar e garantir o futuro do patrimônio natural.64

A Venezuela é um país que trata de sua política ambiental há tempos,


desde 1976, e atualmente está sendo reformulada, atualizada. Trata-se
de um país privilegiado em questão de recursos naturais, primeiramente
por suas bacias petrolíferas, o ouro negro, e depois pela parte generosa
da Amazônia em seu território, o tesouro verde. Mas insiste-se pela união
e cooperação entre todos os envolvidos com territórios amazônicos.

63 COSTA, Beatriz Souza. A Amazônia Venezuelana. In: COSTA, Beatriz Souza (org.).
Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioambientais e da
proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 306.
64 COSTA, Beatriz Souza. A Amazônia Venezuelana. In: COSTA, Beatriz Souza (org.).
Pan-Amazônia: o ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioambientais e da
proteção ambiental. Belo Horizonte: Dom Helder, 2016, p. 308.

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126
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho não tem a ousadia de indicar soluções simplistas para


resolver problemas complexos, que cobrem todos os países envolvidos
com o território amazônico. As informações quanto à legislação, indica-
da, de proteção ambiental já é um caminho para verificar se ela é atual e
eficiente. A Amazônia é um ecossistema de imensuráveis riquezas huma-
nas e ambientais, com conhecimentos tradicionais agregados. Além de
fornecer, para o mundo, uma diversidade de serviços ambientais incon-
táveis, e até mesmo inimagináveis. Não se deve permitir o processo de
degradação que vem ocorrendo em todo o seu território.

Após o desenvolvimento deste trabalho, percebe-se que a Amazônia


convive com uma incontável quantidade de legislações e políticas ambien-
tais que ora se aproximam, ora se afastam. Esse contexto não tem ajudado
na proteção geral da floresta. O Tratado de Cooperação Amazônico se mos-
tra, muitas vezes, ineficaz para a proteção desse bioma precioso.

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a alínea j do Artigo 8, a alínea c do Artigo 10, o Artigo 15 e os §§ 3o e
4o do Artigo 16 da Convenção sobre Diversidade Biológica, promulgada
pelo Decreto no 2.519, de 16 de março de 1998; dispõe sobre o acesso

Ir para o índice
127
ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento
tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conser-
vação e uso sustentável da biodiversidade; revoga a Medida Provisória
no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001; e dá outras providências. Dispo-
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133
O socioambientalismo indígena sob
a ótica do princípio da igualdade:
crítica à teoria de Marco Villas Boas
a partir das ideias de John Rawls,
Thomaz Piketty e Amarthya Sen
The indigenous socio-environmentalism
under the optical principle of equality:
criticism to the theory of Marco Villas Boas
from the ideas of John Rawls, Thomaz
Piketty and Amarthya Sen

ANTONIO RULLI JUNIOR

RESUMO

A tese da igualdade sustentada por Marco Villas Boas representa o


direito primário e congênito de os índios voltarem a viver em isolamen-
to ainda que aculturados. A igualdade, legítima por si só, dispensa a
igualdade das aptidões ou de ordem econômica.

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134
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Palavras-chave: Indigenato. Direito Congênito. Direito ao Isolamen-


to. Igualdade e Desigualdade.

ABSTRACT

The idea of equality support by Marco Villas Boas is assent in the origi-
nal rights to the land represented by primary rights and congenitos rights
to live again alone as tribe. The equality is legitime and out of aptitudes
and out of economic order.

Keywords: Original rights to the land. Equality. Primary rights. Con-


genitos rights.

INTRODUÇÃO

O socioambientalismo indígena, sob o prisma da Constituição Federal,


de 1988, abordado por Marco Villas Boas1, revela-se um excelente trabalho
para discussão acadêmica no momento em que se discute intensamente,
sob o ponto de vista jurídico e econômico, a questão da igualdade, e de
como o socioambientalismo pode equacionar o relacionamento dos povos
indígenas e de outras populações tradicionais com a sociedade ocidental.

A Constituição Federal trata da igualdade como princípio basilar para


o relacionamento entre os homens.

1 Socioambientalismo Indígena na Constituição do Brasil, dissertação de Mestrado,


Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, defesa apresentada em Lisboa, em 2015.

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135
1. A IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DE 1988

O artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal estabelece igualdade pe-


rante a lei, sem distinção, de brasileiros ou de estrangeiros residentes no
País, entre homens e mulheres, garantindo a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Alexandre de
Moraes ensina que o princípio da igualdade de direitos prevê

[...] a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibili-


dades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito
de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os
critérios albergados pelo ordenamento jurídico2.

2. O INDIGENATO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DE 1988

A matéria é tratada nos artigos 231 e 232 e, como salientado por Ale-
xandre de Moraes, “A Constituição reconhece aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União [...]”3.

Portanto, estabelece igualdade para os índios em consonância com o


princípio constitucional da isonomia.

Consequência evidente dessa igualdade é a de os índios ingressarem


em Juízo com representante de escolha da tribo, não havendo mais a
necessidade de estarem em Juízo representados pela Fundação Nacional
do Índio e, como tal, sujeitos relativamente incapazes.

2 MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 40.
3 Idem, p. 882-884.

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136
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Até a Constituição, de 1988, os índios eram representados pela Funai,


ou seja, eram considerados relativamente incapazes. A partir da Consti-
tuição, de 1988, passam a escolher quem irá representá-los em Juízo, de
acordo com o princípio da igualdade. A capacidade processual dos índios,
das comunidades indígenas e das organizações vem disposta no artigo
232 da Constituição Federal:

Os índios, suas comunidades e organizações são partes


legítimas para ingressar em Juízo em defesa de seus di-
reitos e interesses, intervindo o Ministério Publico em
todos os atos do processo. Este era um dispositivo da Lei
nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que acabou ele-
vado à categoria constitucional de 1988. Este direito era
reconhecido em sentença, em 1984, em São Paulo, e foi
levado em definitivo para a Constituição Federal 4.

3. O ALVARÁ RÉGIO, DE 1680

O artigo 1º do referido Alvará determinava que fossem respeitadas as


terras ocupadas pelos índios. Essa tradição se constitui em consciência
histórica da própria jurisdição no Brasil, pois era garantia das autoridades
e da própria sociedade sobre os índios e o respeito às suas terras.

Marco Antonio Barbosa trata com muita percuciência essa relação


dos índios com a terra em sua obra Direito Antropológico e Terras Indíge-
nas no Brasil5, demonstrando que o Alvará Régio, de 1680, seguia linha
jurídica que determinava certa igualdade entre os índios e a sociedade

4 BARBOSA, Marco Antonio. Autodeterminação – direito à diferença. São Paulo:


Plêiade, 2001, p.180.
5 Idem, p. 180.

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137
da época. O Indigenato se constitui em valioso instrumento jurídico de
reconhecimento da cultura dos índios e sua relação com as terras que
ocupavam tradicionalmente, e a implantação das sesmarias respeitou a
legislação indigenista portuguesa6.

A teoria do Indigenato, reconhecido como Instituto Luso-Brasileiro, dis-


tinguia a posse e a propriedade da posse e da propriedade das Ordenações.

Criava-se, assim, uma igualdade pela diferença.

4. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DE 1988, E O INDIGENATO

Não há dúvida de que a Constituição Federal, de 1988, adotou


como princípio o Indigenato do Alvará Régio, de 1680, segundo o qual
o índio era tratado com igualdade, defendido por Francisco de Vitó-
ria. Este sustentava que “[...] por si mesmo (o direito de descoberta)
não justifica a posse (espanhola) sobre esses bárbaros mais do que eles
houvessem descoberto a nós [...]”.7 Ou como também salienta José Car-
los Brandi Aleixo: “Vitoria que defende a igualdade entre os povos e a
reciprocidade de direitos e de deveres nas suas relações acentua ‘Nós
não temos sobre os índios da América mais direitos do que eles teriam
sobre nós se nos tivessem descobertos [...]”8.

6 Idem, p. 58-61.
7 VITORIA, Francisco de. apud CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos dos ín-
dios. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 56.
8 VITORIA, Francisco de. Relectiones – Sobre os índios e sobre o poder civil. Coleção Clás-
sicos IPRI. In: José Carlos Brandi Aleixo (Org.). Relectiones sobre os índios e sobre o poder civil. Bra-
sília: Universidade de Brasília/Fundação Alexandre de Gusmão, 2016, p.18. (Coleção Clássicos IPRI).

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138
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A teoria e a doutrina do Indigenato foram muito bem estudadas pelo


jurista paulista João Mendes Junior, no início do século XX, como direito
congênito – distinto da ocupação que é título adquirido –, daí decorren-
do em definitivo a igualdade pensada pelos juristas lusitanos.

A linha de pesquisa de Marco Villas Boas tem sido nessa direção, con-
siderando o direito à diferença na igualdade, sob o ponto de vista da
autodeterminação, e não discriminação, o que enseja tratamento igual
aos iguais, e desigual aos desiguais.

Confirma-se, assim, a tese de que “o indígena, primariamente esta-


belecido, tem a [...] ‘sedum positio’, que constituem o fundamento da
posse [...] além desse ‘ius possessionis’, tem o ‘jus possidendi’, que já lhe
é reconhecido e preliminarmente legitimado desde o Alvará Régio de 1º
de Abril de 1860, como ‘direito congênito’[..]”9.

Portanto, os artigos 231 e 232 da Constituição Federal, ao tratarem


dos índios, seguem a tradição do Indigenato, Instituto Luso Brasileiro,
que, por séculos, vem disciplinando de forma institucional o direito con-
gênito dos índios, como suporte para o princípio da igualdade.

9 MENDES JUNIOR, João. Os indígenas no Brazil – seus direitos individuais e po-


líticos. São Paulo: Typ. Hermes Irmãos, 1912, p. 58-59.

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139
5. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NO PENSAMENTO DE MARCO
VILLAS BOAS E A IGUALDADE NAS OBRAS DE JOHN RAWLS, AMARTHYA
SEN E THOMAS PIKETTY

É abrangente a forma de pensar do jurista do Tocantins10, pois sua


tese vai além daquelas defendidas no âmbito das Nações Unidas quando
das Declarações nºs 107 e 109 da OIT, fundamentais para a Declaração
dos Direitos dos Povos Indígenas, recentemente proclamada pela ONU e
firmada pelo Brasil, atrelando os direitos fundamentais indígenas à auto-
determinação, não discriminação e acesso à terra, ao direito fundamen-
tal ao ambiente e ao direito de serem consultados e efetivamente aten-
didos acerca de atividades de risco que possam causar impacto à suas
comunidades, além do preconizado na Constituição Federal, onde se
estabelece um mínimo existencial para a vida tribal e práticas ancestrais.

Para construir sua tese, Villas Boas elucida um eixo ambiental flutuan-
te entre os subsistemas do ambiente, dos direitos sociais, da cultura, da
educação, dos povos indígenas, da saúde, da economia e de diversos ou-
tros subsistemas da Constituição do Brasil, com evidente destaque para
o capítulo que trata dos povos indígenas, trazendo a lume um socioam-
bientalismo indígena, para além dos direitos socioambientais defendidos
por outros doutrinadores na interpretação do direito infraconstitucional
na perspectiva de um Estado de Direito Socioambiental.

A igualdade que apregoa advém da diferença, a partir do reconhe-


cimento do outro, e da noção de povo, proveniente do direito natural,
fundado na ótica tomista enriquecida por Bartolomé de Las Casas e Fran-

10 VILLAS BOAS, Marco Anthony Steveson. Socioambientalismo Indígena da


Constituição do Brasil. Dissertação de mestrado apresentada e aprovada na Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, 2015. Depositada na Biblioteca da FDUL, Lisboa-PT.

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140
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

cisco de Vitória, direito congênito que a Constituição Federal encampou,


reconhecendo o direito à diferença.

A igualdade de John Rawls11, fundamentada na igualdade de liberda-


de e de participação política, e no princípio da diferença, sob o enfoque
liberal de distribuição de riquezas, é uma busca por igualdade econômica
a partir da aceitação da desigualdade, o que tem por escopo amenizar
essas desigualdades entre os homens, porque a igualdade econômica,
assim como entendia Stuart Mil, traria a felicidade como consequência
da riqueza econômica:

As desigualdades económicas e sociais devem ser distri-


buídas por forma a que, simultaneamente: a) redundem
nos maiores benefícios possíveis para os menos benefi-
ciados, de uma forma que seja compatível com o prin-
cípio da poupança justa, e b) sejam a consequência do
exercício de cargos e funções abertos a todos em circuns-
tâncias de igualdade equitativa de oportunidades12.

Mas o jurista tocantinense vai mais longe, porque esse sentido de


evitar a desigualdade pelo econômico se torna um universo muito pe-
queno, uma vez que entre os índios não existe necessariamente desi-
gualdades como na nossa sociedade. Vivem da coleta da pesca, caça e
cultivo de pequenas roças, e todos colaboram de modo a satisfazer e
saciar as necessidades de cada um e dos grupos, pouco interferindo as
aptidões, em alguns mais do que em outros. Um modo de vida incom-
patível com o consumismo capitalista ocidental, no qual Rawls tenta

11 AWLS, John. O direito dos povos. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
12 Id, ib., 2003, p. 239.

Ir para o índice
141
agasalhar a equalização de direitos na oferta de iguais oportunidades
em busca de uma vida boa e feliz.

E da mesma forma, Amarthya Sen13 procura resolver o problema da


desigualdade econômica por meio do exercício da liberdade com ampli-
tude, alcançando um conjunto de liberdades, como as políticas, as facili-
dades econômicas, as oportunidades sociais; a garantia de transparência
e a segurança protetora, asseverando que “O desenvolvimento como um
processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam, é
considerado como: 1) o fim primordial, no qual possui papel constitutivo
e importância na liberdade constitutiva; e 2) como meio do desenvolvi-
mento, papel instrumental”14.

A teoria de Sen, de igual modo, não resolve o problema dos povos


indígenas, exceto no exercício extremo da liberdade de não buscar o de-
senvolvimento no sistema econômico ocidental, o que seria a própria
negação da teoria do renomado economista, pois, segundo ele, “[...] o
desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que
limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer pondera-
damente sua condição de agente [...]”15, ou seja, não é possível o exercí-
cio absoluto da liberdade, pois ela sempre dependerá da intervenção de
terceiros (liberdade, e não dependência).

A teoria de Thomaz Piketty16 também não se presta a resolver o


problema da desigualdade entre as comunidades indígenas e os não

13 SEN, Amarthya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Boottmann e Ricardo


Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
14 Id.ib., p. 54.
15 Id.ib., p. 10.
16 PIKETTY, Thomaz. O capital no século XXI. Tradução de Monica Baumgartten
de Bolle. São Paulo: Intrinseca, 2014.

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142
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

indígenas, apesar de levar em conta a necessidade de intervenção do


estado na economia e da utilização de mecanismos de distribuição de
riqueza como forma de se evitar a desigualdade entre os homens, sob
o argumento de que o vertiginoso aumento das desigualdades põe em
risco a democracia e, consequentemente, o futuro do próprio capita-
lismo. O pensamento de Piketty está mais voltado à sobrevivência do
capitaismo do que à solução do problema da desigualdade, ou seja,
apenas uma proposta de ampliação do bem-estar social, proposta que
as Constituições do estado pós-social já proclamaram.

A ideia de Piketty teria alguma utilidade para populações indígenas e


tradicionais se estivesse voltada à implementação de impostos verdes e
da contenção do expansionismo capitalista periférico. Entretanto, não é
o que se apreende da sua Economia da desigualdde.

As teorias modernas de justiça social exprimiram essa


ideia sob a forma do princípio “maximin”, segundo o
qual a sociedade justa deve maximizar oportunidades e
condições mínimas de vida oferecidas pelo sistema so-
cial. Esse princípio foi introduzido formalmente por Serge
Christophe Kolm [1971] e John Rawls [1972], embora o
encontremos sob formas mais ou menos explícitas bem
mais antigas, como, por exemplo, na noção tradicional de
que direitos iguais os mais amplos possíveis devem ser
garantidos a todos, pensamento bastante aceito em nível
teórico. [...]. 17 O instrumento privilegiado da redistribui-
ção pura é a redistribuição fiscal, que, por meio de tribu-
tações e transferências, permite corrigir a desigualdade
das rendas produzida pela desigualdade das dotações

17 Id., Ib., p. 10.

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143
iniciais e pelas forças de mercado, ao mesmo tempo em
que preserva ao máximo a função alocativa do sistema
de preços. Concentramo-nos aqui na redistribuição fiscal
das rendas do trabalho. A tributação e redistribuição das
rendas do capital, além de terem um impacto limitado se
comparadas às rendas de atividade, levantam problemas
específicos já analisados 18.

A simples redistribuição fiscal ou mesmo a redistribuição fiscal justa


que propõe Piketty são insuficientes para nivelar ou amenizar as substan-
ciais diferenças entre esses dois mundos antagônicos. Vejamos o que diz
Piketty sobre a redistribuição fiscal justa:

Essas curvas de taxas médias e taxas marginais efetivas


de redistribuição são ótimas do ponto de vista da justiça
social? Deve-se aumentar ou diminuir as taxas médias e
marginais impostas às diferentes faixas de renda? A res-
posta a essas perguntas depende em grande medida da
importância quantitativa dos efeitos negativos das taxas
de redistribuição elevadas sobre o estímulo ao trabalho,
sobre a oferta de capital humano e, logo, sobre a pró-
pria redistribuição. Com efeito, vigora um amplo consen-
so quanto aos objetivos fundamentais da redistribuição
pura: a redistribuição justa é aquela que permite fazer
progredir o máximo possível as oportunidades e condi-
ções de vida dos indivíduos mais desfavorecidos, como
exprime, por exemplo, o princípio rawlsiano do maximin
(ver a Introdução). É claro que conflitos subsistem quan-
to à definição exata de indivíduos mais desfavorecidos,

18 Id. Ib., p. 94.

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144
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

a qual nem sempre é fácil num mundo onde os indiví-


duos distinguem-se de acordo com múltiplos aspectos.
Isso pode suscitar problemas de definição da noção de
responsabilidade e do próprio objetivo de justiça social,
como atestam os recentes desdobramentos das teorias
de justiça social [Fleurbaey, 1996; Roemer, 1996]19.

Dessarte, o próprio Piketty revela em seus apontamentos a deficiên-


cia dessa redistribuição fiscal em situações mais heterogêneas.

O direito ao etnodesenvolvimento, segundo Villas Boas, oriundo do so-


cioambientalismo indígena que identifica e delineia na interpretação que
dá aos arts. 231 e 232 da Constituição do Brasil, de 1988, confere aos po-
vos e comunidades indígenas o direito de autogestão e de viverem sob sis-
tema econômico e jurídico distintos, sob a ótica pluralista que Boaventura
de Sousa Santos revelou pelas mãos de Alice, e que está explícita nos fun-
damentos da República do Brasil, logo no art. 1º da Constituição, de 1988.

Decorre disso o direito de rejeitarem a cultura ocidental, a moeda,


a tecnologia, o conhecimento científico e a religião dos não índios, e,
consequentemente, exercerem as práticas tradicionais da vida tribal
no plano social, econômico, administrativo e jurídico, conforme seus
conhecimentos ancestrais.

De outro modo, a opção do índio pela sociedade ocidental, desatre-


lada da vida tribal, não lhe retira o direito de praticar suas ancestralida-
des e religião, tampouco de retornar às origens ancestrais e exercitar o
modo de vida indígena.

19 Id.,ib. p. 99.

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145
Nesse aspecto, para o índio integrado à sociedade ocidental, deve
ser garantido o direito à igualdade de chance, distribuição de renda e
acesso aos bens e serviços para uma vida feliz, a exemplo das cotas
para indígenas em universidades federais, bolsa família e de outros be-
nefícios sociais, de conformidade com as ideias de Raws, Sen e Piketty,
frise-se, sem excluir o direito à autodeterminação e a possibilidade de
retorno à sociedade indígena.

Villas Boas não se enclausura nas teorias neoliberais e no neocons-


titucionalismo, mas, também, não busca na economia e na política a
solução para os conflitos entre o desenvolvimento e os direitos funda-
mentais indígenas, nem mesmo se vale de interpretação marxista do
direito defendida em países de maioria populacional indígena, situação
totalmente diferenciada do Brasil. Sua tese está constituída no antro-
pocentrismo alargado da Constituição do Brasil, que, segundo ele, põe
num grau mais elevado de proteção os direitos fundamentais indígenas
atrelados à proteção ambiental.

6. A IMPORTÂNCIA DO PENSAMENTO DE MARCO VILLAS BOAS NA


QUESTÃO DA IGUALDADE GARANTIDA NO INDIGENATO ASSUMIDO
NOS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DE 1988

Torna-se que a questão da igualdade na figura do Indigenato traz como


consequência dois pontos principais, para Marco Villas Boas, sabendo-se
que não se confundem com a mera igualdade de aptidões e econômica:

a) As comunidades indígenas têm o direito não ape-


nas de serem ouvidas ou consultadas, mas também
de se oporem a atividades danosas ao meio am-
biente de suas terras;

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146
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

b) Os povos indígenas, ainda que aculturados, têm o di-


reito de voltar a viver em isolamento, principalmente
quando desrespeitados seus direitos fundamentais;

c) Os índios isolados, ou não contatados, têm o direito


de continuar a viver em isolamento.

Esse posicionamento considera o direito primário dos índios e o seu


direito congênito como princípios de igualdade para todos os fins, até
mesmo o de se autodeterminarem, vivendo em aldeamento, isolados,
ainda que aculturados. São povos dotados de cultura e conhecimentos
tradicionais milenares, e, como tal, reconhecidos pelo pensamento hu-
manista de Vitória, aos quais se deve o mesmo respeito e consideração.
Nesse contexto, têm o direito à solidariedade e a viverem em paz, como
universalmente declarado pelas Nações Unidas. E, assim, de se mante-
rem isolados se ainda não contatados, como ocorre com aproximada-
mente 55 tribos vivendo na Amazônia.

REFERÊNCIAS

VITORIA, Francisco de. Relectiones – Sobre os índios e sobre o poder


civil. Coleção Clássicos IPRI. In: José Carlos Brandi Aleixo (Org.). Relectio-
nes sobre os índios e sobre o poder civil. Brasília: Universidade de Brasí-
lia/Fundação Alexandre de Gusmão, 2016, p.18. (Coleção Clássicos IPRI).

BARBOSA, Marco Antonio. Autodeterminação – direito à diferença.


São Paulo: Plêiade, FAPESP, 2001.

BARBOSA, Marco Antonio. Direito antropológico e terras indígenas


no Brasil. São Paulo: EP-Editora Plêiade, em colaboração com a Fundação
de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, 2001.

Ir para o índice
147
CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos dos índios. São Paulo: Bra-
siliense, 1987.

MENDES JUNIOR, João Mendes. Os indígenas no Brasil – seus direi-


tos individuais e políticos. São Paulo: Typ. Hermes Irmãos, 1912.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 27. ed. São Paulo:


Atlas, 2011.

PIKETTY, Thomaz. O capital no século XXI. Tradução de Monica Bau-


mgartten de Bolle. São Paulo: Intrínseca, 2014.

RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução de Luis Carlos Borges.


São Paulo: Martins Fontes, 2004.

SEN, Amarthya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e


Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

VILLAS BOAS, Marco Anthony Steveson. Socioambientalismo Indí-


gena na Constituição do Brasil, dissertação de Mestrado, Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, defesa apresentada em Lisboa, em
2015. Depositada na FDUL, Lisboa-PT.

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148
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Equívocos conceituais que dificultam


o proveito da análise econômica do
direito na defesa ambiental
Law & economics misconceptions
embarrass its availability to
environmental defense

JORGE DI CIERO MIRANDA

RESUMO

Por intermédio do artigo, pretende-se apresentar conceitos estrutu-


rantes da análise econômica do direito, úteis para aumentar a eficácia da
defesa ambiental, quando conflita com o exercício do direito de proprie-
dade imobiliária urbana. A conexão dos conceitos pode oferecer solução
cooperativa para conflitos de interesses envolvendo os dois princípios
constitucionais da propriedade privada e defesa ambiental. Extraído da
dissertação de mestrado, serviu como suporte para exposição nos Diálo-
gos Ambientais de Fortaleza. O método limita-se à revisão bibliográfica
e se justifica para diminuir os equívocos conceituais das críticas dirigidas
à Análise Econômica do Direito (AED). O escopo é demonstrar que o
proveito perseguido pelo agente econômico pode incluir interesses co-

Ir para o índice
149
letivos, ideais de justiça quantificáveis e preservação ambiental. A forma
de internalização das externalidades é indicada como determinante das
expectativas de potencializar os resultados ao nível ótimo.

Palavras-chave: Propriedade Imobiliária Urbana. Análise Econômica


do Direito. Espaços Naturais Urbanos.

ABSTRACT

The article aims to present structuring concepts of the economic


analysis of the law, useful to increase the effectiveness of the environ-
mental defense, when it conflicts with the exercise of the right of urban
real estate property. The connection of concepts can provide a coopera-
tive solution to conflicts of interest involving the two constitutional prin-
ciples of private property and environmental defense. Extracted from
the master’s thesis, it served as a support for exhibition in the Environ-
mental Dialogues of Fortaleza. The method is limited to the bibliogra-
phic review and is justified to reduce the conceptual misunderstandings
of the criticisms directed to the Economic Analysis of the Law (Law &
Economics). The scope is to demonstrate that the benefit pursued by
the economic agent may include collective interests, ideals of quantifia-
ble justice, and environmental preservation. The form of internalization
of the externalities is indicated as determinant of the expectations of
potentializing the results to the optimal level.

Keywords: Urban Property; Economic Analysis of Law; Cities Na-


tural Spaces.

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150
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

INTRODUÇÃO

Com a preocupação de harmonizar os princípios da propriedade privada


e defesa do meio ambiente no espaço urbano, são identificadas e explicadas
ferramentas da Análise Econômica do Direito (AED), também denominada
Law & Economics. Seus conceitos estudados são estudados de modo a ofe-
recer solução cooperativa para conflitos de interesses envolvendo os dois
princípios constitucionais da propriedade privada e defesa ambiental.

Conhecer essas ferramentas é pré-requisito para extrair a contribui-


ção que a Análise Econômica do Direito pode oferecer quando a proprie-
dade privada encontra limites na defesa do meio ambiente. Sua utilidade
específica consiste em indicar escolhas que os agentes são induzidos a
tomar, de acordo com a legislação positivada, ou, por outro lado, indicar
alteração legislativa útil para alcançar objetivos almejados.

Esse tipo de análise também é útil para aferir em que medida o or-
denamento jurídico e as escolhas implementam a Política Nacional do
Meio Ambiente. Isso importa compreender de que modo as diretrizes da
política ambiental são capazes de criar custos para conformar o compor-
tamento dos agentes econômicos.

O tema é jurídico porque busca a harmonia de dois princípios consti-


tucionais da ordem econômica, almeja igualmente definir os contornos
de ambos no sistema econômico e jurídico no Brasil. A proposta distan-
cia-se do discurso ideológico que tende à inconsistência e se revela in-
capaz de encaminhar o caso concreto. Nesse sentido, pode-se dizer que
o esforço todo converge para oferecer solução baseada em elementos
quantificáveis, respaldados na proposta preservacionista do ordenamen-
to jurídico brasileiro.

Ir para o índice
151
O meio ambiente aparece na Constituição brasileira quando ela se re-
porta à função social da propriedade (artigo 5º, XXII e XXIII) e na distribuição
de competência material e administrativa dos entes federativos (artigos 23
e 24). No Título VII, que trata da Ordem Econômica e Financeira, a preocu-
pação com o meio ambiente aparece em dois momentos: no Capítulo I, que
trata dos Princípios Gerais da atividade econômica (artigo 170), bem como
ocupa todo o Capítulo VI, “Do Meio Ambiente” (artigos 225 e seguintes). A
livre iniciativa e a propriedade são, respectivamente, fundamento da Repú-
blica e direito previsto no caput do artigo 5º da Constituição.

O trabalho se divide em quatro partes, além da introdução e con-


siderações finais. Na primeira parte, a propriedade privada é compre-
endida pela perspectiva da análise econômica do direito. A propriedade
que interessa ao estudo é aquela incidente sobre imóvel urbano que, em
alguma circunstância, pode ameaçar a preservação de ambiente natural.

Na segunda parte, são vistas as condições de aplicação da Análise


Econômica do Direito (AED) no âmbito econômico, jurídico e axiológico.
O mercado é estudado para revelar vantagens e desvantagens. Estas úl-
timas, também chamadas de falhas, convidam ações cíclicas para reduzir
seus efeitos negativos. Investigam-se as características do modelo econô-
mico aplicado no Brasil e de que modo a conjuntura nacional interfere no
proveito que a Análise Econômica do Direito tem a dar.

O âmbito e a forma que o ordenamento jurídico brasileiro se utiliza


para a proteção dos espaços naturais urbanos é visto no terceiro item.

Todo o engenho desenvolvido no trabalho se dirige a promover a


aproximação do comportamento dos agentes econômicos com a prote-
ção ambiental. Quantificar a extensão dos direitos de propriedade e ofe-

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152
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

recer elementos para que sejam limitados até o ponto que contribuem
para a proteção ambiental, conforme previsão legal.

A limitação da faculdade do proprietário sugere duas preocupações:


jurídica e econômica. Para o jurídico, importa saber a extensão e momento
de imposição desses limites. Para o econômico, de que maneira o exercício
desses direitos afeta a alocação dos recursos e impactam as escolhas.

Na quarta parte faz-se a conexão dos conceitos desenvolvidos para


associar a Análise Econômica do Direito e Defesa Ambiental.

Manancial rico resulta da participação social e das discussões sobre a


importância dos espaços naturais urbanos que ultrapassam a preserva-
ção de ecossistemas. A contribuição social refere-se a aspectos culturais,
sociais e de identidade comunitária que em determinada circunstância
significa inviabilizar a precificação dos espaços naturais, ou, noutra pers-
pectiva, obriga que o valor desses espaços tenda a infinito, conforme se
extrai do comportamento do mercado com a curva de preço e demanda.

Na conclusão, busca-se identificar de que modo as práticas jurídica e


administrativa sinalizam as escolhas que os agentes econômicos fazem.
Cotejar essas escolhas com a legislação ambiental e avaliar o seu escopo
de modo eficiente, ou seja, com o menor custo e melhores resultados.

A título de resultado esperado, almeja-se ainda tornar evidente que a Aná-


lise Econômica do Direito seja ferramenta que permita avaliar o impacto eco-
nômico que os arranjos institucionais promovem, interferindo nas escolhas
racionais. Aproxima-se, assim, a ideia de crescimento econômico da preser-
vação ambiental, porque ambos trazem ínsita a pretensão de continuidade.

Como hipótese, especula-se que o atual conceito de sustentabilidade


promove a convergência dos objetivos almejados pelo crescimento eco-

Ir para o índice
153
nômico e proteção ambiental, uma vez que se reconhece no ambiente na-
tural o universo abrangente onde se desenvolve o ambiente econômico.

Na esfera jurídica, propõe-se o redimensionamento da abrangência


do direito de propriedade, ou seja, encontrar forma de garantir segu-
rança jurídica ao proprietário empreendedor sem comprometer a pre-
servação de áreas urbanas com relevância ambiental. Conciliar critérios
hermenêuticos que reconheçam a importância do crescimento econô-
mico, mas sem desprezar a necessidade de preservação da qualidade
de vida. Com esses instrumentos tornam-se evidentes potencialidades e
fragilidades do Judiciário na solução de conflitos, até mesmo ao lidar com
omissão legislativa e administrativa.

1. ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO

Alguns termos utilizados na Análise Econômica do Direito (AED) en-


contram correspondência semântica vulgar contaminada por outros ra-
mos do conhecimento, ou do próprio direito, os quais se distanciaram do
significado que a aplicação sugere na AED. Rachel Sztajn (1999) permite
melhor leitura e compreensão sobre conceitos próprios do direito eco-
nômico para o sistema brasileiro.

Ela consegue simplificar a ideia de eficiência quando a identi-


fica com “a aptidão para obter o máximo, ou melhor, resultado ou
rendimento, com a menor perda ou o menor dispêndio de esforços;
associa-se à noção de rendimento, de produtividade; de adequação à

Ir para o índice
154
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

função”1. A eficiência é sempre meio para realizar o valor que é fim,


sugere critérios e condições que viabilizam decisões (escolhas) mais
aptas a alcançar objetivos, até mesmo o valor justiça, seja qual for a
sinonímia que carregue.

Fica, portanto, desde logo, afastado o equívoco da crença que a Aná-


lise Econômica do Direito coincide com o esforço de emprestar primazia
à eficiência econômica sobre qualquer outro critério ou valor. A contri-
buição da economia surge no sentido de aproximar a solução da comple-
xidade própria do fenômeno social, incapaz de se subsumir ao jurídico.
Para compreender o fenômeno social e encaminhar seus conflitos, igual-
mente concorrem outras ciências, como a história, sociologia e tantos
outros ramos da ciência, mas o fazem sem causar o estranhamento ou a
resistência observável com a economia.

Tentando traduzir para linguagem jurídica, pode-se dizer que o dis-


curso deontológico, próprio da norma, encontra nos princípios a porta de
entrada para argumentação consequencialista das regras, abrandam sua
rigidez e possibilita a utilização da Análise Econômica do Direito como
ferramenta capaz de dimensionar resultados. Essa vertente, no âmbito
do direito é limitada, já que a ciência jurídica não se dispõe a informar
como os indivíduos irão reagir diante de determinada norma.

As “Escolas” que se dedicam ao estudo da Análise Econômica do Direi-


to adotam determinado conteúdo como sendo o valor pressuposto que
deve ser buscado de modo eficiente. A confusão entre meio e fim, entre
causa e efeito, criou a falsa noção de que eficiência é sinônimo da busca de
lucro a todo custo, sobre qualquer princípio. Para que se possam distinguir

1 SZTAJN, Rachel. Futuros e swaps: uma visão jurídica. São Paulo: Cultural Paulis-
ta, 1999, p. 228.

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155
ambos, busca-se demonstrar que se trata a associação (ou a identidade)
eficiência e lucro, na melhor das hipóteses, de reducionismo.

Para alcançar esse objetivo é preciso transitar entre conceitos, como


lucro, mercado, capitalismo, entre outros cuja combinação equivocada é
capaz de fazer surgir imaginário que permite associar a intervenção estatal
como sendo pura, sem ideologia e capaz de satisfazer da melhor forma
possível os direitos previstos na legislação. A concepção reversa, de entre-
ga de serviços à iniciativa privada, passa a ser passionalmente repudiada.

Propor a utilização da Análise Econômica do Direito enseja a com-


preensão de que as normas jurídicas são instituições econômicas que
fornecem incentivos para a atuação racional dos agentes econômicos,
racionais. Elas atuam na forma de reforço positivo ou negativo, o qual
pode ser entendido como incentivo ou desestímulo capaz de provocar
repercussões em agentes que se supõem econômicos e racionais.

Dizer que os agentes são racionais e econômicos pressupõe que suas


escolhas recaem sempre na opção de maiores ganhos, de modo que o
indutor para o comportamento desejado deve promover ganhos. Inver-
samente, a dissuasão enseja geração de custos, age no sentido de onerar
a atividade geradora de riqueza, ou seja, reduz lucros.

Percebe-se que o cenário que melhor favorece a dimensão do sig-


nificado de racionalidade é o ambiente de geração de riqueza. Por esse
motivo, existe a necessidade de inserção no universo da economia, como
ciência que se propõe a estudar a melhor forma para organizar os agen-
tes sociais de modo a promover a produção de riqueza, agindo assim
prepara os elementos indispensáveis de combate à pobreza, de modo a
permitir a construção de ordem social justa.

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156
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Como noção introdutória, começa-se a compreender que o ordena-


mento é capaz de provocar respostas em agentes racionais. O referencial
teórico da análise econômica imprime quantificação que promove dimen-
são objetiva aos resultados e aumenta a confiabilidade da sua proposta.
Iniciar seu estudo enseja conhecer seus conceitos conforme se faz.

1.1 Escassez

O ambiente econômico pressupõe bens insuficientes para atender às ne-


cessidades ou interesses de uma população. A superação da disponibilidade
de bens pela sua procura é que os torna economicamente relevantes, so-
mente a partir dessa circunstância é que ele ingressa no mundo econômico.

Conforme Kinsella2, a escassez é “a condição prévia necessária para o


surgimento do conceito de propriedade”. A propriedade surge da neces-
sidade de tornar exclusivo o uso de algo que não é abundante, previne e
define disputas, porque aloca adequadamente o seu uso.

A consideração de que a economia só se ocupa dos bens escassos


não é antagônica, nem desconhece a existência de bens abundantes,
ocorre que a ausência de rivalidade ou de concorrência não justifica a
apropriação. Só se pode falar em direito de propriedade sobre os bens
passíveis de uso exclusivo, aqueles em que o custo de proteção é inferior
à exclusividade do uso.

Em matéria ambiental, é inadequado raciocinar o bem ambiental es-


pecificamente pelo agente que o produz. As possibilidades de uso e pro-

2 KINSELLA, Stephan. Prefácio. Uma teoria do socialismo e do capitalismo. São


Paulo: Hans-Hermann Hoppe, 2013, p. 8.

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157
veito não se encerram na sua apresentação contingenciada pela forma
que existe, mas pela função que o homem lhe atribui.

A partir desse raciocínio, pode-se dizer que o parque urbano é in-


suscetível de apropriação individual, conforme decorre da forma de im-
plantação e natureza dos seus componentes, incorporados ao solo. No
entanto, os serviços por ele gerados, como absorção pluvial, elevação de
umidade e redução de temperatura são capazes de gerar microclima em
determinado raio que afeta apenas a população que se encontra dentro
dessa área. Desse modo, os imóveis incorporam em seu valor, benefício
extra gerado pelo parque.

Por maior que seja a quantidade e qualidade dos serviços ambientais


produzidos, eles são classificados como escassos porque o proveito per-
manente será assegurado apenas àqueles que conseguirem se implantar
no raio de influência dos polos geradores respectivos. Existe, portanto,
escassez nos bens decorrentes de serviços ambientais, que, por esse mo-
tivo, interessam à economia.

Parte desses serviços é apropriada por meio de ganhos sociais. Estes


recebem essa distinção, até mesmo com reconhecimento econômico,
porque são capazes de impactar a qualidade de vida. Eventualmente, sua
preservação representa custos sociais que aumentam à medida que áreas
similares, com o mesmo valor ambiental agregado, tornam-se escassas.
Com isso, a pressão imobiliária tende a ser progressiva e cíclica: maior a
escassez de serviços ambientais, maior o valor dos imóveis situados nas
áreas abrangidas por sua influência, maior a pressão imobiliária sobre elas.

Os serviços ambientais gerados por aquele manancial são limitados e


únicos. Somente os recursos naturais são capazes de atender às neces-
sidades ilimitadas e múltiplas com a abrangência e significação social da

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158
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

forma como são satisfeitas pelos ambientes naturais urbanos. Surge, por-
tanto, o problema central da ciência econômica e do direito: a escassez e,
como consequência, o conflito.

O Direito, como medida de justiça, tem de buscar parâmetro de deci-


são alinhado com os anseios da maioria ou totalidade do grupo social e
conforme a técnica mais promissora e racional disponível.

1.2 Maximização racional

Para análise econômica do direito, parte-se da presunção de que as


decisões do homem econômico são baseadas em escolhas que induzem
maiores ganhos, a opção sempre é regida por imperativos hedonistas.
Para a escola de Chicago, esses imperativos sempre se confundem com
proveito econômico, conforme se verá adiante. O respeito sistemático e
presumido, sempre subordinado a valor específico, é que faria com que
as escolhas fossem admitidas como racionais.

Com essa presunção, é possível compreender, analisar e prever o


comportamento decisório dos agentes econômicos. Eric Posner3 orienta
que a Análise Econômica do Direito se constitui de cenário em que é
possível fazer escolhas e que elas são capazes de afetar os “preços”, es-
sas escolhas são regidas por racionalidade que contribui para escalonar
preferências, evitando as condutas de maior custo.

3 POSNER, Eric; SALAMA, Bruno Meyerhof - organizador. Série DDJ - Análise


econômica do direito contratual: sucesso ou fracasso? Tradução de Luciana Benetti Timm,
Cristiano Carvalho e Alexandre Viola. São Paulo: Saraiva, 2010. (Coleção direito, desenvolvi-
mento e justiça. Série direito em debate). Disponível em: http://integrada.minhabiblioteca.
com.br/books/9788502142 534. Acesso em: 2 ago. 2015.

Ir para o índice
159
Quer-se com isso dizer que o ponto de partida pressuposto é o de que os
indivíduos são racionais e sua racionalidade se traduz em comportamento
de maximização dos interesses. O direito utiliza-se desse ferramental quan-
titativo e presuntivo para gerar instituições capazes de produzir conjunto de
incentivos que premia condutas eficientes e penaliza as ineficientes.

Nesse sentido, há desdobramento da visão da Análise Econômica do


Direito. As instituições criadas pelo direito são capazes de afetar os custos
e alterar a resultante econômica das trocas. Essa afetação induz resposta
racional e necessária ao sistema gerado de incentivos que determinem
prêmios e punições. Os incentivos se traduzem em possibilidades de ga-
nhos ou de evitar perdas em contratos ou apropriação de bens escassos.

Ocorre que presunção de racionalidade de todos, o tempo todo (em


todas as circunstâncias), movida por interesse único (vantagem econômi-
ca) pode precipitar conclusões incapazes de abranger a complexidade das
motivações que induzem o agir humano, sem que isso importe em desco-
nhecer no agente a condição de racionalidade que lhe é pressuposta.

Para melhor equacionar as variações de comportamento, no que diz


respeito à motivação, há escolas que se ocupam em definir quais ou-
tros valores são capazes de condicionar a ação humana, sem suprimir a
presunção de racionalidade na escolha. Mesmo critérios subjetivos ou
passionais passam por crivo de agente que se crê racional. Para Bubb e
Pildes4 “[e]xistem dois tipos principais de desvios. Primeiro, as pessoas
são apenas limitadamente racionais: elas cometem erros de julgamento
e percepção. Segundo, as pessoas têm força de vontade limitada”5.

4 BUBB, R.; PILDES, R. H. How Behavioral Economics Trims Its Sails and Why. Har-
vard Law Review, v. 127, n. 6, p. 1594–1678, 2014. Harvard Law Review Association, p.1.603.
5 No original: “two main types of deviations exist. First, people are only boundedly ratio-
nal: they make mistakes in judgment and perception. Second, people have bounded willpower”.

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160
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

1.3 Como associar eficiência à preservação ambiental

Para o jurídico, a alocação dos direitos de propriedade na mão de


quem mais o valoriza decorre necessariamente da ordem normativa. A
norma, por sua vez, traz estrutura deontológica- do dever ser. Nesse sen-
tido, a noção de eficiência, ínsito ao preceito normativo deve ser traduzi-
da como maximização do proveito na alocação dos bens.

Para a Economia, as causas e efeitos econômicos são determinantes


para o arranjo social. Para a Análise Econômica do Direito, as instituições
econômicas condicionam o comportamento individual e corporativo,
conforme imersos em arranjos econômicos e jurídicos. Os agentes eco-
nômicos, o ordenamento jurídico e a resposta comportamental influem
na noção de eficiência que passa a integrar a hermenêutica da norma.

Há dois conceitos estruturantes da Análise Econômica do Direito que


se referem à eficiência: Pareto e Kaldor-Hicks. A eficiência paretiana ad-
mite como ótimo o ponto até o qual é possível uma melhora na aplicação
de um princípio sem uma piora em algum outro princípio. A eficiência na
conduta importa benefício a alguém sem prejuízo a terceiros.

Conforme explicação de Cooter & Ulen6, “diz-se que uma situação espe-
cífica é Pareto eficiente se for impossível modificá-la de modo a tornar, pelo
menos, a posição de uma pessoa melhor (conforme a sua avaliação) sem,
em contrapartida, piorar a posição de outra (também conforme a sua avalia-
ção)”. Traduzindo de outro modo, pode-se dizer que o conceito de eficiência
em Pareto é a situação segundo a qual não é possível melhorar a condição
de alguém sem piorar a situação de pelo menos outro agente econômico.

6 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito e economia. 5. ed. Tradução de Luis


Marcos Sander, Francisco Araújo da Costa. Porto Alegre: Bookman, 2010, p.12.

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161
Cooter e Ulen empregam a ideia de eficiência no processo produ-
tivo indicando que ela está presente quando “não é possível gerar a
mesma quantidade de produção usando uma combinação de insumos
de custo menor, ou, não é possível gerar mais produção usando a mes-
ma combinação de insumos”7.

O ponto ótimo em Pareto importa em maior produção com o menor


custo, mais benefício com menor esforço até que se alcance a situação
do melhor resultado sem criar encargo para outros. Pareto aproxima-se
da compreensão vulgar de eficiência porque induz o mais com menos, ou
o mais sem afetar os outros, sem deixá-los em situação pior.

No entanto, como se está em ambiente de bens escassos, a melhora


da condição de uns, normalmente importa restrição da disponibilidade
para outros, o que se pode interpretar como situação menos favorável.
Por esse motivo, Kaldor e Hicks trouxeram componentes diferentes para
caracterizar eficiência e aproximá-la da realidade.

Para eles haverá eficiência na alocação dos recursos quando o agen-


te econômico beneficiado compensa o prejudicado. Nessa transação, a
compensação deve ser capaz de tornar a mudança interessante aos dois
– beneficiado e prejudicado –, o que faria com que ambos ganhassem. O
critério de eficiência de Kaldor-Hicks está fundado na ideia de compensa-
ção dos prejuízos suportados pelos atores econômicos.8 9

7 Op. cit. p.38.


8 KALDOR, Nicholas. Welfare propositions of economics and interpersonal com-
parisons of utility. Economic Journal. vol. 49. issue 195. p. 549-552.
9 HICKS, John Richard. The foundations of welfare economics. Economic Journal.
vol. 49. issue 195. p. 692-712.

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162
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A contraprestação baseia-se em cálculo de ganhos recíprocos. A bo-


nificação não pode ser alta demais de modo a retirar o proveito daquele
que originariamente se beneficiaria, nem ficar restrita apenas à compen-
sação das perdas a ponto de não incutir o interesse na mudança.

Por certo que os conceitos de eficiência de Pareto e Kaldor-Hicks foram


inaugurais e desencadearam reflexões mais complexas, como as questões
destacadas em Mackaay10: 1. Eficiência não pode ser o fundamento ab-
soluto da distribuição de propriedade; 2. A tese acerca de eficiência não
é falseável, insuscetível de crítica; 3. Nenhum problema tem apenas uma
solução eficiente; 4. Concebe-se a subjetividade dos valores que, junta-
mente com outros agentes de variação, incapacitam a aferição do resulta-
do ótimo; 5. Põe em dúvida a origem da lógica da eficiência percebida; 6.
Questiona o conceito quando confrontado com as questões distributivas.

O conceito de eficiência é fundamental porque é a partir dele que se or-


ganizam as propostas normativa e positiva, no sentido de identificar quão
eficiente é o sistema de norma para induzir comportamentos específicos,
ou de que modo a sanção afeta o comportamento destinatário da norma.

1.4 Custos de transação e externalidades

Os fatores de produção podem ser enunciados como sendo estrutu-


ra, matéria-prima, tecnologia, capital e mão de obra. A despeito da pos-
sibilidade de variação de cada um desses componentes, eles podem ser
admitidos como conhecidos, ingressam como custos, revelam-se antes

10 MACKAAY, Evert P. History of law and economics. Encyclopedia of law and eco-
nomics, 2000, p. 77-80.

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163
de incorporar a linha de produção. Em economia, são tratados como in-
formação capaz de afetar o preço. Para Marshall11, a fórmula para valora-
ção dos bens seria: utilidade marginal+lei da oferta e da procura+custos
de produção (terra, capital e trabalho).

Os custos de transação abrangem, além dos componentes previstos


para a produção, outros que são eventuais e de valor insuscetível de es-
timativa. São os custos que decorrem diretamente do grau de confiabi-
lidade e clareza da alocação dos direitos, são também proporcionais à
eficiência e previsibilidade da execução das dívidas.

Existem, no entanto, outros fatores que não são inseridos na infor-


mação e, por esse motivo, não compõem os preços. São acidentais e,
portanto, de contabilização e estimativa oscilante. Quanto maior o grau
desses fatores, menor a precisão na formação do preço. A presença des-
ses fatores decorre das relações entre agentes econômicos. Apesar de a
expressão remeter à ideia de oneração da produção, as externalidades
podem ser positivas ou negativas.

Segundo Derani e Aquino Neto12, “o grande problema das externalida-


des é que elas não se incorporam ao preço, uma vez que não geram custos
aos agentes envolvidos na atividade em questão. Uma vez que não estão
no custo, não podem fazer parte do preço”. Esse custo será assimilado por
todos os envolvidos no processo econômico de geração de riqueza.

11 MARSHALL, Alfred. Principles of Economics. London: Macmillan and Co., Ltd.


1920. Library of Economics and Liberty. Disponível em http://www.econlib.org/library/
Marshall/marP.html. Acesso em: 21 maio 2016.
12 AQUINO NETO, D. A. de; DERANI, C. A Valoração Econômica dos Bens Ambien-
tais. Hiléia, v. 9, p. 49-69, 2014, p.57.

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164
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Em matéria ambiental, as externalidades negativas surgem da ne-


cessidade de oferecer serviços necessários que inicialmente eram pres-
tados sem a intervenção humana, como oferecidos naturalmente, ou
seja, é a tentativa de minimizar os efeitos daninhos gerados por ativida-
des produtivas e de consumo13.

Surge com as externalidades outra justificativa de intervenção do


Estado na economia: preveni-las. Ainda que solução interventora para
os conflitos gerados por externalidades negativas deva ser evitada, ela
não pode ser desprezada porque as forças de mercado tendem a bus-
car o maior proveito econômico na produção de riqueza e desprezar os
custos que gera e distribui.

A busca de eficiência econômica (maior ganho) tende a isolar o pro-


cesso produtivo, colocar dentro dele apenas o que afeta o preço, dirige-
-se a considerar cada investimento individualizadamente, descolado dos
demais interesses que não o afetem, sejam eles próximos ou distantes,
no espaço ou no tempo.

A projeção de longo prazo e a diversificação das preocupações que


envolvem a geração de riqueza, como acontece em questões ambientais,
transforma em parcela do custo o impacto que a atividade gera. Com
isso, a oneração da atividade cria limitações capazes de reequilibrar o
proveito dos empreendimentos, rumo à sustentabilidade.

Os custos para gerar riqueza, e que extrapolam a relação bilateral


produtor e consumidor, passam a circular externamente aos agentes
envolvidos na transação, são diluídos no mercado de modo aleatório.

13 ALCOFORADO, I. G.; BALLESTEROS, V. H. M. Apuntes Sobre: The Problem of the


Social Cost. eGesta- Revista Eletrônica de Gestão de Negócios, v. 6, n. 1, p. 46–59, 2010, p.48.

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165
A incapacidade das forças do mercado de prevenirem as externalidades
permite conceituá-la como falha de mercado.

A ação econômica busca reduzir ao máximo as intervenções que one-


ram o produto final, não importando se seus efeitos atingem terceiros
(externos) não envolvidos diretamente na relação de troca. A legislação
protetiva ambiental tem o alcance econômico de inibir esse efeito, em
algumas situações será capaz de fazer o custo médio de o produto tocar
a curva de demanda em volume que a natureza seja capaz de suportar.

1.5 Utilidade da Análise Econômica do Direito

Os conceitos de Direito Econômico e Análise Econômica do Direito


podem sugerir certa confusão. Os dois são instrumentos úteis para ação
econômica, porque capazes de influir na ação do agente econômico. Diz-
-se Direito Econômico à “normatização da política econômica como meio
de dirigir, implementar, organizar e coordenar práticas econômicas, ten-
do em vista uma finalidade ou várias e procurando compatibilizar fins
conflituosos dentro de uma orientação macroeconômica”14.

A utilidade do Direito, pelo viés econômico, consiste em “traduzir


normativamente os instrumentos de política econômica do Estado”, con-
forme estabeleceu Fábio Comparato15. Além de sistematizar o estudo de
variáveis econômicas, o Direito ainda proporciona o estudo da regulação

14 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3. ed. São Paulo: Max


Limonad, 2007.
15 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 9.
ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 80.

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166
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

pública da economia e torna a abordagem funcional16, cria um objetivo a


ser alcançado com os mecanismos econômicos.

A Associação Americana de Direito e Economia reconheceu a exis-


tência de quatro “pais” (founding fathers) da disciplina: Ronald Coase,
Richard Posner, Guido Calabresi e Henry Manne17, a despeito da con-
tribuição vasta que outros estudiosos deram para o seu progresso. Os
estudos tendentes à conjunção do direito com economia surgiram nos
Estados Unidos, nas Universidades Chicago e Yale, depois o movimento
se espalhou primeiro pelos Estados Unidos e depois pelo mundo, por
esse motivo essas duas escolas merecem destaque diferenciado na com-
preensão da Análise Econômica do Direito.

Outros estudiosos também foram relevantes para estruturar o que


hoje se conhece por Análise Econômica do Direito. A contribuição de Gui-
do Calabresi, da escola de Yale, incide sobre “Torts”, envolve aspectos de
ilicitude, dano, responsabilidade e reparação. Para Calabresi, a indeniza-
ção resultante de ação danosa deve seguir critérios de eficiência. Essa
ideia é construída com o reconhecimento da reciprocidade de interesses
na adjudicação das externalidades negativas geradas pela ação danosa. A
sua principal contribuição vem com “Some Thoughts on Risk distribution
and the Law of Torts” (1961).

Na análise econômica, a pergunta que está sempre presente é o que


faz as pessoas agirem de determinado modo, para buscar mecanismo

16 SCHAPIRO, Mario Gomes. Novos Parâmetros para Intervenção do Estado na


Economia - Série direito em debate. São Paulo: Saraiva, 02/2012, p.18. (Coleção DDJ- Vital-
Source Bookshelf Online).
17 BECKER, Gary. An Economic Approach to Human Behavior. Chicago: Univer-
sity of Chicago Press, 1976, p. 151-158, p. 154.

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167
cooperativo que induza à realização do valor implícito na norma. A abor-
dagem econômica do direito não descuida de dotar esses valores de fa-
ticidade. Justiça não é eficiência, mas não prescinde dela. Não há como
discorrer sobre o justo sem contemplar o modo de realizá-lo, os meios e
as consequências para alcançá-lo.

O juízo disjuntivo pelo qual o direito se expressa baseia-se na liber-


dade e tem como ideal a realização de justiça. A economia pressupõe
escassez e está voltada para a eficiência. Essas premissas revelam que a
combinação metodológica pode ser proveitosa. Nenhuma ciência social
é capaz de abranger todas as implicações do fato social.

A Justiça não se subsome à eficiência, mas a contempla e demons-


tra interseção teórica necessária entre direito e economia. O justo no
âmbito jurídico não pode se apartar das condições de realização e das
consequências que acarreta. A economia oferece ferramentas e métodos
úteis para se quantificar e uniformizar procedimentos, traz a possibilida-
de de apresentar parâmetros para serem usados nas categorias que o
dogmatismo jurídico elege, contribui para realizar distribuição equitativa,
para “dar a cada um o que é seu”, presta-se também para dimensionar
consequências jurídicas.

Nesse sentido, pode-se dizer que justiça e eficiência são utopias,


horizontes ou finalidades desses dois ramos do pensamento humano:
direito e economia. O componente ético da economia é assimilado do
político, expresso no jurídico. Esse horizonte, agora revestido de con-
teúdo ético, será reconhecido e dimensionado por indicadores que
a economia oferece, no sentido de aperfeiçoar a noção de justiça,
realizar mais com menos. A ela incumbe trazer a dimensão conse-
quencialista que o direito não se ocupa.

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168
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Não há dificuldade em reconhecer injustiça no desperdício. O proble-


ma reside em dimensionar condições sociais e individuais que permitam
extrair de um comportamento ineficiente o desperdício. Essa questão
é traduzida em números e indicadores quando se utiliza o utilitarismo
como fundamento teórico.

Com parâmetros quantificáveis, a pretensão de realizar justiça não


está ancorada apenas na argumentação daquele que está incumbido
da decisão. A proposta da Análise Econômica do Direito é encaminhar o
jurista para alcançar eficiência, tomada como sinônimo de desperdício.
Estima-se que mais adequadamente, ou em maior amplitude, será capaz
de realizar direitos individuais e coletivos.

A eficiência respalda-se no utilitarismo, ele sugere a instrumentali-


zação da felicidade para maior número de pessoas. Mas mesmo a no-
ção de felicidade parece tão abstrata quanto à pretensão de justiça. Para
sedimentá-la, o pragmatismo próprio da sociedade americana, permite
substituir a ideia de felicidade por riqueza, conforme sugeria Adam Smith
ao tratar da riqueza das nações.

Apesar de parecer reducionista, o salto necessário para traduzir jus-


tiça por riqueza se justifica porque a nossa organização social fez do mo-
netário o bem mais fungível de todos. A riqueza substitui o vago dever-
-ser próprio do deontologismo, que promove o valor como hipótese, e
não como resultados. É com riqueza (poder de barganha) suficiente e
na presença de ambiente adequado para realizar trocas que as pessoas
exercem sua autonomia e liberdade.

Por esses motivos, fica difícil pensar na Análise Econômica do Direito


sem que esteja situada em cenário econômico que admita a apropriação
privada, onde exista ambiente de trocas e liberdade de escolha. Em outras

Ir para o índice
169
palavras, o capitalismo, mercado e liberalismo são realidades incindíveis da
compreensão da justiça a partir da eficiência na geração de riqueza.

No entanto, nem tudo que é eficiente pode ser tomado por justo, o resul-
tado pode sinalizar que nem todos os componentes que deveriam ser con-
siderados para se intuir eficiência entraram na consideração do “mais com
menos”. Há reciprocidade nos valores eficiência e justiça, ambos importam,
a relação é dinâmica e também oscila entre o quantitativo e o qualitativo.

O direito se propõe a oferecer resposta às questões insolúveis da fi-


losofia quando se depara com a necessidade da preservação do direito
de um, mesmo sob ameaça de vários. Mas oferecer solução dialética,
criticável por seus fundamentos, capaz de reproduzir o fim social a que a
lei se destina traz o Judiciário para questões de política pública.

Até o advento do Estado de bem-estar social, o privado regia as rela-


ções na sociedade, depois se funcionalizou. O direito público voltava-se
para a administração pública, com a mudança de finalidade do Estado,
ele passou a interferir também nas relações privadas. Ao tempo em que
se propõe a oferecer direitos sociais, retira da sociedade recursos que
deve empregar conforme as políticas públicas expressas pelo ordena-
mento. A eficiência, nesse caso, é um imperativo que se impõe na sua
dimensão quantitativa mesmo.

Para esse intento, a Análise Econômica do Direito oferece contribui-


ção que a dogmática jurídica é incapaz. O legislador vê-se compelido a
sopesar quais os incentivos e desestímulos que a expressão normativa
produz. Os indicadores econômicos são hábeis a demonstrar a eficiên-
cia da norma para produzir o resultado pretendido. Os ajustes neces-
sários na criação, interpretação e aplicação da norma é complexo em
razão do leque de princípios que a modernidade se dispôs a implemen-

Ir para o índice
170
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

tar. O direito converte-se em arte, exige genialidade e criatividade, para


isso serve-se das contribuições de outras ciências.

Pode-se dizer que a Análise Econômica do Direito (AED) é ferramenta


à disposição de todos aqueles que utilizam o direito. A eficiência é forma
de alcançar valor, qualquer que seja ele, e deve ser buscada como indica-
dor da capacidade de realizar mais com menos. A atuação do Judiciário,
como função de Estado, também está ancorada nos conceitos econômi-
cos de racionalidade, o encaminhamento das soluções a que se propõe
passa pelo sistema de estímulo e desestímulo.

No entanto, não se deve confundir eficiência com eficiência econô-


mica. Naquela, o valor perseguido comporta preenchimento, cabe à so-
ciedade definir as balizas que estruturam sua organização social e econô-
mica, é processo político em permanente construção. Nesse sentido, a
eficiência econômica é mais um dos valores possíveis. A visão econômica
das instituições atribui-lhes o papel de reduzir custos de transação, redu-
zir externalidades, eliminar falhas do mercado.

Supor o Direito como técnica de solução de problemas humanos,


com conteúdo adaptável à evolução das questões, conforme sugere
Gramstrup18, permite inferir a análise econômica não apenas como ba-
liza axiológica e mecanismo hermenêutico. Como valor, está implícita
na Análise Econômica do Direito a vantagem econômica. Como herme-
nêutica, o esforço de fazer convergir o direito para as pessoas que mais
o valorizam economicamente:

18 GRAMSTRUP, Erik Frederico. Evolução histórica do direito privado – Sistemas


jurídicos. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (Org.). Teoria geral do direito civil.
São Paulo: Atlas, 2008.

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171
Pode-se definir a análise econômica do direito como uma
metodologia fortemente influenciada por um pragmatis-
mo filosófico e por uma lógica consequencialista (já pre-
sentes nas anteriores escolas do utilitarismo benthamia-
no e do realismo jurídico norte-americano), de maneira
que o foco de estudo passa a ser não mais a investigação
do fato causador, mas sim os resultados que se pretende
obter e os meios necessários para tanto19.

Com a ajuda de Ivo Gico Jr. (2014, p.1), extrai-se que a Análise Eco-
nômica do Direito (AED) é campo do conhecimento humano, é ciência,
é técnica, fundada na experiência econômica capaz de agregar compo-
nente na compreensão e alcance do Direito e, desse modo, trazer com-
ponente capaz de facilitar a aplicação e a avaliação de normas jurídicas,
principalmente com relação às suas consequências.

A Análise Econômica do Direito não se confunde com Economia,


tampouco com o Direito, encontra-se na relação entre ambos. Para
Bruno Salama20,

[...] o Direito é exclusivamente verbal, a Economia é tam-


bém matemática; enquanto o Direito é marcadamente
hermenêutico, a Economia é marcadamente empírica;
enquanto o Direito aspira ser justo, a Economia aspira ser

19 TEIXEIRA, Pedro Freitas; SINAY, Rafael; BORBA, Rodrigo Rabelo Tavares.


A análise econômica do direito na axiologia constitucional. BNDES (Biblioteca Digi-
tal). Disponível em: https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/3685/1/A%20
an%C3%A1lise%20econ%C3%B4mica%20do%20direito_P_BD.pdf. Acesso em: 17 out.
2017, p. 191.
20 SALAMA, Bruno Meyerhof. O que é “direito e economia”? In: TIMM, Luciano
Benetti; CATEB, Alexandre Bueno et al (Org.). Direito & Economia. 2. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2008, p. 3.

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172
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

científica; enquanto a crítica econômica se dá pelo custo,


a crítica jurídica se dá pela legalidade.

Assim como a existência dos ramos do direito não importa na pre-


tensão de qualquer deles em se sobrepujar os outros, o conhecimen-
to, ou técnica, tendentes a valorizar aspectos econômicos na solução de
problemas jurídicos, não importa em tentativa de colonização do Direito
pela Economia. Qualquer dos dois, ou ambos em conjunto, são incapa-
zes de oferecer respostas definitivas para os desafios sociais.

Segundo Posner21, a compreensão dos aspectos econômicos dos


direitos de propriedade, carece da distinção entre análise estática e di-
nâmica, aplicada na Economia: “a análise estática elimina a dimensão
temporal da atividade econômica” e na análise dinâmica, a “premissa das
adaptações instantâneas a mudanças é flexibilizada, é normalmente mais
complexa que a análise estática”.

A Análise Econômica do Direito (AED) é método de avaliação de crité-


rios para a distribuição do direito às partes em litígio, voltado para micro-
economia22. Utiliza ordinariamente a fixação de preços para o balizamen-
to da utilidade; na definição da distribuição dos direitos de propriedade,
funciona como referência subsidiária que o Direito pode lançar mão.

Ainda sobre os elementos relevantes para compreender a Análise Eco-


nômica do Direito, sobressaem os custos do direito. Eles são relevantes
para informação gerencial e dimensional da eficiência, de modo a possibi-

21 POSNER, Richard. Economic analysis of law. 6. ed. New York, NY, USA: Aspen
Publisher’s, 2002.
22 Microeconomia, o estudo de como os indivíduos e as firmas tomam decisões e de
como essas decisões afetam os preços e a produção de bens e serviços. Por sua vez, a Macroe-
conomia é o estudo dos agregados de indivíduos, preços e produção (WESSELS, 2006, p.1).

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173
litar a tomada de decisões. Os custos se convertem em baliza quantitativa
da destinação da titularidade, ou preferência, do direito em questão.

A crítica que se opõe à análise econômica refere-se à abrangência da


utilidade e da forma como são problematizadas as questões; a importância
do direito não deveria estar restrita à execução dos contratos. Se assim
fosse, caberia ao Judiciário apenas duas atribuições: reduzir externalidades
e, juntamente com a funcionalidade da lei, assegurar a execução dos con-
tratos. A coerção, como negação do direito, é repudiada por integrar o que
se denomina soluções não cooperativas, conforme auxilia Copetti Neto23:

Evidentemente, a coerção se fazia presente na esfera


privada, talvez de modo indistinguível daquele exercido
pelo poder governamental, porém tradicionalmente ca-
muflada como liberdade de ação, protegida e possibili-
tada – pela coerção estatal – sob a forma de um siste-
ma criado, acredita-se, justamente para fortalecer não a
liberdade na sociedade em seu aspecto empírico, mas,
especialmente para, de modo abstrato, enrijecer a pre-
missa colocada como liberdade contratual.

Com estudos situados entre o Direito e a Ciência Econômica, Richard


Posner encaminhou-se para explicar a atitude social do homem e tomou
como referência a Teoria Econômica; desse modo, ela serviria de parâ-
metro para solução de conflitos e substituiria a aspiração de justiça de
difícil quantificação por um conteúdo objetivamente dimensionável. Ele

23 COPETTI NETO, Alfredo. Pragmatismo em Filosofia, Realismo em Direito e o


Duplo Assalto à Economia Política Clássica: as bases do First Law and Economics Movement
na Progressive Era Americana (1880-1930). Revista Sequência, v. 33, n. 65, p. 209–239,
2012. Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pos-Graduacao Stricto Sensu
em Direito, p. 225.

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174
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

promoveu maior distanciamento da visão sociológica, antropológica ou


filosófica do Direito. Posner contribui porque proporciona a mesma ati-
tude de distanciamento de aspectos de difícil quantificação nos conflitos.

Pode-se afirmar que o estudo das relações entre Direito e Economia re-
sulta na análise econômica do direito, constitui-se em estratégia de desen-
volvimento econômico e melhoria do ambiente de negócios24. Daí Armando
Pinheiro inferir que a Análise Econômica do Direito se “constitui ferramen-
tal econômico para discutir desenhos jurídico institucionais, bem como ser
sensível à lógica interna ao sistema jurídico e sua estrutura normativa”.

A Análise Econômica do Direito seria, portanto, a análise dos custos dos


direitos; num instrumento para “compatibilização entre a racionalidade eco-
nômica e a racionalidade jurídica”25, útil para promover internalização de
custos, aumento da previsibilidade de resultados e da precisão da vantagem
econômica que se pode extrair da aplicação do direito (Law and Economics).

Fica evidente o universo de possibilidades a ser explorado em termos


de aplicações práticas a partir de uma ideia relativamente simples, como
é simples a motivação das escolhas humanas: otimização dos ganhos. A
ausência de carga axiológica do mecanismo permite que a Análise Econô-
mica do Direito seja utilizada para incrementar os valores que lhe sejam
externos; no presente caso, os valores de preservação ambiental sem
virar as costas para a propriedade privada.

Funções das leis econômicas, segundo “Direito Economia e Merca-


do”: 1. Proteger direito de propriedade privada; 2. Criar regra para ne-

24 SADDI, Jairo; PINHEIRO, Armando Castelar. Direito, Economia e Mercados.


Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 124.
25 GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não
nascem em árvores. 2005, p. XXI.

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175
gociação e alienação; 3. Definir regras de acesso e saída do mercado; 4.
Promover competição; 5. Regular estrutura industrial como a conduta
das empresas nos setores de monopólio.

O ordenamento, segundo Bobbio26, é o conjunto de normas que visa


determinar a conduta, a organização ou programa de agentes econômi-
cos sustentados pela sanção do Estado. Daí a necessidade de se reconhe-
cer quais seriam os comportamentos que a Análise Econômica do Direito
busca induzir por seus valores, conforme sucede.

1.6 Valores protegidos pela Análise Econômica do Direito

Na interpretação da Lei há de se distinguir sempre quais são os ob-


jetivos pretendidos e os valores perseguidos, o Direito surge na comuni-
cação e explicitação do que se entende por vida humana, fornece mar-
cos simbólicos capazes de se converterem em vetores que definem o
espectro de possibilidades do agir ético que costuma receber o nome de
mínimo existencial.

Esse conceito apresenta-se progressivamente ao longo das gerações,


supera a realidade que se degrada fisicamente como resultado da inca-
pacidade de o ser humano se perceber parte, e não dono da natureza,
com prerrogativas e garantias que surgem dos avanços históricos da hu-
manidade, mas também com deveres contraídos pelas escolhas e ações
mal formatadas.

Há, portanto, limite biológico suscetível de ser transposto por esco-


lhas expressas no jurídico, mas estas não excluem preço que a raça hu-
mana pode ser chamada a pagar com a incompatibilidade biológica dos

26 BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. 8. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 36.

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176
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

espaços que cria. Para Carlos Gurgel27, “[n]o que toca à ética do desen-
volvimento, vale asseverar que nenhum crescimento econômico deve
justificar a degradação das variantes ambientais a ponto de estabelecer
uma ruptura intertemporal nas cadeias de reprodução da vida”.

Por se tratar de uma ferramenta, a Análise Econômica do Direito tem


a sua contribuição axiológica limitada, o que não exclui sua utilidade para
tornar efetiva a dupla tarefa que Dworkin28 atribui ao ordenamento jurí-
dico: a de garantir simultaneamente os requisitos de segurança jurídica
(fairness e due process – respeito aos procedimentos e às regras pré-
-estabelecidas) e de justiça que se expressa na correção normativa subs-
tantiva, tendo-se em vista o conteúdo moral dos direitos fundamentais
democraticamente positivados. Ainda conforme Dworkin29 (1980), em
sua visão crítica sobre a Análise Econômica do Direito,

A maximização da riqueza, assim definida, é alcan-


çada quando os bens e outros recursos se encon-
tram nas mãos daqueles que lhes atribuem maior
valor, e alguém atribui mais valor a um bem somen-
te se ele ao mesmo tempo está disposto a pagar e
é capaz de pagar um valor pecuniário maior (ou em
valor equivalente a dinheiro) para tê-lo. Um indiví-
duo maximiza a sua própria riqueza quando ele au-

27 GURGEL, Carlos Sérgio. A Visão Antropocêntrica no Direito Ambiental


Brasileiro. Disponível em: https://www.academia.edu/19019907/A_VIS%C3%83O_
ANTROPOC%C3%8ANTRICA_NO_DIREITO_AMBIENTAL_BRASILEIRO. Acesso em: 28 dez.
2015.
28 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São
Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 96.
29 DWORKIN, R. Is wealth a value? The Journal of Legal Studies. v. 9, 1980. p. 237.

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177
menta o valor dos recursos que ele possui; sempre
que ele é capaz, por exemplo, de comprar algo que
ele considera valioso por uma soma menor do que
ele estaria disposto a pagar por isso.

No mesmo sentido é Hugo Segundo30, ao discorrer sobre a segurança


jurídica e a justiça como fundamento do ordenamento jurídico em ter-
mos metafísicos, proporciona reflexão sobre o grau de contribuição que
a Análise Econômica do Direito pode dar para realizar os valores previstos
no ordenamento de realizar segurança e justiça. Mas, como ele próprio
destaca, “não deve ser procurada como algo que existe, em si e por si,
na natureza”31, não é um sentimento que pode ser extraído conforme as
convicções do julgador na solução casuística, precisa aproximar-se das
escolhas que o ordenamento lhe impõe, baseado na eficiência.

A racionalidade que move o homem está mais para o hedonismo


do que para o lucro de uma cadeia produtiva esvaziada de valores me-
tafísicos. Tende a representar o útil, o justo. A razão humana reproduz
sentimentos que projetam o sentido da vida e a consciência de proveito
dentro de uma coletividade. Mesmo a satisfação individual só faz sentido
em contexto social apto a reconhecer essa experiência.

A necessidade de reconhecer-se no outro faz da família e do espaço


coletivo realidade indissociável do desenvolvimento pleno das potenciali-
dades individuais. Da necessidade do espelho surgem as cidades. Da busca
pelo bem-estar, a preservação ambiental. O indivíduo depende do corpo

30 MACHADO SEGUNDO, H. de B. Fundamentos do ordenamento jurídico: liber-


dade, igualdade e democracia como premissas necessárias à aproximação de uma justiça
possível, 2009. Universidade de Fortaleza.
31 Op. cit. p. 2.

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178
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

social enquanto ambiente coletivo adequado para reconhecimento e de-


senvolvimento próprio. O inverso, sobre a dependência do corpo social em
relação ao indivíduo, se expressa analogamente à ideia de corpo e mem-
bro: o membro separado do corpo tem pouca utilidade; o corpo sem mem-
bro fica funcionalmente debilitado, ou nos dizeres de Paulo Antunes 32:

É evidente, nessas condições, que a cidade existe natu-


ralmente e que é anterior aos indivíduos, pois cada um
destes, isoladamente, não é capaz de bastar-se a si mes-
mo e está [em relação à cidade] na mesma situação que
uma parte em relação ao todo; o homem que é incapaz
de viver em comunidade, ou que disso não tem necessi-
dade porque basta-se a si próprio, não faz parte de uma
cidade e deve ser, portanto, um bruto ou um deus.”

A resistência que haveria para legitimar o método da Análise Econômica


do Direito, em parte se deve à necessidade de dotá-la de justificação moral
própria, que dispense elemento exterior ao pensamento econômico. Por
esse motivo, sublima-se o crescimento econômico. Ele é o único capaz de
conferir riqueza de modo a proporcionar realização pessoal pela aquisição
de bens e condições que assegurem patamar mínimo de dignidade.

A maximização da riqueza da sociedade passa a ser tomada como


instrumento, ou etapa necessária, para a realização plena do indivíduo e,
nesse sentido, a Análise Econômica do Direito centra todos os seus esfor-
ços. Dela são excluídos objetivos distributivos, por se acreditar que essa
finalidade não compete ao direito privado. Em Posner, a maximização da
riqueza assume a feição de imperativo moral.

32 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 16. ed. São Paulo: GEN, 2014, p. 9.

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179
Essas considerações demonstram que a compatibilidade entre os
princípios da propriedade privada e a defesa do meio ambiente impor-
ta numa nova epistemologia que os contemple de modo indissociável e
complementar, conforme induz Enrique Leff 33:

A epistemologia ambiental não indaga unicamente sobre


as estratégias de poder que se manifestaram nas forma-
ções discursivas do desenvolvimento sustentável e sobre
a produção de conceitos práticos para a gestão ambiental.
Também oferece fundamento para construir um novo ob-
jeto de conhecimento da economia. E epistemologia am-
biental orienta a construção de uma nova racionalidade
produtiva fundada na articulação de processos ecológicos,
tecnológicos e culturais, do material e do simbólico.

Pode-se afirmar, ainda sob o escólio de Leff, que a racionalidade


perseguida não é monofacetada. Essa racionalidade ambiental não está
adstrita a uma estrutura econômica específica, tampouco o seu universo
de valores é restrito. Ela se constitui pela expressão de “pensamentos,
princípios éticos, processos de significação, práticas e ações sociais” di-
versificadas capazes de orientar a concretização de princípios.

Desse embate de ideias, para onde convergem os interesses sociais,


emergem os valores que serão potencializados com a ajuda da Análise
Econômica do Direito, porque dota de eficiência a intervenção que o Es-
tado e a sociedade são chamados a fazer no sentido de alcançar susten-
tabilidade, conforme percebido por Jorge Reis Novais34:

33 LEFF, Enrique. Aventuras da epistemologia ambiental: da articulação das ciências


ao diálogo de saberes. Tradução de Glória Maria Vargas. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p. 46.
34 NOVAIS, Jorge Reis. As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente
autorizadas pela Constituição. 2. ed. Coimbra: Wolters Kluwer/Coimbra, 2003, p. 700.

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180
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Nas circunstâncias concretas da realidade constitucional,


aquilo que há para ser avaliado axiologicamente e as op-
ções que os poderess constituídos são chamados a fazer
nunca se referem a cada um dos bens constitucionais no
seu todo e abstractamente considerados enquanto tal,
mas antes, e mesmo quando se está no plano da previsão
reguladora do legislador, a modalidades concretas, par-
celares, marginais ou circunstanciais de cada um deles.

Em certa medida, o que a ordem jurídica busca proteger, juntamen-


te com a democracia e o ideal de autogoverno, são os valores de liber-
dade e igualdade. No entanto, para alcançá-los há quatro desafios que
a organização social deve ser capaz de equacionar conforme sugere
Vargas-Reina, em estudo sobre Adam Przeworski: 1. Gerar igualdade
socioeconômica; 2. Participação política eficaz; 3. Garantir que os go-
vernos desempenhem o papel para o qual foram eleitos; 4. Equilibrar
participação do Estado com liberdade.35

Nesse sentido, a solução cooperativa, cerne da Análise Econômi-


ca do Direito, só faz sentido quando as pessoas afetadas pela decisão
podem participar das deliberações, adequadamente informadas, de
modo a repelir interferências indevidas ou equações incapazes de al-
cançar os custos sociais daí decorrentes.

35 No original: “Se ha asociado la democracia con el ideal de autogobierno y con


los valores de libertad e igualdad, pero las democracias contemporáneas actuales enfren-
tan cuatro desafíos que no han podido resolverse y generan una profunda insatisfacción: 1.
la incapacidad de generar igualdad socioeco- nómica; 2. de hacer sentir a la gente que su
participación política es efectiva; 3. de asegurar que los gobiernos hagan aquello por lo que
fueron elegidos; 4. de equilibrar orden con interferencia, es decir, garantizar estabilidad y,
al mismo tiempo, libertad”. (VARGAS-REINA, J. Reseña de “Qué esperar de la democracia.
Limites y posibilidades de autogobierno” de ADAM PRZEWORSKI. Revista Estudios Socio-
-Jurídicos, v. 13, n. 1, p. 491–495, 2011. p. 491).

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181
A proposta de harmonizar princípios exige olhar ambiental – sobre a
propriedade – mais complexo e objetivo. Nesse sentido, há certa provo-
cação para gerar novas significações sociais e subjetivas sobre princípios
que se acreditavam perfeitamente configurados na sua natureza e limites,
novas formas de subjetividade e posicionamentos políticos ante o mundo.

No entanto, para ampliar essas significações hão de se explorar a


“questão do poder e a produção de sentidos civilizatórios”36, gerados pelo
contexto em que se aplica a harmonização. O incremento que a matemá-
tica e os indicadores trouxeram para o direito ajuda a encontrar respostas,
mas as perguntas ainda ficam restritas no âmbito da hermenêutica.

Acho que tanto a teoria dos jogos – que é a forma moder-


na da teoria política – quanto os métodos econométricos
[...] fizemos um progresso tremendo. Essas ferramentas
são extremamente úteis. Os jovens estão aprendendo e
estão fazendo um excelente trabalho. A estreiteza me in-
comoda. Vamos colocar da seguinte forma: acho que a
nossa habilidade de fazer perguntas diminuiu; nossa ha-
bilidade de respondê-las aumentou.37

Reconhecer tais limitações aos indicadores, não importa deixar de


perceber que o pensamento da Análise Econômica do Direito leva em
consideração valores complexos como a distribuição da riqueza e o for-
talecimento do bem-estar social, mas o faz tomando por fundamento a

36 LEFF, Enrique. Aventuras da epistemologia ambiental: da articulação das ci-


ências ao diálogo de saberes/Enrique Leff. Tradução de Glória Maria Vargas. Rio de Janeiro:
Garamond, 2004, p.61.
37 LATTMAN-WELTMAN, F. Entrevista com Adam Przeworski. Estudos Históricos
(Rio de Janeiro), v. 27, n. 53, p. 207–214, 2014. FGV. p. 214.

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182
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

primazia da escolha humana, individualista e liberal. O bem deve estar na


mão de quem mais o valoriza.

Nesse sentido, evita-se a visão que identifica a Análise Econômica do


Direito com proposta irracional de alienação e confirmação da incerte-
za gerada pelo mercado que oscila conforme as forças que nele atuam.
Nem se admite que esse mercado precisaria estar sustentado sobre pro-
cesso incontrolável e insustentável de produção. O modelo que conduz
à falência de processos produtivos pela sua incapacidade de se tornar
inesgotável não está necessariamente no escopo da Análise Econômica
do Direito, tampouco toma essa lógica como expressão de sentido apro-
ximado de desenvolvimento humano.

Desse modo, fica melhor para reconhecer que as linhas gerais expres-
sas na Política Nacional de Meio Ambiente e na Constituição são compa-
tíveis com a Análise Econômica do Direito. Admitir que o recurso natural
deve ser entendido no seu contexto ecológico, faz desse valor objetivo a
ser perseguido. A Análise Econômica do Direito atua no sentido de for-
necer mecanismos para tornar essa a diretriz de reconstrução das prá-
ticas econômicas, o mais eficiente possível. Na percepção de Cristiane
Derani,38 destaca-se,

Na perspectiva de um utilitarismo econômico, a água é


tão somente um recurso hídrico. Na perspectiva real da
PNMA (e da Constituição), a água é um bem indispen-
sável à saúde, à biodiversidade terrestre e aquática, aos
valores estéticos, culturais e espirituais dos povos. Nesse

38 DERANI, C.; SOUZA, K. Instrumentos Econômicos na Política Nacional do Meio


Ambiente: por uma economia ecológica. Veredas do Direito: Direito Ambiental, v. 10, n.
19, p. 247–272, 2013, p. 250.

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183
diapasão deve seguir a compreensão sobre os recursos
ambientais que compõem o meio ambiente.

Nesse sentido, é preciso reconhecer que a Ciência Econômica, vol-


tada para o dilema da escassez e da necessidade de eficiência no uso
dos recursos produtivos, pode oferecer subsídios e instrumentos para
promover a busca do Direito por justiça. A dificuldade encontra-se na
promoção de arranjo que delimite em que consiste justiça, mas não é o
único desafio, conforme destaca John Rawls39 “Um certo consenso nas
concepções da justiça não é, todavia, o único pré-requisito para uma
comunidade humana viável. Há outros problemas sociais fundamentais,
em particular os de coordenação, eficiência e estabilidade”.

A análise econômica oferece mais objetividade e precisão na tomada de


decisões. Esse tipo de análise toma como pressuposto o valor econômico da
eficiência ou o princípio da maximização da riqueza como “standard ético
para determinar quando uma decisão particular pode considerar-se justa”. 40

Diversamente do que possa sugerir, mesmo diante da pretensão de


objetividade do direito americano, o valor justiça também é fundamen-
to de validade de suas normas, conforme se observa na 14ª Emenda,
em 1868, onde está prescrito que “nenhum Estado fará ou executará
nenhuma lei, com efeito de reduzir as prerrogativas ou imunidades dos
cidadãos dos Estados Unidos; nem tampouco Estado algum privará uma
pessoa de sua vida, liberdade ou bens, sem o devido processo jurídico
(without due process of law); nem denegará a alguma pessoa, dentro de
sua jurisdição, a igual proteção das leis”.

39 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 6.
40 ALVAREZ, A. B. Análise econômica do direito: contribuições e desmistificações.
Direito, estado e sociedade, v. 9, n. 29 jul/dez, p. 49 a 68, 2006. Rio de Janeiro, p. 51.

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184
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A posição ideológica da Suprema Corte Americana é de alinhamento


com a política econômica do laissez-faire, sob a fundamental premissa de
que o individualismo é moral e economicamente ideal, conforme explici-
ta Alfredo Copetti Neto.41

Ainda no que se refere a conteúdo valorativo do confronto dos prin-


cípios da propriedade e da defesa ambiental, César Benjamin42 observa
que a obra Cuidando do Planeta Terra (HOLDGATE, 1991), publicação
conjunta da UICN/PNUMA/WWF, representou substrato teórico para os
novos posicionamentos do movimento ecologista. Ele ataca o modo de
produção que importa em altos custos sociais e ambientais e que, por si
só, representa a eleição de um valor específico.

Por fim, pode-se concluir, em relação à elevada carga valorativa que


está envolvida no conflito relativo à proteção ambiental na presença de
interesses de propriedade, que essa relação é dinâmica, isto é, oscila
conforme o ser humano compreende seu papel e objetivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Análise Econômica do Direito é útil para a harmonia dos princípios


da propriedade privada e defesa do meio ambiente no espaço urbano e
dispõe de instrumentos legais úteis para aumentar a eficácia das normas

41 COPETTI NETO, Alfredo. Pragmatismo em Filosofia, Realismo em Direito e o


Duplo Assalto à Economia Política Clássica: as bases do First Law and Economics Movement
na Progressive Era Americana (1880-1930). Revista Sequência, v. 33, n. 65, p. 209–239,
2012. Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pos-Graduacao Stricto Sensu
em Direito, p. 5.
42 BENJAMIN, César. Nossos verdes amigos. Teoria & Debate. v. 12. 1990, p. 54.

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185
protetivas que podem ser utilizadas pelos três Poderes, assim como pe-
los agentes de mercado, conforme as escolhas racionais que fazem.

A lógica da vantagem individual não exclui o proveito coletivo, do


contrário, o induz. Mesmo diante do esforço de se ampliar a proteção
ambiental, pode-se ainda incrementar o proveito econômico da proprie-
dade privada, com a alocação adequada dos direitos que lhe são agrega-
dos. Considerações sobre o custo social de atividade podem reposicionar
a pretensão de investimentos dos empreendedores, de modo a torná-los
agentes promotores dessa ordem centrada no ecológico.

O conhecimento dos conceitos da Análise Econômica do Direito


(AED) revela natureza, utilidade e forma de aplicação dessa ferramenta
que inculca elementos da economia para abordagem de questões jurí-
dico-normativas. Por meio da Análise Econômica do Direito, conclui-se
que as políticas econômicas atuais devem buscar a internalização das ex-
ternalidades ambientais geradas no processo de acumulação do capital.

O pensamento econômico contribui para orientar o mecanismo regu-


latório e preventivo do qual o Estado e o Mercado dispõem para onerar
condutas que superam a capacidade de processamento ambiental. Con-
ferir eficácia às diversas leis ambientais publicadas é outro resultado que
se pode esperar do pensamento econômico.

Eliminação de subsídios e isenções que acompanhe o interesse em


despovoar áreas em que o uso do solo não seja adequado é o ponto de
partida para o agir econômico na proteção ambiental. Cobrança adequa-
da por serviços de água, drenagem e energia que leve em consideração
o custo ambiental e social é mecanismo para tornar evidentes valores de
troca que estão em jogo quando há pressão imobiliária sobre espaços
naturais que prestam serviços ambientais urbanos.

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186
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Permitir, ou não onerar de forma adequada, a ocupação, ou degra-


dação de espaços naturais, significa estimular formação de aglomerados
habitacionais com alto potencial de desagregação e abandono ao longo
do tempo; funciona como atrativo para interrupção de serviços urbanos
básicos, reduz oportunidade de trabalho e aumenta a criminalidade.

Métodos de avaliação e quantificação da relevância dos espaços na-


turais urbanos concorrem com outros indicadores que a valoração jurídi-
co-política possa revelar. Mesmo os recursos ambientais aparentemente
abundantes precisam ser tratados como escassos, por três aspectos: alto
valor de uso (sobrevivência), impossibilidade de ser produzido pelo ho-
mem e risco de perecimento quando confrontado com o efeito devasta-
dor da poluição.

Desse modo, a defesa ambiental não se restringe a imperativo legal


e princípio constitucional, mas principalmente à necessidade biológica.
À economia resta enfrentar a correta alocação para garantir às gerações
futuras o direito de usufruir de um meio ambiente sadio.

Não cabe exclusivamente ao Legislativo a oportunidade de criar me-


canismos para direcionar a escolha dos proprietários de imóveis no sen-
tido de preservar espaços naturais. Existe o âmbito da liberdade no qual
as trocas econômicas podem convergir para o comportamento esperado.
A ação dos agentes políticos e econômicos devem convergir para incor-
porar premissas econômicas e ecológicas. O Judiciário, imbuído dessa
lógica, é capaz de dar coerência a todo esse sistema protetivo, cujos in-
centivos econômicos apontam para atividades sustentáveis.

A conexão dos conceitos econômicos e ambientais deve ser apropria-


da pelo julgador, de modo a oferecer solução cooperativa para conflitos
de interesses envolvendo os dois princípios constitucionais da proprieda-

Ir para o índice
187
de privada e da defesa ambiental. A preservação ambiental não é limite
para o crescimento, mas condição de perenidade. Conservar espaços na-
turais urbanos guarda relação com o bem-estar, emprego e renda, mo-
vimentos migratórios entre bairros e degradação social. A consciência
do problema, legislação e estrutura institucional adequados não são tão
úteis como a ação das forças econômicas que concorrem no mercado.

A Análise Econômica do Direito permite avaliar o impacto econômico


que os arranjos institucionais promovem e interfere nas escolhas racio-
nais. Essa metodologia permite igualmente aproximar a ideia de cresci-
mento econômico da preservação ambiental porque ambos trazem ínsi-
tas a pretensão de perpetuação e a complementaridade.

Pode-se dizer em vaticínio que a Análise Econômica do Direito pro-


move a convergência dos objetivos almejados pelo crescimento econô-
mico e proteção ambiental e integra o conceito de sustentabilidade, por-
que reconhece o ambiente natural como universo abrangente onde se
desenvolve o ambiente econômico.

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Le affirmative actions nell’ordinamento
costituzionale del Brasile: spunti di
riflessione in prospettiva comparata1
The affirmative actions in the brazilian
constitutional system: some ideas in
the comparative perspective

ANNA CIAMMARICONI

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RIASSUNTO

L’articolo si appunta sulla compatibilità delle Affirmative Ac-


tions (Ações afirmativas) rispetto alle norme della Costituzione brasiliana
del 1988. L’analisi è condotta privilegiando la prospettiva comparata (con
incursioni sulle esperienze di USA e India) e osservando altresì gli orienta-
menti del STF a proposito delle misure adottate in Brasile per l’inclusione
sociale degli afro-americani.

Parole-Chiave: Azioni positive. Principio di eguaglianza. Divieto di discri-


minazione. Costituzione Brasile 1988. Categorie sensibili. Soggetti deboli.

1 Il contributo riprende e rielabora parzialmente lo scritto Brevi riflessioni in tema di Ações


Afirmativas nell’ordinamento costituzionale brasiliano, in Dir. Pubbl. Comp. Eur., 2008, 1457 ss.

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Abstract

The article focuses on the accordance of Affirmative Actions (Ações


afirmativas) practice compared to the Brazilian Constitution of 1988. The
analysis is conducted in the comparative perspective (with focus on US
and India experiences) and also observing the STF jurisprudence about
the measures for the social inclusion of African-Americans in Brazil.

Keywords: Affirmative Actions. Equality constitutional principle.


Prohibition of discrimination. Brazilian Constitution 1988. Disavantaged
persons or categories of persons

1. – Siamo alla vigilia del 2018: un anno particolarmente importante


per il Brasile, non solo in virtù della celebrazione dei trent’anni di vigen-
za della Constituição da República Federativa do Brasil del 1988 (meglio
nota come Constituição Federal, o CF), ma anche, se si vuole, perché
esattamente 130 anni fa veniva abolita nel Paese la pratica della schiavi-
tù2. Era, infatti, il 1888 quando l’Impero di Pietro II – la cui parabola discen-
dente aveva preso avvio già dal 1870, dopo i conflitti sorti con la Chiesa e con

2 L’avvio della schiavitù in Brasile fu legata inizialmente alle coltivazioni di canna


da zucchero: a partire dalla prima metà del XVI secolo, i portoghesi deportarono dalle co-
lonie africane numerosi gruppi di neri che vennero impiegati nei campi del Nordeste. Solo
il 13-5-1988, con l’entrata in vigore della Lei Áurea, n. 3.353, fu sancito quanto segue: «é
declarada extinta, desde a data desta Lei, a escravidão no Brazil». L’atto in parola venne
preceduto dalla c.d. Lei do Ventre Libre (n. 2.040 del 1871), considerata la prima legge
abolizionista, in quanto garantiva ai figli degli schiavi nati dopo l’entrata in vigore dell’atto di
essere considerati liberi. Per un quadro dettagliato sulle specificità di tali misure normative
v. il contributo di D.L. de Lima Bertúlio, Racismo e desigualdade racial no Brasil, in E.C. Piza
Duarte, D.L. de Lima Bertúlio, P.V. Baptista da Silva (coord.), Cotas raciais no ensino superior.
Entre o Jurídico e o Político, Curitiba, Juruá Editora, 2008, 27 ss.

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195
l’esercito – vide proprio nell’abolizione della schiavitù la conclusione definiti-
va della sua esistenza3. Anche se non è mancato chi ha fatto notare come gli
schiavi, benché privati dei diritti civili, fossero generalmente sottoposti a un
regime «paternalistico tollerabile»4, a dire il vero, il lascito di diversi secoli di
asservimento e di dominio coloniale ha prodotto tali e profonde lacerazioni
i cui effetti distorsivi sono tuttora avvertibili nel tessuto sociale del Paese5.
Lo iato che distingue le condizioni esistenziali della popolazione di origine
europea da quelle degli afro-discendenti è decisamente ampio, e tanto nu-
merosi quanto diversificati appaiono gli ambiti della vita sociale e politica di
fatto preclusi alla popolazione di colore (pretos e pardos6), tuttora vittima di

3 Un’accurata ricostruzione delle vicende storiche è offerta da H. Herring, Storia


dell’America Latina, Milano, Rizzoli, 1971, 1179 ss.
4 Cfr., ancora, H. Herring, Storia dell’America Latina, cit., 1189. L’A. sottolinea, in
proposito, che gli schiavi «[p]otevano comperare la propria libertà, che talvolta veniva loro
concessa da padroni benevoli; e i negri emancipati godevano degli stessi diritti dei cittadini
bianchi: la linea di demarcazione era economica piuttosto che razziale: “Lo schiavo brasilia-
no” scrive Gilberto Freyre “faceva una vita di signore se paragoniamo la sua sorte a quella
di un operaio d’officina inglese o di qualche altro paese europeo”».
5 D. Sarmento, A Igualdade Étnico-Racial no Direito Constitucional Brasileiro:
Discriminação “de facto”, Teoria do Impacto Desproporcional e Ação Afirmativa, in M.
Novelino (org.), Leituras complemetares de Direito Constitucional. Direitos humanos
e direitos fundamentais, Salvador-Bahia, Editora Jus Podium, 2008, 3ª ed., 203, parla,
non a caso, di «[u]m racismo muitas vezes velado, “cordial”, que raramente explode em
episódios de violência física extrema, mas que nem por isso é menos insidioso». L’A.,
nell’offrire la descrizione sulla condizione di subalternità della popolazione di colore,
afferma che «os negros no Brasil sofrem tanto a injustiça no campo da distribuição
como no campo do reconhecimento, e que estas injustiças se reforçam reciprocamen-
te, agravando uma à outra. Os afrodescendentes, por um lado, são mais pobres e têm
acesso muito mais restrito aos bens econômicos em relação aos brancos. Por outro,
são estigmatizados e tidos por muitos … como integrantes de uma raça inferior: mais
“brutos”, menos inteligentes, mais propensos ao crime».
6 Con questi due vocaboli vengono indicati, rispettivamente, i neri e i mulatti. Per
semplificare il discorso, nel presente studio saranno utilizzati come sinonimi sia il termine
“neri” sia le espressioni “popolazione di colore” e “afro-discendenti”. Sulle numerose impli-
cazioni che scaturiscono, invece, da una rigorosa interpretazione di tali formule si rinvia a C.
Pereira de Souza Neto, J. Feres Júnior, Ação Afirmativa: Normatividade e Constitucionalida-
de, in D. Sarmento, D. Ikawa, F. Piovesan (coord.), Igualdade, Diferença e Direitos Humanos,
Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2008, spec. 357 s.

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

forme, sovente velate ma non per questo meno censurabili, di discriminazio-


ne7. Pur non esistendo nel Paese una segregazione razziale istituzionalizzata
(come, ad esempio, è avvenuto negli Stati americani del Sud o in Sudafrica
con l’apartheid), si presentano con estrema frequenza manifestazioni di «di-
scriminação de facto» ovvero di «discriminação indireta», sovente generate
dall’impacto desproporcional di una normativa apparentemente neutrale
nei confronti di determinate categorie di persone8.

Le vicende politiche ed istituzionali brasiliane degli ultimi decenni, dal


canto loro, non hanno certo contribuito ad attenuare le avverse conse-
guenze di tale gravosa eredità9.

7 Sul tema v. D. Sarmento, A Igualdade Étnico-Racial no Direito Constitucional


Brasileiro: Discriminação “de facto”, Teoria do Impacto Desproporcional e Ação Afirmati-
va, in M. Novelino (org.), Leituras complemetares de Direito Constitucional. Direitos hu-
manos e direitos fundamentais, cit., 211.
8 Sul punto v., ancora, il contributo di D. Sarmento, A Igualdade Étnico-Racial no Di-
reito Constitucional Brasileiro: Discriminação “de facto”, Teoria do Impacto Desproporcional e
Ação Afirmativa, in M. Novelino (org.), Leituras complemetares de Direito Constitucional. Direi-
tos humanos e direitos fundamentais, cit., 213, nonché il volume di J.B. Barbosa Gomes, Ação
Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade, Rio de Janeiro, Renovar Editora, 2001, 24.
9 Archiviata la “turbolenta” esperienza della Prima Repubblica (1889-1930) – segna-
ta, tra l’altro, da numerose “interferenze” militari, da un regionalismo, per così dire, “anarchico”
e da un’economia vacillante – l’inizio dell’era di Getúlio Vargas viene a coincidere, fra alterne vi-
cende, con l’instaurazione di un regime autoritario di chiara impronta fascista, ispirato all’Estado
Novo del Portogallo di Salazar. In seguito all’uscita di scena dalla vita politica del Paese del leader
populista (fu rovesciato dall’esercito nel 1945 e sempre dai militari fu costretto al suicidio nel
1954), affiorano in Brasile pesanti difficoltà in campo economico e sociale (alla fine della secon-
da guerra mondiale, il Paese aveva accumulato ingenti debiti) che, unitamente all’inarrestabile
inflazione, pongono le già deboli istituzioni nella reale impossibilità di riuscire a risolvere le nu-
merose problematiche che attanagliano il vasto Paese. Il 31-3-1964, un colpo di Stato segna
l’avvio della dittatura militare, che, sino al 1985 (anno in cui ha avuto inizio il processo di transi-
zione alla democrazia), porta il Brasile a fare i conti, tra l’altro, con la soppressione di alcuni diritti
costituzionali e con l’intensificazione della repressione politica. Le misure economiche messe
in atto durante gli anni del regime militare, inoltre, contribuiscono ad incrementare il livello di
povertà, riducendo alla miseria estrema la maggior parte dei brasiliani. Dal punto di vista giu-
ridico, sintomatico dell’incedere di questi continui rivolgimenti politici e istituzionali è il rapido
susseguirsi, nel corso del Novecento, di almeno cinque testi costituzionali (1934, 1937, 1946,
1967, 1988) ai quali potrebbe essere aggiunto anche l’Ato Institucional n. 5 del 1968 con cui, tra
le altre cose, si consentiva al Presidente della Repubblica di decretar o recesso parlamentar.

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Con il varo della Costituzione del 1988 si dischiudono nuovi (ma non
per questo meno problematici) scenari: le neonate istituzioni sono chia-
mate a misurarsi con il difficile compito di fare in modo che il dato giuri-
dico-formale, improntato al rispetto delle logiche democratico-pluralisti-
che, potesse godere di efficacia concreta. In questo quadro, la controver-
sa questione dell’integrazione della popolazione di colore costituisce una
delle maggiori problematiche che mettono oggi a dura prova la “tenuta
democratica” dell’ordinamento brasiliano.

Da alcuni anni, il tentativo di rimediare, almeno in parte, alle profon-


de contraddizioni che attraversano la società brasiliana ha trovato risposta
nella previsione e nell’implementazione, sia a livello federale che statale,
di una serie di politiche volte a favorire un riequilibrio sociale tra le varie
componenti della popolazione (in particolar modo l’inclusione degli afro-
discendenti). Anche il Brasile si confronta, dunque, con l’istituto delle c.d.
azioni positive (ações afirmativas). La ricerca di un fondamento costitu-
zionale che possa legittimarne l’impiego ha generato un acceso dibattito
nell’opinione pubblica e attratto l’attenzione della comunità scientifica10.
Tra le diverse politiche attuate, interesse particolare suscita la previsione di
posti riservati (cotas raciais) agli afro-discendenti per accedere all’Univer-
sità. In nome dello stesso principio di eguaglianza, tali misure hanno incon-
trato, da un lato, il favore di chi si pronuncia per la legittimità delle politiche

10 Limitandoci in questa sede a richiamare i contributi dottrinali brasiliani cfr.,


per un’analisi generale sull’argomento, oltre agli scritti contenuti nel già citato volume
di D. Sarmento, D. Ikawa, F. Piovesan (coord.), Igualdade, Diferença e Direitos Humanos,
cit., spec. pt. II (Proteção dos Grupos Vulneráveis: Afro-Descendentes), 345-471, i lavori
di S. Madruga, Discriminação Positiva: ações afirmativas na realidade brasileira, Brasília,
Brasília Jurídica, 2005, spec. 227 ss., e di F. Piovesan, Ações Afirmativas no Brasil: Desafios
e Perspectivas, in M. Novelino (org.), Leituras complemetares de Direito Constitucional.
Direitos humanos e direitos fundamentais, cit., 233 ss.

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

introdotte11, dall’altro, l’avversità di chi reputa le ações afirmativas e, in


particolare, l’impiego di cotas raciais no ensino superior un mero palliativo,
niente affatto compatibile con l’esigenza di inclusione sociale di determina-
ti soggetti ma, all’opposto, causa di ulteriori fattori di diseguaglianza.

2. – Utile al fine di cogliere alcuni tratti specifici della (giovane12) espe-


rienza brasiliana di ricorso alle ações afirmativas può esserne il raffronto
con quella di altri ordinamenti che da più tempo si misurano con l’istituto
delle affirmative actions, quali l’India (Paese che, com’è noto, vanta il pri-
mato nell’attuazione di politiche positive a vantaggio degli individui ap-
partenenti alle “caste inferiori”13) e gli Stati Uniti (altro Paese che conosce
un lungo ed affermato impiego di azioni positive14).

11 Nel tentativo di inquadrare all’interno di una cornice giuridica il ricorso alla pratica
delle azioni positive C.L. Antunes Rocha, Ação Afirmativa – O Conteúdo Democrático do Princípio
da Igualdade Jurídica, in Revista Trimestral de Direito Público, 1996, 85-99, sostiene che «[a] ação
afirmativa è, entao, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que
se acham sujetas as minorias»; in altri e più diretti termini, tale istituto «emergiu como a face
construtiva e construtora do novo conteúdo a ser buscado no princípio da igualdade jurídica».
12 Nella dottrina brasiliana si riscontra una sostanziale convergenza di opinioni nel
reputare la Terza Conferenza Mondiale delle Nazioni Unite contro il razzismo (tenutasi a Dur-
ban, in Sudafrica, nel 2001) una tappa assai significativa, nella misura in cui avrebbe dato im-
pulso alla promozione di politiche positive. In quell’occasione, del resto, il Governo brasiliano
ha ammesso apertamente l’esistenza di forme di discriminazione razziale all’interno del Pae-
se, evidenziandone le pesanti ripercussioni sulla popolazione; contestualmente ha convenuto
sull’assoluta necessità di migliorare le condizioni esistenziali degli afro-discendenti incenti-
vando l’impiego di “politiche positive”. Non a caso, F. Piovesan, Ações Afirmativas no Brasil:
Desafios e Perspectivas, cit., 240, sottolinea come «[n]a experiência brasileira vislumbra-se a
força catalizadora da Conferência de Durban no tocante às ações afirmativas».
13 Sull’argomento v. D. Amirante, Azioni positive, “quote riservate” e società mul-
ticulturale. Il Novantatreesimo emendamento e la “politica delle quote” nell’ordinamento
indiano, in Dir. pubbl. comp. eur., 2007, 1599 ss.
14 Assai diffusa è la tesi per cui si sia iniziato a parlare di affirmative actions negli
USA a partire dal discorso pronunciato dal Presidente Lyndon Johnson il 4-6-1965 presso
la Howard University di WDC. Per la verità, già in precedenza erano state adottate misure
finalizzate a promuovere l’inclusione sociale della popolazione di colore: si pensi, in partico-
lare, all’Executive Order n. 10.925 del 6-3-1961, emesso dal Presidente John Kennedy (con

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199
Il parallelo con gli USA appare pressoché scontato per via di una serie
di elementi di affinità con il Brasile: la prossimità geografica, le analogie
relative all’organizzazione dei poteri, sia in senso orizzontale che verticale,
e, soprattutto, i comuni strascichi connessi alla “questione razziale” costi-
tuiscono, infatti, comun denominatore tanto da potersi considerare il mo-
dello brasiliano di ações afirmativas omologo a quello americano15. Ad ogni
buon conto, l’osservazione di determinati elementi attinenti prevalente-
mente alle scelte di drafting fatte proprie dal Costituente brasiliano sugge-
rirebbe16 di collocare il Brasile, per così dire, “a metà strada” tra le altre due
esperienze appena sopra richiamate: se, per un verso, il contesto sociale
tenderebbe ad accostare il Brasile agli Stati Uniti, per altro verso, il profilo
giuridico (e in particolar modo quello costituzionale) sembrerebbe indurre
ad una diversa conclusione, accreditata dall’individuazione di significativi
punti di contatto tra l’ordinamento brasiliano e quello indiano.

Lasciando sullo sfondo le dinamiche connesse al momento genetico dei


testi costituzionali di India e Brasile, affinché possa dirsi fondato il parallelo
tra i due ordinamenti occorre osservare soprattutto la tecnica redazionale
fatta propria dai costituenti per definire il diritto di eguaglianza, unitamente
allo sforzo profuso al fine di individuare le categorie di “soggetti deboli”.

Senza troppo indugiare sull’esperienza indiana, è opportuno eviden-


ziare come nell’attuale Costituzione (in vigore dal 1952) l’eguaglianza ri-

cui si istituiva Committee on Equal Employment Opportunity), o al titolo VII del Civil Rights
Act del 2-7-1964 (nel quale veniva incentivato l’impiego di politiche positive per il riconos-
cimento dei diritti delle vittime di pratiche discriminatorie). Successivamente (il 24-9-1965),
fu proprio lo stesso Lyndon Johnson ad emettere l’Executive Order n. 11.246 che fissava la
necessità «to take affirmative action … to assure equality».
15 In questo senso cfr. C. Pereira de Souza Neto, J. Feres Júnior, Ação Afirmativa:
Normatividade e Constitucionalidade, in D. Sarmento, D. Ikawa, F. Piovesan (coord.), Igual-
dade, Diferença e Direitos Humanos, cit., spec. 347.
16 Si ritiene di ricorrere all’uso del condizionale per via della ancora non consolida-
ta produzione giurisprudenziale sul tema in questione.

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200
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

sulti declinata alla stregua di un vero e proprio diritto sociale17. In que-


sta specifica prospettiva, non sorprende la circostanza per cui al più
alto livello normativo si rintraccino frequentemente disposizioni che
alimentano l’intervento dei pubblici poteri (nelle più diverse moda-
lità e, dunque, anche attraverso l’impiego di affirmative actions) allo
scopo di garantire e promuovere il diritto di eguaglianza18. In un simile
contesto, nel quale evidenti appaiono le contraddizioni di una società
multietnica, multireligiosa e plurilinguistica19, lo sforzo del costituen-
te di individuare le categorie di “soggetti deboli”20 – come avverrà nel
biennio 1987-88 anche per il Brasile (cfr. amplius par. 3) – rappresenta
forse uno dei più convincenti motivi idonei a giustificare il favor dell’or-
dinamento nei confronti dell’impiego di tali misure.

17 Cfr., in tal senso, gli artt. 14-18, relativi alla disciplina del «Right to Equality».
Come ricorda D. Amirante, Azioni positive, “quote riservate” e società multiculturale. Il
Novantatreesimo emendamento e la “politica delle quote” nell’ordinamento indiano, cit.,
1601, l’eguaglianza appare nella realtà indiana «non solo e non tanto una “condizione” già
esistente nella società (e quindi semplicemente da proteggere, utilizzando lo strumentario
giuridico delle libertà negative), quanto soprattutto un “obiettivo” da raggiungere, attraver-
so l’intervento attivo dei pubblici poteri».
18 Per evidenti motivi legati alla pluridecennale esperienza di segregazione razzia-
le, questa impostazione trova piena e più articolata affermazione nell’ordinamento sudafri-
cano. La Costituzione del 1996 contiene, infatti, nel proprio Bill of Rights, un minuzioso rife-
rimento all’eguaglianza che acclude anche l’espressa menzione della pratica di politiche po-
sitive. In particolare, l’art. 9 sancisce, tra l’altro, quanto segue: «1. Everyone is equal before
the law and has the right to equal protection and benefit of the law. 2. Equality includes the
full and equal enjoyment of all rights and freedoms. To promote the achievement of equal-
ity, legislative and other measures designed to protect or advance persons, or categories
of persons, disadvantaged by unfair discrimination may be taken». Per approfondimenti sul
caso sudafricano v., nella letteratura italiana, il volume di M. Caielli, Le azioni positive nel
costituzionalismo contemporaneo, Napoli, Jovene, 2008, spec. 162 ss.
19 Cfr. D. Amirante, India, Bologna, il Mulino, 2007, 111.
20 Nell’elencazione costituzionale, oltre alle donne e ai fanciulli figurano, infatti, le
comunità tribali, le caste inferiori e, più genericamente, le classi disagiate.

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Questa impostazione di fondo, pur senza menomare le prerogative
proprie del supremo organo di giurisdizione od offuscarne il prestigio,
ha scoraggiato il frequente intervento della Supreme Court diretto a di-
chiarare di volta in volta (ricorrendo ai “grimaldelli” della ragionevolezza
e della proporzionalità) la legittimità o meno dell’impiego di determinate
politiche positive. L’impianto costituzionale così definito ha contribuito,
inoltre, a generare un sensibile incremento delle previsioni normative
implicanti azioni positive; conseguenza, quest’ultima, da non guardare,
però, con estremo ottimismo, attese la transitorietà e la straordinarietà
consustanziali alle affirmative actions21.

Diversa è invece l’evoluzione della politica di implementazione di “di-


scriminazioni positive” nel contesto statunitense. Rispetto al caso india-
no, qui il “protagonismo” della Supreme Court è apparso del tutto evi-
dente. Sin dall’avallo della nota dottrina del “separate but equal” (di cui
antesignano è il famoso caso Plessy vs Ferguson22) – con cui prese avvio
un modello ufficiale di segregazione razziale23 –, i giudici della Corte su-
prema hanno giocato un ruolo fondamentale nel tratteggiare i contorni
del principio di eguaglianza e del divieto di discriminazione.

21 Sul punto v. ancora i rilievi conclusivi di D. Amirante, Azioni positive, “quote


riservate” e società multiculturale. Il Novantatreesimo emendamento e la “politica delle
quote” nell’ordinamento indiano, cit., 1611 ss. Secondo l’A., «la cristallizzazione di alcuni
privilegi sociali … può degenerare in fenomeni di “parassitismo” qualora i beneficiari consi-
derino le azioni positive come diritti acquisiti e non come strumenti transitori volti a favorire
il superamento di condizioni storiche di arretratezza o disagio e quindi destinati, prima o
poi, a scomparire».
22 163 U.S. 537 (1896).
23 Superata solo a partire dagli anni cinquanta del XX secolo, sotto la pressione dei
movimenti in lotta per i diritti civili. Emblematico è l’altrettanto noto caso Brown vs Board of
Education: 347 U.S. 483 (1954).

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Com’è ampiamente noto, benché la prima misura di affirmative action


avesse messo a dura prova l’unità dell’organo giurisdizionale24, l’occasio-
ne fu comunque propizia per indurre la Corte suprema federale a pro-
nunciarsi sulla validità e legittimità dell’impiego di “affirmative actions”25.
Nel corso del tempo, le problematiche sorte con la crisi del Welfare State
unitamente all’affermazione di un atteggiamento, per così dire, più “con-
servatore” del supremo organo di giustizia americano26, hanno portato
quest’ultimo a porsi con maggiore prudenza dinanzi al fenomeno delle
azioni positive27. La posizione più cauta dei giudici è stata indirettamente
artefice di una sensibile riduzione della previsione di misure implicanti
“discriminazioni positive”; circostanza favorita peraltro dalla pressoché

24 Nella celeberrima sentenza University of California Regents vs Bakke [438 U.S.


265 (1978)] la Corte, spaccata letteralmente a metà (quattro giudici a favore e quattro
contrari cui si aggiunse il voto decisivo del giudice Powell), si espresse per l’illegittimità
della previsione della riserva di posti a studenti appartenenti alle minoranze entico-razziali
per l’accesso alla Facoltà di Medicina dell’Università della California (Davis Medical Scho-
ol), dando così ragione allo studente bianco Alan Bakke che non aveva potuto accedere
all’Università a causa del trattamento preferenziale riservato alle minoranze. Per appro-
fondimenti sul caso in esame v. S. Nepor, Il caso Bakke: eguaglianza e accesso all’istruzione
superiore in una recente decisione della Corte suprema federale degli Stati Uniti, in Riv. trim.
dir. pubbl., 1979, 224 ss.
25 Posizione confermata da una cospicua serie di sentenze successive. Si pensi,
a mero titolo esemplificativo, alle pronunce United Steelworkers of America vs Weber del
1979, United States vs Paradise del 1984, o Metro Broadcasting Inc. vs Federal Communica-
tions Commission del 1990: per un’accurata ricostruzione della giurisprudenza della Corte
suprema in tema di affirmative actions v., nella dottrina italiana, G.F. Ferrari, Localismo ed
eguaglianza nel sistema americano dei servizi sociali, Padova, CEDAM, 1984, passim.
26 Condizionato dalle nuove nomine effettuate dall’amministrazione repubblicana
(in particolare, dai Presidenti Ronald Reagan e George Bush Sr.): in questo senso v., nella
letteratura brasiliana, R. Raupp Rios, Direito da Antidiscriminação, Porto Alegre, Livraria do
Advogado Editora, 2008, 171.
27 È ampiamente noto lo strict scrutiny con cui la Corte ha interpretato la legittimi-
tà delle misure sottoposte al suo giudizio: al riguardo v., tra le numerose pronunce, City of
Richmon vs J.A. Croson Co. del 1989 e Adarand Constructors vs Pena del 1995.

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assente (fatto salvo il rinvio al XIV emendamento) legittimazione costitu-
zionale sull’opportunità di utilizzo di tale tecnica di intervento pubblico28.

La rapida incursione nelle esperienze di India e Stati Uniti consen-


te, almeno in una certa misura, di delineare i possibili tratti evolutivi del
sistema brasiliano di ricorso alle ações afirmativas: mentre sul piano
fattuale l’esperienza del Brasile è assimilabile a quella statunitense29 (ne
è riprova la quasi pedissequa riproduzione delle misure adottate a van-
taggio della popolazione afro-discendente, individuabili, tra l’altro, nella
previsione di riserva di quote per l’accesso all’Università)30, sul versante
giuridico-formale si riscontrano significative affinità con le scelte fatte
proprie dal costituente indiano31, sicché, per il futuro, non sembrerebbe

28 In proposito assai vasta è la letteratura americana: tra i molti, cfr. l’ormai classi-
co studio di M. Rosenfeld, Affirmative Action and Justice, New Haven, Yale University Press,
1991. Sul tema, particolarmente interessanti sono altresì i volumi, rispettivamente in lingua
francese e in lingua portoghese, di G. Calvès, L’Affirmative Action dans la Jurisprudence de
la Cour Suprême des États-Unis, Paris, L.G.D.J., 1998, spec. 127 ss. e J.B. Barbosa Gomes,
Ação Afrimativa & Princípio Constitucional da Igualdade, cit., spec. 93 ss.
29 Benché non sia stata istituzionalizzata una dottrina affine al “separate but equal”, oc-
corre ammettere come in Brasile le pratiche discriminatorie abbiano di fatto pervaso tutti i livelli
della società. Sulla scorta dell’esempio nordamericano e in virtù del processo di lotta anti-razziale
guidato dai vari gruppi del Movimento Negro Nacional, i vari Governi brasiliani hanno così ritenuto
opportuno intervenire varando politiche positive a vantaggio della popolazione di colore.
30 I fondamenti più frequentemente invocati al fine di motivare l’implementazione
di politiche positive risultano essere: la giustizia compensatrice, la giustizia distributiva, la pro-
mozione del pluralismo e il rafforzamento del senso di identità del gruppo destinatario di tali
misure. Il primo tende a rimarcare la consapevolezza delle ingiustizie subite in passato dagli
afro-discendenti; il secondo si fonda sulla constatazione empirica del terribile svantaggio in
cui versano i neri; il terzo profilo aspira alla promozione di un contatto reale e paritario tra
soggetti riconducibili ad etnie differenti; l’ultimo ha lo scopo di contrastare tutti quegli stere-
otipi legati al concetto di appartenenza razziale. Sull’argomento v. D. Sarmento, A Igualdade
Étnico-Racial no Direito Constitucional Brasileiro: Discriminação “de facto”, Teoria do Impacto
Desproporcional e Ação Afirmativa, in M. Novelino (org.), Leituras complemetares de Direito
Constitucional. Direitos humanos e direitos fundamentais, cit., 218 ss.
31 V. al riguardo P. Daflon Barrozo, a Idéia de Igualdade e as Ações Afirmativas, in Lua
Nova, 2004, 114 (paper reperibile all’indirizzo telematico www.scielo.br), il quale sottolinea
che «no sistema constitucional brasileiro a igualdade é direito oponível tanto ao Estado e
seus agentes quanto, qualificadamente, a indivíduos e entitades privadas».

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

azzardato prospettarne analoghi esiti (nel senso, cioè, di una prolifera-


zione delle politiche positive, che rischi, però, di metterne in secondo
piano la loro stessa natura transitoria, dando luogo ad una stabilità e,
nel contempo, ad una cristallizzazione della condizione d’inferiorità di
determinate categorie di persone).

3. – Come evidenziato da autorevolissima dottrina, una lettura “in


filigrana” della Costituzione promulgata il 5 ottobre 1988 consente di
sgombrare il campo da ogni possibile dubbio in merito alla legittimità
costituzionale delle ações afirmativas nell’ordinamento brasiliano32.

Ispirata, per quel che concerne il catalogo dei diritti, alla Legge Fonda-
mentale tedesca e alla Costituzione portoghese del 1976, la Carta brasi-
liana del 1988 rappresenta l’esito di un processo democratico e inclusivo
fortemente condizionato dalla decisa pressione dei movimenti in difesa
dei diritti, emersi nel Paese a partire dagli anni settanta33.

32 Tra i numerosi contributi in cui si sottolinea la conformità dell’istituto delle azioni


positive con il dettato costituzionale v. J.B. Barbosa Gomes, A recepção do instituto da ação
afirmativa pelo Direito Constitucional brasileiro, in Rev. Inf. Leg., 2001, 129 ss., M.A. Mendes
de Farias Mello, A Igualdade e as Ações Afirmativas, in Rev. Br. Dir. Const., 2003, 23 ss., M.A.
Maliska, Análise da Constitucionalidade das Cotas para Negros em Universidades Públicas, in
E.C. Piza Duarte, D.L. de Lima Bertúlio, P.V. Baptista da Silva (coord.), Cotas Raciais no Ensino
Superior. Entre o Jurídico e o Político, Curitiba, Juruá Editora, 2008, 57 ss., A. Coelho Duarte, A
constitucionalidade das Políticas de Ações Afirmativas, Senado Federal, 2014.
33 Per un’analisi generale sul processo costituente e sull’instaurazione del sistema
democratico in seguito all’adozione del testo costituzionale del 1988, molto ampia è la let-
teratura giuridica. Interessanti sono i contributi contenuti nel Volume AA.VV., La nouvelle
République Brésilienne, Paris, Economica, 1991 e, in particolare, gli scritti di B. Cabral, La
Transition democratique et la Nouvelle Constitution bresilienne, ivi, 47 ss., e M. Gonçalves
Ferreira Filho, La Constitution de 1988: aspects generaux, ivi, 59 ss.

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205
Sin dal preambolo, il testo costituzionale enuncia le finalità e le aspirazio-
ni che hanno animato il processo costituente. Tra tutte, emerge il proposito34
di costruire uno Stato democratico di diritto destinato ad assicurare «o exer-
cício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar,
o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos». È, in particolare, l’art. 3
CF ad esplicitare gli obiettivi fondamentali che la Repubblica federale brasilia-
na si propone di perseguire: «construir uma sociedade livre, justa e solidária;
garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização
e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação»; si tratta, evidentemente, di finalità strettamente compro-
messe con la promozione (-protezione) dell’eguaglianza, intesa nella sua di-
mensione sostanziale o «de resultados»35.

Sotto il profilo dell’attinenza con l’implementazione di politiche positive,


l’utilizzo di verbi quali construir, erradicar, reduzir, promover ha indotto acuta
dottrina a coglierne la compatibilità con il diretto intervento dei pubblici po-
teri36. Il significato intrinseco di ciascuno di questi termini presuppone, infatti,

34 Confermato dall’art. 1 CF, di cui fornisce un analitico commento L. Pegoraro, La


Costituzione brasiliana del 1988 nella chiave di lettura dell’art. 1, Bologna, Clueb, 2007.
35 E definita da P. Bonavides, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros
Editores, 2006, 19ª ed., 376, quale «centro medular do Estado social e de todos os direitos
de sua ordem jurídica … o direito-chave, o direito-guardião do Estado social».
36 A mettere in rilievo questi aspetti è C.L. Antunes Rocha, Ação Afirmativa – O
Conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica, cit., 85 ss. In argomento v. anche
lo scritto di M.A. Mendes de Farias Mello, A Igualdade e as Ações Afirmativas, in Rev. Br. Dir.
Const., 2003, 24 e il saggio di J.B. Barbosa Gomes, As Ações afirmativas e os processos de
promoção da igualdade efetiva, cit., 105. Quest’ultimo A. evidenzia come proprio da tale
impostazione scaturisca la concezione moderna e dinamica del principio costituzionale di
eguaglianza. Una concezione che presuppone l’impegno dello Stato ad abbandonare un
atteggiamento di neutralità e ad assumere un comportamento attivo e «quase militante, na
busca da concretização da igualdade substancial».

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206
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

«um comportamento ativo», finalizzato, tra l’altro, a dare efficacia al diritto-


principio di eguaglianza, espressamente consacrato nel dettagliato art. 5 CF37.

La forte carica principiológica che traspare dal testo costituzionale del


1988 non pregiudica del resto il fatto che all’insieme di diritti fondamen-
tali venga riconosciuta un’immediata efficacia giuridica38: conformemen-
te al disposto dell’art. 5, § 1, CF, «[a]s normas definidoras dos direitos
e garantias fundamentais têm aplicação imediata», sicché l’eguaglianza
– che apre il catalogo di Direitos e Deveres Individuais e Coletivos conte-
nuto nell’art. 5 – non sembra svincolata, come il resto dei diritti fonda-
mentali39, dalla necessità di trovare immediata applicazione. Questa im-
postazione sembra ben coniugarsi con la previsione nel testo della CF di
alcune specifiche categorie di “soggetti deboli”, meritevoli di “particolare
attenzione” da parte delle istituzioni: è il caso, ad esempio, delle donne
e dei disabili40. In altri termini, la presenza stessa nella CF di disposizioni

37 Il cui incipit recita «[t]odos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilida-
de do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade».
38 Sul tema cfr. M.G. Ferreira Filho, A Aplicação Imediata das Normas Definidoras
de Direitos e Garantias Fundamentais, in Rev. Proc.-Ger. Est. SP, 1988, 35 ss., e I.W. Sarlet,
A eficácia dos Direitos Fundamentais, Porto Alegre, Livraria do Advogado Ed., 2008, 9ª ed.,
273. Come evidenzia quest’ultimo A. «qualquer preceito da Constituição (mesmo sendo de
cunho programático) é dotado de certo grau de eficácia jurídica e aplicabilidade, consoante
a normatividade lhe tenha sido outorgada pelo Constituinte».
39 Contenuti nel Titolo II CF o localizzati in altre parti del testo o, ancora, desumibili
– in forza del § 3 dell’art. 5, CF – dai Trattati internazionali ratificati dal Brasile. Di tale avviso è,
tra gli altri, F. Piovesan, Proteção Judicial contra Omissões Legislativas, São Paulo, RT, 1995, 90.
40 Cfr. gli artt. 7.XX, CF («[São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de ou-
tros que visem à melhoria de sua condição social:] proteção do mercado de trabalho da mulher,
mediante incentivos específicos, nos termos da lei»), 37.VIII, CF («[A administração pública direta
e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e,
também, ao seguinte:] a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas
portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão») e 227, § 1, II, CF («[O Estado
promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a
participação de entidades não governamentais e obedecendo aos seguintes preceitos:] criação
de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência»).

Ir para o índice
207
che individuano categorie svantaggiate suona come implicita ammissio-
ne di (-esortazione a) un impegno attivo che lo Stato deve assumersi al
fine di realizzare compiutamente o direito da igualdade41.

Per analogia, il minuzioso riferimento operato dal costituente bra-


siliano del 1987-88 al divieto di discriminazione e al perseguimento
dell’eguaglianza tra le etnie42 sembrerebbe accogliere anche per que-
sta fattispecie un impegno diretto dei pubblici poteri43. Dal canto loro,
le “sanzioni” all’inerzia del legislatore avvalorate dalla previsione del
mandado de injunção e dell’ação direta de inconstitucionalidade fun-
gerebbero quasi da passe-partout alla previsione di ações afirmativas
anche nei confronti della popolazione di colore44.

41 L’input derivante dalla lettera delle disposizioni appena richiamate ha indotto il


legislatore ad adottare alcune misure implicanti azioni positive. Con riferimento alle donne
si possono ricordare le leggi n. 9.100/95 e 9.504/97 inerenti la previsione di percentuali di
candidature femminili alle elezioni; relativamente ai disabili, va menzionata, ad esempio, la
legge n. 8.112/90 con cui si è fissata una quota di posti riservati ai portatori di handicap nei
concorsi pubblici. Nel 2002, l’Amministrazione federale ha provveduto ad adottare il Pro-
grama Nacional de Ações Afirmativas (Decreto Federal 4.228/02) con cui, tra l’altro, sono
state introdotte ulteriori misure in favore di donne e disabili.
42 Frequente è, non a caso, l’uso nella CF di termini od espressioni quali: «Raça
e cor» (art. 3.IV); «Racismo» (art. 4.VIII e 5.XLII); «Povos» (art. 4, par. único); «Cor» (art.
7.XXX); «Culturas populares, indígenas e afro-brasileiras» (art. 215, par. 1); «Grupos partici-
pantes do processo civilizatório nacional» (art. 215, par. 1); «Diferentes segmentos étnicos
nacionais» (art. 215, par. 2); «Grupos formadores da sociedade brasileira» (art. 216).
43 Per ulteriori approfondimenti cfr. J.B. Barbosa Gomes, A recepção do instituto
da ação afirmativa pelo Direito Constitucional brasileiro, in Rev. Inf. Leg., 2001, 129 ss.
44 Su questi aspetti v. F. Piovesan, Ações Afirmativas no Brasil: Desafios e Pers-
pectivas, in M. Novelino (org.), Leituras complementares de Direito Constitucional. Direitos
Humanos e Direitos Fundamentais, cit., spec. 235.

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208
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

4. – Nell’esperienza concreta, il settore maggiormente esposto all’in-


troduzione di ações afirmativas è quello dell’istruzione45. La necessità di
varare politiche positive ben potrebbe definirsi quale inevitabile preci-
pitato di un sistema educativo nazionale congegnato in maniera tale da
precludere di fatto l’accesso degli afro-discendenti ai vari livelli scolastici,
incluso il percorso universitario46. In effetti, in questo specifico ambito
decisamente marcate risultano le differenze tra le condizioni e le oppor-
tunità offerte ai bianchi rispetto a quelle riservate ai neri47.

45 Situazione non dissimile rispetto a quanto avvenuto negli Stati Uniti, dove pe-
raltro particolarmente accesa è stata la querelle sull’efficacia del sistema di quote riservate:
sul punto cfr., nella dottrina italiana, M. Ainis, Cinque regole per le azioni positive, in Quad.
cost., 1999, 363 e, in un’ottica più ampia, M. Caielli, Le azioni positive nel costituzionalismo
contemporaneo, cit., 89 ss.
46 J.B. Barbosa Gomes, O Debate Constitucional sobre as ações afirmativas, cit.,
8, afferma icasticamente che il sistema scolastico brasiliano risulta organizzato in modo
da proporsi alla stregua di una «fomidável “machine à exclure”», dove l’esclusione risulta
«orquestrada e disciplinada pela lei». Più nel dettaglio, è molto netto in Brasile il divario tra
la scuola pubblica (aperta a tutti) e la scuola privata (anch’essa formalmente aperta a tutti
ma di fatto discriminatoria, nella misura in cui gli elevati costi necessari per frequentarla la
rendono accessibile soltanto a coloro che appartengono alle classi più agiate e che nel con-
testo brasiliano si identificano sovente con la popolazione bianca); tale contrapposizione
risulta rafforzata dalla previsione di un insieme di agevolazioni riconosciute alla scuola pri-
vata, tra cui figura, ad esempio, l’esenzione dal pagamento di tributi (c.d. “renúncia fiscal”).
Non meno diversa appare la situazione per quel che concerne i livelli più elevati (ensino
superior) dell’istruzione: le modalità con cui vengono selezionati i candidati per accedere
all’Università finiscono, infatti, per privilegiare coloro che provengono dalle scuole private.
In argomento cfr. anche il contributo di D. Ikawa, Discriminação racial na educação, in Rev.
Br. Dir. Const., 2004, 30 ss.
47 Per avere un’idea della netta sproporzione tra la presenza di bianchi e quella
di neri nel campo dell’istruzione, è sufficiente menzionare uno degli aneddoti citati da J.B.
Barbosa Gomes, ibid., spec. nt. 23. L’A., nel riferire l’esperienza di un docente della Facul-
dade de Direito della USP, sottolinea come quest’ultimo, in 28 anni di attività, abbia avuto
all’incirca 7000 studenti, di cui soltanto cinque non bianchi. Complessivamente, si calcola
infatti che in Brasile appena il 2% di studenti universitari siano di colore. Per ulteriori infor-
mazioni, v. il saggio di D.L. de Lima Bertúlio, Racismo e Desigualdade racial no Brasil, in E.C.
Piza Duarte, D.L. de Lima Bertúlio, P.V. Baptista da Silva (coord.), Cotas Raciais no Ensino
Superior. Entre o Jurídico e o Político, cit., spec. 41 ss.

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209
Il tentativo di contrastare tale situazione ha indotto alcuni Stati mem-
bri del Brasile ad introdurre una serie di misure volte a consentire l’au-
mento della percentuale di studenti di colore nelle Università pubbliche:
tra i vari interventi normativi adottati, quella maggiormente praticata è
consistita nella previsione di cotas raciais, vale a dire di posti riservati ai
neri per accedere alle Università48.

Lo Stato di Rio de Janeiro si è mosso per primo in tale direzione e


nel breve volgere di qualche anno numerosi altri Stati membri hanno
deciso di seguirne l’esempio49. Il Governo federale, a sua volta, ha rical-
cato l’impostazione fatta propria dagli enti federati facendosi promo-
tore di una serie di misure finalizzate all’inclusione sociale degli afro-
discendenti. Interessante è, ad esempio, il Programa Universidade Para
Todos (ProUni), adottato con decreto presidenziale (Medida Provisória)
n. 213/2004 e convertito nella Lei n. 11.096/2005. Si tratta di un pro-
getto molto impegnativo che, tra le altre cose, prevede l’assegnazione
di borse di studio al fine di incentivare la presenza dei meno abbienti

48 Più specificatamente, sono state quattro le species di misure “favorevoli”


impiegate: la riserva di posti nei confronti della popolazione di colore mediante la pre-
visione di quote; la riserva di una percentuale di posti a vantaggio degli studenti prove-
nienti dalla scuola pubblica; il riconoscimento di un punteggio aggiuntivo nelle prove
di selezione a coloro che hanno frequentato scuole pubbliche; un aumento di posti
rispetto a quelli fissati per favorire l’accesso dei neri provenienti dalle scuole pubbliche.
Cfr. al riguardo D.L. de Lima Bertúlio, Racismo e Desigualdade racial no Brasil, in E.C.
Piza Duarte, D.L. de Lima Bertúlio, P.V. Baptista da Silva (coord.), Cotas Raciais no Ensino
Superior. Entre o Jurídico e o Político, cit., 52.
49 In particolare, nello Stato di Rio de Janeiro sono state inizialmente ap-
provate le leggi n. 3.524/2000 e n. 3.708/2001, successivamente abrogate dalla l. n.
4.151/2003. Tali interventi normativi hanno riservato in vario modo specifiche percen-
tuali di posti per accedere alle Università a studenti provenienti da scuole pubbliche
ovvero a studenti autodichiarantisi afro-discendenti. Tratteggia un quadro complessivo
delle diverse misure statali approvate S. Madruga, Discriminação Positiva: ações afir-
mativas na realidade brasileira, cit., 243 ss.

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210
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

all’interno delle Università (una quota delle borse è destinata proprio a


studenti pretos, pardos e alla popolazione indígenas)50.

Come anticipato, fin dall’entrata in vigore delle prime politiche a van-


taggio degli afro-discendenti, il dibattito dottrinale e, in generale, il con-
fronto tra i diversi orientamenti dell’opinione pubblica si sono incentrati
sulla questione giuridica della compatibilità o meno di tali misure con il
dettato costituzionale51. In senso favorevole depongono, al riguardo, oltre
alle modalità sopra esposte di declinazione del diritto-principio di egua-
glianza nella Carta del 1988, significativi segnali provenienti dal STF, pur
in assenza di una consolidata giurisprudenza sul punto. Al riguardo, giova
ricordare che l’ex giudice Carlos Ayres Britto si è espresso per la costitu-
zionalità del ProUni, contestata, attraverso le Ações Diretas de Inconsti-
tucionalidades52, oltre che dalla Confenem, anche dai democratici (DEM)
e dalla Federação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social
(Fenafisp). Nelle parole del Ministro Britto «[n]ão se pode criticar uma lei
por fazer distinções. O próprio, o típico da lei é fazer distinções, diferen-
ciações, “desigualações” para contrabater renitentes “desigualações”»53.
Non va sottovalutato come all’epoca dell’introduzione del Programa
Universidade Para Todos, membri del supremo organo giurisdizionale

50 Tutti i dettagli del programma in questione, unitamente alla legislazione succe-


dutasi dal 2004 al 2017, sono disponibili sul sito http://prouniportal.mec.gov.br/.
51 Non a caso, la Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confe-
nem) si è fatta promotrice di specifiche Ações Diretas de Inconstitucionalidades che hanno
interessato sia le leggi adottate dallo Estado do Rio de Janeiro (nello specifico il giudizio è
stato ritenuto estinto dal STF per via dell’abrogazione degli atti in questione) sia il Programa
Universidade para Todos.
52 ADIs n. 3330, 3314 e 3379.
53 Sul punto cfr. R. Raupp Rios, Direito da Antidiscriminação, cit., 190 ss., e M.
Campos Galuppo, R. Faria Basile, O princípio jurídico da igualdade e a ação afirmativa
étnico-racial no Estado Democrático de Direito, paper reperibile all’indirizzo telematico
www.senado.gov.br.

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211
federale brasiliano erano giudici che in sede accademica avevano ripetu-
tamente sostenuto la conformità delle azioni positive rispetto al dettato
costituzionale: ci si riferisce, in particolare, ai giudici Joaquim B. Barbosa
Gomes e Carmen Lúcia Antunes Rocha, Marco Aurélio Mendes de Farias
Mello. Elementi che hanno anticipato un maggiore attivismo sul punto da
parte del STF, anche per far fronte a numerose questioni lasciate aperte
dagli interventi del legislatore (statale e federale): si pensi al necessario
bilanciamento tra il perseguimento dell’eguaglianza sostanziale e quanto
disposto in tema di accesso all’istruzione dall’art. 208.V, CF54; o, ancora,
alla difficoltà di individuare i beneficiari delle azioni positive previste, spe-
cialmente quando esse si fondano su criteri evanescenti e discutibili quali
il dato dell’appartenenza razziale (per di più in un contesto come quello
brasiliano caratterizzato da un’altissima miscigenação della popolazione).

54 Che stabilisce, tra l’altro, quanto segue: «o acesso aos níveis mais elevados do
ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um».

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212
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

O Estado das Coisas Inconstitucional


- Transplante da Colômbia para o Brasil
- Uma interpretação análoga para o
direito fundamental ao meio ambiente
The Unconstitutional State of Things
- transplant from colombia to Brazil
- an analogous interpretation to the
fundamental right of global environment

BLEINE QUEIROZ CAÚLA1


FRANCISCO LISBOA RODRIGUES

a1

RESUMO

O Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) surge no Supremo Tribu-


nal Federal a partir do julgamento das liminares insertas na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347-MC/DF, em
novembro de 2015. O presente estudo instiga o diálogo entre juristas
acerca da aplicação no Brasil do Estado de Coisas Inconstitucional Am-

1 A ordem da autoria obdeceu ao critério alfabético.

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213
biental ante as falhas do Estado ao comando constitucional de defensor
e protetor do meio ambiente. A inquietação surge a partir da inefetivi-
dade das normas ambientais, principalmente pelo Poder Executivo, mas
não exclusivamente. As hipóteses do estudo foram investigadas por meio
de pesquisa bibliográfica numa abordagem teórico-empírica. Conclui-se
que o Estado de Coisas Inconstitucional constitui, num oceano de deci-
sões, uma gotícula representativa do diálogo transnacional. Por se tratar
de uma ferramenta de controle, melhor dizendo, um ativismo estrutu-
ral para forçar o Poder Executivo a adimplir com as funções que lhe são
constitucionalmente atribuídas, ainda é prematura a doutrina brasilei-
ra sobre o tema. É prudente um olhar atento sobre o Estado de Coisas
Inconstitucional no controle da efetividade da gestão pública ambiental
por força do princípio da prevenção inerente ao Direito Ambiental. A his-
tória da gestão ambiental brasileira registra o quão padecem Estado e
sociedade do empoderamento dos deveres ambientais.

Palavras-chave: Estado de Coisa Inconstitucional. Transplante. Inter-


pretação Análoga. Direito Fundamental. Meio Ambiente.

ABSTRACT

The Unconstitutional State of Things (ECI) arises in the Federal Su-


preme Court from the judgement of uncertain injunctions on the claims
of non-compliance with a fundamental precept (ADPF) nº 347-MC/DF, in
November of 2005. This study instigate the dialogue among legal prac-
titioners about the implementation of the environment unconstitutional
state of things before the government failures to the constitutional rules
of defender and protector of the environment. The concern began with
the infectivity of the environment rules, mainly, by the executive power,

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214
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

but not exclusively. The hypotheses of the study have been investigated by
the bibliographic research in a theoretical-empirical approach. It’s con-
cluded that the unconstitutional state of things represents, in a branch of
decisions, just one more representative decision among the many others
in the transnational dialogue. As it is an a control tool, or to tell in better
way, an structural activism created to force the executive power comply
with the functions that is in charge by law. It is still premature the Bra-
zilian legal doctrine about this subjective. It’s wise to take a close look
about The Unconstitutional state of things and it’s effectivity control in
the environment public administration in accordance with the principle of
inherent prevention of the environmental law. The history of Brazilian en-
vironmental management records how much lack, the state and society,
have of the empowerment of environment duties.

Keywords: Unconstitutional State of Things. Transplant. Analogous


Interpretation. Fundamental Right. Environment.

INTRODUÇÃO

O julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Funda-


mental (ADPF) nº 347-MC/DF, proposta pelo Partido Socialismo e Liber-
dade (PSOL), ocorreu em 9 de setembro de 2015, e provocou turbulên-
cia na doutrina brasileira, com variadas reações. De um lado, os críticos
do ativismo judicial, capitaneados por Lenio Streck, provavelmente o
mais destacado dentre eles; doutro, vozes como a de Carlos Alexandre
de Azevedo Campos e Dirley da Cunha Júnior, por todos, a defender o
Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), a partir do modelo construído
pela Corte Constitucional Colombiana.

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215
A Decisão na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
nº 347 – MC/DF –, de relatoria do ministro Marco Aurélio, intensificou
o debate sobre o ativismo judicial no Brasil, especialmente no Supremo
Tribunal Federal, colocando em dúvida a legitimidade democrática do ju-
dicial review. A datar da famosa decisão em Marbury x Madison, proferi-
da pelo Justice John Marshall, em 1803, à época presidente da Suprema
Corte dos Estados Unidos, o judicial activism é alvo de ataques de toda
ordem, especialmente pelos que enaltecem o modelo de democracia re-
presentativa com alicerce dogmático na separação de poderes, suprema-
cia do Parlamento e na representação política. Ademais, a arbitrarieda-
de decisional (subjetivismo desregrado) completa o rol dos argumentos
contrários ao Estado de Coisas Inconstitucional como modelo de decisão
ativista levada a termo pela Corte Constitucional Colombiana.

O objetivo central do artigo-texto é fazer um breve inventário das


decisões judiciais que culminaram no Estado de Coisas Inconstitucional,
caracterizá-lo e firmar suas bases teóricas e pragmáticas, demonstrando
a não ofensa ao princípio democrático ou à separação de poderes para,
ao final, defender sua aplicação a casos excepcionais, como no âmbito
das políticas dirigidas ao meio ambiente. Longe de pretender esgotar o
tema, pródigo em desdobramentos, mantem-se o norte na proposta de
considerar viável o manejo prático do Estado de Coisas Inconstitucional
(ECI) pela Corte Constitucional brasileira.

Como metodologia, a razão transversal, divulgada no Brasil por


Marcelo Neves e fruto do esforço teórico de Wolfgang Welsch, será o
fio de Ariadne. Marcelo Neves (2009, p. 42) reconstrói o pensamento
de Welsch ao afirmar que

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216
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

todo âmbito de comunicações, ao expor-se em conexão


com um outro, pode desenvolver seus próprios mecanis-
mos estáveis de aprendizado e influência mútuos. Então,
cabe falar de racionalinalidades transversais parciais, que
podem servir à relação construtiva entre as racionalida-
des particulares dos sistemas ou jogos de linguagem que
se encontram em confronto. Cada racionalidade trans-
versal parcial está vinculada estruturalmente às corres-
pondentes racionalidades particulares, para atuar como
uma “ponte de transição” específica entre elas.

Assim, parte-se da ideia de Marcelo Neves para falar de pontos de tran-


sição entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, a partir do núcleo
comum entre todos e a Constituição Federal. O sistema constitucional ir-
radia efeitos que vinculam os três poderes e exige, para sua concretização,
um diálogo interinstitucional capaz de defesa efetiva dos direitos funda-
mentais e de afastamento das falhas estruturais, acaso existentes, no atuar
isolado de qualquer deles. O emprego da racionalidade transversal possui
ainda o mérito de conduzir à observação do espaço público de decisão
que, virtuosamente, une os poderes e autoridades competentes.

As hipóteses do estudo foram investigadas a partir de pesquisa bi-


bliográfica, recorrendo-se a um caso prático, o que colima na abordagem
teórico-empírica. Utilizou-se uma abordagem quantitativa e qualitativa,
voltada a aprofundar e compreender o debate sobre o assunto, median-
te observações intensivas dos fenômenos sociais. A pesquisa é descritiva
e exploratória, visto que conceitua, explica, descreve, interpreta, inova,
discute e esclarece os fatos.

A estrutura do texto encontra-se dividida em cinco sessões. Inicia-se


com notas introdutórias, seguidas de um capítulo, como exigência lógica,

Ir para o índice
217
nele apresentados o Estado de Coisas Inconstitucional transplantado da
Corte Constitucional Colombiana; no segundo, a interpretação análoga à
do Estado de Coisas Inconstitucional para o direito fundamental ao am-
biente. Encerra-se o estudo com as considerações finais, em que pese ao
melhor entendimento da autoria subscrita.

1 ESTADO DE COISAS INCONSTITUCONAL TRANSPLANTADO DA


CORTE CONSTITUCIONAL COLOMBIANA

Deve-se compreender, inicialmente, que o Estado de Coisas Inconsti-


tucional exige, para seu desfecho jurisdicional, um modelo de sentença
constitucional de clara matriz protagonista e, como tal, incorre no risco
de assumir alguma vertente ativista incompatível com a solução adequa-
da no Estado de Coisas Inconstitucional. Ademais, tendo em conta as
constantes e, muitas vezes, parciais ou infundadas críticas ao ativismo ju-
dicial, não o entendemos como aprioristicamente nocivo ou atentatório
aos valores democráticos ou violador do princípio da separação de pode-
res2. Portanto, dizer, por exemplo, que o Estado de Coisas Inconstitucio-
nal se verifica a partir de uma visão unilateral do julgador, dependente de
seu subjetivismo e vontade é desconhecer, no mínimo incompletamente,
o Estado de Coisas Inconstitucional.

O antecedente remoto do Estado de Coisas Inconstitucional, sem dúvi-


da, é o judicial review of legislation. Quando Marshall, então Chief Justice
da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, na célebre decisão em
Marbury x Madison, em 1803, consolidou a possibilidade de qualquer ór-

2 Uma exploração detida do que significa ativismo judicial, como o adotamos,


será exposta na segunda parte do texto. Entretanto, adiantamos a natureza multidimensio-
nal do mesmo em função dos variados contextos em que se desenvolve.

Ir para o índice
218
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

gão do Poder Judiciário afastar a aplicação de norma jurídica, no caso con-


creto, por considerá-la inconstitucional (comprometimento da dimensão
de validade), ficou elaborado, de uma vez por todas, o conhecido modelo
de controle de constitucionalidade das leis difuso, concreto e incidental.

Distantes de um consenso sobre a origem do judicial review, estudio-


sos apontam antecedentes desde a Grécia antiga. Outros, como Eduardo
García de Enterría (2006, p. 57 e ss.) e Lenio Luis Streck (2004, p. 306),
apontam o Bonham´s Case, julgado por Sir. Edward Coke, no início do
século XVII, como o primeiro a estabelecer as teses que seriam sistema-
tizadas em Marbury v. Madison3. Dada a amplitude da expressão judi-
cial review of legislation, utilizamos da Navalha de Ockham para fixar a
origem do Estado de Coisas Inconstitucional na conjugação dos Political
Question Doctrine, Structural Remedies e neoconstitucionalismo ideoló-
gico. E apontamos a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, de
1954, em Brown vs. Board of Education4, como a primeira decisão que
reestruturou o modelo de sentença constitucional até então possível, ao
interferir na estrutura do Estado Moderno.

Para os fins perseguidos neste texto, interessa-nos a origem mais


próxima do Estado de Coisas Inconstitucional: as sentencias da Corte
Constitucional Colombiana. Elaborado, enquanto decisão, pela Corte
Constitucional da Colômbia, possui a peculiaridade de proporcionar um
espaço público de diálogo entre os atores, pessoas jurídicas e autorida-

3 Uma referência no estudo minucioso da evolução do judicial review of legisla-


tion, com abordagem comparatista, é o trabalho de Francisco Fernández Segado (La evolu-
ción de la justicia constitucional. Madrid: Dikinson, 2013).
4 Reconheceu-se, na decisão, que as violações aos valores constitucionais provi-
nham, inclusive, das burocracias reinantes em tempo-espaço estatal e que se apresentam
como obstáculos à consumação de tais valores.

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219
des, direta ou indiretamente envolvidos com a proteção inexistente ou
deficiente de direitos fundamentais. Este fato nos conduz a uma breve
referência ao papel do Estado.

O Estado moderno nasce com a missão de proteção de direitos funda-


mentais, por meio de condutas negativas não violadoras de tais direitos,
bem como de promoção e realização do bem comum, além de realizar as
promessas de bem-estar5. Em acréscimo, as Revoluções dos Séculos XVII
e XVIII assumiram a promessa de limitação do poder político por meio do
mecanismo da separação de poderes e a exigência de asseguramento e
proteção dos direitos fundamentais. O conhecido art. 16 da Declaração
Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789
(Art. 16 – Toda a sociedade em que a garantia dos direitos não é assegu-
rada, nem a separação dos poderes determinada, não tem em absoluto
constituição), é indicador insofismável da teleologia estatal mencionada.

A insuficiência fática dos aparatos instrumentais da ideologia do Esta-


do Liberal como escudo dos direitos fundamentais ocasionou a eclosão
do Estado Social (welfare state) como consequência da industrialização
e dos problemas sociais. As políticas assistencialistas abarcando as áreas
de renda, habitação e previdência social, aliadas à prestação de serviços
públicos, patrocinaram uma contundente intervenção do Estado na área
econômica, de modo a regulamentar praticamente todas as atividades
produtivas e assegurar a geração de riquezas materiais objetivando a di-
minuição das desigualdades sociais.

5 No que pese a existência de várias teorias sobre o aparecimento do Estado


(muitos citam Nicolau Maquiavel como o primeiro a empregar a palavra Estado), entende-
mos que seu surgimento, com autonomia financeira, política, afastado da pessoalidade do
governante e como entidade abstrata, deu-se a partir da primeira metade do Século XVII.
(CREVEL, Martin van. Ascensão e declínio do estado. Tradução de Jussara Simões. São
Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 177 e ss.).

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220
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Na década de 70 do Século passado, este modelo de Estado entrou em


colapso em virtude da dificuldade de harmonizar crise fiscal e a prestação
de serviços públicos, notadamente os de natureza assistencial. A crise fi-
nanceira e de legitimidade do Welfare State foi decisiva para a alteração das
relações entre Estado e sociedade. Os efeitos mais nítidos desse desequi-
líbrio e que são relevantes à abordagem aqui desenvolvida, foram medo,
insegurança, risco securitário, pobreza, fome, desamparo, escassez, para
citar alguns, como decorrências da hipertrofia do Estado Providência. Pierre
Rosanvallon (1997, p. 8), em abordagem inovadora, defende que a crise do
Estado Providência não se restringiu a aspectos econômicos, mas também à
verdadeira crise social e política, sendo o maior desafio para sua superação
a busca de “novo contrato social entre indivíduos, grupos e classes”6.

Dessa forma, as democracias contemporâneas passaram a enfrentar


inúmeras questões de natureza político-social, ocasionando milhares de
demandas, que não são discutidas no âmbito das arenas majoritárias, ca-
bendo ao Poder Judiciário a responsabilidade de ofertar a prestação juris-
dicional adequada aos casos que se lhes são endereçados, sob pena de ne-
gativa de jurisdição. Assim, os representantes dos poderes Executivo e Le-
gislativo adotam uma postura passiva de autocontenção ante a polêmicas
de alto custo político. A transferência indevida (troca de sujeito) do debate
de demandas controvertidas do âmbito das arenas representativas para
o Poder Judiciário convencionou-se denominar Judicialização da Política.

6 A intensificação dos conflitos sociais, como resultado lógico da falência do Wel-


fare State, é observável, até mesmo, no âmbito penal com a propagação da ideologia da
“tolerância zero” contra os indivíduos que não se enquadram na categoria de consumidor,
nem conseguem acompanhar os avanços científico e tecnológicos. (Ver MORAIS, Jose Luis
Bolzan de; WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. A crise do welfare state e a hipertrofia do
estado penal. Sequência. Florianópolis, n. 66, jul. 2013, p. 161-186,

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221
A relevância do panorama rapidamente relatado verifica-se na amplia-
ção dos poderes judiciais, não constituindo exagero afirmar que se transfor-
mou em arena pública de deliberação ao lado do Legislativo e do Executivo e
sede de produção normativa7. Ideologias à parte, o protagonismo judicial no
processo de deliberação política é realidade no mundo globalizado e com-
plexo. As exigências acompanharam a onda de avanço científico e tecnológi-
co, além da consagração de novos direitos e modelos de conduta8.

Evidentemente, tais relações complexas, com características identifi-


cadoras dos litígios estruturais9, não devem receber o mesmo tratamen-
to metodológico presente no processo de matriz liberal-individualista. A
configuração dos fatos não coincide com o modelo triangular em cujos
vértices da base encontram-se as partes e no vértice superior o sujeito
processual que decidirá a demanda: o órgão judicial. Dizer que o juiz di-
rige a reconstrução das estruturas burocráticas já não causa “assombro”
a nenhum observador, mesmo de áreas diversas da do direito. Um novo
modelo de solução de controvérsias se instaurou.

7 No caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de


Injunção nº 712-PA, relator ministro Eros Grau, tomado como paradigma, fez constar da
Ementa: “4. Reconhecimento, por esta Corte, em diversas oportunidades, de omissão do
Congresso Nacional no que respeita ao dever, que lhe incumbe, de dar concreção ao pre-
ceito constitucional. Precedentes. 5. Diante de mora legislativa, cumpre ao Supremo Tri-
bunal Federal decidir no sentido de suprir omissão dessa ordem. Esta Corte não se presta,
quando se trate da apreciação de mandados de injunção, a emitir decisões desnutridas de
eficácia”. Inconteste a função normativa exercida pelo Tribunal neste caso.
8 Ver TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjörn (Ed.). The global expansion of judicial
power. Nova York: New York University Press, 1995.
9 Referimo-nos a litígios cuja solução transcende os interesses postos pelas partes
e expande o domínio territorial de atuação jurisdicional. Também conhecidos como casos
estruturais, coletivos, sistémicos, agregativos, de impacto, estratégicos, redistributivos, lití-
gios públicos, demandas de direitos de segunda e terceira geração ou como mero ativismo
judicial, não se limitam a regular as relações jurídicas entre as partes ao se afastar do mo-
delo de qualificação jurídica dos fatos. Antes de ser um fato empírico, aparece como fato
jurídico e como uma particular forma de atuação do Poder Judiciário. Trata-se, por fim, de
um conflito policêntrico oriundo de um complexo feixe de vínculos causais

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222
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Amadurecidas as premissas necessárias, e a título de conceito de Es-


tado de Coisas Inconstitucional, adotaremos o elaborado na Sentencia
T-025, de 200410, pela Corte Constitucional da Colômbia, segundo a qual

El ECI es una decisión judicial, por medio de la cual la


Corte Constitucional declara que hay una violación ma-
siva generalizada y sistemática de los derechos funda-
mentales es de tal magnitud, que configura una realidad
contraria a los principios fundantes de la Constitución
Nacional y estas situaciones pueden provenir de una
autoridad pública específica que vulnera de manera
constante los derechos fundamentales, o de un proble-
ma estructural que no solo compromete una autoridad
sino que incluye también la organización y el funciona-
miento del Estado, y que por tanto se puede calificar
como una política pública, de donde nace la violación
generalizada de los derechos fundamentales.

Em outra passagem da mesma decisão encontram-se os fatos que


caracterizam o Estado de Coisas Inconstitucional:

Dentro de los factores valorados por la Corte para definir


si existe un estado de cosas inconstitucional, cabe des-
tacar los siguientes: (i) la vulneración masiva y genera-
lizada de varios derechos constitucionales que afecta a
un número significativo de personas; (ii) la prolongada
omisión de las autoridades en el cumplimiento de sus
obligaciones para garantizar los derechos; (ii) la adopción

10 COLOMBIA. Corte Constitucional de Colombia. Sentencia T-025-2004. Disponí-


vel em: http://www. corteconstitucional.gov.co. Acesso em 28 nov. 2017.

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223
de prácticas inconstitucionales, como la incorporación de
la acción de tutela como parte del procedimiento para
garantizar el derecho conculcado; (iii) la no expedición
de medidas legislativas, administrativas o presupuestales
necesarias para evitar la vulneración de los derechos. (iv)
la existencia de un problema social cuya solución com-
promete la intervención de varias entidades, requiere
la adopción de un conjunto complejo y coordinado de
acciones y exige un nivel de recursos que demanda un
esfuerzo presupuestal adicional importante; (v) si todas
las personas afectadas por el mismo problema acudieran
a la acción de tutela para obtener la protección de sus
derechos, se produciría una mayor congestión judicial.

A Corte Constitucional Colombiana, dessa forma, construiu e delimitou o


que se deve entender por Estado de Coisas Inconstitucional. A ferramenta foi
gestada desde a década de noventa do século passado (Sentencia US.559-
-1997)11, o que implica reconhecer a paternidade dela à Corte colombiana.

Na visão de Peña (2011, p. 6)

El ECI es una figura enmarcada en la jurisprudencia pro-


gresista que la Corte Constitucional produce, en un con-
texto de grave desigualdad económico-social, y violacio-
nes sistemáticas y permanentes a los derechos humanos,
y al derecho internacional humanitario, en medio de un
largo y degradado conflicto armado interno.

11 A pendência envolvia quarenta e cinco professores dos municípios de María La


Baja e Zambrano cujos direitos previdenciários negados pelas autoridades municipais.

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224
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Como é de fácil percepção, o Estado de Coisas Inconstitucional não


brota de visão unilateral ou de caprichos metodológicos de julgadores
ativistas. A crise que se instaura em virtude dos bloqueios estruturais e
que impede a efetivação de direitos fundamentais próprios das conquistas
históricas do Estado Constitucional Democrático de Direito não autoriza
o alheamento do Judiciário sob o argumento de intervenções indevidas.

Para Clara Inés Vargas Hernandéz (2003, p. 205-206), a Corte Constitucio-


nal não deve permanecer em sua “Torre de Marfin”, distante da realidade so-
cial. O juiz constitucional possui compromisso ético de não permanecer iner-
te e indiferente diante de situações estruturais que se comunicam e violam
de maneira grave, permanente e contínua numerosos direitos fundamentais.

O Tribunal Constitucional Colombiano fez uso de sentenças estrutu-


rais para o afastamento de violações reiteradas e massivas a direitos fun-
damentais de presidiários e professores. Pedimos vênia para transcrever
parte de trabalho anterior12, no qual ficou assentado que,

No que pesem os cuidados e deferências aos demais po-


deres pela Corte Constitucional da Colômbia, o empre-
go do estado de coisas inconstitucionais no Brasil, pelo
STF, tem gerado inúmeras críticas. Artigo publicado no
Estadão de 19 de setembro de 2015, intitulado Estado
de Coisas Inconstitucionais13, os Professores Raffaele de

12 RODRIGUES, Francisco Lisboa. Direito comparado e transjusfundamentalidade


– o estado de coisas inconstitucional no STF. In: Diálogo Ambiental, Constitucional e In-
ternacional. MIRANDA, Jorge; GOMES, Carla Amado (Coord.); CAÚLA, Bleine Queiroz et al.
(Org.), v. 6, 2016, p. 429-448.
13 GIORGI, Raffaele de, FARIA, José Eduardo, CAMPILONGO, Celso. Estado de coisas
inconstitucional. Estadão. Edição de 19.09.2015. Disponível em: http://opiniao.estadao.com.
br/noticias/geral,estado-de-coisas-inconstitucional,10000000043. Acesso em 20 jan.2016.

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225
Giorgi, José Eduardo Faria e Celso Campilongo no qual
defendem que o ECI pode dificultar e ameaçar a efeti-
vidade da Constituição e dos direitos fundamentais. O
ilustre Professor Lenio Luiz Streck, na coluna do Conjur,
de 24 de setembro de 2015, escreveu no O que é preci-
so para (não) se conseguir um Habeas Corpus no Brasil14
que tem receio do ECI, pois “essa coisa” é fluída, genérica
e líquida. Por ela, tudo pode virar inconstitucionalidade.
Das doações em campanha ao sistema prisional (ADPF
347). Mas pergunto: o salário mínimo não faz parte desse
Estado de Coisas Inconstitucional?

Os fundamentos das críticas são conhecidos e se apro-


ximam, sensivelmente, da contrariedade ao ativismo ju-
dicial. Subjetivismo e arbítrio judicial (decido de acordo
com minha consciência), ilegitimidade democrática (os
juízes não são eleitos pelo voto popular) e irresponsa-
bilidade institucional de juízes e cortes (não há controle
institucionalizado das decisões do STF), violação à sepa-
ração de poderes (os poderes são independentes. Em-
bora harmônicos) e o eclipse da fronteira entre Direito e
Política (judicialização da política e politização do direito).

Reconhecidas a relevância e as esmeradas considerações


levantadas pelos Professores nas críticas acima referidas
sinteticamente, opõe-se que não há compatibilidade
entre os fatos descritos como ECI pelos autores e o ECI
que desenvolve a Corte Constitucional de Colombia. Ade-

14 STRECK, Lenio Luiz. O que é preciso para (não) se conseguir um Habeas Corpus
no Brasil. Conjur. Edição de 24.09.2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-
-set-24/senso-incomum-preciso-nao-obter-hc-brasil. Acesso em 20 jan.2016.

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226
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

mais, na liminar concedida na ADPF n. 347-DF, o Ministro


Marco Aurélio afasta, de modo rápido e em lúcida passa-
gem, as críticas delineadas:

Nada do que foi afirmado autoriza, todavia, o Supremo a


substituir-se ao Legislativo e ao Executivo na consecução de
tarefas próprias. O Tribunal deve superar bloqueios políti-
cos e institucionais sem afastar esses Poderes dos processos
de formulação e implementação das soluções necessárias.
Deve agir em diálogo com os outros Poderes e com a socie-
dade. Cabe ao Supremo catalisar ações e políticas públicas,
coordenar a atuação dos órgãos do Estado na adoção des-
sas medidas e monitorar a eficiência das soluções.

Não lhe incumbe, no entanto, definir o conteúdo próprio


dessas políticas, os detalhes dos meios a serem empre-
gados. Em vez de desprezar as capacidades institucionais
dos outros Poderes, deve coordená-las, a fim de afastar
o estado de inércia e deficiência estatal permanente.
Não se trata de substituição aos demais Poderes, e sim
de oferecimento de incentivos, parâmetros e objetivos
indispensáveis à atuação de cada qual, deixando-lhes o
estabelecimento das minúcias. Há de se alcançar o equi-
líbrio entre respostas efetivas às violações de direitos e as
limitações institucionais reveladas na Carta da República.

O Supremo Tribunal Federal ratifica a tendência, observada ao longo


dos anos, da sua atuação, qual seja, dialogar com outras Cortes Constitucio-
nais no intuito de apresentar decisões que respondam, satisfatoriamente,
às complexas demandas que são apresentadas para julgamento. O Estado
de Coisas Inconstitucional constitui, num oceano de decisões, uma gotícula
representativa do diálogo transnacional. Destacando a realidade das falhas

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227
estruturais, ele se apresenta como fundamento de sentenças estruturais
aptas a promover diálogo entre os Poderes da República, com o fito de afas-
tar violações a direitos fundamentais e promover sua efetivação.

2 INTERPRETAÇÃO ANÁLOGA À DO ESTADO DE COISAS INCONSTI-


TUCIONAL PARA O DIREITO FUNDAMENTAL AO AMBIENTE

O estudo traz uma interpretação análoga à do Estado de Coisas In-


constitucional para o direito fundamental ao ambiente ante as falhas do
Estado brasileiro no comando constitucional de defensor e protetor do
meio ambiente – prvenir e controlar as violações generalizadas e estrutu-
rais do direito fundamental ao meio ambiente sadio e equilibrado.

A sentença constitucional fundamentada no Estado de Coisas Incons-


titucional e os efeitos da sentença são estendidos extraordinariamente,
segundo Peña (2016, p. 7), “para proteger directamente a todo un con-
junto de personas, e indirectamente a toda la sociedad, que se considera
potencialmente en peligro mientras subsista esta realidad contraria a la
Constitución”.

Nessa senda, a Corte Constitucional, guardiã da integridade e supre-


macia da Constituição, ordena salvar determinada situação por meio de
ações imediatas, e não progressivas; estrutural, e não conjuntural; e de
longo prazo. Sua aplicação deve ocorrer quando as ações só podem ser
resolvidas no âmbito de uma política de Estado e envolver toda a institu-
cionalidade para resolver a anormalidade.

A inquietação que motivou a investigação do tema surge a partir da


(in)efetividade das normas ambientais, principalmente pelo Poder Exe-
cutivo, mas não exclusivamente. Instrumentos de gestão ambiental pú-

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228
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

blica – preventivos contra danos ambientais – como a Agenda 21 Local e


Sistema de Gestão Ambiental (SGA), não adotados ainda pela Administra-
ção Pública da maioria dos municípios brasileiros15. Saneamento básico16,
poluição, pobreza energética, lixões17 e transportes públicos constituem
graves problemas que motivam a rediscussão da harmonia e indepen-
dência dos Poderes da República, de modo que a segurança jurídica da
Constituição, em especial a efetividade dos direitos fundamentais, seja
blindada. A inobservância ao grave quadro constituído pela violação dos
direitos fundamentais – calamidade pública, sobrevida, insalubridade, si-
tuações inferiores ao mínimo existencial para uma vida digna – instiga o
Poder Judiciário a atuar como corretor.

Na prática processual, os operados do Direito permanecem resistentes


à interdisciplinaridade dos problemas ambientais e a premente existência
dos riscos que as atividades produzem, agravados pela irreversibilidade
dos danos. Gestão pública ambiental indubitavelmente não se sustenta
apenas nas leis. Áreas como Antropologia, Administração, Engenharia e
Arquitetura atuam diretamente na gestão da Administração Pública.

15 Ver Caúla (2012).


16 Trata Brasil. Saneamento é saúde. Situação saneamento no Brasil. Sistema Nacio-
nal de Informações sobre Saneamento (SNIS 2015). Fonte: Estudo Trata Brasil “Ranking do
Saneamento – 2015”. Tratamento esgoto: 42,67% dos esgotos do país são tratados. Percen-
tual por região brasileira: Norte: apenas 16,42% do esgoto são tratados, e o índice de atendi-
mento total é de 8,66%. A pior situação entre todas as regiões. Nordeste: apenas 32,11% do
esgoto são tratados. Sudeste: 47,39% do esgoto são tratados. O índice de atendimento total
de esgoto é de 77,23%. Sul: 41,43% do esgoto são tratados, e o índice de atendimento total
é de 41,02%. Centro-Oeste: 50,22% do esgoto são tratados. A região com melhor desempe-
nho, porém a média de esgoto tratado não atinge nem a metade da população. Disponível:
˂http://www.tratabrasil.org.br/saneamento-no-brasil˃. Acesso em 29 nov. 2017.
17 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ano referência
2013, apontam que 34 municípios cearenses (com + de 20 mil habitantes) num total de 184,
não possuem Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos. No contexto atual, de 2017,
não se sabe a realidade desse quadro. Disponível: ˂ http://www.sinir.gov.br/web/guest/2.5-
-planos-municipais-de-gestao-integrada-de-residuos-solidos˃. Acesso em 29 nov. 2017.

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229
De outro modo, instrumentos legais como processo de licitação (Lei
n° 8.666, de 1993) e o procedimento administrativo de licenciamento
ambiental não conseguiram ainda reduzir problemas ambientais como
o das escolhas ineficientes relacionadas às obras públicas em desacordo
com os parâmetros e limites ambientais.

O debate sobre o Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) aplicável ao


meio ambiente nasce a partir da inobservância do poder público aos gra-
ves crimes ambientais e suas reais consequências para a coletividade – real
afrontamento ao direito fundamental ao meio ambiente sadio e equilibra-
do para a presente e às futuras gerações cujas consequências são difusas.
Princípios como o da Prevenção e o da Responsabilidade são preteridos
pelo desafio dos riscos presumidos das principais atividades impactantes.

O transplante do Estado de Coisas Inconstitucional para o direito funda-


mental ao ambiente é uma excepcionalidade para corrigir uma omissão (dei-
xar de fazer o que está obrigado) ou negligência do Estado (causar o dano
ou facilitar) nas suas funções precípuas e no poder fiscalizatório. Oportuno
que o Poder Judiciário atue como o protagonista da medida coercitiva que
restabeleça a segurança jurídica e a efetividade da norma constitucional. A
Constituição, ao preceituar a harmonia entre os Poderes, conduz ao diálogo
de correção. Dito de outra maneira, quando um dos poderes não atinge a
máxima responsabilidade a ele inerente caberá uma correção-comando-
-tarefa que o obrigue a cumpri-la na sua integralidade. A independência dos
Poderes não significa blindagem de eximi-lo de um comando de correção18
– obrigação de executar suas responsabilidades constitucionais.

18 Supremo Tribunal Federal julgou, em 29/11/2107, a Ação Direta de Inconstitucio-


nalidade nº 3.937, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI),
contra a Lei nº 12.687, de 2007, do Estado de São Paulo, e proíbe a extração, comercialização
de amianto crisotila na construção civil no Brasil. O produto já é proibido nos países da Europa
devido aos malefícios provocados à saúde e ao meio ambiente. Disponível em: http://www.stf.
jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=353599. Acesso em 30 nov. 2017.

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230
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

2.1 A contaminação por chumbo em Santo Amaro, na Bahia, e o


rompimento da barragem do Fundão com 35 bilhões de litros de rejei-
tos de minério – Minas Gerais

Os estados da Bahia e de Minas Gerais registram dois graves crimes


que abrem precedentes pela falta de gestão ambiental pública no Brasil e
a necessária aplicação de correção pelo Poder Judiciário. A contaminação
por chumbo em Santo Amaro (Bahia, 1960) e o rompimento da barragem
do Fundão com 35 bilhões de litros de rejeitos de minério (Minas Gerais,
2015) são exemplos de que o Poder Executivo não garante o cumprimen-
to das políticas ambientais impostas pela Constituição Federal, leis fede-
rais, estaduais e municipais, no âmbito de suas competências legislativas.

2.1.1 Santo Amado da Purificação

A Plumbum Mineração e Metalurgia, anteriormente chamada de Com-


panhia Brasileira de Chumbo (COBRAC), funcionou durante 33 anos na ci-
dade de Santo Amaro da Purificação, na Bahia, na produção de ligas de
chumbo, utilizando processo metalúrgico que resultou no lançamento, na
atmosfera, de subprodutos que, segundo ensaios realizados, conforme a
NBR10.004, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), os metais
pesados chumbo (Pb) e cádmio (Cd) são considerados resíduos perigosos
e altamente tóxicos. A escória foi utilizada para o calçamento da cidade,
construção de muros e jardins nas residências de Santo Amaro19.

A empresa, após promover graves danos ambientais irreversíveis,


como a contaminação de chumbo e descarte inadequado, poluição e
o óbito de várias vítimas, foi desativada em 1993. O Ministério Público

19 A COBRAC produzia ligas de chumbo, a partir do minério de chumbo das minas de


Boquira. Disponível em http://sopadechumbo.blogspot.com.br/. Acesso em 30 nov. 2017.

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231
Federal (MPF), na Bahia, ajuizou uma Ação Civil Pública (Processo nº
2003.33.00.000238-4/ Justiça Federal na Bahia) contra a União, a Plum-
bum Mineração e Metalurgia e a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA).
A sentença resultou na condenação da empresa a pagar 10% do fatura-
mento bruto, de 1989 a 1993, às indenizações; a União e a Funasa foram
condenadas a criar um centro de referências para atendimento das víti-
mas de contaminação. Conforme divulgado no site do Ministério Público
Federal da Bahia, “o município de Santo Amaro é o mais contaminado
por chumbo no mundo” 20.

Existe, ainda, cerca de 500 toneladas enterradas nas proximidades


da empresa e uma imensa quantidade de lixo tóxico encoberto por ino-
centes cultivos, como bananeiras e mandiocas, que servem de alimento
tanto à população local como para exportação para outras regiões, até
mesmo para a capital Salvador21. Das 3.500 pessoas que trabalham na
fábrica, 948 já morreram.

Importa destacar que o Estado de Coisas Inconstitucional pode ser o re-


médio preventivo para a má gestão administrativa pública ambiental. Medi-
das cautelares poderão inibir a continuidade da negligência do poder público.

2.1.2 Barragem do Fundão em Mariana

A empresa Samarco causou um dos mais graves crimes ambientais no


Brasil e danos de improvável recuperação, em 2015. Crimes ambientais ocor-
ridos nos anos anteriores não inibiram as empresas e os governos federal e
estaduais a colocarem na pauta política a prevenção de danos ambientais.

20 Disponível em: https://uc.socioambiental.org/en/noticia/dia-mundial-do-


-meio-ambiente-confira-atuacoes-do-mpfba. Acesso em 30 nov. 2017.
21 Disponível em http://sopadechumbo.blogspot.com.br/. Acesso em 30 nov. 2017.

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232
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A barragem do Fundão, rompida na tarde de 5 de novembro de 2015,


despejou rejeitos de minérios de ferro da mineradora Samarco, chegan-
do ao litoral do Espírito Santo. As sequelas ambientais, sociais e econômi-
cas são incomensuráveis. A gestão ambiental pública se mostra inexisten-
te. Pagamentos de propinas, burocracia no processo de licenciamento
de atividades empresariais, improbidade administrativa, vulnerabilidade
da sociedade no empoderamento dos deveres ambientais insculpidos na
Constituição e na Lei de Educação Ambiental (Lei nº 9.795, de 1999)22 são
realidades que desafiam a segurança ambiental.

Na visão de Caúla, Martins e Tôrres (2016, p. 86)23 “O tema suscita até


o controle de convencionalidade para restabelecer os Direitos Humanos,
umbilicalmente vinculados ao ambiente sadio e ecologicamente equili-
brado”. Entrementes, a atividade mineradora deve ser conduzida pela
prevenção de qualquer situação de anormalidade.

Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis


(IBAMA) divulgou que foram constatados os danos econômicos e sociais.
O laudo extraído revela que 82% do distrito de Bento Rodrigues foi des-
truído pela lama e estendeu-se para os estados da Bahia e de Santa Cata-
rina (CAÚLA, MARTIS, TÔRRES, 2016, p.92).

Os instrumentos de tutela – ação civil pública, ação popular, manda-


do de segurança – não são suficientes para restabelecer o meio ambiente

22 Ver pesquisa com 880 professores de escolas públicas sobre a eficácia social da
Lei de Educação Ambiental. CAÚLA, Bleine Queiroz. A lacuna entre o direito e a gestão do
ambiente: os 20 anos de melodia das agendas 21 locais, 2012.
23 CAÚLA, Bleine Queiroz; MARTINS, Dayse Braga; TÔRRES, Lorena Grangeiro de
Lucena. Mineração, desenvolvimento econômico e sustentabilidade ambiental: a tragédia
de Mariana como parâmetro de incerteza. In: MIRANDA, Jorge; GOMES, Carla Amado (Co-
ord.); CAÚLA, Bleine Queiroz et al (Org.). Diálogo Ambiental, Constitucional e Internacional.
Vol 6, 2016, p. 86.

Ir para o índice
233
atingido. No entanto, o Poder Judiciário pode utilizar-se da ferramenta
do Estado de Coisas Inconstitucional para reforçar o comprometimen-
to e esforços dos governos locais (estados e municípios) na prossecução
de suas funções. No caso Mariana versus Samarco, que sejam investidos
valores do Fundo Nacional e Estadual de Meio Ambiente para o restabe-
lecimento do ambiente e da qualidade de vida da população local. Os da-
nos não podem esperar a tramitação dos processos ajuizados. Os entes
federativos e órgãos ambientais respondem proporcionalmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) constitui, num oceano de


decisões, uma gotícula representativa do diálogo transnacional. Por se
tratar de um instrumento de controle, melhor dizendo, um ativismo es-
trutural para forçar o Poder Executivo a adimplir nas funções constitu-
cionalmente a ele atribuídas, causa turbulência na doutrina do direito
constitucional, sendo ainda escassa a doutrina brasileira sobre o tema.

A origem do Estado de Coisas Inconstitucional demonstra ser ele o


instrumento adequado para afastar e superar litígios estruturais advin-
dos de falhas administrativas e/ou legislativas que violam direitos funda-
mentais. A construção jurisprudencial não foi repentina ou de ocasião.
Como visto, a Corte Constitucional Colombiana, desde a década de1990,
do século passado, trabalha com a elaboração da sentença constitucional
que ficou conhecida como Estado de Coisas Inconstitucional.

No Brasil, o tema veio ao debate na ADPF nº 347-MC/DF, proposta


pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), cujo julgamento se deu em
9/9/2015, firmando o entendimento de que o sistema carcerário brasi-

Ir para o índice
234
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

leiro possui falhas estruturais graves e que tal estado de coisas ocasiona
reiteradas e massivas violações de direitos fundamentais.

A expansão dos poderes do Judiciário, longe de caracterizar desar-


monia ou desnivelamento democrático em relação aos demais Poderes,
abre nova frente de solução para problemas estruturais que acometem
as sociedades do Século XXI. Concluir dessa forma não significa abonar
decisões abusivas ou flagrantemente desrespeitosas à separação de po-
deres, porque não há substituição entre poderes estatais constituídos.

No caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal decidiu alguns pedi-


dos liminares constantes na ADPF nº 347-MC/DF sem que houvesse inge-
rência nas atividades dos outros poderes ou submissão arbitrária destes
às decisões desta Corte Suprema. A harmonia e a independência dos três
Poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário) não podem sobrepor-se aos
deveres do Estado no tocante à efetividade dos direitos fundamentais.

Entrementes, a defesa de uma interpretação análoga à do julgamento


parcial da ADPF nº 347-MC/DF (Sistema Penitenciário Nacional – direitos
humanos da população carcerária brasileira) ao direito fundamental do
ambiente – tem assento no descaso do Estado ao mandamento consti-
tucional insculpido no artigo 225 da Constituição Federal, de 1988, e a
vasta legislação infraconstitucional (federal e estadual) de proteção am-
biental. O artigo abordou dois gravíssimos crimes ambientais ocorridos
no Brasil – Santo Amaro da Purificação (1960) e Mariana (2015) –, por
força de fatores diversos (negligência estatal, falta de gestão pública am-
biental, corrupção envolvendo licenciamento e licenças ambientais, im-
probidade administrativa, descumprimento das empresas à vinculação
aos direitos fundamentais), podendo configurar uma anormalidade que
deve ser corrigida pelo Judiciário – sentença judicial – para restabelecer
a garantia dos direitos fundamentais constitucionais.

Ir para o índice
235
É prudente um olhar atento sobre o Estado de Coisas Inconstitucio-
nal no controle da efetividade da gestão pública ambiental. Temas como
Ativismo Judicial, Políticas de Governo e Supremacia da Constituição es-
tão umbilicalmente entrelaçados.

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ção ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá
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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

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238
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Novamente os problemas
do acesso a medicamentos
em Portugal suscitados pelo
Tribunal Unificado de Patentes 1
Again, the problems of access to
medicines in portugal raised by
the Unified Patent Court

AQUILINO PAULO ANTUNES

N1

RESUMO

O Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes, já ratificado


por Portugal, tem implicações desvantajosas para o acesso a medica-
mentos a custos comportáveis e para a sustentabilidade do Serviço
Nacional de Saúde.

1 O presente trabalho corresponde a uma revisão e actualização do texto sobre


o mesmo tema publicado na obra Estudos de Direito Intelectual em homenagem ao Prof.
Doutor José de Oliveira Ascensão. 50 anos de vida universitária, Associação Portuguesa de
Direito Intelectual e E-Pública, Revista Electrónica de Direito Público, nº 5, Número Especial,
2015. O mesmo trabalho serviu de guião à palestra proferida pelo signatário no IX Diálogo
Ambiental, Constitucional e Internacional, em 4 de outubro de 2016, na Faculdade de Di-
reito da Universidade de Lisboa.

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239
Palavras-chave: Patentes. TRIPS. Tribunal Unificado. Lei nº 62, de
2011. Arbitragem Necessária.

ABSTRACT

The agreement on the Unified Patent Court, already ratified by Portu-


gal, has disadvantageous implications for access to affordable medicines
and for the sustainability of the National Health Service.

Keywords: Patents. TRIPS. Unified Court. Law nº. 62/2011. Compul-


sory arbitration.

INTRODUÇÃO

Foi assinado, em 19 de fevereiro de 2013, por 25 Estados-Membros


da União Europeia, o Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes
(TUP). O Acordo relativo ao TUP só entra em vigor após a sua ratificação
por, pelo menos, 13 Estados-Membros Contratantes, nos quais deverão
incluir-se a Alemanha, a França e o Reino Unido2.

O mesmo Acordo, além de atribuir competência exclusiva ao TUP


para julgar processos de litígios relacionados com patentes europeias e
patentes europeias de efeito unitário, bem como as regras de proces-
so da tramitação dessas acções, consagra também alguns aspectos de

2 Cfr. último Considerando do Acordo.

Ir para o índice
240
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

direito material referentes às mesmas patentes e Certificados Comple-


mentares de Protecção (CCP)3.

Tal como se demonstra neste trabalho, o Acordo relativo ao Tribu-


nal Unificado de Patentes apresenta implicações desvantajosas para o
acesso a medicamentos a custos comportáveis e para a sustentabilidade
do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Estas implicações resultam, por um
lado, da consagração no Acordo de algumas regras de direito material
que limitam a liberdade de conformação legislativa por parte dos Esta-
dos-Membros Contratantes em matéria de patentes e Certificados Com-
plementares de Protecção, e dos direitos por eles conferidos; por outro,
do facto de serem estabelecidas a competência exclusiva do Tribunal
Unificado de Patentes e regras processuais próprias, com a consequente
postergação do tribunal arbitral necessário e das regras processuais pre-
vistos na Lei nº 62, de 2011, de 12 de dezembro, para os casos abrangi-
dos pelo mesmo Acordo.

Está neste momento em curso o processo de ratificação do Acordo


em causa. As desvantagens para o acesso a medicamentos, advenientes
da aplicação do Acordo, superam as vantagens dela resultantes, aten-
dendo à relevância em Portugal das patentes farmacêuticas no mercado
total das patentes europeias e nas patentes europeias de efeito unitário4.

3 Nos termos da alínea f) do artigo 2º do Acordo, as patentes europeias de efei-


to unitário são aquelas que, tendo sido concedidas nos termos da Convenção da Patente
Europeia, gozem de efeito unitário nos termos do Regulamento (UE) nº 1.257, de 2012. As
referidas patentes proporcionam protecção uniforme e produzem os mesmos efeitos em
todos os Estados participantes (nº 2 do artigo 3º do citado Regulamento).
4 Em sede de processo de ratificação pela Assembleia da República, igualmente
se pronunciaram desfavoravelmente o Senhor Professor Doutor Rui Medeiros, a Associação
Portuguesa dos Consultores em Propriedade Intelectual, a Associação Internacional para a
Proteção da Propriedade Intelectual e a Confederação Empresarial de Portugal.

Ir para o índice
241
A eventual entrada em vigor do Acordo relativo ao Tribunal Unificado
de Patentes constituirá um rude golpe para o acesso dos medicamentos
genéricos ao mercado em Portugal, com os consequentes custos para os
utentes e para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde.

Não abordaremos aqui a natureza jurídica deste Acordo nem aquela


que será a sua relação, designadamente hierárquica, com o direito da
União Europeia. Parece, no entanto, que, no mínimo, se tratará de um
instrumento de direito internacional, pelo facto de ser subscrito por um
conjunto de Estados soberanos.

1 BREVE DESCRIÇÃO DO ACORDO RELATIVO AO TRIBUNAL UNIFI-


CADO DE PATENTES

Passamos, de seguida, a uma breve descrição do Acordo relativo ao


Tribunal Unificado de Patentes. Este é, pelo menos, um acordo de direito
internacional outorgado por 25 dos 28 Estados-Membros da União Euro-
peia5; não o outorgaram a Espanha, a Polónia e a Croácia.

Como se referiu, o citado Acordo só entra em vigor após a sua ratificação


por, pelo menos, 13 Estados-Membros Contratantes, nos quais deverão in-
cluir-se a Alemanha, a França e o Reino Unido6, decorrendo neste momento

5 Dizemos “pelo menos”, porque a relação do Acordo em apreço com o direito da


União Europeia não resulta clara dos seus Considerandos. Além disso e como se verá adiante,
algumas disposições do Acordo são desconformes com o direito vigente na União Europeia.
Por isso subsiste a dúvida de saber qual a vontade dos Estados participantes, pois se esta fosse
no sentido da conformação, não se teriam registados tais disparidades. No sentido de que o
Acordo configura um tratado internacional, cfr. Muller-Stoy, T. & R. Teschemacher (2016).
6 Eram os três Estados-Membros da União Europeia com maior número de
patentes europeias vigentes em 2012.

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242
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

esse processo de ratificação. Actualmente, a ratificação foi apenas formali-


zada por 11 Estados participantes, entre os quais a França7. Portugal ratifi-
cou o Acordo em 28 de agosto de 2015, sendo que o Parecer emitido pela
Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, elaborado
previamente à ratificação pela Assembleia da República, é totalmente omis-
so quanto ao impacto do Acordo ratificando no que respeita aos litígios com
patentes farmacêuticas. De resto, o referido Parecer centra-se na questão da
existência, ou não, de pedidos de patentes abrangidas pelo Acordo, olvidan-
do outros impactos, como o que estamos a analisar.

Interligadas com a entrada em vigor do Acordo relativo ao Tribunal


Unificado de Patentes, estão ainda alguns regulamentos da União Euro-
peia, como sejam:

a) O Regulamento (UE) nº 1.215, de 2012, do Parlamento


Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012,
relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e
à execução de decisões em matéria civil e comercial;

b) O Regulamento (UE) nº 1.257, de 2012, do Parlamento


Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2012, que
regulamenta a cooperação reforçada no domínio da cria-
ção da proteção unitária de patentes;

c) O Regulamento (UE) nº 1.260, de 2012, do Parlamento


Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2012,
que regulamenta a cooperação reforçada no domínio

7 Julga-se que a saída do Reino Unido da União Europeia poderá determinar


adaptações ao Acordo, em particular, ao seu regime de entrada em vigor. Sobre o tema, cfr.
Muller-Stoy, T. & R. Teschemacher (2016) e Silva, P.S. (2014), 287.

Ir para o índice
243
da criação da proteção unitária de patentes no que diz
respeito ao regime de tradução aplicável.

De seguida, enunciaremos os objectivos visados pelo Acordo relativo


ao Tribunal Unificado de Patentes, bem como os principais traços do regi-
me por ele consagrado, nas vertentes de direito substantivo e de direito
adjectivo, na parte que interessa para a presente análise8.

1.1. Objectivos

Tal como decorre dos considerandos do Acordo, este tem por objec-
tivos, entre outros: (i) melhorar o respeito pelas patentes; (ii) melhorar
a defesa contra reivindicações infundadas e patentes que deveriam ser
extintas; e (iii) aumentar a segurança jurídica. O referidos objectivos se-
riam, no entender dos subscritores, atingidos pela criação do Tribunal
Unificado de Patentes, destinado a compor litígios relacionados com a
violação e a validade das patentes.

Os problemas que com esta medida se pretende resolver são: (i) as


dificuldades decorrentes da actual necessidade de recurso aos vários tri-
bunais nacionais para discussão da violação ou validade das patentes,
como sejam, os custos, a divergência de decisões e a incerteza jurídica;
(ii) a prática da escolha do tribunal mais conveniente aos interesses do
demandante, baseada na vantagem decorrente das divergências de in-
terpretação do direito harmonizado e do direito processual, bem como
na maior ou menor celeridade processual dos tribunais, consoante o de-
mandante pretenda uma mais célere ou mais demorada decisão do plei-
to, ou nos montantes indenizatórios fixados nas várias ordens jurídicas.

8 Para maiores desenvolvimentos sobre o TUP, cfr. Silva, P.S. (2014).

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244
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

1.2. Principais traços do regime

Vejamos agora os principais traços do regime definido no Acordo re-


lativo ao Tribunal Unificado de Patentes, relevantes para a apreciação
que nos propomos fazer.

No quadro do direito substantivo, o artigo 25º do Acordo relativo ao


Tribunal Unificado de Patentes prevê que as patentes europeias de efeito
unitário previstas no Regulamento (UE) nº 1.257, de 2012, “conferem ao
seu titular o direito de impedir a terceiros que não tenham o seu con-
sentimento [o] fabrico (...) e a utilização do produto objeto da patente,
bem como (...) a sua detenção em depósito para esses fins” e também
“[a] oferta (...) ou a detenção em depósito para esses fins, de produtos
obtidos diretamente pelo processo objeto da patente” [cfr. alíneas a) e
c)]. No fundo, os indicados preceitos proíbem a armazenagem do produ-
to na vigência da patente ou do certificado complementar de protecção.

Por seu turno, as alíneas b), d) e e) do artigo 27º do mesmo Acordo,


estabelecem que “[o]s direitos conferidos pela patente não abrangem
[o]s atos praticados para fins experimentais relacionados com o objeto
da invenção patenteada; [o]s atos praticados unicamente a fim de efe-
tuar os estudos, testes e ensaios previstos (...) no artigo 10º, nº 6, da
Diretiva 2001/83/CE, no que diz respeito a qualquer patente que abran-
ja o produto” na acepção desta Diretiva; “[a] preparação ocasional de
medicamentos em farmácias, para casos individuais, mediante receita
médica, ou atos relativos a medicamentos assim preparados”. Os citados
preceitos consagram excepções aos direitos conferidos pelas patentes,
quando se trate de actividade experimental, quando se trate dos ensaios
pré-clínicos, clínicos e toxicológicos necessários à obtenção de uma au-
torização de introdução no mercado de um medicamento ou quando se

Ir para o índice
245
trate da preparação de medicamentos manipulados – preparados ofici-
nais ou fórmulas magistrais – por parte de uma farmácia.

O artigo 29º do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes


estabelece que

[o]s direitos conferidos pela patente europeia não são exten-


sivos aos atos respeitantes ao produto coberto por essa pa-
tente após a colocação desse produto no mercado da União
pelo titular da patente ou com o seu consentimento [...].

Trata-se do esgotamento, de âmbito regional, dos direitos conferidos


pela patente europeia9.

Por último, o artigo 30º do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de


Patentes estabelece que “[o]s certificados complementares de proteção
conferem os mesmos direitos que os conferidos pelas patentes e são sujei-
tos às mesmas limitações e obrigações”. No essencial, este artigo reproduz
o estabelecido no artigo 5º do Regulamento (CE) nº 469, de 2009, relativo
ao certificado complementar de protecção para os medicamentos.

Note-se, no entanto, que actualmente o âmbito regional vigente na


União Europeia e em Portugal, respectivamente nos artigos 102º do Tra-
tado sobre o Funcionamento da União Europeia e 103º do Código da
Propriedade Industrial, abrange o mercado interno, ou seja, o Espaço
Económico Europeu. Por isso, o Acordo relativo ao Tribunal Unificado de
Patentes, ao prever o esgotamento apenas no mercado da União Euro-
peia, acaba por restringir o actual âmbito regional do esgotamento do
direito. Este facto dificulta as importações paralelas de medicamentos.

9 Para maiores desenvolvimentos sobre o tema, cfr. Antunes, A.P. (2012), 161
e ss; Silva, P.S. (1996) e Silva, P.S. (2000).

Ir para o índice
246
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

No quadro do direito adjectivo, o Acordo relativo ao Tribunal Uni-


ficado de Patentes consagra no nº 1 do seu artigo 32º a competência
exclusiva do mesmo Tribunal para um conjunto de acções relacionadas
com patentes europeias, ou patentes europeias de efeito unitário, e cer-
tificados complementares de protecção, como sejam as que assentem
em violação ou ameaça de violação; as de simples apreciação negativa;
os procedimentos cautelares; as de extinção de patentes e de declaração
de nulidade dos certificados, bem como os pedidos reconvencionais; de
responsabilidade civil por violação ou por protecção provisória, etc. O nº
2 do mesmo artigo consagra, em termos meramente residuais, a compe-
tência dos tribunais nacionais para julgarem as acções “que não sejam da
competência exclusiva do Tribunal”.

Ademais, o Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes prevê,


na sua Parte III (artigos 40º e seguintes), as disposições de organização
do Tribunal e de tramitação processual. Isto é, o Acordo prevê o processo
próprio a observar pelo Tribunal na tramitação das acções e procedimen-
tos perante ele intentados.

2 DOS ASPECTOS PREJUDICIAIS PARA O ACESSO A MEDICAMENTOS


EM PORTUGAL

Como demonstraremos de seguida, o Acordo relativo ao Tribunal


Unificado de Patentes apresenta, no seu âmbito de aplicação, aspectos
que são prejudiciais para o acesso a medicamentos a custos comportá-
veis, em Portugal.

Antes de mais, recorde-se, de um modo muito simplista e incom-


pleto, que a matéria dos direitos de propriedade industrial relativos a

Ir para o índice
247
medicamentos, para além de diversos instrumentos específicos, como
sejam as Convenções da União de Paris e da Patente Europeia, encontra-
-se essencialmente consagrada nos seguintes instrumentos, que agora
enunciamos por se tornarem relevantes para a presente apreciação: o
Acordo ADPIC/TRIPS10; a Declaração de Doha, de 14 de novembro de
2001, relativa ao Acordo TRIPS e à Saúde Pública11; o Regulamento (CE)
nº 469, de 2009, relativo aos certificados complementares de protecção
de medicamentos, e o Código da Propriedade Industrial.

Recorde-se igualmente que uma parte significativa dos litígios em


Portugal relacionados com medicamentos e direitos de propriedade in-
dustrial respeitam a patentes europeias.

2.1 Considerações introdutórias

Os preceitos acima indicados do Acordo relativo ao Tribunal Unifica-


do de Patentes são, sob o ponto de vista do acesso a medicamentos a
custos comportáveis, susceptíveis de críticas. Em primeiro lugar, porque
procedem à rigidificação das liberdades de conformação conferidas pelo
Acordo ADPIC/TRIPS.

Em segundo lugar e interligado com o anterior, porque, nalguns casos,


os mesmos preceitos conduzem a um retrocesso do regime que actual-
mente vigora na União Europeia e em Portugal, no que respeita ao regime
da obtenção das autorizações administrativas – de introdução no mercado,
de autorização de preço de venda ao público e de comparticipação pelo
Estado – por recriarem condições aptas ao bloqueio, pelos titulares de di-
reitos de propriedade industrial, da obtenção dessas autorizações.

10 Cfr. infra nº 3.2.


11 Cfr. infra nº 3.2.

Ir para o índice
248
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Estes dois primeiros aspectos serão mais adiante abordados con-


juntamente.

Em terceiro lugar, porque, no que respeita às patentes europeias e


patentes europeias de efeito unitário, contendem com o regime de com-
posição de litígios instituído em Portugal com a Lei nº 62, de 2011, de 12
de dezembro, que tem estado a permitir a obtenção de decisões com
o valor de sentença de mérito produzidas num curto espaço de tempo.

Veremos esses aspectos com mais detalhes. Mas, antes de mais, con-
cretizaremos melhor o que entendemos por liberdades de conformação
conferidas pelo Acordo ADPIC/TRIPS.

2.2 As liberdades de conformação conferidas pelo Acordo ADPIC/TRIPS

O Tratado que criou a Organização Mundial do Comércio (Tratado da


OMC), celebrado em Marraquexe na sequência do Uruguay Round e em
vigor em Portugal desde 1º de janeiro de 1995, tem por objectivo, entre
outros, reforçar os direitos de propriedade intelectual relacionados com
o comércio12.

Do Anexo IC ao Tratado da Organização Mundial do Comércio cons-


ta o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual
relacionados com o Comércio (Acordo ADPIC/TRIPS), que consagra as
normas de reforço dos mencionados direitos de propriedade intelectual.

Posteriormente, no âmbito da Agenda de Doha para o Desenvolvimen-


to, também sob a égide da Organização Mundial de Comércio, foi proferida
a Declaração Ministerial, de 14 de novembro de 2001, contendo a decla-

12 Sell, S.K.(2003), 7; Antunes, A.P. (2012), 149 e ss.

Ir para o índice
249
ração sobre o Acordo ADPIC/TRIPS e a Saúde Pública. A mesma declara-
ção (Declaração de Doha) preconiza, no essencial, que os outorgantes do
Tratado explorem as margens de flexibilidade admitidas pelo mencionado
Acordo, com o objectivo de garantirem o acesso a medicamentos.

Temos para nós que a Declaração de Doha configura um verdadeiro


princípio interpretativo das disposições do Acordo ADPIC/TRIPS, que, por
isso, deve ser tido em conta pelos respectivos contratantes e permitir que
as disposições do Acordo sejam interpretadas e aplicadas no sentido mais
favorável ao acesso a medicamentos13. De resto, a Declaração de Doha foi
aprovada por unanimidade de todos os membros da OMC, pelo que, no
mínimo, vale como interpretação autêntica do Acordo ADPIC/TRIPS, o qual
é, desse modo, moldado pela vontade dos seus subscritores.

Existe quem restrinja o alcance da Declaração de Doha apenas às im-


portações paralelas, às licenças compulsórias e à moratória da aplicação
do Acordo para os países em desenvolvimento14. Porém, entendemos que
esse alcance não se confina apenas a estas, antes se alargando também
a outras matérias em que pelo Acordo ADPIC/TRIPS seja concedida aos
membros determinada margem ou liberdade de conformação legislativa15.

Adiante, referir-nos-emos indistintamente às flexibilidades e às de-


mais liberdades de conformação admitidas pelo Acordo ADPIC/TRIPS
apenas como liberdades de conformação.

13 Cfr. Antunes, A.P. (2012), 152 e ss e, também neste sentido, Bellmann, C. & G.
Dutfield, R. Meléndez-Ortiz (2003), 151.
14 Pugatch, M.P. (2004), 221 e ss. Mota, P.I. (2005), 497-506.
15 Antunes, A.P. (2012), 156 e ss.

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250
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Com interesse para a presente análise e de entre as liberdades de


conformação conferidas pelo Acordo ADPIC/TRIPS destaca-se, desde
logo, o disposto no seu artigo 6º, que prevê o esgotamento do direito
para efeitos de importações paralelas e permite que esse esgotamento
tenha âmbito nacional, regional ou internacional.

Depois, o artigo 30º do Acordo ADPIC/TRIPS. Este preceito permite aos


membros a consagração de excepções ao regime ali previsto em matéria
de patentes, sob as condições de essas excepções (i) não colidirem injustifi-
cavelmente com a exploração normal da patente e (ii) não prejudicarem in-
justificavelmente os legítimos interesses do titular da patente, ponderados
os legítimos interesses de terceiros. Este artigo constitui o alicerce jurídico,
por um lado, da excepção de uso experimental e da “Cláusula Bolar”, pre-
vistas, respectivamente, na alínea c) do artigo 102º do Código da Proprie-
dade Industrial e no nº 1 do artigo 19º do Decreto-Lei nº 176, de 2006, de
30 de agosto, respectivamente, e, por outro, das licenças compulsórias16.

Por último, o artigo 28º do Acordo ADPIC/TRIPS, sobre o âmbito da


protecção conferida pela patente. Neste âmbito, destaca-se, em resu-
mo, o direito que assiste ao titular da patente de impedir que qualquer
terceiro, sem o seu consentimento, fabrique, utilize, ponha à venda,
venda ou importe para qualquer destes efeitos o produto patentea-
do ou, tratando-se de patente de processo, o produto obtido directa-
mente pelo processo patenteado. Este é um preceito que consagra a
protecção mínima conferida pela patente e admite a previsão de uma
protecção mais ampla em âmbito nacional, conforme resulta do nº 1 do
artigo 1º do Acordo ADPIC/TRIPS.

16 Antunes, A.P. (2012), 156 e ss; Deere, C. (2009), 80 e ss. Abbott, F.M. & R.V.V.
Puymbroeck (2005), 9 e 22.

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251
2.3 A rigidificação das liberdades de conformação e o retrocesso
relativamente ao direito da União Europeia e português em matéria de
autorizações de comercialização de medicamentos

Como se demonstrará de seguida, o Acordo relativo ao Tribunal Uni-


ficado de Patentes procede à rigidificação das mencionadas liberdades
de conformação.

Desde logo, quanto às importações paralelas. Esta figura permite o


acesso a medicamentos a custos comportáveis, porque um produto le-
galmente colocado em certo mercado pode, com o incentivo do diferen-
cial entre os preços praticados nos dois locais, ser daí importado e colo-
cado noutro mercado, desde que, tratando-se de medicamento, o pro-
duto já se encontre legalmente introduzido neste mercado17. Para tanto,
é relevante a questão do esgotamento do direito, cujo âmbito pode, à luz
do Acordo ADPIC/TRIPS, ser nacional, regional ou internacional, sendo
este o mais favorável e o primeiro o menos favorável a esse mecanismo18.
Sob a perspectiva dos direitos conferidos pela patente, o mecanismo do
esgotamento do direito afasta a possibilidade de objecções por parte do
titular daqueles direitos. Sob o ponto de vista da protecção de outros
interesses, como é o caso da saúde pública, o referido operador eco-
nómico ainda tem de cumprir um conjunto de obrigações previstas na
nossa lei (artigos 80º e seguintes do Decreto-Lei nº 176, de 2006, de 30
de agosto, na sua redacção actual).

No nosso país, o regime do esgotamento do direito é regional, por


força do direito da União Europeia, o que já constitui uma solução que

17 Deere, C. (2009), 75.


18 Deere, C. (2009), 75.

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252
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

não dá cabal cumprimento à Declaração de Doha, pois a União Euro-


peia não explorou toda a liberdade de conformação que o Acordo AD-
PIC/TRIPS lhe permite. A situação será agora substancialmente agravada,
caso o Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes entre em vigor,
pois haverá mais um instrumento de direito internacional a restringir o
âmbito do esgotamento do direito ao território da União Europeia (cfr.
artigo 29º do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes). Com
a agravante de que, como vimos supra, o Acordo restringe ainda mais o
âmbito regional actualmente vigente na União Europeia e em Portugal.

Regista-se também um retrocesso por referência ao regime jurídico


que actualmente vigora na União Europeia e em Portugal em matéria de
autorizações de comercialização de medicamentos e, em particular, dos
medicamentos genéricos. É o que se demonstrará de seguida.

Sob essa perspectiva, destaca-se, no que se refere aos direitos con-


feridos pela patente, a divergência entre o preceituado no artigo 28º do
Acordo ADPIC/TRIPS e no nº 1 do artigo 101º do Código da Propriedade
Industrial.

O mesmo artigo 101º confere ao titular da patente o direito de impe-


dir a terceiros, sem o seu consentimento, o fabrico, a oferta, a armaze-
nagem, a introdução no comércio ou a utilização de um produto objecto
de patente, ou a importação ou posse deste, para algum dos fins men-
cionados.

Do cotejo do artigo 101º com o artigo 28º do Acordo ADPIC/TRIPS


resulta a existência no direito nacional de três elementos que não estão
previstos neste Acordo: a armazenagem, a utilização e a posse do produto
patenteado. Saliente-se que o artigo 28º tem de ser lido, na parte que ora
interessa, em conjugação com a alínea c) do artigo 102º do mesmo Código,
segundo a qual os direitos conferidos pela patente não abrangem os actos
realizados exclusivamente para fins de ensaio ou experimentais, incluindo

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253
experiências para preparação dos processos administrativos necessários
à aprovação de produtos pelos organismos oficiais competentes, não po-
dendo, contudo, iniciar-se a exploração industrial ou comercial desses pro-
dutos antes de se verificar a caducidade da patente que os protege.

Por isso, das três referidas inovações do direito nacional previstas no


artigo 101º, sobra apenas o problema da proibição da armazenagem na
vigência dos direitos de exclusivo, porque a utilização e posse do medica-
mento para a preparação do procedimento administrativo tendente à au-
torização da colocação do medicamento no mercado tem sido considerada
admitida pela alínea c) do artigo 102º do Código da Propriedade Industrial.

Quanto à proibição da armazenagem, é certo que o nº 1 do artigo 1º do


Acordo ADPIC/TRIPS permite que os estados contratantes alarguem o âm-
bito da protecção resultante do mesmo Acordo. Por esse motivo, o legis-
lador português poderia ter feito o que fez, isto é, permitir essa proibição.

Não obstante, ao adoptar a redacção que consta do nº 2 do artigo


101º do Código, o legislador português ofendeu um princípio basilar em
matéria de acesso aos medicamentos, que é o de que o concorrente pro-
dutor de um medicamento genérico deve poder ter tudo preparado para
entrar no mercado no dia seguinte ao da extinção dos direitos de pro-
priedade industrial incidentes sobre o medicamento.

De facto, ao conferir ao titular da patente o direito de impedir a armaze-


nagem do produto objecto de patente19, o legislador português parece ter
contribuído para dificultar a vida a quem carece de dispor de um lote de

19 É certo que poderia fazer-se uma leitura mais fina do teor do preceito e consi-
derar que o “produto objecto de patente” é apenas aquele sobre o qual incide a patente, e
não o produto genérico, pelo que o direito de impedir aqueles actos apenas diria respeito
ao produto A, e não ao seu genérico B, mas uma tal leitura – que apesar de tudo é legítima,
uma vez que se trata de matéria de restrição de direitos dos concorrentes e, por isso, deve
ser interpretada restritivamente – retiraria alcance prático ao que estamos a analisar.

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254
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

medicamentos, devidamente produzido e armazenado para, no dia seguinte


ao da extinção dos direitos de propriedade industrial, entrar no mercado.

Abre-se aqui um parêntesis para fazer notar que este princípio, que,
como veremos, também resulta do Acordo ADPIC/TRIPS, foi reforçado com
a entrada em vigor da Lei nº 62, de 2011, de 12 de dezembro. Esta lei escla-
rece que os procedimentos e as autorizações de introdução no mercado,
autorização de preço de venda ao público de medicamentos e autorização
de comparticipação não são susceptíveis de violar direitos de propriedade
industrial e, por isso, não podem ser revogadas, suspensas ou anuladas
com fundamento na subsistência desses direitos. Com efeito, desse modo,
veio permitir-se que o titular de um medicamento genérico, na vigência de
uma patente ou de um certificado complementar de protecção, obtenha
todas as autorizações que o habilitam a entrar no mercado.

A esse propósito, importa salientar que, alguns anos antes, o órgão


de composição de litígios e de interpretação do Acordo ADPIC/TRIPS, no
caso Canadá/União Europeia, aceitou uma norma jurídica segundo a qual
a empresa produtora de genéricos pode, na vigência da patente, obter a
autorização de introdução no mercado, bem como produzir e aprovisionar
as quantidades necessárias do seu medicamento, tendo em vista a obten-
ção daquela autorização, com o objectivo de entrar com o medicamento
no mercado imediatamente após a extinção da patente. Tal decisão funda-
mentou-se no facto de se tratar de uma excepção limitada aos direitos de
exclusivo, que não colide de modo injustificável com a exploração normal
da patente nem prejudica de forma injustificável os legítimos interesses do
titular da patente, tendo em conta os legítimos interesses de terceiros20.

20 Cfr. Marques, J.P.R. (2008), 99 e ss. Cfr. “WORLD TRADE ORGANIZATION, WT/DS114/R,
17 March 2000, (00-1012), CANADA – PATENT PROTECTION OF PHARMACEUTICAL PRODUCTS”,
p. 157 e ss. Disponível em: http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/7428d.doc.

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255
O referido órgão entendeu também que outra norma jurídica que
visava permitir o fabrico e armazenagem, com intuito comercial, nos úl-
timos seis meses de vigência da patente, não constituía excepção limi-
tada, pelo seu impacto nos direitos conferidos pela patente21. O órgão
de composição de litígios, embora admita que a prorrogação “de facto”
dos direitos conferidos pela patente pode ser consequência dos direitos
estabelecidos no artigo 28º do Acordo, não exclui totalmente a possibi-
lidade de fabrico e armazenagem antes da extinção da patente; apenas
considera que o “limite” de seis meses previsto na norma canadiana não
é suficiente para constituir excepção limitada aos direitos conferidos pela
patente. Este facto deixa em aberto a possibilidade de se permitir o fabri-
co e armazenagem num horizonte temporalmente mais reduzido do que
seis meses, por exemplo, no último mês de vigência da patente.

Parece, por isso, poder respigar-se desta decisão que, por um lado, a
prorrogação “de facto” dos direitos conferidos pela patente não configu-
ra interesse legítimo do respectivo titular.

Por outro lado, se a armazenagem, mesmo com intuitos comerciais,


constituir excepção suficientemente limitada aos direitos conferidos pela
patente, está ela conforme com o artigo 30º do Acordo, visto que a pror-
rogação “de facto” da protecção conferida pela patente não constitui di-
reito legítimo do titular.

Esse entendimento do órgão de composição de litígios, adoptado


em 2000, deve ser lido à luz da Declaração de Doha a que vimos fa-
zendo referência, em sentido ainda mais favorável ao acesso precoce
ao mercado, tendo em conta o princípio da interpretação e aplicação
favorável ao acesso a medicamentos e à protecção da saúde pública
que resulta da mesma Declaração.

21 Marques, J.P.R. (2008), 153 e ss.

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256
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Com efeito, o artigo 30º do Acordo ADPIC/TRIPS manda ter em con-


ta os “legítimos interesses de terceiros” na ponderação da adequação
da excepção nele prevista. Como tanto os interesses dos concorrentes
que pretendem aceder ao mercado como os interesses dos cidadãos em
aceder a medicamentos a custos comportáveis e dos Estados em garantir
a sustentabilidade orçamental são legítimos – e, nalguns casos, consti-
tucionalmente garantidos – parece claro que a autorização da armaze-
nagem com a finalidade única de permitir o início da comercialização do
genérico no dia seguinte ao da extinção da patente é compatível com o
mesmo Acordo. Além disso, tal possibilidade constitui também um coro-
lário lógico do princípio que preside à permissão da excepção regulató-
ria. Recorde-se que esta excepção permite que seja também produzida,
detida e armazenada a quantidade de medicamento necessária à obten-
ção da autorização administrativa de que depende comercialização.

Acresce que, como se referiu, o artigo 28º do Acordo não confere ex-
pressamente ao titular da patente a faculdade de proibir a armazenagem
– embora, como se salientou, o Acordo permita a sua consagração pelos
membros nos respectivos ordenamentos jurídicos, por via extensão ad-
mitida pelo nº 1 do artigo 1º. O facto de a proibição da armazenagem não
constar do elenco dos direitos conferidos pela patente tem de revestir
também relevância interpretativa, no quadro do Acordo, no sentido de
que esse não é o cerne da protecção conferida pela patente.

Com efeito, à excepção da colocação à venda e da venda, os demais


direitos previstos no artigo 28º do Acordo destinam-se apenas a reduzir
o risco de comercialização – este, sim, o facto susceptível de verdadeira-
mente violar os direitos de exclusivo conferidos pela patente.

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257
Essa discrepância do direito nacional, que consiste na previsão da
proibição da armazenagem como direito conferido pela patente, embo-
ra constitua, como se salientou, o exercício de uma faculdade permitida
pelo Acordo no nº 1 do seu artigo 1º, é, naturalmente, contrária à orien-
tação decorrente da Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a saú-
de pública. É contrária porque poderá ser interpretada em termos que
dificultam o acesso a medicamentos e prorrogam de facto, que não de
direito, os privilégios conferidos pela patente. A mesma prorrogação, tal
como o próprio órgão de composição de litígios reconhece, não constitui
interesse legítimo do titular da patente.

Essa situação será agravada se o Acordo relativo ao Tribunal Unificado


de Patentes vier a entrar em vigor. Com efeito, as alíneas a) e c) do artigo
25º deste Acordo conferem ao titular de uma patente europeia de efei-
to unitário o direito de impedir terceiros de, sem o seu consentimento,
deterem em depósito o produto objecto da patente ou o produto obtido
directamente pelo processo objecto da patente.

Numa tal hipótese, deixa de ser possível a armazenagem de gené-


ricos de medicamentos protegidos por uma patente europeia de efeito
unitário, facto que relança novamente a questão de saber se o titular
do medicamento genérico pode, ou não, ter tudo pronto na vigência da
patente, de modo a poder entrar no mercado no dia imediatamente após
ao da extinção dessa patente.

Essa dúvida é ainda agravada pelo disposto na alínea d) do artigo 27º do


Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes. Na realidade, o mesmo
preceito refere que os direitos conferidos pela patente não abrangem os ac-
tos praticados unicamente com a finalidade de efectuar os estudos, testes e
ensaios previstos no nº 6 do artigo 10º da Directiva nº 2001/83/CE alterada.

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258
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

O mesmo preceito nada diz quanto aos procedimentos e decisões


administrativos necessários à autorização de introdução do medicamen-
to genérico no mercado. Por isso, poderá suscitar-se a dúvida de saber
se, ao nível da União Europeia, se entenderão esses procedimentos e
decisões como estando englobados na excepção da citada alínea d) do
artigo 27º do Acordo relativo ao TUP.

Recorde-se que, quando da adopção da Directiva nº 2004/27/CE, que


alterou a Directiva nº 2001/83/CE, a Comissão e o Conselho da União Euro-
peia aprovaram a Posição Comum, nº 61, de 2003, na qual esclarecem que
a decisão de concessão de uma autorização de introdução no mercado e
o procedimento a ela conducentes são meramente administrativos e, por
isso, insusceptíveis de violar direitos de propriedade industrial.

Ora, atendendo a que esta doutrina não é, de uma qualquer forma,


retomada no quadro da alínea d) do citado artigo 27º do Acordo relativo
ao Tribunal Unificado de Patentes, a primeira questão que imediatamen-
te se colocará é a de saber se, também aqui, a mesma doutrina deverá
valer ou se, pelo contrário, deverá se considerar derrogada pela redacção
adoptada no mesmo Acordo.

Por conseguinte, parece estar a abrir-se caminho para um novo foco


de litigância nessa matéria, que poderá prejudicar o acesso a medica-
mentos a custos comportáveis, por retardar a entrada dos genéricos no
mercado e, simultaneamente, prejudicar a sustentabilidade do Serviço
Nacional de Saúde, conhecida como é a influência que os medicamentos
genéricos têm na redução da despesa pública com medicamentos22.

22 Cfr. Antunes, A.P. (2013), 16.127 e ss e 16.147 e ss.

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259
No fundo, fica agora expressamente consagrada no instrumento de
direito internacional a proibição da armazenagem. E o mesmo instru-
mento não exclui expressamente dos direitos conferidos pela patente o
direito de impedir os procedimentos e actos administrativos necessários
à comercialização do genérico, designadamente as autorizações de intro-
dução no mercado, preço de venda ao público e comparticipação.

Estes dois pequenos pormenores poderão permitir o relançamento


de todo um conjunto de acções e providências, judiciais, ou não, destina-
das a retardar o acesso do medicamento genérico ao mercado, que bem
foram identificadas no Inquérito ao Sector Farmacêutico lançado pela
Comissão Europeia em 2007-2009 e que levaram à instauração de cente-
nas de processos nos nossos tribunais administrativos23. Basta recordar
que se as aludidas autorizações e se a armazenagem de um lote de en-
trada no mercado só puderem ser obtidas após a extinção dos direitos
de exclusivo, isso implicará a prorrogação de facto – que não de direito –
da protecção conferida pelas patentes e certificados complementares de
protecção. Isso constituirá um rude golpe para o acesso a medicamentos
a custos comportáveis em Portugal.

2.4. O retrocesso relativamente ao actual regime de composição de


litígios com medicamentos e direitos de exclusivo, vigente em Portugal

Por último, o Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes consti-


tui ainda um evidente retrocesso, por referência ao regime de composição
de litígios relacionados com direitos de propriedade industrial, entre medi-
camentos de referência e medicamentos genéricos, vigente no nosso país.

23 Para maiores desenvolvimentos sobre o tema, ver, por todos, Antunes, A.P. (2014).

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260
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

a) A Lei nº 62, de 2011, de 12 de dezembro24

Com efeito, a já referida Lei nº 62, de 2011, de 12 de dezembro, veio


sujeitar esses litígios à arbitragem necessária, prevendo uma tramitação
apta a conduzir a decisões de mérito céleres.

Esta Lei surgiu com o objectivo de reduzir ou eliminar o bloqueio


nos tribunais administrativos das decisões de autorização de introdu-
ção no mercado, preço de venda ao público e comparticipação, que
vinha a registar-se à época.

Por isso, o legislador teve em conta diversos aspectos. Em primeiro


lugar, ponderou que, se esse objectivo fosse alcançado – como efecti-
vamente veio a ser –, as empresas titulares de direitos de proprieda-
de industrial teriam a sua posição afectada negativamente, porquanto
passariam de uma situação em que já existia tutela, ou expectativa de
tutela, favorável aos seus interesses no foro administrativo para uma
situação em que a tutela teria de ser obtida no foro da propriedade
intelectual, mediante processo moroso e sob a forma ordinária, ainda
que estivesse ao seu alcance o procedimento cautelar, que à época re-
vestia morosidade significativa.

24 Cfr., para maiores desenvolvimentos sobre o tema, Antunes, A.P. (2014), 1.616
e ss; Antunes, A.P. (2015); Vicente, D. M. (2012), 971 e ss; Marques, J.P.R. (2014), 33 e ss.
No que respeita a este último autor, importa salientar que, com o devido respeito, não se
subscreve o entendimento de que, por força do Regulamento (CE) nº 44, de 2001, existem
algumas matérias subtraídas aos tribunais arbitrais. Com efeito, o argumento extraído do nº
4 do artigo 22º do Regulamento não parece adequado, porquanto nesse preceito apenas se
trata de atribuir competência exclusiva aos tribunais do Estado-Membro em razão do territó-
rio, e não da natureza estadual ou arbitral dos tribunais desse Estado. Além disso, o mesmo
argumento parece não ter considerado o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia
proferido em 13 de fevereiro de 2014, no Processo C-555/13, Merck Canada Inc. vs. Accord
Healthcare, Ltd, e Alter, S.A., que, nos parágrafos 15 e seguintes, reconhece o tribunal arbitral
necessário consagrado pela Lei nº 62, de 2011, de 12 de dezembro, como órgão jurisdicional
na aceção do artigo 267° do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

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261
Em segundo lugar, o legislador considerou a estratégia de recurso
aos tribunais administrativos, pelos titulares de direitos de propriedade
industrial, não acompanhada de processos paralelos no foro da proprie-
dade intelectual, onde se discutisse a existência de violação da paten-
te. Essa estratégia indiciava que o recurso ao foro administrativo visava
apenas ao retardamento do acesso dos genéricos ao mercado, e não a
obtenção de uma decisão de mérito quanto à questão de fundo.

Em terceiro lugar, o legislador considerou que, enquanto os titulares


dos direitos de propriedade industrial dispunham de duas vias de tutela
cautelar – a do foro administrativo e a do foro da propriedade industrial
– as empresas produtoras de genéricos não dispunham de nenhum me-
canismo processual célere para forçar a obtenção de uma decisão que
lhes “abrisse o caminho” para o mercado.

Por último, era inequívoco que, ao lado dos interesses das empresas
de genéricos, estavam também o interesse do Estado na sustentabilidade
do Serviço Nacional de Saúde e os direitos à saúde e ao acesso a medica-
mentos a custos comportáveis, bem como os direitos dos consumidores,
constitucionalmente consagrados.

Para atingir os objectivos visados, poderia optar-se por um de três ca-


minhos para composição desses litígios: (i) criar um procedimento caute-
lar; (ii) adoptar um processo especial no contencioso da propriedade in-
telectual; (iii) consagrar a arbitragem necessária como meio exclusivo25.

25 Note-se que já há vários anos existe a possibilidade de recurso à arbitragem


para composição desses litígios, mas esta, por ser voluntária, não tinha até então – pelo
menos que se saiba – sido utilizada. Por isso, a solução, quanto a este aspecto, passaria por
incentivar o recurso à arbitragem por meio da sua obrigatoriedade legal.

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262
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A criação de uma via meramente cautelar era insuficiente, porque, na


apreciação perfunctória da aparência do bom direito, os tribunais ten-
deriam a valorizar o título da patente em detrimento da apreciação de
fundo quanto à validade da mesma patente. Também a criação de um
processo especial foi considerada insatisfatória.

Porque na área dos direitos de propriedade intelectual a arbitra-


gem necessária já era conhecida, noutros países e em âmbito nacio-
nal (nº 4 do artigo 221º do Código dos Direitos de Autor26), o legisla-
dor optou por esse mecanismo.

Essa opção visou ainda criar condições de concorrência e de equilí-


brio da distribuição do impacto pelos destinatários do novo regime jurí-
dico, por um lado, evitando que acedessem ao mercado genéricos em
violação de direitos de propriedade industrial; por outro, permitindo que
acedessem ao mercado aqueles que nenhuma violação cometessem.

A eficiência da solução escolhida seria tanto maior quanto a decisão


de mérito fosse tomada em momento mais precoce relativamente à en-
trada do genérico no mercado. Por outras palavras, a empresa produtora
do genérico não teria incentivo para aceder ao mercado nem incorreria
nas despesas necessárias a esse acesso – tais como as decorrentes da
produção de lotes de medicamentos, armazenagem, promoção dos pro-
dutos etc. – se já houvesse uma decisão de primeira instância no sentido
da existência de violação do direito de propriedade. Assim, evitar-se-iam
prejuízos para essa empresa, como também se evitariam os prejuízos
para as empresas titulares de direitos de propriedade industrial, decor-
rentes da concorrência dos genéricos ilegitimamente comercializados.

26 Cfr. Vicente, D. M. (2012), 973 e ss e Antunes, A.P. (2014), 1643.

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263
Nessa perspectiva, o processo foi gizado de modo a iniciar-se o mais
cedo possível e ser dotado de celeridade que permita uma decisão de
mérito no prazo médio de decisão pelo INFARMED – Autoridade Nacio-
nal do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. dos pedidos de autori-
zação de introdução no mercado dos medicamentos genéricos. Desse
modo, criaram-se condições para que, à data da concessão dessa au-
torização, já se saiba, em regra, se o genérico em causa viola, ou não,
direitos de propriedade industrial.

Com este procedimento, definem-se os direitos de propriedade indus-


trial à partida e reduz-se a margem de incerteza quanto a esses direitos,
pelo que tendem a ser menos atractivas as soluções contenciosas e pas-
sam a ser mais compensadoras as soluções negociadas, em que as partes
procurem maximizar os seus benefícios e minimizar eventuais prejuízos.

Ao mesmo tempo, a solução legislativa reduziu a interligação en-


tre o contencioso da propriedade industrial, por um lado, e os proce-
dimentos administrativos de autorização de introdução no mercado,
preço de venda ao público e comparticipação, por outro, de modo a
evitar o patent linkage e a consequente captura de renda de mono-
pólio decorrente do prolongamento artificial dos privilégios conferidos
pelos direitos de propriedade industrial27. Assim e embora o início da
contagem do prazo de 30 dias para recurso à arbitragem esteja ligado a
um facto que indicia o propósito de acesso ao mercado de um novo ge-
nérico, o certo é que, verificado esse facto, o processo arbitral, por um
lado, e os aludidos procedimentos administrativos, por outro, seguem
caminhos paralelos sem jamais voltarem a tocar-se28.

27 Araújo, F. (2008), 199 e ss.


28 Cfr. Artigo 15º-A do Decreto-Lei nº 176, de 2006, de 30 de agosto, na redacção
republicada, por último, em anexo ao Decreto-Lei nº 128, de 2013, de 5 de setembro, e nº
1 do artigo 3º da Lei nº 62, de 2011, de 12 de dezembro.

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264
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A tramitação gizada pelo legislador é simples. O INFARMED publicita,


na sua página electrónica, a existência de um pedido de autorização de in-
trodução no mercado de um genérico que inclui certas informações sobre
este e sobre o medicamento de referência. Com essa publicitação, inicia-se
um prazo de 30 dias para os titulares de eventuais direitos de propriedade
industrial recorrerem à arbitragem necessária, decorrido o qual, caso não
se verifique esse recurso, o genérico não pode ser impedido de aceder ao
mercado. Nessa hipótese, nem sequer há litígio e fica precludido o direito
de impedir a comercialização do medicamento genérico publicitado29.

A empresa produtora do genérico dispõe de igual prazo de 30 dias


para contestar, contado da notificação para o efeito pelo tribunal arbi-
tral30. Não o fazendo no referido prazo, a mesma empresa não poderá
legitimamente colocar o genérico no mercado.

As provas são indicadas pelas partes com os articulados (actualmen-


te, este mecanismo já vigora também no processo civil) e a audiência de
produção da prova a prestar oralmente deve ter lugar no prazo de 60 dias
após a apresentação da contestação31.

Até à decisão arbitral, nada impede que o genérico aceda ao mercado


(excepto a obrigação de respeitar direitos de propriedade industrial válidos

29 No sentido da não preclusão do direito, Vicente, D. M. (2012), 979 e ss; Mar-


ques, J.P.R. (2014), 44. Nota-se, no entanto, que as posições destes autores parecem não ter
em consideração que, tal como o produtor do genérico que não conteste a acção arbitral não
pode iniciar a comercialização do medicamento na vigência dos direitos de propriedade in-
dustrial, também o titular destes direitos, caso não recorra à arbitragem necessária no prazo
de caducidade de 30 dias, não pode impedir a comercialização do genérico com fundamento
nos mesmos direitos. O que o legislador pretende é uma clarificação precoce da existência,
ou não, de conflito relativamente ao medicamento genérico em causa, de modo a assegurar
a solução mais eficiente (neste caso, a que menores custos traz às partes e à sociedade).
30 Nº 2 do artigo 3º da Lei nº 62, de 2011, de 12 de dezembro.
31 Nºs 3 a 5 do artigo 3º da Lei n.º 62, de 2011, de 12 de dezembro.

Ir para o índice
265
e eficazes, se for o caso), visto que, como referido, se trata de processos
paralelos. Ou seja, se o genérico já dispuser de autorização de introdução
no mercado, a pendência do processo arbitral não o impede desse acesso,
a menos que seja proferida decisão cautelar no âmbito do litígio32.

A falta de contestação ou a decisão arbitral são notificadas às par-


tes, ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial e ao INFARMED33.
Da decisão arbitral cabe recurso para o Tribunal da Relação, com efeito
meramente devolutivo, pelo que a decisão arbitral se mantém até que o
tribunal de segunda instância se pronuncie em definitivo34.

Os casos omissos são resolvidos pelo regulamento do centro de


arbitragem, institucionalizada, ou não, e subsidiariamente pela lei da
arbitragem voluntária.

A prática já demonstrou ser possível alcançar uma decisão arbitral


com essa tramitação em cerca de seis meses. Tendo em conta que o pra-
zo de concessão de uma autorização de introdução no mercado é de 210
dias, a decisão arbitral pode, em regra, ser proferida antes da concessão
daquela autorização.

b) As implicações decorrentes do Acordo relativo ao Tribunal Unifica-


do de Patentes

Vejamos agora em que medida é que o Acordo relativo ao Tribunal


Unificado de Patentes poderá colocar em causa o regime de composição

32 Sobre a admissibilidade de procedimentos cautelares em sede arbitral, cfr.


Marques, J.P.R. (2014), 67 e ss.
33 Nº 6 do artigo 3º da Lei nº 62, de 2011, de 12 de dezembro.
34 Nº 7 do artigo 3º da Lei nº 62, de 2011, de 12 de dezembro.

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266
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

desses litígios vigente no nosso país, quando estejam em causa patentes


europeias ou patentes europeias de efeito unitário.

Desde logo e como vimos supra na breve descrição que fizemos, o


mesmo Acordo atribui ao Tribunal Unificado de Patentes a competência
exclusiva para dirimir os litígios relacionados com patentes europeias, ou
patentes europeias de efeito unitário, e certificados complementares de
protecção, como sejam as que assentem em violação ou ameaça de vio-
lação; as de simples apreciação negativa; os procedimentos cautelares;
as de extinção de patentes e de declaração de nulidade dos certificados,
bem como os pedidos reconvencionais; de responsabilidade civil por vio-
lação ou por protecção provisória (cfr. nº 1 do artigo 32º do Acordo rela-
tivo ao Tribunal Unificado de Patentes).

Por isso, o Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes, por resul-


tar de um instrumento de direito internacional, prevalece no ordenamento
jurídico nacional sobre a lei ordinária, como é o caso da Lei nº 62, de 2011,
de 12 de dezembro (cfr. nº 2 do artigo 8º da Constituição da República Por-
tuguesa, e nº 2 do artigo 7º do Código Civil). Pelo que a competência para
a composição desses litígios deixa de ser competência do tribunal arbitral
necessário para ser competência do Tribunal Unificado de Patentes 35. De
resto, o facto de o artigo 35º do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de
Patentes prever a disponibilização pelo mesmo Tribunal de meios para me-
diação e arbitragem desses litígios, demonstra o carácter amplo e pleno da
competência atribuída ao Tribunal Unificado de Patentes e a clara intenção
de banir qualquer outro meio de composição desses litígios.

35 Julga-se que, em face do preceituado no nº 2 do artigo 7º do Código Civil e


à redacção do nº 1 do artigo 32º do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes, é
inequívoca a intenção de revogação do regime especial consagrado na Lei nº 62, de 2011,
de 12 de dezembro.

Ir para o índice
267
Mas, muito mais grave do que a revogação da competência do tribunal
arbitral necessário para a composição destes litígios, é o facto de o Acordo
relativo ao Tribunal Unificado de Patentes prever um processo próprio para
a tramitação das acções e procedimentos perante ele intentados.

Isso significa que os titulares de direitos conferidos por patentes eu-


ropeias, ou patentes europeias de efeito unitário, e seus CCPs, no caso de
litígios relacionados com esses direitos que respeitem a medicamentos
de referência e a medicamentos genéricos, deixam, por exemplo, de ter
o prazo peremptório de 30 dias, após a publicação pelo INFARMED da
apresentação de um pedido de autorização para um genérico, para re-
correm a uma via litigiosa de composição do litígio. Com o Acordo relati-
vo ao Tribunal Unificado de Patentes, poderão, em regra, fazê-lo no prazo
de cinco anos após o conhecimento do facto violador (cfr. artigo 72º do
Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes). Não parece que o
prazo de 30 dias previsto no nº 1 do artigo 3º da Lei nº 62, de 2011, de
12 de dezembro, possa subsistir em vigor, dado que se trata de norma de
carácter processual, directamente derrogada pelo processo definido no
Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes, e dado que a aplicação
do direito nacional permitida pelo artigo 24º do mesmo Acordo parece
respeitar apenas a direito nacional substantivo, e não adjectivo.

Assim, a possibilidade de obtenção de uma decisão de mérito com


valor de sentença, sobre a existência de violação de patente europeia ou
patente europeia de efeito unitário que protege um medicamento de re-
ferência, ainda antes da concessão pelo INFARMED de uma autorização
de introdução no mercado para o genérico, deixará de ser possível.

Essa é uma situação menos eficiente do que a actualmente vigente em


Portugal, uma vez que, na maioria dos casos, a decisão quanto à existência
de violação da patente europeia, ou patente europeia de efeito unitário,

Ir para o índice
268
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

ou seu CCP, será proferida muito tempo depois do início da comercializa-


ção do genérico. Isso significa que não se evitará que o titular deste me-
dicamento incorra nos custos necessários à entrada no mercado e que o
titular dessa patente sofra os prejuízos decorrentes da sua violação.

Além disso, não se evitará que os doentes comecem a ser tratados com
um genérico que, no caso de posterior declaração de violação da patente,
será retirado do mercado, pelo que esses doentes terão de alterar a sua
medicação. Com a agravante de que o SNS terá de suportar maiores en-
cargos com a aquisição do mesmo fármaco, se houver lugar à extinção do
grupo homogéneo, conhecida como é a influência que os genéricos têm na
redução dos custos para o Estado com a comparticipação de medicamen-
tos, por, nomeadamente, darem lugar à aplicação do Sistema de Preços
de Referência, circunstância em que essa comparticipação passa a incidir
sobre um preço de referência, e não sobre o preço de venda ao público36.

É, pois, inequívoco que a solução prevista no Acordo relativo ao Tri-


bunal Unificado de Patentes, se for aplicada sem reserva, constitui um
retrocesso relativamente ao regime vigente em Portugal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes tem aspectos ne-


gativos para o acesso a medicamentos a custos comportáveis e para a
sustentabilidade do SNS, que decorrem da limitação da liberdade de con-
formação legislativa por parte dos Estados-Membros Contratantes em
matéria de patentes europeias, ou patentes europeias de efeito unitário,

36 Antunes, Aquilino Paulo (2013), 16127 e ss e 16147 e ss.

Ir para o índice
269
e seus CCPs e dos direitos por estes conferidos, bem como do facto da
atribuição de competência exclusiva do Tribunal Unificado de Patentes e
do estabelecimento de regras processuais próprias, com a consequente
postergação do tribunal arbitral necessário e das regras processuais pre-
vistos na Lei nº 62, de 2011, de 12 de dezembro.

Está neste momento em curso o processo de ratificação do Acordo


em causa. A entrada em vigor do mesmo Acordo acarretará várias des-
vantagens para acesso a medicamentos em Portugal, que são superiores
a eventuais vantagens resultantes da aplicação do Acordo no nosso país.

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

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272
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Judicialização da saúde
em Fortaleza: o caso das
vagas em leitos de UTI
The judicialization of health
in Fortaleza: difficulties in access
to public beds in intensive care units

RÔMULO GUILHERME LEITÃO


MANUELA VIEIRA COSTA

RESUMO

A judicialização na área da saúde pública brasileira é tema recorren-


te na pesquisa acadêmica em direito, ciência política e sociologia, com
ênfase na análise de decisões do Supremo Tribunal Federal em ações de
controle de constitucionalidade. No âmbito local e analisando decisões
de magistrados de primeira instância, empreendeu-se um levantamento
de dados entre os anos 2013 e 2016, na busca de identificarem-se as
causas e consequências de um incremento de aproximadamente 1.000%
na quantidade de liminares concedidas para internação de pacientes em
leitos de terapia intensiva na cidade de Fortaleza. As decisões são fun-
damentadas a partir do entendimento consolidado na jurisprudência do

Ir para o índice
273
Supremo Tribunal Federal, no sentido de dar a mais ampla interpretação
possível ao artigo 196 da Constituição da República, mas a compatibili-
zação do direito à saúde com a necessidade de utilizar critérios técnicos
para organizar a fila de espera por leitos de UTI é uma problemática que
merece análise racional, haja vista o comprometimento do princípio da
impessoalidade que rege todos os poderes da República.

Palavras-chave: Poder local. Judicialização da Saúde. Unidades de Te-


rapia Intensiva. Direito à Saúde. Princípio da Impessoalidade.

ABSTRACT

The Judicialization of public health area in the Brazil is a recurring


theme in academic research in law, political science and sociology, with
emphasis on the analysis of Federal Supreme Court decisions on consti-
tutionality control actions. At the local level and analyzing decisions of
magistrates of first instance, a survey of data was carried out between
the years 2013 and 2016, in the search to identify the causes and conse-
quences of an increase of approximately 1000% in the number of injunc-
tions granted for hospitalization of patients at ICU in the city of Fortaleza.
Decisions are based on a consolidated understanding in the jurisprudence
of the Federal Supreme Court, in order to give the broadest possible in-
terpretation to article 196 of the Constitution of the Republic, but the
compatibility of the right to health with the need to use technical criteria
to organize the queue for ICU beds is a problem that deserves rational
analysis, given the commitment of the principle of impersonality that go-
verns all the powers of the Republic.

Keywords: Local power. Judicialization of health. Intensive care units.


Right to health. Principle of impersonality.

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274
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

INTRODUÇÃO

Este artigo examina a questão das decisões judiciais determinando


a internação de pacientes em leitos de Unidade de Terapia Intensiva, no
âmbito da cidade de Fortaleza, entre os anos 2013 e 2016, buscando
identificar as causas e consequências do fenômeno jurídico que tem
abrangência nacional, mas se apresenta de modo agudo nesta cidade.

O sistema de saúde pública brasileiro está em crise, e a crescente


intervenção judicial em demandas ligadas à saúde – nas dimensões do
fornecimento de medicamentos, realização de procedimentos cirúrgicos
e decisões que determinam o internamento de pacientes em leitos de
Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) – tem desafiado os agentes estatais
a buscarem soluções para o problema, que é dramático porque lida com
questões no limite entre a vida e a morte.

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem entendimento consolidado no


sentido mais amplo da obrigação de o Estado fornecer leito, até mesmo de
UTI/CTI, a qualquer paciente que necessite1, devendo, se for o caso, custe-
ar leitos na iniciativa privada. Os tribunais e juízes brasileiros têm seguido
essa linha de interpretação e concedido decisões judiciais nesse sentido,
mas já se nota uma inflexão no entendimento em decisões da Justiça Fede-
ral de primeiro grau, como restará discutido em tópico específico.

A estrutura física da Secretaria Municipal de Saúde conta com uma Cen-


tral de Regulação das Internações de Fortaleza (CRIFor), desde 2003, que
recebe a demanda ordinária por leitos, oriunda dos hospitais, unidades de
atendimento e SAMU, além da crescente demanda de mandados judiciais
determinando internações, independentemente de fila de espera por vagas.

1 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo n.º 867023/RJ.


Brasília-DF, 23 de fevereiro de 2015.

Ir para o índice
275
A pergunta central do texto é: Como compatibilizar o direito à saúde,
previsto no artigo 196 da Constituição da República Federativa do Brasil
(CR), com a necessidade de utilizar critérios técnicos para organizar a fila
de espera por leitos de UTI?

Para responder à questão, o artigo está dividido em quatro seções:


a primeira discutirá o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF)
em questões de efetivação do direito social à saúde; a segunda apresen-
tará a estrutura de regulação da internação de pacientes em leitos de UTI
no âmbito da Secretaria Municipal de Saúde; em seguida serão apresen-
tados dados oficiais das decisões judiciais determinando a internação de
pacientes em leitos de UTI entre 2013 e 2016; por fim far-se-á uma re-
flexão teórica sobre o problema a partir da perspectiva dos limites da in-
tervenção judicial em casos de efetivação de políticas públicas de saúde.

1 PRECEDENTES DO STF EM AÇÕES DE EFETIVAÇÃO DE DIREITOS


SOCIAIS: A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

O acórdão relatado pelo ministro Celso de Mello no RE nº 271.286 (Rio


Grande do Sul), em 2000, é o precedente célebre e ponto de partida na
consolidação do entendimento acerca da aplicabilidade imediata do artigo
196 da Constituição Federal, cujo trecho da ementa é relevante reproduzir:

EMENTA: PACIENTE COM HIV/AIDS – PESSOA DESTITUÍDA


DE RECURSOS FINANCEIROS – DIREITO À VIDA E À SAÚ-
DE – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS –
DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF ARTS.
5º, CAPUT, E 196 – PRECEDENTES (STF) – RECURSO DE
AGRAVO IMPROVIDO.

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276
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQUENCIA CONS-


TITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA A IN-
TERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE
TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL IN-
CONSEQUENTE 2.

Na ADPF nº 45 (2004), o mesmo relator, em decisão monocrática


igualmente paradigmática, reconhece a legitimidade do controle e da
intervenção do Poder Judiciário em temas de efetivação de políticas pú-
blicas para preservar a integridade e intangibilidade do núcleo consubs-
tanciado do “mínimo existencial”:

EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRE-


CEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE
CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO
PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTE-
SE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO PO-
LÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO
ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS,
ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LI-
BERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSI-
DERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA “RESERVA DO
POSSÍVEL”. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR
DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDA-
DE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO “MÍNIMO EXIS-
TENCIAL”. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO

2 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 271.286/RS. Brasília-DF,


24 de novembro de 2000.

Ir para o índice
277
DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZA-
ÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITU-
CIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO) 3.

Com relação à obrigatoriedade de internação de paciente em leito


de UTI/CTI, o STF firmou o seguinte entendimento, precedente do
ministro Celso de Mello:

AGRAVO INTERNO EM APELAÇÃO CÍVEL. ESTADO DO


RIO DE JANEIRO. DIREITO À VIDA E À SAÚDE DO AGRA-
VADO HIPOSSUFICIENTE. AUSÊNCIA DE VAGA EM CTI DE
HOSPITAL PÚBLICO. POSSIBILIDADE DE INTERNAÇÃO EM
HOSPITAL PARTICULAR A EXPENSAS DO AGRAVANTE. SO-
LIDARIEDADE ENTRE OS ENTES DA FEDERAÇÃO. FIXAÇÃO
DE MULTA DIÁRIA PARA CASO DE INADIMPLEMENTO.
AGRAVANTE QUE NÃO TRAZ AOS AUTOS NOVOS ARGU-
MENTOS QUE JUSTIFIQUEM A REVISÃO DO JULGADO.
RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO4.

A questão da contratação de leito privado depende do interesse de o


hospital particular disponibilizar o leito para a central de regulação, não
sendo possível obrigar ninguém a contratar com a Administração Pública,
mas essa discussão não é relevante pelo menos nesse momento.

A partir de alguns desses precedentes e nos limites deste texto, não


serão apresentados outros julgados igualmente relevantes, pois o enten-

3 Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Funda-


mental n.º 45/RS. Brasília-DF, 4 de maio de 2004.
4 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo n.º 867023/RJ.
Brasília-DF, 23 de fevereiro de 2015.

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278
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

dimento sobre o tema se consolidou, não só entre os integrantes do STF,


mas também nos tribunais superiores e nas decisões judiciais de todas
as instâncias do Poder Judiciário brasileiro, com tendência crescente ao
alargamento das hipóteses em que a intervenção passou a ser admitida e
tornou-se regra, e não mais exceção, a justiciabilidade de situações indi-
viduais em busca do fornecimento da mais ampla gama de medicamen-
tos, insumos, equipamentos, realizações de cirurgias e internações de
pacientes em leitos de UTI/CTI, aqui discutido, com evidentes impactos
financeiros e orçamentários.

Os impactos financeiros e orçamentários das decisões judiciais na área


da saúde é tema recorrente nas discussões acadêmicas e até jornalísticas,
mas existe certa tendência manifesta no sentido de que mencionar razões
financeiras e orçamentárias, quando se está diante da vida, é apelar para
questões menores, e que o direito à saúde é irrestrito. Essa tendência
vem posta em decisões do STF, novamente o ministro Celso de Mello para
quem “entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se
qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela pró-
pria Constituição da República (artigo 5º, caput e artigo 196), ou fazer pre-
valecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e
secundário do Estado, entendo, uma vez configurado esse dilema – que ra-
zões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção:
aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e saúdes humanas”5.

No âmbito local, as decisões judiciais – até mesmo acerca de interna-


ção em leitos de UTI/CTI – se balizam em uma construção jurisprudencial
que toma por base alguns dos precedentes aqui apresentados.

5 Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n.º


393.175-0/RS. Brasília-DF, 2 de fevereiro de 2007.

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279
2. A CENTRAL DE REGULAÇÃO DAS INTERNAÇÕES EM FORTELEZA
(CRIFor)

Desde 2003, a Central de Regulação das Internações de Fortaleza


(CRIFor) regula a totalidade de leitos instalados de Terapia Intensiva e En-
fermaria cadastrados no SUS, no âmbito do Município de Fortaleza pelo
Decreto Municipal nº 11.411, de 20 de maio de 2003.

As atribuições do órgão integrante da Secretaria Municipal de Saúde


são as seguintes, nos termos do normativo: a) requisitar bens e serviços
para garantia do processo assistencial a leitos de internação em UTI e En-
fermaria; b) definir a alocação de leitos hospitalares para a reorganização
da assistência prestada aos usuários do SUS; c) determinar as direções
dos hospitais próprios e/ou contratados do SUS à adoção de medidas
necessárias ao funcionamento da rede de assistência; d) realocar leitos
e/ou pacientes de maneira a garantir a capacidade instalada hospitalar à
assistência dos pacientes; e) redefinir prioridades dos serviços de saúde,
de maneira a garantir a assistência aos leitos de UTI e Enfermaria, poden-
do cancelar procedimentos eletivos, se necessário; f) requisitar leitos de
UTI e Enfermaria em estabelecimentos privados, se necessário; g) definir
as diretrizes e regras para o transporte inter-hospitalar de usuários do
SUS que necessitam de UTI no âmbito municipal; h) receber solicitações
de internação para regulação, identificar leitos vagos compatíveis com
as solicitações e autorizar as internações e/ou colocar os pacientes em
lista de espera; e i) executar a transferência de pacientes, trabalhando de
forma integrada com a Central de Ambulâncias do SAMU 192 Fortaleza.

O fundamento legal da atribuição de responsabilidades e obriga-


ções aos entes municipais no controle dessa atividade se deu em razão
da Gestão Plena do Sistema Municipal de Saúde, com fundamentação
jurídica no seguinte conjunto normativo: a) Norma Operacional de

Ir para o índice
280
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Assistência à Saúde 01/02; b) artigo 198, I, da Constituição Federal; e c)


Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990.

Uma central de regulação de leitos, portanto, faz a distribuição de


vagas de leitos de UTI/CTI a partir de critérios de priorização6, redefini-
dos recentemente pela Resolução do Conselho Federal de Medicina nº
2.156, de 28 de outubro de 2016, que podem ser agrupados em níveis
de prioridade, numa escala decrescente de 1 a 5, sendo este último o
paciente não adequado para estar em um leito de terapia intensiva.

CRITÉRIOS DE PRIORIZAÇÃO

PRIORIDADE 1 – Pacientes que necessitam de intervenções de su-


porte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma
limitação de suporte terapêutico.

PRIORIDADE 2 – Pacientes que necessitam de monitorização intensi-


va, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, e sem nenhu-
ma limitação de suporte terapêutico.

PRIORIDADE 3 – Pacientes que necessitam de intervenções de supor-


te à vida, com baixa probabilidade de recuperação ou com limitação de
intervenção terapêutica.

PRIORIDADE 4 – Pacientes que necessitam de monitorização intensi-


va, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, mas com limi-
tação de intervenção terapêutica.

6 O texto optou por apresentar os critérios de priorização de internação em leito


de terapia intensiva do Conselho Federal de Medicina (2016), em detrimento dos critérios
do Decreto Municipal nº 11.411, de 2003, em razão da atualidade daqueles em relação ao
normativo local, que deverá ser atualizado.

Ir para o índice
281
PRIORIDADE 5 – Pacientes com doença em fase de terminalidade, ou
moribundos, sem possibilidade de recuperação. Em geral, esses pacien-
tes não são apropriados para admissão na UTI (exceto se forem poten-
ciais doadores de órgãos). No entanto, seu ingresso pode ser justificado
em caráter excepcional, considerando-se as peculiaridades do caso, e
condicionado ao critério do médico intensivista.

O artigo 2º da Resolução nº 2156 do Conselho Federal de Medi-


cina dispõe ainda que “a admissão e a alta em Unidade de Tratamento
Intensivo (UTI) são de atribuição e competência do médico intensivista,
levando em consideração a indicação médica”, ou seja, o intensivista ava-
lia e classifica o paciente entre as prioridades de internação, não sendo
suficiente apenas a indicação do médico que encaminha à central a soli-
citação de leito de terapia intensiva. Esse aspecto tem relevância quan-
do se discutem as decisões judiciais que determinam a internação de
pacientes, independentemente da “fila de espera” controlada por uma
central de regulação.

A realidade da central de regulação já seria dinâmica se não hou-


vesse judicialização. Com o crescente número de liminares em casos de
internação, as dificuldades em compatibilizar a fila de espera ordinária
com a fila de casos judicializados se torna dramática.

3. AS DECISÕES JUDICIAIS DETERMINANDO A INTERNAÇÃO EM LEI-


TOS DE UTI (2013-2016)

As ações judiciais envolvendo tutelas que determinam a internação


de pacientes em leitos de UTI/CTI na cidade de Fortaleza têm crescido
exponencialmente nos últimos três anos, alcançando o patamar de 740

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282
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

liminares, em 2016. Os pacientes que buscam leitos de terapia intensi-


va são representados pela Defensoria Pública do Estado e da União em
quase a totalidade dos casos, sendo insignificante o número de ações
patrocinadas por advogados particulares.

As demandas judiciais, que tramitam no foro federal ou estadual,


consistem em ações ordinárias com pedido de antecipação de tutela
e vêm instruídas com prescrição e laudo médico para internação em
leito de terapia intensiva, em que se descreve o quadro do paciente e
se justifica a necessidade e nível de urgência. As decisões judiciais –
em sua quase totalidade – são concessivas e determinam a internação
imediata do paciente em leito público ou privado, sob pena de multa
diária por descumprimento.

Após a concessão da antecipação da tutela, o oficial de justiça se di-


rige à central de regulação de internação e intima o médico regulador;
o paciente passa a integrar a fila dos “judicializados”, os quais têm seu
status próprio, tendo em vista possuírem prioridade sobre os pacientes
que não demandaram judicialmente uma vaga de UTI/CTI. Essa realidade
acaba por forçar os pacientes que aguardam vagas a buscarem a Defen-
soria a fim de obterem uma decisão judicial que os torne “judicializados”,
em um ciclo vicioso que leva a situações como as enfrentadas atualmen-
te. É relevante destacar que a judicialização de filas de espera não se
limita apenas a vagas de UTI/CTI, espraia-se para cirurgias eletivas, for-
necimento de medicamentos e até equipamentos (cadeira de rodas, por
exemplo), questões que não serão tratadas nos limites deste texto.

No âmbito da Justiça Federal, tem-se notado discreta inflexão no en-


tendimento dos magistrados, alguns já denegam a antecipação de tutela

Ir para o índice
283
e reconhecem caber à central de regulação examinar qual paciente deve
ocupar a vaga, e não um juiz; outros concedem a liminar, mas submetem
a ordem aos critérios da central de regulação, que deverá decidir quem
será internado em primeiro lugar. Na Justiça Estadual não se tem notícias
de decisão denegando leito de UTI/CTI no período da pesquisa.

Tramita, ainda, uma ação civil pública (Processo nº 0807044-


20.2014.4.05.8100), perante a Segunda Vara da Justiça Federal no Estado
do Ceará, ajuizada pela Defensoria Pública da União, com o objetivo de am-
pliar em cento e cinquenta leitos de UTI a rede municipal e estadual num
prazo de quatro anos, ainda pendente de julgamento na primeira instân-
cia. A demanda repete tentativas passadas do Ministério Público de impor
ao Poder Público, por meio de decisões judiciais, a melhoria de políticas
públicas deficientes. Para além da boa intenção, o histórico de iniciativas
dessa natureza não tem sido promissor, seja porque o processo tende a se
eternizar nas instâncias superiores, seja porque a problemática passa por
dificuldades orçamentárias e de gestão da Administração Pública.

A questão central do texto, a combatibilização do direito à saúde com


a necessidade de utilizar critérios técnicos para organizar a fila de espera
por leitos de UTI, tem se confrontado com um quadro de incremento do
número de decisões judiciais, nos últimos três anos, que desafia a opera-
cionalização da central de regulação de leitos.

Em 2013, foram setenta e cinco decisões judiciais determinando


a internação em leitos de UTI/CTI; em 2014, o número cresceu para
duzentos e quarenta e sete decisões; em 2015, quatrocentas e sete
decisões; em 2016, esse quantitativo alcançou a marca de setecentas
e quarenta liminares.

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284
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

GRÁFICO 1 – Número de liminares concedidas

FONTE: Secretaria Municipal de Saúde do Município de Fortaleza


– Central de Regulação das Internações de Fortaleza (CRIFor)

Não é regra geral, mas nesse significativo número de liminares há ca-


sos de pacientes que não têm indicação de internação em leito de terapia
intensiva, outros ocupam leitos estando com morte encefálica diagnostica-
da, e ainda pacientes que buscam a internação por ausência de leitos de
UTI no interior do Estado, mas, no geral, os beneficiários das ações judiciais
se encontram em estado grave, no limite entre a vida e a morte. Ainda

Ir para o índice
285
que o paciente necessite da internação – e não se discute neste texto essa
questão –, o incremento de aproximadamente 1.000% do quantitativo de
decisões liminares em três anos indica situação que desafia uma análise.

4. REFLEXÃO TEÓRICA

Há crise no sistema de saúde brasileiro nas dimensões de infraestru-


tura, recursos financeiros e humanos, é inegável, mas a interpretação
que o Poder Judiciário deu ao artigo 196 da Constituição Federal – que
trata de direito à saúde “garantido mediante políticas sociais e econô-
micas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e
ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação”, e não por meio de decisões judiciais em casos
individuais – tem gerado uma demanda imprevisível, e, portanto, não
planejável, que torna o sistema mais desigual e injusto, tendo em vista
que o acesso à representação jurídica não é universal e está longe disso.

É inegável a relevância do papel da Defensoria Pública (estadual e fe-


deral) no patrocínio de ações na área de saúde (medicamentos, cirurgias,
internações) e o incremento de demandas judiciais em Fortaleza vem na
razão direta dessa atuação. A estruturação material da carreira e o compro-
metimento dos agentes que atuam nessa linha de defesa da população vão
ao encontro de um permissivo constitucional (artigo 134 CF/88). Uma das
questões que se põe nessa reflexão teórica é se a atuação em favor de um
paciente que aguarda um leito hospitalar justifica a preterição de outros em
estado de saúde semelhante ou mais grave. Em outras palavras, por que não
observar o direito de preferência dos pacientes em razão dos critérios elabo-
rados por médicos? Que interpretação autoriza a preterição de uma vida em
relação a outra apenas porque há o ajuizamento de uma demanda judicial?

Ir para o índice
286
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

De uma perspectiva mais ampla, é possível conjecturar que a de-


manda por leitos de UTI na cidade de Fortaleza é superior à capacidade
existente e que mais leitos deveriam ser construídos. Poder-se-ia dizer
que a demanda que vem de cidades da região metropolitana e de todo
o interior do Estado inviabilizaria o sistema de saúde da cidade e que
mais leitos deveriam ser construídos em regiões estratégicas; ou ainda
que o investimento em saúde seria insuficiente ou estaria direcionado
à atenção básica. Todas essas questões são relevantes e fazem parte do
diagnóstico do problema, mas fogem ao escopo do artigo, que trata de
compatibilizar um direito constitucional com um fenômeno judicial que
gera distorções e injustiça, para colocar em termos didáticos.

Não é razoável supor que em três anos a deficiência estrutural tenha


gerado uma demanda que aumentou de 75 para 740 liminares. O cres-
cimento da demanda – 1.000% em três anos – indica muito mais a atua-
ção proativa da Defensoria e a liberalidade do Poder Judiciário do que a
necessidade de crescimento de 1.000% dos leitos de UTI, que tomando
esse percentual indicaria a necessidade de quantitativo que supera qual-
quer lógica ou limitação real e orçamentária.

Para além desses dados, tem-se a questão da invasão de competên-


cia constitucional do Poder Judiciário na área de política pública de saúde
a partir de um raciocínio processual: Se há pedido judicial acompanhado
de prescrição médica, a tutela deve ser concedida, independentemente
de critérios que levem em consideração a limitação da realidade e sim-
plesmente desconsidere a racionalidade de uma fila de espera por leitos.
Nesse momento, é relevante considerar que não se têm notícias de ju-
dicialização da fila de transplante de órgãos, que é balizada por critérios
técnicos previamente definidos e a cargo de órgãos que centralizam a in-
formação globalmente, e não individualmente sem considerar a situação
de outros pacientes, como se tem verificado no caso das UTIs.

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287
O princípio da impessoalidade – que não é senão o próprio princípio
da igualdade ou isonomia de acordo com Celso Bandeira de Mello7 – é
solapado, de igual modo, porque a aplicação deveria ser linear e obser-
vada pelos três Poderes da República, até mesmo o Judiciário, surgindo
a inquietante questão “do tratamento diferenciado para aqueles que vão
a juízo reclamar uma prestação positiva e individualizada do Estado: em
que medida a prestação jurisdicional assecuratória de tratamento médi-
co individual atende, na sua plenitude, ao direito fundamental à saúde
consagrado no texto constitucional?”8 (LUPION, 2013, p. 315). A compa-
tibilização é problemática e de difícil superação.

Outro aspecto delicado do problema tem relação direta com a ques-


tão cultural da não aceitação da morte de um familiar, principalmente
em países de tradição católica; não com isso que seja ilegítimo buscar
o melhor tratamento disponível para o paciente, mas há limitações nos
tratamentos médicos que não podem ser superadas com a internação
em terapia intensiva. Há relatos de profissionais da saúde que se sentem
pressionados por familiares dos pacientes, que enxergam a UTI como um
recurso imprescindível para manutenção da vida e acabam por encami-
nhar o problema para a central de regulação de leitos.

Nesse particular, é sabido que o critério de priorização elaborado


pelo Conselho Federal de Medicina dispõe que “pacientes com doença
em fase de terminalidade, ou moribundos, sem possibilidade de recu-
peração” em geral não têm indicação de internação em leito de UTI, por
exemplo. A regra não é absoluta, sendo possível em alguns casos a análi-

7 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São
Paulo: Malheiros Editora, 1996, p. 68.
8 LUPION, Ricardo. O direito fundamental à saúde e o princípio da impessoali-
dade. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos Fundamentais:
orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 315.

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288
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

se individual a cargo do médico que faz a regulação, e não do profissional


que encaminha o paciente para a internação e muito menos por um ma-
gistrado que não tem conhecimento técnico para avaliar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre 2013 e 2016, a quantidade de decisões judiciais determinando


a internação de pacientes em leitos de terapia intensiva, no âmbito da ci-
dade de Fortaleza, passaram de 75 para 740 liminares, um incremento de
1.000%, sem que tenha havido registro de qualquer epidemia, desastre
natural ou causa externa que justifique o quadro.

As causas que explicam esse número de decisões judiciais, pelo me-


nos no âmbito local, passam pela estruturação material das Defensorias
Públicas (estadual e federal) que concentram a quase totalidade das
ações dessa natureza em demandas que tramitam na Justiça Federal e
Estadual; por deficiências estruturais do sistema brasileiro de saúde, que
vão de carência de leitos de internação não intensivos que geram uma
demanda para os leitos de terapia intensiva; por carência de equipamen-
tos de saúde na região metropolitana da cidade e interior do Estado.
Acresça-se a isso a questão cultural da não aceitação da irreversibilidade
do fenômeno morte em casos de pacientes terminais, combinada com a
pressão dos familiares dos enfermos sobre a ação do médico que acaba
por fazer o encaminhamento do paciente para leitos de terapia intensiva.

O entendimento consolidado pelo STF, que reverbera nas decisões ju-


diciais de todas as instâncias, é fator igualmente relevante na explicação
do crescimento das demandas judiciais. O raciocínio é simples: Se limina-
res foram concedidas para pacientes que estavam em uma fila de espera

Ir para o índice
289
por vaga, e estes tiveram prioridade “judicial” sobre outros enfermos, a
judicialização da questão é a única via legítima para obter a mesma provi-
dência, gerando um ciclo vicioso que se autoalimenta. A mudança de en-
tendimento verificada em decisões de parte dos juízes da Justiça Federal
as quais denegam liminares em casos de UTI ainda é insignificante, ainda
mais considerando o entendimento da segunda instância, mas provavel-
mente gerará racionalização no trato da questão nos anos seguintes.

As consequências do quadro aqui apresentado têm duas dimensões:


a primeira material, que aponta para o colapso do sistema de regulação
de UTI na cidade de Fortaleza, que, em 2016, recebeu 2,02 liminares por
dia da semana, inviabilizando qualquer planejamento do órgão e dificul-
tando a tomada diária de decisões sobre a vida ou morte de pacientes em
estado grave, a ponto de tornar impossível o cumprimento das ordens
judiciais porque forma-se uma fila dos “judicializados”, em detrimento
da fila dos não “judicializados”. Em razão disso, não é exagero dizer que
pacientes que poderiam estar vivos podem ter perecido em razão das
dificuldades do sistema de regulação por causa da (hiper)judicialização.

Outra consequência, na dimensão jurídico-constitucional, é o


enfraquecimento do princípio da impessoalidade que impõe o tra-
tamento equânime a todos, não justificando a internação de uns em
detrimento de outros, sem que se tenham informações sobre todos
que estão na espera de uma vaga em leito de UTI. Não há como fazer
a compatibilização do direito fundamental à saúde previsto no artigo
196 da Constituição da República, que fala da concretização do direito
por meio de políticas sociais e econômicas, e não por intermédio de
decisão judicial individual, sem comprometer o princípio da impes-
soalidade que obriga o tratamento sem discriminação a todos, e, em
última análise, o princípio da igualdade.

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290
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

REFERÊNCIAS

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo.


8. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa


do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Dispo-
nível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui-
cao.htm. Acesso em: 21 jul. 2019.

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria n.º 373, de 27 de feverei-


ro de 2002. Norma Operacional de Assistência à Saúde /SUS - NOAS-
-SUS 01/02. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/
gm/2002/prt0373_27_02_2002.html. Acesso em: 14 dez. 2017.

BRASIL. Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as


condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a orga-
nização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
L8080.htm. Acesso em: 14 dez. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º


271.286/RS. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pagi-
nador.jsp?docTP=AC&docID=335538. Acesso em: 14 dez. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento


de Preceito Fundamental n.º 45/RS. Disponível em: http://stf.jus.br/
portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=45&proces
so=45. Acesso em: 14 dez. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extra-


ordinário n.º 393.175-0/RS. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginador-
pub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=402582. Acesso em: 14 dez. 2017.

Ir para o índice
291
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agra-
vo n.º 867023/RJ. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/processo/ver-
ProcessoAndamento.asp?incidente=4713494. Acesso em 15 dez. 2017.

BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução n.º 2156, de 28


de outubro de 2016. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/
legislacao/?id=331807. Acesso em: 15 dez. 2017.

FORTALEZA. Decreto Municipal nº 11.411, de 26 de maio de 2003.


Sistema Único de Saúde (SUS). Disciplina as atividades da Central de Re-
ferência e Regulação das Internações de Fortaleza na forma que indica.
Disponível em: http://www.samu.fortaleza.ce.gov.br/index.php/reposi-
torio-institucional/send/9-legislacao-local-sms-fortaleza/8-decreto-11-
-411-de-20-de-maio-de-2003. Acesso em: 15 dez. 2017.

LUPION, Ricardo. O direito fundamental à saúde e o princípio da im-


pessoalidade. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (org.).
Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2013, p. 311-324.

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292
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Controle de sustentabilidade
pelos Tribunais de Contas
e a necessária ênfase à
dimensão ambiental
Sustainability control by the
Public Accounts and the
necessary emphasization of
the environmental dimension

DANIELA ZAGO GONÇALVES DA CUNDA

RESUMO

Neste estudo, sustenta-se a importância da dimensão ambiental/eco-


lógica da sustentabilidade, como dever e princípio constitucional. Nesse
contexto, a atuação das Cortes de Contas recebe destaque, com possi-
bilidade de controlar a qualidade da decisão política, que não poderá
apenas visar a demandas de curto prazo, mas também tutelar a solida-
riedade intergeracional assentada no princípio de curadoria das gerações
futuras. Simultaneamente, refere-se que os Tribunais de Contas deve-
rão preocupar-se não somente com o controle dos atos comissivos em
desconformidade com a lei, com Constituição Federal e com o princípio/
dever de sustentabilidade, mas também atentar para as omissões espe-
cíficas e flagrantemente inconstitucionais.

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293
Palavras-chave: Sustentabilidade. Solidariedade Intergeracional. Tri-
bunais de Contas. Controle Externo. Direitos e Deveres Fundamentais.
Direito Ambiental.

ABSTRACT

This study supports the importance of environmental/ecological di-


mension of sustainability, as duty and constitutional principle. In this
context, the role of the Public Accounts gets emphasis, with the possi-
bility to control the quality of political decision, which may not only aim
at short-term demands, but also protect intergenerational solidarity su-
pported in a curatorial principle of future generations. Simultaneously,
it refers to the Audit Courts should worry about not only with control
of leaving out acts in lack of conformity in law or the Constitution or
in principle/duty of sustainability, but also pays attention to the specific
omissions and notoriously unconstitutional.

Keywords: Sustainability. Intergenerational Solidarity. Public Accounts.


External Control. Fundamental Rights and Duties. Environmental Law.

INTRODUÇÃO

José de Alencar, ilustre filho do estado do Ceará, onde se realizou


uma das etapas do IX Seminário Internacional Diálogo Ambiental, Consti-
tucional e Internacional, além de seu brilhantismo como escritor, deixou
registrada sua eloquência na vida política, como em seu discurso “Voto
de Graças” que pretendia proferir na Sessão de 20 de maio, em 1873, no
Rio de Janeiro. O então deputado José de Alencar questionou: “Quem é

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294
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

responsável perante o país pelo ano inutilmente consumido, pelo abuso


de se governar durante dias sem lei de orçamento, recolhendo-se aos
cofres públicos, não impostos, mas verdadeiras extorsões?”1 No referi-
do discurso, em apertada síntese, destacou como necessidades públicas
mais urgentes a reforma eleitoral, a necessária coibição da corrupção no
governo e a necessidade de reforma municipal.

Percebe-se, facilmente, que as insustentabilidades social, econômica,


tributária e fiscal não são novas; já de longa data ensejam preocupações
e acarretarão sempre cautela.

Se há formas, mesmo que de alta complexidade, de contornar o or-


çamento ineficiente, a insustentabilidade financeira, ou alternativas para
coibir a corrupção e a dívida pública, quanto à dimensão ambiental da
sustentabilidade, “não há Planeta B”2.

Na atual “crise” econômico-financeira, escassez de recursos, necessi-


dade de estancar a corrupção, imposição de análise do comprometimento
de direitos fundamentais sob o manto da reserva do possível3 ou inevitabi-

1 Atualizou-se a grafia. Discurso disponível na íntegra, conforme acesso em nov.


2016, no site: http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/00016400#page/1/mode/1up.
2 Considerações sobre não haver “Planeta B” para as próximas gerações em abor-
dagem sobre a “Responsabilidade intergeracional e direito ao (ou dever de?) não uso dos
recursos naturais”, vide: GOMES, Carla Amado. Revista do Ministério Público. nº 145, jan./
mar. 2016. Lisboa, p. 75-99.
3 Sobre “reservas à reserva do possível” remete-se aos seguintes estudos mais
aprofundados sobre o tema: CUNDA, Daniela Zago Gonçalves da. Tutela da efetividade dos
direitos e deveres fundamentais pelos Tribunais de Contas: direito/dever fundamental
à boa administração pública (e derivações) e direitos fundamentais à saúde e à educa-
ção. Dissertação de Mestrado, PUC/RS, 2011. CUNDA, Daniela Zago Gonçalves da. Direito
fundamental à boa administração tributária e financeira. Revista Jurídica Tributária, Porto
Alegre: Nota Dez, v. 3, n. 10, p. 103-130, jul./set. 2010. A expressão “reservas à reserva do
possível” é da autoria e consta na seguinte obra: FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito
ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 307.

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295
lidade do controle da redução simplista de investimentos em serviços pú-
blicos essenciais4, defender a atuação dos Tribunais de Contas no controle
da gestão ambiental poderia aparentar um ato de coragem. A rigor, entre-
tanto, a atuação das Cortes de Contas na fiscalização do dever de tutela do
meio ambiente (a que os gestores públicos estão vinculados) trata de um
dever constitucional institucional. Ao mesmo tempo, a abordagem a ser
desenvolvida estará centrada no dever fundamental de tutela dos recursos
naturais ao qual todo cidadão está vinculado, e, por consequência, deverá
assumir sua parcela de responsabilidade e de atuação5.

Ao mesmo tempo em que os Tribunais de Contas deverão traçar linhas


de atuações considerando o fato de que o Brasil, infelizmente, ocupa po-
sição de destaque no ranking dos países mais corruptos (4ª posição de
nação mais corrupta do mundo, conforme levantamento realizado pelo
Fórum Econômico Mundial6, em comparativo entre 138 países; ou a 76ª

4 Especificamente a respeito da dimensão fiscal da sustentabilidade, comentários


sobre a necessidade de fiscalização das diretrizes trazidas pela Emenda Constitucional nº
93, de 8/9/2016, visando à desvinculação de receitas da União e estabelecer a desvincu-
lação de receitas dos Estados, Distrito Federal e Municípios, para que não comprometam
a eficácia de direitos fundamentais, e a necessária cautela na aplicação e fiscalização da
Emenda Constitucional nº 95, de 15/12/2016, que institui o Novo Regime Fiscal no âmbito
dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, vide: CUNDA, Daniela Zago Gon-
çalves da. Controle de Sustentabilidade Fiscal pelos Tribunais de Contas: tutela preventiva
da responsabilidade fiscal e a concretização da solidariedade intergeracional, In: LIMA, Luiz
Henrique; OLIVEIRA, Weder; CAMARGO, João Batista (Coord.). Contas Governamentais e
Responsabilidade Fiscal: desafios para o controle externo. Estudos de Ministros e Conse-
lheiros Substitutos dos Tribunais de Contas. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
5 Sobre um sistema de “responsabilidade partilhada” entre Administração Pública
e cidadãos pela boa efetivação dos direitos fundamentais: CUNDA, Daniela Zago Gonçalves
da. O Dever fundamental à saúde e o dever fundamental à educação na lupa dos Tribu-
nais (para além) de Contas. Porto Alegre: Simplíssimo Livros, 2013.
6 Cf. informação constante no site: http://reports.weforum.org/global-competiti-
veness-index/competitiveness-rankings/#series=GCI.A.01.01.02. Acesso em: 17 nov. 2016.

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296
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

posição no ranking da Transparência Internacional, dentre 168 países ana-


lisados7), terão de sopesar a situação global preocupante do ambiente.

Tal como afirma Viriato Soromenho-Marques, há certa exaustão


quanto ao termo “crise”, e a crise ambiental “é a única crise verdadei-
ramente planetária”,8 ao afetar indiscriminadamente todas as zonas da
Terra. Para o autor, há três características que distinguem e denotam a
gravidade da crise ambiental: a universalidade, a transtemporalidade e
a irreversibilidade (sua característica mais dramática). Carla Amado Go-
mes, ao referir as características da “verdadeira crise”, menciona que na
última década, no mês de agosto, começa-se a “viver em sobrecapacida-
de”, o que significa que seria preciso 1,5 Terra/ano (média) ou 4 Terras/
ano (levando-se em consideração a pegada ecológica de um cidadão dos
EUA) para satisfação das demandas humanas9.

No contexto nacional, a situação do ambiente também enfrenta pro-


longada crise e de fácil constatação, mediante notícias frequentes da re-
tomada do crescimento no desmatamento na Amazônia, sem falar nas
reiteradas sinalizações do ambiente a demonstrar o aquecimento global.
Ainda sobre o panorama nacional, em temática interligada ao ambien-
te, conforme relatório apreciado pelo Pleno do Tribunal de Contas da

7 Cf. dados apresentados no site: http://www.valor.com.br/internacio-


nal/4411692/brasil-piora-no-ranking-da-corrupcao-para-76-lugar-entre-168-paises. Aces-
so em: 17 nov. 2016.
8 SOROMENHO-MARQUES, Viriato. Crise Ambiental. Revista Visão. Jan. 2016.
Disponível em: http://www.viriatosoromenho-marques.com/. Acesso em: 17 nov. 2016.
9 GOMES, Carla Amado. Responsabilidade intergeracional e direito ao (ou de-
ver de?) não uso dos recursos naturais. Revista do Ministério Público, n.º 145; jan./mar.
2016, p. 75 e ss. Disponível em: http://wwf.panda.org/about_our_earth/all_publications/
lpr_2016/. Acesso em: 21 fev. 2016.

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297
União10, em meados de setembro de 2016, abordou-se a precária atu-
ação do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), órgão
responsável pela fiscalização das barragens do País. Quanto às barragens
de alto risco, verificou-se que apenas 6% das fiscalizações entre 2012 e
2015 foram feitas em barragens consideradas de alto risco. “A explicação
poderia vir do fato de que barragens classificadas como tal são minoria.
Ocorre que, no mesmo período, apenas 35% das barragens dessa natu-
reza foram fiscalizadas pelo DNPM”,11 conforme informou a equipe técni-
ca do Tribunal de Contas da União. “Em alguns estados da Federação, a
situação é mais grave; as superintendências do Amapá, Amazonas, Ma-
ranhão, Paraná, Rio de Janeiro, Rondônia e Sergipe não realizaram uma
fiscalização sequer entre 2012 e 2015”,12 acrescentou-se no Relatório.

Diante de quadro tão preocupante, cada cidadão e cada instituição


têm de agir com a máxima urgência. Ademais, no Brasil, há um dever
de tutela ambiental estabelecido no artigo 225 da Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil (CRFB), ou seja, há um dever fundamental de
sustentabilidade (com destaque à dimensão ambiental). Nesse contexto,
serão abordadas as possibilidades de atuações dos Tribunais de Contas,
antecedidas de noções sobre a atuação das Cortes de Contas em um
Estado Democrático de Direito e a tutela da efetividade dos direitos/de-
veres fundamentais (Tribunais para além de Contas).

10 Sobre Auditoria Operacional acerca do controle dos Planos de Segurança das Bar-
ragens de Mineração, implementados pelos empreendedores e fiscalizados pelo Departamento
Nacional de Produção Mineral (DNPM) vide: processo n.º TC-032.034/2015-6; Relator Ministro
José Múcio Monteiro, Acórdão do Pleno do TCU nº 2440/2016, Sessão em 21/9/2016.
11 Acórdão do Pleno do TCU nº 2440/2016, Sessão em 21/9/2016.
12 Acórdão do Pleno do TCU nº 2440/2016, Sessão em 21/9/2016.

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298
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

1. NOÇÕES SOBRE A ATUAÇÃO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS EM UM


ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO NA TUTELA DA EFETIVIDADE DOS DI-
REITOS/DEVERES FUNDAMENTAIS (TRIBUNAIS PARA ALÉM DE CONTAS)

Raras são as pesquisas sobre as possibilidades de atuação dos Tribunais


de Contas na tutela dos direitos e deveres fundamentais. Da mesma forma,
nas informações disponibilizadas à sociedade, pouco se divulga a atividade
das Cortes de Contas no desempenho de sua missão constitucional.

Sob um aspecto internacional, desde a Declaração dos Direitos do Ho-


mem e do Cidadão (artigo 15) ficou consignado o direito de solicitar pres-
tação de contas aos gestores públicos. No Brasil, a instituição do Tribunal
de Contas foi criada pelo Decreto nº 996-A (de 24/2/1891) e já constava
prevista na primeira Constituição da República, em 1891 (artigo 89), como
entidade responsável pela fiscalização das receitas e despesas públicas.

Os Tribunais de Contas são uma das modalidades de Entidade Fisca-


lizadora Superior ou Instituições Superiores de Auditorias (nomenclatu-
ras genéricas para referir instituições equivalentes em outros países); no
Brasil seguem o modelo colegiado (ao invés do modelo de controladoria
adotado por outros países como nos EUA – Government Accountability
Office13 –, e Inglaterra – National Audit Office)14 –, e não integram formal-
mente nenhum dos poderes constituídos15. Na Constituição da Repúbli-

13 Disponível em: http://www.gao.gov. Acesso em: 29 ago. 2016.


14 Disponível em: https://www.nao.org.uk. Acesso em: 29 ago. 2016.
15 Exemplificando: em Portugal, o Tribunal de Contas integra o Poder Judiciário (artigo
209, 1, “a”, da Constituição portuguesa), já na França, posiciona-se entre o Parlamento e o Gover-
no (artigo 47-2 da Constituição francesa) e liga-se à autoridade judicial (artigos 64 e seguintes), na
Espanha consta previsto no artigo 136 da Constituição espanhola, como Órgão Supremo fiscali-
zador das contas e gestão econômica do Estado. Para maiores aprofundamentos sobre estudos
comparativos entre instituições de controle, vide: CUNDA, Daniela Zago Gonçalves da. Modelos
de auditoria pública. Um estudo comparado entre instituições brasileiras e a italiana. Revista do
Tribunal de Contas de Minas Gerais, vol. 33, nº 1, jan. fev. mar. 2015, p. 62-86. Também dispo-
nível no seguinte site: https://libano.tce.mg.gov.br/seer/index.php/TCEMG/article/view/40/18.

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299
ca Federativa do Brasil, de 1988, receberam previsão nos artigos 70 e
seguintes, e são dotados de independência e garantias equiparadas ao
Poder Judiciário. No transcorrer de sua existência, constata-se que em
momentos de autoritarismo ficaram mais restritas suas atribuições16.
Na estrutura brasileira, as missões constitucionais devem ser visuali-
zadas conjuntamente com o dever constitucional de sustentabilidade,
mediante a leitura conjunta dos referidos dispositivos constitucionais
com os artigos 225; 170, inciso VI; 3º, todos da Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil.

Explicitamente a Carta Constitucional do Brasil prevê a possibilidade


de realização de inspeções, auditorias, assinar prazo para que o órgão ou
entidade adote as providências necessárias para o cumprimento da lei
(CRFB, artigo 71, inc. IX). Nesse contexto, os Tribunais de Contas deverão
também realizar o controle de sustentabilidade17 (da gestão ambiental
em conjunto com as demais dimensões)18.

16 Cumpre referir, todavia, que “são várias as propostas para reformar o Tribunal de
Contas (PECs 126/1995, 556/1997, 123/1999, 227/2000, 397/2001, 209/2003, 222/2003,
229/2004, 427/2005, 531/2006, 15/2007(S), 28/2007, 30/2007(S), 75/2007, 146/2007,
157/2007, 316/2008, 42/2009(S), 143/2012, 235/2012, 256/2013, 329/2013, 378/2014,
474/2014, 180/2015 e 276/2016), algumas encaminhando a sua extinção (PECs 19/1999,
36/1999(S), 193/2000, 329/2001, 90/2007(S) e 148/2015). Sobre o tema, vide: SARQUIS,
Alexandre Manir Figueiredo. Como o nosso Tribunal de Contas se compara ao de outros
países? Associação dos Membros dos Tribunais de Contas, 13-02-2017. Disponível em:
http://www.atricon.org.br/artigos/como-o-nosso-tribunal-de-contas-se-compara-ao-de-
outros-paises/. Acesso em: 27 fev. 2017.
17 Vide também: CUNDA, Daniela Zago G. da. Controle de sustentabilidade pelos
Tribunais de Contas: proposta de marco legal a ser utilizado no controle externo concreti-
zador da sustentabilidade ambiental. Revista Interesse Público, Belo Horizonte, ano 18, n.
96, mar./abr. 2016.
18 Dimensões especificadas no capítulo 2 do estudo já referido. CUNDA, Daniela
Zago Gonçalves da. Controle de Sustentabilidade pelos Tribunais de Contas. Tese de dou-
torado. Porto Alegre, PUCRS, 2016, p. 100 e ss.

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300
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Nos parâmetros constitucionais, há previsão de competência, no sen-


tido de dever constitucional, aos Tribunais de Contas para fiscalização,
de maneira a concretizar políticas públicas (nacionais e internacionais)
na tutela do meio ambiente e outros direitos fundamentais (v.g. saúde e
educação)19. Além dos dispositivos constitucionais acima referidos, cum-
pre destacar a necessária leitura do artigo 71 (com destaque também
dos incisos, IV, VIII, IX e X)20, com os parâmetros trazidos no artigo 225,
todos da Constituição da República Federativa do Brasil. Somente have-
rá eficiente gestão operacional e patrimonial quando forem levadas em
considerações as dimensões da sustentabilidade.

Em estudos anteriores,21 procurou-se desenvolver o que poderia ser


considerado bom paradigma de Corte de Contas, questão que merece
ser retomada, mesmo que resumidamente. Recebeu destaque a neces-
sária preocupação com a efetividade de direitos fundamentais e com o
correto cumprimento de deveres fundamentais (a incluir o meio ambien-
te equilibrado), considerando o modelo de Estado previsto na Constitui-
ção da República Federativa do Brasil, que de retraído assumiu postura
de Estado comprometido a tutelar uma gama crescente de direitos fun-
damentais. Consequentemente, os Tribunais de Contas deverão tutelar

19 Sobre o tema, abordagem desenvolvida mais especificamente: CUNDA, Daniela


Zago Gonçalves da. O Dever Fundamental à Saúde e o Dever Fundamental à Educação na
Lupa dos Tribunais (para além) de Contas. Porto Alegre: Simplíssimo Livros, 2013.
20 Vide também: MENDONÇA, Edalgina G. C. Furtado de. Tribunal de Contas e
Patrimônio ambiental: um novo paradigma de controle. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
21 Questão abordada mais detalhadamente em: CUNDA, Daniela Zago G. da. Os de-
veres das gerações presentes para com as futuras: atuação dos Tribunais (para além) de Contas
como provedores do princípio da solidariedade intergeracional. Revista do Tribunal de Contas
de Mato Grosso do Sul, v. 1, p. 1-28, 2015. E ainda: CUNDA, Daniela Zago G. da. Modelos de
auditoria pública. Um estudo comparado entre instituições brasileiras e a italiana. Revista do
Tribunal de Contas de Minas Gerais, vol. 33, n.º 1, jan./fev./mar. 2015, p. 62-86. Também
disponível em: https://libano.tce.mg.gov.br/seer/index.php/TCEMG/article/view/40/18.

Ir para o índice
301
os custos (lado lunar dos direitos fundamentais) e a qualidade dos inves-
timentos em direitos fundamentais. Em paralelo, os Tribunais para além
de contas deverão: a) providenciar um controle externo prévio e conco-
mitante (não apenas a posteriori); b) zelar pela efetividade de suas deci-
sões (mediante a utilização do poder geral de cautela), assim como pelo
enforcement de seus julgados (v.g. contornar o baixo valor das multas e
monitorar o efetivo ressarcimento ao erário); c) zelar pela averiguação
de resultados, incluindo o controle da qualidade dos investimentos no
setor público; d) estar em sintonia com o controle social, providenciando
o controle da efetividade dos princípios da publicidade e transparência
e do direito/dever à informação; e) monitorar a possibilidade de parti-
cipação social qualificada (v.g. com auxílio da advocacia, audiências e
consultas públicas efetivas e não meros simulacros); f) ter previsão cons-
titucional constituída por órgãos colegiados compostos por julgadores,
em sua maioria, com admissão mediante concurso púbico específico; e
g) consubstanciar o princípio ou direito/dever fundamental à sustentabi-
lidade e solidariedade intergeracional (em todas as suas dimensões)22.

Providenciada uma rápida abordagem sobre a atuação das Cortes


de Contas na tutela da efetividade dos direitos/deveres fundamentais,
como supedâneo para um recomendável modelo de Tribunal para além
de Contas, no tópico a seguir será mencionado o que se entende por
sustentabilidade multidimensional (dimensões ecológica/ambiental, so-
cial, econômica, fiscal, jurídico-política e ética) e a necessária primazia às

22 Destacaram-se apenas as diretrizes mais relevantes e pertinentes ao tema cen-


tral. Abordagem mais ampla consta nas seguintes pesquisas: CUNDA, Daniela Zago Gon-
çalves da. Controle de Sustentabilidade pelos Tribunais de Contas. Tese de doutorado,
2016... e O Dever Fundamental à Saúde e o Dever Fundamental à Educação na Lupa dos
Tribunais (para além) de Contas... 2013.

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302
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

dimensões ambiental e ecológica da sustentabilidade a ser providenciada


no controle de sustentabilidade pelos Tribunais de Contas.

2. CONTROLE DE SUSTENTABILIDADE MULTIDIMENSIONAL PELOS


TRIBUNAIS DE CONTAS (DIMENSÕES ECOLÓGICA/AMBIENTAL, SOCIAL,
ECONÔMICA, FISCAL, JURÍDICO-POLÍTICA E ÉTICA)

O princípio da sustentabilidade tem como características a estatura


constitucional (artigos 3º; 225; 170, IV, todos da Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil) e ser de eficácia direta e imediata23 a ensejar
controle sistemático (tarefa a ser exercida nos controles externo, interno,
social e realizado pelo Poder Judiciário e Ministério Público). No presen-
te estudo, utiliza-se a terminologia “sustentabilidade”, no sentido amplo
(sustentabilidade multidimensional)24 e no sentido estrito (sustentabili-
dade ecológica), ambas com status constitucional.

Antes da abordagem central deste estudo – sustentabilidade ambien-


tal e/ou ecológica –, serão tecidas considerações gerais quanto ao prin-
cípio e dever constitucional da sustentabilidade. O princípio em estudo

23 Considerações quanto ao direito/dever fundamental à sustentabilidade são de-


talhadas nos seguintes estudos: CUNDA, Daniela Zago G. da. Controle de Sustentabilidade
pelos Tribunais de Contas. Tese de doutorado. Porto Alegre, PUCRS, 2016. CUNDA, Daniela
Zago Gonçalves da. O Dever Fundamental à Saúde e o Dever Fundamental à Educação na
Lupa dos Tribunais (para além) de Contas. Porto Alegre: Simplíssimo Livros, 2013. CUNDA,
Daniela Zago G. da. Tutela da efetividade dos direitos e deveres fundamentais pelos Tribunais
de Contas: direito/dever fundamental à boa administração pública (e derivações) e direitos
fundamentais à saúde e à educação. Dissertação de Mestrado, PUC/RS, 2011.
24 Terminologia proposta pelo seguinte autor: FREITAS, Juarez. Sustentabilidade:
direito ao futuro. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

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303
redefine o papel e as funções do Estado, agregando uma missão de cura-
doria25 tanto ao Estado (administração e órgãos de controle – controles
interno e externo), como à sociedade (v.g. mediante o controle social,
consumo sustentável)26. Mais recentemente surge uma nova dimensão
de solidariedade,27 em sede específica e inicialmente ambiental – a soli-
dariedade intergeracional –, que está interligada e se confunde, de certo
modo, com a sustentabilidade (outro postulado do Direito Internacional
do Ambiente). De fato, “se a preocupação dos defensores do princípio da
solidariedade intergeracional (intergenerational equity)28 é assegurar o
aproveitamento racional dos recursos ambientais, de forma a que as ge-
rações futuras também possam deles tirar proveito, então a coincidência
entre ambas as noções é grande”29. Na Constituição da República Fede-
rativa do Brasil, o princípio da solidariedade entre gerações está previsto

25 BOSSELMANN, Klaus. O princípio da sustentabilidade: transformando direito e


governança. Tradução de Phillip Gil França. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 23.
26 Sobre o tema vide: GOMES, Carla Amado. Consumo sustentável: ter ou ser, eis
a questão. Disponível no site: http://www.icjp.pt/sites/default/files/papers/texto-ter_ou_
ser.pdf. Acesso em: 23 dez. 2013.
27 Sobre a noção de solidariedade sob a ótica do Direito Administrativo e positivação
da solidariedade no âmbito do Direito Público: REAL FERRER, Gabriel. La solidariedad em dere-
cho administrativo. Revista de administración pública (RAP), n. 161, mayo-agosto 2003. Dispo-
nível no site: https://dialnet.unirioja.es/descarga/.../721284.pdf. Acesso em: 21 jan. 2016.
28 Tendo como referenciais teóricos: BROWN WEISS, Edith. Our rights and obliga-
tions to future generations for the environment. What obligations does our generation
owe to the next? An approach to global environmental responsibility. AJIL, v. 94, p. 198
e ss, 1990. ______. In fairness to future generations: International Law, common patri-
mony and intergenerational equity, 1989. Tokyo, Japan: The United Nations University e
New York: Transnational Publishers. Chapter on Planetary Rights, pp. 95-117, 1989. E a
versão traduzida para o espanhol: BROWN WEISS, Edith. Un mundo justo para las futuras
generaciones: derecho internacional, patrimonio común y equidad intergeneracional.
Traducción de Máximo E. Gowland. Madrid: Ediciones Mundi-Prensa, 1999.
29 GOMES, Carla Amado. Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretiza-
dor de deveres de Protecção do Ambiente. Coimbra: Coimbra, 2007, p. 155.

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304
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

no caput do artigo 225, em conjunto com o artigo 170, VI, que consubs-
tancia o princípio da sustentabilidade30.

Juarez Freitas sustenta o “dever improtelável31, incorporado por nor-


ma geral inclusiva (CF, art. 5º, parágrafo 2º), de adotar a diretriz vinculan-
te da sustentabilidade”32. Tanto os gestores públicos, como os órgãos de
controle, assim como a sociedade deverão tomar consciência do referido
“dever de sustentabilidade”, postulado constitucional e constante em
inúmeros documentos internacionais.

Entende-se por sustentabilidade o dever constitucional e fundamen-


tal que objetiva tutelar direitos fundamentais (com destaque ao am-
biente ecologicamente equilibrado e aos direitos fundamentais sociais),
também princípio instrumento a dar-lhes efetividade, ou seja, princípio
que vincula o Estado (e suas instituições) e a sociedade, mediante res-
ponsabilidade partilhada, e redesenha as funções estatais, que deverão
ser planejadas não apenas para atender demandas de curto prazo, mas

30 Também previstos em várias outras Cartas Constitucionais, como na Consti-


tuição da República de Portugal, constando no artigo 66º/2/d. Paralelamente, o dever de
sustentabilidade quanto à dimensão ambiental encontra-se modelado no artigo 20a da
Lei Fundamental da Alemanha, que prevê a proteção ambiental como tarefa ou objetivo
estatal de proteção ambiental, de maneira a vincular os Poderes Públicos (sem, contudo,
prever uma dimensão subjetiva, ou um direito fundamental ao ambiente). Na Espanha, o
direito ao ambiente consta previsto no art. 45 da Constituição, de 1978 (junto aos princí-
pios destinados à política social e econômica). Para um apanhado mais completo “No plano
do Direito Constitucional comparado”, com ponderações críticas quanto ao princípio, vide
também: GOMES, Carla Amado. A insustentável leveza do “Princípio do Desenvolvimento
Sustentável”. Revista do Ministério Público 147, jul./set., 2016, p. 137-158. E ainda: CUN-
DA, Daniela Zago Gonçalves da. Controle de Sustentabilidade pelos Tribunais de Contas.
Tese de doutorado. Porto Alegre, PUCRS, 2016, pp. 16 e ss.
31 Cumpre questionar qual a natureza desse dever, se dever fundamental, dever
legal, dever constitucional ou de outra natureza? Entende-se que para além de um dever
constitucional e legal é também um dever fundamental. Tema a ser retomado na análise
dos princípios correlatos e ajustes terminológicos.
32 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte:
Fórum, 2012, p. 117 e ss.

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305
também providenciar a tutela das futuras gerações.33 Pretende-se com
o referido conceito abordar as duas noções de sustentabilidade: senti-
do amplo (englobando as dimensões ambiental, social, ética, fiscal, eco-
nômica e jurídico-política)34 e sentido mais específico (denominado por
Bosselmann como sustentabilidade forte)35, que, em regra, dá primazia à
dimensão ecológica (interligada ao dever fundamental de tutela ao am-
biente natural ecologicamente equilibrado)36.

O controle sistemático da sustentabilidade multidimensional a ser


exercido pelas Cortes de Contas deverá tutelar a própria qualidade de
vida (dignidade humana) e dos direitos fundamentais para além do am-

33 Conceito desenvolvido nos seguintes estudos: CUNDA, Daniela Zago Gonçalves


da. Controle de Sustentabilidade pelos Tribunais de Contas. Tese de doutorado, 2016,
pp. 32 e ss. CUNDA, Daniela Zago Gonçalves da. Controle de Sustentabilidade Fiscal pelos
Tribunais de Contas: tutela preventiva da responsabilidade fiscal e a concretização da soli-
dariedade intergeracional, In: LIMA, Luiz Henrique; OLIVEIRA, Weder; CAMARGO, João Ba-
tista (Coord.). Contas Governamentais e Responsabilidade Fiscal: desafios para o controle
externo. Estudos de Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas. Belo
Horizonte: Fórum, 2017.
34 Nos termos propostos por Juarez Freitas (Sustentabilidade: direito ao futuro,
3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016), Ignacy Sachs (Caminhos para o Desenvolvimento
Sustentável, 3. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2008) e detalhados no capítulo 2 do seguinte
estudo: CUNDA, Daniela Zago Gonçalves da. Controle de Sustentabilidade pelos Tribunais
de Contas (Tese de doutorado, 2016). Especificamente sobre o controle de sustentabilidade
fiscal, vide: CUNDA, Daniela Zago Gonçalves da. Controle de Sustentabilidade Fiscal pelos
Tribunais de Contas: tutela preventiva da responsabilidade fiscal e a concretização da so-
lidariedade intergeracional, In: LIMA, Luiz Henrique; OLIVEIRA, Weder; CAMARGO, João
Batista (Coord.) Contas Governamentais e Responsabilidade Fiscal.
35 BOSSELMANN, Klaus. O princípio da sustentabilidade, p. 47 e 27, 28, 36, 42.
36 Quanto à natureza de direito e também dever, vide: MEDEIROS, Fernanda
Fontoura. Meio Ambiente. Direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advoga-
do, 2004. Quanto ao “ambiente como bem jurídico”, enquanto direito e dever e tutela em
sentido objetivo e subjetivo, vide também: SARAIVA, Rute Neto Cabrita e Gil. A Herança de
Quioto em Clima de Incerteza: Análise Jurídico-Económica do Mercado de Emissões num
Quadro de Desenvolvimento Sustentado, p. 195 e ss. E ainda: ANTUNES, Tiago. Ambiente:
um direito, mas também um dever, in Estudos em memória do Professor Doutor António
Marques dos Santos, vol. II. Coimbra.

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306
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

biente equilibrado, como o direito à saúde, à educação e à previdência


social37 (que também requerem políticas públicas planejadas em longo
prazo). Concomitantemente, em sua essência, a sustentabilidade, como
sinônimo da manutenção da integridade dos sistemas ecológicos, deverá
ser objeto de controle frequente pelos Tribunais de Contas na análise da
gestão ambiental (inserida na noção de good governance)38.

Nesse contexto, a fiscalização a ser desempenhada pelos Tribunais


de Contas deverá ser abrangente, considerando-se a eficácia negativa do
princípio da sustentabilidade, abarcando a própria discricionariedade39,
denominada por Juarez Freitas de “discricionariedade vinculada”40.

Não há como se negar a complexidade de implementação do princípio


da sustentabilidade, ainda mais no âmbito internacional, em razão da au-
sência de normas cogentes, ou seja, considerando-se a “insustentável leve-
za da grande parte dos compromissos” internacionais, como afirma Carla

37 Sobre a temática e a atuação das Cortes de Contas, vide: LIMA, Luiz Henri-
que; SARQUIS, Alexandre (Coord.). Controle externo dos regimes próprios de Previdência
Social. Estudos de Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas. Belo Hori-
zonte: Fórum, 2016.
38 Cumpre lembrar que na Declaração de Nova Deli o princípio da good gover-
nance consta como um dos princípios interligados. Acerca do direito fundamental à boa
administração vide: FREITAS, Juarez. Direito Fundamental à boa Administração Pública,
3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. Sobre a visualização sob a ótica de “dever fundamen-
tal à boa administração”: FALZONE, Guido. Il Dovere di Buona Amministrazione. Milano:
Dott. A. Giuffrè Editore, 1953. CUNDA, Daniela Zago Gonçalves da. O Dever Fundamental à
Saúde e o Dever Fundamental à Educação na Lupa dos Tribunais (para além) de Contas.
Porto Alegre: Simplíssimo Livros, 2013.
39 FREITAS, Juarez. O Controle dos Atos Administrativos e os princípios funda-
mentais, p. 130: “parafraseando o artigo 421 do Código Civil, a liberdade administrativa só
poderá ser exercida ‘em razão e nos limites’ da sustentabilidade”.
40 FREITAS, Juarez. O Controle dos Atos Administrativos e os princípios fun-
damentais, p. 349 e ss.

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307
Amado Gomes41. Todavia, além da incorporação em normas de soft law, as
diretrizes do princípio da sustentabilidade acabaram por ser inseridas em
várias Cartas Constitucionais, como no Brasil, em que o princípio recebe
estatura de dever constitucional e tem sido detalhado em vários diplomas
infraconstitucionais, como será demonstrado no presente estudo42.

No que se refere à abrangência dos objetos protegidos no princípio (e


sua volatilidade),43 a delimitação das dimensões (quando em voga o senti-
do amplo de sustentabilidade) e o destaque da visualização da sustentabi-
lidade no sentido estrito (com foco no direito/dever ao ambiente) acabam
por suavizar a amplitude e esvaziamento do conceito de sustentabilidade.

Na concepção ampla do princípio da sustentabilidade (denominada


nesta investigação de sustentabilidade multidimensional),44 o papel de
curadoria do Estado e da sociedade é mais abrangente e está interliga-
do a uma amplitude de direitos fundamentais. Na fiscalização das várias
dimensões da sustentabilidade (fiscal, social, econômica, ética, político/
jurídica), a incluir com primazia as dimensões ecológica e ambiental, os

41 GOMES, Carla Amado. Risco e Modificação do Acto Autorizativo Concretiza-


dor de deveres de Protecção do Ambiente, p. 27 e ss. (versão ebook).
42 Para um apanhado mais completo dos diplomas legais atinentes ao ambiente
a serem fiscalizados pelos Tribunais de Contas: CUNDA, Daniela Zago Gonçalves. Controle
de sustentabilidade pelos Tribunais de Contas: proposta de marco legal a ser utilizado no
controle externo concretizador da sustentabilidade ambiental. Revista Interesse Público,
Belo Horizonte, ano 18, n. 96, mar./abr. 2016.
43 Carla Amado Gomes, na obra supra referida, refere que a “volatilidade do prin-
cípio do desenvolvimento sustentado, o relativismo geográfico da efectividade da protecção
do ambiente, aliados a uma posição jurídica intensamente permeável ao conceito meta-
morfoseante de qualidade de vida põem em causa a seriedade da proclamação de um
direito ao ambiente”. (p. 27 e ss.)
44 Com amparo na ideia sustentada por Juarez Freitas, em especial na seguinte
obra: Sustentabilidade: direito ao futuro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

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308
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Tribunais de Contas deverão controlar até mesmo o “controlador”, me-


diante sintonia do controle externo e interno45.

De maneira a contornar a complexidade de implementação da soli-


dariedade intergeracional, é importante que se registre a essencialidade
de trazer os interesses futuros à ponderação da tomada de decisões com
ênfase na política de Estado, na defesa de direitos fundamentais inter-
temporais, e não apenas em políticas de governo.

Uma das limitações apontadas por Edith Brown Weiss46 à solidarie-


dade intergeracional reside justamente no comprometimento da de-
mocracia e representatividade das gerações futuras. No transcorrer dos
últimos tempos, foram propostas alternativas de tutela da democracia
participativa das gerações futuras que poderão servir de inspiração às
Cortes de Contas (e demais órgãos de controle) até que o Brasil adote
instituições específicas para tal47. Destacam-se: a) Provedores para as ge-
rações futuras (Hungria, Israel e França);48 b) Comissões Parlamentares

45 Como, por exemplo, a situação referida nas considerações iniciais, quanto à


atuação do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), responsável pela fis-
calização das barragens do país, constada pelo Tribunal de Contas da União como “frágil e
deficiente”, não sendo suficiente, deste modo, para impedir a tragédia provocada pelo rom-
pimento da barragem da Samarco, em Mariana (MG). Controle direto da gestão ambiental
(medidas adotadas pelas Prefeituras e Governo Estadual e Federal).
46 BROWN WEISS, Edith. Our rights and obligations to future generations for the
environment… e a versão traduzida: BROWN WEISS, Edith. Un mundo justo para las futu-
ras generaciones: derecho internacional, patrimonio común y equidad intergeneracional.
Traducción de Máximo E. Gowland. Madrid: Ediciones Mundi-Prensa, 1999.
47 BURNS H. WESTON, Climate change and intergenerational justice: foundational
reflections, in Vermont Journal of Environmental Law, vol. 9, 2008, p. 375, ss. 387-388. O
autor analisa algumas propostas e acaba por aderir a tese de Elise Boulding como geração
presente “dos 200 anos” (two hundred years present), ou seja, geração presente será aque-
la que começou para quem faz cem anos hoje e terminará daqui a cem anos, quando um
bebê hoje nascido fizer cem anos.”
48 GOMES, Carla Amado. Responsabilidade intergeracional e direito ao (ou dever de?)
não uso dos recursos naturais. Revista do Ministério Público, n. 145; jan./mar. 2016, p. 75 e ss.

Ir para o índice
309
para futuras gerações (Finlândia e Israel); ou ainda, c) Ministro da Mãe
Terra ou Provedor da Terra (cf. nova Constituição da Bolívia) com especial
missão a defesa dos interesses da Natureza, contornando a “falência do
antropocentrismo” e o reconhecimento de “direitos ao não uso”49.

Nessa linha, o papel de tutela das decisões administrativas, mais de Es-


tado do que temporárias e de governo, e o papel de provedor da equidade
intergeracional ou da sustentabilidade, no Brasil, poderiam ser assumidos
por várias instituições, como pelos Tribunais de Contas, Ministério Público
e Advogados Públicos (de “Estado”), com ênfase no dever de prevenir, mais
que no dever de reparação; assim, em simultâneo, mediante tutela da
responsabilidade intrageracional pela “ponderação imparcial do interesse
ambiental e na inclusão desta no processo decisório”50.

Esboçadas considerações sobre a sustentabilidade multidimensional,


antes do exame da dimensão ecológica e/ou ambiental,51 convém retomar
algumas questões referentes à delimitação da sustentabilidade e às moda-
lidades de controle de sustentabilidade pelos Tribunais de Contas, o qual,
embora seja uno, para melhor visualização, foi especificado em estudos an-

49 Nos termos referidos por Carla Amado Gomes, com amparo nos ensinamentos
de Jan Laitos, in Responsabilidade intergeracional e direito ao (ou dever de?) não uso dos
recursos naturais. Revista do Ministério Público, n. 145; jan./mar. 2016, p. 75 e ss. Vide
também: http://wwf.panda.org/about_our_earth/all_publications/lpr_2016/. (acesso em
fevereiro/2016). A autora também questiona: “quem é o melhor intérprete do interesse
ambiental”? Seriam somente as Cortes Constitucionais (como o STF, no Brasil)? Somente
Tribunais Internacionais, supranacionais?
50 Conforme mesma autora e mesma obra.
51 Detalhamento sobre as demais dimensões da sustentabilidade, conforme já
referido, vide: CUNDA, Daniela Zago Gonçalves da. Controle de Sustentabilidade pelos
Tribunais de Contas, p. 32 e ss. e CUNDA, Daniela Zago Gonçalves da. Controle de Susten-
tabilidade Fiscal pelos Tribunais de Contas: tutela preventiva da responsabilidade fiscal e a
concretização da solidariedade intergeracional, In: LIMA, Luiz Henrique; OLIVEIRA, Weder;
CAMARGO, João Batista (Coord.). Contas Governamentais e Responsabilidade Fiscal.

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310
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

teriores, tendo como modalidades o controle de sustentabilidade ecológica,


controle de sustentabilidade social e controle de sustentabilidade fiscal.

Pretendeu-se ter deixado claro que a ideia básica de sustentabilidade


é composta pela dimensão ecológica (com o fim precípuo de garantir
a durabilidade dos bens ambientais naturais e o equilíbrio dos ecossis-
temas terrestres) e nessa dimensão, em regra, deverá estar centrado o
controle de sustentabilidade a ser realizado pelos Tribunais de Contas.
Conjuntamente, mesmo diante das dificuldades de operacionalização da
sustentabilidade multidimensional (no sentido amplo), os Tribunais de
Contas deverão também visualizar as demais dimensões da sustentabili-
dade (com destaque a dimensão fiscal, sua missão por excelência).

O controle de sustentabilidade social deverá ter como parâmetro os


direitos fundamentais sociais previstos na Carta Constitucional, os quais
integram especificamente a dimensão social. Por tal motivo, um desejá-
vel controle de sustentabilidade social deverá averiguar a gestão da saú-
de, da educação,52 da segurança pública, a gestão da previdência social
(e da seguridade social, a englobar a assistência social e saúde também),
a gestão urbanística a tutelar moradia universal e digna, o cumprimento
da atenção prioritária à infância, inclusão de pessoas com deficiências e
refugiados em termos ecológicos, assim como a gestão da mobilidade ur-
bana, de maneira a instrumentalizar o direito ao transporte. O controle
da sustentabilidade social, ainda, em conjunto com questões relaciona-
das às dimensões fiscal e jurídico-política (que lhe dão suporte), também

52 Estudo mais específico que aborda temáticas referentes ao controle de sus-


tentabilidade social, em especial quanto aos direitos/deveres fundamentais à saúde e à
educação: CUNDA, Daniela Zago Gonçalves da. O Dever Fundamental à Saúde e o Dever
Fundamental à Educação na Lupa dos Tribunais (para além) de Contas. Porto Alegre:
Simplíssimo Livros, 2013.

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311
abarcará a fiscalização do acesso público aos dados e informações de
interesse público em geral e interesse ambiental53.

No exercício do controle externo, simultaneamente com o controle


de sustentabilidade referente à dimensão ecológica e à dimensão social,
os Tribunais de Contas realizarão o controle de sustentabilidade fiscal,
uma de suas funções mais características, tendo por principal objeto o
controle das leis orçamentárias, controle das diretrizes estabelecidas na
Lei de Responsabilidade Fiscal, controle da qualidade dos gastos e efeti-
vidade dos direitos fundamentais que visam a financiar (em especial a
gestão ambiental) e controle preventivo a obstaculizar fatores de insus-
tentabilidade fiscal (“pedaladas fiscais”, a dívida pública e a corrupção).

A dimensão jurídico-política não enseja a sistematização de um con-


trole de sustentabilidade específico, mas tem o propósito de dar o su-
porte instrumental na implementação das demais dimensões. Assim, o
controle de sustentabilidade, a ser realizado quanto às demais dimen-
sões, deverá abranger a averiguação da dimensão jurídico-política, ou
seja, avaliar o cumprimento dos dispositivos constitucionais, legais e
documentos internacionais (sentido lato, a incluir normas soft law) re-
ferentes à sustentabilidade multidimensional (a incluir a sustentabilidade
ecológica, sentido estrito); conjuntamente, deverá verificar se a tomada
de decisão foi preventiva, motivada, transparente, participativa e com
ponderações a longo prazo. Da mesma forma, as dimensões econômica e
ética não implicam realização de controle de sustentabilidade específico,
mas devem ser levadas em consideração nas ponderações das decisões

53 Conforme as Leis nº 10.650, de 2003, Leis Complementares nº 101, de 2000,


e nº 131, de 2009 e Lei nº 12.527, de 2011.

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312
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

políticas e respectivas sindicabilidades. Quanto ao controle de sustenta-


bilidade, tendo por base a dimensão econômica, em determinadas situ-
ações, a intervenção do Estado (ou a ausência dela) e outras questões
atinentes à dimensão econômica poderão ser objeto de sindicabilidade
pelos Tribunais de Contas.

Como será abordado a seguir, os Tribunais de Contas, ao realizarem o


controle de sustentabilidade ecológica,54 com amparo no marco legal que
dá suporte ao artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil,
deverão averiguar a efetividade das diretrizes estabelecidas nas leis infra-
constitucionais, em especial as que tutelam a noção de “meio ambiente
natural”. E ainda, adotando-se uma noção mais ampla de ambiente, deve-
rão estar inseridas no controle de sustentabilidade ambiental55 questões
relacionadas ao “meio ambiente urbano”, temáticas abordadas a seguir.

3. PRIMAZIA DA DIMENSÃO AMBIENTAL E/OU ECOLÓGICA DA SUS-


TENTABILIDADE

Conforme ajuste terminológico realizado anteriormente, o sentido


mais estrito de sustentabilidade, com primazia dos interesses ecossistê-
micos, denomina-se dimensão ecológica da sustentabilidade. Já a visuali-
zação mais abrangente é tratada como sustentabilidade multidimensional.

54 No controle de sustentabilidade ecológica, pelo que se demonstrou, deverá


receber destaque o controle da tutela do “meio ambiente natural”.
55 Em um sentido mais amplo que o “controle de sustentabilidade ecológica” (des-
tinado a averiguar especificamente questões relacionadas ao meio ambiente natural), porém
não tão amplo quanto ao controle de sustentabilidade (que abarca as demais dimensões).

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313
Independentemente da terminologia que se utilize, entende-se que
ao se salvaguardar a dimensão ecológica contribui-se igualmente para a
sustentabilidade multidimensional56.

Nessa linha, encontram-se várias manifestações doutrinárias, como


a de Klaus Bosselmann que afirma que “o conceito de desenvolvimento
sustentável apenas é significativo quando relacionado com a ideia cen-
tral de sustentabilidade ecológica”57. Carla Amado Gomes, ancorada na
análise do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil e
no artigo 66º/2/d da Constituição Portuguesa, sustenta que ao garantir a
durabilidade dos bens ambientais e o equilíbrio dos ecossistemas terres-
tres salvaguarda-se a sustentabilidade ecológica e contribui-se igualmen-
te para a sustentabilidade ambiental58.

Carlowitz, apontado como um dos criadores do termo sustentabili-


dade, percebia as condições ecológicas como determinantes para todas
as atividades humanas, não se referindo apenas às demandas econômi-
cas em face da sustentabilidade ecológica, ressaltando também as pre-
ocupações sociais (com a ética fincada na justiça social) como parte da
sustentabilidade ecológica. Sua obra precursora demonstra apelo pela
responsabilidade com as gerações futuras59.

56 Nesse sentido, da sustentabilidade ecológica e sustentabilidade ambiental (ora


denominada “sustentabilidade multidimensional”) como realidades complementares: GO-
MES, Carla Amado. Sustentabilidade ambiental: missão impossível?
57 BOSSELMANN, Klaus. O princípio da sustentabilidade: transformando direito
e governança, p. 27.
58 GOMES, Carla Amado. Sustentabilidade ambiental: missão impossível? Cum-
pre mencionar que a autora portuguesa adota as terminologias de J. J. Gomes Canotilho,
referindo-se à sustentabilidade no sentido essencial (e estrito) como sustentabilidade eco-
lógica, e no sentido amplo denomina sustentabilidade ambiental.
59 CARLOWITZ, H. C. Von (1713). Sylvicultura oeconomica. Anweisung zur wilden
Baum-Zucht (Leipzig, repr. Freiberg, TU Bergakademie Freiberg und Akademische Buchhan-
dlung, 2000). Cf. BOSSELMANN, Klaus. O princípio da sustentabilidade, p. 36 e 37.

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314
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Assim, pelo afirmado até o momento, é essencial o cumprimento do


dever de tutela ao meio ambiente (sentido amplo), razão pela qual é ne-
cessária a mais urgente visualização da sustentabilidade pelos Tribunais
de Contas com enfoque especial na dimensão ecológica (ambiental).

Gomes Canotilho subdivide a sustentabilidade em: i) sustentabilidade


ambiental (sentido mais amplo, lastreado na ideia de aproveitamento de re-
cursos naturais para geração de riqueza e bem-estar com condicionamentos
crescentes); e, ii) sustentabilidade ecológica (sentido estrito, com objetivo
de gestão dos bens ambientais naturais, com interesses ecossistêmicos, com
valor intrínseco e independente do seu valor de uso ou de mercado)60.

Diante das considerações apresentadas, sem maiores delongas,


entende-se por dimensão ecológica da sustentabilidade a que predo-
minantemente dá primazia ao interesse ecossistêmico, de maneira a
visualizar a sustentabilidade como um objetivo centrado na gestão dos
“bens ambientais naturais” com valor intrínseco e independentemente
do seu valor de uso ou de mercado. Essa delimitação da dimensão da
sustentabilidade é inspirada nas considerações de Carla Amado Gomes
que muito bem sintetiza que a sustentabilidade, por si só, se assenta
em duas premissas: “i) assegurar mecanismos de compensar no futuro,
as perdas do presente; ii) trazer os interesses futuros à ponderação da
tomada de decisões no presente”61.

60 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Sustentabilidade. Um romance de cultura e


de ciência para reforçar a sustentabilidade democrática. Boletim da Faculdade de Direito.
Universidade de Coimbra, v. 88, (1), 2012. p. 1-11.
.
61 GOMES, Carla Amado. Sustentabilidade ambiental: missão impossível? Dis-
ponível em: http://www.icjp.pt/sites/default/files/papers/palmas-sustentabilidade.pdf.
Acesso em 2 maio. 2015.

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315
Por consequência, no controle de sustentabilidade ecológica, deverá
receber destaque o controle da tutela do “meio ambiente natural”. Con-
juntamente, adotando-se uma noção mais ampla de ambiente, também
deverão estar inseridas no controle de sustentabilidade ambiental ques-
tões atinentes ao “meio ambiente urbano” (Lei nº 10.257, de 2001, e Lei
nº 13.089, de 2015, Estatutos da Cidade e da Metrópole) e “meio am-
biente do trabalho” (em especial a preocupante terceirização abusiva)62.

No transcorrer desta pesquisa afirma-se a primazia “em tese” da di-


mensão ecológica/ambiental, considerando-se primordial a análise de
cada caso concreto a ser realizada tanto pelo Administrador como pe-
los Tribunais de Contas no exercício do controle de sustentabilidade. Dito
com outras palavras, como regra geral a essência da sustentabilidade
encontra-se abarcada pela dimensão ecológica.

Os documentos internacionais com a intenção de abranger as demais


dimensões da sustentabilidade e de conceder tutela a vários direitos fun-
damentais (ou direitos humanos, no sentido internacional) para além da
proteção específica do ambiente natural, acabam por gerar imprecisão
do que seja sustentabilidade em seu cerne63. Na leitura das declarações
internacionais, é necessário que se dê ênfase às diretrizes atinentes a tu-
telar o meio ambiente natural e o equilíbrio dos ecossistemas terrestres.
Importante, portanto, mais uma vez pontuar que o núcleo da sustentabi-
lidade é sua dimensão ecológica.

62 Cumpre esclarecer que no presente estudo, em regra, utiliza-se o termo susten-


tabilidade ecológica como sinônimo de ambiental, no sentido estrito e atrelados ao meio
ambiente, todavia, a rigor, em uma terminologia mais precisa, adotada em outras pesqui-
sas, há distinção, como acima referido.
63 M. PALLEMAERTS, La Conférence de Rio: Grandeur et décadence du Droit Inter-
national de l’Environnement? RBDI, 1995/1, p. 175 ss. e 185 ss.

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316
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

De maneira a realizar a leitura com enfoque “ecológico” das recentes


tratativas da ONU (2015), a dimensão ecológica (ambiental) encontra-
-se predominantemente prevista ao objetivar-se a gestão sustentável da
água e saneamento para todos (item 6), cidades sustentáveis (item 11),
tomada de medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus
impactos (item 13), proteção e restauração dos ecossistemas terrestres,
combate à desertificação, reversão da degradação da terra, estancar a
perda de biodiversidade e gestão sustentável das florestas (item 15).

Temáticas idênticas foram reafirmadas na Conferência das Nações


Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável do Rio de Janeiro (2012),
conforme as que constam no quadro de ação e acompanhamento: água
e saneamento, energia renovável, agricultura sustentável, cidades e
assentamentos humanos sustentáveis, oceanos e mares, mudanças cli-
máticas, florestas, biodiversidade, desertificação, degradação do solo e
seca, produtos químicos e resíduos, consumo e produção sustentáveis.

No âmbito nacional, o artigo 225 da Constituição da República Fede-


rativa do Brasil também traz várias diretrizes atinentes à concepção ori-
ginal de sustentabilidade, ou seja, sua dimensão ecológica, assim como
prevê explicitamente a solidariedade (ou equidade) intergeracional. O
Capítulo destinado ao “Meio Ambiente” estabelece, no artigo referido,
o dever de defesa e preservação do ambiente às presentes e futuras ge-
rações, estabelecendo como destinatários desse dever constitucional o
Poder Público e a sociedade, mediante responsabilidade compartilhada.
O parágrafo primeiro do art. 225 estabelece, em seus sete incisos, dire-
trizes visando à efetividade do dever de tutela ao ambiente, de maneira
a preservar e restaurar os processos ecológicos de manejo ecológico das
espécies e ecossistemas, patrimônio genético, determinação de áreas a
serem protegidas, estudo prévio de impacto ambiental, controle da po-
luição e proteção da fauna e da flora.

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317
Reconhecer o “valor intrínseco e não meramente instrumental atribuído
ao ser humano” não impede o reconhecimento deste mesmo valor intrínse-
co “quanto a outras formas de vida não humana, ou seja, à própria Natureza
em si”, com amparo no que Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer denominam de
“antropocentrismo jurídico ecológico”.64 Adotando-se uma posição antropo-
centrista ecológica, ou ecocentrista, ou ainda antropocentrista jurídico-ecoló-
gica, a conclusão acabará por ser a mesma: não poderá haver vida humana
sem o resguardo do objeto abarcado pela dimensão ecológica.

Nessa linha, Juarez Freitas, ao abordar a dimensão ambiental da sus-


tentabilidade, apresenta três assertivas: “não pode haver qualidade de
vida e longevidade digna em ambiente degradado”, “não pode sequer
haver vida humana sem o zeloso resguardo da sustentabilidade ambien-
tal” e “ou se protege a qualidade ambiental ou, simplesmente, não have-
rá futuro para a nossa espécie”65.

Pretende-se ter deixado claro que a ideia básica de sustentabilidade é


composta pela dimensão ecológica (com o fim precípuo de garantir a du-
rabilidade dos bens ambientais naturais e o equilíbrio dos ecossistemas
terrestres) e nesta dimensão, em regra, deverá estar centrado o controle
de sustentabilidade a ser realizado pelos Tribunais de Contas.

Os Tribunais de Contas, ao realizarem o controle de sustentabilidade


ecológica, tendo em mente o respectivo marco legal66 (que dá suporte
ao artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil) a se-
guir referido, deverão averiguar o correto destino dos resíduos sólidos

64 SARLET, Ingo; FENSTERSEIFER, Tiago. Princípios do direito ambiental, p. 61.


65 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro, p. 65.
66 CUNDA, Daniela Zago G. da. Controle de sustentabilidade pelos Tribunais de Con-
tas: proposta de marco legal a ser utilizado no controle externo concretizador da sustentabilida-
de ambiental. Revista Interesse Público, Belo Horizonte, ano 18, nº 96, mar./abr. 2016.

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318
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

(Lei nº 12.305, de 2010), saneamento ambiental (Lei nº 11.445, de 2007),


controle da qualidade das águas (Lei nº 9.433, de 1997),67 índices de po-
luição (atmosférica, sonora, química, v.g. Lei nº 7.802, de 1989), impac-
tos ambientais (a incluir tutela referente às mudanças climáticas, Lei nº
12.187, de 2009) e se a gestão ambiental dá primazia às energias reno-
váveis e aquisição de produtos e serviços sustentáveis (Lei nº 12.349, de
2010). Conjuntamente, dependendo da situação geográfica, o controle de
sustentabilidade ecológica deverá abarcar a fiscalização de quais as medi-
das tomadas quanto ao combate à desertificação (Lei nº 13.153, de 2015),
reversão da degradação da terra, perda de biodiversidade, a responsável
gestão das florestas (Lei nº 11.284, de 2006, e Lei nº 12.854, de 2013),
oceanos e mares (Lei nº 11.959, de 2009) e proteção da fauna e da flora
em geral (Leis nº 9.605, de 1998, nº 12.651, de 2012, e 12.727, de 2012).

Tendo em mente as abordagens anteriores, depreende-se que o con-


trole externo deverá concomitantemente ser um controle de sustentabi-
lidade, mediante algumas adaptações de instrumentos em parte já são
utilizados pelos Tribunais de Contas e Entidades Fiscalizadoras Superiores,
como abordado nas linhas a seguir. Embora um dos objetos centrais da
pesquisa seja o controle de sustentabilidade ecológica, que tem sido o as-
pecto que mais enseja implementações e aprimoramentos, os instrumen-
tos de controle externo concretizador da sustentabilidade, a seguir trata-
dos, destinam-se ao controle de sustentabilidade multidimensional, que é
uno e composto pelo controle de sustentabilidade ambiental,68 controle de

67 De maneira a incluir as águas subterrâneas, qualidade da água, enchentes, sane-


amento e ambiente marinho. Sobre o tema vide: LEEUWEN, Sylvia van. Auditoria em Assuntos
Hídricos: Experiências das Entidades Fiscalizadoras Superiores (EFS). Texto traduzido, original da
EFS da Holanda. Revista do Tribunal de Contas de Portugal. Jul./dez.2004, pp. 286/301.
68 A incluir o controle de sustentabilidade ecológica, referente ao controle mais
específico do meio ambiente natural.

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319
sustentabilidade social e controle de sustentabilidade fiscal, todos em cote-
jo com as demais dimensões (político-jurídica, econômica e ética).

4. CONTROLE DE LEGALIDADE AMPLIADO E INDUTOR DE SUSTEN-


TABILIDADE, SIMILAR AOS CONTROLES DE CONSTITUCIONALIDADE,
CONVENCIONALIDADE E CONTROLE DE UM ESTADO DE COISA INCONS-
TITUCIONAL (ECI) PELOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Em investigação mais ampla69, foram desenvolvidas algumas propos-


tas de instrumentos a serem utilizados pelos Tribunais de Contas no con-
trole de sustentabilidade, tanto na modalidade de controle de sustentabi-
lidade ecológica/ambiental como nos controles de sustentabilidade fiscal
ou social. Os instrumentos que mereceram destaque, pela possibilidade
de aprimoramento e fiscalização da qualidade dos investimentos nos di-
reitos fundamentais, nomeadamente foram: a) auditorias operacionais e
auditorias coordenadas de sustentabilidade; b) termo de ajustamento de
gestão sustentável; c) realização e controle de qualidade das audiências
e demais participações públicas; d) controle de sustentabilidade simul-
tâneo e poder geral de cautela; e e) controle de legalidade ampliado e
indutor de sustentabilidade (com similitudes aos controles de constitu-
cionalidade, convencionalidade e controle de um Estado de Coisa Incons-
titucional (ECI)), ferramenta a ser detalhada a seguir.

69 CUNDA, Daniela Zago Gonçalves da. Controle de Sustentabilidade pelos Tri-


bunais de Contas. Tese de doutorado, 2016, pp. 32 e ss. CUNDA, Daniela Zago Gonçal-
ves da. Controle de Sustentabilidade Fiscal pelos Tribunais de Contas: tutela preventiva da
responsabilidade fiscal e a concretização da solidariedade intergeracional, In: LIMA, Luiz
Henrique; OLIVEIRA, Weder; CAMARGO, João Batista (Coord.) Contas Governamentais e
Responsabilidade Fiscal: desafios para o controle externo. Estudos de Ministros e Conse-
lheiros Substitutos dos Tribunais de Contas. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

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320
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A missão de controle de legalidade estabelecida constitucionalmente


aos Tribunais de Contas, no caput do artigo 70 da Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil, necessariamente deverá englobar averiguação
de conformidade com a Constituição Federal, incluindo seus princípios
fundamentais e o princípio/dever de sustentabilidade multidimensional.
Nas questões ambientais, deverá ser providenciada uma leitura conjunta
dos artigos 70 e ss. com os artigos 225, 3º e 170, VI, todos da Constitui-
ção da República Federativa do Brasil.

É essencial que se registre que o controle de legalidade e de constitu-


cionalidade a que se propõe deverá ser específico, interligado aos casos
concretos, dentro das atribuições das Cortes de Contas, sem afronta ao
princípio da unidade da jurisdição e à ampla atuação do Poder Judiciário.
O Tribunal de Contas tem “como dever70, mas sem adentrar em compe-
tência alheia (do Judiciário),71 agir dentro dos limites de suas atribuições
(de modo que não declara inconstitucionalidade) e negar executoriedade
ao ato de administração inconstitucional,”72 com respaldo na competência
original aprofundada73 ou na teoria dos poderes implícitos74. Se é corre-

70 Pontes de Miranda sustenta tratar-se de um dever, não só poder dos Tribunais


de Contas para examinarem e interpretarem a lei, sindicando sua constitucionalidade. MI-
RANDA, Pontes de. Comentários à Constituição Federal de 1967, com a Emenda 1/69. 2.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, t. II. p. 249.
71 Considerando-se o princípio constitucional da jurisdição una.
72 SCHMITT, Rosane Heineck. Tribunais de Contas no Brasil e Controle de Cons-
titucionalidade. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, 2006. p. 205.
73 Nos dizeres de: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e
Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, p. 493 - 494.
74 Implied Powers, nos termos constantes na Jurisprudência da Suprema Corte Ame-
ricana. No direito constitucional norte-americano, desenvolveu-se a doutrina dos poderes implí-
citos dos órgãos constitucionais, também denominados “inerentes”, “incidentes”, “deduzidos”
ou “agregados”. Trata-se da outorga de poder que não é expressamente declarada na Constitui-
ção nem especificamente concedido pelo Congresso, in FISHER, Louis. Constitutional Conflicts
between Congress and the President. 4. ed. Kansas: University Press of Kansas, 1997, p.14.

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321
to afirmar que o controle de constitucionalidade é tarefa do Poder Judi-
ciário, também é verdadeira a assertiva de que “todos são intérpretes da
Constituição”75 e por consequência o controle de sua observância não é
monopólio de um dos três Poderes76. Nesse contexto, cumpre esclarecer
que as Cortes de Contas não exercem o controle repressivo de constitucio-
nalidade, mas sim uma averiguação de consonância das normas aplicadas
frente à Constituição Federal77 e aos seus princípios fundamentais, incluin-
do-se o princípio/dever de sustentabilidade multidimensional.

Cumpre ser referido que embora haja previsão na Súmula nº 347 do


Supremo Tribunal Federal de que “o tribunal de contas, no exercício de
suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos
do poder público”, a possibilidade de averiguação da legalidade e legiti-

75 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intér-


pretes da constituição: constituição para a interpretação pluralista e “Procedimental” da
constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Fabris Editor, 2002. Nas p. 17
e ss. refere o autor que “no processo de interpretação constitucional estão potencialmente
vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e gru-
pos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus
de intérpretes da Constituição”.
76 Nesse sentido, vide: BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional:
legitimidade democrática e instrumentos de realização. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.
Também abordando a temática: BITENCOURT, Lucio. O controle jurisdicional da constitu-
cionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1949, p. 91 e ss.; CLÈVE, Clèmerson Merlin, A
fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2 ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000, p. 246 e ss. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constituciona-
lidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004; BARROSO, Luís Roberto. Tribunais
de Contas: algumas competências controvertidas. In: BARROSO, Luís Roberto. Temas de
direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
77 Em sentido semelhante, Ricardo Lobo Torres, sobre o controle de legalidade
pelos Tribunais de Contas, afirma que o controle “implica ainda o da superlegalidade, ou
seja, o da constitucionalidade das leis e atos administrativos.” (TORRES, Ricardo Lobo, p.
36 e ss.) Vide, especificamente sobre o tema, dentre outras obras: WILLEMAN, Marianna
Montebello. Controle de constitucionalidade por órgãos não jurisdicionais. Revista Fórum
Administrativo. Belo Horizonte, ano 12. n. 139, p. 56-75, set. 2012.

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322
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

midade (a incluir a fiscalização de consonância com a Constituição Federal,


seus princípios, direitos/deveres fundamentais, e com tratados internacio-
nais) descende diretamente da Constituição Federal (artigo 70, caput). Em
várias Cortes de Contas, aplica-se até mesmo a Súmula Vinculante nº 10 do
Supremo Tribunal Federal, declinando-se a competência para o julgamento
de tais questões constitucionais ao Pleno dos Tribunais de Contas.

Ademais, os Tribunais de Contas deverão preocupar-se não somente


com os atos comissivos em desconformidade com a lei, com Constituição
Federal e com o princípio/dever de sustentabilidade, mas também aten-
tar para as omissões específicas e flagrantemente inconstitucionais, com
destaque às omissões que acarretam insustentabilidades ecológicas, am-
bientais, fiscais, sociais, econômicas, jurídico-políticas e éticas (situação
em que o controle a que se propõe estará muito próximo ao controle
de um Estado de Coisa Inconstitucional (ECI))78. O controle de legalidade

78 Vide sobre o tema “Estado da Coisa Inconstitucional (ECI)”, incluindo considera-


ções críticas: STRECK, Lenio. Estado de Coisas Inconstitucional é uma nova forma de ativis-
mo. Observatório Constitucional. Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.
br/2015-out-24/observatorio-constitucional-estado-coisas-inconstitucional-forma-ativismo.
Também do mesmo autor: “O STF e o Pomo de Ouro”. Disponível em: http://www.conjur.
com.br/2012-jul-12/senso-incomum-stf-contramajoritarismo-pomo-ouro. Explicitando o
“Estado da Coisa Inconstitucional” e suas circunstâncias em boa síntese: CAMPOS, Carlos
Alexandre de Azevedo. Disponível em: http://jota.info/jotamundo-estado-de-coisas-inconsti-
tucional. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Devemos temer o “estado de coisas inconsti-
tucional”? Consultor Jurídico, São Paulo, 15 out 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.
br/2015-out-15/carlos-campos-devemos-temer-estado-coisas-inconstitucional. Autores que
são favoráveis ao instituto do ECI como foi decidido na Colômbia, mas criticam a liminar do STF
brasileiro, afirmando que a decisão foi “mandatória e monológica” e fez refletir um “profundo
alheamento” em relação à necessária construção de uma jurisdição supervisora e de senten-
ças estruturantes: VIEIRA, José Ribas; BEZERRA, Rafael. Disponível em: https://www.jota.info/
artigos/estado-de-coisas-fora-lugar-05102015. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. De-
vido Processo Legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitu-
cionalidade das leis e do processo legislativo. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 94 e ss. DE
GIORGI, Raffaele; FARIA, José Eduardo; CAMPILONGO, Celso. Opinião: Estado de coisas incons-
titucional. Estadão, São Paulo, 19 set. 2015. Disponível em: http://opiniao.estadao.com.br/
noticias/geral,estado-de-coisas-inconstitucional,10000000043. Texto em sentido diverso, mas
considera que o ECI pode vir a ser uma espécie de divisor de águas nas políticas públicas bra-
sileiras: RODRIGUES, José Rodrigo. Disponível em: http://jota.info/estado-de-coisas-surreal.

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323
ampliado, a ser realizado pelas Cortes de Contas, poderá também ter
sintonia com o controle do Estado de Coisa Inconstitucional. Entende-se,
haver previsão constitucional para tal (cf. o inc. IX do artigo 71 da Consti-
tuição da República Federativa do Brasil), uma vez que o Tribunal de Con-
tas tem como missão constitucional “assinar prazo para que o órgão ou
entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei,
se verificada ilegalidade” (leia-se ilegalidade e inconstitucionalidade por
ação ou omissão). Nessa linha, às Cortes de Contas caberá emitir uma
espécie de determinação de executoriedade constitucional de maneira
a contornar o Estado de Coisas Inconstitucionais e omissões na tutela
dos direitos fundamentais79. Apesar de haver diferenças institucionais
importantes entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Constitucional
da Colômbia (que deu origem ao instituto atinente ao Estado de Coisa
Inconstitucional) e não se desconheça a polêmica quanto à “importação”
do instituto em questão, não há impedimento, na linha acima sustenta-
da, de que as instituições de controle que têm como missão constitucio-
nal avaliar o cumprimento da legalidade e constitucionalidade (por ação
ou omissão) passem a apurar falhas estruturais prejudiciais à efetividade
dos direitos fundamentais dos brasileiros80. No exercício do referido con-
trole, mais uma vez, dever-se-á ter cautela quanto à discricionariedade

79 Nosso país tem reiterados “estados de coisas inconstitucionais”, possuindo


quadros de violação massiva e contínua de direitos fundamentais decorrentes e agravadas
por omissões administrativas, bloqueios políticos e institucionais (v.g. saneamento básico,
saúde pública em diferentes estados e municípios, violência urbana em diversas regiões
metropolitanas, sistema carcerário, descumprimento das metas do Plano Nacional de Edu-
cação, ausência de tutela do meio ambiente pelos gestores públicos, dentre outros).
80 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Disponível em: http://jota.info/jota-
mundo-estado-de-coisas-inconstitucional. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Deve-
mos temer o “estado de coisas inconstitucional”? Consultor Jurídico, São Paulo, 15 out.
2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-out-15/carlos-campos-devemos-
-temer-estado-coisas-inconstitucional.

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324
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

administrativa, reservando-se a atuação das Cortes de Contas para situ-


ações de flagrantes inações constitucionais por parte dos gestores públi-
cos, ao não cumprirem deveres constitucionais.

A terceira ênfase diz respeito à necessidade de, na realização do con-


trole ampliado de legalidade indutor de sustentabilidade, examinar-se a
conformidade com os tratados internacionais, mediante a leitura do arti-
go 70, conjuntamente com o artigo 4º e § 3º do artigo 5º, todos da Cons-
tituição da República Federativa do Brasil (controle próximo ao controle
de convencionalidade)81. Assim, na realização do controle de sustentabi-
lidade (v.g. dimensão social e ecológica/ambiental) o controle da legali-
dade e da legitimidade deverá ter por base também os tratados interna-
cionais firmados pelo país (ainda mais após a Emenda Constitucional nº
45, de 2004, que inseriu o § 3º ao artigo 5º da Constituição da República
Federativa do Brasil, e considerando a tutela internacional do direito/
dever fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado)82. Há
de se considerar a transterritorialidade que a tutela do ambiente envolve
(quanto à dimensão ecológica e ambiental da sustentabilidade) e a visu-
alização ampla dos direitos fundamentais (quanto à dimensão social da
sustentabilidade), que também detêm dimensão para além de fronteiras
(quando concebidas como direitos humanos, nos termos do inc. II do
artigo 4º da Constituição da República Federativa do Brasil).

81 Para aprofundamento do tema – Controle de Convencionalidade-, vide: MA-


ZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 3. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
82 Quanto aos tratados de direitos humanos, se forem aprovados com quorum qua-
lificado previsto no artigo 5.º, § 3.º, da Constituição, terão estatura de emenda constitucional.
Quanto aos tratados internacionais comuns, servem de paradigma para o controle de legalidade
das normas infraconstitucionais “de sorte que a incompatibilidade destas com os preceitos con-
tidos naqueles invalida a disposição legislativa em causa em benefício da aplicação do tratado.”
Entendimento constante na seguinte obra: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicio-
nal da convencionalidade das leis. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

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325
Diante do exposto, em síntese, na interpretação constitucional a que
se propõe dos artigos 70 e 71 da Constituição da República Federativa do
Brasil, em situações de omissões específicas (com parâmetros averiguados
nesta Constituição, seus princípios e deveres fundamentais), deverá o Tri-
bunal de Contas “assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as pro-
vidências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalida-
de” (inc. IX do artigo 71 da Constituição da República Federativa do Brasil),
como uma espécie de determinação de executoriedade constitucional. Já
nos casos de atuação (ação comissiva) com amparo em leis em desacordo
com a Constituição Federal, deverão as Cortes de Contas “negar execu-
toriedade” da legislação aplicável ao caso concreto (se destoante com a
Constituição Federal). Observe-se que não se trata de “declarar inconstitu-
cionalidade”, mas sim, no exercício do controle externo em conjunto com
o controle de sustentabilidade, de obstaculizar a utilização de lei (especifi-
camente quanto ao caso concreto analisado) em desconformidade com a
Lei Maior e seus princípios e direitos/deveres fundamentais.

Outro ponto a ser amadurecido é a possibilidade de controle da


consonância constitucional das leis orçamentárias pelos Tribunais de
Contas. Há situações em que se detecta flagrante descumprimento de
deveres constitucionalmente estabelecidos pela simples análise das
leis orçamentárias (v.g. percentuais de investimento inferiores ao es-
tabelecido na Constituição da República Federativa do Brasil quanto
aos direitos/deveres fundamentais à saúde e educação,83 objetos do
controle de sustentabilidade social e fiscal). São crescentes os entendi-

83 Sobre tema correlato: LEITE, Carlos Henrique Bezerra; LEITE, Laís Durval. Controle
concentrado de constitucionalidade da lei orçamentária e a tutela dos direitos fundamentais à
saúde e à educação. Revista de Processo. Ano 36. Vol. 198, agosto/2011, p. 127-145.

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326
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

mentos quanto à possibilidade de controle de constitucionalidade das


leis orçamentárias pelo Poder Judiciário84. As Cortes de Contas deve-
rão ajustar procedimento (preventivo) ao tomarem conhecimento de
flagrante inconstitucionalidade nas leis orçamentárias (comissivas ou
omissivas), no exercício do controle de sustentabilidade fiscal (e fisca-
lização contábil, financeira e orçamentária, nos termos do artigo 70 da
Constituição da República Federativa do Brasil).

Mesmo diante de temas polêmicos, alguns consensos aparentam


estar se estabelecendo. Há de se reconhecer que, com a constituciona-
lização do Direito Administrativo, somente a lei em consonância com a
Constituição Federal poderá servir como fundamento do atuar do ad-
ministrador. Mesmo doutrinadores que questionam a permanência da
Súmula de verbete nº 347 do Superior Tribunal Federal, concordam que
a “CRFB determina que os Tribunais de Contas exerçam um controle que
vá além da legalidade, avaliando também a legitimidade/juridicidade –
afinal não poderá ser legítimo um ato administrativo que viole qualquer
princípio ou regra constitucional”85.

Consigna, mais uma vez, o registro de que o controle de legalida-


de necessita de uma visualização ampliada, como forma de melhor
concretizar-se o princípio/dever de sustentabilidade e da solidarieda-
de intra e intergeracional.

84 Sobre o assunto, vide: PINTO, Élida Graziane. Controle judicial do ciclo orça-
mentário: um desafio em aberto. Revista Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 17, n.
90, p. 199-226, mar./abr. 2015.
85 PEDRA, Anderson Sant’Ana. (Im)Possibilidade do Controle de Constitucionali-
dade pelos Tribunais de Contas: Uma análise da Súmula n. 347 do STF. In. ABELHA, Marcelo;
JORGE, Flávio Cheim. Direitos Processual e a Administração Pública. Rio de Janeiro: Fo-
rense Universitária, 2010.

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327
CONSIDERAÇÕES FINAIS

No estudo que se encerra, procurou-se abordar o dever de tutela


ambiental estabelecido no artigo 225 da Constituição da República Fede-
rativa do Brasil (CRFB), ou seja, o dever fundamental de sustentabilidade
(com destaque à dimensão ambiental). Nesse contexto, foram aborda-
das as possibilidades de atuações dos Tribunais de Contas. A abordagem
apresentou linhas gerais sobre o controle de sustentabilidade multidi-
mensional pelos Tribunais de Contas (dimensões ecológica/ambiental,
social, econômica, fiscal, jurídico-política e ética) e destacou a necessária
primazia às dimensões ambiental e ecológica da sustentabilidade. Dos
vários instrumentos recomendáveis para um controle externo dialógico e
provedor da sustentabilidade ambiental e solidariedade intergeracional,
detalhou-se o controle ampliado de legalidade e indutor de sustentabili-
dade, ou seja, controle de legalidade com aproximações aos controles de
constitucionalidade, convencionalidade e controle de um Estado de Coi-
sa Inconstitucional (ECI), mediante atuação das Cortes de Contas como
provedoras da solidariedade intergeracional assentada no princípio de
curadoria das gerações futuras.

Apresentou-se, em mais esta investigação, o que se entende por


sustentabilidade, ou seja, visualizada como dever constitucional e funda-
mental que objetiva tutelar direitos fundamentais (com destaque ao am-
biente ecologicamente equilibrado e aos direitos fundamentais sociais),
também princípio instrumento a dar-lhes efetividade, ou seja, princípio
que vincula o Estado (e suas instituições) e a sociedade, mediante res-
ponsabilidade partilhada, e redesenha as funções estatais, que deverão
ser planejadas não apenas para atender demandas de curto prazo, mas
também providenciar a tutela das futuras gerações. Pretendeu-se com

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328
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

o referido conceito ter explicitado as duas noções de sustentabilidade:


sentido amplo (englobando as dimensões ambiental, social, ética, fiscal,
econômica e jurídico-política) e o sentido mais específico (denominado
por Bosselmann como sustentabilidade forte)86, que, em regra, dá prima-
zia à dimensão ecológica (interligada ao dever fundamental de tutela ao
ambiente natural ecologicamente equilibrado).

Nas presentes considerações finais, retomam-se alguns trechos do


célebre discurso “Voto de Graças”, de José de Alencar, no sentido de que
“a abstenção no debate é sempre uma deserção à causa pública (...) a
palavra que desaparece da tribuna é o general que foge quando toca o
rebate.”87 O IX Seminário Internacional Diálogo Ambiental, Constitucio-
nal e Internacional proporcionou importante debate acadêmico e insti-
tucional. Afinal, como também afirmou José de Alencar “a tribuna é uma
das artérias onde se toma pulso a nação para conhecer-lhe a força e a
vitalidade”, e ainda nos dizeres do ilustre filho do estado do Ceará, “no
momento em que se abra o silêncio em torno dessas poltronas cairá a
calma sinistra que precede o temporal”. Pretende-se ter propiciado uma
pequena reflexão com intuito de promover “vitalidade” da Constituição
da República Federativa do Brasil, mesmo que suscitando temas polêmi-
cos e afastando a “calma sinistra”, o que aparenta ter sido oportuno, con-
siderando que o meio ambiente já está farto de “temporais” e enfrenta a
“única verdadeira crise”, que é universal, transtemporal e irreversível se
medidas urgentes não forem adotadas.

86 BOSSELMANN, Klaus. O princípio da sustentabilidade, p. 47 e 27, 28, 36, 42.


87 Atualizou-se a grafia. Discurso disponível na íntegra, conforme acesso em nov./
2016, no site: http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/00016400#page/1/mode/1up.

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330
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

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centa dispositivos à Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000,
que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsa-
bilidade na gestão fiscal e dá outras providências, a fim de determinar a
disponibilização, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre
a execução orçamentária e financeira da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/lcp/lcp131.htm. Acesso em 12 dez. 2017.

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so a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do §
3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei
no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de
maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e
dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
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de 1993, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; revoga a Lei no 6.528, de 11
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Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Fe-
deral, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que mo-
dificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Disponível em: http://
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de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; e
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abril de 1989, a Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001,
o item 22 do inciso II do art. 167 da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de
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A Era Vargas como vanguarda
do Sistema partidário na
democracia brasileira
The Vargas period as the vanguard
of the partisan System in
brazilian democracy

JÚLIA MAIA DE MENESES COUTINHO

RESUMO

Este artigo evidencia o surgimento dos partidos políticos em paralelo


ao desenvolvimento da democracia, pois o intento é promover a noção de
que a Era Vargas e a reestruturação partidária, passando pelo bipartidaris-
mo, transição democrática, pluripartidarismo, indo até a reforma política
e o multipartidarismo, foram essenciais para desvelar as insuficiências e
aspectos positivos da experiência nacional nesse campo, o que sobreleva
ainda mais a importância do instituto da fidelidade partidária, de seu surgi-
mento e consolidação indispensáveis para a democracia brasileira.

Palavras-chave: Era Vargas. Partidos Políticos. Reestruturação Partidária.

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342
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

ABSTRACT

This article highlights the emergence of political parties in parallel to


the development of democracy, since the aim is to promote the notion
that the Vargas Era and party restructuring, through bipartisanship, de-
mocratic transition, multipartyism, and even political reform and multi-
partyism, Were essential to unveil the shortcomings and positive aspects
of the national experience in this field, which further undermines the im-
portance of the institute of party loyalty, its emergence and consolida-
tion, indispensable for Brazilian democracy.

Keywords: Vargas Era. Political Parties. Partitional Restructuring.

INTRODUÇÃO

Somente com a fidelidade partidária se poderia vir a ter uma demo-


cracia autêntica, infensa aos tentáculos plutocráticos dos grupos econô-
micos, das pressões oligárquicas e dos nichos burocráticos que moldam
nossa tradição de democracia restritiva.

O fortalecimento dos partidos, de suas instâncias internas, de víncu-


los com a sociedade civil e suas demandas, expressas sinteticamente num
programa, disciplina e ideologia próprios, só se pode concretizar com a
institucionalização devida da fidelidade partidária. Tal iniciativa precisa,
contudo, partir da sociedade, de seu protagonismo, espelhando sua ma-
turação orgânica, nunca da imposição unilateral de interpretações juris-
prudenciais, mesmo porque esses órgãos não possuem conhecimento e
experiência satisfatórios das demandas, projetos e idiossincrasias de uma
sociedade crescentemente complexa, diferenciada e hiperfragmentada.

Ir para o índice
343
Com efeito, o artigo cobre um estudo bibliográfico em livros, artigos,
dissertações e teses, além de haver ocorrido a estratégia de interdisci-
plinaridade do Direito Constitucional com a História e a Ciência Política
para desvendar a problemática central deste escrito, qual seja, se a Era
Vargas foi, ou não, uma das maiores influências para o desenvolvimento
do sistema partidário na democracia brasileira.

1 A REESTRUTURAÇÃO PARTIDÁRIA BRASILEIRA1

É indubitável expressar a ideia de que os partidos foram a armadura


necessária para o cumprimento do Estado Democrático de Direito, já que
não se pode sustentar, sem a sua existência, o direito de votar e ser vota-
do, bem como a consequente coalizão do sistema eleitoral, pois “[...] os
partidos podem ser considerados como escolas da vida estatal”2.

Durante o surgimento dos partidos, duas vertentes cobriram a expla-


nação acerca do procedimento de exercício deles, uma externa, relacio-
nada à dinâmica da sociedade e de seus interesses; e a outra, interna,
ligada às inevitáveis clivagens da direção com a base partidária3 .

1 O contexto histórico traçado neste tópico 1 foi constituído mediante a análise


das obras História do Brasil, de Boris Fausto (2013), Getúlio Vargas, de Maria Celina D’Araújo
(2011), Cidadania no Brasil: o longo caminho, de José Murilo de Carvalho (2014), e Introdução
à história dos partidos políticos brasileiros, de Rodrigo Motta (2008). Vide referências.
2 SADER, Emir (org.). Gramsci: poder, política e partido. 2. ed. São Paulo: Expres-
são Popular, 2012, p. 122.
3 DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos. Tradução de Cristiano Monteiro
Oiticica. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

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344
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Dar-se-á relevância aos partidos políticos como protagonistas da con-


solidação da democracia no País após a Constituição Federal, de 19884,
já que o sufrágio universal e a democracia parlamentarista foram instru-
mentos provocadores do seu nascimento. Ademais, havia intenso repre-
samento de demandas, reconhecimento de novas identidades políticas,
sociais e culturais no período da ditadura militar que clamavam por livre
expressão.

A história partidária no Brasil é definida por períodos dotados de ca-


racterísticas próprias, como: a Monarquia (1821-1889), com a prepon-
derância de partidos nacionais, ainda que desfibrados; o Primeiro Ciclo
Republicano (1889-1930), sem partidos nacionais em virtude dos desen-
tendimentos entre o presidente e os chefes de Estado das federações;
o intervalo até 1946, com poucos partidos e de limitadas durações; a
Constitucionalização após a Ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945); e o
surgimento dos partidos de esfera nacional.

Assim, somente com a Constituição Federal, de 1988, houve maior


reformulação do quadro partidário, em decorrência do surgimento de
partidos com caráter nacional e com o verdadeiro fundamento demo-
crático; o pluralismo político; claro é, que tal sucede, em grande medida,
como resultado da complexificação de uma sociedade industrial, urbani-
zada, crescentemente individuada, a solicitar a organização de partidos
como mediadores institucionais do pluralismo social que florescia.

No início dos anos de 1930, o governo provisório de Getúlio Vargas pro-


curava se arrimar em meio a muitas imprecisões, já que a crise mundial era

4 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil


de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Disponível em: http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 21 jul. 2019.

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345
instrumento garante de várias dificuldades desde as financeiras ao plano
político, haja vista que as oligarquias buscavam reedificar o Estado em mol-
des antigos, mas Getúlio fez oposição a isso, no intuito de reforçar o poder
central, indispensável para estruturação do ciclo industrial, para superação
do agrarismo exportador que travava o desenvolvimento nacional.

Com a vitória da Revolução, de 1930, os chamados tenentes partici-


param dos quadros do governo e desenvolveram um programa claro, que
necessitava de centralização e estabilidade para a sua implementação,
distanciando-se do liberalismo clássico e defendendo o prolongamento
da Era Vargas e a elaboração de uma Constituição que estabelecesse o
critério de representação por classe entre empregadores e empregados.

Na perspectiva de Motta5, “A Revolução, de 1930, surgiu da conflu-


ência de interesses diversos reunindo elementos descontentes com os
rumos do país”. Em adição, Motta6 aduz que “[...] estabeleceu-se um
quadro rico para as experiências partidárias. [...] Os rumos da vida social
e política do país estavam sendo repensados e isto estimulava a partici-
pação política dos cidadãos”.

A saída foi a promulgação do Código Eleitoral, que, no dizer de Faus-


to , trouxe importantes inovações para a seara política, pois “Estabele-
7

ceu a obrigatoriedade do voto e seu caráter secreto. Pela primeira vez


reconhecia-se o direito de voto das mulheres”.

5 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasilei-
ros. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 51.
6 Ibidem. Motta, 2008, p. 51.
7 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2013, p. 292.

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346
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

O último ocorrido no Processo Político, de 1930-1934, se deu com


a contribuição do Código Eleitoral para a estabilidade das eleições no
tocante às constantes fraudes, haja vista a criação da Justiça Eleitoral,
cujo objetivo foi a organização e a fiscalização das eleições, bem como o
julgamento de recursos8.

Vargas, em seu discurso de 10 de novembro de 1937, explicou as razões


e projetos de sua colheita, para a instituição do Estado Novo, refletindo a
ideia de que, “Diante da inoperância do Legislativo, era preciso, segundo
ele, reajustar o organismo político às necessidades econômicas do país” 9.

Em 2 de dezembro de 1937, todos os partidos políticos foram extin-


tos . E, acrescenta-se que, na visão de Motta11, os partidos políticos po-
10

dem ser “considerados elementos indispensáveis para o funcionamento


das instituições democráticas”.

Em decorrência dessa atmosfera de desalento, eis que surge a Ação


Integralista Brasileira (AIB), cuja doutrina nacionalista pretendia que o
elemento cultural superasse o econômico para que houvesse a consciên-
cia do valor espiritual do País, por meio de princípios unificadores, como
“Deus, Pátria e Família”12. Apesar de o movimento não ter continuado
tão forte, ele não morreu após a ditadura varguista, pois a Frente Integra-
lista Brasileira (FIB) manteve a ideologia e as atividades no País.

8 Ibidem. Fausto, 2013, p. 293.


9 D’ARAÚJO, Maria Celina (Org.). Getúlio Vargas. Brasília: Câmara dos
Deputados, 2011, p. 33-34.
10 Ibidem. D’Araújo, 2011, p. 33.
11 Ibidem. Motta, 2008, p. 68.
12 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2013, p. 301.

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347
Já a Aliança Nacional Libertadora (ANL) era uma organização políti-
ca formulada por meio de inúmeras correntes ideológicas (democratas,
tenentes, operários e intelectuais de esquerda), cujo objetivo era a luta
contra a corrente fascista no Brasil, com o auxílio do Partido Comunista
Brasileiro (PCB).

Com essas diretrizes, a Aliança Nacional Libertadora cresceu, e, com


isso, a tensão política no País aumentou, até que a Lei de Segurança Nacio-
nal ordenou o fechamento da organização política. Ao viver a ilegalidade, a
Aliança Nacional Libertadora não pôde mais realizar manifestações públi-
cas, o que a distanciou da massa popular e abriu espaço para o golpe de
1937, o cancelamento das eleições e a manutenção de Vargas no poder,
por meio da ditadura do Estado Novo, que se estendeu até 1945.

Por muito tempo, a Aliança Nacional Libertadora conviveu com a


clandestinidade, pois o Estado e as elites não toleraram a convivência
com um partido que buscava a modificação drástica de todo o sistema,
por meio da implantação de um regime socialista capaz de erradicar a
miséria do País, com vista ao futuro igualitário.

Ademais, a Aliança Nacional Libertadora despertava um temor em


virtude de dois elementos, a acusação de atentado conta a ordem inter-
na, por conta das greves e demais manifestações, e o suposto compro-
metimento com a conspiração de âmbito mundial, sediada em Moscou.

Reflete-se a noção de que o medo proveniente do interdito de atua-


ção da Aliança Nacional Libertadora advém de uma tradição autoritária
e insegura dos dirigentes políticos, que não foram capazes de tolerar a
convivência democrática de que a Nação necessitava.

Em virtude do crescimento da Aliança Nacional Libertadora, a tensão


política, e, consequentemente, os conflitos entre aliancistas e integralis-

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348
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

tas aumentavam. O manifesto de Luiz Carlos Prestes, com o objetivo de


derrubar o governo e converter o poder para a Aliança Nacional Liberta-
dora, levou Getúlio a buscar subsídio na Lei de Segurança Nacional para
desencadear o fechamento da organização.

A Ação Integralista Brasileira foi caracterizada como uma instituição


mais duradoura do que a Aliança Nacional Libertadora. O integralismo
era um movimento que se espelhava na semelhança ao fascismo. Acre-
ditava-se que os problemas centrais do País provinham da degradação
moral e desestruturação causada pelo mundo moderno, que era capaz
de intensificar a proliferação do caos político.

Uma característica marcante do atuar integralista era necessidade


de criação de um Estado amplo, que buscasse solucionar os principais
temas da coletividade social. Tal significa expressar a ideia de que, en-
quanto o liberalismo dava mais importância à perspectiva individual, o
integralismo se preocupava com a coletividade.

Essa era a visão geral e, convém acrescentar, em relação ao liame socie-


dade e Estado, os anos de 1930 foram ricos politicamente e com crescente
participação cidadã, mas também estiveram contidas, no período, inúmeras
debilidades partidárias, como a continuidade das tendências regionalistas, a
corrupção que assola a vida dos brasileiros até a atualidade, a troca de favo-
res eleitoreiros, e a organização partidária fragilizada, além do autoritarismo.

As experiências partidárias dos anos de 1930 não foram objeto de


consolidação, pois, em 1937, Getúlio Vargas instituiu o Estado Novo, e
uma das primeiras medidas foi a extinção dos partidos políticos, sem a
criação de partido unido ao Estado, o que caracterizou uma ditadura pes-
soal nos moldes latino-americanos13.

13 CASTRO, David Almagro. Los partidos políticos em la historia constitucional bra-


sileña. Disponível em: http://www.historiaconstitucional.com. Acesso em: 9 fev. 2016, p. 259.

Ir para o índice
349
A extinção dos partidos políticos se deu em virtude da competência
do Tribunal de Segurança Nacional em matéria de segurança do Estado,
porquanto, em 2 de dezembro de 1937, logo após o início do Estado Novo,
Getúlio, por via do Decreto-Lei nº 37, promoveu a dissolução dos partidos
políticos, registrados no extinto Tribunal Superior e tribunais regionais da
Justiça Eleitoral, cuja justificativa era a de que o sistema eleitoral do pe-
ríodo não estava adequado às condições de vida nacional e os partidos
atuantes não possuíam conteúdo programático nacional. Assim, Getúlio
acreditava que o novo regime, por estar em contato com o povo, deveria se
sobrepor a lutas partidárias de qualquer ordem (BALZ, 2009, p. 153-154).

O processo político, de 1934-1937, teve início com uma série de rei-


vindicações operárias, cuja resposta do governo foi a Lei de Segurança
Nacional (LSN). Esta definiu os crimes contra a ordem política e social,
e, dentre eles, estava a organização de associações ou partidos, com o
objetivo de subverter a ordem política ou social.

A Lei de Segurança Nacional deu azo ao Tribunal de Segurança Na-


cional, criado em 1936, para julgar casos de crimes políticos até a data
de sua extinção, em 194514.

No limiar de tais acontecimentos, em 10 de novembro de 1937,


Getúlio anunciou hodierno sazão político e o ingresso da nova Carta
Constitucional de autoria de Francisco Campos15, como peculiaridade
do início do Estado Novo. Representou uma etapa política implantada

14 BALZ, Christiano Celmer. O Tribunal de Segurança Nacional: Aspectos legais e


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Editorial, 2001. Coleção biblioteca básica brasileira.

Ir para o índice
350
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

de modo autoritário, mas isso não significou total ruptura com o passa-
do, pois muitas das ações políticas já vinham tomando corpo desde o
período de 1930-1937.

Ao tratar da Constituição, de 193716, da Era Vargas, Campos17 ressalta


que “[...] essa Constituição determinou a incompetência do Poder Judici-
ário para o controle de questões políticas (art. 94) [...]”.

Entrementes, na obra O Estado Nacional, Campos18 transcreve uma


célere passagem acerca do manifesto de 10 de novembro, que o presi-
dente dirigiu à Nação, como crítica ao regime passado, traduzindo um
consenso nacional da época quanto aos partidos políticos, que, de modo
análogo, é perfeitamente aplicável aos dias atuais:

Tanto os velhos partidos, como os novos em que os ve-


lhos se transformaram sob novos rótulos nada exprimiam
ideologicamente, mantendo-se à sombra de ambições
pessoais e de predomínios localistas, a serviço de grupos
empenhados na partilha dos despojos e nas combina-
ções oportunistas em torno de objetivos subalternos.

Este posicionamento se compadece da percepção de Djacir Mene-


zes , quando destaca a noção de que os partidos são instituições
19

16 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm. Acesso em: 9 fev. 2016a.
17 Ibidem. Campos, 2001, p. 204.
18 Ibidem. Campos, 2001, p. 42.
19 MENEZES, Djacir. O Brasil no pensamento brasileiro. Brasília: Edições do
Senado Federal, 2011. v. 55, p. 384.

Ir para o índice
351
Sempre inúteis, estéreis e impotentes, quando não são
positivamente nocivos ou perigosos, todos igualmente de-
sonrados e aviltados por faltas comuns, e excessos imitados
uns dos outros, os nossos partidos se tornam incapazes de
menor bem, e perdem toda autoridade e força moral [...].

Isso se aplica aos partidos de hoje e corrobora o descrédito lastimável


por parte dos brasileiros em relação às siglas partidárias atuais, apesar da
existência de certas diferenças entre eles, e ao papel nefasto desempe-
nhado pelo poderio econômico na descaracterização partidária.

Com o fim do Estado Novo, sucedido em virtude de várias manifes-


tações contrárias à continuidade do sistema, como o Manifesto dos Mi-
neiros e a União Nacional dos Estudantes, foi então, no ano de 1945, que
surgiram os três principais grêmios do período de 1945-1964.

Dessarte, o primeiro partido dessa fase, a União Democrática Nacional


(UDN), proveio da antiga oposição liberal, com tradição deveras democrá-
tica, comportando-se, desse modo, como adversária do Estado Novo20.
A União Democrática Nacional era um partido mais urbano, que contava
com o apoio de empresários e da classe média das grandes cidades21.

Secundariamente, com subsídio no aparato estatal, irrompe-se o


Partido Social Democrático (PSD), em 1945. O Partido Social Democrá-
tico contava com uma base aliada proveniente da zona rural, vincula-
do, portanto, aos interesses agrários. Essa agremiação, possuía maior
flexibilização doutrinária, pois negociava com diversas correntes de

20 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o udenismo: ambiguidades


do liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 84.
21 CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros: discurso e práxis de seus
programas. 2. ed. Brasília: UnB, 1985.

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352
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

opinião, e, no dizer de Motta22, os pessedistas eram considerados “as


raposas da política brasileira”, em virtude da sua grande malícia para
fechar conchavos políticos23. O comportamento dos pessedistas irritava
os udenistas, pois era considerado corrupção.

Em meados de 1945 aflorou o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),


que também encontrou alento em Getúlio Vargas e no sindicalismo, pois
o seu grande objetivo era reunir as massas trabalhadoras sob a perspec-
tiva getulista acentuada. O Partido Trabalhista Brasileiro queria dar conti-
nuidade à obra trabalhista de Getúlio24.

O Partido Comunista Brasileiro (PCB) tornou-se força política de bas-


tante expressão com o regime democrático, mesmo com a constante re-
pressão sofrida no passado. O crescimento da sua militância se deu por
conta dos seus ideais de esquerda reformista e o apoio de Luiz Carlos
Prestes, que culminou com os excelentes resultados nos pleitos de 1946,
mas o início da Guerra Fria promoveu nova onda de perseguição aos co-
munistas, e a boa fase não durou muito25.

Em 1947, as discussões circulavam em todo o País no que diz respei-


to à cassação do Partido Comunista Brasileiro, e, respectivamente, de
seus mandatos eletivos; ocasionando uma balbúrdia em diversos meios
de comunicação do período.

22 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasi-
leiros. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 77.
23 HIPPOLITO, Lúcia. De Raposas e Reformistas: o PSD e a experiência democrática
brasileira (1945-64). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

24 DELGADO, Lucília de Almeida Neves. PTB: do getulismo ao reformismo (1945-


1964). São Paulo: Marco Zero, 1989.
25 PANDOLFI, Dulce. Camaradas e companheiros: história e memória do PCB.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995.

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353
Para muitos dos dirigentes, o propósito da cassação não seria o mais
adequado em virtude de que, em vias de ilegalidade, seria ainda mais difícil
exercer o controle político. O fechamento do partido ressaltou o caráter
inconstitucional da medida, pois a própria Constituição era instrumento
garante da atividade legal. Ademais, ressalta-se o grande erro de retirar do
contexto político um partido que representava muitas pessoas26.

Embora existissem divergências nas opiniões dos agentes políticos,


em 1947, por três votos a dois, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou
o Partido Comunista Brasileiro e, posteriormente, os mandatos eletivos
de seus parlamentares, mesmo que a medida fosse antidemocrática e
inconstitucional, pois a disputa entre partidos deve ocorrer por via de-
mocrática e sem ferir os princípios constitucionais27.

Os votos vencedores concluíram que houve violação ao art. 141, § 13,


da Constituição Federal, de 194628 . Tal dispositivo vedava o registro e/
ou funcionamento de qualquer partido ou associação, cujo programa ou
ação fosse contrário ao regime democrático.

O presidente Dutra, acolitou a decisão do Tribunal Superior Eleitoral e


determinou o fechamento das sedes comunistas em todos os Estados. É
notório não ter havido inquietação com a ajuda do partido para o avanço
democrático no Brasil. Ainda em 1947, o Supremo Tribunal Federal (STF)
confirmou a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

26 SILVA, Heber Ricardo. A democracia ameaçada: repressão política e a cassa-


ção do PCB na transição democrática brasileira (1945-1948). Disponível em: http://www.
historica.arquivoestado.sp.gov.br. Acesso em: 9 fev. 2016, p. 1.
27 CANCELAMENTO do registro do partido comunista brasileiro. Disponível em:
http://tse.jus.br. Acesso em: 9 fev. 2016.
28 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm. Acesso em: 9 fev. 2016a.

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354
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Somente em 1985, com a saída da ilegalidade proveniente do fim do


regime militar, foi que o Partido Comunista Brasileiro continuou a exercer
suas atividades políticas em vias legais.

Getúlio, com sua enorme capacidade de articulação, achou de apoiar


as massas populares urbanas, recebendo também o suporte do Partido
Comunista Brasileiro, fato bastante controvertido para a época, mas que
hoje reflete plenamente a realidade político-partidária do Brasil, pois os
partidos abrem mão de suas ideologias, formando alianças de cunho va-
lorativo duvidoso, em prol do acesso ao poder, sem escrúpulos.

Entrementes, em meados de 1945, os grupos trabalhistas aliados a


Getúlio, com o apoio dos comunistas, promoveram o Movimento Quere-
mista (“Queremos Getúlio”), cujo objetivo era a manutenção de Vargas no
poder; o que mudou os rumos do pleito, haja vista que as eleições diretas
contariam com a concorrência de Vargas. Getúlio Vargas queria se manter
no poder de qualquer maneira, ditatorial ou como presidente eleito.

O resultado do jogo político-partidário da época incorreu no que se pode


chamar de “cristianização”, ou seja, o abandono do próprio candidato para
apoiar outro com maiores chances de vitória. Instaurou-se, portanto, um mito
de invencibilidade, cujo fato gerador foi o surgimento de coligações partidárias.

Getúlio Vargas foi o exemplo máximo de populismo no Brasil29, pois


sua popularidade e liderança carismática favoreceram o operariado.

29 É de sabença comezinha a ideia de que Ianni (1968), Weffort (1980), Florestan Fer-
nandes (1978) e Fernando Henrique Cardoso (1993) são contrários ao populismo e criticam
ferozmente o varguismo. A gênese deste trabalho, entretanto, acolita a perspectiva de Laclau
(1978), que se posiciona a favor deste contexto político, pois em toda a América Latina o popu-
lismo se comportou como importante mecanismo de integração das massas populares à vida
política, o que acarretou desenvolvimento econômico e social. Verifica-se o populismo, portan-
to, como boa modalidade de organização política, por garantir representatividade às classes
excluídas, sendo bastante favorável à democracia. Isso intenta evidenciar a ideia de que não é
o populismo que necessita ser contestado ou abolido, mas sim reformado de acordo com os
anseios de desenvolvimento político-democrático do País (LACLAU, 2013).

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355
Desde esse momento, é que se vê no País a intensa disputa entre
esquerda e direita na política brasileira em prol do acesso ao poder, com
todas as mediações, composições e expressões compósitas de interes-
ses, típicos de uma realidade periférica de formação de classes sociais.

Com isso, o parlamento se dividiu, de um lado, em partidos que ade-


riram às reformas, e, de outro, por partidos conservadores. Tal segmen-
tação comportou o surgimento de coalizões entre diversos grêmios par-
tidários. Nesse sentido, Motta30 informou que “[...] a ala pró-reformas
formou a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) e o lado anti-reformas
a Ação Democrática Parlamentar (ADP)”. Assim, convém acrescentar a
informação de que o Partido Trabalhista Brasileiro foi a base do bloco
favorável às reformas, e a União Democrática Nacional contrária a elas.

Getúlio, portanto, deu início ao seu governo com as condições de um


regime democrático, que pairava sobre inúmeras forças sociais. Nota-se
que era difícil conciliar a ala nacionalista de apoio ao governo e a demo-
crática de oposição.

Por fim, a queda getulista resultou não apenas de constantes cons-


pirações externas, mas também de um jogo político de alta complexida-
de, dada a fragilidade de um setor trabalhista mais organizado, da força
do latifúndio tradicionalista, da dispersão de setores médios, agregados
– preferencialmente – por intermédio do serviço público, muito depen-
dentes das benesses do velho patrimonialismo burguês. Vargas, pois, se
equilibrava precariamente numa sociedade de classes vincada por pro-
fundas assimetrias e pela ausência de um padrão econômico, político e
jurídico autônomo. Sua autoridade carismática acima dos partidos e das

30 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasi-
leiros. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 89.

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356
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

instituições funcionava como fio de prumo da dinâmica do Estado, ate-


nuando as fortes polaridades entre as classes nacionais.

2 O COMPORTAMENTO BIPARTIDARISTA NO BRASIL E A NECESSÁ-


RIA TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA

O Golpe Militar, de 1964, também alcunhado por seus defensores, no


intuito de legitimá-lo, como Revolução31, foi resultado de uma coalizão
política de vários grupos que se uniram com o objetivo de derrubar o
governo de João Goulart.

Eles se dividiram em moderados mais fiéis à linha liberal econômica,


voltados para a tutela absoluta aos interesses de mercado, e os radicais
filiados às correntes autoritárias que compreendiam o projeto nacio-
nal, a exemplo de Oliveira Viana32 (1927), como produto da ação de
uma elite de “esclarecidos”.

Os primeiros anos do regime militar se desenvolveram sob a égide do


grupo ligado ao Marechal Humberto de Alencar Castello Branco, que ideava
“normalizar” o País em consonância com os valores da ordem e do progres-

31 Faz-se necessário traçar a distinção entre golpe e revolução, pois tais termos não
são equivalentes. O golpe de Estado se constitui com a derrubada de um governo que se
mantém constitucionalmente legítimo, ou seja, vem de um processo levado a cabo por um
destacamento de agentes do Estado, sem intenção de modificar a ordem das coisas. Já a revo-
lução é uma mudança radical no poder político ou na organização estrutural de uma socieda-
de. Com essa diferenciação de critérios conceituais, este trabalho opta por qualificar o evento
ocorrido em 1964, como golpe. Adita-se o fato de que o Brasil viveu dois momentos de golpe,
o de 1937, em que Getúlio se utilizou da “ameaça comunista” para anular as eleições, e o de
1964, em que os militares conseguiram derrubar o regime e continuar no poder.
32 VIANA, Oliveira. O idealismo na Constituição. Rio de Janeiro: Terra do Sol, 1927.

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357
so positivistas conjuminados à tutela dos valores liberistas hegemônicos, ar-
guindo, assim, a brevidade da intervenção militar sobre a vida civil, em nome
da reposição da democracia e das presumidas ameaças esquerdistas.

Apesar das constantes violações de direitos, convém destacar uma


passagem desse período, que diz respeito aos partidos políticos, pois es-
tes foram conservados na sua formalidade inócua perante a perda da
centralidade, da importância da vontade popular.

O retorno à democracia não foi efetivado, haja vista o desenrolar


do quadro político do período, pois as ações repressivas foram inten-
sificadas, fazendo com que a intervenção militar tivesse um lapso mais
amplo do que o previsto.

Um fato interessante pode ser destacado em relação às constantes frau-


des eleitorais ocorridas desde o período imperial, que foram praticamente
extintas, pois a Justiça Eleitoral conseguiu controlar os abusos, mas o regime
militar burlou os direitos da cidadania, com o uso de outros instrumentos,
como a repressão e o cancelamento de eleições, conforme já divisado.

Em 1965, os partidos foram objeto de constante transformação, e,


em virtude da pressão por parte dos militares radicais (linha-dura), o pre-
sidente Castello Branco deliberou a extinção dos partidos hodiernos33.

A crise resultou nas eleições de 1965, em que os candidatos calcados pelo


regime perderam as candidaturas para a coalizão já conhecida pela aliança
entre o Partido Social Democrático e o Partido Trabalhista Brasileiro 34.

33 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Partido e Sociedade: a trajetória do MDB. Ouro


Preto: UFOP, 1997, p. 22.
34 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Pe-
trópolis: Vozes, 1984, p. 88-89.

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358
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A única saída foi a extinção dos partidos, porquanto os militares acre-


ditavam que, ao destituir a estrutura partidária antiga, o governo conse-
guiria ter maior controle do processo eleitoral, pois a identificação po-
pular em relação aos partidos era muito intensa, conforme estudos de
opinião pública apontados na obra de Lavareda35.

O sistema partidário do período de 1945-1965 tinha deficiências pro-


venientes das práticas clientelistas, da exclusão dos analfabetos, dentre
outras, mas também subsistiam benemerências, como a composição
partidária e a integração feminina ao eleitorado.

Com isso, o governo tratou de fazer emergir uma instituição partidá-


ria mais simples, cujos novos partidos deteriam um terço dos parlamen-
tares no Congresso. Assim, o sistema comportaria dois, ou, no máximo,
três partidos, mas apenas dois foram estabelecidos, já que facilitava o
trâmite de acordos com o Congresso.

Pensa-se que, com o bipartidarismo, o governo da época objetivava


a destituição das antigas amarras partidárias, e, consequentemente, o
surgimento de um partido forte na base aliada, que tivesse comprome-
timento com o golpe de 1964.

O bipartidarismo acontecido no Brasil durante o regime militar foi o cha-


mado de “oposição confiável”, ou seja, um simulacro de bipartidarismo36.

35 LAVAREDA, Antônio. A democracia nas urnas. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1991.


36 KNOERR, Fernando Gustavo. Bases e perspectivas da reforma política
brasileira. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 130.

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359
Eis que surgiu, portanto, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), cons-
tituída mediante a reunião de deputados governistas dos antigos partidos37.

Ademais, irrompe-se o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que,


com reduzido número de integrantes, recebeu auxílio para a sua existência,
para garantir a aparência democrática ao sistema político do período militar.

Essa perspectiva ensejou uma atitude dúbia no partido, já que ficou


diviso entre confrontar e colaborar com o governo, concedendo uma
imagem negativa. Ademais, a redução dos partidos a mera expressão de
correntes favoráveis ou contrárias ao governo os debilitava como instru-
mentos de vocalização político-ideológica.

Assim, a composição bipartidária do período militar pairava entre o


autoritarismo da ARENA e o artificialismo da oposição do Movimento
Democrático Brasileiro, transformando-os em corpos inanes, simples
siglas eleitorais, mas sem maior vinculação com as lutas e os processos
na sociedade brasileira.

Um fato latente em relação ao contexto bipartidário era a descon-


fiança entre as ideologias dos partidos da época, pois, conforme se lê na
obra analisada de Motta38 “[...] o MDB seria o partido do ‘sim’, e a ARENA
seria o partido do ‘sim senhor’, ou seja, os dois se dobravam à vontade do
poder, mas a ARENA o fazia com mais servilismo e menos pudor”.

Tal fato acarretou o aumento de votos nulos, como modo de protesto em


refutação da ilegitimidade do sistema bipartidário militar, haja vista a ausên-
cia de confiança tanto na oposição artificial, quando na situação autoritária.

37 KINZO, Maria D’Alva Gil. Oposição e Autoritarismo: gênese e trajetória do


MDB (1966-1979). São Paulo: Vértice, 1988, p. 28-29.
38 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasi-
leiros. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 97.

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360
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Em virtude das opiniões discrepantes dentro do Movimento Demo-


crático Brasileiro, a ARENA teve domínio eleitoral nas primeiras eleições
do período militar de 1966-1970.

Dessarte, apenas em 1974 ocorreu a reação emedebista “elegendo


16 das 22 vagas para o Senado em disputa. Além disso, tiveram 37,8% da
votação para a Câmara (contra 40,9% da ARENA)” 39.

O resultado foi gerado em meio à mudança atitudinal do Movimento De-


mocrático Brasileiro, que adotou medidas contundentes mais agressivas, es-
treitando laços com as organizações da sociedade; além da campanha televi-
siva, que chegou à população como mensagem oposicionista bastante eficaz.

O crescimento da oposição incorreu na dinâmica política do País, pois au-


xiliou na redemocratização e consequente atitude do governo militar de pla-
nejamento ao retorno da democracia, no início de 1974, com Ernesto Geisel.

3 REFORMA PARTIDÁRIA, PLURIPARTIDARISMO E MULTIPARTIDA-


RISMO NO BRASIL

De 1964-1985, o regime político praticou três sistemas partidários,


sendo eles o de 1964-1965, que pregou a manutenção pluripartidária
da Constituição, de 1946; o de 1965 e 1979, que impôs o bipartidaris-
mo protagonizado por ARENA e Movimento Democrático Brasileiro, e,
desde 1979, com maior ênfase em 1980, quando ocorreu o retorno do
pluripartidarismo até os dias atuais40.

39 Ibidem. Motta, 2008, p. 100-101.


40 LEITÃO, Rômulo Guilherme. Sistema partidário e cláusula de desempenho:
história de uma obsessão. In: MORAES, Filomeno (coord.). FORTES, Gabriel Barroso;
COUTINHO, Júlia Maia de Meneses; LOPES, Karin Becker (org.). Teoria do Poder. v. 2. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2015a. p. 329.

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361
Em 1979, ocorreu um fato interessante no atuar político brasileiro, pois
o governo, com o objetivo de enfraquecer a oposição, decretou a extinção
do bipartidarismo e, consequentemente, abriu espaço para reformulação e
surgimento de vários partidos. O cenário, então, se tornou pluripartidário.

A maior intenção dessa iniciativa era dividir o Movimento Democrá-


tico Brasileiro e controlar a sua força política opositiva ao governo, haja
vista que ele estava se tornando cada vez mais uma frente popular41.

A reforma partidária, de 1980, surgiu numa tentativa de reciclagem


do governo militar no intuito de prolongá-lo, com vista ao enfraqueci-
mento da oposição e consequente diminuição da tensão política.

A estratégia mantinha o falso véu de natureza democrática ao mo-


mento, pois o pluripartidarismo buscou reduzir a inflamação e garantir a
permanência militar.

Considera-se que os requisitos mais importantes para a democracia


brasileira atual sejam o programa, pois este revela a conduta ideológica
do partido, que fomenta a filiação e, consequentemente, interfere na fide-
lidade partidária; e o outro é a atuação constante sobre a opinião pública,
haja vista que canaliza as ideias e contribui para a formação da sociedade.

Nesses termos, em 1980, cinco partidos sobrepuseram o arranjo bi-


partidário, de 1965, sendo eles: PDS, PMDB, PDT, PTB e PT.

O Partido Democrático Social (PDS) pode ser encarado como continu-


ação da ARENA, que buscava o fortalecimento do grêmio do período mi-
litar, mas o diferencial era a estratégia da mudança de nome para cortar
o vínculo com o regime desgastado, dando a impressão de modernidade.

41 LAMOUNIER, Bolivar. Partidos e utopias: o Brasil no limiar dos anos 90. São
Paulo: Loyola, 1989, p. 40-41.

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362
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

O Movimento Democrático Brasileiro, por sua qualidade dúbia e pela


fase de grande contingente de parlamentares eleitos, deu origem a qua-
tro partidos – PMDB, PDT, PTB e PT.

Quanto ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB),


pôde-se verificar que grande parte dos emedebistas estava nessa em-
preitada política, com vista a dar continuidade ao movimento democrá-
tico e à luta conta o autoritarismo, por meio de uma oposição mais con-
densada para derrotar o regime militar e promover a transição democrá-
tica. Note-se que houve até estratégia de marketing ao se beneficiar da
semelhança com a sigla anterior.

Já o Partido Democrático Trabalhista (PDT) reservou fidelidade aos


ideais trabalhistas e getulistas, cujo líder era Leonel Brizola42, grande de-
fensor das reformas sociais, mas que buscava se repaginar à luz de seus
vínculos com a social democracia europeia. Viveu seu momento de glória
de 1980-1990, mas posteriormente declinou seu atuar político com a
morte de Brizola, em 2004.

O Partido dos Trabalhadores (PT) é considerado uma das instituições


constituídas com bastante originalidade no cenário político do Brasil,
pois a sua formação principal, além de alguns parlamentares emedebis-
tas, de 1978, foram líderes sindicalistas – como o Lula, intelectuais, gru-
pos marxistas, militantes ligados à Igreja Católica e aos operários – todos
os segmentos divergentes da seara da elite e do Estado.

42 Destaca-se o fato de que Leonel Brizola fez uma reivindicação para deter
a sigla do PTB, mas esta foi repassada para Ivete Vargas, e o partido passou a possuir um
cunho mais direitista sem a defesa das massas trabalhadoras.

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363
Acrescenta-se, portanto, “[...] a necessidade do pluralismo partidá-
rio como pré-requisito para a conquista de uma democracia efetiva”
43
. Isso demonstra a importância dos partidos políticos para garantir a
estabilidade democrática.

Durante as eleições para o pleito de deputado federal, de 1982-2006,


o que se pôde perceber foi uma proliferação de siglas partidárias de vida
bastante efêmera e o elevado índice de parlamentares, que migram a sua
filiação, chegando a cerca de 30% dos eleitos44.

Desse jogo de trocas e interesses, o destaque remete-se a cinco parti-


dos – PMDB, PT, PSDB, PFL/DEM e PDS/PP – em que as disputas de pleito
ocupam em média 70% das cadeiras da bancada deste período45.

O panorama atual comporta uma tendência de fracionamento do


sistema partidário e tal quadro traz problemas, como a dificuldade de
formação das maiorias no Congresso, mas, em contrapartida, auxilia na
estabilidade do sistema. Assim, o País, hoje, enfrenta a tendência das
coalizões multipartidárias.

Com este diagnóstico, é pertinente trazer à baila o posicionamento


de Carvalho46, quando aponta que

Percorremos um longo caminho, 178 anos de histórica do


esforço para construir o cidadão brasileiro. Chegamos ao fi-

43 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasilei-
ros. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 106.
44 MELO, Carlos Ranulfo. Retirando as cadeiras do lugar: migração partidária na
Câmara dos Deputados (1985-2002). Belo Horizonte: UFMG, 2004.
45 Ibidem. Melo, 2004.
46 CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2014, p. 219.

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364
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

nal da jornada com a sensação desconfortável de incomple-


tude. Os progressos feitos são inegáveis, mas foram lentos
e não escondem o longo caminho que ainda falta percorrer.

É fato que os partidos foram e são componentes do esboço his-


tórico-político do Brasil, sendo presentes em muitas rotinas por deli-
beração do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal,
principalmente no que diz respeito ao instituto da fidelidade partidária,
haja vista que o seu surgimento teve o objetivo inicial de frear o troca-
-troca provocado pelo individualismo dos candidatos e pela ânsia des-
controlada do acesso ao poder, sem limites.

Comporta-se um diagnóstico pertinente de Russell47, quando lembra


uma passagem bastante significativa de Aristóteles48, que reflete à con-
duta política nos dias atuais, já que “Uma sociedade política existe em
prol das ações nobres, e não como companheirismo”; ou seja, o atuar
partidário deve ocorrer em prol de benefícios à coletividade, e não do
individualismo dos eleitos.

Culmina-se com outra lição de Aristóteles, apontada por Russell49, a


de que “Um governo é bom quando almeja o bem de toda a comunidade
e mal quando só se preocupa consigo mesmo”.

Destaca-se a ideia de que, independentemente do regime político, a


organização partidária é tarefa primordial, pois convém lembrar que os
partidos existiram tanto nas ditaduras quanto em democracias.

47 RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia ocidental – Livro I: a filosofia antiga.


Tradução de Hugo Langone. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015a, p. 237.
48 ARISTÓTELES. Política. Tradução (da tradução francesa) de Roberto Leal Ferrei-
ra. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
49 RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia ocidental – Livro 3. Tradução de Hugo
Langone. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015b.

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365
É latente o fato de que a atividade partidária consolida as bases de-
mocráticas e congrega forças políticas em prol do desenvolvimento de-
mocrático, com espeque nos ditames legais do art. 1º, parágrafo único,
da Constituição Federal, de 198850.

Duverger51 informa que “[...] os verdadeiros partidos políticos existiam


em 1850 somente nos Estados Unidos, sendo que em 1950, cem anos de-
pois, quase todas as nações civilizadas já tinham seus partidos políticos”.

Sobressai de tal entendimento uma perspectiva bastante interessante


a ser questionada, uma diferença entre os partidos em torno do mundo,
quando se observa a ausência de herança política e líderes carismáticos na
atualidade, já que tais componentes são capazes de fomentar a identidade
partidária do País por meio de um programa partidário mais eficaz52.

Para que a democracia floresça, há de se auscultar o pluripartida-


rismo contextualizado pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal, de 1988
(BRASIL, 2016b, online), como real fundamento do Estado Democrático
de Direito, pois, no dizer de Knoerr53, no pluripartidarismo, o exercício
do governo “[...] está voltado ao atendimento dos interesses gerais per-
manece de certa forma comprometido pelas manobras que o exercente
deve fazer para manter sua legitimidade”.

O partido político, portanto, é uma instituição organizada de pesso-


as, com vista ao acesso ao poder, de modo que seus objetivos se sobre-

50 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil


de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Disponível em: http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 21 jul. 2019.
51 DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos. Tradução de Cristiano Monteiro
Oiticica. Rio de Janeiro: Zahar, 1970, p. 1.
52 SCHWARTZENBERG, Roger Gerard. O Estado espetáculo. Rio de Janeiro: Difel, 1978.
53 KNOERR, Fernando Gustavo. Bases e perspectivas da reforma política
brasileira. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 135.

Ir para o índice
366
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

pujem numa democracia e sejam convertidos em políticas de governo,


cujas finalidades são a disseminação de uma corrente de opinião, o en-
quadramento dos eleitos e a promoção educacional do eleitorado.

Tais diretrizes refletem a importância do sufrágio nessa relação, pois


o comportamento adequado do eleito é imposto por disciplina e fideli-
dade partidárias.

Os partidos políticos foram se organizando como associações de di-


reito comum para participarem do processo político, até o surgimento de
legislação específica, que garantiu a sua referência nos textos constitu-
cionais, nos termos do art. 17, da Constituição Federal, de 198854.

De acordo com a norma mencionada, os partidos gozam de liberdade


de organização, não num caráter incondicional, pois o Texto traz princí-
pios e deveres, como ocorre com a fidelidade partidária.

Na perspectiva constitucional brasileira, o princípio do pluripartida-


rismo, cuja previsão está disposta no caput do artigo 17 da Constituição
Federal, de 1988, guarda relação direta com outro dispositivo consagrado,
qual seja, o pluralismo político (artigo 1º, V), definido como um dos funda-
mentos da República Federativa do Brasil55. E, de acordo com Lima56, [...] o
pluralismo é um fundamento em si, porém apoiando-se noutros direitos e
garantias fundamentais a consolidarem a democracia brasileira.

54 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil


de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Disponível em: http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 21 jul. 2019.
55 MEZZAROBA, Orides. Partidos Políticos: princípios e garantias constitucionais
- lei 9.096/95 – anotações jurisprudenciais. Curitiba: Juruá, 2010, p. 21.
56 LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Art. 1º, IV: O pluralismo político. In:
CANOTILHO, J.J Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo; STRECK, Lenio Luiz (coord.).
Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 136.

Ir para o índice
367
Verifica-se que os partidos políticos não podem ficar presos unicamente
ao leito dos interesses de seus dirigentes, nem aos mitologemas de alguns
de seus líderes e burocratas, mas ao movimento vivo oriundo da sociedade.

Com tal linha de orientação, pertinente se faz o raciocínio de


Arendt57, quando indica que

[...] qualquer discurso sobre a política em nossa época


deve começar pelos preconceitos que todos nós, que não
somos políticos profissionais, temos contra a política. [...]
Por trás dos nossos preconceitos atuais contra a política
estão a esperança e o medo: o medo de que a humanida-
de se destrua por meio da política e dos meios de força
que tem hoje à sua disposição; e a esperança, ligada a
esse medo, de que a humanidade recobre a razão e livre
o mundo não de si própria, mas da política [...].

Nestse significado, a democracia representativa tem o voto como ins-


trumento essencial de escolha democrática, que necessita de partidos
fortes e com programas bem definidos58.

Com isso, a fidelidade partidária se faz importante para o fortaleci-


mento da democracia, pois burlar o instituto significa a prática de desle-
aldade às diretrizes concebidas pelos eleitores.

57 ARENDT, Hannah. A promessa da política. 5. ed. Tradução de Pedro Jorgensen


Júnior. Rio de Janeiro: Difel, 2013, p. 148-149.
58 COUTINHO, Júlia Maia de Meneses; MELO, Silvana Paula Martins de. Sufrágio-
direito e sufrágio-função: diálogo entre Rousseau e Sieyès para debater o voto como direito ou
obrigação. In: MIRANDA, Jorge (coord.). CAÚLA, Bleine Queiroz et al (org.). Diálogo Ambiental,
Constitucional e Internacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. v. 4. p. 107-124.

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368
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Denota-se que a Era Vargas foi composta de variados aspectos políti-


cos de influência no sistema partidário do Brasil, moldando-o numa série
de características até hoje preservadas. De início, ressalta-se o viés na-
cionalista ladeado da preocupação de um bonapartista “progressista” de
auxílio aos pobres, em malgrado o cunho autoritário de suas ações, parte
considerável delas dominada por uma lógica substitutiva, paternalista, e,
por isso mesmo, refutadora da autonomia da sociedade civil e de seus
processos instituintes de direitos. Isso remete à noção de que a transição
para o período democrático não atua como greta, mas como comuta de
orientação, com a preservação de coerências diversas.

No período bipartidário, o fortalecimento da oposição tornou o jogo


político mais complicado para a máquina do poder, e, com isso, a demo-
cratização teve de ocorrer a passos mais rápidos, pois a sociedade brasilei-
ra começou a se manifestar mediante a organização em diversos tipos de
entidades, levando o governo ao isolamento e à necessidade da prática de
medidas, como o fim da censura, a anistia política, a revogação do Ato Ins-
titucional nº 5 – grandes instrumentos autoritários utilizados no período.

Nesse sentido, Bobbio59 (2015, p. 57) faz pertinente nota quanto à


não educação da pessoa e convida a se olhar ao redor e perceber que,
“Nas democracias mais consolidadas assistimos impotentes ao fenôme-
no da apatia política, que, frequentemente, chegam a envolver cerca da
metade dos que têm direito ao voto”.

Descerra-se afirmando que as noções históricas tratadas neste artigo,


dando destaque ao pluripartidarismo, à autonomia partidária e à liberdade

59 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo.


13. ed. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz & Terra, 2015.

Ir para o índice
369
de filiação, como elementos-chave trazidos pela Era Vargas até a democra-
cia brasileira atual, implicaram em prosperidade política e democrática no
Brasil, mas reconhece-se que ainda há um longo caminho a se percorrer
para que haja o pleno aperfeiçoamento da democracia brasileira.

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Conflito interna corporis no


âmbito dos partidos políticos
e sua judicialização: da destituição e
substituição unilateral de dirigentes
partidários em face da horizontalidade
dos Direitos Fundamentais
Internal conflict corporis within the
framework of political parties and its
judicialization: of the dissolution and
unilateral replacement of party officers
in the face of the horizontality of
fundamental rights

RODRIGO MARTINIANO AYRES LINS


JOÃO FELIPE BEZERRA BASTOS

RESUMO

O presente artigo promove uma abordagem acerca dos conflitos no


âmbito interno dos partidos políticos que decorrem de dissolução de ór-
gãos partidários estaduais e municipais por decisão do respectivo diretó-
rio nacional. Para tanto, desenvolvem-se inicialmente o conceito de par-

Ir para o índice
375
tido político, a existência de autonomia em sua gestão e a forma como
em geral se organizam, a partir dos textos da Constituição da República
Federativa do Brasil, da Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096, de 1995)
e da Lei das Eleições (Lei nº 9.504, de 1997). Ato contínuo, analisam-se
as nuances que envolvem a definição da competência jurisdicional para
apreciar as demandas originadas dessas divergências interna corporis, a
depender do momento do ajuizamento da demanda. Ao final, discute-se
a necessidade de se garantir a eficácia horizontal dos princípios constitu-
cionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal nas
relações entre filiados e dirigentes partidários.

Palavras-chave: Partido Político. Democracia Interna. Dissolução de


Diretório Partidário. Direitos Fundamentais. Eficácia Horizontal.

ABSTRACT

The present article promotes an approach on the internal conflicts of


the political parties that result from the dissolution of state and municipal
party organs by decision of the respective national directory. For that, the
concept of a political party, the existence of autonomy in its management,
and the way in which the Law of Political Parties (Law nº 9.656/96) and
the Elections Law (Law nº 9.504/97). The nuances involving the definition
of jurisdiction to assess the claims arising from these internal corporate
divergences, depending on the timing of the application of the lawsuit,
are analyzed below. In the end, it is discussed the need to guarantee the
horizontal effectiveness of the constitutional principles of the ample de-
fense, the contradictory and the due legal process in the relations betwe-
en affiliates and party leaders.

Keywords: Political party. Internal democracy. Dissolution of party di-


rectory. Fundamental rights. Horizontal Effectiveness.

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376
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

INTRODUÇÃO

O presente artigo trata especificamente das agruras que ocorrem no


âmbito interno dos partidos políticos quando há a dissolução unilateral
de diretórios ou comissões provisórias estaduais ou municipais pelo seu
respectivo diretório de nível superior e se propõe a responder ao seguin-
te questionamento: Até que ponto seria possível, a partir da análise da
Constituição Federal da República Brasileira, de 1988, a ingerência do
Poder Judiciário sobre esses conflitos?

Para tanto, registra-se inicialmente o conceito de partido político, seus


objetivos e forma de organização. Segundo consta do artigo 17, da Cons-
tituição Federal, de 1988, é livre a criação, fusão, incorporação e extinção
de partidos políticos, desde que resguardados a soberania nacional, o
regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da
pessoa humana. O seu parágrafo primeiro, por sua vez, assegura aos par-
tidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização
e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas
coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candi-
daturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo
seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária. O
exercício dessa autonomia na prática, por vezes, toma a forma de gestão
autoritária por dirigentes, em franco desapego à necessária democracia
interna que se deve ter em um grêmio partidário.

Com o advento da Lei nº 9.096, de 1995, calcada na autonomia parti-


dária assegurada pela nossa Constituição Republicana, de 1988, dúvidas
têm sido suscitadas a respeito da possibilidade de conhecimento das de-
mandas pelo Poder Judiciário para dirimir conflitos que envolvam ques-
tões relacionadas a disputas internas entre filiados, sob o argumento de

Ir para o índice
377
ser preciso mantê-las para propiciar o livre exercício das atividades do
Partido. Em contrapartida, diante do próprio escopo do caput do artigo
17, da Constituição Federal, de 1988, discute-se a necessidade de tam-
bém concretizar Direitos Fundamentais na esfera intrapartidária. Alvitra-
-se investigar, assim, até que ponto é possível a intervenção judicial sobre
o Partido, para que não se transgrida a cláusula constante do referido
parágrafo primeiro do artigo 17 da Constituição Federal, de 1988.

Antes de se chegar a este ponto em específico, o artigo expõe de


quem é a competência para dirimir os eventuais conflitos, se a Justiça
Eleitoral ou a Justiça Comum Estadual, considerando o fato de os Parti-
dos Políticos, embora pessoas jurídicas de direito privado, terem direta
interferência no exercício da capacidade eleitoral passiva.

Ao final, propõe-se que os Direitos Fundamentais detêm eficácia so-


bre as relações privadas. Em consequência, defende-se que as garantias
a eles inerentes devem ser aplicadas no âmbito interno do Partido Po-
lítico, sobretudo quando este pretende dissolver diretórios estaduais e
municipais, que representam órgãos essenciais à sua organização e estão
diretamente ligados ao exercício de direitos políticos pelos cidadãos.

1 PARTIDOS POLÍTICOS NO BRASIL: AUTONOMIA, PODER E ESTRU-


TURAÇÃO INTERNA

O partido político, na consagrada definição de Max Weber, é uma


associação que visa a um fim deliberado, seja ele ‘objetivo’, a exemplo
da realização de planos com intuitos materiais ou ideais, seja ‘pessoal’,
isto é, destinado a obter benefícios, poder e, consequentemente, gló-

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378
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

ria para os seus líderes e adeptos, ou, então, voltado para todos esses
objetivos, conjuntamente (conceito sociológico)1.

Já Bonavides2 define partido político como sendo a “[...] organização


de pessoas que inspiradas por ideias ou movidas por interesses, buscam
tomar o poder, normalmente pelo emprego de meios legais, e neles con-
servar-se para realização dos fins propugnados”. Para o juspublicista, os
seguintes dados integram de maneira indispensável a composição dos
ordenamentos partidários: “(a) um grupo social; (b) um princípio de or-
ganização; (c) um acervo de ideias e princípios, que inspiram a ação do
partido; (d) um interesse básico em vista: a tomada do poder; e (e) um
sentimento de conservação desse mesmo poder ou de domínio do apa-
relho governativo quando este lhes chega às mãos”.

Os partidos políticos, assim, são verdadeiras associações civis que


têm entre os seus principais objetivos institucionais a representação de
interesses coletivos, mediante a eleição de seus filiados para cargos exe-
cutivos ou legislativos.

A Constituição da República Federativa do Brasil garante o pluripar-


tidarismo, além de estabelecer em seu artigo 17 ser livre a criação, fu-
são, incorporação e extinção dos partidos políticos, qualquer que seja
a sua ideologia. Essa liberdade, porém, não é irrestrita, pois todos os
partidos devem ter caráter nacional, resguardar a soberania, o regime
democrático, o próprio pluripartidarismo, os direitos fundamentais da
pessoa humana, além de cumprirem os requisitos de criação prescritos
no artigo 7º da Lei nº 9.096, de 1995.

1 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de


política. Tradução de Carmen C. Varieli. 5. ed. Brasília: UNB, 2000, p. 898.
2 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2010, p. 372.

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379
O § 1º do referido artigo 17, por sua vez, conferiu autonomia aos
partidos políticos para deliberarem acerca da sua estrutura interna, orga-
nizacional e de seu funcionamento, até mesmo para adoção de critérios
para escolha de suas coligações eleitorais, remetendo ao estatuto as re-
gras acerca da fidelidade partidária3.

Os partidos políticos tornaram-se peças essenciais para o funciona-


mento do complexo mecanismo democrático. A influência que exercem
no cenário político é abissal, uma vez que detêm o monopólio na indica-
ção de candidatos a cargos públicos eletivos e acabam por definir o perfil
assumido pelo Estado, já que são essas agremiações que, concretamente,
estabelecem o sentido de suas ações. Não há, pois, representação popular
e exercício do poder estatal sem a intermediação partidária no Brasil.

No âmbito interno, como já mencionado, a Constituição Federal, de


1988, estabelece uma liberdade gerencial aos partidos políticos, o que
implica dizer que certos arranjos estruturais e organizacionais irão exis-
tir, ou não, a depender da vontade daqueles que o integram. Em geral,
os Partidos Brasileiros se organizam mediante Diretórios Nacionais, Es-
taduais e Municipais. Apenas há obrigação legal, contudo, da existência
de diretório nacional.4 Na ausência de diretório estadual ou municipal
formado, também é comum a existência do que se convencionou cha-
mar de “comissões provisórias”, que em regra deveriam existir tempora-
riamente, até que fosse possível constituir o diretório, mas acabam por
praticamente substituírem diretórios, já que facilmente dissolvíveis no
interesse dos dirigentes superiores do partido.

3 Em sentido bastante similar também dispõem os artigos 3º, 5º e 7º da Lei nº


9.096, de 1995.
4 Pelo que se depreende da análise conjunta das Leis nº 9.096, de 1995, e nº
9.504, de 1997.

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380
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A importância de cada um desses órgãos partidários está no fato de


sua constituição ser necessária para que o partido possa lançar candi-
datos nas respectivas circunscrições, conforme prescreve o artigo 4º da
Lei nº 9.504, de 1997:

Poderá participar das eleições o partido que, até um ano


antes do pleito, tenha registrado seu estatuto no Tribunal
Superior Eleitoral, conforme o disposto em lei, e tenha,
até a data da convenção, órgão de direção constituído na
circunscrição, de acordo com o respectivo estatuto.

Sem diretório no local, o partido não pode indicar candidatos. As


convenções, da mesma forma e na prática, são convocadas no estrito
interesse dos dirigentes partidários, daí a existência de embates quando
há interesses políticos ou administrativos em conflito.

Pelo que se verifica na doutrina, há certa tendência nos Estados De-


mocráticos de transferir o poder decisório no âmbito interno aos filiados
do partido político, descentralizando o ciclo do poder, de baixo para ci-
ma.5 Não é o que vem ocorrendo no Brasil, contudo. Muito embora a
legislação eleitoral tenha a previsão de que os candidatos devem ser es-
colhidos em convenção6, pelos respectivos filiados, o que se vê na prática
é que tal evento serve tão só para homologar candidaturas já decididas

5 Sobre o tema, tratam os seguintes trabalhos, dentre outros: CROSS, William;


BLAIS, André. Who selects the party leader? Party Politics. London, v. 18, n. 2, p. 127-
150, 2012. FREIDENBERG, Flavia. Mucho ruido y pocas nueces. Organizaciones partidistas y
democracia interna en América Latina. Polis: Investigación y Análisis Sociopolítico y Psico-
social. Iztapalapa, v. 1, n. 1, p. 91-134, 2005. SCARROW, Susan; GEZGOR, Burcu. Declining
memberships, changing members? European political party members in a new era. Party
Politics. London, v. 16, n. 6, p. 823-843, 2010.
6 Cf. artigos 7º e seguintes da Lei nº 9.504, de 1997.

Ir para o índice
381
pela cúpula partidária. No Brasil, portanto, ainda se mantém esta tradi-
ção oligárquica, que acaba redundando em exercício arbitrário de poder,
por vezes com desrespeito a comezinhos princípios constitucionais.

2 DA COMPETÊNCIA JURISDICIONAL PARA PROCESSAR E JULGAR


OS CONFLITOS INTERNA CORPORIS DOS PARTIDOS POLÍTICOS

Os Partidos Políticos são pessoas jurídicas de direito privado7 constituídas


sob a forma de verdadeira associação civil, com finalidades específicas. E,
nesta condição, diante do que estabelece o artigo 17 da Constituição Fede-
ral, de 1988, as suas regras de regência são estabelecidas em Estatuto, que
não deve olvidar da outorga de iguais direitos e deveres a seus filiados.8

Conquanto detenha a natureza de pessoa jurídica de Direito Privado


e seja regido internamente por um Estatuto, o Partido Político não está
imune ao crivo do Poder Judiciário em relação aos atos que venham a
praticar, pois sempre que se caracterizar lesão, ou ameaça de lesão a di-
reito, o acesso ao Judiciário estará assegurado pelo inciso XXXV do artigo
5° da Constituição Federal, de 1988.

E a intervenção do Judiciário não deve ser compreendida como “ati-


vismo”, mas sim como “protagonismo judicial”, para que seja possível
a concretização de Direitos, sobretudo os de ordem constitucional. No
protagonismo, decidem-se questões que possam ter cunho político, mas

7 Cf. artigo 1º da Lei nº 9.096, de 1995, e artigo 44, inciso V, do atual Código
Civil Brasileiro.
8 Cf. Artigo 4º Os filiados de um partido político têm iguais direitos e deveres
(Lei nº 9.096, de 1995).

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382
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

o almejado é o plexo dos direitos e garantias fundamentais albergados


pela Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.

Diante dessas circunstâncias e levando em consideração que o


partido político é composto de uma série de órgãos internos, entre os
quais o Diretório Nacional, os Diretórios Estaduais e Municipais, além
das chamadas “comissões provisórias”, a existência de conflitos inter-
nos tem sido recorrente. Na sua ocorrência, o juízo competente para
processá-los e dirimi-los tem se definido tendo por pressuposto o mo-
mento em que se pretende propor a ação.

Se a divergência interna do partido político puder interferir diretamen-


te no processo eleitoral, o Superior Tribunal de Justiça Brasileiro vem deci-
dindo ser da competência da Justiça Eleitoral a sua solução.9 Essa aferição,
como já informado, tem ocorrido na prática a partir da análise do momen-
to em que a demanda é ajuizada. Se a propositura se dá após a realização
das convenções partidárias10, a competência deve ser da Justiça especiali-
zada, máxime diante da necessidade de rápida decisão, ante os possíveis
reflexos no pleito. Se anterior a ele, deve-se recorrer à Justiça Comum11.

9 Nesse sentido: STJ – Ac. de 21.9.2006 no RO nº 943, rel. Min. Cesar Asfor Rocha.
10 Artigo 8º da Lei das Eleições: “A escolha dos candidatos pelos partidos e a delibe-
ração sobre coligações deverão ser feitas no período de 20 de julho a 5 de agosto do ano em
que se realizarem as eleições, lavrando-se a respectiva ata em livro aberto, rubricado pela
Justiça Eleitoral, publicada em vinte e quatro horas em qualquer meio de comunicação”.
11 Cf., por exemplo, Conflito de Competência (CC) 105.387/RN, Rel. Ministro Fer-
nando Gonçalves, segunda seção, julgado em 11/11/2009, DJe 23/11/2009; CC 36.655/
CE, Rel. Ministro Francisco Peçanha Martins, primeira seção, julgado em 10/11/2004,
DJ 17/12/2004, p. 391; CC 40.929/SC, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, segunda seção,
CC 30.176/MA, Rel. Ministra Eliana Calmon, primeira seção, julgado em 10/10/2001, DJ
04/02/2002, p. 256, CC 19.321/MG, Rel. Ministro Ari Pargendler, primeira seção, julgado
em 10/09/1997, DJ 06/10/1997, p. 49843.

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383
Em específico ao tema relacionado no presente artigo, o confli-
to interno decorrente da destituição e consequente substituição dos
membros de diretórios ou comissões provisórias de Partido Político, o
Supremo Tribunal Federal12 tem decidido que a competência é da Justi-
ça Comum Estadual, uma vez que tal divergência não redunda em uma
ingerência direta no processo eleitoral 13.

Embora o Superior Tribunal Federal tenha decidido ser da Justiça Co-


mum a competência, a intervenção da Justiça Eleitoral no âmbito dos
partidos deve ocorrer quando a controvérsia intrapartidária vier a se ins-
talar com estreita proximidade e inegável reflexo no processo eleitoral,
como se verifica em diversos julgados a esse respeito, com amparo na
doutrina14. Tratando-se de eleições, o bem jurídico tutelado é o interesse
público, objeto da referida justiça especializada; não se trata apenas da
administração de questões de ordem privada. Como exemplo, vejam-se
os vários casos de dissolução de diretório ou comissão provisória estadu-
al ou municipal por diretórios de nível superior à época da realização de
convenção partidária, que se destinaria à escolha de candidatos entre os

12 Cf. STF. Recurso em Mandado de Segurança (RMS) 23244 / RO. Rel. Min.
Moreira Alves. Primeira Turma. DJ 28.05.1999, p. 32.
13 Pelo que se verifica do voto proferido no Recurso em Mandado de Segurança
(RMS) 23244 / RO, do STF, foi levado a conhecimento do Excesso Pretório uma decisão de
Comissão Executiva Nacional de Partido Político que dissolveu seu diretório estadual de for-
ma ilegal e abusiva, já que nem sequer foram respeitados o contraditório e a ampla defesa.
O STF, à unanimidade de votos, entendeu ser da competência da justiça estadual tratar a
matéria, uma vez que não haveria reflexo direto no pleito.
14 Segundo Rodrigo Lópes Zilio: “[...] a interferência – e sobreposição – da de-
liberação da convenção nacional em relação aquelas estabelecidas pelos níveis inferiores
(seja estadual ou municipal) e conflito que, tratando-se de convenção para escolha de can-
didatos e deliberações de coligações, deve ser resolvido na justiça especializada, em face de
inequívoco reflexo na esfera eleitoral; não havendo reflexos na seara eleitoral, a competên-
cia e da Justiça Comum.” In: ZÍLIO, Rodrigo Lópes. Direito Eleitoral. 5. ed. São Paulo: Verbo
Jurídico, 2016, p. 125.

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384
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

filiados do partido. A existência de diretório é indispensável à realização


desta, até porque deve partir dele a convocação da respectiva conven-
ção, normalmente por editais com prazo específico de antecedência, na
conformidade de cada estatuto partidário, além de toda a sua organi-
zação. Dissolver ou mesmo substituir abruptamente sua comissão exe-
cutiva implica negar a preparação daqueles filiados para o pleito, o que
necessariamente redunda em déficit democrático interno.

3 A DISSOLUÇÃO DE DIRETÓRIOS ESTADUAIS E MUNICIPAIS DE


PARTIDO POLÍTICO E O NECESSÁRIO RESPEITO AOS PRINCÍPIOS CONS-
TITUCIONAIS DA AMPLA DEFESA, DO CONTRADITÓRIO E DO DEVIDO
PROCESSO LEGAL, DIANTE DE SUA EFICÁCIA HORIZONTAL

Até que ponto se autoriza, sem comunicação prévia e oportunidade


de defesa, a destituição e substituição dos membros de um diretório par-
tidário por uma comissão provisória estadual ou municipal, sobretudo
em ano de eleições? Devem-se respeitar os princípios constitucionais do
devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório ou dar preva-
lência ao princípio da estrita autonomia partidária?

A decisão partidária de dissolver um diretório, com a consequente


substituição unilateral dos respectivos dirigentes estaduais e municipais
por outros do interesse da cúpula do partido não pode ser vertical, como
pode induzir o texto do parágrafo segundo do artigo 7º da Lei nº 9.504,
de 199715; há a necessidade de se respeitarem as regras previstas no

15 § 2o Se a convenção partidária de nível inferior se opuser, na deliberação


sobre coligações, às diretrizes legitimamente estabelecidas pelo órgão de direção nacio-
nal, nos termos do respectivo estatuto, poderá esse órgão anular a deliberação e os atos
dela decorrentes.

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385
Estatuto, que necessariamente devem prever o respeito à ampla defesa
e ao contraditório aos que venham a ser lesados, premissa do próprio
Estado Democrático de Direito. Na prática, entretanto, tem sido comum
decisões liminares dos diretórios nacionais, inaudita altera pars, dissol-
vendo os estaduais ou municipais para instituir comissões provisórias sob
a direta influência dos “caciques” partidários.

A autonomia partidária prevista no parágrafo primeiro do artigo17


da Constituição Federal, 1988, deve ser interpretada em conjunto com
os demais princípios constitucionais, sobretudo aqueles estampados em
seu artigo 5º16, dentre os quais se incluem o devido processo legal, com
suas inerentes garantias: a ampla defesa e o contraditório. Segundo Mül-
ler, o princípio da unidade da constituição deve “antepor aos olhos do
intérprete, enquanto ponto de partida”, para que a norma seja concreti-
zada de forma harmônica “umas com as outras no resultado”17.

Ademais, o próprio caput do referido artigo 17 da Constituição da


República Federativa do Brasil, de 1988, estabelece que para que o par-
tido possa ser criado – e consequentemente mantido – há a necessi-
dade de respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, entre
os quais se inserem os que garantem o efetivo exercício do direito de
defesa. Para chegar a essa conclusão basta o simples emprego da Lei
Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre a

16 O artigo 5º da Constituição Federal, de 1988, estabelece, em seu inciso XXXV,


que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”; e, em
seu inciso LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e os recursos a ela
inerentes”.
17 MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do Direito Constitucional. 3. ed.
Tradução de Peter Naumann. Rio de Janeiro, São Paulo, Recife: Renovar, 2005, p. 74-75.

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386
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis18, a qual


estabelece em seu artigo 10 que os textos legais devem ser articulados
com a observância de certos princípios, entre eles: “I – a unidade básica
de articulação será o artigo, indicado pela abreviatura “Art.”, seguida de
numeração ordinal até o nono e cardinal a partir deste”. Além disso, “II
– os artigos desdobrar-se-ão em parágrafos ou em incisos; os parágra-
fos em incisos, os incisos em alíneas e as alíneas em itens. O art. 11, na
sequência, estabelece que as normas devem ser redigidas com “clare-
za, precisão e ordem lógica”. Essa lógica deve “expressar por meio dos
parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput
do artigo e as exceções à regra por este estabelecida”.

Não precisa estender muito a interpretação para se concluir que o


próprio Constituinte obedeceu a essa “clareza, precisão e ordem lógi-
ca” ao prescrever no caput do artigo 17 os princípios constitucionais
que necessariamente devem ser obedecidos pelos Partidos Políticos,
até mesmo em suas relações internas. O parágrafo primeiro, portanto,
complementa o que diz o caput.

No contexto em análise, entendemos por relativizar o princípio da au-


tonomia partidária, coadunando-o com os demais princípios constitucio-
nais da ampla defesa, contraditório e devido processo legal, como forma
de materializar a democracia interna dos Partidos. Afinal, como defende
José Afonso da Silva, referindo-se às lições de Liebman, não apenas o po-
der de ação, como também o de defesa a qualquer pretensão de outrem
representam “garantia fundamental de pessoa para a defesa de seus direi-
tos e competem a todos indistintamente, pessoa física e jurídica, italianos

18 Editada em cumprimento ao parágrafo único do artigo 59 da Constituição


Federal, de 1988.

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387
[brasileiros] e estrangeiros, como atributo imediato da personalidade, e
pertencem por isso à categoria dos denominados direitos cívicos”. 19

Assim, devemos deduzir que o direito constitucional de defesa vem a se


concretizar mediante a oportunidade que detêm os sujeitos de se manifes-
tarem acerca do fato e/ou da pretensão que está sendo deduzida, em igual-
dade de condições, seja no âmbito judicial, administrativo ou nas relações
privadas, como são as existentes entre os filiados dos partidos políticos.

A democracia representativa no âmbito interna corporis dos partidos


só é possível de existir com o respeito aos estatutos e a existência efetiva
de mecanismos de democracia interna partidária, em que os auspícios
dos respectivos filiados possam ter vez e voz, tudo a bem da construção
de uma democracia real.

Esse argumento ganha especial relevo se ponderado considerando que,


ex vi legis, são os partidos políticos que lançam os candidatos com exclusivi-
dade20 nos pleitos eletivos. Logo, quem de fato tem o poder decisório acerca
de quem será erguido à qualidade de candidato é o grêmio partidário, por
intermédio das respectivas convenções, normalmente comandadas ao sa-
bor e na toada do interesse estrito de sua diretoria ou de filiados notórios.

Os procedimentos destinados à exclusão de dirigentes dos órgãos re-


gionais e locais dos partidos políticos só podem ser manejados na hipóte-
se de existência, clara e contundente, de uma das hipóteses previstas em

19 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13. ed. São
Paulo: Malheiros, 1997, p. 410-411.
20 No Brasil, não se admite candidatura avulsa, sem filiação a partido político.
De acordo com o caput do artigo 9º da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, “Para
concorrer às eleições, o candidato deverá possuir domicílio eleitoral na respectiva circuns-
crição pelo prazo de, pelo menos, um ano antes do pleito, e estar com a filiação deferida
pelo partido no mínimo seis meses antes da data da eleição”.

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388
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

estatuto, sem prescindir da necessária obediência ao devido processo le-


gal, pelo qual deverá se oportunizar a ampla defesa e o contraditório. Os
Diretórios não podem intervir nos de nível inferior por opções pessoais e
interesses que conflitem com os dos filiados, sobretudo se os dirigentes
da planície estiverem a cumprir com suas obrigações estatutárias.

A doutrina e a jurisprudência atual já vêm consagrando o entendi-


mento de que os direitos fundamentais devem ser respeitados também
nas relações entre particulares, daí porque não se deve ter dúvida acerca
da impossibilidade prática de afastamento unilateral daqueles que co-
mandam diretórios estaduais e municipais pelo diretório nacional.

Segundo Canotilho, quando se estiver diante de Direitos Fundamentais


em sentido próprio, o seu exercício não depende de previsão em legislação
infraconstitucional, já que se cerca de garantias com força constitucional,
sobretudo quando se trata de direitos inerentes à defesa. 21 Conquanto
o Partido Político seja livre para estabelecer seu respectivo estatuto, não
deve descurar da necessidade de prescrever o efetivo exercício do direito
de defesa quando da existência de risco ou lesão à Direito. Caso não possa
se estabelecer de forma direta, a Constituição Federal deverá ser utilizada
para que se concretizem as garantias inerentes ao due process of law.

Acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais para além


das relações entre Estado-Cidadão, Sarmento observa o seguinte: “os
direitos fundamentais não devem limitar o seu raio de ação às relações
políticas, entre governantes e governados, incidindo também em outros
campos, como o mercado, as relações de trabalho e a família”22.

21 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Consti-


tuição. 5. ed. Lisboa: Almedina, 2002.
22 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 323.

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389
Para fazer incidir os direitos fundamentais sobre essas relações, Ingo
Wolfgand Sarlet estabelece duas considerações em específico:

Primeiro, quando há relativa igualdade das partes figurantes


da relação jurídica, caso em que deve prevalecer o princípio
da liberdade para ambas, somente se admitindo eficácia
direta dos direitos fundamentais na hipótese de lesão ou
ameaça ao princípio da dignidade da pessoa humana ou
aos direitos da personalidade. [...] Segundo: quando a rela-
ção privada ocorre entre um indivíduo (ou grupo de indiví-
duos) e os detentores de poder econômico ou social, caso
em que, de acordo com o referido autor, há consenso para
se admitir a aplicação da eficácia horizontal, pois tal relação
privada assemelha-se àquela que se estabelece entre os
particulares e o poder público (eficácia vertical)23.

Já há, segundo Sarlet, certo consenso para se admitir a aplicação da


eficácia horizontal quando a relação privada ocorre entre um indivíduo
(ou grupo de indivíduos) e os detentores de poder econômico ou social,
pois tal relação privada assemelha-se àquela que se estabelece entre os
particulares e o poder público (eficácia vertical)24.

Esse também é o entendimento do Excelso Supremo Tribunal Federal


Brasileiro que, em situação análoga à da ora sub examine, decidiu pela apli-
cação do princípio do Devido Processo Legal no âmbito de relação privada,
garantindo, portanto, os direitos ao contraditório e à ampla defesa:

23 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto


Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 392-400
24 Ibidem, p. 392-400

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390
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRA-


SILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM
GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO.
EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DI-
REITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As
violações a direitos fundamentais não ocorrem somente
no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas
igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e
jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamen-
tais assegurados pela Constituição vinculam diretamente
não apenas os poderes públicos, estando direcionados
também à proteção dos particulares em face dos pode-
res privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO
LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A
ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a
qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia
dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos pos-
tulados que têm por fundamento direto o próprio texto
da Constituição da República, notadamente em tema de
proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espa-
ço de autonomia privada garantido pela Constituição às
associações não está imune à incidência dos princípios
constitucionais que asseguram o respeito aos direitos
fundamentais de seus associados. A autonomia privada,
que encontra claras limitações de ordem jurídica, não
pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos
direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles
positivados em sede constitucional, pois a autonomia da
vontade não confere aos particulares, no domínio de sua
incidência e atuação, o poder de transgredir ou de igno-
rar as restrições postas e definidas pela própria Constitui-

Ir para o índice
391
ção, cuja eficácia e força normativa também se impõem,
aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em
tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL
SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO
PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CA-
RÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA
DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CON-
TRADITÓRIO. As associações privadas que exercem fun-
ção predominante em determinado âmbito econômico
e/ou social, mantendo seus associados em relações de
dependência econômica e/ou social, integram o que se
pode denominar de espaço público, ainda que não-esta-
tal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade
civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e,
portanto, assume posição privilegiada para determinar a
extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus
associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC,
sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditó-
rio, ou do devido processo constitucional, onera consi-
deravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de
perceber os direitos autorais relativos à execução de suas
obras. A vedação das garantias constitucionais do devido
processo legal acaba por restringir a própria liberdade de
exercício profissional do sócio. O caráter público da ativi-
dade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo
associativo para o exercício profissional de seus sócios le-
gitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos
fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao
contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88).
IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. (STF. RE
201819. Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. p/ Acórdão: Min. Gil-

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392
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

mar Mendes. Segunda Turma. Julgado em 11/10/2005.


DJ 27.10.2006, p. 64). (Grifos nossos).

Assim, o ato que simplesmente dissolve um Diretório, sem funda-


mento jurídico relevante, sem prévio respeito ao devido processo legal,
em sua acepção mais ampla, está eivado do vício de nulidade, não de-
vendo produzir efeitos no mundo jurídico, considerando a necessidade
de respeito ao Direito Fundamental ao contraditório e à ampla defesa
na esfera de procedimento específico na esfera interna do partido, sem
prejuízo de a decisão ser também levada ao crivo do Poder Judiciário25. E
nesse sentido há vários precedentes dos Tribunais pátrios.26

Caso haja a destituição de forma súbita de diretório ou comissão provi-


sória, sem garantir direito de defesa no âmbito interna corporis do partido,
entendemos que se tratará de decisão arbitrária e ilegal, passível de decla-
ração de nulidade pelo Poder Judiciário, principalmente quando se verificar,
no caso concreto, que tal conduta terá reflexos diretos em pleito próximo.

Não há dúvida de que essa interpretação se harmoniza com os direitos


e garantias fundamentais, nomeadamente os atinentes ao processo. Com
efeito, nenhuma sanção pode atingir quem não foi chamado a se defender
das increpações deduzidas. O desprezo por esse princípio traduz duro gol-
pe ao Estado Democrático de Direito e à própria ideia de cidadania27.

25 O artigo 5º da Constituição Federal, de 1988, estabelece, em seu inciso XXXV,


que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
26 Vide: TJ-MG, Apelação Cível 2.0000.00.473384-2.0001, Rel. Selma Mar-
ques, Data de Julgamento: 18/05/2005, Data de Publicação: 11/06/2005; TJ-MS - APL:
08007379520128120015 MS 0800737-95.2012.8.12.0015, Relator: Des. Oswaldo Rodrigues
de Melo, Data de Julgamento: 09/04/2013, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: 16/4/2013.
27 Nesse sentido também se posiciona GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 12.
ed. São Paulo. Atlas, 2015, p.787.

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393
Dito isso, a destituição de diretórios ou de comissão provisória mu-
nicipal, sem o devido processo, fere a democracia interna partidária e
também os princípios constitucionais do contraditório e da ampla de-
fesa. Outrossim, a dignidade da pessoa humana (CRFB/88, art. 1º, III)
impõe que seja oportunizada a participação na relação jurídica daquele
que será afetado por alguma decisão que estirpe direitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A autonomia partidária garantida pelo parágrafo primeiro do artigo


17 da Constituição Federal, de 1988, não pode se sobrepor à observância
concreta de Direitos Fundamentais, ainda que no âmbito interna corporis
do partido político, sobretudo considerando que apenas por seu inter-
médio o cidadão pode se alçar ao exercício de um cargo público eletivo.
Ademais, o caput do referido dispositivo constitucional estabelece que a
liberdade de criação de um Partido está jungida à garantia do regime de-
mocrático, do pluripartidarismo e dos Direitos Fundamentais da pessoa
humana, o que para nós também fundamenta a incidência destes ainda
que em uma relação de conflito entre filiados.

Diante desse contexto, se subtraída a oportunidade de defesa a um


filiado, o Poder Judiciário deve ser chamado para concretizar a demo-
cracia interna nos Partidos Políticos, o que não implica malferimento do
princípio da autonomia partidária, já que esta encontra limite no disci-
plinamento constitucional e legal. Ademais, levando-se em conta o prin-
cípio constitucional da proporcionalidade, em seu aspecto substancial,
vê-se que as liberdades e garantias constitucionais não são absolutas e
carecem, por vezes, de limitações, para que haja efetivo cumprimento
dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito.

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394
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Ainda que prevista em estatuto a dissolução unilateral de um dire-


tório ou ainda de uma comissão provisória, seja pelo Diretório Estadual,
seja pelo Nacional, mesmo assim coadunamos com o entendimento de
que se devem respeitar rigorosamente os princípios constitucionais do
devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, sob pena de
estar farpeando a necessária democracia interna que deve existir no par-
tido, ante a eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais.

REFERÊNCIAS

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cionário de política. Tradução de Carmen C. Varieli [et al.]. 5. ed. Brasília:
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tidos políticos, regulamenta os arts. 17 e 14, § 3º, inciso V, da Constitui-
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para as eleições. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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396
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Breves notas sobre Defensoria


Pública e Acesso à Justiça no
Novo Código de Processo Civil
Brief notes on Public Defense
and Access to Justice in the
New Civil Procedure Code

JORGE BHERON ROCHA

RESUMO

O modelo de assistência judiciária ofertada obrigatoriamente pelo


poder público é decorrência direta da Constituição, de 1934, influencia-
da pelas Constituições mexicana, de 1917, e alemã, de 1919. A inclusão
da instituição na Constituição, de 1988, fixou o modelo salaried staff,
denominado Defensoria Pública, com garantias, deveres e vedações e
autonomia em relação aos demais Poderes. O Novo Código de Processo
Civil trouxe um título completamente dedicado à Instituição, além de inú-
meras disposições ao longo de todo o seu texto, ora como reafirmação
ora como inovação. Este novo Código reconhece o assento constitucional
que é reservado à Defensoria Pública, instituição essencial e permanen-

Ir para o índice
397
te, que completa o Sistema de Justiça e assegura a consecução do Estado
Democrático de Direito, do Regime Republicano e a busca da concretiza-
ção dos fundamentos da cidadania e da dignidade humana.

Palavras-chave: Defensoria Pública. Autonomia. Direitos Humanos.


Novo Código de Processo Civil. Constituição.

ABSTRACT

The model of legal assistance mandatorily offered by the public power


is a direct result of the 1934 Constitution, influenced by the Mexican (1917)
and the German (1919) Constitutions. The inclusion of the institution in the
1988 Constitution established the salaried staff model, called the Public
Defender’s Office, Duties and fences and autonomy in relation to the other
Powers. The New Civil Procedure Code brought a title completely dedicated
to the Institution, in addition to numerous provisions throughout its text,
now as reaffirmation as innovation. This new Code recognizes the consti-
tutional seat reserved for the Public Defender, an essential and permanent
institution, which completes the Justice System and ensures the achieve-
ment of the Democratic State of Law, the Republican Regime and the pur-
suit of the foundations of citizenship and dignity Human.

Keywords: Public Defense. Autonomy. Human Rights. New Civil Proce-


dure Code. Constitution.

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398
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

INTRODUÇÃO

O modelo de assistência judiciária ofertada obrigatoriamente pelo po-


der público é decorrência direta das disposições inovadoras trazidas pela
Constituição, de 1934, que a incluiu entre os direitos e garantias individuais
dos cidadãos, determinando à União e aos Estados a criação de órgãos
especiais para assegurar aos necessitados o referido serviço, em clara in-
fluência das Constituições mexicana, de 1917, e alemã, de 1919, tendo o
“Estado assumido completamente, pelo menos no papel, a responsabilida-
de social para garantir uma existência digna a cada um de seus cidadãos”1.

Nacionalmente, o Código de Processo Civil, de 1939, contava com


um capítulo inteiramente dedicado à questão da assistência judiciária e
ao benefício da justiça gratuita, seguido pelo Código de Processo Penal
brasileiro, que, apesar de não fazer referências expressas e claras aos
institutos da assistência judiciária e da gratuidade, prevê, no artigo 263,
que, se o acusado não tiver advogado, “ser-lhe-á nomeado defensor pelo
juiz”; contudo, se “não for pobre, será obrigado a pagar os honorários do
defensor dativo”. Também o artigo 32 traz regra sobre assistência judici-
ária aos que não podem custear advogado, dessa feita, entretanto, para
quem deseja ajuizar queixa-crime em ação penal privada.

Após o silêncio da Constituição, de 1937, a Constituição, de 1946, em seu


artigo 141, § 35, trata da assistência judiciária, disciplinada, posteriormente,
pela Lei nº 1.060, de 1950, que foi recepcionada pela Constituição, de 1988.

Elencaram-se, a par de garantias nitidamente liberais, dispositivos


que impunham uma conduta positiva do Estado para a consecução dos
direitos fundamentais de que os indivíduos eram titulares; e foi com

1 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. 2. ed. Barcelona: Ariel, 1970, p. 401.

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399
fundamento nos aludidos dispositivos constitucionais que alguns esta-
dos criaram estruturas próprias2.

No transcurso da Assembleia Nacional Constituinte, de 1987-1988, fo-


ram apresentadas diversas emendas na Subcomissão do Poder Judiciário e
do Ministério Público, a qual fazia parte da Comissão da Organização dos Po-
deres e Sistema de Governo, tratando do tema assistência jurídica. Naquele
momento histórico, o salaried staff se apresentava em quatro modalidades
distintas: (i) a que se dava na seara das Procuradorias dos estados federa-
dos, que cuidavam dos interesses administrativos, tributários e fazendários
na esfera pública, essencialmente advogados; (ii) no âmbito das Secretarias
de Justiça, com a criação de órgão voltado para a assistência judiciária rea-
lizada por advogados concursados ou contratados; (iii) no âmbito da União,
especificamente na Justiça Militar, os chamados advogados de ofício, cujo
provimento se dava por meio de concurso público entre os diplomados em
direito com mais de dois anos de prática forense; (iv) na esfera da Defensoria
Pública, como instituição e carreira oriundas do Ministério Público, especiali-
zada na função de assistência jurídica, por defensores públicos.

Promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil, em 5


de outubro de 1988, firmou-se a Defensoria Pública como modelo a ser
adotado, citando-a diretamente nos arts. 21, XIII; 22, XVII; 24, XIII; 33,
§ 3º; 48, IX; 61, § 1º, II, “d”; 134 e 235, VII; e, no Atos das Disposições

2 São Paulo fundou seu órgão especial em 1935. O Ceará, por meio do Decreto Esta-
dual nº 1.560, de 10 de maio de 1935, passou a determinar a nomeação de titulados em Direi-
to para o exercício da assistência judiciária e, excepcionalmente, ainda admitia aos adjuntos de
promotor a manutenção das atribuições para o patrocínio dos necessitados na seara cível.

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400
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Constitucionais Transitórias, o artigo 22, constituindo exemplo nítido e


palpitante da feição cidadã da nova Carta Constitucional.

A inclusão da instituição na Constituição Federal garantiu o direito à


assistência jurídica gratuita fornecida diretamente pelo Estado, fixando-
-se o modelo de salaried staff, mais precisamente aquele originado na
assistência judiciária do Rio de Janeiro, de uma carreira específica de Es-
tado, com garantias, deveres e vedações e com grande autonomia em
relação aos Poderes Executivo e Judiciário.

Apenas em 1993 o Poder Executivo Federal encaminha à Câmara dos De-


putados, por meio da Mensagem nº 034, de 1993, o Projeto de Lei Comple-
mentar nº 145, para organizar a Defensoria Pública. O Projeto teve tramitação
na Câmara Federal e depois no Senado Federal, e, encaminhado ao presiden-
te da República, foi sancionado como Lei Complementar nº 80 – Lei Orgânica
Nacional da Defensoria Pública – em 12 de janeiro de 1994, com alguns vetos,
conforme Mensagem Presidencial n° 27, de 12 de janeiro de 1994.

Mesmo nesse primeiro disciplinamento e apesar dos vetos opostos, per-


cebia-se a vontade primeira de que a Instituição se dedicasse para além da
defesa e promoção de direitos individuais daqueles que não dispunham de
recursos, entrevendo-se certo “alargamento” desse conceito, uma vez que
se atribui já a função de conciliação de interesses em conflitos; a garantia
aos “acusados em geral”, bem como o patrocínio dos direitos e interesses
do consumidor lesado. Configura a assistência judiciária aos necessitados a
atribuição mínima compulsória da Defensoria Pública, sem impedimento de
que sua atuação se estendesse ao patrocínio de outras iniciativas processu-

Ir para o índice
401
ais3 que o Sistema de Justiça e Proteção Social justifiquem a intervenção da
feição estatal da Procuratura dos Necessitados4.

São hipóteses de atuação da Defensoria Pública desvinculadas da vul-


nerabilidade econômica e com base no reconhecimento de outras vulne-
rabilidades, por exemplo, a Curadoria Especial e a defesa criminal5.

1 A DEFENSORIA PÚBLICA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

A Defensoria Pública é expressão do princípio da dignidade humana,


que passou a significar e a fundamentar a própria República, exprimindo
a busca pelo exercício pleno dos direitos fundamentais, liberdades e ga-
rantias previstos no texto constitucional e, eventualmente, disciplinados
ou regulamentados pela legislação inferior.

Uma das grandes inovações da Lei nº 13.105, de 2015 – o Novo


Código de Processo Civil (Novo CPC) – é trazer um título – Título VII
(Da Defensoria Pública), dentro do Livro III (Dos Sujeitos Processuais)
– completamente dedicado à Defensoria Pública, além de inúmeras
outras disposições ao longo de todo o seu texto, algumas atuando

3 A Constituição Federal impõe, sim, que os Estados prestem assistência judiciária


aos necessitados. Daí decorre a atribuição mínima compulsória da Defensoria Pública.
Não, porém, o impedimento a que os seus serviços se estendam ao patrocínio de outras
iniciativas processuais em que se vislumbre interesse social que justifique esse subsídio
estatal. Trecho do voto do relator – STF – ADI 558 – Rel. Min. Sepúlveda Pertence.
4 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As funções essenciais à Justiça e as Pro-
curaturas Constitucionais. Revista de informação legislativa, v. 29, n. 116, out./dez. 1992.
Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/22. Acesso em: 16 out. 2017.
5 Ou, ainda, conforme se verá adiante, na legitimidade para propor edição, revisão
e cancelamento de enunciado de súmula vinculante perante o Supremo Tribunal Federal.

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402
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

apenas como reafirmação de outras disposições normativas e outras


que tratam de verdadeira inovação.

O artigo 185 do Novo CPC não traz inovação ao ordenamento jurídico


considerado como um todo, mas inaugura o reconhecimento na seara
processual civil de importantes alterações operadas em relação à De-
fensoria Pública, especialmente em relação à sua natureza, bem como
amplitude e profundidade de sua atuação. É, de forma reduzida, uma
reprodução do artigo 134 da Constituição Federal, com a redação que
lhe foi dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 4 de junho de 2014,
e do artigo 1º da LONDEP, com a redação que lhe foi conferida pela Lei
Complementar nº 132, de 7 de outubro de 2009.

Por orientação jurídica deve-se entender, de forma amplificada pela


expressão judicial e extrajudicial, a assessoria, a consultoria e a postula-
ção, assim como a educação em direitos, a mediação, a conciliação e a
arbitragem, além de atribuições não jurídicas, como a assistência mul-
tidisciplinar, o fomento da participação popular nas decisões institucio-
nais, a participação em conselhos e comissões temáticas, entre outras.

Em boa hora, o atual CPC faz expressa referência à promoção dos di-
reitos humanos pela Defensoria Pública, reforçando a redação dada pela
Lei Complementar nº 132 de 2009, à LONDEP, e, posteriormente, com a
alteração do artigo 134 da Constituição Federal pela EC nº 80, de 2014,
para explicitar essa missão da Defensoria Pública, encontrando ressonân-
cia na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que introduziu
em seu regimento interno a previsão de existência de um defensor in-
teramericano, o qual seria designado de ofício pela própria Corte nos
casos em que as supostas vítimas comparecessem sem representação

Ir para o índice
403
legal, sendo firmado um Acordo de Entendimento entre a CIDH e a As-
sociação Interamericana de Defensorias Públicas (AIDEF)6. Isso possibilita
a concretização da garantia do acesso à defesa técnica por meio de um
defensor público interamericano durante todo o processo, tendo como
destinatárias as pessoas que se identificam como vítimas e que carecem
de recursos econômicos ou representação legal ante a Corte78.

A promoção dos direitos humanos também tem forte ressonância no


parágrafo 4º do artigo 5º, introduzido pela Emenda Constitucional nº 45,
de 2004, que traz a previsão de que o Brasil se submete à jurisdição de
Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão9.

6 Integram a AIDEF Antigua e Barbuda, Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica,


Chile, Equador, El Salvador, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai, Porto Rico, República
Dominicana, Uruguai, Venezuela, Bahamas, Bolívia, Estados Unidos, Guatemala, Jamaica,
Panamá, Peru e Trinidade e Tobago.
7 Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/convenios/aidef2009.pdf. Acesso
em: 28 fev. 2015.
8 Posteriormente, em 2010, a CIDH emite seu Relatório Anual dos Trabalhos,
onde passa a constar expressamente a previsão da indicação de um defensor público in-
teramericano, o que foi reforçado nas seguintes Resoluções da Assembleia Geral da OEA:
Resolução AG/RES 2656 (XLI-0/11), intitulada “Garantias de Acesso à Justiça: o papel dos
Defensores Públicos Oficiais”; Resolução AG/RES. 2714 (XLII-O/12), intitulada “Defensoria
Pública Oficial como garantia de acesso à Justiça das pessoas em condição de vulnerabi-
lidade”; Resolução AG/RES. 2801 (XLIII-O/13), intitulada “Pela autonomia da Defensoria
Pública Oficial como garantia de acesso à Justiça”, em que destacou o exitoso trabalho
realizado pelos defensores públicos interamericanos na defesa dos direitos das vítimas de
violações dos direitos humanos; e Resolução AG/RES. 2821 (XLIV-O/14), intitulada “Rumo
à autonomia e ao fortalecimento da Defensoria Pública Oficial para garantir o acesso à
justiça”. A primeira atuação de um defensor público brasileiro se deu no caso Pacheco
Tineo versus Bolívia, pois, em obediência às regras inseridas no Regulamento Unificado
para a atuação da AIDEF perante a Comissão e a Corte Interamericanas de Diretos Huma-
nos, devem ser designados para cada caso dois defensores públicos interamericanos, um
do país acusado de violador e outro de um país diferente.
9 Introduzido no ordenamento jurídico pelo Decreto Legislativo nº 4.388, em 25
de dezembro de 2002 (DLTPI).

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404
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Ressalte-se que o Tribunal Penal Internacional (TPI) é instrumento de


afirmação, proteção e defesa dos direitos humanos em face das atrocida-
des cometidas ao longo dos séculos contra inúmeros grupos de homens,
mulheres e crianças, reconhecendo que tais crimes se constituem como
ameaça à paz, à segurança e ao bem-estar da humanidade em âmbi-
to internacional, devido à sua intensa gravidade, sendo do interesse da
comunidade internacional a punição dos responsáveis e, sobretudo, a
reparação das vítimas. Tendo em vista as disposições normativas do TPI,
a atuação da Defensoria poderia se dar tanto no apoio às vítimas, em
parceria com a Secretaria do Tribunal, quanto, e talvez principalmente,
na defesa das pessoas levadas a julgamento10.

A atuação coletiva da Defensoria Pública, presente no nascedouro da


Instituição11 – não obstante o veto presidencial ao inciso XII do artigo 4º, na
redação original da LONDEP – é outro ponto que se deve destacar no caput

10 De fato, a Defensoria Pública teria atuação fundamental no apoio das vítimas,


v.g,. nos casos de genocídio, na defesa de grupo de pessoas em especial situação de
vulnerabilidade, como comunidades indígenas, moradores de rua, populações residentes
em grandes aglomerados urbanos vítimas de violência sistemática pelo Estado etc. Em
prol do acusado, por solicitação deste, em razão de seu direito inafastável de ser assistido
por um causídico/defensor público de sua escolha (artigo 55.2.c, primeira parte, DLTPI),
ou por designação do próprio Tribunal, sem encargo, nos casos em que o acusado ainda
não tenha defensor e não possa fazê-lo por não possuir meios suficientes para pagar
(artigo 55.2.c, segunda parte, DLTPI), também reclamaria a pronta atuação da Defensoria
Pública.“Neste segundo caso, seria necessário um protocolo de entendimento entre as
Defensorias Públicas Oficiais e o Tribunal Penal Internacional com o escopo de coordenar os
esforços para garantir o acesso integral e gratuito à justiça daquelas pessoas que carecem
de representação jurídica, e, dessa forma, assegurar uma defesa técnica de qualidade
e efetiva, em todos os graus, a que têm direito os acusados, numa fórmula semelhante
àquela tomada na CIDH. Ressalte-se que o TPI possui clara política de cooperação com
entidades independentes representativas de advogados e associações jurídicas, podendo
fazê-lo em relação às Defensorias Públicas, colocando à disposição do TPI os membros da
instituição que se enquadrem nos requisitos elevados”. (ROCHA, Jorge Bheron. O Histórico
do Arcabouço Normativo da Defensoria Pública: da Assistência Judiciária à Assistência
Defensorial Internacional. In: ANTUNES, João Maria; AMARAL, Cláudio do Prado; SANTOS,
Cláudia Cruz. Os Novos Atores da Justiça Penal. Coimbra: Almedina, 2016. p. 313).
11 Notadamente quando insere a função de “XI – patrocinar os direitos e interesses
do consumidor lesado” (artigo 4º na redação original da Lei Complementar nº 80, de 1994).

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405
do artigo 185 do Novo CPC, faz referência expressa à Defensoria Pública em
todo o Brasil que já vinha atuando nos processos coletivos, não apenas como
representante da parte, mas em nome próprio, utilizando-se do instituto da
legitimação extraordinária, em decorrência de alteração no microssistema
de processo coletivo operada pela Lei de Proteção e Defesa ao Consumi-
dor12. Aprovada, sancionada, promulgada e publicada a Lei nº 11.448, de 15
de janeiro de 2007, ficou explicitada a legitimidade das Defensorias Públicas
para o ajuizamento de Ações Civis Públicas (ACP) em defesa de direitos e
interesses transindividuais13, tendo sido questionada na ADI n° 3.943, pro-
movida pela Associação Nacional do Ministério Público (CONAMP), julgada
improcedente e reconhecida a legitimidade alicerçada pela Instituição por
meio de um trabalho responsável e incessante na defesa dos vulneráveis,
com fundamento na dignidade da pessoa humana14.

A atuação coletiva lato sensu da Defensoria Pública, enquanto missão


constitucional, foi também reconhecida em inúmeros outros instrumentos

12 “O legislador ordinário, como forma de generalizar as regras do microssistema de


processo coletivo criado pelo CDC, estendeu a ampliação do rol de legitimados do inciso III
de seu artigo 82 ao rol da LACP, ao determinar que “aplicam-se à defesa dos direitos e inter-
esses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que
instituiu o Código do Consumidor”. Desta feita, as ações civis públicas que tenham por objeto
“responsabilidade por danos morais e patrimoniais causadas a qualquer [... ] interesse difuso
ou coletivo” (artigo L, caput e inciso IV, Lei nº 7.347185) podem ser manejadas por qualquer
“entidade e órgão da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade
jurídica” (artigo 82, II, Lei nº 8.078, de 1990), em forma de legitimação extraordinária, con-
forme a doutrina majoritária” (ROCHA, Jorge Bheron. Legitimidade da Defensoria Pública
para Ajuizar Ação Civil Pública tendo por objeto de Direitos Transindividuais. Disponível
em: http://www.mpce.mp.br/esmp/biblioteca/monografias/d.processual.civil/legitimidade.
da.defensoria.publica[2007].pdf. Acesso em: 14 maio 2014).
13 Para ver a extensão e o êxito dessa atuação coletiva da Defensoria Pública do
Brasil, sugerimos a leitura dos Relatórios da Associação Nacional de Defensores Públicos
(ANADEP), disponíveis em: https://www.anadep.org.br/wtksite/I-RELAT_RIO-NACIONAL.
pdf e https://www.anadep.org.br/wtksite/Preview_Livro_Defensoria_II_Relat_rio(1).pdf.
14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 3.943/DF. Relatora: Min. Cármen
Lúcia. Julgamento: 7 mai. 2015.

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406
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

inovadores: incidente de resolução de demandas repetitivas (artigo 139,


X) e de assunção de competência (artigo 947, § 1º), representando a par-
te, mas também em nome próprio (legitimação extraordinária); Amicus
Curiae (artigo 138); e, nas ações possessórias, passa a ser intimada sempre
que figure no polo passivo grande número de pessoas em situação de vul-
nerabilidade organizacional (artigo 554, § 1º), neste último ponto, errone-
amente adjetivada tal situação como de hipossuficiência econômica.

Convém esclarecer, entretanto, que o múnus da Defensoria Pública


não se liga puramente à proteção daquele que se encontra em situação
de vulnerabilidade econômica, mas, ao contrário, se justifica diante de
outras situações, principalmente relacionadas a direitos indisponíveis,
como a vida e liberdade, seja em relação a sujeitos especialmente pro-
tegidos pelo direito, como idosos, doentes, mulheres vítimas de violência
doméstica, populações de rua, crianças e adolescentes, pessoas encar-
ceradas, seja em relação a pessoas em particular situação de vulnera-
bilidade, como óbices geográficos, debilidade de saúde, desinformação
pessoal, desconhecimento sobre as leis, dificuldade de compreensão da
técnica jurídica, ausência de defesa técnica, deficiência de atuação pro-
batória e incapacidade de organização15.

Isso se dá porque a atuação da Defensoria Pública está ligada à pre-


sença de alguma vulnerabilidade, coletiva ou individual, econômica, jurí-
dica, circunstancial ou organizacional, e se deve interpretar o conceito de
necessitado a partir da leitura da Constituição com as lentes de princípios
hermenêuticos que traduzam sua plena força normativa e garantam a
aplicabilidade do princípio da máxima efetividade das normas constitu-

15 TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de


Janeiro: Forense, 2012, p. 189 e ss.

Ir para o índice
407
cionais16, o que justifica e fundamenta até mesmo a atuação como órgão
interveniente na condição de custös vulnerabilis, para o fiel cumprimento
de sua missão constitucional, ou seja, não como procurador judicial da
parte (que se encontre suficientemente representado no feito), mas em
presentação da própria instituição Defensoria Pública, em nome próprio
e no regular exercício da Procuratura Constitucional dos Necessitados.

É nessa esteira de proteção da vulnerabilidade e como forma de con-


duzir à igualdade material, muito para além da simples igualdade formal,
que o § 2º do artigo 186 traz uma importantíssima inovação: a prerro-
gativa de requerer ao Juízo a intimação pessoal por meio de oficial de
Justiça da parte por ela patrocinada nas hipóteses em que a perfeita con-
secução do ato processual dependa de providência ou informação que
somente por ela possa ser realizada ou prestada.

Nesse sentido, o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC)


aprovou, no encontro anual ocorrido em março de 2017, na cidade de
Florianópolis, o Enunciado interpretativo nº 62617, que se refere aos arts.
186, §§ 2º e 3º, e 223, §§ 1º e 2o do NCPC, com o seguinte teor:

O requerimento previsto no § 2º do art. 186, formula-


do pela Defensoria Pública ou pelas entidades mencio-
nadas no § 3º do art. 186, constitui justa causa para
os fins do § 2º do art. 223, quanto ao prazo em curso.

16 BRASIL. ADI nº 3.943/DF. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/


paginador.jsp?docTP=TP&docID=9058261. Acesso em: 7 maio 2015.
17 Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), realizado em março de
2017. Disponível em: http://institutodc.com.br/wp-content/uploads/2017/06/FPPC-Car-
ta-de-Florianopolis.pdf. Acesso em: 12 dez. 2017.

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408
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Ademais, a experiência prática tem demonstrado a imensa dificul-


dade de a Defensoria Pública manter contato com seus assistidos, por
diversas razões, a começar pela estrutura ainda insipiente da Instituição,
nomeadamente nas comarcas do interior do Brasil.

Por fim, deve-se observar que a intimação pessoal nas causas patrocina-
das pela Instituição é regra, seja do defensor público, seja da parte por ele
representada ou de suas testemunhas, conforme se verifica, por exemplo,
nas hipóteses do artigo 455, § 4º, IV (testemunhas arroladas), do artigo 513,
§ 2º, II (cumprimento de sentença), do artigo 876, § 1º, II (adjudicação).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim como outras legislações que disciplinam a atuação da Defensoria


Pública, o Novo Código de Processo Civil permite-lhe tomar o assento que
lhe é reservado, de forma a reafirmar o caráter de instituição essencial e
permanente, que, ao lado do Poder Judiciário, do Ministério Público e da
Advocacia Pública e Privada, completa o Sistema de Justiça e assegura a con-
secução do Estado Democrático de Direito, do Regime Republicano e a busca
da concretização dos fundamentos da cidadania e da dignidade humana.

A Defensoria Pública se constitui em garantia diversa da justiça gratui-


ta, e mais abrangente que a assistência judiciária e a assistência jurídica,
pois vai além dessas perspectivas tradicionais, agregando outros serviços
multidisciplinares, formas de atuação político-sociais e instrumentos de-
mocráticos de participação direta da população, na busca da plenitude
da dignidade e da cidadania das pessoas necessitadas em especial, e dos
direitos, liberdades e garantias das pessoas em geral, pela observância

Ir para o índice
409
dos fundamentos, objetivos e princípios do Estado Democrático de Direi-
to, convertendo-se numa revolução na significação do Acesso à Justiça.

REFERÊNCIAS

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa


do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Dispo-
nível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui-
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BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo


Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 12 dez. 2017.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004.


Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104,
105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da
Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103B, 111-A e 130-A,
e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
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BRASL. Lei Complementar nº 132, de 7 de outubro de 2009. Altera dis-


positivos da Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, que organiza
a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescre-
ve normas gerais para sua organização nos Estados, e da Lei nº 1.060, de 5
de fevereiro de 1950, e dá outras providências. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp132.htm. Acesso em: 12 dez. 2017.

BRASIL. Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994. Organi-


za a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e

Ir para o índice
410
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá outras


providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
lcp/Lcp80.htm. Acesso em: 12 dez. 2017.

BRASIL. Lei nº 11.448, de 15 de janeiro de 2007. Altera o art. 5o da Lei


no 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina a ação civil pública, legiti-
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412
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

III. INTERNACIONAL

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413
O Direito da Agricultura Biológica:
notas sobre o regime jurídico português
Organic agriculture Law:
notes on the portugueses legal framework

CARLA AMADO GOMES

RESUMO

Este artigo visa deixar um panorama sobre a agricultura biológica e o


regime que a envolve, na União Europeia. A agricultura biológica não se
reconduz a uma única definição, uma vez que pode ser desenvolvida por
um cruzamento de técnicas variadas – e não forçosamente “tradicionais”,
mas sobretudo por recurso à inovação tecnológica. Muito “na moda” pe-
las suas alegadas virtualidades na luta contra as alterações climáticas,
a produção biológica vem sendo incentivada na União Europeia desde
a década de 1990, entrecruzando as políticas agrícola e ambiental. Em
Portugal, a produção biológica tem crescido nos últimos anos mas está
ainda longe dos patamares a que já se alçaram outros Estados-Membros.

Palavras-chave: Agricultura. Agricultura Biológica. Alterações Climáticas.

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414
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

ABSTRACT

This article aims to draw a general picture of organic production and


its framework in the European Union and in Portugal. Organic agricultu-
re doesn’t confine itself in one single definition, once it can be developed
through a sample of various techniques — not just “traditional” but overall
inovative. It’s very much a fashion theme because of its links with climate
change, but in the European Union organic production is being incentivated
since the ‘1990s, crossing agriculture and environmental policies. In Portu-
gal, organic production has been growing significantly in the last years but
it is still far from the thresholds existant in other member States.

Keywords: Agriculture. Organic Agriculture. Climate Change.

1 A AGRICULTURA BIOLÓGICA: DA DIFICULDADE DE UM CONCEITO


À PROLIFERAÇÃO DE TÉCNICAS

A aproximação ao tema da agricultura biológica — conceito mais utili-


zado em Portugal para caracterizar uma realidade que, de forma genérica,
constitui um modo de produção que visa produzir alimentos com recurso a
práticas sustentáveis, de respeito pelo ambiente e sem recurso a pesticidas
ou adubos químicos, e que não utiliza organismos geneticamente modi-
ficados — enfrenta diversos escolhos, um dos quais o da proliferação de
noções que a definam. Detectam-se, com efeito, entre outras designações,
“agricultura orgânica”, “eco-agricultura”, ou “agricultura natural”.

Assim, tanto podemos encontrar, no primeiro considerando do Re-


gulamento nº 834 do Conselho, de 28 de junho de 2007, uma alusão à
“produção biológica”:

Ir para o índice
415
A produção biológica é um sistema global de gestão das
explorações agrícolas e de produção de géneros alimentí-
cios que combina as melhores práticas ambientais, um ele-
vado nível de biodiversidade, a preservação dos recursos
naturais, a aplicação de normas exigentes em matéria de
bem-estar dos animais e método de produção em sintonia
com a preferência de certos consumidores por produtos
obtidos utilizando substâncias e processos naturais.

Como podemos extrair, do ponto 17 do Relatório The transformative


potential of the right to food (2014), da autoria do Relator Especial da ONU
sobre o direito à alimentação, Olivier De Schutter (A/HRC/25/75), que

Agroecologia equivale a um leque de técnicas agronó-


micas, incluindo consorciação de culturas, reciclagem de
estrume e de restos de comida em fertilizantes, e agro-
florestais, que reduzem o uso de elementos externos e
maximizam a eficiência dos recursos.

Como, ainda, podemos confrontar a fórmula presente no Manual de


conversão à produção biológica — disponibilizado online na página da
Direcção-Geral da Agricultura e do Desenvolvimento Rural:

A Agricultura Biológica é um modo de produção em que


são utilizadas práticas culturais respeitadoras do equilí-
brio natural do meio e em que se trabalha em compati-
bilidade com os ciclos e sistemas naturais da terra, das
plantas e dos animais.

Decisivo para caracterizar esta realidade parece ser, não tanto o re-
curso a uma ou a um conjunto de técnicas pré-estabelecidas, mas so-

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416
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

bretudo, e pela positiva, a redução da poluição dos solos, a preservação


do equilíbrio dos ecossistemas rurais, a melhoria da qualidade dos ali-
mentos e, pela negativa, a proibição de utilização quer de organismos
geneticamente modificados na produção biológica, quer de pesticidas ou
adubos químicos de síntese — bem assim como, no que toca à criação
de animais, é essencial sublinhar que está proibido o recurso a hormonas
promotoras do crescimento, bem assim como, em regra, o recurso a an-
tibióticos no tratamento de doenças e pragas.

Fixados os objectivos, as técnicas podem ser de muito variado teor,


incluindo o recurso a tecnologias modernas. Os métodos de produção
biológica não são sinónimos de agricultura tradicional. Nas palavras de
Sara AZEVEDO GONÇALVES, “As técnicas da agricultura biológica pressu-
põem um conhecimento aprofundado dos solos, dos equilíbrios naturais
e da sua utilização judiciosa evitando a poluição do ambiente, reduzindo
fortemente o consumo de energia e de matérias-primas não renováveis.
Assim, difere da agricultura dita ‘tradicional’ porque exige a preparação
dos solos, selecção de plantas e de sementes adequadas aos mesmos e
ao clima, exige conhecimentos aprofundados sobre os códigos e regula-
mentos associados a este modo de produção por parte dos operadores
e não utiliza agro-químicos poluentes dos alimentos e do ambiente. A
agricultura biológica não dispensa a mecanização, a evolução tecnológica
e o avanço das biotecnologias” 1.

As técnicas são, portanto, múltiplas e podem combinar-se, compre-


endendo, por exemplo:

1 GONÇALVES, Sara Manuel Pitães Azevedo, A agricultura biológica em Portugal:


(D)as problemáticas e (A)os problemas, Dissertação de Mestrado em Geografia Humana
- Território e Desenvolvimento apresentada na Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, sob a orientação do Prof. Doutor Hélder Marques, Porto, 2005.

Ir para o índice
417
• Planear e gerir áreas protegidas juntamente com a agricultura
local, incluindo pastores e comunidades florestais nas paisagens;

• Associar áreas não cultivadas, fragmentos florestais e zonas hú-


midas a explorações agrícolas, no sentido de desenvolver as re-
des de habitats e corredores ecológicos que apoiam e expandem
a gama de espécies selvagens;

• Reduzir a conversão de áreas naturais em áreas agrícolas, melhoran-


do a produtividade das terras agrícolas e silvícolas já em exploração;

• Modificar os sistemas agrícolas para que eles imitem a vegetação


natural e os processos ecológicos;

• Gerir os resíduos agrícolas com vista: à protecção do ecossistema


circundante, incentivando a adopção de práticas agrícolas “de
conhecimento intensivo”, como a integração de culturas de gado
e de sistemas de nutrientes; a uma aplicação mais precisa de fer-
tilizantes orgânicos e não orgânicos; e a rotações de culturas para
melhorar a fertilidade do solo;

• Incentivar metodologias de gestão do solo, da água e da vegeta-


ção que limitem os impactos negativos sobre os ecossistemas cir-
cundantes, v.g., lavoura de conservação, melhoria dos sistemas
de pousio, culturas intercalares e diversificação do gado.

2 A AGRICULTURA BIOLÓGICA: UMA METODOLOGIA AO SERVIÇO


DA LUTA CONTRA AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS

Num relatório divulgado recentemente, intitulado 2016: O estado da


alimentação e da agricultura. Alterações climáticas, agricultura e segu-

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418
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

rança alimentar, a FAO alertou para que, se não forem tomadas medidas
urgentes de adaptação do sector agrícola às alterações climáticas, existe
um risco de insegurança alimentar que pode atingir até 122 milhões de
pessoas até 20302. Está-se perante um verdadeiro dilema: por um lado,
é necessário produzir mais alimentos para uma população em escalada
demográfica mas, por outro, porque o sector agrícola, nomeadamente
o pecuário, é responsável por um incremento das emissões de CO2 (um
quinto do total), urge travar a conversão de floresta em terra agrícola.

O Relatório sublinha que não existe solução única nem rápida, pois os
sistemas variam muito em função de condicionantes geográficas e cul-
turais, além de que existe intenso vector de incerteza associado às evo-
luções/alterações climáticas3, mas entende ser essencial que os Estados
promovam políticas de incentivo aos agricultores no sentido de adoptarem
metodologias mais eficientes do ponto de vista ecológico, desde práticas
inteligentes como o uso de variedades de culturas nitrogénio-eficientes e
mais tolerantes ao calor, como a reconversão de estruturas agrícolas tradi-
cionais de acordo com os métodos da produção biológica (agroecologia).

A agricultura biológica está, de facto, na moda, mas não é novidade.


As primeiras manifestações teóricas sobre a agricultura biológica datam
do início do século XX e devem-se sobretudo a uma atitude filosófica, a
uma vontade de contrariar a motorização e massificação em que a activi-
dade agrícola se tornara — ela também tocada pela Revolução Industrial
—, em suma, a uma tentativa de (re)aproximar o Homem da Natureza.

2 SANDERS, Jurn; STOLZE, Matthias; PADEL, Susanne. 2016: The state of food and
agriculture. Climate change, agriculture and food security. Disponível em: http://www.fao.
org/3/a-i6030e.pdf. Acesso em: 16 out. 2017.
3 VERMEULEN, Sonja J. et al. Addressing uncertainty in adaptation planning for agricul-
ture. PNAS, nº 21, 2013, p. 8357 e segs. Disponível em: www.pnas.org. Acesso em: 16 out. 2017.

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419
Conforme se lê num documento informativo da Comissão Europeia so-
bre Agricultura Biológic4, podem identificar-se três correntes de pensa-
mento: i) a agricultura biodinâmica, surgida na Alemanha e impulsionada
por Rudolf Steiner; ii) a agricultura orgânica (organic farming), surgida na
Inglaterra a partir das teses desenvolvidas por Sir Albert Howard no seu
An agricultural Testament (1943); iii) A agricultura biológica, desenvolvi-
da, na Suíça, por Hans Peter Rusch e H. Muller.

Explica Sara AZEVEDO GONÇALVES5 que os estudos de Steiner, dos


anos 1920, surgem como uma reacção a correntes materialistas, na de-
fesa de uma alimentação saudável por recurso a alimentos cuja produção
dispensasse os adubos minerais solúveis. Já o movimento lançado pela
obra de Sir Albert Howard enaltecia o equilíbrio ecológico e propugnava
que o enriquecimento dos solos se fizesse à base de materiais orgânicos
compostados, tornando as plantas e vegetais mais resistentes a pragas.
Finalmente, a terceira corrente sublinhava a importância da utilização de
recursos renováveis e conferia particular importância ao húmus, privile-
giando-se o seu tratamento por meio de técnicas de compostagem de
superfície e respeitando-se ao máximo a sua estrutura orgânica de base.

A agricultura biológica manteve-se, no entanto, “em pousio” até a


década de 1980 — embora, na década de 1970, se tenha assistido a uma
divulgação sensível dos seus métodos nos Estados do Norte da Europa a
qual conduziu, de resto, à criação da International Federation of Organic

4 AGRICULTURA Biológica. Guia da regulamentação comunitária. Comissão Eu-


ropeia: Direcção-Geral da Agricultura, 2001, p. 04.
5 AZEVEDO, Sara Manuel Pitães Gonçalves, A agricultura biológica em Portugal:
(D)as problemáticas e (A)os problemas, Dissertação de Mestrado em Geografia Humana
- Território e Desenvolvimento apresentada na Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, sob a orientação do Prof. Doutor Hélder Marques, Porto, 2005, p. 43-44.

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420
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Agricultural Movements (IFOAM), em 19726 —, momento em que, fruto


da crescente preocupação com a protecção do ambiente e com a alimen-
tação saudável, iniciou um desenvolvimento mundial que se mantém até
hoje. Esta Organização adoptou, em 1998, os Cadernos de Especifica-
ções-Quadro da Agricultura Biológica e da Transformação, documentos
de orientação que, além de abrir caminhos de reflexão, sintetizam o es-
tado actual dos métodos de produção e de transformação de produtos
biológicos. Entretanto, no início da década de 1980, registraram-se as
primeiras manifestações legislativas na Europa (França, Áustria, Dina-
marca), incidindo sobretudo sobre as questões da certificação e das sub-
venções — ou seja, no sentido de realçar a diferença entre produtos de
agricultura biológica e produtos de agricultura convencional7.

De acordo com o último levantamento promovido pelo Forschung-


sinstitut fur biologischen Landbau (FiBL)8, registram-se explorações de
agricultura orgânica certificada um pouco por todo o mundo — dados de
2014 apontam para a presença desses métodos em 172 Estados. Nessa
data, contavam-se 43,7 milhões de hectares de terra trabalhada em agri-
cultura orgânica, incluindo áreas em conversão. As regiões com as maio-
res áreas de terras agrícolas orgânicas são a Oceania (17,3 milhões de
hectares; 40% das terras agrícolas orgânicas do mundo) e a Europa (11,6
milhões de hectares; 27%). A América Latina tem 6,8 milhões de hecta-
res (15%), seguida pela Ásia (3,6 milhões de hectares; 8%), a América do
Norte (3,1 milhões de hectares; 7%) e a África (1,3 milhões de hectares;

6 Cfr. a página ORGANIC Agriculture 2009. Climate change and food security, IFOAM.
Disponível em: http://www.louisbolk.org/downloads/2242.pdf. Acesso em: 16 out. 2017.
7 Cfr. AGRICULTURA Biológica. Guia da regulamentação comunitária. Comissão
Europeia: Direcção-Geral da Agricultura, 2001, p. 4-5.
8 ORGANIC Agriculture 2016. FIBL&IFOAM. Disponível em: https://shop.fibl.org/
fileadmin/documents/shop/1698-organic-world-2016.pdf. Acesso em: 16 out. 2017.

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421
3%). Os países com mais área em terra agrícola orgânica são a Austrália
(17,2 milhões de hectares), a Argentina (3,1 milhões de hectares) e os
Estados Unidos (2,2 milhões de hectares). Na Europa, 2.4% da superfície
total de terras agrícolas estão em produção biológica, sendo a Áustria o
Estado-Membro com maior percentagem (19,4%).

No início da década de 1990, a União Europeia adoptou um pacote


de medidas agroambientais, no âmbito da reforma da política agrícola
comum (ver infra). E, em 1999, a Comissão do Codex Alimentarius (no
âmbito da FAO/OMS) publicou guias de orientação relativas à produção,
transformação, rotulagem e comercialização dos alimentos produzidos
biologicamente, que se destinam a orientar a actuação legislativa dos
Estados, a entrecruzar com as suas especificidades nacionais.

Os fundamentos filosóficos da agricultura biológica perdem hoje pro-


tagonismo perante a sua relevância no quadro da luta contra as alterações
climáticas. Independentemente da sua mais valia no plano da segurança
no trabalho agrícola — em razão da eliminação dos adubos químicos, cujo
manejo por vezes descuidado ou em condições inseguras provoca lesões
nos trabalhadores do campo —, e da sua importância no incremento da
qualidade dos alimentos, o papel capital da agricultura biológica está reser-
vado para o combate ao aquecimento global, em várias frentes.

Reganold e Watcher9 afirmam que, em regra, os estudos sobre agricul-


tura biológica concluem que essa metodologia é mais amiga do ambiente
do que a agricultura convencional. Tais análises atestam que os solos utili-
zados na agricultura biológica possuem um nível de carbono superior, são
dotados de melhor qualidade ecossistémica e revelam menor exposição à

9 REGANOLD, John P.; WATCHER Jonathan M. Organic agriculture in the twenty-


first century. Nature, 2016/2, p. 1-3.

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422
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

erosão. Acresce que as explorações agrícolas ganham ampla dianteira tan-


to no plano da diversidade de flora e fauna (insectos, micróbios, pássaros)
como no plano da diversidade de habitats e da paisagem. Além disso, os
grupos de fauna mais funcionais (como herbívoros, polinizadores e preda-
dores) apresentam maior diversidade nos sistemas de agricultura biológica.

Deve-se sublinhar que estas investigações apuram que, em regra, o uso


de inseticidas e fungicidas nas explorações tradicionais tem efeitos muito
negativos sobre a biodiversidade. Como a agricultura orgânica não utiliza
pesticidas sintéticos, o risco de poluição das águas de superfície e em len-
çóis freáticos é mínimo, ou não existe. No tocante à lixiviação por nitrato
e fósforo e à emissão de gases com efeito de estufa, os sistemas orgânicos
demonstram mais eficiência do que os tradicionais — quando relativos à
produção por hectare, não tanto quando relativos à quantidade de produ-
to produzido (aqui por vezes a eficiência é mesmo menor nas explorações
biológicas, em razão da maior necessidade de solo que estas implicam).

É também de realçar que a degradação dos sistemas aquíferos e mari-


nhos está estreitamente ligada ao uso excessivo de fertilizantes à base de
nitrogénio e de fósforo, factores que potenciam a entrofização da água e
a criação de zonas hipóxicas em águas costeiras. Meta-análises de dados
comparativos entre explorações orgânicas e convencionais demonstram
que a utilização de nutrientes de baixo teor poluente nas primeiras pode
fazer decrescer significativamente os efeitos prejudiciais nas águas.

Importa ainda fazer referência à superior eficiência energética dos


sistemas de agricultura biológica. Vários casos de estudo comprovam
que essas explorações usam, numa análise por hectare, significativamen-
te menos energia e acrescidas aos restantes factores descritos contri-
buem para a excelente pegada ecológica desses sistemas e fazem deles

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423
importantes estruturas de sequestro de carbono e de redução de gasto
energético, pilares fundamentais do combate ao aquecimento global10.

Outra abordagem, patrocinada pela IFOAM, apresenta igualmente os


contributos da agricultura biológica para a luta contra as alterações cli-
máticas. No Relatório Organic Agriculture: a Guide to Climate change and
food security (2009)11, a Associação começa por indicar os três principais
trunfos da agricultura biológica — alto nível de sequestro de carbono; re-
duzido nível de emissões de CO2; maior eficiência no uso do solo e maior
segurança na preservação dos elementos vitais (food secure farming) —,
para depois analisar as suas virtualidades em duas frentes das guerras do
clima: mitigação e adaptação. No que toca à mitigação, essa metodologia
de produção releva nos seguintes planos: evitação de fertilizantes quí-
micos e herbicidas; incremento da fertilidade e carbonicidade do solo;
redução dos solos sem utilização; técnicas de lavoura adequadas; combi-
nação de colheitas perenes e anuais; gestão racional no plano pecuário;
adubagem natural; gestão racional dos prados; sistemas de rizicultura in-
tensiva (System of Rice Intensification – SRI); produção e consumo locais.
Quanto à adaptação, a agricultura biológica pode contribuir para esse
objectivo uma vez que previne e reverte a erosão dos solos e incentiva
a recuperação de solos degradados; promove a resiliência em face de
secas e inundações e incrementa a eficiência no uso da água; fomenta
colheitas resilientes, diversidade agrogenética, diversificação de culturas;
induz a aquisição de novos conhecimentos por parte dos agricultores.

10 Ver também: PORTER, John, et al. The Value of Producing Food, Energy, and
Ecosystem Services within an Agro-Ecosystem. AMBIO: A Journal of the Human Environ-
ment, 2009/4, p. 186 e segs. GOMIERO, Tiziano, PIMENTEL, David; PAOLETTI, Maurizio G.
Environmental Impact of Different Agricultural Management Practices: Conventional vs.
Organic Agriculture. Critical Reviews in Plant Sciences, v. 30, 2011, p. 95 e segs.
11 Disponível em: http://www.louisbolk.org/downloads/2242.pdf.

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Nem tudo são ganhos, no entanto, e os detractores da agricultura


biológica apontam a esta metodologia um pecado capital: a necessidade
de espaço. O facto de este tipo de agricultura ser extensiva, e não inten-
siva — para dar tempo de recomposição aos solos —, faz com que seja
necessária muito mais terra para produzir as mesmas quantidades que se
produzem pelos métodos convencionais. O que, tendo em consideração
que o espaço é uma grandeza escassa nos Estados desenvolvidos, reduz
a competitividade da agricultura biológica. E logo se aproveita para argu-
mentar que não será por esta metodologia que se matará a fome aos 9
biliões de pessoas previstos para 2050.

Este argumento é falacioso e demagógico, pois o problema da fome


não se prende com a produção, mas com o acesso aos alimentos. O Ban-
co Mundial já o reconheceu, frisando que uma significativa fatia da po-
pulação mundial, sobretudo no hemisfério sul, se encontra em situação
de pobreza extrema, não tendo meios para adquirir alimentos, nem terra
onde os produzir. Em contrapartida, nos Estados desenvolvidos, o proble-
ma é de sobreprodução e de desperdício12. Este desequilíbrio está assi-
nalado, de resto, desde a década de 1970, com a Declaração de Cocoyoc
(1974)13 a sublinhar que “The grain exists, but it is being eaten elsewhere
by very well-fed people” (§14º).

Porém, mais importante do que chamar a atenção para a inverdade


deste raciocínio é sublinhar que a agricultura biológica, ainda que utilize

12 Cfr. ANDERSON, Kym; IVANIC, Maros; MARTIN, Will. Food Price Spikes, Price In-
sulation, and Poverty, The World Bank Development Research Group Agriculture and Rural
Development Team, Julho 2013. Disponível em: http://documents.worldbank.org/curated/
en/533251468340210092/pdf/WPS6535.pdf. Acesso em: 16 out. 2017.
13 Declaração adoptada na sequência do simpósio promovido pelo UNEP e pela
UNCTAD subordinado ao tema “Patterns of Resource Use, Environment and Development
Strategies”, que teve lugar em Cocoyoc (México).

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425
mais solo — solo que pode ser capturado à agricultura convencional, de-
pois de reconvertido —, dá maiores garantias de resiliência às intempé-
ries e mitiga os efeitos das alterações climáticas, acabando por, no final
do dia, ser mais eficiente do que a agricultura convencional. De acordo
com o Relatório Organic Agriculture: a Guide to Climate change and food
security, supracitado, é patente a importância dos métodos orgânicos na
estruturação de um solo que retém melhor a água, o que o torna mais
apto a produzir em condições de escassez daquela. Ademais, a diversida-
de de culturas e a alternância de tempos de colheita que se praticam nos
sistemas biológicos permitem enfrentar com mais facilidade a incerteza
climática. Acresce que as técnicas de agricultura biológica robustecem o
solo, incrementando a disponibilidade de terra ao mesmo tempo em que
revertem a sua degradação e a erosão. Finalmente, os sistemas de agri-
cultura biológica são acessíveis a pequenos agricultores, dinamizando a
produção local e reduzindo custos e emissões em transporte.

O Relatório informa que a agricultura biológica se encontra em fran-


co crescimento porque fomenta a segurança alimentar e o acesso aos
alimentos14. A IFOAM recorda que três relatórios editados pelo Programa
das Nações Unidas para o Ambiente, pela Conferência das Nações Uni-
das para o Comércio e Desenvolvimento, e pela Agência do PNUA para a
avaliação da ciência e tecnologia no desenvolvimento agrícola, todos de
2008, concluíram que a agricultura orgânica tem potencial para aumen-
tar a produtividade agrícola, os rendimentos desta e com isso fomentar
a segurança alimentar. Por seu turno, o Fundo Internacional para o De-
senvolvimento Agrícola já havia reconhecido, em 2005, que a agricultura
biológica é especialmente relevante em climas difíceis.

14 Cfr. REGANOLD, John P.; WATCHER Jonathan M. Organic agriculture in the twen-
ty-first century. Nature, 2016/2, p. 6-8.

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426
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Com efeito, enquanto em Estados desenvolvidos e de clima temperado


a média de produção em sistemas orgânicos pode revelar-se mais baixa do
que na agricultura convencional, em Estados em desenvolvimento e regiões
áridas, em contextos adversos, a agricultura biológica toma a dianteira. Além
disso, revela melhores desempenhos em cenários de escassez hídrica, o que
ilumina o seu potencial no âmbito da adaptação às alterações climáticas.

Acresce que a agricultura biológica, porque aproxima o agricultor da


terra e fomenta um diálogo permanente para compreender os equilí-
brios naturais, empodera as comunidades locais e contribui para a in-
dependência alimentar destas. Dado que este sistema tem custos de
implementação razoáveis (sobretudo se o solo não estiver degradado)
e assenta no aproveitamento de recursos locais, biológicos e humanos,
a sua adopção pelos mais de 400 milhões de pequenas quintas (isto é,
com menos de 2 hectares de extensão) torna-se viável. Estas explora-
ções constituem a chave da segurança alimentar no espaço dos Estados
em desenvolvimento, pois pulverizam o uso racional da terra por comu-
nidades desfavorecidas, incrementam a qualidade da alimentação e fa-
zem-no com respeito pelos parâmetros de protecção ambiental — com
isso contribuindo para a consecução dos Objectivos do Milénio e para
o Objectivo 2 da Agenda 2030 (“Erradicar a fome, alcançar a segurança
alimentar, melhorar a nutrição e promover a agricultura sustentável”).

3 O QUADRO JURÍDICO (EUROCOMUNITÁRIO) DOS MÉTODOS DE


PRODUÇÃO BIOLÓGICA

Porque a agricultura é uma política partilhada entre a União e os Es-


tados-Membros (cfr. a alínea d)) do nº 2 do artigo 4 do Tratado sobre o
Funcionamento da União Europeia, doravante), não é de estranhar que a

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427
moldura jurídica da agricultura biológica seja primacialmente de origem
eurocomunitária. Embora esta metodologia não encontre suporte expres-
so no TFUE, o Título III (Agricultura e Pescas) contempla algumas normas
que podem revestir especial importância neste domínio, como a que refe-
re as subvenções à produção e comercialização de certos produtos (nº 2
do artigo 40 do TFUE), ou a que se reporta a acções comuns destinadas a
promover o consumo de certos produtos (alínea b)) do artigo 41 do TFUE).
Tendo em consideração a estreita conexão entre os métodos de agricul-
tura biológica e a luta contra as alterações climáticas — desde a reforma
dos Tratados promovida pelo Tratado de Lisboa, em 2009, expressamente
referenciada no Título XX (O Ambiente), como objectivo da política de am-
biente (cfr. o 4º trav. do nº 1 do artigo 191) —, não surpreenderá a dupla
filiação de medidas eurocomunitárias adoptadas neste âmbito.

A verdade, porém, é que a agricultura biológica só passa a integrar a rede


normativa da União Europeia mais de trinta anos após o seu arranque (como
Comunidade Económica Europeia), com a entrada em vigor do Tratado de
Roma, de 1957. Essa situação encontra a sua explicação em duas ordens de
razões: por um lado, a questão ecológica só emerge na década de 1970, sen-
do abraçada pela então Comunidade Económica Europeia, em 1972, com a
Declaração de Paris, e só sendo formalmente integrada nos Tratados institu-
tivos com a primeira revisão, promovida pelo Acto Único Europeu, de 1986
(o que não impediu, sublinhe-se, que entre 1972 e 1987, a Comunidade edi-
tasse centenas de directivas e regulamentos mais ou menos directamente
relacionados com objectivos de protecção do ambiente); por outro lado, e
principalmente, porque as preocupações iniciais com a Política Agrícola Co-
mum foram: i) reconstruir um sector económico frágil, muito afectado pela II
Guerra, garantindo a subsistência dos agricultores em condições equitativas;
ii) assegurar a competitividade dos produtos agrícolas; e iii) salvaguardar a
segurança alimentar das populações dos Estados-Membros.

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428
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Vejamos muito sinteticamente como despertou a União Europeia


para as metodologias da produção biológica e como as regulou.

3.1 A reforma da PAC, de 1992, e a introdução do conceito pelo


Regulamento nº 2.092, de 1991, do Conselho, de 24 de junho

Foi com a reforma da Política Agrícola Comum (PAC) que a agricultu-


ra biológica passou a integrar as opções dos agricultores europeus (sem
embargo de existir já regulamentação em alguns Estados-Membros,
como se referiu supra). Na Comunicação da Comissão ao Conselho sobre
a Evolução e Futuro da PAC [COM (91) 100 final]15 podia ler-se (na página
2: “Dados do problema da PAC”) que

[...] um sistema que faz depender o apoio concedido à


agricultura das quantidades produzidas fomenta o desen-
volvimento da agricultura e, por conseguinte, favorece a
intensificação dos métodos de produção. Sem qualquer
intervenção, este processo acarreta consequências nega-
tivas: onde há produção intensiva, há exploração abusiva
da natureza, poluição da água, degradação do solo. Onde
deixa de haver produção, à medida que cresce a separa-
ção entre o produto e a terra, há desertificação e baldios.

Mais adiante, já em sede de definição dos objectivos da reforma a


empreender (pág. 10), a Comunicação afirma que

15 Disponível em: http://ec.europa.eu/agriculture/cap-history/1992-reform/


com91-100_pt.pdf. Esta Comunicação vem na sequência do Livro Verde sobre as perspecti-
vas de futuro da agricultura europeia, da Comissão Europeia, de 1985.

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429
No que diz respeito mais especificamente ao sector
agrícola, esta opção tem consequências que devem ser
avaliadas e assumidas. Implica, designadamente, que se
reconheça que o agricultor desempenha, ou pelo menos
pode e deve desempenhar, simultaneamente, duas fun-
ções principais: uma actividade de produção e, ao mes-
mo tempo, uma actividade da protecção do ambiente e
de desenvolvimento rural. A actividade de produção está
tradicionaImente centrada na produção alimentar. Esta
continuará a ser a sua finalidade dominante mas será
dada maior importância à produção de matérias-primas
para utilizações não alimentares. A protecção do am-
biente implica o reforço do papel do agricultor enquan-
to responsável pelo ambiente, através da utilização de
métodos de produção menos intensivos e a aplicação de
medidas favoráveis ao ambiente.

Deve-se realçar que a protecção da Natureza constituía um objectivo


de realização crescente no seio da União Europeia, que, em 1992, com-
pletou o desenho normativo da rede Natura 2000 por meio da directiva
92/43/CEE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio (a di-
rectiva Habitats, que se conjuga com a chamada directiva Aves: diretiva
79/409/CEE, do Conselho, de 2 de abril). Acrescia a preocupação com a
poluição da água por nitratos provenientes da actividade agrícola, ma-
terializada na adopção da directiva 91/676/CEE, do Conselho, de 12 de
dezembro (relativa à protecção das águas contra a poluição causada por
nitratos de origem agrícola). Ambos estes domínios interferem com o
desígnio de depuração dos métodos de produção agrícola e de criação
pecuária, promovendo a diversidade biológica dos solos e terrenos, por
um lado, e reduzindo as fontes de emissões poluentes (de nitratos), por

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430
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

outro lado16. Com a assunção do entrecruzamento entre agricultura e


ambiente, nasce uma nova política, a de desenvolvimento rural, que visa
promover “uma agricultura sustentável, de alto valor natural”17.

É nesse contexto que surgem o Regulamento (CEE) nº 2.092, de 1991,


do Conselho, de 24 de junho, relativo ao modo de produção biológico de
produtos agrícolas e à sua indicação nos produtos agrícolas e nos géneros
alimentícios, e o Regulamento (CE) nº 2.078, de 1992, do Conselho, de
30 de junho, relativo a métodos de produção agrícola compatíveis com as
exigências da protecção do ambiente e à preservação do espaço natural.
Aparentemente, os Regulamentos têm o mesmo objecto, mas o primei-
ro contém um regime material; o segundo se destina à criação de um
fundo comunitário de ajudas, no âmbito do FEOGA. O regime plasmado
no Regulamento nº 2.092, de 1991, assenta fundamentalmente em três
vectores: métodos de produção; rotulagem; e medidas de controlo.

Perante a expansão da agricultura biológica no espaço da União Euro-


peia, e após a apresentação, pela Comissão ao Conselho, de um Plano de
acção europeu para os alimentos e a agricultura biológicos [COM (2004)
415, final – de 10 de junho]18, as instituições europeias reconheceram
que havia ainda algum caminho a percorrer na regulação da matéria,

16 Para uma resenha comparativa das interferências entre agricultura e ambien-


te nos 10 Estados-Membros que, em final da década de 1980, integravam a Comunidade
Económica Europeia (a adesão de Portugal e Espanha só se consumou em 1986 e não en-
traram neste estudo), CUTRERA, Achile (org.), Agricoltura e Ambiente. Annuario Europeo
dell’Ambiente, direcção de Achile Cutrera, 1988, p. 23-50.
17 Cfr. BORN, C. H., La conservation de la biodiversité dans la politique agricole
commune. Cahiers de Droit Europeen, 2001/3-4, p. 376.
18 Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM
:2004:0415:FIN:EN:PDF.

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431
quer no tocante à harmonização de regras de produção, quer relativa-
mente à proibição de utilização de organismos geneticamente modifica-
dos. É sobretudo, mas não apenas, com estas preocupações que surge o
Regulamento (CE) nº 834, de 2007, do Conselho, de 28 de junho, regime
presentemente em vigor e ao qual dedicaremos as linhas que se seguem.

3.2 O Regulamento (CE) nº 834 de 2007, do Conselho, de 28 de junho19

No 5º considerando inicial do Regulamento nº 834, de 2007, pode-


-se ler que “é conveniente definir mais explicitamente os objectivos,
princípios e regras aplicáveis à produção biológica, a fim de aumentar
a transparência e a confiança dos consumidores e contribuir para uma
percepção harmonizada do conceito de produção biológica”. Para tanto,
cumpria revogar o Regulamento nº 2.092, de 1991, e substituí-lo por um
novo, que desenvolvesse e aprofundasse o quadro legislativo, esclare-
cendo questões, aditando elementos e estabelecendo limites.

O Regulamento nº 834, de 2007, define desde logo o seu âmbito de


aplicação no nº 2 do artigo 1, pela positiva e pela negativa:

O presente regulamento é aplicável aos seguintes produ-


tos da agricultura, incluindo a aquicultura, sempre que
sejam colocados no mercado ou a tal se destinem:

a) Produtos agrícolas vivos ou não transformados;

b) Produtos agrícolas transformados destinados a


serem utilizados como géneros alimentícios;

19 Alterado pelos Regulamentos: (CE) nº 967, de 2008, do Conselho, de 29 de


setembro; e (CE) nº 517, de 2013, do Conselho, de 13 de maio.

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432
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

c) Alimentos para animais;

d) Material de propagação vegetativa e sementes.

Os produtos da caça e da pesca de animais selvagens não


são considerados produção biológica.

Deve-se atentar à definição de “produção biológica” que consta da


alínea “a” do artigo 2 – “’Produção biológica’, a utilização do método de
produção conforme com as regras estabelecidas no presente regulamen-
to em todas as fases da produção, preparação e distribuição” —, bem
como na caracterização das “’Fases da produção, preparação e distribui-
ção’: qualquer fase desde a produção primária de um produto biológico
até a sua armazenagem, transformação, transporte, venda ou forneci-
mento ao consumidor final e, se for caso disso, a rotulagem, publicidade,
importação, exportação e actividades de subcontratação”. [alínea “b” do
artigo 2]. Esta metodologia abrange a produção de vegetais (incluindo
algas marinhas), a criação de animais e a aquicultura, conforme descritos
nas alíneas “e”, “f” e “g” do mesmo artigo 2.

O diploma estabelece objectivos e princípios gerais do sistema de pro-


dução biológica. Para os objectivos gerais, veja-se o disposto no artigo 3:

A produção biológica tem os seguintes objectivos gerais:

a) Estabelecer um sistema de gestão agrícola susten-


tável que:

i) Respeite os sistemas e ciclos da natureza


e mantenha e reforce a saúde dos solos, da
água, das plantas e dos animais e o equilíbrio
entre eles;

Ir para o índice
433
ii) Contribua para um elevado nível de diversida-
de biológica;

iii) Faça um uso responsável da energia e dos


recursos naturais, como a água, os solos, as
matérias orgânicas e o ar;

iv) Respeite normas exigentes de bem-estar dos


animais e, em especial, as necessidades com-
portamentais próprias de cada espécie;

b) Procurar obter produtos de elevada qualidade;

c) Procurar produzir uma ampla variedade de géne-


ros alimentícios e de outros produtos agrícolas
que correspondam à procura, por parte dos con-
sumidores, de bens produzidos através de pro-
cessos que não sejam nocivos para o ambiente,
a saúde humana, a fitossanidade ou a saúde e o
bem-estar dos animais.

Os princípios gerais encontram-se enunciados no artigo 4:

A produção biológica assenta nos seguintes princípios:

a) Concepção e gestão adequadas de processos bio-


lógicos baseados em sistemas ecológicos que uti-
lizem recursos naturais internos ao sistema atra-
vés de métodos que:

i) Empreguem organismos vivos e métodos de


produção mecânicos;

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434
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

ii) Pratiquem o cultivo de vegetais e a produção


animal adequados ao solo ou pratiquem a
aquicultura respeitando o princípio da explo-
ração sustentável dos recursos haliêuticos;

i) Excluam a utilização de OGM e de produtos ob-


tidos a partir de OGM ou mediante OGM, com
excepção dos medicamentos veterinários;

iv) Se baseiem na avaliação dos riscos e na utili-


zação de medidas de precaução e de medidas
preventivas, se for caso disso;

b) Restrição da utilização de insumos externos.


Quando forem necessários insumos ou quando
não existam as práticas e métodos de gestão ade-
quados referidos na alínea a), estes devem ser li-
mitados a:

i) Insumos provenientes da produção biológica;

ii) Substâncias naturais ou derivadas de substân-


cias naturais;

iii) Fertilizantes minerais de baixa solubilidade;

c) Estrita limitação da utilização de insumos de sínte-


se química a casos excepcionais em que:

i) Não existam práticas adequadas de gestão; e

ii) Não estejam disponíveis no mercado os insu-


mos externos referidos na alínea b); ou

Ir para o índice
435
iii) A utilização dos insumos externos referidos na
alínea b) contribua para impactos ambientais
inaceitáveis;

d) Adaptação, sempre que necessário, no âmbito do


presente regulamento, das regras da produção
biológica, tendo em conta a situação sanitária, as
diferenças climáticas regionais e as condições lo-
cais, os estádios de desenvolvimento e as práticas
específicas de criação.

O Regulamento nº 834, de 2007, enumera com detalhe princípios es-


pecíficos aplicáveis à agricultura (artigo 5), à transformação de géneros
alimentícios biológicos (artigo 6), à transformação de alimentos biológi-
cos para animais (artigo 7). Quando entramos no domínio das regras de
produção, deve-se realçar, em sede geral — e essa é uma das inovações
do Regulamento nº 834, de 2007 – a proibição expressa de utilização de
OGMs, prevista no nº 1 do artigo 9,

Na produção biológica, não podem ser utilizados OGM


nem produtos obtidos a partir de OGM ou mediante
OGM como géneros alimentícios, alimentos para animais,
auxiliares tecnológicos, produtos fitofarmacêuticos, fer-
tilizantes, correctivos dos solos, sementes, materiais de
propagação vegetativa, microrganismos e animais 20.

20 Veja-se também o que consta do nº 3 do mesmo preceito: “Para efeitos da proi-


bição referida no nº 1 relativamente a produtos que não sejam géneros alimentícios nem
alimentos para animais ou produtos obtidos mediante OGM, os operadores que utilizem tais
produtos não biológicos comprados a terceiros devem exigir do vendedor que confirme que
os produtos fornecidos não foram obtidos a partir de OGM ou mediante OGM”.

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436
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Bem como a vedação da utilização de radiações ionizantes para o tra-


tamento dos géneros alimentícios biológicos, dos alimentos biológicos
para animais, ou das matérias-primas neles utilizadas (artigo 10).

O regime do Regulamento assenta, fundamentalmente, nos três mes-


mos pilares do seu antecessor, de 1991, hoje com mais desenvolvimento
e densidade. Depois de uma primeira parte dedicada a regras de produ-
ção, gerais e específicas — na qual chamaríamos particular atenção para
o disposto no artigo 16, sobre “Produtos e substâncias utilizados na agri-
cultura e critérios para a sua autorização”21 —, o Regulamento versa so-
bre rotulagem nos artigos 23 a 26, e sobre controlos nos artigos 27 a 31.

No que toca à rotulagem, operação essencial para a identificação do pro-


duto e das suas características, bem assim como para informação do consu-
midor, o nº 1 do artigo 23 estabelece que os termos “bio” e “eco” são sinais
de recognoscibilidade de um produto como proveniente de produção por
métodos biológicos reconhecidos pelo Regulamento. Nenhum produto que
contenha OGMs, que seja constituído por OGMs, ou que tenha sido obtido a
partir de OGMs, pode ostentar rótulos de produção biológica.

Do artigo 24 constam as indicações obrigatórias dos rótulos de produ-


ção biológica, que podem incluir a utilização de um logotipo comunitário,
no qual deverá estar especificado se o produto provém de uma exploração
situada em território da União Europeia, em Estado terceiro ou em mais
do que um território, incluindo o da União Europeia, “sempre que uma

21 É a Comissão que cabe autorizar a inclusão destes produtos e substâncias numa


lista restrita, à qual podem ser aditados ou retirados quer em razão de novas informações
recolhidas pela Comissão, quer em razão de pedidos formulados pelos Estados, de acordo
com os critérios constantes do nº 2 do artigo 16º.

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437
parte das matérias-primas agrícolas tenha sido produzida na Comunida-
de e outra parte num país terceiro”22. O logotipo europeu (que é, desde
julho de 2012, de utilização obrigatória para produtos pré-embalados na
União Europeia e facultativo para os restantes23 pode ser acompanhado do
logotipo nacional e do logotipo privado do produtor, desde que os méto-
dos de produção satisfaçam os requisitos do Regulamento (nº 2 do artigo
25)24. O logotipo europeu não pode ser usado relativamente a produtos
provenientes de explorações em conversão25, nem a géneros alimentícios
transformados, ou provenientes da caça e pesca, ou que contenham al-
guns ingredientes biológicos (§ 2º do nº 1 do artigo 25).

22 Veja-se o Regulamento (CE) nº 1.235, de 2008, da Comissão, de 8 de dezembro,


que estabelece normas de execução do Regulamento (CE) nº 834, de 2007, do Conselho,
no que respeita ao regime de importação de produtos biológicos de países terceiros.
23 O logotipo europeu foi criado em 2010, pelo Regulamento nº 271, de 2010, da
Comissão, de 24 de março, tendo fixado, em 30 de junho de 2012, o final do período de
transição, alterando assim o disposto no nº 10 do artigo 95 do Regulamento nº 889, de
2008, da Comissão, de 5 de setembro, que dá execução ao Regulamento nº 834, de 2007.
24 No Acórdão do TJUE, de 10 de maio de 2012 (proc. C-368/10), o Tribunal do
Luxemburgo teve ocasião de se pronunciar sobre a compatibilidade da utilização de ró-
tulos ecológicos como critérios de adjudicação de contratos públicos (in casu, tratava-se
de um contrato público para o fornecimento, a instalação e a manutenção de máquinas
distribuidoras de bebidas quentes e para o fornecimento de chá, café e outros ingredien-
tes). Veja-se o que se afirmou no considerando 94 do aresto: “Quanto ao caso específico
da utilização de rótulos, o legislador da União deu certas indicações precisas quanto às
implicações dessas exigências no contexto das especificações técnicas. Tal como resulta
dos nos 62 a 65 do presente acórdão, após ter sublinhado, no artigo 23°, n° 3, alínea “b”,
da Diretiva 2004/18, que essas especificações devem ser suficientemente precisas para
permitir aos proponentes determinar o objeto do contrato e às entidades adjudicantes
adjudicá-lo, o legislador autorizou, no n° 6 do mesmo artigo, as entidades adjudicantes
a recorrerem aos critérios subjacentes a um rótulo ecológico para estabelecerem certas
características de um produto, mas não a erigirem o rótulo ecológico em especificação
técnica, podendo este ser utilizado apenas a título de presunção de que os produtos
que dele dispõem satisfazem as características assim definidas, sem prejuízo expresso de
qualquer outro meio de prova adequado”.
25 O regime dos produtos provenientes de explorações em conversão está des-
crito no artigo 17.

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438
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

No que concerne ao controlo, ele processa-se numa dupla base: por


um lado, segundo o disposto no Regulamento nº 882, de 2004, do Par-
lamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril, relativo aos controlos
oficiais realizados para assegurar a verificação do cumprimento da le-
gislação relativa aos alimentos para animais e aos géneros alimentícios
e das normas relativas à saúde e ao bem-estar dos animais; por outro
lado, e de forma cumulativa, especificamente com base nos artigos 27 e
seguintes do Regulamento nº 834, de 2007, e complementarmente por
recurso ao Regulamento (CE) nº 882, de 2004, do Parlamento Europeu
e do Conselho, de 29 de abril (relativo aos controlos oficiais realizados
para assegurar a verificação do cumprimento da legislação relativa aos
alimentos para animais e aos géneros alimentícios e das normas relativas
à saúde e ao bem-estar dos animais – alterado pelo Regulamento nº 776,
de 2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de maio). Aliás, o
sistema é, ele próprio, dual: de uma banda, são as entidades designadas
pelos Estados-Membros que procedem aos controlos dos operadores,
a priori e a posteriori (cfr. o nº 1 do artigo 27)26; mas, de outra banda, a
Comissão, por um Comité específico (cujo funcionamento se desenvolve
no quadro da Decisão nº 1999/468/CE do Conselho, de 28 de junho),
pode tomar medidas preventivas e de controlo adequadas à necessidade
ou urgência da situação (cfr. o nº 2 do artigo 27).

26 De acordo com Francisco SERRADOR, Francisco. Produção biológica – certifi-


cação e garantias. Revista Portuguesa de Direito do Consumo, nº 63, 2010, p. 41 e segs.,
e reportando-se ao artigo 27, “Cada Estado-Membro pode optar entre um dos seguintes
sistemas de controlo: A – Sistema operado por organismos privados reconhecidos pela au-
toridade competente; B – Sistema operado por uma (ou mais) autoridade(s) designada(s)
de controlo; C – Sistema operado por uma (ou mais) autoridade(s) designada(s) e controlo
e por organismos privados reconhecidos (sistema misto, do tipo A + B). A maioria dos países
da União Europeia viria a adotar o sistema do tipo A, entre os quais Portugal, França, Bélgi-
ca, Alemanha, Reino Unido e Itália. Em seis outros casos optou-se pelo tipo B (Dinamarca,
Estónia, Finlândia, Lituânia, Malta e Holanda), enquanto que nos restantes quatro pelo tipo
C (República Checa, Luxemburgo, Polónia e Espanha)”.

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439
A autoridade competente do Estado pode, por razões de competência
técnica, delegar a terceiros as suas competências de controlo. No entanto,
essa delegação só pode acontecer nos termos do nº 5 do artigo 27: com in-
dicação precisa das tarefas a desenvolver pelo organismo de controlo; com
garantia de que este dispõe de meios, humanos e técnicos, adequados e
suficientes; uma vez assegurada a imparcialidade e a inexistência de con-
flitos de interesses; e após comprovação da acreditação do organismo, nos
termos da regulamentação da União Europeia, pela instituição nacional de
acreditação competente. A comunicação entre autoridade competente e
o organismo de controlo deve ser regular, exprimindo uma coordenação
eficaz da parte da primeira. Os organismos de controlo estão sujeitos aos
poderes de supervisão e controlo por parte da autoridade competente,
por meio de auditorias, inspecções, e de verificação da independência e
adequação das medidas impostas aos operadores (nº 9 do artigo 27).

Os operadores nacionais devem, antes de colocar qualquer produto


resultante de produção biológica no mercado, declarar o início de acti-
vidade à autoridade competente e sujeitar-se ao controlo das regras de
produção — específicas para cada sector de produção biológica – por
parte dos organismos de controlo (artigo 28/1). Estes actuam com base
nas prescrições do Regulamento nº 889, de 2008, da Comissão, de 5 de
setembro27, que estabelece normas de execução do Regulamento (CE) nº
834, de 2007, do Conselho, relativo à produção biológica e à rotulagem
dos produtos biológicos, no que respeita à produção biológica, à rotula-
gem e ao controlo (também cfr. o nº 6 do artigo 28).

Nos termos do artigo 63 do Regulamento nº 889, de 2008, que incide


sobre o regime de controlo e compromisso do operador:

27 Com versão consolidada publicada no JOUE, de 1º de janeiro de 2015.

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440
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

1. No início da aplicação do regime de controlo, o operador


estabelece e, subsequentemente, mantém em dia:

a) Uma descrição completa da unidade e/ou das ins-


talações e/ou da actividade;

b) Todas as medidas concretas a tomar ao nível da


unidade e/ou das instalações e/ou da actividade
para garantir o respeito das regras da produção
biológica;

c) As medidas de precaução a adoptar para reduzir


o risco de contaminação por produtos ou subs-
tâncias não autorizados, bem como as medidas
de limpeza a aplicar nos locais de armazenagem e
em toda a cadeia de produção do operador;

d) As características específicas do método de pro-


dução utilizado, sempre que o operador tencione
solicitar provas documentais em conformidade
com o artigo 68, nº 2.

O operador deve manter registros documentais da sua actividade


comercial, e sujeitar-se a visitas de controlo por parte do organismo de
controlo – obrigatoriamente, uma em cada ano, e eventualmente ou-
tras, de carácter aleatório, “baseadas numa avaliação geral dos riscos
de incumprimento das regras da produção biológica, tendo em conta,
pelo menos, os resultados dos controlos anteriores, a quantidade de
produtos em causa e o risco de troca de produtos” (cfr. os artigos 65 e
66 do Regulamento nº 889, de 2008).

Caso a exploração não se conforme com os requisitos dos Regula-


mentos referidos, o operador não poderá caracterizar os seus produtos

Ir para o índice
441
como gerados a partir de métodos de produção biológica, estando-lhe
vedada a rotulagem específica desses produtos e não podendo candida-
tar-se aos apoios concedidos a esse tipo de explorações. Se a infracção
das regras ocorrer posteriormente ao início de exploração, o operador
sujeita-se a sanções aplicadas pelo organismo de controlo, as quais, se
forem graves, pelo seu conteúdo ou prolongamento temporal, podem
gerar a determinação da proibição de comercializar produtos rotulados
como de produção biológica por um período determinado (nº 2 do artigo
30 do Regulamento nº 834, de 2007, e artigo 91º do Regulamento nº
889, de 2008).

Os produtos resultantes de produção biológica circulam livremente


no espaço económico da União Europeia, não podendo ser proibida ou
restringida a sua comercialização em razão do método de produção.
Além do princípio da livre circulação, aplica-se à produção biológica o
princípio da protecção mais elevada, podendo qualquer Estado-Mem-
bro aplicar regras mais rigorosas à produção vegetal e animal biológica,
desde que essas regras também sejam aplicáveis à produção não bio-
lógica, estejam em conformidade com a legislação comunitária e não
proíbam nem restrinjam a comercialização de produtos biológicos obti-
dos fora do território do Estado-Membro em causa” (nº 2 do artigo 34
do Regulamento nº 834, de 2007).

O Regulamento nº 834, de 2007, estabelece uma obrigação de comu-


nicação à Comissão, pelos Estados-Membros, das entidades de controlo
(artigo 35). Do Regulamento nº 889, de 2008, extrai-se outro dever de
informação, desta feita relativo às explorações que pratiquem o regime
de produção biológica, em qualquer modalidade (artigo 93).

A revisão do tecido normativo relativo à produção biológica foi bem


recebida, mas não é isenta de críticas. Como assinala Francisco SERRA-

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442
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

DOR28, o regime foi revisto pela Comissão sem a participação dos actores
do sector da produção biológica, e ignorando recomendações do Parla-
mento Europeu. Por um lado, aponta-se como negativa a exclusão dos
produtos transformados não alimentares (têxteis e cosméticos), os pro-
dutos da caça e pesca de animais selvagens, e o sal. Por outro lado, se
é verdade que se proibe a inclusão de OGMs nos produtos biológicos,
abre-se a porta a uma eventual presença destes pela contaminação aci-
dental (cfr. o considerando inicial 10). Enfim, outro aspecto menos feliz
parece residir em sujeitar-se a produção biológica ao duplo controlo pelo
Regulamento nº 882, de 2004, aplicável à produção convencional, quan-
do a produção biológica, por essência, importa em muito menos riscos
alimentares do que a convencional.

É importante ainda referir que o sistema de produção biológica pode


beneficiar de apoios. O Regulamento (UE) nº 1.305, de 2013, do Parla-
mento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro, relativo ao apoio ao
desenvolvimento rural pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento
Rural (FEADER), indica actualmente quais. Por um lado, um agricultor que
decida enveredar pelo sistema de produção biológico pode candidatar-se a
apoios, nos termos do Regulamento (UE) nº 1.305, de 2013, do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro29, relativo ao apoio ao desen-
volvimento rural pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural
(FEADER). Nos termos da subalínea ii) da alínea a) do nº 1 do artigo 16, o
apoio é “concedido sob a forma de incentivo financeiro anual, cujo nível é
determinado em função do nível dos custos fixos decorrentes da participa-
ção em regimes que beneficiem de apoio, por um período máximo de cinco

28 SERRADOR, Francisco. Produção biológica – certificação e garantias. Revista


Portuguesa de Direito do Consumo, nº 63, 2010, p. 41 e segs.
29 Com versão consolidada publicada no JOUE de 1º de maio de 2015.

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443
anos”, e “pode cobrir também os custos decorrentes das ações de informa-
ção e promoção desenvolvidas no mercado interno por agrupamentos de
produtores relativamente a produtos abrangidos por um regime de quali-
dade que beneficie de apoio ao abrigo do nº 1” (nºs 2 e 3 do artigo 16º).

Por outro lado, um agricultor (ou agrupamento de agricultores) que


pretenda reconverter superfície agrícola para um sistema de produção
biológica pode identicamente candidatar-se a apoios, nos termos do arti-
go 29 do Regulamento nº 1.305, de 2013, mas apenas se nessa reconver-
são se impuserem normas de qualidade ambiental superiores às obriga-
tórias. Os Estados-Membros podem fixar um período de concessão dos
apoios de cinco a sete anos, em regra (podendo reduzi-lo — a norma não
fixa limite mínimo). Nos termos do nº 4 do artigo 29, “os pagamentos são
concedidos anualmente e compensam os beneficiários, total ou parcial-
mente, pelos custos adicionais e a perda de rendimentos resultantes dos
compromissos assumidos. Se necessário, podem também abranger os
custos de transação até ao máximo de 20% do prémio pago pelos com-
promissos. Caso os compromissos sejam assumidos por agrupamentos
de agricultores, o nível máximo eleva-se a 30%”.

Esses apoios resultam do Plano de Ação para o futuro da produção


biológica na União Europeia (2014-2020)30, no qual se constatou que,

Nos últimos anos, o mercado de produtos biológicos da


UE, impulsionado por um aumento constante da procu-
ra, desenvolveu-se significativamente (19,7 mil milhões
de EUR, com uma taxa de crescimento de 9% em 2011).

30 COM (2014) 179 final, de 24 de março de 2014 — Comunicação da Comis-


são ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social europeu e ao
Comité das Regiões.

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444
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Paralelamente, ao longo da última década, o número de


produtores de produtos biológicos e a superfície destinada
à produção biológica têm crescido a um ritmo acelerado.
Cada ano, 500 000 hectares de terrenos agrícolas conver-
tem-se em terrenos de produção biológica na União. No
período 2000-2012, a superfície de produção biológica to-
tal aumentou, em média, 6,7% por ano, para atingir cerca
de 9,6 milhões de hectares, o que corresponde a 5,4% da
superfície agrícola total utilizada na UE. A produção aquí-
cola biológica também está a crescer rapidamente, na se-
quência da introdução de regras da UE em 2009 (pág. 2).

Sendo certo que a produção biológica contou, desde o início, com


apoios da União Europeia, com este Plano de Acção 2014-2020 e com o
Regulamento nº 1.305, de 2013, que lhe dá expressão, a produção bioló-
gica é considerada “verde por definição”, contando com apoios directos. E
a sua expansão por meio da reconversão de terrenos é claramente incen-
tivada, acompanhando a crescente consciencialização dos consumidores
para as vantagens da produção biológica, para a saúde e para o ambiente31.

Cumpre sublinhar, todavia — e na linha das conclusões do Relatório de


estudo (coordenado por Jurn Sanders, Matthias Stolze e Susanne Padel) Use
and efficiency of public support measures addressing organic farming (2011)32,

31 Isso sem embargo de o segundo domínio prioritário do Plano de Acção se “con-


solidar e aumentar a confiança dos consumidores no sistema europeu para os alimentos e
a agricultura biológicos, bem como a confiança nos produtos biológicos importados, nome-
adamente no que respeita às medidas de controlo” (p. 4).
32 Disponível em http://ec.europa.eu/agriculture/external-studies/2012/organic-
-farming-support/full_text_en.pdf.

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445
As políticas públicas são aqui decisivas. Uma análise quan-
titativa e qualitativa demonstrou que o apoio público ao
sector da produção orgânica constitui o principal motor
do seu desenvolvimento e que o seu crescimento se deve
fundamentalmente a esse apoio. No entanto, a análise ex-
plicita igualmente que as medidas de apoio público não
chegam e podem ter pouco impacto se outros factores de
suporte não-públicos estiverem ausentes. Um contexto de
apoio à agricultura biológica é aquele em que as explora-
ções orgânicas são economicamente viáveis ​​e revelam um
bom desempenho no plano competitivo; onde o público é
receptivo ao sector e ao consumo dos seus produtos; onde
existe um ambiente de mercado positivo na perspectiva
dos operadores orgânicos; e onde todos os actores que
investem em negócios orgânicos têm confiança nas polí-
ticas prosseguidas. Todos esses factores, cumulativamen-
te, influenciam consideravelmente o desenvolvimento do
sector de produção biológica.

Para além da coerência e consistência das políticas públicas de apoio


à produção biológica e da criação de um ambiente propício à renovação
e ao investimento, um outro desafio identificado pelo Plano de Acção
2014-2020, é o tecnológico. Como se pode ler no seu ponto 4.3. Investi-
gação e inovação para superar desafios nas normas biológicas,

A produção biológica tornou-se um sistema agrícola al-


tamente especializado, que exige uma formação profis-
sional, conhecimentos e tecnologias específicos. Há uma
série de desafios no que respeita à produção de produtos
de origem vegetal ou animal nos sistemas geridos segun-
do o modo de produção biológico, por exemplo devido à

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446
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

escassez de alguns fatores de produção na sua forma bio-


lógica. Existem restrições importantes relacionadas com a
alimentação animal, mais especificamente com o abaste-
cimento de proteínas e micronutrientes e a disponibilida-
de de sementes biológicas. Esses obstáculos terão de ser
abordados e superados, em especial tendo em vista uma
eventual eliminação progressiva de algumas das atuais
exceções e derrogações às regras. Além desses desafios,
a Comissão sugere que seja dada mais atenção às ques-
tões concretas de desenvolvimento setorial, tais como: a)
Métodos inovadores para a gestão das pragas, doenças e
ervas daninhas; b) Alternativas aos produtos de cobre para
uma proteção ecológica das plantas; c) Redução do con-
sumo de energia pelas estufas; d) Aumento da fertilidade
dos solos; e) Melhor utilização da energia; f) Coexistência
da agricultura biológica com a agricultura não biológica; g)
Ingredientes e técnicas compatíveis com a transformação
de produtos alimentares de origem biológica.

A agricultura biológica “pegou de estaca” no panorama rural europeu,


embora continue a ser um work in progress. A sedução do consumidor
– arraigado a hábitos alimentares seculares e treinado para escolher pro-
dutos agrícolas selecionados em razão do seu aspecto exterior, e não das
suas qualidades intrínsecas –, é tarefa árdua, porque envolve alteração
de mentalidades. Bem assim a infiltração da agricultura biológica num
bastião de há muito dominado por grandes empresários da agricultura
industrial não se faz sem resistências. Mas a confluência, nessa sede, dos
objectivos de melhoria para a saúde, de uma banda, e de preservação da
biodiversidade, combate à erosão dos solos, prevenção de poluição da
água, de outra banda — que podem ser directa e genericamente recon-
duzidos à protecção do ambiente e à luta contra as alterações climáti-

Ir para o índice
447
cas33 —, reforça a lógica, política e jurídica, de consolidação dos métodos
de produção biológica na agricultura europeia.

4 EM PORTUGAL: À ESPERA DA ESTRATÉGIA NACIONAL PARA A


AGRICULTURA BIOLÓGICA

O quadro normativo que rege a produção biológica em Portugal é


constituído, na sua quase total extensão, pelos Regulamentos da União
Europeia supra identificado34. Legislação nacional complementar existe,

33 Note-se, todavia, que os incentivos à produção biológica não esgotam as medidas


eurocomunitárias de protecção do ambiente no âmbito da agricultura. Conforme expõe FER-
RUCCI, Nicoletta, Agricoltura e ambiente. RGd’Ambiente, 2014/3-4, p. 323 e segs., o esver-
deamento da agricultura em geral é reconhecido como objectivo da PAC para 2020: veja-se a
Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social
e ao Comité das Regiões A PAC no horizonte 2020: Responder aos desafios do futuro em matéria
de alimentação, recursos naturais e territoriais, COM(2010) 672 final (esp. ponto 3.2. Ambiente
e alterações climáticas). Este esverdeamento pode assinalar-se concretamente em dois planos:
> por um lado, nas medidas agroambientais sujeitas a ecocondicionalidade, ou seja,
práticas agrícolas benéficas para o clima e para o ambiente — cfr. a subalínea iv) da alínea
b) do artigo 1, e os artigos 43 e 65 do regulamento 1307/2013, do Parlamento Europeu e
do Conselho, de 17 de dezembro, que estabelece regras para os pagamentos directos aos
agricultores ao abrigo de regimes de apoio no âmbito da política agrícola comum;
> por outro lado, na relação entre conservação e promoção da biodiversidade e práti-
cas agrícolas — cfr. a Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao
Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões: O nosso seguro de vida, o
nosso capital natural: uma estratégia da UE para a biodiversidade até 2020, COM(2011)
244 final, de 3 de maio (esp. ponto 3.3. Garantir a sustentabilidade da agricultura, silvicul-
tura e pescas), e mais concretamente a alínea d) do nº 1 do artigo 17 do Regulamento nº
1.305, de 2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro.
34 Realce-se que existe um sistema muito próximo da produção biológica: o siste-
ma de produção integrada – regulado pelo Decreto-Lei nº 256, de 2009, de 24 de setembro,
que estabelece o regime das normas técnicas aplicáveis à protecção integrada, à produção
integrada e ao modo de produção biológico, alterado e republicado pelo Decreto-Lei nº 37,
de 2013, de 13 de março. Os dois sistemas distinguem-se, fundamentalmente, em razão
do grau de tolerância aos produtos químicos, interdito na produção biológica e tolerado na
produção integrada, embora no âmbito de determinadas condicionantes.

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448
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

pontualmente, no âmbito do financiamento e da acreditação dos organis-


mos de controlo. A autoridade competente para conhecer do início de ac-
tividade de produção biológica (inclui a notificação de produtores, prepa-
radores, distribuidores, importadores e exportadores) é a Direcção-Geral
de Agricultura e do Desenvolvimento Rural35. Os organismos de controlo,
privados, a operar em Portugal, são vários36 e reconhecidos pelo Gabinete
de Planeamento e Políticas do Ministério da Agricultura e Desenvolvimen-
to Rural, devendo demonstrar que cumprem a Norma Europeia EN 45 011
em vigor (cuja versão portuguesa é a NP EN 45011: 2001), e encontrando-
-se previamente acreditados pelo Instituto Português de Acreditação37.

Assim, os passos para iniciar a actividade de produtor biológico em


Portugal são: i) o estabelecimento de um contrato com um organismo de
controlo, que certifica que os termos em que se propõe desenvolver a
actividade estão conformes ao quadro normativo aplicável durante todo
o tempo em que ela se prolongar; ii) a notificação da Direcção-Geral de
Agricultura e do Desenvolvimento Rural de que vai iniciar a actividade,
indicando nesse momento: o organismo privado de controlo e data de
realização da primeira operação de controlo.

É na Portaria nº 25, de 2015, de 9 de fevereiro, que se estabelece


o regime de apoios à produção biológica, em desenvolvimento do Pro-

35 Cfr. os formulários disponíveis aqui: http://www.dgadr.mamaot.pt/sustentavel/


modo-de-producao-biologico.
36 Uma listagem pode ser consultada no Manual de conversão ao modo de produ-
ção biológico, Divisão de Produção Agrícola da Direcção Regional de Agricultura e Pescas do
Norte, sem data, pp. 33-38 — disponível em: http://www.drapn.min-agricultura.pt/drapn/
prod_agric/fil_bio/manual_conversão.pdf
37 Veja-se a nota informativa sobre estes procedimentos disponível em http://
www.dgadr.mamaot.pt/images/docs/val/Reconhecim_OC.pdf

Ir para o índice
449
grama de Desenvolvimento Rural do Continente (PDR 2020)38, o qual foi
apresentado à Comissão por Portugal para apoio pelo Fundo Europeu
Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER), nos termos do nº 1 do ar-
tigo 10, do Regulamento nº 1.305, de 2013, suprarreferenciado. Os ar-
tigos 9º a 11º da Portaria estabelecem os critérios de elegibilidade, de
selecção de candidaturas e o teor dos compromissos dos beneficiários.
Essas subvenções, requeridas no IFAP, IP, são anuais, e não reembolsáveis
(artigo 15º), encontrando-se os montantes e limites fixados no Anexo III.

No terreno, o panorama da implementação dos métodos de produção


biológica em Portugal é algo desanimador no confronto com outros Esta-
dos da União Europeia — maxime, da Dinamarca, que, em janeiro de 2015,
aprovou um plano com 67 medidas para duplicar os terrenos agrícolas afec-
tos à produção orgânica, de modo a duplicar a sua extensão até 202039.
Apesar de, entre 1994 e 2011, o número de pessoas a produzir de forma
biológica ter crescido de 234 para quase 3.00040; e de os dados mais recen-
tes da Direcção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural mostrarem
que, entre 2013 e 2014, o número de agricultores registrados aumentou
9% e a terra usada para produzir cresceu 8%, atingindo os 239.864 hectares
(7% da superfície arável útil continental)41, no quadro da União Europeia,

38 Aprovado pela decisão de execução da Comissão C(2014) 9896 final, de 12 de


dezembro — aprova o Programa de Desenvolvimento Rural de Portugal-Continente, para
apoio pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural.
39 Denmark launches ‘most ambitious’ organic plan. Disponível em: https://www.
thelocal.dk/20150130/denmark-announces-most-ambitious-organic-plan.
40 Fonte: Jornal Público, 7 de outubro de 2012: Agricultura biológica aumentou 20
vezes a área em apenas década e meia.
41 Na Nota de imprensa da Direcção-Geral da Agricultura e Desenvolvimento Rural
sobre a Consulta Pública à Estratégia Nacional para a Agricultura Biológica, datada de 2
de Setembro de 2016 (cfr. http://www.dgadr.mamaot.pt/images/docs/val/bio/Biologica/
PRESS_RELEASE.pdf), pode ler-se os dados actualizados: 3.837 agricultores em agricultura
biológica, 304 processadores e transformadores, e 14 organizações de agricultores em re-
presentação de 1.480 agricultores em agricultura biológica.

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450
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

ainda assim Portugal é um dos Estados menos representativos neste do-


mínio. Com efeito, no nosso país, apesar de 6% da produção agrícola estar
filiada em métodos de produção biológica, esta fica ainda bastante aquém
dos valores registrados em Espanha (1.6 milhões de hectares), Itália (1.1
milhões de hectares), Alemanha ou França (1 milhão de hectares).

A razão da inconsistência do progresso é imputada maioritariamente


à ausência de uma Política Nacional para a Agricultura Biológica. Sensível
a este argumento, o Governo, por meio do Gabinete de Políticas e Plane-
amento do Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural
determinou a criação de um Grupo de Trabalho para avaliar, preparar e
apresentar uma Estratégia Nacional para a Agricultura Biológica, e pôr em
execução um Plano de Acção para a produção e promoção de produtos
biológicos (Despacho nº 7.665, de 2016, de 9 de junho). Como se pode ler
no Despacho nº 7.665, de 2016, as atribuições deste Grupo de Trabalho,
composto pela Direcção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural,
que preside e coordena, pelo Gabinete de Planeamento, Políticas e Ad-
ministração Geral e pela Escola Superior Agrária de Coimbra, prendem-se
com a análise e proposta dos instrumentos necessários para apoiar, alargar
e promover a agricultura e a produção biológica em Portugal.

Essa Estratégia, com data de apresentação pública marcada para 31


de outubro de 2016, deveria ser construída a partir do relatório inter-
calar do Grupo de Trabalho, sobre o qual recaiu uma consulta pública
(encerrada a 30 de setembro de 2016), pareceres de partes interessa-
das e opiniões de especialistas. Tendo falhado a data prevista de apre-
sentação da Estratégia, permanecemos à espera da táctica para tornar
a agricultura biológica uma prática ambientalmente indispensável e
economicamente viável em Portugal.

Ir para o índice
451
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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

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453
El Pacto Internacional de
Derechos Civiles y Políticos
y la audiencia de custodia
The International Covenant on
Civil And Political Rights and the
custody hearing

CÉSAR BARROS LEAL

RESUMEN

Después de hacer mención a la Declaración Universal de los Derechos


del Hombre y otros instrumentos de protección de los derechos humanos, el
artículo se concentra en el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos,
bajo cuya inspiración nació la audiencia de custodia, que tiene como objeto
garantizar el contacto de la persona presa con la autoridad judicial veinticua-
tro horas después de la prisión en flagrante. El autor explica el significado, las
particularidades y la importancia de esta iniciativa que tiende a aplicarse con
frecuencia cada vez mayor en nuestro país y es saludada, entre otras cosas,
como un precioso recurso para reducir la sobrepoblación carcelaria.

Palavras-Clave: Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos.


Audiencia de custodia. Prisión en flagrante. Celeridad. Legalidad y necesi-
dad de la prisión. Sobrepoblación carcelaria.

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454
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

ABSTRACT:

After mentioning the Universal Declaration of Human Rights and other


instruments for the protection of human rights, the article concentrates on
the International Covenant on Civil and Political Rights, under whose inspi-
ration was born the custody hearing, which aims to ensure the contact of
the person arrested with the judicial authority twenty-four hours after the
arrest in flagrante. The author explains the significance, the particularities
and the importance of this initiative, which tends to be applied with in-
creasing frequency in our country and is welcomed, among other things, as
a precious resource to reduce prison overcrowding.

Keywords: International Covenant on Civil and Political Rights. Cus-


tody hearing. Prison in flagrante. Celerity. Legality and necessity of the
prison. Prison overcrowding.

INTRODUCCIÓN

Me sumerjo en el tiempo para una breve incursión histórica y recuer-


do, en toda su exuberancia, el tenor de la Declaración francesa, que sir-
vió como preámbulo a la Constitución de Francia de 1791 y que señaló,
con letras doradas, la existencia de principios inmutables que deberían
extenderse a todos los pueblos, en todos los tiempos, señalando como
derechos esenciales, imprescriptibles y universales, la libertad, la seguri-
dad y la resistencia a la opresión.

Mucho después, la Declaración Universal de los Derechos del Hom-


bre, del 10 de diciembre de 1948, inspirada en las constituciones pione-
ras de México de 1917 y de Weimar de 1919, amplió anteriores declara-

Ir para o índice
455
ciones de derechos, indicando no sólo los derechos tradicionales −civiles
y políticos−, sino también los derechos económicos, sociales y culturales
como el derecho al trabajo, el descanso y la recreación, la salud, la edu-
cación, la habitación, la participación en la vida cultural y la protección
especial de la maternidad y de la infancia, derechos que se agregan a los
civiles y políticos y los completan, en la medida que las dos categorías son
interdependientes e indivisibles. Es más, la dicotomía entre esos dere-
chos fue superada ulteriormente por la Declaración de Viena.

Exuberante en su dicción, la Declaración Universal de los Derechos del


Hombre afirma que todos nacemos libres e iguales en dignidad y derechos;
que todos tenemos derecho a la vida, la libertad y la seguridad; que nadie
debe ser sometido a la tortura ni a tratamiento inhumano o degradante;
y que todo hombre tiene derecho a ser reconocido, en todos los lugares,
como persona ante la ley y merece como tal su amparo. Es cierto que la
Declaración Universal de los Derechos del Hombre dio inicio a la edifica-
ción de un nuevo campo del derecho (hoy reconocidamente autónomo
de la ciencia jurídica): el Derecho Internacional de los Derechos Humanos
(International Human Rights Law), iniciado tímidamente después de la 1ª
Guerra Mundial, pero consolidado con el fin de la 2ª Guerra y todo lo que
ella representó de cruel, de terrible para la humanidad (en particular los
horrores del nazismo, la barbarie de los campos de concentración), en un
proceso de universalización de los derechos humanos que se materializó,
en gran medida, con la elaboración de tratados, convenios, pactos, etc., de
amplitud regional y global. Es la fase legislativa del derecho internacional
de los derechos humanos, cristalizado en los documentos que componen
la Carta Internacional de Derechos Humanos de la ONU.

Incumbe subrayar que, después de la proclamación en París de la


Declaración Universal de los Derechos Humanos, fueron surgiendo gra-
dualmente los sistemas europeo, interamericano y africano de protec-

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456
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

ción de los derechos humanos1, que se sumaron a los sistemas naciona-


les de protección, los denominados derechos internos.

1 El Sistema de Protección Europeo: Uno de los más antiguos y evolucionados siste-


mas regionales, el sistema europeo de protección de los derechos humanos, se funda en el
Tribunal Europeo de Derechos Humanos, con sede en Estrasburgo, Francia, también llamado
Tribunal de Estrasburgo o Corte Europea de Derechos Humanos, órgano judicial con función
consultiva y contenciosa al que se encaminan denuncias de violaciones de los derechos hu-
manos previstos en el Convenio Europeo de Derechos Humanos y los Protocolos 1, 4, 6 y 7,
ratificados por algunos Estados. Hasta el año de 1998 eran dos los órganos que componían
el sistema (el Tribunal y la Comisión Europea de Derechos Humanos), pero el Protocolo n. 11,
del Convenio Europeo de Derechos Humanos, suprimió la Comisión como filtro de las de-
mandas, que pasaron a ser directamente planteadas al Tribunal. Éste tiene su presidente, dos
vicepresidentes y dos presidentes de sección con mandato de tres años. En cada una de las
cuatro secciones se forman, por un ciclo de doce meses, comités de tres jueces, encargados
de tamizar las denuncias. Hay salas de siete miembros dentro de cada sección que funcionan
de modo rotativo y la Gran Sala, compuesta por diecisiete jueces, por un período de tres años.
El Sistema de Protección Africano: La más nueva Corte regional, la Corte Africana de
Derechos Humanos y de los Pueblos, ha empezado a tornarse realidad. Ella se suma a la Comis-
ión Africana de Derechos Humanos y de los Pueblos, creada en 1987, un año después de la
entrada en vigor da la Carta Africana (Banjul, Gambia). Su Protocolo, adoptado en 1998, está
en vigencia desde el 25 de enero de 2004. Dos años después sus 11 jueces fueron elegidos. Le
faltan la adopción del Reglamento y la definición de su sede permanente (hasta ahora comparte
la sede con la Comisión en Gambia). Se tiene noticia de que la Asamblea de Jefes de Estado y de
Gobierno de la Unión Africana ha aprobado una Resolución que estableció la fusión de la Corte
Africana de Derechos Humanos y de los Pueblos y la Corte Africana de Justicia.
El Sistema de Protección Interamericano: El sistema interamericano de protección de
los derechos humanos se compone, ex vi del artículo 33 de la Convención Americana sobre
Derechos Humanos (en vigencia desde el 18 de julio de 1978), de dos órganos: la Comisión
Interamericana de Derechos Humanos (con sede en Washington) y la Corte Interamericana
de Derechos Humanos (con sede en San José, Costa Rica).
La Comisión Interamericana de Derechos Humanos: Órgano de la OEA, creado en 1959,
está integrado por siete miembros, expertos de reconocida autoridad moral y versados
en derechos humanos, elegidos por la Asamblea General de la OEA a partir de una lista
de candidatos propuestos por los gobiernos de los Estados miembros. Los comisionados,
quienes no son representantes de los Estados ni de los gobiernos, tienen un mandato de
cuatro años, prorrogable por una sola vez.
La Corte Interamericana de Derechos Humanos: Órgano jurisdiccional del sistema in-
teramericano de protección, creado en 1969, está integrado por siete jueces naturales de
Estados Miembros de la OEA (elegidos, según el artículo 52 de la Convención Americana:
a título personal entre juristas de la más alta autoridad moral, de reconocida autoridad en
materia de derechos humanos, que reúnan las condiciones requeridas para el ejercicio de
las más elevadas funciones judiciales conforme a la ley del país del cual sean nacionales o
del Estado que los proponga como candidatos).
(Texto extraído, con ajustes, del libro BARROS LEAL, César. La ejecución penal en Amé-
rica Latina a la luz de los derechos humanos. México: Porrua, 2009, p. 343-347).

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457
Flávia Piovesan, procuradora del estado de São Paulo, Profesora de la
Pontificia Universidad Católica de São Paulo y Secretaria Nacional de De-
rechos Humanos (en el gobierno interino de Michel Temer), deja claro, en
diversos textos, que vislumbra, en esa progresiva internacionalización de
los derechos humanos, el diseño de una ciudadanía universal, de la cual
emanarían derechos y garantías internacionalmente asegurados. En efec-
to, ciudadanos del mundo, sujetos de derecho internacional: es lo que so-
mos y seremos siempre, en la dimensión de nuestra condición humana.

Ha sido un largo camino, una trayectoria de avances y retrocesos, de pa-


sos ahora lentos, ahora rápidos, a partir del derecho internacional clásico
(que veía el Estado como único sujeto de derecho internacional) hasta el de-
recho internacional de los derechos humanos. Los sistemas global y regional
de protección de los derechos humanos están cada vez más fortalecidos, ha-
ciendo una gran diferencia en la afirmación y protección de esos derechos.

Entre los instrumentos de protección de los derechos humanos, crea-


dos a partir del surgimiento de la Organización de las Naciones Unidas
(ONU), además de la Declaración Universal de los Derechos Humanos,
corresponde citar: la Convención Internacional sobre la Eliminación de
Todas las Formas de Discriminación Racial (1965), el Pacto Internacional
de Derechos Civiles y Políticos (1966), el Pacto Internacional de Dere-
chos Económicos, Sociales y Culturales (1966), el Protocolo Facultativo
al Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos (1966), la Conven-
ción sobre la Eliminación de Todas las Formas de Discriminación contra
la Mujer (1979), la Convención Internacional contra la Tortura y Otros
Tratamientos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes (1984), el Se-
gundo Protocolo Facultativo al Pacto Internacional de Derechos Civiles
y Políticos Destinado a Abolir la Pena de Muerte (1989) y la Convención
sobre los Derechos del Niño (1989).

De uno de los instrumentos aludidos nos ocuparemos en este texto:


el Pacto Internacional de los Derechos Civiles y Políticos (PIDCP), centrán-

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458
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

donos en su artículo 9º (3), que contribuyó a la creación y el desarrollo de


una importante herramienta de contención del Estado Penal (limitación
del ius puniendi) y de humanización del proceso penal, lo que implica
una buena dosis de prevención del crimen (secundaria y terciaria) y el
desahogo de las prisiones: la audiencia de custodia.

1 EL PACTO INTERNACIONAL DE DERECHOS CIVILES Y POLÍTICOS

Aprobado el 16 de diciembre de 1966 por la XXI Sesión de la Asamblea Ge-


neral de las Naciones Unidas, con entrada en vigor el 23 de marzo de 1976, el
Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, compone, junto con el Pac-
to Internacional de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales (ambos fue-
ron ratificados por Brasil en 1992) y la Declaración Universal de los Derechos
Humanos, la ya mencionada Carta Internacional de los Derechos Humanos.

Dividido en seis partes con 53 artículos, contiene en la tercera parte


(la más extensa) el elenco de los derechos apellidados de primera gene-
ración2, entre los cuales se citan el derecho a la vida; la prohibición de la

2 Una nomenclatura que juzgamos inadecuada, tal y como fue mencionado en la


presentación de la revista n. 14 del Instituto Brasileño de Derechos Humanos, firmada por
mí y por el Prof. Dr. Antônio Augusto Cançado Trindade, Juez de la Corte Internacional de
Justicia: Hay que destacar, en primer plano, la interdependencia e indivisibilidad de los
derechos humanos (civiles, políticos, económicos, sociales y culturales). Al propugnar por
una visión necesariamente integral de todos los derechos humanos, el IBDH advierte de la
imposibilidad de buscar la realización de una categoría de derechos en detrimento de otras.
Cuando se vislumbra el caso brasileño, esa concepción se impone con mayor vigor, puesto
que desde los principios de la sociedad predatoria hasta el acentuar de la crisis social agra-
vada en los años más recientes, nuestra historia ha estado marcada por la exclusión, para
largas fajas poblacionales, sea de los derechos civiles y políticos, en distintos movimientos,
sea de los derechos económicos, sociales y culturales. La concepción integral de todos los
derechos humanos se hace presente también en la dimensión temporal, desechando fanta-
sías indemostrables como la de las “generaciones de derechos”, que ha perjudicado la evo-
lución de la materia, al proyectar una visión fragmentada o atomizadas en el tiempo de los
derechos protegidos. Todos los derechos para todos es el único camino seguro. No se pu-
ede postergar para un tempo indefinido la realización de determinados derechos humanos.

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459
tortura; el derecho a la libertad y la seguridad; la prohibición de la prisión
arbitraria; y el derecho a tratamiento digno y humano. A continuación,
reproduzco algunos de sus artículos:

6.1. El derecho a la vida es inherente a la persona hu-


mana. Ese derecho deberá ser protegido por la ley.
Nadie podrá ser arbitrariamente privado de su vida.

7. Nadie podrá ser sometido a la tortura, ni a penas o


tratamiento crueles, inhumanos o degradantes...

9.1. Toda persona tiene derecho a la libertad y la se-


guridad personales. Nadie podrá ser preso o en-
carcelado arbitrariamente. Nadie podrá ser pri-
vado de libertad, salvo por los motivos previstos
en ley y en conformidad con los procedimientos
en ella establecidos.

9.2. Cualquier persona, al ser presa, deberá ser infor-


mada de las razones de la prisión y notificada, sin
demora, de las acusaciones formuladas contra ella.

9.3. Cualquier persona presa o encarcelada en virtud de


infracción penal deberá ser conducida, sin demora,
a la presencia del juez o de otra autoridad habilita-
da por ley a ejercer funciones judiciales y tendrá el
derecho de ser juzgada en plazo razonable o de ser
puesta en libertad. La prisión preventiva de perso-
nas que esperan juicio no deberá constituir la regla
general, pero la soltura podrá estar condicionada a
garantías que aseguren la comparecencia de la per-
sona en cuestión a la audiencia, a todos los actos
del proceso y, en el caso de que sea necesario, para
la ejecución de la sentencia.

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460
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

9.4. Cualquier persona que sea privada de su libertad


por prisión o encarcelamiento tendrá el derecho
de recurrir a un tribunal para que éste decida so-
bre la legalidad de su encarcelamiento y ordene.

10.1. Toda persona privada de su libertad deberá ser


tratada con humanidad y respeto a la dignidad
inherente a la persona humana.

10.2.a. Las personas procesadas deberán ser separa-


das, excepto en circunstancias excepcionales,
de las personas condenadas y recibir trata-
miento distinto, compatible con su condición
de persona no-condenada.

10.2.b. Las personas procesadas, jóvenes, deberán


ser separadas de las adultas y juzgadas lo más
rápido posible.

10.3. El régimen penitenciario consistirá en un trata-


miento cuyo objetivo principal sea la reforma y
la rehabilitación normal de los prisioneros. Los
delincuentes juveniles deberán ser separados
de los adultos y recibir tratamiento compatible
con su edad y condición jurídica.

Dejo de consignar otros derechos, puesto que no están directamente


relacionados con la temática que nos ocupa, registrando, sin embargo,
que, conforme al artículo 2.1., los Estados Partes del Pacto se compro-
meten a respetar y garantizar a todos los individuos que se hallen en su
territorio y estén sujetos a su jurisdicción los derechos en él reconocidos,
sin discriminación alguna por motivo de raza, color, sexo, lengua, religión,
opinión política o de otra naturaleza, origen nacional o social, situación
económica, nacimiento o cualquier otra condición.

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461
2 EL PACTO INTERNACIONAL DE DERECHOS CIVILES Y POLÍTICOS Y
EL CUADRO PERVERSO DEL SISTEMA PENITENCIARIO

Regreso al final del mes de octubre de 2005 cuando, integrando la


delegación brasileña, de carácter interministerial, participé en la exposi-
ción y defensa, por parte del Gobierno Federal, del 2º Informe de Brasil
acerca del cumplimiento del Pacto Internacional de Derechos Civiles y
Políticos, al Comité de Derechos Humanos de la ONU, en Ginebra, Suiza
(responsable del monitoreo de la aplicación del Pacto). Se trataba de la
observancia de lo dispuesto en el art. 40, según el cual los Estados Partes
se comprometen a presentar informes sobre las disposiciones que hayan
adoptado y que lleven a efecto los derechos reconocidos en el Pacto y
sobre el progreso que hayan logrado en lo concerniente al goce de esos
derechos: a) en el plazo de un año a contar de la data de entrada en vigor
del Pacto, respecto a los Estados-partes interesados; b) sucesivamente,
cada vez que el Comité venga a pedirlo. Tales informes indican los facto-
res y las dificultades, si los hay, que afecten su aplicación.

En la obra ya citada, relato que, en el Palais Wilson, tuve que respon-


der oralmente a preguntas acerca de tres puntos:

a) el plan de acción brasileño relativo a las condiciones prisionales


inadecuadas y a la capacidad poblacional insuficiente, así como los
criterios utilizados en la asignación de recursos para los penales
estatales (se preguntaba igualmente en qué medida la capacidad y
las condiciones de esos establecimientos mejoraron y se solicitaba
información sobre el proyecto de establecer directrices para la ad-
ministración de las prisiones de conformidad con el Pacto);

b) las medidas tomadas para simplificar y acelerar los procedimien-


tos de liberación de prisioneros y de compensación por el confi-

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462
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

namiento prolongado arbitrario, aclarando las razones de ese “ex-


traordinario” fenómeno;

c) la disponibilidad y la eficacia de los mecanismos de queja en


cuanto a abusos sistemáticos cometidos contra los derechos
humanos de los detenidos en prisiones, cárceles municipales y
otras formas de custodia3.

Se percibió, entonces, de forma manifiesta, que la preocupación


subyacente y prioritaria de los miembros del Comité era el gran número
de presos en espera de juicio (en algunos casos alcanzando niveles alar-
mantes), los cuales habitan las prisiones de los Estados-Miembros de las
Naciones Unidas, lo que colabora desmesuradamente para envilecer las
condiciones de los centros de reclusión, en su gran mayoría precarios y
superpoblados, escenarios de abandono, arbitrariedades, violencia, tor-
turas, lo que supone un desprecio a la dignidad de los cautivos y contra-
riamente a lo que preconiza el Pacto.

Además de las críticas hechas al modelo decadente del sistema pe-


nitenciario brasileño, prevaleció el interés de obtener respuestas para el
enfrentamiento de sus males, de sus fragilidades, de los abusos en ella
cometidos, de la tortura que persiste intramuros (siete años después, el
Subcomité de Prevención de la Tortura y otros Tratamientos Crueles, In-
humanos o Degradantes de las Naciones Unidas registraba haber recibido
“relatos repetidos y consistentes de torturas y maltratos en São Paulo y
otras unidades federativas), mostrándose un vasto abanico de opciones
que abarcan no sólo la provisión de medios financieros necesarios para la

3 BARROS LEAL, César. La ejecución penal en América Latina a la luz de los de-
rechos humanos. México: Porrua, 2009, p. 113.

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463
optimización de los equipos y de los servicios y, en consecuencia, el per-
feccionamiento de la administración prisional, sino también el estímulo a
las iniciativas y las buenas prácticas que permitan, v.g., humanizar la cárcel,
disminuir el periodo de clausura y liberar a aquellos que permanecen en
su interior mucho allá del tiempo fijado en la sentencia, un absurdo que es
más frecuente de lo que uno se imagina y que fue enfatizado en Ginebra.

3 LA AUDIENCIA DE CUSTODIA

De acuerdo con cifras exhibidas por el Instituto Latinoamericano de


las Naciones Unidas para la Prevención del Crimen y el Tratamiento del
Delincuente (ILANUD), fundado en 1975 y vinculado al Consejo Económi-
co y Social de la ONU, con sede en San José, Costa Rica, más del 70% de
los presos, en un número significativo de países de América Latina, son
provisionales, lo que confirma la utilización abusiva del aprisionamiento,
una excrecencia que nos incumbe erradicar a toda costa.

Muchas han sido las medidas adoptadas, en distintos países, para


intentar reducir el número de presos provisionales: la despenalización
de los delitos menores, es decir, de menor gravedad; la ampliación de
la libertad condicional, la libertad vigilada, la libertad anticipada y la pri-
sión doméstica (en ciertos lugares, el empleo proporcional y equilibrado
de los regímenes semiabierto y abierto); el uso efectivo de las sanciones
alternativas a la pena privativa de libertad, especialmente para ciertos
grupos de sancionados (algo que, para muchos, debe ser hecho con ex-
tremo cuidado, a fin de evitar la expansión de la red de control que
fortalecería el camino para la omnipresencia de un Estado policial); el
monitoreo electrónico a distancia como instrumento de control y al-

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464
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

ternativa a la prisión4; la promoción de mecanismos de conciliación, de


mediación, de justicia restaurativa5 con reparación a las víctimas; la re-
dención de la pena por el trabajo, la educación y la lectura; la ampliación
del cuadro de defensores públicos que permitan, con el apoyo de los

4 Es importante tener en cuenta lo siguiente: Lo sustancial es la convicción que se


sedimenta paulatinamente no sólo del estrepitoso fiasco y de la consiguiente residualidad
de la privación de libertad, el más pesado eslabón de una cadena de puniciones que se per-
petúan en el tiempo, sino también de que el monitoreo electrónico no puede ser somera-
mente categorizado como bueno o malo; es en su empleo positivo o negativo que radica la
respuesta. Como dice Concepción Arenal, penitenciarista española, inspectora de prisiones
femeniles, uno de cuyos lemas era: “Odia el delito y compadece al delincuente”: “No hay
que acusar a las buenas teorías de las malas prácticas.” (BARROS LEAL, César. La Vigilancia
Electrónica a Distancia: Instrumento de Control y Alternativa a la Prisión en América Latina.
México: Porrua, 2010, p. 123-124)
5 Léase: Ante el fiasco unánimemente reconocido de la pena privativa de libertad
(parafraseando a Elías Neuman, nadie puede cubrir con los dedos de una mano los soles
de esta evidencia, visible como un escorpión en un plato de leche), máxime en su ilusoria
propuesta de resocialización, de rehabilitación, además de la ineptitud de los modelos he-
gemónicos y autoritarios de control y la notoria incapacidad del derecho penal convencional,
de matiz represivo, de vencer los desafíos de la criminalidad contemporánea (por ello lo lla-
man “tigre de papel”), se robustece cada vez más, en el proceso penal y la ejecución de la
pena, la percepción de que se requiere un cambio significativo en el paradigma de la justi-
cia criminal, con la adopción de nuevos conceptos, de estrategias más eficaces y legítimas,
entre las cuales se incluyen las formas o vías alternas de punición y resolución de disputas
(instancias por lo general no judiciales, oficiosas, celebradas por autores como Eugenio Raúl
Zaffaroni), en especial a través de medidas constructivas, de consenso, como la conciliación y
la mediación. Hacemos referencia a una práctica de justicia muy distinta de los patrones ordi-
narios de la justicia penal, ésta de corte nítidamente disuasorio, retributivo-punitivo, basada
en el exceso de formalismos, en la estricta legalidad, y una relación traumática, adversarial, a
veces hostil (una ceremonia de degradación, usando el lenguaje de Garfinkel), marcada por
el distanciamiento, un diálogo entre sordos, cuyos actores principales son estatales —policía,
fiscal del MP y juez— ya que el delito es visto, en un contexto bipolar (bidimensional), como
una disconformidad autor-Estado, id est, como una ofensa contra el Estado (la supuesta víc-
tima, el principal lesionado), poniéndose el acento en la ruptura de las leyes, en la violación
del bien jurídico tutelado y en la culpa del agente, en una óptica retroactiva, con énfasis en
el pasado, “olvidándose que, en su base, hay generalmente un conflicto humano, causante
de otras expectativas, bien distintas, además de la mera pretensión punitiva estatal.” E igno-
rando, ut retro, casi por completo a la víctima, despreciada en su identidad y humanidad, sin
voz en la respuesta penal/estatal, convertida en estatua de piedra. (BARROS LEAL, César.
Justicia Restaurativa: Amanecer de una Era. Aplicación en Prisiones y Centros de Internación
de Adolescentes Infractores. México: Porrua, 2015, p. 13-14).

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465
jueces de ejecución, asegurar el derecho de los presos a sus beneficios
de prelibertad; la determinación de que el número de encarcelados no
rebase la capacidad de la unidad penal, de acuerdo con el límite de pla-
zas y tasas de ocupación, que deben ser de conocimiento público, de
conformidad con las buenas prácticas y los principios establecidos por la
Comisión Interamericana de Derechos Humanos, así como las recomen-
daciones de las Reglas de Mandela; y, por fin, la adopción excepcional
de la prisión preventiva, siendo bienvenida la práctica, exitosa en mu-
chos países, de la audiencia de custodia.

Pero, ¿qué es la audiencia de custodia?

Inspirada en el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos (así


como en la Convención Americana sobre Derechos Humanos, el Pacto de
San José de Costa Rica), la audiencia de custodia tiene por finalidad ga-
rantizar el contacto de la persona presa con la autoridad judicial 24 horas
después de la prisión en flagrante, aunque en la práctica, por múltiples
razones, difícilmente ese plazo sea cumplido.

La audiencia de custodia sirve para que el juez: analice la legalidad y la


necesidad de la prisión, así como verifique eventuales maltratos al preso
(es frecuente este relato). En el momento de la audiencia, con la presen-
cia del representante del Ministerio Público y de un abogado/defensor
público, el juez podrá: relajar la prisión en flagrante legal; decretar la pri-
sión preventiva u otra medida cautelar alternativa a la prisión; mantener
suelta a la persona de quien se sospecha haber cometido determinado
delito, en el caso de que sea necesario aplicar una medida cautelar.

Dice el art. 9º (3) del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Polí-


ticos, de 1966: Cualquier persona presa o encarcelada en virtud de in-
fracción penal deberá ser conducida, sin demora, a la presencia del juez
o de otra autoridad habilitada por ley a ejercer funciones judiciales y
tendrá el derecho de ser juzgada en plazo razonable o de ser puesta en

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466
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

libertad. La prisión preventiva de personas que esperan juicio no deberá


constituir la regla general, pero la soltura podrá estar condicionada a
garantías que aseguren la comparecencia de la persona en cuestión a la
audiencia y a todos los actos del proceso, en el caso de que sea necesa-
rio, para la ejecución de la sentencia.

Este artículo del Pacto fue reproducido por el art. 7º (5) de la Conven-
ción sobre Derechos Humanos, ratificada por Brasil en 1992: Toda perso-
na, detenida o retenida, debe ser conducida, sin demora, a la presencia
de un juez u otra autoridad autorizada por ley a ejercer funciones judicia-
les y tiene el derecho de ser juzgada en plazo razonable o de ser puesta
en libertad, sin prejuicio de que prosiga el proceso. Su libertad puede
estar condicionada a garantías que aseguren su cumplimiento en juicio.

Cabe destacar también: a) el art. 306 del Código de Proceso Penal


(Decreto-ley n. 3.689 del 03 de octubre de 1941): La prisión de cualquier
persona y el local donde se encuentre serán comunicados inmediata-
mente al juez competente, al Ministerio Público y a la familia del preso o
a la persona por él indicada. § 1o en hasta 24 (veinticuatro) horas después
de la realización de la prisión, será encaminado al juez competente el
auto de prisión en flagrante y, en el caso de que haya sido registrado en
el informe el nombre de su abogado, copia integral para la Defensoría
Pública. § 2o En el mismo plazo, será entregada al preso, mediante recibo,
la nota de culpa, firmada por la autoridad, con el motivo de la prisión,
el nombre del conductor y los dos testigos”; b) el art. 310 del mismo
Código: al recibir el auto de prisión en flagrante, el juez deberá con fun-
damento: (Redacción dada por la Ley nº 12.403, de 2011) I - Relajar la
prisión ilegal; o (Incluido por la Ley nº 12.403, de 2011); II - Convertir la
prisión en flagrante en prisión preventiva, cuando estén presentes los re-
quisitos constantes del art. 312 de este Código, y se revelen inadecuadas
o insuficientes las medidas cautelares diversas de la prisión; o (Incluido
por la Ley nº 12.403, de 2011); III. Conceder libertad provisional, con o

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467
sin fianza. (Incluido por la Ley nº 12.403, de 2011). Párrafo único: Caso el
juez verifique, por el auto de prisión en flagrante, que el agente practicó
el hecho en las condiciones constantes de la fracciones I a III del caput
del art. 23 del Decreto-ley n. 2.848, del 7 de diciembre de 1940 - Código
Penal, podrá, con fundamento, conceder al acusado libertad provisional,
mediante acta de comparecencia a todos los actos procesales, so pena
de revocación. (Redacción dada por la Ley nº 12.403, de 2011, que, ade-
más, no logró mudar, como se esperaba de la reforma de 2011, el para-
digma de la prisión como prima ratio).

Ante el reconocimiento de la insuficiencia de los artículos apuntados


(en la sistemática bajo examen el juez sólo tiene contacto con el ciuda-
dano preso en la fecha de su juicio, lo que puede verificarse meses o
años posteriormente a su prisión), el proyecto de ley (PLS 554/2011, de
autoría del Senador Antonio Carlos Valadares6), ahora tramitando en el
Congreso Nacional, prevé, con el fin de alterar el Código de Proceso Pe-
nal (compatibilizándolo con el Pacto y la Convención), la obligatoriedad

6 Léase: “[...] § 1º En el plazo máximo de veinticuatro horas después de la prisión en


flagrante, el preso será conducido a la presencia del juez para ser oído, con vistas a las medi-
das previstas en el art. 310 y para que se verifique si están siendo respetados sus derechos
fundamentales, debiendo la autoridad judicial tomar las medidas oportunas con vistas a
preservarlos y para investigar eventual violación. § 2º En la audiencia de custodia de que trata
el párrafo 1º, el Juez escuchará al Ministerio Público, que podrá, caso entienda necesaria,
requerir la prisión preventiva u otra medida cautelar alternativa a la prisión; enseguida oirá
al preso y, después de manifestación de la defensa técnica, decidirá con fundamento en los
términos del art. 310. § 3º La escucha a que se refiere el párrafo anterior será registrada en
autos apartados, no podrá ser utilizada como medio de prueba contra el deponente y versará,
exclusivamente, sobre la legalidad y necesidad de la prisión; la prevención de la ocurrencia de
tortura o de maltratos; y los derechos asegurados al preso y al acusado. § 4º La presentación
del preso en juicio deberá ser acompañada del auto de prisión en flagrante y de la nota de
culpa que le fue entregada, mediante recibo, firmada por la autoridad policial, con el motivo
de la prisión, el nombre del conductor y los nombres de los testigos. § 5º La escucha del preso
en juicio siempre se dará en la presencia de su abogado, o, en el caso de que no haya o no lo
indique, en la de Defensor Público, y en la del miembro del Ministerio Público, que podrán in-
quirir al preso sobre los temas previstos en el párrafo 3º, así como manifestarse previamente
a la decisión judicial de que trata el art. 310 de este Código”.

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468
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

de la presentación del preso al juez y la realización de la audiencia de


custodia (corrigiendo, así, una gravísima laguna en el sistema cautelar en
vigor), veinticuatro horas después de la prisión en flagrante, con induda-
bles ventajas, referidas por los estudiosos, entre las cuales se debe des-
tacar: a) afianza al preso el derecho de ser juzgado en un plazo razonable;
b) garantiza el derecho de defensa y el contradictorio; c) inhibe y protege
al individuo de maltratos y la tortura durante y después de la prisión; d)
asegura el respeto a sus garantías individuales y su dignidad como ser
humano, piedra angular del instituto.

En esta misma línea, el Consejo Nacional de Justicia (CNJ), en asocia-


ción con el Tribunal de Justicia de São Paulo y el Ministerio de la Justicia, dio
inicio al proyecto Audiencia de Custodia (recomendando su implantación
en todo el territorio nacional), con la finalidad de tornar viable, con la máxi-
ma rapidez, la presentación a una autoridad judicial de los presos en fla-
grante. En la audiencia participan también el representante del Ministerio
Público y un abogado/defensor público. El proyecto prevé, por igual, una
estructura diversificada que incluye la creación/estructuración de centra-
les de alternativas penales; centrales de vigilancia electrónica; centrales de
servicios y asistencia social; y cámaras de mediación penal, encargadas de
presentar a la autoridad judicial opciones al aprisionamiento provisional.

Mediante la Resolución n. 213, del 15.12.2015, el CNJ había dispues-


to sobre la presentación de toda persona presa a la autoridad judicial en
el plazo de veinticuatro horas. He aquí el preámbulo que transcribimos
por su riqueza y amplitud:

CONSIDERANDO el art. 9º, ítem 3, del Pacto Internacional


de Derechos Civiles y Políticos de las Naciones Unidas, así
como el art. 7º, ítem 5, de la Convención Americana so-
bre Derechos Humanos (Pacto de São José de Costa Rica);

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469
CONSIDERANDO la decisión en los autos de la acusación
de incumplimiento de Precepto Fundamental 347 del Su-
premo Tribunal Federal, consignando la obligatoriedad de
la presentación de la persona presa a la autoridad judi-
cial competente; CONSIDERANDO lo que dispone la letra
“a” de la fracción I del art. 96 de la Constitución Federal,
que brinda a los tribunales la posibilidad de tratar de la
competencia y del funcionamiento de sus servicios y ór-
ganos jurisdiccionales y administrativos; CONSIDERANDO
la decisión emitida en la Acción Directa de Inconstitucio-
nalidad 5240 del Supremo Tribunal Federal, declarando la
constitucionalidad de la disciplina por los Tribunales de la
presentación de la persona presa a la autoridad judicial
competente; CONSIDERANDO el informe producido por
el Subcomité de Prevención a la Tortura de la ONU (CAT/
OP/BRA/R.1, 2011), por el Grupo de Trabajo sobre De-
tención Arbitraria de la ONU (A/HRC/27/48/Add.3, 2014)
y el informe sobre el uso de la prisión provisional en las
Américas de la Organización de los Estados Americanos;
CONSIDERANDO el diagnóstico de personas presas pre-
sentado por el CNJ y el INFOPEN del Departamento Pe-
nitenciario Nacional del Ministerio de la Justicia (DEPEN/
MJ), publicados, respectivamente, en los años de 2014 y
2015, revelando el contingente desproporcional de per-
sonas presas provisionalmente; CONSIDERANDO que la
prisión, conforme a previsión constitucional (CF, art. 5º,
LXV, LXVI), es medida extrema que se aplica solamente en
los casos expresos en ley y cuando la hipótesis no admite
ninguna de las medidas cautelares alternativas; CONSIDE-
RANDO que las innovaciones introducidas en el Código de
Proceso Penal por la Ley 12.403, del 4 de mayo de 2011,
impusieron al juez la obligación de convertir en prisión

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470
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

preventiva la prisión en flagrante delito, solamente cuan-


do constatada la imposibilidad de relajamiento o conce-
sión de libertad provisional, con o sin medida cautelar
diversa de la prisión; CONSIDERANDO que la conducción
inmediata de la persona presa a la autoridad judicial es el
medio más eficaz para prevenir y reprimir la práctica de
tortura en el momento de la prisión, asegurando, por tan-
to, el derecho a la integridad física y psicológica de las per-
sonas sometidas a la custodia estatal, previsto en el art.
5.2 de la Convención Americana de Derechos Humanos y
en el art. 2.1 de la Convención Contra la Tortura y Otros
Tratamientos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes;
CONSIDERANDO lo dispuesto en la Recomendación CNJ
49 del 1 de abril de 2014; CONSIDERANDO la decisión
plenaria tomada en el juicio del Acto Normativo 0005913-
65.2015.2.00.0000, en la 223ª Sesión Ordinaria, realizada
en el 15 de diciembre de 2015.

El art. 1º de la Resolución es categórico al determinar que toda per-


sona presa en flagrante delito, independientemente de la motivación o
naturaleza del acto, sea de modo obligatorio, en hasta 24 horas de la
comunicación del flagrante, presentada a la autoridad judicial compe-
tente, y oída acerca de las circunstancias en las que se dio su prisión o
aprehensión. No nos detendremos en el análisis de los dieciséis artículos
subsecuentes (porque rebasaría el propósito de este artículo), pero lla-
mamos la atención del lector para el Protocolo I (documento que tiene
por objetivo presentar orientaciones y directrices sobre la aplicación y el
seguimiento de medidas cautelares diversas de la prisión para aquellos
presentados en las audiencias de custodia, conteniendo: los fundamen-
tos legales y la finalidad de las medidas cautelares diversas de la prisión;

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471
las directrices para la aplicación y el seguimiento de las medidas cautela-
res diferentes de la prisión; los procedimientos para el seguimiento de las
medidas cautelares e inclusión social) y el Protocolo II (documento que, a
su vez, busca orientar tribunales y a magistrados sobre procedimientos
para denuncias de tortura y tratamientos crueles, inhumanos o degra-
dantes, donde se consignan: la definición de la tortura; las condiciones
adecuadas para la escucha del custodiado en la audiencia; los procedi-
mientos para la deposición de la víctima de tortura; los procedimientos
concernientes a la colección de informaciones sobre prácticas de tortura
durante la escucha de la persona custodiada; un cuestionario para auxi-
liar en la identificación y registro de la tortura durante la escucha de la
víctima; y las providencias en caso de investigación de indicios de tortura
y otros tratamientos crueles, inhumanos o degradantes.

En el estado de Ceará (soy de este estado, lo que explica la referen-


cia puntual), el Tribunal de Justicia instituyó, a través de la Resolución n.
14/2015 del Órgano Especial, ad referendum del Tribunal Pleno, obligato-
riedad de la realización de audiencia de custodia, presidida por autoridad
judicial competente, para presentación de la persona presa en flagrante
delito. Reproduzco a continuación algunos de sus artículos:

Art. 1º. Queda instituida, en el ámbito de la jurisdicción


de la Comarca de Fortaleza, la obligatoriedad de la reali-
zación de audiencia de custodia, para fines de presenta-
ción a la autoridad judicial competente, así definida en
los términos del art. 7º, de esta Resolución, de todas las
personas presas en flagrante delito. Art. 2º. La autoridad
policial remitirá al Juicio competente para la realización
de audiencias de custodia, en hasta 24 (veinticuatro) ho-
ras después de la prisión, el respectivo auto de prisión
en flagrante, para el fin de atender a la comunicación de

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472
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

que trata el art. 306, § 1º, del Código de Proceso Penal.


§ 1º. Protocolizado en la Secretaría del Juicio, ésta certi-
ficará si el auto está debidamente instruido con nota de
culpa y examen de cuerpo de delito de la persona presa,
remitiéndolo, en seguida, mediante despacho del juez,
a la Central Integrada de Apoyo al Área Criminal (CIAAC)
para fines de investigación en cuanto a los anteceden-
tes criminales y eventuales restricciones a la libertad
del arrestado en flagrante. § 2º. Antes de determinar la
remesa del auto a la CIAAC, el juez podrá evaluar, ante
los elementos presentes, si el caso comporta, de inme-
diato, el relajamiento de la prisión ilegal o la concesión
de la libertad, independientemente de la presentación
del preso. § 3º. Devuelto el auto con las informaciones
recolectadas por la CIAAC, lo que deberá ocurrir con la
máxima brevedad posible, la persona detenida será con-
vocada por la autoridad policial para la realización de la
audiencia de custodia y los autos de prisión aguardarán
en Secretaría la realización de la respectiva audiencia.
§ 4º. En las hipótesis en que la prisión en flagrante sea
comunicada durante finales de semana, feriados u otros
períodos en que funcione el régimen del turno, se obser-
vará lo previsto en el art. 8º, fracción III, de esta Resolu-
ción. Art. 3º. Compareciendo el arrestado en flagrante,
el juez procederá a su inmediata escucha, certificándo-
se, sin embargo, que le haya sido dada la oportunidad,
antes de la audiencia, de tener contacto previo y razona-
ble con defensor constituido, en el caso de que así haya
figurado en ocasión de la redacción del auto de prisión
o hasta el momento de la apertura de la audiencia, o, al
contrario, con Defensor Público.

Ir para o índice
473
La primera audiencia de custodia en Ceará fue llevada a efecto en
2016 por la Sala Única de Audiencias de Custodia de Fortaleza. Se trataba
de un crimen de receptación y la presentación ocurrió sólo cuatro dias
después de la detención. El preso, puesto que tenía buenos anteceden-
tes, empleo y residencia fija, obtuvo la libertad provisional. La experien-
cia de Ceará fue objeto de debate en el XXII Foro Nacional de Derecho
Penitenciário: Audiencia de Custodia, realizado del 20 al 21 de junio de
2016 por el Centro de Estudios y Entrenamiento de la Procuraduría Ge-
neral del Estado de Ceará, en asociación con el Consejo Nacional de Polí-
tica Criminal y Penitenciaria, órgano del Ministerio de la Justicia.

En los días siguientes, del 22 al 24 de junio, el Consejo Nacional de


Justicia llevó a cabo, en la sala de sesiones de la Primera Turma del Su-
premo Tribunal Federal (STF), el 2º Seminario sobre Tortura y Violencia
en el Sistema Prisional y en el Sistema de Cumplimiento de Medidas So-
cioeducativas – Actuación del Poder Judicial en el Enfrentamiento a la
Tortura, con objeto de “fortalecer la actuación y el compromiso de los
jueces en la prevención, identificación y combate a la tortura, en especial
cuando detectadas en audiencias de custodia”. En el evento se promovie-
ron talleres para entrenamiento de los jueces, así como para intercambio
de experiencias de los diferentes tribunales de las 27 unidades federati-
vas. Se informó entonces que el CNJ registró cerca de 2,7 mil denuncias
de maltratos y torturas (excesos y abusos policiales) contra personas pre-
sas en flagrante en todo el país.

La idea fundamental que preside la audiencia de custodia es garantizar


la celeridad, prevista en el Pacto y la Convención, permitiéndose, tal y como
fue mencionado anteriormente, examinar la prisión desde diferentes pers-
pectivas (ocurrencia de maltratos y tortura, legalidad, necesidad y adecua-
ción de la permanencia de la prisión o concesión eventual de la libertad),
imponiéndose o no medidas cautelares. Es siempre recomendable, en este

Ir para o índice
474
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

contexto, excluir el ingreso de alguien por un tiempo indeterminado en el


sistema penitenciário. Así se contribuirá a desahogar las prisiones, lo que
por sí solo es un mérito indudable en un país con más de 600.000 reclusos,
solamente detrás de los Estados Unidos, China y Rusia en las cifras globales
de encarcelamiento7, con déficit de plazas superior a 230 mil. Pero no sólo se
versa aquí sobre reducción de la sobrepoblación carcelaria; lo relevante es
igualmente impedir que el individuo se someta a toda suerte de influencias
negativas (prisionización) en espacios saturados donde todo se potencializa,
donde todo se exacerba como, por ejemplo, la falta de asistencia material
y jurídica, la menguada oferta de trabajo, los conflictos interpersonales, la
violencia (física, moral y sexual), el tráfico de drogas y la corrupción.

Entrevistado sobre el proyecto, el ministro Ricardo Lewandowski, Pre-


sidente del Supremo Tribunal Federal y del Consejo Nacional de Justicia,
consciente del cambio de cultura provocado por la audiencia de custodia,
la calificó como un “salto civilizatorio” y adujo: “Nosotros estamos, con ese
paso, no sólo dando efectividad a un principio importantísimo, que es el de
la dignidad de la persona humana, sino también cumpliendo una obligación
que el país asumió al firmar tratados internacionales” (entrevista publicada
en Internet). El ministro Luiz Fux, relator de la Acción Directa de Inconstitu-
cionalidad n. 5240, propuesta por la Asociación de los Delegados de Policía
de Brasil contra el CNJ (que el STF en buena hora juzgó improcedente), había
afirmado en su voto que las audiencias de custodia demuestran ser eficien-
tes en la medida en que impiden prisiones ilegales e innecesarias.

En numerosos países pertenecientes a la Organización de los Estados


Americanos (OEA) se han tomado providencias congéneres, de presen-
tación rápida en juicio: México (los sospechosos deben ser conducidos

7 La población carcelaria de Brasil se convierte en la 3ª mayor del mundo en el


caso de que se consideren a las personas que están en prisión domiciliaria.

Ir para o índice
475
a un juez en el plazo de 48 horas o ser liberados), Colombia (el plazo es
de 36 horas), Chile (el plazo es de 12 horas para encaminamiento a un
fiscal, cabiéndole, a su parte, conducir a un juez en el plazo de 24 horas) y
Argentina (el plazo viene a ser de 6 horas). Los nombres varían: audiencia
de flagrante, audiencia de control de detención, etc., pero la esencia es la
misma y el mérito compartido por la mayor parte de las 35 naciones que
integran la Organización de los Estados Americanos (OEA).

CONCLUSIONES

Para el ya mencionado Comité de Derechos Humanos de la ONU, el


lapso temporal entre la prisión de un acusado y su comparecencia ante
una autoridad judicial no debe ser largo, o sea, el plazo ha de ser razonable,
en los términos del art. 5º, LXXVIII, de la Constitución Federal: En el ámbito
judicial y administrativo, son garantizados a todos la razonable duración del
proceso y los medios que aseguran la celeridad de su tramitación.

Muchos se oponen a la audiencia de custodia, alegando ser un mero


recurso para disminuir los índices de la población prisional y señalando
que los jueces corren el riesgo de proceder a juicios apresurados, sin
tener muchas veces a su disposición suficientes elementos para una
decisión exenta de errores (a manera de ejemplo: la posibilidad de au-
sencia de una ficha criminal actualizada, que informe, de modo idóneo,
la eventual existencia de procesos en otros estados). Es evidente que
eso ocurre; nada es perfecto. Pero destáquese que es notorio el éxi-
to de esa iniciativa que se desarrolla actualmente, con la garantía del
contradictorio y de la amplia defensa, y que deberá resultar en una
disminución gradual y significativa del número de presos provisionales;
y eso, en definitiva, tendrá, sin lugar a dudas, una fabulosa repercusión

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476
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

en el sistema presidial, debiendo ser aclamado con el reconocimiento


que se exige en la celebración de las buenas prácticas.

Haciendo profesión de fe, con el énfasis determinado por mis con-


vicciones, veo la audiencia de custodia no como una panacea (algunos
incurren en este equívoco), sino como una respuesta vigorosa, entre
otras, para superar los impases de un área intensamente afectada por la
negligencia y la desidia con que siempre fue tratada por quien debería, al
revés, asumir la tarea y la responsabilidad de operar cambios.

Los que luchan para que la audiencia de custodia se firme en nues-


tro país, expurgando eventuales imperfecciones (estamos gateando en
su aplicación práctica y tenemos todavía un largo camino de continuo
aprendizaje), apuestan, a medio y/o largo plazo, a que los presos pro-
visionales constituyan una mínima parcela de la población intramuros.
Lograr este objetivo es un gran paso para el enfrentamiento de otros
males presentes en este universo, permitiéndonos soñar con una eje-
cución penal digna, respetuosa de los derechos humanos del conjunto
de encarcelados.

Concluyo, bañado de optimismo, con la reflexión de Eduardo Galea-


no, el excepcional escritor y periodista uruguayo, autor de “Las Venas
Abiertas de América Latina”, preso por la dictadura militar en los años
70 y exilado en España hasta 1985, habiendo fallecido en abril de 2015:
“La utopía está allá en el horizonte. Me acerco dos pasos, ella se aleja
dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte corre diez pasos. Por más
que yo camine, jamás alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía? Sirve para
eso: ¡para que yo no deje de caminar!”.

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477
BIBLIOGRAFÍA

BARROS LEAL, César. La ejecución penal en América Latina a la luz


de los derechos humanos. México: Porrua, 2009.

BARROS LEAL, César. La Vigilancia Electrónica a Distancia: Instrumento


de Control y Alternativa a la Prisión en América Latina. México: Porrua, 2010.

BARROS LEAL, César. Justicia Restaurativa: Amanecer de una Era.


Aplicación en Prisiones y Centros de Internación de Adolescentes Infrac-
tores. México: Porrua, 2015.

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478
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Bem-estar e produção animal no


Direito Europeu: estágio atual e
novas perspectivas
Animal welfare and production in
european law: current stage and
new perspectives

MONIQUE MOSCA GONÇALVES

“Quanto mais indefesa é uma criatura, mais direitos tem de


ser protegida pelo homem contra a crueldade do homem”.

Mahatma Gandhi (1869 – 1948)

RESUMO:

A evolução dos sistemas de produção animal para a escala industrial,


impulsionada pela necessidade de maximização da produção, acompa-
nhou-se do incremento do sofrimento dos seres explorados, pelo intenso
confinamento e novas técnicas de zootecnia. Esse modelo contrasta com
as modernas demandas de proteção dos animais, o qual se fundamenta na
senciência e tem como escopo maior justamente a limitação do sofrimento
dos animais aos casos de indispensabilidade. O bem-estar animal constitui

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479
um valor constitucional da União Europeia, mas a salvaguarda desse valor,
no âmbito da atividade de produção animal, tem esbarrado em falhas de
mercado e outros problemas econômicos, em especial decorrentes do li-
vre comércio e dos custos associados às medidas destinadas a favorecer o
bem-estar animal. Em razão desses fatores, o Direito Europeu tem evoluído
para um modelo de proteção que combina regras de comando e controle
com instrumentos de mercado, a exemplo do que ocorre na seara ecológica
propriamente dita. A estratégia, contudo, ainda se encontra em fase inicial
e não prescinde de maiores debates a fim de efetivamente se adequar ao
estatuto ético dos animais estabelecido na norma constitucional.

Palavras-chave: Produção animal. Bem-estar animal. Direito Euro-


peu. Sustentabilidade ética. Instrumentos econômicos.

ABSTRACT:

The evolution of animal production systems for the industrial scale,


driven by the need to maximize production, was accompanied by the in-
crease of the exploited beings’ suffering, through the intense confinement
and new techniques of animal husbandry. This model contrasts with the
modern demands of animal protection, which are based on sentience and
have as their main objective the limitation of animal suffering to cases of
indispensability. Animal welfare is a constitutional value of the European
Union, but safeguarding of this value in the context of livestock produc-
tion has been hampered by market failures and other economic prob-
lems, in particular arising from free trade and the costs associated with
measures to promote animal welfare. Because of these factors, European
Law has evolved into a protection model that combines command and
control rules with market instruments as in the ecological field itself. The

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480
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

strategy, however, is still at an early stage and does not dispense with
more debates in order to effectively adequate to the ethical status of the
established animals in the constitutional norm.

Keywords: Animal production; animal welfare; European Law, ethical


sustainability; economic Instruments.

INTRODUÇÃO

A evolução da proteção jurídica dos animais tem sido constante nos


últimos anos, com a intensificação dos debates sobre a consideração éti-
ca que deve reger a relação entre os seres humanos e os demais seres
sensíveis e a consequente expansão da produção legislativa nesta área.

O expresso reconhecimento dos animais como seres sencientes no


ordenamento europeu e o paradigma ético que decorre do princípio da
igual consideração de interesses semelhantes têm provocado profun-
das reflexões sobre hábitos culturais históricos e formas de exploração
dos animais pelo Homem.

E outro modo, as substanciais modificações que ocorreram nos sis-


temas de criação de animais para produção de alimentos nas últimas
décadas lançaram a questão sobre qual o grau de crueldade e de vio-
lência contra os animais que a sociedade está disposta a tolerar para
ter acesso a produtos de baixo custo. Segundo dados atuais, mais de 65
bilhões de animais são mortos todos os anos para fins de produção de
alimentos, e a ampla maior parte da produção advém de explorações

Ir para o índice
481
pecuárias intensivas em que a obsessão pelo rendimento ignora por
completo o sofrimento animal1.

A análise do conflito entre consumo humano e a necessidade de pro-


teção do animal ganha novos contornos numa sociedade de consumo,
em um cenário no qual a produção animal aumentou 600% nos últimos
cinquenta anos e ainda está em processo evolutivo2.

Por envolver questões éticas, científicas e, especialmente, problemas


no âmbito da economia, a evolução da tutela jurídica dos animais de
produção é dos temas mais complexos no âmbito do emergente ramo do
Direito Animal. Descartada a solução proposta pelos abolicionistas, como
Tom Regan e Gary Francione, no sentido da proibição da exploração dos
animais, o desafio inicial é a definição do que constitui sofrimento neces-
sário como limite para as práticas na atividade econômica. Mas não só.

A União Europeia tem a legislação mais rigorosa de proteção dos


animais de criação e demonstra grande preocupação quanto à condição
dos animais na agropecuária industrial moderna. Ocorre que os padrões
legais europeus e as tentativas de impor maiores restrições muitas vezes
têm esbarrado em falhas de mercado e consequentes desvantagens con-
correnciais em razão dos produtos importados mais baratos e produzidos
com baixo nível de bem-estar animal.

As tensões entre bem-estar animal e economia e os impactos das


normas no comércio dos produtos vão exigir a definição da melhor es-

1 Disponível em: http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.


do?type=MOTION&reference=B8-2016-0216&format=XML&language=PT.
2 Disponível em: http://www.fao.org/docrep/015/i2490e/i2490e00.htm.

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482
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

tratégia do Direito Animal Europeu, no que se refere à utilização das


regras de comando e controle e os instrumentos econômicos para in-
centivar o incremento da proteção pelo mercado, além da definição do
papel de cada stakeholder nesse processo.

A partir desse contexto, e para alcançar os fins visados, a presente


pesquisa utilizou o método indutivo e teve como hipótese primária a
análise do conflito entre as normas de proteção dos animais e o setor
de produção alimentícia, sob o prisma do Direito Europeu, abarcando,
como hipótese secundária, os instrumentos jurídicos aplicáveis em fa-
vor da promoção do bem-estar animal. Trata-se de pesquisa eminente-
mente doutrinária e multidisciplinar, já que engloba também as áreas
filosófica, científica e econômica.

1 UNIÃO EUROPEIA E DIREITO DOS ANIMAIS

1.1 A proteção do bem-estar animal como um valor constitucional

O artigo 13º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE),


introduzido pelo Tratado de Lisboa (2007), seguindo os antecedentes da
Declaração 24, anexa ao Tratado de Maastricht (1992) e do Tratado de
Amsterdão (1997)3, reconheceu expressamente a senciência animal,
estabelecendo o bem-estar dos animais como um valor constitucional,
conformador das Políticas da União e dos Estados-Membros nos domí-
nios da agricultura, da pesca, dos transportes, do mercado interno, da
investigação e desenvolvimento tecnológico e do espaço.

3 Para uma análise detalhada sobre esta evolução, conferir a obra de Maria Luísa
Duarte, União Europeia e garantia do bem-estar dos animais. Vide referências.

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483
Trata-se de uma disposição que resulta de intenso debate filosófico
e jurídico sobre a forma de relação com os animais e o enquadramento
teórico da proteção jurídica que lhes é dirigida, de forma que hoje já se
fala na emergência de um novo ramo jurídico: o Direito dos Animais4.

Desde a célebre interrogação de Jeremy Bentham (“the question is


not, Can they reason? nor, Can they talk? but, Can they suffer?”), em sua
clássica obra de 19075, grandes pensadores6 passaram a discutir sobre
a necessidade de mudança de tratamento em relação aos animais, com
fundamento na sua sensibilidade e suscetibilidade à dor e ao sofrimento,
por meio de um paradigma de natureza ética.

No campo jurídico, formaram-se duas correntes teóricas dominantes.


A teoria do bem-estar animal (“welfarist approach”) e a teoria abolicio-
nista (“rights approach”). A primeira, mais moderada, encara a prote-
ção dos animais sob uma perspectiva objetiva, propondo a solução de
conflitos pela fórmula do “sofrimento necessário”, enquanto a segunda
propõe a libertação dos animais contra todas as formas de dominação e
exploração, como centro de imputação de verdadeiros direitos7.

A previsão constitucional do ordenamento europeu e, em especial,


o direito derivado, como se verá no tópico seguinte, aproximam-se das

4 Sobre o Direito dos Animais como um ramo emergente, observar a obra de


Carla Amado Gomes, Direito dos Animais: um ramo emergente?
5 Trata-se da obra de Jeremy Bentham, An Introduction to the Principles of Morals
and Legislation.
6 Destacam-se como os maiores expoentes na área: Henry S. Salt, Peter Singer,
Tom Regan, e Gary L. Francione.
7 Modernamente, fala-se ainda em uma terceira teoria (“new welfarist”), de natureza
intermediária, que almeja, a longo prazo, os direitos dos animais e a curto prazo o bem-estar.
Para uma análise mais completa sobre as diferentes teorias, conferir o estudo de Lia do Valle de
Albuquerque, A ética e a experimentação animal à luz do Direito brasileiro e da União Europeia.

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484
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

concepções bem-estaristas, porque buscam conciliar os diversos campos


de interesses humanos com a necessária proteção do animal. O expres-
so reconhecimento dos animais como “seres sensíveis” deixa evidentes
dois fundamentais aspectos da normativa: a senciência8 constitui o fun-
damento da tutela9 e o objetivo é evitar o sofrimento desnecessário.

A modificação promovida pelo Tratado de Lisboa, com efeitos a partir


de dezembro de 2009, representou grande avanço na tutela dos animais
no âmbito europeu, por conferir legitimidade constitucional à causa. A
proteção do bem-estar animal passa a figurar como objetivo e limite de
intervenção normativa do decisor eurocomunitário10, sendo alçada à
condição de política prioritária da União Europeia, o que, nas palavras de
Diane Ryland e Angus Nurse11, representa: “That legal status subsists not
as a general principle of EU law transcending the written Treaties, but as
a twenty seven Member State agrément that animal welfare constitutes
one of the legally recognised values of the EU”.

O dispositivo é carregado de forte simbolismo, uma vez que reco-


nhece a dignidade e o respeito à vida animal como um princípio da

8 Importante documento científico sobre a senciência animal é a Declaração de


Cambridge de 2012. Disponível em: http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclaratio-
nOnConsciousness.pdf.
9 Crítico do especismo e defensor da senciência como fundamento de tutela,
Peter Singer (2010) pontua que a relação entre os homens e os animais deve pautar-se
pelo principio da igual consideração de interesses semelhantes e a senciência constitui a
fronteira defensável para preocupar-se com os interesses alheios, uma vez que este limite
não poderia ser estabelecido a partir da razão ou da inteligência, pois seria arbitrário.
10 Reflexão pautada na obra de Maria Luísa Duarte, Direito da União Europeia e
Estatuto Jurídico dos Animais: uma grande ilusão?
11 Esta é a visão de Diane Ryland e Angus Nurse no estudo Mainstreaming After
Lisbon: Advancing Animal Welfare In The EU Internal Market.

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485
política legislativa da União Europeia12, além de representar, ao mesmo
tempo, uma base jurídica e uma fonte de obrigações para o decisor
da União e para os decisores dos Estados-Membros13. Contudo, não é
isento de críticas. A consideração do bem-estar animal na definição de
políticas no âmbito da União Europeia vai exigir um juízo de proporcio-
nalidade quando em conflito com outros interesses. A falta de defini-
ção de critérios sobre o que seja “sofrimento necessário” confere uma
abertura aos Estados-Membros, propiciando uma desuniformidade no
tratamento da matéria.

Sob outra perspectiva, Maria Luísa Duarte destaca que o dispositivo


não rompe com a visão antropocêntrica e utilitarista que sempre impe-
rou no âmbito da exploração econômica do animal, porque privilegia o
interesse econômico, não transcendendo os objetivos minimalistas de
proteção do bem-estar dos animais14.

Antes de prosseguir, é imperioso que se estabeleçam alguns breves


apontamentos sobre o conceito de bem-estar animal, a fim de se delimi-
tar o conteúdo do preceito estabelecido no Tratado. O termo surgiu no
Reino Unido (animal welfare), na década de 1960, por meio de estudos

12 Na mesma linha, a proteção dos animais já encontra uma base constitucional na


legislação interna de alguns Estados-Membros, com destaque para a Constituição da Suíça de
1992, que, em seu art. 80, estabeleceu o princípio da dignidade das criaturas, impondo ao
Estado o dever de proteção. Sobre a proteção dos animais como objetivo constitucional, veja:
Carla Amado Gomes, Desporto e proteção dos animais: por um pacto de não agressão.
13 Para mais desenvolvimentos sobre a eficácia normativa do dispositivo, Maria
Luísa Duarte explana em Direito da União Europeia e Estatuto Jurídico dos Animais: uma
grande ilusão?
14 Observa-se tal contexto em Maria Luísa Duarte, Direito da União Europeia e
Estatuto Jurídico dos Animais: uma grande ilusão?

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486
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

realizados por um comitê formado por pesquisadores e profissionais re-


lacionados à agricultura e pecuária15. Segundo a atual definição realizada
pela Organização Mundial da Saúde Animal (OIE)16:

[…] animal welfare means how an animal is coping with


the conditions in which it lives. An animal is in a good
state of welfare if (as indicated by scientific evidence) it
is healthy, comfortable, well nourished, safe, able to ex-
press innate behavior, and if it is not suffering from un-
pleasant states such as pain, fear and distress.

Largamente difundida na doutrina é a conceituação realizada pela Farm


Animal Welfare Comitte17, que estabelece cinco liberdades essenciais para
a definição de bem-estar animal: 1. Ausência de fome e sede; 2. Evitação
de dor, ferimento e doença 3. Ausência de desconforto; 4. Liberdade de
expressar comportamento normal; e 5. Ausência de medo ou sofrimento.

No âmbito científico, destaca-se a complexidade da definição de padrões


de bem-estar animal, de forma que hoje ainda não há um método científico
reconhecido para medir o nível de bem-estar animal18, o que faz com que
sejam utilizados os parâmetros gerais calcados nas Cinco Liberdades.

15 Em 1965, o Comitê Brambell publicou um relatório sobre bem-estar dos ani-


mais de produção, em resposta à pressão popular decorrente das crueldades nos sistemas
de confinamento da Inglaterra denunciadas no livro Animal Machine, publicado pela jorna-
lista Ruth Harrison, em 1964.
16 Em 1965, o Comitê Brambell publicou um relatório sobre bem-estar dos ani-
mais de produção, em resposta à pressão popular decorrente das crueldades nos sistemas
de confinamento da Inglaterra denunciadas no livro Animal Machine, publicado pela jorna-
lista Ruth Harrison, em 1964.
17 Terrestrial Animal Health Code, Capítulo 7.1, art. 7.1.1.
18 Trata-se de um órgão consultivo independente no âmbito do governo da Grã-
-Bretanha criado para fiscalizar a atividade pecuária no que se refere ao bem-estar animal.

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487
1.2 Direito europeu derivado

Conforme já pontuado no início, a exploração econômica do ani-


mal constitui uma das áreas mais sensíveis de proteção do bem-estar,
porque envolve práticas e hábitos fortemente arraigados na sociedade,
além de contrariar poderosos interesses econômicos. É fácil perceber
a dificuldade de garantir proteção contra o sofrimento para um animal
que, historicamente, sempre se destinou ao consumo humano e, desde
o seu nascimento, é criado e tratado visando à sua morte. Em maior
ou menor grau, a depender do estágio civilizatório de determinada so-
ciedade, denota-se uma espécie de barreira psicológica na formação
de uma verdadeira consciência pública em torno da necessidade de
garantia do bem-estar dos animais de produção, como se o fato de se-
rem destinados ao abate lhes retirasse qualquer interesse ou mesmo o
sentido da garantia de uma mínima qualidade de vida.

Enquanto em algumas áreas a proteção dos animais tem evoluído de


forma considerável no cenário global, com destaque para a temática dos
animais de companhia e dos grandes primatas, a ponto de se verificarem
decisões judiciais reconhecedoras de verdadeiros direitos subjetivos a
estas espécies19, os animais de produção continuam merecendo pouca
atenção dos sistemas legislativos e judiciários pelo mundo, perpetuando
e agravando a situação de massacre e crueldade alhures descrita.

19 Nome de destaque no tema, Donald M. Broom, no escrito Animal Welfare:


future knowledge, attitudes and solution, ressalta a complexidade dos processos adaptati-
vos e propõe uma abordagem multidisciplinar que considere as características comporta-
mentais, a sanidade, a produtividade, as variáveis fisiológicas e as preferências dos animais
pelos diversos componentes do ambiente que os rodeiam.

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488
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Cite-se, de passagem, que esse tratamento desuniforme em relação


às espécies, caracterizando o especismo20, tão fortemente combatido
por Peter Singer e outros grandes expoentes da área, representa um
dos maiores entraves no avanço da conformação do Direito dos Animais
como um novo ramo jurídico, por afrontar o fundamento principal da
tutela – a senciência21 – nem sequer encontrando respaldo em outro cri-
tério de natureza proporcional ou razoável.

Em que pese esse contexto, a União Europeia tem sido pioneira no


âmbito mundial no regramento da atividade de produção animal e possui
a legislação mais rigorosa de proteção dos animais de criação.

Essa postura proativa da Comunidade Europeia é de extrema impor-


tância para a evolução da problemática da garantia do bem-estar dos
animais de produção, pois se trata de grande consumidora mundial, de
forma que seu regramento tem potencial para influenciar no tratamento
da questão em âmbito global, com reflexos no mercado interno e no co-
mércio internacional.

A legislação europeia sobre bem-estar dos animais de criação divi-


de-se basicamente em dois grupos. Um de caráter geral, direcionado à

20 O termo “especismo” (speciesism) foi originalmente cunhado pelo psicólogo


britânico Richard D. Ryder, Professor da Universidade de Oxford, em análise comparativa
entre a relação com os animais e os antigos fenômenos da escravidão (racismo) e da exclu-
são das mulheres (sexismo), conforme Richard Ryder (2008, p. 63), no estudo Animals and
Human Rights.
21 Veja-se, por exemplo, a nova lei de incriminação de maus-tratos contra os ani-
mais em Portugal (Lei nº 69/14), que excluiu expressamente do âmbito de aplicação os
animais utilizados na economia, limitando a tutela penal aos animais domésticos. O tipo
penal é alvo de críticas pela doutrina, por realizar uma distinção com base em um critério
utilitarista, refletindo a utilidade social do animal de companhia e a proteção dos sentimen-
tos afetivos dos respectivos donos. Neste sentido, estuda Raul Farias, no estudo Dos Crimes
Contra Animais de Companhia. Breves Notas.

Ir para o índice
489
exploração da atividade pecuária, ao transporte e ao abate, e outro de
âmbito específico para vitelos, suínos, frangos e galinhas poedeiras.

Em 1998, a Diretiva 98/58/CE, do Conselho, relativa à proteção dos


animais nas explorações pecuárias, trouxe regras gerais para a proteção
dos animais de todas as espécies destinadas à produção de alimentos,
lã, pele, ou para outros fins agrícolas, incluindo peixes, répteis e anfíbios.
Essas regras tiveram como base a Convenção Europeia relativa à prote-
ção dos animais nos locais de criação22 e objetivaram o estabelecimento
de um piso mínimo de proteção aos animais explorados, com requisitos
relativos ao alojamento, condições de isolamento, aquecimento e ven-
tilação, além da eliminação de distorções de concorrência no mercado.

Apesar do pioneirismo, o diploma europeu pecou ao realizar uma


formulação em termos demasiadamente gerais, o que conferiu enorme
gama de abertura aos Estados-Membros e, consequentemente, restrin-
giu a sua aplicabilidade23. Tal aspecto extrai-se, notadamente, da utiliza-
ção de expressões vagas, como “espaço adequado”, “pessoal em número
suficiente” e “limites aceitáveis”, dentre outras.

No que se refere ao transporte, o Regulamento (CE) nº 1, de 2005, do


Conselho, revisou as normas anteriores da União Europeia e estabeleceu
regras para o transporte de animais vertebrados vivos dentro do territó-
rio europeu, em consonância com a Convenção Europeia para a Proteção

22 Datada de 1978, ratificada por Portugal em 1982.


23 A própria Comissão Europeia já reconheceu este defeito. Na Estratégia para
a proteção do bem-estar animal para os anos 2012/2015, afirmou que a Diretiva contém
“disposições que são demasiado gerais para ter efeitos práticos”, disponível em: http://
ec.europa.eu/food/animals/welfare/strategy/index_en.htm.

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490
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

dos Animais em Transporte Internacional (1968) e respectivo Protocolo


adicional (1979)24. O princípio-base do regramento é o de que os animais
não devem ser transportados em condições suscetíveis de lhes causar
lesões ou sofrimentos desnecessários, e, como finalidade geral, buscou-
-se limitar o transporte de animais em viagens de longo curso. Excluiu-se,
contudo, do âmbito de proteção, o transporte de animais que não seja
efetuado em relação às atividades econômicas25.

A Diretiva 93/119/CE, do Conselho, por sua vez, estabeleceu regras de


proteção dos animais no abate e/ou occisão com o objetivo de minimizar
a dor e o sofrimento dos animais por meio do uso de métodos de atordo-
amento aprovados. O Regulamento (CE) nº 1.099, de 2009, do Conselho,
trouxe novos regramentos sobre o tema, com aplicação a partir de 1º de
janeiro de 2013. Digna de nota foi a criação da figura do oficial do bem-
-estar animal, com a obrigatoriedade de designação de pessoa qualificada
por estabelecimento para assegurar a adequada aplicação das normas26.

Do ponto de vista material, verifica-se o foco principal na segurança


alimentar, a partir da constatação de que os métodos de abate influen-
ciam diretamente na qualidade da carne, e nas questões relacionadas
ao mercado e à competitividade que, por vezes, se sobrepõem à tutela
do bem-estar animal27. Merece destaque, ainda, a permissão do uso de

24 Em vigor desde 1971, foi ratificada por Portugal, em 1982, e o Protocolo em 1989.
25 Conforme artigo 1º, nº. 5, do Regulamento (CE) nº 1/2005.
26 Cf. art. 17º do Regulamento (CE) nº 1.099/09.
27 Veja, por exemplo, o art. 3(b) do Regulamento (CE) nº. 1099/09, que excluiu o
abate de aves de capoeira, coelhos e lebres para consumo doméstico do âmbito de apli-
cação da norma, com fundamento na sua incapacidade para afetar a competitividade dos
matadouros comerciais.

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491
descargas elétricas28 no transporte de animais, nos mesmos termos da
anterior previsão estabelecida pelo Regulamento (CE) nº 1, de 200529.

No âmbito específico de certos animais de criação, a Diretiva


2008/119/CE, do Conselho, trouxe regras mínimas de proteção de vitelos
e estabeleceu limites para o confinamento individual intensivo dos be-
zerros. Dentre as disposições, destacam-se a proibição de confinamento
de vitelos em celas individuais após a idade de oito semanas; a previsão
de dimensões mínimas para celas individuais e para vitelos em grupos;
além de regras quanto à alimentação dos animais. A referida normati-
va, ao reconhecer a natureza específica da espécie bovina, que vive em
rebanho, estabelecendo limites quanto ao isolamento do animal30, teve
o mérito de ir além da preocupação quanto ao sofrimento que decorre
de dor física, fator que representa a base da legislação na matéria, para
se preocupar, embora em um espectro limitadíssimo, com uma medida
diretamente relacionada com o efetivo bem-estar do animal.

A Diretiva 2008/120/CE, do Conselho, regulamentou a proteção mínima


dos suínos no âmbito europeu, limitando o confinamento intensivo de por-
cas e matrizes, com a proibição de baías individuais para gestantes, o esta-
belecimento de idade mínima para o desmame e limitações quanto a alguns
procedimentos dolorosos, como o corte da cauda e dos dentes31. Destaca-
-se, ainda, a preocupação com necessidades comportamentais específicas
da espécie32, na linha inaugurada pela diretiva anteriormente analisada.

28 Anexo III (referência ao art. 15º), nº 1.9.


29 Art. 35 do Regulamento (CE) nº 1/2005.
30 Art. 3º da Diretiva 2008/119/CE.
31 Anexo I, Capítulo I, nº 8.
32 Anexo I, Capítulo I, nº 4.

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492
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Em relação às aves, a Diretiva 1999/74/CE, do Conselho, proibiu as


tradicionais gaiolas de baterias para as galinhas poedeiras e estabeleceu
requisitos mínimos quanto ao espaço e alojamento destes animais (as cha-
madas “gaiolas melhoradas”). Merecedora de críticas, contudo, é a dispo-
sição contida no nº 8 do Anexo, que concedeu uma abertura aos Estados-
-Membros para a autorização do procedimento de corte do bico das aves,
tido como uma das práticas mais cruéis na avicultura industrial33.

Por fim, a Diretiva 2007/43/CE, do Conselho, estabeleceu regras mí-


nimas para a proteção dos frangos para a produção de carne, com a fina-
lidade de reduzir a superlotação das explorações avícolas, e definiu uma
densidade máxima, além de prever requisitos referentes ao alojamento e
alimentação dos animais. Trata-se da primeira legislação europeia a incluir
indicadores de bem-estar animal como meio de avaliação científica34.

No plano estrutural, a União delegou às autoridades nacionais a ta-


refa de controle e fiscalização do cumprimento das regras e estabeleceu
o dever de apresentar relatórios da atividade à Comissão. Cabe aos Esta-
dos-Membros também a definição do regime de sanção aplicável para o
caso de violação das regras. O efetivo cumprimento dessa tarefa é objeto
de controle europeu pelo Comitê da Cadeia Alimentar e da Saúde Animal
e, em alguns casos, permite-se a realização de inspeções in loco por vete-
rinários da Comissão, em cooperação com as autoridades competentes,
especialmente a fim de garantir a aplicação uniforme da legislação35.

33 A debicagem é um procedimento comum na criação de galinhas poedeiras e tem


como finalidade evitar o canibalismo e o arranque das penas pelas próprias aves. Este comporta-
mento, por sua vez, representa uma condição de extremo estresse do animal, quando sujeito a
intenso e contínuo sofrimento. Veja maiores informações sobre a debicagem e o bem-estar animal
em: http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/Debicagem%20reduzida%20para%20pdf.pdf.
34 Veja-se, por exemplo, a referência expressa a indicadores de baixo nível de bem-
-estar animal, como dermatite de contato e parasitoses (Anexo III, nº. 2).
35 Nesse sentido, art. 10º da Diretiva 2008/120/CE, do Conselho e art. 9º da Dire-
tiva 2008/119/CE, do Conselho.

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493
Por meio de análise geral dos diplomas referenciados, observa-se que
a preocupação central refere-se à limitação dos espaços dos alojamentos
dos animais, característica dos sistemas de criação intensivos da agropecu-
ária industrial moderna. Apesar da inovação e do pioneirismo da legislação
europeia, especialmente quando comparada com o ordenamento de paí-
ses de outros eixos36, verifica-se que as disposições se destinam apenas aos
métodos mais cruéis na produção, de modo a abarcar restrito campo rela-
cionado ao sofrimento animal, sem garantir, contudo, um padrão mínimo
de qualidade de vida aos animais explorados37. Ademais, o ordenamento
é incompleto, porque deixa sem proteção específica alguns importantes
setores, como a produção de produtos lácteos e o gado de corte38.

Cumpre recordar que a observância do Direito Europeu pelo ordena-


mento interno dos Estados-Membros tem natureza vinculativa e está sujei-
ta a regras e procedimentos de efetivação plena. Com base nos princípios
do primado do direito da União Europeia e da aplicabilidade e do efeito di-
retos, os Estados devem cumprir as disposições eurocomunitárias, estando
sujeitos a controle judicial por meio de ação por incumprimento perante o
Tribunal de Justiça da União Europeia39. De mais a mais, no plano interno,

36 Dentre os países desenvolvidos, destaca-se, pelo aspecto negativo, a legislação nor-


teamericana, que contém parca normativa de proteção do bem-estar dos animais de produção
e onde o setor apresenta números de grande expressividade. Maiores desenvolvimentos em
Gaverick MATHENY e Cheryl LEAHY. Farm-animal welfare, legislation and trade. In Law and
Contemporary Problems. Vol. 70. Universidade de Maryland, EUA, 2007. Págs. 334/339.
37 Matheny e Leahy (2007, p. 340) também destacam que o ordenamento euro-
peu pouco regulamenta a questão da genética, que é fundamental na abordagem do bem-
-estar animal, especialmente em relação aos problemas decorrentes das técnicas utilizadas
para o crescimento rápido.
38 Nesse sentido, Peter Stevenson (2014, online) é que se comporta em seu es-
crito Review of animal welfare legislation in the beef, pork and poultry industries.
39 Cf. artigos 258/260 do Tratado de Funcionamento da União Europeia.

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494
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

mesmo na falta de transposição da diretiva, as normas podem ser invoca-


das nos tribunais nacionais por parte de qualquer interessado40.

A legislação comunitária representa um piso mínimo de tutela, dei-


xando em aberto a possibilidade para uma proteção jurídica reforçada
pelos Estados-Membros41. Nesse sentido, algumas importantes modifica-
ções já têm sido sentidas nos ordenamentos de alguns países europeus,
tanto em sede constitucional como na legislação infraconstitucional de
natureza pública e privada42, verificando-se clara tendência de expansão
das normas de proteção dos animais. Nada obstante, como já destacado,
na área da produção animal o progresso tem sido mais lento, por trazer
implicações no desenvolvimento econômico e no comércio dos produtos,
além dos demais fatores dantes mencionados. Em razão dessas barreiras
e das dificuldades para a expansão das regras de comando e controle no
âmbito da exploração econômica dos animais, outros mecanismos têm
sido desenvolvidos para incrementar a proteção do bem-estar animal,
que serão objetos de melhor desenvolvimento no capítulo seguinte.

Apesar desse contexto, alguns países europeus foram além da legis-


lação comunitária e adotaram regulamentações mais severas. O Reino
Unido, por exemplo, desde que integrava a União Europeia, proibia legal-

40 Para mais desenvolvimentos sobre as consequências jurídicas associadas à vio-


lação de legislação comunitária pelos Estados-Membros, conferir Maria Luísa Duarte (2012,
p. 424), O tempo e a transposição de diretivas no direito da União Europeia.
41 Nesse sentido, de forma expressa: Diretiva 1999/74/CE, in fine; Art. 12º da Di-
retiva 2008/120/CE; art. 11º da Diretiva 2008/119.
42 Com potencial para impactar na produção animal, merece destaque a cres-
cente tendência de modificação dos ordenamentos privatistas para reconhecer a natureza
sui generis do animal, divorciando-o da clássica noção de coisa, o que já ocorreu na Suíça,
Alemanha e, mais recentemente, na França. Essa modificação tem gerado intensos debates
pela doutrina sobre os seus efeitos no âmbito da conformação do direito de propriedade.
Maiores estudos em Ramos (2009), O animal: coisa ou tertium genus?

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495
mente baías para vitelos, desde 1990, e celas de gestação para matrizes,
a partir de 1999. A Dinamarca já há muito tempo proíbe as gaiolas de
bateria e também tem regras mais restritivas quanto às celas de gestação
para porcas matrizes. A Suécia previu outras medidas adicionais para a
promoção do bem-estar de suínos43.

1.3 Estratégias quadrienais e outras iniciativas

Além do crescente incremento da legislação, a União Europeia tem


empreendido esforços para melhorar a proteção do bem-estar animal
por meio de outros instrumentos. Criou-se um comitê científico indepen-
dente (Comitê Científico em Saúde e Bem-estar Animal) para aconselhar
a Comissão Europeia, que fornece uma base científica sólida para a ela-
boração da legislação e outras propostas. Além disso, desde 2005, são
elaboradas estratégias multianuais com a finalidade de estabelecer ba-
ses para melhorar os padrões de bem-estar animal no âmbito europeu.

O primeiro programa de ação para o bem-estar animal, elaborado


para os anos de 2006-2010, previu a introdução de indicadores norma-
lizados em matéria de bem-estar animal e o investimento em investiga-
ção para o desenvolvimento e aplicação desses indicadores, de modo a
obter um instrumento legislativo para validar sistemas de produção que
aplicam normas de bem-estar mais elevadas do que as normas mínimas
previstas na legislação. Demonstrou-se a preocupação com a comercia-
lização e o favorecimento dos produtos menos agressivos aos animais,
pela previsão da criação de um sistema específico de comercialização e

43 Para uma análise completa das disposições específicas de cada país europeu, vide
Roex e Miele (2005), Farm animal welfare concerns. Consumers, retailers and producers.

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496
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

informação para fomentar a aplicação das normas mais elevadas e facili-


tar a sua identificação por parte dos consumidores comunitários. Desta-
ca-se, ainda, a previsão da criação de um Centro Europeu para a proteção
do bem-estar animal, com a finalidade de instituição de um processo de
normalização/certificação de novos indicadores de bem-estar animal e o
estabelecimento de um rótulo europeu de bem-estar animal44.

A Estratégia 2012-201545 estabeleceu como meta melhorar a coerên-


cia política e a transparência do mercado por meio de um quadro legis-
lativo abrangente em matéria de bem-estar dos animais, a fim de reduzir
as tensões reais ou presumidas entre o bem-estar destes e a economia,
preocupando-se com os impactos econômicos das normas de bem-estar
animal. Para tanto, propôs-se o investimento em educação e formação
para garantir uma boa relação custo-eficácia. Ademais, identificaram-se
alguns problemas, como a aplicação desigual das regras comunitárias nos
Estados-Membros46, a qual impedia a criação de condições equitativas
no setor econômico, exigindo uma reorientação do direito comunitário.
Outro obstáculo identificado à execução plena e uniforme foi a inexis-
tência de incentivos econômicos suficientes para que as normas fossem
cumpridas. Dentre as medidas sugeridas, a estratégia propôs a criação de
um quadro legislativo abrangente em matéria de bem-estar dos animais.

44 Ver Baptista (2009, p. 38), Análise econômica do bem-estar animal: contribu-


tos para sua avaliação ao nível da produção.
45 O documento encontra-se acessível para consulta no site da Comissão Euro-
peia, através do link: http://ec.europa.eu/food/animals/welfare/strategy/index_en.htm
(acesso em 1º/7/2016).
46 Em Portugal, por exemplo verifica-se a desconformidade da atuação da indús-
tria agropecuária em relação às regras de bem-estar animal da União Europeia, o que é
destacado no estudo realizado por Rui Pedro Fonseca (2015), O “bem-estar animal” e a
“eficácia econômica” de acordo com o discurso oficial da pecuária portuguesa.

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497
Este último desiderato reflete o pensamento de parte da doutrina, que
critica o atual quadro legislativo de disposições avulsas e sustenta a ne-
cessidade de criação de uma lei geral de bem-estar animal. Esta é, por
exemplo, a posição de Maria Luísa Duarte47, que sustenta que a referên-
cia expressa ao estatuto ético dos animais como seres sencientes impõe
a consagração de um quadro legislativo da União Europeia simplificado,
com princípios de bem-estar animal para todos os animais. Sob outra ótica,
Carla Amado Gomes48 destaca a dificuldade de tratamento homogêneo da
matéria em razão das peculiaridades de cada caso que decorrem dos inte-
resses em conflito e da intensa heterogeneidade entre os animais.

Observa-se que os pensamentos destacados não são opostos e podem


ser harmonizados por uma perspectiva complementar. A criação de uma
legislação geral de bem-estar animal terá o mérito de estabelecer princí-
pios gerais e disposições mínimas de bem-estar aplicáveis a todos os ani-
mais, o que pode ser feito tendo como base a Teoria das Cinco Liberdades
desenvolvida pela Farm Animal Welfare Committe (FAWC). Contudo, em
razão dos inúmeros conflitos de interesses que exigem constante juízo de
proporcionalidade, bem como as necessidades específicas de cada espé-
cie, tal normativa não prescindirá do incremento de disposições direciona-
das a algumas espécies e atividades de forma específica.

É importante destacar o foco dos programas no setor agrícola. A últi-


ma estratégia expressamente pontuou sobre a relevância do tema e ex-
pôs dados substanciais sobre a produção agrícola na União Europeia. Se-
gundo o documento, à época, havia cerca de dois bilhões de aves (frangos
de carne, galinhas poedeiras, perus, patos e gansos) e trezentos milhões

47 Cf. Duarte (2014, p. 39), no estudo, Direito da União Europeia e Estatuto Jurídi-
co dos Animais: uma grande ilusão?
48 Cf. Gomes (2014, p. 58), no estudo, Direito dos Animais: um ramo emergente?

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498
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

de mamíferos (bovinos, suínos, ovinos etc.) nas explorações agrícolas de


toda a comunidade europeia, sendo que o valor anual da produção ani-
mal atingia cerca de 150 bilhões de euros. Preocupada com este cenário,
a União estabeleceu uma contribuição anual para a promoção do bem-es-
tar dos animais estimada em 70 milhões de euros, por meio de incentivos
aos agricultores e outras atividades relacionadas, como a investigação, os
estudos econômicos, a comunicação, a formação, a educação etc.

Merece destaque, ainda, o objetivo de valorização econômica do bem-


-estar animal para as empresas, a fim de favorecer a circulação de produtos
que garantam maiores níveis de bem-estar e combater desvantagens con-
correnciais decorrentes dos custos associados às medidas implementadas.

Além dos objetivos elencados na estratégia, a Comunidade Europeia


tem buscado integrar as políticas de bem-estar animal com as demais
políticas no campo agrícola, comércio interno, ambiente e outros setores
relacionados. No âmbito da Política Agrícola Comum, incorporaram-se
medidas para favorecer o bem-estar dos animais, como o incentivo à ex-
tensificação e medidas de controle da produção.

A cooperação internacional também tem sido uma das principais


diretrizes da União para a melhoria dos sistemas de produção animal,
com a realização de um papel ativo no plano multilateral, em especial
perante a Organização Mundial da Saúde Animal (OIE), a Organização
das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organiza-
ção Mundial do Comércio (WTO)49.

49 Algumas organizações internacionais têm desenvolvido um papel ativo na


promoção do bem-estar animal, destacando-se a atuação do Conselho da Europa, a Or-
ganização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, o Banco Mundial e a Orga-
nização Mundial da Saúde Animal. Estudo detalhado sobre a atuação destes organismos
STEVENSON, 2014, p. 30-46).

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499
2 O ANIMAL E A ECONOMIA: NOVOS RUMOS

2.1 Princípio da sustentabilidade ética

Em que pese o pioneirismo da União Europeia na limitação da


atividade de produção animal, é fácil notar que as normas até ago-
ra instituídas abarcam apenas um restrito campo do bem-estar dos
animais e não cumprem minimamente o objetivo constitucional de
tratamento ético que decorre da senciência50. Regras quanto à insen-
sibilização dos animais no abate, limitações quanto às condições de
transporte e medidas relacionadas às gaiolas de bateria e baías de
vitelos afetam apenas as práticas mais cruéis na criação, mas nem de
longe garantem um nível minimamente adequado de bem-estar aos
animais. Há, assim, um consenso em torno da necessidade de incre-
mento da proteção.

Nada obstante, em razão das implicações no âmbito da economia e


na circulação de produtos, a efetiva evolução da tutela do animal nesta
área vai exigir a implementação de medidas que vão além das tradi-
cionais regras de comando e controle, a exemplo do que se vê hoje na
questão propriamente ecológica.

No campo teórico, verifica-se uma tendência moderna de extensão


do conceito de sustentabilidade para, em aproximação com os preceitos

50 Veja que a própria Resolução do Parlamento Europeu sobre a estratégia para


os anos 2016/2020, acima colacionada, em seu ponto nº 3, reconhece que a legislação
derivada não atende suficientemente ao mandamento constitucional que reconhece a
natureza sensível dos animais.

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500
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

da deep ecology51, abarcar as novas demandas de proteção dos animais,


pelo reconhecimento do valor intrínseco de todo ser sensível, para além
dos humanos52. Como se sabe, a Cimeira Rio + 20 teve como bandeira
a Economia Verde53, mas excluiu das disposições qualquer preocupação
em relação aos animais, tendo com base fundamental a ecologia rasa,
por meio de uma perspectiva estritamente antropocêntrica54. Em con-
traposição, é cada vez maior a consciência em torno da necessidade de
revisão da forma de pensar e agir do ser humano, a partir da constatação
de que a concepção antropocêntrica constitui a razão da depredação da
natureza e da perda de valores morais.

Sem adentrar a discussão sobre a personificação das realidades eco-


lógicas e/ou dos animais, o fato é que o fortalecimento desta orientação
filosófica favorece a tutela dos animais no âmbito da atividade econô-
mica. Com base na relação entre a ecologia profunda e a luta pelo re-
conhecimento dos direitos dos animais, sustenta-se, então, uma visão
mais séria e aprofundada do princípio da sustentabilidade para abarcar

51 Deep ecology é uma orientação filosófica caracterizada pela defesa do valor ine-
rente a cada ser vivo, independentemente da sua utilidade instrumental às necessidades
humanas e propõe uma restruturação radical do modo de vida contemporâneo. O termo
foi cunhado pelo filósofo norueguês Arne Naess, em 1973, em contraste com a shallow
ecology (ecologia rasa), uma forma mais moderada de ambientalismo e típica das socieda-
des contemporâneas, que se fundamenta em uma concepção utilitarista e antropocêntrica.
Mais informações em ARAÚJO, 2003, p. 245; OST, 1995, p. 181 e seguintes).
52 Essa tendência já foi incorporada pelas Constituições do Equador e da Bolívia,
em um fenômeno atualmente conhecido como novo constitucionalismo latino-americano.
A Constituição da Bolívia de 2009, em seu art. 33, reconheceu direitos para além dos huma-
nos, adotando a teoria buen vivir, como valor que pressupõe o respeito a todas as formas
de vida. No mesmo sentido, a Constituição do Equador de 2008 estabeleceu a natureza
como titular de direitos (art. 71). Para aprofundamento sobre este novo movimento, vide
Ayala (2014, p. 75 e seguintes).
53 Organização das Nações Unidas, Capítulo III da Declaração final (The future we
want), 2012.
54 Ver em Lourenço e Oliveira (2012, p. 377-378), o estudo acerca da Sustentabili-
dade; Economia Verde; Direito dos Animais; Ecologia Profunda: Algumas Considerações.

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501
uma dimensão ética55. Acresce-se ao princípio do desenvolvimento sus-
tentável, assim, um novo componente, de natureza ética e humanitária,
a partir da noção de que o desenvolvimento econômico não pode vir
acompanhado do incremento da crueldade no trato com os animais, de
forma que esses dois valores devem ser compatibilizados.

Atente-se, contudo, que, apesar de a subjetivação dos direitos cons-


tituir uma reivindicação da deep ecology, o reconhecimento da vertente
ética da sustentabilidade não implica o rompimento com a teoria bem-
-estarista, tendo em vista que apenas agrega novo fundamento para a pro-
teção dos animais na atividade econômica, mas não vai de encontro ao
entendimento dos abolicionistas, no sentido da extinção da exploração56.

A noção de sustentabilidade ética57 parte, assim, do reconhecimen-


to do valor moral inerente a cada ser, com a finalidade de mitigação do
antropocentrismo58, para alcançar um desenvolvimento sustentável (em
relação aos recursos naturais) e humanitário (em relação aos animais)59.

55 Freitas (2011, p. 60), ao discorrer sobre a dimensão ética da sustentabilidade,


pontua que a relação exemplar entre a ética e a economia pode servir de grande motor para
a enriquecida economia do bem-estar multidimensional, entendido o bem-estar como direito
fundamental, a ser vivenciado com equidade, lisura, e sem provocar sofrimento alheio.
56 Francione (2000, p. 29), por exemplo, critica a legislação de bem-estar animal
e defende que o efetivo comprometimento com o paradigm ético que implica no respeito
aos demais seres dotados de sensibilidade demanda a extinção da produção animal e não
a sua mera regulamentação.
57 Segundo o relatório produzido pela Farm Animal Welfare Committee (2011,
online, p. 21-22), sustentabilidade não envolve apenas questões ambientais, mas também
econômicas e éticas (referidos, do inglês, por 3’Es). E conclui que uma abordagem susten-
tável para a produção de alimentos deve abordar não só a segurança alimentar e a proteção
do ambiente, mas também o bem-estar animal.
58 Para uma análise mais aprofundada sobre o antropocentrismo e o biocentrismo
no âmbito do Direito dos Animais, vide Stroppa (2015, p. 119-123), Antropocentrismo x
Biocentrismo: um debate importante.
59 Ver Lourenço e Oliveira (2012), Sustentabilidade; Economia Verde; Direito dos
Animais; Ecologia Profunda: Algumas Considerações.

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502
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A inclusão da proteção dos animais dentro do conceito de sustentabi-


lidade confere uma abertura para a utilização de alguns instrumentos de
Direito do Ambiente voltados para a promoção do consumo sustentável
no âmbito da questão do bem-estar dos animais de produção.

É cediço que a Política de produção e consumo sustentável da União Eu-


ropeia (Integrated Product Policy) tem como instrumento-chave a análise do
ciclo de vida do produto, com o objetivo de avaliação do peso ambiental de
cada produto, numa concepção que abarque todas as fases de produção até
o descarte final (“do berço ao túmulo”). Com base nessa ideia de internaliza-
ção de externalidades negativas pela chamada “pegada ecológica” do produ-
to60 e a sua transposição para a questão da proteção do animal, possibilita-se
a análise do ciclo de vida dos produtos de origem animal, com a finalidade
de avaliação do custo ético de cada produto, a partir da consideração do
sofrimento animal como externalidade negativa da atividade61.

A própria intenção de criação de um rótulo europeu de bem-estar


animal vai de encontro a este entendimento, haja vista este constituir
importante instrumento de promoção do consumo sustentável e de sen-
sibilização pública, com o objetivo de cativar os consumidores para com-
portamentos éticos e responsáveis em relação aos animais.

Coerente com esta abordagem, Gaverick Matheny e Cheryl Leahy62


destacam a importância da redução do consumo de produtos de ori-

60 Para maiores desenvolvimentos sobre a Política de Produção e Consumo Susten-


táveis da União Europeia, ver Silva (2005, p. 173 e seguintes), Verde Cor de Direito: Lições de
Direito do Ambiente e Gomes (2014, p. 51 e seguintes), Introdução ao Direito do Ambiente.
61 Segundo a FAWC (2011, p. 5), o sofrimento dos animais constitui uma externa-
lidade negativa da produção animal da mesma forma que a poluição ambiental é conside-
rada uma externalidade negativa da produção industrial.
62 Cf. Matheny e Leahy (2007, p. 358), no estudo Farm-animal welfare, legisla-
tion and trade.

Ir para o índice
503
gem animal, especialmente aqueles que causam maior miséria aos se-
res explorados, e propõem tratamento semelhante àquele destinado à
experimentação científica, no que se refere ao princípio dos 3”R, pre-
visto, em âmbito europeu, no artigo 1(a), da Diretiva 2010/63/UE, do
Parlamento Europeu e do Conselho.

De fato, a adoção da técnica direcionada à redução, substituição e


refinamento não somente é adequada aos propósitos de sustentabilida-
de na produção animal como vai de encontro ao entendimento de que o
Direito Animal deve ser uma tendência progressiva63, e o estatuto ético
dos animais exige esforço constante da legislação para avançar na pro-
teção. A noção sobre sofrimento necessário, assim, não deve constituir
conceito estanque e deve progredir de acordo com a evolução moral e
o consenso social sobre a matéria. Nessa perspectiva, uma política ade-
quada no campo do setor de produção animal deve buscar a redução do
número de animais explorados, a substituição dos produtos por outros
equivalentes no mercado, especialmente do ponto de vista nutricional,
e o tratamento que proporcione o menor sofrimento possível para os
animais que continuarem a ser explorados.

2.2 Rotulagem

Um dos entraves identificados na instituição de maiores restrições le-


gais quanto aos sistemas de produção intensivos refere-se à questão da

63 Ryland e Nurse (2013, p. 111) encaram o bem-estar animal como uma ten-
dência ascendente. Segundo os autores, há um caminho intermediário entre os direitos
subjetivos do animal e a teoria do bem-estar e a proteção do animal como princípio geral
do direito europeu demanda o reconhecimento de uma busca constante pela melhoria dos
níveis de bem-estar animal.

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504
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

produtividade. A evolução da produção animal para a escala industrial foi


impulsionada pelas exigências de maximização da produtividade e a dimi-
nuição de custos, de forma que a melhoria do bem-estar animal, seja por
meio de medidas de extensificação ou limitações quanto às técnicas em
zootecnia, vai implicar diminuição da produtividade, o que representa certo
custo econômico, além de impactar no mercado pela diminuição da oferta.

Em razão dos impactos das normas de proteção dos animais na economia


e por se relacionar com a circulação de produtos ainda considerados como
de primeira necessidade, é preciso que as medidas legais restritivas venham
acompanhadas de intervenções destinadas a promover a sustentabilidade
na produção e no consumo, a fim de se alcançar uma maior proteção.

Sabe-se que o atual modelo de Administração Pública transcende o


tradicional agir agressivo, impregnado do aspecto autoritário do exer-
cício do poder, para dar lugar a novas formas de atuação administrati-
va, com a nota caracterizadora da realização da função administrativa,
como corolário da tarefa central de realização continuada e regular de
satisfação das necessidades coletivas64. O reconhecimento expresso do
bem-estar animal como valor constitucional europeu exige que a Admi-
nistração Pública conforme a sua atuação na salvaguarda e promoção
deste valor fundamental da sociedade europeia.

Essa nova estrutura de atuação administrativa é patente no domínio


do ambiente, especialmente no âmbito da atuação que se prende à mo-
derna fórmula de Economia Verde e que fundamentou a introdução de
técnicas de incentivo à adoção de métodos de funcionamento menos

64 Cf. Silva (2005, p. 174), na obra Verde Cor de Direito: Lições de Direito do Ambiente.

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505
agressivos do ponto de vista ecológico65. Ao lado dos tradicionais me-
canismos de controle – o cacete –, surgem, então, diversificados instru-
mentos de mercado, destinados a promover um nível mais elevado de
tutela do ambiente – a cenoura66.

Exemplo típico desse novo modelo é justamente o rótulo ecológi-


co, que constitui importante método de sensibilização ambiental, com
o escopo de cativar os consumidores para comportamentos inovadores
e ecologicamente relevantes. Esse instrumento apresenta duas funções
principais, centralizadas, de forma imediata, na prestação de informa-
ções aos consumidores e, em longo prazo, na formação de consciência
coletiva sobre os problemas ambientais, como corolário do objetivo de
promoção do consumo sustentável67.

Pelo sistema europeu da ecoetiqueta, atualmente disciplinado pelo


Regulamento (CE) 66, de 2010, do Parlamento Europeu e do Conselho,
a atribuição do rótulo obedece a um procedimento administrativo, me-
diante a iniciativa do operador, e tem como principal critério de atribui-
ção o desempenho ambiental do produto, de acordo com a análise de
todo o seu ciclo de vida. As condições de atribuição em concreto para
cada grupo de produtos ou serviços são decididas pelo Comitê do Rótulo
Ecológico da União Europeia (CREUE), órgão independente e de compo-

65 A respeito do surgimento dos instrumentos de mercado, como nota caracte-


rística deste novo modelo no domínio do ambiente, Antunes (2014, p. 153) pontua que
os atuais encargos que impendem sobre as empresas, por forcas de imposições de cariz
ambiental, são de tal forma elevados que conduziram à necessidade de procurar solu-
ções alternativas, aquelas que, embora preservando o ambiente, sejam economicamente
mais eficientes (cost-effective).
66 Sobre esta equação de instrumentos de controle e de incentivo no direito am-
biental, conferir Dias (2001), Que estratégia para o direito ambiental norte-americano do
século XXI: o “cacete” ou a “cenoura”?
67 Observa-se em Gomes (2014, p. 224), Introdução ao Direito do Ambiente.

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506
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

sição alargada68. Ao final, o requerente celebra um contrato por meio do


qual se vincula às condições de utilização do rótulo, notadamente à fide-
dignidade da informação prestada, à eventual revisibilidade de critérios
e ao pagamento de uma taxa anual69.

Do ponto de vista do produtor, a atratividade do rótulo ecológico


advém não somente do marketing sustentável da marca, como decor-
rência da tendência moderna de promoção dos valores ambientais,
mas de um conjunto de atuações contínuas e informais da Adminis-
tração que se seguem à celebração do contrato e têm por objetivo a
intervenção no mercado para a promoção do rótulo, por um plano de
ação desenvolvido pelos Estados-Membros e a Comissão, em coopera-
ção com os membros do Comitê70.

Transposta a questão para o plano específico do bem-estar animal,


atento às particularidades do atual modelo de exploração econômica dos
animais de produção, após intenção exteriorizada pela Comissão Euro-
peia na última estratégia para a proteção do bem-estar animal, o Parla-
mento Europeu apresentou uma proposta de resolução para a criação
de um rótulo europeu do bem-estar animal e da saúde humana, como
instrumento destinado a garantir uma produção alimentar que respeite
a condição animal desde o nascimento até o abate, a qualidade ética e
nutritiva, bem como a rastreabilidade dos produtos da pecuária71.

68 Cf. art. 5(2) do Regulamento (CE) 66/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho.


69 Cf. art. 9º e Anexo III, do Regulamento (CE) 66/2010, do Parlamento Europeu
e do Conselho.
70 Cf. art. 12º do Regulamento (CE) 66/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho.
71 Cf. texto da proposta de Resolução. Disponível em: http://www.europarl.europa.
eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+MOTION+B8-2016-0216+0+DOC+XML+V0//PT.

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507
Impende consignar, contudo, que outras formas de rotulagem já se
encontram presentes no sistema europeu de bem-estar animal. O Regu-
lamento (CE) nº 589, de 2008, da Comissão, que estabelece as regras de
execução do Regulamento (CE) nº 1.234, de 2007, do Conselho, no que
respeita às normas de comercialização de ovos, determina a obrigatorie-
dade de informação na embalagem sobre o método de criação72, em aten-
ção às regras de bem-estar animal estabelecidas na Diretiva 1999/74/CE,
adrede analisada. As embalagens deverão informar, nomeadamente, se a
produção advém de galinhas criadas ao ar livre, no solo ou em gaiolas73.

Em sentido semelhante, a Diretiva 2007/43/CE, do Conselho, relativa à


proteção dos frangos de carne, prevê o objetivo de criação de um sistema
obrigatório de rotulagem indicativo do bem-estar animal para os produtos74.

Embora não constituam propriamente a etiquetagem como modelo


de atuação administrativa destinada à intervenção no mercado para a
promoção de valores coletivos, as referidas previsões, em menor grau,
também atendem aos objetivos de informação e formação, já que cha-
mam a atenção do consumidor para os diferentes métodos de criação
e evitam as práticas de ocultação publicitária dos métodos mais cruéis,
promovendo o consumo consciente, além de auxiliar no combate de des-
vantagens concorrenciais em razão dos custos associados à implementa-
ção de medidas para favorecer o bem-estar animal.

72 Cf. art. 12(2) do Regulamento (CE) nº 589/2008.


73 Stevenson (2014, p. 12) destaca a importância da referida regulamentação, já
que, pela primeira vez, determinou-se que um produto fabricado industrialmente – ovos de
bacteria – deveria ser claramente ser identificado como tal em seu estudo Review of animal
welfare legislation in the beef, pork and poultry industries.
74 Cf. art. 5º da Diretiva 2007/43/CE, do Conselho.

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508
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Além desses modelos, tem se tornado cada vez mais comum a utiliza-
ção de rótulos designativos de bem-estar animal de iniciativa do próprio
setor privado, seja por organismos independentes ou até mesmo autoatri-
buídos. Nesse contexto, merece destaque o sistema de rotulagem britâni-
co Freedom Food, criado, em 1994, pela Sociedade Real para a Prevenção
da Crueldade contra os Animais (RSPCA), que prevê a realização de audi-
toria por órgão independente e estabelece padrões muito mais elevados e
detalhados do que a legislação, com destaque para as proibições de uso de
agulhões elétricos, cirurgia de castração de porcos, criação de galinhas po-
edeiras em gaiolas e a eliminação da debicagem75. O referido sistema vem
apresentando progressiva penetração no mercado regional e, em 2012, já
representava 35% do mercado de ovos, 29% referente à carne de porco,
bacon e presunto, tendo menos expressividade, contudo, em relação ao
frango de corte (3%) e ao gado em geral (0,39%)76.

A respeito dessas iniciativas, vale destacar que algumas grandes


empresas do setor alimentício têm tido um papel ativo no incremento
do bem-estar animal, adotando normas mais restritivas que as esta-
belecidas pela legislação, em resposta à pressão dos consumidores e
à oportunidade de mercado. O bem-estar animal passa, dessa forma,
a ser parte integrante das estratégias de responsabilidade social e am-
biental das empresas77.

75 Outro rótulo de iniciativa privada de destaque no âmbito europeu é o Label


Rouge, de origem francesa, que tem uma quota de mercado significativa na produção de
carne de frango “free-range”. Maiores desenvolvimentos sobre os sistemas de rotulagem
privados em Stevenson (2014, p. 50 e seguintes), Review of animal welfare legislation in
the beef, pork and poultry industries.
76 Fonte: Freedom food impact report 2012. Disponível em: http://www.free-
domfoodpublications.co.uk/impact_report/ImpactReport_Optmised.pdf.
77 Para informações detalhadas sobre a atuação das principais empresas de ali-
mentos na União Europeia, veja Stevenson (2014, p. 58-61), Review of animal welfare legis-
lation in the beef, pork and poultry industries.

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509
Essa atuação tem fundamental importância e constitui relevante motor
para influenciar em melhorias do bem-estar animal na produção. Segundo
David Bayvel78, a atuação dos grandes varejistas muitas vezes é mais eficiente
do que a regulamentação, porque eles podem se mover mais rápido do que
os Governos; podem cortar a subsistência de um fornecedor; e podem igno-
rar acordos comerciais internacionais. Enquanto a União Europeia tem en-
contrado dificuldades para barrar os produtos importados com baixo nível de
bem-estar animal, em razão das regras da Organização Mundial do Comércio,
os varejistas são livres para fazê-lo. Além disso, a visibilidade e a importân-
cia do nome e da imagem dos varejistas podem torná-los alvos sensíveis de
campanhas relacionadas com a proteção animal, e a utilização do bem-estar
animal, como técnica de marketing, pode levar a uma “corrida para o topo”
(race to the top), como importante instrumento de competitividade79.

Embora a melhoria do bem-estar animal importe necessariamente no


aumento de custos na produção e, consequentemente, no aumento do pre-
ço do produto, especialistas80 sugerem que esse aumento pode ser reduzido
se o campo de jogo for nivelado por regulamentações ou incentivos financei-
ros ou ainda pela ação dos grupos de varejistas e retalhistas. Contudo, parte
essencial desse processo é a diferenciação do produto final pela identifica-
ção do método de produção, por meio de uma rotulagem clara e fiável81.

78 Ver Bayvl (2005, p. 794), The Use of Animals in Agriculture and Science: Histori-
cal Context, International Considerations and Future Direction.
79 Cf. Thiermann e Badcock (2005, p. 752), Animal Welfare and International Trade.
80 Nesse sentido, Matheny e Leahy (2007, p. 346), Farm-animal welfare, legis-
lation and trade. Nome de destaque no tema, o economista britânico Mcinerney (2004,
p. 12), apurou que algumas práticas em bem-estar animal aumentariam os custos para o
consumidor em apenas 0,25%, Animal Welfare, Economics and Policy.
81 Além da rotulagem, uma das técnicas de marketing que tem se tornado muito
comum é a utilização de slogans para a identificação de produtos com alto nível de bem-
-estar animal. Alguns desses slogans se tornaram reconhecíveis e ganharam ampla visibi-
lidade, como o “free-range”, usado em produtos avícolas. Outro slogan que tem ganhado
força no Reino Unido e na Holanda e Noruega é o termo “outdoor reared”, referente à
indústria de produtos suínos (VEISSIER et al, 2008, p. 287).

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510
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Isso porque, apesar do mérito das iniciativas promovidas pelo setor


privado, a proliferação de rótulos e slogans e a utilização do bem-estar
animal, como técnica de marketing, pelas empresas sob variadas formas,
sem a intervenção do setor público, acabam por confundir o consumidor
e despertam a desconfiança em relação à credibilidade da informação82.

Em razão desses fatores, a criação do rótulo europeu de bem-estar ani-


mal terá o mérito de assegurar ao consumidor uma informação credível
sobre a forma de tratamento do animal na criação83, já que a atribuição
do rótulo deve ter como base a obediência a um rigoroso procedimento
capitaneado pela autoridade competente e sujeito a posterior controle e
fiscalização do cumprimento do contrato celebrado com o particular. Ade-
mais, a dimensão formativa é mais bem atendida em razão da atividade
administrativa informal de promoção do rótulo, pelas campanhas de sen-
sibilização, de informação e de educação dos consumidores, produtores e
demais participantes da cadeia de produção e comercialização.

Se, por um lado, pode parecer despropositado falar-se em produtos


“amigos dos animais”, quando se está em causa a morte dos seres explo-
rados, a intervenção pública no mercado por meio da rotulagem tem im-
portância não somente na promoção do consumo eticamente responsável e
sustentável, mas também como mecanismo de contrabalanço das falhas de
mercado que decorrem da livre circulação de mercadorias. Esse mesmo fa-
tor, aliás, tem dado origem a outro tipo de rótulo, como forma de identificar

82 Em relação ao rótulo ecológico, Bénalcazar (2001, p. 20-21) alerta para o risco


de marketing fraudulento e desvio do argumento ecológico através do fenômeno moder-
namente conhecido como greenwashing, ou seja, a roupagem verde utilizada unicamente
para conquistar o mercado, sem a correspondente qualidade ambiental anunciada.
83 Segundo Aragão (2011, p. 158), o primeiro e principal requisito que deve reger a
rotulagem é a credibilidade. De acordo com este princípio, o rótulo deve ser compreensível e ve-
rídico, capaz de ser comprovado pelo caráter objetivo e mensurável dos critérios de atribuição.

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511
os produtos produzidos de acordo com os padrões europeus e combater os
produtos de substituição, ponto que será mais bem desenvolvido adiante.

Em síntese, a utilização da rotulagem, especialmente na forma dis-


ciplinada para o ecolabel, atende a dois princípios fundamentais no âm-
bito da regulamentação do bem-estar dos animais de produção: a infor-
mação e a educação. No primeiro caso, além do objetivo de promoção
do bem-estar animal, como princípio autônomo da política legislativa da
União, a informação atende ao imperativo de Direito do Consumidor84,
que demanda a prestação clara de toda informação relevante e útil so-
bre o produto ofertado, a fim de que o consumidor tenha condições
de fazer uma escolha racional e eticamente responsável85. A criação do
rótulo europeu, assim, tem potencial para representar um passo impor-
tante no progresso da tutela deste valor da sociedade europeia e con-
cretiza o papel fundamental do consumidor neste processo.

A definição dos critérios de bem-estar animal para a atribuição do


rótulo será um dos pontos de maior complexidade, já que, para ter
efetividade, o sistema deve proporcionar a competitividade do produ-
to etiquetado. Consequentemente, os critérios elencados não podem
exigir altos investimentos por parte dos produtores, sob pena de enca-
recer em demasia o produto e comprometer a satisfação do mercado.
Na realização dessa difícil tarefa, importantes balizas podem ser extra-

84 Moraes (2013, p. 158-159) destaca a relação entre os sistemas do ambiente


e do consumo e fala em macrorrelação ambiental de consumo, como tese que postula o
tratamento simultâneo e recíproco entre o Direito Ambiental e o Direito do Consumidor,
tendo em vista que as situações tratadas por ambos os ramos do Direito estão imbrincadas,
o que obriga a uma formulação conjunta das hipóteses jurídicas.
85 Barros (2010, p. 263-276) destaca a fundamental importância do acesso à infor-
mação no domínio da produção privada de bens públicos e o papel do Estado na regulação
e fiscalização das ações das empresas privadas, como corolário do modelo de gestão parti-
cipativa dos recursos ambientais.

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512
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

ídas dos modelos privados bem-sucedidos, a exemplo da rotulagem


britânica alhures mencionada.

Não se pode olvidar, contudo, que o instrumento da etiquetagem


não é suficiente para promover elevado nível de bem-estar dos ani-
mais de produção, tendo em vista que é comprovadamente impossível
atender aos atuais níveis de demanda de produtos de origem animal
pelos sistemas de criação extensivos efetivamente comprometidos com
o paradigma ético de tratamento dos animais. O desiderato de educa-
ção que decorre do rótulo envolve apenas o processo de escolha do
consumidor em relação aos produtos disponíveis no mercado, mas não
atende à necessidade de diminuição da procura, como mecanismo de
equilíbrio em relação à oferta.

A educação que constitui peça central na realização da tarefa de pro-


teção do bem-estar animal, como política prioritária da União Europeia,
exige uma estratégia muito mais complexa que aquela direcionada à
educação ambiental. Se o modelo de educação para a sustentabilidade
já envolve uma reciclagem íntima e deve ser imantada pelo comprome-
timento com o desenvolvimento durável, com a recusa de conversão de
qualquer modalidade de escravidão em negócio jurídico86, a educação
que se destina ao comprometimento do paradigma ético de tutela dos
animais envolve, no campo do bem-estar dos animais de produção, uma
profunda reflexão sobre hábitos alimentares historicamente arraigados.
A mudança de atitude do consumidor no plano do ambiente, como ca-
minho inverso da transição do ser para o ter e freio do atual modelo

86 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum,


201, p. 199.

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513
de sociedade de consumo, baseada no capitalismo e na voracidade por
bens materiais87, não corresponde integralmente ao modelo de consu-
mo sustentável exigido para a promoção do bem-estar dos animais de
produção, que demanda uma alteração de comportamento muito mais
complexa e refletida em modelos culturais históricos.

Dessarte, uma política de consumo sustentável adequada para o


bem-estar animal deve buscar outros mecanismos destinados a promo-
ver a educação para o consumo eticamente responsável, por meio de
campanhas educativas com foco na redução progressiva do consumo dos
produtos de origem animal, medidas de incentivo ao consumo de outros
produtos substitutivos e outras formas de intervenção no mercado.

2.3 Instrumentos econômicos de proteção do bem-estar animal

Conforme já assentado, tal como ocorreu no domínio do ambiente – e


sem adentrar em maiores discussões sobre a relação entre as normas am-
bientais e de proteção dos animais88 –, as regras de comando e controle já
se mostraram insuficientes para satisfazer o objetivo insculpido no artigo
13º do TFUE, de forma que o recurso a instrumentos econômicos já é uma
realidade no âmbito das regras de bem-estar animal89. Esses instrumentos
visam oferecer um convite ao destinatário para que este participe da ativi-

87 Maiores informações sobre as estratégias de consumo sustentável da União


Europeia e o direito/dever de consumo sustentável em: Gomes (2014, p. 277 e seguintes),
Consumo sustentável: ter ou ser, eis a questão...
88 Para maiores desenvolvimentos sobre a referida discussão, Ramos (2009, p.
1.086-1.087), O Animal: Coisa ou Tertium Genus?
89 De forma sistemática, David Fraser (2006, p. 93-96) distingue os programas de
garantia de bem-estar animal em cinco formatos, agrupados da seguinte forma: (1) Códigos
de bem-estar não obrigatórios e diretrizes (2) Regulamentações (3) Acordos intergoverna-
mentais (4) programas de garantia de clientes corporativos e suas associações (5) progra-
mas de diferenciação do produto e rotulagem.

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514
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

dade incentivada pelo Estado, o que pode ser feito por diversas vias, como
a instituição de benefícios tributários, financeiros, patrimoniais e outros90.

Já se demonstrou, também, que as normas de proteção dos animais no


âmbito da atividade de produção são suscetíveis de provocar graves falhas
de mercado, e esta circunstância exige certa aproximação entre as ciências
do Direito e da Economia, a fim de encontrar os pontos de convergência.

Partindo da economia, verifica-se hoje uma forte tendência em se


atribuir um valor econômico ao bem-estar animal ao nível da produção.
Essa concepção é fruto do reconhecimento de que o sofrimento animal
representa um fator cada vez mais relevante para a sociedade, de forma
que o bem-estar animal passa a ser parte integrante do valor do produ-
to91. Evidente que um dos fatores que vai influenciar no valor econômico
atribuído à condição do animal na exploração é o grau de sensibilização
da população quanto à questão, em razão dos custos econômicos das
medidas, que são repassados para o consumidor final.

Na linha de raciocínio inaugurada no tópico anterior, a valoração eco-


nômica do bem-estar animal pode ainda constituir um importante instru-
mento de promoção da educação para o bem-estar animal. A partir do
raciocínio empregado aos recursos naturais92, a atribuição de valor/preço

90 AYALA, Vinícius de Araújo. Análise econômica do Direito Ambiental: uma bre-


ve introdução. In: Temas de Direito Sustentável. SANTOS JÚNIOR, Walter Santos (Coord.).
Belo Horizonte: Legal, 2010, p. 7-8.
91 Segundo Molento (2005, p. 5): “À medida que a sociedade identifica o sofri-
mento animal como um factor relevante no consumo dos produtos animais, pode-se inferir
ao BEA um valor económico, passando, em consequência, a ser parte integrante dos cálcu-
los do valor económico dos produtos de origem animal”.
92 Lundqvist e Tropp (2014, p. 232) destacam que bens naturais baratos não são
valorizados em uma sociedade de consumo e que a falta de consciência ambiental deman-
da uma valorização dos bens naturais, o que pode ocorrer através do aumento do preço do
produto, já que ele tem potencial para produzir impactos na economia, tanto em relação
aos produtores como em referência aos consumidores.

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515
ao sofrimento animal, como forma de evitar o custo zero, pode represen-
tar um mecanismo de valorização da vida animal. Apesar das discussões
relacionadas com a mercantilização de riquezas coletivas93, a valoração do
sofrimento animal, por consistir uma externalidade negativa da atividade
econômica, pode constituir um importante instrumento de promoção da
sustentabilidade e incentivo ao consumo racional de produtos de origem
animal. Essa necessidade decorre da constatação de que a efetiva pro-
moção do bem-estar dos animais de produção depende não somente da
maior procura por produtos menos agressivos, mas também da expressiva
diminuição da demanda, a fim de se adequar à diminuição da oferta.

A ideia básica é a de que, mesmo quando analisado o conflito e deci-


dido em prejuízo do bem-estar animal, essa “crueldade consentida” deve
ter um preço, como forma de valorizar o sofrimento dos animais. Assim,
fora da imposição das medidas necessárias para mitigar esse sofrimento
(ex: abate humanitário), o que for julgado como “sofrimento necessá-
rio” deve ter uma contrapartida, decorrente do aspecto de externalidade
negativa da atividade, a fim de desestimular o consumo ou ao menos
incentivar o consumo racional.

Do ponto de vista da economia, então, o bem-estar animal passa a ser


encarado sob duas perspectivas distintas: 1. Como bem público, ligado à
redução de externalidades negativas, como base conceitual para uma po-
lítica de intervenção governamental que regulamente sobre padrões mí-
nimos de bem-estar animal e mecanismos de correção de externalidades,

93 As críticas quanto à mercantilização dos bens naturais podem ser adaptadas


para se aplicar ao sofrimento animal, por envolver uma questão ética. Sobre o tema, GO-
MES (2014, p. 222), Introdução ao Direito do Ambiente.

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516
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

por meio de subsídios (externalidades positivas) ou impostos (externali-


dades negativas)94. 2. Enquanto valor econômico, decorrente dos custos
envolvidos na adoção das medidas legais relacionadas com o bem-estar
animal e do impulso da economia para uma proteção acrescida95.

A Estratégia de proteção do bem-estar animal para os anos de 2012-


2015 trouxe o slogan “todos são responsáveis”, chamando a atenção para
a importância da atuação de todos os stakeholders (Governo, produtores,
varejistas, consumidores, ONGS etc.). O último eurobarômetro realizado
apurou que 59%96 dos cidadãos europeus estão dispostos a pagar mais por
produtos amigos do bem-estar animal, e essa porcentagem é muito maior
em alguns países europeus específicos97. Abre-se, assim, a possibilidade
para que uma maior proteção seja alcançada pelo próprio mercado.

No lado oposto, o setor público desempenha importante papel, já


que o bem-estar animal constitui bem público e valor constitucional da
União Europeia. A legislação representa um piso mínimo de tutela, mas
o Poder Público não pode abdicar de outros instrumentos para incre-

94 Harvey e Hubbard (2013), Reconsidering the political economy of farm animal


welfare: an anatomy of market failure. Disponível em: http://www.sciencedirect.com/
science/article/pii/S0306919212001200.
95 BAPTISTA, Telma Maria Coelho Rocha Vicente. Análise econômica do bem-
-estar animal: contributos para sua avaliação ao nível da produção. Dissertação para a
obtenção do grau de mestre em gestão sustentável dos espaços rurais. Universidade do
Algarve. Faculdade de Engenharia de Recursos Naturais, Faro, 2009, p. 19-26.
96 Harvey e Hubbard (2013, p. 113) advertem, contudo, que essas estatísticas
devem ser utilizadas com cuidado, pois as pesquisas sobre intenções dos consumidores
muitas vezes não condizem com a realidade no ato da compra.
97 A maior porcentagem foi apurada na Suécia, onde 93% declararam que estão
dispostos a pagar mais por produtos amigos do bem-estar animal. No lado oposto, o pior
índice resultou de Portugal, onde menos de 30% declararam a disposição para pagar mais.
Eurobarometer 442. Disponível em: http://ec.europa.eu/COMMFrontOffice/PublicOpi-
nion/index.cfm/Survey/getSurveyDetail/instruments/SPECIAL/surveyKy/2096.

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517
mentar a proteção, tanto no âmbito europeu como internamente nos
Estados-Membros. A União tem seguido essa linha, buscando combi-
nar as medidas legais restritivas com instrumentos econômicos, como
subsídios e a manifesta intenção de criação de um rótulo europeu de
bem-estar animal, além de outras medidas como a prestação de infor-
mações e campanhas educativas.

O recurso a instrumentos econômicos nesse domínio, além de in-


centivar uma proteção adicional, tem como escopo a correção de fa-
lhas de mercado, já que o setor privado não é capaz de operar nesse
jogo sozinho. Esta, contudo, ainda é uma realidade muito recente, tan-
to no plano europeu como no estadual98.

Até agora, o principal instrumento econômico instituído pela União


decorre da integração do bem-estar animal na Política Agrícola Comum
(PAC), por meio de subsídios aos produtores para a realização de medi-
das de extensificação e a possibilidade de financiamento no âmbito dos
Programas de Desenvolvimento Rural99. A proteção do bem-estar animal
passa a figurar dentre os objetivos da política agrícola no âmbito euro-
peu, o que permite a realização de pagamentos diretos aos produtores
europeus, financiados pelo Fundo Europeu Agrícola de Garantia (EAGF) e
do Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (EAFRD)100.

98 No relatório produzido pela Farm Animal Welfare Committe (2011, p. 38), o re-
ferido comitê recomendou ao Governo do Reino Unido a maior implementação de medidas
adicionais, como a inclusão do bem-estar animal como critério nas contratações públicas.
99 BAPTISTA, Telma Maria Coelho Rocha Vicente. Análise econômica do bem-
-estar animal: contributos para sua avaliação ao nível da produção. Dissertação para a
obtenção do grau de mestre em gestão sustentável dos espaços rurais. Universidade do
Algarve. Faculdade de Engenharia de Recursos Naturais, Faro, 2009, p. 32.
100 Cf. art. 3(1) do Regulamento (UE) nº 1306/2013, do Parlamento Europeu e
do Conselho.

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518
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

O sistema de pagamentos diretos baseia-se no regime de pagamento


único e tem como principal objetivo o apoio ao rendimento dos agricul-
tores101. Em troca, os agricultores devem respeitar um conjunto de regras
no que concerne à segurança alimentar, proteção do ambiente e bem-
-estar animal102. Além disso, medidas de bem-estar animal podem inte-
grar programas desenvolvidos no âmbito da política de desenvolvimento
rural, por financiamento realizado pela União e gerência do programa
pelo governo nacional, no âmbito do Ministério da Agricultura.

Apesar do avanço, considerando-se que o mercado de bem-estar


animal tem características peculiares que decorrem da necessidade de
maior interação entre as políticas de produção e de consumo, a inte-
gração do bem-estar animal na política agrícola, de forma conjunta com
outros valores, como a segurança alimentar e a proteção do ambiente,
não é suficiente para atender aos propósitos de correção das falhas de
mercado e incentivo a uma proteção adicional.

Essa modalidade de instrumento econômico tem como finalidades


fornecer um incentivo à alteração de comportamentos para moldes mais
adequados ao bem-estar animal e reduzir o impacto econômico negativo
pela introdução das normas restritivas da atividade103. O subsídio centra-
lizado nesta última finalidade ainda pode ser mais explorado pela política
europeia de bem-estar animal, por meio de uma estratégia direcionada
de forma específica à produção animal.

101 Cf. Regulamentos (UE) nº 1306/2013 e nº 1307/2013, amparados nos artigos


38/44 do TFUE.
102 Fonte: http://ec.europa.eu/agriculture/cap-funding/funding-opportunities/
index_en.htm.
103 Sobre o subsídio como incentivo econômico no âmbito da política ambiental e
suas duas feições, vide Soares (2011, p. 191 e seguintes), O imposto ecológico – contributos
para o estudo dos instrumentos econômicos de defesa do ambiente.

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519
O grande desafio para uma eficiente proteção do bem-estar animal na
atividade econômica será o alcance de uma interação bem conseguida en-
tre o Estado e o mercado, por estratégias coordenadas de investigação do
funcionamento dos valores econômicos a serviço da proteção do animal. A
experiência de atuação no domínio do ambiente pode servir de importan-
te modelo para orientar a política de bem-estar animal nesta área, a fim de
evitar os mesmos erros cometidos na estratégia ambiental104.

Importante observar que um dos aspectos principais que vai determi-


nar a maior ou menor necessidade de intervenção do Estado na economia
é o grau de sensibilização pública em relação ao bem-estar animal. Em ge-
ral, nos países do norte da Europa, verifica-se alto grau de preocupação da
população sobre o tratamento em relação aos animais e, com isso, o mer-
cado encontra meios de promover o bem-estar animal de per se, repre-
sentando este um importante fator de competitividade entre as empresas.

Por outro lado, em países do sul, como ocorre em Portugal, a sen-


sibilização pública é muito menor, o que dificulta a exploração do bem-
-estar animal como uma oportunidade de mercado105. Além disso, crises
econômicas agravam o cenário, dificultando o próprio cumprimento do

104 Soares (2001, p. 98-99) analisa de forma crítica a política ambiental de interven-
ção na economia. A autora destaca que uma proteção ambiental eficiente não exige apenas
a investigação do funcionamento dos valores económicos, mas é necessário pensar tam-
bém o impacto destes valores sobre a deterioração ambiental. E conclui que o fracasso do
modelo de atuação é consequência não somente das deficiências do mercado ou das falhas
do Estado, mas da interação mal sucedida entre os dois setores. Torna-se, pois, necessário
encontrar um equilíbrio adequado entre o funcionamento do mercado e a intervenção do
Estado. Este diálogo econômico-político tem que servir de fundamento à escolha das vias
de intervenção utilizadas como suporte de um desenvolvimento sustentável.
105 Veja-se, por exemplo, o caso do mercado de ovos de galinhas criadas soltas,
que ocupa somente 5% do mercado total em Portugal, enquanto alcança mais da metade
do mercado total na Suécia e na Holanda. (MATHENY; LEAHY, 2007, p. 345).

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520
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

piso mínimo estabelecido pela legislação europeia e induzindo a procura


por produtos mais baratos. Nesse contexto, a maior parcela de respon-
sabilidade pela proteção do bem-estar animal acaba recaindo sobre o
Poder Público, que é instado a desenvolver mecanismos de correção de
falhas de mercado e incentivos econômicos para a aplicação da legisla-
ção. Não por outra razão, a União Europeia, após detectar, na última Es-
tratégia, o problema da desuniformidade na aplicação da legislação nos
Estados-Membros106, trouxe como meta o investimento em formação e
educação e o auxílio econômico a alguns Estados-Membros para o cum-
primento da legislação.

Obtempere-se que as inúmeras questões que influenciam na econo-


mia e na circulação dos produtos de origem animal tornam a temática
especialmente complexa107. David Harvey e Carmen Hubbart108 destacam
a falta de estudo aprofundado sobre as questões econômicas afetas ao
mercado de bem-estar animal e fazem uma análise crítica do atual mode-
lo de política econômica, no que se refere aos subsídios e assistência aos
agricultores, propondo, ao final, uma política de subsídio direcionada ao
consumo de produtos amigos do bem-estar animal.

De fato, considerando-se que o consumidor tem se delineado como


o principal ator neste domínio, uma política voltada diretamente para

106 Conforme recordado por Ramos (2009, p. 1.085), o nível jurídico de proteção do
animal revela, de uma certa maneira, o nível civilizacional de uma determinada sociedade.
107 No relatório Animal Welfare and Economic, o FAWC (2011, p. 01) destaca
que o bem-estar animal enseja problemas na economia tão complexos quanto aqueles
referentes à ciência.
108 HARVEY, David; HUBBARD, Carmen. Reconsidering the political economy of
farm animal welfare: an anatomy of market failure. In: Food Policy. Newcastle University/
UK. Vol. 38, 2013. p. 112-113.

Ir para o índice
521
o consumo é potencialmente mais efetiva, já que, enquanto o subsídio
direcionado ao produtor tem efeito limitado, o incentivo voltado para o
consumidor final tem capacidade para atingir todos os atuantes da ca-
deia e, com isso, mudar efetivamente as regras do jogo.

Da análise das medidas de bem-estar animal promovidas pelo setor


privado até agora, nota-se, na esteira do preconizado por David Harvey
e Carmen Hubbart109, que, mesmo nas sociedades mais atentas à ques-
tão, o mercado não é capaz de promover sozinho melhorias substanciais
de bem-estar animal, o que torna essencial a intervenção pública. Esta,
por sua vez, pode ocorrer por diferentes formas, e uma base para uma
política de intervenção no mercado pode ser extraída por meio dos me-
canismos utilizados no âmbito da política ambiental.

Nessa perspectiva, a experiência ambiental demonstra que ainda


há outros caminhos para incrementar a política de bem-estar animal da
União Europeia, como a instituição de critérios de bem-estar animal nos
contratos públicos110, na esteira do modelo previsto para o green public
procurement111; o incentivo à utilização dos sistemas financeiro e tributá-

109 HARVEY, David; HUBBARD, Carmen. Reconsidering the political economy of


farm animal welfare: an anatomy of market failure. In: Food Policy. Newcastle University/
UK. Vol. 38, 2013. p. 109.
110 Vale mencionar a iniciativa da Prefeitura de Roma, que desde 2000, só for-
nece ovos de galinhas criadas soltas nos refeitórios das escolas. WEBSTER, John A. Farm
animal welfare: the five freedoms and the free market. In The Veterinary Journal. Nº
161 (2001). Pág. 234. Disponível em: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/
S109002330090563X.
111 A penetração de critérios de contratação pública ambientalmente amigos desper-
tou formalmente com a COM (2001) 274 final, de 4 de junho. A partir de então, considerações
ambientais passaram a integrar os critérios de decisão em relação à escolha da proposta mais
vantajosa. Maiores desenvolvimentos em ESTORNINHO, Maria João. Green Public Procurement
– Por uma contratação pública sustentável. 2012, p. 9 e ss. Disponível em: www.icjp.pt.

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522
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

rio112, por meio de subsídios, subvenções, taxas e impostos; a criação de


fundos específicos para a proteção do bem-estar animal, dentre outros.

Que fique claro, contudo, que a atuação do Estado no âmbito da eco-


nomia não pode substituir a legislação impositiva. O Poder Público tem
papel fundamental na proteção do animal, e isso não pode ser feito so-
mente pelo mercado113, de forma que a evolução desses instrumentos
não deve impedir o avanço da legislação, com a instituição de maiores
limites e outras medidas para promover o bem-estar animal, até porque
esta ainda tem muito que avançar.

2.4 Implicações no comércio internacional e no mercado interno

Atualmente, uma das maiores dificuldades que a União Europeia tem


encontrado para progredir na questão do bem-estar animal refere-se ao
problema de substituição no comércio, decorrente da importação de
produtos provenientes de países que não observam os padrões euro-
peus. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura
e Alimentação114, o comércio internacional de carnes representa cerca
de 10% do total da produção e esta porcentagem tende a continuar cres-
cendo nos próximos anos. O comércio internacional representa, assim,

112 Referindo-se à realidade brasileira, Mazzochi e Peres (2010, p. 152-160), desta-


cam a importância do uso do sistema tributário na proteção dos animais, através de tribu-
tos, subvenções e incentivos para induzir as atividades econômicas a produzirem produtos
e serviços adequados ao bem-estar animal. Os tributos podem constituir um instrumento
de regulação indireta, através da extrafiscalidade tributária. Ao majorar a tributação para
determinado produto está dificultando sua produção e consumo e ao mesmo tempo in-
centivando atividades e bens menos agressivos aos animais, funcionando, assim, o tributo
como indutor de práticas de proteção aos animais, da mesma forma que os incentivos
fiscais, como forma de tributação passiva.
113 Nesse sentido, é, também, o relatório do Farm Animal Welfare Committe (2011, p. 01).
114 Perspectivas Agrícolas 2014/2023. Disponível em: http://www.fao.org/3/a-i3818s.pdf.

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523
um problema especial para a legislação de bem-estar animal, e esta pre-
ocupação também se aplica ao comércio interno nos Estados-Membros,
em razão dos padrões normativos mais elevados em alguns países.

Sabe-se que o sistema de comércio internacional da Organização Mun-


dial do Comércio foi projetado para erradicar as barreiras de circulação de
produtos entre os países pela criação e execução das regras de acesso ao
mercado. A pedra angular da normativa é o princípio da não discriminação
no comércio, que se aplica aos métodos de produção. O artigo XX do Acor-
do Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) traz um rol de exceções, permi-
tindo algumas restrições à importação, sem incluir, de forma expressa, o
bem-estar animal como fundamento para a imposição de barreira.

O referido dispositivo permite, contudo, a restrição no comércio com


fundamento na proteção da saúde animal. Esta norma ainda não foi pos-
ta em pauta no painel de disputas da Organização Mundial do Comércio,
no que se refere à inclusão do bem-estar animal. Apesar da distinção
entre os conceitos, a consideração do bem-estar animal na referida regra
tem ganhado força pela atuação da Organização Internacional da Saúde
Animal (OIE). O referido órgão foi designado pela Organização Mundial
do Comércio como órgão de referência científica para a saúde animal e,
nos últimos anos, tem desenvolvido padrões internacionais em matéria
de bem-estar animal, deixando em aberto a possibilidade da utilização
das referidas normas como fundamento para barreiras comerciais115.

Fracassada a tentativa de impor restrições ao comércio internacional,


a diferenciação entre produtos representa o principal mecanismo para
combater os produtos de substituição, o que reforça a importância da

115 BAYVEL, David et al. Animal Welfare: Global Issues, Trends, and Challenges. In:
Scientific and Technical Review. v. 24, OIE. Paris, 2005. p. 796.

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524
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

utilização da técnica da rotulagem. Esse mecanismo, porém, não é sufi-


ciente para equilibrar as forças do mercado, razão pela qual se faz necessá-
rio o recurso a outros instrumentos destinados à equalização de preços, a
exemplo do imposto de importação preferencial para as importações que
satisfazem os padrões europeus de bem-estar animal ou dos subsídios rea-
lizados no âmbito de pagamentos defendidos como “Caixa Verde”116. Parte
importante nesse processo é também a consideração do bem-estar animal
no âmbito dos acordos bilaterais com parceiros comerciais.

A União Europeia tem seguido essa linha, buscando atuar perante


a Organização Mundial do Comércio para incluir regras de bem-estar
animal nas normas de comércio internacional117, além de considerar a
questão no âmbito dos acordos comerciais118. Enquanto a Organização
Mundial do Comércio não clarificar o dissídio, contudo, a União terá de
continuar empreendendo esforços para impedir que os produtos de
substituição comprometam os padrões europeus de bem-estar animal e,
neste combate, as iniciativas do setor privado e a atuação dos consumi-
dores desempenharão papel fundamental.

116 MATHENY, Gaverick; LEAHY, Cheryl. Farm-animal welfare, legislation and trade.
In: Law and Contemporary Problems. v. 70. Universidade de Maryland, EUA, 2007. p. 352.
117 Em junho de 2000, a União apresentou uma proposta para a Comissão de Agri-
cultura da Organização Mundial do Comércio para a inclusão do bem-estar animal nas me-
dias restritivas do comércio internacional. A proposta trouxe três vias possíveis para a solu-
ção da celeuma: através da criação de um novo acordo multilateral sobre bem-estar animal,
por meio de um sistema de rotulagem para distinguir produtos nacionais e importados ou
através de um regime de compensação aos agricultores europeus para atender os custos
adicionais da produção decorrentes das medidas legais. Contudo, a proposta não foi bem
recebida pelos demais membros da OMC e a questão ainda permanece em aberto. Fonte:
http://ec.europa.eu/transparency/regdoc/rep/1/2002/PT/1-2002-626-PT-F1-1.Pdf.
118 Em janeiro de 2013, a União Europeia e o Brasil celebraram um acordo de co-
operação técnica em matéria de bem-estar animal, para reduzir as tensões quanto aos
diferentes padrões de bem-estar animal e o comércio de produtos. Fonte: http://www.
agricultura.gov.br/comunicacao/noticias/2013/01/brasil-e-uniao-europeia-firmam-acor-
do-sobre-bem-estar-animal.

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525
Importa destacar que o mercado de exportação europeu tem repercuti-
do nos níveis de bem-estar animal de diversos países119, retardando a ado-
ção dos sistemas de produção intensivos nos países em desenvolvimento e
influenciando a alteração da legislação em nações parceiras comerciais120.
Esse efeito é de suma importância, especialmente num contexto em que a
demanda por produtos de origem animal tem crescido de forma constante
e substancial nos países em desenvolvimento121, impulsionando a intensi-
ficação da produção e a consequente adoção dos métodos mais cruéis, e
obstaculizando o avanço da legislação de proteção dos animais de criação122.

No que se refere ao mercado interno, também se verificam proble-


mas de substituição no comércio, em razão de normas mais elevadas em
alguns Estados-Membros. O artigo 114 do Tratado de Funcionamento da
União Europeia previu o objetivo de aproximação das leis internas para
evitar distorções no comércio interestadual, mas o entendimento majo-
ritário da Corte de Justiça da União Europeia é no sentido da ausência de
competência da União para regular o mercado interno123.

119 Webster (2001, p. 236) destaca que, independentemente das incertezas do


sistema de regras da OMC, o acesso aos mercados internacionais pode constituir motivação
para a adesão aos padrões internacionais, especialmente aqueles definidos pela OIE.
120 MATHENY, Gaverick; LEAHY, Cheryl. Farm-animal welfare, legislation and trade.
In: Law and Contemporary Problems. v. 70. Universidade de Maryland, EUA, 2007. p. 353.
121 De acordo com o relatório “Perspectivas Agrícolas 2012/2021” da Organização
das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), o consumo de carnes nos países
em desenvolvimento aumentará para capturar 82% do consumo global no período projeta-
do, com destaque para os países da Ásia e da América Latina.
122 Em razão deste cenário, recentemente, os principais organismos financeiros
internacionais, a exemplo do Banco Mundial, passaram a incorporar a preocupação com
o bem-estar animal em suas regras. Para mais informações, STEVENSON, Peter. Review
of animal welfare legislation in the beef, pork and poultry industries. Organização das
Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Roma, 2014. p. 46-47.
123 Ryland e Nurse (2013, p. 113) ressaltam, contudo, que a modificação do Tra-
tado de Lisboa, no que se refere à inclusão do art. 13, tem potencial para influenciar nas
regras do mercado interno e na interpretação da CJUE, podendo legitimar futuras conside-
rações do bem-estar animal nas regras de comércio entre os Estados-Membros.

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526
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Para contornar o problema, a Suécia, que tem normas mais rigorosas


sobre bem-estar animal e uma população extremamente atenta à ques-
tão, adotou o rótulo Swedish Meats para identificar os produtos nacio-
nais e permitir a escolha pelos consumidores, evitando, assim, os proble-
mas de substituição. A Noruega tem um cenário parecido, mas o impacto
foi menor por apresentar uma economia fechada, onde as importações
levam tarifas pesadas, o que acabou por amenizar o problema124.

Em resumo, além dos instrumentos de mercado e demais técnicas


oriundas da política econômica voltadas para a produção e consumo sus-
tentáveis, a cooperação internacional e a adoção de uma política externa
comprometida com o bem-estar animal serão fundamentais para a evo-
lução do sistema europeu de proteção dos animais de produção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proteção jurídica do animal é um dos temas de maior destaque no


cenário jurídico atual, e o debate tende a se intensificar nos próximos anos,
provocando mudanças nos sistemas jurídicos em todos os níveis. Esse pro-
cesso evolutivo não pode descurar do seu maior pilar, o princípio da sen-
ciência, que, no âmbito europeu, encontra guarida expressa no artigo 13º
do Tratado de Funcionamento da União Europeia, como corolário da insti-
tuição do bem-estar animal como valor constitucional da União Europeia.

O reconhecimento dos animais como seres sensíveis no ordenamen-


to europeu originário conforma o direito derivado na busca de um trata-

124 VEISSIER, Isabelle et al. European approaches to ensure good animal welfare.
In: Animal Behaviour Science. Nº 113, 2008. p. 288.

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527
mento equânime entre todos os seres dotados de sensibilidade, a partir
da concepção de que toda vida animal tem igual valor e merece igual
consideração e este princípio deve ser preterido apenas em situações
excepcionais, na esteira do princípio da proporcionalidade, quando em
conflito com outros valores com a mesma dignidade constitucional.

Nesse sentido, é premente a necessidade de maior atenção aos ani-


mais de produção, sob pena de o Direito dos Animais tomar um caminho
perigoso. Não se pode conceber um sistema coerente e legítimo que
destina forte proteção a algumas espécies, notadamente aos animais de
companhia, enquanto permite as maiores atrocidades na exploração dos
animais de criação, já que todos são seres sensíveis, e o consumo huma-
no não constitui fundamento bastante para tratamentos tão díspares125.

A legislação europeia de proteção dos animais de criação, apesar de


ser referência mundial, ainda não é compatível com o paradigma ético,
já que afeta apenas as práticas mais cruéis na produção. A sua evolução,
contudo, depende do desenvolvimento de instrumentos econômicos e
de mercado, em razão das tensões entre o bem-estar animal e a econo-
mia, por meio de um espírito de responsabilidade compartilhada entre
todos os atores da cadeia de produção e consumo. A componente eco-
nômica assume, assim, importância decisiva na elaboração e consecução
das políticas de bem-estar animal.

125 De forma semelhante, Gomes (2014, p. 55-56) ressalta que o reconhecimento


de direitos subjetivos sem a completa extinção das formas de exploração é um caminho pe-
rigoso porque “[...] se admitirmos a personificação, mas continuarmos a praticar violência
sobre os animais – comendo-os; fazendo experiências com eles; usando a sua pele como
matéria-prima para vestuário -, então o mesmo princípio de instrumentalização valeria re-
lativamente às pessoas [...]”.

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528
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A vertente ética do princípio da sustentabilidade fundamenta, e a


experiência no domínio do ambiente indica o caminho a seguir para o
incremento da proteção dos animais de criação. No âmbito da sustenta-
bilidade na produção, o custo ético envolvido na atividade, como corolá-
rio da consideração do sofrimento animal como externalidade negativa
da atividade, fundamenta a intervenção pública para onerar as práticas
mais agressivas e incentivar a adoção de sistemas que garantam maiores
padrões de bem-estar animal.

Nesse trilhar, a informação e a educação constituem as bases dos ins-


trumentos e da estratégia administrativa encampada. Se o sofrimento
animal constitui valor de fundamental relevância da sociedade europeia,
então o consumidor deve receber toda informação sobre os métodos
de produção e os níveis de bem-estar animal em relação aos produtos
disponíveis no mercado, por meio de um mecanismo dotado de clareza
e fiabilidade. O Direito Europeu já resguardou o direito a saber pela insti-
tuição da rotulagem obrigatória para a produção de ovos de galinhas po-
edeiras, mas é preciso que o sistema avance para estabelecer métodos
de informação das demais áreas de produção.

Além da rotulagem obrigatória, a criação do rótulo europeu de bem-


-estar animal, como instrumento voluntário de intervenção no mercado,
será uma importante arma da política europeia de produção e consumo
sustentáveis, por atender às dimensões formativa e informativa e con-
tribuir para a correção das falhas de mercado decorrentes dos custos
associados à implementação das medidas legais. Este último fator exige,
contudo, a complementação da estratégia de bem-estar animal por ins-
trumentos econômicos.

Nesse domínio, a utilização do subsídio já é uma realidade no sistema


europeu, em razão da integração do bem-estar animal na Política Agríco-

Ir para o índice
529
la Comum e do consequente auxílio aos produtores por meio do esque-
ma de pagamentos diretos. Entretanto, a intervenção na economia ainda
tem outros caminhos a seguir, pelos subsídios direcionados ao consumo
e a utilização de outros modelos oriundos do Direito do Ambiente, como
o green public procurement e as formas de incentivo à utilização dos sis-
temas tributário e financeiro.

O combate aos produtos de substituição ainda exige forte estraté-


gia de cooperação internacional e adoção de uma política externa com-
prometida com o bem-estar animal, a fim de favorecer a circulação e o
consumo dos produtos produzidos de acordo com os padrões europeus,
estratégia que já vem sido seguida pela União Europeia.

A implementação de um modelo de produção e consumo efetiva-


mente comprometidos com o estatuto ético dos seres dotados de sensi-
bilidade e a concepção do Direito Animal como uma tendência progres-
siva dependem, além da utilização dos mecanismos de intervenção na
economia, da consagração do princípio da educação para o respeito da
vida animal, como um dos pilares de todo o sistema jurídico do animal.

Na esteira do modelo de educação ambiental, a educação para o tra-


tamento ético dos animais pode ser buscada pela implementação de uma
legislação voltada à educação formal e informal, por um sistema direciona-
do à conscientização pública, iniciado desde as bases do sistema educacio-
nal e complementado por campanhas educativas e estratégias específicas
para cada setor. Aplicada à produção animal, a educação deve visar ao am-
plo conhecimento sobre todos os métodos de exploração aplicados pela
indústria, como forma de combate ao cenário de ignorância e às técnicas
de ocultação. No domínio da produção animal, a informação constitui o

Ir para o índice
530
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

braço direito da educação, já que há concepção geral de que o consumo


diminuiria de forma considerável se houvesse real conhecimento e percep-
ção pública sobre os métodos empregados na produção.

Um modelo de consumo sustentável de produtos de origem animal


não prescinde, ainda, de campanhas educativas direcionadas de forma
específica à redução do consumo, como pressuposto indispensável para
o avanço da legislação, a fim de validar sistemas efetivamente compro-
metidos com o bem-estar animal.

Se hoje ainda é inconcebível se pensar num sistema jurídico que ga-


ranta a todos os seres sensíveis a proteção do seu mais básico interesse,
que é a manutenção da vida, o direito deve ir encontrando caminhos
para expandir o campo de proteção e resguardar o valor constitucional
europeu consubstanciado no bem-estar animal. Enquanto os animais
continuarem a ser utilizados como alimento, um sistema de produção
ideal é aquele em que estes têm o máximo controle sobre suas próprias
vidas. Esta, contudo, ainda é uma realidade muito distante e ainda há um
longo caminho a percorrer.

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DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Globalização, Estado Constitucional


Cooperativo e meio ambiente
Globalization, Constitutional Cooperative
State and environment

ERNANI CONTIPELLI

RESUMO

O presente artigo tem por finalidade analisar o Estado Constitucio-


nal Cooperativo como modelo para implementação de uma governança
global ambiental no contexto do mundo globalizado. Inicialmente, será
compreendida a relação entre história, valores e Constituição, para, em
seguida, discutir-se a complexidade do processo de globalização e as
questões envolvendo economia, meio ambiente e desenvolvimento sus-
tentável. Por fim, apresenta-se a ordem internacional contemporânea e
seus fatores de complexidade (globalização, multipolaridade e interde-
pendência, propondo o Estado Constitucional Cooperativo como para-
digma de governança ambiental e desenvolvimento sustentável.

Palavras-chave: Globalização. Estado Constitucional Cooperativo.


Desenvolvimento Sustentável. Meio Ambiente.

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541
ABSTRACT

The present article aims to analyze the Cooperative Constitutional


State as a model for the implementation of the global environmental
governance in the context of the globalized world. Initially, we will com-
prehend the relation among history, values and Constitution in order to
discuss the complexity of the globalization’s process, specially, in what
concerns to the question involving economy, environment and sustain-
able development. Finally, we will present the contemporary internation-
al order and its main factors of complexity (globalization, multipolarity
and interdependence), proposing the Cooperative Constitutional State as
a paradigm of environmental governance and sustainable development.

Keywords: Globalization. Cooperative Constitutional State. Sustain-


able Development. Environment.

INTRODUÇÃO

A definição dos valores que orientam o modo de ser das instituições


que buscam definir as pautas comportamentais sociais sofre impreteri-
velmente a influência do contexto histórico em que se manifesta. Em tal
sentido, os paradigmas de estruturação do Estado-Nação acabam por
receber o impacto do processo de globalização e das alterações por ele
implementada nas relações de poder, para determinar a ineficiência do
modelo estatal clássico diante dos novos e complexos problemas que
afetam a sociedade transcendendo as fronteiras nacionais, que possuem
escala planetária, exigindo formas de cooperação cada vez mais aprofun-
dadas no âmbito internacional.

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542
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Nesse contexto, encontra-se situada a proposta de construção do Es-


tado Constitucional Cooperativo, que tem por finalidade promover um
diálogo estreito entre ordem nacional e internacional, para atender aos
pressupostos de multipolaridade e interdependência que se apresentam
no conteúdo das relações de poder contemporâneas próprias de um
mundo globalizado. Acrescente-se, como fator de complexidade, que,
entre os mencionados problemas de escala planetária que devem ser
enfrentados pelo Estado, situa-se como ponto nuclear a temática am-
biental, considerando-se o desmensurado crescimento econômico e o
consumo intensivo, que colocam em risco a própria existência da espécie
humana, ao promover uma utilização irracional dos recursos naturais.

O presente artigo tem como finalidade apresentar o Estado Constitu-


cional Cooperativo como modelo ajustado ao enfretamento dos proble-
mas ambientais que atingem a sociedade mundial, ao propor um siste-
ma de governança cooperativa entre nações, para atender às exigências
próprias do processo de globalização e promover um sistema global de
desenvolvimento sustentável, em sintonia com valores de conteúdo cos-
mopolitas, como o caso dos princípios firmados pelos Objetivos do De-
senvolvimento Sustentável (ODS).

Portanto, a primeira parte será dedicada à compreensão da Consti-


tuição como um conjunto de valores que são construídos em sintonia
com o contexto histórico. Posteriormente, estudar-se-á o desenrolar
do processo de globalização, fazendo referência à relação entre eco-
nomia e meio ambiente, para discutir a questão do desenvolvimento
sustentável. Na terceira e última parte, o Estado Constitucional Coope-
rativo será apresentado como paradigma para a determinação de um
modelo de governança ambiental que satisfaça as complexas exigên-
cias do processo de globalização.

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543
1 CONSTITUIÇÃO E SEUS VALORES

Entender o conceito de Constituição significa definir sua relação com a


história. Nesses termos, a Constituição resulta das transformações de fato
ocorrentes na sociedade, vinculadas a diferentes circunstâncias de caráter
econômico, político, entre outros, as quais, dentro de coordenadas de espa-
ço e tempo, geram efeitos no mundo jurídico para determinar novas pers-
pectivas institucionais para melhor compreensão do Estado e da sociedade.

Assim, os conteúdos que compõem a Constituição se encontram ple-


namente inseridos na história, influenciados por forças sociais que atu-
aram ativamente na estruturação jurídica do Estado, fomentando suas
metas e valores num conjunto de disposições normativas. Em tal sentido,
Gustavo Zagrebelsky pondera que

As Constituições de nosso tempo miram ao futuro tendo


firma o passado, é dizer, o patrimônio da experiência his-
tórico-constitucional que querem salvaguardar e enrique-
cer. Inclusive se pode dizer: passado e futuro se ligam em
uma única linha e, como os valores do passado orientam
a busca do futuro, assim também as exigências do futu-
ro obrigam a uma continua pontualização do patrimônio
constitucional do passado e, portanto, a uma persistente
redefiniçao dos princípios de convivência constitucional1.

Portanto, a dinâmica de interpretação constitucional é a de integrar


a complexidade da vida social, observando as concepções históricas que
influenciam a determinação dos fatores reais de poder e atuam na com-

1 ZAGREBELSKY, Gustavo. Historia y Constitución. Madrid: Trotta, 2005, p. 91.

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544
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

posição dos valores e do perfil de um Texto Constitucional. A Constituição


deve ser compreendida, então, como um produto da história, em que de-
terminados valores são alçados ao plano jurídico-normativo para deter-
minar prospectivamente as pautas comportamentais de uma sociedade
em determinadas coordenadas espaço-temporais.

Um exemplo contundente dessa relação entre história e Constituição


pode ser constatado na evolução dos valores constitucionais que funda-
mentam as distintas concepções de direitos humanos. No modelo de Esta-
do Liberal (ou de Direito), pode-se identificar a liberdade como foco temáti-
co dos direitos humanos de primeira geração, para privilegiar o caráter não
intervencionista do poder, como forma de reação ao Estado Absolutista, e
a proteção incondicional ao direito de propriedade; já no modelo de Esta-
do Social (ou de Bem-Estar Social), a igualdade assume o papel de pauta
axiológica dirigente dos direitos humanos de segunda geração, que exigem
atuação positiva do poder na correção dos desajustes sociais para propiciar
condições dignas de existência a todos os membros das comunidades.

Diante de tais considerações, verificou-se que a Constituição conden-


sa em suas dobras reflexos históricos para instrumentalizar os fatores
sociais que concorreram para a formação de uma ideia de Estado e que
propõem um modelo de vida a ser buscado por determinada sociedade e
que, simultaneamente, possibilitam o desenvolvimento contínuo de suas
normas por meio de fontes de reforma e interpretação do próprio docu-
mento jurídico constitucional2.

Desse modo, o Texto Constitucional se insere na dinâmica das re-


lações sociais, buscando um incessante processo de legitimação que

2 CONTIPELLI, Ernani. Teoría de la Constitución y bases de la institucionalidad.


Santiago: RIL, 2015, p. 17.

Ir para o índice
545
pretende abrir um canal de comunicação entre normas jurídicas e senti-
mento público de justiça (consciência coletiva comum), para definição do
conteúdo semântico de seus valores.

Esse processo de significação pressupõe a interação entre dois planos


complementares formados pela legitimação jurídica, que representa a
institucionalização das disposições normativas e seu canal de alimenta-
ção, correspondente ao plano da legitimação democrática, que atribui
confiança e eficácia às decisões de poder, ao gerar o contato com o senti-
mento público de justiça (interpretação dinâmica e prospectiva).

Com a intensificação do processo de globalização, a dinâmica de sus-


tentação constitucional, marcada pela contínua interação entre legitima-
ção jurídica e legitimação democrática, recebe fatores de complexidade,
especialmente pela conscientização da existência de problemas comuns
em âmbito mundial, gerando maior interdependência entre Estados e
cidadãos, ademais de uma evidente necessidade de promoção de formas
de desenvolvimento sustentável orientadas à proteção do meio ambien-
te, atingido pelo inconsequente sistema econômico e de consumo que
domina o modelo de vida de nossa sociedade.

2 GLOBALIZAÇÃO, DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E MEIO AMBIENTE

Pode-se estabelecer como marco temporal para o estudo do atual


processo de globalização o fim da segunda guerra mundial, momento em
que foram criadas instituições internacionais (União das Nações Unidas,
1945; Fundo Monetário Internacional, 1945, e Banco Mundial, 1944),
para solução de problemas políticos, econômicos e de desenvolvimento
que atuam em dimensões planetárias, ainda que a interconexão entre

Ir para o índice
546
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

sistema internacional e nacional em tal momento não parecia preocupar-


-se em determinar uma verdadeira cooperação global, e sim atender aos
interesses das grandes potências ocidentais.

Importante lembrar que, em tal período, a Europa se encontrava em


ruínas, ocorrendo um deslocamento dos centros de poder, que passa a se
caracterizar pela bipolaridade: de um lado, Estados Unidos, dotado de gran-
de poder limitar e líder do mundo capitalista; doutro, União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, que propõem um modelo socioeconômico fundado no
socialismo, sendo que as relações entre as duas potências mundiais se de-
senvolviam pela denominada “guerra fria” (tensão sem conflito).

Desde a perspectiva jurídica, esse momento é marcado pela elabora-


ção da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), texto normativo
compreendido como uma espécie de Constituição, ou melhor, lei funda-
mental para todo sistema internacional de direitos humanos, a qual abre
espaço para o estabelecimento de mecanismos que permitem um diálogo
entre ordem internacional e interna, com acertado enfoque em temas de
direitos humanos, em sintonia com as exigências próprias de um mundo
que começava a se tornar mais interdependente e globalizado3.

Do ponto de vista econômico, até 1973, o mundo experimentou um


processo de crescimento e restabelecimento de fluxos de capitais priva-
dos, interrompidos durante as grandes guerras, causadas pela abertura e

3 A importância da Declaração, de 1948, também deve ser compreendida desde


a perspectiva da cidadania e sua cosmopolitização, porque tal documento possibilitou a
criação de um novo tipo de cidadão distinto daquele pertencente a um Estado concre-
to, que possui suas exigências dirigidas a um ideal de Estado universal. Assim, à cidada-
nia derivada da relação de pertinência a um Estado, que não resulta anulada, deve ser
adicionada uma nova cidadania de carácter cosmopolita, as quais se apresentam como
compatíveis e complementares (FERNÁNDEZ GARCÍA, Eusébio. Valores Constitucionales y
Derecho. Madrid: Dykinson, 2009, p. 124).

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547
aumento da cooperação internacional e pela liberalização do comércio. Em
tal período, conhecido como “época de ouro”, verificou-se um desenvolvi-
mento de áreas mais atrasadas do Planeta (Ásia, África e América Latina),
assim como das regiões e nações mais castigadas pela guerra (Europa e
Japão), ademais da consolidação da leadership econômica dos Estados
Unidos, sobretudo como efeitos da adoção do Plano Marshall (1947).

Paralelamente ao elevado grau de crescimento econômico mundial,


começa a chamar atenção o tema relacionado com o meio ambiente e
sua proteção, especialmente no que diz respeito ao uso indiscriminado
dos recursos naturais do Planeta, por meio da exploração econômica,
suas limitações e seus efeitos sociais e a necessidade de serem pensa-
das formas de desenvolvimento sustentável para conter o modelo de
produção e consumo intensivos4.

Entre os primeiros debates contemporâneos sobre o tema, destaca-


-se o emblemático artigo de Garret Hardin, em 1968, intitulado A Tragé-
dia dos Comuns, o qual, a partir da ideia de que o ser humano pertence a
um sistema que o estimula a ter ganhos ilimitados num mundo limitado,
tratava da sobre-exploração dos recursos naturais e do excesso de conta-
minação associados ao crescimento da população humana como fatores
que poderiam levar nossa sociedade à ruína. De acordo com Hardin, a

4 Bauman estabelece o pós Segunda Guerra Mundial como marco temporal ini-
cial do consumismo (ou revolução consumista), momento em que este passa a determinar
o próprio sentido da existência humana e fator de condução da vida social: “Pode-se dizer
que o ‘consumismo’ é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades,
desejos e anseio humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer, ‘neutros quanto ao
regime’, transformando-os na principal força propulsora e operativa da sociedade, uma
força que coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação sociais, além
da formação de indivíduos humanos, desempenhando ao mesmo tempo um papel impor-
tante nos processos de auto-identificação individual e de grupo, assim como na seleção
e execução de politicas de vida individuais” (BAUMAN, Zigmunt. Vida para o consumo: a
transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 48).

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548
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

melhor opção para solucionar o problema estaria na conversão dos re-


cursos comuns em propriedade privada para seu melhor controle pela
adoção de medidas coercitivas e fiscais mutuamente acordados5.

Sequencialmente, em 1972, a Primeira Conferência das Nações Unidas


sobre Meio Ambiente, também conhecida como Conferência de Estocolmo
(nome da localidade em que foi realizada), resultou numa Declaração de 7
pontos e uma Resolução de 26 princípios que proclamam a necessidade de
uma perspectiva global sobre a preservação e melhora do meio ambien-
te em sintonia com a ideia de dignidade humana, tornando-se um marco
no desenvolvimento de políticas internacionais sobre meio ambiente, ao
servir como fator de promoção do conceito de desenvolvimento sustentá-
vel e do próprio processo de institucionalização de temas ambientais, até
mesmo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA),
mediante a Resolução nº 2.997, de 15 de dezembro de 19726.

Durante o início da década de 80, a “época de ouro” atravessa uma grave


crise, especialmente pelos movimentos de contestação do Estado Social e
do déficit público por ele provocado, colocando em choque a ideia de que
as finanças estatais seriam suficientes para atender às demandas sociais, o

5 HARDIN, G. The Tragedy of Commons. Science, v. 162, p. 1243-1248, American


Association for the Advancement of Science, 1968. Disponível em: http://science.science-
mag.org/content/162/3859/1243.full. Acesso em: 26 fev. 2018
6 Essas preocupações podem ser constatadas no conteúdo do primeiro prin-
cípio da Resolução (também denominada “Declaração de Estocolmo”), em que “O ho-
mem tem o direito fundamental à liberdade, igualdade e condições adequadas de vida
digna e gozar de bem-estar, e tem a solene obrigação de proteger e melhorar o meio
ambiente para as gerações presentes e futuras”. Sobre o tema, Mayara Ferrari Longuini
afirma que “A partir dessa Declaração, cujo primeiro princípio já enfatizava a impor-
tância da proteção do meio ambiente para a presente e futuras gerações, iniciou-se o
processo de progressiva institucionalização do debate em torno da questão ambiental
no mundo” (LONGUINI, Mayara Ferrari. A Atuação do Estado como Corretor e Condutor
na Proteção do Meio Ambiente. Curitiba: CRV, 2016, p. 24).

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549
que acaba por promover resgates liberais pelo sistema econômico e político
conhecido como neoliberalismo, que se instala em importantes potências
mundiais, entre as quais se destacam Inglaterra, com o governo Thatcher, e
EUA, com o republicano Ronald Reagan, quando se inicia um processo sis-
temático de transformação da superestrutura capitalista mundial, dirigido
a compatibilizá-la com a transnacionalização de sua base econômica, para
promover maior concentração da propriedade e da produção7.

Nesse mesmo período, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente


e Desenvolvimento, criada pela Assembleia Geral das Nações Unidas,
para reexaminar, estudar e propor novas formas de cooperação em
temas ambientais, publicou, em 1987, seu informe final denominado
“Nosso Futuro Comum” também conhecido como Relatório Bundtland,
o qual apresenta a definição de desenvolvimento sustentável como “o
desenvolvimento que satisfaz as necessidades da geração presente
sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazer
suas próprias necessidades”.

De acordo com tal definição, o conceito de desenvolvimento sus-


tentável refere-se a um processo de estudo e adaptação que engloba a
exigência de satisfação das necessidades essenciais das pessoas em con-
dições de hipossuficiência e o reconhecimento de que a capacidade dos
recursos naturais para satisfazê-las é limitada.

Portanto, para alcançar o objetivo do desenvolvimento sustentável,


é preciso modificar as estratégias nacionais e internacionais com o fim
de revitalizar o crescimento econômico; modificar a qualidade deste

7 REGALADO, Roberto. El Fin de la Bipolaridad. México: Ocean Sur, 2009, p. 21.

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550
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

para reduzir o consumo de recursos naturais e energia e torná-lo mais


equitativo; satisfazer as necessidades humanas essenciais de trabalho,
alimentos, energia, água e higiene; assegurar um nível de população
sustentável; conservar e acrescentar recursos naturais da Terra; reo-
rientar a tecnologia para que ajude nesses objetivos e se reduzam os
riscos derivados de seu uso; e ter em conta a economia e o meio am-
biente na adoção de decisões8.

Contrastando com os movimentos ocorrentes na esfera internacio-


nal, orientados à institucionalização e ao despertar da consciência da so-
ciedade para importância do desenvolvimento sustentável e da proteção
ao meio ambiente, nos anos 90, os rumos da economia mundial passam
a ser ditados cada vez mais por um reduzido grupo de empresas gigan-
tescas e bancos com atuação em âmbito global, fomentando o terreno
propício para propagação do neoliberalismo, uma vez que tal sistema se
compatibiliza com interesses de tais corporações, ao defender a espon-
taneidade das condições de mercado, condenando qualquer tipo de in-
tervenção por parte do Poder Público.

Uma nova transformação nas relações de poder, a queda do muro


de Berlim (1989) e a consequente dissolução da União Soviética (1991),
decretando o fim da guerra fria e a vitória do capitalismo sobre o socia-
lismo, converte o sistema bipolar até então existente desde os anos 50
em unipolar, com os Estados Unidos como única potência hegemônica,
o qual trata de disseminar o modelo neoliberal mundialmente, pelas
propostas de liberalização econômica contidas no Washington Consen-

8 RODRIGO, Angel J. El Desafío del Desarrollo Sostenible: Los Principios de Dere-


cho Internacional relativos al Desarrollo Sostenible. Madrid: Marcial Pons, 2015, p. 26-27.

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551
sus, que determinará constante embate presente no processo de glo-
balização: concentração e acumulação de riquezas ou superação das
desigualdades sociais?9

Apesar das complexas transformações no âmbito econômico e das


relações de poder, a temática ambiental se consolida na agenda política
internacional, especialmente com a realização da Conferência das Na-
ções Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, em que
restou formulado o Programa 21 (ou Declaração de Rio de Janeiro), que
estabelece um conjunto de princípios sobre desenvolvimento sustentá-
vel, os quais demonstram, ao menos abstratamente, um esforço global
para busca de um equilíbrio entre crescimento econômico e proteção
ambiental, com o reconhecimento da existência de diferentes graus de
desenvolvimento entre países ricos e pobres e suas devidas responsabi-
lidades na conservação, resguardo e restabelecimento de ecossistemas,
assim como o reforço do conceito de equidade intergeracional.

2.1 Multipolaridade e Novos Atores Internacionais: Estado Consti-


tucional Cooperativo

No final do século XX, a intensificação do processo de globalização,


motivada pelo crescimento da importância do papel desempenhado por

9 Tal embate pode ser perfeitamente identificado nos Estados Unidos, em que
os neoliberais, no poder desde 1980, reduziram as denominadas travas ao livre funciona-
mento do mercado, reforçando uma maior concentração de empresas que conduzem uma
situação de oligopólio em alguns setores; privatização das empresas públicas e aumento
de poder dos atores financeiros. Ao mesmo tempo, as desigualdades cresceram no país,
a pobreza alcançou setores importantes da população: uma grande parte dos empregos
criados foram precários e mal pagados; o numero de pessoas encarceradas passou de
250.000 em 1975 a 744.000 em 1985 e alcançou 2.3 milhões em junho de 2008, sendo que
quase metade são afro-americanos e uma quarta parte latinos (TOUSSAINT, Eric. Neolibe-
ralismo: breve história del infierno. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2012, p. 51-52.

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552
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

atores não estatais, além das fronteiras nacionais, como as Corporações


Transnacionais, as Organizações Não Governamentais, entre outros, per-
mite a abertura do debate sobre a perda da exclusividade por parte dos
Estados-Nação da atuação política na esfera internacional.

Nesse contexto, em que as formas de produção e deslocamento de


capital atuam em âmbito global, as corporações transnacionais surgem
como atores internacionais, ao estabelecer parcela de suas atividades e
interesses em países distintos aos de suas respectivas origens, aumen-
tando, assim, o fluxo econômico e comercial internacional e expandindo
seu grau de influência política mundialmente.

Certamente os objetivos de tais entidades estão vinculados à maximiza-


ção de riquezas de seus acionistas, o que leva à discussão sobre suas práticas
empresariais para obtenção de benefícios econômicos, especialmente em
países pobres, o que, certamente, repercute na esfera de proteção do meio
ambiente e de adoção de um modelo de desenvolvimento sustentável.

Joseph E. Stiglitz, ao comentar o tema, afirma que, por um lado, as


corporações transnacionais têm contribuído com a criação de emprego e
o crescimento econômico dos países em via de desenvolvimento; por ou-
tro, buscam baixar seus custos o máximo que podem para gerar maiores
ingressos. Isso implica descompromisso com o pagamento de impostos e
seguridade social dos trabalhadores, no corte de gastos com a limpeza da
contaminação gerada, entre outras faturas que, ao fim, estarão a cargo dos
países que operam, os quais são impedidos de fiscalizá-las ou regulá-las
de forma que não as satisfaçam, pois, na lógica do comércio internacional
contemporâneo, sempre haverá outro país que as acolham, oferecendo-
-lhes as vantajosas condições financeiras que exigem para se instalarem10.

10 STIGLITZ, Joseph E. Cómo hacer que funcione la globalización. Barcelona:


Debosillo, 2016.

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553
Desse modo, deve-se considerar o novo e complexo cenário de poder
que se instaura no século XXI, inaugurado com extrema interdependência
e hipercomplexidade que afeta todos os setores da vida humana, o agrava-
mento das questões ambientais, sobretudo pelos problemas gerados pela
mudança climática; o encurtamento de distâncias com o impacto das no-
vas tecnologias de informação e comunicação e o boom da internet; a des-
localização do capital que incrementa as desigualdades no Planeta e coloca
em risco os sistemas de proteção social até então existentes; e, finalmente,
uma crise econômica e política que uma vez mais afeta a ordem mundial.

Esse fluxo de comércio internacional que passa a envolver novos e


diversificados atores, fortalecendo os vínculos de cooperação sul-sul,
juntamente com a forte crise econômica provocada pela ausência de re-
gulação de mercados que atinge com grande impacto Estados Unidos e
Europa, determina a nova configuração das relações de poder no contex-
to internacional, a multipolaridade. Na nova ordem multipolar, encon-
trou-se, então, uma série de atores emergentes que passam a influenciar
e exigir seu espaço no âmbito político e econômico internacional, insti-
tuições como ONU, FMI e Banco Mundial são os grandes alvos dos novos
players, que têm como protagonista a reemergente (VER!) China11.

11 Não é novidade que o “dragão asiático”, após anos de isolamento com o regime
de Mao Tse Tung, a partir de seu processo de reintegração ao mercado mundial, moder-
nização e abertura económica com Deng Xiaoping, passou a experimentar taxas medias
anuais de crescimento em 10% por aproximadamente 30 anos, tanto que, em 2014, torna-
-se a primeira potencia econômica mundial, superando Estados Unidos, o que lhe possi-
bilitou uma considerável inserção internacional, através de uma política de investimento
em países desenvolvidos e subdesenvolvidos que contribuíssem para a satisfação de sua
“fome” de matérias-primas. Certamente, a ocupação de espaços económicos no âmbito
internacional portam consequências politicas e China se preparou para atuar nesse “jogo”,
com iniciativas como os BRICS, o Banco Asiático de Infraestrutura e Investimento (AIIB), o
sonho chinês da nova rota da seda com a “One Belt, One Road” (OBOR), e a Parceria Regio-
nal Econômica Ampla (RCEP), as quais se apresentam como importantes peças no xadrez
geopolítico (PICCIAU, Simona. The One Belt One Road Strategy Between Opportunities and
Fears: A New Strategy in EU-China Relations? Indrastra Global 002, n. 02 (2016): 0066).

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554
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A ordem multipolar encontra-se composta por diferentes atores e cen-


tros de diálogo que influenciam as decisões tomadas no plano de gover-
nança internacional, exigindo a coordenação de práticas políticas fundadas
em determinados princípios, como equilíbrio entre poderes, interdepen-
dência e solidariedade, para alcançar o consenso dentro da heterogenei-
dade e instabilidade que conformam as novas relações de poder.

Com essa reconfiguração do poder no âmbito global, que ocasiona a


proliferação de formas de cooperação internacional e maior interdepen-
dência entre os múltiplos atores, traz à tona a necessidade de se pen-
sar em novos mecanismos de governança para solução de demandas de
amplitude planetária, também chamados de problemas sem passaporte,
como bem definido por Kofi Annan, ex-secretário geral das Nações Uni-
das, referindo-se a assuntos que transcendem fronteiras, problemas que
não pertencem a esta ou àquela nação, mas sim a todas, exigindo esforço
cooperativo em termos globais para encontrar suas soluções.

Em outras palavras, a ordem multipolar demanda a instituição de um


modelo de governança fundada na cooperação inclusiva entre institui-
ções multilaterais e os diversos atores que conformam o plano interna-
cional a favor de um fim comum: resolver os problemas globais a partir
da compreensão da complexidade de nossa realidade atual e do reco-
nhecimento das diferentes trajetórias históricas e culturais existentes,
com o objetivo de lograr uma reciprocidade de interesses.

Tal cenário acaba por colocar em risco a efetividade das instituições


em que se constrói o Estado-Nação e que se referem essencialmente à
objetivação dos Textos Constitucionais e seus valores, porque se apre-
sentam insuficientes para determinar adequadamente a organização do
poder e a estrutura de um modelo de sociedade extremamente comple-
xa. Cumprir a função de tutelar a diversidade de condutas e grupos exis-

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555
tentes no plano da experiência sociocultural, diante de uma realidade
globalizada e multipolar, em que os principais problemas contemporâ-
neos ultrapassam as fronteiras nacionais – ressalte-se – e exigem esforço
contínuo por parte de todos os países para trabalhar solidariamente na
construção de um mundo melhor.

Uma das propostas que busca situar o debate constitucional den-


tro da complexidade do mundo globalizado e multipolar foi formulada
por Peter Häberle12, ao dispor sobre as bases do Estado Constitucional
Cooperativo, que tem sua identidade fundada no ideal de solidarieda-
de, estando vinculado ao direito internacional, ao entrelaçamento das
relações nacionais, internacionais e supranacionais, à percepção da co-
operação e responsabilidade internacional.

De acordo com as ideias de Häberle, a Constituição deve ser com-


preendida como um texto jurídico aberto aos seus intérpretes, ou seja,
existe um canal de comunicação aberto entre o público e o privado, en-
tre a sociedade e o Estado, para que o programa constitucional de bem
comum se encontre o mais perto possível das expectativas reais que se
manifestam na consciência coletiva comum, atribuindo-lhe legitimação
democrática, confiança e eficácia social. Para cumprir tal tarefa de ma-
neira adequada, considerando o fenômeno da globalização e da multi-
polaridade, as bases do Estado Constitucional Cooperativo devem estar
orientadas a receber os influxos advindos do âmbito político internacio-
nal como forma de gerar um espaço solidário interestatal e contribuir
para um adequado modelo de governança.

12 HABERLË, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

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556
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

3 GOVERNANÇA AMBIENTAL E ESTADO CONSTITUCIONAL COOPE-


RATIVO

Antes de ingressar especificamente no tema sobre a relação entre


Governança Ambiental e Estado Constitucional Cooperativo, deve-se ter
presente que a governança consiste em um sistema de normas orien-
tadas à coordenação e colaboração entre distintos atores, para repartir
os custos e benefícios de ações conjuntas. No âmbito das relações in-
ternacionais, a governança é compreendida a partir de duas perspecti-
vas: como processos institucionais que estabelecem a cooperação entre
diferentes atores na esfera internacional, suprimindo a ausência de um
Estado Mundial; ou manifestação compartilhada de poder na esfera in-
ternacional, de tal modo que esse papel estará a cargo dos Estados, as-
sim como dos atores não estatais.

Desde tais afirmações, compreende-se que o conceito de governan-


ça, por um lado, trata de reduzir o impacto dos aspectos negativos do
processo de globalização; por outro, estabelecer incentivos e incremen-
tar a cooperação, com o intuito de estimular ações destinadas à concre-
ção dos aspectos positivos do mencionado processo13.

Considere-se ainda que, contemporaneamente, nas palavras de Da-


vid Held, se reconhece que os problemas globais não podem ser resolvi-
dos por um Estado-Nação atuando em solitário, tampouco por Estados
que apenas lutam para ocupar um lugar em blocos regionais. À medida
que aumentam as exigências ao Estado, surgem problemas políticos que
não podem ser adequadamente resolvidos sem a cooperação de outros
Estados e atores não estatais. Cada vez mais se tem consciência de que

13 ANDREATTA, F., CLEMENTI, M., COLOMBO, A., KOENIG-ARCHIBUGI, M., PARSI,


V. E. Relazioni internazionali. Bologna: Mulino, 2007.

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557
os Estados já não são as únicas unidades políticas apropriadas, seja para
resolver os principais problemas políticos, seja para gerenciar a ampla
gama de funções públicas14.

Em tal panorama, Constituição e Ordem Internacional formam um


único conjunto, de tal sorte que se não pode conceber uma delimitação
clara e objetiva diante dos diversos pontos de interseção existentes entre
elas, não se pode dizer que o Direito Constitucional começa onde termi-
na o Direito Internacional e vice-versa15.

Nessa dinâmica, as soberanias nacionais devem ser compartilhadas, pro-


movendo flexibilização do âmbito e da extensão do poder dos Estados, dian-
te da interdependência exigida pela atual ordem internacional multipolar.

Em outros termos, é possível afirmar que o próprio conceito de Es-


tado Constitucional Cooperativo está diretamente vinculado à existência
de uma aproximação entre ordem internacional e interna, em que os
problemas enfrentados domesticamente não pertencem a esse ou àque-
le Estado, mas sim a uma ordem de caráter supranacional que exige co-
operação contínua e mútua determinada desde os múltiplos pontos de
interseção existentes nos Textos Constitucionais.

É lógico que a construção do paradigma do Estado Constitucional Co-


operativo exige esforço interpretativo e relações mútuas de alteridade
entre as nações, para que sejam alcançados os pontos de interseção an-
teriormente mencionados, o que pode ser constatado a partir do sistema

14 HELD, D. Cosmopolitismo: ideales y realidades. Madrid: Alianza Editorial,


2010, p. 26.
15 HABERLË, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar,
2007, p. 11.

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558
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

fundamental de valores e de ordenação de poder construídos historica-


mente e presentes na base do Texto Constitucional.

Nesse passo, a construção do Estado Constitucional Cooperativo de-


manda a convergência do ordenamento jurídico dos Estados-Nação com
normas internacionais e constitucionais, iniciando um transigente pro-
cesso de adaptação lógica e hermenêutica para ajuste normativo-cultu-
ral de conceitos e diretrizes, sobretudo aquelas relacionadas com a solu-
ção de problemas de escala planetária, que tem como centro a temática
ambiental e a busca por um modelo de desenvolvimento sustentável.

Certamente, compatibilizando com as afirmações iniciais sobre Cons-


tituição e seus valores, as exigências advindas do atual momento de cri-
se ambiental vivido no plano empírico em escala mundial, adicionado
à complexidade do processo de globalização e multipolaridade, fazem
com que a proteção ao meio ambiente em suas diversas perspectivas
ganhe mais relevância dentro de sistemas normativos para produzir os
efeitos próprios de elemento central das ordens constitucionais vigentes,
orientando toda sua conformação com a abertura de um canal de comu-
nicação com os fatores de governança definidos no âmbito internacional.

Cristiane Derani destaca a importância do diálogo entre ordem interna


e internacional para geração de mecanismos de governança que protejam
o meio ambiente e promovam o desenvolvimento sustentável ante os pos-
síveis impactos negativos da globalização vinculados aos fluxos de comér-
cio, propagados pelas grandes corporações internacionais, ao afirmar que:

[...] é de ressaltar o quanto o trânsito dos recursos na-


turais está ligado ao sistema internacional de comércio,
vinculando, portanto, a este movimento as medidas re-
lativas ao uso sustentável. Por isso, paralelamente ao de-

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559
senvolvimento normativo interno, julgo de extrema im-
portância o trabalho coordenado com tratados e normas
internacionais. E não me refiro somente àqueles propria-
mente destinados à conservação de determinados re-
cursos, mas sobretudo àqueles referentes à importação,
exportação de recursos naturais, bem como os relativos
à transferência de tecnologia e produtos16.

Conforme ressaltado anteriormente, a construção do Texto Consti-


tucional deve ser concebida como um produto da história e, portanto,
abarcar as complexidades sociais que fazem parte do atual mundo glo-
balizado, multipolar e interdependente, o qual exige conversão do pa-
radigma de Estado-Nação e soberania absoluto em Estado Constitucio-
nal Cooperativo e soberania compartilhada, como forma de possibilitar
a legitimação democrática necessária das instituições de poder em sua
tarefa de ordenar o meio social.

Contemporaneamente, esse quadro se completa com a busca da


conciliação entre crescimento econômico e proteção do meio ambien-
te, fatores pertencentes à dinâmica da realidade social contemporâ-
nea, os quais devem ser constitucionalmente compaginados para gerar
níveis adequados de qualidade de vida digna aos cidadãos, é dizer, es-
tabelecer um modelo de crescimento econômico fundado no desenvol-
vimento sustentável, na utilização racional dos recursos naturais, que
se torne o núcleo de orientação das normas que estruturam o Estado
Constitucional Cooperativo para promoção de um modelo de gover-
nança ambiental em âmbito mundial.

16 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 110.

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560
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

3.1 Desenvolvimento Sustentável e Cooperação Ambiental Internacional

Seguindo as perspectivas históricas sobre globalização, desenvolvi-


mento sustentável e meio ambiente, introduzidas nos itens anteriores, a
tarefa agora é direcionada à constatação dos valores que possibilitariam
a estruturação de um Estado Constitucional Cooperativo fundado em
uma governança ambiental, em que se tomou como referência os 8 Ob-
jetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM)17 e, consequentemente,
os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)18, documentos
que definiram os propósitos atuais das políticas públicas em termos de

17 De acordo com a Declaração do Milênio das Nações Unidas (2000), os Obje-


tivos de Desenvolvimento do Milênio são: 1. Erradicar a Extrema Pobreza e a Fome; 2.
Atingir o Ensino Básico Universal; 3. Promover a Igualdade de Gênero e a Autonomia das
Mulheres; 4. Reduzir a Mortalidade Infantil; 5. Melhorar a Saúde Materna; 6. Combater o
HIV/AIDS, a Malária e outras Doenças; 7. Garantir a Sustentabilidade Ambiental; 8. Estabe-
lecer uma Parceria Mundial para o Desenvolvimento.
18 Conforme a Declaração das Nações Unidas, os 17 Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável são: 1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares; 2.
Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a
agricultura sustentável; 3. Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para to-
dos, em todas as idades; 4. Assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e
promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos; 5. Alcançar a igual-
dade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas; 6. Assegurar a disponibilidade
e gestão sustentável da água e saneamento para todos; 7. Assegurar o acesso confiável,
sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todos; 8. Promover o crescimen-
to econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho
decente para todos; 9. Construir infraestruturas resilentes, promover a industrialização in-
clusiva e sustentável e fomentar a inovação; 10. Reduzir a desigualdade dentro dos países e
entre eles; 11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilentes
e sustentáveis; 12. Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis; 13. Tomar
medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos; 14. Conservação e
uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento
sustentável; 15. Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terres-
tres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a
degradação da terra e deter a perda de biodiversidade; 16. Promover sociedades pacíficas e
inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e
construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis; 17. Fortalecer os
meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável.

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561
cooperação internacional, ocupando papel de destaque na agenda glo-
bal, ao demonstrar o comprometimento dos Estados-Membros da ONU
com a busca de um futuro melhor para nossa sociedade.

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio constituíram impor-


tante marco em pró de uma governança global, com forte conotação
ambiental, porque procuraram convergir forças no plano internacional
para estabelecer um mecanismo de cooperação orientado ao desen-
volvimento sustentável, superando difusas e nem sempre harmônicas
relações anteriormente existentes e, principalmente, demonstrando a
possibilidade de estabelecer uma agenda internacional uniforme sobre
desenvolvimento sustentável.

Esses objetivos representam, nas palavras de José Antonio Sanahu-


ja, uma expressão da globalização do espaço político e social e da parti-
cular correlação de forças e coalisões sociais e políticas que emergiram
nesse cenário. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio configu-
ram, assim, uma incipiente “agenda social global” que se contrapõe
ao projeto de globalização neoliberal, ao outorgar uma dimensão de
equidade à globalização e propor um marco cosmopolita de governan-
ça global do desenvolvimento sustentável19.

Desta feita, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio são compre-


endidos como “agenda social global” definida até o ano de 2015, quando
ocorre a oportunidade para definição dos Objetivos do Desenvolvimen-
to Sustentável, especialmente para colocar questões relativas ao meio

SANAHUJA, José Antonio ¿Más y mejor ayuda? La Declaración de París y las tendencias
en la cooperación al desarrollo. In: PEINADO, Manuela Mesa (coord.). Paz y conflictos en
el siglo XXI: tendencias globales. Anuario 2007-2008. Centro de Educación e Investigación
para la Paz (CEIPAZ). Madrid: CEIPAZ, 2007, p. 71-102.

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562
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

ambiente e à mudança climática no núcleo das preocupações de ordem


global, sendo aprovado o documento “Transformando Nosso Mundo: a
Agenda 2030 para Desenvolvimento Sustentável”.

Assim, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, baseados nos


Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, estabelecem uma agenda
como novos desafios até 2030, que levam em consideração, sobretudo,
a crise ambiental que se agrava em nossa realidade social, a qual exige
intensa cooperação em escala global que envolva todos os setores da
sociedade (público e privado) para sua concretização, com a intenção de
definir um caminho sustentável para o nosso Planeta.

A própria definição da agenda 2030 retrata as transformações imple-


mentadas na nova distribuição do poder em escala mundial, consideran-
do a participação de diversos atores em sua concepção e, paralelamente,
demonstrando a necessidade de o Estado-Nação estabelecer um diálogo
na ordem internacional para buscar elementos que possibilitem a mani-
festação de sua soberania em sintonia com a dinâmica do processo de
globalização, e abrindo espaço para discussão sobre a institucionalização
do Estado Constitucional Cooperativo.

Enquanto os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio foram elabora-


dos a partir de articulações dominadas pelas nações avançadas, os Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável, por seu turno, podem ser compreendidos
como resultantes de uma interação de forças, envolvendo em especial po-
tências em desenvolvimento e emergentes e atores não estatais, denotando
as transformações ocorridas na estrutura de poder em escala global com a
diversificação e multiplicação dos canais de diálogo e instância de decisões.

Podem-se considerar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável


como produtos da intensificação do diálogo entre múltiplos centros de

Ir para o índice
563
poder e atores não estatais promovido pelas Nações Unidas para atua-
lizar as metas de desenvolvimento estabelecidas nos Objetivos de De-
senvolvimento do Milênio, definindo a agenda pós-2015. Logicamente,
o processo para elaboração dos Objetivos do Desenvolvimento Susten-
tável foi marcado pela participação de instituições multilaterais, Estados-
-Membros, atores de diferentes setores da sociedade, acadêmicos e
opinião pública, revelando uma tendência à atribuição de legitimação
democrática a esse documento, a fim de lhe atribuir maior efetividade
no âmbito das relações de poder.

Por fim, salienta-se que, em termos de projeto de desenvolvimento


sustentável, verificou-se nítido progresso com respeito a uma futura im-
plementação de modelo de governança ambiental de âmbito planetário
fundado no ideal de Estado Constitucional Cooperativo, porque os Ob-
jetivos do Desenvolvimento Sustentável são mais ambiciosos e incisivos
que os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, representando em
seu processo de formação a colaboração e interação dos diversos atores
presentes na ordem internacional, até mesmo com a determinação de
metas para sua devida concreção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cooperação no âmbito do Estado Constitucional Cooperativo Contem-


porâneo objetiva uma postura altruísta nas relações de poder, a qual possi-
bilita a tomada de decisões políticas em defesa de interesses globais, e não
apenas nacionais, fundado no auxílio recíproco, democrático e solidário en-
tre Estados, cidadãos e futuras gerações, afastando posições egoístas, indi-
viduais e que agravam ainda mais a emergência no trato de problemas que
colocam em risco a própria existência de nossa sociedade, como o caso das

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564
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

questões relacionadas ao meio ambiente, que, no momento histórico vivido


atualmente, representa o centro das preocupações mundiais.

Dentro de tal perspectiva, a temática ambiental passa a ser considera-


da o principal ponto de interseção de agendas políticas nacionais e inter-
nacionais, devendo estruturar a partir do plano constitucional a promoção
de um desenvolvimento econômico e social sustentável, com qualidade de
vida digna num ambiente saudável e equilibrado, é dizer, dar as condições
necessárias para que a construção de valores em que se baseiam o Esta-
do Constitucional Cooperativo em sintonia com a governança estabelecida
no plano internacional atribua adequada importância ao desenvolvimento
sustentável e à proteção ao meio ambiente, determinando as pautas com-
portamentais dos atores sociais (Estado, sociedade e cidadãos).

Nesse contexto, devem-se mencionar os Objetivos do Desenvolvi-


mento Sustentável (ODS) que, por seu processo de formação, revelam
grande preocupação com o fator de legitimação democrática na atual di-
nâmica do poder globalizado, ao refletir os distintos interesses presentes
na ordem internacional, os quais exigem uma postura cada vez mais cos-
mopolita para agregar maior efetividade no cumprimento de suas metas.

Esse fato pode também ser comprovado a partir da extensão e foco


dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, que incluem primor-
dialmente a solução dos problemas ambientais como metas que de-
vem ser logradas, e servir de pauta para definição das agendas políticas
nacionais e internacionais.

Por derradeiro, afirma-se que o modelo de Estado Constitucional Co-


operativo deve ser compreendido como o atual perfil a ser implementa-
do pelo Estado-Nação na formulação hermenêutica das relações entre
Constituição e valores, ao se refletir como produto da história contem-

Ir para o índice
565
porânea, uma vez que atua em regime de cooperação com as forças ex-
ternas, com outros Estados, com comunidades de Estados, dando conta
da complexidade do mundo globalizado, multipolar e interdependente,
que, diante das exigências da realidade concreta, determina o desenvol-
vimento sustentável e a proteção ao meio ambiente como núcleos de
modelos de governança, para promoção da cooperação internacional.

REFERÊNCIAS

ANDREATTA, F., CLEMENTI, M., COLOMBO, A., KOENIG-ARCHIBUGI,


M., PARSI, V. E. Relazioni internazionali. Bologna: Mulino, 2007

BAUMAN, Z. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em


mercadorias. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CONTIPELLI, E. Teoría de la Constitución y bases de la institucionali-


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Responsabilidade internacional
dos Estados por epidemias e
pandemias transnacionais:
o caso da Covid-19 provinda
da República Popular da China1
International responsibility of States for
transnational epidemics and pandemics:
the case of Covid-19 from the
People’s Republic of China

VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI

a1

RESUMO

O estudo investiga a possibilidade de responsabilização internacional


dos Estados por epidemias ou pandemias transnacionais, em especial o caso

1 As conclusões desta investigação são parciais e podem ser alteradas a partir de


novas informações de fato e/ou comprovações científicas doravante surgidas. As informa-
ções sobre fatos concretos utilizadas neste estudo foram noticiadas por relatórios oficiais
da OMS e pela imprensa internacional, não obstante estejam sujeitas a eventuais contra-
provas. Portanto, à luz de novos elementos, as conclusões desta investigação poderão ser
modificadas no futuro. Este texto teve a sua redação terminada em abril de 2020.

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568
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

da Covid-19 que teve início na República Popular da China. O artigo analisa


os regulamentos sanitários internacionais conjuntamente à Constituição da
Organização Mundial de Saúde, para o fim de verificar sua obrigatoriedade
aos Estados-partes. Posteriormente, analisa a jurisprudência da Corte In-
ternacional de Justiça e a possibilidade de demandar a China perante este
tribunal internacional, por não ter informado a sociedade internacional em
tempo hábil e acarretado a pandemia da Covid-19 no mundo.

Palavras-chave: epidemias transnacionais; pandemias transnacio-


nais; responsabilidade internacional dos Estados; Covid-19; República
Popular da China

ABSTRACT

This research addresses the possibility of state responsibility for trans-


national epidemics or pandemics, especially focusing on Covid-19 as a
case study – a pandemic originated in the People’s Republic of China. To
that end, this article analysis this issue grounded on international health
regulations together with the Constitution of the World Health Organiza-
tion to be able to assess whether these rules are binding on the Member
States. Furthermore, this article analyzes case laws from the Internatio-
nal Court of Justice, and the feasibility of filing a lawsuit against China
before this U.N. Court for not informing the international society in due
course about an impending Covid-19 pandemic.

Keywords: transnational epidemics; transnational pandemics; inter-


national responsibility; Covid-19; Popular Republic of China.

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569
INTRODUÇÃO

Em dezembro de 2019 foram diagnosticados, na cidade de Wuhan,


província de Hubei, na República Popular da China, os primeiros casos de
infecção de uma nova espécie de coronavírus, causador da doença Co-
vid-19, responsável por transtornos respiratórios agudos em um quadro
de pessoas infectadas. O tecnicamente chamado coronavírus da síndrome
respiratória aguda grave 2 (Sars-Cov-2) espalhou-se rapidamente por todo
o globo terrestre a partir de janeiro de 2020, dizimando milhares de pesso-
as ao redor do mundo, notadamente idosos (pessoas acima dos 60 anos)
e cidadãos com doenças preexistentes (v.g., cardiopatia, diabetes, pneu-
mopatia, doença neurológica, doença renal, imunodepressão e asma).2 A
Organização Mundial de Saúde, a partir de março de 2020, reconheceu tra-
tar-se de uma pandemia mundial, já alastrada por todos os continentes3.

Acredita-se que o vírus tenha origem zoonótica, proveniente espe-


cialmente de morcegos, que servem como hospedeiros. Há especulações
no sentido de que animais infectados por morcegos – especialmente os
pangolins asiáticos4 – tenham sido levados até o Mercado Atacadista de
Frutos do Mar de Huaman – no distrito de Jianghan, Wuhan, província
de Hubei – e lá infectado a primeira pessoa5. Pelo fato dos pangolins e

2 Assim também no Brasil, como amplamente noticiado: cf. Jornal Folha de S. Pau-
lo, 27 Março 2020; Jornal O Globo, 05 Abril 2020; Jornal Estadão, 05 Abril 2020; e Jornal El
País, 06 Abril 2020.
3 Cf. World Health Organization. Coronavirus disease (Covid-19) Pandemic. Dis-
ponível em: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019. Acesso
em: 02 abr. 2020.
4 Os pangolins são mamíferos assemelhados tatu-bola e, atualmente, os animais
silvestres com maior tráfico ilegal no mundo.
5 Para detalhes, cf. ANDERSEN, Kristian G.; RAMBAUT, Andrew; LIPKIN, W. Ian; HOLMES,
Edward C.; GARRY, Robert F. The proximal origin of SARS-VoC-2. Nature Medicine, 17 March 2020.
Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41591-020-0820-9. Acesso em: 02 abr. 2020..

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570
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

outros animais silvestres, incluindo uma variedade de morcegos, serem


amplamente vendidos nos mercados chineses, a transmissão do vírus
viu-se facilitada, infectando seres humanos6.

Ainda que com incertezas científicas sobre o meio de transmissão


(v.g., sobre qual foi o primeiro animal a hospedar o Sars-CoV-2) respon-
sável pelo novo coronavírus, certo é que a originária epidemia transfor-
mou-se rapidamente em pandemia aparentemente incontrolável, dada a
fácil e rápida transmissão do vírus de pessoa a pessoa por simples aperto
de mão, gotículas de saliva, espirro, tosse ou contato com superfícies
contaminadas, como aparelhos celulares, mesas, maçanetas, brinque-
dos, teclados de computador etc7.

O que se pretende indagar é se, à luz do Direito Internacional Público,


há responsabilização estatal possível pelos milhares de mortes ocorridas
em todo o mundo em decorrência da Covid-19, se presentes as circuns-
tâncias ensejadoras do instituto da responsabilidade internacional. Assim,
se comprovado que o governo chinês não tomou as cautelas necessárias à
não propagação do novo coronavírus, haveria meios próprios e disponíveis
no Direito das Gentes para a responsabilização internacional do Estado? O
que dizem as normas e a jurisprudência internacinal sobre o tema? São es-
sas as indagações que se pretende responder com a presente investigação.

Frise-se que o objeto da presente investigação diz respeito, estrita-


mente, à eventual responsabilidade internacional da China pela pan-

6 V. BRIGGS, Helen. Coronavírus: a corrida para encontrar animal que foi origem
do surto. BBC News, 26 Fevereiro 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portugue-
se/internacional-51641776. Acesso em: 02 abr. 2020.
7 Cf. BRASIL. Ministério da Saúde. O que é o coronavírus? (Covid-19). Disponível
em: https://coronavirus.saude.gov.br. Acesso em: 02 abr. 2020.

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571
demia em curso, dado que, internamente, as soberanias nacionais têm
imunidade à jurisdição dos Estados, quando se trata de atos de impé-
rio, à luz da regra costumeira par in parem non habet juducium. Assim
também entendeu a jurisprudência da Corte Internacional de Justiça, es-
pecialmente no julgmento do caso Imunidades Jurisdicionais do Estado
(Alemanha Vs. Itália; Grécia interveniente) de 3 de fevereiro de 20128.

1. REFLEXOS DA COVID-19 NAS ATIVIDADES DOS ESTADOS NACIONAIS

A Covid-19 causou severos impactos nas instituições de saúde, em


vidas humanas e na economia de vários Estados nacionais do mundo. No
que tange à saúde, os sistemas nacionais se mostraram sobrecarrega-
dos com internações em massa e com a falta de leitos, medicamentos e
respiradores para os milhares de internados em todo o mundo, gerando
colapso sistêmico em diversos países. Na Itália, v.g., os milhares de infec-
tados lotaram as Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) nos picos da curva
de contágio, dificultando a ação coordenada do Estado e dos profissio-
nais de saúde9. Todos os países do mundo foram também tomados de
assalto com a nova pandemia, com sérias crises nos sistemas nacionais
de saúde, dado o crescimento do número de infectados e mortes10.

A pandemia mundial também atingiu gravemente as economias es-


tatais, especialmente as dos países mais pobres. Houve o fechamento de

8 Para detalhes, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional


público. 13. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 476-484.
9 Vários dados disponíveis em: ITÁLIA. Ministero della Salute. Nuovo coronavirus.
Disponível em: www.salute.gov.it/nuovocoronavirus. Acesso em: 02 abr. 2020.
10 V. atualização permanente em: Worldometer. Covid-19 coronavirus pandemic.
Disponível em: https://www.worldometers.info/coronavirus. Acesso em: 02 abr. 2020.

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572
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

estabelecimentos em vários partes do mundo, com autorização apenas


de serviços essenciais, como o de farmácias e supermercados. Para o fim
de impedir o aumento do contágio, medidas de restrição foram tomadas
e a população incentivada – em muitos países, foram obrigadas por meio
de leis ou decretos – a permanecer em casa em isolamento domiciliar
(quarentena). Por sua vez, a Organização Mundial de Saúde reforçou tais
medidas – em especial a de isolamento – e encorajou os Estados a toma-
rem providências imediatas de contenção.

Não há dúvidas de que essa paralisação nas atividades econômicas


trouxe prejuízos múltiplos aos Estados, notadamente os menos favoreci-
dos, dificultado a sua futura retomada de crescimento. Segundo notícia
do jornal El País, um estudo encomendado pela Confederação Nacional
de Serviços (CNS) apontou que os efeitos da pandemia do coronavírus e
de restrições ao funcionamento de diversas atividades econômicas po-
dem levar a um prejuízo de mais de 320 bilhões à economia brasileira
e fazer com que 6,5 milhões de trabalhadores percam seus empregos11.

Como se não bastasse, a pandemia da Covid-19 afetou também as


relações internacionais dos Estados, levando à suspensão, v.g., de trata-
tivas para acordos internacionais de investimento e infraestrutura, todos
com consideráveis custos envolvidos. Essa paralisação das atividades in-
ternacionais dos Estados tem levado à estagnação do empreendedoris-
mo interno e ao corte de investimentos estrangeiros no país.

Não há dúvidas de que os prejuízos humanos e econômicos que os


Estados estão a experimentar em razão da pandemia do novo coronaví-

11 Jornal El País (Economia). Empatia ou pragmatismo, o dilema de empresas entre


o respeito a vidas e a retomada da economia. Disponível em: https://brasil.elpais.com/eco-
nomia/2020-03-27/empatia-ou-pragmatismo-o-dilema-de-empresas-entre-o-respeito-a-
vidas-e-a-retomada-da-economia.html. Acesso em: 02 abr. 2020.

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573
rus são de difícil ou impossível recuperação, especialmente nos casos dos
milhares de mortes já contabilizadas. Por essa razão, convém estudar se
há mecanismos e possibilidades no Direito Internacional de se responsa-
bilizar a China por tais prejuízos.

2. REGRAS GERAIS SOBRE RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL


DOS ESTADOS

O instituto da responsabilidade internacional dos Estados constitui


o princípio fundamental do Direito Internacional Público, pois corolário
lógico da igualdade soberana dos Estados na órbita internacional12. Sua
finalidade é, em última análise, reparar e satisfazer, respectivamente, os
danos materiais sofridos por um Estado em decorrência de atos pratica-
dos por outro.

Em 1996, a Comissão de Direito Internacional (CDI) das Nações Unidas


aprovou, em sua 48ª Sessão, o texto do primeiro projeto (draft) de conven-
ção internacional sobre responsabilidade do Estado por atos internacio-
nalmente ilícitos, desenvolvido com base nos trabalhos de sistematização
do Prof. Roberto Ago13. Posteriormente, atendendo às críticas de alguns
países, o projeto inicial (a partir de 1997) foi revisto pela mesma Comis-
são – agora sob a relatoria do Prof. James Crawford – e aprovado em 9 de

12 Para um estudo completo do tema, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de


direito internacional público, cit., p. 494 e ss.
13 Merecem ser estudados os oito relatórios do Prof. Roberto Ago, publicados no
Yearbook of the International Law Commission de 1969 a 1980, bem como os dos professo-
res Willen Riphagen (1980-1986) e Gaetano Arangio-Ruiz (1988-1996), que sucederam Ago
nos trabalhos de redação. Frise-se que o primeiro relator especial sobre o tema foi o Prof.
Garcia-Amador (nomeado em 1955), mas cujos relatórios não foram aprovados pela CDI.

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574
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

agosto de 2001, na sua 53ª Sessão14. Após sua aprovação, o projeto foi
encaminhado à Assembleia-Geral da ONU para que esta verifique (até o
presente momento tal não ocorreu) a possibilidade de adoção do seu tex-
to, abrindo-se a oportunidade para as assinaturas e respectivas ratificações
dos Estados15. Na ONU, no entanto, o draft poderá sofrer alterações por
sugestão dos Estados, quando então (possivelmente) um texto diverso do
originalmente apresentado pela CDI será adotado. Não obstante, a Assem-
bleia-Geral, em sua 62ª Sessão, realizada em 2007, sugeriu aos governos
dos Estados que observem (apliquem) o projeto de Artigos sobre Respon-
sabilidade do Estado por Atos Internacionalmente Ilícitos16.

A sugestão da ONU aos Estados – de aplicação do Projeto de Con-


venção sobre responsabilidade internacional dos Estados por atos ilíci-
tos – é importante na medida que encoraja as soberanias nacionais a
reconhecerem o draft como norma cristalizadora de regras internacio-
nais anteriores à sua elaboração, facilitando a compreensão do tema
relativo à responsabilidade internacional dos Estados. Sobre o tema
que ora nos ocupa, recomendação justifica ainda a análise do draf no
que tange à questão de possível responsabilização de Estados por epi-
demias e/ou pandemias transnacionais.

14 Cf. Report of the International Law Commission on the Work of its Fifty-third
Session, Official Records of the General Assembly, Fifty-sixth session, Supplement nº 10
(A/56/10), Chap. IV.E.1, November 2001; e também o Yearbook of the International Law
Commission, vol. II (Part Two), de 2001.
15 Para um comentário do projeto aprovado, v. United Nations. Draft articles on
Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts with commentaries, 2008; na
doutrina, v. CRAWFORD, James. The International Law Commission’s articles on State
responsibility: introduction, text and commentaries. Cambridge: Cambridge University
Press, 2002, 391p.
16 V. Res. 62/61 (8 January 2008).

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575
2.1 Conceito de responsabilidade internacional

A responsabilidade internacional do Estado é o instituto jurídico que


visa responsabilizar determinado Estado pela prática de um ato atenta-
tório (ilícito) ao Direito Internacional perpetrado contra os direitos ou a
dignidade de outro Estado, prevendo certa reparação a este último pelos
prejuízos e gravames que injustamente sofreu17. Esse conceito leva em
conta apenas os Estados nas suas relações entre si. É evidente que nas
relações do Estado com as pessoas sujeitas à sua jurisdição o instituto da
responsabilidade internacional também opera, notadamente no que diz
respeito às violações estatais de direitos humanos. Para os efeitos deste
estudo, no entanto, a investigação será fixada à base da responsabilidade
de Estado a Estado.

Sob essa ótica, o instituto da responsabilidade internacional tem du-


pla finalidade:

a) visa coagir psicologicamente os Estados a fim de que os


mesmos não deixem de cumprir com os seus compromis-
sos internacionais (finalidade preventiva); e

b) visa atribuir àquele Estado que sofreu um prejuízo, em de-


corrência de um ato ilícito cometido por outro, uma justa
e devida reparação (finalidade repressiva).

17 Entre outros, v. ACCIOLY, Hildebrando. Principes généraux de la responsabilité


internationale d’après la doctrine et la jurisprudence. Recueil des Cours, vol. 96 (1959-I),
p. 349-441; CARREAU, Dominique. Droit international. 8. ed. Paris: A. Pedone, 2004, p.
444 e ss; SHAW, Malcolm N. Direito internacional. Trad. Marcelo Brandão Cipolla (et all.).
São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 572 e ss; CRAWFORD, James. Brownlie’s principles of
public international law. 8. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 539 e ss; e GOU-
VEIA, Jorge Bacelar. Manual de direito internacional público: uma perspectiva de língua
portuguesa. 5. ed. atual. Coimbra: Almedina, 2017, p. 653 e ss.

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576
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Essa regra é corolário do princípio da igualdade jurídica, uma vez que


existe única e exclusivamente em função dela. Significa, ademais, que os
Estados têm limites de atuação no plano internacional, não podendo agir
de forma leviana, a seu alvedrio e a seu talante, prejudicando terceiros e
trazendo desequilíbrio para as relações pacíficas entre as Nações.

2.2 Características da responsabilidade internacional

O princípio fundamental da responsabilidade internacional traduz-se


na ideia de justiça segundo a qual os Estados estão vinculados ao cum-
primento daquilo que assumiram no cenário internacional, devendo ob-
servar seus compromissos de boa-fé e sem qualquer prejuízo aos outros
sujeitos do Direito das Gentes. Portanto, o Estado é internacionalmente
responsável por toda ação ou omissão que lhe seja imputável de acordo
com as regras do Direito Internacional Público, e das quais resulte viola-
ção de direito alheio ou violação abstrata de uma norma jurídica interna-
cional por ele anteriormente aceita.

O instituto da responsabilidade internacional, diferentemente da res-


ponsabilidade atinente ao Direito interno, visa sempre à reparação a um
prejuízo causado a determinado Estado em virtude de ato ilícito prati-
cado por outro. A reparação (civil) é a restitutio naturalis ou restitutio in
integrum, tendo por finalidade restituir as coisas, tanto quanto possível,
ao estado de fato anteriormente constituído, fazendo voltar as coisas ao
status quo como forma de satisfação18.

Se este restabelecimento não for possível, como, v.g., em casos de mor-


tes de pessoas, ou caso seja possível apenas parcialmente, o prejuízo deve

18 Sobre o assunto, v. BROWNLIE, Ian. Princípios de direito internacional público.


Trad. Maria Manuela Farrajota (et al.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 486-487.

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577
ser reparado (pecuniariamente) por meio de indenização (dommages-in-
térêts) ou compensação. Assim, a reparação deve ser substituída pela inde-
nização ou compensação, sempre que não for possível, material ou juridica-
mente, reparar o dano causado pelo ato ilícito estatal. Aliás, a reparação em
dinheiro é a prática que mais comumente se tem apresentado no quadro
de uma demanda internacional envolvendo a responsabilidade do Estado.

Outra característica da responsabilidade internacional é que ela ope-


ra sempre de Estado para Estado, mesmo que o ato ilícito tenha sido pra-
ticado por um indivíduo ou ainda quando a vítima seja um particular seu.
Tal significa que a pessoa (vítima da violação) não demanda diretamente
o Estado, apenas dirigindo uma reclamação ao Estado de sua nacionali-
dade para que este a proteja internacionalmente. Quando o Estado de
nacionalidade oferece proteção, ele endossa a reclamação da vítima e
toma como sua a queixa alegada. Será esse endosso o instrumento que
irá outorgar a chamada proteção diplomática – que nada tem a ver com
os privilégios e imunidades diplomáticos dos quais ainda iremos tratar
– de um Estado a um particular: o Estado, quando endossa a queixa do
particular, “toma as suas dores” e passa a tratar com o outro Estado de
igual para igual, a fim de ressarcir o particular do dano sofrido (daí o
entendimento que, mesmo nesse caso em que o objeto da reclamação é
constituído pelo indivíduo e pelo seu patrimônio, a responsabilidade in-
ternacional opera de Estado para Estado). O Estado se substitui ao parti-
cular, tornando-se dominus litis e assumindo os encargos daí resultantes.

A proteção diplomática é, enfim, a atividade voltada à proteção dos


direitos de um Estado em decorrência de sua violação por outro sujeito,
ainda que a reclamação tenha sido deflagrada por particular na defesa
dos seus interesses pessoais. Como a vítima não pode agir diretamente
contra o Estado causador do dano, ela se utiliza da proteção do Estado de

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578
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

que é nacional. Este último encampa seus sentimentos e deflagra, contra


o Estado responsável, um pedido de indenização pelos prejuízos sofridos.
Dada a importância do tema para a teoria da responsabilidade interna-
cional a CDI concluiu o Esboço de Artigos sobre Proteção Diplomática,
que foi posteriormente aprovado pela Assembleia-Geral da ONU, em
2006 (onde poderá vir a sofrer alterações até a sua adoção definitiva)19.

2.3 Elementos constitutivos da responsabilidade internacional

Três são os elementos que compõem o instituto da responsabilidade


internacional do Estado, a saber: a) a existência de um ato ilícito interna-
cional; b) a presença da imputabilidade; e c) a existência de um prejuízo
ou um dano a outro Estado. Uma mirada breve sobre cada qual auxilia
na compreensão das hipóteses possíveis de responsabilização de Estados
por violação do Direito Internacional.

a) O ato internacionalmente ilícito. O primeiro elemento


constitutivo da responsabilidade (ilicitude internacional
do ato) consubstancia-se na violação ou lesão de uma
norma de Direito Internacional, compreendendo tanto o
fato positivo (comissivo) como o fato negativo (omissivo),
tal como descrito no art. 3º do Projeto de Convenção das
Nações Unidas. Tal violação pode ser relativa a um tratado,
um costume internacional ou a qualquer outra fonte do
Direito das Gentes. Os graus de ilicitude são variados, po-
dendo haver violações brandas, medianas ou graves (v.g.,
quando se viola uma norma imperativa de Direito Interna-

19 V. Res. 62/67 (8 January 2008). Sobre o trabalho da CDI nesse tema, v. CRA-
WFORD, James. Brownlie’s principles of public international law, cit., p. 517-518.

Ir para o índice
579
cional geral, jus cogens)20. Perceba-se que o conceito de ili-
citude aqui desenvolvido é internacional, não se podendo
tomar como base o Direito interno como ponto de referên-
cia para a compreensão do conceito.

b) A imputabilidade ou nexo causal. O segundo elemento da


responsabilidade é a imputabilidade, que é o nexo causal
que liga o ato danoso violador do Direito Internacional (ou
a omissão estatal) ao responsável causador do dano (au-
tor direto ou indireto do fato). É o vínculo jurídico que se
forma entre o Estado (ou organização internacional) que
transgrediu a norma internacional e o Estado (ou organi-
zação internacional) que sofreu a lesão decorrente de tal
violação. Em outras palavras, a imputabilidade “significa
que o ato ou omissão é atribuível ao Estado”21. Assim, não
importa ao Direito das Gentes se o Estado é unitário ou se
possui divisões internas, como é o caso dos Estados Fe-
derais; será sempre o Estado (entendido como um todo
único) o responsável pela violação no plano internacional
(princípio da unidade do Estado no âmbito das relações
internacionais). Nem sempre, porém, o autor imediato
de um ato ilícito internacional é diretamente responsável
por ele, à luz do Direito Internacional Público. Daí por que

20 Sobre os “graus” de ilicitude, v. DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET,


Alain. Direito internacional público. 2. ed. Trad. Vítor Marques Coelho. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2003, p. 783-785. Sobre a responsabilidade internacional por viola-
ção do jus cogens, cf. HIGGINS, Rosalyn. Problems & process: international law and how we
use it. Oxford: Oxford University Press, 1994, p. 165-168.
21 ACCIOLY, Hildebrando. Tratado de direito internacional público, vol. I. 2. ed. Rio
de Janeiro: MRE, 1956, p. 276.

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580
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

os Estados serão sempre responsáveis pelos atos pratica-


dos por seus funcionários (servidores, agentes públicos e
agentes políticos) quando tais atos forem praticados em
seu nome (do Estado). De qualquer forma, o que carac-
teriza a imputabilidade é a possibilidade de o ato antiju-
rídico ser imputável ao Estado na sua condição de sujeito
do Direito Internacional Público, ainda que praticado por
agente ou funcionário seu, quando então a imputabilidade
e a autoria do fato se confundem.

c) O prejuízo ou dano. A existência de um prejuízo ou um


dano a outro Estado (ou organização internacional) é o ter-
ceiro elemento constitutivo da responsabilidade interna-
cional. Tal prejuízo (resultado antijurídico do fato) pode ser
material ou imaterial (moral) e originar-se de um ato ilícito
cometido por um Estado (ou organização internacional) ou
por um particular em nome do Estado. Somente o sujeito
de Direito das Gentes vitimado por algum dano pode re-
clamar do outro faltoso a sua reparação, principalmente
no que diz respeito ao cumprimento de eventual tratado
celebrado entre ambos, não podendo demandar terceiros
que do instrumento internacional não participam.

Não obstante a doutrina internacionalista ainda exigir o elemento


dano como necessário à caracterização da responsabilidade internacio-
nal, deve-se aqui observar que o draft da ONU sobre responsabilidade
dos Estados por atos internacionalmente ilícitos excluiu a necessidade de
sua ocorrência para que se constitua a responsabilidade. De fato, o art.
2º do projeto de artigos das Nações Unidas exige apenas, para a caracte-
rização da responsabilidade, a presença de dois elementos, quais sejam,

Ir para o índice
581
a violação de uma obrigação internacional e a atribuição dessa violação
ao Estado, sem fazer qualquer referência à necessidade de prejuízo ou
dano. Nos termos desse dispositivo, a conduta deve (a) ser atribuível ao
Estado de acordo com o Direito Internacional, e (b) constituir uma viola-
ção de uma obrigação internacional do Estado.

Se se partir do acerto da tese exposta pelo art. 2º do Projeto de Con-


venção da ONU, ver-se-á que a China, no caso da pandemia da Covid-19,
teve conduta incompatível com o Direito Internacional ao violar os re-
gulamentos sanitários internacionais da OMS quando da descoberta do
vírus, caracterizando, assim, sua responsabilidade internacional. É o que
se passa a analisar doravante.

3. COVID-19 E RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO

A República Popular da China é Estado-membro da Organização Mun-


dial de Saúde e mantém, em Pequim, escritório de representação da Or-
ganização22. Está, portanto, vinculada tanto aos ditames da Constituição
da OMS quanto às normas e recomendações provindas dessa Organiza-
ção. O desrespeito e a violação das regras (hard law e soft law) da OMS
são também considerados atos passíveis de verificação pelo Direito Inter-
nacional, não obstante a responsabilização do Estado seja de rigor pela
violação das normas pactuadas (tratados).

A OMS, baseada em sua normativa, vem tomando diversas medidas


para a contenção do novo coronavírus desde o início da pandemia no

22 V. World Health Organization (Countries, China). Disponível em: https://www.


who.int/countries/chn/en/. Acesso em: 02 abr. 2020. Verifique-se, também, a página web
do escritório da OMS na China: https://www.who.int/china.

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582
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

mundo. Tais determinações (hard law) recomendações (soft law) provêm


do próprio instrumento constitutivo da OMS, concluído em Nova York em
22 de julho de 194623.

Há, como se nota, normas determinantes da Organização, provindas de


instrumentos de hard law, e disposições recomendatórias, tidas como soft
law. Ainda que com graus diferentes de intensidade, ambas são regidas pelo
Direito Internacional Público, estando a diferença – repita-se – na possibilida-
de de responsabilização internacional do Estado (especialmente nas cortes
jurisdicionais internacionais) – pelo descumprimento das primeiras24.

Cabe, agora, verificar o que preveem as normas – determinantes e re-


comendatórias – da OMS, para o fim de investigar se houve efetiva viola-
ção desse mosaico normativo pela República Popular da China, fazendo-a
incidir em responsabilidade internacional.

3.1 Determinações da OMS no Regulamento Sanitário Internacional

As condutas dos Estados-partes, no que tange à saúde pública, vêm


descritas e delineadas no Regulamento Sanitário Internacional, aprovado
pela OMS em 2005 e em vigor desde 15 de junho de 200725. O Regula-
mento é norma internacional (tratado) que vincula 196 países, incluindo
todos os Estados-membros da OMS. Seu objetivo é prevenir e impedir

23 Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. As determinações da OMS são vinculantes


ao Brasil?. In: Conselho Federal da OAB, Notícias, 28 Março 2020. Disponível em: https://
www.oab.org.br/noticia/58018. Acesso em: 02 abr. 2020; e VON BOGDANDY, Armin; VIL-
LAREAL, Pedro A. International law on pandemic response: a first stocktaking in light of the
coronavirus crisis. Max Planck Institute for Comparative Public Law & International Law.
Research Paper nº 2020-07 (March 26, 2020).
24 A propósito, cf. CARREAU, Dominique. Droit international, cit., p. 212-215.
25 OMS. Regulamento Sanitário Internacional, 2005. No Brasil, o Regulamento foi apro-
vado pelo Decreto Legislativo nº 395/2009 e promulgado Decreto executivo nº 10.212/2020.

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583
graves problemas de saúde que ultrapassem fronteiras e prejudiquem
grande parte da população mundial. Daí sua importância como norma
gestora dos princípios internacionais de proteção da saúde, que, em últi-
ma análise, versa questão global (lato sensu) de direitos humanos.

Portanto, pandemias como a da Covid-19 são exatamente o foco para


o qual se destina o Regulamento Sanitário Internacional, motivo pelo
qual suas determinações devem ser observadas por todos os Estados. O
instrumento prevê medidas concretas para se evitar graves calamidades
mundiais de saúde, pautadas, especialmente, no dever de informar, que
é considerado o pilar fundamental – ou pedra angular – do sistema inter-
nacional de proteção da saúde26. Com base nesse dever informacional,
realiza-se uma vigilância global em matéria de saúde, tal como persegui-
da pela OMS nos princípios regentes do seu instrumento constitutivo.

Inicialmente, destaque-se que a China é Estado-parte do referido Regula-


mento, cuja natureza jurídica é a de tratado internacional (hard law, portan-
to). Ademais, ao aderir ao instrumento internacional, a China declarou for-
malmente que ele “se aplica à totalidade do território da República Popular
da China, incluindo a Região Administrativa Especial de Hong Kong, a Região
Administrativa Especial da Macau e a Província de Taiwan”27. Tal significa que
a China, no uso livre e consciente de sua vontade soberana, engajou-se for-
malmente a essa norma internacional de caráter vinculante, cujo descum-
primento acarreta a responsabilidade internacional pela violação do tratado.

O citado dever de informar vem previsto no art. 7º do Regulamento,


cuja redação – ao melhor estilo hard law – é direta e imperativa, nos
seguintes termos:

26 Cf. VON BOGDANDY, Armin; VILLAREAL, Pedro A. International law on pandemic


response: a first stocktaking in light of the coronavirus crisis, cit., p. 7.
27 OMS. Regulamento Sanitário Internacional, 2005 (Appendix 2-III, Declarations
and Statements), p. 62.

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584
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Caso um Estado-parte tiver evidências de um evento de saúde públi-


ca inesperado ou incomum dentro de seu território, independentemente
de sua origem ou fonte, que possa constituir uma emergência de saúde
pública de importância internacional, ele fornecerá todas as informações
de saúde pública relevantes à OMS. Nesse caso, aplicam-se na íntegra as
disposições do Artigo 628.

O dispositivo exige que os Estados forneçam à OMS informações


de saúde pública relevantes independentemente da origem ou fonte do
evento inesperado ou incomum ocorrido dentro de seus territórios, que
possam constituir uma emergência de saúde pública de importância in-
ternacional, aplicando-se, na íntegra, as previsões do art. 6º do mesmo
Regulamento (v. infra). Não há dúvidas, por outro lado, de que o novo
coronavírus (Sars-Cov-2) foi um evento de saúde pública inesperado den-
tro do território chinês, constituindo uma emergência de saúde pública
de importância internacional, atualmente preocupando a maioria dos
países do mundo e causando problemas de toda ordem.

O art. 6º do Regulamento – referido na parte final do art. 7º – pre-


vê quais medidas devem ser tomadas pelos Estados sobre os eventos
ocorridos em seu território que constituam uma emergência de saúde
pública internacional, nos seguintes termos:

1. Cada Estado-parte avaliará os eventos que ocorrerem den-


tro de seu território, utilizando o instrumento de decisão do
Anexo 2. Cada Estado-parte notificará a OMS, pelos mais
eficientes meios de comunicação disponíveis, por meio do

28 No original, em inglês: “If a State Party has evidence of an unexpected or unusual


public health event within its territory, irrespective of origin or source, which may constitute a
public health emergency of international concern, it shall provide to WHO all relevant public
health information. In such a case, the provisions of Article 6 shall apply in full”.

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585
Ponto Focal Nacional para o RSI, e dentro de 24 horas a
contar da avaliação de informações de saúde pública, sobre
todos os eventos em seu território que possam se consti-
tuir numa emergência de saúde pública de importância in-
ternacional, segundo o instrumento de decisão, bem como
de qualquer medida de saúde implementada em resposta
a tal evento. Se a notificação recebida pela OMS envolver a
competência da Agência Internacional de Energia Atômica
(AIEA), a OMS notificará imediatamente essa Agência.

2. Após uma notificação, o Estado-parte continuará a comunicar


à OMS as informações de saúde pública de que dispõe sobre
o evento notificado, de maneira oportuna, precisa e em nível
suficiente de detalhamento, incluindo, sempre que possível,
definições de caso, resultados laboratoriais, fonte e tipo de
risco, número de casos e de óbitos, condições que afetam a
propagação da doença; e as medidas de saúde empregadas,
informando, quando necessário, as dificuldades confrontadas
e o apoio necessário para responder à possível emergência
de saúde pública de importância internacional29.

29 No original, em inglês: “1. Each State Party shall assess events occurring within its ter-
ritory by using the decision instrument in Annex 2. Each State Party shall notify WHO, by the most
efficient means of communication available, by way of the National IHR Focal Point, and within
24 hours of assessment of public health information, of all events which may constitute a public
health emergency of international concern within its territory in accordance with the decision in-
strument, as well as any health measure implemented in response to those events. If the notifica-
tion received by WHO involves the competency of the International Atomic Energy Agency (IAEA),
WHO shall immediately notify the IAEA. 2. Following a notification, a State Party shall continue to
communicate to WHO timely, accurate and sufficiently detailed public health information available
to it on the notified event, where possible including case definitions, laboratory results, source and
type of the risk, number of cases and deaths, conditions affecting the spread of the disease and
the health measures employed; and report, when necessary, the difficulties faced and support
needed in responding to the potential public health emergency of international concern”.

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586
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

O Anexo 2 do Regulamento – referido pelo art. 6º(1) – é o denominado


instrumento de decisão dos Estados, que estabelece um procedimento es-
pecífico para que as autoridades estatais avaliem a natureza, as condições,
os impactos e os riscos do evento inesperado ocorrido em seu território30.

A questão que se coloca, portanto, é saber se a China avisou a au-


toridade mundial de saúde – a OMS – pelos “mais eficientes meios de
comunicação disponíveis” e “dentro do prazo de 24 horas a contar da
avaliação de informações de saúde pública” sobre todos os eventos em
seu território que podiam se constituir em emergência de saúde pública
de importância internacional, consoante o art. 6º do Regulamento.

As notícias amplamente divulgadas na imprensa demonstram que os


agentes do Estado demoraram muito mais tempo do que o estabelecido
para compartilhar as informações internas em nível internacional31. De
fato, foi apenas em 21 de janeiro – duas semanas após o ocorrido – que o
governo chinês admitiu publicamente que a transmissão do vírus ocorria
de pessoa a pessoa, informando esse fato à OMS. Portanto, o retardo
do sistema de aviso do Chinese Center for Disease Control and Preven-
tion – CDC estaria a violar – em nome da República Popular da China – a
obrigação de informar prevista no art. 7º do Regulamento, uma vez que
não houve o fornecimento de “todas as informações de saúde pública
relevantes à OMS”, como determina o dispositivo.

Perceba-se que a falta de diligência, ab initio, do Chinese Center for


Disease Control and Prevention, deve ser imputada ao Estado chinês, pois

30 OMS. Regulamento Sanitário Internacional, 2005 (Anexo 2).


31 BUCKLEY, Chris; MYERS, Steven Lee. China retardou ações que poderiam conter ví-
rus para fugir de embaraços políticos. Folha de S. Paulo, 04 Fevereiro 2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/02/china-retardou-acoes-que-pode-
riam-conter-coronavirus-para-fugir-a-embaracos-politicos.shtml. Acesso em: 04 abr. 2020.

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587
se trata de “uma organização técnica de nível governamental e nacional
especializada em controle e prevenção de doenças de saúde pública”,
como informa a página web oficial do órgão32. Só por isso, está a incidir,
de imediato, o art. 8º do Projeto de Convenção da ONU sobre responsa-
bilidade internacional dos Estados por atos ilícitos, que prevê que “[a]
conduta de um órgão do Estado, pessoa ou entidade destinada a exercer
atribuições do poder público será considerada um ato do Estado, conso-
ante o Direito Internacional, se o órgão, pessoa ou entidade age naquela
capacidade, mesmo que ele exceda sua autoridade ou viole instruções”.

Ademais, ainda que o prazo de 24 horas previsto pelo art. 6º do Re-


gulamento seja bastante exíguo, certo é que o governo chinês se pro-
nunciou semanas depois sobre o ocorrido em Wuhan33. A própria mor-
te do médico oftalmologista que deu as primeiras informações sobre o
novo vírus foi retardada pelas autoridades chinesas, que só admitiram o
ocorrido após horas de confusão no país, em meio a uma onda de dor e
inconformismo nas dedes sociais34. O Escritório de Segurança Pública de
Wuhan, nos primeiros dias da epidemia, repreendeu o médico sob o ar-
gumento de que ele estaria espalhando “notícias faltas”, o que, na China,
pode levar à prisão; e no dia 19 de março de 2020 admitiu ter indiciado
o médico de forma equivocada.

32 Conferir em: http://www.chinacdc.cn/en.


33 BUCKLEY, Chris; MYERS, Steven Lee. Como a omissão do governo chinês pode
ter contribuído para a disseminação do cononavírus. O Globo, 02 Fevereiro 2020. Dispo-
nível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/como-omissao-do-governo-chines-pode-
-ter-contribuido-para-disseminacao-do-coronavirus-24225574. Acesso em: 04 abr. 2020.
34 LIY, Macarena Vidal. China confirma a morte do médico que alertou sobre o
coronavírus após horas de confusão. El País, 06 Fevereiro 2020. Disponível em: https://bra-
sil.elpais.com/sociedade/2020-02-06/china-confirma-a-morte-do-medico-que-alertou-
-sobre-o-coronavirus-apos-horas-de-confusao.html. Acesso em: 04 abr. 2020.

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588
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

Portanto, se a população tivesse conhecimento do que avisaram os


profissionais de saúde chineses, que detectaram em primeira mão o
problema, seguramente a doença não teria se alastrado tanto na China
como no resto do mundo, como acabou ocorrendo35. Nesse sentido, o
art. 14(3) do Projeto de Convenção da ONU estabelece que “[a] violação
de uma obrigação internacional que exija do Estado a prevenção de um
certo acontecimento produzir-se-á no momento em que começa esse
acontecimento e se estende por todo o período em que o evento con-
tinua e permanece em desacordo com aquela obrigação”. Nesse caso,
parece não haver dúvidas de que há obrigação do Estado e que a mesma
continua com a prorrogação da pandemia no mundo.

Todos esses fatos somados demonstram que a China violou as normas


expressas no Regulamento Sanitário Internacional e, por consequência, a
ordem global relativa à proteção da saúde humana, ensejando, por isso,
responsabilização internacional pelos prejuízos causados à saúde pública e
à economia de vários países do mundo36. Ademais, se se pensa que o insti-
tuto da responsabilidade internacional foi utilizado para condenar Estados
por prejuízos muito menores – em termos de vida e econômicos – causados
a outros, não faz sentido supor que no caso da pandemia da Covid-19 não
exista responsabilidade pelos prejuízos decursivos, ocasionados, em grande
escala, pelo descumprimento do dever de informar ordenado pela normati-
va – aceita e ratificada pela China – da Organização Mundial de Saúde.

35 Idem, ibidem.
36 Assim, FILDER, David. Covid-19 and international law: must China compensate
countries for the damage? Just Security, 27 March 2020. Disponível em: https://www.justsecu-
rity.org/69394/covid-19-atrand-international-law-must-china-compensate-countries-for-the-
damage-international-health-regulations. Acesso em: 06 abr. 2020; e BAGARES, Romel Rega-
lado. China, international law, and Covid-19. Inquirer, 22 March 2020. Disponível em: https://
opinion.inquirer.net/128226/china-international-law-and-covid-19. Acesso em: 08 abr. 2020.

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589
O Projeto de Convenção da ONU sobre responsabilidade internacio-
nal dos Estados por atos ilícitos prevê, no art. 31, o dever de reparação
dos danos causados pelo Estado, pelo que determina:

1. O Estado responsável tem obrigação de reparar integralmen-


te o prejuízo causado pelo ato internacionalmente ilícito.

2. O prejuízo compreende qualquer dano, material ou moral,


causado pelo ato internacionalmente ilícito de um Estado.

O mesmo Projeto de Convenção também estabelece, no art. 32, que


“[o] Estado responsável não pode invocar as disposições de seu direito
interno como justificativa pela falha em cumprir com as obrigações que
lhe são incumbidas de acordo com esta Parte”. Assim, além do dever que
a China teria de reparar os danos causados pela pandemia, também não
poderia invocar disposições do direito interno como justificativa pelo não
cumprimento da obrigação internacional em causa, como, aliás, já prevê
o art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969:
“Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para
justificar o inadimplemento de um tratado”37.

Não se pode, contudo, deixar de concordar que é improvável que mui-


tos Estados se insurjam contra a China relativamente à pandemia da Co-
vid-19, especialmente sobre o descumprimento do Regulamento Sanitário
Internacional, pela razão simples de que todos os países do mundo podem
dar início a surtos, epidemias ou pandemias congêneres, além do que isso
não raro acontece. Tal cria – como diz David Fidler – um “incentivo coleti-

37 Para um comentário completo do art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito


dos Tratados de 1969, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito dos tratados. 2. ed. rev.,
atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 219-227.

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590
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

vo” entre os países, que enfraquece o desejo de demonstrar que a China


efetivamente violou norma vinculante do Direito Internacional Público38.

Seja como for, a nossa conclusão parcial (conclusão 1) é a de que houve


violação de norma internacional convencional (hard law) pela República Po-
pular da China, ao não informar a OMS – no prazo determinado pelo Regula-
mento Sanitário Internacional e sem a devida diligência – da epidemia inicial
(e posterior pandemia) surgida em Wuhan, província de Hubei, que levou ao
alastramento da Covid-19 para fora da China em poucos dias e ao desconhe-
cimento de todo o mundo sobre os seus sintomas e efeitos. A falta de dili-
gência Chinesa – conforme amplamente noticiado na imprensa internacional
– acarretou prejuízos de vidas humanas e econômicos para vários Estados.

3.2 Recomendações da OMS no caso da pandemia da Covid-19

Para além das determinações (hard law) da OMS, a Organização tem


também a prática de recomendar condutas aos Estados em casos de epi-
demias e pandemias. Tais recomendações vêm previstas no próprio ins-
trumento constitutivo da Organização, e, portanto, têm lastro em norma
convencional, não obstante, elas próprias, serem normas de soft law.

O art. 2º, k, da Constituição da OMS destaca que, para lograr o seu


objetivo de proteção da saúde em nível mundial, será função da Organi-
zação Mundial de Saúde: Propor convenções, acordos e regulamentos
e fazer recomendações respeitantes a assuntos internacionais de saúde
e desempenhar as funções que neles sejam atribuídas à Organização,
quando compatíveis com os seus fins39.

38 FILDER, David. Covid-19 and international law: must China compensate coun-
tries for the damage? Just Security, 27 March 2020, cit.
39 No original, em inglês: “To propose conventions, agreements and regulations, and
make recommendations with respect to international health matters and to perform such
duties as may be assigned thereby to the Organization and are consistent with its objective”.

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591
O art. 23 da mesma Constituição deixa assente que “[a] Assem-
bleia da Saúde terá autoridade para fazer recomendações aos Estados-
-membros com respeito a qualquer assunto dentro da competência da
Organização”40. Por sua vez, o art. 62 do instrumento determina que “[c]
ada Estado-membro apresentará anualmente um relatório sobre as me-
didas tomadas em relação às recomendações que lhe tenham sido feitas
pela Organização e em relação às convenções, acordos e regulamentos”41.

Não há dúvidas, assim, de que devem os Estados-membros respei-


tar as recomendações provindas da Organização em casos de epidemias
ou pandemias transnacionais, cuja legalidade decorre do próprio instru-
mento constitutivo da Organização. O fato de se estar diante de norma
de soft law não impede que se reconheça que os comandos dali pro-
venientes devem ser seguidos pelos Estados, dado que as recomenda-
ções só guardam essa característica pela sua expedição mais facilitária,
que independe da conclusão (sempre mais morosa e complexa) de um
tratado com o mesmo objetivo. Ademais, registre-se que a praticidade
das relações internacionais demanda haver normas cuja expressividade
pode decorrer dos órgãos deliberativos de organizações internacionais,
pois lastreadas, a priori, no próprio tratado constitutivo da Organização.
Apenas se está um nível atrás relativamente à vinculação direta que um
tratado produz em termos de efeitos para os Estados, nada mais.

Destaque-se que todas as recomendações de higiene (p. ex.: limpeza


das mãos com sabão ou álcool em gel 70%) e distanciamento de pessoas

40 No original, em inglês: “The Health Assembly shall have authority to make recom-
mendations to Members with respect to any matter within the competence of the Organization”.
41 No original, em inglês: “Each Member shall report annually on the action taken
with respect to recommendations made to it by the Organization and with respect to con-
ventions, agreements and regulations”.

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592
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

(p. ex.: período de isolamento e quarentena em casa) são importantes para


evitar maiores contágios da pandemia em curso, sem o que o número de
infecções crescerá em progressão geométrica, como têm experimentado
países como a Itália, Espanha, os Estados Unidos e a própria China.

Ademais, o fato de desrespeitar as recomendações das organizações


internacionais põe em xeque a autoridade objetiva dos organismos de mo-
nitoramento e controle para a proteção da população mundial de pande-
mias como esta, uma vez que o mundo, de há muito, não conhece frontei-
ras e a propagação de pessoa a pessoa é quase que instantânea. Por isso,
não faz qualquer sentido o Estado participar de uma organização interna-
cional – que, por sua vez, cria e põe em marcha determinado mecanismo
de monitoramento e controle – se não for para seguir as suas recomen-
dações e deliberações. Além do respeito que os Estados devem ter para
com as recomendações e deliberações da OMS, é também importante que
não fique a imagem do Estado internacionalmente maculada, como não
cumpridor de suas obrigações internacionais relativas a direitos humanos.

Seja como for, certo é que, na prática, os Estados – muitas vezes, sem
qualquer justificativa plausível – mais desconsideram as decisões dos or-
ganismos internacionais competentes que efetivamente as aplicam. À evi-
dência que a conduta estatal não deveria ser dessa forma, por ser a OMS
organismo especializado e conhecedor técnico dos problemas sanitários
mundiais. Daí a constatação de que o desrespeito às prescrições estabele-
cidas pela OMS é um ato falho e danoso, não somente para as relações in-
ternacionais do País, senão também para a sanidade de todo o planeta, vez
que permite o alastramento de pandemia ainda sem cura em todo o mundo.

Os milhares de mortes ocasionadas pela Covid-19 estão patentes em


todo o mundo e, por isso, não se pode duvidar da verdade notória, clara,
constatável e informada minuto a minuto em todo o globo, bem assim

Ir para o índice
593
faltar com o dever de precaução necessário em momentos tais, dadas as
incertezas científicas que ainda permeiam a pandemia em causa. Hoje –
abril de 2020 – o mundo não sabe como a pandemia se comportará nos
próximos dias e meses, mas já se tem o exemplo de vários países que se
arrependeram em não tomar medidas em tempo oportuno.

4. SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS INTERNACIONAIS E RECURSO


À CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA

Verificada a responsabilidade internacional da China por descumprimen-


to dos regulamentos sanitários internacionais, cabe agora investigar como se
solucionam as controvérsias relativas ao tema, bem assim a possibilidade de
acionamento do Estado perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ).

Como se viu, o Regulamento Sanitário Internacional (2005) deter-


mina que “[c]ada Estado-parte notificará a OMS, pelos mais eficientes
meios de comunicação disponíveis, por meio do Ponto Focal Nacional
para o RSI, e dentro de 24 horas a contar da avaliação de informações
de saúde pública, sobre todos os eventos em seu território que possam
se constituir numa emergência de saúde pública de importância inter-
nacional, segundo o instrumento de decisão, bem como de qualquer
medida de saúde implementada em resposta a tal evento” (art. 6º).
Igualmente, constatou-se que a China não cumpriu com o dever de in-
formar a OMS e a sociedade internacional sobre a inicial epidemia da
Covid-19 iniciada em seu território.

Para o fim se solucionar as controvérsias nascidas quanto à interpre-


tação ou aplicação do Regulamento, este instrumento estabeleceu – no
seu art. 56, intitulado Solução de controvérsias – o seguinte:

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594
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

1. Em caso de controvérsia entre dois ou mais Estados Partes


quanto à interpretação ou aplicação deste Regulamento, os
Estados Partes em questão deverão procurar, em primeira
instância, resolver a controvérsia por meio de negociação
ou qualquer outro meio pacífico de sua própria escolha,
incluindo bons ofícios, mediação ou conciliação. O fracasso
em chegar a um acordo não eximirá as partes em controvér-
sia da responsabilidade de continuar a procurar resolvê-la.

2. Caso a controvérsia não seja resolvida pelos meios descritos


no parágrafo 1º deste Artigo, os Estados Partes envolvidos
poderão concordar em referir a controvérsia ao Diretor-Ge-
ral, que envidará todos os esforços para resolvê-la.

3. Um Estado-parte poderá, a qualquer momento, declarar


por escrito ao Diretor-Geral que aceita a arbitragem como
recurso compulsório em relação a todos as controvérsias
de que for parte, referentes à interpretação ou aplicação
deste Regulamento ou a respeito de uma controvérsia
específica em relação a qualquer outro Estado-parte que
aceite a mesma obrigação. A arbitragem será realizada em
conformidade com as Regras Opcionais do Tribunal Perma-
nente de Arbitragem para a Arbitragem de Controvérsias
entre Dois Estados que forem aplicáveis no momento em
que for feita uma solicitação de arbitragem. Os Estados
Partes que concordaram em aceitar a arbitragem como
compulsória deverão aceitar a decisão arbitral como vin-
culante e final. O Diretor-Geral deverá informar a Assem-
bleia de Saúde sobre tal ação, conforme apropriado.

Ir para o índice
595
4. Nada neste Regulamento deverá prejudicar os direitos de
Estados Partes, nos termos de qualquer acordo internacio-
nal de que possam ser signatários, a recorrer aos mecanis-
mos de solução de controvérsias de outras organizações
intergovernamentais, ou estabelecidos nos termos de
qualquer acordo internacional.

5. Em caso de um litígio entre a OMS e um ou mais Estados


Partes referente à interpretação ou aplicação deste Regula-
mento, a questão será submetida à Assembleia de Saúde42.

Dessa forma, os Estados-partes – interessados em resolver suas con-


trovérsias à luz do Regulamento – deverão buscar, primeiramente, a re-
solução da contenda pela negociação ou qualquer outro meio pacífico de

42 No original, em inglês: “1. In the event of a dispute between two or more States
Parties concerning the interpretation or application of these Regulations, the States Parties
concerned shall seek in the first instance to settle the dispute through negotiation or any
other peaceful means of their own choice, including good offices, mediation or conciliation.
Failure to reach agreement shall not absolve the parties to the dispute from the responsibil-
ity of continuing to seek to resolve it. 2. In the event that the dispute is not settled by the
means described under paragraph 1 of this Article, the States Parties concerned may agree
to refer the dispute to the Director-General, who shall make every effort to settle it. 3. A
State Party may at any time declare in writing to the Director-General that it accepts arbitra-
tion as compulsory with regard to all disputes concerning the interpretation or application
of these Regulations to which it is a party or with regard to a specific dispute in relation to
any other State Party accepting the same obligation. The arbitration shall be conducted in
accordance with the Permanent Court of Arbitration Optional Rules for Arbitrating Disputes
between Two States applicable at the time a request for arbitration is made. The States Par-
ties that have agreed to accept arbitration as compulsory shall accept the arbitral award as
binding and final. The Director-General shall inform the Health Assembly regarding such ac-
tion as appropriate. 4. Nothing in these Regulations shall impair the rights of States Parties
under any international agreement to which they may be parties to resort to the dispute
settlement mechanisms of other intergovernmental organizations or established under any
international agreement. 5. In the event of a dispute between WHO and one or more States
Parties concerning the interpretation or application of these Regulations, the matter shall
be submitted to the Health Assembly”.

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596
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

sua própria escolha, incluindo bons ofícios, mediação ou conciliação43.


Não é aqui o lugar de explicar cada qual desses meios diplomáticos de
solução de conflitos, o que já fizemos detalhadamente em outro lugar44.
Cabe, no entanto, referir que tais meios de solução de contendas nem
sempre alcançam os resultados desejados, razão pela qual o mesmo art.
56(2) do Regulamento prevê o “recurso” ao Diretor-Geral da Organiza-
ção, e, caso este também não resolva a questão, abre-se a possibilidade
de arbitragem entre os Estados envolvidos.

No que tange à solução arbitral, o Regulamento deixa claro que os Esta-


dos devem aceitar – declarando “por escrito” ao Diretor-Geral – o arbitra-
mento como meio de solução de litígios, sem o que a contenda não poderá
ser resolvida. Portanto, seria necessário que a China aceitasse a sua submis-
são à solução arbitral, o que será difícil de ocorrer, ainda mais se se pensa
que o Estado chinês é membro permanente do Conselho de Segurança da
ONU e têm, naquele órgão das Nações Unidas, o conhecido poder de veto.

Frise-se que o Regulamento Sanitário Internacional não contém regra


sobre pagamentos ou indenizações nos casos de violação dos comandos
que estabelece. Tal não significa, contudo, que o costume internacional
relativo às compensações decorrentes de atos ilícitos não consagre o ins-
tituto em questão. Na prática, no entanto, não se tem visto ações cujo
objeto seria a reparação pecuniária em casos de surtos, epidemias ou
pandemias transnacionais, pois – é verdade – não convém politicamen-

43 Há informações, no entanto, de que os Estados nunca se utilizaram das dispo-


sições sobre solução de controvérsia dos tratados sobre doenças infecciosas do século XIX
até os dia de hoje. V. FILDER, David. Covid-19 and international law: must China compen-
sate countries fot the damage? Just Security, 27 March 2020, cit.
44 V. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público, cit.,
p. 984-989.

Ir para o índice
597
te usar o costume internacional respectivo em casos tais, notadamente
porque o cumprimento de um tratado como o Regulamento Sanitário
Internacional envolve incertezas científicas, questões de saúde pública e
complexos cálculos políticos45.

No entanto, o art. 75 da Constituição da OMS – instrumento consti-


tutivo da Organização e framework sob o qual se assentam todas as suas
demais normas – prevê a possibilidade de recurso à Corte Internacional
de Justiça, ponto que particularmente interessa a essa investigação. Nos
termos do art. 75 da Constituição da OMS:

Qualquer questão ou divergência referente à interpretação ou apli-


cação desta Constituição que não for resolvida por negociações ou pela
Assembleia da Saúde será submetida à Corte Internacional de Justiça, em
conformidade com o Estatuto da Corte, a menos que as partes interessa-
das concordem num outro modo de solução46.

A Corte Internacional de Justiça (CIJ) já reconheceu a validade do art.


75 da Constituição da OMS no § 99 do caso dos Conflitos Armados no Ter-
ritório do Congo (República Democrática do Congo Vs. Ruanda) de 200247.
No parágrafo referido, a CIJ (na decisão do ano de 2006) assim referiu:

A Corte observa que a República Democrática do Congo é parte da


Constituição da OMS desde 24 de fevereiro de 1961, e Ruanda desde

45 V. FILDER, David. Covid-19 and international law: must China compensate coun-
tries fot the damage? Just Security, 27 March 2020, cit.
46 No original, em inglês: “Any question or dispute concerning the interpretation
or application of this Constitution which is not settled by negotiation or by the Health As-
sembly shall be referred to the International Court of Justice in conformity with the Statute
of the Court, unless the parties concerned agree on another mode of settlement”.
47 CIJ, Affaire des Activités Armées sur le Territoire du Congo, arrêt du 3 février
2006, § 99.

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598
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

7 de novembro de 1962, e que tanto uma como a outra são membros


dessa Organização. A Corte observa, igualmente, que o artigo 75 da
Constituição da OMS prevê, sob as condições previstas nessa disposição,
a competência da Corte para conhecer de “qualquer questão ou diver-
gência referente à interpretação ou aplicação” deste instrumento. Essa
disposição exige que tal questão ou divergência diga respeito à interpre-
tação ou aplicação desta Constituição em particular48.

Naquela ocasião, a CIJ entendeu que o Congo não satisfez quaisquer


das condições previstas pelo art. 75 da Constituição da OIT, a saber, se re-
solveu a contenda por negociações diretas com Ruanda ou se provocou a
Assembleia da Saúde para que dirimisse a questão, razão pela qual con-
cluiu (§ 101 da sentença) não ser possível, à luz do art. 75 citado, reconhe-
cer a competência do tribunal para conhecer do litígio49. Como se nota,
há, portanto, precedente da CIJ sobre a aplicação do art. 75 da OMS; no
precedente o tribunal apenas exige que as condições previstas pelo dispo-
sitivo sejam satisfeitas pelo Estado antes de provocar a jurisdição da Corte.

Dessa sorte, será então possível provocar a CIJ para responsabilizar


a China pelo descumprimento das normas sanitárias internacionais, que

48 No original, em francês: “La Cour observe que la RDC est partie à la Constitution
de l’OMS depuis le 24 février 1961 et le Rwanda depuis le 7 novembre 1962, et qu’ils sont
ainsi l’un et l’autre membres de cette organisation. La Cour note également que l’article 75
de la Constitution de l’OMS prévoit, aux conditions posées par cette disposition, la compé-
tence de la Cour pour connaître de ‘toute question ou différend concernant l’interprétation
ou l’application’ de cet instrument”. Na versão em inglês: “The Court observes that the
DRC has been a party to the WHO Constitution since 24 February 1961 and Rwanda since
7 November 1962 and that both are thus members of that Organization. The Court further
notes that Article 75 of the WHO Constitution provides for the Court’s jurisdiction, under
the conditions laid down therein, over ‘any question or dispute concerning the interpreta-
tion or application’ of that instrument”.
49 CIJ, Affaire des Activités Armées sur le Territoire du Congo, arrêt du 3 février
2006, § 101.

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599
fazem parte do mosaico normativo da OMS. Ademais, frise-se que se a
CIJ interpretar o art. 75 da Constituição da OMS do mesmo modo que in-
terpretou o art. 22 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de To-
das as Formas de Discriminação Racial de 1965, no julgamento das Obje-
ções Preliminares do caso Ucrânia Vs. Federação Russa sobre a aplicação
da Convenção, bastaria que um Estado satisfizesse a condição preliminar
da negociação – tese da “uma ou outra condição”, como defendemos –
para que pudesse demandar internacionalmente a China, sem ter que
provocar, previamente, a Assembleia da Saúde para resolve a contenda50.
O citado art. 22 da Convenção internacional de 1965, assim dispõe:

As controvérsias entre dois ou mais Estados-membros, com relação


à interpretação ou aplicação da presente Convenção que não puderem
ser dirimidas por meio de negociação ou pelos processos previstos ex-
pressamente nesta Convenção serão, a pedido de um deles, submetidas
à decisão da Corte Internacional de Justiça, a não ser que os litigantes
concordem com outro meio de solução51.

Neste caso, a CIJ entendeu, no § 113 da sentença relativa às Ob-


jeções Preliminares, que a Convenção de 1965 “impõe pré-condições
alternativas à jurisdição da Corte”, e que “[c]omo a controvérsia entre
as Partes não foi encaminhada ao Comitê CERD [Comitê da Convenção],
a Corte apenas examinará se as Partes tentaram negociar uma solução

50 Assim, TZENG, Peter. Taking China to the International Court of Justice over Co-
vid-19. EJIL: Talk!, 2 April 2020. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/taking-china-to-
-the-international-court-of-justice-over-covid-19. Acesso em: 04 abr. 2020.
51 No original, em inglês: “Any dispute between two or more States Parties with
respect to the interpretation or application of this Convention, which is not settled by nego-
tiation or by the procedures expressly provided for in this Convention, shall, at the request
of any of the parties to the dispute, be referred to the International Court of Justice for
decision, unless the disputants agree to another mode of settlement”.

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600
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

para a controvérsia”52. Essa decisão – de 8 de novembro de 2019 – é


bastante recente e há de servir como paradigma para casos futuros
submetidos à jurisdição da Corte53. Assim, a seguir o mesmo raciocínio,
bastariam as negociações preliminares para se poder levar a China à
jurisdição da CIJ no caso da Covid-19.

Toda a dificuldade, porém, está em encontrar no próprio texto da


Constituição da OMS obrigações objetivas aos Estados de salvaguarda
da saúde em casos de pandemias transnacionais, tais as constantes do
Regulamento Sanitário Internacional de 2005. Tudo isso leva a incertezas
sobre a possibilidade de um Estado demandar a China na CIJ pela pan-
demia da Covid-19, dado que faltaria justificativa jurídica para tanto. A
solução mais concreta, ao nosso ver, seria responsabilizar a China pelo
descumprimento do dever de informar constante no Regulamento Sani-
tário Internacional, por meio do dispositivo da Constituição da OMS que
prevê a competência da Organização para “[p]ropor convenções, acordos
e regulamentos e fazer recomendações respeitantes a assuntos interna-
cionais de saúde e desempenhar as funções que neles sejam atribuídas
à Organização, quando compatíveis com os seus fins” (art. 2º, k). Assim,
estaria vinculada a Constituição da OMS ao Regulamento de 2005, e, por-
tanto, abertas as portas da CIJ para a responsabilização do Estado.

52 CIJ, Application de la Convention Internationale pour la Répression du Finance-


ment du Terrorisme et de la Convention Internationale sur l’Élimination de Toutes les Formes
de Discrimination Raciane, arrêt du 8 Novembre 2019, § 113. No original, em francês: “La
Cour conclut que l’article 22 de la CIEDR subordonne sa compétence au respect de condi-
tions préalables de caractère alternatif. Le Comité de la CIEDR n’ayant pas été saisi du diffé-
rend entre les Parties, la Cour recherchera seulement si celles-ci ont tenté d’en négocier le
règlement”. No original, em inglês: “The Court concludes that Article 22 of CERD imposes
alternative preconditions to the Court’s jurisdiction. Since the dispute between the Parties
was not referred to the CERD Committee, the Court will only examine whether the Parties
attempted to negotiate a settlement to their dispute”.
53 Em paralelo, relembre-se a obra clássica de: LAUTERPACHT, Hersch. The develop-
ment of international law by the International Court. London: Stevens & Sons, 1958, 408p.

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601
Ademais, o artigo 21 da Constituição da OMS atribui expressamente
à Assembleia da Saúde autoridade para adotar regulamentos relativos a:
a) medidas sanitárias e de quarentena e outros procedimentos destina-
dos a evitar a propagação internacional de doenças; b) nomenclaturas
relativas a doenças, causas de morte e medidas de saúde pública; c) nor-
mas respeitantes aos métodos de diagnóstico para uso internacional; d)
normas relativas à inocuidade, pureza e ação dos produtos biológicos,
farmacêuticos e similares que se encontram no comércio internacional;
e e) publicidade e rotulagem de produtos biológicos, farmacêuticos e si-
milares que se encontram no comércio internacional54.

Com fundamento nessa disposição, poder-se-ia ainda entender que


a China violou o Regulamento Sanitário Internacional pela via do art. 22
da Constituição da OMS, que atribui autoridade à Assembleia da Saúde
para tomar as ditas medidas sanitárias internacionais. Segundo o que de-
termina a norma, “[o]s regulamentos adotados em conformidade com o
artigo 21 entrarão em vigor para todos os Estados-membros depois de
sua adoção ter sido devidamente notificada pela Assembleia da Saúde,
exceto para os Estados-membros que comuniquem ao diretor-geral a sua
rejeição ou reservas dentro do prazo indicado na notificação”55. Perceba-
-se que o dispositivo prevê a entrada em vigor automática das decisões

54 No original, em inglês: “The Health Assembly shall have authority to adopt


regulations concerning: (a) sanitary and quarantine requirements and other procedures
designed to prevent the international spread of disease; (b) nomenclatures with respect to
diseases, causes of death and public health practices; (c) standards with respect to diag-
nostic procedures for international use; (d) standards with respect to the safety, purity and
potency of biological, pharmaceutical and similar products moving in international com-
merce; (e) advertising and labelling of biological, pharmaceutical and similar products mov-
ing in international commerce”.
55 No original, em inglês: “Regulations adopted pursuant to Article 21 shall come
into force for all Members after due notice has been given of their adoption by the Health
Assembly except for such Members as may notify the Director-General of rejection or res-
ervations within the period stated in the notice”.

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602
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

da Assembleia da Saúde no âmbito interno dos Estados-membros, sem


necessidade de sua incorporação formal. E, assim, ficaria justificada a
violação, pela China, da Constituição da OMS, abrindo-se as portas –
também sob essa hipótese – para a sua responsabilização perante a CIJ56.

Outra maneira aventada de responsabilização da China seria pela


via do art. 64 da Constituição da OIT, que dispõe que “[c]ada Estado-
-membro enviará relatórios estatísticos e epidemiológicos pela forma a
determinar pela Assembleia Geral”57. Raciocina-se no sentido de que,
pelo fato de a Assembleia da Saúde determinar que as estatísticas devam
ser preparadas de acordo com o Regulamento de Nomenclatura da OMS
de 196758 – cuja natureza jurídica é a de tratado internacional –, estaria,
assim, configurada a violação indireta do art. 64 da Constituição da OMS,
dado o descumprimento da norma citada do Regulamento. Ademais, te-
ria havido, também, violação do art. 64 da Constituição – falta de envio
de relatórios epidemiológicos – pela via dos já citados arts. 6º e 7º do
Regulamento Sanitário Internacional (que é também norma convencio-
nal obrigatória para os Estados-membros)59. De fato, nos termos do art.
6º do Regulamento, cada Estado-parte deve notificar a OMS, pelos mais

56 V. TZENG, Peter. Taking China to the International Court of Justice over Cov-
id-19. EJIL: Talk! 2 April 2020, cit.
57 No original, em inglês: “Each Member shall provide statistical and epidemiologi-
cal reports in a manner to be determined by the Health Assembly”.
58 World Health Organization. WHO Nomenclature Regulations, 1967, art. 6º: “De
acordo com o previsto no Artigo 64 da Constituição, todos os Membros proporcionarão
à Organização as estatísticas que esta lhes solicite e que não lhe tenham comunicado de
acordo com o Artigo 63 da Constituição, e as prepararão conforme a disposição do presente
Regulamento”. No original, em inglês: “Each member shall, under Article 64 of the Constitu-
tion, provide the Organization on request with statistics prepared in accordance with these
Regulations and not communicated under Article 63 of the Constitution”.
59 Assim, TZENG, Peter. Taking China to the International Court of Justice over Co-
vid-19. EJIL: Talk! 2 April 2020, cit.

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603
eficientes meios de comunicação disponíveis, dentro de 24 horas a con-
tar da avaliação de informações de saúde pública, sobre todos os eventos
em seu território que possam se constituir numa emergência de saú-
de pública de importância internacional; e, segundo o art. 7º, tendo um
Estado-parte evidências de um evento de saúde pública inesperado ou
incomum dentro de seu território, independentemente de sua origem ou
fonte, que possa constituir uma emergência de saúde pública de impor-
tância internacional, deve fornecer todas as informações de saúde públi-
ca relevantes à OMS. Assim, em suma, também se justificaria a violação,
pela China, da Constituição da OMS, abrindo-se, por essas vias, mais uma
forma de responsabilização do Estado chinês perante a CIJ.

Ressalte-se que a obrigatoriedade de cumprimento dos regulamen-


tos da Assembleia da Saúde acarreta aos Estados – nos termos do art. 62
da Constituição da OMS – o dever de apresentar “anualmente um relató-
rio sobre as medidas tomadas em relação às recomendações que lhe te-
nham sido feitas pela Organização e em relação às convenções, acordos e
regulamentos”. De fato, não haveria sentido a norma exigir dos Estados a
apresentação de relatórios anuais se não for para exercer o seu papel de
órgão internacional de monitoramento das questões de saúde mundiais.

Um complicador, porém, poderia se agregar a esse contexto: como


exigir da China reparação de danos se muitos Estados – dentre eles, o
Brasil – não têm feito a sua parte na adoção das medidas de restrição e
isolamento? Tome-se, como exemplo, a Itália, que no início da pandemia
não deu valor para a progressão de alastramento do vírus e agora se
vê arrependida por não ter tomado as medidas de contingenciamento
oportunas. O prefeito de Milão, por exemplo, admitiu publicamente que
a campanha #MilãoNãoPara foi um erro, pois “[n]inguém ainda havia

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604
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

entendido a virulência do vírus”60. O Brasil, por sua vez, está a repetir


o mesmo equívoco, dadas as reiteradas declarações do Presidente Jair
Messias Bolsonaro de que “devemos, sim, voltar à normalidade”, e de
que se deve “abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de
transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa”61.
Essa é, em suma, outra questão a ser trazida ao debate quando se pre-
tender (vale, aqui, a hipótese) exigir responsabilidade da China pela pan-
demia do novo coronavírus.

Seja como for, a outra conclusão parcial (conclusão 2) que se deduz


com esta investigação é no sentido de ser possível demandar a China na
Corte Internacional de Justiça pela pandemia da Covid-19 no mundo.

5. “FORÇA MAIOR” COMO EXCLUDENTE DE ILICITUDE?

Nem todos os atos ilícitos internacionais são capazes de acarretar a


responsabilidade dos Estados. Há circunstâncias capazes de excluir a res-
ponsabilidade internacional de uma soberania, liberando, portanto, o Es-
tado da obrigação de reparar os danos. Tais circunstâncias são “causas de
justificação” que permitem a um Estado, ou outro sujeito, vinculado por
uma norma internacional, praticar determinado ato que, em condições
normais, seria passível de responsabilização62.

Dentre essas circunstâncias, merece destaque aquela que poderá ser


invocada pelo Estado para ver excluída sua responsabilidade internacional

60 Jornal Correio Braziliense, 26 Março 2020.


61 Pronunciamento em Rede Nacional de Televisão, no dia 24.03.2020.
62 V. BAPTISTA, Eduardo Correia. O poder público bélico em direito internacional:
o uso da força pelas Nações Unidas em especial. Coimbra: Almedina, 2003, p. 103.

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605
em caso de pandemias transnacionais: a força maior. Esta tem lugar quan-
do o ilícito praticado tenha sido consequência de um evento externo irre-
sistível ou imprevisto, fora do controle do Estado, tornando materialmente
impossível agir de conformidade com a obrigação assumida. Tal é o que
prevê o art. 23, § 1º, do Projeto de Convenção da ONU, que assim dispõe:

A ilicitude de um ato de um Estado em desacordo com uma obriga-


ção internacional daquele Estado será excluída se o ato se der em
razão de força maior, entendida como a ocorrência de uma força
irresistível ou de um acontecimento imprevisível, além do controle
do Estado, tornando materialmente impossível, nesta circunstân-
cia, a realização da obrigação63.

Não haverá, contudo, excludente de responsabilidade estatal se


(a) a situação irresistível ou imprevista for devida, por si só ou
em combinação com outros fatores, à conduta do Estado que a
invoca, ou (b) caso tenha o Estado assumido o risco da ocorrência
da situação (art. 23, § 2º)64.

Como se nota da redação do art. 32, § 1º, do Projeto de Convenção da


ONU, são necessários os seguintes elementos para que um Estado exclua a
sua responsabilidade internacional por motivo de força maior: (i) que o ato
ou fato se dê em razão de força irresistível ou absolutamente imprevisível;
(ii) que o evento esteja completamente fora do controle do Estado; (iii)
que o ocorrido torne “materialmente impossível” a realização da obrigação

63 No original, em inglês: “The wrongfulness of an act of a State not in conformity


with an international obligation of that State is precluded if the act is due to force majeure,
that is the occurrence of an irresistible force or of an unforeseen event, beyond the control of
the State, making it materially impossible in the circumstances to perform the obligation”.
64 No original, em inglês: “Paragraph 1 does not apply if: (a) the situation of force
majeure is due, either alone or in combination with other factors, to the conduct of the
State invoking it; or (b) the State has assumed the risk of that situation occurring”.

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606
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

pelo Estado; e (iv) que o Estado não tenha sido o responsável pela situação
irresistível ou imprevista ou assumido o risco de sua ocorrência.

Poderia a força maior ser alegada pela China como excludente de ili-
citude no caso da Covid-19? Toda a análise, à evidência, passa por saber
se estava ou não sob o controle do Estado chinês a epidemia originaria-
mente aparecida naquele país. De fato, ainda que se entenda ter havido
responsabilidade da China pela demora na divulgação das informações
sobre o ocorrido em seu território, tal não afasta a possibilidade de haver
excludente de ilicitude caso se comprove que, mesmo tendo conheci-
mento de toda a situação apresentada, seria irresistível a força do evento
danoso (epidemia inicial e pandemia posterior) no que tange às condi-
ções do Estado em efetivamente controlar todas as infecções de pessoa
a pessoa causadas pela transmissão do vírus.

A questão, como se nota, é extremamente complexa e, à primeira vista,


parece fazer sentido o argumento de que, mesmo tendo violado o Regu-
lamento Sanitário Internacional, a República Popular da China não lograria
controlar uma pandemia transnacional dessas proposições, dada a capa-
cidade do novo coronavírus (Sars-Cov-2) de se proliferar muito facilmente
por simples aperto de mão, gotículas de saliva, espirro, tosse ou contato
com superfícies contaminadas, como aparelhos celulares, mesas, maça-
netas, brinquedos, teclados de computador etc. A discussão paralela, no
entanto, dirá respeito à maior propagação da pandemia, dada a demora
da China em avisar as autoridades internacionais de saúde. Mas, repita-se,
pode fazer sentido o argumento da força maior se se provar que, mesmo
com a diligência devida, o evento sairia por completo do controle do Esta-
do, nessa primeira hipótese. Assim, a força irresistível causada pelo alas-
tramento da pandemia – mesmo se houvesse comunicação imediata do
fato, seguindo todas as normas e os protocolos da OMS – levaria à exclusão

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607
de responsabilidade em razão de evento fora de controle do Estado. Em
outras palavras, seria difícil imputar relação de causalidade (nexo causal) à
China em razão da expansão fugaz da pandemia65.

Lembremo-nos, a propósito, do caso do vírus HIV, surgido a partir


do vírus SIV encontrado no sistema imunológico dos chimpanzés e do
macaco-verde africano, provavelmente transmitido ao ser humano com
a domesticação de chimpanzés e macacos-verdes em tribos do centro-
-oeste africano e disseminado para o resto do planeta a partir das déca-
das de 60 e 70. O HIV-1 (Grupo M) – originário dos chimpanzés – foi o
mais amplamente disseminado em todo o mundo, infectando mais de 40
milhões de pessoas. A cidade específica onde a pandemia do HIV teve
início foi Leopoldville, no então Congo Belga – hoje Kinshasa, capital da
República Democrática do Congo – nos anos 1920, especialmente quan-
do se tornou atrativa para jovens em busca de emprego, dentre eles mui-
tos provenientes do Haiti. A doença se espalhou rapidamente pelo Con-
go, com o deslocamento de pessoas pelas ferrovias e hidrovias daquele
país, até sair das fronteiras do Estado. Ademais, a partir dos anos 1960,
com a libertação colonial do Congo, mais pessoas de origem francófona
destinaram-se ao Congo, levando a doença – especialmente a forma par-
ticular do HIV-1 grupo M, chamada “subtipo B” – para os seus respectivos
países anos depois; daí em diante, a doença se espalhou para os Estados
Unidos e Europa (a partir dos anos 1970)66. Esse é um exemplo de evento
sanitário que escapou por completo ao controle do Estado, espraiando-
-se pelo mundo inteiro.

65 Cf. FILDER, David. Covid-19 and international law: must China compensate coun-
tries fot the damage? Just Security, 27 March 2020, cit.
66 V. BARRAS, Colin. Como cientistas conseguiram mapear cidade onde a Aids
“nasceu”. BBC News, 01 Dezembro 2015. Disponível em: https://www.bbc.com/portugue-
se/noticias/2015/12/151126_vert_earth_hiv_origem_virus_rw. Acesso em: 02 abr. 2020.

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608
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

No caso da Covid-19, seria possível que a China tivesse controle inicial


e eficaz sobre as atividades de milhares de pessoas que se deslocaram ra-
pidamente pelo seu território e saíram do país via transporte aéreo? Seria
possível, antes do rastreamento da atividade do vírus, conter a sua expan-
são eficazmente? Esses são questionamentos de difícil resposta, mas que
fazem todo o sentido quando se pensa no instituto da força maior como
excludente de ilicitude em caso de responsabilidade internacional do Esta-
do. Se se entende, v.g., que o impedimento de aeronaves militares sobre-
voarem o território de um Estado sem autorização pode ser desconstituído
se uma mudança climática (força maior) desviar a rota da aeronave para
o território de outro67, com muito maior razão a excludente poderia ser
usada no caso desse “inimigo invisível”, que é a Covid-19.

Dessa forma, no caso da Covid-19, poder-se-ia entender – essa é uma


hipótese, que não reflete obrigatoriamente a verdade – que o acontecimen-
to imprevisível (epidemia e/ou pandemia) fatalmente escaparia à regulação
eficaz de qualquer Estado, mesmo levando em conta que houve atraso da
China na divulgação exata das informações à OMS, tornando materialmente
impossível o estancamento da epidemia inicial (e posterior pandemia).

Por outro lado, não é menos verdade que a falta de informações da


China relativamente à epidemia (em violação à norma internacional res-
pectiva) poderia fazer incidir a regra do art. 23, § 2º, b, do Projeto de
Convenção da ONU, que impede a excludente da força maior “caso tenha
o Estado assumido o risco da ocorrência da situação”. Por efeito dessa
regra, quando o Estado aceita o risco da ocorrência da situação danosa,
em razão de conduta anterior sua ou de ato unilateral seu, não poderá

67 United Nations, Draft articles on Responsibility of States for Internationally


Wrongful Acts with commentaries, 2008, p. 76-77.

Ir para o índice
609
beneficiar-se da força maior para o fim de excluir a ilicitude do ato68. Se
é certo que a regra em apreço vem expressa num projeto de convenção
internacional, e que, portanto, não seria ainda capaz de gerar qualquer
obrigação, não é menos certo que é decorrente de costume internacio-
nal já formado e reconhecido relativo à matéria.

Toda a questão estará em provar se a China efetivamente “assumiu o


risco da ocorrência da situação” gerada pela epidemia (inicial) e pande-
mia (posterior) da Covid-19 em todo o mundo, bem assim se o fato apre-
sentado era (realmente) imprevisível, não obstante a falta de diligência
inicial responsável pela propagação do vírus em progressão geométrica
no planeta. Países que têm histórico de surtos ou epidemias não teriam
melhores condições de prever novos acontecimentos? Se é certo que a
China não deu causa direta à epidemia, nascida de evento natural decor-
rente da interação entre humanos e animais, não é menos verdade que
o atraso – injustificável – na divulgação das informações foi a causa (com
nexo) de sua propagação mais veloz. Esse fato é importante quanto se
leva em conta a possibilidade de responsabilização do Estado pela viola-
ção de normas internacionais hard law.

Outros exemplos bem conhecidos de pandemias mundiais, como a


peste bubônica – que assolou a Europa no século XIV, matando entre 75
e 200 milhões de pessoas – e a varíola – transmitida de pessoa a pessoa
(durante mais de 3 mil anos!) pelo vírus Orthopoxvírus variolae, erradi-
cada no mundo apenas em 1980 –, tiveram seu nascedouro em lugar
determinado, espraiando-se por todos os cantos da Terra. Recorde-se,
também, da chamada Gripe Espanhola de 1918 (vírus influenza mortal)
que dizimou mais de um quarto da população mundial à época, e da Gri-

68 United Nations, Draft articles on Responsibility of States for Internationally


Wrongful Acts with commentaries, 2008, p. 76-77.

Ir para o índice
610
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

pe Suína (H1N1) nascida a partir do vírus encontrado em porcos no Mé-


xico, em 200969. A partir desses exemplos, seria possível que os Estados,
no momento atual, fossem mais diligentes com as suas regras sanitárias
para o fim de impedir novas doenças no mundo? A falta de responsabili-
zação anterior justifica deixar de responsabilizar novamente? Tais são ou-
tras indagações que necessitam de resposta da sociedade internacional,
especialmente da OMS, gestora dos assuntos de saúde pública mundial.

Se se entender que é dificultoso mapear o locus originário do novo


coronavírus (Covid-19) e sua teia de propagação70, torna-se, por con-
sequência, difícil – talvez, porém, não impossível – que se evite uma
epidemia ou pandemia, não obstante o Estado ter a responsabilidade
de sempre prevenir para que o respectivo alcance não seja largamente
ampliado. Teríamos, assim, a situação em que o Estado seria interna-
cionalmente responsável pela violação de norma internacional (con-
clusão 1, supra), com possiblidade de ser demandado perante a Corte
Internacional de Justiça (conclusão 2, supra), mas com a exclusão da
ilicitude em razão de força maior. Essa, portanto, é a nova conclusão
parcial (conclusão 3) a que se chega nesta investigação. O tema, no
entanto, ainda está em aberto e a depender de comprovações (futuras)
de facto sobre a atitude do Estado desde a descoberta das primeiras
infecções pelo vírus até a sua propagação, bem como da análise mais
acurada sobre uma possível contenção imediata da doença, se todos os
protocolos internacionais fossem obedecidos.

69 V. RODRIGUES, Letícia. Conheça as 5 maiores pandemias da história. Revista Ga-


lileu, 20 Março 2020. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noti-
cia/2020/03/conheca-5-maiores-pandemias-da-historia.html. Acesso em: 02 abr. 2020.
70 Cf. ANDERSEN, Kristian G.; RAMBAUT, Andrew; LIPKIN, W. Ian; HOLMES, Edward C.;
GARRY, Robert F. The proximal origin of SARS-VoC-2. Nature Medicine, 17 March 2020. Dis-
ponível em: https://www.nature.com/articles/s41591-020-0820-9. Acesso em: 02 abr. 2020.

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611
6. RESPONSABILIDADE DA OMS POR FALTA DA IMPOSIÇÃO
DE SANÇÕES?

Não obstante ainda precoce para esta investigação preliminar, ca-


beria, no entanto, também indagar sobre eventual responsabilidade da
OMS pela falta de imposição de sanções à China no caso da Covid-19.
Há inúmeras informações, sobretudo da imprensa internacional, que
dão conta de certa leniência da OMS – tanto nesta como em outras
situações de riscos internacionais à saúde – em cobrar dos governos
medidas não só de contenção da crise, como também de reparação
pelos prejuízos decursivos.

Há, evidentemente, muita especulação internacional sobre esse


tema, mas tal não pode impedir que se analise a prática jurídica aceitável
em situações tais e se pontue, à luz das normas do Direito Internacio-
nal Público, quais as eventuais responsabilidades. Neste momento, no
entanto, cabe, repita-se, apenas indagar de eventual responsabilidade
da Organização, à teor da falta de elementos mais concretos até agora
presentes (em abril de 2020).

Destaque-se que em 28 de janeiro de 2020 a OMS emitiu um rela-


tório reconhecendo ter declarado erroneamente o risco do vírus como
“moderado” nos relatórios anteriores, de 23, 24 a 25 de janeiro do mes-
mo ano71. A informação vem expressa na primeira nota de rodapé do
documento, com o seguinte teor:

Um erro na redação dos relatórios de situação datados de 23, 24 e


25 de janeiro foi corrigido em 26 de janeiro. Tais relatórios não refletiam

71 V. World Health Organization. Novel Coronavirus (2019-nCoV), Situation Report


– 8, 28 January 2020. Disponível em: https://www.who.int/docs/default-source/coronavi-
ruse/situation-reports/20200128-sitrep-8-ncov-cleared.pdf. Acesso em: 08 abr. 2020.

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612
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

corretamente a avaliação de risco da OMS. A avaliação de risco utilizada


para informar nossas ações, nossas recomendações aos países e para in-
formar os membros do Comitê de Emergência verifica o risco da seguinte
forma: muito alto na China, alto na região e alto em todo o mundo. (Os
relatórios de situação nas datas acima relataram incorretamente como
moderado no nível global. Eles foram corrigidos)72.

Como se nota, a OMS reconheceu que o alcance da Covid-19 é “mui-


to alto na China, alto na região e alto em todo o mundo”. Do primeiro
relatório (do dia 23 de janeiro) até o relatório de correção (do dia 28 do
mesmo mês) se passaram cinco dias, tempo suficiente para que o vírus
se prolifere mais rapidamente. Os Estados que têm informações sobre
um vírus de gravidade “moderada”, seguramente não tomam as medidas
que uma gravidade “alta” requer. Esse poderia ser, desde já, um indício
de ato de organização internacional que estaria a merecer responsabili-
zação. Contudo, poderá ficar provado que os relatórios iniciais da OMS
pautaram-se em informações repassadas pelo governo chinês, sem o re-
flexo da verdade. Essa situação, até o presente momento, ainda é nebu-
losa e merecerá esclarecimento no futuro.

Por sua vez, no relatório de 16 a 24 de fevereiro de 2020, a OMS


elogiou o governo chinês pelas medidas tomadas para a contenção da
Covid-19, recomendando, no entanto, que (i) mantenha um nível ade-
quado de protocolos de gerenciamento de emergências, dependendo do
risco avaliado em cada área e em atenção ao risco geral de novos casos

72 No original, em inglês: “An error in the wording of the situation reports dated
23, 24 and 25 January was corrected on 26 January. Those reports did not correctly reflect
the WHO risk assessment. The risk assessment used to inform our actions, our advice to
countries, and to brief Emergency Committee members, evaluates the risk as follows: very
high in China, high in the region and high globally. (The situation reports on the above dates
incorrectly reported it as moderate at the global level. They have been corrected)”.

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613
de Covid-19 a partir do reinício das atividades econômicas, (ii) monitore
cuidadosamente o levantamento das atuais restrições às movimentações
e reuniões públicas, (iii) fortaleça os mecanismos de gerenciamento de
emergências, instituições de saúde pública, instalações médicas e meca-
nismos de contenção de novos casos, (iv) priorize pesquisas sobre geren-
ciamento de riscos, envolvendo centros de saúde e levantamentos por
idade, além de investigação rigorosa da interface animal-humano, e (v)
aprimore ainda mais o compartilhamento sistemático e em tempo real
dos dados epidemiológicos, resultados clínicos e experiências73.

Não se vê, contudo, no âmbito da OMS, referências à qualidade dos


dados fornecidos pela China no início da pandemia e sobre a demora do
governo chinês em disponibilizar as informações para a Organização, o
que poderia representar certo tipo de aceite à omissão estatal, que, já se
viu, restou plenamente comprovada (ainda que tal ilicitude possa, even-
tualmente, a depender de provas, ser excluída pela força maior).

Certo é que, nesse primeiro momento, haveria a dificuldade de se


levar adiante uma pretensão de responsabilidade – direta ou indireta-
mente – da OMS por falta de imposição de sanções à China, se se seguir
o raciocínio de Fidler: se é certo que a OMS não impõe como o Regula-
mento Sanitário Internacional deva ser interpretado, não é menos ver-
dade que o próprio Regulamento confere à Organização autoridade nas
suas tomadas de decisão, razão pela qual suas ações nesse contexto não
podem ser ignoradas74. Estariam, assim, os gestores da Organização imu-

73 World Health Organization. Report of the WHO-China Joint Mission on Corona-


virus Disease 2019 (Covid-19), 16-24 February 2020. Disponível em: https://www.who.int/
docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mission-on-covid-19-final-report.pdf.
Acesso em: 08 abr. 2020.
74 Cf. FILDER, David. Covid-19 and international law: must China compensate coun-
tries fot the damage? Just Security, 27 March 2020, cit.

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614
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

nizados pelo poder que lhes confere as normativas da OMS? Esse é outro
questionamento que merecerá análise mais específica doravante.

Contudo, um argumento razoável em favor da China – que quebra-


ria, a priori, o sequenciamento da responsabilidade – seria o seu papel
frente à pandemia e a sua colaboração com vários países do mundo para
a contenção do vírus. De fato, não se pode olvidar que a China, depois
que a pandemia se espalhou pelo mundo, tomou atitudes de coopera-
ção importantes para o fim de combater a maior disseminação do novo
coronavírus. Daí ter sido elogiada pela OMS no relatório de fevereiro de
202075. Nesse sentido é que vários governadores têm solicitado apoio
e ajuda à China, como fez, v.g., o governo do Distrito Federal no Brasil,
que, em março de 2020, solicitou orientações para evitar a proliferação
da doença na capital federal e pleiteou a doação de suprimentos e equi-
pamentos médicos. De acordo com o texto, o governador lembra da “tra-
dicional amizade sino-brasileira” para conseguir ajuda da China, “tendo
em vista a rápida evolução do número de casos registrados no território
brasileiro”76. Tais solicitações de auxílio são fruto das ações que a China
vem desempenhando depois da propagação da Covid-19 no mundo.

Em um primeiro momento, portanto, entende-se faltar ainda ele-


mentos-chave para a pretensão de responsabilidade da OMS frente à
crise do novo coronavírus no mundo, dado que fatores contribuem para
a exclusão de sua responsabilidade a priori: os regulamentos sanitários
internacionais preveem que a Organização deve ser notificada pelo Esta-
do em casos de eventos novos em seu território, o que não aconteceu a

75 World Health Organization. Report of the WHO-China Joint Mission on Coronavi-


rus Disease 2019 (Covid-19), 16-24 February 2020, cit.
76 Agência Brasília. GDF [Governo do Distrito Federal] pede ajuda à China para
combater coronavírus. Disponível em: https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2020/03/20/
gdf-pede-ajuda-a-china-para-combater-coronavirus/. Acesso em: 06 abr. 2020.

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615
tempo (e, nesse caso, não se poderia responsabilizar a OMS por ato de
outrem); desde o momento em que a pandemia se alastrou, a Organi-
zação vem tomando medidas de contenção da doença, porém depende
das atividades dos Estados para lograr êxito em suas recomendações,
certo de que vários Estados – entre eles, repita-se, o Brasil – não colabo-
ram suficientemente com suas recomendações.

Não se nota – aqui se tem nova conclusão parcial (conclusão 4) – res-


ponsabilidade imputável à OMS, a priori, pela pandemia do novo coronaví-
rus, à luz dos elementos de convicção que se têm até o presente momento.

7. A GLOBALIZAÇÃO DE JOELHOS E A LIÇÃO DE FERRAJOLI

Independentemente da discussão jurídica sobre a possibilidade de


demandar internacionalmente a China – perante a jurisdição da Corte
Internacional de Justiça (Haia) – pela pandemia do novo coronavírus, o
momento pelo qual passa a humanidade merece reflexão, notadamente
sobre o nosso futuro comum. O momento exige que sejam tomadas ati-
tudes globais para o enfrentamento desses problemas também globais;
exige que se pensem em soluções cooperativas em que todos os Estados
possam contribuir para o futuro e à vista da não repetição de fenômenos
como este que se está a vivenciar. A questão que se coloca, em outros
termos, é: como o mundo pode cooperar para si próprio e para salva-
guardar os interesses de toda a humanidade?

Sobre essa questão, Luigi Ferrajoli propõe dois ensinamentos que nos
chamam a refletir sobre o nosso futuro77. O primeiro diz respeito à nossa

77 Por tudo, v. FERRAJOLI, Luigi. Il virus mette la globalizzazione con i piedi per
terra. Il Manifesto, 17 Março 2020. Disponível em: https://ilmanifesto.it/il-virus-mette-la-
globalizzazione-con-i-piedi-per-terra. Acesso em: 02 abr. 2020.

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616
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

fragilidade e à nossa total interdependência, certo de que, apesar dos avan-


ços tecnológicos e armamentistas, estamos todos – enquanto seres huma-
nos – expostos às catástrofes, algumas provocadas por irresponsabilidade e
outras, como a epidemia da Covid-19, provindas de calamidades naturais.
Tais tragédias globais atingem toda a humanidade sem distinção de nacio-
nalidade, de cultura, de língua, de religião ou de condições econômicas ou
políticas, razão pelo que – segundo Ferrajoli – urge realizar um constitucio-
nalismo planetário: aquele proposto e promovido pela escola “Constituinte
Terra”, por ele inaugurada em Roma em 21 de fevereiro de 2020.

O seu segundo ensinamento diz respeito à necessidade de que, dian-


te de emergências dessa natureza, se adotem medidas eficazes e, sobre-
tudo, homogêneas em todo o mundo, evitando-se que uma variedade
de providências seja capaz de acelerar o contágio e multiplicar os danos
a todos os seres humanos. Essa gestão comum às crises – que evitaria
medidas díspares, como, v.g., a adotada pelos Estados Unidos e Inglater-
ra [e acrescentaríamos, o Brasil], no afã de salvar a sua economia – seria
imposta pela via dos tratados internacionais.

Ademais, a epidemia da Covid-19 confirma a necessidade de dar vida


ao que Ferrajoli nomina “Constituição do Planeta Terra”, com previsão
de garantias e instituições à altura dos desafios globais e da proteção da
vida de todos. Apesar da existência da Organização Mundial de Saúde,
certo é que essa organização não tem – continua Ferrajoli – os meios e os
aparatos necessários para sequer levar aos países pobres os 460 remé-
dios que salvam vidas e que, há 40 anos, ela estabeleceu que deveriam
ser acessíveis a todos, e cuja falta provoca 8 milhões de mortes ao ano.

Para Ferrajoli, para esse salto civilizacional – a realização de um cons-


titucionalismo global e de uma esfera pública planetária – já existem
atualmente todos os pressupostos: não apenas os institucionais, mas

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617
também os sociais e os culturais. Entre os efeitos dessa epidemia, diz
ele, há uma reavaliação da esfera pública no senso comum, uma reafir-
mação do primado do Estado em relação às Regiões em termos de saúde
e, sobretudo, o desenvolvimento – após anos de ódio, de racismo e de
sectarismos – de um senso extraordinário e inesperado de solidariedade
entre as pessoas e entre os povos, que está se manifestando nas ajudas
provenientes da China, nas canções comuns e nas manifestações de afe-
to e gratidão nas sacadas das casas em relação aos médicos e aos enfer-
meiros, em suma, na percepção de que somos um único povo da Terra,
reunido pela condição comum em que todos vivemos.

Por fim, Ferrajoli conclui que, talvez, a partir dessa tragédia, possa
nascer finalmente uma consciência geral voltada ao nosso destino co-
mum, que requer, por isso, um sistema comum de garantia dos nossos
direitos e das nossa convivência pacífica e solidária.

As reflexões do mestre italiano são importantes e construtivas, em


especial dada a constatação de que o mundo não conhece fronteiras que
impeçam epidemias ou pandemias se alastrarem pelo planeta. Todas as
medidas bélicas e logísticas que os Estados têm para proteger suas fron-
teiras são absolutamente insuficientes para bloquear uma pandemia glo-
bal, como demonstrado pela pandemia da Covid-19. Urge, portanto, que
as Nações se unam e criem mecanismos internacionais de efetivação de
medidas sanitárias homogêneos em casos tais, para que os milhares – ou
até milhões, como é o caso do HIV – de infecções sejam evitados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao fim e ao cabo desta exposição teórica, chegou-se a quatro prin-


cipais conclusões sobre o objeto de investigação que aqui se pretendeu
levar a cabo, quais sejam:

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618
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

A República Popular da China violou o dever de informar previsto no


Regulamento Sanitário Internacional de 2005 (arts. 6º e 7º) e, por conse-
quência, a própria Constituição da OMS, que atribui autoridade à Assem-
bleia da Saúde para, inter alia, adotar regulamentos relativos a medidas
sanitárias e de quarentena e outros procedimentos destinados a evitar
a propagação internacional de doenças. De fato, está amplamente no-
ticiado por toda a imprensa mundial que a China demorou muito mais
tempo do que o previsto – pelo Regulamento – para compartilhar suas
informações internas em nível internacional, não tendo fornecido “todas
as informações de saúde pública relevantes à OMS”. Essa falha governa-
mental no envio oportuno de informações configura violação de tratado
internacional de que a China é parte e, portanto, enseja a sua responsa-
bilidade internacional, caso provocada por qualquer outro Estado-mem-
bro da OMS que tenha aceitado as mesmas regras.

A violação das disposições citadas abre a possibilidade de se invocar a


jurisdição da Corte Internacional de Justiça (CIJ) como meio de reparar os
danos – humanos e econômicos – decorrentes da pandemia da Covid-19,
à luz do art. 75 da Constituição da OMS, que prevê que “qualquer ques-
tão ou divergência referente à interpretação ou aplicação desta Cons-
tituição que não for resolvida por negociações ou pela Assembleia da
Saúde será submetida à Corte Internacional de Justiça, em conformidade
com o Estatuto da Corte, a menos que as partes interessadas concordem
num outro modo de solução”. A Corte já reconheceu a validade do art. 75
da Constituição da OMS e poderá, a seguir suas decisões anteriores, exi-
gir tão somente que negociações preliminares sejam empreendidas para
poderem os Estados demandar a China perante essa instância judiciária
internacional. No entanto, toda a questão está em saber – notadamen-
te em razão de complicadores políticos e diplomáticos – se um Estado

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619
realmente estará determinado em demandar a China perante a CIJ, pro-
pondo, antes, as “negociações” ou provocando a Assembleia da Saúde.

Caso seja demandada internacionalmente, a China poderá pretender


excluir a sua responsabilidade sob a alegação de força maior, conforme
previsão do art. 23, § 1º, do Projeto de Convenção da ONU sobre res-
ponsabilidade internacional dos Estados por atos ilícitos. Contudo, não
é menos certo que a falta de diligência da China com o trato das infor-
mações sobre a epidemia (não repassadas a tempo à OMS) poderia fazer
incidir a regra do art. 23, § 2º, b, do Projeto de Convenção da ONU, que
impede a excludente da força maior “caso tenha o Estado assumido o
risco da ocorrência da situação”. Para que a excludente não seja aceita,
deverá o Estado demandante comprovar que a China assumiu o risco
da ocorrência da pandemia da Covid-19 no mundo, ao não informar, no
prazo de 24 horas previsto pelo Regulamento Sanitário Internacional, a
OMS do evento gravoso ocorrido em seu território. Haveria, no entan-
to, como já relatado, dificuldade de vincular as obrigações previstas no
Regulamento à Constituição da OMS, que é o instrumento que abre as
portas à jurisdição da CIJ.

Não há elementos suficientes – até o presente momento (abril de


2020) – para pleitear a responsabilidade internacional da OMS pela falta
de sanções impostas à China no atraso do envio de informações, especial-
mente porque (essa também é uma conclusão parcial) a Organização vem
tomando medidas de contenção da doença e depende das atividades dos
Estados para lograr êxito em suas recomendações, certo de que vários Es-
tados têm colaborado suficientemente com suas recomendações.

Ir para o índice
620
DIÁLOGO AMBIENTAL, CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL - 10

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