Roberto de Ruggiero

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AGU

R e v i s ta d a

volume 16 nº 03 - Brasília-DF, jul./set. 2017

http://seer.agu.gov.br

Revista da AGU Brasília v. 16 nº 03 p. 1-420 jul./set. 2017


Revista da AGU
Escola da Advocacia-Geral da União
Ministro Victor Nunes Leal
SIG - Setor de Indústrias Gráficas, Quadra 6, lote 800 – Térreo -
CEP 70610-460 – Brasília/DF – Brasil. Telefones (61) 2026-7368 e 2026-7370
e-mail: [email protected]
© Advocacia-Geral da União - AGU – 2017

ADVOGADA-GERAL DA UNIÃO
Ministra-Chefe da Advocacia-Geral da União Grace Maria Fernandes Mendonça
ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO - SUBSTITUTO
Paulo Gustavo Medeiros Carvalho

DIREÇÃO GERAL DA AGU


Paulo Gustavo Medeiros Carvalho Secretário-Geral de Consultoria
Izabel Vinchon Nogueira de Andrade Procuradora-Geral da União
Fabrício da Soller Procurador-Geral da Fazenda Nacional
Marcelo Augusto Carmo de Vasconcellos Consultor-Geral da União
Cleso José da Fonseca Filho Procurador-Geral Federal
Isadora Maria Belem Rocha Cartaxo de Arruda Secretária-Geral de Contencioso
Altair Roberto de Lima Corregedor-Geral da Advocacia-Geral da União
Cristiano de Oliveira Lopes Cozer Procurador do Banco Central
Maria Aparecida Araújo de Siqueira Secretária-Geral de Administração
Francis Christian Alves Scherer Bicca Ouvidor-Geral da Advocacia-Geral da União

ESCOLA DA AGU
Chiara Michelle Ramos Moura da Silva Diretora
Paulo Fernando Soares Pereira Vice-Diretor
Eduardo Fernandes de Oliveira Coordenador-Geral
ABNT(adaptação)/Diagramação: Niuza Lima /Gláucia Pereira
Capa: Niuza Lima
Os conceitos, as informações, as indicações de legislações e as opiniões expressas nos artigos
publicados são de responsabilidade exclusiva de seus autores.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Revista da AGU / Escola da Advocacia-Geral da União Ministro Victor Nunes
Leal. – Brasília : EAGU, 2002.
v. ; 23 cm.
Quadrimestral: n.1, 2002-n.14, 2007. Trimestral: n.15, 2008-.
Primeiro número editado como edição especial de lançamento.
Primeiro título da publicação: Revista da AGU: Centro de Estudos Victor Nunes
Leal Advocacia-Geral da União (2002-n.6, abr.2005). Altera o título para: Revista da AGU :
Escola da Advocacia-Geral da União (n.7, ago. 2005-2007). Continuada com o título: Revista da
AGU (2008-).
Apartir de 2015 houve alteração no número dos exemplares. A Revista receberá
númeração 1-4 em todos os anos subsequentes.
ISSN -L 1981-2035; ISSN 2525-328x
I. Direito Público. II. Advocacia-Geral da União.
CDD 341.05
CDU 342(05)
EditorA-chefe
CHIARA MICHELLE RAMOS MOURA DA SILVA - AGU-DF
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
(Clássica), em intercâmbio com a Universidade de Roma - La Sapienza (ERASMUS). Mestre em
Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Membro da Advocacia-Geral da União - AGU

VICE-EDITOR
PAULO FERNANDO SOARES PEREIRA
Doutorando em Direito, Constituição e Democracia pela Universidade de Brasília - UnB. Mestre
em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Roraima - UFRR. Membro da Advocacia
Geral da União - AGU

EditorAs Assistentes
Gláucia Maria Alves Pereira
Niuza Gomes Barbosa de Lima

INDEXAÇÃO EM:
DIADORIM - Diretório de Políticas Editoriais das Revistas Científicas Brasileiras.
RVBI - Rede Virtual de Bibliotecas.
LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América
Latina, el Caribe, España y Portugal.
ACADEMIA.EDU - ferramenta (rede social Acadêmica) de colaboração destinada a acadêmicos e
pesquisadores de qualquer área de conhecimento.
CONSELHO EDITORIAL
INTERNACIONAIS

Carla Amado Gomes Instituto de Ciências Jurídico-Políticas (ICJP) da


(Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Portugal)
Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Nicolás Rodríguez García
Universidade de Lisboa. Foi Vice-Presidente do (Universidad de Salamanca,
Instituto da Cooperação Jurídica da Faculdade Espanha)
de Direito de Lisboa entre 2006 e 2014. Lecciona Professor Titular de Direito Processual da
cursos de mestrado e Pós-graduação em Direito Universidad de Salamanca. Doutor em Direito
do Ambiente, Direito Administrativo e Direito pela Universidad de Salamanca. Desenvolve
da Energia em Angola, Moçambique e Brasil. pesquisas nas Universidades de Kansas (USA),
Colabora regularmente em ações de formação Turim (Itália) e Coimbra (Portugal).
no Centro de Estudos Judiciários.
Pedro T. Nevado-Batalla
José Alexandre Guimaraes Moreno (Universidad de
de Sousa Pinheiro Salamanca, Espanha)
(Universidade de Lisboa, Professor Titular de Direito Administrativo da
Portugal) Universidad de Salamanca. Doutor em Direito
Professor Auxiliar da Faculdade de Direito Administrativo pela Universidad de Salamanca.
da Universidade de Lisboa. Doutorado pelo
NACIONAIS

REGIÃO NORTE

Edson Damas da Silveira José Henrique Mouta Araújo


(UEA/UFRR) (CESUPA)
Professor dos Programas de Pós-Graduação em Professor do Centro Universitário do Estado do
Direito Ambiental (UEA) e em Desenvolvimento Pará - CESUPA e da Faculdade Metropolitana
Regional da Amazônia (UFRR). Pós-Doutorado pela de Manaus – FAMETRO. Pós-Doutorado
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. pela Faculdade de Direito da Universidade
Mestrado e Doutorado em Direito Econômico e de Lisboa. Mestrado e Doutorado em Direito
Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
do Paraná (PUC/PR). Procurador de Justiça do Procurador do Estado do Pará.
Ministério Público do Estado de Roraima.

REGIÃO NORDESTE

Monica Teresa Costa Sousa Martonio Mont’Alverne


(UFMA) Barreto Lima (UNIFOR)
Professora dos Programas de Pós-Graduação Professor do Programa de Pós-Graduação em
em Direito e Instituições do Sistema de Justiça Direito (UNIFOR). Pós-Doutorado em Direito
e em Cultura e Sociedade (UFMA). Mestrado pela Universidade de Frankfurt. Mestrado em
e Doutorado em Direito pela Universidade Direito e Desenvolvimento pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista Federal do Ceará (UFC) e Doutorado em
de Produtividade em Pesquisa da Fundação de Direito (Rechtswissenschaft) pela Johann
Amparo à Pesquisa do Maranhão (FAPEMA). Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am
Avaliadora do MEC/INEP. Main. Procurador do Município de Fortaleza.
Leonardo Carneiro da Cunha Heron José de SantanA
(UFPE) Gordilho (UFBA)
Professor do Programa de Pós-Graduação Professor do Programa de Pós-Graduação
em Direito (UFPE). Pós-Doutorado pela em Direito (UFBA). Pós-Doutorado pela Pace
Faculdade de Direito da Universidade de University Law School, New York, onde é professor
Lisboa. Mestrado em Direito pela Universidade visitante e integra a diretoria do Brazilian-American
Federal de Pernambuco (UFPE) e Doutorado Institute for Law and Environment (BAILE).
em Direito pela Pontifícia Universidade Mestrado em Direito pela Universidade Federal
Católica de São Paulo (PUC/SP). Procurador da Bahia (UFBA) e Doutorado em Direito pela
do Estado de Pernambuco. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Promotor de Justica do Estado da Bahia.
Artur Stamford da Silva
(UFPE) Fredie Souza Didier Junior
Professor dos Programas de Pós-Graduação (UFBA)
em Direito e de Direitos Humanos (UFPE). Professor do Programa de Pós-Graduação
Pós-Doutorado pela Universidad Adolfo Ibàñez em Direito (UFBA). Livre-Docência pela
(UAI/Chile). Mestrado e Doutorado em Direito Universidade de São Paulo (USP). Pós-
pela Universidade Federal de Pernambuco Doutorado pela Faculdade de Direito da
(UFPE). Bolsista de Produtividade em Pesquisa Universidade de Lisboa. Mestrado em Direito
(CNPq). pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)
e Doutorado em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Advogado. Foi Procurador da República.

REGIÃO CENTRO-OESTE

Jefferson Carús Guedes Marcelo da Costa Pinto


(AGU/CEUB) Neves (UnB)
Professor do Programa de Pós-Graduação em Professor do Programa de Pós-
Direito (CEUB). Mestrado e Doutorado em Graduação em Direito (UnB). Livre-
Direito pela Pontifícia Universidade Católica Docência pela Faculdade de Direito da
de São Paulo (PUC/SP). Foi Procurador Universidade de Fribourg (Suíça). Pós-
Geral da União, Procurador-Chefe Nacional Doutorado na Faculdade de Ciência
do INSS e Consultor Jurídico do Ministério da Jurídica da Universidade de Frankfurt e
Previdência Social, Diretor da Escola da AGU e no Departamento de Direito da London
Vice-Presidente Jurídico dos Correios. Membro School of Economics and Political Science.
da Advocacia-Geral da União. Mestrado em Direito pela Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE) e Doutorado
Arnaldo Sampaio de Moraes em Direito pela Universidade de Bremen.
Godoy (AGU/CEUB) Foi Conselheiro do Conselho Nacional de
Professor do Programa de Pós-Graduação Justiça (CNJ). Bolsista de Produtividade
em Direito (CEUB). Livre-docência pela em Pesquisa (CNPq). Foi Procurador do
Universidade de São Paulo - USP. Pós-doutorado Município de Recife.
em Direito Comparado na Universidade de
Boston-EUA, em Direito Constitucional pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul-PUC-RS e em Literatura no Departamento
de Teoria Literária da Universidade de Brasília-
UnB. Mestrado e Doutorado em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP). Foi Procurador-Geral Adjunto
na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
Membro da Advocacia-Geral da União.
REGIÃO SUDESTE

José Vicente Santos de Master in Science (MSc) em Regulação pela


Mendonça (UERJ) London School of Economics and Political
Professor do Programa de Pós-Graduação em Science (LSE, Londres) e Doutorado em
Direito (UERJ). Mestrado em Direito Público Direito na Universidade de São Paulo (USP).
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e
(UERJ), Master of Laws pela Harvard Law Planejamento (CEBRAP) e do IGLP (Institute
School e Doutorado em Direito Público pela of Global Law and Policy).
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Teresa Celina de Arruda
Alvim Wambier (PUC/SP)
Alexandre Santos de Aragão Professora do Programa de Pós-Graduação
(UERJ) em Direito da Pontifícia Universidade
Professor dos Programas de Pós-Graduação Católica de São Paulo (PUC/SP). Livre-
em Direito (UERJ/UCAM). Mestrado em Docência pela Pontifícia Universidade
Direito Público pela Universidade do Estado do Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestrado
Rio de Janeiro (UERJ) e Doutorado em Direito e Doutorado em Direito pela Pontifícia
do Estado pela Universidade de São Paulo Universidade Católica de São Paulo.
(USP). Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Instituto Brasileiro de Direito
Processual. Advogada.
Maria Paula Dallari Bucci
Thomas da Rosa Bustamante
(USP)
Professora do Programa de Pós-Graduação em (UFMG)
Direito da Universidade de São Paulo (USP). Livre- Professor do Programa de Pós-Graduação
Docência em Direito do Estado (USP). Mestrado e em Direito (UFMG). Pós-Doutorado na
Doutorado em Direito pela Universidade de São Universidade de São Paulo (USP). Mestrado
Paulo (USP). Foi Procuradora-Geral do CADE. em Direito pela Universidade do Estado do
Procuradora da Universidade de São Paulo. Rio de Janeiro (UERJ) e Doutorado em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Diogo Rosenthal Coutinho Janeiro (PUC/Rio). Bolsista de Produtividade
em Pesquisa (CNPq).
(USP)
Professor do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Livre-Docência em Direito Econômico (USP).

REGIÃO SUL

Lênio Streck (UNISINOS) do Sul (PUC/RS). Mestrado e Doutorado em


Professor do Programa de Pós-Graduação Direito pela Pontifícia Universidade Católica
em Direito (UNISINOS/UNESA). Pós- do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Membro da
Doutorado pela Faculdade de Direito Advocacia-Geral da União. Foi Procuradora do
da Universidade de Lisboa. Mestrado e Município de Porto Alegre.
Doutorado em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Foi Regina Linden Ruaro (PUC/RS)
Procurador de Justiça do Ministério Público Professora do Programa de Pós-Graduação em
do Estado do Rio Grande do Sul. Direito da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUC/RS). Pós-Doutorado
Mariana Filchtiner Figueiredo no Centro de Estudios Universitarios San
(AGU/PUC/RS) Pablo (CEU/Espanha). Doutorado em Direito
Pós-Doutorado junto ao Max-Planck-Institut für na Universidad Complutense de Madrid
Sozialrecht und Sozialpolitik (Munique, Alemanha) (UCM). Membro aposentada pela Advocacia-
e à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande Geral da União.
Pareceristas
ADELCIO DOS SANTOS – SC GUSTAVO AUGUSTO DE FREITAS
Pós-Doutor em Gestão do Conhecimento (UFSC). LIMA - AGU - DF
Doutor em Engenharia e Gestão do Conhecimento Mestre em Direito e Políticas Públicas, pós-
(UFSC). Mestre em Relações Internacionais. graduado no nível de especialização em Direito
Especialista em Psicologia Organizacional e Público e graduado em Direito. Procurador Federal.
do Trabalho; em Psicopedagogia; em Gestão
Educacional; em Supervisão, Orientação e
Administração Escolar; em Direito Civil; em ÍCARO DEMARCHI ARAÚJO LEITE
Negócios Internacionais; e em Ecumenismo e - SP
Diálogo Inter-religioso.Bacharel em Administração, Doutorando em Direito Internacional pela
Direito, Ciência Política, Filosofia, Jornalismo Faculdade de Direito da Universidade de São
e Turismo. Licenciado em História, Filosofia, Paulo (USP) e pela Faculdade de Direito da
Letras e Pedagogia. Tecnólogo em Comunicação Alma Mater Studiorum Università di Bologna.
Institucional, Gestão Financeira e em Produção
Publicitária. Docente e pesquisador dos Programas JOSE IRIALDO ALVES OLIVEIRA
“Stricto Sensu” em Desenvolvimento e Sociedade e SILVA – PB
em Educação (Uniarp). Doutor em Ciências Sociais. Doutorando
em Direito e Desenvolvimento. Mestre em
ANDRÉ PETZHOLD DIAS - AGU Sociologia e Especialista em Direito Empresarial.
Doutor em Direito Processual pela Universidade Possui graduação em Ciências Jurídicas e
de São Paulo – USP. Professor na FAMATRO – experiência no magistério superior, com ênfase
Manaus – Advogado da União – AGU. em Direito Ambiental, Empresarial, Consumidor,
Teoria Geral do Estado e Introdução ao Estudo
DANIEL BRANTES FERREIRA – RJ do Direito, Sociologia Geral e Jurídica.
Coordenador da Graduação em Direito do
IBMEC-RJ. Doutor em Direito Constitucional JOSÉ OSÓRIO DO NASCIMENTO
e Teoria do Estado pela PUC-Rio.
NETO – PR
Pós-Doutorando em Direito pelo Mackenzie.
DIEGO MACHADO MONNERAT – RJ Doutor e Mestre em Direito pela PUC Paraná.
Mestrado em Direito pelo PPGD/UCP Professor do Centro Universitário UniBrasil.
como Bolsista CAPES, na linha de pesquisa
Fundamentos da Justiça e dos Direitos Humanos/
Área de Concentração: Justiça, Processo e Direitos JUDIVAN VIEIRA – AGU/DF
humanos. Graduado em Direito pela Universidade Doutor em Ciências Jurídico-Sociais pela
Candido Mendes-Nova Friburgo. Extensão em Universidad del Museo Social Argentino.
Direito Médico pela EMERJ. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União.

FABIANO AUGUSTO PETEAN – SP JULIANA CORVINO – RJ


Pós-Doutorando em Direito pelo MACKENZIE. Doutora em Ciência Política - Mestre em Direito
Doutor e Mestre em Direito pela PUC Paraná. - Especialista em Direito Médico - Bacharel em
Professor do Centro Universitário UniBrasil Direito - Licenciatura em Letras e Literaturas
- Fisioterapeuta - Especialista em Fisioterapia
FERNANDA MENEZES – AGU-RJ Hospitalar.
Advocacia-Geral da União - AGU, Secretaria-
Geral de Contencioso - SGCT, Brasília - DF LEONARDO VIZEU MENEZES – AGU
- RJ
FERNANDO LAÉRCIO ALVES DA Mestre em Direito pela Universidade Gama
SILVA – MG Filho – UGF com ênfase em Ordem Econômica
Doutorando em Direito Processual PUCMINAS. Interncacional. Procurador Federal - AGU.
Professor Adjunto da Universidade Federal de
Viçosa. Bolsista CAPES.
LUIS CLÁUDIO MARTINS DE MARIA CÉLIA DA SILVA
ARAÚJO – AGU - RJ GONÇALVES – DF
Advogado da União - AGU. Pós-Doutorando em Licenciada em História, Geografia e Pedagogia,
Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro mestre em História, doutora em Sociologia,
(UFRJ). Doutor em Direito pela Universidade do cursando Pós-doutorado em Educação na
Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com período Universidade Católica de Brasília e Pós-
sanduíche (Visiting Scholar) na University of doutorado em História na Universidade de
Cambridge (Cambridge). Mestre em Direito pela Évora em Portugal. Investigadora Visitante
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). do CIDEHUS - Centro Interdisciplinar de
Especialista em International Environmental História, Culturas e Sociedades da Universidade
Law pelo United Nations Institute for Training de Évora, professora de História do Direito
and Research (UNITAR) com extensão em e Sociologia Jurídica há 22 anos. Editora
Private International Law pela Hague Academy Responsável pela Revista Humanidades &
of International Law (HAIL) e em International Tecnologia – ISSN1809-1628, qualis B2 em
Law pela Organization of American States/ Ensino e Meio Ambiente.
Inter-American Juridical Committee (OAS/IAJC).
Pós-graduado em Processo Constitucional pela
MARIA CRISTINA ZAINAGHI – SP
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Doutora pela Pontifícia Universidade Católica
Professor Titular IV da graduação do Instituto
PUC/SP. Mestre pelo Mackenzie. Advogada.
Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC) e da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
MICHELLE SOARES GARCIA - Port
LUÍS HENRIQUE BORTOLAI – DF Doutoranda em Direito Público pela
Doutor em “Acesso à justiça”, na qual Faculdade de Direito da Universidade
desenvolveu a tese “Acesso à informação de Coimbra (FDUC). Mestre em Direito
jurídica no ensino fundamental brasileiro Constitucional pela Faculdade de Direito
como forma de ampliação do acesso à justiça” da Universidade de Coimbra (FDUC).
na Faculdade Autônoma de Direito - FADISP Especialista em Direito Constitucional pela
(2016). Mestre em “Acesso à Justiça”, na qual Universidade de Coimbra-PT. Especialista
defendeu a dissertação cujo título é “Projetos em Docência do Ensino Superior pelo Centro
de extensão universitária nas faculdades de Universitário Barão de Mauá. Graduação em
direito: disseminação do conhecimento jurídico Direito pela Pontifícia Universidade Católica
à população como meio de efetivação do acesso do Paraná. Professora titular de Direito
à justiça” na Faculdade Autônoma de Direito Constitucional. Departamento de Direito
- FADISP (2012). Professor de Direito, com Público. Pesquisadora da Universidade de
ênfase nas áreas de processo civil e direito civil, Génova- Itália. Professora convidada de
tanto na graduação como na pós-graduação. Direito Civil na Pós- Graduação Lato Sensu
Pós-graduado em Direito Tributário pela em Direito Civil e Prática Civil da Faculdade
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Católica de Rondônia.
na qual defendeu a monografia “A imunidade
tributária e o livro eletrônico na Constituição PATRÍCIA COSTA ANACHE – MS
Federal de 1988 e no ordenamento jurídico Doutorado em curso na área de Ciências
brasileiro” (2011). Graduado em Ciências Jurídico-Políticas, menção Direito Internacional
Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Público pela Universidade de Coimbra/
Católica de Campinas, com ênfase em Direito Portugal. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas,
Privado. Membro da Comissão de Cursos e menção Direito Internacional Público e Europeu
Palestras da Ordem dos Advogados do Brasil pela Universidade de Coimbra/Portugal (2014).
- Subseção de Campinas, do CONPEDI do Coordenadora de Assuntos Acadêmicos da
CEAPRO. Associação de Pesquisadores e Estudantes
Brasileiros - APEB/Coimbra - gestão 2014-
MARCO ANTONIO OLIVEIRA AGU - SP 2016. Advogada. Pós-Graduação pela FGV/RJ
Doutor em Direito Processual pela em Advocacia Cível (2007). Graduada em Direito
Universidade de São Paulo (USP). Advogado pela Universidade para o Desenvolvimento do
da União - AGU. Estado e da Região do Pantanal/MS (2005).
Coordenadora de Assuntos Acadêmicos da SULAMITA CRESPO CARRILHO
Associação de Pesquisadores e Estudantes MACHADO - FJP/MG
Brasileiros - APEB/Coimbra - gestão 2014- Doutora em Direito pela Faculdade de Direito
2016. Representante dos Doutorandos da UFMG, FDUFMG, Brasil. Pesquisadora
Brasileiros no Conselho Geral da Universidade em Ciência e Tecnologia e professora da
de Coimbra - gestão 2014-2016. Escola de Governo Professor Paulo Neves
de Carvalho da Fundação João Pinheiro.
PAULO AZEVEDO MAYER RAMALHO Coordenadora do Grupo de Pesquisa Estado de
AGU/PB Direito Democrático Sustentável. Professora
Procurador Federal lotado na PFE-DNIT/ de Direito em cursos de doutorado, mestrado,
Sede. Mestre em Direito Ambiental e Políticas especialização, graduação e capacitação no
Públicas pela Universidade Federal do Amapá. Brasil e no exterior. Experiência em processos
Pós-graduado lato sensu em Direito Tributário de privatização, modelagem institucional,
pela Universidade da Amazônia. gestão, criação e inovação, em níveis de
atuação, consultoria e assessoria. Advogada.
ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO
NELSON – RN THIAGO AGUIAR DE PÁDUA – DF
Mestre em Direito Constitucional pelo Doutorando e Mestre em Direito pelo UniCEUB.
Programa de Pós-graduação em Direito da Pesquisador do Centro Brasileiro de Estudos
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Constitucionais (CBEC). Assessor acadêmico do
UFRN. Professor efetivo de Direito, no Instituto Ministro Carlos Ayres Britto no PPG/Direito
Federal do Rio Grande do Norte – IFRN. (UniCEUB). Professor da Especialização em
Direito UniCEUB. Advogado.
RUI MAGALHÃES PISCITELLI – AGU-
DF WASSILA Caleiro ABBUD – SP
Procurador Federal - AGU. Mestre em Direito Doutoranda e Mestre em Direito Administrativo
pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA pela Pontifícia Universidade Católica de São
- Professor Universitário e de pós-graduação em Paulo - PUC/SP; Graduada em Direito pela
Direito em Porto Alegre e Brasília. UNESP, com habilitação em Direito, Estado
e Sociedade. Membro efetiva da Comissão de
SONILDE Kugel LAZZARIN – RS
Estudos de Combate à Corrupção e Improbidade
Possui graduação em Direito, Especialização,
Administrativa do Conselho Seccional da OAB/
Mestrado e Doutorado em Direito, na área de
SP. Advogada na área de Direito Público. Membro
Direito do Trabalho, pela Pontifícia Universidade
efetiva da Comissão de Estudos de Combate à
Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS.
Corrupção e Improbidade Administrativa do
Conselho Seccional da OAB/SP.
AUTORES

ADRIANA TIMOTEO DOS SANTOS Docente na Universidade de Ribeirão


ZAGURSKI - PR Preto/SP (UNAERP). Advogado.
Doutoranda em Direito pela PUC/PR -
Mestrado em Direito Economico e Social FERNANDO NATAL BATISTA - DF
pela Pontifícia Universidade Católica do Pós-Graduado pela Fundação Escola Superior
Paraná. Professora da Universidade Estadual do Ministério Público do Distrito Federal
de Ponta Grossa - UEPG e Territórios – FESMPDFT. Bacharel em
Direito pela Universidade de Brasília – UnB.
ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO - RJ Analista Judiciário e Assessor de Ministro
Professor Titular de Direito do Superior Tribunal de Justiça Mestrando
Administrativo da UERJ. Doutor em em Direito Constitucional pelo Instituto
Direito do Estado pela USP e Mestre em Brasiliense de Direito Público – IDP.
Direito Público pela UERJ. Procurador do
Estado do Rio de Janeiro. Advogado. LISIANE AGUIAR HENRIQUE - MG
Mestranda em Direito Ambiental, Direitos
ANA CLÁUDIA FAGUNDES OLIVEIRA Humanos e Desenvolvimento Sustentável
NOBRE ZANONI DE PAULA - BA na Escola Superior Dom Helder Câmara,
Mestranda em Direito pela Faculdade ESDHC. Graduada em Direito e pós
Guanambi. Professora na Faculdade graduada em Direito Público. Analista
Guanambi. Professora Auxiliar da Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho
Universidade do Estado da Bahia. Advogada. da 3ª Região. Analista Judiciária do Tribunal
Regional do Trabalho da 3ª Região.
Carlos Henrique Machado
Doutorando e Mestre em Direito - UFSC LUCIANA VILAR DE ASSIS - PB
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação
CAMILA PINTARELLI - SP em Ciências Jurídicas da Universidade Federal
Mestre e Doutoranda em Direito Econômico da Paraíba. Mestre em Ciências Jurídicas pela
pela PUC/SP. Procuradora do Estado de Faculdade de Ensino Superior da Paraíba/
São Paulo Membro da Comissão de Direito FESP Analista Judiciário no Tribunal de
Administrativo da OAB/SP - Seção São Paulo. Justiça do Estado da Paraíba - TJ-PB.

CAMILA SARAN VEZZANI - SP PAULO HENRIQUE FIGUEREDO DE


Doutoranda no curso da Pós Graduação ARAÚJO -
em Direito da Pontifícia Universidade Pós-graduação “latu sensu” em Direito
Católica de São Paulo (PUC/SP) Mestre Eleitoral e Improbidade Administrativa pela
em Direito (UNESP). Professora FESMP/MT. Pós-graduação “latu sensu”
Assistente Voluntária da disciplina de em Direito Tributário pela Universidade
Direito de Família PUC/SP, Advogada. Federal do Rio Grande do Norte - UFRN.
Procurador Distrito Federal.
DANILO GARNICA SIMINI - SP
Doutorando em Ciências Humanas e RENATA MELO NOGER - MG
Sociais (UFABC) e Mestre em Direito Pós-graduanda em Direito Tributário pela
(UNESP). Pós-graduação em Direito Universidade Anhanguera/SP.
Público (Escola Paulista da Magistratura). Procuradora da Fazenda Nacional
RENATO SAEGER MAGALHÃES EDB). Especialização em Pós Graduação Lato
COSTA - pe Sensu em Direito Tributário Faculdades
Especialista em Direito Público pela Integradas de Jacarepaguá, FIJ
Universidade Anhanguera. Bacharel em Advogado da União - AGU.
Direito pela Universidade Católica de
Pernambuco. Advogado de Direito Público WAGNER DE AMORIM MADOZ - DF
em Urbano Vitalino Advogados. Mestrando Políticas Públicas UniCEUB. Pós-
graduado em análise da constitucionalidade
RODRIGO MEDEIROS LÓCIO - AM UNILEGIS/UnB; MBA Política Tributária
Pós-Graduado em Direito Público pela – FGV; Analista Judiciário do Supremo
Pontifícia Universidade Católica de Minas Tribunal Federal - STF. Professor de Direito
Gerais - PUC Minas. Pós-Graduado Constitucional Pesquisador do Grupo de
em Direito Civil pela Universidade Pesquisa Política Criminal – UniCEUB.
Anhanguera Univerp – LFG. Bacharel
em Direito pela Universidade Católica de WILKER JEYMISSON GOMES DA
Pernambuco – UNICAP. Atua na área de SILVA - PB
Direito Público. Procurador Federal. Bacharelando em Direito pela FESP –
Faculdade de Ensino Superior da Paraíba,
Sébastien KIWONGHI BIZAWU - MG cursando o 9º período noturno. Monitor
Pró-Reitor do Programa de Pós-Graduação das disciplinas de Direito Administrativo
em Direito na Escola Superior Dom Hélder I e II na FESP – Faculdade de Ensino
Câmara em BH-MG. Doutor em Direito Superior da Paraíba. Estagiário do
Público - Direito internacional pela PUC- Ministério Público de Contas junto ao
MG. Mestre em Direito Internacional pela Tribunal de Contas do Estado da Paraíba.
PUC MG. Especialização em Direito Civil
e Direito do Processo Civil, em Direito do WOLNEY DA CUNHA SOARES
Trabalho e Previdenciário JÚNIOR - SP
Graduado em Direito pela UFMG. Pós-
WAGNER AKITOMI UNE - DF Graduado em Direito Tributário, Ciências
Mestrando Mestrando em Constituição e Penais e Direito Público, respectivamente,
Sociedade no Instituto Brasiliense de Direito pela PUC/MG, UNIDERP e UnB.
Público, Escola de Direito de Brasília (IDP/ Procurador Federal/AGU.
SUMÁRIO
AutorES ConvidadoS

A Arbitragem no Direito Administrativo


Arbitration in Administrative Law
Alexandre Santos de Aragão...............................................................................19

Good Administration: the principle of transparency and its use by


the international civil society
Boa administração: o princípio da transparência e seu exercício pela sociedade
civil internacional
Wellington Migliari
Juli Ponce Solé.....................................................................................................59

Artigos

Backlash: uma reflexão sobre deliberação judicial em casos polêmicos


Backlash: a reflection on judicial deliberation in controversial cases
Adriana Timoteo dos Santos Zagurski..............................................................87
Breves Apontamentos Sobre a Principal Obra de Hans-Georg Gadamer
e suas Implicações Jurídicas: a verdade não é questão de método
Brief Notes on the Main Work of Hans-Georg Gadamer and its Legal
Implications: truth is not a question of method
Ana Cláudia Fagundes Oliveira Nobre Zanoni de Paula.............................109
Imposto de Importação e Tutela ao Meio Ambiente: uma análise do café em cápsula
Import Tax and Environment Protection: a coffee capsule analysis
Camila Pintarelli...............................................................................................129
O Princípio do Não-Confisco em Matéria Tributária, Direitos
Fundamentais e o Posicionamento do Supremo Tribunal Federal
The Principle of Non-Forfeiture in Tax Matters, Fundamental Rights
and Positioning of the Federal Supreme Court
Carlos Henrique Machado
Danilo Garnica Simini
Camila Saran Vezzani......................................................................................155
Considerações Jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça Sobre
a Impenhorabilidade do Bem de Família Legal à Luz dos Princípios da
Dignidade da Pessoa Humana e da Proteção à Moradia
Jurisprudential Considerations of the Superior Court of Justice About the
homestead in Light of the Principle of the Dignity of the Human Person and
the Right of Housing
Fernando Natal Batista....................................................................................179
Meio Ambiente e Redução das Desigualdades e da Pobreza
Environment and Reduction of Inequalities and Poverty
Lisiane Aguiar Henrique
Sébastien Kiwonghi Bizawu.............................................................................197
A Culpabilidade no Ato Ímprobo: aplicação da eoria normativa pura na
análise da improbidade administrativa
The Culpability in the Misconduct Act: aplication of pure normative theory in
analysis of the administrative misconduct
Paulo Henrique Figueredo de Araújo..............................................................217
A Constitucionalidade do Art. 30, Inciso IX, da Lei 8.212/91 que
Prevê Hipótese de Responsabilidade Tributária de Membros de um
Mesmo Grupo Econômico por Débito para com a Seguridade Social
The Constitutionality of the Article 30, Clause IX, of Law 8.212/91,
Which Assigns Tributary Responsibility for the Members of the Economic
Group for Amounts Owed to Social Security
Renata Melo Noger ..........................................................................................239
Autonomia Técnica do AGU à Luz do Dever de Defesa da Lei ou
Ato Normativo Impugnado em Controle de Constitucionalidade
Perante o STF
Technical Autonomy of the Public Attorney in Sight of the Duty of
Defense of a Normative Act Contested in Constitutionality Control Before
the Brazilian Supreme Court
Renato Saeger Magalhães Costa......................................................................267
As Novas Ações Regressivas do INSS: uma análise sob a ótica do direito
civil-constitucional e da função social da responsabilidade civil
The New Regressive Shares of INSS: An analysis from the perspective of
civil - constitutional law and function of social tort
Rodrigo Medeiros Lócio....................................................................................287
Os Artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil de 2015: a
estabilidade da jurisprudência e a possibilidade de modulação de efeitos
yemporais por mudança de jurisprudência
Articles 926 and 927 of The Civil Procedure Code 2015: stability
of jurisprudence and the possibility of modulation of effects of
jurisprudence change
Wagner Akitomi Une ........................................................................................303
Contradições da Realização das Promessas da Constituição de 1988
Contradictions of the Fulfillment of the Promises of the Brazilian
Constitution of 1988
Wagner Amorim Madoz...................................................................................335
A Inexigibilidade de Licitação para a Contratação de Escritórios de
Advocacia
Unenforceability of Acquisition Process for Contracting Law Offices
Wilker Jeymisson Gomes da Silva
Luciana Vilar de Assis.......................................................................................367
A Ideia de Responsabilidade Criminal Individual Internacional
Presente no Estatuto de Roma
The Idea of International Individual Criminal Responsibility Under the
Rome Statute
Wolney da Cunha Soares Júnior......................................................................389
EDITORIAL

Prezados Leitores,

O processo de reestruturação da Revista da AGU continua com


o nível máximo de energia! Com as diversas mudanças que foram
implementadas, o periódico tem sido procurado, cotidianamente, por
pesquisadores dos mais elevados gabaritos das Ciências Sociais e do
Direito de forma bastante intensa, dando a impressão de que o caminho
escolhido é o correto.

Neste número, a diversidade de artigos e temas [Processo Civil,


Arbitragem, Direito Administrativo, Controle de Constitucionalidade,
Filosofia, Tributário, Ambiental, Direitos Fundamentais, Civil-
Constitucional, Políticas Públicas, Improbidade, Empresarial,
Previdenciário, Econômico, Garantias institucionais da Advocacia
Pública, Responsabilidade Civil, Filosofia do Direito, Licitações,
Direitos Humanos e Direito Internacioanal] demonstra a pluralidade e
capilaridade institucional e jurídica da Advocacia-Geral da União.

O primeiro artigo, A arbitragem no Direito Administrativo, é do


jurista (Professor da UERJ e Procurador do Estado do Rio de Janeiro)
Alexandre Santos de Aragão, como autor convidado, que aborda as
controvérsias do uso da arbitragem no Direito Administrativo. Trata-se
de um tema ainda pouco explorado e que dá indicativos a respeito das
possibilidades trazidas pela Lei nº 13.129/2015.

O segundo artigo, Good administration: the principle of


transparency and its use by the international civil society, de dois autores
convidados, Wellington Migliari e Juli Ponce Solé (ambos da Universidade
de Barcelona, Espanha), discute o princípio da transparência como uma
resposta local nascida dentro dos Estados e concebida pela sociedade
civil para enfrentar os abusos dos poderes econômicos globais. Para nós,
brasileiros, sem dúvidas, a discussão é bastante atual.

Em seguida, iniciam os artigos do nosso fluxo contínuo, sempre


respeitando o sistema de recebimento e aprovação dos mesmos.

Adriana Timoteo dos Santos Zagurski escreve Backlash: uma


reflexão sobre deliberação judicial em casos polêmicos, discorrendo
sobre fenômeno chamado Backlash, originado no direito constitucional
americano que significa rejeição das decisões dos tribunais.
Ana Cláudia Fagundes Oliveira Nobre Zanoni de Paula escreve
Breves apontamentos sobre a principal obra de Hans-Georg Gadamer
e suas implicações jurídicas: a verdade não é questão de método.
Trata-se deum texto jusfilosófico que aborda os principais conceitos
da obra Verdade e Método de Hans-Georg Gadamer, autor essencial
no desenvolvimento da hermenêutica no século XX, para, em seguida,
abordar algumas aproximações com o direito e suas consequências.

Camila Pintarelli escreve sobre Imposto de Importação e tutela


ao meio ambiente: uma análise do café em cápsula, que aborda a atual
questão dos resíduos sólidos pós-consumo atrelando-a à extrafiscalidade,
como forma de verificar a compatibilidade da Resolução CAMEX n.
18/2015 com o ordenamento jurídico brasileiro.

Danilo Garnica Simini e Camila Saran Vezzani escrevem O


princípio do não-confisco em Matéria tributária, direitos fundamentais
e o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, em que buscam
demonstrar a importância do princípio do não-confisco em questões
tributárias, especialmente, no que diz respeito à sua relação com os
direitos e garantias fundamentais do cidadão.

Fernando Natal Batista escreve Considerações jurisprudenciais


do Superior Tribunal de Justiça sobre a impenhorabilidade do bem de
família legal à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana e da
proteção à moradia, no qual aborda o tema da impenhorabilidade do
bem de família legal (Lei n.º 8.009/1990) sob o prisma da Constituição
Federal de 1988.

Lisiane Aguiar Henrique e Sébastien Kiwonghi Bizawu escrevem


Meio ambiente e redução das desigualdades e da pobreza, em que discorrem
sobre a questão social da pobreza e da desigualdade, a partir da percepção
do próprio meio ambiente e seus elementos, interações e relações.

Paulo Henrique Figueredo de Araújo escreve A culpabilidade no


ato ímprobo: aplicação da teoria normativa pura na análise da improbidade
administrativa, em que analisa a viabilidade de transposição, para a
improbidade administrativa, da teoria da culpabilidade penal, segundo a
vertente normativa-pura, componente do finalismo de Welze.

Renata Melo Noger escreve A constitucionalidade do art. 30, inciso


IX, da Lei 8.212/91 que prevê hipótese de responsabilidade tributária
de membros de um mesmo grupo econômico por débito para com a
seguridade social, em que se propõe a analisar a constitucionalidade
do inciso IX do art. 30 da Lei nº 8.212/61, que autoriza a atribuição
de responsabilidade tributária solidária a pessoas jurídicas de um
mesmo grupo econômico por débitos de qualquer de seus membros
para com a Seguridade Social e amplia a eficiência da arrecadação
tributária, na medida em que amplia os sujeitos passivos da obrigação e,
consequentemente, o universo patrimonial penhorável.

Renato Saeger Magalhães Costa escreve Autonomia técnica do


AGU à luz do dever de defesa da lei ou ato normativo impugnado em
controle de constitucionalidade perante o STF, em que discute todos
os aspectos que circundam a AGU como instituição independente
e autônoma tecnicamente, com o intuito de se enxergar as hipóteses
possíveis na qual o AGU não estará obrigado a defender o ato normativo
impugnado em sede de controle de constitucionalidade perante o STF.

Rodrigo Medeiros Lócio escreve As novas ações regressivas


do INSS: uma análise sob a ótica do direito civil-constitucional e da
função social da responsabilidade civil, em que analisa o instituto das
“novas” Ações Regressivas Previdenciárias ajuizadas pelo Instituto
Nacional da Seguridade Social – INSS para obter o ressarcimento das
despesas referentes à concessão de benefícios previdenciários oriundas
do cometimento de crimes de trânsito e ilícitos penais dolosos, sob o
fundamento normativo da Responsabilidade Civil (art. 186 c/c 927 do
Código Civil) a partir da visão da Constitucionalização do Direito Civil
e da função social no dever de indenizar.

Wagner Akitomi Une escreve Os artigos 926 e 927 do Código de


Processo Civil de 2015: a estabilidade da jurisprudência e a possibilidade
de modulação de efeitos temporais por mudança de jurisprudência, em
que discute a segurança jurídica, especialmente sob o seu viés subjetivo
da legítima confiança, como sendo o fundamento constitucional para
afastar as constantes mudanças jurisprudenciais e, por vezes, a aplicação
retroativa de novo entendimento jurisdicional.

Wagner de Amorim Madoz escreve Contradições da realização das


promessas da Constituição de 1988, no qual aborda os vários percalços
da realização das promessas da modernidade, contidas na Constituição
Federal de 1988.
Wilker Jeymisson Gomes da Silva e Luciana Vilar de Assis
escrevem A inexigibilidade de licitação para a contratação de escritórios
de advocacia, discutindo a caracterização dos serviços de advocacia como
serviços que autorizam a contratação pelo Poder Público, sem licitação,
com base no artigo 25, da Lei nº 8.666/93.

Wolney da Cunha Soares Júnior escreve A ideia de responsabilidade


criminal individual internacional presente no Estatuto de Roma,
abordando os aspectos da responsabilidade criminal perante o Tribunal
Penal Internacional.

Desejamos uma boa leitura com o convite para navegarem pela revista
eletrônica disponível em: http://seer.agu.gov.br.

Paulo Fernando Soares Pereira


Vice-Editor da Revista da AGU
Vice-Diretor da Escola da AGU Ministro Victor Nunes Leal
Autor Convidado

A ARBITRAGEM NO DIREITO
ADMINISTRATIVO
ARBITRATION IN ADMINISTRATIVE LAW

Alexandre Santos de Aragão


Professor Titular de Direito Administrativo da UERJ. Doutor em Direito do
Estado pela USP e Mestre em Direito Público pela UERJ. Procurador do Estado do
Rio de Janeiro. Advogado

SUMÁRIO: 1 A afirmação da arbitragem no Brasil; 2


A interpretação da expressão “Direitos Patrimoniais
Disponíveis” no Direito Administrativo; 3 A arbitrabilidade
das sanções e poderes contratuais unilaterais da contraparte
pública; 4 A arbitrabilidade dos efeitos patrimoniais
de direitos extrapatrimoniais ou indisponíveis; 5 A
inarbitrabilidade das obrigações oriundas apenas e
diretamente do ordenamento jurídico (extracontratuais);
6 Atos de Império (versus Atos de Gestão); 7 A função
densificadora dos contratos na definição da arbitrabilidade
de lides envolvendo a Administração Pública; 8 Breves
apontamentos conclusivos; Referências.
20 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

RESUMO: Embora a Lei nº 13.129/2015 tenha garantido, aos entes


políticos e entidades administrativas em geral, a possibilidade de resolverem
os seus conflitos por meio da arbitragem, ainda permanecem dúvidas
relevantes e grande controvérsia, inclusive na jurisprudência, a respeito
das matérias administrativas que podem ser apreciadas em instância
arbitral. Além de delimitarmos, com a maior precisão possível, o campo
de arbitrabilidade objetiva para as lides da Administração, examinaremos
neste trabalho a arbitrabilidade das sanções e poderes contratuais
unilaterais da contraparte pública (diferenciando tais prerrogativas
ex contractu do poder de polícia), bem como a possibilidade de levar à
arbitragem os efeitos meramente pecuniários de direitos indisponíveis ou
extrapatrimoniais. Por fim, analisaremos a possibilidade (e a conveniência)
de se densificar, por meio de atos normativos regulamentares ou dos
próprios contratos, o que se deve entender por “direitos patrimoniais
disponíveis” para fixação das matérias que podem ou não ser apreciadas
em arbitragens envolvendo o Estado.

PALAVRAS - CHAVE: Arbitragem. Administração Pública.


Arbitrabilidade Objetiva. Sanções Contratuais. Poder de Polícia.

ABSTRACT: Although the new Brazilian Arbitration Act (Law nº


13.129/2015) has allowed every public entities to resolve disputes through
arbitration, there is great controversy about the scope of administrative
subjects that can be examined by arbitral tribunes. In addition to
delimiting that scope, we will examine the arbitrability of contractual
penalties and pecuniary effects of inalienable or non-monetary rights.
At last, we will analyze the possibility of densifying, through regulatory
acts or by the contracts themselves, what is meant by the legal expression
“patrimonial and alienable rights” for the purpose of fixing the matters
that may or may not be assessed in arbitrations involving the State.

KEYWORDS: Arbitration. Public Administration. Objective


Arbitrability. Contractual Penalties. Police Power.
Alexandre Santos de Aragão 21

1 A afirmação da arbitragem no Brasil

A arbitragem, como se sabe, consiste em mecanismo de


heterocomposição de conflitos de interesses, informado pela celeridade,
expertise e informalidade, que se processa fora das lindes estatais.

O reconhecimento da arbitragem, no Brasil, percorreu um


caminho tortuoso. Houve quem questionasse a constitucionalidade até
dos procedimentos arbitrais realizados entre pessoas jurídicas de direito
privado, a respeito de direitos patrimoniais incontroversamente disponíveis,
mesmo após a edição da Lei nº 9.307/1996.1

Nos domínios da Administração Pública, a afirmação da arbitragem


foi ainda mais adversa, demorada e conturbada.2 De acordo com Marco
Antonio Rodrigues, havia três impedimentos, de índole constitucional, que
geralmente eram opostos à admissão da arbitragem para solver litígios
administrativos:

(i) o princípio da legalidade (artigo 37, caput, da Constituição);3 (ii) a


indisponibilidade do interesse público, princípio constitucional implícito
que seria incompatível com o artigo 1º da Lei de Arbitragem, em
sua redação prévia à reforma ocorrida em 2015; e, finalmente, (iii)
o princípio da publicidade (artigo 37, caput, da Lei Maior), que iria
de encontro com uma das principais características das arbitragens
mundo afora, qual seja, a confidencialidade. Além disso, o artigo 55,

¹ A constitucionalidade da Lei da Arbitragem chegou a ser discutida pelo Supremo Tribunal Federal,
nos autos do processo de homologação de Sentença Estrangeira nº 5.206, relatado pelo Min. Sepúlveda
Pertence. Naquela oportunidade, 12/12/2001, quatro ministros da Corte se posicionaram pela
inconstitucionalidade de diversos dispositivos da Lei 9.307/96. Em âmbito doutrinário, cf. LIMA,
Alcides de Mendonça. O Juízo Arbitral em face da Constituição. Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 27,
p.383-385.
2 Para que se possa dimensionar o quanto, chegou-se a propor emenda à Constituição (PEC nº 29) para
impedir que pessoas de direito público pudessem se submeter a arbitragem. O Tribunal de Contas da
União, por seu turno, exarou um sem número de decisões declarando a injuridicidade dos procedimentos
arbitrais envolvendo a Administração Pública (e.g., decisão 286/93, decisão 394/95, acórdão 584/03,
acórdão 1271/05 e acórdão 1099/06).
3 Em linhas gerais, argumentava-se que, na ausência de expressa lei autorizativa, a Administração não
poderia se submeter à arbitragem. Os adeptos dessa tese lançavam mão de uma visão oitocentista
do princípio da legalidade, advogando que todos os atos da Administração deveriam ter o conteúdo
preestabelecido pelo legislador. A respeito das diferentes concepções acerca do princípio da legalidade,
conferir: ARAGÃO, Alexandre Santos de. A concepção pós-positivista do princípio da legalidade. Revista
de Direito Administrativo, v. 236, p. 51-64, 2004.
22 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

parágrafo 2º, da Lei 8.6664 também era óbice levantado à utilização


do juízo arbitral pela Fazenda Pública.5

Antes do advento da Lei nº 13.129/2015, embora já se constatasse


forte tendência favor arbitratis no direito público brasileiro (capitaneada
sobretudo pelo STJ),6 ainda pairavam muitas dúvidas quanto à possibilidade
de participação de entidades administrativas em arbitragens.

Com a recente alteração legislativa, porém, a discussão a respeito


da arbitrabilidade subjetiva envolvendo a Administração Pública deve ser
minorada, na medida em que o § 1º, acrescido ao art. 1º da Lei 9.307/96,
é expresso no sentido de que “a administração pública direta e indireta
poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conf litos relativos a
direitos patrimoniais disponíveis”. Dito de outro modo, todas as entidades
administrativas (de natureza privada ou autárquica) e, até mesmo, os
próprios entes políticos podem, agora por expresso permissivo legal,
dirimir seus conflitos de interesses pelo método arbitral.

Diante da mencionada inovação legislativa, pois, a arbitragem no


campo da Administração Pública empresarial vem experimentando processo
de acelerada expansão. Dalmo de Abreu Dallari, nessa toada, esclarece
serem “vários os motivos dessa ênfase, parecendo que o principal deles
é a demora crescente para obtenção de uma decisão judicial definitiva”.7
Enfocando as necessidades das empresas, Arnoldo Wald salienta que:

São distintos os tempos da justiça e do mundo dos negócios, tendo até


finalidades diferentes. Efetivamente, por muito tempo, os magistrados e

4 Lei nº 8.666/1993, art. 55, 2º: “Nos contratos celebrados pela Administração Pública com pessoas físicas
ou jurídicas, inclusive aquelas domiciliadas no estrangeiro, deverá constar necessariamente cláusula
que declare competente o foro da sede da Administração para dirimir qualquer questão contratual,
salvo o disposto no § 6o do art. 32 desta Lei”. Defendendo que tal dispositivo configuraria empecilho à
realização de arbitragens que envolvessem a Administração Pública, v. BANDEIRA DE MELLO, Celso
Antônio. Curso de Direito Adminstrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 95.
5 RODRIGUES, Marco Antonio. A Fazenda Pública no Processo Civil. São Paulo: Atlas, 2016. p. 392-293.
6 Ilustrativamente, cita-se os seguintes precedentes: STJ, REsp 612.439/RS, rel. Min. João Otávio
Noronha, DJ 14.09.2006: “São válidos e eficazes os contratos firmados pelas sociedades de economia
mista exploradoras de atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação
de serviços (CF (LGL\1988\3), art.173, § 1.º) que estipulem cláusula compromissória submetendo à
arbitragem eventuais litígios decorrentes do ajuste”; STJ, REsp 612.345/RS, rel. Min. João Otávio
Noronha, DJ 14.09.2006; STJ, AgRg no MS 11.308/DF, rel. Min. Luiz Fux, DJ 14.08.2006; STJ, EDcl
no AgRg no MS 11.308/DF, rel. Min. Luiz Fux, DJ 30.10.2006.
7 DALLARI, Dalmo de Abreu. A tradição da Arbitragem e sua Valorização Contemporânea. In: PUCCI,
Adriana Noemi (Coord.). Aspectos atuais da arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 99.
Alexandre Santos de Aragão 23

os juristas, em geral, não se preocuparam com a demora para que fosse


encontrada uma solução definitiva para os litígios, nem davam maior
importância às consequências das suas decisões. Prevalecia, ao menos na
teoria, o princípio fiat justitia, pereat mundus (que se faça justiça, mesmo
que o mundo pereça). Ao contrário, na vida comercial, as pendências
não podem perdurar e não devem demorar as respectivas soluções em
virtude dos prejuízos que causam às partes. Só recentemente, em todos
os países, tanto no Poder Judiciário como na arbitragem, houve uma
reação saudável no sentido de tornar o processo mais eficiente e rápido.8

Em paralelo, como também se antecipou, as arbitragens permitem


que os conflitos analisados sejam resolvidos de modo mais técnico, por
profissionais com notória expertise nos temas sobre os quais as partes
controvertem. Nessa linha, Giovanni Ettore Nanni elenca como principais
vantagens do procedimento arbitral:

A informalidade e a alternativa de adaptação dos procedimentos à conveniência


das partes, a flexibilidade das regras e a opção de escolha de câmaras, a
confidencialidade, a economia de tempo na obtenção de uma decisão final
e, principalmente, a possibilidade de nomeação de árbitros com base em
sua especialidade, experiência, cultura, tempo disponível para dedicação
ao assunto e confiança que a parte deposita na pessoa que deverá julgar a
desavença. Especialmente a expertise do árbitro constitui o grande diferencial
no tema, porque a arte da hermenêutica, mormente nos contratos complexos
e atípicos, orienta, se for o caso, o emprego da interpretação integradora,
na qual se supre a lacuna que a regulação das partes, voluntariamente ou
não, acabou gerando. [...] E, tratando-se de um contrato complexo e atípico,
nada mais recomendável que o uso da arbitragem, já que permitida a eleição
de árbitros dotados de tais características.9

No âmbito do próprio Direito Público, a arbitragem converge


ainda para uma das mais fortes tendências do direito administrativo
contemporâneo, que é o estímulo e a valorização da consensualidade na
lida com o administrado.10 Como bem observa Onofre Alves Batista Júnior,
8 WALD, Arnoldo. As novas regras de arbitragem: maior eficiência e transparência. Revista de Arbitragem
e Mediação. São Paulo, v. 33, p. 239-244, abr./jun. 2012.
9 NANNI, Giovanni Ettore. Direito Civil e Arbitragem. São Paulo: Atlas, 2014. p. 3.
10 “O movimento pró-consenso atualmente verificável é apontado como decorrência de a celebração de
acordos no âmbito da Administração Pública se coadunar com as demandas, cada vez mais incisivas,
por celeridade no provimento administrativo, participação do administrado na tomada de decisões
administrativas e eficiência quanto à conformação da atuação administrativa. Ademais, a preocupação
com a governança também pelo Direito (Administrativo) coloca em voga o tema da consensualidade,
então visualizada como um instrumento de grande valia à eficácia na atuação administrativa”.
24 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

O Estado Democrático de Direito (eficiente, pluralista, participativo e


infraestrutural) permite a consolidação da ideia de uma ‘Administração
concertada’, como ‘modo de administrar’ pelo qual a Administração
Pública, a princípio, renuncia à imposição de seu próprio critério de
forma imperativa e unilateral e se esforça para encontrar um ponto de
equilíbrio adequado entre os interesses públicos que deve perseguir e
os interesses particulares das pessoas física e jurídicas, sem o concurso
de quem, mais dificilmente, pode atingir seus objetivos.11

Ademais, quando empresas estatais interagem como ou com atores


empresariais privados, restrições à arbitragem podem violar o princípio
da paridade de regime jurídicos (CF, art. 173, § 2º), pelo qual as estatais
atuantes em regime de concorrência com empresas privadas recebam,
nos ônus e nos bônus, o mesmo tratamento jurídico conferido aos atores
particulares. Nesse sentido, a proibição de que estatais se valham do
procedimento arbitral pode representar óbice ao exercício de seu objeto
social não verificável quanto às empresas privadas.12

No campo das atividades estatais delegadas à iniciativa privada,


entre as quais os monopólios públicos (petróleo, gás natural, mineração e
energia nuclear – arts. 176 e 177, CF), tais restrições podem ainda afastar
potenciais investidores, violando o princípio da competitividade, insculpido
inclusive no art. 3º da Lei de Licitações, pelo qual o Estado deve tomar
todas as medidas possíveis para ampliar o número de competidores em
suas licitações, com o que malferiria também os princípios constitucionais
da eficiência e da economicidade.

Em ambos os casos, a obstrução da via arbitral implicaria o aumento


dos custos ou a redução dos ganhos administrativos – o que violaria
também o princípio constitucional da eficiência.13 Em muitos setores da
CHIRATO, Vitor Rein; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Consenso e legalidade: vinculação da atividade
administrativa consensual ao Direito. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, n. 24, 2011. p. 3.
Disponível em: <www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 09 fev. 2017.
11 BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Transações Administrativas. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 325.
No mesmo sentido, v. GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; TOMÁS-RAMÓN, Fernandes. Curso de
Derecho Administrativo. 5. ed. v. II, Madrid: Civitas, 1998. p. 499.
12 A respeito do tema, ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas Estatais: O Regime Jurídico das Empresas
Públicas e Sociedades de Economia Mista. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 106-119.
13 “Não se exige mais apenas que o administrador público aja dento dos limites legais. É fundamental
também que a ação administrativa seja eficiente e que produza resultados eficazes para a sociedade; daí
a inclusão do princípio da eficiência no rol dos princípios aplicáveis à Administração Pública (art. 37 da
CF). O direito administrativo pós-moderno instituiu um novo patamar de vinculação jurídica para a
Administração Pública: a realização efetiva de um resultado determinante, sendo o princípio da eficiência
Alexandre Santos de Aragão 25

economia, ademais, a resolução de controvérsias pelo método da arbitragem


já integra até mesmo a lex mercatoria.14

Se do ponto de vista subjetivo, a Legislação vigente categoricamente


afirma que a “administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da
arbitragem”, os contornos da arbitrabilidade objetiva são genericamente
traçados a partir de uma categoria semanticamente menos precisa: a dos
“conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.

Os próximos tópicos serão dedicados, justamente, a identificar o


que se deve entender por esta expressão, bem como apontar formas de
densificação de tal conceito jurídico indeterminado.

2 A interpretação da expressão “Direitos Patrimoniais


Disponíveis” no Direito Administrativo

Como destacado acima, a Lei de Arbitragem (art. 1º, § 1º), na sua


atual redação, dispõe que: “A administração pública direta e indireta
poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conf litos relativos a
direitos patrimoniais disponíveis”. Se a interpretação da locução “direitos
patrimoniais disponíveis” no Direito Privado já não é simplória, a exegese
da referida expressão no Direito Administrativo traz complexidades e
desafios adicionais. Contudo, definir, de forma objetiva e precisa, o seu
significado é essencial para elucidar quais são as controvérsias envolvendo
a Administração que podem ser resolvidas em instância arbitral.

Quanto ao primeiro adjetivo da locução em referência, cumpre


assinalar brevemente que a natureza patrimonial15 de um direito não está
presente somente na hipótese de o seu conteúdo se traduzir monetariamente.
seu principal veículo condutor. O que se espera do administrador público na condução dos processos
de contratação pública é a obtenção de um resultado legítimo e eficiente, se não alcançou o resultado
desejado”. GARCIA, Flávio Amaral. Licitações e contratos administrativos: casos e polêmicas. São Paulo:
Malheiros, 2016. p. 73.
14 Valendo-nos das lições de Luís Roberto Barroso, podemos esclarecer que a lex mercatoria consagra “o
primado dos usos no comércio internacional”, materializando-se “por meio dos contratos e cláusulas-tipo,
jurisprudência arbitral, regulamentação de profissionais elaboradas por suas associações representativas
e princípios gerais comuns às legislações dos países”. BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos
e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo.
Revista Forense, v. 358, 2001, p. 93.
15 A respeito do conceito de “patrimonialidade”, consulte-se: COSTA, Almeida. Direito das obrigações. 4. ed.
Coimbra: Coimbra Editora, 1984. p. 63-66; VARELA, Antunes. Das obrigações em geral. 7. ed. Coimbra:
Almedida, 1991. v. 1. p. 102-107; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 10. ed. v. II.
Rio de Janeiro: Forense, 1990. p. 2-6; GOMES, Orlando. Obrigações. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992.
26 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

Como bem apontado por Eduardo Talamini, a “patrimonialidade também


se configura pela aptidão de o inadimplemento ser reparado, compensado
ou neutralizado por medidas com conteúdo econômico”.16 Para Caio Mário
Da Silva Pereira, o objeto de uma obrigação contratual “há de ter caráter
patrimonial”, anotando ainda que:

Via de regra e na grande maioria dos casos, a prestação apresenta-


se francamente revestida de cunho pecuniário, seja por conter em
si mesma um dado valor, seja por estipularem as partes uma pena
convencional para o caso de descumprimento. E, como tal pena traduz
por antecipação a estimativa das perdas e danos, a natureza econômica
do objeto configura-se indiretamente o por via de consequência.
Poderá, entretanto, acontecer que a patrimonialidade não se ostente
na obrigação mesma, por falta de uma estimação pecuniária que os
interessados, direta ou indiretamente, lhe tenham atribuído”. Contudo,
o caráter econômico estará presente “ainda no caso de se não fixar um
valor para o objeto, a lei o admite implícito, tanto que converte em
equivalente pecuniário aquele a que o devedor culposamente falta, ainda
que não tenham as partes cogitado do seu caráter econômico originário,
e isto tanto nas obrigações de dar como nas de fazer, demonstrando
que a patrimonialidade do objeto é ínsita em toda obrigação.17

Nessa ótica, as controvérsias afetas ao descumprimento de


obrigações contratuais sem imediata expressão econômica (ex.: dever
de confidencialidade) podem ser arbitradas, caso tenham repercussões
patrimoniais (ex.: indenizações por prejuízos eventualmente causados etc.).

Por seu turno, o adjetivo “disponível”, na gramática civilista,


qualifica direitos que possam ser, a qualquer tempo e independentemente
de justificações vinculadas, alienados ou renunciados pelo sujeito que os
titule. Nesse sentido, expõe com clareza Pontes de Miranda, ao afirmar
que o princípio da disponibilidade “refere-se à capacidade em sentido

p. 20-21; LOPES, Serpa. Curso de Direito Civil. 5. ed. v. II. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. p. 23-25;
JUSTEN FILHO, Marçal. Sujeição passiva tributária. Belém: CEJUP, 1986. p. 79-80.
16 TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do interesse público: consequências processuais
(composições em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem, negócios processuais e ação monitória) –
versão atualizada para o CPC/2015. Revista de Processo, v. 264, ano 42, p. 83-107, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2017. p. 99.
17 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. II. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.
21-22, grifamos.
Alexandre Santos de Aragão 27

amplo de o titular do direito [...] poder efetuar a transferência para outra


pessoa, o adquirente”.18

Em idêntica direção, se anota, no campo do Direito Civil, que o


“direito disponível é o alienável, transmissível, renunciável, transacionável.
A disponibilidade significa que o titular do direito pode aliená-lo; transmiti-
lo inter vivos ou causa mortis; pode, também, renunciar ao direito; bem
como, pode, ainda, o titular transigir seu direito”.19

A consagração, na esfera do Direito Administrativo, do princípio


da indisponibilidade do interesse público20 só exaspera o nó dogmático
que embaraça o tratamento do tema, pois alguns autores, com base nele,
sustentam a indisponibilidade e, portanto, a inarbitrabilidade de todos
os direitos de que a Administração é titular. E, de fato, se a tal termo se
conferir o mesmo sentido que ele tradicionalmente ostenta no Direito
Civil, de direito que pode ser livremente renunciado ou doado, a conclusão
aventada, a nosso ver de maneira indevida, seria impositiva.21

Assim, com base na significação civilista do termo “disponível”


e no princípio aludido, de esteio meramente livresco, sem nenhuma

18 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado - parte especial: direito das coisas: direitos reais de
garantia, hipoteca, penhor, anticrese. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 478.
19 MATTOS NETO, Antônio José de. Direitos patrimoniais disponíveis e indisponíveis à luz da lei de
arbitragem. Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais. n 122, 2005. p. 151-166.
20 “A indisponibilidade dos interesses públicos significa que, sendo interesses qualificados como próprios da
coletividade - internos ao setor público -, não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por
inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no
sentido de que lhe incumbe apenas curá-los - o que é também um dever - na estrita conformidade do que
predispuser a intentio legis. [...] Em suma, o necessário - parece-nos - é encarecer que na administração os
bens e os interesses não se acham entregues à livre disposição da vontade do administrador. Antes, para este,
coloca-se a obrigação, o dever de curá-los nos termos da finalidade a que estão adstritos. É a ordem legal
que dispõe sobre ela”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São
Paulo: Malheiros, 2012. p. 74.
21 Na visão de Carlos Ari Sundfeld, a “linha de argumentação desenvolvida para fundamentar essa ideia
é bastante simplista: como a arbitragem só teria cabimento sobre direitos disponíveis, ela estaria
invariavelmente afastada dos direitos relativos à Administração, uma vez que estes seriam, todos, por força do
aludido princípio, indisponíveis. O raciocínio é linear, fácil de ser assimilado e, talvez por isso, acabe exercendo
um efeito sedutor em alguns intérpretes. No entanto, a aplicação do princípio da indisponibilidade do interesse
público ao presente tema mostra-se completamente fora de contexto e, consequentemente, inadequada.
SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho A’rruda. O Cabimento da Arbitragem nos Contratos
Administrativos. Revista de Direito Administrativo. n. 248, p. 117-126, 2008. p. 119.
28 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

menção expressa em nosso direito positivo, há quem defenda a completa


incompatibilidade do procedimento arbitral com a Administração Pública.22

Perceba-se que, mais radicalmente, houve até mesmo quem negasse


a existência dos contratos administrativos, raiz do pensamento dos que
até hoje criam estorvos à arbitrabilidade dos conflitos envolvendo a
Administração Pública: contratualizar, tal como colocar sob arbitragem,
um interesse público, equivaleria, por essa visão, à sua simples disposição.23

Há também quem entenda que a arbitragem só é admissível quando


verse exclusivamente acerca de interesses públicos secundários (interesses
patrimoniais da máquina estatal),24 conforme a clássica definição de
Renato Alessi.25 Esses autores equiparam interesses públicos secundários
22 Por todos, v. MENDES, Renato Geraldo. Lei de Licitações e Contratos Anotada, 3. ed. Curitiba: Znt
Editora, 1998. p. 122: “Não é possível a eleição de juízo arbitral no âmbito dos contratos administrativos,
uma vez que os direitos e interesses que os compõem são, por imposição legal, indisponíveis”.
23 Os adeptos de tal corrente “argumentam que o contrato administrativo não observa o princípio
da igualdade entre as partes, o da autonomia da vontade e o da força obrigatória das convenções,
caracterizadores de todos os contratos. Com relação ao primeiro, afirma-se não estar presente porque a
Administração ocupa posição de supremacia em relação ao particular. Quanto à autonomia da vontade,
alega-se que não existe quer do lado da Administração, quer do lado do particular que com ela contrata: a
autoridade administrativa só faz aquilo que a lei manda (princípio da legalidade) e o particular submete-se
a cláusulas regulamentares ou de serviço, fixadas unilateralmente pela Administração, em obediência ao
que decorre da lei. Mesmo com relação às cláusulas financeiras, que estabelecem o equilíbrio econômico
no contrato, alegam os adeptos dessa teoria que não haveria, nesse aspecto, distinção entre os contratos
firmados pela Administração e os celebrados por particulares entre si. Quanto ao princípio da força
obrigatória das convenções (pacta sunt servanda), seria também desrespeitado no contrato administrativo,
em decorrência da mutabilidade das cláusulas regulamentares, que permite à Administração fazer
alterações unilaterais no contrato. A autoridade administrativa, por estar vinculada ao princípio da
indisponibilidade do interesse público, não poderia sujeitar-se a cláusulas inalteráveis como ocorre
no direito privado. Essa posição foi adotada, no direito brasileiro, entre outros, por Oswaldo Aranha
Bandeira de Mello (2007:684). Segundo ele, as cláusulas regulamentares decorrem de ato unilateral
da Administração, vinculado à lei, sendo as cláusulas econômicas estabelecidas por contrato de direito
comum”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 264.
24 Por todos, v. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, Arbitragem nos Contratos Administrativos. Revista
de Direito Administrativo, 209/81-90, jul./set. 1997. p. 84: “Em outros termos e mais sinteticamente: está-se
diante de duas categorias de interesses públicos, os primários e os secundários (ou derivados), sendo que
os primeiros são indisponíveis e o regime público é indispensável, ao passo que os segundos têm natureza
instrumental, existindo para que os primeiros sejam satisfeitos, e resolvem-se em relações patrimoniais e,
por isso, tomaram-se disponíveis na forma da lei, não importando sob que regime”.
25 Cf. ALESSI, Renato. Sistema Istituzionale del Diritto Amministrativo Italiano. Milano: Dott. Antonio Giufrè
Editore, 1953. p. 151-152: “Estes interesses públicos coletivos, os quais a Administração deve zelar pelo
cumprimento, não são, note-se bem, simplesmente interesses da Administração entendida como uma
entidade jurídica de direito próprio. Trata-se, ao invés disso, do que tem sido chamado de interesse coletivo
primário, formado por todos os interesses prevalecentes em uma determinada organização jurídica da
coletividade, enquanto o interesse da entidade administrativa é simplesmente secundário, de modo que pode
Alexandre Santos de Aragão 29

a interesses públicos disponíveis, de acordo com o permissivo da atual


redação da Lei de Arbitragem.

Olvidam, contudo, que no Direito Administrativo os interesses públicos


“meramente” secundários também são, por óbvio, indisponíveis, não podendo
a Administração Pública simplesmente abrir mão de seus bens, ainda que
não afetados a qualquer serviço público, ou doar livremente as suas receitas.

A limitação objetiva da arbitralidade envolvendo a Administração,


com base nessa importação apressada do conceito civilista de “direitos
disponíveis”, conduziria, no limite, à disparatada conclusão de que qualquer
contrato administrativo seria, de per se, juridicamente proscrito. Nessa
linha, em recente estudo doutrinário, registrei que “se a Administração
Pública pode celebrar contratos e [deve] cumprir voluntariamente suas
obrigações nos termos pactuados, pela mesma lógica deve-se entender
possível a contratação da solução por arbitragem das controvérsias deles
decorrentes. Não faz sentido entender que os direitos são ‘disponíveis’ para
poderem ser estabelecidos mediante um acordo de vontades (contrato) e, de
outro lado, entender que são ‘indisponíveis’ para vedar que as controvérsias
dele oriundas possam ser submetidas à arbitragem”.26

Marçal Justen Filho, em idêntico sentido, demonstrou que “o


argumento de que a arbitragem nos contratos administrativos é inadmissível
porque o interesse público é indisponível conduz a um impasse insuperável.
Se o interesse público é indisponível ao ponto de excluir a arbitragem,
então seria indisponível igualmente para o efeito de produzir contratação
administrativa. Assim, como a Administração Pública não disporia de
competência para criar a obrigação vinculante relativamente ao modo
de composição do litígio, também não seria investida do poder para criar
qualquer obrigação vinculante por meio consensual. Ou seja, seriam
inválidas não apenas as cláusulas de arbitragem, mas também e igualmente
todos os contratos administrativos.27

ser realizado apenas no caso de coincidência com o interesse coletivo primário. A peculiaridade da posição
jurídica da Administração Pública reside precisamente no fato de que, embora seja, como qualquer outra
pessoa jurídica, proprietária de um interesse secundário pessoal, a sua função precípua não é realizar esse
interesse secundário, pessoal, mas sim promover o interesse coletivo, público, primário. Assim, o interesse
secundário, da entidade administrativa, pode ser realizado, como qualquer outro interesse secundário
individual, apenas no caso e na medida em que coincida com o interesse público”.
26 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas Estatais: O Regime Jurídico das Empresas Públicas e
Sociedades de Economia Mista. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 403.
27 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 10. ed. São Paulo: RT, 2014. p. 822.
30 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

A confusão conceitual e terminológica em referência é desfeita,


com maestria, pelo professor Eros Grau, que considera não haver
“qualquer correlação entre disponibilidade ou indisponibilidade de direitos
patrimoniais e disponibilidade ou indisponibilidade do interesse público”,
sendo certo que se pode “dispor de direitos patrimoniais, sem que com
isso se esteja a dispor do interesse público, porque a realização deste
último é alcançada mediante a disposição daqueles”. Daí porque, conclui
Eros Grau, “sempre que puder contratar, o que importa disponibilidade
de direitos patrimoniais, poderá a Administração, sem que isso importe
disposição do interesse público, convencionar cláusula de arbitragem”.28

Nessa esteira, Carlos Ari Sundfeld leciona que “a Lei de Arbitragem


afastou de seu âmbito de aplicação apenas os temas que não admitissem
contratação pelas partes. Numa palavra, a lei limitou a aplicação do procedimento
arbitral às questões referentes a direito (ou interesse) passível de contratação”.29

De fato, se partíssemos de uma visão absoluta da indisponibilidade


do interesse público, por quê a Administração Pública abriria mão do seu
poder de império de desapropriar um imóvel, para promover uma licitação
para comprá-lo? Por quê abriria mão do seu poder de império de requisitar
um serviço médico e passaria a celebrar convênios com entidades da
sociedade civil para que aqueles fossem prestados? Ora, a resposta é que
contratar não é dispor, mas é de alguma forma abrir espaço também para
as pretensões privadas (ainda que os contratos da Administração Pública
sejam em grande parte prefixados no edital e na lei), compor, se sensibilizar
diante da lógica privada, aceitar condições de preços e de técnica que são
balizadas pelo Estado, mas fixados na proposta vencedora da licitação.

Em paralelo, se a distinção entre interesse público primário e secundário


já nos parece artificial e imprecisa, já que a relação de instrumentalidade
intrínseca existente entre eles os torna, ao menos em parte, indissociáveis,30

28 GRAU, Eros Roberto. Arbitragem e Contrato Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, nº 32,
p. 20, grifamos.
29 SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. O Cabimento da Arbitragem nos Contratos
Administrativos. Revista de Direito Administrativo, n. 248, p. 117-126, 2008, p. 120, grifamos.
30 “Raramente um interesse social direto (dito interesse público primário – ex.: serviços de saúde) pode ser
atendido sem custos (dito interesse público secundário – ex.: receita para prover o salário dos médicos e
enfermeiros, para a aquisição e manutenção do imóvel do hospital etc.), a distinção deve pelo menos ser
relativizada, evitando-se o viés de se ver o interesse público secundário como algo menos nobre que o
interesse público primário, já que quase sempre este não tem como ser realizado sem aquele”. ARAGÃO,
Alexandre Santos de. Empresas Estatais: O Regime Jurídico das Empresas Públicas e Sociedades de
Economia Mista. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 102.
Alexandre Santos de Aragão 31

não restam dúvidas quanto à sua impropriedade para determinar quais


controvérsias podem ou não ser arbitradas. Repise-se: tanto os interesses
públicos primários como os secundários são indisponíveis. Basta observar,
para comprovar o ponto, que o Estado não pode dispor livremente dos seus
bens dominicais nem dos seus créditos pecuniários, salvo mediante prévia
lei autorizativa de alienação ou de isenção fiscal.31

Eduardo Talamini, partindo de outro raciocínio, chega à mesma


conclusão: “Cabe a arbitragem sempre que a matéria envolvida possa ser
resolvida pelas próprias partes, independentemente de ingresso em juízo.
Se o conflito entre o particular e a Administração Pública é eminentemente
patrimonial e se ele versa sobre matéria que poderia ser solucionada
diretamente entre as partes, sem que se fizesse necessária a intervenção
jurisdicional, então a arbitragem é cabível. Se o conflito pode ser dirimido
pelas próprias partes, não faria sentido que não pudesse também ser composto
mediante juízo arbitral sob o pálio das garantias do devido processo”.32

Note-se que, pelo próprio princípio da legalidade, a Administração


Pública não só pode como deve cumprir voluntariamente as suas obrigações,
sendo impensável que apenas por títulos executivos judiciais pudesse ser
obrigada a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa. Ora, se é assim, se
voluntariamente pode a Administração buscar um acordo sobre como cumprir
suas obrigações, a fortiori pode submeter as mesmas questões à arbitragem.33

Para exemplificar, pode-se fazer menção aos claims34 apresentados


pelo contratado diretamente à Administração contratante e aos
31 Nos moldes da Lei 8.666/1993 (art. 17, I) e do Código Tributário Nacional (art. 171), respectivamente.
32 TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do interesse público: consequências processuais
(composições em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem, negócios processuais e ação monitória) –
versão atualizada para o CPC/2015. Revista de Processo, v. 264, ano 42, p. 83-107, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2017. p. 97.
33 “Isso também ocorre quando a solução é obtida diretamente pelas partes sem ingressar em Juízo – o que,
reitere-se, é, em regra, possível também nas relações de direito público”. TALAMINI, Eduardo. A (in)
disponibilidade do interesse público: consequências processuais (composições em juízo, prerrogativas
processuais, arbitragem, negócios processuais e ação monitória – versão atualizada para o CPC/2015.
Revista de Processo, v. 264, ano 42, p. 83-107, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 97.
34 O claim consiste em “instituto que tem origem na cultura anglo-saxônica, internacionalmente reconhecido,
consistente em medidas que visam o exercício de um direito contratual, legalmente previsto e faticamente
fundamentado. BERNADES, Edson Garcia. Administração contratual e claim. Instituto Brasileiro de
Avaliações e Perícias de Engenharia de Minas Gerais. Disponível em: <http://ibape-mg.com.br>. Acesso
em: 09 fev. 2017. Na língua portuguesa pode ser definido como “reivindicação”, “pleito”, inerentes até
mesmo ao nosso direito constitucional de petição (art. 5º, XXXIV, CF): ora, se o Estado violasse o princípio
da indisponibilidade do interesse público cada vez que concordasse com o particular, teria que sempre
indeferir qualquer pedido administrativo, com o que a garantia constitucional ficaria exoticamente inócua.
32 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

recursos administrativos interpostos pelo contratado contra decisão


da Administração que lhe tenha imposto multa de mora. Ainda mais
ilustrativamente, pode-se aludir também à negociação entre as partes
para fins de reequilíbrio econômico-financeiro até mesmo de contratos
administrativos, em decorrência da verificação, por exemplo, de uma álea
econômica extraordinária, negociação essa até mesmo imposta pela Lei nº
8.666/93, que dispõe, em seu art. 65, II,35 que o reequilíbrio e uma série de
outras alterações contratuais deve ser fruto de um acordo entre as partes.

Seria esse dispositivo da Lei nº 8.666/93 também inconstitucional,


por dispor do interesse público, ao impor o acordo em matérias de relevante
interesse público?! (sic)

O reconhecimento da impossibilidade de o agente público simplesmente


renunciar a direitos da Administração, não faz com que os litígios administrativos
não possam ser submetidos ao processo arbitral, serem objeto de acordos ou
prevenidos, por meio do cumprimento espontâneo das obrigações contratuais.
Tanto é a assim que há célebres casos em que o Estado voluntariamente, sem
sequer lançar mão da arbitragem, faz acordo com particulares ou sponte propria
paga indenizações por responsabilidade civil.36

Como destacado por boa parte da literatura, o campo de arbitrabilidade


envolvendo a Administração Pública – e, assim, o conceito de disponibilidade
para esse efeito no Direito Administrativo – corresponde às matérias
contratualizáveis.

Na verdade, como demonstraremos e exemplificaremos adiante, o


que deve ser enfocado para a definição da arbitrabilidade de um direito

35 Art. 65.Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes
casos: I - omissis; II - por acordo das partes: a) quando conveniente a substituição da garantia de execução;
b) quando necessária a modificação do regime de execução da obra ou serviço, bem como do modo de
fornecimento, em face de verificação técnica da inaplicabilidade dos termos contratuais originários; c) quando
necessária a modificação da forma de pagamento, por imposição de circunstâncias supervenientes, mantido o
valor inicial atualizado, vedada a antecipação do pagamento, com relação ao cronograma financeiro fixado, sem
a correspondente contraprestação de fornecimento de bens ou execução de obra ou serviço; d) para restabelecer
a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração
para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-
financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de
conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força
maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.
36 Exemplo se deu no recente e clamoroso caso do massacre nos presídios amazonenses: http://
agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-01/governo-do-amazonas-vai-indenizar-familias-de-
detentos-mortos-em-presidio, acesso em: 15 fev. 2017.
Alexandre Santos de Aragão 33

administrativo é a sua procedência normogenética. Se a prerrogativa


examinada decorrer diretamente da lei (ou de qualquer outra fonte
heterônoma), ela será insuscetível de apreciação em instância arbitral.
Por outro lado, caso o direito sub judice, ainda que previsto mediatamente
em Lei (ou em outro ato normativo estatal), demandar o assentimento
particular para a sua constituição, não necessariamente para o seu exercício,
ele poderá ser objeto de arbitragem.

Nos tópicos seguintes, procuraremos tratar de algumas matérias


que, embora suscitem algumas dúvidas, seguramente podem ser resolvidas
em sede arbitral, à luz da interpretação que acima se propôs à Lei da
Arbitragem.

3 A arbitrabilidade das sanções e poderes contratuais


unilaterais da contraparte pública

O ius puniendi estatal é exercido de diferentes formas e com base em


variados fundamentos. Ao Estado cabe, por meio do Ministério Público,
promover a persecução e a responsabilização criminal; à Administração
Pública, por seu turno, é dado exercer o poder de polícia, o poder disciplinar
e também ministrar sanções contratuais contra os particulares que com
ela se relacionem negocialmente.

Embora as sanções administrativas propriamente ditas, stricto sensu,


por constituírem atos de império (conforme tópico 6), a princípio não
possam ser revolvidas no curso de arbitragens, as sanções contratuais,
de base e pressupostos negociais, não encontram qualquer óbice para sê-
lo. Nessa perspectiva, é imperioso que diferenciemos e bem delimetemos
cada uma dessas formas de atuação punitiva da Administração Pública.

O Poder de Polícia, de acordo com a definição contida no Código


Tributário Nacional (art. 78), consiste na “atividade da Administração
Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade,
regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público”.37
O poder de polícia, diferentemente das prerrogativas contratuais da

37 Como preleciona JEAN RIVERO, “entende-se por polícia administrativa o conjunto de intervenções da
administração que tendem a impor à livre ação de particulares a disciplina exigida pela vida em sociedade”
RIVERO, Jean. Droit Administratif, Paris: Dalloz, 1977. p. 412. De acordo com MARCELO CAETANO,
o poder de polícia consiste no “modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no
exercício das atividades individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objeto evitar
que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que a lei procura prevenir”. CAETANO,
Marcelo. Princípios fundamentais de direito administrativo, Rio de Janeiro: Forense, 1977. p. 339.
34 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

Administração, fundamenta-se diretamente na soberania que o Estado


exerce sobre todas as pessoas e coisas no seu território, que faz com que
toda atividade ou propriedade esteja, observado o ordenamento jurídico-
constitucional, condicionado ao bem-estar da coletividade e à conciliação
com os demais direitos fundamentais.38

O poder de polícia, ademais, revela-se extroverso. O seu único campo


de aplicação são as atividades e propriedades privadas, de modo que a
Administração não exerce poder de polícia sobre os serviços, monopólios
ou bens públicos – ainda que eles sejam explorados por particulares.

Conceitual e tecnicamente, o poder de polícia e as sanções


administrativas propriamente ditas são necessariamente aplicáveis em
relação à esfera privada da sociedade, jamais em relação à esfera pública das
atividades ou bens, ainda que contratualmente exercidas por particulares.
Nesses casos, haverá fiscalização e possibilidade de sanções, mas ambas serão
de índole estritamente contratual – só são cogitáveis porque o particular
resolveu voluntariamente aderir àquele contrato –, não se confundindo com
o poder de polícia, que, naturalmente, como o poder estatal mais típico,
independe de qualquer consenso do particular para poder ser exercido.
Exemplificando, não se exige o consenso do particular para que o Estado
possa fiscalizar uma construção irregular; mas, sem o contrato, nem se cogita
do sancionamento pelo descumprimento de uma obrigação dele constante.

Como anotamos, em nosso Curso de Direito Administrativo, “os


contratos de concessão regulam o exercício por particulares de serviços
ou monopólios públicos, ou a exploração privada de bens públicos, não
constituindo, portanto, formas de limitação de atividades privadas, mas de
disciplina contratual da transferência do exercício de atividades do Estado”.39
No mesmo sentido, manifestou-se Odete Medauar anota que “pelo poder
de polícia a Administração enquadra uma atividade do particular, da qual
o Estado não assume a responsabilidade”.40

O fato de no contrato haver referência a regras predispostas em leis


ou regulamentos em nada ilide essas assertivas. Por exemplo, boa parte
das sanções aplicáveis às empresas que celebram contratos administrativos
estão previstas na Lei nº 8.666/1993, mas essas são apenas a sua fonte

38 Nesse sentido, v. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2013. p. 191.
39 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 194.
40 MEDAUAR, Odete. Poder de Polícia. Revista de Direito Administrativo, 199:89-96, 1995. p. 95.
Alexandre Santos de Aragão 35

indireta, são o que a Administração Pública deve incorporar (por cópia


ou por remissão) em seus editais de licitação e instrumentos contratuais.
A fonte direta da sua aplicação a particulares não é a Lei, mas sim o
contrato: quem não celebrou contrato com a Administração não tem o que
se preocupar com tais sanções; apenas o contrato legitima a sua aplicação;
ele é a fonte direta de tais sanções.

O simples fato de a Administração Pública estar jungida a nele


inscrever ou considerar como pressupostas algumas regras legais, como,
por exemplo, as de determinadas sanções, não faz com que elas passem a
ser sanções legais, e não mais contratuais. Tanto é assim, que, por mais
que estejam na lei, se ninguém assinar os contratos por ela regulados,
inviável será cogitar a sua aplicação. Como esclarece Parejo Alfonso,
“neste caso, o fundamento e título não é a Lei ou o Regulamento, mas o
próprio acordo de vontades”.41

O que acima se expôs só reforça o que, de longa data, percebeu


Maria João Estorninho, ao constatar que “a lei passa a colaborar ativa e
permanentemente com a vontade das partes podendo mesmo afirmar-se
que a vontade dos contraentes e a lei passam a integrar, em estreita união,
o todo incindível que é a disciplina do contrato”.42

Como vimos, as sanções aplicáveis pela Administração contratante


derivam, diretamente, do próprio contrato – de modo que são suscetíveis
de serem apreciadas em juízo arbitral.

Para reforçar esta conclusão, destaca-se que, por vezes, a Lei, ao


prever tais sanções, explícita ou implicitamente, transfere ao contrato a
faculdade de regulá-las e de lhes dar eficácia. Para comprovar o ponto,
basta aludir ao art. 86, da Lei 8.666/1993, que estabelece que o “atraso
injustificado na execução do contrato sujeitará o contratado à multa de
mora, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato”.

Ainda que determinadas sanções contratuais sejam prévia e


detalhadamente reguladas em sede legislativa, o seu campo de aplicação
não deixa de ser uma relação jurídica negocial e o ato que lhe motiva
não deixa de ser um evento contratual. O seu fundamento de aplicação
imediato, reitere-se, é o contrato; a lei é apenas o quadro do qual ele parte.
41 ALFONSO, Luciano Parejo. Los actos administrativos consensuales. Revista de Direito Administrativo e
Constitucional A & C, Belo Horizonte, v. 13, 2003.
42 ESTORNINHO, Maria João. Réquiem pelo Contrato Administrativo, Coimbra: Almedina,1990. p. 140 e
141. (Grifamos.)
36 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

Nesse ponto, uma vez mais, é preciso mencionar que, também


no mundo estritamente privado, exemplos há de cláusulas contratuais,
inclusive de viés sancionatório, cujos conteúdos são preestabelecidos
pelo Poder Público, seja por meio do Estado-Legislador, seja por meio
do Estado-Regulador.

O exemplo mais clássico desse fenômeno, no Brasil, são os contratos


de plano de saúde, que têm boa parte das suas cláusulas predefinidas
pelas Leis regentes da matéria43 e por resoluções da Agência Nacional
de Saúde Suplementar - ANS.44 Em tais avenças, geralmente celebradas
apenas por particulares, de igual modo, a fonte direta dessas obrigações
não são as normas estatais, mas sim os contratos de prestação de saúde
assinados voluntariamente entre as empresas e os seus clientes: sem eles
todas aquelas normas permaneceriam eternamente no limbo.

Tratando da questão debatida, Eros Roberto Grau, com a didática


que lhe é peculiar, esclarece que, “embora a Administração disponha, no
dinamismo do contrato administrativo de poderes que se tomam como
expressão de ‘puissance publique’ [alteração unilateral da obrigação, v.g.], essa
relação não deixa de ser contratual, os atos praticados pela Administração
enquanto parte nessa mesma relação, sendo expressivos de meros ‘atos de
gestão’. Em suma, é preciso não confundirmos o Estado-aparato com o
Estado-ordenamento. Na relação contratual administrativa o Estado-aparato
(a Administração) atua vinculado pelas mesmas estipulações que vinculam
o particular; ambos se submetem à lei [Estado-ordenamento]; ou seja, a
Administração não exerce ato de autoridade no bojo da relação contratual”.

Como já registramos, a origem legal de determinadas cláusulas não


altera a sua natureza jurídica contratual nem, por conseguinte, suprime
a sua arbitrabilidade.
43 Além da Lei nº 9.656/1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, há
outras leis esparsas que cuidam do tema. O Estatuto do Idoso (art. 15, § 3º), por exemplo, veda “a
discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade” - o
que, na prática, proscreve o reajuste das mensalidades devidas aos beneficiários de planos de saúde com
mais de 60 anos de idade. No entanto, o tema é regulado, com maiores minúcias, por Resoluções da ANS
– a exemplo das que serão citadas na nota de rodapé subsequente.
44 A regulamentação da contratação dos planos privados de assistência à saúde foi feita, em essência, pela Resolução
Normativa da ANS nº 195/2009, entretanto diversas outras resoluções tratam de aspectos específicos de tais
avenças. A Resolução Normativa da ANS nº 259/2011, por exemplo, estabelece os prazos máximos para a
realização de cada tipo de atendimento ao beneficiário de planos de saúde privados. A Resolução Normativa da
ANS nº 387/2015, por sua vez, define quais serviços devem ser obrigatoriamente oferecidos pelos planos privados
de assistência à saúde. A Instrução Normativa nº 13/2006 define os requisitos e procedimentos para o reajuste da
contraprestação pecuniária devida aos planos privados de assistência suplementar à saúde.
Alexandre Santos de Aragão 37

Um exemplo paralelo seria a prática existente e muitas empresas


multinacionais de grande porte de, por uma questão de governança
corporativa,45 indicar disposições que deverão constar em todos os contratos
celebrados pela sociedade, suas guidelines. Quem com ela assinar um
contrato não estará obrigado diretamente por esses parâmetros, em razão
das guidelines, mas sim, e apenas, por ter assinado o contrato.

Em todos esses exemplos, o fundamento último das sanções ou


cláusulas que confiram poderes unilaterais a uma das partes46 é o próprio
contrato – ainda que o seu conteúdo seja, em parte, predeterminado por norma
geral e abstrata que vincule algum dos contratantes. Sem a aquiescência
do outro, contudo, sequer constituída seria a relação negocial e, via de
consequência, a potencialidade de aplicação daquelas normas e sanções.

Neste quadrante, cabe esclarecer que os direitos, para serem


considerados arbitráveis, embora precisem ser negocialmente erigidos,
não precisam sê-lo negociadamente. É a fonte da obrigação que precisa ser
contratual (bilateral); sendo, pois, dispensável a verificação se houve ou não
efetiva negociação entre as partes para a determinação do conteúdo do pacto.
Por esse motivo, o contrato de adesão não deixa de ser um contrato47 e, por
isso mesmo, não se nega a ele a possibilidade de apreciação em sede arbitral.

Consoante esclarece com propriedade José Abreu:

Não importaria saber, como acentua RUGGIERO, nas linhas que


transcrevemos, se os efeitos são gerados pela vontade ou pela lei, porque,
em verdade, uma não pode subsistir sem a outra, embora a nós pareça
que os efeitos são produzidos pelo ato de vontade – que teria feição ou
essência normativa, evidentemente que necessitando do beneplácito

45 A expressão governança corporativa compreende “o conjunto de mecanismos (internos ou externos,


de incentivo ou controle) que visa a fazer com que as decisões sejam tomadas de forma a maximizar o
valor de longo prazo do negócio e o retorno de todos os acionistas”. SILVEIRA, Alexandre di Miceli da.
Governança Corporativa no Brasil e no Mundo – teoria e prática. São Paulo: Elsevier, 2010. p. 3.
46 Como demonstrado, apesar do hábito de parte dos administrativistas, poderes unilaterais não
necessariamente dizem respeito ao exercício de poder de império do Estado, estando presentes muitas
vezes até mesmo em contratos celebrados entre pessoais integralmente privadas e alheias à Administração
Pública, tendo como fonte imediata apenas contratos, a exemplo do que se dá paralelamente com o contrato
de partilha, contrato de direito privado celebrado pela Administração Pública.
47 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 17. ed. v. III, Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 21:
“em certas eventualidades o contrato se celebra pela simples adesão de uma parte ao paradigma já redigido,
conforme expressamente admitido pelos arts. 423 e 424 do Código, concluindo-se a avença pela simples atitude
do interessado, traduzida como forma tácita de manifestação volitiva. [...] O princípio da liberdade de contratar
ostenta-se, não obstante, na faculdade de não adotar aquelas normas-padrão ou aquele modelo pré-moldado”.
38 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

do ordenamento. Até mesmo naqueles negócios denominados pela


doutrina como ‘negócios-condição’ e ‘negócios forçados’ – em que
a autonomia privada sofre rude golpe na sua essência, não se pode
prescindir, na sua formação, do elemento volitivo.48

A jurisprudência brasileira ainda não logrou consolidar um


entendimento a respeito da questão tratada. Em alguns poucos precedentes
esparsos, em sua maioria ainda não transitados em julgado, por se
confundir o fundamento e a natureza das questões controvertidas, poderes
essencialmente contratuais acabaram, pelo simples fato de serem exercidos
pela Administração Pública, confundidos com manifestações do poder de
polícia e, assim, considerados inarbitráveis.

Nessa esteira, o e. Tribunal Regional Federal da 2ª Região assim se


manifestou: “A Egrégia Oitava Turma Especializada, ao apreciar o Agravo
de Instrumento nº 0101145-19.2014.4.02.0000 (2014.00.00.101145-7),
sufragou, majoritariamente, entendimento no sentido de que a matéria
objeto da RD n.º 69/2014, da ANP, concernente à delimitação de campo
de petróleo, por envolver atividade fiscalizadora, decorrente de poder de
polícia da agência reguladora, configuraria direito indisponível que, por
conseguinte, escaparia aos limites da cláusula de compromisso arbitral.
Em respeito à decisão majoritária do Colegiado, afigura-se oportuna a
concessão do provimento liminar pleiteado, de modo a resguardar a eficácia
da decisão que vier a ser tomada nos autos principais”.

Todavia, o colendo Superior Tribunal de Justiça, que ainda apreciará


o caso de forma colegiada, pela lavra do Min. Napoleão Nunes Maia Filho,
concedeu liminar contra tal acórdão “para atribuir, provisoriamente,
competência ao Tribunal Arbitral da Corte Internacional de Arbitragem
da Câmara de Comércio Internacional/CCI”, asseverando “que a cláusula
compromissória que serve de suporte à discussão em apreço, além de ser
disposição padrão nos instrumentos que regem a espécie conflituosa em
causa, mostra-se antiga, de sorte que a sua alteração súbita e unilateral
impacta os termos em que se deve desenvolver a fiscalização das atividades
da PETROBRAS, além de repercutir na confiabilidade e na credibilidade
que se requer no exercício do mercado de prospecção e lavra de petróleo,
demandante, como se sabe, de aportes de investimentos hipervultosos,
envolvendo, inclusive, aspectos internacionais altamente protegidos pelo
princípio da boa fé”.49

48 ABREU, José. O Negócio Jurídico e sua Teoria Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 31, grifos nossos.
49 STJ, CC nº 139.519, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 13/04/2015.
Alexandre Santos de Aragão 39

Decisões como aquela mencionada do TRF2, com toda a vênia,


julgam mais pela aparência do que pelo rigor técnico. Nem todos os
poderes exercidos pela Administração Pública podem ser tecnicamente
considerados poderes de polícia, que são apenas aqueles incidentes sobre
os particulares independentemente da celebração de qualquer contrato.

A Administração Pública quando celebra contratos possui, a exemplo


de qualquer particular que também o faça, uma série de poderes sobre a
outra parte, muitos deles unilaterais (ex.: a denúncia vazia nos contratos de
locação, a imposição de diversas regras pelos franqueadores, a aplicação e
a execução de sanções através da caução prestada etc.). Poderes unilaterais
ex contractu não deixam de sê-lo pelo simples fato de uma das partes ser
a Administração Pública.

Note-se, nessa perspectiva, que tal conclusão não é repelida nem


mesmo quando as sanções ou poderes unilaterais são incumbidos, pelo
contrato, às agências reguladoras ou a qualquer outra entidade administrativa
a quem se incumba a função de interveniente ou de representante do ente
público contratante – opção institucional corriqueira no quadrante da
Administração Pública descentralizada, especializada e multiorganizativa.50

No meu livro a respeito das Agências Reguladoras, já havia


consignado que:

Seja qual for a classificação da agência quanto à atividade regulada,


todas as leis que as instituíram preveem o desempenho por parte
delas de competências fiscalizatórias sobre os agentes econômicos que
se encontram no seu âmbito de atuação. O fundamento da atividade
fiscalizatória poderá, no entanto, variar segundo a agência seja (a)
reguladora de serviço público, caso em que será um dever inerente ao
Poder Concedente; (b) reguladora da exploração privada de monopólio
ou bem público, quando o fundamento da fiscalização é contratual; ou (c)

50 CASSESE, Sabino. Le Basi del Diritto Administrativo. 6. ed. Milão: Garzanti, 2000. p. 189-190:
“A Administração italiana é – como, aliás, todas as Administrações dos países desenvolvidos –
multiorganizativa, no sentido de que a amplitude e a variedade das funções públicas não apenas levaram
à perda da unidade da organização do Estado, mas levaram-no também a adotar diversos modelos
organizativos. Por este motivo, é preferível dizer que a administração é multiorganizativa, antes que
pluralística ou policêntrica. Estes termos muitas vezes não se referem a sujeitos, mas individuam apenas
o primeiro (fragmentação), e não o segundo (diferenciação), dos dois caracteres acima indicados”. Para
Vital Moreira, “quanto mais a coletividade se especializa técnico-profissionalmente e se pluraliza
ético-culturalmente, tanto menor se torna aquilo que é comum a todos e tanto maior é a necessidade
de diferenciação político-administrativa para corresponder à diversidade dos apelos feitos aos poderes
públicos”. MOREIRA, Vital. Administração Autônoma e Associações Públicas. Coimbra: Coimbra, 1997. p. 35.
40 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

reguladora de atividade econômica privada, em que a natureza da


fiscalização é oriundo do poder de polícia exercido pela agência.51
(Grifo acrescido).

Assim, as competências fiscalizadoras e sancionadoras que a ANP,


por exemplo, exerce sobre as empresas que exploram petróleo e gás
(monopólios públicos) no Brasil, por meio de contratos de concessão
petrolíferos ou de contratos de partilha de produção, buscam fundamento de
validade no próprio contrato de que são partes a própria ANP e os sujeitos
fiscalizados (e, eventualmente, sancionados). Sempre que o fundamento e o
campo de atuação da ANP estiverem associados a uma relação contratual,
arbitráveis serão os atos adotados pela agência.

Ao revés, quando a ANP – ou qualquer outra agência – fiscalizar


agentes que exercem, por título próprio (ainda que sujeitos a meras
autorizações ou licenças), atividades econômicas privadas, a atuação
da Agência calcar-se-á exclusivamente na Lei, caracterizando-se como
expressão do poder de polícia.52 Nessa hipótese, não será dado em princípio
submeter os seus atos à instância arbitral.

Os poderes que a Administração Pública exerce sobre os


autorizatários advêm diretamente da lei, não havendo qualquer contrato
celebrado entre eles e a Administração Pública que os condicione. Já
as atividades econômicas em sentido estrito sujeitas ao monopólio do
Estado (art. 177, CF), não são privadas, e nenhum particular tem direito
constitucional de livre iniciativa para exercê-las, o que só se cogita se a
Administração Pública e ele voluntariamente celebrarem um contrato nesse
sentido. É por esta razão que, naquele caso, estamos diante de poderes de
polícia, em princípio inarbitráveis, e, neste caso, estamos diante de poderes
contratuais, perfeitamente arbitráveis.

Ainda em exemplificação do exposto, tem-se que quando a ANP,


integrando um contrato de concessão ou de partilha, delibera sobre a
unitização dos blocos de petróleo ou sobre a forma de observância da
cláusula de conteúdo local, o fundamento das suas decisões será o próprio
51 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico. 3.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 337, grifos acrescidos ao original.
52 Este é o caso, por exemplo, da atuação fiscalizadora ou sancionadora da ANP sobre as distribuidoras
de combustíveis, agentes que exercem atividade privada, por direito constitucional próprio de livre
iniciativa. Por mais que tenham que pedir uma autorização à Administração Pública, essa autorização não
tem natureza contratual, mas sim de um ato de consentimento de polícia, assim como, para esse efeito,
uma licença ambiental ou uma licença para dirigir.
Alexandre Santos de Aragão 41

contrato – pois a Agência atuará como parte e com base nas cláusulas do
referido pacto – e, portanto, serão elas suscetíveis de serem arbitradas.

Por outro lado, como já mencionado, caso o Instituto Brasileiro do


Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA constate que
o consórcio responsável pela exploração petrolífera cometeu uma infração
ambiental, as suas reprimendas fundamentar-se-ão exclusivamente no poder
de polícia outorgado diretamente por Lei – e, portanto, independentemente
do assentimento do particular – a tal autarquia (que agirá enquanto entidade
externa à relação contratual estabelecida entre as petroleiras e a União), de modo
que aquelas penalidades devem, em princípio, ser consideradas inarbitráveis.

O que deve ficar claro é que as reprimendas e os poderes unilaterais


outorgados pelo contrato (ainda que previstos mediatamente em Lei) à
Administração Pública não se confundem com o poder de polícia53 e, portanto,
não podem ser considerados como insuscetíveis de apreciação em sede arbitral.
O seu fundamento imediato e definitivo não é a Lei, nem muito menos à
soberania estatal, mas o negócio jurídico estabelecido pelos contratantes, do
mesmo modo que seria (e o é) em relação a agentes particulares.

Nada obstante, apontamos ainda que, diversamente dos poderes


unilaterais contratuais avençados entre a Administração e as suas
delegatárias, o poder de polícia não pode ser exercido sobre os bens, serviços
e monopólicos públicos (como é o caso do petróleo), sendo característico
apenas das atividades tipicamente particulares. Assim, por todos esses
fatores, mister se faz diferenciar e, por conseguinte, conferir tratamento
jurídico autônomo à categoria em exame.

Em conclusão, uma vez mais reitere-se que, sempre que afirmada a


natureza contratual de dada controvérsia, possível será submetê-la à resolução
perante organismos arbitrais, ainda que a questão controvertida se relacione
a poderes unilaterais ou às sanções contratuais aplicáveis pela Administração.

No tópico seguinte, trataremos da arbitrabilidade dos efeitos


meramente patrimoniais de direitos ou interesses indisponíveis ou
insuscetíveis de mensuração econômica.

53 Paralelamente, não se desconhece que tem se verificado até mesmo a possibilidade, em certos casos,
de negociação a respeito da atividade sancionadora de polícia da Administração Pública, tendência
intensamente verificada no Direito Comparado, sobretudo nos setores regulados. A matéria, no entanto,
além de possuir requisitos próprios e mais excepcionais, é prescindível para o objeto do presente parecer.
42 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

4 A arbitrabilidade dos efeitos patrimoniais de direitos


extrapatrimoniais ou indisponíveis

O presente tópico se destina a ir um pouco além do anterior, para


afirmar que, mesmo os direitos extrapatrimoniais ou indisponíveis, não
contratualizáveis e, portanto, em princípio inarbitráveis, podem ter as suas
consequências meramente econômicas submetidas à arbitragem.

Discorrendo sobre um instituto próximo (mas bem distinto) ao


da arbitragem, a transação,54-55 cujo objeto também são os “direitos
patrimoniais disponíveis”,56 Caio Mário da Silva Pereira esclarece que
tal restrição é relativa apenas aos próprios direitos transacionáveis, não
alcançando eventuais efeitos patrimoniais deles decorrentes:

A restrição aqui apontada compreendeu os direitos em si mesmos, sem


exclusão dos efeitos patrimoniais que possam gerar. Assim é que se o status
familiae é insuscetível de transação, os efeitos econômicos respectivos
podem ser por ela abrangidos; se o direito a alimentos é intransmissível,
é válida a que compreende o montante das prestações respectivas.57

No mesmo sentido, Orlando Gomes esclarece que o “interesse


não precisa ser econômico, mas o objeto da prestação há de ter conteúdo
patrimonial. Na sua contextura, a prestação precisa ser patrimonial,
embora possa corresponder a interesse extrapatrimonial”.58 Temos o
célebre exemplo dos alimentos familiares, que não podem em abstrato
ser renunciados ou transacionados, mas a sua expressão econômica, em
pecúnia, não só pode como deve ser negociada, tanto que há audiência
54 Conforme preceitua os art. 840 do Código Civil, a transação é um negócio jurídico firmado para prevenir
ou por fim a litígio, mediante concessões recíprocas das partes.
55 Não se deve confundir a arbitragem com a transação, cuja referência justifica-se apenas para a
interpretação da expressão “direitos patrimoniais disponíveis”, que constituí o objeto de ambos institutos.
Sobre as diferenças entre a transação e a arbitragem, v. SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho
Arruda. O Cabimento da Arbitragem nos Contratos Administrativos. Revista de Direito Administrativo.
n. 248, p. 117-126, 2008, p. 121: “É importante ressaltar que, ao submeter uma discussão à arbitragem,
as partes não estão abrindo mão de seus direitos ou mesmo transigindo (isto é, aceitando perder parte
do seu direito). Ao se valerem da arbitragem, as partes na verdade escolhem um juízo privado para pôr
termo ao litígio. A arbitragem apontará quem tem razão na disputa. Cada parte terá oportunidade de
expor seus argumentos, defendê-los, produzir prova, enfim, terá oportunidade de influenciar na decisão
a ser tomada, de modo a proteger seus interesses. Não se confunde com um mero acordo, com a aceitação
passiva da redução de seu patrimônio ou com algo semelhante”.
56 Código Civil, art. 841: “Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação”.
57 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 17. ed. v. III, Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 468.
58 GOMES, Orlando. Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 24.
Alexandre Santos de Aragão 43

nas varas de família com o objetivo específico de promover a conciliação


quanto à matéria.

Em outros termos, embora determinados “fundos de direito”59


possam ser insuscetíveis de mensuração econômica (extrapatrimoniais)
ou indisponíveis e, portanto, inarbitráveis, os seus reflexos meramente
patrimoniais, por atender aos dois requisitos cumulativos da arbitrabilidade
objetiva, podem ser decididos através desse mecanismo extrajudicial de
resolução de controvérsias.

É o caso de algumas obrigações contratuais que, embora


monetariamente intraduzíveis quando abstratamente consideradas, geram
efeitos pecuniários aflitivos a qualquer das partes da avença. Convém
lembrar, nessa ótica, que a “patrimonialidade também se configura pela
aptidão de o inadimplemento ser reparado, compensado ou neutralizado
por medidas com conteúdo econômico”.60

Sendo assim, ainda que se considerasse, ao contrário do exposto no


tópico anterior, que as funções fiscalizatórias e sancionatórias contratuais
outorgadas à contraparte administrativa são expressões do poder de império
do Estado, do seu poder de polícia, ainda assim seus efeitos meramente
pecuniários (ex.: o valor da multa em dinheiro), poderiam ser equacionados
pelo método arbitral.

Ainda que se queira impropriamente reconduzi-las ao ius imperii do


Estado, de qualquer forma ter-se-ia que admitir a abertura da via arbitral
para os efeitos pecuniários decorrentes do exercício de tais supostas
prerrogativas administrativas. Exemplifica-se.

Pode-se considerar, por exemplo, que os poderem de alterar ou de


resilir unilateralmente os contratos administrativos (Lei 8.666/93, art. 58, I
e II) constituem faculdades intangíveis da Administração, necessariamente
59 Os fundos de direitos correspondem a uma situação jurídica fundamental, da qual podem decorrer
efeitos jurídicos diversos. Da condição de autor de uma obra literária, por exemplo, exsurgem direitos
patrimoniais e extrapatrimoniais, sendo certo que os primeiros, diversamente dos últimos, podem
ser submetidos à arbitragem. Não é raro que, do mesmo suporte fático, derivem direitos de naturezas
distintas. É o que o já saudoso Ministro Teori Zavascki denominava “situações jurídicas heterogêneas”.
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2. ed.
revista e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 46.
60 TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do interesse público: consequências processuais
(composições em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem, negócios processuais e ação monitória) –
versão atualizada para o CPC/2015. Revista de Processo, v. 264, ano 42, p. 83-107, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2017. p. 99.
44 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

tributárias de um suposto regime jurídico administrativo, da própria


puissance publique de que falava Maurice Hauriou, envolvendo até mesmo,
potencialmente, cláusulas de serviço.61 Ainda que assim se entenda, razão
não haveria para negar a arbitrabilidade do reequilíbrio econômico-
financeiro do contrato, em caso de modificação unilateral do pacto (art.
65, § 6º), ou da indenização pelos prejuízos e custos de desmobilização
decorrentes da rescisão contratual determinada pela Administração, sem
que haja culpa do contratado, pois constituem mero reflexo patrimonial
do exercício daquelas supostas puissances publiques (art. 79, § 2º).

5 A inarbitrabilidade das obrigações oriundas apenas e


diretamente do ordenamento jurídico (extracontratuais)

No interior de um contrato celebrado pela Administração Pública,


não são arbitráveis apenas as cláusulas que lá se encontrem com finalidade
exclusivamente didática, aquelas que já seriam de todo aplicáveis a qualquer
particular independentemente da celebração de qualquer avença (ex.:
obrigação de não poluir ou de assinar a carteira de trabalho do seu pessoal).
Na verdade, como essas matérias prescindiriam completamente do contrato,
podemos afirmar que são contratuais apenas formalmente.

Como vimos, o escopo de arbitrabilidade do Direito Administrativo


abrange todas as matérias suscetíveis de serem contratualmente fixadas
ou, melhor dizendo, todas aquelas que tenham em um contrato a sua fonte
jurígena imediata e imprescindível.

No entanto, a simples enunciação dessa conclusão seria de pouca


valia à essa altura. Portanto, neste tópico, buscaremos distinguir, mais
precisamente, as matérias contratualizáveis das incontratualizáveis.

Como vimos, mesmo o poder de polícia admite contemporaneamente


alguma abertura à consensualidade (vide os Termos de Ajustamento de
Conduta). Contudo, além de excepcional, o assentimento particular será
sempre acidental e posterior à constituição das prerrogativas insuscetíveis de
disposição contratual, que a ele preexistem e continuam a existir na sua falta.

Nesse sentido, em conhecida lição, Vasco Manuel Pascoal Dias


Pereira da Silva, citando Dupuis, sublinha que o “essencial é que as
normas unilaterais se imponham aos sujeitos ‘independentemente do seu

61 HAURIOU, Maurice. Précis de droit administratif et de droit public général: à l’usage des étudiants en
licence et en doctorat ès-sciences politiques. Paris: P. Larose, 1901. p. 227-237.
Alexandre Santos de Aragão 45

consentimento’, e não que os particulares afetados tenham estado ou não


de acordo com essa decisão, pois, ela não deixaria de regular a sua conduta
se eles não lhe tivessem dado o seu acordo”.62

Daí se extrai a inarbitrabilidade dos poderes tipicamente administrativos


(cujo traço caracterizador é a heteronomia), que serão melhor examinados
no tópico seguinte. Eles decorrem diretamente da Lei e não são moldados
nem existem em função de uma relação negocial, ainda que a Administração
excepcionalmente, e desde que diante de temas discricionários, possa concertar
alguns de seus aspectos, se assim recomendar o interesse público.

Por outro lado, algumas atuações administrativas que, à primeira vista,


aparentam ser estritamente unilaterais, a um olhar mais atento, mostram-se
de base contratual, a exemplo das sanções oriundas de contrato, como vimos
acima.

Como já expusemos no tópico III, onde expusemos que as sanções e os


poderes unilaterais da Administração contratante só são instituídos e passam
a ser exercitáveis com a aquiescência do particular contratado – elemento
indispensável para o advento da própria relação jurídica em que, nos limites
do contrato, poderá a Administração intervir de modo unilateral. Ou seja,
o assentimento privado, ainda que prévio (dado no momento da assinatura
do pacto), é requisito inerente à própria constituição de tais prerrogativas.

Sendo assim, podemos afirmar que apenas as obrigações heterônomas


do Direito Administrativo, ou seja, aquelas que se impõem ao particular de
maneira inteiramente vertical – sem em nada precisar da sua aquiescência
–, não podem ser objeto de contrato e, consequentemente, de arbitragem.

No próximo tópico, abordar-se-á a tese da inarbitrabilidade dos chamados


atos de império, na verdade detalhando-se dogmaticamente o acima asseverado.

6 Atos de Império (versus Atos de Gestão)

Além dos limites gerais à arbitrabilidade objetiva, parte da doutrina


sustenta que os atos, de alguma maneira, relacionáveis ao poder de império
do Estado seriam insuscetíveis de serem resolvidos pelo mecanismo arbitral.

62 SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Em Busca do Acto Administrativo Perdido. Coimbra:
Almedina, 2016. p. 474-475.
46 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

Como explica José dos Santos Carvalho Filho, os “atos de império são
os que se caracterizam pelo poder de coerção decorrente do poder de império
(ius imperii), não intervindo a vontade dos administrados para sua prática.
Como exemplo, os atos de polícia (apreensão de bens, embargo de obra), os
decretos de regulamentação etc. O Estado, entretanto, atua no mesmo plano
jurídico dos particulares quando se volta para a gestão da coisa pública (ius
gestionis). Nessa hipótese, pratica atos de gestão, intervindo frequentemente
a vontade de particulares. Exemplo: os negócios contratuais (aquisição ou
alienação de bens). Não tendo a coercibilidade dos atos de império, os atos
de gestão reclamam na maioria das vezes soluções negociadas”.63-64

A classificação das atuações estatais em atos de império e de gestão


foi proposta, no final do século XIX, como forma de relativizar a imunidade
de jurisdição dos Estados soberanos,65 classicamente concebida em termos
absolutos. Em 1891, o Instituto de Direito Internacional, por meio da
Resolução de Hamburgo, passou a restringir a imunidade de jurisdição
dos Estados nacionais às atuações fundadas em seu poder soberano (ius
imperii), negando-lhe às oportunidades em que ele atua como se particular
fosse (ius gestionis).66 Segundo Peter Trooboff,67 a Corte de Cassação da
Bélgica foi a primeira a adotar essa distinção, admitindo que uma ação
fosse ajuizada em face dos Países Baixos, sob o fundamento de que envolvia
a prática de atos de mera gestão. Logo em seguida, em 1926, a Corte de
Cassação da França também excepcionou a imunidade de jurisdição de que
gozava uma delegação comercial russa, com base no mesmo fundamento.

Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara, por exemplo, propõem


que o campo de matérias administrativas arbitráveis seja circunscrito com
base nesta antiga distinção entre os atos de império e de gestão:

63 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 131.
64 Para CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, os atos de império são “os que a Administração
praticava no gozo de prerrogativas de autoridade”, como, por exemplo, “a ordem de interdição de um
estabelecimento”. Atos de gestão seriam “os que a Administração praticava sem o uso de poderes
comandantes”. Como seria o caso da “venda de um bem” ou “os relativos à gestão de um serviço público” (Curso
de direito administrativo, 2012. p. 429).
65 A imunidade de jurisdição é uma construção consuetudinária, posteriormente tutelada em tratados
internacionais, que se funda na ideia de soberania recíproca e de igualdade entre as pessoas jurídicas
de direito internacional. Em linhas gerais, a imunidade de jurisdição “significa a impossibilidade de
submissão de um conflito envolvendo um Estado à jurisdição doméstica de outro”. FERRAZ, Rafaela.
Arbitragem em litígios comerciais com a Administração Pública. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2008. p. 67).
66 Resolução de Hamburgo, art. 4º, § 2º.
67 TROOBOFF, Peter D. Foreign state immunity: emerging consensus on principles. Recueil des cours, v. 200,
1986. p. 261-262.
Alexandre Santos de Aragão 47

Os primeiros dizem respeito a matérias inerentes ao Estado, que


corresponderiam ao plexo de interesses ‘indisponíveis’ do Poder Público.
Os outros envolvem os atos de mera administração. São atos despidos de
prerrogativas especiais, cujo objetivo é fixar relações jurídicas normais
(de direito comum) entre a Administração e outras pessoas jurídicas.
Aproveitando desta vetusta classificação, seria possível afirmar que a
intenção da Lei de Arbitragem foi reservar para seu escopo as matérias
objeto de atos de gestão. Estariam excluídos de sua abrangência aqueles
temas que são objeto de atos de império.68

No mesmo sentido, manifesta-se Selma Maria Ferreira Lemes,


ao registrar que “o que não se pode confiar aos árbitros são matérias ou
atribuições que importem o exercício de um poder de autoridade ou de
império e dos quais não se pode transigir”.69

Não discordamos da tese em referência. Consideramos, contudo, que


ela já está abarcada pelo critério adotado pela maior parte da doutrina para
definir o plexo de matérias administrativas suscetíveis de arbitramento.
Assim, a utilidade da classificação dos atos administrativos em de império
e de gestão, para os fins ora colimados, é ao menos duvidosa. Isso porque os
atos de império não podem ser objeto de disposição contratual, não buscam
fundamento de validade nem são aplicáveis no interior de relações negociais.

Quanto a este ponto, o art. 4º, inciso III, da Lei das Parcerias Público-
Privadas (Lei nº 11.079/2004) prevê a “indelegabilidade das funções de
regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras
atividades exclusivas do Estado”, corroborando o entendimento de que os
atos lastreados exclusivamente na soberania estatal, sem nem cogitar que
qualquer figura contratual, não podem ser objeto de arbitragem.

Da mesma maneira, o exercício do poder de polícia é tido pelo


STF como atividade exclusiva do Estado e, portanto, insuscetível de
delegação a particulares. A premissa da decisão prolatada na Ação Direta
de Inconstitucionalidade nº 1717/DF, de relatoria do Min. Sydney Sanches,
é justamente essa: de impossibilidade de delegação plena do poder de
polícia a entes privados, ainda que integrantes da Administração Pública.
De acordo com esse entendimento, o poder de polícia deveria ser exercido
68 SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. O Cabimento da Arbitragem nos Contratos
Administrativos. Revista de Direito Administrativo. n. 248, p. 117-126, 2008. p. 121.
69 LEMES, Selma Maria Ferreira. A arbitragem e os novos rumos empreendidos na Administração
Pública. A empresa estatal, o Estado e a concessão de serviço público. MARTINS, Pedro Antônio Batista
et alli (ORGS.). Aspectos Fundamentais da Lei da Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 193.
48 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

no âmbito do regime jurídico de direito público, porque este traria as


garantias necessárias ao seu exercício isento.

De acordo com a ADI nº 1717/DF, “a interpretação conjugada dos


artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da
Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade,
a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até
poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de
atividades profissionais regulamentadas”.

Temos uma sinonímia no Direito Administrativo: atos de império,


jus imperii, atos de soberania, atos heterônomos (no sentido de sujeitarem
indivíduos através de regras ditadas por outros, heteroditadas), atos
tipicamente estatais, atos reservados à Administração Pública.

Os atos de império fundam-se direta e exclusivamente na Lei ou


na Constituição, constituem prerrogativas de autoridade, exaradas com
verticalidade pelo gestor público, no exercício de poderes tipicamente
administrativos (de polícia, disciplinar, hierárquico etc.).

Tais prerrogativas são heterônomas, porquanto prescindem


do consentimento do particular para serem impostas (ainda que,
excepcionalmente, mesmo nessa seara, a Administração possa, a seu
critério, admitir alguma abertura à consensualidade como instrumento
do seu processo de decisão, que permanece sendo in fieri unilateral).

Sendo incontratualizáveis (justamente, por serem heterônomos),


os atos de império são também inarbitráveis. Nenhum deles precisam de
qualquer base contratual para poderem ser praticados. Basta lembrarmos
da distinção já vista entre sanções de polícia administrativa e as
sanções contratuais administrativas: aquelas diretamente aplicáveis
pela Administração Pública, e estas só cogitáveis se previamente
anuídas pelo particular mediante a sua voluntária adesão a um contrato
do Estado.

Em seguida, abordaremos o papel que os contratos celebrados pela


Administração Pública não só podem, como, visando ao incremento da
segurança jurídica para ambas as partes, devem ter na definição ou, ao
menos, na exemplificação das matérias apreciáveis em instância arbitral.

Trata-se de conferir aos contratantes o poder de, no interior da


(consideravelmente fluída e controversa) moldura legal, determinar quais
Alexandre Santos de Aragão 49

controvérsias poderão ser levadas à arbitragem, mantendo-se naturalmente


dentro dessa moldura, mas densificando-a, detalhando-a.

7 A função densificadora dos contratos na definição da


arbitrabilidade de lides envolvendo a Administração
Pública

Como preleciona Caio Mário Da Silva Pereira, “todo contrato parte


do pressuposto fático de uma declaração volitiva, emitida em conformidade
com a lei, ou obediente aos seus ditames. O direito positivo prescreve umas
tantas normas que integram a disciplina dos contratos e limitam a ação
livre de cada um, sem o que a vida de todo o grupo estará perturbada”.
Contudo, como a linguagem raramente é inequívoca70 e os comandos
legais frequentemente são permeados por elevado grau de generalidade e
abstração, reserva-se aos contratantes, de um modo geral, a faculdade de
concretizar e minudenciar as regras e os princípios, com maior ou menor
vagueza, enunciados pelo legislador.

Nessa linha, recupera-se clássica lição de Hans Kelsen: “Na medida


em que a ordem jurídica institui o negócio jurídico como fato produtor de
Direito, confere aos indivíduos, que lhe estão subordinados, o poder de
regular as suas relações mútuas, dentro dos quadros das normas gerais
criadas por via legislativa ou consuetudinária, através de normas criadas
pela via jurídico-negocial”.71

No campo administrativo, como expõe Paulo Modesto: “Muitas vezes


a redução da incerteza, a densificação da imprecisão legal, interessa tanto
a Administração quanto aos particulares. A autovinculação não concorre
com a legalidade. A rigor, a desenvolve e densifica, ampliando o alcance
prático dos princípios da igualdade e da proteção da confiança para âmbitos
nos quais falta precisão ou determinabilidade para os preceitos legais.72

70 Como alerta Carlos Maximiliano, a “linguagem, como elemento de Hermenêutica, assemelha-se muitas
vezes a certas rodas enferrujadas das máquinas, que mais embaraçam do que auxiliam o trabalho”. Desse
modo, são “inevitáveis os extravasamentos e as compressões; resultam da pobreza da palavra, que torna
esta inapta para corresponder à multiplicidade das ideias e à complexidade da vida”. (MAXIMILIANO,
Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 92-98).
71 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 2. ed. Coimbra: Armenio
Amado, 1962. p. 123, grifamos.
72 MODESTO, Paulo. Autovinculação administrativa. Salvador: Revista Eletrônica de Direito do Estado, n.
24, 2010. p. 7.
50 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

Ressalvadas as zonas (positiva e negativa) de certeza,73 todo conceito


jurídico indeterminado é preenchido por uma área grísea,74 cujos fluídos
contornos podem (e devem) ser induvidosamente fixados, em nome da
segurança jurídica, por atos ou negócios jurídicos posteriores.75

Celso Antônio Bandeira De Mello, em conhecida lição, esclarece


que “ao lado de conceitos unissignificativos, apoderados de conotação
e denotação precisas, unívocas, existem conceitos padecentes de certa
imprecisão, de alguma fluidez, e que, por isso mesmo, se caracterizam
como plurissignificativos. Quando a lei se vale de noções do primeiro tipo
ter-se-ia vinculação. De revés, quando se vale de noções aí tanto vagas
ter-se-ia discricionariedade. Sendo impossível à norma legal - pela própria
natureza das coisas - furtar-se ao manejo de conceitos das duas ordens,
a discrição resultaria de um imperativo lógico, em função do que sempre
remanesceria em prol da Administração o poder e encargo de firmar-se
em um dentre os conceitos possíveis.76

73 As zona de certeza de um conceito jurídico indeterminado são constituídas por “fatos que, com certeza, se
enquadram no conceito (zona de certeza positiva) e aqueles que, com igual convicção, não se enquadram
no enunciado (zona de certeza negativa)”. BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo.
Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 220.
74 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2012.
p. 990: “É certo que todas as palavras têm um conteúdo mínimo, sem o quê a comunicação humana
seria impossível. Por isso, ainda quando recobrem noções elásticas, estão de todo modo circunscrevendo
um campo de realidade suscetível de ser apreendido, exatamente porque recortável no universo das
possibilidades lógicas, mesmo que em suas franjas remanesça alguma imprecisão. Em suma: haverá
sempre, como disse Fernando Sainz Moreno, uma ‘zona de certeza positiva’, ao lado da ‘zona de certeza
negativa’, em relação aos conceitos imprecisos, por mais fluidos que sejam, isto é: ‘el de certeza positiva
(lo que es seguro que es) y el de certeza negativa (lo que es seguro que no es)’”.
75 CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO afirma que a regulamentação da Lei cumpre “a imprescindível
função de, balizando o comportamento dos múltiplos órgãos e agentes aos quais incumbe fazer observar
a lei, de um lado, oferecer segurança jurídica aos administrados sobre o que deve ser considerado proibido
ou exigido pela lei (e, ipsofacto, excluído do campo da livre autonomia da vontade), e, de outro lado, garantir
aplicação isonômica da lei, pois, se não existisse esta normação infralegal, alguns servidores públicos, em um
dado caso, entenderiam perigosa, insalubre ou insegura dada situação, ao passo que outros, em casos iguais,
dispensariam soluções diferentes” (Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 367). À
página 370 da obra citada, arremata o autor: “os regulamentos serão compatíveis com o princípio da legalidade
quando, no interior das possibilidades comportadas pelo enunciado legal, os preceptivos regulamentares
servem a um dos seguintes propósitos: (I) limitar a discricionariedade administrativa , seja para (a) dispor
sobre o modus procedendi da Administração nas relações que necessariamente surdirão entre ela e os
administrados por ocasião da execução da lei; (b) caracterizar fatos, situações ou comportamentos enunciados
na lei mediante conceitos vagos cuja determinação mais precisa deva ser embasada em índices, fatores ou
elementos configurados a partir de critérios ou avaliações técnicas segundo padrões uniformes, para garantia
do princípio da igualdade e da segurança jurídica; (II) decompor analiticamente o conteúdo de conceitos
sintéticos, mediante simples discriminação integral do que neles se contém”.
76 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 983.
Alexandre Santos de Aragão 51

Se é dos conceitos jurídicos indeterminados que, em grande medida,


advém a discricionariedade, é no campo das competências discricionárias em que
se dá, por excelência, o exercício consensualizado dos poderes administrativos.

Nesse sentido, manifesta-se com clareza Luciano Parejo Alfonso: “A


programação legal da atividade administrativa confere a esta, paradoxalmente,
certa margem de manobra (conceitos jurídicos indeterminados, margem de
apreciação) e, desde logo, faculdades discricionárias – que, justamente, permitem
à Administração a introdução de elementos volitivos próprios à fixação do
conteúdo do ato administrativo consensual. É óbvio que a discricionariedade
não é uma técnica de extensão do Direito, mas somente de reconhecimento de
uma competência de decisão capaz de estabelecer, para cada caso, a regra jurídica
pertinente, que, contudo, deve se circunscrever ao marco legal preestabelecido.
Portanto, a capacidade de fixação, por decisão própria, do conteúdo do ato
consensual deve mover-se em conformidade com o aludido marco, pressupondo,
em todo caso, um exercício legítimo da discricionariedade”.77

Assim, o legislador ao positivar um conceito jurídico indeterminado


a ser aplicado pela Administração – como o faz a Lei de Arbitragem em
relação aos “direitos disponíveis” –, implicitamente lhe confere um poder,
de índole discricionária, para reduzir as possibilidades interpretativas
franqueadas pela Lei. Essa prerrogativa de densificação das categorias
legais pode ser exercida de forma vertical e abstrata, por meio de um
decreto regulamentar, ou de forma horizontal (negocial) e específica, por
meio de um contrato, que produzirá efeitos apenas inter partes.

Um dos exemplos de densificação regulamentar do conceito de


“direitos disponíveis” da Lei de Arbitragem, ocorreu recentemente, quando
a Presidência da República editou o Decreto nº 8.465/2015, que minudencia
as normas para a realização de arbitragens no setor portuário. Em prestígio
da segurança jurídica, optou-se por especificar, em um elenco não exaustivo,
algumas das matérias que podem ser objeto de arbitragens no setor.
Confira-se, portanto, o dispositivo pertinente do Decreto nº 8.465/2015:

Art. 2º Incluem-se entre os litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis


que podem ser objeto da arbitragem de que trata este Decreto:

I - inadimplência de obrigações contratuais por qualquer das partes;

77 ALFONSO, Luciano Parejo. Los actos administrativos consensuales. Revista de Direito Administrativo e
Constitucional A & C, Belo Horizonte, v. 13, 2003.
52 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

II - questões relacionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro


dos contratos; e

III - outras questões relacionadas ao inadimplemento no recolhimento de


tarifas portuárias ou outras obrigações financeiras perante a administração
do porto e a Antaq.

As partes, em sede negocial,78 valendo-se da função densificadora


dos contratos, também podem definir o que se deve entender por “direitos
patrimoniais disponíveis”, ou decompor, a partir de tal categoria legal,
alguns dos litígios que consideram integrá-la, desde que não penetrem,
ressalva-se uma vez mais, a zona de certeza negativa do referido conceito.

Isso porque, como bem diagnostica José Abreu, os contratantes exercem


“uma verdadeira atividade de conteúdo preceitual, pelo negócio jurídico,
resultando de tal atuação uma função tipicamente normativa”.79 Em sequência,
o autor inclui “o negócio jurídico como instrumento da autonomia privada, ao
lado da lei e do regulamento, como uma das fontes normativas, ou seja, como
um meio idôneo à criação de normas jurídicas”, lembrando, porém, que essa
atividade negocial “estaria delimitada pelo ordenamento jurídico, que traçaria
os limites dentro dos quais o indivíduo exerceria este poder”.80

De acordo com o clássico Vicente Ráo, a autonomia das pessoas


físicas ou jurídicas, de direito privado ou público, “pode ser concebida
através de duas funções distintas: a) como fonte de normas destinadas
a formar parte integrante da própria ordem jurídica que a reconhece
como tal e por meio dela realiza uma espécie de descentralização da
função normogenética, fonte, esta, que poderia ser qualificada como
regulamentar, por ser subordinada à lei e b) como pressuposto e fato

78 Essa forma de atuação administrativa estaria em consonância com o que Vasco Manuel Pascoal Dias
Pereira da Silva chama de “Administração Pública concertada”. Para o autor lusitano, o “recurso à
concertação com os particulares é a consequência da condenação ao fracasso da tentativa de utilização
de meios autoritários nos domínios da Administração prestadora e conformadora ou infraestrutural. [...]
De autoritária e agressiva, a Administração habitua-se a procurar o consenso com os particulares, quer
mediante a generalização de formas de actuação contratuais, quer pela participação e concertação com
os privados, ainda quando estejam em causa actuações unilaterais. Existe aqui, como escreve RIVERO,
a ‘procura de um fator de obediência à regra diferente da simples coacção: a adesão dos atingidos pela
aplicação da decisão tomada, quer dizer, a participação na sua elaboração”. SILVA, Vasco Manuel Pascoal
Dias Pereira da. Em Busca do Acto Administrativo Perdido. Coimbra: Edições Almedina, 2016. p. 466-467.
79 ABREU, José. O Negócio Jurídico e sua Teoria Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 23, grifamos.
80 Ibidem, p. 37.
Alexandre Santos de Aragão 53

gerador de relações jurídicas já disciplinadas, em abstrato e geral, pelas


normas da ordem jurídica”.81

Em idêntico sentido, Vicenzo Roppo leciona que, como manifestação


de autonomia, o contrato tem a função de criar regulamentos: regras que os
próprios contratantes impõem a si mesmos, com base na legislação vigente.
Daí o autor italiano se valer da expressão “regolamento contrattuale”. Para
ele, o regulamento contratual possui duas fontes distintas: a autônoma e a
heterônoma. A fonte autônoma se sintetiza na vontade das partes, operando
no âmbito interno do contrato: o acordo volitivo. A fonte heterônoma (ou
externa), por seu turno, corresponderia essencialmente a duas categorias
distintas: a lei e a decisão judicial.82

Em essência, expôs-se neste tópico que cabem às partes de um


contrato, dentro da moldura que lhes foi deixada pelo legislador, definir
quais controvérsias relacionadas à avença poderão ser resolvidas no foro
arbitral. Essa faculdade decorre do poder de autovinculação das pessoas
físicas e jurídicas, bem como do grau de indeterminação linguístico do
conceito legal que deve ser aplicado ao contrato. Em algum momento,
seja em regulamento ou em uma posterior decisão judicial, esse conceito
será densificado; nada melhor que o próprio edital de licitação já o
faça previamente, evitando surpresas futuras para ambas as partes e
permitindo que o mercado possa avaliar as propostas a serem apresentadas
à Administração dispondo de todas as variáveis necessárias.

8 Breves apontamentos conclusivos

Em linhas gerais, pode-se afirmar que todos os direitos e obrigações


que decorram, em última análise, de contratos celebrados pela Administração
Pública podem, também por disposição negocial nesse sentido (cláusula
compromissória ou compromisso arbitral), ser submetidos à arbitragem.

O campo de arbitrabilidade objetiva, no Direito Administrativo, não


fornece guarida apenas às disposições efetivamente heterônomas, ou seja,
constituídas sem o necessário concurso volitivo do administrado. Nesse
sentido, vimos que, ainda que algumas prerrogativas possam ser exercidas
de modo unilateral e parte das cláusulas de um contrato administrativo
estejam predispostas em diplomas legislativos, é o encontro de vontades que

81 RÁO, Vicenzo. Ato Jurídico: noção, pressupostos, elementos essenciais e acidentais. 4. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999. p. 50. Grifamos.
82 ROPPO, Vicenzo. Il Contratto. 2. ed. Milão: Giuffré Editore, p. 430.
54 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017

constitui aqueles poderes e obrigações aludidos pela Lei – que será fonte
apenas indireta do negócio jurídico. Na verdade, o que a Legislação faz
nessas hipóteses é prever uma obrigação, para a Administração Pública, de
inscrever nos contratos que celebre determinadas cláusulas – essa obrigação,
contudo, não alcança nem poderia por si só alcançar os particulares que
não venham a contratar com o Estado.

Vimos também que os reflexos pecuniários de direitos extrapatrimoniais


ou indisponíveis podem ser apreciados perante os Tribunais arbitrais, a
exemplo do que ocorre no instituto da transação. Por fim, destacamos a
possibilidade – e a conveniência, já que esta solução promove a segurança
das relações jurídicas – de se densificar, por meio de atos normativos
regulamentares ou dos próprios contratos, o que se deve entender por
“direitos patrimoniais disponíveis” para fins de fixação das matérias que
podem ou não ser apreciadas em arbitragens envolvendo o Estado.

Em suma, o teste a ser feito é o seguinte: este poder, esta prerrogativa


ou esta sanção é aplicável ao particular apenas porque ele firmou o contrato
com a Administração Pública? Para todas as cláusulas em que a resposta
for afirmativa, poderão as partes prever a arbitragem.

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of transparency and its use by the
international civil society
Boa administração: o princípio da transparência e seu
exercício pela sociedade civil internacional

Wellington Migliari
PhD Candidate in Public International Law and International Relations, Faculty of Law,
University of Barcelona - Scholar financed by the Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Juli Ponce Solé
Tenured Professor of the Administrative Department, Faculty of Law, University of
Barcelona - Director of the Institute of Research TransJus.
Table of contents: Introduction: transparency for public-
private relationships; 1 Privatising the capital: transparency as
a legal evidence for State institutions; 2 Governance and low
compliance in private sectors for transparency; 3 Transparency
through participation as a transnational principle: international
framework and the beginning of private responsibility; 4
Conclusion: including civil actors for more transparency in
the public eye. Bibliographical References.
60 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 59-86, jul./set. 2017

Abstract: The principle of transparency is one of the cornerstones in


governance debate. It orients more creditable practices for the making of
public policies and draws citizens’ attention to the combat of corruption. In
addition, less opaque relations in public-private businesses may strengthen
the confidence of investors and tend to deconstruct asymmetric relations
in long-running scenarios. Nonetheless, it is important to bring to the
fore in that debate the birth of a transversal rationality that has forged
civil society in the international community beyond the national borders.
More and more, civil actors on social media networks organise debates
and opinions from local platforms to elaborate worldwide topics. The
aim of the present article is to suggest transparency as a local response
born inside States and conceived by the civil society to confront abuses
of global economic powers. Comparative analyses on constitutions
and domestic legislations related to transparency usually show how
asymmetric can be the perception of private investments and public
sectors; the former mostly seen as virtuous and the latter vicious.

Keywords: Governance. Good Administration. Transparency.


Comparative Public Law. Civil Society.

Resumo: O princípio da transparência é uma das pedras angulares


do debate sobre governança. Orienta práticas mais confiantes para
a elaboração de políticas públicas e alerta cidadãos para o combate à
corrupção. Além disso, as relações menos opacas nas empresas público-
privadas podem fortalecer a confiança de investidores e tendem a
desconstruir relações assimétricas em cenários de longo prazo. No
entanto, é importante trazer à tona nesse debate o nascimento de
uma racionalidade transversal que tem forjado uma sociedade civil na
comunidade internacional para além das fronteiras nacionais. Cada vez
mais, atores civis em redes sociais organizam debates e opiniões desde
plataformas locais para elaborar temas mundiais. O objetivo do presente
artigo é sugerir a transparência como uma resposta local nascida dentro
dos Estados e concebida pela sociedade civil para enfrentar os abusos dos
poderes econômicos globais. Análises comparativas sobre constituições
e legislações nacionais relacionadas à transparência geralmente mostram
quão pode ser assimétrica a percepção de investimentos privados e setores
públicos; o primeiro visto como virtuoso e o último vicioso.

Palavras-chave: Governança. Boa Administração. Transparência.


Direito Público Comparado. Sociedade Civil.
Wellington Migliari
Juli Ponce Solé 61

Introduction: transparency for public-private rela-


tionships

A guideline published by the Economic and Social Commission for Asia


and the Pacific, United Nations Programme for socioeconomic and sustainable
development, calls the attention to the importance of urban actors for the
exercise of good governance and its definition.1 It is important to include the
private sector in the debate of transgovernmental policies, but also provide
States mechanisms of control to avoid the political disputes with economic
benefits only for private enterprises distorting global market relations
through the deformation of governance policies.2 Initially, we assume as
important the transparent relations between State and economic powers
with a political orientation to impede and predict corruption nonetheless.
Therefore, accountability, responsiveness and efficiency in public-private
partnership must work for both governments and private companies.

However, there is another component that leads us in the question


of how solving conflicts involving private interests in the public affairs or
vice-versa. We suggest two categories of public-private relations to further
the argument. On the one hand, the understanding that State and public
affairs cannot be a partnership of the economic elites for the making of
politics. In a nutshell, money is condemnable in political institutions, because
the social morality has created a long tradition that does not accept such
marriage pointing the government as the most probeable entity to carry
the burden of the general interest. On the other hand, we have States that
assume an intimate institutional relationship with the economic powers, but
the relations are clearly regulated and defined by interposable limits. If the
powers, public or private, exceed in their transparent conjugal bonds, the
punishment for the spurious practices are classified as criminal evidences
against the social order and the private enterprise punishable financially.
Along the present article, cases of corruption in Spain, Brazil, Iceland and
United States will illustrate these two categories.3

Before initiating our discussion on transparency nonetheless, it is


urgent a more precise definition of what can be considered corruption.
For example, whether a bar of chocolate among other supermarket items
1 Available at: <http://www.unescap.org/sites/default/files/good-governance.pdf>.
2 KAL RAUSTIALA. 2002. “The Architecture of International Cooperation: Transgovernmental
Networks and the Future of International Law”. Virginia Journal of International Law, 43 (1): 25.
3 KUHNER, T. K. 2017. “Plutocracy and Partyocracy: the Corruption of Liberal and Social Democracies”,
in Cerrillo-i-Martínez, A. & Ponce, J., Preventing Corruption and Promoting Good Government and
Public Integrity. Brussels: Bruylant.
62 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 59-86, jul./set. 2017

bought with public money should be considered a crime as the case of


the Swedish social-democrat leader Mona Sahlin known as “Toblerone
Affair” in the 1990s.4 Or if the private interest must be considered
central in the process of State public affair co-optation such as the fact
involving the National Property Board of Sweden and the forest industry
Company Holmen with prominent figures such as the Finnish Nordea’s
chairman Björn Walhroos, Lars G. Josefsson when he was the CEO of
the multinational energy company Vattenfall and the former governor
of Östergötland.5 In order to overcome that imprecision for language
on corruption, we use the category of misconduct hereon divided into
three realms. The first one touches the meta-ethics which is devoted
to the study of moral judgment (legitimacy or acceptancy of practices
in the public eye); normative ethics or simply the “right” or “wrong”,
“licit” or “illicit”, counted in binary; and applied ethics in specific cases
that though formally legal, they cause perverse consequences for the
general interest since individual pursuits tend to maximize their benefits
regardless of public or private enterprises. 6 These three dimensions for
the definition of corruption appeared in the field of International Political
Theory igniting a peruse of transnational themes including justice, war
and security, cooperation, peace, distribution of resources in global scale,
universal human rights, political freedom, and responsibility on public
interest, but mainly examining whether State corruption has been an
isolated phenomenon without any external influence. 7

It is also quintessential, for our preliminary issues on governance


and transparency, how some authors have investigated the absence of
the State in private enterprises observing that the misconduct in human
relations does not depend necessarily on public lawful practices. Social
norms creating benefits for some and disadvantages for others are
also present in private business. 8 It is also noticed in some cases that

4 Available at: <https://www.thelocal.se/20101102/29984>.


5 Available at: <http://nordic.businessinsider.com/swedens-former-finance-minister-suspected-of-
corruption-in-hunting-scandal-2017-1/>.
6 HEALD, David. 2006. “Varieties of Transparency”, in Hood, Christopher and David Heald (eds.),
Transparency – The Key to Better Governance? Oxford: Oxford University Press.
7 BEITZ, C. 1979. “Bounded Morality: Justice and the State in World Politics”, International
Organization, 33 (3): 405-424. On the lack of transparency in public-private partnerships in Scandinavia
and Australia with empirical data, read Greve, Carsten and Graeme Hodge. 2011. “Transparency in
Public-Private Partnerships: Some Lessons from Scandinavia and Australia”, paper presented at the 1st
Global Conference on Transparency Research Rutgers University, 19-20 May, Newark.
8 MICK MOORE. 1989. “The Fruits and Fallacies of Neoliberalism: the Case of Irrigation Policy”. World
Development, 17 (11): 1733-1750.
Wellington Migliari
Juli Ponce Solé 63

external agents around the public sphere tend to coopt or influence


State’s behaviour, public administrations, law courts and legislatures
much before the formal relations with public institutions.9 For all these
possible scenarios, transparency may work as a tool to put forward a
political agenda in which synergies between State and society give room
to developmental issues with the help of private investments assuming
all actors are suspect when they touch money.10 It is reasonable to think
corruption is beyond public sector, but it is somewhat of a mistake to assume
corruption in private companies is a side-effect behaviour caused by State
agents. In the following section, we will show the public-private interests
in conflict and how public institutions respond differently to misconduct
either concentrating the task of combating corruption in State’s hands or
sharing the burden with the public eye as an instrument of perception to
protect the general interest.

1 Privatising the capital: transparency as a legal evidence


for State institutions

The present section analyses four cases we classify as forms of


corruption in which the public power is captured by private enterprises.
Spain and Brazil are close to the category that State policies for transparency
must be public, protect private money and not share the burden of probity
in public affairs since governments are expected to have the absolute
control of public contracts. It is a class of transparency that connects
governance to public opinion constantly moving from meta to normative
ethics, i.e., between a moral judgment moulding the public perception
and the strict interpretation of legal codes.11 In that circumstance, the

9 ALEXY, R. 2016. “Justicia como Corrección”, in La Institucionalización de la Justicia. Granada Comares.


10 “In May 1992, a Grameen Bank-type rotating credit association was begun in the environs of Ho
Chi Minh City. Participation was limited to poor households, and 95 percent of the participants were
women. They used the loans for working capital in petty trading ventures (e.g., selling vegetables) or to
buy equipment for craft production (e.g., sewing machines). The loans had a substantial impact on the
women‘s income earning capacity, and the reported repayment rate on the loans was an astonishing 100
percent”. See Peter Evans. 1996. “Government Action, Social Capital, and Development: Reviewing the
Evidence on Synergy”, World Development, 24 (6): 1119-1132.
11 However, there seems to be a global crisis in using meta-ethics and normative ethics as two parameters
to combat or avoid corruption since judicial actions trespassing that frontier may constitute practices
of the “State of exception” to refer to Carl Schmitt’s theology and its critical review on the theme
by Giorgio Agamben. So, the more justices use international analogies to harmonise the dimension
of applied ethics, the more cases come to light promoting confidence in the realm of public-private
businesses through a “ judicial comparative transparency”. See the debate on law for jurists and morality
in community proposed by Ronald Dworkin in the book Justice for Hedgehogs, chapter 19 on Law. Up
to a certain extent, if public morality can adjust law for the author, we suggest the use of a transnational
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role of applied ethics takes into consideration the two previous aspects of
ethics, but going further using international analogies for specific cases to
standardise effective protocols of governance. Iceland and United States
have represented the three-dimensions of global ethics in two cases after
the 2008 financial crisis, i.e., the public res depends on private capital and
regulation does not exempt private corrupters in paying literally the price
for their illicit actions. In that case, we derive energies from public and
private conflicts to distributive justice in John Rawls’ words meaning
capital and natural resources should be accessed equally with the support
of democratic States limiting the excesses caused by private greed. 12

Spain

Among a myriad of private contracts for urban infrastructure signed


between public administrations and companies in the contemporaneous
Spain, seven out of ten euros end up in the hands of the top ten biggest
companies of construction in the country. 13 The groups of ACS, ACCIONA
Servicios Urbanos, FCC, FERROVIAL and SACYR were the biggest
companies contracted by public administrations for urban services, city
projects and means of transportation. The Fundación Civio has announced
how opaque is the control of these private agents once the Uniones
Temporales de Empresas play non-transparent roles with reference to
the general interest. 14 Civil society must have power and mechanisms as
a counter-power to impede abuses of elected governments while running

morality on transparency and governance from international law freely expressed by the States in
agreements, documents and governance to adequate global private sectors in areas such as financial
market, property and trade.
12 RAWLS, John. 1999. “Distributive Shares”, in A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press.
Robert Keohane and other authors have approximate assumptions on regimes, international law and
private interests in global order for regimes. See Goldstein, Judith, Miles Kahler, Robert O. Keohane
and Anne-Marie Slaughter. 2000. “Introduction: Legalization and World Politics”, International
Organization, 54 (3): 385–89.
13 See the Spanish Official Gazette, «BOE» núm. 89, de 13 de abril de 2010, páginas 38932 a 38932 (1 pág.),
about contracts, prices and public money in “Acuerdo de la Dirección General de la Sociedad Estatal
de Infraestructuras del Transporte Terrestre, Sociedad Anónima (SEITT) por la que se hace pública
información relativa a diversos contratos de obra licitados por la Sociedad; «BOE» núm. 44, de 20 de
febrero de 2003, páginas 1349 a 1350 (2 págs), Resolución del Ayuntamiento de Las Rozas de Madrid por
la que se hace público las adjudicaciones efectuadas en el año 2001; «BOE» núm. 267, de 4 de noviembre
de 2016, páginas 67621 a 67622 (2 págs), Anuncio del Ayuntamiento de Madrid por el que se hace pública
la formalización del contrato de gestión del servicio público, modalidad concesión, de contenerización,
recogida y transporte de residuos en la ciudad de Madrid.
14 Fundación Civio [on-line]. ¿Quíen cobra la obra? [Accessed on 17 January 2016]. Available at: <http://
www.civio.es/dev/wp-content/uploads/2016/11/NP_Quiencobralaobra_20161116.pdf>.
Wellington Migliari
Juli Ponce Solé 65

the general interest as a system of favouritism interchanges. 15 Executive


powers must also be attentive to the relation budget-public debt in real
proportions in order to avoid insolvency since they do not have to spend
more than it is collected from taxes. However, State contracts with private
companies are not only the single source of irregularities, opacity and
corruption.

The speculative rating firms have also the power to construct the
images of cities based on investments which are measured mainly by the
political facet governments assume. The case of Barcelona shows us the
effect of a transparent administration and the positive externalities for
private sectors as we can see in Moody’s Report: “The Baa2 rating reflects
the city’s good budgetary management and solid financial fundamentals
in recent years, which have ensured a high self-financing capacity and,
as a result, a limited debt burden. This is mainly reflected in high gross
operating balances (20% of operating revenue on average for 2010-14)
and moderate debt levels (41% of operating revenue in 2014). The rating
also reflects Barcelona’s good liquidity position, with abundant cash on
hand and limited debt obligations”. 16 Is the capacity of private companies
interested in positive marginal returns a sort of corruption? In Warsaw,
Poland, public debt clock is a very eloquent sign in the public eye for a
topic that the citizenship understood as a very useful tool for transparency
impeding the monopoly of the information in the hands of the rating
firms.17 It also means the public eye considers or at least suspects of both
State and private initiatives.

Brazil

In Brazil, Odebrecht, OAS, Andrade Gutierrez and UTC are


of the constructors involved in scandals of corruption with politicians
financing their campaigns to pass federal acts in the National Congress.
The companies have also implemented in their departments special sectors
to adjust their accountabilities to systems of bribery. Their corruptive
actions affect city interests and international investments forging also
an oligopolistic construction market with overvalued public contracts.
The case of Petrobras is relevant for the understanding of how the public
15 ELIZABETH BURLESON. 2010. “Non-State Actor Access and Influence in International Legal and Policy
Negotiations”, Proceedings of the Annual Meeting (American Society of International Law), 104 (1): 325-328.
16 See also the complete report. Available at: <https://www.moodys.com/research/Moodys-changes-
outlook-on-ratings-of-14-Spanish-sub-sovereigns--PR_343979>.
17 Read W. MIGLIARI. 2016. “São Paulo, Warsaw and Landlocked Areas: from Functionality to Proto-
right to the City”, Studia Iuridica, 63 (1): 175-194.
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opinion turned on State, but alleviating the private sector was involved in
the scandal. Because of that blurring limit of what is corruption, that is to
say, only the State or public administrations are demonized, we miss the
point observing critically the level of involvement of the private capital
in the public life. As the City of Barcelona, for instance, the degree of
investment by international financial agencies such as the Fitch Ratings
given to the São Paulo Municipality dictates the areas the public money
will be invested. So, the core of general interest operates regarding what is
convenient for the private good. The city was awarded with AA+ in national
level and BBB- in global scale for what is commonly said “good payer”. 18
What does that mean? Low credit risk and high financial responsibility in
the public fiscal accounts for future investors. Is that relation of influential
investors a sort of corruption relying on a perverse public debt system?
The Brazilian modus operandi for corruption goes beyond the private
sector interfering directly in the economy, but it has also to do with the
public debt system and oligopoly of the means of communication. 19 The
cases of corruption during the 2014 World Cup were also emblematic and
in the perception of the Brazilian citizenship, but they did not generate
financial consequences for the Swiss institution. 20

Three hot topics about São Paulo State must be commented. The
first one is about a case of corruption related to catering contracts for State
schools. Some civil servants and politicians produced the appearance of
open-free competition to hire food suppliers, but in fact members of the
São Paulo State government took part of a fraud in which they accepted
bribes from the Cooperative Orgânica Familiar (COAF) to benefit the
private company. The other one refers to a giant infrastructure project
called Rodoanel. The investment was defended as a way to promote the
integration of massive highways from different parts of Brazil creating a
ring around the centre of São Paulo Municipality to alleviate the traffic jam.
Both scandals were not object of preventive actions like public hearings,
participative audits, open-governments practices to check the authenticity
in the competition, accessible data on internet about the contract and an
efficient criminal justice seizing the private patrimony in case of evident
fraud as a manner to compensate the general interest. The third case
is about the low-quality services to keep the penitentiary system for
18 Available at: <http://www.capital.sp.gov.br/portal/noticia/7250#ad-image-0>.
19 SOUZA, Jessé. 2015. A Tolice da Inteligência Brasileira. São Paulo: Leya. Read also Souza, Jessé. 2016. A
Radiografia do Golpe. São Paulo: Casa da Palabra-Ley.
20 Francisco Gabriel Ruiz Sosa. 2014. “The Paradox of the Order and Progress in Brazil: the
Demonstrations before, during and after the 2014 World Cup”, Desbordes Revista de Investigaciones de la
Escuela de Ciencias Sociales, Artes y Humanidades, 5 (1): 91-96.
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Juli Ponce Solé 67

adolescents who are seriously involved in torts, drug dealing and other
crimes. The project Fundação Casa consumes a mine of gold every year
and its administration by the private sector very opaque. 21

Iceland

Based upon the international magnitude of bank finances affecting


economic, social and cultural rights, the Supreme Court of Iceland convicted
bankers for market manipulation and fraud. In October 2016, the Icelandic
Supreme Court decided in the Kaupthing case that nine bank officials were
involved in criminal actions during the Icelandic banking crisis of 2008.
After investigation, it was proved the Kaupthing Bank used to buy its own
stock with the intention of keeping the market value shares artificially high.
The court’s diligences also found in the Case No. 498/2015, October 2016,
that the Kaupthing officials, ranging from a board member, the CEO of the
Luxembourg branch, and a member of the loan committee to traders, were
operating internationally in risky financial markets manipulating capital
data. Eight of them were sent to prison. Although the Court did not decide
through an exhaustive interpretation of the law, the practices were seen as
abusive even under the argument of the defendant the money invested in
shares had come formally from the private savings of the accused.

Following the previous Icelandic leading case, Kaupthing officials


let Sheikh Mohammed Bin Khalifa Bin Hamad Al-Thani of Qatar buy
shares in the Kaupthing Bank using the capital that he had loaned from
the institution. A practice of leverage morally condemned, but not illegal
at the time of the transactions. However, Mr. Björk Thorarinsdottir,
who was intimately linked to the loan committee, ended up in prison for
economic abuse of power. Mr. Magnus Gudmundsson, who was the former
CEO of the bank, had an additional penalty beyond the one he had already
been sentenced for his previous links with Al-Thani. Mr. Hreidar Mar
Sigurdsson, who had been convicted and sentenced to five and a half years
in prison for contributing to Al-Thani’s financial crimes, was convicted
to more half year in prison. His total conviction summed up six years in
prison. Mr. Gudmundsson had already been condemned for four and a

21 The legal diploma 911/2002 Complementary Act of the State of São Paulo concentrates the power
of investigation in cases of irregularity. The 34/2012 São Paulo State Constitutional Amendment
reinforces that control. Available at: <https://www4.tce.sp.gov.br/6524-conjurcom-oab-sp-diz-ser-
urgente-criacao-cpi-para-investigar-escandalo-merenda>, <http://portal3.tcu.gov.br/portal/page/
portal/TCU/imprensa/noticias/repositorio_noticias/Acordo%20com%20Minist%C3%A9rio%20
P%C3%BAblico%20para%20obras%20no%20rodoanel%20de%20S and http://www.conjur.com.br/2015-
jan-12/perspectiva-caixa-preta-fundacao-casa>.
68 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 59-86, jul./set. 2017

half years in prison as a result of his participation in the Al-Thani case.


The Kaupthing officials were sentenced for fraud and crimes attempting
to fair market by the Icelandic Supreme Court according to the General
Penal Code. The Icelandic Securities Act, No. 19, passed in 1940, which
was amended in 2013, and the Act on Securities Transactions, No. 18/2007,
Iceland Ministry of Industries. 22

United States

Washington Mutual, Inc. was a savings bank holding firm,


but also the former owners of Washington Mutual Bank. It was the
largest savings and loan association until its collapse in 2008 mortgage
global crisis. The US Office of Thrift Supervision (OTS) acquired the
Washington Mutual Bank from the Washington Mutual, Inc. reallocating
it in the Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC). After that,
caused by a withdrawal around 9% of all deposits in a time a little
longer than a week, the FDIC started selling the banking subsidiaries
discounting the unsecured debt and equity claims to JPMorgan Chase.
The operation was called Project West to regain the confidence of the
investors. The most interesting part of that case has to do with the
way the U.S. federal authorities dealt with the irresponsibility of the
mortgage system interpreting the global crisis as a corrupted system in
the sense intermediate speculative investors broke the rule of creating
infinite net of products such as derivatives, unpayable credits secured
by real properties and high interest rates. The cases of Kaupthing and
Washington Mutual, Inc. are illustrative of how the capital is privatized
when private owners menace the public or general interest with property
speculative markets. It is important to observe transparency is used not
only against public powers, but as a legal evidence of corruption against
bankers. The Judgment 111/1983, Rumasa Bank v. Spain, was a very
interesting example close to what happened in Iceland and United States.
The provision 14 of the 1954 Expropriation Act paved the path for a
fair trial since the plaintiffs of the recurso de amparo said the Spanish
Government was respecting the rule of law. 23 It is important to notice

22 Available at: <http://www.loc.gov/law/foreign-news/article/iceland-supreme-court-convicts-bankers-


in-market-manipulation-and-fraud-case/>. The recent biggest scandals of corruption in Spanish
and Brazilian societies, respectively, Barcena’s Case and Minha Casa, Minha Vida Programme, are
intimately linked to housing issues, construction of State infrastructure and private-public relationships
in property issues. See the following articles to check the social impact of these cases. Available at:
<http://bit.ly/1n86zQy and http://glo.bo/26nS9yj>.
23 Ley de Expropiación Forzosa de 1954.
Wellington Migliari
Juli Ponce Solé 69

the parliamentary dimension is prominent even in technical issues. 24 The


Spanish Constitutional Court affirmed any kind of control on potestas
should be oriented by the principles of reasonableness, connecting factor
and transparency. 25 The governmental decision in expropriating the
Rumasa Bank was taken inside technical limits as the Spanish Bank
Bulletin corroborated.

2 Governance and low compliance in private sectors for


transparency

Barcelona

The legal and institutional mechanisms of transparency designed


for the City of Barcelona is intriguing. The locals may dispose of three
documents in which transparency leads to participative administration.
The first one is the Municipal Chart of Barcelona. In its Preamble, it calls
the attention to an open-government defending citizenry participation
as a principle. The second document is known Normes Reguladores de
Participació Ciutadana de 2002. The Articles 4 mentions the access of
information as a tool for the municipal management while the Article 5
makes explicit the right to participation. The Articles 7 affirms the right
to the citizenry participation and the 8 supports citizens’ association. The
Article 26 is about the need for the public hearings and the Articles 22
to 25 establish all the rules for the assemblies. 26 Conflicts will count on
community cooperation in order to be solved relying on the Article 31.
The other text named Normes Reguladores del Funcionament dels Districtes
24 The Royal Decree 2/1983 instrument was converted into Decree Act 7/1983 with the support of the
Spanish General Courts: “[…] en un procedimiento legislativo que tiene su origen en un Decreto Ley
se culmina con una Ley que sustituye – con los efectos retroactivos inherentes a su objeto – al Decreto-
Ley”. Judgment 111/1983. As follows: “El Gobierno, ciertamente, ostenta el poder de actuación en
el espacio que es inherente a la acción política; se trata de actuaciones jurídicamente discrecionales,
dentro de los límites constitucionales, mediante unos conceptos que si bien no son inmunes al control
jurisdiccional, rechazan – por la propia función que compete al Tribunal – toda injerencia en la decisión
política, que correspondiendo a la elección y responsabilidad del Gobierno, tiene el control, también
desde la dimensión política, además de los otros contenidos plenos del control, del Congreso”. Op. cit.
25 The Judgment 111/1983 also mentions: “Es claro que el ejercicio de esta potestad de control implica
que dicha definición sea explícita y razonada y que exista una conexión de sentido entre la situación
definida y las medidas que en el Decreto-Ley se adoptan”; or even “Según el Banco de España la situación
del Grupo comprendido en la medida ordenada por el Decreto-Ley en cuestión reclamaba una acción
pública inmediata; el informe analiza las medidas o alternativas de acción posible y entre ellas, con una
insinuada preferencia, la de toma de control del Grupo como conjunto ante el riesgo que se anuda a las
otras alternativas o ante su inoperatividad. Dentro de este análisis, el Gobierno optó por la alternativa
del control global a través de una expropiación, ordenada por el Decreto-Ley impugnado”.
26 Available at: <http://governobert.bcn.cat/sites/default/files/norm_reg_part.pdf>.
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de 2009 refers to the functioning of the Barcelona districts. The Article


1 defines municipal districts shall pursue the principle of participative
citizenship as a tool to correct unbalanced policies. This provision is a
very important one to correct the excess of investments in some urban
zones in detriment of others. The Article 4 highlights the importance
of competences for participative citizenship creating strong relations
between public administrations and citizens, transparency and access to
information, the collective groups or individuals subject to effects of the
decision-making process. The Article 13.8 insists on close relations evolving
the president of the District Board and citizenship. The Article 17.6 and
25.1, letter “n”, defend open dialogue with all actors. The Article 10.6,
letter “f ”, affirms the District Board shall emit a perceptive bulletin on any
petition from individual or collective demands. The Article 32.1 predicts
the creation of commissions for consultancy with the help of citizenship
and all Government Commissions must be open to citizens as it says the
Article 33.5. The Article 34.1 tells us that ordinary work of the District
Board and its intentions for plans of actions shall not affect the interests
of the citizenship. All sessions are open to people as seen in the Article
35.2 and all citizens are allowed to intervene in the meetings based upon
the Article 38. According to the Article 39.3, public hearings are part of
a participative citizenship. The Article 40 says Citizenry District Board
is the maximum representative organism for the scope of the document
in which entities and associations are also included.

Spain and Catalonia

The 1978 Spanish Constitution says in its Article 9.2 public powers
shall remove all obstacles that impede the exercise of citizenship and
its participation in social, political and economic issues. The Provision
105 affirms a Spanish Act will regulate public hearings and the access
to documents except those ones considered under the scrutiny of State
security. The 19/2013 Spanish Act on Transparency and Good Government
(SATGG) affirms the access to information through technologies in its
Article 10 in different matters. Control of public administrations’ practices,
statistics, public budget, juridical information and other issues evolving
institutional organisation of domestic institutions are some of the topics
under the umbrella of a concept called active publicity. 27 Apart some
exceptions based upon the principle of national security and military
defense provided for the Article 14, we find constitutional mechanisms
27 The Article 5 of the Act sets the stage for the making of publicity practices. It opens the Chapter offering
a corollary of principles that converge expectations of good administration on international grounds.
The Articles 6 to 9 bring details to a myriad of possibilities in making less opaque administrative life.
Wellington Migliari
Juli Ponce Solé 71

in the Article 12 such as citizenship participation and “open-archive”


with strategic legal policies: “Todas las personas tienen derecho a acceder
a la información pública, en los términos previstos en el artículo 105.b) de la
Constitución Española, desarrollados por esta Ley”.

One of the challenges yet to be overcome by good government’s idea,


different from the construct of good administration, relies on the concentration
of power. As we see in the Article 36.2, the 19/2013 SATGG, the Commission
for Transparency and Good Government predicts just one representative
called “people’s defender” or ombudsman. Although the name, that mandate
is constituted by election and creates competences to represent citizenship
not power of investigation in public-private contracts. 28 According to the
Article 39.1, all the legal apparatus that may complement and guide the
19/2013 SATGG does not include transversal participation of civil society
with interrogatory powers. 29 So, expedients of any supposed malfunction
shall be diligently conducted by relative secrecy meeting other principles such
as the presumption of innocence, in dubio pro reo and non-arbitrariness. It is
a top-down system in which lack of confidence is not part of accountability
or responsiveness exercise in public affairs, but a moral shame. The Article
137.1 of the 30/1992 Act on the Juridical Regime for Public Administrations,
which is mentioned by the Article 39.1 of the 19/2013 SATGG, defends
the procedures related to sanctions will respect the presumption of no
administrative responsibility till it is proved the opposite. The historical and
institutional ambiguities of what we put in perspective as a legal good
governance is a trace of a very traditional hierarchy in law. 30

28 The president of the Commission is designated by Real Decree, i.e., the executive power in office. One
senator and one parliamentary representative meet political reasons that are not necessarily the interests
of a general citizenship over a specific political agenda of one party.
29 The article received a complex set of enacted legislation against corruption or “bad” government. See
the following letters from the Article 39.1, SATGG: “a) Las disposiciones de la Ley 47/2003, de 26 de
noviembre, General Presupuestaria, que le sean de aplicación. Anualmente elaborará un anteproyecto
de presupuesto con la estructura que establezca el Ministerio de Hacienda y Administraciones Públicas
para su elevación al Gobierno y su posterior integración en los Presupuestos Generales del Estado. b)
El Real Decreto Legislativo 3/2011, de 14 de noviembre, por el que se aprueba el Texto Refundido de
la Ley de Contratos del Sector Público. c) La Ley 33/2003, de 3 de noviembre, del Patrimonio de las
Administraciones Públicas, y, en lo no previsto en ella, por el Derecho privado en sus adquisiciones
patrimoniales. d) La Ley 7/2007, de 12 de abril, del Estatuto Básico del Empleado Público, y las demás
normas aplicables al personal funcionario de la Administración General del Estado, en materia de
medios personales. e) La Ley 30/1992, de 26 de noviembre, de Régimen Jurídico de las Administraciones
Públicas y del Procedimiento Administrativo Común, y por la normativa que le sea de aplicación, en lo
no dispuesto por esta Ley, cuando desarrolle sus funciones públicas”.
30 Henríquez Salido, y Maria do Carmo. 2014. “La Fórmula in Dubio en la Jurisprudencia Actual”, Revista
de Llengua i Dret, 62 (1): 5-22
72 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 59-86, jul./set. 2017

São Paulo

The 16.050/2014 São Paulo Urban Planning Act is a refined and advanced
norm devoted to the principles we pointed out before as a multilevel transparent
tool. It is a legal apparatus for a broad range of matters such as environment,
green protected areas, common space, education, municipal health system,
sports, urban land of cultural interest and landscape. The Article 290 of the
norm defends the refinement of public mechanisms and comptrollers about the
use of natural resources. That provision is inserted in the urban planning act
as a manner to establish environment, green and commons areas as a matter
of public interest. Citizenship, participation and transparency are crucial in that
sense. The Article 390 says strategic actions and democratic management are
needed for social policies in municipal jurisdiction. The Part I affirms the idea
of fortifying participative administration and civil society control on social
policies in the field of social assistance. Municipal boards divided into sectors
such as protective ones for the defense of children and adolescents. Elderly people
and organisations for a better quality of life are some of the other boards with
participative authorities. Part II makes explicit transparency and collective
participation as two mechanisms for managing the monetary funds related to
social assistance, elderly people policies, child and adolescent care. The Article
317 uses the same formula about control, participation and transparency in
urban land of cultural interest and landscape. The Part II of that provision
says the board in these matters shall be created on the principle of equity with
representative of public power and civil society to follow, assess and pass plans,
policies and studies related to the topics of the caput. The § 1 defends also public
audits with social participation from representative groups of society.

So, why are these practices prone to good administration than good
governance? Mainly for the fact they invert the actor of control in public
policies, the power of police and access to information. Citizenship, civil
society and collectives are the actors able to interact as any other public
agent or official with public matters. The question is why do we need public
servers then? The public employees are mediators of a complex task to be
conducted. Available information, the executive responsibility in making
transparent data beforehand and full access of information for individuals
conform the constructs of a democratic public administration. The Article
322 of the 16.050/2014 São Paulo Urban Planning Act corroborates
multilevel transparency in municipal system for urban issues.31 Much before
the approval of the norm in question, the municipality incentivised civil
31 Civil society participation was formalised by the Planning Act on the 30 of June 2014 when the
Municipal Parliament passed the norm. It started being valid on the 31 of July 2014. However, there
were meetings happening before August.
Wellington Migliari
Juli Ponce Solé 73

society to be part of public hearings. 32 The following chart shows that


during the year of 2014 there were 12 events between June-July. Local
openness in the public administration was important also to influence
the decision-making process in the Municipal Parliament.33 The open
topics of these formal public hearings were many. Sports, housing, health,
infrastructure, social assistance and urban mobility. 34

Brazil and São Paulo

The 1988 Brazilian Constitution mentions public administrations


shall pursue the principle of publicity as we see in its Article 37, caput. That
command was reaffirmed by the Constitutional Amendment Nº 199/1999.
The Federal Act 8.666/1993, Article 3, says the same principle must be
taken into consideration in case all entities of the federation make contracts.
Isonomy, sustainability, impersonal interests and legal certainty are also
legal principles defended by the document. The logic of best price for the
highest quality in public contracts have some exceptions that do not make
easier clear calculations for the common citizen. 35 Public administrations
may buy hardware and services connected to information prioritising
national sellers. In that sense, there is an extensive conflict of interest
between society and public powers misbalancing the control of the criteria
since the technical pieces of information tend to be infinite. The notion of
accountability and transparency in public contracts are evoked to avoid any
deviation of common interest. It is necessary to analyse the mechanisms
offered by the Brazilian legal system to check whether there is or not legal
application of multilevel transparent mechanisms against corruption.

In Brazil, accountability tends to put in practice more the power of


police in higher institutions than the notion of a multilevel transparency in

32 We understand public hearings as meetings, election for representatives of any kind and debates of any
topic not necessarily a decision-making assembly.
33 Along 2014, there were 1 meeting in March, 1 in April, 4 in June, 1 in July, 5 other meetings in August,
1 more in October and 1 meeting in December. In 2015, 1 in February and the last one in April.
Available at: http://planejasampa.prefeitura.sp.gov.br/biblioteca/atas/.
34 Available at: http://planejasampa.prefeitura.sp.gov.br/biblioteca/atas/.
35 The Federal Act 8.248/1991 converts the notion of best offer relying on the aspect of coherence into
an opaque practice. Public administrations must contract those products and services considered the
best one, but preferably items suitable to the Brazilian legislation and serving national interests. Under
that logic, it is hard for citizenship to have any idea if there is in fact an effective practice to meet the
expectations of a good administration in all federative levels.
74 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 59-86, jul./set. 2017

which citizenship participation should be the main important value. 36 That


top-down relation is tense once the Federal Government is constitutionally
able to intervene in States’ and Municipal’s administrations. The Article
34 of the 1988 Federal Constitution, VII, letter “d”, obliges lower federal
entities in explaining how monetary funds are used. Up to a certain extent,
it may seem an effective measure pro-transparency, however, the true effect
is a massive concentration of numbers and data in few hands. So, opacity
gains exponentially the terrain of secrecy. The Fiscal Responsibility Act
Nº 101/2000, Articles 1 and 48, did not include citizenship for the control
of public administrative actions and transparency. After Luiz Ignacio Lula
da Silva’s election for presidency that non-participative agenda changed
radically with the Capiberibe Act Nº 131/2009 in which forms of popular
participation, open-government principles and public hearings were
included in the new text. Any citizen, political party, association or union
may evoke the principle of transparency to demand public accountability
using the webpage “Portal da Transparência”. 37 Reading the Provisions
48-A, 73-A and 73-B of the Capiberibe Act Nº 131/2009 it is notable
positive effects that promoted low-cost checks and balances, accessible
means of communication for public opinion follow-ups and individual
controllers of the Brazilian public administrations. That legal apparatus
puts forward a more transversal system of law in which the right to access
of information and practices of good administration are present.

However, all these gains in terms of citizenship participation and


more collective forms of public administrative control are at risk. After
Dilma Rousseff ’s process of impeachment, a series of attacks proceeded
against open-government principles The interim government of Michel
Temer, who was in the position of Vice-President, assumed the control
of the Brazilian Federation with the impediment of Dilma Rousseff ’s
mandate, extinguishing the body that controlled the abuses against
the Brazilian State executive power. Public hearings, audits and policy
accountabilities under the responsibility of the Comptroller General’s
Office ceased with the signature of the Provisional Measure 726/2016,
Article 1, III. The same text created in its Article 3, I, the Ministry of

36 The principle of transparency is only referred explicitly in its Article 216-A, IX, but curiously in matters
evolving culture. The Constitutional Amendment Nº 71, 2012, reinforces the vote of the constituency
during the 1980s. Transparency and the obligation of sharing information are the two tasks expected to
be conducted by the public federal powers in the National System of Culture. Rouanet 8.313 Act, Article
4, § 1, National Programme for Culture Support, says the Ministry of Culture shall control the funds for
artistic projects, but there are not tools of citizenship participation nor transparent agendas imposed for
the highest board in the matter.
37 Available at: <http://www.transparencia.sp.gov.br/>.
Wellington Migliari
Juli Ponce Solé 75

Transparency, Monitoring and Control. Many of the new ministers were


formally accused or involved in cases of corruption. The Transparency
International Organisation showed its preoccupation with these events and
claimed Brazil had to face a deep political reform to get back civil society’s
trust. 38 During the first two weeks of the new government, a ministry
was discovered in a secret audio conspiring against the anti-corruption
operation called “Car Wash”. 39 His voice was recorded by a politician
who is under the accusation of trying to impede justice investigating the
names evolved in Petrobras scandal.

The idea of good administration for the Brazilian public


administrations is not ripe yet, although it is notable the Federal Act for
Transparency 12.527/2011. The Article 01, parts I and II, says all federative
competences, public and partially public, which we may understand as
public-private companies or contracts, are subject to the act. Public funds
invested in projects run by private actors are also object of scrutiny under
the same legal text as it is found in the Article 2. The Article 3, parts
I and II, mentions the principle of publicity as general rule and secrecy
as exception for the access of information. That rationale is interpreted
as a part of fundamental rights corollary regardless of any petition or
motion. Public enterprises are supposed to be born under transparent
practices. The Article 3, part IV, refers to the social control of the public
administration. In few words, the Federal Act for Transparency is an
attempt of multilevel legal tools and social custom for open-government
and anti-opaque actions. Yet some difficulties such as different stages of
what means transparency for each entity of the federation, it is mandatory
the access to information through clear and objective language according to
the Article 5: “É dever do Estado garantir o direito de acesso à informação,
que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma
transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão”.40 The federal
text on transparency talks about the right to information and suppose
the acts of publicity do not need to be motivated as we see in the Articles
7 and 8. The § 2 of the Article 8 obliges all actors of the federation use
internet to make available all numbers, data and contracts. Once more,
all public administrative competences are expected to be committed to an
agenda based upon horizontal control of information. It means all opaque
38 Available at: <http://www.transparency.org/news/feature/brazils_corruption_clean_up>.
39 The ex-Minister Fabiano Silveira criticised the Operação Lava-Jato and resigned after a massive demand
for more coherence by the Brazilian society in the supposed new government against corruption.
40 The Complementary Act Nº 846/1998 regulates transparency in specific areas. Health, culture,
sports, observation and rights of the physically and mentally disabled, children and adolescent’s rights,
environmental issues and financial investments, competition and development.
76 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 59-86, jul./set. 2017

forms of administration managing data, numbers and contracts with


limited access create a rigid hierarchy for transparent practices. Excess
of formalities to motivate public powers and lists of those actors who are
or not permitted to pose questions on public issues make more difficult
the collective participation in critical topics in which money, power and
responsibilities are present.41 The Article 10, caput and § 1, demands the
identification of the citizen or the company in those administrative petitions
generated by non-available information. If the public competence did not
meet the principle of publicity in any issue, the interested part must fill
in forms with personal information. This corroborates the opposite of an
invisible individual for public administration and the principle of isonomy.
Information related to fundamental rights cannot be denied as the Article
21 defends. The responsibilities predicted in the Article 32 include licit
conduct of the public employee and good faith in all procedures described
by the Federal Act for Transparency. If any fault or fraud is detected, the
official or public agent will face administrative process as it is expressed
in the Article 33. Only military servers are subject to penal sanctions,
other offenders suffer from warnings, fines, anti-ethical declarations and
interdiction. 42

3 Transparency through participation as a transnational


principle: international framework and the beginning of
private responsibility

Council of Europe

Transparency through participative processes are mostly present


in the literature on local and good governance. Nonetheless, when we
analyse supranational documents that had been formulated to guide public
administrations with harmonised practices, it is the principle of good
administration that has translated effectively such challenges closer to civil
society. The Recommendation CM/Rec(2007)7 on good administration,
which was elaborated by the Committee of Ministers, Council of Europe,
suggests that the member States through the Articles 8 and 10, respectively,
internalize rules for the participation of privates in public decisions with more
transparent practices in public administrations. 43 The role of the citizenship
41 In cases related to federal public administration, the Article 20 of the Federal Act for Transparency says
the principle of subsidiary shall be used relying on the 9.784/1999 Act.
42 The Article 32, § 1, Part I.
43 SOLE, Juli Ponce. 2011. “EU Law, Global Law and the Right to Good administration”, in Chiti, Edoardo
and Bernardo Giorgio Matarella (eds.), Global Administrative Law and EU Administrative Law.
Relationships, Legal Issues and Comparisons. Berlín: Springer.
Wellington Migliari
Juli Ponce Solé 77

is indispensable in some realities since the culture of the public is generally


concentrated in few hands, top-down experiments without contestation
and the discretionary power sometimes not used for the general interest.

European Union

The White Paper for European Governance (2001), Section II, is


another example of good administration very similar to what is currently
defined as good governance. The document calls the attention to openness,
participation, accountability, effectiveness and coherence in public themes.
44
Along the text, we also check the presence of public hearings, the
notion of civil society dialogue with elected authorities and consultation
practices. The minimum agenda of that soft law document is supposed to
be all over national territories of the member States in European Union.
Nevertheless, a political stage that probably spills over European Union
paves the path to other countries as well. One of first reason for that relies
on the notion of avoiding asymmetry of information related to public
administrations and governments. A second one is based on worldwide
civil society participation, State commitment for democratic principles and
public hearings involving mainly the working class. 45 Organizations such
as Technology for Transparency and Transparency International were founded
having as some of their cornerstones the creation of an international
community to combat opaqueness regarding the general interest.

Other important transnational document is the European Charter


of Fundamental Rights (2007) as a legal apparatus as any other regional
treaty. The Article 41 mentions in concrete the right to good administration
and contains other citizens’ rights. The same Article, point 1, averts
procedures and affairs must be handled in reasonable time. The letters
“a”, “b” and “c” of Article 41 defend that every individual, respectively,
has the right to be heard, to have access to personal files and to
demand the reasons on which procedures related to the evolved in
public expedients are based upon. The Article 42 reinforces the right of
access to documents from public administrations and the provision 44
refers to the right of petition to the European Parliament. The Treaty
44 Public participation is explicitly defined in the White Paper for European Governance as well: “Such
consultation helps the Commission and the other Institutions to arbitrate between competing claims
and priorities and assists in developing a longer term policy perspective. Participation is not about
institutionalising protest. It is about more effective policy shaping based on early consultation and past
experience”. Available at: <http://europa.eu/rapid/press-release_DOC-01-10_en.htm>.
45 Cheol-Sung Lee. 2007. “Labor Unions and Good Governance: a Cross-National, Comparative Analysis”,
American Sociological Review, 72 (4): 585-609.
78 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 59-86, jul./set. 2017

on the Functioning of the European Union (2007), Article 6, letter “g”,


mentions administrative cooperation. The idea of a cooperative public
administration seems to point out the principle of reciprocity, the
understanding of archives should be relatively open if they are related
to public affairs in the zone and up to a certain extent it commands
practices of multilevel transparency. There is also an international goal
to support healthy administrative measures to guarantee national or
local supervision of democratic legal systems. The Article 15 affirms
that “In order to promote good governance and ensure the participation
of civil society, the Union’s institutions, bodies, offices and agencies
shall conduct their work as openly as possible”. The Provision 63, letter
“b”, says: “to take all requisite measures to prevent infringements of
national law and regulations, in particular in the field of taxation and
the prudential supervision of financial institutions, or to lay down
procedures for the declaration of capital movements for purposes of
administrative or statistical information, or to take measures which are
justified on grounds of public policy or public security”. 46 The Article
74 highlights the need for administrative cooperation in freedom,
security and justice matters among member States of the European
Union. Once more, citizenship is in the core of what is defined by us
as a multilevel transparent practice and necessarily linked to less
opaque public expedients since policies shall be oriented by the defense
of fundamental rights. In January 2017, the European Commission
opened a public consultation term for all those citizens, civil society
associations and public administrations among other groups of interests
through the European One Health Action Plan against Antimicrobial
Resistance on public health and food safety as an example of synergies
between EU institutions, governments in all levels and individuals. 47

Mercosur

A legal transnational diploma is also seen out of the European


regional context. 48 The task of harmonising legislation is predicted by
the Tratado de Asunción (1991) in its Article 1. The Protocol of Ouro Preto
(1994) in its Articles 28, 29 and 30 advanced in questions of representation
for civil demands. Yet a non-binding procedure, the voice of privates could
be directed to the organism of MERCOSUR. Democratic principles were

46 Available at: <http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=celex%3A12012E%2FTXT.


47 Available at: <https://ec.europa.eu/health/amr/consultations/consultation_20170123_amr-new-action-plan_en>
48 Article 4, unique paragraph, 1988 Brazilian Federal Constitution, affirms the Brazilian society assumes
Latin-American integration as a value and corroborates the idea of solid bonds among South-Americans.
Wellington Migliari
Juli Ponce Solé 79

reassured by the Protocol of Ushuaia (1998) in its Article 1 and the following
provisions.49 But the civil participation and practices close to transparent
governments started being institutionalised by the MERCOSUR’s actions
after the Protocolo Constitutivo del Parlamento de MERCOSUR (2005).
The Article 2.4 affirms the right to civil participation and representation
in the organism. In the point 5 of the same provision, values related to
citizenship and collective consciousness’ construction are mentioned. The
Article 3.2 says the principle of transparency is important to right of access
to information and the decision-making process. Trust and citizenry
participation are stimulated by transparent practices among member
States. According to the Article 4.9, the MERCOSUR Parliament is in
charge of organising public meetings, but that competence implies also
the obligation of assembling civil society for the regional discussions.
With the intention of avoiding conflicts among public competences, the
Article 4.14 affirms there must be the harmonisation of national and
regional legal design for the pursuance of parliamentary tasks. That
aspect is similar to the multilevel transparent practice that we pointed out
previously as a trace of good administration. The MERCOSUR’s agenda
seems to be aware of the tensions created by hierarchical and top-down
institutional models of governance. The Parliament’s activities tend to
be more open and democratic, but mainly central as a political basis for
the administrative task. It does have to do with the political debate and
citizenship participation the elements for a sophisticated legal design
in which the values agreed in citizenry forums in different levels will
define relatively low pressure in domestic administrations. The Article
19 avers the qualified and ample participative model for parliamentary
acts since that political body is able to enact studies on specific topics,
projects and anti-projects for norms, declarations and recommendations
among others. Re-stating the provision, if the political exercise of the
MERCOSUR Parliament does not comply with civil society, the organism
de-characterises its own existence. So, private sector and capital are objects
of transparent practices.

49 Available at: <http://www.mercosur.int/innovaportal/v/4054/2/innova.front/textos-fundacionales>.


Argentina, Paraguay and Uruguay are part of the origins in the regional agreement in question. Bolivia
and Venezuela are State-observers. Yet there is a democratic binding notion to guarantee the good
functioning of the public administrations in MERCOSUR, the South-American reality still suffers
from instability. In 2012, the President elected Fernando Lugo was taken office by Senate votes after a
countryside confront in which some people died. Lugo’ support for the land cause in his biography was
considered a real motif for his removal. The President elected Dilma Rousseff in 2014 for a second-round
mandate suffered a process of impeachment for misbalancing public budget. The doubt persisted in a
fragile accusation of the executive Brazilian representative based upon the 1950 Act for Government
Budget Equilibrium and the Article 37, paragraph 4, Brazilian Federal Constitution of 1988.
80 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 59-86, jul./set. 2017

International Organization

The United Nations Convention against Corruption (2003) is a


recent transnational effort made against despicable practices in public
administrations. In its Article 5 it is affirmed all States shall make
domestic efforts in their legal systems to promote anti-corruption
policies and practices: “Each State Party shall, in accordance with the
fundamental principles of its legal system, develop and implement or
maintain effective, coordinated anti-corruption policies that promote the
participation of society and reflect the principles of the rule of law, proper
management of public affairs and public property, integrity, transparency
and accountability”.50 The Article 7, 1 (a), defends transparency as a
principle that must be applied to public sectors as well. The point 3 of
the same provision points out the importance of non-opaque also in
the legislative process: “Each State Party shall also consider taking
appropriate legislative and administrative measures, consistent with the
objectives of this Convention and in accordance with the fundamental
principles of its domestic law, to enhance transparency in the funding of
candidatures for elected public office and, where applicable, the funding
of political parties”. At that point, it seems to be clear how the private
capital has an influence on the making of politics. The Articles 9, 10
and the letter “a” of the 12.2 refer, respectively, to transparency in public
finances, the need for public reports and cooperative links between
private firms and law enforcement agencies. The judiciary power is
a key-partner in that journey. The Article 13.1 calls the attention to
citizenry participation and non-governmental organisations as some
of the key-actors for anti-corruption practices: “promote the active
participation of individuals and groups outside the public sector, such
as civil society, non-governmental organizations and community-based
organizations, in the prevention of and the fight against corruption and
to raise public awareness regarding the existence, causes and gravity
of and the threat posed by corruption”.51

Iberoamerican Code of Good Governance

In 2006, the Centro Latinoamericano de Administración para el


Desarrollo (CLAD), including Brazil, Spain and other Latin-American

50 Available at: <https://www.unodc.org/documents/treaties/UNCAC/Publications/Convention/08-


50026_E.pdf>.
51 Available at: <https://www.unodc.org/documents/treaties/UNCAC/Publications/Convention/08-
50026_E.pdf>.
Wellington Migliari
Juli Ponce Solé 81

countries, agreed in making a code for public administrations based


upon common principles, democratic binding rules for democratic
practices, standards of ethics in governments and provide the means
for the implementation of the Iberoamerican Code of Good Government.
With reference to the mandatory criteria for public governance, the
point 25 of the document affirms that the member States must support
the participation of citizenship and peoples to formulate, adopt and
evaluate public policies: “Fomentarán la participación de los ciudadanos
y los pueblos en la formulación, implantación y evaluación de las
políticas públicas, en condiciones de igualdad y razonabilidad”. Among
the values and principles public administrations are committed to and
oriented by the concept of good governance, we find impartiality,
transparency and gender among many others: “Los valores que guiarán
la acción del buen gobierno son, especialmente: Objetividad, tolerancia,
integridad, responsabilidad, credibilidad, imparcialidad, dedicación al
servicio, transparencia, ejemplaridad, austeridad, accesibilidad, eficacia,
igualdad de género y protección de la diversidad étnica y cultural,
así como del medio ambiente”. Furthermore, if there is any suspicion
of preferential treatment affecting the general interest promoted
by private clients, the executive power is expected to be away from
personal, familiar, corporative, clientelist or any other spurious relation
against citizenship: “Perseguirá siempre la satisfacción de los intereses
generales de los ciudadanos y los pueblos, y sus decisiones y actuaciones
se fundamentarán en consideraciones objetivas orientadas hacia el
interés común, al margen de cualquier otro factor que exprese posiciones
personales, familiares, corporativas, clientelares o cualesquiera otras que
puedan colisionar con este principio”. It is also a relevant information
that the Preamble of the Código Iberamericano de Buen Gobierno conceives
principles and practices relying on governmental mandates in which
the public scrutiny in their actions are easily publicised: “Un Gobierno
que dificulte el escrutinio público sobre su toma de decisiones”. 52

4 Conclusion: including civil actors for more transparency


in the public eye

Occupy Wall Street movements proved the liberal cause-effect


assumption between legal arrangements and politics was not enough
52 Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo [on-line]. Código Iberamericano de Buen
Gobierno. Establece las obligaciones y principios que se tomaron mediante el consenso de Montevideo,
de fecha de junio de 2006 en el que se detallan las reglas vinculadas: a) a la naturaleza del gobierno; b)
a la ética gubernamental; y c) a la gestión pública. [Accessed on 29 May 2017]. Available at: <http://
unpan1.un.org/intradoc/groups/public/documents/ICAP/UNPAN027945.pdf>.
82 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 59-86, jul./set. 2017

to predict how States or powerful companies behave. The rallies made


evident international financial markets violated the values of integrity,
responsiveness and, when not the law, the legality condemning many
people to indignity. As Robert Cox defended during the 1990s, labour
is one of the central keys for globalisation as an alive spectrum from
the Cold War still defining the world order nowadays. At the Zuccotti
Park and at the Broadway entrance, protesters held signs saying that
“I won’t believe a corporation is a person until Texas hangs one” or
“Licensed social work with no job, no health care and thousands of $ in
student debt”. Relatives took their children outdoor to send the message
“Kindergartner against greed”. There was also an ex-soldier holding a
sign “WWII vet and still occupying” making a military tactics pun of
territory reconnaissance that was about to escalate to a world war level.53
These demands are basically unified by social impoverishment, scarcity
of qualified jobs and concentration of wealth. Regardless other values
and cultural differences, money and richness as the result of how much
effort individuals make to achieve them were seen in this movement as
childish fable. The public opinion also understood that the irresponsibility
or even the irresponsiveness of large companies were not personal, but
systematically entangled by spurious alliances between the governmental
practices and the money barony. It looks like we are having a different
experience in the organization of the working class in the sense the political
party model exists with different forms of assemblies and platforms.54
The financial crisis represented a turning point for international labour
organisation in which the costs must be transnationally socialised 55

A systemic overview leading to the construction of an international


alternative seems to be global, transparent and participative in which
individuals use their own views on facts to express their own subjectivity.56
We would say there is a sort of transversal reason with the support of the
social media claiming transparency as a moral principle organising the
social, legal and political global order.57 It is not a vertical top-down or
bottom-up worldwide relation stemming from the formalities of democracy,
53 SCHERER, M. 2011. “Introduction: Taking it to the Streets”, in Time (Ed.), What is Occupy? Inside the
Global Movement. New York: Time Books. Read also Rawlings, N. 2011. “First Days of a Revolution”, in
Time (Ed.), What is Occupy? Inside the Global Movement. New York: Time Books.
54 CASTELLS, M. 1983. The City and the Grassroots. Berkeley: California University Press.
55 COX, R. 1996. Approaches to World Order. Cambridge: Cambridge University Press.
56 REUS-SMIT, C. 2005. “Constructivism”, in Burchill, S. & et al. (Eds.), Theories of International
Relations. London: Palgrave Macmillan.
57 NEVES, M. 2013. “From Structural Couplings to Transversal Rationality”, in Transconstitutionalism.
Oxford: Hart Publishing. About the backgrounds on transversal reason [das Konzept der transversalen
Wellington Migliari
Juli Ponce Solé 83

but a transversal set of principles legitimised by rational demands to impede


low-paid jobs and precarious jobs combined with the growing polarization
of incomes.58 It seems to be complex discourses and narratives constructed
and overlapped by different geographical points, but with a common
thread running through indignation, exclusion and disappointment with
institutions. In Spain, as it happened in United States, the 15-M had already
echoed the grassroots movements’ clamour following the same patterns
of collective contestation, but mainly suggesting political and economic
powers had to coalesce into the acceptance of participative democracy
as a value.59 Therefore, individuals should be more engaged in massive
transparent and participative practices to “re-order” the global power,
but not prone to coalesce into market nor hierarchy.60 In other words,
social platforms and civil society may be a third-party actor to help the
construction of more investigative tools of transparency. Moreover, the
notion of influence from affluent companies can be studied with the lens
of accountability and responsiveness by these actors in order to create a
democratic understanding of very sensitive topics such as public debt, bank
credit and financial markets that depend more and more on public affairs.

The section on transparency from an international perspective shows


us how transnational organisms with plural actors tend to accept the power
of participation from civil society. The formulation, implementation and
the capacity of assessment of public policies are part of instruments for
good governance or administration. The task of combating illicit practices
and corruption is not solely the burden of the State. As we showed, the
United Nations Convention against Corruption (2003) pointed out how
important it is to observe the conflictual relations between political
parties and public affairs. The section on local governments and how the
formalities on transparency create obstacles for participative practices.
Another aspect had to do with the legal emphasis on transparency as a
portrait of documents, data and public action that must be available for
the public eye not an instrument to judge in favour or against actors based
on their conduct. The cases of Spain, Brazil, Iceland and United States
have in common the privileges private enterprises take from the public
contracts despite only the two-latter cases had non-exhaustive legal or

vernunft], read Welsch, W. 2013. “Reason and Transition: on the Concept of Transversal Reason”,
Scholarly Publications. Available at: <https://ecommons.cornell.edu/handle/1813/54>.
58 COX, R. W. 2000. “Thinking about Civilizations”, Review of International Studies, 26 (5): 217–234.
59 BROWN, C. 1999. “History Ends, Worlds Collide”, Review of International Studies, 25 (5): 41-57.
60 POWELL, W. 1990. “Neither Market Nor Hierarchy: Network Forms of Organization”, Research in
Organizational Behavior, 12 (1): 295-336.
84 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 59-86, jul./set. 2017

formal elements to be judged. When the abuse of the economic power was
understood as a clear method of making money in Iceland and United
States, the public authorities stayed at the side of the international public
opinion. Therefore, transparency has reached two objectives. One of them
was less opaque relations in public-private relations as an effective means
of judgment with the support of abstract principles, i.e., accountability and
responsiveness. The other one derives from a transversal rationality which
is simply the comprehension of facts or events not necessarily determined
by pure geographical or national frontiers. It is a phenomenon that has
chased the international capital corruption not the States as we saw in
Occupy Wall Street and 15-M.

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Recebido em: 20/02/2017
Aprovado em: 28/04/2017

BACKLASH: UMA REFLEXÃO SOBRE


DELIBERAÇÃO JUDICIAL EM CASOS
POLÊMICOS

BACKLASH: A REFLECTION ON JUDICIAL DELIBERATION IN


CONTROVERSIAL CASES

Adriana Timoteo dos Santos Zagurski


Doutoranda em Direito pela PUC/PR, mestrado em Direito Economico e
Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
Professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG

SUMÁRIO: Indrodução; 1 Breves considerações


sobre a expansão do Poder Judiciário; 2 Conceito
de backlash; 3 O backlash no sistema constitucional
brasileiro; 3.1 O caso das uniões homoafetivas; 3.2
A Lei da Ficha Limpa; 4 Conclusão; Referências.
88 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 87-108, jul./set. 2017

Resumo: O artigo aborda o fenômeno chamado Backlash, originado no


direito constitucional americano que significa rejeição das decisões dos
tribunais. No direito americano várias teorias procuram explicá-lo bem
como seus efeitos. Dentre essas teorias destaca-se o “Constitucionalismo
democrático” desenvolvido por Reva Siegal e Robert Post. Para esta teoria,
o backlash é positivo para o direito, especialmente porque expressa o desejo
de um povo livre para influenciar o conteúdo de sua Constituição, onde a
integridade do Estado de direito colide com a necessidade de legitimidade
da nossa ordem constitucional democrática. Nesta perspectiva, o artigo
pretende verificar a ocorrência deste fenômeno no Brasil e, para isso,
foram investigados dois casos julgados pelo STF que causaram forte
reação social: o caso das uniões homoafetivas e a Lei da Ficha Limpa.
Apresenta, ainda, aspectos identificadores, raízes históricas e pressupostos
de aplicabilidade do backlash. Ao final conclui-se que é necessário que a
participação popular seja estimulada, possibilitando o debate para conferir
maior legitimidade e eficácia às decisões judiciais. A metodologia utilizada
foi a análise documental de artigos e estudos produzidos sobre o tema bem
como as decisões do STF sobre união homoafetiva e a Lei da Ficha Limpa.

Palavras-chave: Backlash. Constitucionalismo. Supremo Tribunal


Federal.

Abstract: The article addresses the phenomenon called Backlash,


originating in American constitutional law that means rejection of court
decisions. In American law various theories seek to explain it as well as its
effects. Among these theories stands out the “democratic Constitutionalism”
developed by Reva Siegal and Robert Post. For this theory, the backlash is
positive for the right, especially since it expresses the desire of a free people
to influence the content of their Constitution, where the integrity of the
rule of law runs counter to the legitimacy of our democratic constitutional
order. In this perspective, the article intends to verify the occurrence of this
phenomenon in Brazil and, for that, two cases judged by the STF that caused
a strong social reaction were investigated: the case of homoaffective unions
and the Clean Sheet Law. It also presents identifying aspects, historical
roots and backlash applicability assumptions. In the end, it is concluded
that it is necessary that popular participation be stimulated, allowing the
debate to give greater legitimacy and effectiveness to judicial decisions. The
methodology used was the documentary analysis of articles and studies
produced on the subject as well as the STF decisions on homoaffective
union and the Clean Sheet Act.

Keywords: Backlash. Constitutionalism. Supreme Court.


Adriana Timoteo dos Santos Zagurski 89

INTRODUÇÃO

Backlash, ou, numa tradução livre, rejeição das decisões judiciais,


foi inicialmente estudado no direito constitucional americano, tendo
como origem o caso Roe versus Wade, julgado em 1973, onde se discutiu
a legalização do aborto. Não obstante a decisão ter permitido o aborto,
ela causou forte reação na sociedade americana de grupos pró-vida que se
mobilizaram e acabaram por anos depois, fazer aprovar leis estaduais que,
na prática, restringiam o aborto em situações em que antes o admitiam.

Esse julgamento da Suprema Corte é até hoje estudado e teorias


buscam explicar como o Poder Judiciário deve se comportar diante de
casos polêmicos, com grande repercussão social ou moral.

CASS SUNSTEIN1 defende a teoria chamada minimalista onde


o Judiciário decide de forma restritiva, atendo-se ao caso concreto e
deixando a deliberação sobre a questão polêmica para a sociedade ou
para o legislativo, desta forma, o minimalismo promoveria a deliberação
democrática e consequentemente conferiria maior legitimidade à decisão,
que não seria tomada apenas por juristas, de maneira técnica.

Por outro lado, há aqueles que defendem que o Judiciário deve se


manifestar sobre tais casos, mesmo que haja uma rejeição da decisão pela
sociedade (backlash). Nesse sentido a teoria denominada “Constitucionalismo
democrático” desenvolvida por REVA SIEGAL e ROBERT POST2 afirma
que as principais instituições do poder público e as organizações cidadãs
essencialmente têm que desempenhar a interpretação e configuração do
direito constitucional em geral e a garantia da constituição em particular.
O governo, o congresso e os tribunais têm a responsabilidade de fazer
cumprir o texto constitucional, interagindo com outros ramos do poder
público. Nos sistemas jurídicos constitucionalizados, as democracias
necessitam de um Estado de Direito forte, mas também que o diálogo
constitucional seja fluído e constante.

Assim, para os autores, o backlash não seria negativo e a discordância


interpretativa, uma condição normal para o desenvolvimento do direito
constitucional.
1 SUNSTEIN, Cass R., Backlash’s Travels. University of Chicago, Public Law Working Paper No. 157;
Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review (CR-CL), Forthcoming. Disponível em: <http://ssrn.
com/abstract=970685>. Acesso em: 24 jun. 2015.
2 POST, Robert; SIEGEL, Reva. Constitucionalismo democrático: por una reconciliación entre Constitución
y pueblo. Buenos Aires: SigloVeinteuno, 2013. p.12.
90 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 87-108, jul./set. 2017

Neste contexto, o presente estudo objetiva verificar se o fenômeno


ocorre no Brasil e quais seus desdobramentos. Verificou-se que aqui os
estudos sobre o tema são recentes e a produção teórica ainda é insipiente,
porém na prática, especialmente ante a postura adotada pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) e a crescente judicialização de temas complexos
referentes a direitos fundamentais o tema ganha relevância e pode-se
verificar a ocorrência do Backlash.

A análise de questões polêmicas pelo STF (como por exemplo, o


casamento homoafetivo e a Lei da Ficha Limpa) favorece outras indagações: a
questão da legitimidade da decisão sem deliberação legislativa, a necessidade
de discussão ou debate democrático, o enfraquecimento do legislativo e a
transferência de funções atípicas para o judiciário, entre outras.

1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A EXPANSÃO DO PODER JUDICIÁRIO

A Constituição é o fundamento de validade de toda ordem jurídica.


Fruto da vontade soberana da população, possui função controladora e
fiscalizadora do Direito, não podendo nenhuma lei ou decisão judicial a ela
se contrapor. O direito deve conformar-se aos princípios nela explicitados,
no entanto, a interpretação da vontade popular encartada na Constituição
nem sempre constitui tarefa fácil.

Conforme explica GARGARELLA3 ao criticar a invalidação da lei


pelo Judiciário, há necessidade de investigar a vontade do legislador não só
no seu aspecto histórico, mas também considerar que muitas constituições
não refletem a vontade da maioria, posto serem frutos de um processo
constituinte bastante antidemocrático e com pequena participação popular.

Toda essa problemática leva à questão da invalidação da lei pelo


poder Judiciário e a legitimidade desse poder para dar a resposta ao
caso concreto. Também remete à possibilidade de os tribunais decidirem
situações onde não houve deliberação legislativa e a ausência de norma
legal é objeto da decisão judicial.

A essa controvérsia soma-se a judicialização, que significa que, questões


antes restritas aos demais poderes (Executivo e Legislativo) hoje são levadas
ao Judiciário, diante da omissão ou ineficiência dos demais poderes.

3 GARGARELLA, Roberto. La dificuldade de defender el control judicial de las leyes. Disponível em: <http://
www.cervantesvirtual.com/obra/la-dificultad-de-defender-el-control-judicial-de-las-leyes-0/>. Acesso
em: 27 jun. 2015.
Adriana Timoteo dos Santos Zagurski 91

A expressão judicialização tem sua origem na obra de TATE e


VALLINDER4, em que foram formuladas linhas de análise comuns para
a pesquisa empírica comparada do Poder Judiciário em diferentes países.
“Judicialização da política” e “politização da justiça” seriam expressões
correlatas, que indicariam os efeitos da expansão do Poder Judiciário no
processo decisório das democracias contemporâneas5.

Para VALLINDER apud BARBOSA6, a judicialização apresenta


dois distintos significados:

(1) The expansion of the province of the court sorthe judges at the
expense of the politicians and/orthe administrators, thatis, the transfer
of decision-making rights from the legislature, the cabinet, or the civil
service to the courts, or, at least; (2) The spread of judicial decision-
making methods out side the judicial province proper.7

Embora sejam várias as causas da judicialização, o fenômeno ilustra


em alguma medida uma crise de credibilidade do Legislativo, em especial
no Brasil, onde muitas das questões que deveriam ser ali deliberadas,
com oportunidade de amplo debate democrático, são postergadas por um
período longo de tempo, gerando a necessidade de judicialização por aquele
cidadão ou grupo que sente seu direito lesado ou ameaçado.

Essa desconfiança ou enfraquecimento do Legislativo não é um


fenômeno brasileiro. JEREMY WALDRON8 em sua obra “A dignidade da
legislação” já chamava atenção para a necessidade de resgatar “uma legislação
elaborada por uma assembléia popular como fonte respeitável de direito”.

A ausência de lei regulamentadora de um tema não impede que haja


uma ação judicial e o pronunciamento do tribunal sobre a controvérsia.

4 VALLINDER, Torbjörn; TATE, Chester Neal. The Global Expansion of Judicial Power: The
Judicialization of Politics. New York, New York University. 1995.
5 KOERNER, Andrei; MACIEL, Debora Alves. Sentidos da judicialização da política: duas análises.
Revista Lua Nova, n. 57, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n57/a06n57>. Acesso em:
03 out. 2015. p 114.
6 BARBOSA, Claudia Maria. A legitimidade do exercício da jurisdição constitucional no contexto da
judicialização da política. In: BARRETO, V.; DUARTE, F.; SCHWARTZ, G. Direito da sociedade
policontextural. Curitiba: Appris, 2013.
7 “(1) A competência das cortes e dos juízes, em detrimento dos políticos e dos administradores, quer dizer, a
transferência do poder decisório do legislativo, do executivo ou da administração pública para as cortes ou, pelo
menos, (2)a propagação dos métodos próprios de tomadas de decisão judicial para além da jurisdição apropriada”.
8 WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 197
92 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 87-108, jul./set. 2017

No ordenamento jurídico brasileiro, dado o sistema de controle de


constitucionalidade adotado pela Constituição de 1988, o Judiciário deverá,
por força do princípio do non liquet decidir sobre um caso mesmo não
havendo norma específica, ou, poderá invalidar uma lei existente tida
como inconstitucional.

Na primeira hipótese (decidir mesmo ante a ausência de norma legal)


muitos questionamentos surgem, especialmente se a análise considerar a
ausência de deliberação popular.

Num regime democrático, a elaboração de leis pelos representantes


eleitos reflete a vontade da maioria, dos representados. Essa sistemática
confere legitimidade democrática uma vez que pressupõe o debate, a
oportunidade de confronto entre ideias diversas.

No caso da decisão pelo judiciário, questiona-se se não seria o caso


de ilegitimidade da decisão, uma vez que se estaria suprimindo a vontade
do povo externada pelo legislador.

Como destaca GARGARELLA 9, juízes não são eleitos, não


representam o povo e as decisões são tomadas de forma isoladas sem
uma discussão coletiva. Essas críticas somam-se a outro fator: quando
um julgamento entra em rota de colisão com as aspirações de setores
organizados que detêm poder na sociedade, o efeito backlash.

Segundo Vanice Regina LIRIO DO VALLE10

[...] parece previsível que o backlash se intensifique, num cenário de


ampliação crescente do universo temático sobre o qual recaem as
manifestações judiciais – do Supremo Tribunal Federal inclusive.
Decidir mais não significa necessariamente decidir melhor; e
decidir mais em matérias sensíveis como o são as grandes questões
morais e os temas que envolvem diretamente a proteção a direitos
fundamentais, importa em adentrar firmemente em terreno sujeito a
grandes controvérsias – portanto, férteis à reação, inclusive creditada

9 GARGARELLA, Roberto. La dificuldade de defender el control judicial de las leyes. Disponível em: <http://
www.cervantesvirtual.com/obra/la-dificultad-de-defender-el-control-judicial-de-las-leyes-0/>. Acesso
em: 27 jun. 2015.
10 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Backlash à decisão do Supremo Tribunal Federal: pela naturalização do dissenso
como possibilidade democrática. Disponível em: <http://www.academia.edu/5159210/Backlash_%C3%A0_
decis%C3%A3o_do_Supremo_Tribunal_Federal_pela_naturaliza%C3%A7%C3%A3o_do_dissenso_como_
possibilidade_democr%C3%A1tica>. Acesso em: 28 jun. 2015.
Adriana Timoteo dos Santos Zagurski 93

à insuficiência na transformação empreendida pela nova conformação


das coisas desenvolvida pela ordem judicial.

Na mesma ordem de ideias, Gabriel Antunes HESS, José RIBAS


VIEIRA e Margarida Maria LACOMBE CAMARGO explicam que:

A doutrina constitucional entende, majoritariamente, como negativos


os efeitos desse fenômeno, visto que ele traria retrocessos a direitos
já garantidos.(sic) Aconselhando então algumas correntes que as
decisões judiciais não devam discrepar violentamente daquilo que o
povo entende como adequado.

De outro lado, REVA SIEGAL e ROBERT POST11, embora


compreendam o efeito negativo do backlash para o constitucionalismo
democrático, entendem que para o direito ele pode ser positivo, já que
se constitui em um movimento de reação da opinião popular, essencial à
vida democrática.

Sobre o constitucionalismo democrático de que falam Siegel e Post,


José RIBAS VIEIRA e Deo CAMPOS DUTRA afirmam que o mesmo,
ao considerar as posições clássicas em torno do conhecido debate entre os
orginalistas e os não originalistas, explicita “o paradoxo de que a autoridade
constitucional depende a receptividade democrática e da legitimidade da
lei”. E prosseguem:

O constitucionalismo democrático seria uma nova forma de abordagem


que busca superar a preponderância do modelo originalista, ao aliar
uma teoria preocupada com a mobilização popular, com as diferenças
culturais, com uma participação da sociedade civil na qual os
compromissos progressistas possam ser expressos por meio da lei,
utilizando os “founding fathers” sem, entretanto, desautorizar novas
formas de autoridade constitucional. Trata-se de uma abordagem
inovadora que marca um novo momento no debate norte-americano,
em que a reação liberal procura aliar argumentos jurídicos e políticos
para se contrapor de forma eficaz à interpretação conservadora que
atualmente prepondera na suprema corte americana.12
11 POST, Robert; SIEGEL, Reva. Constitucionalismo democrático: por una reconciliación entre Constitución y
pueblo. Buenos Aires: SigloVeinteuno, 2013.
12 VIEIRA, José Ribas; DUTRA, Deo Campos. O debate entre originalismo e o constitucionalismo
democrático: aspectos atuais da teoria da interpretação constitucional norte-americana. Revista NEJ –
Eletrônica, v. 18, n.1. p. 51-62, jan./abr. 2013. Disponível em: <http://www6.univali.br/seer/index.php/
nej/article/view/4483/2476>. Acesso em: 28 jun. 2015.
94 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 87-108, jul./set. 2017

O constitucionalismo democrático permite compreender como a


Constituição pode continuar a inspirar lealdade e compromisso, apesar
de um persistente desacordo.13

Algum grau de conflito pode ser uma consequência inevitável de


reivindicar direitos constitucionais.

2 CONCEITO DE BACKLASH

Como já dito, o caso Roe versus Wade, julgado em 1973 pela Suprema
Corte norte americana é tido como a origem do Backlash. Nele se discutia
a legalização do aborto no caso de violência contra a mulher, no entanto
a Suprema Corte opinou pela descriminalização do aborto e que esse era
um direito das mulheres, como consequência do direito à privacidade
protegido pela Emenda nº 14 à Constituição norte-americana.

A sociedade americana reagiu por meio de grupos pró-vida que se


mobilizaram e acabaram por anos depois, fazer aprovar leis estaduais que,
na prática, restringiam o aborto em situações em que antes o admitiam.

Muitas críticas surgiram, especialmente em relação ao ativismo judicial,


uma vez que o Tribunal não deliberou apenas sobre o aborto em caso de
violência contra a mulher, como o caso requeria, mas decidiu de forma ampla.14

Vale destacar que o conceito de ativismo judicial no direito americano


não é mesmo que no Brasil. Com sistema diverso (common law) no direito
estadunidense, o papel criativo dos juizes consiste na busca, dentro
dos princípios constitucionais, de soluções para problemas concretos,
transformando questões políticas em jurídicas.15

No Brasil o conceito de ativismo é bastante polêmico e tem sido


objeto de debate na doutrina. Por vezes é invocado “como forma de legitimar
a integração da legislação onde não exista norma escrita, configurando

13 POST, Robert and SIEGAL, Reva B., Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash. Harvard
Civil Rights-Civil Liberties Law Review, 2007; Yale Law School, Public Law Working Paper N. 131.
Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=990968>. Acesso em: 23 jun. 2015. p. 12.
14 Segundo a teoria minimalista defendida por SUNSTEIN (que remete à autocontenção) a corte não deveria
dizer mais do que o necessário para justificar o resultado, e deixar o máximo possível não decidido.
15 Sobre osistema estadunidense e o ativismo, vide o artigo de Estefania Maria de QUEIROZ BARBOZA
e Kata KOZICKI: O Judicial Review e o ativismo judicial da Suprema Corte americana na proteção de
direitos fundamentais. Espaço Jurídico: Journal of Law [EJJL], v. 17, n. 3, p. 733-752, 2016. Disponível em:
<https://editora.unoesc.edu.br/index.php/espacojuridico/article/view/8750/pdf>. Acesso em: 06 abr. 2017.
Adriana Timoteo dos Santos Zagurski 95

mecanismo desejável, que colabora para a rápida prestação da justiça”, por outro
lado, alguns doutrinadores vislumbram no instituto uma “forma de invasão
da função jurisdicional no âmbito de atuação próprio do Poder Legislativo”16.

Sem adentrar no conceito de ativismo, uma vez que este não é o


objetivo do artigo, é certo que, muitas vezes os tribunais proferem decisões
constitucionais que por vezes, provocam resistência, especialmente se eles
ameaçam o status de grupos que estão acostumados a exercer a autoridade
e que acreditam que a resistência pode evitar a mudança constitucional.
Onde a controvérsia é inevitável, o cumprimento de um direito pode ser
justificado se os valores em causa são suficientemente importantes17.

Para SIEGEL e POST, o backlash desafia a presunção de que


os cidadãos devem concordar com as decisões judiciais. Desafia a fala
desinteressada do direito, desafia a presunção de que leigos cidadãos
devem, sem protesto, adiar para os profissionais da área jurídica os
julgamentos constitucionais. O backlash expressa o desejo de um povo
livre para influenciar o conteúdo de sua Constituição, é onde a integridade
do Estado de direito colide com a necessidade de legitimidade da nossa
ordem constitucional democrática:

Backlash challenges the presumption that citizens should acquiesce in


judicial decisions that speakin the disinterested voice of law. Backlash
twice challenges the authority of this voice. In the name of a democratically
responsive Constitution, backlash questions the autonomous authority of
constitutional law. And in the name of political self-ownership, backlash
defies the presumption that lay citizens should without protestdefer
to the constitutional judgments of legal professionals. [...] Backlash
expresses the desire of a free people to influence the content of their
Constitution, yet backlash also threatens the independence of law.
Backlash is where the integrity of the rule of Law clashes with the need
of our constitutional order for democratic legitimacy.18

16 MENDONÇA, Grace Maria Fernandes. O Ativismo Judicial Na Modulação Temporal dos Efeitos
da Decisão Declaratória de Inconstitucionalidade. Revista da AGU, [S.l.], mar. 2016. ISSN 2525-
328X. Disponível em: <http://seer.agu.gov.br/index.php/AGU/article/view/793/687>. Acesso
em: 05 abr. 2017.
17 POST, Robert and SIEGAL, Reva B., Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash. Harvard
Civil Rights-Civil Liberties Law Review, 2007; Yale Law School, Public Law Working Paper No. 131.
Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=990968>. Acesso em: 23 jun. 2015. p. 82.
18 Ibidem, p. 3-4.
96 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 87-108, jul./set. 2017

Afirmam que o fenômeno estimula a sociedade a se organizar, já que


os cidadãos que se opõem às decisões judiciais precisam, para tanto, ser
politicamente ativos, e procuram persuadir outros cidadãos a se engajar
politicamente contribuindo para o fortalecimento de uma identidade
nacional junto à Constituição:

Constitutionalism suggests, moreover, that controversy provoked


by judicial decision making might even have positive benefits for the
American constitutional order. Citizens Who oppose court decisions
are politically active. They en act their commitment to the importance
of constitutional meaning. They seek to persuade other americans to
embrace their constitutional understandings.19

O backlash, para o constitucionalismo democrático, é justamente


expressão de diálogo constitucional, que é a essência das propostas que o
sustenta. Ele corrobora a tese de que não há uma última palavra em matéria
de controvérsias em torno de direitos fundamentais, por exemplo, a ser
manifestada pelo judiciário. Ao contrário, são necessários mecanismos
que favoreçam o diálogo entre os Poderes de Estado, e destes com a
sociedade, justamente para evitar tal tipo de reação. A reação, embora ruim
para os direitos, é salutar para a sociedade, na medida em que pressupõe
cidadãos ativos e responsáveis, em um movimento social que vai fortalecer
a democracia e a própria Constituição.

No caso do Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988


(CF/88) o STF se fortaleceu especialmente mediante o controle abstrato
de constitucionalidade. Mais recentemente com a emenda 45 ampliaram-se
os mecanismos de participação nos processos constitucionais e questões
relevantes foram discutidas na Suprema Corte com a participação da
sociedade (especialmente nas audiências públicas).

Por outro lado, inobstante essa abertura à participação da sociedade,


o STF não pode se guiar somente pela opinião pública ou buscar índices
de popularidade, ao contrário, seu papel é justamente desconfiar das
maiorias – papel contramajoritário20 – zelando pelos princípios e direitos
fundamentais elencados na Constituição (a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária, promovendo o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação).

19 POST, op.cit, p. 19.


20 Competência, atribuída aos juízes, para declarar a nulidade de atos produzidos por agentes eleitos.
Adriana Timoteo dos Santos Zagurski 97

Segundo Andrei KOERNER21 “o STF se coloca no papel de guardião


e promotor das virtudes republicanas, redefine seu modo de atuação
no regime governamental, contrariando lideranças políticas, não só do
governo, mas da oposição”.

Desta forma, algumas decisões, muitas vezes por sua natureza


política, desagradam setores da sociedade. Essa repercussão social negativa
ocorreu em alguns julgados recentes do STF como o reconhecimento da
união homoafetiva, a marcha da maconha, o aborto de fetos anencéfalos
e a lei da ficha limpa.22

3 O BACKLASH NO SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

No presente tópico, a partir do exame da jurisprudência do STF


relacionados ao julgamento dos processos referente a união homoafetiva
e a Lei da Ficha Limpa, pretende-se verificar a repercussão negativa
(backlash) das decsiões tal como exposto nos tópicos acima.

3.1 O caso das uniões homoafetivas

Em 5 de maio de 2011 o STF reconheceu, em votação unânime, a


família homoafetiva, conferindo aos casais homossexuais o direito à união
estável. Esta decisão foi proferida no julgamento da ADI n. 4277-DF23 e
ADPF n. 132-RJ24.
21 KOERNER, Andrei. Ativismo Judicial? Jurisprudência constitucional e política no STF pós-88.
Novos estudos - CEBRAP, n. 96, São Paulo, jul. 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?pid=S0101-33002013000200006&script=sci_arttext>. Acesso em: 28 jul. 2015.
22 Ao comentar sobre o backlash, George Marmelstein Lima destaca que o ministro Luís Roberto Barroso
mencionou explicitamente o efeito “backlash” como um dos fatores que influenciou sua decisão de liberar
apenas o uso da maconha e não de todas as demais drogas. Para ele, seria preciso ser mais cauteloso nessa
matéria, tanto para “conquistar a maioria do tribunal” quanto para evitar “o risco de haver uma reação da
sociedade contra a decisão, o que os americanos chamam de backlash“. Em seguida, defendeu: “a minha
ideia de não descriminalizar tudo não é uma posição conservadora. É uma posição de quem quer produzir
um avanço consistente”. LIMA, George Marmelstein. Liberação do Uso de Maconha e Efeito Backlash.
Disponível em: <http://direitosfundamentais.net/2015/09/17/liberacao-do-uso-de-maconha-e-efeito-
backlash/>. Acesso em: 08 dez. 2015.
23 A ADI 4277 foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) com pedido de interpretação
conforme a Constituição Federal do artigo 1.723 do Código Civil, para que se reconheça sua incidência
também sobre a união entre pessoas do mesmo sexo, de natureza pública, contínua e duradoura, formada
com o objetivo de constituição de família.
24 Considerando a omissão do Legislativo Federal sobre o assunto, o governo do Rio de Janeiro ajuizou a
ADPF 132 alegando que o não reconhecimento da união homoafetiva contraria preceitos fundamentais
como igualdade, liberdade (da qual decorre a autonomia da vontade) e o princípio da dignidade da pessoa
humana, todos da Constituição Federal.
98 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 87-108, jul./set. 2017

Antes, a união estável era um direito apenas do homem e da mulher,


em razão do que dispunha o artigo 1.723 do Código Civil. O STF afastou
a expressão ‘homem e mulher’ da lei e permitiu a interpretação extensiva
aos casais de mesmo sexo.

O Ministério Público Federal, a Advocacia-Geral da União opinaram


favoravelmente ao pedido, mas, houve reação contrária por grupos
conservadores e ligados à Igreja como a CNBB– Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil e a Associação Eduardo Banks, que participaram do
processo como amicus curiae25.

Embora tenha permanecido inerte, forçando a Suprema Corte a


deliberar acerca da matéria, o Legislativo ainda possui um importante papel
a desempenhar na regulamentação das relações jurídicas decorrentes dessa
decisão judicial, o que até o momento não ocorreu e, de certa forma, reflete
a resistência ainda presente na atuação de grande parte dos parlamentares
em relação a questões que envolvem a família tradicional e os direitos dos
homossexuais, e que os impede de promover direitos à população LGBT
(lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros).

Na decisão, o STF, embora tenha estendido o direito, teve o cuidado


de manter o Legislativo como instância deliberativa e afirmou ser sua a
competência para regular as consequências advindas dessa equiparação.
Veja-se a manifestação do Ministro Cezar Peluso:

[…] da decisão da Corte, importantíssima, sobra espaço dentro do qual,


penso eu, com a devida vênia – pensamento estritamente pessoal -,
tem que intervir o Poder Legislativo. O Poder Legislativo, a partir de
hoje, deste julgamento, precisa expor-se e regulamentar as situações
em que a aplicação da decisão da Corte será justificada também do
ponto de vista constitucional. Há, portanto, uma como convocação
que a decisão da Corte implica em relação ao Poder Legislativo, para
que assuma essa tarefa, a qual parece que até agora não se sentiu
ainda muito propenso a exercer, de regulamentar esta equiparação
(BRASIL, 2011, p. 876).

25 Participaram do processo como amicus curiae entidades como o IBDFam (Instituto Brasileiro de
Direito de Família), GRUPO ARCO-ÍRIS DE CONSCIENTIZAÇÃO HOMOSSEXUAL, GRUPO
DE ESTUDOS EM DIREITO INTERNACIONAL DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS
GERAIS - GEDI-Ufmg, CENTRO DE REFERÊNCIA DE GAYS, LÉSBICAS, BISSEXUAIS,
TRAVESTIS, TRANSEXUAIS E TRANSGÊNEROS DO ESTADO DE MINAS GERAIS -
CENTRO DE REFERÊNCIA GLBTTT entre outros.
Adriana Timoteo dos Santos Zagurski 99

Parlamentares favoráveis à decisão e à equiparação apresentaram


o Projeto de lei n. 612/2011 ainda em tramitação (anteriormente já havia
o PL n. 1151/1995 que trata da união civil entre pessoas do mesmo sexo),
acrescido em 2013 ao Projeto de lei n. 5120/13 que altera artigos do Código
Civil para reconhecer o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
De outro lado, a decisão gerou reação contrária da comunidade jurídica26,
seja por seu ativismo ao usurpar o papel do Legislador, seja por ferir o
princípio da Separação dos Poderes uma vez que decidiu sobre matéria
que deveria ser objeto de deliberação parlamentar27.

A decisão também recebeu críticas de vários setores da sociedade.


Pesquisa realizada pela FGV no período de 14 a 20 de julho de 2011,
onde foram entrevistados 1.200 cariocas e paulistas sobre a percepção da
população acerca do Supremo Tribunal Federal e sua atuação em casos
de grande relevância e repercussão na agenda pública nacional, 21% dos
entrevistados respondeu que o reconhecimento da união afetiva foi a notícia
que mais chamou atenção e cerca de 40% dos entrevistados respondeu que
nesse caso a decisão deveria ser da população, através de plebiscito, e não
do STF28, apesar de concordarem com o teor da decisão.

Em outra pesquisa, elaborada com a mesma finalidade, Joaquim


FALCÃO e Fabiana OLIVEIRA concluem que quando se trata de decidir
temas polêmicos, como a união homoafetiva, os cidadãos querem ser
diretamente ouvidos indicando que o principal responsável por decidir sobre

26 Em Goiânia, o juiz titular da Vara da Fazenda Pública anulou de ofício um contratode reconhecimento
de união estável mesmo após a decisão do Supremo e determinou que cartórios se recusassem a
registrar esse tipo de união. A decisão foi posteriormente cassada pela Corregedoria do Tribunal de
Justiça de Goiás. Conferir em: < http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/06/juiz-goiano-anula-uniao-
homoafetiva-e-oab-contesta.html> e <http://g1.globo. com/politica/noticia/2011/06/tj-go-cassa-
decisao-que-anulou-uniao-estavel-de-casalgay.html>. Acesso em: 24 abr. 2016.
Lênio Streck (2009), entende ativista a conduto do Supremo. Vide em: <http://leniostreck.blogspot.com.
br/2011/06/sobre-decisao-do-stf-unioes.html>. Acesso em: 24 abr. 2016.
27 A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) aprovou durante sua 49ª Assembleia Geral, reunida
em Aparecida (SP) realizada em 2011, uma nota na qual estranha que o Supremo Tribunal Federal (STF)
tenha se pronunciado sobre a união homoafetiva, porque, em sua avaliação, o exame da matéria caberia
ao Legislativo. “Preocupa-nos ver os poderes constituídos ultrapassarem os limites de sua competência,
como aconteceu com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal”, afirma o documento”. Notícia
veiculada em 11 de maio de 2011 no site do Jornal do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://
politica.estadao.com.br/noticias/geral,cnbb-critica-decisao-do-stf-sobre-uniao-homoafetiva,717854>.
Acesso em: 06 abr. 2017.
28 FVG – Fundação Getulio Vargas. Pesquisa: Decisões do Supremo Tribunal Federal. Disponível em:
<http://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/Pesquisa_STF_Opiniao_Publica.pdf>. Acesso em:
08 dez. 2015.
100 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 87-108, jul./set. 2017

esses temas seria o povo através do plebiscito, existindo “uma demanda


por maior participação e ampliação da democracia”.29

Já a pesquisa divulgada pelo Ibope30 em 28/07/2011 revelou que 55%


dos brasileiros eram contrários à decisão do Supremo Tribunal Federal
(STF) de estender aos casais homossexuais o direito da união estável
perante o Registro Civil. Muitos cartórios e até juízes31 recusaram-se a
habilitar ou celebrar casamento civil ou, até mesmo, de converter união
estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo, levando o STF à
expedir a Resolução n. 175, de 14 de maio de 2013 do CNJ – Conselho
Nacional de Justiça.

A Resolução 175 veio esclarecer o assunto, uma vez que alguns


estados da confederação reconheciam, outros não, o direito à conversão da
união em casamento gerando uma desigualdade de tratamento. Não havia
ainda no âmbito das corregedorias dos tribunais de Justiça uniformidade
de interpretação e de entendimento sobre a possibilidade do casamento
entre pessoas do mesmo sexo e da conversão da união estável entre casais
homoafetivos em casamento.

A constitucionalidade da Resolução foi questionada através da ADI n.


4966 ajuizada pelo Partido Social Cristão (PSC) que aguarda julgamento,
e pelo Mandado de Segurança (MS 32077), que teve seu mérito rejeitado
imediatamente por decisão do ministro relator.

As fortes posições a favor e contra essa decisão equipara-se em alguns


de seus aspectos ao backlash do direito americano, gerando até mesmo um
retrocesso de pensamento e questionamento de direitos já adquiridos. Veja-
se: após a decisão do STF, o tema dos direitos dos homossexuais foi objeto
de projetos de lei altamente conservadores, demonstrando um retrocesso em
temas que antes não eram objeto de discussão legislativa.

29 FALCAO, Joaquim; OLIVEIRA, Fabiana Luci de. O STF e a agenda pública nacional: de outro
desconhecido a supremo protagonista? Lua Nova, São Paulo, n. 88, p. 429-469, 2013. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452013000100013&lng=en&nrm=i
so>. Accesso em: 09 dez. 2015.
30 Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2011/07/pesquisa-aponta-que-55-dos-brasileiros-
e-contra-uniao-civil-de-homossexuais.html>. Acesso em: 28 jun. 2015.
31 Em 01 de julho de 2012, um casal homossexual teve o pedido de habilitação para casamento negado pela
juíza Sirlei Martins da Cosa, da 1ª Vara de Família e Sucessões de Goiânia. Disponível em: <http://
noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/07/06/juiza-contraria-determinacao-do-stf-e-
nega-pedido-de-casamento-homoafetivo-em-goiania.htm>. Acesso em: 07 jul. 2015.
Adriana Timoteo dos Santos Zagurski 101

Um exemplo é o projeto de lei conhecido como “cura gay” que foi


apresentado em 2013 de autoria do deputado João Campos (PSDB-GO)32.
Chegou a ser aprovado na comissão de Direitos Humanos, quando o colegiado
era presidido pelo deputado Marco Feliciano (PSC-SP) mas foi retirado de
tramitação após pedido do próprio autor.

Em 2014, projeto semelhante foi novamente apresentado pelo deputado


Pastor Eurico (PSB-PE), e tem por objeto derrubar a resolução de 1999
do Conselho de Psicologia que proíbe tratamentos destinados a reverter a
homossexualidade33.

Outra reação a essa decisão e que pode ser considerada como retrocesso em
termos de reconhecimento de direitos e igualdade entre pessoas homossexuais,
é o projeto de lei conhecido como Estatuto da Família (Projeto de Lei 6583/13).
Conforme o relatório do deputado Diego Garcia (PHS-PR), esse projeto define
a família como o núcleo formado a partir da união entre um homem e uma
mulher, retirando o status de família assegurado pela decisão do STF.

3.2 A Lei da Ficha Limpa

Como dito antes, outro caso no Brasil que pode caracterizar o


fenômeno do backlash é o da Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n.
135/201034). Nos anos de 1996 e 1997 diversos setores da sociedade civil
brasileira mobilizaram-se através da campanha “Combatendo a corrupção
eleitoral” pela Comissão Brasileira Justiça e Paz – CBJP e Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, com o objetivo de punir os políticos
32 Trata-se do Projeto de Decreto Legislativo n. 234/2011 que susta a aplicação do parágrafo único do art. 3º
e o art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1/99 de 23 de Março de 1999, que estabelece
normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual. Disponível em: <http://
www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=505415>. Acesso em: 08 jul. 2015.
33 Projeto de Decreto Legislativo n. 1457/2014. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/
proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=611176>. Acesso em: 08 jul. 2015.
34 A Lei Complementar 135/ 2010 modificou a Lei Complementar n° 64/1990 (Lei das Inelegibilidades) com
alterações que buscam aprimorar o sistema eleitoral: a) aumentou o rol de situações que podem impedir o
registro de uma candidatura analisando a vida pregressa dos candidatos (A lei prevê que serão considerados
inelegíveis os candidatos que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial
colegiado, em razão da prática de crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o
patrimônio público; contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na
lei que regula a falência; e contra o meio ambiente e a saúde pública; serão também considerados inelegíveis os
candidatos que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado,
em razão da prática de crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio
público; contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a
falência; e contra o meio ambiente e a saúde pública); b) estendeu os prazos para as inelegibilidades que passam a
ter duração de oito anos; c) tornou mais rápidos os processos judiciais que tratam das inelegibilidades.
102 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 87-108, jul./set. 2017

que lesaram a administração pública, aumentar a idoneidade dos candidatos


e combater a corrupção no país.

Em abril de 2008, o movimento ganhou força com a chamada


“Campanha Ficha Limpa”, liderada pelo Movimento de Combate à Corrupção
Eleitoral – MCCE. Contou também com mobilização na internet através
do Twitter, do Facebook e do capítulo brasileiro da Avaaz.org, uma rede
de ativistas para mobilização global através da Internet.

O movimento trabalhou mais de um ano para coletar 1,3 milhão de


assinaturas (1% do eleitorado nacional) nos 26 estados da federação e no
Distrito Federal. A Campanha visava enviar à Câmara dos Deputados um
projeto de lei de iniciativa popular dando origem ao Projeto de Lei de Iniciativa
Popular n.º 519/09. E, em 04 de junho de 2010, o projeto foi sancionado pelo
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na Lei Complementar n.º 135/2010.

Imediatamente surgiram dúvidas acerca da aplicabilidade da Lei


para as eleições de outubro de 2010, havendo forte pressão popular pela
sua aplicabilidade imediata. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a
aplicar a lei e indeferir a candidatura de políticos condenados pela Justiça
os quais não poderiam ser candidatos no pleito de outubro daquele ano.

No entanto, vários candidatos barrados pela lei da Ficha Limpa


entraram na justiça para terem o direito de se candidatar alegando que
a lei seria inconstitucional ou que ela não poderia valer para aquele ano
já que existia outra lei contrária a alterações no processo eleitoral no
mesmo ano das eleições.

A ação do Congresso em publicar a lei às portas de uma eleição


transferiu a responsabilidade quanto aos precedentes dos candidatos
participantes do pleito do Legislativo para o Judiciário, pois coube a esse
se manifestar sobre a dúvida que surgiu com a Lei da Ficha Limpa, se ela
alterava o processo eleitoral imediatamente ou não, gerando polêmica por
deixar dúvida quanto a sua validade para as eleições de 2010.

A questão da sua constitucionalidade e validade foi levada a


julgamento (iniciado somente em 2011 e concluido em 2012) no Supremo
Tribunal Federal – STF, que reafirmou a legalidade do texto integral,
com aplicação apenas a partir das eleições de outubro de 2012 (respeitado
o artigo 16 da CF/88), vez que prevaleceu naquele tribunal a observância
estrita ao princípio da legalidade e segurança jurídica conforme julgamentos
das ações ADC n. 29 proposta pelo Partido Popular Socialista, ADC n.
Adriana Timoteo dos Santos Zagurski 103

30 proposta pelo Conselho Federal da OAB e ADI 4578n. proposta pela


Confederação Nacional das Profissões Liberais – CNPL35.

Por ocasião do julgamento, o Ministro Luis Fux se referiu à opinião


popular citando o fenômeno do backlash como “forte sentimento de um
grupo de pessoas em reação a eventos sociais ou políticos”. No voto, o
ministro novamente apreciou o fenômeno da reação popular:

É crescente e consideravelmente disseminada a crítica, no seio da


sociedade civil, à resistência do Poder Judiciário na relativização da
presunção de inocência para fins de estabelecimento das inelegibilidades.

Obviamente, o Supremo Tribunal Federal não pode renunciar à sua


condição de instância contramajoritária de proteção dos direitos
fundamentais e do regime democrático. No entanto, a própria
legitimidade democrática da Constituição e da jurisdição constitucional
depende, em alguma medida, de sua responsividade à opinião popular.
POST e SIEGEL, debruçados sobre a experiência dos EUA – mas
tecendo considerações aplicáveis à realidade brasileira –, sugerem
a adesão a um constitucionalismo democrático, em que a Corte
Constitucional esteja atenta à divergência e à contestação que exsurgem
do contexto social quanto às suas decisões.

Se a Suprema Corte é o último player nas sucessivas rodadas de


interpretação da Constituição pelos diversos integrantes de uma
sociedade aberta de intérpretes (cf. HÄBERLE), é certo que tem o
privilégio de, observando os movimentos realizados pelos demais,
poder ponderar as diversas razões antes expostas para, ao final, proferir
sua decisão.

Assim, não cabe a este Tribunal desconsiderar a existência de um


descompasso entre a sua jurisprudência e a hoje fortíssima opinião
popular a respeito do tema “ficha limpa”, sobretudo porque o debate se
instaurou em interpretações plenamente razoáveis da Constituição e da
Lei Complementar nº 135/10 – interpretações essas que ora se adotam.
Não se cuida de uma desobediência ou oposição irracional, mas de um
movimento intelectualmente embasado, que expõe a concretização do
que PABLO LUCAS VERDÚ chamara de sentimento constitucional,
fortalecendo a legitimidade democrática do constitucionalismo. A
35 Novamente a sociedade se mobilizou sendo criado uma petição on line no site Avaaz pugnando pelo
reconhecimento da constitucionalidade da Lei conforme se verifica em < https://www.avaaz.org/po/
stf_protect_ficha_limpa_/?vl>.
104 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 87-108, jul./set. 2017

sociedade civil identifica-se na Constituição, mesmo que para reagir


negativamente ao pronunciamento do Supremo Tribunal Federal
sobre a matéria.36

Verifica-se que o ministro acompanhou a teoria de SIEGAL e POST,


entendendo como benéfica para a democracia o movimento da sociedade,
ainda que contrário à decisão do Supremo Tribunal Federal ao entender
inaplicável a Lei para o pleito de 2010.

De fato, o que se pode destacar é a participação, o engajamento


popular com o tema e a tentativa de influir no processo de deliberação.
O fato da sociedade participar é extremamente salutar para a democracia,
sinalizando que está atenta às decisões do judiciário, o que certamente,
será considerado em futuros julgamentos.

Esses fatos ocorridos na história recente do Brasil, a mobilização


social em torno de julgamentos do STF somada às manifestações de julho
de 2014 demonstram a maior participação da sociedade brasileira, uma
forma de exercício da democracia.

4 CONCLUSÃO

A reação contrária aos julgamentos de casos polêmicos pelo STF


no caso brasileiro, semelhante ao que ocorre no direito americano tem
gerado uma mobilização da sociedade.

Infelizmente, no caso do reconhecimento da união homoafetiva,


a decisão gerou muitos efeitos negativos. Projetos de lei foram
apresentados e, caso aprovados, pode haver um retrocesso jurídico
capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que a que havia
antes da decisão judicial.

Por outro lado, deve-se reconhecer o efeito benéfico do backlash.


O pronunciamento do STF fez com que setores da sociedade se
organizassem e efetivamente participassem do processo decisório.
Nesse sentido pode-se afirmar que há um fortalecimento da democracia
e da Constituição.

36 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADC – Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 30 DF. Disponível
em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=2243411>. Acesso em: 30
jun. 2015. p. 14.
Adriana Timoteo dos Santos Zagurski 105

Como af irma José Ribas Vieira e outros, “a manifestação


democrática dos reais detentores do poder é de ser vista não como
uma ameaça à estabilidade das instituições, mas como um lembrete
de que estas estão a serviço do povo e, portanto, devem ser receptivas
às suas percepções e demandas”37.

Não é necessário que todas as decisões tomadas pelo poder


Judiciário, sejam apoiadas majoritariamente pela população, mas é
importante permitir o debate e as manifestações contrárias a fim
de conferir legitimidade e eficácia à essas decisões. Se é certo que
a legitimidade das cortes constitucionais não provém diretamente
da aprovação popular, nem por isso deixa de ser uma legitimidade
democrática. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso38 afirma que, ainda
que os magistrados não tenham o voto popular, desempenham, por
legitimação da própria Constituição Federal, um poder político, capaz
inclusive de invalidar atos dos outros dois Poderes. A legitimidade
portanto, é normativa, e decorrente da própria Constituição Federal.

Por outro lado, o Judiciário não pode ficar alheio ao nomos social
existente. STF deve dialogar com os demais com os demais atores em
busca de um possível consenso.

Ouvir a população através de plebiscito, realizar audiências


públicas, estabelecer um diálogo com o Legislativo, são exemplos
de algumas medidas que podem incrementar a participação social e
beneficiar o jogo democrático.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Claudia Maria. A legitimidade do exercício da jurisdição


constitucional no contexto da judicialização da política. In: BARRETO, V.;
DUARTE, F.; SCHWARTZ, G. Direito da sociedade policontextural. Curitiba:
Appris, 2013.

37 VIEIRA, José Ribas et all. Reação às “Jornadas de Junho” passa pelo campo jurídico. Disponível em: <http://
www.conjur.com.br/2013-jul-07/25-anos-constituicao-federal-1988-jornadas-junho#author>. Acesso
em: 30 jun. 2015.
38 BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito
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Recebido em: 06/03/2017
Aprovado em: 25/05/2017

Breves apontamentos sobre a


principal obra de Hans-Georg
Gadamer e suas implicações
jurídicas: a verdade não é questão
de método
Brief notes on the main work of Hans-Georg Gadamer
and its legal implications: truth is not a question of
method

Ana Cláudia Fagundes Oliveira Nobre Zanoni de Paula


Mestranda em Direito pela Faculdade Guanambi
Professora na Faculdade Guanambi
Professora Auxiliar da Universidade do Estado da Bahia
Advogada.

Sumário: Introdução; 1 Noções elementares


de hermenêutica; 2 Breves apontamentos sobre a
hermenêutica filosófica de Gadamer; 3 Reflexos da
proposta hermenêutica gadameriana no direito; 4
Conclusão; Referências.
110 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 109-128, jul./set. 2017

Resumo: O objetivo do presente trabalho é abordar os principais


conceitos da obra Verdade e Método de Hans-Georg Gadamer, autor
essencial no desenvolvimento da hermenêutica no século XX, para, depois,
abordar algumas aproximações com o direito e suas consequências.
Influenciado por Martin Heidegger, ele demonstrou, na obra em apreço,
a natureza da compreensão humana, e que a linguagem passa a ser vista,
com o giro linguístico, como meio para a compreensão do indivíduo
no mundo. Ele se apoia nos ensinamentos de Heidegger, no sentido do
sujeito estar imerso em um contexto histórico-linguístico, que molda e
fornece um horizonte de sentidos para se chegar a verdade em um ato
interpretativo. Para tanto, Gadamer diz que a interpretação se dá a partir
da existência de pré-juízos, e é em função da tradição que o intérprete fala
o Direito e do Direito, formando, assim, interpretações mais adequadas.

Palavras-chave: Hermenêutica Filosófica. Gadamer. Compreensão.


Interpretação. Verdade.

Abstract: The aim of the present work is to discuss the main concepts
of the work Truth and Method of Hans-Georg Gadamer, an essential
author in the development of hermeneutics in the 20th century, and
then to approach some approximations with law and its consequences.
Influenced by Martin Heidegger, he´s demonstrated, in the work at hand,
the nature of human understanding, and that language is seen, with
the linguistic turn, as a means of understanding the individual in the
world. He relies on Heidegger’s teachings in the sense that the subject is
immersed in a historical-linguistic context, which shapes and provides
a horizon of meanings for reaching truth in an interpretative act. To
this end, Gadamer says that interpretation comes from the existence of
pre-judgments, and it is because of tradition that the interpreter speaks
Law and about Law, thus forming more suitable interpretations.

Keywords: Philosophical Hermeneutics. Gadamer. Understanding.


Interpretation. Truth.
Ana Cláudia Fagundes Oliveira Nobre Zanoni de Paula 111

Introdução

Com a virada linguística, que deslocou a linguagem para condição


de possibilidade do conhecimento, o foco das investigações filosóficas
deixou de ser o sentido presente nas próprias coisas passando a se dar na e
pela linguagem, que deixa de significar uma simples forma de representar
a realidade já pré-existente. Nas palavras de Martini1, que traduzem
uma ideia de Humboldt, “a linguagem não é meio para expor a verdade
conhecida; antes disso, ela descobre o que era desconhecido”.

Esse novo enfoque colocou a linguagem no centro de todos os


questionamentos filosóficos, pois deixou de ser “instrumento de mera
designação de objetos2”, tornando-se uma forma de existência, ou seja, “passa a
ser vista como aquilo que possibilita a compreensão do indivíduo no mundo3”.

Deste modo, a relação do indivíduo com o mundo se concretiza


através da linguagem e, por isso, não há como dissociá-la da compreensão, o
intérprete está imerso em conexões com fatos, pessoas e coisas; razão porque
não há como impor um muro entre o investigador e o objeto investigado.
Ele usa a historicidade como parte integrante de toda a compreensão por
meio da reabilitação de pré-juízos, que o cercam, e da tradição.

Não obstante o giro linguístico estar mais afeto à filosofia analítica,


podemos encontrar suas influências na hermenêutica filosófica, foco do
presente estudo, por se tratar de objeto de criação de Hans-Georg Gadamer.
Em Gadamer existem diversas posições claras nas quais ele se refere à
dimensão primeva da linguagem, defendendo, inclusive, que o ser pode
ser compreendido pela linguagem.

Ressalta-se, neste ponto, que apesar das contribuições de Heidegger


para a hermenêutica, a hermenêutica contemporânea é inaugurada por
Gadamer, com a criação da hermenêutica filosófica.

1 MARTINI, Ângela. O ato de julgar como atividade concretizadora da constituição: uma proposta à luz da
hermenêutica filosófica. 2006. Dissertação - Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Vale
dos Sinos, São Leopoldo, 2006. Disponível em: http://www.repositorio.jesuita.org.br/bitstream/handle/
UNISINOS/2372/o%20ato%20de%20julgar.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 31 out. 2016.
2 MOREIRA, Rui Verlaine Oliveira; MENDES, Ana Araújo Ximenes Teixeira. A eficácia das normas
constitucionais e a interpretação pragmática da Constituição. THEMIS - Revista da Escola Superior da
Magistratura do Estado do Ceará, v. 6, n. 2 (2008). Disponível em: <file:///C:/Users/515/Downloads/197-
678-1-PB.pdf>. Acesso em: 31 out. 2016.
3 PEDRON, Flávio Quinaud. O giro linguístico e a auto-compreensão da dimensão hermenêutico pragmática
da linguagem jurídica. Vox Forensis, Espírito Santo do Pinhal, n. 1, v. 1, p. 199-213, jan./jun. 2008.
112 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 109-128, jul./set. 2017

Pode-se dizer que Gadamer foi discípulo de Heidegger, contudo,


ele não pode ser reduzido a um mero intérprete de Heidegger, apesar de
este ser decisivo para os estudos gadamerianos, que, resumidamente,
posicionou-se contra a hermenêutica clássica, a qual previa que a existência
de um método científico era condição sine qua non para se chegar à verdade.

Sem embargo o constante diálogo de Gadamer com Heidegger, e mais,


mesmo que se possa encontrar uma certa aproximação entre os filósofos,
podemos apontar inúmeras diferenças entre os dois, a saber: a hermenêutica
para Heidegger cede em relação a filosofia e/ou a fenomenologia, sendo
que a principal questão desta é o ser. Já para Gadamer, a hermenêutica
passa a ser um substantivo, deste modo, a hermenêutica que é filosófica.

Ao contrário de Heidegger, a análise de Gadamer da compreensão do


sentido não parte semanticamente da abertura linguística ao mundo, mas
pragmaticamente da busca por entendimento mútuo entre autor e intérprete4.

Outro ponto que os diferencia é que na análise feita por Gadamer


existe uma maior preocupação com questões concretas, com a interpretação
de textos, obras de arte, etc., dando um direcionamento mais específico
para o problema, ou seja, se há objetividade e legitimidade na interpretação
do texto, se existe interpretação correta ou não. Já as observações de
Heidegger, são mais abstratas e reflexivas.

Pode-se, ainda, diferenciá-los pelo fracionamento das etapas


interpretativas, feito pela hermenêutica clássica (a compreensão, a
interpretação e a aplicação), que não ocorre em Gadamer, quem acredita
haver um único momento, a applicatio5, significando dizer que cada texto
comporta uma compreensão, a cada momento e a cada situação concreta,
concedendo espaço para o momento da criação. A aplicação é um momento
do processo hermenêutico tanto quanto a compreensão e a interpretação,
pois o entendimento não é um método, mas um acontecer.

Por fim, consoante já afirmado alhures, a hermenêutica filosófica é


criação de Gadamer, muito embora se possa enquadrar nesta classificação o
4 HABERMAS, Jügen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton Camargo Mota. São
Paulo: Loyola, 2004. p. 86.
5 “Ora, nossas reflexões nos levaram a admitir que, na compreensão, sempre ocorre algo como uma
aplicação do texto a ser compreendido à situação atual do intérprete. Nesse sentido, nos vemos obrigados
a dar um passo mais além da hermenêutica romântica, considerado como um processo unitário não
somente a compreensão e a interpretação, mas também a aplicação”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e
Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 5. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2003. p.407.
Ana Cláudia Fagundes Oliveira Nobre Zanoni de Paula 113

trabalho de outros autores, contudo, autores como Friedrich Schleiermacher


e Wilhelm Dilthey nunca usaram essa expressão antes de Gadamer.

1 Noções elementares de hermenêutica

A hermenêutica, quando surgiu no século XVII, era entendida como


a arte de interpretação de textos e sinais6, e é criação atribuída ao teórico
J. C. Dannhauer. Hodiernamente, “pode ser definida como teoria ou arte
da interpretação e compreensão de textos produzidos, principalmente no
âmbito da literatura, da teologia ou do direito7”.

No que tange à dúvida quanto a sua cientificidade, se se trata de


teoria ou arte, há algumas discussões, contudo, não resta dúvidas de que
o objetivo preponderante desta é o desenvolvimento de estratégias para
se atingir o conteúdo correto dos textos que busca analisar.

Apesar de não se poder auferir com precisão a origem da


hermenêutica, etimologicamente, a palavra “hermenêutica” remonta aos
gregos, especificamente ao semideus Hermes, que era responsável pela
mediação entre deuses e homens, isto porque, Hermes tornava compreensível
o que era dito pelos deuses, traduzindo para a linguagem humana, ou
seja, ele interpretava o que diziam os deuses8. Nesse sentido, a palavra
hermenêutica sugere o processo de tornar compreensível.

O caráter teórico assume relevância no contexto do renascimento e


da Reforma Protestante, pois utilizada na interpretação de textos bíblicos,
clássicos da literatura e textos jurídicos. Ela assume contornos mais
sofisticados no romantismo alemão, através de Schleiermacher, sendo
definida como filosofia dotada de universalidade.

Schleiermacher, com o escopo de enfrentar o problema dos mal-


entendidos, os quais poderiam levar a uma interpretação distinta da que o
autor do texto queria a ele imprimir, criou o método circular, denominado
de círculo hermenêutico, “através do qual o intérprete se movimentaria do

6 GRODIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 23.
7 ABBOUD, Georges; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de; CARNIO, Henrique Garbellini.Introdução à teoria e à
filosofia do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 418.
8 Ibidem, p. 419.
114 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 109-128, jul./set. 2017

todo para a parte e da parte para o todo, de modo a apurar sua compreensão
a cada movimentação efetuada9”.

O processo interpretativo na hermenêutica clássica estava embasado


na adoção de princípios metodológicos que subjazem à interpretação, que
se apresenta relativista e reduzida a um processo repetitivo na busca a
um “sentido verdadeiro”.

Neste contexto, o ato interpretativo era meramente reprodutivo, pois


o intérprete apenas reproduziria o sentido que está preso ao texto, razão
pela qual Schleiermacher dizia que, para conseguir uma interpretação
correta, o intérprete deveria voltar ao corpo do autor.

Importante consignar que tanto a hermenêutica clássica como a


filosófica partem de objetivos comuns, qual seja: em qualquer projeto
interpretativo há uma pretensão de correção, isto porque, todo intérprete
deseja atingir a interpretação correta (quando se interpreta, não se imagina,
ou melhor, não se quer chegar a erro, a mal-entendidos).

Entrementes, o que vai as diferenciar é o “como”. Dentro da


hermenêutica clássica, existe uma certa intenção normativa, pois quer
estabelecer regras que devem ser seguidas pelos intérpretes para se chegar
ao sentido correto do texto, por isso diz ser metodológica. Isto é criticado
por Gadamer, para quem interpretar independe de regras metodológicas,
já que antes mesmo do homem criar a hermenêutica, antes da ciência
estudá-la, o homem já interpretava textos.

A partir desta crítica, fica evidente que a intenção de Gadamer é


diferente, pois não se preocupa em dizer como interpretar, ele diz o que
acontece quando se interpreta.

Neste contexto, há que se advertir que em sua principal obra, na


verdade, diferentemente do que o nome parece propor, não contém nenhuma
teoria da verdade e nada sobre o método.

Para ele, a verdade não é questão de método. E mais, seguir


um método, muitas vezes, nos levaria a chegar ao erro, pois o apego
metodológico leva ao reducionismo que eventualmente levaria a inverdades.

9 ABBOUD; OLIVEIRA, op. cit., p. 352.


Ana Cláudia Fagundes Oliveira Nobre Zanoni de Paula 115

Em Gadamer fica evidente que a hermenêutica é uma questão


universal, não porque tem método, tampouco porque ela é o estatuto
epistemológico das ciências humanas, mas sim, porque em qualquer lugar
que tenha linguagem, há um problema interpretativo ou de compreensão.

A hermenêutica filosófica está ancorada na linguagem, eis que


a existência do ato interpretativo se deve a ela. Aqui a linguagem dá o
sentido de existência da interpretação. Para a hermenêutica filosófica,
o conhecimento da verdade considera a pré-compreensão inerentes
ao intérprete que se debruça sobre a realidade casuística, tornando
peculiarmente visível o processo interpretativo.

Pode-se afirmar que a linguagem assume um lugar fundamental


das relações jurídico-sociais, passando-se de uma interpretação
reprodutiva para a produção de sentido.

A pré-compreensão é algo que te posiciona e te possibilita compreender


as coisas. Quanto maior o espaço pré-compreensivo, quanto maior o ajuste
existencial, maior a probabilidade de fazer interpretações corretas.

Por fim, há uma diferença entre pré-compreensão no sentido de


limitar e possibilitar seus projetos interpretativos daquilo que pode ser
considerado com preconceito ou pré-juízo, que será abordado mais adiante.

2 Breves apontamentos sobre a hermenêutica filosófica


de Gadamer

A contribuição de Hans-Georg Gadamer, com a obra Verdade


e Método, faz com que a hermenêutica alcance um caráter universal,
tornando-se uma filosofia. Contudo, diferentemente do que parece propor,
conforme já asseverado, sua obra não contém nenhuma teoria da verdade
e nada sobre o método.

Haja vista a inefetividade da hermenêutica clássica, naturalmente


metodológica, nasceu a necessidade de compreender o direito a partir de
ser-no-mundo, ou seja, a partir da hermenêutica filosófica. “A hermenêutica
deixa de ser um método para tornar-se uma ontologia, o “modo de ser
do homem”, o modo de “compreender”, desvalorizando, dessa maneira, a
teoria positivista10”.

10 LOPES, Ana Maria D’Ávila. A hermenêutica jurídica de Gadamer. Disponível em: <https://www2.senado.
leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/560/r145-12.pdf?sequence=4>. Acesso em: 9 abr. 2017.
116 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 109-128, jul./set. 2017

Gadamer é um dos autores mais importantes acerca da hermenêutica


filosófica11, sendo que seus estudos buscam superar o problema hermenêutico
relacionado ao conceito metodológico. A hermenêutica desenvolvida
por ele afasta-se de uma doutrina de métodos das ciências do espírito e
almeja seguir um olhar além de sua autocompreensão metódica através
da experiência do homem no mundo.

Espírito é uma questão intrinsecamente alemã, diz respeito à


dimensão do ser humano que não é corpo (biologia, fisiologia, etc). Espírito
está ligado à questões não materiais da experiência humana (psicologia,
antropologia, etnologia, história, etc). No nosso contexto, tudo aquilo que
chamamos de ciências humanas.

Convém esclarecer, ainda, que há uma diferença entre ciências


humanas e sociais aplicadas (direito, sociologia, ciência política, etc), mas,
neste contexto alemão do final do Século XIX e início do Século XX,
mesmo as “sociais aplicadas” fariam parte das ciências do espírito.

Hans-Georg Gadamer entende que há verdade para além do


método, até mesmo porque, muito antes da ciência se preocupar com a
hermenêutica, o homem já interpretava mensagens. Neste sentido, ele
defende a inviabilidade da aplicação de métodos para o domínio e controle
da experiência da linguagem, pois esta não se deixa capturar pelo sujeito
racional a partir de um contexto objetivável e isolado. A linguagem pertence
a uma tradição que se encontra em contínua formação; esta pluralidade de
vozes que ecoa do passado e se integra no presente para a construção do
futuro, não pode ser isolada de nós mesmos para melhor investigação12.

Deste modo, a hermenêutica proposta por Gadamer passa de um


conjunto de técnicas de interpretação, a filosofia, que moldou o modo de ver
o mundo, influenciando as ciências humanas, preponderantemente, o Direito.

Ele propõe um novo modo de pensar o universo da compreensão,


afastando-se dos modelos clássicos hermenêuticos, já que busca refletir
sobre a verdade nas ciências do espírito.

11 Na verdade, o termo “hermenêutica filosófica” é criação do Gadamer. Após, em razão de características


peculiares à sua criação, é que outros autores (Schleiermacher, Diltley, Heidegger) foram incluídos ou não
como adeptos a esta corrente filosófica.
12 MAIA, Lízea Magnavita. A hermenêutica filosófica - um novo caminho para a hermenêutica constitucional.
Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-23-JULHO-2010-LIZEA-MAIA.
pdf>. Acesso em: 30 out. 2016.
Ana Cláudia Fagundes Oliveira Nobre Zanoni de Paula 117

Chama-se de virada hermenêutica, o que aconteceu com os ensinamentos


de Heidegger (hermenêutica da factividade enquanto filosofia hermenêutica)
e levado adiante por Gadamer (enquanto hermenêutica filosófica).

Gadamer parte da descoberta heideggeriana da estrutura ontológica


do círculo hermenêutico, que é derivada da temporalidade do Dasein: a
hermenêutica como autoesclarecimento da situação existencial13.

Para chegar-se à verdade é necessário o desvelamento do ser, ou seja,


a arte de compreender consiste sempre um compreender-se. A compreensão
de um texto é, assim, um constante reprojetar-se a partir de determinada
perspectiva do intérprete, contudo, esta (opiniões prévias) não deve ser
confundida com arbitrariedade. Para se chegar à verdade (à compreensão),
as perspectivas do intérprete não podem ser arbitrárias, para tanto, o
intérprete deve deixar que o texto fale por si, para evitar mal-entendidos.

Toda vez que um sentido se apresenta, cria-se um sentido do todo a


partir das perspectivas de quem lê. Contudo, tem que haver um constante
reprojetar, pois, o projeto prévio sempre será revisado ao se progredir a
leitura, com o fim de se buscar o sentido mais adequado.

Pelo círculo hermenêutico, deve-se entender o todo a partir do


individual e o individual a partir do todo, aumentando a unidade de sentido
compreendido em círculos concêntricos.

Veja, quando se inicia uma leitura, o indivíduo o faz com certa


expectativa, uma opinião prévia em relação ao objeto de estudo, que
denominamos de pré-compreensão, a partir da qual se estabelece um
projeto de compreensão do todo14.

Com efeito, a atividade de compreender não é inserir no texto, de


maneira direta e acrítica, nossos hábitos linguísticos, ao contrário, deve-se
abrir à opinião do outro, à do texto, deve-se deixar que o texto fale conosco15.

13 JÚNIOR, Bruno Henriger. A hermenêutica filosófica de Gadamer: tradição, linguagem e compreensão.


Disponível em: <http://www.fmp.com.br/revistas/index.php/FMP-Revista/article/view/3>. Acesso em:
31 out. 2016.
14 “A compreensão é sempre a continuação de uma conversação já iniciada antes de nós. Projetados
para dentro de uma determinada interpretação, nós continuamos essa conversação. Dessa forma, nós
assumimos e modificamos, por novos achados de sentido, as perspectivas de significado que nos foram
transmitidas, com base na tradição e do seu presente em nós“ (GRODIN, op cit., p. 194).
15 “[...] quem quer compreender um texto, em princípio, tem que estar disposto a deixar que ele diga alguma
coisa por si. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde
118 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 109-128, jul./set. 2017

E mais, para Gadamer, o ato interpretativo tem como ponto de


partida os pré-juízos do intérprete (preconceitos), que são juízos que se
formam “antes da prova definitiva de todos os momentos determinantes
segundo a coisa16”. Esclarece, ainda, que são muito mais do que meros
juízos individuais, constituem a realidade histórica do seu ser.

Ao iniciar sua atividade, o intérprete faz um projeto preliminar com


base em suas concepções prévias e naquilo que o texto lhe oferece. Vê-se,
pois, que não há compreensão livre de pré-juízos. Ocorre que, o intérprete
deve analisar a legitimidade dos mesmos, para não incorrer em erros, com
a utilização de pressupostos que não encontram sustentação no texto.

Gadamer fala que os pré-juízos podem ser classificados em


positivos (legítimos e ligados com a hermenêutica histórica) e negativos
(representando um juízo não fundamentado e decidido diante de um
tribunal da razão - limitadores).

Neste ensejo, convém advertir que não se pode confundir pré-


compreensão e pré-juízo. Este é objetivável, já que está numa dimensão
de interpretação que se tem maior controle enquanto intérprete e são
condicionados de acordo com sua visão de mundo. Noutro giro, não há
como mapear a pré-compreensão, não há como transformá-la em objeto
de análise. Nós a temos por estarmos inseridos em uma comunidade onde
há escolhas políticas, objetivos e ideais de Estado.

Deste modo, quanto mais o intérprete se insere no universo da


tradição, mais ele aumenta o seu espaço de existência, maior sua pré-
compreensão, o que, por conseguinte, permite maiores possibilidades de
projetos interpretativos.

Ocorre que a fundamentação em uma decisão, por exemplo, ou na


criação de uma lei, não pode estar embasada em fundamentos que não se
trata da “coisa mesma”, para não ser arbitrário. Deve-se afastar os pré-
juízos para interpretar corretamente o texto, isto porque, deve-se saber se
são pré-juízos legítimos ou ilegítimos. Se legítimos, deve-se confirmar e
continua o processo interpretativo; se ilegítimos, deve-se excluir e substituí-
lo por outro, pois não se confirma naquilo que é o objeto de interpretação.

o princípio, para a alteridade do texto, mas essa receptividade não pressupõe nem neutralidade em
relação à coisa nem tampouco autoanulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e
preconceitos, apropriação que se destaca destes“ (GADAMER, op. cit., p. 358).
16 Ibidem, p. 407.
Ana Cláudia Fagundes Oliveira Nobre Zanoni de Paula 119

O que Gadamer quer dizer é que a interpretação não pode ser


condicionada por pré-juízos ilegítimos. Se o intérprete leva a sério o
texto e efetivamente quer compreendê-lo, tem que suspender os pré-
juízos inautênticos, tem que deixar o texto falar, não pode impor sentido
ao texto, tem que estar aberto ao diálogo com o texto, sendo que este diz
algo a partir da tradição. É com a tradição que o sentido vai se revelando.

A noção de tradição deve ser aqui abordada, pois a verdade deve ser
buscada a partir de expectativas de sentido que nos dirigem e provêm de
nossa tradição específica, em relação a qual nós estamos subordinados.
Nas palavras de Oliveira17, “onde quer que compreendemos algo, nós o
fazemos a partir do horizonte de uma tradição de sentido, que nos marca
e precisamente torna essa compreensão possível”.

Nas palavras de Oliveira e Moura18, o círculo hermenêutico “descreve


a compreensão como sendo a dialética entre o movimento da tradição e
movimento do intérprete”. “Portanto, a compreensão se dá no interior de
um conjunto relacional manifestado na forma de transmissão da tradição
por meio da linguagem”.

É válido ressaltar que quando se fala em compreensão, fala-se


em interpretação, já que o pensamento gadameriano não os diferencia,
pois compreender é interpretar, constituindo, como já observado, em um
processo hermenêutico unitário, já que o ato interpretativo ocorre por meio
da fusão de horizontes históricos, que é possível através da “consciência
da história efeitual19”.

Com efeito, como nos elucida Oliveira & Moura20, a fusão de horizontes
ocorre por meio da interpretação, em que a “atividade interpretativa implica
a produção de um texto novo, que é obtido através da adição de sentido
que é dada pelo intérprete dentro de uma concepção dialógica”.

Ainda há que se ressaltar que em determinados momentos a


interpretação é condicionada a autoridade.

17 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática. São Paulo: Loyola, 1996. p. 228.
18 OLIVEIRA, Daniela Rezende de.; MOURA, Rafael Soares Duarte de. Apontamentos acerca da pré-
compreensão e da compreensão nas Teorias Hermenêuticas de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer e suas
implicações no ato de julgar. Disponível em: <http://revista.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/1131.
pdf?>. Acesso em: 29 out. 2016.
19 Ibidem.
20 Ibidem.
120 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 109-128, jul./set. 2017

Para Gadamer, no ato interpretativo pode haver influência de


autoridade e isto não degenera o processo interpretativo compreensivo,
desde que haja um reconhecimento. O ato de autoridade é ato de
conhecimento e de reconhecimento, pois segundo Gadamer, a autoridade só
é legítima se reconhecida. E quem dá coordenadas para o reconhecimento
é a tradição.

Segundo Gadamer, a reabilitação de autoridade e tradição é o


ponto de partida do problema hermenêutico, cuja tarefa é “defender o
sentido razoável do texto contra toda imposição21”.

Nesse ínterim, a partir da tradição e da consciência história toma-se


conhecimento de certas verdades, que formam pré-juízos, se legítimos,
são utilizados em novo processo interpretativo. Quando se fala em
autoridade, é o reconhecimento de legitimidade de certa tradição ou
certo posicionamento, em virtude do qual se apoia para proferir novos
juízos. Tudo isso, segundo Gadamer, corrobora para se chegar à verdade
em um ato interpretativo.

A consciência histórica faz parte da tradição, da herança que nos


é legada por gerações anteriores e que nós temos como destino entrar
nessas veredas e tentar compreendê-la.

O fato ocorrido no passado e interpretado no mesmo momento ou


em momento posterior pode ter uma interpretação muito diferente de
uma reflexão realizada posteriormente. Quanto mais tempo distanciar o
fato ou a obra analisada de sua interpretação, melhores conceitos serão
retirados.

Um exemplo claro da validade deste argumento é o sistema Nazista


alemão implementado por Hitler, onde, à época, era um modelo glorificado
e acreditado pelos alemães e, hoje, trata-se de um modelo radical e racista
que os envergonha22.

Em sua obra, Dilthey denomina de consciência histórica a aptidão


do ser humano em “analisar fatos passados e presentes, interpretando-o

21 GADAMER, op. cit. p. 417.


22 JOBIM, Marco Félix. O compreender em Hans-Georg Gadamer a partir da análise da obra “O Princípe” de
Nicolau Maquiavel. Disponível em: <http://www.ajdd.com.br/links/artigos/pdf/hermeneutica/art4.pdf>.
Acesso em: 29 out. 2016.
Ana Cláudia Fagundes Oliveira Nobre Zanoni de Paula 121

conforme a época em que vive23”. Isto é de suma importância para Gadamer,


que entende por consciência histórica “o privilégio do homem moderno de
ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade
de toda opinião24”.

Distância temporal é o interstício de tempo entre o texto a ser


interpretado, ocorrido no passado, e sua interpretação posterior. Esta
distância temporal não dever ser vista como um problema na hora de
interpretar, muito pelo contrário, segundo Gadamer, a historicidade é o
que possibilita compreender melhor um texto ou uma obra.

Conforme afirma Jobim25, em Schleiermacher, para que a interpretação


fosse correta, o intérprete deveria voltar no tempo e se colocar na pessoa
do escritor, pois assim, colocar-se-ia na perspectiva do leitor para o qual
era destinada a obra. Gadamer não entende da mesma forma, até mesmo
porque diz ser impossível tal esforço, preponderantemente por prescindir
da efetiva historicidade de cada um, a saber, da relação que cada um possui
com seu ambiente e com sua situação.

Para ele é desnecessário a transcendentalidade do intérprete, podendo


este se valer, para sua interpretação, de conhecimentos que adquiriu26, bem
como de outras interpretações já dadas desde a época que o texto foi escrito.
E mais, acrescenta que a interpretação posterior é superior à originária,
por isso, diz que há “uma diferença insuperável entre o intérprete e o autor,
diferença que é dada pela distância histórica27”.

Na visão gadameriana, o autor perde importância para o texto, que


desconhece o valor da própria obra, razão pela qual, determinadas obras
em certa época não são consideradas clássicos e noutra sim.

Importante também observar que o verdadeiro sentido de uma obra


ou de um texto nunca se se esgota, visto ser, cosoante o autor alemão, um
processo infinito, sendo que o verdadeiro significado da obra é exteriorizado
pelo último intérprete28.

23 JOBIM, op. cit.


24 GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Organizado por Pierre Fruchon. Tradução
por Paulo Cesar Duque Estrada. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p.17.
25 JOBIM. op cit.
26 Ibidem.
27 Ibidem.
28 Ibidem.
122 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 109-128, jul./set. 2017

3 Reflexos da proposta hermenêutica gadameriana no


direito

A interpretação do Direito é assunto que gera inúmeras polêmicas


entre os aplicadores e estudiosos desta ciência jurídica, já que, além de se
fazer justiça aos casos concretos, para tanto deve-se achar a solução correta
para se ter melhores decisões, o Direito deve garantir a segurança jurídica.

Conforme elucida LOPES29 “A função normativa do Direito é regular


os comportamentos dos cidadãos e das instituições da vida social, sendo
indispensável a compreensão interpretativa da norma”. E continua, “Mas a
compreensão do Direito só será possível por meio da aplicação da norma a uma
situação jurídica concreta”, sendo que, dada a complexidade das relações sociais,

cada nova situação irá requerer uma nova aplicação da norma, pois a
sua generalidade e sua historicidade impedem uma aplicação imediata.
No Direito, não existe um processo interpretativo independente da
aplicação da norma, já que só nesse momento é possível compreender
todo o seu sentido, é ali que se fundamenta sua validade. Compreensão,
interpretação e aplicação não são três momentos autônomos, mas
interdependentes. A autonomia interpretativa só existiria se se
entendesse a aplicação jurídica como uma simples subsunção da norma
ao caso concreto, afastada da sua historicidade (LOPES, 2000).

O que não é possível, como já asseverado acima, pois a historicidade


é que permite o real compreender e mais, tendo em vista se tratar de uma
“sociedade complexa e conflituosa na qual o crescimento dos direitos
transindividuais e a crescente complexidade social reclamam novas posturas
dos operadores jurídicos30”.

As contribuições de Hans-Georg Gadamer propuseram uma nova


forma de pensar as ciências do espírito, dentre elas, o direito (conforme
asseverado alhures, no contexto alemão do final do Século XIX e início
do Século XX, as ciências sociais aplicadas - o direito - fariam parte das
ciências do espírito). Isto porque, com as mudanças trazidas pela virada
linguística, sobrepondo a metafísica clássica, o foco das investigações
filosóficas deixou de ser o sentido presente nas próprias coisas (sujeito-
objeto) passando a se dar na e pela linguagem (sujeito-sujeito), assim, o

29 LOPES, op. cit.


30 STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do
Direito. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 17.
Ana Cláudia Fagundes Oliveira Nobre Zanoni de Paula 123

Direito passou a ser entendido partir da centralidade da linguagem, não


podendo dela se dissociar.

Para Gadamer a interpretação do direito e sua aplicação é um


processo unitário31, até mesmo por que “o intérprete não se depara com
o texto constitucional separado da realidade social e dos demais textos
infraconstitucionais32”.

Fica evidente na obra de Gadamer que a aplicação do Direito deve


se afastar da forma metodificada, que, por seu rígido formalismo, não
permite, na aplicação da lei, interferências de caráter cultural, ético, social,
na busca da melhor interpretação, ou seja, não há lugar para fundamentos
teórico-filosóficos.

Sabe-se que o papel do Direito e, por conseguinte, do juiz que o


aplica aos casos concretos, não se esvazia com a mera subsunção, já que
a norma não possui um único significado.

Até mesmo porque, consoante Ribeiro e Braga33, “a ideia de um


sistema fechado mantido pelas técnicas interpretativas é refratária ao
Estado Democrático de Direito”, pois neste, exige-se

um “pensar problematizador”, no qual a ideia de um sistema fechado,


rigoroso e prévio seja afastada em prol de uma reconstrução dialógica
que reivindica o caso concreto. Ante as constatações de que o horizonte
tradicional da hermenêutica técnica se revela cada vez mais insuficiente
para o desiderato da interpretação jurídica, os pressupostos teórico-
científicos, metodológicos e também filosóficos da Ciência do Direito
postos em evidência pela Hermenêutica de Gadamer necessitam ser
estudados e aprofundados (RIBEIRO; BRAGA, 2008).

A hermenêutica filosófica de Gadamer, contrapondo a hermenêutica


clássica, “abre caminho para uma hermenêutica de cunho produtivo em que
a interpretação da lei é uma tarefa eminentemente criativa34”, afastando-se
da mera reprodução de sentido.
31 GADAMER, op. cit. p. 463.
32 ABBOUD; OLIVEIRA; CARNIO. op. cit. p. 450-451.
33 RIBEIRO, Fernando José Armando; BRAGA, Bárbara Gonçalves de Araújo. A aplicação do Direito na
perspectiva hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/
bitstream/handle/id/160157/Aplica%C3%A7%C3%A3o_direito_perspectiva_hermeneutica_177.
pdf?sequence=4>. Acesso em: 9 abr. 2017.
34 ABBOUD; OLIVEIRA; CARNIO. op. cit. p. 451.
124 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 109-128, jul./set. 2017

Razão pela qual, não se deve, na aplicação do direito ou na busca


pelo sentido original da lei, tentar reconstruir a vontade do legislador, o
que “seria igual a tentar reduzir os acontecimentos históricos à intenção
dos protagonistas35”. A hermenêutica gadameriana mostra que não é
possível retomar o sentido querido pelo autor, que a interpretação é uma
questão de situação histórica e que a distância temporal é aliada ao processo
interpretativo, é o que permite a compreensão, e não uma barreira.

A estrutura circular do processo interpretativo exige que o intérprete


esteja atendo àquilo que o texto quer lhe falar, sendo que a cada leitura,
a cada aplicação a casos concretos diferentes, se inicia um novo projeto
interpretativo, que leva em consideração pré-compreensões diferentes, por
meio da tradição, possibilitando cada vez mais uma melhor interpretação,
já que o processo hermenêutico não é fixo.

Ante o que se expõe, resta evidente que a hermenêutica não é uma


questão de método, já que o entendimento não é questão de método, mas
um acontecer.

Vê-se, pois, que a partir de Gadamer, é possível desconstruir alguns


pressupostos da hermenêutica jurídica que são falaciosos.

Convém, por fim, ressaltar que, não obstante a aplicação dos


ensinamentos de Gadamer à ciência jurídica, Gadamer aborda a compreensão
como um todo e não diretamente para uma área específica, não diretamente
para o direito. Todavia, como observado por ABBOUD et al36, “certo é
que, as análises acerca do compreender, da história e da linguagem que
são realizadas em Verdade e Método produzem profundas alterações no
modo como a ciência jurídica se constitui”.

4 Conclusão

Ao analisar, ainda que de maneira breve, a teoria hermenêutica


proposta por Gadamer, vê-se que ele elevou a hermenêutica ao patamar de
filosofia, rompendo-se com a tradição hermenêutica de cunho metodológico.
Na busca pela verdade, Gadamer estuda as condições de possibilidade da
compreensão e interpretação a partir das experiências humanas.

35 LOPES. op. cit.


36 ABBOUD; OLIVEIRA; CARNIO. op. cit. p. 444.
Ana Cláudia Fagundes Oliveira Nobre Zanoni de Paula 125

Diferentemente dos adeptos à hermenêutica clássica, Gadamer afasta


a possibilidade do processo interpretativo estar vinculado ao método,
por entender que isso levaria a reducionismo e eventualmente ao erro
interpretativo.

Isto porque, para se chegar a verdade, se esta fora intenção do


intérprete - normalmente o é -, o intérprete não pode se desvincular de
suas experiências e conhecimentos prévios, não há como separá-lo da obra
interpretada; contudo, esse pré-juízos só podem subsidiar sua fundamentação
se legítimos e encontrar embasamento com o contexto o qual se interpreta.

Prossegue ele dizendo que esses pré-juízos e a sua pré-compreensão


podem ser adquiridos por meios de experiências próprias ou de outros,
recebidos através da tradição, sendo que, quanto maior a vivência do
intérprete, menos ignorante, por conseguinte, maior a possibilidade de
acerto no processo interpretativo.

Para o reconhecimento da tradição, Gadamer aponta a existência


da consciência histórica e da autoridade, muitas vezes anônima. Àquela no
sentido de que à todos cabe saber o que nos é passado por gerações, que
nos preenchem no processo pré-compreensivo. Esta significando dizer
conhecimento, mas além dele, o reconhecimento. Não há que se falar em
autoridade sem que lhe seja reconhecido tal patamar.

E mais, quanto mais distante estiver o intérprete do objeto analisado,


maior a possibilidade de uma correta interpretação, isto porque, consegue
percorrer por toda a tradição e consciência histórica, conseguindo chegar
ao melhor significado possível de tal objeto, sendo que o verdadeiro sentido
de uma obra não se esgota, visto ser um processo infinito.

Por tudo isso, diz-se que, a partir da hermenêutica filosófica, criada


por Gadamer, que o ato interpretativo é produtivo e não apenas reprodutivo
de sentido.

No que tange à aplicação ao direito, a partir da proposta


gadameriana, pode-se desconstruir alguns pressupostos da hermenêutica
jurídica, já que, como visto, a hermenêutica não é uma questão de método
e, para a correta aplicação do direito, não há que se falar em achar a
vontade do legislador, tampouco em mera subsunção do fato à norma,
tendo em vista que as relações sociais são extremamente complexas,
o que geraria injustiças ou, melhor dizendo, levaria a um processo
hermenêutico falho.
126 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 109-128, jul./set. 2017

Conclui-se, ainda, que Gadamer não reduz a aplicação dos seus


ensinamentos à ciência jurídica, mas sim, à compreensão como um todo.

Referências

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Introdução à teoria e à filosofia do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Organizado


por Pierre Fruchon. Tradução de Paulo Cesar Duque Estrada. 2. ed. Rio de
Janeiro: FGV, 2003.

______. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica


filosófica. 5. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.

GRODIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Unisinos,


1999.

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Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004.

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STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 11. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2013.
Recebido em: 15/03/2017
Aprovado em: 03/05/2017

IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO E TUTELA


AO MEIO AMBIENTE: uma análise do
café em cápsula
IMPORT TAX AND ENVIRONMENT PROTECTION: a coffee
capsule analysis

Camila Pintarelli
Mestre e Doutoranda em Direito Econômico pela PUC/SP
Membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/SP - Seção São Paulo
Procuradora do Estado de São Paulo

Sumário: Introdução; 1 O café em cápsula e as cápsulas


de café; 1.1 O café em cápsula: conceito e a massificação de
seu consumo na atualidade; 1.2 As cápsulas de café: a geração
deste resíduo no cenário brasileiro; 2 A Resolução CAMEX n.
18/2015 e o ordenamento jurídico brasileiro; 2.1 Intervenção
do estado no domínio econômico e extrafiscalidade: um
exame do imposto de importação; 2.2 A alíquota do imposto
de importação e sua função na tutela ao meio ambiente (art.
3º, ‘a’, Lei Federal n. 3244/57); 2.3 A Resolução CAMEX n.
18/2015, a Lei Federal n. 12.305/2010 e o mercado nacional
de cápsulas de café; 3 Conclusões; Referências.
130 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 129-154, jul./set. 2017

Resumo: O estudo aborda a atual questão dos resíduos sólidos pós-


consumo atrelando-a à extrafiscalidade, como forma de verificar a
compatibilidade da Resolução CAMEX n. 18/2015 com o Ordenamento
Jurídico brasileiro. Para tanto, o estudo discorre sobre a massificação do
consumo do café em cápsula no Brasil e no mundo, e suas consequências
em termos de geração de resíduos. Ainda, verificaremos se o consumo
ambientalmente sustentável pode atuar como condicionante no
arbitramento de alíquotas de tributos extrafiscais, em análise desenvolvida
a partir da noção de intervenção do Estado no domínio econômico. Ao
final, faremos algumas reflexões conclusivas sobre os equívocos legais
a opção tributária externada na Resolução CAMEX n. 18/2015.

Palavras-chave: Café em Cápsula. Resíduos Sólidos. Imposto de


Importação. Intervenção do Estado no Domínio Econômico.

Abstract: Our study will cover the current issue of post-consumer


waste tying it to extrafiscality as a way to verify the compatibility of
Camex Resolution no. 18/2015 with the Brazilian legal system. Therefore,
we will discuss the mass consumption of coffee capsules in Brazil and
the world, and its consequences in terms of waste generation. Also, we
will study whether the environmentally sustainable consumption can
act as a constraint on regulatory taxation, in analysis developed from
the state intervention in the economic domain concept. In the end, we
will make some conclusive reflections on the legal misconceptions of
the tax option expressed in Camex Resolution no. 18/2015.

Keywords: Coffee Capsule. Waste. Import Tax. State Intervention


in the Economic Domain.
Camila Pintarelli 131

INTRODUÇÃO

A passagem da sociedade de produtores para a sociedade de


consumidores, tal como nos ensina Bauman1, trouxe consigo diversos
problemas oriundos da cultura do consumo e da descartabilidade e um dos
principais deles é o aumento considerável na geração de resíduos sólidos
pós-consumo, com graves consequências ambientais que demandam reação
não apenas dos entes públicos, como principalmente dos agentes econômicos.

No Brasil, a fim de disciplinar a matéria sobre a importância do


tema, foi editada a Lei Federal n. 12.305/2010, que introduziu no país a
Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS. Fundada sobre princípios e
diretrizes que visam à gestão integrada e ao gerenciamento ambientalmente
adequado dos resíduos sólidos, a PNRS aproxima a tutela ao meio ambiente
do consumo sustentável, prevendo instrumentos, a serem utilizados
pelo Poder Público, pelos cidadãos e entes privados, cujos objetivos são,
essencialmente, evitar a geração de resíduos e conferir-lhes destinação
adequada. Em termos mais amplos, trata-se de legislação que objetiva
alinhar os valores da atual sociedade de consumo à necessária tutela e
preservação do meio ambiente, conjugação esta cujas dificuldades práticas
podem ser visualizadas ao se volver os olhos a um dos principais exemplos
de geração de resíduos pós-consumo na atualidade: o café em cápsula.

O consumo de café no Brasil e no mundo integra o cotidiano de


milhares de pessoas. Com efeito, de acordo com dados da Organização
Internacional do Café, no ano de 2014 foram consumidas mais de 9 milhões de
toneladas de café ao redor do mundo, em um percentual médio de crescimento
de 2,5% desde 20112, e que só tende a expandir-se nos próximos anos.

O conceito de coffe capsules remonta ao ano de 1976. Criado por


Eric Favre, um funcionário da Nestlé, e desenvolvido em escala industrial
pela marca na década de 1980, o café em cápsula baseia-se em cápsulas
produzidas em plástico e alumínio, que proporcionam a possibilidade de
consumo rápido e individual de doses de café, por meio de máquina própria
para o manuseio das cápsulas.

1 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro :
Zahar, 2008. p. 43-44.
2 Dados obtidos junto à Organização Internacional do Café (ICO – International Coffee Organization), que
divulgou que em 2014, 150,2 milhões de sacas de 60kg de café foram consumidas no mundo. Informações
disponíveis em: <http://www.ico.org/monthly_coffee_trade_stats.asp>. Acesso em: 01 mar. 2016.
132 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 129-154, jul./set. 2017

Com a ajuda de grandes ações de publicidade da Nestlé, as cápsulas


de café expandiram-se globalmente, trazendo ao mercado cafeeiro novos
adeptos e apreciadores da bebida. Após a expiração do prazo de validade
da patente do modelo originário, outras empresas passaram a produzir
o chamado café em cápsula, em modelos que poderiam ser usados em
máquinas próprias ou simultaneamente em diversos maquinários, o que
consolidou essa forma de consumo.

Atualmente, cerca de um terço da população dos Estados Unidos


possui uma máquina de café em cápsula em suas residências e, no
Reino Unido, estima-se que 186 milhões de cápsulas sejam consumidas
anualmente.3 No Brasil, embora o café em cápsula represente pouco mais
de 0,6% do mercado de café4, em 2014 suas vendas alcançaram o volume
de 660 toneladas5, com perspectiva de triplicação da comercialização
até 20196, segundo dados disponibilizados pela Associação Brasileia das
Indústrias de Café.

A massificação do consumo do café em cápsula trouxe consigo a


reflexão acerca de questões empresariais, sociais, jurídicas e ambientais,
especialmente aquelas relacionadas ao pós-consumo do café encapsulado.
De fato, embora existam até alternativas lúdicas criadas para conferir
utilidade às cápsulas de café usadas – como é o caso da construção de objetos
decorativos valendo-se das cápsulas descartadas - é certo que, e conforme
veremos ao longo deste estudo, a destinação final da grande maioria
destes recipientes é o lixo comum, sem qualquer cuidado com o descarte.
A própria composição material destas cápsulas traz questionamentos
sobre a correta nomenclatura jurídica a ser-lhes dada após o consumo7:
seriam resíduos sólidos? Seriam rejeitos? Seriam as cápsulas usadas lixo,
na concepção mais ampla deste termo?

3 LUSHER, Adam. Inventor of the coffee capsule “ feels bad” for environmental damage – and prefers to use
filters. Independent. Março/2015. Disponível em: <http://www.independent.co.uk/life-style/food-and-
drink/news/inventor-of-the-coffee-capsule-feels-bad-for-environmental-damage-and-prefers-to-use-
filters-10083379.html>. Acesso em: 30 mar. 2016.
4 FONSECA, Danielle. Cápsulas de café atraem mais investimentos. Jornal do Café – ABIC. ed.
193. Rio de Janeiro, fev/2016, p. 16. Disponível em: <http://issuu.com/abic/docs/jc_193_saida_
web_/1?e=4956551/33236891>. Acesso em: 23 mar. 2016.
5 Disponível em: <http://www.abic.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=59&infoid=5125>.
Acesso em: 23 mar. 2016.
6 Reportagem produzida pela Band Terra Viva. Disponível em: <http://www.abic.com.br/publique/cgi/
cgilua.exe/sys/start.htm?sid=59&infoid=5334>. Acesso em: 30 mar. 2016.
7 O artigo 3º, incisos XV e XVI, da Lei Federal n. 12.305/2010, traz o que seria considerado rejeito e
resíduo sólido para as finalidades da Política Nacional de Resíduos Sólidos.
Camila Pintarelli 133

Sobre o descarte das cápsulas, recentemente, a mídia brasileira


passou a indagar se à majoração no consumo de café encapsulado,
acima mencionado, acompanhou a conscientização de reciclagem destas
embalagens. A resposta é negativa.8

A realidade do pós-consumo do café em cápsula no Brasil contrasta


com a existência de legislação voltada, justamente, a disciplinar a gestão
ambientalmente adequada de resíduos sólidos no país, sobretudo quando
levamos em consideração que a intensificação do consumo de café em
cápsula – e, portanto, do descarte de cápsulas de café – é posterior à edição
da Política Nacional de Resíduos Sólidos, de 2010.

E, como a Lei Federal n. 12.305/2010 tem como destinatários, tanto


o Poder Público como os particulares e demais agentes econômicos, faz-se
mister analisar a postura dos entes públicos frente ao aumento considerável
de geração de resíduos sólidos oriundos do consumo em massa de café
em cápsula no país.

Trata-se de corte metodológico que encontra fundamento em atual


movimentação internacional que questiona as práticas adotadas pela
Administração Pública com relação à tutela ambiental via gestão de resíduos
sólidos, sendo digna de nota a recente proibição de contratação pública
de café em cápsula feita pela cidade alemã de Hamburgo, que baniu das
repartições esta modalidade de consumo de café, sob a justificativa de que não
se mostrava adequado utilizar dinheiro público adquirindo um produto cuja
embalagem – que contém praticamente metade de seu peso total – apresenta
grandes dificuldades para ser corretamente descartada e acondicionada após
seu consumo, acarretando, por via de consequência, dispêndio adicional de
dinheiro público para a garantia dos interesses ambientais.9

Além disso, e até como decorrência do dever constitucional previsto


aos entes públicos no artigo 225, § 1º, inciso VI, da Constituição Federal,
cabe à Administração Pública, em todas as suas esferas, a tarefa de
conscientização pública da preservação ao meio ambiente, a qual perpassa
pela gestão adequada de resíduos. Compete aos entes públicos o dever de
8 CUNHA, Joana. Febre nas cápsulas de café não é acompanhada pela reciclagem. Folha de São
Paulo (online). Disponível em: <http://www.abic.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.
htm?sid=59&infoid=5142>. Acesso em: 23 mar. 2016.
9 Guia para orientar compras sustentáveis de Hamburgo. Janeiro/2016, p. 125. Disponível em:
<http://www.hamburg.de/contentblob/4672386/data/umweltleitfaden.pdf>. Acesso em: 02 abr.
2016, em tradução livre realizada. Ainda, vide matéria disponível em: <http://www.bbc.com/news/
magazine-35605927>. Acesso em: 30 mar. 2016.
134 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 129-154, jul./set. 2017

dar exemplo à população, razão esta que justifica a análise do pós-consumo


do café em cápsula sob o viés da atuação dos entes públicos.

Ao lado das mencionadas restrições em contratações públicas, outra


prática passível de ser adotada pela Administração Pública é a utilização de
tributos como forma de incentivar atividades econômicas que promovam,
na prática, os objetivos da Política Nacional de Resíduos Sólidos. A própria
Lei Federal n. 12.305/2010 prevê nos artigos 8º, inciso IX, e 44, a tributação
como instrumento de gestão ambientalmente adequada de resíduos sólidos,
consolidando no Brasil o que há muito se convencionou chamar de Direito
Ambiental Tributário.10

Ocorre que, no caso do café em cápsula, a postura governamental foi


de encontro à utilização do tributo como mecanismo de proteção ambiental.
Com efeito, em março de 2015, a Câmara de Comércio Exterior – Camex
editou a Resolução n. 18, prevendo alíquota zero às operações de importação
de café em cápsula e de máquinas de café que utilizem cápsulas.11 Desde
então, as operações de importação de café em cápsula e de máquinas de café
que utilizam cápsulas estão isentas do imposto de importação, o que impacta
diretamente no aumento de geração de resíduos no âmbito doméstico.

Tendo em vista que o imposto de importação é um tributo cujas


finalidades não são arrecadatórias, mas essencialmente regulatórias, e
levando em consideração as diretrizes de tutela ao meio ambiente e estímulo
ao consumo sustentável estatuídas pela Lei Federal n. 12.305/2010, a opção
tributária exercida pela Camex merece análise mais detida, afastada do
simples modismo do consumo das coffee capsules, para que seja possível
avaliar se o consumo ambientalmente sustentável pode atuar como
condicionante constitucionalmente legítima ao exercício da extrafiscalidade.

A relevância e a atualidade do presente estudo estão justificadas


na medida em que se trata de trabalho que aborda, em um primeiro
momento, os aspectos que circundaram o surgimento do café em cápsula, sua
transformação em produto de massas e os corolários que seu pós-consumo
acarreta. O estudo segue com a extrafiscalidade, por meio de análise feita
a partir de noções sobre intervenção do Estado no domínio econômico e
dos parâmetros constitucionais para a alteração de alíquotas de tributos
extrafiscais, circundando a análise ao caso do imposto de importação e
10 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; FERREIRA, Renata Marques. Direito Ambiental Tributário. 3. ed.
São Paulo : Saraiva, 2010.
11 Resolução Camex n. 18/2015. Disponível em: <http://www.camex.gov.br/legislacao/interna/id/1366>.
Acesso em: 07 jun. 2016.
Camila Pintarelli 135

aos reflexos na seara tributária trazidos pela tutela ao meio ambiente via
gestão de resíduos sólidos e pelo consumo sustentável.

Utilizaremos, como base teórica de nosso trabalho, textos doutrinários


e jornalísticos nacionais e estrangeiros, com pontuais citações jurisprudenciais
e normativas. No que tange à abordagem metodológica, o estudo assume
caráter essencialmente dogmático, com ênfase na dimensão analítica, isto
é, na análise de conceitos e situações, nas relações existentes entre eles e
nas consequências que a interpretação conjunta revela na prática jurídica.

O tema proposto é atual e instigante, pois possibilita, a um só tempo,


a análise da preocupante questão do aumento da geração de resíduos pós-
consumo, situando essa discussão no âmbito da extrafiscalidade, e permite
estudo diferenciado sobre o mercado do café no Brasil e no mundo, um
tema que carece de produções acadêmicas de cunho jurídico, merecendo
análise mais compromissada.

1 O CAFÉ EM CÁPSULA E AS CÁPSULAS DE CAFÉ

A propagação do café pelo mundo é recente e data do século XVIII,


tendo sido introduzido no Brasil através da Guiana Francesa e logrado
desenvolver-se de forma bem-sucedida na região Sudeste do país ao longo
do século XIX12, consolidando-se rapidamente como produto nacional,
com repercussões no desenvolvimento industrial do país e na realocação
brasileira nas cadeias econômicas mundiais da época.13

O protagonismo do café na economia brasileira persiste até os dias


de hoje. Com efeito, e de acordo com dados divulgados em obra coordenada
pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do
Governo Federal, atualmente são quase 300 mil cafeicultores no Brasil, que
ocupam 2,2 milhões de hectares de terra e produzem cerca de 50 milhões
de sacas de café beneficiado. A indústria do café está presente em todos os
Estados brasileiros, contando com aproximadamente 1.400 empresas do
segmento. E, não obstante cerca de 70 países plantem café no mundo, é o
Brasil o maior produtor de café, sendo responsável por 1/3 da produção
mundial, com 40% de sua safra consumida internamente (o equivalente a

12 SCANTIMBURGO, João de. O café e o desenvolvimento do Brasil. São Paulo : Melhoramentos / Secretaria
de Estado da Cultura, 1980. p. 14-20.
13 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 6. Reimpressão. São Paulo : Companhia das Letras,
2007. p. 168-169 e 172.
136 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 129-154, jul./set. 2017

mais de 20 milhões de sacas em 2014), o que nos torna, também, um dos


maiores consumidores mundiais de café.14

Por sermos um dos maiores consumidores mundiais de café, as


tendências de consumo experimentadas no Brasil refletem, de certa forma,
aquelas demonstradas em outros países ao longo do tempo, dentre as quais
a do café em cápsula.

1.1 o café em cápsula: conceito e a massificação de seu


consumo na atualidade

O surgimento e a expansão mundial do conceito de coffee capsules estão


atrelados ao sistema Nespresso, que ganhou popularidade na década de 1990
e estabeleceu-se como uma das mais viáveis formas de o cidadão ter acesso
e poder apreciar café expresso de qualidade no conforto de sua residência.15

Cerca de dez anos após a criação do sistema por Eric Favre, a


Nespresso SA, uma empresa do grupo Nestlé, foi fundada e passou a
dedicar-se à produção e venda de café encapsulado. Restrito inicialmente
aos mercados suíços, japoneses e italianos, esse novo conceito em pouco
tempo alcançou o mercado norte-americano, conquistando posteriormente
o mundo ao introduzir facilidade e rapidez no preparo de doses individuais
de café de qualidade.

Além da comodidade trazida pelas monodoses encapsuladas de


café, a Nespresso alcançou popularidade mundial graças aos grandes
investimentos em peças publicitárias e em produtos com design diferenciado
e preços acessíveis, de forma a atrelar a marca e seu produto a nichos
globais de luxo e a relacionar o consumo do café em cápsula ao bom gosto
e vanguarda. Provas disso são as boutiques de café da marca e o impulso
comercial global experimentado logo após o lançamento de uma de suas
14 SÓRIO, André (coord). Reposicionamento estratégico das indústrias processadoras de café do Brasil: propostas
para sistematização de políticas públicas e estratégias de negócio. Passo Fundo: Méritos, 2015, p. 7.
15 Vale a pena mencionar, a título de curiosidade, que bem antes do surgimento do sistema Nespresso, a
reconhecida marca italiana de café Illy havia idealizado algo semelhante às atuais cápsulas de café, em
uma ideia cuja concepção retrocede ao ano de 1934, quando o fundador da companhia, Francesco Illy,
foi o primeiro a inserir o pó de café em embalagens pressurizadas com nitrogênio, com o intuito de
preservar seu sabor e garantir sua durabilidade. Um ano depois, a empresa introduziu no mercado a
primeira máquina de café expresso da era moderna, a Illeta, capaz de servir doses individuais de café.
E quarenta anos mais tarde, em 1974, retomando aquele conceito originário, porém com as devidas
adequações tecnológicas, a Illy trouxe ao mercado os sachês de café (coffee pods), a serem utilizados na
pioneira máquina de café Easy Serving Espresso. Informações disponíveis em: <http://www.newyorker.
com/tech/elements/before-the-coffee-pods>. Acesso em: 28 mar. 2016.
Camila Pintarelli 137

mais famosas máquinas de expresso, o modelo Concept16, um dos primeiros


a proporcionar rapidez e agilidade para utilização e remoção das cápsulas,
aliado a design industrial inovador com cores vibrantes.17

As cápsulas são características da chamada “segunda onda de consumo


de café”18, que foi influenciada pela propagação mundial do conceito de
café expresso, pela busca por padronização de sabores e por uma bebida
de qualidade melhor, porém ainda disponibilizada no varejo e em grandes
quantidades e variedades. Interessante mencionar que, com relação à aludida
padronização de sabores, se volvermos os olhos aos objetivos de cafeterias
como a Starbucks e a Peet’s Coffee and Tea, veremos que estas redes visavam
e ainda têm como uma de suas finalidades proporcionar um padrão constante
de qualidade de café aos seus clientes, independentemente do local onde
a loja estivesse ou esteja situada. Com as cápsulas não é diferente, pois o
consumidor aprecia dentro e fora de sua casa o mesmo sabor de café, com
a qualidade e origem garantidas pelo fornecedor.19

Ainda, as cápsulas são contemporâneas ao surgimento da noção


de sociedade de consumo e ao amadurecimento de conceitos mais
individualizados do ser humano, fatores estes essenciais à compreensão
16 Informações disponíveis em <http://www.nestle-nespresso.com/about-us/our-history#Phase_Phase 3>.
Acesso em: 28 mar. 2016.
17 É importante mencionar que o sucesso das máquinas Nespresso deve-se também ao fato de que o valor
de máquinas de café expresso geralmente era (e ainda o é) superior que o da Nespresso, o que afastava
clientes potenciais que apenas vieram a ter contato com a noção residencial de café expresso com o
sistema das cápsulas. Em pesquisa realizada no varejo brasileiro, no mês de abril/2016, o valor de uma
máquina de expresso residencial de qualidade superior era de aproximadamente R$ 2.200,00, enquanto
que um modelo similar Nespresso poderia ser encontrado por R$ 500,00.
18 Em 2003, foi publicado em um boletim de notícias do The Roasters Guild, cooperativa ligada à Specialty
Coffee Association of America, um artigo que, de certa maneira, revolucionou a forma de visualizar o
consumo do café ao longo da história. Elaborado por Trish R. Skeie e intitulado Norway and Coffee
Disponível em: <http://web.archive.org/web/20031011091223/http://roastersguild.org/052003_
norway.shtml>. Acesso em: 23 mar.de 2016, esse texto cunhou o que se convencionou chamar de “ondas
do consumo de café”, nomenclatura esta que se difundiu internacionalmente. De acordo com as ideias
trazidas neste primeiro artigo e aperfeiçoadas posteriormente, é possível visualizarmos as tendências
mundiais de consumo e venda de café em três marcos, que convivem entre si ao longo do tempo: a)
um primeiro momento caracterizado pelo consumo do café exclusivamente por suas propriedades
bioenergéticas, com ênfase no café de coador; b) um segundo marco com a expansão do café expresso
no mundo, proliferação de cafeterias buscando a padronização da bebida servida e preocupação do
consumidor com a origem e a qualidade do café consumido; e c) uma terceira onda, marcada pelo resgate
da noção artesanal de café, porém com enfoque na preparação individual, com cuidado na seleção de
grãos, na origem, no sabor e na qualidade do café apreciado.
19 Aliás, justamente como forma de conter essa padronização qualitativa do café é que os adeptos
da chamada “terceira onda de consumo de café” buscam um café artesanal e exclusivo, produzido
singularmente e em pequenas quantidades.
138 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 129-154, jul./set. 2017

da massificação do consumo de café encapsulado na atualidade e, por


conseguinte, da geração de resíduos que ele acarreta.

Com efeito, na segunda metade do século XX, o modelo social


construído a partir da revolução industrial e calcado em uma sociedade de
produtores passa a declinar20, dando lugar à chamada sociedade de consumo,
marcada pela visão do homem como homo economicus, isto é, aquele que
atua no mercado, que consome e que se define pelos produtos e serviços
aos quais tem acesso, e pelas informações e conhecimentos que detém. 21 Os
hábitos sociais – dentre os quais, o consumo de café – passaram, então, por
releituras à luz desse novo plexo axiológico que emergiu a partir da década
de 1970 e que trazia ao homem, enquanto consumidor, o anseio de se portar
socialmente de acordo com os produtos aos quais tinha acesso econômico.

São deste mesmo período, também, alterações sociais nos núcleos


familiares, que passaram a ser cada vez menores ou até mesmo individuais.
Essa nova fase social, além disso, coloriu a rotina diária com novos afazeres
e, paulatinamente, a agenda humana sobrecarregou-se a tal ponto que
tarefas simples e diárias passaram a ser suprimidas ou alteradas, para que
fossem praticadas com agilidade e rapidez.

A estas circunstâncias sociais o sistema Nespresso amoldou-se com


bastante facilidade. Ao mesmo tempo em que as cápsulas proporcionavam
um café expresso de qualidade superior em poucos segundos e sem
desperdício, elas traziam ao consumidor a sensação de estar integrado à
realidade que a marca difundia em suas peças publicitárias, boutiques de
café e desenhos industriais revolucionários de suas máquinas de expresso.

A massificação do consumo do café em cápsula foi, então, uma questão


de tempo. No Brasil, tal como em outros lugares de mundo, a Nespresso
alcançou altos índices de sucesso, tendo aberto lojas em diversos centros
urbanos e comerciais. E com a expiração do prazo de validade da patente
em solo nacional, estima-se que quase cem empresas do ramo passaram
a dedicar-se a essa forma de produzir e comercializar café.22. A receita
20 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro :
Zahar, 2008. p. 43.
21 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno; LIXINSKI, Lucas. Desenvolvimento e Consumo –
Bases para uma Análise da Proteção do Consumidor como Direito Humano. In: PIOVESAN, Flávia.
SOARES, Inês Virgínia Prado. Direito ao Desenvolvimento. Belo Horizonte : Fórum, 2010. p. 213-214.
22 CHAUDHURI, Saabira. Avalanche de rivais ameaça da Nespresso nas cápsulas de café. The Wall Street
Journal. 24 de fevereiro de 2016. Disponível em: <http://www.abic.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/
start.htm?sid=59&infoid=5228>. Acesso em: 30 mar. 2016.
Camila Pintarelli 139

.com a venda no segmento de cápsulas no Brasil foi de R$ 1,443 bilhão


em 2015, havendo projeções que já indicam que este valor pode alcançar
surpreendentes R$ 3,5 bilhões até 2020, o que corrobora, de uma vez por
todas, a consolidação deste mercado no país, seja em termos de consumo,
seja com relação ao fortalecimento da indústria nacional a ele atrelada.

Contudo, o consumo massificado do produto afastou, ainda que de


forma temporária, uma maior reflexão por parte dos consumidores acerca
de particularidades envolvendo o café em cápsula, dentre as quais vale a
pena citarmos o próprio preço do quilo deste produto23, quando comparado
a outros cafés de altíssimo padrão mundo afora. Outro problema que passou
ao largo neste primeiro momento foi a destinação de milhões de cápsulas
usadas, sem cuidado algum no descarte ou na reutilização. É justamente
sobre tal ponto que passaremos a nos dedicar.

1.2 AS CÁPSULAS DE CAFÉ: a geração deste resíduo no cená-


rio brasileiro

A despeito de inúmeras particularidades sobre o café em cápsula


estarem sendo debatidas na atualidade24, é certo que um dos principais
problemas que o consumo de café sob essa modalidade acarreta é a
destinação ambientalmente adequada a ser dada às cápsulas usadas.

Conforme mencionamos na introdução deste estudo, apesar de


a comercialização de café em cápsula no Brasil ter alcançado números
surpreendentes e crescentes nos últimos dez anos, os dados estatísticos
envolvendo a reciclagem destas embalagens é desconhecido25, o que vai de
encontro com a existência de legislação no país que justamente disciplina
a gestão ambientalmente adequada de resíduos sólidos.

23 Em pesquisa no varejo realizada no mês de março/2016, constatamos que enquanto o quilo do café
gourmet torrado para expresso com qualidade certificada era comercializado por R$ 28,00 com
rendimento aproximado de 100 xícaras, a mesma quantidade de monodoses de café em cápsula, caso
comercializadas pela líder do segmento de café em cápsulas no Brasil, seria vendida, em sua versão mais
econômica, por cerca de R$ 175,00.
24 A título de exemplo, citamos estudo veiculado pela conceituada revista Nature sobre a presença, na
bandeja repositória das cápsulas das máquinas Nespresso, de bactérias desenvolvidas a partir da cafeína.
VILANOVA, C. et al. The coffee-machine bacteriome: biodiversity and colonization of the wasted coffee
tray leach. Sci. Rep. 5, 17163; doi: 10.1038/srep17163 (2015). Disponível em: <http://www.nature.com/
articles/srep17163>. Acesso em: 30 mar. 2016.
25 CUNHA, Joana. Febre nas cápsulas de café não é acompanhada pela reciclagem. Folha de São
Paulo (online). Disponível em: <http://www.abic.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.
htm?sid=59&infoid=5142>. Acesso em: 23 mar. 2016.
140 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 129-154, jul./set. 2017

Ainda líder do mercado nesse segmento, a Nespresso possui


pontos de coleta de cápsulas usadas e um centro de reciclagem, onde
é feita a separação do conteúdo das cápsulas usadas: a borra do café é
reutilizada como composto orgânico e o alumínio da embalagem seguiria
para reciclagem. Porém, não há informações disponíveis a respeito da
demanda efetivamente atendida26 e daquela que é possível atender diante
do crescimento do consumo desse café no Brasil. Outras empresas do
segmento, por seu turno, delegam ao próprio consumidor a tarefa da
separação do conteúdo do produto usado para coleta seletiva.27

Não se trata de um problema restrito ao cenário brasileiro, que


somente passou a integrar essa cadeia de consumo de café nos últimos
anos, ao contrário de outros países do mundo. Recentemente, pesquisas
desenvolvidas por organizações ambientais indicaram que apenas a empresa
norteamericana Keurig Green Mountain, uma das maiores do segmento,
produz quantidade suficiente de cápsulas para circular 10,5 vezes o globo
terrestre todos os anos28, não havendo comprovação do quanto destas
cápsulas usadas é objeto de reuso ou reciclagem, ou ainda sequer se elas
são de fato ambientalmente adequadas.29

À preocupação com a destinação das cápsulas acresce-se a reflexão


sobre a própria inevitabilidade da geração de resíduos pós-consumo. Isso
porque o consumo humano deve pautar-se pela não produção de qualquer
tipo de resíduo e, apenas quando isso for infactível, é que devemos passar
a falar em reciclagem, ideia esta, aliás, encampada no Brasil no artigo 9º,
da Lei Federal n. 12.305/2010.30.
26 KOTTASOVA, Ivana. This German city just banned coffee pods. CNN Money International. Fevereiro de
2016. Disponível em: <http://money.cnn.com/2016/02/23/news/coffee-pods-banned/index.html>.
Acesso em: 30 mar. 2016.
27 CUNHA, Joana. Febre nas cápsulas de café não é acompanhada pela reciclagem. Folha de São
Paulo (online). Disponível em: <http://www.abic.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.
htm?sid=59&infoid=5142>. Acesso em: 23 mar. 2016.
28 LUSHER, Adam. Inventor of the coffee capsule “ feels bad” for environmental damage – and prefers to use
filters. Independent. Março/2015. Disponível em: <http://www.independent.co.uk/life-style/food-and-
drink/news/inventor-of-the-coffee-capsule-feels-bad-for-environmental-damage-and-prefers-to-use-
filters-10083379.html>. Acesso em: 30 março 2016.
29 GELLES, David. Keurig’s new K-cup Coffee is recyclable, but Hardly Green. New York Times (online).
Abril/2016. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2016/04/17/business/energy-environment/
keurigs-new-k-cup-coffee-is-recyclable-but-hardly-green.html?smid=tw-nytimes&smtyp=cur&_r=0>.
Acesso em: 04 maio 2016.
30 Art. 9º, Lei Federal 12305/2010 – Na gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, deve ser observada a
seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos
sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.
Camila Pintarelli 141

Trazendo estes aspectos à questão do imposto de importação, e


levando em conta que o Poder Público é um dos principais destinatários
das balizas estatuídas pela Política Nacional de Resíduos Sólidos – além
de possuir o dever constitucional de conscientizar a sociedade sobre a
necessária preservação ambiental –, temos que estes preceitos de gestão
de resíduos também devem ser levados em consideração nas medidas
administrativas e legislativas que circundam a incidência tributária, como
forma de propiciar estímulo ao consumo sustentável e desencorajar a
aquisição de produtos cujo consumo gere resíduos sólidos.

Não é por outro motivo, aliás, que o próprio legislador positivou tais
ideias na Lei Federal n. 12.305/2010, ao estatuir, dentre os instrumentos de
gestão ambientalmente adequada dos resíduos sólidos, incentivos fiscais e
creditícios (art. 8º, IX, e art. 44). Em outras palavras, a fixação de alíquotas e a
instituição de isenções tributárias deve levar em consideração as consequências,
em termos de geração de resíduos, que tal opção tributária acarretará.

É nesse cenário em que, de um lado, temos a cultura do consumo


de café em cápsula e, de outro, a necessária gestão dos resíduos que este
consumo acarreta, que a opção tributária manifestada pela Resolução
Camex n. 18/2015 deve ser analisada.

2 A RESOLUÇÃO CAMEX N. 18/2015 E O ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO

O imposto de importação compõe o rol dos chamados tributos


extrafiscais no Brasil, os quais ostentam, como função precípua, não a
arrecadação, mas sim a regulação de mercados e de opções de consumo.
É o caso, também, do imposto de exportação, imposto sobre produtos
industrializados e imposto sobre operações financeiras.

Nem sempre, contudo, o imposto de importação traduziu caráter


extrafiscal. Com efeito, dos primórdios do Brasil Império até meados do
século XX, o tributo era uma das principais fontes de arrecadação e de
sustentação tributária da economia brasileira. Tanto assim que algumas das
crises econômicas pelas quais o país passou tiveram origem em medidas
radicais de uniformização de alíquotas da então chamada tarifa alfandegária.

Com a consolidação do mercado interno e com o amadurecimento


do papel arrecadatório do imposto sobre consumo (atual ICMS), o imposto
de importação paulatinamente perdeu seu caráter fiscal e, até mesmo, certo
protagonismo na política tributária brasileira. Com efeito, a regulação e o controle
142 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 129-154, jul./set. 2017

de importações entre as décadas de 1930 a 1960 foram relegados a atuações


cambiais e administrativas, as quais não demandavam autorizações legislativas
para que modificações tributárias fossem implementadas, coadunando-se, assim,
com a velocidade que o comércio exterior já passava a ostentar nesse período.31

A partir da Constituição de 1946, o imposto de importação volta


à cena tributária brasileira, reassumindo posição de destaque com a Lei
Federal n. 3.244/57, que disciplinou sistema de modificação de alíquotas
capaz de conferir ágil e tempestiva reação administrativa a eventuais
alterações na conjuntura econômica interna e externa. O imposto
de importação transforma-se, assim, em importante instrumento de
intervenção do Estado no domínio econômico, sobretudo nas esferas de
incentivo à produção nacional e de proteção do mercado consumidor interno.

Embora não haja diploma legal que estabeleça as finalidades


do imposto de importação, a experiência histórica demonstra que está
excluído desse rol o propósito arrecadatório. A evolução do imposto sobre o
consumo, que mais tarde seria desmembrado entre o imposto sobre produtos
industrializados e o imposto sobre circulação de mercadorias, somada à
bem-sucedida implantação do imposto de renda tornou a arrecadação
tributária independente dos impostos incidentes sobre o comércio exterior.
Dessa maneira, o instrumento, já na década de cinquenta, não mais precisava
ser manobrado de acordo com preocupações atreladas ao tema finanças
públicas. Constata-se, então, que a tarifa de 1957 se coloca na posição de
uma ferramenta regulatória, ou seja, de caráter extrafiscal.32

Em um primeiro momento, e já sob a égide da legislação editada


em 1957, a alteração de alíquotas era conduzida pelo Conselho de Política
Aduaneira, cujas funções foram transferidas, em 1990, à Secretaria Nacional
de Economia. Posteriormente, com a Medida Provisória n. 2158-35/01
e com a edição do Decreto 3765/01, tais atribuições foram repassadas à
Câmara de Comércio Exterior (Camex), a qual, atenta aos limites legais e aos
compromissos internacionais assumidos pelo país – especialmente perante
a Organização Mundial de Comércio – OMC e o Mercosul –, passou a
estipular e arbitrar as alíquotas deste tributo, fazendo-o até os dias de hoje.

Atualmente, as alíquotas do imposto de importação obedecem,


essencialmente, às diretrizes da chamada Tarifa Externa Comum – TEC do

31 REIS, Marcelo. O imposto de importação e suas alíquotas. Da Tarifa do Império à Tarifa Externa
Comum. Revolução EBook, abr. 2015, posição 546.
32 Ibid.
Camila Pintarelli 143

Mercosul, e suas alterações podem ser levadas adiante de forma unilateral pelo
país (por intermédio da Camex) ou através de consenso entre os países do bloco.

O caso tratado neste estudo envolve hipótese em que a alteração da


alíquota do tributo configura exceção à Tarifa Externa Comum, podendo ser
feita, pois, de forma unilateral pelo país. Com efeito, nos termos da Decisão do
Conselho Mercado Comum – CMC do Mercosul n. 26/2015, o Brasil ficou
autorizado a fixar, até 31 de dezembro de 2021, alíquotas próprias para até
cem códigos de classificação fiscal, códigos estes que seguem a nomenclatura
comum do Mercosul – NCM e são inseridos no Anexo II, da Resolução Camex
n. 94/2011, que trata das exceções à Tarifa Externa Comum. E, para arbitrar
tais alíquotas, o país deve seguir a legislação de regência sobre o tema – que, no
caso, é compreendida pela Constituição Federal e pela Lei Federal n. 3.244/57
–, bem como diretrizes da OMC incorporadas internamente.

Nesse diapasão, a Resolução Camex n. 18/2015 inseriu no aludido Anexo


II, da Resolução Camex n. 94/2011, dois novos códigos NCM referentes a
café em cápsula, prevendo alíquota zero para a operação de importação destes
produtos: a) o código 0901.21.00 com o ex-tarifário 001, sobre a importação
de café torrado e moído em doses individuais acondicionadas em cápsulas; e b)
o código 8516.71.00 com o ex-tarifário 001, sobre a importação de aparelhos
eletrotérmicos de uso doméstico para preparação instantânea de bebidas, em
doses individuais, a partir de cápsulas.

A despeito da possibilidade constitucional e legal da previsão de alíquota


zero para estas duas hipóteses de operação de importação, esta opção tributária
consubstanciada na Resolução Camex n. 18/2015 precisa ser analisada de forma
mais ampla, em cotejo não apenas com a sistemática tributária brasileira ou
com o momento cultural de consumo destes produtos, mas especialmente com
os princípios estruturantes da ordem econômica brasileira (art. 170, CRFB) e,
também, com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, uma vez que, conforme
observado no decorrer deste estudo, o pós-consumo de café em cápsula está
diretamente atrelado à maior geração de resíduos sólidos com particularidades
que dificultam seu reuso e sua reciclagem.

2.1 INTERVENÇÃO DO ESTADO NO DOMÍNIO ECONÔMICO E EXTRA-


FISCALIDADE: um exame do imposto de importação

A Constituição Federal de 1988 tratou da atividade econômica


como um gênero – artigo 170, caput, e artigo 174 –, do qual fazem parte
a atividade econômica em sentido estrito e os serviços públicos. Enquanto
os serviços públicos são titularizados pelo Poder Público, que pode prestá-
144 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 129-154, jul./set. 2017

los diretamente ou delegar sua execução a particulares (art. 175, CRFB),


a atividade econômica em sentido estrito é titularizada pela iniciativa
privada, podendo o Poder Público participar em caráter subsidiário e
excepcional (art. 173, CRFB).

Esse apontamento inicial é importante para definirmos que somente


há falar-se em intervenção do Estado no domínio econômico quando este
atua em área titularizada por outra pessoa ou ente, isto é, no âmbito da
atividade econômica em sentido estrito.

De acordo com a festejada doutrina de Eros Grau33, a intervenção


do Estado no domínio econômico ocorre basicamente de duas maneiras: a)
direta, nas hipóteses de intervenção por absorção ou participação, em que
o Estado atua no domínio econômico como agente econômico (em regime
de monopólio ou de competição); e b) indireta, em que o Estado desenvolve
atividade regulatória, podendo ocorrer por direção (determinação de
mecanismos e normas de comportamento compulsório) e por indução.

O Estado intervirá de forma indireta por indução ao manipular os


instrumentos de intervenção em consonância e na conformidade das leis
que regem o funcionamento dos mercados, de forma a, como o próprio
nome diz, induzir comportamentos e atitudes a serem praticadas pelos
agentes econômicos. É a intervenção do Estado no domínio econômico de
forma indireta por indução que assume relevância a este estudo.

Com efeito, a utilização de tributos como forma de intervenção


do Estado no domínio econômico é fenômeno recente, ligado que está à
ascensão do Estado social fiscal34 e de uma conformação contemporânea
do próprio federalismo. Nesse cenário, o tributo assume importante papel
indutor de condutas comissivas e omissivas.

Como ao Estado é vedado obrigar que o contribuinte pratique o fato


gerador de tributo, pode o ente federativo, no exercício de sua competência
tributária e à luz dos limites constitucionais ao poder de tributar, estatuir situação
jurídica que induza ou não o comportamento apto a ensejar a incidência do fato
gerador. Em outras palavras, por meio da intervenção indireta por indução no
domínio econômico, o Estado vale-se da tributação como instrumento condutor
de comportamentos, seja do sujeito passivo da tributação, seja de pessoas atingidas
com a opção de tributar feita pelo sujeito ativo.

33 GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
34 BOMFIM, Diego. Tributação & Livre Concorrência. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 102.
Camila Pintarelli 145

E o campo da extraf iscalidade é farto em exemplos que


demonstram essa modalidade de intervenção no domínio econômico,
podendo ser citadas como exemplo as recorrentes alterações feitas
na alíquota do IPI, com repercussão no preço final do produto, como
forma de estimular ou dificultar seu consumo.

É esse o raciocínio vigente, também, no caso do imposto de


importação, que tem, dentre seus objetivos, a tutela ao mercado nacional.
Assim sendo, diante da importação recorrente de determinado produto
que possa comprometer a produção nacional de igual mercadoria, a União,
por meio da Camex e seguindo as diretrizes internacionais aplicáveis
caso a caso, pode majorar ou diminuir as alíquotas deste tributo.

Em sendo a extrafiscalidade forma de intervenção indireta por


indução no domínio econômico, deve ela estar atrelada, também, aos
preceitos conformadores da ordem econômica, estatuídos no artigo
170, da Constituição Federal. Logo, a despeito de não demandarem
rigoroso processo legislativo para alteração de suas alíquotas, os tributos
extrafiscais e suas alíquotas devem observância à estrutura da ordem
econômica brasileira e aos seus princípios estruturantes, com o que
as opções tributárias nessa seara serão fundamentadas e legitimadas.

E dentre os princípios estruturantes da ordem econômica


brasileira, encontramos no artigo 170, incisos V e VI, da Constituição
Federal, a defesa do consumidor e do meio ambiente, aqui inclusive
mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental
dos produtos e serviços envolvidos, e seus respectivos processos de
elaboração e produção.

Eis, assim, a fundamentação constitucional para que os tributos


com caráter extrafiscal possam ser utilizados como instrumentos aptos
a induzir comportamentos no campo do consumo sustentável e da
tutela ao meio ambiente, no que inserimos a proteção ambiental feita
pela gestão adequada aos resíduos sólidos, tratada pela Lei Federal n.
12.305/2010.

No caso do imposto de importação, a alteração de suas alíquotas


não fica adstrita, pois, unicamente às balizas dos compromissos
internacionais incorporados pelo Brasil ou aos critérios entabulados
na Lei Federal n. 3.244/57, mas também ao disposto no artigo 170,
da Constituição Federal, que passa a servir de parâmetro, outrossim,
para apurar eventual excesso ou insuficiência de alíquota deste tributo.
146 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 129-154, jul./set. 2017

2.2 A ALÍQUOTA DO IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO E SUA FUNÇÃO NA


TUTELA AO MEIO AMBIENTE (ART. 3º, ‘A’, LEI FEDERAL N. 3244/57)

Conforme vimos anteriormente, as alíquotas do imposto de


importação obedecem, essencialmente, à Tarifa Externa Comum – TEC,
firmada entre os países membros do Mercosul. Suas alterações submetem-
se a diferentes regimes, podendo ser feitas de forma unilateral pelos países
componentes do bloco ou mediante consenso de seus membros.

Nos casos em que a alíquota pode ser alterada unilateralmente por


um dos países do bloco – como é o caso ora em estudo –, esse procedimento
submete-se a outras balizas internas e internacionais, como aquelas oriundas
da OMC. No caso do Brasil, como já vimos, esse parâmetro encontra-se
na Lei Federal n. 3.244/57.

O artigo 3º, alínea ‘a’, da Lei Federal n. 3.244/195735, prevê a


possibilidade de alteração de alíquotas do imposto de importação que
se revelem insuficientes ou excessivas ao adequado cumprimento dos
objetivos deste tributo, dentre os quais está a tutela do mercado e da
produção nacionais. Assim sendo, a alíquota de uma determinada operação
de importação pode demonstrar-se excessiva caso iniba a entrada em
território nacional de determinado produto que seja essencial à cadeia
de produção interna de outro bem. Da mesma forma, a alíquota pode
revelar-se insuficiente caso proporcione o ingresso de itens estrangeiros
que são igualmente produzidos no Brasil e cuja indústria nacional demande
incentivos para desenvolver-se de forma satisfatória a fim de passar a
integrar a economia internacional.

Além da proteção ao mercado e à produção brasileiras, o imposto de


importação – por se tratar de instrumento de intervenção indireta do Estado
no domínio econômico por indução – deve atender, outrossim, aos princípios
estruturantes da ordem econômica brasileira. Dessa forma, concretizar
tais máximas da melhor forma possível passa igualmente a ser objetivo
do imposto de importação, tal qual de qualquer outro tributo extrafiscal.

Nessa toada, a aferição de excesso ou insuficiência para fins de


alteração da alíquota do imposto de importação perpassa, também, pela
análise dos princípios estruturantes da ordem econômica e pela aferição de
sua efetividade a partir das hipóteses de incidência tributária estatuídas.
35 Art.3º, Lei 3244/57 - Poderá ser alterada dentro dos limites máximo e mínimo do respectivo capítulo, a
alíquota relativa a produto: a) cujo nível tarifário venha a se revelar insuficiente ou excessivo ao adequado
cumprimento dos objetivos da Tarifa.
Camila Pintarelli 147

Nesse contexto e sob a ótica da promoção do consumo ambientalmente


sustentável derivada do artigo 170, incisos V e VI, da Constituição da
República, as alíquotas deste tributo podem revelar-se excessivas quando
prejudicam a operação de importação de determinado produto cujo consumo
é compatível com a tutela ao meio ambiente, ou insuficientes, quando
facilitam a importação de produto cujo consumo acarreta dano ambiental.

Aliás, e em se tratando da tutela ao meio ambiente no pós-consumo,


a mencionada postura do legislador na Lei Federal n. 12.305/2010 encontra
consonância com esta realidade tributária, ao dispor sobre incentivos fiscais
a empresas e atividades econômicas que promovam a gestão ambientalmente
adequada de resíduos sólidos36, gestão esta que não se resume apenas à destinação
correta de tais resíduos, mas sobretudo à própria não geração destes.37

À vista de todas estas colocações, indaga-se: a Resolução Camex n.


18/2015 é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro?

2.3 A RESOLUÇÃO CAMEX N. 18/2015, A LEI FEDERAL N. 12.305/2010


E O MERCADO NACIONAL DE CÁPSULAS DE CAFÉ

Há duas vertentes igualmente válidas para a análise da Resolução


Camex n. 18/2015 no cenário econômico do café em cápsula e da gestão
ambientalmente adequada de resíduos sólidos: uma que a examina sob o
viés a tutela do mercado nacional e a outra – que ostenta interesse direto
ao nosso estudo – que a analisa à luz dos preceitos de preservação do meio
ambiente e do incentivo ao consumo sustentável, objetivando a gestão das
cápsulas usadas de café.

36 Art. 8º, IX, Lei Federal n. 12305/10 - São instrumentos da Política Nacional de Resíduos Sólidos, entre
outros: [...] IX - os incentivos fiscais, financeiros e creditícios.
Art. 44, Lei Federal n. 12305/10 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no
âmbito de suas competências, poderão instituir normas com o objetivo de conceder incentivos fiscais,
financeiros ou creditícios, respeitadas as limitações da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000
(Lei de Responsabilidade Fiscal), a: I - indústrias e entidades dedicadas à reutilização, ao tratamento
e à reciclagem de resíduos sólidos produzidos no território nacional; II - projetos relacionados à
responsabilidade pelo ciclo de vida dos produtos, prioritariamente em parceria com cooperativas ou
outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas
físicas de baixa renda; III - empresas dedicadas à limpeza urbana e a atividades a ela relacionadas.
37 Art. 7º, II, Lei Federal n. 12305/10 – São objetivos da Política Nacional de Resíduos Sólidos: [...] II - não
geração, redução, reutilização, reciclagem e tratamento dos resíduos sólidos, bem como disposição final
ambientalmente adequada dos rejeitos.
Art. 9º, Lei Federal n. 12305/10 – Na gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, deve ser observada a
seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos
sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.
148 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 129-154, jul./set. 2017

Sob o primeiro aspecto e conforme vimos acima, a ascensão


do consumo de café encapsulado no país, embora tenha ocorrido
posteriormente à consolidação deste mercado em outros países, deu-se
contemporaneamente às grandes ações de publicidade da Nespresso em
níveis globais, consolidando-se definitivamente no Brasil com a expiração
do prazo de patente das cápsulas desta marca. Com isso, a indústria
nacional deste segmento passou a crescer substancialmente ano após ano,
alcançando, em 2015, a receita de R$ 1,443 bilhão, com projeções de que
tal valor possa alcançar R$ 3,5 bilhões em 2020 e de vendas no patamar
de mais de 1800 toneladas já em 2019.38

Atualmente, são quase 100 empresas brasileiras que se dedicam à


fabricação de café em cápsula, número este que representa mais de dez
vezes a quantidade de fabricantes que existia em 2014 (apenas oito). O
crescimento empresarial e o interesse cada vez maior despertado pelos
consumidores fizeram com que a Associação Brasileira das Indústrias
de Café – ABIC criasse, em maio de 2016, um novo selo de certificação
de qualidade, voltado exclusivamente ao café encapsulado39, fato este que
comprova que essa forma de consumir o café passou a integrar a cultura
industrial e econômica do Brasil, realçando ainda mais o papel do país na
cadeia mundial de consumo e produção de café.

Não há dúvidas, assim, que a indústria nacional de café em cápsula


experimenta momento glorioso, estando em franco crescimento.

Ao trazermos essa constatação à lógica tradicional do arbitramento


de alíquotas do imposto de importação – a qual preconiza a tutela do
mercado e da produção nacionais –, verificamos que a Resolução Camex
n. 18/2015 aparenta incongruência prática.

Em um cenário de crise econômica vivenciada pelo país, a postura dos


entes públicos e dos próprios agentes econômicos deve levar em consideração
o estímulo à comercialização de produtos fabricados internamente, como
forma de incentivar a iniciativa privada brasileira, com o que, obviamente,
empregos e arrecadação tributária são garantidos e estabilizados.

38 Reportagem produzida pela Band Terra Viva. Disponível em: <http://www.abic.com.br/publique/cgi/


cgilua.exe/sys/start.htm?sid=59&infoid=5334>. Acesso em: 30 mar. 2016.
39 FERREIRA, Lucas Tadeu. Associação Brasileira da Indústria de Café lança selo de certificação de café
em cápsulas no Brasil. Portal Embrapa, 23 de maio de 2016. Disponível em: <https://www.embrapa.
br/busca-de-noticias/-/noticia/12796847/associacao-brasileira-da-industria-de-cafe-lanca-selo-de-
certificacao-de-cafe-em-capsulas-no-brasil>. Acesso em: 12 jun. 2016.
Camila Pintarelli 149

E se há indústrias e empresas que, mesmo diante das limitações do


cenário econômico brasileiro atual, conseguem projetar ganhos e possibilidade
de crescimento e expansão – como é o segmento de café encapsulado –,
ficam ainda mais acentuados os deveres de incentivo do poder público e de
prestígio do produto nacional a ser feito pelos agentes econômicos.

Logo, ignorar a sedimentação da indústria brasileira do café em


cápsula e incentivar a importação destes produtos, mediante a isenção
destas operações, conforme o fez a Camex em sua Resolução n. 18/2015,
são condutas tomadas em momento inadequado e que não traduzem
tutela do mercado nacional, mas sim verdadeiro estímulo à concorrência
desleal, possibilitando que produtos importados, com benefícios tributários,
concorram com produtos nacionais sujeitos a diversas formas de tributação
durante a cadeia econômica de produção.

A isenção de imposto de importação a tais operações revela não


apenas insuficiência de alíquota, nos termos do artigo 3º, alínea ‘a’, da Lei
Federal n. 3.244/57, como principalmente opção tributária incompatível
com o artigo 3º, inciso II e com o artigo 170, incisos I e IV, ambos da
Constituição Federal, já que se traveste de instrumento de intervenção
do Estado no domínio econômico que inibe a liberdade de concorrência
e macula a livre iniciativa deste segmento no país.

O fortalecimento da indústria nacional deste segmento não pode


ser ignorado, sobretudo em um momento de crise econômica. Contudo, a
partir do momento em que o crescimento da produção nacional de produtos
cujo consumo acarreta geração de resíduos sólidos não é acompanhado da
respectiva preocupação com a destinação ambientalmente adequada a ser
dada a estes resíduos, surge a necessidade de utilização de instrumentos
que desencorajem o consumo destes itens ou que obriguem seus fabricantes
e consumidores a comprovarem a destinação adequada a estes resíduos.

No Brasil, conforme vimos acima, não há dados capazes de


demonstrar se está efetivamente ocorrendo a gestão ambientalmente
adequada das cápsulas usadas de café. Diante da ausência de tais estatísticas
e enquanto perdurar a aparente omissão dos envolvidos neste segmento
quanto ao pós-consumo do café em cápsula, compete aos entes públicos
atuar com mecanismos que desestimulem o consumo destes produtos, a
fim de conscientizar a população em geral sobre as questões envolvendo
o descarte das cápsulas usadas, sua reutilização ou reciclagem, e até
mesmo a sobre a necessidade em si de consumir café sob uma forma que
gera resíduos sólidos.
150 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 129-154, jul./set. 2017

É o caso da vedação de contratações públicas de café em cápsula


aplicada em Hamburgo e mencionada em nossa introdução, tal como também
é o caso da utilização de instrumentos tributários com tal finalidade, no que
ingressamos na segunda vertente de análise da Resolução Camex n. 18/2015,
agora cotejando sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro
sob o viés da tutela ao meio ambiente via gestão dos resíduos sólidos.

Sob este enfoque, temos que a opção tributária expressada nesta


resolução é um exemplo de tributação que estimula a degradação do meio
ambiente, incentivando o consumo de itens importados que geram danos
ambientais no ambiente nacional sob a forma de geração desnecessária de
resíduos sólidos.

Ao isentar de imposto de importação as operações que trazem ao país


cápsulas estrangeiras de café, a Camex, além de ignorar a realidade da indústria
brasileira deste segmento, facilitou a aquisição destes itens, gerando um pós-
consumo intensificado de tais produtos em solo nacional, com o descarte
simultâneo de cápsulas usadas nacionais e de estrangeiras, sendo certo que,
com relação a estas últimas, há também dificuldades adicionais de fiscalização
efetiva da postura do produtor diante do descarte inadequado da cápsula usada.

Indo mais além, percebemos que a tributação aqui acaba por estimular
o consumo não sustentável, premiando com isenção tributária aqueles que
optem por importar café em cápsulas e suas respectivas cafeteiras, sem
qualquer contrapartida ambiental atrelada ao descarte das cápsulas usadas,
o que contraria toda a lógica conceitual que envolve a extrafiscalidade.

Com efeito, a extrafiscalidade caracteriza-se por ser modalidade


de intervenção indireta do Estado no domínio econômico por indução,
tendo por objetivo, pois, induzir comportamentos econômicos comissivos
ou omissivos, os quais devem guardar consonância não apenas com o
artigo 170, da Constituição Federal, mas também com todo o ordenamento
jurídico brasileiro. Nesse aspecto, o consumo sustentável passa ser
um parâmetro constitucionalmente legítimo a balizar o exercício da
extrafiscalidade.

A partir do momento em que uma determinada regra de isenção


tributária estimula comportamentos que acarretam maior produção de
resíduo sólido, sem qualquer condicionante para que isto ocorra e tampouco
comprovação de há a destinação ambientalmente adequada das cápsulas
importadas e usadas de café, estamos diante de regra de isenção que estimula
a prática de comportamentos contrários à sistemática do ordenamento
Camila Pintarelli 151

jurídico brasileiro no que tange à preservação ambiental. Trata-se, como


dissemos, de prêmio ao consumo não sustentável.

Nesse diapasão, e uma vez que a análise da insuficiência de alíquota


perpassa pela verificação do atendimento aos preceitos estruturantes da
ordem econômica brasileira, a Resolução Camex n. 18/2015 prevê alíquota
insuficiente à luz dessa vertente de exame, pois estimula o consumo interno
de produto capaz de gerar mais resíduo sólido. Em outras palavras, trata-
se de opção tributária que incita o consumo não sustentável e até mesmo
irresponsável, na medida em que sequer alude a possíveis contrapartidas
ambientais para que a isenção tenha aplicação prática (isenção condicionada
a critérios ambientais, no caso, à comprovação da destinação ambientalmente
adequada das cápsulas usadas de café). Nesse cenário, outra conclusão
não há senão a incompatibilidade da Resolução Camex n. 18/2015 com
o artigo 170, incisos V e VI, e artigo 225, parágrafo 1º, inciso IV, ambos
da Constituição Federal, beirando, também, o conflito normativo com os
preceitos e objetivos estatuídos pela Política Nacional de Resíduos Sólidos
(Lei Federal n. 12.305/2010).

3 CONCLUSÕES

Não há dúvidas sobre a consolidação do consumo do café em


cápsula no Brasil e no mundo. Se com o sistema Nespresso esta nova
forma de apreciar café já havia alcançado índices surpreendentes de
sucesso e propagação internacional, com a expiração do prazo de
validade daquela patente e a inserção de novos agentes econômicos no
segmento, as cápsulas de café passaram a integrar o mercado global
de café.

No Brasil, a indústria nacional vem consolidando-se neste


segmento, com projeções animadoras de vendas e arrecadação já para
os próximos anos, o que levou a Associação Brasileira das Indústrias de
Café – ABIC a criar, inclusive, o selo de qualidade do café em cápsula,
a fim de garantir ao consumidor brasileiro o acesso a café de qualidade
sob esta modalidade.

Paralelamente à necessidade de se tutelar os interesses daqueles


que exercem a atividade econômica neste segmento, surge, na
atualidade, o dever do cidadão, do empresário e do Poder Público em
lidar com o pós-consumo, o que, no específico caso do café encapsulado,
equivale a lidar com a destinação ambientalmente adequada das
cápsulas usadas de café.
152 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 129-154, jul./set. 2017

Tanto a Constituição Federal como a legislação de regência sobre


resíduos sólidos no país trazem mecanismos aptos para lidar com a questão
dos resíduos sólidos pós-consumo, dentre os quais se destaca a utilização
da tributação com a finalidade de evitar ou minorar a geração de resíduos,
instrumento que está previsto na Lei Federal n. 12.305/2010 e frui de
ampla aceitação prática no Brasil, especialmente quando se trata de tributos
extrafiscais com objetivos de tutela ao meio ambiente.

A atenção à finalidade ambiental e ao dever dos entes públicos em


promover a conscientização da tutela ao meio ambiente foram olvidadas na
edição da Resolução Camex n. 18/2015, que isentou a importação de café em
cápsulas e cafeteiras correlatas, promovendo verdadeiro estímulo à geração
de resíduos sólidos sem que haja comprovação no país da destinação dada
a estas cápsulas usadas de café. Além disso, a mesma resolução ignorou
por completo a bonança do setor empresarial brasileiro deste segmento,
deixando de tutelar o próprio mercado nacional.

Possivelmente, a opção tributária editada nesta resolução seja


ref lexo das grandes controvérsias despertadas pelo consumo de
café em cápsula, oriundas do fato de este produto estar intimamente
ligado a padrões de consumo contemporâneos, podendo ser até mesmo
compreendido como parte integrante de estilo de vida de determinada
parcela social.

De toda forma, a par dessa observação, a busca pela concretização


dos objetivos da Política Nacional de Resíduos Sólidos deve passar a
integrar a ordem do dia dos entes públicos, razão pela qual é essencial
que ref lexões sobre estímulo ao consumo sustentável perpassem não
apenas pelo exercício da extrafiscalidade, mas principalmente por
todas as áreas de atuação do Estado, a fim de evitar que medidas
conflitantes – como é justamente o caso desta resolução, que conflita
com legislação voltada a gerir os resíduos sólidos no país - estejam sendo
implementadas paralelamente pela Administração Pública brasileira.

Essa questão, aliada às demais abordadas no trabalho, evidenciam


a atualidade do tema estudado, que não se esgota no presente texto,
haja vista a necessidade de que mais ref lexões sobre consumo
sustentável no Brasil sejam desenvolvidas de forma compromissada
e, principalmente, que mais debates sobre o mercado de café e o café
em si sejam produzidos ao lado de construções jurídicas e legislativas
sobre o tema.
Camila Pintarelli 153

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Recebido em: 14/03/2017
Aprovado em: 26/05/2017

O PRINCÍPIO DO NÃO-CONFISCO EM
MATÉRIA TRIBUTÁRIA, DIREITOS
FUNDAMENTAIS E O POSICIONAMENTO
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
THE PRINCIPLE OF NON-FORFEITURE IN TAX MATTERS,
FUNDAMENTAL RIGHTS AND POSITIONING OF THE FEDERAL
SUPREME COURT

Carlos Henrique Machado


Doutorando e Mestre em Direito(UFSC)
Danilo Garnica Simini
Doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC)e Mestre em Direito
(UNESP). Pós-Graduação em Direito Público (Escola Paulista de Magistratura).
Docente na Universidade de Ribeirão Preto/SP (UNAERP). Advogado.
Camila Saran Vezzani
Doutoranda no Curso de Pós Graduação em Direito (PUC/SP).
Mestre em Direito (UNESP). Professora Assistente Voluntária da disciplina de
Direito de Família PUC/SP. Advogada.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Conceito de vedação
de confisco e seus desdobramentos; 2 Vedação do
confisco dentro da história do sistema constitucional
brasileiro; 3 O princípio do não confisco em matéria
tributária como cláusula pétrea; 4 O posicionamento
do Supremo Tribunal Federal; 5 Considerações
Finais; Referências.
156 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 155-178, jul./set. 2017

RESUMO: O presente trabalho buscou demonstrar a importância do


citado princípio, especialmente, no que diz respeito à sua relação com os
direitos e garantias fundamentais do cidadão. Sendo assim, foi apresentada
a conceituação do princípio do não-confisco, seus desdobramentos e a sua
cronologia histórica dentro de nosso ordenamento jurídico. Constatou-se
que o princípio carece de certa precisão, competindo ao Poder Judiciário
fixar os devidos limites e parâmetros, especialmente, o Supremo Tribunal
Federal. Por isso, mostrou-se importante investigar o posicionamento
da Suprema Corte em relação ao citado princípio. Foi realizada uma
revisão da bibliografia e pesquisa de jurisprudência junto ao Supremo
Tribunal Federal, tendo se concluído que a atuação do Supremo Tribunal
Federal é importante em relação à fixação de limites e parâmetros para
a aplicação prática do princípio, mas também os mesmos parâmetros
adotados pelo Tribunal acabam por prejudicar a análise da violação ou
não ao princípio do não-confisco em determinadas matérias.

PALAVRAS-CHAVE: Não-Confisco. Supremo Tribunal Federal.


Direitos Fundamentais.

ABSTRACT: This study aimed to demonstrate the importance of


that principle, especially with regard to their relationship with the
fundamental rights and guarantees of citizens. So, it was presented
the concept of the principle of non-forfeiture, its consequences and its
historical chronology within our legal system. It was found that the
principle lacks some precision, racing to the courts set the appropriate
limits and parameters, especially the Supreme Court. So it proved to be
important to investigate the position of the Supreme Court in relation
cited principle. A review of the literature and case law research at the
Federal Supreme Court was held, having concluded that the actions of the
Supreme Court is important in relation to setting limits and parameters
for the practical application of the principle, but also the same parameters
adopted by Court end up harming the analysis of violation or not to the
principle of non-forfeiture in certain matters.

KEYWORDS: Non-Forfeiture. Supreme Court. Fundamental Rights.


Carlos Henrique Machado
Danilo Garnica Simini
Camila Saran Vezzani 157

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu o princípio da vedação


do confisco em seu artigo 150, inciso IV, dentro da Seção II, que aborda
as limitações ao poder de tributar, bem como trata sobre a tributação e
o orçamento, estipulando ser vedada à União, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios a utilização de tributo com efeito de confisco. De
tal forma o princípio deve ser encarado como um limite capaz de garantir
os direitos e garantias fundamentais de todos os contribuintes, já que
está interligado ao direito de propriedade, aos princípios da capacidade
contributiva, da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade, sendo
instrumento ímpar no que diz respeito à obtenção da justiça tributária.

Ocorre que a sua conceituação tende a conter termos indeterminados e


vagos. Em outras palavras, o grande problema está justamente em fixar o seu
limite e seu alcance, ou seja, a problemática está na própria definição dos seus
parâmetros quantitativos (MACHADO, 2011, p. 59). Mesmo expressões como
excesso, onerosidade, abuso, dentre outras, pouco servem para ajudar a delimitar
o princípio da vedação do confisco, justamente porque é possível a ocorrência
de tributos de alíquotas onerosas sem que sejam considerados inconstitucionais.

Nesse contexto, tem-se a importância do papel do Poder Judiciário,


especialmente, o Supremo Tribunal Federal no que diz respeito à fixação
dos limites e parâmetros relacionados ao princípio em questão. Por outro
lado, ainda que a definição e delimitação do instituto seja complexa, o
princípio da vedação do efeito do confisco dos tributos revela-se um
eficiente e válido instrumento para defesa dos contribuintes, tendo sido
inclusive classificado como cláusula pétrea, segundo o parágrafo quarto,
do artigo 60 da Constituição Federal de 1988 (MACHADO, 2011, p. 59).

Dentro desse enfoque, o presente trabalho visa tratar da importância


do princípio do não-confisco em matéria tributária e de que forma o
Supremo Tribunal Federal vem aplicando o citado princípio na prática.
Sendo assim, será apresentada a sua conceituação, seus desdobramentos
e a sua cronologia histórica dentro de nosso ordenamento jurídico. Em
termos metodológicos, realizou-se uma revisão da bibliografia e pesquisa
de jurisprudência junto ao Supremo Tribunal Federal.

Esse trabalho se mostra relevante em termos sociais e científicos.


Inicialmente, a investigação proposta é imperiosa para que haja a
comprovação da importância do princípio da vedação do confisco no âmbito
tributário, já que se trata de um postulado integrativo, uma garantia contra
158 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 155-178, jul./set. 2017

a tributação desmedida por parte do Estado, fazendo com que a vedação


confisco não possa ser descartada do cenário constitucional nacional
(MACHADO, 2011, p. 59). Por outro lado, o trabalho pretende contribuir
com os estudos já realizados, incrementando as análises existentes ao
discutir de que forma o Supremo Tribunal Federal vem aplicando o princípio
do não confisco em matéria tributária em seus julgamentos.

1 CONCEITO DE VEDAÇÃO DE CONFISCO E SEUS DESDOBRAMENTOS

Inicialmente, antes de se passar a conceituação do que seria não


confisco tributário, deve-se tecer algumas brevíssimas considerações acerca
da acepção clássica do que é tributo. A definição clássica de tal instituto
conceitua tributo como toda a: “prestação pecuniária, compulsória, em
moeda ou cujo valor nela se possa expressar, que não constitua sanção de
ato ilícito, instituída por lei, cobrada mediante atividade administrativa
plenamente vinculada”. (BORBA, 2004, p. 14)

Importante trazer à tona, também, o que são as limitações estatais ao


poder de tributar. Tal conceituação está estritamente relacionada aos direitos
dos contribuintes, sendo garantias constitucionais e legais incidentes sobre
o Sistema Tributário Nacional. Tudo isso está ligado tanto à qualidade do
tributo objeto da exação quanto ao sujeito passivo da obrigação. Não obstante,
ocorrem, ainda, entraves ao poder de tributar que se aplicam a todos os tributos.

Como modelo de limitações ao poder de tributar ligado propriamente


ao tributo, temos o princípio da progressividade, acentuado por José Afonso
da Silva (2005) como aquele que permite que a alíquota do imposto aumente
em razão da majoração da base de cálculo. Quando falamos propriamente
da vedação ao confisco ou princípio do não confisco, tem-se que este se
trata de um exemplo evidente de limitação ao poder de tributar que se
aplica a todos os tributos. O artigo 150, IV, da Constituição Federal é
muito claro nesse sentido, ainda que seja extremamente enxuto.

Leandro Paulsen (2007, p. 220) tece considerações importantes


sobre o princípio do não confisco:

O inciso comentado refere-se à forma velada, indireta, de confisco, que


pode ocorrer por tributação excessiva. Não importa a finalidade, mas o
efeito da tributação no plano dos fatos. Não é admissível que a alíquota de
um imposto seja tão elevada a ponto de se tornar insuportável, ensejando
atentado ao próprio direito de propriedade. Realmente, se tornar inviável
a manutenção da propriedade, o tributo será considerado confiscatório.
Carlos Henrique Machado
Danilo Garnica Simini
Camila Saran Vezzani 159

Conforme a própria redação do artigo 150, inciso IV, da Carta


Magna, não há qualquer menção assinalando a possibilidade de redução
ou determinação dos efeitos ou necessidade de complementação posterior
infraconstitucional do dispositivo. De tal forma, trata-se evidentemente
de norma de eficácia plena.

Ademais, por ser norma de eficácia plena, não há qualquer


limitação em seu efeito, sendo considerada também como norma de
status constitucional privilegiado. Isso decorre da interpretação do texto
constitucional, onde a doutrina e jurisprudência nacional apontam que os
direitos dos cidadãos, existentes no artigo 150 da Constituição Federal são
considerados fundamentais. Tal fundamento é retirado a partir da leitura
conjunta dos artigos 5º, parágrafo segundo, 150, caput, e 60, parágrafo
quarto, todos da Constituição, conforme já referendado pelo próprio STF,
no julgamento da ADI 939/DF.

No entanto, a Constituição não trouxe em sua redação limites


objetivos sobre o que precisamente venha a ser o impedimento ao confisco
tributário, cabendo ao Poder Judiciário definir, caso a caso, se as alíquotas
incidentes, e consequentes valores dos tributos cobrados, têm ou não caráter
confiscatório. Logo, num primeiro momento, é válida a discussão se o
não confisco tributário seria uma regra, um princípio ou um postulado
(MACHADO, 2011, p. 125).

Para Ronald Dworkin (2002) as regras e os princípios, às vezes,


podem desempenhar papéis muito semelhantes, de modo que a diferença
central entre ambos restringe-se a uma questão de forma (MACHADO,
2011, p. 126). Assim, nessas situações, a utilização de conceitos vagos ou
indeterminados determina uma aproximação entre os princípios e regras.

Alguns dos ditos “princípios tributários” não são apenas


enunciados gerais e precisam de normatização posterior para firmar
a sua concretude (MACHADO, 2011, p. 126). Diferente é a situação
do princípio da vedação à utilização de tributos com efeito de confisco.
Por isso, a doutrina tem demonstrado bastante eloquência na tentativa
de estabelecer a natureza jurídica da vedação do efeito de confisco
tributário. Segundo Ricardo Lobo Torres (2009, p. 66 apud MACHADO,
2011, p. 59), “a proibição do confisco é imunidade tributária de uma
parcela mínima necessária à sobrevivência da propriedade privada”.
Para Roque Antônio Carraza (2010, p.107-108), “deriva do princípio
da capacidade contributiva” aderindo ao conceito de direito tributário
justo associado ao direito de propriedade.
160 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 155-178, jul./set. 2017

Além do direito de propriedade, a vedação do confisco está vinculada


diretamente à capacidade contributiva, servindo para fixar o limite
tributário conforme a condição de cada contribuinte, baseado na riqueza
produzida por cada um. De igual forma, vinculado à vedação do confisco
tributário, está também o princípio da igualdade, justamente no sentido
de que os iguais, em nível tributário devem ser tratados como iguais, e
os desiguais de forma desigual na medida de sua desigualdade. Por fim,
também se relacionam ao não-confisco os princípios da pessoalidade, da
progressividade e o da seletividade.

Segundo aponta Fábio Goldschmidt, ao analisar-se o artigo 150


da Constituição Federal como um todo, chega-se a conclusão, que em
seu inciso IV, a intenção da vedação ao efeito do confisco tributário é de
estabelecer limites objetivos. No entanto:

O fato é que, em que pesem todas essas evidências, que apontam


para o enquadramento do princípio da vedação ao efeito de confisco
como um limite objetivo, há um fator fundamental que demonstra
que, tal como ele se apresenta hoje no texto constitucional, deve ser
classificado como valor: o princípio do não confisco é de dificílima
identificação. O texto constitucional não oferece qualquer auxílio na
penosa situação dos limites da tributação com efeito de confisco e, nem
os juristas, nem o legislativo, nem o Judiciário lograram até agora
fornecer qualquer subsídio objetivo na sua identificação. O traço de
imediatidade de verificação, cerne da distinção entre valores e limites
objetivos, naufraga diante do raso desenvolvimento desse princípio
na práxis. (GOLDSCHMIDT, 2003, p. 88-89).

Valores e limites objetivos são noções distintas, e toda Constituição


é composta por normas que assumem a condição de valores ou de limites
objetivos, cada qual com suas características. O princípio do não confisco
pode assumir tanto a característica de limite objetivo quanto a de valor,
de acordo com a sociedade em que estiver inserido. Se conceituado como
valor, implica necessariamente uma permanência no plano axiológico, o que
implicaria em tratar da teoria dos valores, onde alcançaria, inevitavelmente,
um alto grau de subjetividade inerente a essa classificação; e, no entanto,
se positivada como limite objetivo, torna-se imperioso a fixação de limites
quantitativos (MACHADO, 2011, p. 127).

Na definição de Humberto Ávila (2008), todos os ditos direitos


e princípios fundamentais, ainda que possam sofrer restrição, podem
ser obtidos em seu núcleo essencial (MACHADO, 2011, p. 127). O
Carlos Henrique Machado
Danilo Garnica Simini
Camila Saran Vezzani 161

postulado constitucional de proibição de excesso, que em muito se


adéqua a ideia de proibição do efeito do confisco, com reconhecimento
e aplicação pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que não constitua
norma específica do direito tributário, pode ser bastante útil em sua
compreensão, integrando-se normalmente com a proporcionalidade e
com a liberdade do comércio.

Em igual sentindo, Luís Felipe Difini (2007, p. 75-82 apud


MACHADO, 2011, p. 128) afirma que “a norma em questão se caracteriza
pela sua intensa abertura semântica e consequentemente elevado grau de
vagueza, o que, por si só, impede a sua aplicação por subsunção”. A norma
do artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, constitui sim
um princípio, mas um princípio diferencial, ou seja, uma norma que rege
a aplicação de outros princípios. Concebe, desta forma, um verdadeiro
elemento de uniformidade do direito constitucional tributário.

Dentro da órbita tributária, o princípio da não-confiscatoriedade


tem por finalidade demarcar o direito que os entes públicos possuem de
expropriar bens privados, exigindo uma atitude traçada pela razoabilidade
e proporcionalidade na quantificação da exigência tributária, buscando
uma tributação justa, sendo assim mais do que mero dever de otimização.

Contudo, no Brasil, são poucas as inclinações, principalmente


jurisprudenciais, quanto à fixação de limites ou critérios objetivos para
medir o efeito confiscatório (MACHADO, 2011, p. 132). A doutrina,
por sua vez, tem feito algumas tentativas. Na lição de Antônio Roberto
Sampaio Dória (1986, p.195 apud MACHADO, 2011, p. 133), “o poder
tributário, legítimo, se desnatura em confisco, vedado, quando o imposto
absorva substancial parcela da propriedade ou a totalidade da renda do
indivíduo ou da empresa”.

Hugo de Brito Machado (2004b, p. 239-240 apud MACHADO,


2011, p. 133) afirma que:

Tributo com efeito de confisco é tributo que, por ser excessivamente


oneroso, seja sentido como penalidade. É que o tributo, sendo
instrumento pelo qual o Estado obtém os meios financeiros de que
necessita para o desempenho de suas atividades, não pode ser utilizado
para destruir a fonte desses recursos. Nesse sentido o tributo não pode
ser antieconômico, vale dizer, não pode inviabilizar o desenvolvimento
de atividades econômicas geradoras de riqueza, ou promotoras da
circulação desta.
162 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 155-178, jul./set. 2017

E ainda, segundo, Luiz Emygdio Rosa Júnior (2007, p. 274 apud


MACHADO, 2011, p. 133), o tributo com efeito confiscatório “é aquele
que pela sua taxação extorsiva corresponde a uma verdadeira absorção,
total, ou parcial, da propriedade particular pelo Estado, sem o pagamento
da correspondente indenização ao contribuinte”. O grande problema
nessas conceituações doutrinárias é que acabam gerando novos conceitos
indeterminados (MACHADO, 2011, p. 134), em que a aplicabilidade prática
requer esforços.

A vedação ao feito do confisco dos tributos não é uma mera ideologia


a ser cobiçada. Como é um componente que integra o direito tributário,
o princípio atua como um organismo operacional destinado à proteção e
efetivação de direitos constitucionais. Corretas são as palavras de Paulo
de Barros Carvalho (2011, p. 241 apud MACHADO, 2011, p 135/136):

Intrincado e embaraçoso, o objeto da regulação do referido art. 150,


IV, da CF, acaba por oferecer unicamente um rumo axiológico, tênue e
confuso, cuja nota principal repousa na simples advertência ao legislador
dos tributos, no sentindo de comunicar-lhes que existe um limite.
Somente isso.

A grande questão que vem à tona quando se trata do princípio


da vedação do confisco está em, justamente, determinar o que é efeito
de confisco (MACHADO, 2011, p. 130). Sabe-se que o tributo é uma
obrigação cogente do cidadão contribuinte, obrigatória e correspondente
de um imperativo vital da coletividade (MACHADO, 2011, p. 130). Não
obstante, a tributação não pode constituir jamais uma invasão exagerada
ao patrimônio do particular, de tal forma que o inviabilize por completo
em sua individualidade. Nesse sentido:

Não será confiscatória, exclusivamente, a lei tributária que estabelecer


alíquotas de 100% (cem por cento) incidentes sobre o valor da renda
ou patrimônio, mas toda imposição tributária que, substancialmente,
reduzir o patrimônio. A dificuldade está, exatamente, em estabelecer
a proporção. Em termos genéricos, pode-se dizer que os seguintes
critérios e circunstâncias são relevantes para a determinação do caráter
confiscatório do tributo. (BALEEIRO, 1999, p. 576).

Cumpre salientar que o confisco não é vedado pelo Direito, e constitui


modalidade de penalidade, que deve estar prevista, necessariamente,
dentro do ordenamento. A própria Constituição Federal, como ensina
Regina Helena Costa (2009), permite em dois casos o confisco de bens. O
Carlos Henrique Machado
Danilo Garnica Simini
Camila Saran Vezzani 163

primeiro, ao tratar dos dispositivos afetos à matéria penal (art. 5º, XLV e
XLVI); e o segundo, dentro das disposições gerais, como penalidade pelo
cultivo ilegal de plantas psicotrópicas (art. 243) (MACHADO, 2011, p. 140).
O confisco decorrerá, então, sempre de ato administrativo ou sentença
expedida pelo Judiciário, fundamentados na lei, ou, caso contrário, poderá
ser caracterizado como medida arbitrária e contrária ao próprio Direito
(MACHADO, 2011, p. 140).

Há elementos essenciais para a caracterização e conceituação do


confisco, quais sejam: existência do Estado; o emprego de força coercitiva
por parte do Estado; o bem jurídico que passaria ser propriedade do Estado;
o proprietário do bem jurídico afetado pela ação e, finalmente, a violação
à lei que legitimou a conduta estatal.

Não está vedada no ordenamento constitucional brasileiro, tampouco


no direito tributário, a aplicação de penalidade referente ao confisco. O
que se proíbe é que o contribuinte sofra com a tributação os efeitos de
uma punição (MACHADO, 2011, p. 141), porque a hipótese originária da
incidência tributária delineia abstratamente um fato ou um comportamento
lícito. De tal forma, o impedimento constitucional é para situações em
que ocorra efeito do confisco quando não era exemplo de uma hipótese
de confisco permitida. Ou ainda, que não haja efeito punitivo quando não
seja um exemplo de punição (MACHADO, 2011, p. 141).

A tributação é consentida pela Constituição, desde que não transgrida


o direito de propriedade e os demais direitos fundamentais, realizando a
vedação ao efeito de confisco (proibição de excesso) (MACHADO, 2011,
p. 143) como uma função na equalização desses interesses. Podendo,
inclusive, ser interpretado o efeito de confisco como uma garantia de
justiça (MACHADO, 2011, p. 143).

Não bastasse toda essa problemática apresentada, o princípio


tributário ainda tem mais um grande entrave: o modelo federativo. Outro
tema de destaque da discussão doutrinária é justamente se o princípio de
vedação ao efeito do confisco dos tributos deve levar em consideração a
integralidade da carga fiscal suportada pelo contribuinte ou apenas o
tributo isoladamente (MACHADO, 2011, p. 143).

Hugo de Brito Machado (2004a, p. 54 apud MACHADO, 2011, p.


143) sobre o tema dirá que “o caráter confiscatório do tributo há de ser
avaliado em função do sistema, vale dizer, em face da carga tributária das
exações em conjunto”. Em complemento, Luiz Emygdio Rosa Júnior (2007)
164 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 155-178, jul./set. 2017

explica que nem cada tributo isoladamente, nem o sistema tributário como
carga genérica, podem atingir aquela renda mínima do cidadão necessária
para cobrir os gastos pessoais e familiares, como moradia, alimentação,
educação e saúde, etc (MACHADO, 2011, p. 144).

Por outro lado, a opinião contrária entende que não há uma possibilidade
lógica de haver um sistema confiscatório, sem que exista, inicialmente, um
ou mais tributos confiscatórios. Paulo Cesar de Castilho (2002, p. 103 apud
MACHADO, 2011, p. 144) expõe que a questão é de política fiscal, “adotada
pelo legislador constituinte na medida em que deu a cada um dos entes
federados a competência para exigir tributos, e, portanto, insuscetível de
restrições, pois goza de autorização da Carta Política”.

De fato, não é possível ignorar a unidade sistemática do fenômeno


jurídico, que deve ser compreendido em sua integralidade. O direito,
enquanto conjunto de enunciados prescritivos, precisa ter um mínimo
de racionalidade a fim de ser compreendido pelos sujeitos destinatários
(MACHADO, 2011, p. 145). A vedação do confisco é uma garantia
constitucional com aplicação garantida por todos os entes da Federação,
empregada como meio de impedir a Administração Tributária de arrecadar
sem qualquer espécie de controle e limite, garantindo que o contribuinte
não sofra abusos e se veja lesado dentro de suas prerrogativas fundamentais.

2 VEDAÇÃO AO CONFISCO DENTRO DA HISTÓRIA DO SISTEMA CONS-


TITUCIONAL BRASILEIRO

No curso da história, o conceito de confisco sofreu grande


modificação, com base em múltiplos contextos históricos desde as guerras,
com as expropriações de bens dos vencidos, seguidas das revoluções
burguesas, em decorrência dos altos tributos cobrados pelo rei e, por fim,
como busca pela proteção da propriedade particular contra a apropriação
do Estado. Neste sentido, ensina Eduardo Sabbag (2009, p. 188):

Perante a História, durante a passagem dos séculos, a retórica


do confisco foi marcada por alto grau de evolução, ligando-se a
diferentes contextos fáticos: (I) às guerras, em razão da apropriação
dos bens públicos confiscáveis dos inimigos, como medida punitiva e
preventiva; (II) ao tenso convívio entre a burguesia, alvo do tributo,
e os reis, detentores do poder de tributar, culminando nas famosas
revoluções, que, em grande parte, eram inevitáveis consequências do
descontentamento do povo com a opressão fiscal; (III) à crescente
proteção da propriedade contra a apropriação estatal.
Carlos Henrique Machado
Danilo Garnica Simini
Camila Saran Vezzani 165

Embora o princípio da vedação do confisco tenha sido estabelecido


dentro do ordenamento apenas quando a Constituição Federal de 1988 foi
promulgada, sua ideia já era aceita pela doutrina e aplicada pelos Tribunais
Pátrios, tornando a novidade constitucional somente uma positivação
de um direito que já havia sido reconhecido, ainda que constantemente
associado ao direito de propriedade. Não obstante a sua recente previsão
dentro do ordenamento, o princípio do não confisco vem solidificado em
outros princípios, tais como o da garantia ao direito de propriedade e o
da capacidade contributiva.

Na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e na


Declaração de Direitos (Bill of Rights) dos Estados Unidos da América
de 1791 há menção expressa de que a tributação deve ser proporcional a
suas respectivas capacidades. Ou seja, a ideia de que a tributação deve ser
proporcional a capacidade do contribuinte nada mais é do que a vedação ao
tributo que possa ser superior à capacidade daquele que o paga desfalcando
o seu patrimônio, ou seja, claramente, veda-se o confisco.

A Constituição do Império do Brasil já trazia incluído o conceito que


exprimia, exclusivamente, o critério de justiça, o princípio da capacidade
contributiva e, por consequência, o do não confisco. A falha existente
compreende o fato de que conceituar justiça gera inúmeras definições, o
que torna o conceito demasiadamente genérico, sendo sua determinação
variável e dificultosa.

A Constituição de 1891 manteve o direito de propriedade, mas


acrescentou o conceito de legalidade para a criação de imposto, mesmo
não tratando de confisco explicitamente, apenas de forma implícita. Já em
1934, a nova Constituição Brasileira compreendeu uma ideia que estabelecia
parâmetros objetivos para a conceituação do confisco. O texto constitucional
afirmava que nenhuma espécie de tributo deveria ser elevada acima de
20% (vinte por cento) do seu valor quando da data do aumento. Assim,
mais uma vez, ainda não existia qualquer menção expressa a respeito do
não-confisco. Com a Constituição de 1937, no entanto, não houve qualquer
menção ao confisco, embora manteve-se as garantias fundamentais, como
o direito de propriedade.

As Constituições de 1946 e 1967 também proibiam a aplicação da


pena de confisco em caráter geral, ligado ainda à ideia de punição
por crime. Posteriormente, como reflexo da ditadura militar que
se implantou no País, a Emenda Constitucional n.º 1/69 alterou a
disposição constitucional e passou a admitir o confisco “nos casos
166 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 155-178, jul./set. 2017

de guerra externa, psicologia adversa, ou revolucionária ou subversiva


nos termos que a lei a determinar”, conforme § 11 do art. 153. Referido
artigo foi novamente alterado pela Emenda Constitucional n.º 11/78,
quando a palavra confisco foi suprimida do texto legal; no entanto,
tal modificação não retirou a eficácia da aplicação do princípio do não
confisco, tanto de forma geral quanto em relação à matéria tributária.
Por fim, com a Constituição de 1988, veio a positivação do princípio
do não-confisco, conforme art. 150, IV. Transformou-se o que era
apenas proibição genérica em vedação específica ao Direito Tributário.
(BALBINO, 2007, p. 37).

Luiz Felipe Silveira Difini (2007) explica que a redação do princípio


da capacidade contributiva elaborado pela Constituição de 1946 foi melhor
formulada inclusive se comparada com a presente Constituição, o que
propiciava a extração do princípio da vedação do confisco tributário, bem
como demonstrava clareza para a aplicação da graduação aos tributos
instituídos. Portanto, antes da Constituição vigente, foi na Constituição
de 1946 que o princípio da vedação do confisco tributário, mesmo que
implicitamente, demonstrou um maior vigor interpretativo. Esta conclusão
se perfaz pelo ambiente democrático no qual estas Constituições foram
formuladas, já que ambas foram promulgadas após períodos ditatoriais
longos em que a sociedade ansiava e exigia por reformas que preservassem
os direitos fundamentais e protegessem o direito à liberdade e à propriedade.
Com o desenvolvimento crescente da proteção ao direito de propriedade,
nasceu, por consequência, a necessidade de positivação de algumas garantias
diretamente ligadas a ele, tais como a vedação ao confisco, pois:

Assim sendo, direito de propriedade e confisco tributário são institutos


incompatíveis entre si. Ou a ordem jurídica reconhece o poder de
confisco tributário e nesse caso a propriedade não estará garantida,
ou reconhece o direito de propriedade e nesse caso o confisco estará
vedado. Tertia non datur: aqui se aplica a regra do terceiro excluso.
(BORGES, 2001, p. 212).

A vedação ao confisco é uma garantia ao direito de propriedade.


Sua positivação constitucional foi de grande significância, posto que a
expressa menção ao princípio é crucial do ponto de vista interpretativo.
Portanto, é evidente que o princípio do não-confisco tributário nasceu da
necessidade de proteção ao direito de propriedade privada, como limitação
do Estado para instituir tributos com tal efeito, sendo que, na atualidade,
além de reforçar o direito fundamental à propriedade estipula um limite
explícito às discriminações arbitrárias.
Carlos Henrique Machado
Danilo Garnica Simini
Camila Saran Vezzani 167

3 O PRINCÍPIO DO NÃO CONFISCO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA COMO


CLÁUSULA PÉTRA

O estudo das constituições nos ensina que a Carta Magna de


determinado Estado é aquela fruto do trabalho do denominado Poder
Constituinte, podendo este ser conceituado como o poder de criar ou
modificar determinada Constituição através da eliminação, alteração
ou acréscimo de normas constitucionais, sendo que a titularidade do
Poder Constituinte pertence ao povo, este, no caso brasileiro, composto
por aqueles indicados no artigo 12 da Constituição Federal de 1988
(TEMER, 1998).

De acordo com a conceituação, o Poder Constituinte é dividido em


originário e derivado. O derivado, por sua vez, se subdivide em reformador,
decorrente e revisor. A primeira categoria, qual seja, o Poder Constituinte
Originário é aquele que cria uma nova Constituição, dando origem a um
novo Estado e uma nova ordem jurídica. Já o Poder Constituinte Derivado
é decorrente do originário e através dele poderão ser modificadas as
normas de determinado texto constitucional.

Para fins deste trabalho, nos interessa o Poder Constituinte


Derivado Reformador. Este possui a capacidade de modif icar
a Constituição Federal por meio de procedimento previamente
previsto no próprio texto constitucional vigente. No caso brasileiro,
a manifestação do Poder Constituinte Derivado Reformador se dá
através das denominadas emendas constitucionais (artigos 59, inciso
I, e 60, ambos da Constituição Federal).

Ocorre que o Poder Constituinte Derivado Reformador, ao contrário


do Poder Constituinte Originário, apresenta limitações impostas por este em
relação àquele. Logo, a manifestação do Poder Constituinte Derivado Reformador
através das emendas constitucionais apresenta limitações e condicionantes.

As limitações às emendas constitucionais são classificadas


tradicionalmente em formais ou procedimentais, circunstanciais e materiais.
As limitações procedimentais traçam regras acerca da forma de aprovação
das emendas constitucionais e quais são os agentes competentes para
sua propositura. De outra parte, as limitações circunstanciais enunciam
situações fáticas onde há vedação de alterações no texto constitucional
por meio das emendas. Já as limitações materiais podem ser traduzidas
como determinadas matérias em que se veda propostas de emendas à
constituição tendentes a aboli-las.
168 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 155-178, jul./set. 2017

De acordo com artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição Federal


não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a
forma federativa do Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico;
a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais. Estas são
matérias pertencentes ao núcleo intangível da Constituição, denominadas
tradicionalmente de cláusulas pétreas.

Feitas tais considerações, deve-se então indagar se o princípio do não


confisco em matéria tributária, previsto no artigo 150, inciso IV, da Constituição
Federal de 1988, seria uma cláusula pétrea e, portanto, se o Poder Constituinte
Derivado Reformador poderia ou não, por meio de emendas constitucionais,
suprimir tal princípio tributário de nosso texto constitucional vigente.

Sacha Calmon Navarro Coêlho (2005, p. 79) ao analisar o tema


conclui que os princípios constitucionais tributários, entre eles o princípio
do não confisco, não podem ser objeto de emenda constitucional tendente
a aboli-los, já que guardam estreita relação com os direitos fundamentais:

Para começar, ditos princípios traduzem no imo e em suas expansões


projeções de direitos fundamentais, ou melhor, no miolo, são garantias
de direitos fundamentais, notadamente capacidade, liberdade, dignidade
humana, propriedade e igualdade, além de valores republicanos,
federalistas e solidaristas (...) Os princípios constitucionais tributários e
as imunidades (vedações ao poder de tributar) traduzem reafirmações,
expansões e garantias dos direitos fundamentais e do regime federal.
São, portanto, cláusulas constitucionais perenes, pétreas, insuprimíveis.

Ives Gandra da Silva Martins (2005, p. 33) afirma de forma didática


que “sem prejuízo de outras garantias, todas aquelas elencadas no artigo
150, por serem garantias individuais, são normas imodificáveis”, assim
como também ressalta José Eduardo Soares de Melo (2005, p. 185) ao
dizer que “no sistema tributário nacional é possível identificar, no rol dos
direitos e garantias que constituem o Estatuto dos Contribuintes (arts.
150, 151 e 152), os direitos e garantias que estão amparados pela cláusula
pétrea do artigo 60, § 4º, IV, da Constituição”.

Helenilson Cunha Pontes (2005, p. 269) também aborda a


problemática e ressalta que os princípios constitucionais tributários são
verdadeiras limitações constitucionais ao poder de tributar. Logo, “se as
limitações constitucionais ao poder de tributar pudessem ser livremente
reduzidas ou suprimidas pelo constituinte derivado, esvaziada estaria sua
função de proteção contra o arbítrio estatal”.
Carlos Henrique Machado
Danilo Garnica Simini
Camila Saran Vezzani 169

Portanto, o princípio do não confisco em matéria tributária, previsto


no artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal não pode ser suprimido,
sob pena de violação ao artigo 60, § 4º, inciso IV, também da Constituição
Federal. Feitas tais considerações, deve-se agora analisar de que forma que
o Supremo Tribunal Federal vem interpretando e aplicando o princípio
do não confisco em seus julgados, já que este Tribunal possui um papel
importante no que se refere à fixação de limites e parâmetros na aplicação
do princípio em tela.

4 O POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

De acordo com o texto constitucional, compete ao Supremo Tribunal


Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe, dentre
outras atribuições, processar e julgar originariamente ação direta de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, bem
como processar e julgar ação declaratória de constitucionalidade de
lei ou ato normativo federal (artigo 102, inciso I, alínea “a”). Ademais,
também compete ao Supremo Tribunal Federal julgar, mediante recurso
extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando
a decisão recorrida contrariar dispositivo do texto constitucional vigente
(artigo 102, inciso III, alínea “a”).

Por outro lado, a dificuldade “a priori” em se afirmar que determinado


tributo é ou não confiscatório faz com que o Poder Judiciário, especialmente
o Supremo Tribunal Federal, ocupe papel de destaque no que diz respeito
ao controle constitucional das normas tributárias, estabelecendo, através
de sua atuação, parâmetros e balizas que irão influenciar toda a atividade
judicial subsequente.

Cabe ao Judiciário dizer quando um tributo é confiscatório. A regra


constitucional, no mínimo, deu ao Judiciário mais um instrumento de
controle da voracidade fiscal do Governo, cuja utilidade certamente
fica a depender da provocação dos interessados e da independência e
coragem dos magistrados, especialmente dos que integram o Supremo
Tribunal Federal (MACHADO, 2004a, p. 71).

Neste contexto, verifica-se a importância da atuação do Supremo


Tribunal Federal no que diz respeito à análise dos princípios e garantias
fundamentais em matéria tributária, pois seja através de controle
concentrado ou difuso, toda e qualquer violação ao texto constitucional
poderá chegar até a Suprema Corte, ou será por esta decidida em única
instância a depender da situação.
170 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 155-178, jul./set. 2017

Aliás, deve-se ressaltar que trinta e nove por cento dos casos
de repercussão geral que se encontram no Supremo Tribunal Federal
guardam relação com o direito tributário (VIEIRA, 2013). Por outro lado,
estima-se que as ações tributárias existentes nos Tribunais Superiores,
especificamente Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça,
podem causar um impacto estimado de R$ 350 bilhões para os contribuintes
ou para o fisco, a depender dos resultados dos julgamentos (LÉLLIS, 2013).
Logo, conclui-se que a análise da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, no que diz respeito à vedação de utilização de tributos com efeito
confiscatório, se mostra de suma importância.

Através do mecanismo de pesquisa de jurisprudência existente


no “site” do Supremo Tribunal Federal foram pesquisados precedentes
relacionados à vedação da utilização de tributos com efeito de confisco. A
sistematização e, consequentemente, a elaboração de comentários acerca
dos precedentes irão proporcionar uma melhor visão acerca da relação
entre a questão do confisco em matéria tributária e a forma que o Supremo
Tribunal Federal, guardião da Constituição, vem interpretando e aplicando
a regra prevista no artigo 150, inciso IV, da Carta Magna de 1988.

Feitas tais considerações, pode-se afirmar que um dos principais


julgamentos acerca da proibição de tributos com efeito de confisco foi o
proferido nos autos da ADC 8-MC, tendo o Supremo Tribunal Federal
estabelecido alguns importantes parâmetros, conforme verifica-se através
de trecho extraído do acórdão:

A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da


totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade
de que dispõe o contribuinte considerado o montante de sua
riqueza (renda e capital) – para suportar e sofrer a incidência de
todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado
período, à mesma pessoa política que os houver instituído (a União
Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau
de insuportabilidade econômico-financeira, à observância, pelo
legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar
excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder
Público. Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado
tributo, sempre que o efeito cumulativo – resultante das múltiplas
incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal
– afetar, substancialmente, de maneira irrazoável o patrimônio e/
ou rendimentos do contribuinte (STF, Pleno, ADC-MC 8/DF, Rel.
Min. Celso de Mello, j. 13.10.1999, DJ 04.04.2003).
Carlos Henrique Machado
Danilo Garnica Simini
Camila Saran Vezzani 171

Através do trecho reproduzido acima, constata-se que o Supremo


Tribunal Federal entende que não se deve analisar o tributo de modo
isolado, já que o seu impacto, quando auferido individualmente, não levará
necessariamente ao efeito confiscatório. Logo, o estudo deve compreender o
tributo objeto de análise e outros que incidam sobre a mesma manifestação
de riqueza, bem como se as exações são cobradas pelo mesmo ente político
(União, Estados, Distrito Federal ou Municípios).

Utilizando-se de tal parâmetro jurisprudencial, o próprio Supremo


Tribunal Federal ao analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
2.010 entendeu que a utilização de alíquotas progressivas nas contribuições
previdenciárias para servidores públicos federais ativos, majoradas de acordo
com o rendimento do servidor, podendo chegar até 25% sobre remunerações
elevadas, seria inconstitucional por apresentar caráter confiscatório.

No citado julgamento, os Ministros entenderam que os contribuintes


da contribuição previdenciária estariam sujeitos não apenas às contribuições
previdenciárias, mas também ao Imposto de Renda cuja alíquota pode
chegar a 27,5%. Assim, os servidores públicos federais ativos seriam
tributados em praticamente metade de seus rendimentos (contribuição +
Imposto de Renda), tributos estes devidos ao mesmo ente político, qual seja,
a União. Por isso, a alíquota progressiva na contribuição previdenciária,
analisada por si só, poderia não violar a Constituição, mas quando a análise
é feita em termos globais a inconstitucionalidade seria evidente.

Não obstante as ponderações feitas, entendo que possui inquestionável


relevo jurídico a arguição de que as alíquotas progressivas instituídas
pela Lei 9.783/1999 – especialmente porque agravadas pelo ônus
resultante do gravame tributário representado pelo imposto sobre a
renda das pessoas físicas – revestir-se-iam de efeito confiscatório vedado
pelo art. 150, inciso IV, da Constituição (STF Pleno, ADI-QO 2.010/
DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 13.06.2002, DJ 28.03.2003, p. 62)

Outra questão importante debatida pelo Supremo Tribunal Federal diz


respeito à relação entre taxas e o princípio do não confisco. De início, deve-se
lembrar que a análise da possível inconstitucionalidade se dá de forma diversa.
As taxas, ao contrário dos impostos, possuem caráter contraprestacional, já que
através delas remunera-se o ente público por uma atividade especificamente
destinada ao contribuinte. Portanto, a verificação do caráter confiscatório da
taxa é realizada mediante a comparação entre o custo da atividade público
e o valor cobrado a título de taxa. Se o valor da taxa for desproporcional ao
custo da atividade pública, há violação ao princípio do não confisco.
172 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 155-178, jul./set. 2017

A taxa, enquanto contraprestação a uma atividade do Poder Público,


não pode superar a relação de razoável equivalência que deve existir
entre o custo real da atuação estatal referida ao contribuinte e o valor
que o Estado pode exigir de cada contribuinte, considerados, para
esse efeito, os elementos pertinentes à alíquotas e à base de cálculo
fixadas em lei. Se o valor da taxa, no entanto ultrapassar o custo do
serviço prestado ou posto à disposição do contribuinte, dando causa,
assim, a uma situação de onerosidade excessiva, que descaracterize essa
relação de equivalência entre os fatos referidos (o custo real do serviço,
de um lado, e o valor exigido do contribuinte, de outro), configurar-
se-á, então, quanto a esta modalidade de tributo, hipótese de ofensa à
cláusula vedatória inscrita no art. 150, inciso IV, da Constituição da
República (STF Pleno, ADI-MC-QO 2.551/MG, Rel. Min. Celso de
Mello, j. 02.04.2003. DJ 20.04.2006, p-5).

O Supremo Tribunal Federal também analisou a relação entre


princípio do não confisco e sua aplicabilidade em relação às multas
tributárias. Através de uma interpretação literal do artigo 150, inciso IV,
da Constituição Federal se poderia chegar a conclusão de que o princípio
somente se aplicaria aos tributos. Contudo, o Tribunal em diversas ocasiões,
entre elas no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.075,
reconheceu ser aplicável às multas o princípio constitucional da vedação do
uso do tributo com efeito de confisco, sendo que a intensidade da penalidade
deve guardar relação de proporcionalidade com a gravidade da ofensa.

Contudo, a pesquisa realizada junto ao “site” do Supremo Tribunal


Federal também nos apresenta um aspecto importante e delicado. A
Suprema Corte ao partir do pressuposto de que o efeito confiscatório
não deve ser analisado de modo individual e abstrato, mas sim mediante
análise conjunta de todo o sistema tributário, acaba por ocasionar certas
restrições no âmbito de sua análise.

É sabido que em sede de recurso extraordinário não se pode


reexaminar matéria fática, conforme Súmula 279 do próprio Supremo
Tribunal Federal. Portanto, o Tribunal vem negando provimento a recursos
que demandariam por parte dos Ministros reapreciação de matéria de
fato contida nos autos, conforme se verifica através de trecho extraído do
Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 448.432/CE.

A caracterização do efeito confiscatório pressupõe a análise de dados


concretos e de peculiaridades de cada situação ou operação, tomando-se
em conta custos, carga tributária global, margens de lucro e condições
Carlos Henrique Machado
Danilo Garnica Simini
Camila Saran Vezzani 173

pontuais do mercado e de conjuntura social e econômica. No caso em


exame, o isolado aumento de alíquota do tributo, de 4% para 14% é
insuficiente para comprovar a absorção total ou demasiada do produto
econômico da atividade privada, de modo a torná-la inviável ou
excessivamente onerosa. Para se chegar a conclusão diversa daquela a
que se chegou no acórdão recorrido seria necessário o reexame de matéria
fática, o que encontra óbice da Súmula 279 do Supremo Tribunal Federal.

Portanto, a análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal


evidencia que este órgão traçou diretrizes importantes em relação à
aplicabilidade do princípio do não confisco em matéria tributária, quais sejam:
a) o caráter confiscatório de determinado tributo não deve ser investigado
mediante análise individual, mas sim por meio de análise de toda a carga
tributária incidente sobre a mesma manifestação de riqueza e levando-se
em consideração todos os tributos nesta situação que são instituídos ou
cobrados pelo mesmo ente político; b) o princípio do não confisco também
se aplica às multas tributárias; c) no que diz respeito às taxas tributárias,
estas só serão inconstitucionais em razão de efeito confiscatório se houve
desproporção entre o custo do serviço e o valor cobrado.

Por outro lado, as balizas traçadas pelo Supremo Tribunal Federal


também acabaram por restringir a discussão quanto à violação da regra
prevista no artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal, já que muitas
vezes a análise exigida pela própria Suprema Corte demandaria reapreciação
de matéria fática, tornando-a impossível em razão da Súmula 279 do
próprio Supremo Tribunal Federal.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme ficou demonstrado nas linhas acima, a Constituição Federal


de 1988 introduziu em nosso ordenamento jurídico importantes balizas e
limites à atividade tributária, entre eles a vedação de tributos com efeito de
confisco (artigo 150, inciso IV). Ficou demonstrado que o princípio do não
confisco guarda estreita relação com os direitos e garantias fundamentais
previstos nos texto constitucional, fazendo com que a tributação excessiva e
desmedida seja considerada inconstitucional, justamente por violar direitos
e garantias fundamentais, tais como o direito de propriedade, a dignidade
humana e o direito de livre iniciativa em matéria econômica.

Sendo assim, justamente pela nítida relação entre princípio do não


confisco e direitos e garantias fundamentais, ficou demonstrado que toda
emenda constitucional tendente a abolir a vedação do confisco em matéria
174 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 155-178, jul./set. 2017

tributária deve será considerada inconstitucional, por se tratar de cláusula


pétrea, conforme artigo 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal.

De outra parte, ficou demonstrada a importância dos precedentes do


Supremo Tribunal Federal no que diz respeito ao princípio do não confisco em
matéria tributária, já que a jurisprudência acaba por fixar limites e parâmetros
para aplicação prática desta importante regra constitucional tributária.

Neste contexto, pode-se citar que o Supremo Tribunal Federal


entende que deve-se analisar toda a carga tributária incidente sobre a mesma
manifestação de riqueza e exigida pelo mesmo ente político, afastando-se o
entendimento de que o tributo deve ser analisado isoladamente. Também restou
pacificado que o princípio do não confisco se aplica às multas. Finalmente,
em relação às taxas, o Supremo Tribunal Federal entende que deve haver
razoabilidade entre o preço do serviço e o valor cobrado em face do contribuinte.

Por fim, ainda no que diz respeito ao posicionamento do Supremo


Tribunal Federal, demonstrou-se que os parâmetros adotados pelo
próprio Tribunal acabam por prejudicar a própria análise acerca da
violação ou não ao princípio do não confisco em determinadas matérias,
pois não admite-se reexame de matéria fática quando da análise de
recursos extraordinários.

De qualquer forma, o presente trabalho buscou ressaltar a importância


do princípio do não confisco em matéria tributária, especialmente, sua
relação com os direitos e garantias fundamentais, bem como buscou
demonstrar a importância do Supremo Tribunal Federal no que diz
respeito à fixação de limites e parâmetros para a aplicação prática em
nosso ordenamento jurídico do citado princípio.

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repercussao-geral-stf-sao-materia-tributaria2013>. Acesso em: 25 abr. 2014.
Recebido em: 13/03/2017
Aprovado em: 02/05/2017

Considerações jurisprudenciais do
Superior Tribunal de Justiça sobre
a impenhorabilidade do bem de
família legal à luz dos princípios
da dignidade da pessoa humana e da
proteção à moradia
Jurisprudential considerations of the Superior
Court of Justice about the homestead in light of the
principle of the dignity of the human person and the
right of housing

Fernando Natal Batista


Analista Judiciário e Assessor de Ministro do Superior Tribunal de Justiça
Mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito
Público – IDP. Pós-Graduado pela Fundação Escola Superior do Ministério
Público do Distrito Federal e Territórios – FESMPDFT. Bacharel em Direito pela
Universidade de Brasília – UnB.

“Não é ao lado do que anda de má-fé que se deve colocar o direito;


sua função é proteger a atividade humana orientada pela moral, ou
pelo menos, a ela não oposta” (CLÓVIS BEVILÁQUA).

Sumário: Introdução; 1 Considerações iniciais


sobre a cláusula legal de impenhorabilidade do bem
de família; 2 Considerações jurisprudenciais sobre a
cláusula legal de impenhorabilidade do bem de família
à luz do princípio da dignidade da pessoa humana:
características e mitigações; 3 Conclusão; Referências.
156 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 179-172, jul./set. 2017

RESUMO: O presente artigo tem como proposta abordar o tema da


impenhorabilidade do bem de família legal (Lei n.º 8.009/1990) sob o
prisma da Constituição Federal de 1988, mormente à luz dos princípios
da dignidade da pessoa humana, da proteção à família e à moradia,
restringindo, todavia, para fins metodológicos, em sua análise, ao âmbito
da construção jurisprudencial gradualmente estabelecida pelo Superior
Tribunal de Justiça - STJ. A partir do exame jurisprudencial do bem
de família legal, mediante a indicação e o estudo de julgados daquela
Corte, percebe-se o movimento de constitucionalização do direito civil
(incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas), surgido
após a promulgação da Carta Política de 1988, no intuito de proteger
o patrimônio existencial digno do indivíduo nas relações civis, em
detrimento de direitos creditórios.

PALAVRAS-CHAVE: Bem de Família Legal. Lei n.º 8.009/1990.


Cláusula de Impenhorabilidade do Imóvel Familiar. Jurisprudência.
Superior Tribunal de Justiça. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Incidência dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas.

ABSTRACT: The purpose of this article is to examine, as object, the


impenhorability of family property, under the prism of the Federal
Constitution of 1988, in the light of the principles of human dignity and
family protection. However, for methodological purposes, the analysis
has as scope the jurisprudential construction gradually established by the
brazilian Superior Court of Justice. From the jurisprudential examination
of the legal family property, through the indication and study of the
Court’s judgments, we can notice the movement of constitutionalisation
of the civil law (incidence of fundamental rights in private relations),
which emerged after the promulgation of the Magna Charter of 1988,
to protect the individual’s existential worthy in civil relations against
the satisfaction of credit rights.

KEYWORDS: Homestead. Jurisprudence. Superior Court of Justice.


Principle of Human Dignity. Family Protection. Incidence of Fundamental
Rights in Private Relations.
Fernando Natal Batista 157

Introdução

O presente artigo tem como proposta abordar o tema da


impenhorabilidade do bem de família legal sob o prisma da Constituição
Federal de 1988 – CF/88, mormente à luz dos princípios da dignidade da pessoa
humana (art. 1º, inc. III, da CF/88), da proteção à família (art. 226 da CF/1988)
e do direito social à moradia (art. 6º da CF/1988), restringindo, todavia, para
fins metodológicos, em sua análise, ao âmbito da construção jurisprudencial
gradualmente estabelecida pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ.

Realizada a delimitação do objeto de estudo, será, ainda, ao longo


do trabalho, desenvolvida uma contextualização crítica dos argumentos
firmados nos julgados e precedentes do STJ – ora analisados e indicados,
objetivando demonstrar a compatibilidade entre esta garantia fundamental
e as regras jurídicas contidas no sistema processual civil, sobretudo no
processo de execução, porquanto, tratada como direito fundamental pelo
Estado Constitucional de Direito, a dignidade da pessoa humana traduz um
valor inestimável que, em razão de sua reconhecida prevalência, subsume a
aplicação e a interpretação das normas infraconstitucionais à sua observância1.

O objetivo, destaca-se, é retratar o perfil jurisprudencial


dominante da Corte da Cidadania, de modo que o ensaio também versará
obrigatoriamente sobre as hipóteses em que a Lei n.º 8.009/1990, de forma
expressa, excepciona a regra da impenhorabilidade do bem de família
legal, prevalecendo naquele Tribunal Superior o posicionamento de sua
insuscetibilidade de interpretação extensiva.

Seguindo a tendência da incidência dos direitos fundamentais às


relações privadas, predomina no entendimento pretoriano daquela Corte
Superior de Justiça, a leitura de que a impenhorabilidade do bem de família
legal deve ser interpretada em harmonia com o preceito constitucional
que inclui o direito social à moradia2 como direito fundamental (art. 6º,
1 “A Lei 8.009/1990 institui a impenhorabilidade do bem de família como um dos instrumentos de tutela
do direito constitucional fundamental à moradia e, portanto, indispensável à composição de um mínimo
existencial para vida digna, sendo certo que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui-se em um
dos baluartes da República Federativa do Brasil (art. 1º da CF/1988), razão pela qual deve nortear a exegese
das normas jurídicas, mormente aquelas relacionadas a direito fundamental” (REsp 950.663/SC, Rel.
Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/04/2012, DJe 23/04/2012).
2 “A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei nº 8.009/1990, ao instituir a sua
impenhorabilidade, objetiva a proteção da própria família ou da entidade familiar, de modo a tutelar o
direito constitucional fundamental da moradia e assegurar um mínimo para uma vida com dignidade
dos seus componentes” (REsp 1.422.466/DF, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA,
julgado em 17/05/2016, DJe 23/05/2016).
158 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 179-172, jul./set. 2017

caput, da Constituição Federal), alicerçada na proteção à família3, como


um dos fundamentos republicanos na construção de uma sociedade livre,
justa e solidária (art. 3º, inc. I, da CF/1988).

Vale destacar, por fim, que tanto a instalação do Superior Tribunal


de Justiça, concretizada em 07 de abril de 1989, quanto à edição da Lei
de Impenhorabilidade do Bem de Família (Lei n.º 8.009 de 29/03/1990),
enquanto contemporâneas, são posteriores à promulgação da Constituição
Federal de 1988 e exemplificam, concretamente, o viés transformador
promovido pela nova ordem constitucional no hodierno Estado brasileiro.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A CLÁUSULA LEGAL DE IMPE-


NHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA

O antecedente histórico mais significativo, que primeiro normatizou e


disciplinou a proteção do bem de moradia familiar, foi o “Homestead Exemption
Act”4, uma lei texana, datada de 26 de janeiro de 1838, cujo objetivo era
proteger a propriedade dos pequenos produtores rurais dos agentes financeiros,
evitando-se, assim, a desocupação territorial daquele ente federativo.

Como leciona o professor ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO5, “teve


esse diploma legislativo, principalmente, em vista fixar o homem à terra,
objetivando o desenvolvimento de uma civilização, cujos cidadãos tivessem
o mínimo necessário a uma vida decente e humana”.

3 “A impenhorabilidade do bem de família não se limita apenas ao imóvel que sirva como residência
do núcleo familiar. Os princípios da dignidade humana e da proteção à família servem, in casu, como
supedâneo à interpretação da Lei n.º 8.009/90” (AgRg no Ag 1.249.531/DF, Rel. Ministro SIDNEI
BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/11/2010, DJe 07/12/2010).
4 Só em 1839, em 26 de janeiro, como visto, foi promulgada a Lei do Homestead, neste teor: “De e após
a passagem desta lei, será reservado a todo cidadão ou chefe de uma família, nesta República, livre e
independente do poder de um mandado de fieri facias ou outra execução, emitido por qualquer Corte de
jurisdição competente, 50 acres de terra, ou um terreno na cidade, incluindo o bem de família dele ou dela,
e melhorias que não excedam a 500 dólares, em valor, todo mobiliário e utensílios domésticos, provendo
para que não excedam o valor de 200 dólares, todos os instrumentos (utensílios, ferramentas) de lavoura
(providenciando para que não excedam a 50 dólares), todas ferramentas, aparatos e livros pertencentes ao
comércio ou profissão de qualquer cidadão, cinco vacas de leite, uma junta de bois para o trabalho ou um
cavalo, vinte porcos e provisões para um ano; e todas as leis ou partes delas que contradigam ou se oponham
aos preceitos deste ato são ineficazes perante ele. Que seja providenciado que a edição deste ato não interfira
com os contratos entre as partes, feitos até agora (Digest of the Laws of Texas § 3.798)” (AZEVEDO, p. 14)
5 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de família internacional: necessidade de unificação. Revista dos
Tribunais, RT, São Paulo, v. 89, n. 782, p. 11-19, dez. 2000.
Fernando Natal Batista 159

No Brasil, a proteção ao bem de família foi introduzida e regulada


pelo Código Civil de 1916 (artigos 70 a 73), que concedida às pessoas
isentas de dívidas o direito de declarar, perante o Cartório de Registro
de Imóveis, a destinação exclusiva de seu imóvel para seu domicilio e
de sua família (“bem de família voluntário”).

Para que fosse constituído por escritura pública, o bem de família


voluntário deveria atender requisitos cumulativamente traçados e
taxativamente definidos em lei, quais sejam: a) a propriedade do bem por parte
do instituidor; b) a declaração de destinação específica de moradia da família;
e, c) a solvabilidade do instituidor. Ausente qualquer um desses requisitos
específicos, não estaria o imóvel protegido pela cláusula de impenhorabilidade,
podendo, portanto, ser alienado em processos executivos.

Posteriormente à promulgação da Constituição Federal de 1988,


houve a publicação da Lei n.º 8.009/1990, pelo legislador ordinário,
no intuito de assegurar à família brasileira (art. 226 da CF/1988) uma
existência digna (art. 1º, inc. III, da CF/1988), por meio da qual um único
imóvel residencial (casal ou entidade familiar) é, em regra, considerado
impenhorável, vale dizer: não responderá por qualquer tipo de dívida,
salvo as exceções prescritas na mencionada lei.

O STJ, nesse sentido, à luz dos aludidos princípios constitucionais


fundamentais, firmou o entendimento de que a impenhorabilidade do bem
de família legal é irrenunciável pela vontade do seu titular por se tratar de
um princípio relativo às questões de ordem pública, porquanto o escopo da
proteção ao bem de família é a proteção da própria entidade familiar e não
do patrimônio do devedor em face de suas dívidas, devendo as exceções à
impenhorabilidade ser interpretadas restritivamente à hipótese prevista em
lei (AgRg no Ag 1.355.749/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA
TURMA, julgado em 26/05/2015, DJe 01/06/2015).

FREDDIE DIDIER JUNIOR6 recorda, a propósito, que:

A CF/88 ampliou o conceito de entidade familiar, para abranger a


família monoparental e a união estável. Mas deve considerar-se aí
compreendidos os irmãos que vivem juntos e a união homossexual.
Até o solteiro está abrangido pela impenhorabilidade se reside só no
imóvel – isso, em nome da proteção à dignidade da pessoa humana e
da moradia digna. Na verdade, houve uma mudança de compreensão

6 DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Execução. v. 5, JusPodivum: Salvador, 2009. p. 567.
160 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 179-172, jul./set. 2017

acerca do sentido de proteção: de proteção da família à proteção da


moradia, indispensável à preservação da dignidade da pessoa humana.

Cônscio desta mudança semântica da proteção legal, o Superior


Tribunal de Justiça, depois de reiterados julgados7, editou a Súmula 364,
segundo a qual “o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange
também o imóvel pertencente às pessoas solteiras, separadas e viúvas”.

A Lei n.º 8.009/1990 também protegeu o bem familiar rural8 (art.


4º, § 2º), mormente porque a proteção da pequena propriedade agrícola9
ganhou, com o advento da nova Carta Política, status constitucional, tendo
sido estabelecido, no capítulo voltado aos direitos fundamentais, que a
referida propriedade, “assim definida em lei, desde que trabalhada pela
família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes
de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o
seu desenvolvimento” (art. 5°, inc. XXVI, da CF/1988).

A impenhorabilidade do bem de família, vale lembrar, é oponível em


qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de
outra natureza, salvo quando tiver sido adquirido com produto de crime ou
para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização
ou perdimento de bens (AgRg no REsp 1.479.146/CE, Rel. Ministro JORGE
MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 10/03/2016, DJe 16/03/2016).

O advento do novo Código de Processo Civil (Lei n.º 13.105/2015)


não promoveu alterações marcantes ou significativas na semântica da Lei
n.º 8.009/1990, muito embora como registre o professor JOSÉ MIGUEL

7 “A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família.
Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia” (EREsp
182.223/SP, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Rel. p/ Acórdão Ministro HUMBERTO
GOMES DE BARROS, CORTE ESPECIAL, julgado em 06/02/2002, DJ 07/04/2003, p. 209).
8 “A jurisprudência desta Corte Superior é assente no sentido de que o imóvel que se enquadra como pequena
propriedade rural, indispensável à sobrevivência do agricultor e de sua família, é impenhorável, consoante
disposto no parágrafo 2º do artigo 4º da Lei n. 8.009/1990, norma cogente e de ordem pública que tem por
escopo a proteção do bem de família, calcado no direito fundamental à moradia” (EDcl nos EDcl no AgRg
no AREsp 222.936/SP, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, DJe de 26/02/2014).
9 “O bem de família agrário é direito fundamental da família rurícola, sendo núcleo intangível -
cláusula pétrea -, que restringe, justamente em razão da sua finalidade de preservação da identidade
constitucional, uma garantia mínima de proteção à pequena propriedade rural, de um patrimônio
mínimo necessário à manutenção e à sobrevivência da família” (REsp 1.408.152/PR, Rel. Ministro LUIS
FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 01/12/2016, DJe 02/02/2017).
Fernando Natal Batista 161

GARCIA MEDINA10, a comissão especial que tratava da reforma do


Código de Processo Civil, na Câmara dos Deputados, tenha pretendido
flexibilizar a impenhorabilidade do bem de família, com a estipulação
de um valor máximo para os imóveis impenhoráveis, de forma que bens
acima desse montante poderiam ser penhorados até o limite estipulado e
o excedente seria utilizado para pagar o débito.

A proposta, todavia, não restou frutífera.

Cumpre destacar, a propósito, que recentemente o Superior Tribunal


de Justiça se deparou com a hipótese do bem de família suntuoso ou luxuoso,
tendo firmado a tese, ainda que por maioria, de que:

A lei não prevê qualquer restrição à garantia do imóvel como bem


de família relativamente ao seu valor, tampouco estabelece regime
jurídico distinto no que tange à impenhorabilidade, ou seja, os imóveis
residenciais de alto padrão ou de luxo não estão excluídos, em razão do
seu valor econômico, da proteção conferida aos bens de família consoante
os ditames da Lei 8009/90 (REsp 1.351.571/SP, Rel. Ministro LUIS
FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro MARCO BUZZI,
QUARTA TURMA, julgado em 27/09/2016, DJe 11/11/2016)11.

O voto vencido, por sua vez, na diretriz defendida pela comissão


especial do Novo Código de Processo Civil, consignou que não se
pretendia naquela oportunidade firmar a tese de que os bens de alto
valor, ainda que sirvam de moradia ao devedor e sua família, serão
sempre penhoráveis, mas, apenas, possibilitar a penhora de percentual
do elevado valor econômico desses bens, viabilizando a coexistência de
princípios de igual importância: a preservação da dignidade do devedor
e, também, a satisfação do crédito do credor, tudo à luz de um juízo de
ponderação, calcado pelo respeito à ordem jurídica e pela observância
dos critérios da proporcionalidade e da razoabilidade.

10 Disponível em: <https://professormedina.com/2011/11/28/impenhorabilidade-do-bem-de-familia-no-


novo-cpc-e-na-jurisprudencia/>. Acesso em: 10 mar. 2017.
11 No mesmo sentido, confira-se: “Os imóveis residenciais de alto padrão ou de luxo não estão excluídos, em razão
do seu valor econômico, da proteção conferida aos bens de família pela Lei nº 8.009/90” (REsp 1.440.786/SP, Rel.
Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/05/2014, DJe 27/06/2014) e “Para que
seja reconhecida a impenhorabilidade do bem de família, de acordo com o artigo 1º, da Lei n° 8.009/90, basta que
o imóvel sirva de residência para a família do devedor, sendo irrelevante o valor do bem (REsp 1.178.469/SP, Rel.
Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/11/2010, DJe 10/12/2010)”.
162 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 179-172, jul./set. 2017

Ora, como restou asseverado, o mencionado diploma institui a


proteção legal do bem de família como instrumento de tutela do direito
fundamental à moradia da família e, portanto, indispensável à composição
de um mínimo existencial para a vida digna, apesar de que a referida
impenhorabilidade não seja absoluta, ela somente sofre temperamentos,
notadamente, com relação às regras de exceção previstas pela lei de
regência, conforme o que restou definido, inclusive, no REsp 1.363.368/
MS12, julgado no rito dos recursos repetitivos.

A impenhorabilidade do imóvel de família é, portanto, relativa,


inexistindo, por conseguinte, em nosso ordenamento valores absolutos,
tanto é que o regramento normativo comporta expressamente exceções
(art. 3.º da Lei n.º 8.009/1990):

a) pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado


à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e
acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;

b) pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos,


sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre
união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos
responderão pela dívida;

c) para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e


contribuições devidas em função do imóvel familiar;

d) para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia


real pelo casal ou pela entidade familiar;

e) por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução


de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização
ou perdimento de bens; e,

f) por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de


locação.

As exceções à regra geral da impenhorabilidade do bem de família,


destaque-se, segundo a exegese firmada pelo STJ, são previstas de forma

12 REsp 1.363.368/MS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em
12/11/2014, DJe 21/11/2014.
Fernando Natal Batista 163

taxativa, sendo insuscetíveis de interpretação extensiva13 (REsp 1.074.838/


SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado
em 23/10/2012, DJe 30/10/2012).

2 CONSIDERAÇÕES JURISPRUDENCIAIS SOBRE A CLÁUSULA LEGAL DE


IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA À LUZ DO PRINCÍPIO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CARACTERÍSTICAS E MITIGAÇÕES

A impenhorabilidade do bem de família legal, instituída pela Lei n.º


8.009/1990, visa, sobretudo, preservar o devedor (e, eventualmente, os seus
familiares que com ele residam) do constrangimento do despejo que o relegue
ao desabrigo, traduzindo-se em um dos maiores marcos e instrumentos de
tutela do direito constitucional fundamental à implementação do direito à
moradia e, portanto, indispensável à composição de um patrimônio mínimo
existencial para vida digna, não se podendo olvidar, para tanto, que o princípio
da dignidade da pessoa humana constituiu um dos pilares da república
brasileira (art. 1º da CF/1988), razão pela qual deve nortear a exegese
realizada pelos tribunais pátrios14 na aplicação do direito infraconstitucional.

O imóvel residencial da família, à luz do direito à moradia e da


dignidade da pessoa humana, é muito mais do que apenas uma propriedade
patrimonial, é inegavelmente um direito fundamental que deve ser protegido
pela atividade jurisdicional estatal, concretizando, desse modo, a tutela
constitucional prevista em nossa Carta Política.

Assevera, para tanto, INGO SARLET15 que:

Tendo em conta que no caso do direito à moradia a íntima e indissociável


vinculação com a dignidade da pessoa humana resulta inequívoca,
pelo menos no âmbito daquilo que se tem designado de um direito às
condições materiais mínimas para uma existência digna, parece-nos
13 “A ressalva prevista no art. 3º, inciso V, da Lei 8.009/90, não alcança a hipótese dos autos, limitando-se,
unicamente, à execução hipotecária, não podendo benefício da impenhorabilidade ser afastado para a execução
de outras dívidas. Por tratar-se de norma de ordem pública, que visa a proteção da entidade familiar, e não
do devedor, a sua interpretação há de ser restritiva à hipótese contida na norma” (REsp 1.115.265/RS, Rel.
Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).
14 “A impenhorabilidade do bem de família não se limita apenas ao imóvel que sirva como residência do
núcleo familiar. Os Princípios da Dignidade Humana e da Proteção à família servem, in casu, como
supedâneo à interpretação da Lei n. 8.009/90” (AgRg no Ag 1.249.531/DF, Rel. Ministro SIDNEI
BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/11/2010, DJe 07/12/2010).
15 SARLET, Ingo Wolfang. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas Anotações a
Respeito de seu Contexto, Conteúdo e Possível Eficácia. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP,
Belo Horizonte, ano 1, n. 02, p. 65-119, jul./set. 2003.
164 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 179-172, jul./set. 2017

dispensável, dadas as proporções deste estudo, avançar ainda mais na


sua fundamentação. Aliás, provavelmente é ao direito de moradia – bem
mais do que ao direito de propriedade – que melhor se ajusta a conhecida
frase de Hegel, ao sustentar – numa tradução livre – que a propriedade
constitui (também) o espaço de liberdade da pessoa (Sphäre ihrer Freiheit).
Com efeito, sem um lugar adequado para proteger-se a si próprio e sua
família contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade
e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo
de saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá assegurada a sua
dignidade, aliás, por vezes não terá sequer assegurado o direito à própria
existência física e, portanto, o seu direito à vida. (grifo do autor)

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, aliás, destaca-se,


corrobora esse entendimento, tendo, por várias vezes, consignado que a
interpretação do art. 1º da Lei n. 8.009/90 não se limita ao resguardo da
família, mas sim, ao direito fundamental de moradia previsto na Constituição
da República, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana
(REsp 980.300/PE, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES,
SEGUNDA TURMA, julgado em 21/10/2008, DJe 21/11/2008).

É inegável a influência do princípio da dignidade da pessoa humana na


evolução jurisprudencial do Tribunal de Cidadania que, assim, contribuiu para
o reconhecimento e a concretização do movimento de constitucionalização
do direito civil ante a incidência dos direitos fundamentais nas relações
privadas, surgido após a promulgação da Carta Política de 1988, no intuito
de proteger o patrimônio existencial digno do indivíduo nas relações civis,
em detrimento, sobretudo, dos direitos creditórios.

Nesse sentido, podemos citar:

REsp 715.259/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA


TURMA, julgado em 05/08/2010, DJe 09/09/2010; REsp 828.375/RS,
Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em
16/12/2008, DJe 17/02/2009; REsp 621.399/RS, Rel. Ministro LUIZ
FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/04/2005, DJ 20/02/2006.

Outrossim, deve ser ressalvado que a impenhorabilidade do bem


de família legal, dada a sua especial relevância no ordenamento jurídico,
pode ser alegada a qualquer tempo até mesmo por meio de simples petição
nos autos da execução, todavia, apesar de a impenhorabilidade do bem de
família constituir matéria de ordem pública, que comporta arguição em
qualquer tempo ou fase do processo, o pronunciamento judicial em sentido
Fernando Natal Batista 165

negativo provoca a preclusão (EDcl nos EDcl no REsp 1.083.134/PR, Rel.


Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado
em 20/10/2015, DJe 28/10/2015).

Além disso, o Superior Tribunal de Justiça16 entende também que


a proteção conferida ao instituto de bem de família é princípio de ordem
pública e deve ser interpretado de modo a conferir máxima efetividade
ao direito social à moradia (art. 6° da CF/1988) e, ainda, à norma que
impõe ao Estado o dever de proteger a família, base da sociedade (art.
226 da CF/1988), não se admitindo, portanto, nem mesmo a renúncia17
por seu titular do benefício conferido pela lei, sendo possível, inclusive, a
desconstituição de penhora anteriormente feita.

É, todavia, admitida a penhorabilidade do bem de família dado em


garantia real hipotecária18 quando houver proveito para a entidade familiar,
sendo razoável, inclusive, presumir que a oneração do bem em favor de
empresa familiar beneficiou diretamente a entidade familiar.

Neste cenário, consoante se percebe, o STJ entende que deve


prevalecer a boa-fé objetiva19, nas hipóteses em que o proprietário do imóvel
o oferece livre e conscientemente em garantia do negócio empresarial, ainda
que ciente que se tratava de um bem de família, renunciando ao seu direito
à impenhorabilidade, não podendo alegar, assim, sua invalidade para lesar
terceiros de um ato voluntário (vedação de venire contra factum proprium).

O ordenamento jurídico, à luz da teoria dos atos próprios, protege


a parte contra aquela que pretende exercer uma faculdade jurídica em
contradição com o comportamento voluntário assumido anteriormente,
devendo-se prevalecer, nas relações privadas, o princípio da boa-fé.
16 (AgRg no AREsp 537.034/MS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em
26/08/2014, DJe 01/10/2014)
17 “A Lei n. 8.009/1990 é norma cogente e de ordem pública, por isso não remanesce espaço para renúncia à
proteção legal quanto à impenhorabilidade do bem de família” (REsp 1.180.873/RS, Rel. Ministro LUIS
FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 17/09/2015, DJe 26/10/2015).
18 “É indiscutível a possibilidade de se onerar o bem de família, oferecendo-o em garantia real hipotecária.
A par da especial proteção conferida por lei ao instituto, a opção de fazê-lo está inserida no âmbito
de liberdade e disponibilidade que detém o proprietário. Como tal, é baliza a ser considerada na
interpretação da hipótese de exceção” (REsp 1.413.717/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI,
TERCEIRA TURMA, julgado em 21/11/2013, DJe 29/11/2013).
19 “A impenhorabilidade resultante do art. 1º da Lei nº 8.009, de 1990, pode ser objeto de renúncia válida
em situações excepcionais; prevalência do princípio da boa-fé objetiva. Recurso especial não conhecido”
(REsp 554.622/RS, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/11/2005,
DJ 01/02/2006, p. 527).
166 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 179-172, jul./set. 2017

Com efeito, em tais situações, em que se cria expectativa por uma


das partes em razão de conduta indicativa de determinado comportamento
futuro e manifestado, deve ser repudiado e afastado o ato contrário ao
previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte.

Nesse sentido, inclusive, é a lição do professor GUSTAVO


TEPEDINO:20:

No que toca à sua terceira função, o princípio da boa-fé combina-se


com a teoria do abuso do direito para impor restrições ao exercício de
direitos subjetivos. Nesse sentido, a boa-fé funciona como parâmetro
de valoração do comportamento dos contratantes com a finalidade de
proscrever aqueles exercícios considerados arbitrários e irregulares (v.
comentário ao art. 187). Nesses casos, o comportamento formalmente
lícito de um dos contratantes não resiste à avaliação de sua conformidade
com a boa-fé e, como tal, deixa de merecer a tutela do ordenamento
jurídico. Em tal contexto, faz-se referência ao princípio segundo o
qual nemo potest venire contra factum proprium, ou seja, a ninguém é
dado vir contra o próprio ato. Em sua acepção contemporânea, este
princípio veda que alguém pratique uma conduta em contradição com
sua conduta anterior, lesando a legítima confiança de quem acreditara
na preservação daquele comportamento inicial. (grifo do autor)

Tal conclusão, além de lógica, também é revelada no magistério de


FREDIE DIDIER JUNIOR21, para quem:

No sistema das invalidades processuais, vige a regra que proíbe o


comportamento contraditório (vedação ao venire contra factum proprium).
Considera-se ilícito o comportamento contraditório, por ofender os
princípios da lealdade processual (princípio da confiança ou proteção)
e da boa-fé objetiva.

A matéria relativa ao bem de família ofertado não é, porém,


imune a críticas.

O mestre FLÁVIO TARTUCE22, em artigo doutrinário, defende a


prevalência do direito à moradia sobre a boa-fé que, ao seu sentir, também
20 TEPEDINO, Gustavo. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. p. 20.
21 DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de
Conhecimento. v. 1, Salvador: JusPodivum, 2009. p. 269.
22 TARTUCE, Flávio. O bem de família ofertado. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 11, n. 43, p. 223-246, 2008.
Fernando Natal Batista 167

serve para afastar o argumento de aplicação da vedação do comportamento


contraditório (venire contra factum proprium), “a partir da ideia de ponderação
ou pesagem, deve entender que o primeiro direito tem prioridade e prevalência
sobre a boa-fé objetiva”.

Percebe-se, nitidamente, que o movimento de constitucionalização do


direito civil (incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas), surgido
após a promulgação da Carta Política de 1988, tem como corolário norteador
o princípio da dignidade da pessoa humana que, inclusive, serve como mola
propulsora na aplicação das normas constitucionais protetivas do indivíduo
nas relações privadas, mormente no tema relativo ao bem de família ofertado.

Existe, ainda, outra hipótese que o Superior Tribunal de Justiça


admite excepcionalmente uma interpretação extensiva às exceções legais:
a inadimplência do contrato de promessa de compra e venda de imóvel23.

Nesse particular, o STJ, ao apreciar a manutenção de uma penhora de


um lote, no qual foi edificada a residência do executado, ordenada em sede
de execução de título extrajudicial (contrato de compromisso de compra
e venda), firmou o entendimento de que aquele que contrai dívida para
adquirir terreno sobre o qual edifica, com recursos próprios, sua moradia,
não pode invocar a proteção do bem de família para impedir a penhora
desse imóvel residencial em caso de inadimplemento da dívida (AgInt no
REsp 1.448.796/PR, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE,
TERCEIRA TURMA, julgado em 10/11/2016, DJe 25/11/2016).

Idêntico infortúnio atinge o fiador do contrato de locação (art. 3º,


inc. VII, da Lei nº 8.009/1990, tendo sido essa exceção legal, inclusive,
o cerne da Súmula 549 do STJ (“É válida a penhora de bem de família
pertencente a fiador de contrato de locação”).

O Tribunal da Cidadania firmou o referido verbete sumular


no julgamento do REsp 1.363.368/MS24 , julgado sob o rito dos

23 “A exceção prevista no art. 3º, II, da Lei n. 8.009/90 - possibilidade de se penhorar bem de família - deve
ser estendida também aos casos em que o proprietário firma contrato de promessa de compra e venda do
imóvel e, após receber parte do preço ajustado, se recusa a adimplir com as obrigações avençadas ou a
restituir o numerário recebido, e não possui outro bem passível de assegurar o juízo da execução” (AgRg
no AREsp 806.099/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado
em 08/03/2016, DJe 14/03/2016).
24 “Para fins do art. 543-C do CPC: É legítima a penhora de apontado bem de família pertencente a fiador de
contrato de locação, ante o que dispõe o art. 3º, inciso VII, da Lei n. 8.009/1990” (REsp 1.363.368/MS, Rel.
Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 12/11/2014, DJe 21/11/2014).
168 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 179-172, jul./set. 2017

recursos repetitivos, cuja premissa central foi o argumento de que os


precedentes da Casa firmaram o entendimento uníssono de que a Lei n.º
8.009/1990 estabelece, expressamente, as hipóteses de exceção à regra da
impenhorabilidade do bem de família, o que impede sua aplicação mediante
interpretação extensiva, mormente porque o seu art. 3.º, inc. VII, excetua
a obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação, isto
é, autoriza a constrição de imóvel de propriedade do fiador de contrato
locatício, ainda que considerado bem de família.

No caso do bem de família rural, percebe-se que a Corte Superior


também tem abrandado o rigor da cláusula de impenhorabilidade, admitindo-
se casuisticamente sua mitigação, desde que: a) a propriedade rural tenha
extensão suficiente para ser dividida; e, ainda, b) a comprovação de que a
totalidade de sua área não seja utilizada para subsistência da unidade familiar
(AgRg nos EDcl no AREsp 559.836/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO,
TERCEIRA TURMA, julgado em 12/02/2015, DJe 20/02/2015).

Permite-se, também, a penhorabilidade do bem de família que


retorna ao patrimônio do devedor por força do reconhecimento de fraude
à execução (AgInt no REsp 1.568.157/SP, Rel. Ministro RICARDO
VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/09/2016,
DJe 03/10/2016). Isso porque não se deve prestigiar a má-fé25 ou o abuso
de direito empreendidos pelo executado, devendo prevalecer a escolha
decisória estatal, obtida após um juízo de ponderação de valores abertos,
pela incidência do princípio da boa-fé objetiva que, ressalte-se, rege
indistintamente todas as relações particulares, pois, como dizia o saudoso
jurista CLÓVIS BEVILÁQUA26, “não é ao lado do que anda de má-fé
que se deve colocar o direito; sua função é proteger a atividade humana
orientada pela mora, ou pelo menos, a ela não oposta”.

No que pertine às dívidas de natureza alimentícia, a Corte Superior


tem adotado um posicionamento mais rígido, autorizando apenas a sua
inoponibilidade nos casos de pensão alimentícia27. Exemplificadamente,
25 “O bem que retorna ao patrimônio do devedor, por força de reconhecimento de fraude à execução, não
goza da proteção da impenhorabilidade disposta na Lei nº 8.009/1990, sob pena de prestigiar-se a má-fé
do executado” (AgRg no REsp 1085381/SP, Rel. Ministro PAULO GALLOTTI, SEXTA TURMA,
julgado em 10/03/2009, DJe 30/03/2009).
26 Apud BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 123.495/MG. Relator: Ministro SALVIO DE
FIGUEIREDO TEIXEIRA. Julgado em 23/09/1998 e publicado no DJ de 18/12/1998, p. 360.
27 “A pensão alimentícia está prevista expressamente no art. 3º, III, da Lei n. 8.009/1990 como hipótese
de exceção à impenhorabilidade do bem de família, sendo irrelevante a origem dessa prestação, se
decorrente de relação familiar ou de ato ilícito” (AgInt no REsp 1.619.189/SP, Rel. Ministro MARCO
AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/10/2016, DJe 10/11/2016).
Fernando Natal Batista 169

pode-se citar o caso em que o STJ ao examinar ação executiva de crédito


resultante de contrato de honorários advocatícios (art. 24 da Lei n.
8.906/1994), de natureza alimentar28, deixou assente que a hipótese não
se assemelha à pensão alimentícia, de sorte que não se encontra entre
as exceções à benesse da Lei n. 8.009/1990, de modo a preservar-se a
impenhorabilidade do bem de família (REsp 1.182.108/MS, Rel. Ministro
ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em
12/04/2011, DJe 25/04/2011).

Idêntica postura restritiva é adotada quanto à exceção prevista no


art. 3.º, inc. IV, da Lei n.º 8.009/1990 (para cobrança de impostos, predial
ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar),
tendo sido afastada pelo Superior Tribunal de Justiça a possibilidade de
penhora do bem de família na hipótese de cobrança de taxas de manutenção
de condomínio de fato, criadas por associações de moradores (AgInt
no REsp 1.321.446/SP, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI,
QUARTA TURMA, julgado em 13/09/2016, DJe 11/10/2016).

Igualmente, no caso de locação do único bem familiar, o STJ pacificou


a orientação de que não descaracteriza automaticamente o instituto do
bem de família, previsto na Lei 8.009/1990, a constatação de que o grupo
familiar não reside no único imóvel de sua propriedade, razão pela qual o
aluguel do único imóvel do casal não o desconfigura como bem de família
(REsp 1.616.475/PE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA
TURMA, julgado em 15/09/2016, DJe 11/10/2016).

O estudo jurisprudencial da Lei n.º 8.009/1990, ora empreendido,


revela nitidamente que o Superior Tribunal de Justiça tem realizado a
efetivação e proteção da cláusula legal da impenhorabilidade do bem de
família à luz dos direitos fundamentais, implementando, nas relações
jurídicas regidas pelo direito privado, o conteúdo promocional do direito
social consagrado na atual Constituição da República Federal do Brasil.

3 CONCLUSÃO

Como visto ao longo do presente trabalho, a impenhorabilidade


do imóvel residencial (direito à moradia) existe, em nosso ordenamento
jurídico, desde o Código Civil de 1916, sob a denominação de bem de
28 “Os honorários advocatícios, tanto os contratuais quanto os sucumbenciais, tem natureza alimentar e
destinam-se ao sustento do advogado e de sua família, portanto são insuscetíveis de penhora (art. 649, IV
do CPC)” (AgRg no REsp 1.557.137/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA
TURMA, julgado em 27/10/2015, DJe 09/11/2015).
170 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 179-172, jul./set. 2017

família voluntário (CC/1916, art. 70), tendo sido aperfeiçoada pela Lei n.º
8.009/1990 e mantida pelo vigente Código Civilista (art. 1.711), tornando-
se, após gradativa interpretação pretoriana, fundamental para a efetivação
do princípio da dignidade da pessoa humana, em atendimento ao escopo
sociológico consagrado na atual Constituição da República.

O Superior Tribunal de Justiça, ao realizar a interpretação sistêmica


da Lei n.º 8.009/1990, à luz do preceito constitucional da garantia à vida
digna, contribuiu para a evolução hermenêutica do instituto jurídico do
bem de família legal, tendo exercido, por exemplo, papel de destaque na
ampliação do conceito da entidade familiar (Súmula 364 do STJ), acabando
por operar, na verdade, a mudança do escopo da proteção do bem da família
para a preservação da dignidade da pessoa humana, uma vez que passou
a tutelar também os solteiros, os separados e os viúvos.

Observa-se, ainda, a partir da análise jurisprudencial do bem de família


legal, conforme se depreende dos julgados citados no transcorrer deste texto,
que o Tribunal da Cidadania contribuiu ativamente para a constitucionalização
do direito civil (incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas),
consolidando, em inúmeros julgamentos, o perfil garantista e protetivo do
patrimônio existencial digno do indivíduo nas relações civis, em detrimento
dos direitos creditórios, tendo como corolários norteadores, para tanto, os
princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à família e da moradia.

É verdade, ainda, que foram reconhecidas atenuações à prevalência


dos retrocitados preceitos constitucionais – cite-se, por exemplo: a oneração
do bem de família oferecido como garantia real hipotecária29 -, o que, diga-se
de passagem, é próprio e natural do ordenamento constitucional, pois não há
direitos absolutos.

O importante é deixar claro que o Superior Tribunal de Justiça, como


visto, não está alheio às pretensões de mudanças, embora adote uma postura
garantista em relação ao tema, até porque o direito, enquanto ciência social, está
em constante modificação e evolução, de modo que o ineditismo das discussões na
consolidação jurisprudencial sempre será bem-vindo, pois favorece a maturação
de conceitos já firmados e, também, contribui para reavivar os institutos jurídicos
de modo a evitar o seu anacrônico engessamento, aproximando, assim, o Poder
Judiciário da sociedade civil e da prestação jurisdicional justa.
29 “Nos termos do art. 3º, V, da Lei n. 8.009/90, ao imóvel dado em garantia hipotecária não se aplica a
impenhorabilidade do bem de família na hipótese de dívida constituída em favor da entidade familiar”
(REsp 1.455.554/RN, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado
em 14/06/2016, DJe 16/06/2016).
Fernando Natal Batista 171

REFERÊNCIAS

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Tribunais: RT, São Paulo, v. 89, n. 782, p. 11-19, dez. 2000.

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outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 2015.

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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm >.
Acesso em: 10 mar. 2017.

DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do


Processo e Processo de Conhecimento. v. 1. Salvador: JusPodivm, 2009.

______. Curso de Direito Processual Civil: Execução. v. 5. Salvador: JusPodivm, 2009.

MEDINA, José Miguel Garcia. Impenhorabilidade do bem de família no


novo CPC e na jurisprudência. Disponível em: <https://professormedina.
com/2011/11/28/impenhorabilidade-do-bem-de-familia-no-novo-cpc-e-na-
jurisprudencia/>. Acesso em: 10 mar. 2017.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil –


volume único. Salvador: JusPodivm, 2016.

SARLET, Ingo Wolfang. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição:


Algumas Anotações a Respeito de seu Contexto, Conteúdo e Possível Eficácia.
Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 1, n. 02, p.
65-119, jul./set. 2003.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Agravo Interno no Recurso Especial


1.448.796/PR. Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado
em 10/11/2016, publicado no DJe 25/11/2016.

______. Agravo Interno no Recurso Especial 1.321.446/SP. Rel.ª Ministra Maria


Isabel Gallotti. Quarta Turma, julgado em 13/09/2016, publicado no DJe
11/10/2016.
______. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 1.355.749/SP. Rel.
Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 26/05/2015, publicado no
DJe em 01/06/2015).
______. Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Agravo em Recurso
Especial 559.836/SP. Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado
em 12/02/2015, publicado no DJe 20/02/2015.
172 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 179-172, jul./set. 2017

______. Agravo Regimental no Recurso Especial 1.479.146/CE. Rel. Ministro


Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 10/03/2016, publicado no DJe
16/03/2016.
______. Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração no Recurso
Especial 1.083.134/PR. Rel.ª Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma,
julgado em 20/10/2015, publicado no DJe 28/10/2015.
______. Recurso Especial n.º 123.495/MG. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo
Teixeira, julgado em 23/09/1998, publicado no DJ 18/12/1998.
______. Recurso Especial 980.300/PE. Rel. Ministro Mauro Campbell
Marques, Segunda Turma, julgado em 21/10/2008, publicado no DJe
21/11/2008.
______. Recurso Especial 1.074.838/SP. Rel. Ministro Luis Felipe Salomão,
Quarta Turma, julgado em 23/10/2012, publicado no DJe 30/10/2012.
______. Recurso Especial 1.182.108/MS. Rel. Ministro Aldir Passarinho
Junior, Quarta Turma, julgado em 12/04/2011, publicado no DJe 25/04/2011.
______. Recurso Especial 1.351.571/SP. Rel. Ministro Luis Felipe Salomão,
Rel. p/ Acórdão Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em
27/09/2016, publicado no DJe 11/11/2016.
______. Recurso Especial 1.568.157/SP. Rel. Ministro Ricardo Villas
Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 20/09/2016, publicado no DJe
03/10/2016.
______. Recurso Especial 1.616.475/PE. Rel. Ministro Herman Benjamin,
Segunda Turma, julgado em 15/09/2016, publicado no DJe 11/10/2016.
TARTUCE, Flávio. O bem de família ofertado. Revista da EMERJ, Rio de
Janeiro, v. 11, n. 43, p. 223-246, 2008.
TEPEDINO, Gustavo. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da
República. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
Recebido em: 21/02/2017
Aprovado em: 05/05/2017

MEIO AMBIENTE E REDUÇÃO DAS


DESIGUALDADES E DA POBREZA
ENVIRONMENT AND REDUCTION OF INEQUALITIES AND
POVERTY

Lisiane Aguiar Henrique


Mestranda em Direito Ambiental, Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável
na Escola Superior Dom Helder Câmara, ESDHC
Graduada em Direito e pós graduada em Direito Público.
Analista Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região

Sébastien Kiwonghi Bizawu


Doutor em Direito Público - Direito internacional pela PUC-MG
Mestre em Direito Internacional pela PUC MG. Especialização em Direito Civil e
Direito do Processo Civil, em Direito do Trabalho e Previdenciário
Pró-Reitor do Programa de Pós-Graduação em Direito na Escola Superior Dom
Hélder Câmara em BH-MG, advogado.
174 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. -0, jul./set. 2017

SUMÁRIO: Introdução; 1 Complexidade ambiental


e sustentabilidade; 2 Problemática social: geração e
produto; 3 Miséria e qualidade de vida; 4 Participação
autônoma ; 5 Considerações finais; Referencias.

RESUMO: O artigo discorre sobre a questão social da pobreza e


da desigualdade, a partir da percepção do próprio meio ambiente e
seus elementos, interações e relações. Numa abordagem solidária, o
entrelaçamento de todos os seres, povos e gerações, na preservação da
existência sadia, traz a concepção da sustentabilidade. A complexidade
ambiental que se verá abarca tanto as mudanças ecossistêmicas quanto
os desafios sociais, não podendo haver negligência ambiental ou
miserabilidade consentida. Os problemas socioambientais são resultado
de práticas depredadoras lucrativas, à custa dos sistemas naturais e
sociais. Intrinsecamente ao meio ambiente, surge a problemática social,
na verdade, sob duas vertentes, aquela que no processo de escolha gera a
degradação ambiental e aquela que lhe é produto. Utilizando-se o método
dedutivo, com ênfase na pesquisa exploratória, ver-se-á a preocupação de
se devolver a dignidade aos empobrecidos, excluídos, famélicos, a partir
do momento em que se vê a necessidade de se revivificar os direitos
humanos a partir do próprio direito ambiental. A qualidade de vida digna,
abordada na temática da pobreza, pressupõe repensar valores, inclusive,
para além do fisicalismo estritamente material, trazendo a atenção para
a autonomia, integração, diversidade e respeitabilidade, nos processos
de relações sociais. O desafio é enfrentar a desigualdade possibilitando
a participação dos marginalizados nas discussões e propalando uma
cultura ambiental.

PALAVRAS -CHAVE: Meio Ambiente. Problemática Social.


Desigualdade. Pobreza. Sustentabilidade. Participação. Autonomia.

ABSTRACT: The article discusses the social issue of poverty and


inequality, from the perception of the environment and its elements,
interactions and relationships. In a joint approach, the intertwining of
all beings, peoples and generations, preserving the healthy existence,
brings the concept of sustainability. The environmental complexity
that will be seen embraces both the ecosystem changes and the social
challenges and there can be no environmental negligence or wretchedness
consented. The environmental problems are the result of profitable
predatory practices at the cost of natural and social systems. Intrinsic
to the environment, the social problem arises, in fact, in two parts, one
that, in the selection process, generates environmental degradation
Lisiane Aguiar Henrique
Sébastien Kiwonghi Bizawu 175

and the one that is its product. Using the deductive method, with
emphasis on exploratory research, it will be to seen the concern to
restore dignity to the impoverished, excluded and starving individuals,
from the moment you see the need to revive human rights from the
own environmental law. The quality of dignified life, addressed on
the poverty issue, requires rethinking values, even beyond the strictly
material physicalism, bringing attention to the autonomy, integration,
diversity and respectability in social relations processes. The challenge
is allowing the participation of marginalized individuals in discussions
and spreading an environmental culture.

Keywords: Environment. Social Problem. Inequality. Poverty.


Sustainability. Participation. Autonomy.

INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende analisar as temáticas da desigualdade


social e da pobreza, a partir do entendimento das várias dimensões do
meio ambiente e a interação de seus elementos. Entender a questão social
dentro do meio ambiente e repensar os direitos humanos a partir do
próprio direito ambiental.

A complexidade ambiental entrelaça elementos naturais, sociais


e imateriais. Destarte, perceber-se-á a injustiça ecológica e a injustiça
social experimentadas. A degradação é, então, socioambiental, resultado
de práticas inadequadas e modelos depredadores de crescimento, à custa
dos sistemas naturais e sociais.

A partir do estudo da complexidade ambiental, surgirá a noção de


problemática social. Esta será analisada sob duas vertentes: aquela que
gera a degradação ambiental, nos processos de escolha dos atores sociais,
e aquela que lhe é produto ou resultado, ou seja, aqueles que sofrem as
consequências planetárias.

Desafio premente na atualidade é a implantação de comportamentos


sustentáveis, a partir de uma consciência ambiental. Isso se dará a partir
de interação de saberes, fazendo surgir novos valores, a configurarem uma
cultura ecológica e democrática.

Nesse processo, o indivíduo marginalizado deve ser preservado em


sua autonomia, devendo participar socialmente das decisões, conectado
às opções de seus grupos sociais, sem estar em desvantagem em relação
176 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. -0, jul./set. 2017

aos outros. Isso é qualidade de vida até mesmo em aspectos imateriais,


de sentimento de integração e respeitabilidade.

O equilíbrio ambiental que se deve buscar pressupõe condições


de existência para todos, restando incabível as condições desumanas
experimentadas por grande parte da população.

A cultura democrática diversificada, com formas participativas


efetivas, como se verá, continua a ser o canal para a superação das exclusões
sociais. No entanto, os pobres possuem o privilégio epistemológico nos
debates que envolvem desigualdade social.

Parte-se de levantamentos e conteúdos doutrinários, num método


dedutivo, com ênfase na pesquisa exploratória, para se discorrer no presente
artigo sobre as questões da pobreza, desigualdade e meio ambiente. Obtendo
como marco teórico Enrique Leff, verificar-se-á que a questão ambiental
emerge como uma problemática social, e vice-versa. Contudo, será possível
enxergar um ambiente sadio, de forma que todos vivam num patamar de
equilíbrio, o que é, na prática, um grande desafio, com várias ambiguidades.

1 COMPLEXIDADE AMBIENTAL E SUSTENTABILIDADE

O conjunto de todos os seres naturais e de componentes artificiais e


até imateriais, entrelaçados perfeitamente, traduzem a harmonia ambiental.
Nos dizeres de COSTA1, meio ambiente é essa união “de elementos naturais
e artificiais partilhados com seres humanos e não humanos, necessários
ao desenvolvimento e sobrevivência dessas espécies de forma harmônica
e solidária”. Ou seja, meio ambiente é o espaço de vivência e existência.

É preciso perceber o meio ambiente em todas as suas dimensões,


ou seja, cultural, social, econômica, do trabalho, ecológica, geracional,
e entender suas interações, a fim de haver a necessária compreensão e
adequada proteção. Veja-se que se trata de uma complexidade e, por isso,
há muitos fatores a ameaçar a harmonia.

O equilíbrio, ao qual se busca preservar, essencial para a sadia


qualidade de vida, não se limita então ao presente e aos presentes, pois deve
ser analisado de forma histórica, pré-suposta, pós-suposta e transgeracional,

1 COSTA, Beatriz Souza. Meio ambiente como direito à vida: Brasil, Portugal, Espanha. Belo Horizonte: O
Lutador, p.57, 2010.
Lisiane Aguiar Henrique
Sébastien Kiwonghi Bizawu 177

esta assegurada no art. 225 da Constituição Federal2. É no próprio meio


ambiente, como casa comum3, que há as interações de seus componentes
e se dá as relações sobretudo sociais.

Buscando perscrutar a complexidade ambiental e suas problemáticas,


Leff4 aponta como degradação socioambiental a perda de fertilidade dos
solos e a marginalização social. A princípio poderiam parecer assuntos
diferentes, mas não o são, eis que o autor os trata como resultados das
práticas inadequadas justamente no uso do próprio solo. Quis dizer que os
padrões tecnológicos e o modelo depredador de crescimento maximizam
lucros a curto prazo, à custa dos sistemas naturais e sociais.

Historicamente, o autor relata que a relação entre sociedade e


natureza, no estudo das sociedades agrárias primitivas, tendia à conservação
da cultura, ao equilíbrio ecológico e ao intercâmbio mercantil simples, o
que determinava a divisão social e familiar do trabalho. Já nas sociedades
atuais, o enfoque está na racionalidade das práticas produtivas. O estudo
hodierno deve desembocar no desenvolvimento de metodologias para
a gestão ambiental, “delimitando unidades ambientais de produção e
manejo sustentável dos recursos naturais, que integrem os diversos
processos naturais e sociais que conformam sua estrutura e determinam
seu funcionamento produtivo”5.

Verifica-se que a natureza, em outros tempos, era vista na perspectiva


da produção. Ainda hoje o é, mas numa relação mais complexa. Disso
resultam discussões conjuntas atinentes aos recursos naturais e à
humanidade, numa questão “generalizada de alcance planetário, que
atinge todos os âmbitos da organização social, os aparelhos dos Estados
e a todos os grupos e classes sociais”6.

Boff 7 enfatiza que o desequilíbrio ecológico e social afeta todos os


ecossistemas e seres que os compõem. É impossível pensar no equilíbrio
ambiental, no combate à poluição e a outros danos, sem se pensar no
2 CR, art. 225: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
3 A Carta Encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, publicada em 24 de maio de 2015, utiliza-se dessa terminologia,
tanto que denomina seu subtítulo como “Sobre o Cuidado da Casa Comum”, tratando-se do planeta Terra.
4 LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2010.
5 Ibid., 2010, p.117.
6 Ibid., 2010, p.138.
7 BOFF, Leonardo. Ética e eco-espiritualidade. Campinas: Verus, 2003.
178 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. -0, jul./set. 2017

combate à condições desumanas experimentadas por grande parte da


população.

Está tudo interligado, a injustiça ecológica e a injustiça social, tendo


Boff corroborado com a ideia de que o sistema do capital colonizou e sugou
as riquezas naturais, ou, como diz largamente, da mãe Terra, acumulando
opulência de um lado à custa da miséria do outro:

A relação depredadora para com a natureza - injustiça ecológica -,


afetando as águas, os solos, os ares, a base físico-química da vida, se
transforma uma generalizada degradação da qualidade de vida - a
injustiça social-, penalizando principalmente os mais fracos e os pobres.
Estes se veem condenados a morar em locais de risco, a servir-se de
águas contaminadas, a respirar ares infectados de poluição e a viver
sob relações sociais altamente tensas devido à pobreza e à exploração8.

Assim, ao se tratar de meio ambiente, natural ou artificial, amplificado


por suas relações sociais, é preciso trazer à baila a noção de sustentabilidade.
Para Freitas, trata-se de um princípio constitucional que determina a
responsabilidade de todos (Estado e sociedade) na concretização solidária
do desenvolvimento material e imaterial, ou seja, multidimencional.

Sustentabilidade como um princípio “socialmente inclusivo, durável e


equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de
assegurar, preferentemente de modo preventivo e precavido, no presente e
no futuro, o direito ao bem-estar físico, psíquico e espiritual, em consonância
homeostática com o bem de todos”9.

Nesse linha, a solidariedade deve ser base de um mundo sustentável,


deve entrelaçar todos os seres, todos os povos e todas as gerações, na
busca pela vivência sadia e pela sobrevivência.

Destarte, precisamente em sua dimensão social, a sustentabilidade


não admite um modelo excludente, “pois de nada serve cogitar da
sobrevivência de poucos ou do estilo oligárquico relapso e indiferente,
que nega a conexão de todos os seres e a ligação de tudo e, desse modo,
a própria natureza imaterial do desenvolvimento”10.

8 BOFF, op.cit., p.49.


9 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade - direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p.51.
10 Ibid., p.55.
Lisiane Aguiar Henrique
Sébastien Kiwonghi Bizawu 179

Veja-se que o equilíbrio solidário aplica-se a todas as dimensões


ambientais, ou seja, solidariedade para com o planeta, como um todo, o
que clama o novo paradigma, que é a sustentabilidade. Logo, para Freiras,
não podem haver negligência ambiental, miserabilidade consentida ou
imposta, tampouco discriminação negativa de qualquer matiz.

Noutro modo de dizer, a sustentabilidade (longe de ser unívoca ou


unilateral) só pode ser entendida como princípio multidimencional (de
raízes biológicas e evolutivas) e, por isso, vinculado às noções-chave de
empatia, equidade entre gerações, longevidade digna, desenvolvimento
limpo (em termos éticos, inclusive), com foco na compreensão integrada
da vida, para além do fisicalismo estritamente material.11

A acepção do desenvolvimento sustentável não é estritamente


material, visa uma qualidade de vida equânime, em dimensões múltiplas
e emancipatórias, em que qualquer tipo de distinção só seria válida para
auxiliar os desfavorecidos, mediante ações positivas ou compensações, o
que vem ao encontro da ideia sustentável.

Fazendo-se as mesmas reflexões quanto à temática ambiental


natural, aos direitos fundamentais sociais devem existir os correspondentes
programas eficientes, relacionados, por exemplo, à saúde e à educação, sob
pena de o modelo de gestão ser insustentável.

As dimensões ética, jurídico-política, ambiental, social e econômica


estão, contudo, suscetíveis de degradação e por isso clamam atenção e
cuidado. A destruição ambiental pode-se encontrar associada à social e
assim por diante, assim como a própria sustentabilidade.

Então, a alteração evolutiva indispensável é uma reciclagem


existencial, o que Freitas chama de desenvolvimento limpo. Já Bauman12
aponta como medidas emergenciais orientadas à questão do lixo interno.
Não é possível pensar somente no campo material, mas também em termos
éticos e inorgânicos.

Estudar a complexidade ambiental é ater-se sim a fatos como


poluição, desperdício, acidificação do solo e da água, aquecimento global,
perda da biodiversidade, mas também às desigualdades sociais, ausência

11 FREITAS, op. cit.., p.65.


12 BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p.91.
180 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. -0, jul./set. 2017

de alteridade e urgência de uma transformação do estilo de vida, numa


responsabilidade compartilhada.

A pobreza encontra-se associada à degradação ambiental, nos


âmbitos natural e social, como fruto do extrativismo e desigualdade de
oportunidades.

A Carta Encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, sobre o cuidado


da Casa Comum, traz uma verdadeira leitura do meio ambiente, fazendo
referência à relação entre natureza e sociedade que a habita. Sustenta seus
ensinamentos em compreensões científicas e filosóficas, afirmando que
a natureza não é algo separado do ser humano, ou uma mera moldura da
vida, pois reconhece que o ser social é parte da natureza, compenetrando-a.

Quando se pensa, por exemplo, numa contaminação dos recursos


naturais, tem que se pensar no funcionamento da sociedade, de sua
economia, para se entender a realidade. Assim, conclui que não há
duas crises separadas (ambiental e social), mas uma só, que requer uma
abordagem integral:

Dada a amplitude das mudanças, já não é possível encontrar uma


resposta específica e independente para cada parte do problema. É
fundamental buscar soluções integrais que considerem as interacções
dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas
crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e
complexa crise sócio-ambiental. As directrizes para a solução requerem
uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade
aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza.13

As relações com o meio ambiente caminharam de uma cultura de cultivo


e sobrevivência àquela dos riscos que se assumem pelos danos, escassezes,
catástrofes ambientais e crises sociais. As condições de sustentabilidade
do planeta são afetadas pelos processos desproporcionais de extração
dos recursos naturais, produção desenfreada e pelo desconhecimento das
relações sociedade-natureza.

Chega-se à escassez em virtude da insaciabilidade, fomentada pelo


mercado do uso e abuso. Indubitavelmente, as relações estão sendo pautadas
na lógica consumista.

13 PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. Disponível no site do
vaticano, conforme referências. 2015, p.44.
Lisiane Aguiar Henrique
Sébastien Kiwonghi Bizawu 181

Há preferência pela prática do descartável, a despeito de lutar por


um meio ambiente saudável, porque isso levaria tempo do qual a economia
voraz não dispõe.

Certo é, no entanto, que a natureza finita está sucumbindo e, com ela,


os menos favorecidos, que integraram simultaneamente a crise ambiental
em seu âmago.

2 PROBLEMÁTICA SOCIAL: GERAÇÃO E PRODUTO

O meio ambiente é inerente a todos os seres humanos, tanto como


parte que são dessa realidade, ou como atores dos processos de escolha, bem
como por serem aqueles que sofrem também as consequências planetárias.
Nessas três perspectivas, o que os diferencia dos outros seres, animais
ou vegetais, são justamente as aptidões para as escolhas, o que vai ao
encontro da sustentabilidade.

Para Leff, a questão ambiental emerge como uma problemática


social. O desenvolvimento tecnológico, como escolha social, acarreta
consequências naturais ao mesmo tempo que gera enriquecimento de uns
e empobrecimento de outros, e a ciência social vetusta já não é suficiente
para abordar a matéria:

A questão ambiental é uma problemática de caráter eminentemente


social: esta foi gerada e está atravessada por um conjunto de processos
sociais. Entretanto, as ciências sociais não transformaram seus
conceitos, métodos e paradigmas teóricos para abordar as relações
entre estes processos sociais e as mudanças ambientais emergentes.14

Veja-se que é preciso enfrentar a temática mudando paradigmas


dos saberes e com referências inclusive transdisciplinares.

Será possível ver a problemática social sob duas vertentes: aquela


que gera a degradação ambiental e aquela que lhe é produto ou resultado.
A dificuldade de se chegar a esse saber ambiental está, muitas vezes, nas
compreensões uniformes trazidas pelas ciências, olvidando a heterogeneidade.

Foucault fala, inclusive, da necessidade do acoplamento do


saber erudito com o saber das pessoas (saber local), o que ele delineia
como genealogia. Não se trata “de opor a unidade abstrata da teoria à

14 LEFF, op.cit., p. 111.


182 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. -0, jul./set. 2017

multiplicidade concreta dos fatos e de desclassificar o especulativo para lhe


opor, em forma de cientificismo [...] Trata-se de ativar os saberes locais,
descontínuos, desqualificados, não legitimados”15.

É preciso levantar uma consciência ambiental, a partir de interação


de saberes, fazendo surgir novos valores a configurar uma cultura
ecológica e democrática. O objetivo tem que ser o desenvolvimento
sustentável, fundado em vários princípios, como a diversidade, a fim de
se enfrentar a problemática.

Uma ciência dura se imporia, desconsiderando a possibilidade de se


afetar o campo social, que sofreria apenas as consequências.

É preciso enxergar um ambiente sadio e participativo, de forma que


todos vivam num patamar de equilíbrio. Isso demanda o respeito à diversidade,
o olhar aos excluídos e, obviamente, a eliminação da pobreza extrema:

A satisfação das necessidades básicas e a elevação da qualidade de vida


da população, partindo da eliminação da pobreza e da miséria extrema,
e seguindo com a melhoria da qualidade ambiental e do potencial
ambiental, através da democratização do poder e da distribuição social
dos recursos ambientais16.

O lamentável é que o ser social gera os processos de discriminação


e exclusão. Nessa falta de reciprocidade, que já é um problema, o produto
gerado é outra disfunção.

Conforme expõe Bauman17, por toda parte há “refugo humano”,


produzido e germinado em quantidades sempre crescentes.

É necessário resgatar e atualizar o conceito de direitos humanos, retirando


qualquer perspectiva minimalista, para se deparar exatamente com o humano.

Os direitos humanos, como plano de fundo em qualquer debate


sobre a vulnerabilidade socioeconômica, são compreendidos atualmente
em sua amplitude, como resultados de construções sócio-históricas e
políticas, em várias dimensões, como a “cultural, ética, socioambiental,

15 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p. 171.


16 LEFF, op.cit., p.131.
17 BAUMAN, op. cit., p.89.
Lisiane Aguiar Henrique
Sébastien Kiwonghi Bizawu 183

entre outras, aparece como a proposta mais adequada aos desafios da


sociedade contemporânea em âmbito local, nacional e mundial”18.

Assim, os direitos humanos não mais podem ser compreendidos


num plano místico, imanente à condição humana, absoluta e uniforme,
sob o risco de se deixar de responder os desafios da inclusão e o respeito
às diversidades.

Veja-se que se deve pensar em inclusão e não na visão equivocada de


exclusão tratada pela rede midiática, selecionadora de “bandidos”. Direitos
humanos pressupõem, conforme Vasconcelos, a consideração da contingência,
imprevisibilidade e indeterminação, inerentes à própria composição social.

Na obra publicada sobre os Direitos Fundamentais das Pessoas em


Situação de Rua, organizada por vários doutrinadores, corroborou-se a
ideia desses direitos de forma mais abrangente, pensando no sujeito-mundo,
a fim de se compreender a multicultura humana:

[...] construir uma forma de pensar os Direitos Humanos que não


reafirme modos possíveis de ser, modos pré-concebidos e que estão
no fundamento histórico de afirmação desses direitos, mas que abra
espaço para as formas de vida, os processos de subjetivação surgidos
nas relações criadas no encontro sujeito-mundo. Que não reafirme
violências e impossibilidades de lidar com a diversidade, de compreender
formas peculiares, mas que, ao contrário, reafirme modos de vida, que
‘dê conta’ e dialogue com a multiplicidade do humano.19

Nesse arcabouço de humanos múltiplos, as condições tensas vividas


pelos mais pobres, que muitas vezes não têm sequer saneamento básico,
traduzem a extrema desigualdade ou desequilíbrio. A exemplo, estima-se
que mais de 35 milhões de brasileiros não têm acesso a saneamento básico20.

Ao se analisar o empobrecimento, que é uma problemática social,


produto de uma sociedade mercantilista, que é outro problema social, deve-se
ater às causas econômicas, políticas e culturais, mas também às relações que
uma sociedade entretém com a natureza, na qual se encontra o ser humano.
18 PINTO, João Batista Moreira. Os direitos humanos como um projeto de sociedade. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2015. p.26.
19 MACERATA, I.M.; MAGALHÃES, J.N.; RESENDE, N.C. Direitos humanos e população em situação de
rua: as singularidades no encontro com a rua. Belo Horizonte: D’Plácido, 2014. p.147.
20 Dado trazido em 2013 pelo Instituto Trata Brasil (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público),
conforme referência.
184 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. -0, jul./set. 2017

Imprescindível a solidariedade. Pensar nos excluídos, empobrecidos


e marginalizados, na busca pelo suficiente e decente para todos.

3 MISÉRIA E QUALIDADE DE VIDA

O ciclo que se percebeu é de injustiças ecológicas e injustiças sociais,


como causas-consequências. A problemática social é constatada (e também
resulta) nas condições de pobreza e desigualdade experimentadas por
grande parte da população.

Boff afirma que para o novo ethos mundial é necessário, “primeiro,


salvar a vida dos pobres; depois garantir os meios de vida para todos
(trabalho, moradia, saúde, educação, segurança); em seguida, assegurar a
sustentabilidade da casa comum, a Terra, com seus ecossistemas”21.

O autor, inclusive, entende que, para se universalizar um discurso, deve-


se ser parcial, partindo a reflexão dos excluídos, dos pobres, dos famélicos.
Não se chega ao ideal ambiental quando a doutrina é escrita por aqueles que
se encontram numa posição de dominação e poder. Assim, “os marginalizados
e mais ainda os excluídos são portadores de um privilégio epistemológico”22.

De outro lado, conforme o documento pontifício Laudato Si’, “a


lógica que dificulta a tomada de decisões drásticas para inverter a tendência
ao aquecimento global é a mesma que não permite cumprir o objectivo
de erradicar a pobreza”23. Não se quer enfrentar os problemas, apartar
privilégios, tampouco reagir de forma responsável, por intermédio de
autoridades designadas de maneira imparcial.

A linha de discussão que aqui se estabelece entre o parcial e o


imparcial está na crítica da parcialidade privilegiada dominante. O
marginalizado normalmente não é quem decide sobre as situações que
envolvem sua condição. Então, para ser imparcial, aquele que possui o
poder de decisão tem que conhecer a realidade daqueles envolvidos na
discussão, por intermédio deles. Ao contrário, voltar-se-ão às soluções
hegemônicas para realidades distintas.

É a mesma dicotomia entre igual e desigual. Por vezes, é preciso


reconhecer e favorecer o desigual, ainda que a igualdade seja princípio

21 BOFF, Leonardo. Ethos Mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Rio e Janeiro: Record, 2009. p. 69.
22 Ibid., p. 67.
23 PAPA FRANCISCO, op.cit.,p.54.
Lisiane Aguiar Henrique
Sébastien Kiwonghi Bizawu 185

fundamental. Não se prescindi do princípio de que o direito de ser igual


prevalece, mas isso quando a diferença inferioriza. Em contrapartida,
propala-se o direito a ser diferente “quando a igualdade nos trivializa”24.

É interessante comentar o processo de produção de riqueza, trazido


por Leff, para se pensar nas condições de vida. A sociedade opulenta,
na expansão do capital, se depara com a escassez, deterioração dos bens
naturais, sujeição ao consumo e degradação do próprio bem-estar. A partir
desse jugo, surge a noção libertária de ‘qualidade de vida’:

A noção de qualidade de vida emerge no momento em que a sociedade


‘opulenta’ parecia libertar-se da etapa na qual o processo econômico era
construído como um processo de produção de riqueza fundamentado no
conceito de escassez, bem como da economia forçada, como necessidade
para a acumulação de excedentes e a expansão do capital. A ênfase nos
aspectos qualitativos das condições de vida representa a percepção da
degradação do bem-estar gerada pela crescente produção de mercadorias,
a deterioração dos bens naturais comuns e dos serviços públicos básicos e
a homogeneização dos padrões de consumo. Isso aponta a uma avaliação
do sentido da existência, da qualidade do consumo, e da qualidade do
trabalho produtivo, que vai além dos problemas de emprego, salário
real e da desigualdades na distribuição da riqueza.25

Para o autor, a questão da qualidade de vida irrompe do circuito produção,


consumo e abundância, no momento em que se percebe essa massificação “com
a deterioração do ambiente, a degradação do valor de uso das mercadorias, o
empobrecimento crítico das maiorias e as limitações do Estado para prover
os serviços básicos a uma crescente população marginalizada”26.

Quando se fala de qualidade de vida, a ênfase deve estar, por óbvio,


nos aspectos qualitativos das condições de vida, e não quantitativos. Como
visto, a degradação do bem-estar gera-se pela produção desenfreada.

A questão concreta da pobreza e desigualdade está associada à


qualidade de vida, assim como a própria solução. Ao se pensar no binômio
escassez-desperdício e em novas formas de se organizar a vida em sociedade,
contextualizando as necessidades humanas, pode-se chegar a projetos
emancipatórios, com potenciais transformadores e globais, trazendo acesso
24 SANTOS, Boaventura de Sousa; CHAUI, Marilena. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São
Paulo: Cortez, 2013. p. 79.
25 LEFF, op.cit., p.146.
26 Ibid., p.147.
186 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. -0, jul./set. 2017

a qualidade de vida a todos, e consequentemente combater as realidades


ambientais de desigualdade.

Para se pensar em qualidade nas condições de vida, é preciso


voltar à percepção da composição ambiental, com todos os seus seres
importantes e essenciais. A indignação, sobretudo, deveria ser com as
enormes desigualdades sociais. Como exorta a Laudato Si’, infelizmente
“continuamos a tolerar que alguns se considerem mais dignos do que outros.
Deixamos de notar que alguns se arrastam numa miséria degradante, sem
possibilidades reais de melhoria, enquanto outros não sabem sequer que
fazer ao que têm, ostentam vaidosamente uma suposta superioridade”27.

Nesse prisma, o Relatório de Desenvolvimento Humano 2013 da ONU28


alerta e prevê uma catástrofe ambiental no mundo em 2050. Expõe que a
pobreza extrema estimada para os próximos anos deve ser motivada pela
degradação do planeta e a consequente redução dos meios de subsistência,
como agricultura e o acesso a água potável. De acordo com a previsão, cerca
de 2,7 bilhões de pessoas a mais viverão em extrema pobreza em 2050, como
consequência do problema ambiental, sendo 1,9 bilhões que entrarão na miséria
e os outras 800 milhões seriam aquelas impedidas de sair dessa situação.

A pesquisa aponta que o aumento da poluição, da pressão sobre os


recursos naturais, das mudanças climáticas e dos desastres naturais afetarão
muitos países independente do estado de desenvolvimento em que se encontram,
sendo que o desenvolvimento humano estará realmente ameaçado. No entanto,
certo é que as principais vítimas são as comunidades pobres, até por insuficiência
de meios alternativos para lhe dar com as problemáticas ambientais.

Importante mencionar que o nível de desperdício chega a ponto de


destruir o planeta e retrata bem a desigualdade. Por isso a necessidade
de se repensar a questão da qualidade de vida, a partir da análise das
necessidades e consumo. Quando se pretende uma mudança, o caminho
é a cultura, ou seja, incorporar como um ditame cultural a igualdade e a
construção de um mundo mais justo.

Qualidade de vida associada a consumo desenfreado, como se vê, é


uma noção totalmente equivocada, hierarquizada e globalmente destrutiva.

27 PAPA FRANCISCO, op. cit., p. 29.


28 O Relatório do Desenvolvimento Humano 2013, publicado pelo Programa das nações Unidas para
Desenvolvimento, com título, “A Ascensão do Sul: Progresso Humano num Mundo Diversificado” é
disponível eletronicamente, conforme referências.
Lisiane Aguiar Henrique
Sébastien Kiwonghi Bizawu 187

A efetividade dos direitos humanos, e da qualidade de vida pertinente,


pressupõem a construção de condições culturais ou valores imateriais. Não
se trata apenas de alimentar os famintos, repensar a redistribuição social
dos recursos, mas, também, incorporar princípios solidários. A exemplo,
o relatório da ONU clamou pelo surgimento de novos atores a mudarem
o panorama do desenvolvimento.

Trata-se de uma adesão dos vários seguimentos da sociedade a


uma nova cultura, que reconheça a complexidade, como uma estratégia
revolucionária que, nos dizeres de Vasconcelos, só pode acontecer pelas
vias democrática, do convencimento e do consenso, em torno dos valores
e dos princípios humanitários.

4 PARTICIPAÇÃO AUTÔNOMA

A construção de uma nova cultura democrática passa a ser o maior


desafio para a superação das exclusões sociais, que decorrem, conforme
Vasconcelos, da lógica perversa capitalista que produz cenários de horror,
expressos pela fome, miséria, desemprego, dentre outros.

Numa nova perspectiva, entende-se que é possível pensar em outra


roupagem dos direitos humanos, a partir do próprio direito ambiental.
A diversidade e a harmonia ambiental seriam como berços de uma nova
conscientização e efetivação social. Consciência ambiental a levar a
transformação social, ao repensar o ser humano no processo natural e
social harmônico, digno e respeitadamente diversificado.

O comprometimento ideal, conforme se apontou em Boff29, é de que


a primeira situação a ser enfrentada é salvar a vida dos pobres, e depois
assegurar a sustentabilidade da Terra. Conquanto, esse salvamento se dará
no cenário ambiental que requer uma nova compreensão.

É preciso, então, enfrentar logo a questão de como fazer para surgir


uma nova epistemologia e traçar um destino diverso, equilibrando o meio.

Primeiro, não se pode olvidar que pessoas em situação de grave


vulnerabilidade socioeconômica têm violados seus direitos, inclusive de
participação, a partir da própria discriminação social que as acompanha.
É uma situação que deve ser culturamente transfigurada.

29 BOFF, op. cit., 2009.


188 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. -0, jul./set. 2017

A exclusão se dá não apenas pela falta de acesso a propriedade, que


separaria os ricos dos pobres, mas pela herança cultural excludente, que
impossibilita o acesso de todos a constituição de um ser autônomo:

O que exclui a ‘ralé brasileira’ não é exatamente a inacessibilidade à


propriedade privada, mas, sim, uma impossibilidade afetiva, emocional,
moral e existencial para se constituir enquanto um sujeito autônomo,
capaz de produzir projetos emancipatórios para suas próprias vidas.30

Mister, então, se propagar uma educação ambiental em todos os


níveis sociais, bem como possibilitar a participação dos marginalizados
nas discussões, a exemplo, nos debates sobre direito da cidade e reforma
urbana. Ampliar os diálogos de forma a abarcar uma cultura ambiental
singular e até formas concretas que repensem um futuro mais sustentável.

“Não Fale de Mim Sem Mim, Por Mim”31. Esses foram os dizeres
de uma faixa suspensa pelo Movimento da População de Rua de Brasília/
DF, no Congresso Nacional realizado pela população em situação de rua,
acontecido em 2016, na cidade de Belo Horizonte. É uma ótima tradução
da autonomia aqui perfilhada.

Gustin afirma que o indivíduo deve ser preservado em sua dignidade


e em sua autonomia, no sentido de ser dono de seus atos e decisões,
conectado às opções de seus grupos sociais. Agora, quando se está “em
desvantagem em relação aos outros indivíduos, pode-se ser capaz de
participar socialmente como um desigual? Será essa desigualdade frente à
sociedade uma razão suficiente para merecer direitos também desiguais?”32.

Refere-se à autonomia não num conceito liberal, no sentido de


realização em si, mas numa acepção que atribua à autonomia uma natureza
que se desenvolva pela sociabilidade, através de relações discursivas. Os
direitos fundamentais devem ser tratados como “direitos de liberdade”, por
sua indispensabilidade no desenvolvimento pleno da autonomia e emancipação.

Para isso, necessária uma ambiência democrática de direito:


30 VASCONCELOS, Ruth. O individual e o coletivo no projeto dos direitos humanos e as dimensões ética e
cultural. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p.153.
31 Faixa exibida pelo Movimento População de Rua de Brasília/DF, no 3º Congresso Nacional de População
de Rua, realizado em Belo Horizonte, dos dias 16 a 19 de agosto de 2016.
32 GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa. Necessidades humanas, autonomia e o direito à inclusão em uma
sociedade que se realiza na interculturalidade e no reconhecimento de uma justiça do bem-estar. Belo Horizonte:
D’Plácido, 2014. p.35.
Lisiane Aguiar Henrique
Sébastien Kiwonghi Bizawu 189

[...] através de canais e expedientes discursivos, seja possível florescer uma


consciência de que o princípio de satisfação de necessidades (das políticas
sociais ou da esfera jurídica) deveria orientar-se não somente num sentido
restrito de satisfação de se atribuírem aos cidadãos capacidades de se
autorregerem e de participarem, com autonomia crítica, da sociedade,
tanto no que se refere à ação quanto à capacidade argumentativa.33

Assim, trata-se de qualidade de vida aos excluídos, começar a os


favorecer nos processos discursivos, para que eles mesmos orientem, com
a autonomia de quem vive a realidade, as próprias soluções.

Está-se diante de um ser complexo, daí que a inclusão social é vista


em sua diversificação, pois o ser humano não pode ser visto como uma
unidade material. Assim, combater-se-ia a desigualdade, inicialmente,
pelo acesso igual a participação, com objetivo de restabelecer um debate
nacional, mundial (ou local) sobre as escolhas fundamentais.

Boff, analisando a situação do empobrecimento e da exclusão de


grande parte da humanidade, na visão de Dussel (nascido em 1934),
falou da necessidade da desconstrução dos discursos éticos vigentes, por
considerar que seus formuladores não têm consciência devido ao lugar
social “donde pensam e atuam: dentro dos sistemas dominantes e a partir
de quem ocupa o centro do poder. Praticamente não tomam em conta o
fato de que existem uma periferia e uma exclusão mundial”34.

A meta da participação que aqui se reforça é o desenvolvimento da


potencialidade criativa e dialógica, ampliando a capacidade de inserção autônoma
da pessoa em seu contexto, contribuindo para minimização dos danos ambientais.

Todavia, não se pode olvidar que possibilitar a participação efetiva dos


menos favorecidos nas discussões gira muitas vezes em torno de uma ilusão. As
contradições e ambiguidades do meio social reforçam um sistema excludente e
aquela fórmula (não nova) de participação social é sucateada ou até disfarçada.

Seria necessária uma “verdadeira revolução ideológica e cultural


que problematiza toda uma constelação de paradigmas do conhecimento
teórico e de saberes práticos”35, de forma que a problemática ambiental,

33 GUSTIN, op. cit., p.47.


34 BOFF, op.cit., 2009, p. 66.
35 LEFF, op. cit., p.137.
190 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. -0, jul./set. 2017

nas suas abordagens da complexidade dos problemas sociais e mudanças


ecossistêmicas globais, leve à transformação.

Num geral, trata-se de um movimento planetário, participativo,


com vários atores, na luta pela defesa da existência, a incidir tomada de
decisões e realização de programas educativos baseados em novos padrões
de gestão ambiental e processos sociais.

Leff acredita que as velhas demandas populares de participação, contra


desigualdade, exploração, atreladas às demandas imediatas de direito à moradia,
melhoria salarial, podem ser definidas dentro da própria luta pela defesa do meio
ambiente, qualidade ambiental, para que sejam tomadas decisões sobre, por
exemplo, formas de assentamento humano e condições de trabalho satisfatórias,
o que pode acontecer por intermédio da força dos movimentos ambientalistas36.

A interelação do meio ambiente com a redução da desigualdade demanda


a participação da sociedade na sustentabilidade, solidariedade e gestão, num
espaço aberto e permanente, para a reparação do mal, sobretudo da pobreza.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Evidenciou-se neste artigo que o olhar aos excluídos e a eliminação


da pobreza extrema são imprescindíveis para o equilíbrio ambiental.

A degradação da qualidade de vida penaliza principalmente os


mais fracos e os pobres. O relatório da ONU mencionado alerta sobre a
catástrofe ambiental prevista para um futuro próximo, em que se prevê
um aumento da pobreza extrema, motivada pela degradação do planeta.

Dessa forma, a problemática social foi percebida de duas formas.


Tanto os processos de escolha que geram a desigualdade (e degradação),
como aqueles seres humanos que sofrem também as consequências
planetárias, produtos ou refugos que são daquelas escolhas.

36 Propõe-se, dessa forma, o problema da capacidade do movimento ambientalista para incorporar velhas
demandas populares de participação e contra a desigualdade, marginalização, exploração e submissão
que produzem os processos econômicos e políticos prevalecentes; assim, as demandas imediatas de
melhorias salariais, de propriedade da terra, do direito à moradia e aos serviços públicos podem redefinir-
se dentro das lutas pela defesa dos recursos naturais, da qualidade ambiental e da vida e as perspectivas
de um desenvolvimento sustentável, para incidir na tomada de decisões sobre novos padrões de uso dos
recursos, modelos de urbanização, formas de assentamento humano, inovação de processos e condições de
trabalho mais satisfatórios etc. Estes movimentos podem gerar uma força social capaz de internalizar as
reinvidicações ambientais nos programas do Estado e dos partidos políticos tradicionais, abrindo novas
perspectivas e espaços de participação à sociedade civil para a gestão ambiental. (LEFF, 2010, p.152).
Lisiane Aguiar Henrique
Sébastien Kiwonghi Bizawu 191

A construção de uma nova cultura ecológica e democrática passa a ser,


então, o maior desafio para a superação das misérias, injustiças e exclusões sociais.

Isso se daria por uma interação de saberes, que levariam a uma consciência
ambiental (e naturalmente social), e, sobretudo, pela possibilidade de participação
dos marginalizados nas discussões, preservados em sua dignidade e em sua
autonomia, pois possuem um privilégio epistemológico nessa discussão.

Contudo, há obstáculos nada fáceis de serem enfrentados. O que dificulta


a tomada de decisões para erradicar a pobreza é a mesma que não permite
inverter a tendência dos danos ambientais, ou seja, apartar privilégios sociais.

A expectação de que vários atores lutem pela defesa da existência


digna, e possibilitem a discussão, interados no mesmo meio ambiente, é o
que pode gerar a transfiguração da desigualdade social, pensando-se os
direitos humanos a partir do próprio direito ambiental cultural.

É preciso repensar o ser humano nos processos natural e social,


harmônicos e respeitadamente diversificados.

REFERÊNCIAS

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Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

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socioambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
Recebido em: 16/05/2016
Aprovado em: 16/08/2016

A CULPABILIDADE NO ATO ÍMPROBO:


APLICAÇÃO DA TEORIA NORMATIVA
PURA NA ANÁLISE DA IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA
THE CULPABILITY IN THE MISCONDUCT ACT: APLICATION
OF PURE NORMATIVE THEORY IN ANALYSIS OF THE
ADMINISTRATIVE MISCONDUCT

Paulo Henrique Figueredo de Araújo


Pós-graduação “latu sensu” em Direito Eleitoral e Improbidade Administrativa pela
FESMP/MT. Pós-graduação “latu sensu” em Direito Tributário pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Procurador Distrito Federal.

SUMÁRIO: introdução; 1 Direito Administrativo


Sancionador e seu diálogo com os preceitos de
direito penal; 2 Evolução doutrinária das teorias
da culpabilidade; 3 Erro de tipo e erro de proibição
no direito penal; 4 Reflexos da teoria finalista na
formação do juízo de culpabilidade na improbidade
administrativa; 5 Conclusões; Referências.
194 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 217-214, jul./set. 2017

RESUMO: O presente estudo trata da análise quanto à viabilidade


de transposição, para a improbidade administrativa, da teoria da
culpabilidade penal, segundo a vertente normativa-pura, componente do
finalismo de Welzel. Aborda o grau de integração entre o direito penal,
processual penal e a improbidade administrativa, expondo as diversas
hipóteses nas quais os institutos e regramentos dos dois primeiros ramos
restam aplicáveis na interpretação da Lei nº 8.429/1992. Em seguida,
trata da evolução da teoria da culpabilidade, expondo as características
fundamentais da fase psicológica, psicológico-normativa e normativa-
pura, esta adotada pelo direito penal brasileiro após a reforma de 1984.
Promove a diferenciação entre o erro de tipo e o erro de proibição, segundo
a teoria limitada da culpabilidade. Analisa decisões proferidas em ações
de improbidade administrativa com base nesses preceitos, identificando
os pontos de distinção com a teorização proposta.

PALAVRAS-CHAVE: Improbidade Administrativa. Culpabilidade.


Finalismo. Teoria Normativa-Pura.

ABSTRACT: This study deals with the analysis on the feasibility of


implementation, for administrative misconduct procedure, the theory of
criminal culpability, according to pure normative branch, component of
Welzel finalism. Addresses the degree of integration between the criminal
law, criminal procedure and administrative misconduct, exposing the
various situations in which the institutes and specific regulations of the
first two branches remain applicable in the interpretation of Law No.
8.429/1992. Then deals with the evolution of the theory of culpability,
exposing the fundamental characteristics of psychological, psychological-
normative and normative-pure phases, the last adopted by the Brazilian
criminal law after the reform of 1984. It promotes the differentiation
between the error of type and the error of prohibition, according to the
limited theory of guilt. Examines decisions in administrative misconduct
trials based on these principles, identifying the points of distinction
with the theorization.

KEYWORDS: Administrative Misconduct. Culpability. Finalism. Pure


Normative Theory.
Paulo Henrique Figueredo de Araújo 195

INTRODUÇÃO

O direito sancionador anterior à Constituição Federal de 1988 era


visto a partir da ideia apriorística da supremacia dos interesses do Estado,
condicionadores do próprio exercício dos direitos fundamentais. Trata-se de
um contexto no qual a legitimidade persecutória ligar-se-ia com mais ênfase
ao Estado, sendo a própria cidadania relegada a segundo plano1. Somente após
a aludida Carta Magna, iniciou-se um processo de consolidação de direitos
fundamentais, dentre os quais aqueles inerentes à defesa o indivíduo em face
da persecução punitiva estatal, nas suas mais diversas facetas – máxime no
tocante ao direito penal e à improbidade administrativa.

Possível identificar entendimento doutrinário no sentido da


existência de um supra Direito Punitivo estatal, respaldado por uma
principiologia própria, independentemente de se tratar de infração penal
ou administrativa. Sua operacionalização se daria mediante um tratamento
integrado da matéria, com a aplicação de certos paradigmas da penologia
criminal no exercício das demais funções punitivas do Estado, modelos
esses operantes como elementos de legitimidade, superação do arbítrio e
coibição do excesso de poderes, inerente ao Estado de Direito. Ademais,
a exigência decorreria da própria necessidade de uma coerência e unidade
nos critérios punitivos, apta a conferir segurança jurídica aos cidadãos2.

Tendo como base o retromencionado contexto, de intercâmbio


entre os institutos penais e demais ramos sancionadores, o presente
estudo objetiva lançar linhas fundamentais sobre a utilização da teoria
da culpabilidade, na vertente normativa-pura (integrante do movimento
finalista, de Hans Wezel), para a análise da culpabilidade na ação por
improbidade administrativa (Lei nº 8.429/1992). Inicia-se com o atual
estado da doutrina e jurisprudência sobre a improbidade administrativa, em
suas facetas substantivas (regras materiais) e adjetivas (regras processuais),
em especial, sobre a possibilidade jurídica de transposição de preceitos de
ordem penal e processual penal para a interpretação das regras previstas
para a improbidade. Essa premissa revelar-se-á importante para justificar

1 OSÓRIO, Fábio Medina. Direitos imanentes ao devido processo legal sancionador na constituição
de 1988. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; REZEK, Francisco. Constituição Federal: avanços,
contribuições e modificações no processo democrático brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais; CEU - Centro de Extensão Universitária, 2008. p. 149-166.
2 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; GARCIA, Flávio Amaral. A principiologia no Direito
Administrativo Sancionador. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 11, n. 43,
p. 9-28, out./dez. 2013.
196 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 217-214, jul./set. 2017

a utilização da teoria da culpabilidade e das noções de erro de tipo e erro


de proibição na análise da estrutura do delito ímprobo.

Ato contínuo, exporemos a evolução das teorias da culpabilidade


penal, pontuando as principais características das vertentes psicológica,
psicológico-normativa e normativa-pura, percorrendo caminho trilhado
pela doutrina na “purificação” da culpabilidade quanto aos elementos
anímicos, bem como na inserção da finalidade do agente no âmbito da
conduta. Arrematará o estudo da estrutura da culpabilidade abordagem
específica sobre os erros de tipo e proibição.

Expostos os elementos da teoria normativa pura (acolhida pelo


Código Penal atual), bem como munidos das noções essenciais sobre as
espécies do erro e seus reflexos sobre o delito, utilizar-se-á a estrutura
finalista do crime para analisar decisões proferidas no âmbito de ações
de improbidade administrativa. O desiderato revela-se em identificar
o grau de correlação entre as manifestações judiciais e os preceitos da
teoria finalista no âmbito da improbidade administrativa, cuja aplicação,
adiante-se, é defendida no presente estudo.

1 DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR E SEU DIÁLOGO COM


OS PRECEITOS DE DIREITO PENAL

Tomando como premissa a existência de trabalhos sobre a integração


entre o direito sancionador e o direito penal, como uma unidade do
jus puniendi estatal, interessante concatenação observa-se na ação por
Improbidade Administrativa – liame o qual apresenta efeitos na análise da
culpabilidade nessa esfera punitiva. Trata-se de peculiar integração entre o
direito penal, processo penal e improbidade administrativa, sinteticamente
apresentada a seguir, como premissa essencial para a análise específica
do elemento anímico no rito da improbidade.

A correspondente legislação de regência (Lei nº 8.429/1992)


comporta-se com peculiar oscilação normativa: em determinado momento,
alude à legislação processual civil para fins de tornar aplicáveis seus
institutos. Esses casos expressam-se quando, no art. 16, §1º, determina
o processamento do sequestro segundo o art. 822 e 825 do CPC-1973
(tratado como tutela de urgência no CPC-2015; vide art. 301); mais adiante,
porém, no art. 17, §12, usufrui das disposições do Código de Processo
Penal (CPP) no tocante à sistemática coleta de depoimento de autoridades
públicas de alto escalão, ao determinar a incidência do art. 221, caput e
§1º, ao rito da improbidade administrativa. Araújo (2015) analisa esse
Paulo Henrique Figueredo de Araújo 197

fenômeno, concluindo ser tal característica fator de diferenciação da lei de


improbidade, se comparado com os demais diplomas do microssistema de
defesa do patrimônio público, composto pela Lei da Ação Popular, Lei da
Ação Civil Pública, dentre outros. Estes, diferente da Lei de Improbidade,
subsidiam-se nitidamente na legislação de caráter civil.

O diálogo constante entre a Lei de Improbidade Administrativa (LIA) e


legislação penal e processual penal não se baliza unicamente com as disposições
retro: o “juízo de delibação” do art. 17 da LIA (introduzido com as modificações
promovidas pela MP nº 2.225-45), por meio do qual órgão jurisdicional determina
a oitiva prévia do acusado, antes de receber a inicial da improbidade, transpôs,
para a improbidade administrativa, o procedimento de defesa prévia típico do
processo e julgamento dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos3.

Na doutrina, Garcia e Pacheco (2013) defendem a incidência do art.


383 do CPP, permissivo para o Magistrado conferir a determinado fato
definição jurídica diversa da constante na queixa ou denúncia – no caso,
na inicial da ação de improbidade – ainda que, em consequência, tenha de
aplicar pena mais grave. Assim como no direito penal, na improbidade, o
réu se defenderia dos fatos narrados, não da classificação jurídica dada a
eles pelo autor – fenômeno denominado emendatio libeli na processualística
criminal4. A distinção revela-se importante: no processo civil, a apreciação
do pedido encontra-se adstrita ao princípio dispositivo e da congruência,
segundo a regência dos arts. 128 e 460 do CPC-1973 (arts. 141 e 492 do
CPC-2015), com vedação às sentenças citra, ultra e extra petita5.

O contexto até o presente momento traçado – aplicação do regime


jurídico penal e processual penal à improbidade administrativa, no cabível,
bem se coaduna com o entendimento ostentado pelo o Superior Tribunal
de Justiça (STJ), durante considerável tempo, sobre utilização do foro por
prerrogativa de função penal nas ações de improbidade administrativa6.

3 Oliveira (2009) acentua: “incontestável que tais alterações foram inspiradas em normas processuais
penais [...] tal como o prescrito nos arts. 513 a 518 do CPP”.
4 GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 7. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2013.
5 Por exemplo, no processo penal, caso seja apresentada denúncia pelo crime de roubo, mas estejam
presentes as elementares do furto, o juiz é autorizado a condenar por este último crime. No processo
civil, a sentença seria de improcedência, devendo a parte intentar nova demanda, sob pena da decisão
revelar-se extra petita, portanto, nula.
6 Nesse sentido: “[...] por imposição lógica de coerência interpretativa, que norma infraconstitucional não
pode atribuir a juiz de primeiro grau o julgamento de ação de improbidade administrativa, com possível
aplicação da pena de perda do cargo, contra Governador do Estado, que, a exemplo dos Ministros do
STF, também tem assegurado foro por prerrogativa de função, tanto em crimes comuns (perante o STJ),
quanto em crimes de responsabilidade (perante a respectiva Assembléia Legislativa). É de se reconhecer
198 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 217-214, jul./set. 2017

Apesar de essa jurisprudência restar hodiernamente superada, revela nítido


indicativo da propensão do STJ em acolher preceitos de ordem penal ou
processual penal na improbidade administrativa7.

Possível observar a recepção de outros institutos e princípios penais


na improbidade, como a impossibilidade de aplicação de analogia in malan
partem8, dosimetria da pena9, necessidade da justa causa para o recebimento
da inicial acusatória10, estado de necessidade11, não contaminação da ação
penal pelas invalidades do inquérito12, dentre possíveis outros.

A conectividade de normas não se dá ao acaso. Teori Zavascki


identifica diversos pontos de acordo entre as sanções por atos de
improbidade e as de natureza penal: em ambos os casos, verifica-se uma
pretensão punitiva, com finalidade pedagógica e intimidatória, visando a
inibir novas infrações. Não há qualquer diferença entre as modalidades e
efeitos sancionadores, como a perda da função pública, suspensão de direitos
políticos e multa pecuniária. A distinção somente recairia no tocante
aos efeitos da condenação em face de futuras infrações – a condenação

que, por inafastável simetria com o que ocorre em relação aos crimes comuns (CF, art. 105, I, a), há, em
casos tais, competência implícita complementar do Superior Tribunal de Justiça. (STJ – Rcl 2.790/SC,
Relator: TEORI ALBINO ZAVASCKI, Corte Especial, Julgamento: 02/12/2009).
7 Sobre a não subsistência do foro por prerrogativa na improbidade administrativa: STJ – REsp 1453854/
RJ, Relator: BENEDITO GONÇALVES, Primeira Turma, Julgamento: 18/11/2014).
8 “Ora, diante da lacuna da Lei de Improbidade Administrativa frente ao caso apresentado, pode-se utilizar
da analogia para a determinação da base da pena de multa. No entanto, a analogia não pode ser aplicada
in malam partem, porque no âmbito do Direito Administrativo sancionador” (STJ – REsp 1216190/RS,
Relator: MAURO CAMPBELL MARQUES, Segunda Turma, Julgamento: 02/12/2010).
9 “Reconhecida a ocorrência de fato que tipifica improbidade administrativa, cumpre ao juiz aplicar a
correspondente sanção. Para tal efeito, não está obrigado a aplicar cumulativamente todas as penas
previstas no art. 12 da Lei 8.429/92, podendo, mediante adequada fundamentação, fixá-las e dosá-las
segundo a natureza, a gravidade e as consequências da infração, individualizando-as, se for o caso,
de acordo com os princípios do direito penal (STJ – REsp 926.772/MA, Relator: TEORI ALBINO
ZAVASCKI, Primeira Turma, Julgamento: 28/04/2009).
10 STJ – REsp 1259350/MS, Relator: NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Primeira Turma, Julgamento:
22/10/2013.
11 “[...] esta Corte Superior, em reiterados precedentes, vem afastando a caracterização da improbidade
administrativa por considerar configurado o estado de necessidade [...] embora o estado de necessidade
não disponha de previsão expressa na legislação administrativa (STJ – REsp 1123876/DF, Relator:
MAURO CAMPBELL MARQUES, Segunda Turma, Julgamento: 05/04/2011).
12 “O inquérito civil, como peça informativa, tem por fim embasar a propositura da ação, que independe
da prévia instauração do procedimento administrativo. Eventual irregularidade praticada na fase pré-
processual não é capaz de inquinar de nulidade a ação civil pública, assim como ocorre na esfera penal,
se observadas as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório”. (STJ – REsp
1119568/PR, Relator: ARNALDO ESTEVES LIMA, Primeira Turma, Julgamento: 02/09/2010)
Paulo Henrique Figueredo de Araújo 199

criminal enseja consequências próprias quanto aos antecedentes e perda


da primariedade –, bem como no tocante à possibilidade de aplicação da
pena privativa de liberdade exclusivamente na seara penal13.

Essa equivalência substancial de penas suportaria a doutrina da


unidade da pretensão punitiva estatal. Embora não seja possível traçar
concordância total de regimes jurídicos entre a improbidade e o direito
penal, não haveria dúvida quanto à aplicação de princípios comuns, como
a legalidade, a tipicidade, a responsabilidade subjetiva, o non bis in idem, a
presunção de inocência e a individualização da pena14. Apesar das amplas
possibilidades decorrentes da noção de sistema único punitivo, intenção
do nosso trabalho, conforme exposto acima, limitar-se-á na aplicação da
teoria da culpabilidade do direito penal no âmbito da punição por ilícitos
administrativos, com base na explanada interconectividade sistêmica. Para
a concretização desse mister, imperiosa a exposição dos rumos tomados
pela teoria da culpabilidade no próprio direito penal.

2 EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA DAS TEORIAS DA CULPABILIDADE

Sendo o desiderato do presente trabalho decompor o ato ímprobo em


seus diversos componentes, segundo a teoria da culpabilidade, necessário
se faz perquirir a evolução histórica desses elementos, no âmbito do próprio
direito penal. Em momento anterior, demonstramos a possibilidade de
transposição dos institutos criminais para a improbidade administrativa.
Reconhecida tal viabilidade, necessária a compreensão da estrutura do
crime na persecução penal, a fim de abrir as vias necessárias ao transporte
das noções própria dessa seara ao âmbito da improbidade administrativa.

Conforme ensina Cezar Roberto Bitencourt, a culpabilidade


resta concebida segundo tripla perspectiva, revelando tensões dialéticas
entre a prevenção e os princípios garantistas: a primeira, como um juízo
individualizado de responsabilização, significa dizer, garantia do infrator
em face dos excessos do poder punitivo estatal. Dessa concepção decorre
o princípio da inexistência de pena sem culpabilidade (“nulla poena sine
culpa”). Nesse caso, a culpabilidade opera como fundamento e limite da
pena. A segunda perspectiva incorpora o instituto como instrumento
para a prevenção de crimes. Sob essa ótica, denota o juízo de atribuição da
responsabilidade penal, confirmando a obrigatoriedade de cumprimento
13 ZAVASCKI, Teoria Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2005.
290 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2005. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/4574>. Acesso em: 03 maio 2014.
14 Ibidem..
200 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 217-214, jul./set. 2017

das normas. Além da culpabilidade como fundamento da pena e como


elemento de determinação ou medida dessa pena, culpabilidade ostenta um
nítido conteúdo a denotar contrariedade à noção da responsabilidade objetiva15 .

No direito penal moderno, a teoria da culpabilidade tem grande


avanço de sistematização a parir da teoria psicológica, de Von Liszt.
Trata-se de concepção ligada diretamente ao movimento do naturalismo-
causalista. Para essa sistematização, a culpabilidade representaria uma
relação psicológica, correspondendo a um vínculo subjetivo entre a conduta
e o resultado. Ostentaria dois elementos distintos: o dolo e a culpa. Na
teoria psicológica, a culpabilidade era desprovida de qualquer outro item
constitutivo16. A imputabilidade, entendida como a capacidade de ser
culpável, era seu pressuposto, não parcela da culpabilidade17.

A teoria psicológica revelou-se dominante durante parcela dos


séculos XIX e XX, sendo superada pela teoria psicológico-normativa.
Sua obsolescência decorreu, precipuamente, ante as incongruências da
teoria no tocante à análise da culpa inconsciente18, na qual impossível
visualizar o pretenso liame psíquico. Tal limitação obstaria a edição de
um conceito superior de culpabilidade, apto a abranger suas duas espécies,
dolosa e culposa, máxime considerando a dificuldade decorrente da própria
distinção ontológica dos institutos, aquele psíquico, este normativo19. Não
só: a dificuldade de explicar satisfatoriamente as causas diminutivas ou
excludentes da responsabilidade penal (v. g. estado de necessidade, emoções,
embriaguez, enfim, as causas de exculpação), onde a presença do dolo é
evidente (portanto, há nexo psicológico), todavia inexiste culpabilidade,
operou como fator importante para superação da teoria20.
15 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
16 Ibidem.
17 A teoria psicológica e o movimento do naturalismo-causalista receberam influência do modelo positivista de
ciência. Esse paradigma apresentou forte admiração às ciências experimentais, com rejeição às instituições de
caráter metafísico. A utilização de métodos descritivos e classificatórios, excludentes da filosofia e dos juízos
de valor, bem representam as pretensões de cientificidade inerentes a tal etapa histórica. As noções da ação
penal como um mero movimento físico são típicas desse período (MIR PUIG, 2007).
18 A culpa pode ser consciente ou inconsciente. Na culpa inconsciente, o resultado não é previsto pelo agente,
também denominada de culpa ex ignorantia. Contrapõe-se à culpa consciente ou com previsão (ex lascivia),
quando o sujeito ativo antevê o resultado, porém espera a sua não efetivação. Assemelha-se ao dolo eventual,
mas não necessariamente traduz uma maior periculosidade ou desajuste da pessoa (NORONHA, 2004).
19 A regra incriminadora é formada por integração dos elementos objetivos e subjetivos. Os primeiros não se
correlacionam com a vontade do agente, subdividindo-se em descritivos (aferíveis mediante verificação sensorial,
num juízo de realidade) e normativos (captáveis por uma verificação espiritual, de sentimentos e opiniões, num
juízo de valoração). Os elementos subjetivos, por sua vez, centram-se na intenção do criminoso (NUCCI, 2014).
20 BITENCOURT, op. cit.
Paulo Henrique Figueredo de Araújo 201

O insucesso da tese psicológica abriu espaço para o desenvolvimento


da teoria psicológico-normativa da culpabilidade. Idealizada inicialmente
por Frank no contexto cultural da superação do positivismo-naturalista,
restou aprimorada por Goldschmitdt e Freudenthal. Partiu de uma base
naturalista-psicológica, à qual se acrescentaram postulados da teoria dos
valores, revelando nítida influência do movimento Neokantista21. Na teoria
psicológico-normativa, o dolo e a culpa deixariam de ser considerados
espécies isoladas de culpabilidade, para constituir elementos não exclusivos.
Nesse conceito de culpabilidade, necessários outros elementos para a
perfectibilização. Isso porque a concepção vislumbra a culpabilidade como
externa ao agente, não mais como um vínculo entre o sujeito e o fato,
contudo, como um juízo valorativo22.

Na teoria psicológico-normativa, sensíveis as mudanças em relação


à sua antecessora: a) a imputabilidade, que, na teoria psicológica, era
pressuposto da culpabilidade, passa à condição de elemento; b) dolo ou
culpa, outrora espécies de culpabilidade, transmudam-se em um dos seus
elementos; c) inclui-se um terceiro elemento, a exigibilidade de conduta
diversa, conhecida como “poder de agir de outro modo”.

Na concepção psicológico-normativa, o dolo deixa de ser puramente


psicológico (natural), passando a ser também normativo. Portanto, ostentaria
os dois aspectos simultaneamente: psicológico (vontade e previsão) e
normativo (consciência da ilicitude), configurando um dolo “híbrido”,
isto é, psicológico-normativo. Não obstante, a adoção de um dolo híbrido
criou um problema a respeito da punibilidade do criminoso habitual ou
por tendência23. Esse criminoso, em virtude do seu meio social, não tinha
consciência da ilicitude, pois nascido e criado em determinado grupo no
qual as condutas ilícitas eram consideradas normais, corretas e esperadas.
Nesse sentido, somente seria possível concluir a inexistência de dolo pelo
indivíduo, pois não tinha consciência da ilicitude24.

21 A insuficiência do modelo científico-naturalista implicou na superação do positivismo na ciência penal,


com o retorno da filosofia. A antijuridicidade não decorreria da pura conduta, mas de seu significado
social. O retorno do valor permitiu ao neokantismo ofereceu a fundamentação metodológica aos
institutos jurídicos penais do período (MIR PUIG, 2007).
22 BITENCOURT, Op. cit.
23 No crime habitual, a pluralidade de atos, em seu conjunto, é um elemento do tipo. Difere do crime
continuado, pois neste cada uma das condutas agrupadas, por si só, reúne todos os requisitos para a
configuração do delito (NUCCI, 2014). O crime habitual exige a reiteração de condutas. O ato isolado
não configura ofensa relevante ao bem jurídico protegido (GOMES, 2007).
24 BITENCOURT, Op. cit.
202 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 217-214, jul./set. 2017

As limitações da teoria psicológico-normativa abriram espaços para


a concepção da teoria normativa pura, decorrente do movimento finalista
de Hans Welzel, na qual a culpabilidade seria composta unicamente por
elementos normativos. Deveras, uma das principais contribuições da teoria
revelou-se na extração dos elementos subjetivos (dolo e culpa) do âmbito
da culpabilidade, dando-lhe uma concepção normativa “pura”, reservada
para circunstâncias inerentes à reprovabilidade da conduta. Portanto, o
dolo e culpa não mais considerar-se-iam espécies (teoria psicológica) ou
elementos da culpabilidade (teoria psicológico-normativa), pois integrantes
do tipo penal. Substanciais alterações também verificaram-se no tocante ao
conhecimento da proibição, o qual deixa de ser atual, tornando-se apenas
potencial25. Portanto, na reestruturação proporcionada pelo finalismo,
a culpabilidade normativa pura resume-se à imputabilidade, consciência
potencial da ilicitude e exigibilidade de conduta conforme o Direito.

A imputabilidade representa a capacidade ou aptidão para ser culpável,


centrando-se, portanto, nas condições de atribuibilidade do injusto. Na
orientação finalista, deixou de ser pressuposto prévio da culpabilidade,
para converter-se em condição central. Para Welzel, essa capacidade de
culpabilidade apresentaria dois momentos específicos: um cognoscivo,
corporificado na capacidade de compreensão do injusto, e outro volitivo,
representante da possibilidade de determinação da vontade segundo essa
compreensão. A ausência de qualquer desses aspectos seria suficiente para
afastar a imputabilidade penal26.

O segundo elemento, consciência da antijuridicidade, na corrente


tradicional, causalista integrava a culpabilidade, pois inerente ao dolo.
Ocorre que, com transferência do dolo para o injusto, como dolo natural
(psicológico), o exame desse aspecto permanece na culpabilidade, não
mais como conteúdo psicológico, do conhecimento efetivo, mas como
viabilidade, normativamente determinável, de dito conhecimento
(consciência “potencial”). A virtual ciência da ilicitude, na orientação
finalista, não afasta o dolo natural, mas exclui a culpabilidade, no caso de
erro de proibição invencível. Em se tratando de erro de proibição vencível,
a culpabilidade resta atenuada27.

O terceiro elemento refere-se à exigibilidade de obediência ao direito.


Uma vez configurada a imputabilidade e a possibilidade de conhecimento

25 BITENCOURT, op. cit.


26 Ibidem.
27 Ibidem.
Paulo Henrique Figueredo de Araújo 203

do injusto, caracterizada materialmente a culpabilidade. Não obstante, tais


circunstâncias, por si só, revelam-se insuficientes para reprovar a resolução
da vontade, pois necessário aferir a possibilidade concreta do autor, capaz
de culpabilidade, poder adotar sua decisão de acordo com o conhecimento
do injusto, ou seja, assentar pela inexigibilidade de outra conduta28.

O finalismo não consiste em uma corrente uniforme de entendimento,


apresentando divergências entre seus estudiosos. Todavia, duas vertentes
merecem sem destacadas aqui: a teoria extremada da culpabilidade e a
teoria limitada da culpabilidade.

A teoria extremada da culpabilidade parte da reelaboração dos


conceitos de dolo e de culpabilidade, empreendida pela doutrina finalista –
separação do dolo da consciência da ilicitude, o qual seria transportado o tipo
penal, compondo a culpabilidade a consciência da ilicitude e exigibilidade
de outra conduta. Com essa nova estrutura da conduta punível, se o erro (as
formas de erro serão tratadas no tópico subsequente) passa a incidir sobre
o elemento intelectual do dolo, a previsão o excluirá, sob a qualificação
de erro do tipo, por recair sobre um dos elementos constitutivos do tipo
penal – se dolo é parte do tipo, e se há erro de dolo, há erro de tipo.
Noutra banda, caso o erro incida sobre a potencial consciência da ilicitude
(elemento da culpabilidade), têm-se um erro de proibição, o qual não afeta
o dolo, componente do tipo.

Seguintes as consequências dessa nova estrutura de erro: a) no erro de


tipo, o equívoco vicia o elemento intelectual do dolo (a previsão), impedindo
a concretização do tipo. Todavia, por não mais integrar a culpabilidade, a
ausência de dolo não influi nessa, permitindo-se a configuração do crime
culposo, caso exista a previsão legal; b) No erro de proibição, anula-se a
consciência da ilicitude (elemento da culpabilidade). Se inevitável, impede
a condenação a qualquer título (dolo ou culpa); se for evitável, atenua a
pena, contudo, sem afastar a configuração do crime doloso29.

A teoria extremada da culpabilidade tem muitos pontos em comum


com a teoria limitada. Divergem, todavia, quando o erro recai sobre as
causas de justificação. Para a teoria extremada, todo o equívoco sobre uma
causa de justificação é um erro de proibição. Para a teoria limitada, existem
duas espécies de erro: a falha na percepção dos pressupostos fáticos de uma
causa de justificação, denotando um erro de tipo permissivo (portanto, apto a

28 BITENCOURT, op. cit.


29 Ibidem.
204 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 217-214, jul./set. 2017

excluir o dolo); aquele sob a existência ou abrangência da causa de justificação,


considerado erro de proibição (excluindo a culpabilidade, se inevitável ou
atenuando a pena, se evitável). A teoria limitada da culpabilidade revela-se
a adotada pelo Código Penal atual, conforme expressa alusão promovida
pela Exposição de Motivos, item 19, da Reforma Penal de 198430.

A mutação nas teorias da culpabilidade e sua situação no âmbito das


escolas penais revela-se essencial ao entendimento da temática, podendo
ser sintetizada da seguinte forma:

a) No causalismo, o tipo era puramente objetivo, considerando-se


a tipicidade parcela neutra do delito. Os elementos psicológicos
integrariam, exclusivamente, a culpabilidade (por tal motivo, fala-se
em teoria psicológica). Tratou-se de típica manifestação do positivismo
científico, cujo desiderato foi afastar-se de contribuições filosóficas,
psicológicas e sociológicas. O ressurgimento da filosofia kantiana,
com especial atenção ao normativo e psicológico, iniciou a crítica da
concepção neutra da tipicidade, sublinhando o aspecto valorativo do tipo
legal, não mais descritivo de uma conduta neutra, pois negativamente
valorada pelo legislador.

b) Na fase neokantista, a culpabilidade não passaria a ostentar elementos


unicamente psicológicos (subjetivos), mas também valorativos
(normativos) – motivo pelo denomina-se a culpabilidade desse momento
de teoria psicológico-normativa. O tipo penal não seria objetivo e
neutro, todavia, objetivo e valorativo.

c) No finalismo, a culpabilidade perde todos os elementos psicológicos,


deslocados para o tipo penal. A tipicidade passa a ser composta de
elementos objetivos e subjetivos – a finalidade da ação integraria o
injusto. A culpabilidade, por sua vez, não abarcaria qualquer elemento
psicológico, somente normativos – a culpabilidade é puro valor, motivo
pelo qual se denomina teoria normativa pura da culpabilidade.
30 Nelson Hungria (1958), ao comentar o Código Penal de 1940 (Decreto-Lei nº 2.848/1940), na redação
anterior à reforma da Parte Geral promovida pela Lei nº 7.209/1984, discorre sobre a culpabilidade como
uma relação de causalidade psíquica vinculando o fato ao agente, a ser verificada in concreto, denotando
a necessidade do “querer a ação ou omissão e o resultado”. Revelar-se-ia indispensável a consciência
da injuricidade da própria conduta ou a inescusável inadvertência quanto ao resultado. Portanto, a
culpabilidade teria como pressuposto a capacidade de direito penal, ou seja, a imputabilidade, a qual
denotaria, em síntese, a capacidade de autodeterminação e entendimento jurídico segundo o homem
médio. Essa mesma culpabilidade assumiria duas formas específicas, quais sejam, o dolo e a culpa strictu
sensu. Trata-se de descrição a qual enquadra o Código Penal de 1940, em sua redação original dentre os
diplomas acolhedores da teoria psicológica da culpabilidade.
Paulo Henrique Figueredo de Araújo 205

Exposta a evolução histórica da teoria da culpabilidade, com sua


progressiva “purificação”, até a consolidação da teoria normativa-pura,
adotada na sua versão limitada pelo Código Penal após a reforma de 1984,
possível prosseguir na temática, com elucidações relativas ao erro, e seus
reflexos sobre o delito.

3 ERRO DE TIPO E ERRO DE PROIBIÇÃO NO DIREITO PENAL

Conforme assentado no tópico anterior, a evolução da teoria da


culpabilidade até o movimento finalista implicou no descolamento do dolo
e culpa para o tipo, numa progressiva “purificação” da culpabilidade, a qual
passaria a ostentar unicamente elementos normativos – denotando típico juízo
de valor. Para o aperfeiçoamento da temática, necessário abordar circunstâncias
também importantes na definição da punibilidade: os erros, subdividido em
duas espécies importantes – o erro de tipo e o erro de proibição.

No Direito Penal, o erro relevante é aquele apto a viciar a vontade,


causando uma falsa percepção da realidade, ou viciando o conhecimento da
ilicitude. Pode incidir sobre os elementos estruturais do delito, denominando-
se erro de tipo, ou sobre a ilicitude da ação, o erro de proibição31.

O erro de tipo recai sobre circunstância constitutiva de elemento


essencial do tipo, representando uma equivocada percepção ou ignorância
da realidade – seja erro quanto aos conceitos fáticos ou quanto aos jurídicos.
Trata-se de modalidade de erro regulada pelo art. 20, caput, do Código
Penal32. Nessa variante, o vício recai sobre componente anímico – a previsão
–, impedindo sua abrangência sobre todas as facetas essenciais do tipo.
Por excluir o dolo, permite a punição a título de culpa, se prevista em lei:
afinal, o erro de tipo comumente deriva de uma falta de atenção e cuidado
por parte do agente. Essa condenação culposa revela-se possível pela
circunstância de o dolo não mais se encontrar na culpabilidade, a qual
perfectibiliza-se mesmo sem aquele33.

O erro de proibição, por sua vez, incide sobre a ilicitude de um


comportamento. O agente supõe, por deslize, lícita sua conduta. O objeto não
é a lei, nem o fato, mas a ilicitude – o juízo equivocado sobre o admitido de

31 BITENCOURT, op. cit.


32 Erro sobre elementos do tipo: Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o
dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
33 TOLEDO, Francisco de Assis. Erro de tipo e erro de proibição no projeto de reforma penal. Revista da
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 20, p.23-38, jun. 1983.
206 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 217-214, jul./set. 2017

se fazer em sociedade34. Erra-se sobre a permissividade do fato, entretanto,


com consciência de realizar-se o tipo legal – ou seja, sabe exatamente as
condutas praticadas, integrantes do tipo penal –, acreditando, erroneamente,
na permissividade35. Cuida da concreta ausência no agente da consciência da
ilicitude de uma determinada conduta. Conforme salientado em momento
anterior, com o finalismo de Welzel, a consciência da ilicitude deixe de ser
atual, passando-se a analisá-la em potencial. Não se trata de uma noção
técnico-jurídica do injusto, mas profana, abarcando normas de cultura,
princípios morais e éticos. Nem sempre existe coincidência de dever jurídico
com o dever moral, pois, comumente, o Direito resguarda bens jurídicos
alheios ou contrários à moral, por questões de política criminal.

Welzel, na reelaboração do conceito da consciência da ilicitude,


introduziu-lhe um novo elemento, qual seja, o “dever de informa-se”: necessário
perquirir sobre a possibilidade do agente adquirir a consciência do injusto, ou
se ocorreu negligência em não adquiri-la. O erro somente seria justificável
na hipótese de não ocorrer censurável desatenção ou falta do dever cívico de
informar-se. No direito penal brasileiro, essa noção revela-se bem clara no
art. 21 do Código Penal.

Interessa ressaltar a diferença entre a inconsciência da ilicitude de um


comportamento (caráter injusto) e a desconhecimento da norma legal. Este
último, a ignorantia legis, revela-se matéria de aplicação da lei, a qual, por
ficção jurídica, se presume cógnita por todos. Noutra banda, a primeiro
consubstancia erro de proibição, concernente à culpabilidade. A ignorância
da lei representa o desconhecimento dos dispositivos legislados, enquanto a
ignorância da antijuridicidade denota desconhecimento da contrariedade da ação
ao Direito – falta, ao agente, a representação da ilicitude do comportamento. A
ignorância da lei facilita o erro sobre a ilicitude, com ele não se confundindo.

O Código Penal, em sua redação original, continha uma regra


específica declarando que “a ignorância ou errada compreensão da lei
não eximem de pena” (art. 16). Tal problema poderia, quando muito,
constituir uma circunstância atenuante, se a ignorância ou o erro fossem
escusáveis (art. 48, III). Com a reforma determinada pela Lei nº 7.209/1984,
a presunção do conhecimento da lei teria perdido o caráter absoluto – ela
permanece, mas nítido restou o apartamento do desconhecimento da lei
e o desconhecimento do ilícito –, sendo especialmente representativa do
desprestígio do dogma da irrelevância da ciência quanto à lei penal, ante

34 BITENCOURT, op. cit.


35 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 14. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
Paulo Henrique Figueredo de Araújo 207

a multiplicação das normas incriminadoras, cunhadas no desiderato de


proteção dos bens e interesses particularizados36.

Superada a distinção entre desconhecimento da lei e do caráter


antijurídico, interessa consignar os reflexos do erro de proibição. Quando
inevitável, exclui a culpabilidade, impedindo a imposição da pena, nos
termos do art. 21. Evitável, a punição revela-se cabível, sem alteração
da natureza do crime, com pena reduzida (art. 21, parágrafo único,
CP/40). A evitabilidade do erro de proibição deve ser aferida segundo
os parâmetros ordinários de diligência. Caso houvesse mínimo empenho
em se informar, potencializando-se o agente à aquisição do conhecimento
da realidade, o erro de proibição torna-se inescusável. Diferenciam-se,
portanto, pela circunstância de, no erro escusável, o agente, à época da
realização da conduta, encontrar-se desprovido da consciência atual e
potencial da ilicitude. Não possuindo a consciência atual, sem embargos,
sendo possível cientificar-se do caráter ilícito, mediante um juízo de
diligência ordinária, trata-se de erro inescusável37.

Viável sintetizar a temática nos seguintes termos: o erro de tipo


exclui sempre o dolo, seja inevitável ou evitável. Sendo evitável, porém,
não evadido, necessária a investigação quanto à configuração de crime
culposo – caracterizado na existência de fato típico dessa modalidade.
Noutra banda, o erro de proibição exclui a culpabilidade somente quando
inevitável, independentemente da configuração do dolo ou culpa, pois
não aperfeiçoado do juízo de censura inerente à culpabilidade38. Se o
conhecimento da antijuridicidade revelava-se consentâneo com a realidade
do agente, não há erro de proibição, pois na teoria finalista, suficiente
a ciência virtual.

Delimitadas as noções essenciais do erro de tipo e do erro de


proibição, possível um entendimento mais apurado da situação estrutural
da improbidade administrativa, segundo a aplicação dos explanados
preceitos de culpabilidade. Essa transposição revela-se de importância
salutar para a compreensão dos efeitos jurídicos das circunstâncias
materiais do ato ímprobo, conforme será exposto pela análise dos exemplos
descritos no tópico seguinte.

36 OTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
37 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
38 TOLEDO, op. cit.
208 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 217-214, jul./set. 2017

4 REFLEXOS DA TEORIA FINALISTA NA FORMAÇÃO DO JUÍZO DE


CULPABILIDADE NA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Especificados os elementos integrantes da teoria normativa pura


da culpabilidade, na sua versão limitada – incorporada no Código Penal
brasileiro –, bem como as hipóteses de erro de tipo e proibição, interessa
promover a aplicação prática desse entendimento no âmbito da improbidade
administrativa. Em momento anterior, explicamos a possibilidade de
transposição dos aludidos preceitos de direito penal à aludida demanda
punitiva cível, ante a unicidade do sistema sancionador estatal – fator
permissivo para incidência da teoria geral do direito penal na delimitação
dos institutos inerentes aos demais ramos punitivos. Na presente etapa,
analisaremos decisões judiciais sob a ótica dessa integração.

O primeiro caso refere-se a Acórdão proferido pelo Tribunal Regional


Federal da 5ª Região, apreciando Apelação interposta em face de decisão
proferida em Ação de Improbidade Administrativa, ajuizada por afronta
ao art. 10, caput, e 11, I, da Lei nº 8.429/199239. O Ministério Público
imputou ao agente o exercício simultâneo de cargo de magistério com
cargo comissionado, em violação ao regime de dedicação exclusiva de
professor de Instituto Federal de ensino. Na ocasião, a Corte assentou
a seguinte premissa: o demandado nunca teria omitido a cumulação de
vínculos funcionais, tendo, inclusive, solicitado parecer de seus superiores
acerca da possibilidade da acumulação. A decisão final afastou a ocorrência
de improbidade, por ausência de dolo do agente.

O decidido teria tomado contornos diversos segundo o defendido no


presente trabalho. Adotando as premissas da teoria finalista da culpabilidade,
o dolo configura-se elemento da antijuridicidade, representando a vontade
livre e deliberada de praticar conduta descrita no tipo penal. Não mantém
conexão com a consciência da ilicitude: enquanto aquele integra o tipo
penal, a consciência potencial compõe a culpabilidade. Aferir a existência
efetiva ciência de acumulação indevida de cargos não equivale a investigar
a presença ou ausência de dolo: exercendo servidor atividades estranhas
ao plexo de atribuições inerentes ao regime de dedicação exclusiva, possui
a consciência e vontade necessária à prática da conduta violadora da lei.
Há dolo e, por conseguinte, há conduta típica.

O desconhecimento do caráter antijurídico do exercício insere-se no


âmbito da culpabilidade: se o servidor acumula deliberadamente os cargos,

39 TRF-5, Apelação Cível nº 562528/RN.


Paulo Henrique Figueredo de Araújo 209

sem embargo, não sabendo da desconformidade dessa atitude, a solução da


problemática recai sobre a consciência potencial da ilicitude. A não ciência
da ilegalidade configura um erro de proibição, pois o agente encontrava-se
diante de uma equivocada percepção sobre a viabilidade da acumulação
de cargos públicos: reputara devido o exercício de determinada função
de assessoramento simultaneamente à ocupação de cargo de professor
dedicação exclusiva, quando, na verdade, não o era.

Conforme destacado em momento anterior, o erro de proibição


poderá ser escusável ou inescusável. No caso, servidor público cercou-
se algumas cautelas, em especial, com a solicitação de parecer da chefia
superior, a qual anuiu com a acumulação. Tal circunstância permite concluir
por uma diligência ordinária do acusado no desiderato de satisfazer o
dever de informação sobre o caráter ilícito da conduta. Não obstante os
esforços empregados, a parte teria sido induzida no sentido da legitimidade
da acumulação. A situação denota um erro de proibição escusável, cujo
consectário principal é a isenção da pena.

Em síntese: o desconhecimento da ilicitude – v. g. ciência da possibilidade


de acumulação de cargos públicos – não implicaria na ausência de infração
administrativa ou improbidade por não configuração do dolo (circunstância
apta a afastar a tipicidade da conduta). O dolo materializa-se na execução das
materialidades previstas no tipo (acumular cargos), de forma consciente e
desejada, independente do servidor público saber ou não do caráter injusto da
conduta. A inconsciência da ilicitude representa uma problemática inerente
à culpabilidade, configurando erro de proibição, apto ou não a afastar a
punibilidade, dependendo do grau de evitabilidade do equívoco.

Situações como a relatada denotam o comum baralhamento


promovido nas Ações de Improbidade Administrativas, cambiando-se
as noções de dolo e consciência da ilicitude. O ponto central do equívoco
circunscreve-se conclusão de inexistir o dolo quando o agente desconhece
a ilicitude do fato praticado improbidade. O não aperfeiçoamento do dolo
ocorre em hipóteses diversas, em especial, quando inexiste a intenção de
praticar o fato típico (v. g., a ausência de volitividade no exercício simultâneo
cargos inacumuláveis). Repisemos: a ausência de conhecimento da ilicitude
insere-se na culpabilidade.

Outro caso interessante, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça


(STJ), também denotou confusão dos conceitos inerentes à culpabilidade40.

40 AgRg no REsp nº 1.358.567/MG.


210 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 217-214, jul./set. 2017

Na ocasião, havia sido ajuizada Ação de Improbidade Administrativa em


face de Prefeito, com base no art. 11 da Lei nº 8.429/1992, pela contratação
de servidores sem concurso público. A Corte reputou não configurado
ato ímprobo, pois, não obstante a ilegalidade na admissão, o dolo restaria
afastado pela existência de lei local autorizando a contratação, a qual,
apesar de inconstitucional, não teria sido impugnada perante o Judiciário.

Novamente, não se está diante de falta de dolo, mas de temática


relativa à cogência ou não da atuação de outro modo. A existência de lei
local prevendo a admissão de agentes sem o certame público, conforme
exigido pelo art. 37, II, da CF/88, não concerne ao dolo (elemento do tipo).
Pelo contrário: integra juízo inerente à culpabilidade, mais especificamente,
à inexigibilidade de conduta diversa. A prática do ato restou justificada pela
existência de lei local, a qual, apesar de inconstitucional, nunca havia sido
apreciada pelo Judiciário. Não se pode exigir a atuação em desconformidade
com a lei local, mesmo que inconstitucional, máxime quando o gestor
público sequer ostenta legitimidade para iniciar o processo de controle
concentrado de constitucionalidade41.

O exercício mental proposto – transposições das noções da teoria da


culpabilidade do direito penal para as demandas por improbidade administrativa
– poderia ser indefinidamente repetido em diversos julgados, não sendo a
intenção aqui promover uma extensa exposição exemplificativa. As hipóteses
retromencionadas permitem satisfatória ilustração da proposta do trabalho.

5 CONCLUSÕES

No presente estudo, objetivou-se demonstrar o entendimento de


diversos doutrinadores, bem como da jurisprudência do STJ, quanto à
aceitação de postulados do direito penal e processual penal sobre ação de
improbidade administrativa. Essa transposição de institutos decorreria,
precipuamente, do alto grau de correlação entre a persecução penal e aquela
preceituada pela Lei nº 8.429/1992. Observou encontrar-se em estágio bem
desenvolvido o debatido sobre a unicidade do jus puniendi estatal, inclusive,
como um dos vetores essenciais da segurança jurídica e do Estado de Direito.

As premissas expostas no trabalho, permitiriam a aplicação dos preceitos


da teoria da culpabilidade do direito penal ao juízo de valor promovido no
tocante aos ilícitos de improbidade administrativa. Nesse sentido, advogou-

41 O art. 103 da Constituição Federal não elenca os prefeitos municipais como legitimados para a propositura
das ações concentradas de constitucionalidade, quando a Carta Magna for o paradigma em controle.
Paulo Henrique Figueredo de Araújo 211

se pela estruturação dos elementos do delito na Lei nº 8.429/1992 segundo a


teoria normativa-pura, subscrita no finalismo de Welzel, na versão limitada,
acolhida pelo atual Código Penal brasileiro, conforme externado na Exposição
de Motivos, item 19, da Reforma Penal de 1984.

Portanto, a culpabilidade, na improbidade administrativa, deveria ser


visualizada com base nos elementos da imputabilidade, potencial consciência
da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa – todos componentes normativos,
denotadores de um juízo de valor. O dolo (vontade livre e deliberada de cometer o
fato descrito no tipo) e culpa (imprudência, imperícia e negligência na realização
de um ato) integrariam o conceito de tipicidade, prévio à análise da culpabilidade.
O equívoco quanto aos elementos constantes na descrição do tipo afastaria
dolo, portanto, excluiria a tipicidade do ato ímprobo – permitindo a punição, se
evitável o erro, a título de culpa, prevista somente nas hipóteses do art. 10 da Lei
nº 8.429/1992 –, caso de erro de tipo. Noutra banda, a falsa percepção quanto à
juridicidade da conduta entraria como equívoco quanto à potencial consciência
da ilicitude, podendo ser evitável ou inevitável, afastando a punibilidade pela
improbidade ou operando como um fator de redução da pena, respectivamente
– caso de erro de proibição.

Observou-se, por meio da análise de casos práticos, que a adoção


desses parâmetros de aferição da culpabilidade no rito sancionador da Lei
nº 8.429/1992 permite um melhor entendimento da formação do juízo de
inocência ou culpa nas ações de improbidade administrativa. Ademais,
apresenta o mérito de tornar mais adequada a definição das consequências
das circunstâncias envoltas do ato reputado ímprobo, permitindo uma a
delimitação precisa da improcedência da ação, ou da punição a ser aplicada ao
agente condenado. Isso porque, conforme demonstrado, não rara a confusão
de elementos como dolo, erro de proibição e exigibilidade de conduta diversa,
cuja aferição na improbidade deve ser promovida na mesma forma em que
concebida no direito penal.

Labora o estudo, portanto, no desiderato de fornecer segurança


jurídica àqueles processados por improbidade, bem como fornece uma
base técnica adequada para juristas envoltos na temática.
212 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 217-214, jul./set. 2017

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Paulo Henrique Figueredo de. A aplicação do sistema de


impenhorabilidades na execução de sentenças em improbidade administrativa.
2015. 60 f. Monografia (Especialização) - Curso de Especialização em Direito
Eleitoral e Improbidade Administrativa, FESMP/MT, Cuiabá, 2015.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria geral do delito. 2. ed. São Paulo:


Saraiva, 2004.

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em: <http://hdl.handle.net/10183/4574>. Acesso em: 03 maio 2014.
Recebido em: 01/03/2016
Aprovado em: 01/09/2016

A CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 30,


INCISO IX, DA LEI 8.212/91 QUE PREVÊ
HIPÓTESE DE RESPONSABILIDADE
TRIBUTÁRIA DE MEMBROS DE UM
MESMO GRUPO ECONÔMICO POR DÉBITO
PARA COM A SEGURIDADE SOCIAL
THE CONSTITUTIONALITY OF THE ARTICLE 30, CLAUSE IX, OF
LAW 8.212/91, WHICH ASSIGNS TRIBUTARY RESPONSIBILITY FOR
THE MEMBERS OF THE ECONOMIC GROUP FOR AMOUNTS OWED
TO SOCIAL SECURITY

Renata Melo Noger


Procuradoria da Fazenda Nacional
Pós-graduanda em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera/SP

SUMÁRIO: Introdução; 1. A importância da


Seguridade Social para o exercício de direitos
fundamentais; 2. As contribuições sociais que custeiam
a Seguridade Social; 3. Responsabilidade tributária
de membros de grupo econômico por débitos para
com a Seguridade Social; 4. Constitucionalidade
do art. 30, inciso IX, da Lei 8.212/91; 5 Conclusão;
Referências.
216 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

RESUMO: É notória a necessidade de se assegurar a eficiência na


arrecadação tributária do país, tendo em vista principalmente o fato de
que é dos seus orçamentos que os Entes da Federação retiram verba para
custear políticas públicas que visem a implementar direitos e garantias
individuais na área da saúde, previdência e assistência social, tal qual
preconiza o art. 195 da Constituição Federal. O presente trabalho se
propõe a analisar a constitucionalidade do inciso IX do art. 30 da Lei nº
8.212/61, que autoriza a atribuição de responsabilidade tributária solidária
a pessoas jurídicas de um mesmo grupo econômico por débitos de qualquer
de seus membros para com a Seguridade Social e amplia a eficiência da
arrecadação tributária, na medida em que amplia os sujeitos passivos
da obrigação e, conseqüentemente, o universo patrimonial penhorável.

Palavras-chave: Seguridade Social. Contribuições Sociais. Grupo


Econômico. Responsabilidade Tributária. Solidariedade.

ABSTRACT: It`s evident the need to ensure efficiency in tax collection


in the country, in view of the fact that it is of their budgets that Entities
of the Federation withdraw money to pay public policies to implement
individual rights and guarantees in health, social assistance and welfare,
as predicts articule 195 of the Federal Constitution. This study aims to
examine the constitutionality of article 30, clause IX, of Law 8.212/91,
which assigns tributary responsibility to companies of the same economic
group for debts of any of its members to the Social Security and increases
the efficiency of tax collection, once increases the number of taxpayers
and, consequently, the attachable heritage.

KEYWORDS: Social Security. Social Contribution. Economic Group.


Fiscal Responsability. Solidarity.
Renata Melo Noger 217

INTRODUÇÃO

Inicialmente cumpre destacar a importância do instituto da


Responsabilidade Tributária para a recuperação do crédito tributário,
notadamente no que toca a identificação de bens passíveis de sofrer constrição
para garantia do débito fiscal, considerando que a atribuição de responsabilidade
a terceiros amplia a gama de sujeitos passivos da obrigação tributária.

Sem arrecadação tributária satisfatória não há como se exigir do Estado


que promova políticas públicas com vistas a diminuir a desigualdade social
e cumprir seu dever constitucional de prestar, de forma eficiente, serviços
na área da saúde e conceder benefícios de previdência e assistência social aos
menos favorecidos.

O art. 195 da Constituição Federal prevê que a seguridade social


seja financiada tanto pelos Entes da Federação, através de seus respectivos
orçamentos, como por toda sociedade, direta ou indiretamente, através das
contribuições sociais.

Para Ana Flávia Messa, através do poder financeiro o Estado obtém


recursos públicos para atender as necessidades coletivas e desenvolver suas
atividades num contexto de planejamento governamental, de tomada de
decisões políticas e de proteção ao patrimônio público, de modo a fortalecer
a Democracia e o Regime Republicano.1

É dizer: o fortalecimento da Democracia e do Regime Republicano


estão intrinsecamente ligados à idéia de eficiência da arrecadação tributária,
porque é de seus orçamentos que os Entes da Federação retiram numerário
para executar políticas públicas voltadas à implementação de direitos
fundamentais dos jurisdicionados.

Sob esse prisma, é importante que o Estado, através de seus agentes


fiscais, valham-se de práticas que assegurem a eficiência na arrecadação
tributária, garantindo inclusive que a parte do crédito não adimplida
voluntariamente seja plenamente recuperável pela via judicial. Dentre tais
práticas está a possibilidade de atribuição de responsabilidade tributária
a terceiros não diretamente ligados à práticas do fato gerador, mas que
possui sim interesse econômico e jurídico na situação que o configura.

1 MESSA, Ana Flávia. Direito tributário e financeiro. 5. ed. São Paulo: Rideel, 2011. p.37.
218 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

No tocante às contribuições vertidas ao custeio da Seguridade Social,


que é a espécie tributária sob enfoque, a arrecadação tributária apresenta
papel mais relevante ainda, considerando a importância da prestação efetiva
dos serviços que formam o tripé da Seguridade Social, serviços estes que, sob
a ótica do Estado, consistem em obrigação, mas sob a ótica do jurisdicionado
consistem em exercício de direito constitucionalmente assegurado.

Em suma, para que seja possível a execução de políticas públicas voltadas


à implementação dos direitos e garantias sociais previstos na Constituição
Federal, dentre eles o direito à previdência, saúde e assistência social, o Estado
deverá se preocupar em manter a eficiência na arrecadação e recuperação do
crédito público. Do contrário, a escassez de dinheiro em seus cofres impedirá
a realização de políticas voltadas à garantia de direitos fundamentais.

1 A IMPORTÂNCIA DA SEGURIDADE SOCIAL PARA O EXERCÍCIO DE


DIREITOS FUNDAMENTAIS

A Seguridade Social está inserida na Constituição Federal no título


da “Ordem Social”, a qual tem por base o primado do trabalho e como
objetivo o patrocínio do bem-estar e justiça sociais, tal qual previsto no
art. 193 da CF.

O tripé em que se funda (saúde, previdência e assistência social),


por sua vez, também se insere no capítulo dos Direitos Sociais, dentro
do Título II - DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS.

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,


a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição.

É de clareza solar a importância da Seguridade Social no texto


constitucional, na medida em que a saúde, a previdência e a assistência
sociais possuem status de direito e garantia fundamental do indivíduo. É
social porque é direito do indivíduo enquanto trabalhador, mão de obra
produtiva dentro da sociedade civil. Tais necessidades são sociais porque,
uma vez não atendidas, irão afetar não apenas o indivíduo em sua vida
privada, mas a sociedade como um todo.

Sérgio Pinto Martins destaca a importância da Seguridade Social


para a vida em sociedade, pois são as políticas e ações nela inseridas
que vão:
Renata Melo Noger 219

atender às necessidades que o ser humano vier a ter nas adversidades,


dando-lhe tranquilidade quanto ao presente e, principalmente,
quanto ao futuro, mormente quando o trabalhador tenha perdido a
sua remuneração, de modo a possibilitar um nível de vida aceitável.
Evidencia-se que as necessidades citadas são sociais, pois desde que
não atendidas irão repercutir sobre outras pessoas e, por consequência,
sobre a sociedade inteira. A OIT também entende que a Seguridade
Social é parte da proteção social como um todo.2

Alexandre de Moraes cita a saúde, previdência e assistência social


como direitos sociais (art. 6º, CF) e assevera que:

Direitos Sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-


se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória
em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de
condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da
igualdade social, e são consagrados como fundamentos do estado
democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal.3

Na concepção de Miguel Horvath Júnior, a Seguridade tem por objetivo


básico manter a normalidade social, primando e zelando pelo trabalho, o
bem-estar e a justiça sociais. Possui como fim precípuo a erradicação das
necessidades sociais, assegurando aos jurisdicionados o mínimo existencial
para a vida em sociedade. Está intimamente ligada à estrutura do Estado e
aos direitos do indivíduo, como forma de assegurar a paz social.4

A Seguridade Social possui papel de destaque no cenário da


política governamental, pelo menos sob a ótica constitucional, pois são as
políticas de seguridade que asseguram ao indivíduo o exercício de direitos
fundamentais, como o acesso a serviços de qualidade na área da saúde, a
benefícios de previdência em razão de incapacidade laborativa temporária
ou definitiva e assistência social, esta última destinada exclusivamente aos
menos favorecidos economicamente.

Miguel Horvath Júnior, ao discorrer sobre o nobre papel da


Seguridade Social, assevera que:

2 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da seguridade social. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 45.
3 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 199.
4 HORVATH Junior, Miguel. Direito previdenciário. 5. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p.26.
220 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

A Seguridade Social é um sistema em que o Estado garante libertação da


necessidade. Sobre a ótica do critério finalístico, através da seguridade
social o Estado fica obrigado a garantir que nenhum de seus cidadãos
fique sem ter satisfeitas suas necessidades sociais mínimas. Não se trata
apenas da necessidade de o Estado fornecer prestações econômicas
aos cidadãos, mas também, do fortalecimento de meios para que o
indivíduo consiga suplantar as adversidades, quer seja prestando
assistência social ou por meio da prestação de assistência sanitária.
Tudo isso independente da contribuição do beneficiário. Todas as
receitas do sistema sairão do orçamento geral do Estado, ou seja, são
direitos garantidos pelo simples exercício da cidadania.5

Discorrendo sobre a Seguridade Social, Carlos Alberto Pereira de


Castro afirma que o Estado, nos termos do art. 3º, IV, da Constituição Federal,
tem como função primordial promover o bem-estar do jurisdicionado e
zelar pela sua segurança. Afirma ainda que a noção de segurança social
- ou seguridade social - abarcaria não apenas a Previdência Social, mas
também as ações no campo da saúde e assistência social, “sendo todas, a
partir de então, custeadas pelos aportes chamados de contribuições sociais,
somados aos recursos orçamentários dos entes públicos.”6

No termos do art. 196 da CF a saúde é direito de todos e dever


do Estado, garantido através de políticas públicas sócio-econômicas que
visem à redução do risco de doenças e ao acesso universal e igualitário
aos serviços para sua promoção.

A previdência social é organizada pelo Poder Público sob a forma


de regime geral, de caráter contributivo e filiação obrigatória, segundo
parâmetros fixados no art. 201 da CF.

A assistência social será prestada pelo Estado a quem dela necessitar,


independentemente de contribuição à Seguridade Social e possui como
objetivos ações de extrema relevância previstas no art. 203 da CF, como,
por exemplo, a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência
e à velhice; o amparo à crianças e adolescentes carentes; a promoção da
integração ao mercado de trabalho; a habilitação e reabilitação de pessoas
portadoras de deficiências, etc.

5 HORVATH., op. cit., p.87.


6 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de direito previdenciário. 6. ed.
revista,. São Paulo: LTr, 2005.p.44.
Renata Melo Noger 221

E é sob a ótica da importância da Seguridade Social - que se baseia


no tripé saúde, previdência e assistência social - e a necessária garantia de
seu custeio pela sua fonte principal - que é a receita advinda da contribuição
social - que a presente análise será desenvolvida.

2 AS CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS QUE CUSTEIAM A SEGURIDADE SOCIAL

As contribuições possuem fundamento constitucional no artigo 149 e,


na concepção de Eduardo Sabbag, podem ser divididas em três espécies, quais
sejam: contribuições de intervenção no domínio econômico, contribuições de
interesse das categorias profissionais ou econômicas e contribuições sociais.
Esta última, por sua vez, comporta uma nova divisão, a saber: contribuição
para a Seguridade Social, contribuição social geral (aquelas que custeiam
campos sociais diversos da seguridade social) e “outras” contribuições, esta
última espécie reservada ao exercício da competência residual da União para
criar outras contribuições para a Seguridade, só que por lei complementar,
no exercício da competência prevista no art. 195, § 4º, CF.7

As contribuições sociais para a Seguridade Social, como o próprio


nome sugere, visam a custear direitos como a saúde, a previdência e a
assistência social, que compõem o tripé da Seguridade Social, subdividindo-
se em previdenciárias e não-previdenciárias.

As contribuições previdenciárias objetivam especificamente o custeio


da Previdência Social, enquanto as não previdenciárias se destinam ao
custeio da Assistência Social e da Saúde Pública. Todas, portanto, são
contribuições destinadas ao financiamento da Seguridade Social e objetivam
angariar fundos para que o Estado execute políticas públicas de efetivação
de direitos constitucionais dos jurisdicionados.

As contribuições previstas no art. 149 da Constituição Federal são espécies


de tributo e, portanto, submetem-se às normas gerais em matéria tributária.

Dessa forma, a teor do disposto no art. 146, III, alínea b, a União,


em que pese poder instituir contribuições sociais por meio de lei ordinária,
inclusive dispondo sobre fato gerador, base de cálculo e contribuintes, com
relação aos demais aspectos da obrigação, como por exemplo previsão de
responsáveis tributários, terá que observar o quorum previsto para aprovação
de lei complementar. Ressalte-se a exceção à regra acima contida no art.
195, § 4º, da Constituição Federal, consistente na contribuição residual da

7 SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p.542/563.
222 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

seguridade social, a incidir sobre uma base de cálculo nova, diferente das
discriminadas nos incisos I ao V do art. 195 da CF, via lei complementar.

Sobre este assunto, são elucidativas as lições de Eduardo Sabbag:

Insta frisar que as contribuições, na esteira do posicionamento adotado pelo


STF (RE 138.284/CE e RE 157.482/ES), estão sujeitas à lei complementar
de normas gerais em matéria tributária (art. 146, III, “b”, CF), isto é, às
próprias disposições do CTN afetas a temas como obrigação, lançamento,
crédito, decadência e prescrição. Frise-se que o art. 146, III, “a”, CF
condiciona os impostos, com exclusividade, à lei complementar definidora
de fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes. A contrario sensu,
afirma-se que as contribuições não dependem de lei complementar para
definição destes elementos fundantes - fatos geradores, bases de cálculo e
contribuintes -, podendo tais matérias estarem adstritas à lei ordinária.8

Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, ao abordarem a questão da


obrigatoriedade de lei complementar estabelecer normas gerais para todas
as espécies tributárias, asseveram:

O STF já resolveu pela existência de cinco espécies de tributos em


nosso ordenamento jurídico. Assim, a lei complementar sobre normas
gerais tributárias será aplicável a todas essas espécies, sem exceção
(RE 138.284). Entretanto, no rol exemplificativo de matérias que
devem ser tratadas pela lei complementar, a Constituição refere-se
à definição de fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos
impostos nela discriminados.

[...]O STF já decidiu que, relativamente às contribuições previstas


no art. 149 da CF/88 (“norma matriz das contribuições sociais, de
intervenção no domínio econômico e corporativas”), não se aplica a
exigência de lei complementar para sua instituição, sendo possível a
definição dos seus fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes
por lei ordinária.9

Como exemplos de contribuições de custeio da Seguridade Social


podemos citar a contribuição previdenciária, a de PIS (Programa de
Integração Social e de Formação do patrimônio do Servidor Público),

8 SABBAG, op. cit., p.537.


9 ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito tributário na constituição e no STF: teoria e
jurisprudência. 13. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007. p. 38.
Renata Melo Noger 223

COFINS e a CSLL (contribuição sobre o lucro líquido), às quais se aplica


as normas atinentes ao custeio da Seguridade Social.

Discorrendo sobre as espécies de contribuições à Seguridade Social


devidas pelo empregador ou pelo empresário, oportuno citar Eduardo
Sabbag:

São contribuições para a seguridade social, incidentes sobre o


empregador ou empresa:

d.1) Contribuição Social Patronal sobre a Folha de Pagamentos;

d.2) Contribuição ao PIS/PASEP;

d.3) Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL);

d.4) Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (COFINS).10

Dessa forma, estando em cobrança débitos de contribuição para


custeio da Seguridade Social, como, por exemplo, PIS, COFINS, CSLL
e contribuição previdenciária, aplicam-se-lhes os comandos normativos
previstos na Lei nº 8.212/91, notadamente as regras de atribuição de
responsabilidade solidária.

3 FUNDAMENTO JURÍDICO PARA ATRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDA-


DE AOS MEMBROS DE UM MESMO GRUPO ECONÔMICO POR DÉBITO
PARA COM A SEGURIDADE SOCIAL

Para garantir a eficiência do custeio da Seguridade Social, a Lei


8.212/1991 trouxe norma de responsabilização do grupo econômico pelo
pagamento de débitos previdenciários de empresas que o integram.

O conceito de grupo econômico foi devidamente estabelecido na


Legislação Trabalhista no art. 2º, § 2º, que assim dispõe:

Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva,


que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e
dirige a prestação pessoal de serviço.

§ 1º - [...]

10 SABBAG, op. cit., p. 575.


224 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

§ 2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma


delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle
ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de
qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação
de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada
uma das subordinadas.

Segundo consta na citada norma trabalhista, grupo econômico seria


o conjunto de empresas que, mesmo com personalidade jurídica própria,
esteja sob a direção, controle ou administração de outra. De acordo também
com o diploma trabalhista, as empresas componentes do mesmo grupo
econômico possuem responsabilidade solidária pelos débitos.

A Lei 5.889/73, que estatui normas reguladoras do trabalho rural,


também prevê uma definição de grupo econômico no § 2º do art. 3º:

Sempre que uma ou mais empresas, embora tendo cada uma delas personalidade
jurídica própria, estiverem sob direção, controle ou administração de outra,
ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem
grupo econômico ou financeiro rural, serão responsáveis solidariamente
nas obrigações decorrentes da relação de emprego.

É nítido o intuito do legislador nas duas lei acima citadas, qual


seja, conferir maiores garantias aos trabalhadores urbanos e rurais no
recebimento de seu crédito trabalhista.

Na lei de custeio da Seguridade Social (Lei 8.212/91), embora não haja


definição de grupo econômico, há previsão expressa de responsabilidade
solidária entre seus membros no art. 30, IX, in verbis:

Art. 30. A arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras


importâncias devidas à Seguridade Social obedecem às seguintes normas:

[...]

IX - as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza


respondem entre si, solidariamente, pelas obrigações decorrentes desta Lei;

De lembrar ainda que o artigo 494 da Instrução Normativa da


Receita Federal do Brasil nº 971/2009, que dispõe sobre normas gerais
de tributação previdenciária e de arrecadação das contribuições sociais,
traz o conceito de grupo econômico.
Renata Melo Noger 225

Art. 494. Caracteriza-se grupo econômico quando 2 (duas) ou mais


empresas estiverem sob a direção, o controle ou a administração de
uma delas, compondo grupo industrial, comercial ou de qualquer
outra atividade econômica.

Referida instrução normativa tem amparo legal no artigo 96 do


Código Tributário Nacional, que define legislação tributária como sendo
o conjunto de leis, tratados e convenções internacionais, decretos e normas
complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações
jurídicas a eles pertinentes. Complementando, o inciso I do artigo 100 do
mesmo diploma legal estabelece que os atos normativos expedidos pelas
autoridades administrativas são normas complementares.

Társis Nametala Jorge afirma que tanto no campo trabalhista, como


no previdenciário, as linhas gerais que delineiam o grupo econômico são as
mesmas, de forma que as mesmas pessoas que estejam respondendo pelas
dívidas trabalhistas também deveriam responder pelas previdenciárias.11

Para Wladimir Novaes Martinez grupo econômico pressupõe


existência de duas ou mais pessoas jurídicas sob o mesmo controle, detendo
os mesmos interesses econômicos. Para ele pouco importa se há coincidência
de proprietários, basta que estejam sob o mesmo comando, com convergência
de políticas mercantis e uniformização de práticas empresariais:

Grupo econômico pressupõe a existência de duas ou mais pessoas


jurídicas de direito privado, pertencentes às mesmas pessoas, não
necessariamente em partes iguais ou coincidindo proprietários,
compondo um conjunto de interesses econômicos subordinados
ao controle do capital. Nessa inteligência, Matarazzo, Bradesco,
Votorantim, Silvio Santos, Petrobrás são grupos econômicos. O
importante na caracterização da reunião das empresas, é o comando
único, a posse de ações ou quotas capazes de controlar a administração,
a convergência de políticas mercantis, a padronização de procedimentos
e, se for o caso, mas sem ser exigência, o objetivo comum.12

Para Wladimir Martinez, a solidariedade fixada no dispositivo é


bastante ampla e basta que uma das componentes do grupo não cumpra

11 JORGE, Társis Nametala. Elementos de direito previdenciário: custeio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
p. 403/404.
12 MARTINEZ, Wladimir Novaes. Comentários à lei básica da previdência social - Tomo I - plano de custeio. 4
ed. São Paulo: LTr, 2003. p. 485.
226 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

sua obrigação fiscal para que qualquer das outras do grupo seja chamada
a adimplir a obrigação pela via da solidariedade.13

Poucos são os comandos legais em vigor no país que amparam a


atribuição de responsabilidade a membros de um mesmo grupo econômico
por dívidas tributárias. O Código Tributário Nacional não trouxe tal
previsão, uma vez que a Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
oferece resistência em aplicar o comando do art. 124, inciso I, do CTN
isoladamente nesta hipótese de aglomerado econômico. 14

Na verdade, em se tratando de cobrança de tributo que não visa a custear


a Seguridade Social, como no caso do imposto sobre a renda da pessoa jurídica, e
no caso de não estarmos diante de um grupo econômico constituído com abuso
da personalidade jurídica por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, não
há comando legal que confira responsabilidade tributária aos membros de um
mesmo aglomerado econômico, pelo simples fato de se agruparem.

Contudo, no caso específico de cobrança de contribuição para a


Seguridade Social, há previsão expressa de responsabilidade solidária a
membros do mesmo grupo econômico no art. 30, inciso IX, da Lei 8.212/91,
de constitucionalidade inconteste, conforme se abordará mais adiante.

Em Direito Tributário, a idéia de responsabilidade está ligada à sujeição


de uma pessoa, que pode inclusive não ser o contribuinte, à exigência fiscal.

Em havendo formação de grupo econômico com estrutura meramente


formal, os membros que o compõe deverão ser tratados como se um só devedor
fossem e o patrimônio de todo o grupo será, na verdade, o patrimônio do
próprio devedor principal. E a correta identificação do patrimônio do devedor
nada mais faz do que permitir a observância do Princípio da capacidade
contributiva, que rege o Sistema Tributário Nacional.

A norma de responsabilização tributária solidária do art. 30, IX, da


Lei 8.212/91 é de suma importância na recuperação do crédito tributário,
uma vez que são numerosos os casos em que o sujeito passivo direto
(contribuinte), aquele que pratica o fato gerador, é desprovido de patrimônio
penhorável, estando os bens do grupo concentrados no patrimônio de
outra pessoa jurídica, que não a contribuinte.
13 MARTINEZ, op cit., p. 485/486.
14 Sobre a inaplicabilidade do art. 124, I, do CTN isoladamente para empresas do mesmo grupo econômico,
conferir precedentes do Superior Tribunal de Justiça: AgRg no REsp 1535048/PR; AgRg no AREsp
603177 / RS; AgRg no AREsp 429923 / SP; AgRg no Ag 1392703 / RS.
Renata Melo Noger 227

Se uma dada contribuição for destinada ao custeio da Seguridade


Social, como PIS, COFINS, CSLL, a ela se aplicam os ditames previstos
no art. 30, IX, da Lei 8.212/91. No citado dispositivo o legislador nada
mais fez do que conferir aplicabilidade ao princípio da solidariedade que
rege a seguridade e observância ao seu caráter contributivo.

A par das considerações já expostas, resta inconteste a aplicabilidade


da Lei nº 8.212/91 para tais contribuições, notadamente o inciso IX,
do artigo 30, que elege o grupo econômico de qualquer natureza como
responsável tributário pelos débitos previdenciários das empresas que o
integram. Trata-se de responsabilidade solidária legal, sem benefício de
ordem, a teor do artigo 124, inciso I, do Código Tributário Nacional. E
assim agira o legislador infraconstitucional para garantir a satisfação dos
interesses contidos na Seguridade Social.

Sérgio Pinto Martins, discorrendo sobre a hipótese de responsabilidade


tributária acima prevista, assim se pronunciou:

A Lei nº 8.212 também especifica que as empresas que integram grupo


econômico de qualquer natureza respondem entre si, solidariamente,
pelas obrigações decorrentes de seus dispositivos (art. 30, IX). Isso quer
dizer que tanto faz se o grupo de empresas for de natureza urbana ou
rural, como por exemplo, bancos ou empresas prestadoras de serviços,
pois a lei usa a expressão “grupo econômico de qualquer natureza”.
Não há benefício de ordem, podendo a dívida ser exigida de qualquer
empresa pertencente ao grupo econômico ou do próprio grupo. Não
há necessidade, pela lei, de demonstrar a existência de incapacidade
financeira entre as empresas para o fim de se exigir a obrigação15.

Daí conclui-se que, em se tratando de crédito devido ao custeio da


Seguridade Social, as empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico são
solidárias entre si pelas dívidas umas das outras. Vejamos a jurisprudência
do TRF 1ª Região a respeito:

TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL.


GRUPO ECONÔMICO DE FATO. RESPONSABILIDADE
TRIBUTÁRIA PREVISTA NO ART. 30/IX DA LEI 8.212/1990.
CABIMENTO. 1. Reconhecida a formação de grupo econômico de
fato, incide a norma inscrita no art. 30/IX da Lei 8.212/1990 quanto à
responsabilidade solidária das empresas integrantes. 2. Os agravantes/

15 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da seguridade social. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 244.
228 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

executados não comprovaram suas alegações de modo a infirmar a


conclusão do juiz de primeiro grau, que adotou as razões indicadas
pela exequente no sentido de que os agravantes participaram nas
“alienações de patrimônio dos sócios para pessoas jurídicas integrantes
do conglomerado, para parentes, cônjuges e entre os próprios integrantes
da unidade gerencial”, bem como “patrimônio de pessoa jurídica sendo
alienado para pessoas físicas, às vezes retornando para outra pessoa
jurídica controlada, tudo a configurar tentativa clara de blindagem
patrimonial”. 3. A certidão positiva com efeitos de negativa não comprova
a adesão da executada ao parcelamento do débito, considerando que
não abrange as contribuições previdenciárias objeto da execução fiscal
originária. 4. Agravo regimental dos executados desprovidos.

(AGA 0017377-28.2014.4.01.0000 / RR, Rel. DESEMBARGADOR


FEDERAL NOVÉLY VILANOVA, OITAVA TURMA, e-DJF1
p.3313 de 29/05/2015)

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO - AGRAVO REGIMENTAL


- RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA - GRUPO ECONÔMICO -
CONFIGURAÇÃO - ART. 124, II DO CTN - ART.30, IX, DA LEI
Nº 8.212/81. 1. O entendimento jurisprudencial predominante tem
sido no sentido de que é admissível a responsabilidade solidária por
dívida fiscal entre componentes do mesmo grupo econômico, quando
existirem provas suficientes de que as empresas integram o referido
grupo, ensejando, desta forma, o redirecionamento da execução. 2. “O
artigo 124, II, do CTN e o artigo 30, IX, da Lei n° 8.212/91, admitem
a responsabilidade solidária por dívida fiscal entre componentes
do mesmo grupo econômico. Havendo provas de que as empresas
integram um mesmo grupo econômico, cabível o redirecionamento da
execução. In casu, configurado o grupo econômico apenas em relação
a uma das empresas embargantes, devido a identidade de sócios e
administradores. A outra, apesar da similitude de denominações, é
pessoa jurídica distinta da executada, não havendo igualdade de sócios
ou qualquer outro elemento que possa afastar a presunção de boa-fé e
demonstrar a existência de fraude ou de grupo econômico disfarçado”.
(in AC n. 2006.72.04.004529-5, TRF da 4ª Região, Primeira Turma,
Relator Desembargador Federal Vilson Darós, D.E. 07/04/2009). 3.
Quanto à manutenção dos demais agravantes no polo passivo, certo
é que “A responsabilização dos sócios advém do art. 134 do CTN,
não constituindo, a medida, perda da propriedade, apenas restrição
da disponibilidade dos bens (REsp nº 172.736/RO) com o intuito
de assegurar o ressarcimento ao erário.” (AP 2009.01.00.060479-
Renata Melo Noger 229

4, DESEMBARGADOR FEDERAL LUCIANO TOLENTINO


AMARAL, SÉTIMA TURMA19/02/2010). Ademais, trata-se
de matéria que demanda dilação probatória, própria da instrução
processual. 4. Na hipótese, os indícios são fortes e a decisão a quo está
fundamentada. 5. Agravo Regimental não provido.

(AGA 0066700-70.2012.4.01.0000 / RO, Rel. DESEMBARGADOR


FEDERAL REYNALDO FONSECA, Rel.Conv. JUIZ FEDERAL
RONALDO CASTRO DESTÊRRO E SILVA (CONV.), SÉTIMA
TURMA, e-DJF1 p.654 de 23/05/2014)

TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DECLARATÓRIOS. EXECUÇÃO


FISCAL. REDIRECIONAMENTO À SÓCIA. GRUPO ECONÔMICO.
OBSCURIDADES E OMISSÕES CONFIGURADAS. VÍCIOS
SANADOS. SEM EFEITOS INFRINGENTES. 1. Configurada a
existência das alegadas obscuridade e omissões no acórdão recorrido. 2.
A agravante tem legitimidade e interesse para recorrer da decisão que a
incluiu na execução fiscal movida contra a empresa da qual era sócia, sendo
cabível a interposição de agravo de instrumento (CPC, arts. 162, § 2º, e 522).
3. A agravante não questionou a “inocorrência de dissolução irregular”,
senão a imediata responsabilidade pessoal dos sócios em decorrência da
dissolução sem a prova dos requisitos do art. 135/III do CTN. 4. A agravante
foi responsabilizada por integrar grupo econômico da qual a executada,
empresa dissolvida irregularmente, também fazia parte. 5. Dispõe o art.
124/II do CTN que são solidariamente obrigadas “as pessoas expressamente
designadas por lei”. Tratando-se de valores destinados à Seguridade Social,
aplica-se o disposto no art. 30/IX da Lei 8.212/1991: “As empresas que
integram grupo econômico de qualquer natureza respondem entre si,
solidariamente, pelas obrigações decorrentes desta Lei.” 6. Embargos
declaratórios do agravante providos sem efeito infringente.

(EDAG 0045890-45.2010.4.01.0000 / BA, Rel. DESEMBARGADOR


FEDERAL NOVÉLY VILANOVA, OITAVA TURMA, e-DJF1 p.1127

TRIBUTÁRIO - PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO REGIMENTAL


- GRUPO ECONÔMICO -RESPONSABLIDADE SOLIDÁRIA -
ART.133 - SUCESSÃO EMPRESARIAL - MEROS INDÍCIOS - NÃO
CONFIGURAÇÃO. 1. O entendimento jurisprudencial predominante
tem sido no sentido de que é admissível a responsabilidade solidária por
dívida fiscal entre componentes do mesmo grupo econômico, quando
existirem provas suficientes de que as empresas integram o referido
grupo, ensejando, desta forma, o redirecionamento da execução. 2. “O
230 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

artigo 124, II, do CTN e o artigo 30, IX, da Lei n° 8.212/91, admitem
a responsabilidade solidária por dívida fiscal entre componentes do
mesmo grupo econômico. Havendo provas de que as empresas integram
um mesmo grupo econômico, cabível o redirecionamento da execução.
In casu, configurado o grupo econômico apenas em relação a uma das
empresas embargantes, devido a identidade de sócios e administradores. A
outra, apesar da similitude de denominações, é pessoa jurídica distinta da
executada, não havendo igualdade de sócios ou qualquer outro elemento
que possa afastar a presunção de boa-fé e demonstrar a existência de
fraude ou de grupo econômico disfarçado. (in AC n. 2006.72.04.004529-
5, TRF da 4ª Região, Primeira Turma, Relator Desembargador Federal
Vilson Darós, D.E. 07/04/2009). 3. “O débito tributário em questão
encontra-se, em princípio, garantido pela indisponibilidade decretada
em relação aos bens de todos os agravados. Registre-se que, in casu, de
fato, há indícios de sucessão empresarial. Todavia, somente indícios não
são suficientes à decretação da corresponsabilidade”. (in AGA 0015829-
70.2011.4.01.0000 / AM, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL
REYNALDO FONSECA, Rel.Conv. JUIZ FEDERAL ARTHUR
PINHEIRO CHAVES (CONV.), SÉTIMA TURMA, e-DJF1 p.1160
de 21/06/2013). 4. “Meros indícios de sucessão não são suficientes
para imputação de responsabilidade tributária à suposta sucessora”
Precedente do STJ (in REsp 844.024/RJ, Rel. Ministro CASTRO
MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/09/2006, DJ 25/09/2006
p. 257). 4. Agravo Regimental não provido

(AGA 0046025-52.2013.4.01.0000 / BA, Rel. DESEMBARGADOR


FEDERAL REYNALDO FONSECA, SÉTIMA TURMA, e-DJF1
p.941 de 24/01/2014)de 17/10/2014)

O Tribunal Regional Federal da 3ª e 4ª Regiões, quanto às


contribuições devidas à Seguridade Social, também defendem a aplicabilidade
do art. 30, IX, da Lei 8.212:

PROCESSO CIVIL: AGRAVO LEGAL. ARTIGO 557 DO CPC. DECISÃO


TERMINATIVA. EXECUÇÃO FISCAL. GRUPO ECONÔMICO.
INCLUSÃO NO PÓLO PASSIVO. AGRAVO IMPROVIDO.

OMISSIS…….

III - A análise da responsabilidade tributária das empresas que compõem


grupo econômico pelo recolhimento de contribuições previdenciárias
deve ser feita à luz dos artigos 124, do CTN; 30, da Lei 8.212/91; e 50
Renata Melo Noger 231

do Código Civil. Nos termos do art. 124, do CTN, “São solidariamente


obrigadas: I - as pessoas que tenham interesse comum na situação
que constitua o fato gerador da obrigação principal”. O legislador
ordinário, de seu turno, tratando especificamente das contribuições
previdenciárias, estabeleceu, no artigo 30, IX, da Lei 8.212/91, que
“as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza
respondem entre si, solidariamente, pelas obrigações decorrentes
desta Lei”.

IV - Os grupos econômicos não são regularmente constituídos, compondo


verdadeiros grupos econômicos de fato, visando, precipuamente, o
benefício de seus integrantes, mediante diversas práticas, dentre elas
o não recolhimento de tributos. Inexistindo o grupo econômico no
plano jurídico, mas apenas no âmbito fático, a responsabilização das
empresas que o integram depende da demonstração de que a formação
do conglomerado consiste, na forma do artigo 50, do Código Civil,
numa prática abusiva e que, apesar da existência de várias pessoas
jurídicas distintas, existe um interesse comum: o indevido benefício
dos sócios em detrimento dos credores e fraude à lei.

V - Há provas de que a executada originária integra o mesmo grupo


econômico de fato a que pertence a agravante, sendo patente a confusão
patrimonial e o interesse comum das empresas.

VI - O fato de a executada originária ter ali defendido os interesses da


ora agravante já sugere o acerto da decisão de primeiro grau em relação
à confusão patrimonial entre estas sociedades e, consequentemente, a
existência de grupo econômico. E isso é reforçado pelo fato de ambas
as empresas serem representadas pelos mesmos causídicos, conforme
se infere do confronto das petições de fls. 02/20 e 259/283.

VII - A realização de penhora de um imóvel pertencente à ora agravante


para garantia de um débito da executada originária, com a anuência de
outra empresa do grupo (Florestal Matarazzo S/A) não deixa dúvida
acerca da efetiva existência de confusão patrimonial.

VIII - Os atos constitutivos juntados aos autos, de seu turno, revelam


que a agravante é sócia da executada originária e que ambas possuem
como sócia a Sra. Maria Pia Esmeralda Matarazzo. Portanto, o contexto
probatório dos autos corrobora o fato notório citado pela decisão de
primeiro grau - “Não é segredo para ninguém, e isso já decorre de
décadas, que a empresa S.A. Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo
232 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

sempre se sobressaiu como líder no conglomerado de várias empresas


pertencentes ao referido grupo, inclusive a aqui executada, e já foi
modelo de pujança em seu auge (...)” -, motivo pelo qual a manutenção
da decisão de primeiro grau é medida imperativa.

OMISSIS……..

(TRF 3ª Região, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, AI 0038437-


08.2011.4.03.0000, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL CECILIA
MELLO, julgado em 23/09/2014, e-DJF3 Judicial 1 DATA:30/09/2014)

REDIRECIONAMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. GRUPO


ECONÔMICO. DÉBITOS DE PIS E COFINS. ART. 30, IX DA
LEI 8.212/91. INDÍCIO DE INFRAÇÃO À LEI. 1. Quanto ao
redirecionamento às empresas NAJE Administração e Participações
Ltda. e JNA Administradora de Bens Próprios, cabe observar que,
em princípio, não se poderia deixar de aplicar o artigo 30, IX, da Lei
nº 8.212/91, ao menos sob o argumento utilizado pela decisão. Ora,
as contribuições ao PIS e à COFINS não deixam de ser, também elas,
contribuições destinadas à Seguridade Social, de forma que, pelo simples
fato de não estarem regulamentadas pela Lei nº 8.212/91, não se poderia
argumentar inexistir responsabilidade solidária entre as pessoas jurídicas
integrantes do mesmo grupo econômico. Não é demais referir que,
em outras execuções fiscais, também restaram apurados indícios de
ter havido o aproveitamento do fundo de comércio entre as empresas,
conforme tive a oportunidade de observar quando do exame do agravo
de instrumento nº 5010744-63.2013.404.0000, da manifestação do
julgador a quo. 2. Havendo indícios a autorizar a responsabilização
tributária tanto das empresas como do sócio, justifica-se a inclusão no
polo passivo da execução fiscal. O redirecionamento se dá, obviamente,
sem prejuízo da ulterior possibilidade de discussão da responsabilização
destas pessoas físicas e jurídicas, em sede de ação que permite dilação
probatória, a fim de examinar eventual alegação de inocorrência de grupo
econômico ou prática de atos contrários à lei. (TRF4, AG 5029388-
54.2013.404.0000, Primeira Turma, Relatora p/ Acórdão Maria de
Fátima Freitas Labarrère, juntado aos autos em 29/04/2014)

EMENTA: EXECUÇÃO FISCAL. GRUPO ECONÔMICO.


REDIRECIONAMENTO. 1. Aplica-se o art. 30, IX, da Lei nº 8.212/91,
com relação à contribuição ao PIS e à COFINS, que são destinadas à
Seguridade Social. 2. Se o sócio-administrador da empresa executada
praticou atos com excesso de poderes ou infração à lei, contrato social ou
Renata Melo Noger 233

estatutos (CTN, art. 135, III), cabível o redirecionamento da execução


contra ele. 3. Caso em que restou demonstrada a interligação entre as
empresas, todas sob a administração centralizada de um dos sócios,
que as constituiu com a fim de impedir que seu patrimônio pessoal e o
das empresas sob seu controle fossem alcançados pela Fazenda Pública.
(TRF4, EDAG 5024886-72.2013.404.0000, Primeira Turma, Relator
Joel Ilan Paciornik, juntado aos autos em 10/10/2014)

No Superior Tribunal de Justiça, em casos em que a cobrança fiscal


se refere a débitos para com a Seguridade Social, o art. 30, IX, da Lei
8.212/91 vem sendo amplamente utilizado para autorizar a atribuição de
responsabilidade tributária aos membros de grupo econômico:

TRIBUTÁRIO E PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPECIAL.


PENA LIDA DE PECU NIÁRIA. R ESPONSABILIDA DE
SOLIDÁRIA DE EMPRESAS INTEGRANTES DO MESMO
GRUPO ECONÔMICO. INTELIGÊNCIA DO ART. 265 DO
CC/2002, ART. 113, § 1°, E 124, II, DO CTN E ART. 30, IX, DA
LEI 8.212/1991.

1. A Lei 8.212/1991 prevê, expressamente e de modo incontroverso,


em seu art. 30, IX, a solidariedade das empresas integrantes do mesmo
grupo econômico em relação às obrigações decorrentes de sua aplicação.

2. Apesar de serem reconhecidamente distintas, o legislador


infraconstitucional decidiu dar o mesmo tratamento – no que se refere
à exigibilidade e cobrança – à obrigação principal e à penalidade
pecuniária, situação em que esta se transmuda em crédito tributário.

3. O tratamento diferenciado dado à penalidade pecuniária no CTN,


por ocasião de sua exigência e cobrança, possibilita a extensão ao
grupo econômico da solidariedade no caso de seu inadimplemento.

4. Recurso Especial provido.

(REsp 1199080/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA


TURMA, julgado em 26/08/2010, DJe 16/09/2010)

EXECUÇÃO FISCAL DÉBITOS PREVIDENCIÁRIOS PENHORA


DE BENS DE EMPRESA QUE NÃO FIGURAVA INICIALMENTE
NO PÓLO PASSIVO NECESSIDADE DE MANIFESTAÇÃO
JUDICIAL A RESPEITO DA EXISTÊNCIA DE GRUPO
ECONÔMICO VIOLAÇÃO DO ART. 535, II DO CPC.
234 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

1 - O art. 30, IX da Lei n. 8.212/91 determina que a responsabilidade


do grupo econômico por débitos previdenciários é solidária, motivo
pelo qual, no caso concreto, é de fundamental importância saber se as
empresas do agravante fazem parte de um conglomerado empresarial.

2 - O Tribunal de origem limitou-se a analisar a questão posta, apenas


sob o enfoque da não-existência de confusão patrimonial.

Silenciou-se, contudo, quanto à eventual configuração de grupo


econômico formado pelas empresas do agravante, violando o art.
535, II do CPC.

3 - A fundamentação do acórdão, de que as empresas do agravante


possuem personalidade jurídica distintas, em nada, nem implicitamente,
enfrentou a questão da existência, ou não-existência, de grupo
econômico entre elas, principalmente quando se sabe que uma das
principais características do grupo é justamente a existência de
entidades autônomas, com personalidades jurídicas distintas, sob o
comando de uma única direção.

4 - Desta forma, a questão de se saber se as empresas do agravante


constituem grupo econômico apresenta-se imprescindível para o deslinde
da controvérsia, motivo pelo qual necessário se faz o retorno do autos ao
Tribunal de origem para que seja suprida omissão sobre referido ponto.

Agravo regimental improvido.

(AgRg no REsp 1097173/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS,


SEGUNDA TURMA, julgado em 23/04/2009, DJe 08/05/2009)

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL.


FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF.
CND. RECUSA AO FORNECIMENTO. GRUPO ECONÔMICO.
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA.

1. É deficientemente fundamentado o Recurso Especial que aponta


dispositivos legais incapazes de infirmar o acórdão hostilizado.

Aplicação, por analogia, da Súmula 284/STF.

2. O Tribunal de origem considerou legítima, com base no art. 124 do


CTN c/c o art. 30 da Lei 8.212/1991, a recusa ao fornecimento de CND
Renata Melo Noger 235

para a empresa porque constatou ter sido reconhecida judicialmente a


confusão patrimonial entre estabelecimentos integrantes de um mesmo
grupo econômico – fato não contestado pela recorrente.

3. Agravo Regimental não provido.


(AgRg no REsp 791.414/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN,
SEGUNDA TURMA, julgado em 23/04/2009, DJe 19/05/2009)

4 A CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 30, IX, DA LEI 8.212/91

À primeira vista poder-se-ia defender a inconstitucionalidade formal


do art. 30, inciso IX, da Lei 8.212, considerando que a Constituição Federal,
em seu art. 146, inciso III, alínea b, reservou à lei complementar a regulação
de normas gerais em Direito Tributário, notadamente sobre obrigação,
lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários.

É certo que o legislador ordinário não detém competência para ditar


regras gerais em matéria tributária, nem tampouco para legislar sobre
responsabilidade tributária (inserida na idéia de “obrigação”), considerando
a reserva de lei complementar prevista pelo art. 146, III, alínea b, da
Constituição da República.

Embora o CTN tenha sido aprovado como lei ordinária, ele fora
recepcionado, em sua maior parte, com status de lei complementar pelas
Constituições de 1967 e 1988. Ademais a maior parte da doutrina e
jurisprudência entendem que os dispositivos do CTN têm caráter de normas
gerais tributárias, de forma que matéria relativa a responsabilidade tributária
deve ser tratada naquele diploma ou em outra lei complementar esparsa.16

Embora a Lei 8.212/91 se trate de lei ordinária, seu art. 30, inciso
IX, retira sua validade do art. 124, inciso I, do CTN, assim redigido:

Art. 124. São solidariamente obrigadas:

I - as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato


gerador da obrigação principal;

II - as pessoas expressamente designadas por lei.

16 ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito tributário na constituição e no STF: teoria e


jurisprudência. 13. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007. p. 37.
236 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

Tal responsabilidade pressupõe que os partícipes do fato imponível


não estejam em posições contrárias. Ao contrário, os partícipes devem
possuir interesse comum na situação que constitua o fato gerador.

Apenas a título de esclarecimento e sem se ater muito ao tema, não há como


validar o art. 30, IX, da Lei 8.212/91 no inciso II do citado art. 124 do CTN, uma
vez que a lei exigida no inciso há que deter status de lei complementar, para estar
em consonância com o art. 146, III, do texto constitucional já mencionado acima.

Sobre esse assunto, o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento


do RE 562.276 em 03/11/2010, em que se discutia a constitucionalidade do
art. 13 da Lei 8.620, tendo por Relatora a Ministra Ellen Gracie, já assentou
que o inciso II do art. 124 não autoriza o legislador a criar hipótese de
responsabilidade de terceiro por lei ordinária. Eis trecho da decisão:

O preceito do art. 124, II, no sentido de que são solidariamente


obrigadas ‘as pessoas expressamente designadas por lei’, não autoriza
o legislador a criar novos casos de responsabilidade tributária sem a
observância dos requisitos exigidos pelo art. 128 do CTN, tampouco
a desconsiderar as regras matrizes de responsabilidade de terceiros
estabelecidas em caráter geral pelos arts. 134 e 135 do mesmo diploma.
A previsão legal de solidariedade entre devedores – de modo que o
pagamento efetuado por um aproveite aos demais, que a interrupção
da prescrição, em favor ou contra um dos obrigados, também lhes
tenha efeitos comuns e que a isenção ou remissão de crédito exonere
a todos os obrigados quando não seja pessoal (art. 125 do CTN) –
pressupõe que a própria condição de devedor tenha sido estabelecida
validamente.

[...]O art. 13 da Lei 8.620/1993 não se limitou a repetir ou detalhar a


regra de responsabilidade constante do art. 135 do CTN, tampouco
cuidou de uma nova hipótese específica e distinta. Ao vincular à
simples condição de sócio a obrigação de responder solidariamente
pelos débitos da sociedade limitada perante a Seguridade Social,
tratou a mesma situação genérica regulada pelo art. 135, III, do
CTN, mas de modo diverso, incorrendo em inconstitucionalidade
por violação ao art. 146, III, da CF. 17

17 STF. RE 562.276, Relatora Ministra Ellen Gracie, julgamento em 3/11/2010. Disponível em: <http://redir.
stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=618883>. Acesso em: 19 fev. 2016.
Renata Melo Noger 237

No julgamento acima referido, o art. 13 da Lei 8.62018 foi declarado


inconstitucional por contrariedade ao art. 146, III, da Constituição Federal, sob
o fundamento de que teria criado hipótese de atribuição de responsabilidade
a terceiro, o que lhe seria vedado por se tratar de lei ordinária.

Assim, considerando a inaplicabilidade do art. 124, II, do CTN ao


caso, o art. 30, IX, da Lei 8.212/91 somente poderia retirar validade do
inciso I do referido artigo.

Muito se discute na doutrina e jurisprudência o que vem a configurar a


hipótese do inciso I do art. 124, ou melhor, quando se pode considerar que as
pessoas possuem interesse comum na situação que constitua o fato gerador?

Para Hugo de Brito Machado o interesse comum há que ser avaliado


caso a caso pelo aplicador do Direito e independe de previsão legal:

A existência de interesse comum é situação que somente em cada


caso pode ser examinada. A solidariedade, em tais casos, independe
de previsão legal.

[...]O interesse comum na situação que constitua o fato gerador


da obrigação, cuja presença cria solidariedade, não é um interesse
meramente de fato, e sim um interesse jurídico. Interesse que decorre
de uma situação jurídica, como é o caso daquela que se estabelece
entre os cônjuges.19

Para Hugo de Brito, nas lições citadas acima, o art. 124, I do CTN
aplica-se aos casos em que pessoas diversas detém interesse jurídico na
situação que constitui o fato gerador, e não um interesse meramente
econômico. Ou seja, para ele o mesmo fato gerador há que ser realizado
conjuntamente por mais de uma pessoa.

Alexandre Macedo Tavares, ao discorrer sobre o que vem a ser


interesse comum na expressão utilizada no inciso I do art. 124 do CTN,
afirma que a pessoa a ser responsabilizada tem que ter interesse jurídico
na situação que constitua o fato gerador e não meramente econômico:
18 Art. 13. O titular da firma individual e os sócios das empresas por cotas de responsabilidade limitada
respondem solidariamente, com seus bens pessoais, pelos débitos junto à Seguridade Social. Parágrafo
Único: Os acionistas controladores, os administradores, os gerentes e os diretores respondem
solidariamente e subsidiariamente, com seus bens pessoais, quanto ao inadimplemento das obrigações
para com a Seguridade Social, por dolo ou culpa.
19 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p.151.
238 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

Conquanto a expressão “interesse comum” encarte um conceito


indeterminado, imperativo proceder-se a uma interpretação sistemática
das normas tributárias, de modo a alcançar a ratio essendi do art. 124, I, do
CTN. Assim, o interesse comum das pessoas não pode ser interpretado
como sinônimo de simples reflexo do interesse econômico no resultado ou
no proveito da situação que constitui o fato gerador da obrigação tributária
principal, pressupondo-se, pois, interesse jurídico, que guarda correlação à
realização comum ou conjunta da situação que constitui o fato imponível.

Afigura-se como responsável solidário, portanto, a pessoa que realiza,


conjuntamente com outra (ou outras pessoas), a situação definida em lei
como necessária e suficiente à ocorrência da obrigação tributária, ou que,
em comum com outras, esteja em relação econômica com o fato, ato ou
negócio jurídico que constitui o núcleo do aspecto material da respectiva
hipótese de incidência tributária.20

Para o autor, não basta que as sociedades empresárias participem


do mesmo grupo econômico para serem responsabilizados nos termos do
art. 124, I, do CTN, elas devem praticar conjuntamente o fato gerador da
obrigação tributária:

Não por outra razão que a desconsideração da pessoa jurídica, mesmo no


caso de grupos econômicos, deve ser reconhecida apenas em situações
excepcionais, isto é, quando evidenciado que a empresa devedora
pertence a grupo de sociedades sob unidade de poder de controle e com
estrutura meramente formal, o que ocorre “quando diversas pessoas
jurídicas do grupo exercem suas atividades sob unidade gerencial,
laboral e patrimonial, e, ainda, quando se visualizar a confusão de
patrimônio, fraudes, abuso de direito e má-fé com prejuízo a credores”
(REsp. nº 968.564/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima,
julgado em 12/12/2008)

Portanto, nunca é demais repetir, para se caracterizar responsabilidade


solidária em matéria tributária entre duas empresas pertencentes
ao mesmo conglomerado financeiro, “é imprescindível que ambas
realizem conjuntamente a situação configuradora do fato gerador,

20 TAVARES, Alexandre Macedo. Sentido e Alcance da Expressão “Interesse Comum” (CTN, art. 124, I) para
Fins de Imputação de Responsabilidade Tributária Solidária às Sociedades Integrantes de Grupo Econômico.
Disponível em: <http://www.tavareseassociados.com.br/application/upload/artigos/68b58788877f4863
66a0333f54c41a20.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2016.
Renata Melo Noger 239

sendo irrelevante a mera participação no resultado dos eventuais lucros


auferidos pela outra empresa coligada ou do mesmo grupo econômico.21

O STJ, no julgamento do REsp 884.845-SC, cuja relatoria foi


exercida pelo Ministro Luiz Fux, entendeu que a pessoa jurídica somente
poderia ser responsabilizada na hipótese do inciso I do art. 124 do CTN
se houvesse provas de que participou da realização do fato gerador:

O interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação


principal implica que as pessoas solidariamente obrigadas sejam sujeitos
da relação jurídica que deu azo à ocorrência do fato imponível. Isso porque
feriria a lógica jurídico-tributária a integração, no polo passivo da relação
jurídica, de alguém que não tenha tido qualquer participação na ocorrência
do fato gerador da obrigação.

Pelas lições acima citadas podemos entender que o só fato de


membros integrarem o mesmo grupo econômico não autoriza a atribuição
de responsabilidade solidária do art. 124, inciso I, do CTN.

Por outro lado, a responsabilidade do art. 124, I, do CTN incidirá


quando as pessoas do grupo econômico praticarem conjuntamente o fato
gerador de obrigação tributária, o que ocorrerá quando se tratar de fato
praticado por membro de grupo econômico constituído com abuso da
personalidade jurídica, configurado pelo desvio de finalidade ou confusão
patrimonial, pois, neste caso, entender-se-á que as diversas pessoas são,
na verdade, a mesma pessoa, cada uma funcionando como se fossem os
tentáculos de um polvo. No exemplo, o polvo seria o grupo e cada um dos
seus tentáculos seria um de seus componentes.

É fato que os grupos de sociedades têm como característica a


independência jurídica de seus integrantes, a unidade de direção e a
separação patrimonial.

Contudo, no caso de haver um grupo econômico constituído mediante


fraude e simulação, o que se verifica, por exemplo, quando há confusão
patrimonial ou utilização de interpostas pessoas, não há como defender
que existirá na hipótese a independência jurídica de seus integrantes, nem
a unidade de gerência ou separação patrimonial.

21 TAVARES, op. cit.


240 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

Társis Nametala Jorge chama a atenção para os casos em que há


simulação na constituição de pessoas jurídicas, com o intuito claro de se
desvincular das demais empresas do grupo:

Doutrina e jurisprudência vêm reconhecendo a existência de grupo


societário, ainda nos casos em que tal circunstância compareça de
forma velada na apuração dos fatos. A doutrina, inclusive, faz-se forte
no argumento do arquétipo dos vasos comunicantes. A doutrina dos
vasos comunicantes reside no reconhecimento das relações de poder
(de coordenação e/ou subordinação) entabuladas entre os integrantes
do grupo econômico para efeitos de responsabilização.22

Társis Nametala Jorge, citando lições de Fábio Konder Comparato


extraídas da obra “O poder e controle na sociedade anônima”, afirma que o
grupo econômico constitui em si mesmo uma única sociedade. E afirmou
ainda que com base nessa tese há quem sustente a inexigibilidade do ISS
sobre serviços prestados entre empresas do mesmo aglomerado econômico,
pois no caso do grupo não há diversidade de empresas, mas uma única.

Assim, na medida em que se considera todo o grupo econômico


como uma única sociedade empresarial, tem-se que todos os seus membros
teriam praticado o fato gerador da obrigação tributária, hábil a atrair a
aplicação do art. 124, I, do CTN.

Na fraude ou conspiração entre sociedades empresárias que integram


o mesmo aglomerado econômico, o interesse comum se evidencia pelo
próprio acordo entre as partes, propiciando a sonegação fiscal. Nessa
hipótese de grupo econômico fraudulento não há o que se discutir acerca
da validade de atribuição de responsabilidade tributária passiva.

Defendendo a combinação do art. 30, IX, da lei nº 8.212 com o art.


124, I, do CTN, assim se posicionou o magistrado federal da 4ª Região,
Mestre e Doutor em Direito, Andrei Pitten Velloso:

Somente em situações específicas é que se poderá estender o vínculo


jurídico-obrigacional a todas as empresas integrantes de grupos
econômicos. É o que ocorre quando resta caracterizado abuso de direito,
esvaziamento patrimonial ou, ainda, quando há atuação empresarial
conjunta, a configurar a coparticipação no fato imponível e atrair, por
conseqüência, a incidência do art. 124, I, da codificação tributária.

22 JORGE, Társis Nametala. Elementos de direito previdenciário: custeio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 399.
Renata Melo Noger 241

Apenas nessas hipóteses o art. 30. IX, da Lei 8.212/1991 pode ser
aplicado de forma válida.23

Assim, ao enxergar o grupo econômico fraudulento como uma só pessoa


jurídica, fica fácil perceber que todas as sua unidades praticam a situação que
configura o fato gerador de obrigação tributária, tendo o condão de atrair a
incidência da responsabilidade solidária do inciso I, art. 124, do CTN.

5 CONCLUSÃO

Em vista da farta argumentação acima, tem-se que a responsabilidade


tributária dos membros do grupo econômico por débitos para com a
Seguridade Social é solidária, com fundamento no art. 30, IX, da Lei
8.212/91, o qual retira sua validade constitucional do art. 124, I, do CTN,
sempre que restar comprovado que a estrutura do grupo é apenas formal e
que, na verdade, todos os membros do aglomerado se tratam de uma única
pessoa, praticando conjuntamente o fato gerador da obrigação tributária.

É inconteste a importância da norma de responsabilização tributária


prevista no art. 30, IX, da Lei 8.212/91 para a recuperação do crédito
público, a qual prevê, para as relações jurídicas que menciona, que as
“empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem
entre si, solidariamente, na medida em que amplia a quantidade de sujeitos
passivos que poderão ser chamados a cumprir com a obrigação fiscal.

A união de pessoas jurídicas em forma de aglomerados econômicos


é uma realidade que não pode ser desconsiderada no mundo atual. E a
perspectiva é a de que tais grupos sejam criados em progressão constante,
na medida em que claramente possibilitam a redução dos custos da atividade
empresarial e o aumento dos lucros.

O objetivo da Lei 8.212/91, ao prever expressamente a solidariedade


na responsabilidade dos membros do grupo econômico para com os débitos
à Seguridade Social, em verdade, apenas cumpriu com seu intuito teleológico
de exigir garantias e estabelecer proteção ao custeio da Seguridade Social,
tendo em vista que as políticas de seguridade objetivam assegurar a fruição
de direitos fundamentais pelo cidadão, previstos na Carta Magna.

23 VELLOSO, Andrei Pitten. Responsabilidade tributária das empresas integrantes de grupos econômicos.
Jornal Carta Forense, Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/responsabilidade-
tributaria-das-empresas-integrantes-de-grupos-economicos/15751>. Acesso em: 19 fev. 2016.
242 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 239-242, jul./set. 2017

É fato que toda iniciativa estatal de atribuir responsabilidade tributária


a uma pessoa por débitos fiscais de outra acaba por desestimular a prática
da atividade produtiva pela iniciativa privada. Contudo, em que pese a
necessidade de o Estado também proteger a liberdade de iniciativa, o exercício
da atividade econômica é permitido sempre nos termos da lei, bem assim a
responsabilidade tributária que advém do exercício da atividade empresarial.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito tributário na constituição


e no STF: teoria e jurisprudência. 13. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007.

CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de


direito previdenciário. 6. ed. rev. São Paulo: LTr, 2005.

HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito previdenciário. 5. ed. São Paulo:


Quartier Latin, 2005.

JORGE, Társis Nametala. Elementos de direito previdenciário: custeio. Rio de


Janeiro: Lumen Juris, 2005.

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da seguridade social. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 25. ed. São Paulo:
Malheiros, 2004.

MARTINEZ, Wladimir Novaes. Comentários à lei básica da previdência social -


Tomo I - plano de custeio. 4. ed. São Paulo: LTr, 2003.

MESSA, Ana Flávia. Direito tributário e financeiro. 5. ed. São Paulo: Rideel, 2011.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

TAVARES, Alexandre Macedo. Sentido e Alcance da Expressão “Interesse


Comum” (CTN, art. 124, I) para Fins de Imputação de Responsabilidade Tributária
Solidária às Sociedades Integrantes de Grupo Econômico. Disponível em: <http://
www.tavareseassociados.com.br/application/upload/artigos/68b58788877f486
366a0333f54c41a20.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2016.

VELLOSO, Andrei Pitten. Responsabilidade tributária das


empresas integrantes de grupos econômicos. Jornal Carta Forense,
Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=618883>. Acesso em: 19 fev. 2016.
Recebido em: 08/03/2017
Aprovado em: 04/08/2017

AUTONOMIA TÉCNICA DO AGU À LUZ


DO DEVER DE DEFESA DA LEI OU ATO
NORMATIVO IMPUGNADO EM CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE PERANTE O STF
TECHNICAL AUTONOMY OF THE PUBLIC ATTORNEY IN SIGHT
OF THE DUTY OF DEFENSE OF A NORMATIVE ACT CONTESTED
IN CONSTITUTIONALITY CONTROL BEFORE THE BRAZILIAN
SUPREME COURT

Renato Saeger Magalhães Costa


Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera. Bacharel em
Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Advogado de Direito Público em
Urbano Vitalino Advogados.

SUMÁRIO: Introdução ; 1 O que é a Advocacia-


Geral da União?; 2 Autonomia técnica do advogado
público e independência funcional da advocacia de
estado; 3 Do dever de defesa da lei ou ato normativo
impugnado em sede de controle concentrado de
constitucionalidade de acordo com o Supremo
Tribunal Federal; 4 Proposta de outras hipóteses
nas quais a defesa da lei ou ato normativo impugnado
em sede de controle de constitucionalidade poderá
ser dispensada; 5 Considerações finais; Referências.
244 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 267-0, jul./set. 2017

RESUMO: O Advogado-Geral da União, de acordo com o texto


constitucional, deve defender as leis impugnadas em controle de
constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Entretanto,
tal imposição foi fruto de várias discussões perante a Corte Suprema, o
que revelou a possibilidade de flexibilização do comando constitucional.
Analisa-se, pois, todos os aspectos que circundam a AGU como instituição
independente e autônoma tecnicamente, com o intuito de se enxergar
as hipóteses possíveis na qual o AGU não estará obrigado a defender o
ato normativo impugnado em sede de controle de constitucionalidade
perante o STF.

PALAVRAS-CHAVE: Advocacia-Geral da União. Controle de


Constitucionalidade. Supremo Tribunal Federal. Autonomia Técnica.
Independência Funcional.

ABSTRACT: The General Public Attorney, according to the Brazilian


Constitution, is always meant to defend the laws that are contested in
constitutionality control before the Brazilian Supreme Court. However,
that imposition was fruit of several discussions in the Supreme Court, and
that revealed the possibility of the flexibilization of that constitutional
command. The aspects of the General Public Attorney’s Office are,
therefore, analyzed in order to understand it as a independent institution
with technical autonomy, so that we can see some other hypothesis where
the General Public Attorney isn’t obligated to defend the normative act
that is contested in the realm of a constitutionality control before the
STF (Brazilian Supreme Court).

KEYWORDS: General Public Attorney’s Office. Constitutionality


Control. Brazilian Supreme Court. Technical Autonomy. Functional
Independence.
Renato Saeger Magalhães Costa 245

INTRODUÇÃO

Tratar sobre a Advocacia-Geral da União – AGU é abordar um


assunto não somente relevante, mas também extremamente atual. Os temas
que circundam as atribuições e prerrogativas da AGU estão presentes nos
noticiários, além de, no âmbito jurídico, permearem projetos de lei, emendas
constitucionais e debates jurisprudenciais. Tal sorte de evidenciação do
tema reflete diretamente nos limites da atuação da Advocacia Pública
como um todo, que, como consequência inafastável, resvala na apreciação
da matéria por parte do Supremo Tribunal Federal – STF.

Quais são, pois, as prerrogativas do Advogado-Geral da União? E


quais os limites e obstáculos que os advogados públicos enfrentam quanto
à sua atuação e liberdade técnicas?

Especificamente, e no que se refere ao assunto ora proposto, observa-


se que a jurisprudência do STF se alternou com frequência no tratamento
sobre a matéria da autonomia técnica do AGU quanto à obrigatoriedade
de suas manifestações em sede de controle de constitucionalidade, o que
exige um estudo mais aprofundado das decisões que implicaram a mudança
de entendimento da Corte.

No presente estudo, pretende-se conceituar a Advocacia-Geral da


União como ente dotado de autonomia técnica e jurídica, desvinculada de
qualquer dos Poderes da República, cujos integrantes possuem independência
funcional, para, a partir de tais fundamentos, identificar-se as hipóteses
nas quais a defesa, por parte do Advogado-Geral da União, em controle
de constitucionalidade, não necessariamente deverá ser concretizada;
permitindo-se o direito de manifestação do AGU em consonância com
sua autonomia técnica.

1 O QUE É A ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO?

O nascimento da Advocacia-Geral da União, pode-se dizer, deu-


se com a promulgação da Constituição Federal de 1988, uma vez que
anteriormente à promulgação, “a representação da União era exercida
pelo Ministério Público da União, que, até então, cumulava as funções de
defensor dos interesses da sociedade e do ente político federal”1.

1 COLODETTI, Bruno; MADUREIRA, Claudio Penedo. Advocacia-Geral da União – AGU. 4. ed.


Salvador: JusPodivm, 2013. p. 19.
246 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 267-0, jul./set. 2017

Foi somente a Constituição Federal de 1988 que, inovando em relação


ao regime anterior, segregou a Advocacia Pública em sentido lato e
entregou suas funções a instituições distintas. O Ministério Público
passou a exercer somente a advocacia da sociedade, enquanto a advocacia
do Estado começou a ser atribuição da Advocacia Pública em sentido
estrito (Advocacia-Geral da União, Procuradorias do Estado e do
Distrito Federal e Procuradorias do Município) e a advocacia dos
necessitados, da Defensoria Pública.2

Sendo assim, e conforme atual expressão do artigo 131 da


Constituição Federal, a Advocacia-Geral da União é a instituição que
representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos
da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento,
as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
A instituição tem por chefe o Advogado-Geral da União, de livre nomeação
pelo Presidente da República, que não precisa ser membro da carreira,
mas tão somente cidadão maior de trinta e cinco anos, de notável saber
jurídico e reputação ilibada.

Hodiernamente, entende-se que a Advocacia-Geral da União possui


4 carreiras jurídicas distintas: os Advogados da União, os Procuradores
Federais, os Procuradores da Fazenda Nacional e, de modo um tanto
quanto peculiar, os Procuradores do Banco Central do Brasil.

Tendo em vista o que preceituado no artigo 131 da CRFB, em cotejo


com o artigo 133 da Constituição, nota-se que os advogados públicos,
assim como os advogados privados, são indispensáveis à administração
da justiça, sendo invioláveis por seus atos e manifestações no exercício da
profissão, nos limites da lei.

Diante de tal introito, resta visível que os membros da Advocacia-


Geral da União não são apenas servidores públicos fora dos Poderes
da República (visto que desempenham função pública em Instituição
independente)3, como também advogados tecnicamente autônomos cuja
atuação restringe-se a apenas um “cliente”: a União.

2 FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho. Regime jurídico da advocacia pública. v. 1, Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: Método, 2010. p. 18.
3 A Advocacia-Geral da União está prevista no art. 131 da Constituição Federal, e integra o Capítulo IV,
do Título IV, da CRFB, de modo que deve ser considerada como “Função Essencial à Justiça”. Nesse
esteio, resta visível que a AGU não pertence a nenhum dos três Poderes da República, pois não integra
nenhum dos outros capítulos do Título IV da Constituição.
Renato Saeger Magalhães Costa 247

2 AUTONOMIA TÉCNICA DO ADVOGADO PÚBLICO E INDEPENDÊNCIA


FUNCIONAL DA ADVOCACIA DE ESTADO

Não obstante a previsão constitucional, ainda se verifica parcela da


doutrina afirmando que a AGU pertence ao Poder Executivo, baseando-se
no já revogado art. 32 do Decreto Lei n. 200 de 1967, que assinalava que a
Consultoria-Geral da República integrava o Poder Executivo. Entretanto, e
afastando-se de tal posicionamento, insiste-se em afirmar que a Advocacia-
Geral da União é instituição desvinculada de qualquer um dos Poderes
da República, apesar de aparentemente estar mais próxima do Poder
Executivo. Nesses termos, é inegável que:

não se pode conferir a essa instituição o status de Ministério ou de órgão


da Presidência da República, como se observa infelizmente no sítio da
Presidência da República e no Diário Oficial da União. Que a Lei Ordinária
10.683, de 2003, trate o Advogado-Geral da União como “Ministro”,
colocando-o como órgão de assessoramento imediato ao Presidente
da República, sem que esse tratamento decorra necessariamente dos
termos constitucionais, é circunstância que não autoriza de qualquer
forma os órgãos oficiais de informação a tratar a instituição AGU como
um órgão integrante da estrutura do Poder Executivo.4

Outro ponto que merece destaque para que se ateste ainda mais que
a Advocacia-Geral da União não integra o Poder Executivo é justamente
o fato de os seus membros exercerem a advocacia para a União como um
todo, ou seja, para a pessoa jurídica de direito público interno em sua
integralidade, e não de um de seus poderes/funções. Com efeito, apenas
as atividades de consultoria e assessoramento jurídico são exclusivas do
Poder Executivo.

Diante do afastamento da Advocacia-Geral da União do Poder


Executivo, é imprescindível perceber que há uma certa autonomia e
independência dada à instituição; autonomia esta inerente ao desempenho
das suas funções constitucionais.

A título de esclarecimento, e antes de se prosseguir no tema, faz-


se imprescindível conceituar a independência funcional e a autonomia
técnica. Para a doutrina:

4 LUCIANO, Pablo Bezerra. A Advocacia-Geral da União é instituição transversal aos poderes. Conjur
– Consultor Jurídico, Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-jun-14/advocacia-geral-uniao-
instituicao-transversal-aos-poderes>. Acesso em: 7 abr. 2016.
248 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 267-0, jul./set. 2017

autonomia funcional consiste na liberdade de exercer o ofício em face de


outros órgãos e instituições do Estado, enquanto que a independência
funcional é a liberdade com que estes exercem o seu ofício agora em
face de outros órgãos da própria instituição5.

Nesse sentido, portanto, “a independência funcional restringe-se


à relação do agente com os titulares de órgãos superiores da mesma
instituição no sentido de inexistência de subordinação técnica ou funcional”6.

De fato, conjugando-se todos os entendimentos acima expostos,


é inevitável afirmar quando se fala sobre AGU se está a tratar de uma
estrutura pública que contém, dentre outros, um corpo de advogados
dotados de autonomia técnica. Sendo assim, é incompatível exigir-se
determinadas condutas profissionais dos advogados públicos, mormente
quando tais exigências se relacionam a entendimentos técnicos.

No ponto, é preciso ponderar que o advogado, em qualquer


circunstância (mesmo que sujeito a uma relação de emprego), deve manter
sua autonomia técnica e independência profissional durante toda a sua
atuação. É isso, aliás, o que prevê o Parecer GQ n. 24/1994 da AGU7, e
o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil8, Lei n. 8.906/94, mais
especificamente nos seus artigos 7º, inciso I, e 18. Também é esse o
entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme se verifica no
recente julgamento da lavra do Ministro Roberto Barroso:

A constituição Federal e a Estadual reservam aos advogados públicos


o desempenho das atividades de representação, assessoria e consultoria
jurídica e que, tais cargos serão ocupados por servidores previamente
aprovados em concurso público. Tal conclusão, calcada na literalidade
dos textos constitucionais, é reforçada pela própria natureza dos
cargos da advocacia pública, afinal, mais do que servidores públicos, os
ocupantes de tais cargos são advogados e, para o pleno exercício de seu

5 CASTRO, Caterina Vasconcelos de; ARAUJO, Francisca Rosileide de Oliveira; TRINDADE, Luciano José.
A Advocacia Pública no Estado Democrático de Direito: reflexões jurídicas acerca dessa instituição estatal
essencial à justiça. Revista da Procuradoria-Geral do Acre, Rio Branco, n. 3, p. 213-253, jan./dez. 2003.
6 FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho. Regime jurídico da advocacia pública. v. 1, Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: Método, 2010. p. 61.
7 Mais especificamente no item 10, que afirma que o advogado público possui “isenção técnica ou
independência da atuação profissional”.
8 Válido afirmar que o EOAB é aplicável aos advogados públicos, conforme se extrai do artigo 3º, §1º, da Lei.
Renato Saeger Magalhães Costa 249

mister, é fundamental a preservação da isenção técnica e independência


funcional, inerentes à advocacia, seja ela pública ou privada.9

Ainda, como bem delineado por Ricardo Cavalcante Barroso:

Para elucidar ainda mais a pertinência e a adequação da autonomia para


os advogados públicos basta enunciar que o elemento determinante da
autonomia dos membros das procuraturas públicas é o propósito de
representar os interesses públicos e políticas públicas a eles atreladas
no sentido de viabilizar a missão dos entes estatais. Eis o discrímen e
o diferencial que fortalece e limita a autonomia do advogado estatal.
Ou seja, no exercício desse mister, o procurador estatal não pode ser
corrompido por pressões ou desvios advindos de quem quer que seja,
membros de outras funções essenciais ou gestor ímprobo. 10

Sumarizando o entendimento ora esposado, Mônica de Melo assevera


que “A peculiaridade de ter por cliente o ‘Estado’ ao contrário de reduzir
a independência e liberdade do Advogado Público, deveria garanti-las,
em respeito ao princípio da moralidade e defesa do interesse público, que
torneiam a ação desse ‘cliente’”11.

Não se pode olvidar, portanto, que a Advocacia-Geral da União


necessariamente possui uma autonomia técnica que a resguarda de sofrer
quaisquer influências técnico-jurídicas por parte do seu cliente12: a União.
Com efeito, pode-se afirmar que a independência funcional, bem como
a autonomia técnica do advogado público, é “prerrogativa implícita da
Advocacia de Estado”13.
9 STF – ARE 759931 ES – Rel. Min. Roberto Barroso – Publicado em 12/12/2014.
10 BARROSO, Ricardo Cavalcante. Autonomia e independência são inerentes à Advocacia Pública. Conjur –
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-jun-15/ricardo-barroso-autonomia-
independencia-inerente-advocacia-publica#_ftn6>. Acesso em: 8 abr. 2016.
11 MELO, Mônica. Ética na Advocacia Pública. Tese aprovada por unanimidade no XXV Congresso
Nacional de Procuradores de Estado, realizado de 24 a 28 de outubro em Alagoas - MA.
12 O mesmo se repete para os advogados públicos municipais e estaduais, conforme entendimento do STF esposado
na apreciação da medida cautelar na ADI 4843 / PB: “A extrema relevância das funções constitucionalmente
reservadas ao Procurador do Estado (e do Distrito Federal, também), notadamente no plano das atividades de
consultoria jurídica e de exame e fiscalização da legalidade interna dos atos da Administração Estadual, impõe
que tais atribuições sejam exercidas por agente público investido, em caráter efetivo, na forma estabelecida pelo
art. 132 da Lei Fundamental da República, em ordem a que possa agir com independência e sem temor de ser
exonerado “ad libitum” pelo Chefe do Poder Executivo local pelo fato de haver exercido, legitimamente e com
inteira correção, os encargos irrenunciáveis inerentes às suas altas funções institucionais”.
13 ROCHA, Mário Túlio de Carvalho. A unicidade orgânica da representação judicial e da consultoria jurídica do
Estado de Minas Gerais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 223, p. 169-197, jan./mar. 2001.
250 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 267-0, jul./set. 2017

Nesse contexto, e mais detidamente no aspecto jurisprudencial


que trata sobre o tema, vê-se que o Supremo Tribunal Federal, por anos,
estabeleceu a inexistência de independência funcional ao advogado público.
Tal posicionamento da Corte restou sedimentado nos julgamentos da ADI
MC n. 291, da ADI n. 470 e da ADI n. 217.

No mesmo sentido que a ADI n. 217, foi o julgamento da ADI n.


470, que definiu que a independência funcional de Procuradoria Estadual
desvirtuaria a configuração jurídica fixada pelo texto constitucional.
Neste julgamento, porém, o então Ministro Sepúlveda Pertence – que se
mostrou contrário à independência funcional – afirmou a importância
do reconhecimento da “independência profissional da qual terá que
dispor, sobretudo, quando atue em função de consultoria”, abrindo uma
flexibilização para a pertinência da autonomia técnica do advogado público.

Mais recentemente, em lamentável decisão no bojo do julgamento de


mérito da ADI n. 291, o STF teve a oportunidade de analisar a autonomia
técnica em conjunto com a independência dos advogados públicos, ocasião na
qual sedimentou o entendimento que os advogados públicos apenas possuem
autonomia técnica ou profissional, inexistindo a independência funcional da AGU.

Nesse ínterim, e diante da certeza que o advogado público possui


ao menos a autonomia técnica, merece destaque a querela existente acerca
do dever de defesa da lei ou ato normativo impugnado em sede de controle
concentrado de constitucionalidade.

3 DO DEVER DE DEFESA DA LEI OU ATO NORMATIVO IMPUGNADO


EM SEDE DE CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE
DE ACORDO COM O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Uma das funções expressamente previstas na Constituição, para o


Advogado-Geral da União, é encontrada no artigo 103, §3º, que prevê que
quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em
tese, de norma legal ou ato normativo, citará o Advogado-Geral da União
para que defenda o ato ou texto impugnado (“Art.103, § 3º, CRFB - Quando
o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de
norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da
União, que defenderá o ato ou texto impugnado”).

Interessante notar, que na Lei Complementar n. 73/93, que institui a


Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União, em seu artigo 4º, IV, também
dispõe como atribuição do Advogado-Geral da União “defender, nas ações
Renato Saeger Magalhães Costa 251

diretas de inconstitucionalidade, a norma legal ou o ato normativo, objeto


de impugnação”, revigorando a previsão constitucional.

Em tese, então, o AGU teria o dever de defender a lei ou o ato


impugnado em sede de controle concentrado de constitucionalidade
perante o Supremo Tribunal Federal. Esta interpretação pura e simples
do dispositivo constitucional foi o que levou o STF a julgar no sentido de
se exigir a defesa do ato ou lei impugnada pela Advogado-Geral da União.

O entendimento que restou primariamente sedimentado no Supremo


Tribunal Federal, portanto, foi o de que o AGU sempre deveria defender
o ato ou a lei impugnada, independentemente de qualquer outro aspecto
jurídico ou político. Assim, ao julgar a Questão de Ordem da ADI n. 72 /
ES, o STF se posicionou pela obrigatoriedade da defesa da lei por parte
do AGU, conforme se verifica da ementa abaixo colacionada:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADVOGADO-


GERAL DA UNIÃO: INDECLINABILIDADE DA DEFESA
DA LEI OU ATO NORMATIVO IMPUGNADO (CF, ART.
103, PAR.3.). ERIGIDO CURADOR DA PRESUNÇÃO DA
CONSTITUCIONALIDADE DA LEI, AO ADVOGADO-GERAL DA
UNIÃO, OU QUEM LHE FAÇA AS VEZES, NÃO CABE ADMITIR
A INVALIDEZ DA NORMA IMPUGNADA, INCUMBINDO-LHE
SIM, PARA SATISFAZER REQUISITOS DE VALIDADE DO
PROCESSO DA AÇÃO DIRETA, PROMOVER-LHE A DEFESA,
VEICULANDO OS ARGUMENTOS DISPONIVEIS. (STF - ADI
72 ES – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – Tribunal Pleno - DJ 25.5.1990)

Conforme julgado acima, “Não havia, portanto, espaço para o AGU


opinar pela procedência do pedido no controle em tese da constitucionalidade
da norma em sede de ação direta”14.

Em importante julgamento da ADI n. 242 de 1994, o STF novamente


estabeleceu que o AGU deveria defender o ato, independentemente de
seu entendimento particular sobre o tema, ou de prévia análise do STF.

A partir daí pode-se dizer que se consolidou a jurisprudência do STF no


sentido de que ao Advogado-Geral da União, nos processos de ação direta
de inconstitucionalidade, cabe, sempre e sem qualquer exceção, defender
14 ARAÚJO, Fabíola Souza. A atuação do Advogado-Geral da União na ação direta de
inconstitucionalidade: compreensão inicial do Supremo Tribunal Federal. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF:
08 jun. 2013. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.43795&seo=1>.
252 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 267-0, jul./set. 2017

o ato impugnado. Consolidou-se, assim, a idéia de que (i) a ação direta de


inconstitucionalidade demanda um contraditório, e (ii) o constituinte atribuiu
esta função ao Advogado-Geral da União, sem que isso tenha qualquer
relação com as suas funções de representação judicial e extrajudicial da
União e de assessoria e consultoria jurídica ao Presidente da República.15

Entretanto, e em que pese o firme posicionamento acima exposto, o


próprio Supremo Tribunal Federal passou a admitir, em nova circunstância,
que o AGU não defendesse o ato ou a lei impugnada em sede de controle
concentrado de constitucionalidade; mitigando-se, assim, a literalidade do artigo
103, §3º, da Constituição Federal, e conferindo-lhe uma nova interpretação.

Com efeito, o entendimento do STF evoluiu, conforme exame do leading


case, a ADI n. 1.616 / PE, permitindo-se que o Advogado-Geral da União deixasse
de defender a tese jurídica caso o próprio STF já houvesse se manifestado pela
sua inconstitucionalidade. Vide parcela da ementa do referido julgado:

O munus a que se refere o imperativo constitucional (CF, artigo 103,


§ 3º) deve ser entendido com temperamentos. O Advogado- Geral da
União não está obrigado a defender tese jurídica se sobre ela esta Corte
já fixou entendimento pela sua inconstitucionalidade. (STF – ADI
1616/PE – Rel. Min. Maurício Corrêa – Tribunal Pleno - DJ 24.8.2001)

Visível, pois, que o STF admitiu ser prescindível a defesa, por parte
do AGU, para as leis cujo teor já tivesse sido considerado inconstitucional
por parte do próprio Supremo Tribunal Federal. Trocando-se em miúdos,
todas as vezes que o STF já tivesse se manifestado pela inconstitucionalidade
da lei ou ato impugnado, o Advogado-Geral da União estaria isento de
seu dever de defender tal ato.

Em importantíssimo debate no bojo da ADI n. 3.916, o STF passou


a discutir a questão de ordem suscitada pelo Ministro Marco Aurélio, no
que tange ao que previsto no artigo 103, §3º da Constituição Federal, se
seria um dever de defesa do ato impugnado, ou um direito de manifestação
do AGU no controle de constitucionalidade.

Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio defendeu a literalidade do texto


constitucional, afirmando ser imprescindível que o Advogado-Geral da União
defendesse o ato impugnado, sem exceções. Para o Ministro, “a Advocacia-
15 LEITE, Fábio Carvalho. O papel do Advogado-Geral da União no controle abstrato de
constitucionalidade: curador da lei, advogado público ou parecerista? In: Nomos. Revista do Curso de
Mestrado em Direito da UFC, v. 30.2, Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2010/2. p. 36.
Renato Saeger Magalhães Costa 253

Geral da União só interfere com essa finalidade: buscar-se esse equilíbrio,


ter-se uma ótica no sentido da permanência, no cenário normativo, abstrato
e autônomo, do ato atacado na Ação Direta de Inconstitucionalidade”16.

Instaurou-se, portanto, um debate, no qual o Ministro Gilmar


Mendes chega a afirmar que não apenas quando o Supremo Tribunal
Federal já houver decidido sobre a inconstitucionalidade da lei o AGU
poderá deixar de defender o ato, como também quando for a própria União
(em nome do Presidente da República) quem ajuizar a ADI, tendo em vista
que, nesses casos, “essa defesa fica sem consistência”:

Não há uma obrigatoriedade de fazer a defesa do ato impugnado, até


porque, em muitos casos, nós podemos ter uma situação quase que de
conflito. O Advogado-Geral da União poderá eventualmente suscitar
uma ação direta em nome do Presidente da República e, depois, ter que
defender em relação ao ato estatal. (STF – Voto do Ministro Gilmar
Mendes (Presidente) – Questão de Ordem na ADI 3.916/DF).

Nesse sentido, o então presidente do STF afirmou ser necessário realizar-


se uma interpretação “adequada” e “sistêmica”, garantindo-se ao Advogado-Geral
da União um “direito de manifestação”, e não somente um dever de defesa.

Ainda no bojo dos debates sobre a questão de ordem suscitada, o


Ministro Ricardo Lewandowski relembrou que o artigo 131 da Constituição
Federal assinala que a AGU é instituição que defende os interesses da União,
de modo que seria incoerente impor ao Advogado-Geral a defesa, sempre,
da lei impugnada em controle de constitucionalidade, mormente quando
esta afronte diretamente os interesses ou a competência da própria União.

Nesse ínterim, o então Ministro Cezar Peluso afirma haver uma


distinção entre a função do AGU como defensor da União e a função objetiva
deste no processo da ação direta de inconstitucionalidade. Entretanto,
ressaltou que, em determinados casos, exigir que o Advogado-Geral
sempre defenda o ato, mesmo que contrário à União, significaria “retirar
da Advocacia-Geral da União a sua posição primordial, que é defender
os interesses da União”17. Em brilhante conclusão, então, o Ministro
afirma: “a mim me parece que seria demasia criar um constrangimento,

16 Trecho do voto do Ministro Marco Aurélio, na Questão de Ordem suscitada no bojo da ADI n. 3.916/DF.
17 Trecho do voto do Ministro Cezar Peluso, na Questão de Ordem suscitada no bojo da ADI n. 3.916/DF.
254 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 267-0, jul./set. 2017

determinando que o Advogado-Geral se manifeste em sentido contrário,


quando a sua convicção jurídica é outra”18.

Volvendo-se a palavra ao Relator do caso, o Ministro Eros Grau,


deixou-se assentado que os autos retornariam ao Advogado-Geral da
União, para uma nova análise. Entretanto, o Ministro fez consignar que:
“A mim, constava a existência da ADI n. 1.616, em que se teria dito que o
múnus a que se refere o imperativo constitucional do §3º do art. 103 deve
ser entendido com temperamentos”19.

Nesse esteio, e por fim, o Ministro Ayres Britto defendeu, com


certas cautelas, a literalidade do texto constitucional, nos termos do que
aventado pelo Ministro Marco Aurélio; oportunidade na qual o Ministro
Ricardo Lewandowski o interrompeu rememorando que “a expressão
‘defender a lei’ deve ser interpretada cum grano salis [...] parece-me que
este expressão ‘defender a lei impugnada’ comporta uma interpretação,
uma hermenêutica dentro dos quadros da razoabilidade”20.

A Ministra Cármen Lúcia também se manifestou trazendo um


histórico dos julgamentos da Corte sobre a matéria, e afirmando, ao
final, que “prevaleceria a possibilidade de o Advogado-Geral da União
se manifestar segundo o que lhe parecesse de conveniência da defesa da
constitucionalidade, digamos, e não da lei propriamente”21.

Concluindo o seu entendimento, o Ministro Ayres Britto afirma a


possibilidade da mera manifestação por parte do Advogado-Geral da União,
sem que seja constrangido ou obrigado a defender o ato, mormente nos
casos que entender estar flagrante a sua inconstitucionalidade, deixando
claro que a literalidade do texto pode ser interpretada finalisticamente.

Em suma, a questão de ordem na ADI n. 3.916 foi rejeitada, restando


vencidos os Ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa, definindo-se que o
Advogado-Geral da União sem sempre deverá apresentar defesa da lei impugnada.

Novamente, em julgamentos mais recentes, a Corte Suprema debateu


acerca de tal munus do AGU. Enquanto o Ministro Marco Aurélio permanece
seguindo o seu primeiro entendimento, segundo o qual é dever do Advogado-

18 Idem.
19 Trecho do voto do Ministro Eros Grau, na Questão de Ordem suscitada no bojo da ADI n. 3.916/DF.
20 Trecho do voto do Ministro Ricardo Lewandowski, na Questão de Ordem suscitada no bojo da ADI n. 3.916/DF.
21 Trecho do voto da Ministra Cármen Lúcia, na Questão de Ordem suscitada no bojo da ADI n. 3.916/DF.
Renato Saeger Magalhães Costa 255

Geral da União sempre defender o ato normativo impugnado em sede de controle


abstrato de constitucionalidade, os demais Ministros vêm realizando ressalvas.
Foi o que ocorreu, por exemplo, na ADI n. 351 / RN, na qual o Ministro Celso
de Mello relembra outros precedentes do STF22 no sentido de que o Advogado-
Geral da União não está obrigado a defender tese jurídica se sobre ela o Supremo
Tribunal Federal já fixou entendimento pela sua inconstitucionalidade.

No mesmo trilho, e ainda mais recentemente, os Ministros Teori Zavascki


e Rosa Weber também dissentiram do Ministro Marco Aurélio (Relator da
ADI n. 2.433/RN) quanto ao dever de defesa, asseverando, novamente, que,
em relação à natureza da manifestação do AGU, a jurisprudência do Supremo
é majoritária num sentido distinto daquele asseverado pelo Ministro.

Assim, conforme entendimento atual da majoritária composição do


STF, o Advogado-Geral da União não precisa sempre defender o ato ou a
lei impugnada em controle concentrado de constitucionalidade, uma vez
que se revela inviável impor tal ônus ao AGU, em razão de sua autonomia
técnica inata à atividade da advocacia pública.

Entretanto, as hipóteses em que o Supremo Tribunal Federal vem


admitindo que o AGU apenas se manifeste, sem defender o ato impugnado,
devem ser ampliadas. É isso o que se demonstrará a seguir.

4 PROPOSTA DE OUTRAS HIPÓTESES NAS QUAIS A DEFESA DA LEI


OU ATO NORMATIVO IMPUGNADO EM SEDE DE CONTROLE DE CONS-
TITUCIONALIDADE PODERÁ SER DISPENSADA

Em que pese a decisão final da ADI n. 2.433 ter sedimentado a


imperiosidade da defesa da norma impugnada pelo Advogado-Geral da
União, com uma certa flexibilização, o debate havido na Corte no âmbito da
ADI n. 3.916 suscitou questões periféricas relativas ao tema que merecem
ser melhor analisadas posto se relacionarem com a autonomia técnica da
própria instituição da AGU.

Primeiramente, restou demonstrado que a norma do artigo 103, §3º,


da Constituição Federal deve ser interpretada com temperamentos, tendo
em vista que o Advogado-Geral da União poderá deixar de defender o ato
normativo ou lei impugnada perante o STF quando a norma já houver sido
debatida no âmbito da Suprema Corte. É dizer, em outros termos, que havendo
súmula ou entendimento anterior do Supremo Tribunal Federal contrário

22 Cita-se: ADI n. 2.681-MC / RJ; ADI n. 1.616 / PE; ADI n. 2.101/MS; ADI n. 4.843/PB; e a ADI n. 3.916/DF.
256 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 267-0, jul./set. 2017

ao dispositivo impugnado, poderá o Advogado-Geral da União apenas se


manifestar nos autos, sem, necessariamente, defender a lei questionada.

Entretanto, entende-se que em outras situações o AGU também


poderá deixar de defender a lei combatida em sede de controle concentrado
de constitucionalidade quando baseado na sua própria convicção técnica.
Como já exposto, os membros da Advocacia-Geral da União são dotados
de autonomia técnica, logo, o AGU tem a prerrogativa de não defender a
lei impugnada em ADI, se a entender inconstitucional.

É essa a problemática exposta por Manoel Gonçalves Ferreira Filho23:

Em tese, não caberia chamar para todas as ações diretas de


inconstitucionalidade o Advogado-Geral da União, já que em muitas o
Poder Executivo federal poderá não ter qualquer interesse. A sua citação,
portanto, a sua chamada à ação, deveria ser exigida apenas quando existisse
interesse do Poder Executivo no feito. Mesmo porque, de acordo com o
§1° deste artigo, em todas as ações diretas é ouvido o Procurador-Geral
da República, ao qual compete “a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Pior, a norma em exame, ao pé da letra, obriga o Advogado-Geral a


defender o ato ou texto impugnado. Ou seja, está ele obrigado a sustentar
a constitucionalidade, mesmo de atos ou textos que não sejam da
responsabilidade do Executivo federal, eventualmente contra os interesses
deste Poder, ou contra o seu senso jurídico. Na verdade, impõe-se aqui
uma interpretação restritiva, ao menos para dispensar o Advogado-Geral
da União de defender a constitucionalidade de ato contrário aos interesses
legítimos do Poder Executivo federal, como seria um ato normativo
estadual que lhe ferisse a competência. Do contrário, não cumpriria ele
o papel de Advogado do Executivo federal.

Além do dever de manifestação quando o STF já houver decidido pela


inconstitucionalidade da lei ou texto normativo questionado em controle
concentrado de constitucionalidade, o Advogado-Geral da União também
não precisará defender a lei quando esta for contrária aos interesses da União.

Na já exposta ADI n. 3.916, o Ministro Ricardo Lewandowski


assinalou que haveria aparente conflito de interesses do AGU ao ter que

23 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. v. 2 (arts. 44 a


103), São Paulo: Saraiva, 1992. p. 232.
Renato Saeger Magalhães Costa 257

defender uma lei de um Estado que invadiu a competência legislativa da


União. Ora. Se o Advogado-Geral da União é o defensor dos interesses da
União (e não do Governo ou de partidos políticos), há flagrante contrassenso
em se permitir que o AGU defenda uma lei que ofenda a própria União.

A questão já foi problematizada, há muito, pela doutrina:

Acontece então a seguinte situação singular: o Presidente da República


é um dos órgãos dotados de legitimação ativa, para provocar o pedido
de apreciação do controle abstrato de normas no STF (art. 103, I), mas
na forma do art. 131, caput, o advogado-geral da União presta serviços e
exerce atividade de consultoria e assessoramento jurídico ao Presidente.
Como é possível que, por um lado, preste serviço na elaboração de uma lei
pelo Presidente da República, como seu assessor jurídico, e, por outro lado,
seja obrigado a impugnar [sic] o ato que ele ajudou a editar e formular? O
dispositivo peca evidentemente pela sua grave concepção teratológica.24

De fato, são inúmeros os exemplos em que o AGU poderia ter que redigir
uma ação direta de inconstitucionalidade (a ser proposta pelo Presidente da
República), e, posteriormente, ser obrigado a defender a lei impugnada. De
fato, em tais casos, não há necessidade do AGU defender o ato normativo,
mas, tão somente, se manifestar no bojo do controle de constitucionalidade.

Seguindo o mesmo caminho, tem-se indubitável que o AGU, como


chefe da Advocacia-Geral da União, não deverá defender lei ou texto normativo
contrário aos interesses da instituição a que pertence. Por óbvio, havendo
lei que atinja as prerrogativas e direitos da advocacia pública ou da própria
Advocacia-Geral da União, não deveria se poderá exigir do AGU a sua
defesa. Como representante maior da advocacia pública, seria um enorme
contrassenso ao AGU tutelar o ato que lhe tolhesse ou limitasse direitos.

Além das hipóteses acima referenciadas, deve-se assinalar ainda,


que o AGU não está obrigado a defender o texto impugnado quando este
afrontar seu entendimento técnico pessoal. Aí reside a expressão máxima
da autonomia técnica do advogado público.

Com efeito, não apenas o AGU estará dispensado de defender a lei


questionada perante o STF quando (i) o próprio Supremo já tiver afirmado ser
inconstitucional a lei; (ii) a lei for contrária aos interesses da União; ou (iii) a

24 FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. v. 4, São Paulo: Saraiva, 1992. p. 341.
258 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 267-0, jul./set. 2017

lei for contrária aos interesses da própria AGU, mas também quando possuir
entendimento técnico contrário ao que disposto na lei ou ato normativo.

Nesse sentido,

[...] o Advogado-Geral da União não se encontra, em princípio, obrigado


a opinar favoravelmente à constitucionalidade questionada, quando
entender que o ato realmente ofende norma inserida na Carta Magna.
Caso contrário, estaria afrontando sua consciência jurídica e, sobretudo,
a própria Constituição!25

Por isso não se pode olvidar da possibilidade do Advogado-Geral


da União discordar tecnicamente da lei ou ato normativo impugnado
em controle concentrado de constitucionalidade, e, assim, deixar de
defender tal texto. Haveria uma ofensa à inerente autonomia técnica
do AGU como advogado, o que afrontaria diretamente a Constituição
Federal de 1988.

José Cretella Júnior, em caminho semelhante, assenta que:

Se o exame de norma legal (lei) ou de ato normativo, em tese, isto é,


ainda sem efeitos concretos, revelar choque evidente da medida com
regra jurídica constitucional, o Supremo Tribunal Federal apreciará
a inconstitucionalidade argüida e, ato contínuo, citará previamente, o
Advogado-Geral da União, que defenderá o texto impugnado (=norma
legal) ou o ato (=o ato normativo). “Defenderá” ou “fará esforço para
defender” porque se a inconstitucionalidade em tese for patente, clara,
nítida, falará mais alto o espírito científico do Advogado-Geral da
União que, em busca da verdade, admitirá, sendo o caso, a procedência
da argüição feita, aceitando a impugnação arguida.26

Em virtude, de tais contradições, inclusive, a doutrina tem cogitado


até mesmo a supressão do artigo 103, §3º, da Constituição Federal de 1988,
conforme se verifica na lição de Clèmerson Merlin Clève:

Não foi feliz o constituinte ao trazer essa novidade. A posição difícil


na qual permanece o Advogado-Geral da União ao acumular as
atividades de representação judicial da União e consultoria jurídica
25 TUCCI, José Rogério Cruz e; TUCCI, Rogério Lauria. Constituição de 1988 e processo: regramentos e
garantias constitucionais do processo. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 107-108.
26 CRETELLA JR., José. Comentários à Constituição brasileira de 1988. v. VI (arts. 92 a 144). 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1993. p. 3111
Renato Saeger Magalhães Costa 259

do Poder Executivo com a de curador de normas impugnadas, ainda


que estaduais, por via de ação direta; o fato de que o processo objetivo
desencadeado pela ação de inconstitucionalidade prescinde da atuação
de um curador especial encarregado de exercer o contraditório (trata-
se, em princípio, de um processo não contraditório) e, mais, o direito
que possuem os órgãos ou autoridades de apresentar informações
em defesa dos seus atos normativos, quando combatidos em sede
de jurisdição concentrada, tudo está a indicar a desnecessidade do
encargo atribuído ao Advogado-Geral da União. Não seria demais,
então, sugerir-se, de lege ferenda, a supressão do art. 103, §3° da
Constituição.27

Não se vislumbra, pois, outra alternativa senão o reconhecimento


de que o Advogado-Geral da União possui o dever de se manifestar nos
autos de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, sem, contudo, defender
em todas as hipóteses o ato normativo impugnado.

Por fim, e fulminando qualquer entendimento contrário, destaca-


se o que prescrito no artigo 12, da Lei n. 9.868/99, denominada de Lei
do Controle de Constitucionalidade, que dá o direito de manifestação
ao AGU, ipsis litteris:

Art. 12. Havendo pedido de medida cautelar, o relator, em face


da relevância da matéria e de seu especial signif icado para a
ordem social e a segurança jurídica, poderá, após a prestação
das informações, no prazo de dez dias, e a manifestação do
Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República,
sucessivamente, no prazo de cinco dias, submeter o processo
diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar
definitivamente a ação.

Conclui-se, pois, que há sim um verdadeiro dever de manifestação,


e não propriamente de defesa, por parte do Advogado-Geral da União,
em sede de controle concentrado de constitucionalidade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo exposto, resta visível que a Advocacia-Geral da União é


instituição independente de qualquer um dos Poderes da República

27 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1995. p. 131-132.
260 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 267-0, jul./set. 2017

que exerce função essencial à justiça e, por isso, seus membros gozam
de certas liberdades e prerrogativas, tais como a autonomia técnica.
Com efeito, o advogado público, assim como o advogado privado, é
plenamente dotado de autonomia técnica.

Nesse ínterim, a Constituição Federal de 1988, mais precisamente


em seu artigo 103, §3º, em uma interpretação literal, determina que
o Advogado-Geral da União defenda a lei ou texto impugnado em
controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo
Tribunal Federal, independentemente de suas convicções técnicas.

Cotejando-se, porém, a autonomia técnica do advogado público


com o dever de defesa do ato normativo questionado por Ação Direita
de Inconstitucionalidade constante do texto constitucional, o Supremo
Tribunal Federal tem entendido pela f lexibilização do dever de defesa,
permitindo que, na hipótese de já existir prévia orientação do próprio
STF sobre o tema ou diante da f lagrante inconstitucionalidade da lei
questionada, o AGU possa apenas se manifestar sem, necessariamente,
defender o texto impugnado.

Entretanto, e não obstante a literalidade do dispositivo


constitucional constante do artigo 103, §3º, da Constituição Federal
de 1988 e do já esposado entendimento do STF, deve-se firmar que
o Advogado-Geral da União, em razão de sua autonomia técnica e
das prerrogativas e deveres inerentes às suas atribuições, possui,
sempre, o direito de manifestação e não de defesa propriamente dita.

Em resumo, sempre que se deparar com (i) leis manifestamente


inconstitucionais, (ii) com normas já declaradas inconstitucionais
pelo STF, com textos normativos que (iii) afrontem o interesse da
União, (iv) da Advocacia-Geral da União, ou (v) que sejam contrários
ao próprio entendimento técnico e pessoal do AGU, poderá ele se
abster de defender a lei ou ato normativo impugnado em sede de
controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo
Tribunal Federal.
Renato Saeger Magalhães Costa 261

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direta de inconstitucionalidade: compreensão inicial do Supremo Tribunal Federal.
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262 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 267-0, jul./set. 2017

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de outubro em Alagoas - MA.

TUCCI, José Rogério Cruz e; TUCCI, Rogério Lauria. Constituição de 1988


e processo: regramentos e garantias constitucionais do processo. São Paulo:
Saraiva, 1989.
Recebido em: 13/07/2016
Aprovado em: 04/04/2017

AS NOVAS AÇÕES REGRESSIVAS DO INSS:


UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DO DIREITO
CIVIL-CONSTITUCIONAL E DA FUNÇÃO
SOCIAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
THE NEW REGRESSIVE SHARES OF INSS: AN ANALYSIS FROM
THE PERSPECTIVE OF CIVIL - CONSTITUTIONAL LAW AND
FUNCTION OF SOCIAL TORT

Rodrigo Medeiros Lócio


Pós-Graduado em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais - PUC Minas. Pós-Graduado em Direito Civil pela Universidade
Anhanguera Univerp – LFG. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de
Pernambuco – UNICAP. Atua na área de Direito Público. Procurador Federal.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Considerações acerca do


Direito Civil Constitucional; 2 Da Responsabilidade
Civil e Função Social; 3 Ação Regressiva
Previdenciária; 4 Conclusão; Referências.
264 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 287-302, jul./set. 2017

RESUMO: Analisa-se o instituto das “novas” Ações Regressivas


Previdenciárias ajuizadas pelo Instituto Nacional da Seguridade Social
– INSS para obter o ressarcimento das despesas referentes à concessão
de benefícios previdenciários oriundas do cometimento de crimes
de trânsito e ilícitos penais dolosos, sob o fundamento normativo da
Responsabilidade Civil (art. 186 c/c 927 do Código Civil) a partir da
visão da Constitucionalização do Direito Civil e da função social no
dever de indenizar.

Palavras-chave: Ação Regressiva Previdenciária. Função Social


da Responsabilidade Civil. Direito Civil Constitucional.

ABSTRACT: It analyzes the institute of the “new” Regressive Social


Security lawsuits filed by the National Social Security Institute - INSS
to obtain reimbursement of expenses related to the granting of social
security benefits derived from the commission of traffic crimes and
intentional criminal offenses under the legal foundation of Civil liability
(art. 186 c / c 927 of the Civil Code) from the view of Constitutionalisation
of civil law and social function in the duty to indemnify.

KEYWORDS: Regressive Shares of Social Security. Social Liability


function. Constitutional Civil Law.
Rodrigo Medeiros Lócio 265

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objeto de estudo o instituto das “novas”


Ações Regressivas Previdenciárias, sob a ótica do Direito Civil Constitucional
e fundamentado na Função Social da Responsabilidade Civil. A denominação
de “novas” Ações Regressivas é utilizada porque o INSS há algum tempo já
emprega este instituto para obter a reparação decorrente da implementação de
benefícios previdenciárias causados por acidente de trabalho, com fundamento
na determinação expressa contida nos artigos 120 e 121 da Lei nº 8.213/91,
também conhecida por Lei de Benefícios da Previdência Social.

O foco do presente trabalho, pois, é defender a viabilidade de o Instituto


Nacional da Seguridade Social – INSS, pleitear judicialmente o ressarcimento de
despesas efetuadas com a concessão de benefício previdenciário implementado
de maneira prematura em decorrência de ato ilícito praticado por terceiro.

Pretende-se analisar, assim, a possibilidade de o órgão da Previdência


Social exercer o direito de regresso, com base nas normas da Responsabilidade
Civil, em virtude das despesas referentes à concessão de benefícios previdenciários
oriundos do cometimento de crimes de trânsito e ilícitos penais dolosos, consoante
preceituado na Portaria Conjunta PGF/INSS nº 6/2013. Para tanto, será feita
uma breve análise sobre a constitucionalização do Direito Civil e sua influência
na nova perspectiva do instituto da responsabilidade civil.

Por fim, chega-se à conclusão de que, à luz da lei, da doutrina e da


jurisprudência, as “novas” ações regressivas devem ser consideradas válidas por
representarem um importante mecanismo de controle social, conforme a aplicação
da função social da responsabilidade civil no Direito Civil-Constitucional.

1 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL

Após a Constituição Federal de 1988, os interpretes do direito


privado, mesmo que tardiamente, passaram a observar a necessidade
de obediência à normatividade maior da hierarquia constitucional. A
interpretação de qualquer ramo do direito passou, então, a ocorrer sob o
viés dos valores e princípios da Constituição Federal, sendo ultrapassado,
portanto, a visão meramente individual do Direito Civil. É o fenômeno
da constitucionalização do Direito Civil.

Nesse sentido, Paulo Lobo constata que a importância de tal mudança


de paradigma consiste justamente na elevação do status dos princípios
fundamentais do direito civil para o plano constitucional, refletindo na
266 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 287-302, jul./set. 2017

obrigatoriedade de observância de tais preceitos pelos cidadãos, pelos tribunais


e pela legislação infraconstitucional.1 Por sua vez, Maria Celina Boldin
Moraes, traz os seguintes conceitos para o Direito Civil-Constitucional:

Pode-se falar em ‘Direito Civil Constitucional’ em pelo menos dois


significados: sob um ponto de vista formal, é direito civil constitucional
toda disposição de conteúdo historicamente civilístico contemplada pelo
Texto Maior; isto é, todas as disposições relativas ao clássico tripé do direito
civil – pessoa, família e patrimônio -, porque presentes na Constituição,
compõem o direito civil constitucional. O outro significado atribuído à
expressão ‘Direito Civil Constitucional’ é o que aqui nos interessa: de acordo
com este segundo significado, é direito civil constitucional todo o direito
civil e não apenas aquele que recebe expressa indumentária constitucional,
desde que se imprima às disposições de natureza civil uma ótica de análise
através da qual se pressupõe a incidência direta, e imediata, das regras
e dos princípios constitucionais sobre todas as relações interprivadas.2

Tem-se que o direito civil constitucional corresponde mais a uma


orientação hermenêutica, do que propriamente uma área de atuação jurídica,
e como já salientado, essa forma de interpretação sistemática ganhou sua
força apenas com o advento da Constituição Federal de 1988.3 Acrescenta,
ainda, Torquato Castro Jr. que “segundo essa doutrina, sairia ‘do centro’
do ordenamento jurídico o direito codificado e ocuparia esse ‘espaço’ o
texto constitucional. Isso seria comparável a passar a compreender o sol
e não a terra como centro do mundo.”4

Ou seja, a constitucionalização do direito privado é o fenômeno


através do qual a interpretação de qualquer ramo do direito passa a ocorrer
através dos ditames maiores da constituição. Em razão disso, ao longo de
mais de duas décadas de promulgação da constituinte de 1988, verifica-se
que determinados dogmas do direito civil, outrora imodificáveis, passam a
sofrer influência no seu sentido para se adequar às normas constitucionais,
pois não mais se admite a leitura deste ramo de maneira isolada.

1 LÔBO, Paulo. Constitucionalização do Direito Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999.
Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/507>. Acesso em: 25 ago. 2014.
2 MORAES, Maria Celina Bodin de. O direito civil constitucional. In: CAMARGO, Margarida Maria
Lacombe (Org.). 1988-1998: uma década de Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 124.
3 CASTRO JR, Torquato. Constitucionalização do direito privado e mitologias da legislação: Código Civil
versus Constituição?. In: SILVA, Arthur Stamford da (Org.). O judiciário e o discurso dos direitos humanos.
Recife: Universitária da UFPE, 2011. p. 64.
4 Ibidem, p. 65.
Rodrigo Medeiros Lócio 267

Verifica-se, portanto, que o Código Civil perdeu sua função de


Constituição de Direito Privado5. Isto porque, a Constituição Federal
disciplina matérias antes exclusivas do Direito Privado, a exemplo da função
social da propriedade e os limites da atividade econômica. Mas também, e,
principalmente, pelo fato de a Carta Magna ser pautada por fundamentos,
princípios, valores e objetivos – tal qual a dignidade da pessoa humana, os
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, a justiça social e o exercício não
abusivo da atividade privada – que devem nortear todo o ordenamento jurídico.

Desta sorte, para Paulo Lôbo, com a constitucionalização do Direito


Civil, “deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição
e não a Constituição, segundo o Código, como ocorria com frequência (e
ainda ocorre).”6 É por isso que a doutrina moderna passou a interpretar
o Direito Privado sob uma nova ótica, na qual o valor existencial passou
a ser referência em detrimento do antigo enaltecimento ao patrimônio.

Do mesmo modo, também se prestigia os valores coletivos e sociais,


colocando os individuais em segundo plano. Tanto é que o Novo Código
Civil de 2002 possui como princípios norteadores a sociabilidade, a eticidade
e a operacionalidade, consoante prelecionado por Miguel Reale7. Assim,
os institutos tradicionais civilistas – propriedade, contratos, obrigações,
responsabilidade civil, família e sucessões – passaram a sofrer uma releitura
a partir das diretrizes constitucionais.

Pois bem, ultrapassadas essas linhas introdutórias sobre o Direito


Civil-Constitucional, percebe-se que não mais se discute a influência das
normas constitucionais no Direito Civil, existindo inúmeros trabalhos,
principalmente voltados para a análise da propriedade e das relações
familiares sob o prisma constitucional.

O presente trabalho, contudo, voltará a atenção para a influência da


constitucionalização do Direito Civil no ramo da Responsabilidade Civil,
debruçando-se sobre a sua função social para fundamentar a possibilidade
do ajuizamento de Ação Regressiva pelo Instituto Nacional de Seguridade
Social – INSS, sob o fundamento normativo da Responsabilidade Civil (art.
186 c/c 927 do Código Civil) com a finalidade de obtenção do ressarcimento
de despesas previdenciárias decorrentes da prática de determinados atos

5 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 2.
6 LÔBO, op. cit., loc. cit.
7 REALE, Miguel. Visão geral do projeto de Código Civil. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/
artigos/vgpcc.htm>. Acesso em: 03 abr. 2017.
268 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 287-302, jul./set. 2017

ilícitos, a exemplo do acidente de trânsito, violência doméstica e alguns


crimes.

2 Da responsabilidade civil e sua função social

Antes de mais nada, destaca-se que o presente capítulo não almeja


exaurir o tema da responsabilidade civil, mas tão somente propor uma
releitura de tal instituto sob o aspecto civil-constitucional, para que, no
capítulo posterior, seja defendida a fundamentação do cabimento da ação
regressiva previdenciária.

Como sabido, a noção clássica de Responsabilidade Civil está


diretamente ligada a reparação do dano. Maria Celina Bodin de Moraes,
ao apresentar seu conceito sobre o instituto, ensina que a “responsabilidade
civil consiste justamente na imputação do evento danoso a um sujeito
determinado, que será, então, obrigado a indenizá-lo.”8 Explica, ainda, que
há uma cláusula geral da obrigação de indenizar, disposta no art. 186 c/c
o art. 927 do Código Civil9.

Pois bem, como visto no capítulo anterior, o Direito Civil-


Constitucional propõe uma nova interpretação do direito privado para que
todo e qualquer instituto jurídico se vincule aos dogmas da constituição.
Bem por isso, passaram os civilistas modernos a se preocupar com os
princípios e os objetivos constitucionais de promoção da dignidade da
pessoa humana e construção do bem-estar social, razão pela qual, neste
novo marco, a questão da função social é intrínseca ao estudo de todos
os institutos jurídicos.

Logo, a seara da responsabilidade civil sofre profunda mudança,


pois, a partir dos ditames constitucionais, este instituto, agora plenamente
dotado de função social, adentra em uma nova dimensão jurídica e perde seu
viés unicamente patrimonialista para ser utilizado como um instrumento
de proteção dos direitos fundamentais e tutela de valores sociais, tendo
como pilar os princípios da dignidade da pessoa humana, solidariedade
social e justiça distributiva.

Sob esse novo paradigma da Responsabilidade Civil, Gustavo


Tepedino, ensina que atualmente toda a sistemática do dever de ressarcir

8 MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a
responsabilidade civil. Direito, Estado e Sociedade - v.9 - n.29 - p 233 a 258 - jul/dez 2006. p. 239
9 Ibidem, p. 240
Rodrigo Medeiros Lócio 269

é inf luenciada pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da


solidariedade social e da justiça distributiva, sendo ultrapassado, portanto,
a visão tradicional do instituto que se baseava eminentemente nos direitos
patrimoniais.10 Na mesma direção defende Maria Celina Bodin de Moraes
que “a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a justiça
distributiva influenciam profundamente toda a sistemática do dever de
ressarcir”11.

Sobre a nova perspectiva (quebra do viés unicamente patrimonialista)


do instituto da reparação civil Anderson Schreiber, apresenta os seguintes
ensinamentos:

Percorrendo, de olhos abertos, o corredor escuro que separa as salas


de aula das salas de audiência, pode-se constatar que a chamada crise
da responsabilidade civil nada tem de inesperado. Trata-se bem, ao
contrário, de uma alteração progressiva e até anunciada. Como em todos
os outros campos do direito privado, o que se verifica é um choque entre
velhas estruturas e novas funções. Sob as máscaras da responsabilidade
civil, a dogmática liberal, individualista e exclusivamente patrimonial
do instituto vem sendo distendida, esticada, manipulada pelas cortes
judiciais no seu intuitivo esforço de atender a um propósito mais
solidário e mais consentâneo com a axiologia constitucional.”12

Destarte, verifica-se na prática forense que a tutela ressarcitória


- em decorrência da cláusula geral da responsabilidade civil - é objeto
constante de “ativismo judicial” ao serem alargadas as possibilidades de
danos indenizáveis em virtude de um propósito mais solidário para atender
à constitucionalização do direito, momento em que se identifica a função
social da responsabilidade civil.

À guisa de conclusão, ressalta-se, a partir da lição de Helena Elias


Pinto, que existem algumas dimensões a serem projetadas a função social
da responsabilidade civil.

A primeira dimensão possui como perspectiva o desdobramento


da função social do direito violado, ou seja, realiza-se o estudo da
responsabilidade a partir da relevância do bem jurídico violado. A segunda

10 TEPEDINO, Gustavo. op cit., p. 194 et seq.


11 MORAES, Maria Celina Bodin de. op cit., p. 245 et seq.
12 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à
diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 3.
270 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 287-302, jul./set. 2017

dimensão tem um viés preventivo na medida em que pretende repreender a


prática de atos lesivos, fato que demonstra a atuação do instituto como um
mecanismo de controle social. A terceira dimensão, por sua vez, se projeta
na tentativa de estabilização das relações jurídicas alteradas em razão do
ato lesivo, fase em que a função social é vista sob a ótica da solidariedade
social na busca de um equilíbrio entre o dano sofrido e uma indenização
que seja, ao mesmo tempo, social e individualmente justa.13

Sob tais argumentos, pretende-se defender, portanto, que a


responsabilidade civil detém cristalina função social, pois, somente sob
essa perspectiva - e a partir das projeções da funcionalização social do
dever indenizar - serão realizados julgamentos verdadeiramente justos e
constitucionais, o que fundamentará o ajuizamento das ações regressivas
previdenciárias.

3 DA AÇÃO REGRESSIVA PREVIDENCIÁRIA

A partir da edição da Portaria Conjunta PGF/INSS nº 6/201314,


a Procuradoria Geral Federal, representando os interesses do Instituto
Nacional da Seguridade Social, passou a ajuizar “novas” ações regressivas
para obter o ressarcimento das prestações sociais implementadas em
virtude do cometimento de crimes de trânsito e ilícitos penais dolosos.
Tais ações podem ser ajuizadas em virtude dos benefícios implantados
em razão dos seguintes atos ilícitos:

(a) os crimes dolosos, previstos no Código Penal ou em lei especial (com


exceção dos crimes de trânsito), que produzirem como resultado, sobre
o segurado do RGPS, lesão corporal, morte ou perturbação funcional
(ou seja, há uma exigência da ocorrência de dolo e de determinados
resultados – dolo + resultado);

13 PINTO, Helena Elias. Função Social e Responsabilidade Civil. XXI Encontro Nacional do CONPEDI. –
Florianópolis : Fundação Boiteux, 2012. p. 1808.
14 Art. 2º Considera-se ação regressiva previdenciária para os efeitos desta portaria conjunta a ação que
tenha por objeto o ressarcimento ao INSS de despesas previdenciárias determinadas pela ocorrência
de atos ilícitos.Art. 3º Consideram-se despesas previdenciárias ressarcíveis as relativas ao pagamento,
pelo INSS, de pensão por morte e de benefícios por incapacidade, bem como aquelas decorrentes do
custeio do programa de reabilitação profissional.Art. 4º Compreendem-se por atos ilícitos suscetíveis
ao ajuizamento de ação regressiva os seguintes: I - o descumprimento de normas de saúde e segurança
do trabalho que resultar em acidente de trabalho; II - o cometimento de crimes de trânsito na forma do
Código de Trânsito Brasileiro; III - o cometimento de ilícitos penais dolosos que resultarem em lesão
corporal, morte ou perturbação funcional;
Rodrigo Medeiros Lócio 271

(b) os crimes tipificados na Lei n. 9.503/97 (Código de Trânsito


Brasileiro), culposos ou dolosos, independentemente de resultado
específico, mas desde que importem na concessão de um dos benefícios
ou serviços;15

Muitos juristas defendem que o uso dessas novas ações de


ressarcimento são incabíveis diante da ausência de expressa autorização
normativa, como ocorre, por exemplo, com a ação regressiva decorrente
de acidente de trabalho, cuja determinação expressa está contida nos art.
120 e 121 da Lei nº 8.213/91.16

Sendo assim, para a referida linha pensamento, seria necessário


a existência de previsão em lei para que fosse viável o ajuizamento das
ações regressivas previstas na Portaria Conjunta PGF/INSS nº 6/2013.

Todavia, tais argumentos devem ser superados, haja vista que a


natureza das ações regressivas é indenizatória e pertencem, portanto, ao
ramo do direito civil, pois possuem a pretensão de reparar o dano causado
por terceiro.17 Corroborando tal entendimento, afirmam Carlos Alberto
Pereira e João Batista Lazzari, que “o caráter da ação é indenizatório,
visando estabelecer a situação existente antes do dano – restitutio in integrum
– ou impor condenação equivalente”.18

De fato, o objetivo da propositura de tais ações regressivas


previdenciárias tem o caráter indenizatório. Contudo, cabe destacar que
sua função ultrapassa a questão do ressarcimento ao erário público, na
medida em que possui uma pretensão implícita muito mais importante do
que a mera restituição pecuniária.

Isso porque, como se percebe, tal demanda é dotada de um importante


caráter pedagógico, haja vista que pode vir a colaborar no alcance de

15 CARDOSO, Oscar Valente. Ação Regressiva nos Ilícitos Penais. Revista de Previdência Social, ano
XXXVII, n. 395, p 853-861, p. 857, out. 2013.
16 Nesse sentido: José Antônio Savaris, em seu artigo “A ilegitimidade da ação regressiva do INSS
decorrente de ato ilício não acidentário”, publicado na Revista de Previdência Social, ano XXXVII, n.
391, p. 477-485, jun. 2013.; e Dávio Antonio Prado Zarzana Júnior, em seu artigo “Ações Regressivas
decorrentes de acidente de trânsito”, publicado na Revista de Previdência Social , ano XXXVII, n. 376, p
242-245, mar. 2012.
17 HORVATH JÚNIOR, Miguel. Direito previdenciário. 7. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 519
18 CASTRO, Carlos Alberto Pereira; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. São Paulo.:
LTr, 2011. p. 591
272 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 287-302, jul./set. 2017

determinadas políticas públicas voltadas à prevenção de acidentes de


trânsito e ilícitos penais em geral.

Assim, principalmente por conta do objetivo pedagógico de


concretização de políticas públicas voltadas à prevenção de acidentes de
trânsito e ilícitos penais em geral é que se evidencia o caráter constitucional
da ação regressiva, pois está diretamente amparado nos princípios da
dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da justiça distributiva,
nos termos da nova visão que deve ser atribuída a responsabilidade civil.

Desse modo, tal pretensão atinge as dimensões sobre o qual deve


ser observada a função social da responsabilidade civil, principalmente,
no que tange a “dimensão preventiva, de desestimular comportamentos
lesivos – o que revela a atuação do instituto como importante mecanismo
de controle social”19, na medida em que ao atingir o patrimônio das pessoas
se pode conseguir uma mudança de atitudes, especialmente quanto a
ocorrência de acidentes de trânsito e dos crimes de violência doméstica,
fatos rotineiramente presentes em nossa sociedade e que merecem represália
de todas as formas possíveis.

De mais a mais, também deve ser observado a função social da


responsabilidade civil sobre o patrimônio violado, haja vista que, no
caso, consiste no ressarcimento ao erário público das despesas que foram
despendidas em decorrência de acidentes de trânsitos e de ilícitos penais
que não deveriam ser suportados por toda a coletividade. Afinal, no
risco compartilhado entre os membros da sociedade (risco social), o ideal
seria que não fossem contabilizados a inclusão de uma atitude ilícita do
condutor do veículo que dirige embriagado, do assassino, ou do marido que
agride a mulher, dentre tantos outros ilícitos que são praticados causando
contingência social (invalidez ou morte) e, em consequência, prejuízo a
previdência social.

Conclui-se, portanto, que a função das novas ações regressivas


previdenciárias está diretamente ligada às atuais diretrizes da
responsabilidade civil, principalmente após as influências do Direito
Civil-Constitucional, razão pela qual defende-se a admissibilidade no
ordenamento pátrio.

19 PINTO, op. cit., loc. cit.


Rodrigo Medeiros Lócio 273

Afinal, conforme já dizia o José de Aguiar Dias, “toda manifestação


da atividade humana traz em si o problema da responsabilidade”20 e é por
isso que com base na responsabilidade civil, os responsáveis pela ocorrência
inesperada - através de crimes de trânsito e ilícitos penais - de contingência
social (morte e invalidez) que causem prejuízo a previdência social, devem,
compulsoriamente, ser responsabilizados para uma efetiva justiça social.

Neste viés, essas novas demandas têm fundamento no art. 927 do


Código Civil, pois “aquele que, por ato ilícito (art. 186 e 187), causar dano
a outrem, fica obrigado a repara-lo.”. Por sua vez, o art. 186 do mesmo
diploma legal, estabelece que “aquele que, por ação ou omissão voluntária,
negligência ou imperícia, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

Logo, para o ajuizamento das ações regressivas, há de ser observado


os seguintes pressupostos no caso concreto: 1) conduta culposa/dolosa;
2) dano; e 3) nexo causal.

A conduta dolosa/culposa está caracterizada no acidente de trânsito


que configure crime nos termos do Código de Trânsito Brasileiro ou nos
mais variados ilícitos penais dolosos, em ambas as hipóteses quando a
vítima for segurado do INSS.

Por sua vez, o dano está ligado à existência de despesa previdenciária,


na medida em que somente estará configurado o dano e o eventual direito
ao ressarcimento a partir da concessão de algum benefício previdenciário
(pensão por morte, aposentadoria por invalidez, auxílio-doença, auxílio-
acidente). José Antônio Savaris, defende que somente a vítima do ilícito
“teve seu direito violado jamais a entidade previdenciária.”21. Entretanto,
ao contrário do defendido pelo autor, essa visão restrita do conceito dano
deve ser refutada, pois, na presente hipótese, a tutela ressarcitória deve
ser alargada para atender ao princípio constitucional solidariedade social.
Máxime porque, diante do ilícito praticado, os danos e as consequências
suportadas pelo INSS são certas e previsíveis.

O nexo causal, por fim, está configurado em virtude da relação direta


entre a concessão do benefício previdenciário e o acidente de trânsito que

20 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. v. 1. p. 1.
21 SAVARIS, José Antônio. “A ilegitimidade da ação regressiva do INSS decorrente de ato ilício não
acidentário”. Revista de Previdência Social, ano XXXVII, n. 391, p. 477-485, jun. 2013.
274 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 287-302, jul./set. 2017

configure crime nos termos do Código de Trânsito Brasileiro ou a prática


de ilícito penal que vitime beneficiário do INSS.

Na doutrina, Miguel Horvath Júnior defende a nova ação regressiva


em virtude de acidente de trânsito que configure crime, pois tais fatos
amplificam o risco comum objeto do pacto solidário, razão pela qual “o
responsável deve responder por seus atos, indenizando o sistema na medida
de sua capacidade econômica”22. Do mesmo modo, Oscar Valente Cardoso
pontua que contra o causador do ato ilícito “que traga despesas não previstas
para a Previdência Social, cabe o ajuizamento da ação regressiva.”23

Sobre o tema, destaca-se que a jurisprudência, embora ainda não


tenha apreciado muitos casos sobre o tema, está alinhada ao raciocínio
do presente trabalho.

A propósito, convém destacar que o Tribunal Regional Federal


da 5ª Região, no julgamento da Apelação Cível nº 567886 (NPU:
00012298520134058302)24, reconheceu o direito de o Instituto Nacional
da Previdência Social - INSS ser restituído por parte do agente causador
do ato ilícito que ensejou o dispêndio de valores a título de pensão por
morte à dependente de segurada. No caso concreto, o INSS pleiteou o
ressarcimento dos valores das prestações vencidas e vincendas decorrentes
do pagamento de pensão por morte à filha da beneficiária assassinada
pelo réu, tendo sua pretensão sido julgada procedente, com arrimo nas
normas da responsabilidade civil, na medida em que o ordenamento civil
“salvaguarda o direito da autarquia promovente de obter o ressarcimento
pelos valores que vem pagando a título de pensão por morte à filha da
segurada, em decorrência do ato ilícito perpetrado pelo demandado”, afinal
foi ele o responsável pela necessária antecipação na concessão do benefício.

Do mesmo modo, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ao


apreciar a Apelação/Reexame Necessário Nº 5006374-73.2012.404.7114/
RS25, também reconheceu a legitimidade da pretensão do INSS em obter
22 JÚNIOR HORVATH, Miguel. As Novas Ações Regressivas e seus Fundamentos – Uma análise
panorâmica sob o Ponto de Vista Social e Jurídico. Revista Brasileira de Direito Previdenciário, v. 2, n. 12,
p. 45–49, dez. jan. 2012/2013. p. 48
23 CARDOSO, op. cit., p. 860 et seq.
24 BRASIL. Tribunal Regional Federal (5ª Região). PROCESSO: 00012298520134058302, AC567886/PE,
DESEMBARGADORA FEDERAL POLYANA FALCÃO BRITO (CONVOCADA), Terceira Turma,
JULGAMENTO: 24/04/2014, PUBLICAÇÃO: DJE 05/05/2014 - Página 71
25 BRASIL. Tribunal Regional Federal (4ª Região), APELREEX 5006374-73.2012.404.7114, TERCEIRA
TURMA, Relator CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ, juntado aos autos em 09/05/2013.
Rodrigo Medeiros Lócio 275

o ressarcimento pelos valores pagos a título de pensão por morte aos


filhos de beneficiaria em virtude da prática de ato ilícito do demandado.
Ressaltou-se, no julgamento, que “a finalidade institucional do INSS
não impede a busca do ressarcimento quando o evento gerador do seu
dever de pagar benefício decorrer da prática de ato ilícito por terceiro”,
tendo o pleito sido julgado procedente com fundamentos nas normas da
responsabilidade civil cumulada com uma interpretação sistemática dos
artigos 120 e 121 da Lei nº 8.213/91. Neste caso, a questão apenas foi objeto
de Recurso Extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, todavia, a
matéria não foi conhecida pois a Corte Constitucional entendeu que seria
o caso de ofensa reflexa a Magna Carta de modo a não admitir o recurso.26

É evidente, portanto, a possibilidade de ajuizamento das “novas”


ações regressivas, pois, conforme palavras da atual Ministra do Superior
Tribunal de Justiça Maria Isabel Gallotti, o INSS “tem legitimidade e
interesse para defender os seus recursos e, inclusive, reaver os valores
de benefícios pagos em razão de atos ilícitos praticados contra seus ex-
segurados”.27

À guisa de conclusão, destaca-se que o Superior Tribunal de Justiça,


em recente julgado, decidiu que “o agente que praticou o ato ilícito do
qual resultou a morte do segurado deve ressarcir as despesas com o
pagamento do benefício previdenciário, mesmo que não se trate de acidente
de trabalho, nos termos dos arts. 120 e 121 da Lei nº 8.213/91, c/c os arts.
186 e 927 do Código Civil.”, reconhecendo que “o INSS possui legitimidade
e interesse para postular o ressarcimento de despesas decorrentes da
concessão de benefício previdenciário aos dependentes de segurado, vítima
de assassinato”28.

4 CONCLUSÃO

Foi observado que, com a constitucionalização do Direito Civil,


a interpretação de seus institutos deve ocorrer sob o viés dos valores e
princípios da Constituição Federal, sendo, ultrapassado, portanto, a visão
meramente individual desse ramo jurídico. Nessa perspectiva, constatou-
26 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 911050 AgR, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira
Turma, julgado em 01/12/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-254 DIVULG 16-12-2015 PUBLIC
17-12-2015)
27 BRASIL. Tribunal Regional Federal (1ª Região). AC 200101000175232, 6ª Turma, Rel. Des. Fed. Maria
Isabel Gallotti Rodrigues, DJ 27/03/2006)
28 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1431150/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ
02.02.2017
276 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 287-302, jul./set. 2017

se que o hermeneuta deve estudar o Código Civil sob uma nova ótica, na
qual o valor existencial passe a ser referência em detrimento do antigo
enaltecimento ao patrimônio; do mesmo modo que os valores coletivos e
sociais devem ter precedência sobre os individuais.

À luz dessa nova projeção do ordenamento jurídico, verifica-se que


a responsabilidade civil hoje não pode mais ser vista como uma simples
lógica indenizatória, objetivando unicamente os interesses interpessoais
relacionados. Sua aplicação deverá observar uma função social para ser
efetivada em consonância com os interesses de toda a coletividade, em
atenção aos princípios constitucionais da proteção da dignidade da pessoa
humana (art. 1. III, CF); solidariedade social (artigo 3, I, da CF/88); e
isonomia (artigo 5, caput, da CF/88).

Dessa forma, evidencia-se a admissibilidade das novas ações


regressivas ajuizadas para obter o ressarcimento das prestações sociais
implementadas em virtude do cometimento de crimes de trânsito e ilícitos
penais dolosos, diante da aplicação do instituto da responsabilidade civil
como um importante mecanismo de controle social na sua dimensão
preventiva de desestimular comportamentos lesivos tais quais os crimes
de trânsito e ilícitos penais em geral.

Conclui-se, portanto, pela legitimidade do ajuizamento de ações


regressivas pelo Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS, para
obter o ressarcimento de recursos despendidos prematuramente com a
concessão antecipada de benefício originado em razão da prática de ato
ilícito por terceiro.

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Brasília: DF, Senado, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/


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Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8213cons.htm>.

BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Institui o Código Civil.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.
htm>.
Rodrigo Medeiros Lócio 277

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regressivas previdenciárias. Diário Oficial da União. 01 abril. 2013. Seção 1.1 e 1.2.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 911050 AgR, Relator(a): Min.


ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 01/12/2015, PROCESSO
ELETRÔNICO DJe-254 DIVULG 16-12-2015 PUBLIC 17-12-2015).

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1431150/RS, 2ª Turma, Rel.


Min. Humberto Martins, DJ 02.02.2017

BRASIL. Tribunal Regional Federal (1ª Região). AC 200101000175232, 6ª


Turma, Rel. Des. Fed. Maria Isabel Gallotti Rodrigues, DJ 27/03/2006)

BRASIL. Tribunal Regional Federal (4ª Região), APELREEX 5006374-


73.2012.404.7114, TERCEIRA TURMA, Relator CARLOS EDUARDO
THOMPSON FLORES LENZ, juntado aos autos em 09/05/2013

BRASIL. Tribunal Regional Federal (5ª Região). PROCESSO:


00012298520134058302, AC567886/PE, Desembargadora Federal Polyana
Falcão Brito (CONVOCADA), Terceira Turma, Julgamento: 24/04/2014,
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Recebido em: 20/03/2016
Aprovado em: 08/08/2016

OS ARTIGOS 926 E 927 DO CÓDIGO


DE PROCESSO CIVIL DE 2015: A
ESTABILIDADE DA JURISPRUDÊNCIA E
A POSSIBILIDADE DE MODULAÇÃO DE
EFEITOS TEMPORAIS POR MUDANÇA DE
JURISPRUDÊNCIA
ARTICLES 926 AND 927 OF THE CIVIL PROCEDURE CODE 2015:
STABILITY OF JURISPRUDENCE AND THE POSSIBILITY OF
MODULATION OF EFFECTS OF JURISPRUDENCE CHANGE

Wagner Akitomi Une


Mestrando em Constituição e Sociedade no Instituto Brasiliense de
Direito Público, Escola de Direito de Brasília (IDP/EDB)
Especialização em Pós Graduação Lato Sensu em Direito Tributário
Faculdades Integradas de Jacarepaguá, FIJ
Advogado da União - AGU
SUMÁRIO: Introdução; 1 O problema da fragmentação do
sistema; 2 Uniformização e estabilização da jurisprudência como
providências necessárias, previstas no novo Código de Processo
Civil, para combater a fragmentação do sistema; 2.1 Uma teoria
de precedente?; 2.2 Coerência e integridade da jurisprudência;
2.3 Uniformidade da jurisprudência; 2.4 Estabilidade da
jurisprudência; 3 Modulação temporal de efeitos da modificação
da jurisprudência; 3.1 Função nomofilácia do Supremo Tribunal
Federal e dos Tribunais Superiores; 3.2 Os requisitos para a
modulação temporal de efeitos; 4 Conclusão; Referências.
280 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

RESUMO: O estudo da estabilidade da jurisprudência e da possibilidade


de modulação de efeitos temporais por mudança de jurisprudência
ganha especial importância diante do novo Código de Processo Civil.
A nova lei se preocupa com a existência de posicionamentos diferentes e
incompatíveis no Judiciário relativos a uma mesma norma jurídica. Por
isso, um dos objetivos encartados na nova lei é justamente incentivar a
uniformização da jurisprudência, promovendo, após, a sua estabilização.
Isso não significa, no entanto, a imutabilidade da interpretação pelos
Tribunais. A estabilidade da jurisprudência deve ser vista no novo
Código de Processo Civil sob duas perspectivas, isto é, o maior esforço
argumentativo para a superação do entendimento jurisprudencial e a
possibilidade de modulação dos efeitos temporais quando da alteração
da jurisprudência. Assim, a segurança jurídica, especialmente sob o seu
viés subjetivo da legítima confiança, é o fundamento constitucional para
afastar as constantes mudanças jurisprudenciais e, por vezes, a aplicação
retroativa de novo entendimento jurisdicional.

PALAVRAS-CHAVE: Estabilidade da Jurisprudência. Modulação


Temporal dos Efeitos. Alteração da Jurisprudência. Princípio da Segurança
Jurídica. Princípio da Legítima Confiança.

ABSTRACT: A study on the stability of jurisprudence and the


possibility of the temporal modulation of effects by changing
jurisprudence carries special importance in the new Code of Civil
Procedure. The new law is concerned with the existence of different
and incompatible positions in the Judiciary relating to the same legal
standard. Therefore, one of the goals of the new law is specifically to
encourage the standardization of jurisprudence, implementing, after,
the stabilization. However, this must not lead to the immutability of
interpretation by the courts. The jurisprudence stability should be
seen from two perspectives in the new Code of Civil Procedure, namely the
most argumentative effort to overcome the jurisprudential understanding
and the possibility of temporal modulation of effects when changing
jurisprudence. Thus, legal certainty, especially under your subjective bias
of legitimate confidence, is the constitutional basis to repel the constant
changes in jurisprudence and, sometimes, the retroactive application of
new understanding.

KEYWORDS: Stability of Jurisprudence. Temporal Modulation of


Effects. Amendment of Jurisprudence. Principle of Legal Certainty.
Principle of Legitimate Expectations.
Wagner Akitomi Une 281

INTRODUÇÃO

O novo Código de Processo Civil demonstra especial preocupação


com a existência de posicionamentos diferentes e incompatíveis no Judiciário
relativos a uma mesma norma jurídica.

Assim, para enfrentar esse problema, reconhecido como fragmentação


do sistema pela Comissão de Juristas criada para apresentar uma redação
de anteprojeto de legislação processual civil, este artigo propõe examinar
diversos aspectos relacionados ao objetivo de se garantir a necessária
segurança jurídica na prestação jurisdicional.

Neste plano, esta pesquisa deve analisar o fenômeno da fragmentação


do sistema, as suas origens e alguns problemas que dela advém. Adiante,
cabe estudar a proposta de solução trazida pelo novo diploma processual,
vale dizer, a busca da uniformização da jurisprudência com a sua posterior
estabilização. Inclusive, devem ser objetos de enfrentamento os benefícios
da estabilização, notadamente para a segurança das relações jurídicas.
Também deve ser objeto de exame a técnica da modulação temporal de
efeitos da alteração da jurisprudência, especialmente sob a perspectiva
de seus requisitos.

Dessa forma, o objetivo do trabalho é retratar o fenômeno da


estabilização da jurisprudência e da técnica da modulação de efeitos na
alteração da jurisprudência a partir do estudo dos artigos 926 e 927, do
novo Código de Processo Civil, sem se olvidar dos princípios constitucionais
incidentes na espécie, especialmente o da segurança jurídica.

1 O PROBLEMA DA FRAGMENTAÇÃO DO SISTEMA

Em 30 de setembro de 2009, por meio do Ato nº 379, o Presidente


do Senado Federal nomeou uma Comissão de Juristas, composta por
importantes nomes como Luiz Fux, Bruno Dantas, Teresa Arruda
Wambier, Humberto Theodoro Jr., entre outros, para apresentar sugestão
de Anteprojeto do novo Código de Processo Civil.

Ao apresentar a proposta de redação em 8 de junho de 2010,


a Comissão de Juristas alertou, na Exposição de Motivos1, para a
fragmentação do sistema, ou seja, “indefinidamente, posicionamentos
1 Código de Processo Civil: anteprojeto / Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto
de Código de Processo Civil. – Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010. Disponivel em: <http://
www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/anteprojeto.pdf>. Acesso em 22.jan.2016.
282 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito da mesma norma


jurídica, leva a que jurisdicionados que estejam em situações idênticas,
tenham de submeter-se a regras de conduta diferentes [...]”. Na ocasião,
ainda advertiu que essa fragmentação do sistema gera “intranquilidade
e, por vezes, verdaderia perplexidade na sociedade”.

Embora não haja unanimidade quanto aos fatores que ocasionam essa
fragmentação do sistema, dois fenômenos, a priori, contribuem decisamente
para ela. Importa dizer, o maior poder de interpretação reconhecido ao
Judiciário e a ausência de uma cultura ou a insuficiência de instrumentos
induzidores de uma prática de respeito a precedentes ou à jurisprudência.

Em relação a um maior poder de interpretação reconhecido ao


Judiciário, cabe anotar, inicialmente, a influência do neoconstitucionalismo.

Uma importante transformação trazida pelo neoconstitucionalismo,


ao lado do reconhecimento de força normativa à Constituição e da expansão
da jurisdição constitucional, é justamente o desenvolvimento de uma nova
dogmática da interpretação constitucional. Significa dizer, a interpretação
jurídica tradicional, baseada nas premissas de que a norma abstrata oferece
as soluções para os problemas jurídicos e ao juiz compete tão somente
identificar a norma aplicável ao problema, não é mais integralmente
satisfatória. A resposta constitucionalmente adequada ao problema exige
mais do que o mero exercício de subsunção dos fatos em face da norma
abstrata, reclama um exercício interpretativo do magistrado, tornando-o
um “co-participante do processo de criação do Direito, completando o
trabalho do legislador”. 2

Assim, ao contrário do Estado Liberal, no Estado Democrático


e Social de Direito, a magistratura assume posição hermenêutica ativa,
ampliando a função criadora da jurisdição a partir da investigação do
espírito da lei, com a “aplicação da proporcionalidade e da argumentação
orientada por princípios jurídicos”.3

Outro fenômeno que outorga um maior poder de interpretação ao


Judiciário é a utilização mais recorrente de cláusulas gerais ou conceitos
jurídicos indeterminados nos textos normativos, valorizada através do
2 BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do
direito constitucional no Brasil. Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional, São Paulo, v. 1, p. 143-195,
maio.2011.
3 SIQUEIRA JR, Paulo Hamilton. Neoconstitucionalismo. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo,
São Paulo, v. 29, p. 161-185, jan-jun.2012
Wagner Akitomi Une 283

fenômeno da perda da centralidade das codificações, ocorrida a partir da


necessidade de a ordem jurídica se ajustar às demandas sociais.

É notória, pois, a maior velocidade em que se implementam as


transformações sociais, “seja pelo desenvolvimento da ciência, da tecnologia,
da globalização e da própria cultura influenciada por uma maior riqueza
de fontes plurais que ora dialogam de modo interdisciplinar”4.

Tal técnica de cláusulas gerais se baseia na premissa de que a lei


pode ser apenas um dos elementos que informam a construção judicial
do Direito, haja vista a insuficiência da lei, aplicada por meio da pura
subsunção, para solucionar as variadas espécies de litígios.5

Desse modo, os Códigos do século XX, em sua maioria, já adotaram a


técnica legislativa de cláusulas gerais6. E essas cláusulas abertas, assim como os
conceitos vagos, são “poros”, por meio dos quais a realidade social pode penetrar7.

Neste plano, “as cláusulas gerais utilizam em grau mínimo o princípio


da tipicidade, atuando como metanormas na medida em que enviam o juiz a
critérios determináveis em outros espaços do sistema ou mesmo fora dele”8.
Em outras palavras, elas fornecem apenas um “início de significação a ser
complementado pelo intérprete, levando em conta as cirunstâncias do caso
concreto”, haja vista que não possuem todos os elementos para a sua aplicação9.

Com efeito, “legislar por cláusulas gerais significa deixar ao juiz,


ao intérprete, uma maior possibilidade de adaptar a norma às situações
de fato”10.

4 PAGANINI, Juliano Marcondes. A segurança jurídica nos sitemas codificados a partir de cláusulas
gerais. In: MARINONI, Luiz Guilherme (Org). A força dos precedentes. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2012.
p. 209-228.
5 MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da igualdade. In: MARINONI (Org), op. cit., p.
577-597.
6 DRUMOND, Paulo Henrique Dias; CROCETTI, Priscila Soares. Formação histórica, aspectos do
desenvolvimento e perspectivas de convergência das tradições de common law e de civil law. In: MARINONI
(Org), op. cit., p. 41-82.
7 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e
common law. Revista de Processo, São Paulo, v. 172, p. 121-174, jun.2009.
8 CAPELOTTI, João Paulo. A segurança jurídica nos sitemas codificados a partir de cláusulas gerais. In:
MARINONI (Org.), op. cit., p. 229-250.
9 BARROSO, op. cit., p. 143-195.
10 PERLINGIERI. Perfis do direito civil: introdução do direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar,
2012, p. 27 apud DRUMOND; CROCETTI, op. cit. In: MARINONI (Org.), op. cit., p. 41-82.
284 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

Posto isso, apesar da teoria clássica não considerar o precedente


como fonte formal do direito, sendo ele a lei interpretada, acaba por assumir,
na prática, importância semelhante à lei. E a atividade do Judiciário de
extrair a norma da lei, por revestir caráter interpretativo, conduz, muitas
das vezes, a resultados distintos.

Por outro lado, em relação à ausência de uma cultura ou à insuficiência


de instrumentos induzidores de uma prática de respeito a precedentes
judiciais, cabe anotar que o grau de eficácia do precedente pode variar
conforme cada ordenamento jurídico. Nesta senda, um país pode não
reconhecer nenhuma relevância aos precedentes, mas também pode lhes
outorgar vigorosos efeitos jurídicos11 12, sendo recorrente duas as principais
classificações, ou seja, o efeito persuasivo e o efeito vinculante.

Os precedentes persuasivos não possuem força vinculativa em relação


a futuros julgados, não precisando ser seguidos pelo julgador seguinte13.
Ostentam apenas eficácia persuasiva14 ou de convencimento, revestindo-se
essencialmente de valor moral15. Trata-se da eficácia mínima observada
em todos os precedentes16 que “deriva da própria estrutura e lógica do
sistema de produção de decisões judiciais, ao exigir respeito do órgão que
proferiu a decisão ou do órgão inferior diante das suas próprias decisões
e dos tribunais que lhe são superiores”17. Já os precedentes vinculantes
são obrigatórios, ensejando dever de obediência dos julgadores para casos
futuros similares, vinculando-os à tese jurídica do precedente18.

Em suma, ainda que o precedente seja um fato identificado em


qualquer sistema com decisão jurisdicional, reitere-se que o tratamento
jurídico ou o grau de eficácia do precedente reconhecido pelo direito

11 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual
civil. v. 2. 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 453.
12 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 186.
13 MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: Juspodivm, 2015.
p. 101.
14 DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 456.
15 TUCCI, op. cit., p. 12.
16 DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 456.
17 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
p. 116.
18 DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 455.
Wagner Akitomi Une 285

de cada país é objeto de variação, sendo mais desenvolvida a teoria dos


precedentes nos países que seguem o common law19 -20.

Neste panorama, verifica-se que o poder elastecido de interpretação do


Judiciário aliado à desnecessidade de obediência, no mais das vezes, a decisões
proferidas anteriormente para situações semelhantes, contribui, no país, para
o que a Comissão de Juristas responsáveis pela aprensentação da redação de
anteprojeto do novo Código Civil qualificou como fragmentação do sistema.

Não se questiona que a liberdade de interpretação dos juízes em um


sistema no qual não há uma cultura de obediência a precedentes ou de coerência
com julgamentos anteriores, conduz a um contexto de caos jurisprudencial.

De outro lado, apontados esses dois centrais fatores que contribuem


para a fragmentação do sistema, deve-se indicar alguns efeitos negativos
desse fenômeno, já que, repita-se, segundo a suscitada Comissão de Juristas,
tal situação gera “intranquilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade
na sociedade”.

O primeiro efeito negativo de um sistema judicial conivente com a


produção de decisões contraditórias é a instabilidade das relações jurídicas
sociais, haja vista que a falta de previsibilidade dos julgamentos impede
a calculabilidade das consequências dos atos praticados em sociedade.

A imprevisibilidade das decisões judiciais também constitui


grave obstáculo para o desenvolvimento das atividades econômicas21,
influenciando, inclusive, nos investimentos realizados no país. Inúmeros
estudos abordam essa relação entre o Direito, o Poder Judiciário e a
Economia, apontando a previsibilidade como um dos fatores que influenciam
no crescimento da integração econômica entre países e regiões22.

Outro resultado da persistente produção de decisões divergentes,


incidentes sobre contextos fáticos similares, é a perda da legitimidade do

19 LOURENÇO, Haroldo. Precedente judicial como fonte do direito: algumas considerações sob a ótica do
novo CPC. Revista da AGU, Brasília, n. 33, p. 241-269, jul-set.2012.
20 DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 453.
21 PEREIRA, Paula Pessoa. O Estado de direito e a necessidade de respeito aos precedentes judiciais. In:
MARINONI (Org), op. cit., p. 143-156.
22 BASTOS, Antonio Adonias A. A estabilidade das decisões judiciais como elemento contributivo para o
acesso à justiça e para o desenvolvimento econômico. Revista de Processo, São Paulo, v. 227, p. 295-316,
jan.2014.
286 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

Estado-Juiz na prestação jurisdicional23 ou a deslegitimação do Judiciário


frente aos cidadãos24.

Por fim, porém igualmente prejudicial, a fragmentação do


sistema alimenta a litigância aventureira, que se lastreia na ideia de uma
“ jurisprudência lotérica”, na qual a coexistência de posições diversas
incentiva, ou ao menos oportuniza ao cidadão buscar um provimento judicial
favorável25. Fala-se, inclusive, em uma teoria de incentivos, identificada
por ocasião de níveis elevados de divergências26.

Neste panorama, conhecidas as principais causas e alguns efeitos deletérios


do problema denominado fragmentação do sistema, atinente à função de prestação
jurisdicional, convém a análise da específica proposta trazida no bojo do novo
Código de Processo Civil, notadamente em seus artigos 926 e 927.

2 UNIFORMIZAÇÃO E ESTABILIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA COMO


PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS, PREVISTAS NO NOVO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL, PARA COMBATER A FRAGMENTAÇÃO DO SISTEMA

A atenuação da fragmentação do sistema pressupõe, necessariamente,


o combate de uma de suas causas.

Todavia, é certo que a causa a ser combatida não é o reconhecimento


de um maior poder interpretativo dos juízes, haja vista que os seus principais
fatores não admitem retrocesso. Primeiramente, a posição de destaque
ou de centralidade da Constituição e, por consequência, a valorização
da interpretação conforme seus princípios e valores, é um fenômeno
irreversível, ao menos neste momento histórico. Por outro lado, a utilização
da técnica legislativa de cláusulas gerais ou de conceitos indeterminados é
uma exigência da realidade como meio de se alcançar uma maior efetividade
do processo a partir da “adequação dos dispositivos legais à dinâmica
realidade histórico-cultural concreta”27.

23 CAMBI, Eduardo; MINGATI, Vinícios Secafen. Nova hipótese de cabimento da reclamação,


protagonismo judiciário e segurança jurídica. Doutrinas essenciais de processo civil, São Paulo, v. 6, p. 1251-
1270, out.2011.
24 PEREIRA, op. cit. In: MARINONI (Org), op. cit., p. 143-156.
25 CAMBI, Eduardo. Jurisprudência lotérica. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 786, p. 108-128, abr.2011
26 DANTAS, Bruno. Teoria dos recursos repetitivos: tutela pluri-individual nos recursos dirigidos ao STF e
ao STJ (arts. 543-B e 543-C do CPC). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 50.
27 BARBOSA, Adriano. Das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados à necessidade de precedentes
obrigatórios - uma breve reflexão do projeto do novo CPC. In: MARINONI (Org), op. cit., p. 251-267.
Wagner Akitomi Une 287

Com efeito, diante da impossibilidade de a lei regulamentar


objetivamente todas as situações jurídicas, especialmente nesta época de
relações humanas mais complexas e dinâmicas, que torna indispensável
o procedimento hermenêutico realizado pelo juiz, remanesce tutelar a
segurança jurídica a partir de uma política de valorização de uniformização
e estabilização dos pronunciamentos judiciais.

Aliás, esse objetivo é claramente identificado no novo Código de


Processo Civil, prestigiado, inclusive, desde o início da tramitação do
anteprojeto da lei processual.

A respeito, observa-se que a Comissão de Juristas, já referida


alhures, apresentou, inicialmente, uma proposta de redação do art.
846 contemplando que “os tribunais velarão pela uniformização e pela
estabilidade da jurisprudência [...]”.

Em 15 de dezembro de 2010, o Projeto de Lei nº 166/2010 foi aprovado


no Senado Federal e seguiu para exame da Câmara dos Deputados sob o nº
8.046/2010 (Projeto de Lei nº 8.046/2010). Em relação à redação original do
art. 847, foi acrescida a referência a “em princípio”: “os tribunais, em princípio,
velarão pela uniformização e pela estabilidade da jurisprudência [...]”.

Em continuação, em 16 de junho de 2011, foi criada uma nova


Comissão de Juristas, agora no âmbito da Câmara dos Deputados, composta
por nomes como Fredie Didier, Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel
Dinamarco, Kazuo Watanabe e Luiz Guilherme Marinoni, para proferir
parecer ao Projeto de Lei.

O Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei remanejou


a regra para o art. 520 e acresceu a referência a “íntegra e coerente”,
passando a prever: “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e
mantê-la estável, íntegra e coerente”.

Em prosseguimento, em 17 de dezembro de 2014, o Substituto da


Câmara dos Deputados foi aprovado com emendas pelo Senado Federal
e, em 16 de março de 2015, a Excelentíssima Presidenta da República
sancionou, com vetos parciais, o texto do novo Código de Processo Civil,
tendo sido publicado em 17 de março de 2015.

Na redação final do novo Código, prevalecendo a redação do


Substituto da Câmara, o art. 926 estabelece que “os tribunais devem
uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
288 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

Neste plano, a simples leitura do dispositivo indica a necessidade


do enfrentamento de alguns conceitos jurídicos.

2.1 Uma Teoria de Precedente?

Cabe anotar que o art. 926, do novo Código de Processo Civil, não
sinaliza para uma teoria de precedentes, tal como existente nos países que
seguem o common law.

Tradicionalmente, no Brasil, a exemplo de outros países do civil law,


o precedente, isoladamente, não costuma ser valorizado. Em regra, não se
extrai a norma geral aplicável a casos futuros de uma única decisão. Uma força
persuasiva signficativa é comumente aceita somente a partir da reiteração
de decisões judiciais no mesmo sentido28. “É essa constância e repetição
homogênea e quantitativa do precedente e da sua opção interpretativa que
dá uniformidade e estabilidade à regra que dali se extrai”29.

Dessa maneira, no Brasil, uma estabilidade de julgamento, ainda que


geralmente apenas relativa, é historicamente alcançada somente quando
um entendimento é adotado por uma quantidade significativa de julgados
e em um razoável lapso temporal.

Destarte, fala-se em um modelo de “ jurisprudência íntegra”, no


qual não se depende de um precedente a ser seguido e não se adota a
doutrina do stare decisis.30

No entanto, excepcionalmente, admite-se um único precedente conter


força persuasiva ou até vinculativa31, como ocorre, por exemplo, no controle
concentrado de constitucionalidade, tendo sido recepcionado o modelo
norte-americano32. O art. 927, do novo Código de Processo Civil, inclusive,
inova ao estabelecer um rol de precedentes, jurisprudência e enunciados
de súmulas obrigatórios, como os acórdãos em incidente de assunção de
28 LOURENÇO, op. cit., p. 241-269.
29 DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 488.
30 MEDINA, José Miguel Garcia. Novo código de processo civil comentado. 3. ed. da obra Código de processo
civil comentado, reescrita de acordo com a Lei 13.105, de 16.03.2015. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2015. p. 1242-1243.
31 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Interpretação da lei e de precedentes: civil law e common law. Revista
dos Tribunais, São Paulo, v. 893, p. 33-45, mar.2010.
32 SAMPAIO, Tadeu Cincurá de A. S. O novo CPC e a obrigatoriedade dos precedentes judiciais: uma
transformação da cultura jurídica brasileira por lei. In: FREIRE, Alexandre et al (Org). Novas tendências
do processo civil, v. 3. Salvador: Juspodivm, 2014. p. 707-734.
Wagner Akitomi Une 289

competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de


recursos extraordinário e especial repetitivos, e os enunciados de súmula
do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.33

No Brasil, especificamente, identifica-se uma espécie de “evolução”


na relação “precedente - jurisprudência - súmula”. Embora distintos,
precedente, jurisprudência e súmula são conceitos interligados. Vale dizer,
“a súmula é o enunciado normativo (texto) da ratio decidendi (norma geral)
de uma jurisprudência dominante, que é a reiteração de um precedente”.34

Essa sistemática, aliás, está prevista no novo Código de Processo


Civil quando o seu art. 926, determina que “os tribunais devem uniformizar
sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” e, após, consagra
no §1º, do mesmo dispositivo, que “na forma estabelecida e segundo os
pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados
de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante”.

2.2 Coerência e Integridade da Jurisprudência

Os deveres de coerência e integridade, previstos no art. 926, do novo


Código de Processo Civil, são pressupostos da própria universalização
da jurisprudência, como produto de uma metodologia racional e não
autoritária35.

Ainda que não se vislumbrem definições consolidadas, pode-se defender


que os deveres de coerência e integridade traduzem uma pretensão de se obter
consistência da jurisprudência. Enquanto a coerência se refere à obrigatoriedade
de se buscar decisões judiciais não contraditórias e com conexão positiva de
sentido, a integridade propõe o direito como um sistema de normas (e, não, um
amontoado de regras), adequado em face da Constituição e do ordenamento
jurídico em sua integridade36. Em outros termos, a coerência “faz correlação
entre entendimentos pretorianos manifestados no passado e no presente”, ao
passo que a integridade “implica a análise de correção e coesão sistêmica de
seus fundamentos e conclusões, de acordo com o conjunto de normas (princípios
e regras), aplicáveis ao caso concreto”37.

33 DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 461-462.


34 Ibid., p. 487.
35 Ibid., p. 479.
36 Ibid., p. 479-487.
37 THEODORO NETO, Humberto Theodoro. A relevância da jurisprudência no novo CPC. In:
THEODORO JÚNIOR, Humberto; OLIVEIRA, Fernanda Alvim Ribeiro de; REZENDE, Ester Camila
290 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

Tais deveres assentam a ideia de uma jurisprudência como um


processo contínuo de compreensão e sedimentação de motivos38. Aproxima-
se, com isso, da analogia proposta por Ronald Dworkin do direito como
um “romance em cadeia”, no qual, mesmo na hipótese de vários autores
serem incumbidos da sua elaboração, cada um de um capítulo, a história
deve conservar uma continuidade, afastando rupturas e incongruências.
Com efeito, o escritor do romance, tal como o Judiciário em face da
jurisprudência, “deve adotar um ponto de vista sobre o romance que vai
formando aos poucos, alguma teoria que lhe permita trabalhar elementos
como personagens, trama, gênero, tema e objetivo, para decidir o que
considerar como continuidade e não como um novo começo”39. Em síntese,
“a integridade e a coerência só podem ser vistas no contexto de continuação
de uma obra, e não como instâncias estáticas”40.

2.3 Uniformidade da Jurisprudência

Pela circunstância de uma norma jurídica poder gerar variadas


interpretações, deve existir uma preocupação do Judiciário em fixar a
unidade do direito ou a uniformidade da interpretação.41

Assim, não se afastando dos valores da coerência e integridade, a


jurisprudência deve ser objeto de uniformização, pois não há como conceber
ou manter um sistema de estabilidade de jurisprudência quando coexistem
decisões distintas aplicadas para fatos semelhantes e contemporâneos
entre si. É imprescindível uniformizar a interpretação dos precedentes
para casos futuros, tendo em vista a dinâmica social e jurídica42.

Esse dever de uniformização parte do princípio de que é inaceitável


que o mesmo juiz decida distintamente casos iguais43, não podendo
também os tribunais serem omissos diante de divergências entre os seus
Gomes Norato (Org). Primeiras lições sobre o novo direito processual civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense,
2015. p. 665-684.
38 LIAÑO, Miguel Pasquiau. Precedente, Jurisprudencia y Motivación de las Setencias. Revista de Direito
Público, Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, n. 54, p. 79-90, nov-dez.2013.
39 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jeferson Luiz Camargo. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2014. p. 275-279.
40 RAMIRES, Maurício. Críticas à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010. p. 105.
41 ALMEIDA, Caroline Sampaio de. A relevância dos precedentes judiciais como mecanismo de efetividade
processual. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 922, p. 343-384, ago.2012.
42 SAMPAIO, op. cit. In: FREIRE el al (Org), op. cit., p. 707-734.
43 Ibid., p. 707-734.
Wagner Akitomi Une 291

próprios órgãos fracionários44, na esteira do enunciado nº 316 do Fórum de


Processualistas Civis. Não se contesta que “soluções judiciais heterogêneas
para direitos individuais homogêneos agridem o senso comum até mesmo
na expressão vernacular, que encerra uma contradição em termos”45.

Essa uniformização não deve ser buscada apenas para afastar


divergências internas, mas também para coibir incongruências no sistema
como um todo. Neste âmbito, embora sejam comuns divergências entre
juízes de primeiro grau, situação mais grave é a insegurança que advém
dos tribunais.

Outrossim, ainda que a uniformização da jurisprudência possa


eventualmente inibir a alteração constante de decisões judiciais, trata-se
de fenômeno distinto da estabilização da jurisprudência. O art. 926 do
novo Código de Processo Civil, inclusive, sinaliza para a necessidade de,
primeiramente, uniformizar a jurisprudência, para, após, mantê-la estável.

De fato, uma jurisprudência uniformizada não é suficiente para


proporcionar a segurança e confiança necessárias se puder a todo instante
ser alterada ao puro alvedrio dos julgados. Então, é correto o novo Código
de Processo Civil valorizar a uniformização da jurisprudência, para dissipar
divergências, e, posteriormente, estabilizá-la.46

2.4 Estabilidade da Jurisprudência

A estabilidade das decisões judiciais mantém próxima relação com


a força dos precedentes ou, no caso do Brasil, como é preponderante, com
a força da jurisprudência. Essa força da jurisprudência se refere tanto ao
grau de sua eficácia de vinculação ou persuasão, quanto à utilização de
técnicas de preservação de seus efeitos em situações de modificação de
entendimento.

O grau de vinculação ou persuasão reconhecido aos precedentes ou


à jurisprudência em um ordenamento jurídico repercute na amplitude de
poder do juiz em afastar ou superar a aplicabilidade da regra geral diante
de determinadas circunstâncias.

44 DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 474.


45 DANTAS, op. cit., p. 50-51.
46 THEODORO NETO, op. cit. In: THEODORO JÚNIOR; OLIVEIRA; REZENDE (Org), op. cit., p.
665-684.
292 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

Contudo, isso não significa que países que adotam uma rigorosa
teoria de precedente ou valorizam uma jurisprudência íntegra nunca
podem modificar o entendimento. Pelo contrário, é certo que o direito não
é imutável, devendo acompanhar as mudanças da sociedade47, pois não se
pode dar vestes de absoluto a nenhum princípio, por mais relevante que
seja48. Assim, deve haver modificações quando constatado que o precedente
ou a jurisprudencia incidiu em erro49.

Aliás, a possibilidade de modificação de interpretação é inerente a


qualquer sistema de precedentes, sendo que a estabilidade jurisprudencial não
proíbe a alteração de posicionamento; inibe, sim, a alteração injustificada50.

No que concerne, tem-se o que se denomina de ônus argumentativo


para superação de precedentes. Significa dizer, a exigência de uma maior
argumentação para alteração de entendimento51. Também se utiliza a
terminologia inércia argumentativa ao descrever a necessidade de uma forte
carga argumentativa para afastar ou superar um precedente e uma carga
argumentativa significativamente mais fraca para justificar a aplicação
de um precedente52.

O novo Código de Processo Civil consagra dispositivos expressos


nesse sentido. É o caso do §4º, do art. 927, que estebelece que a modificação
de jurisprudência pacificada, além de súmula e de tese adotada em
julgamento de casos repetitivos, “observará a necessidade de fundamentação
adequada e específica […]”. Também se destaca o art. 489, §1º, VI, que
proclama não fundamentada a decisão que “deixar de seguir enunciado de
súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar
a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do
entendimento”.

47 ALMEIDA, op. cit., p. 343-384.


48 COSTA, Marília Siqueira da. As consequências da incidência do princípio da proteção da confiança a
decisão de overruling: uma análise à luz do art. 521 do novo CPC. In: FREIRE et al (Org), op. cit., p.
391-416.
49 BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Precedentes judiciais e segurança jurídica: fundamentos e
possibilidades para jurisdição constitucional brasileira. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 226.
50 DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 495.
51 PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 201.
52 ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de. O princípio da inércia argumentativa diante de um sistema
de precedentes em formação no Direito Brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, v. 229, p. 377-401,
mar.2014.
Wagner Akitomi Une 293

Ao não seguir um precedente ou jurisprudência, sobre o magistrado


recai um ônus maior de argumentação exatamente porque não se dá
continuidade à interpretação jurídica53. Essa exigência de uma argumentação
qualificada para a hipótese de desconsideração de um precedente ou
jurisprudência encontra fundamento em princípios constitucionais, tal como
o da motivação, revelando-se significativamente importante, na medida
em que, em tese, contribui para uma maior uniformidade, previsibilidade
e estabilidade dos julgados54.

Por sua vez, a economia argumentativa que advém da aplicação


do precedente ou da jurisprudência se baseia na circunstância de o juiz
poder aproveitar o raciocício jurídico consagrado anteriormente, elidindo
a obrigação de produzir toda uma nova argumentação, como na situação
de matéria inédita.55

Desse cenário, extrai-se padrões de conduta argumentativa. Vale


dizer, quando for possível citar um precedente a favor ou contra uma
decisão, essa providência deve ser adotada. E quem pretende se apartar de
um precedente, assume o ônus argumentativo de evidenciar a superação
do precedente, o seu erro ou a sua não aplicação ao caso específico.56

Por derradeiro, imprescindível registrar que a estabilidade da


jurisprudência concretiza valiosos princípios constitucionais, especialmente
o da legalidade, da isonomia, da segurança jurídica e o da celeridade
processual.

O princípio da legalidade possui função essencial para a preservação


do Estado Democrático de Direito, na medida em que se destina a coibir
o arbítrio do Poder Público. A Exposição de Motivos do Anteprojeto do
novo Código de Processo Civil recorda que “se, por um lado, o princípio
do livre convencimento motivado é garantia de julgamentos independentes
e justos […], por outro lado, […] acaba por conduzir a distorções do
princípio da legalidade e à ideia, antes mencionada, de Estado Democrático
de Direito”. Nesse diapasão, considerando que a interpretação da lei pelo
Judiciário, em última instância, é que determina o alcance da eficácia da

53 SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Compreendendo os precedentes no Brasil: fundamentação de decisões em


outras decisões. Revista de Processo, São Paulo, v. 226, p. 349-382, dez.2013.
54 ATAÍDE JÚNIOR, op. cit., p. 377-401.
55 LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo brasileiro contemporâneo.
Salvador: Juspodivm, 2014. p. 371.
56 ZANETI JÚNIOR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 357.
294 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

regra jurídica, a estabilidade dessa interpretação e a sua não sujeição à


falibilidade e subjetivismo de cada juiz, faz cumprir ou efetiva o princípio
da legalidade.57

Outrossim, cabe lembrar que a igualdade perante a jurisdição, que


engloba a igualdade “no” processo, que se traduz fundamentalmente na
paridade de armas dos litigantes, especialmente no direito ao contraditório,
e a igualdade “ao” processo, representado essecialmente pela igualdade ao
acesso à jurisdição, somente tem sentido quando correlacionadas com a
decisão jurisdicional58. Assim, a isonomia proclama que “suportes fáticos
idênticos, levados ao Judiciário no mesmo momento histórico, devem
ensejar a aplicação do mesmo fundamento jurídico e, consequentemente,
produzir os mesmos efeitos jurídicos”59.

A estabilidade da jurisprudência concretiza justamente essa igualdade


de tratamento, estirpando a fragmentação do sistema que produz decisões
distinas e, por vezes, contraditórias, para jurisdicionados titulares de
relações jurídicas semelhantes ou iguais.

A seu turno, o princípio da segurança jurídica é tutelado pela


estabilidade da jurisprudência, especialmente sob o seu viés subjetivo,
notadamente da confiança legítima, uma vez que o precedente ou
a jurisprudência, na prática, serve de fundamento para a conduta dos
jurisdicionados60. Melhor explicando, a previsibilidade das decisões judiciais
possibilita uma calculabilidade das consequências dos atos praticados,
atribuindo confiabilidade à interpretação e à aplicação do ordenamento
jurídico, propiciando até mesmo estabilização social e econômica61. Já “o
comportamento contraditório é a conduta que viola o sentido objetivo da
base da confiança”62.

A estabilidade da jurisprudência constitui ainda valioso elemento


para a celeridade processual, uma vez que, como exposto alhures, sinaliza
para a exigência de um menor ônus argumentativo na elaboração das
decisões judiciais, racionalizando a atuação jurisdicional.

57 THEODORO NETO, op. cit. In: THEODORO JÚNIOR; OLIVEIRA; REZENDE (Org), op. cit., p.
665-684.
58 MARINONI, op. cit. In: MARINONI (Org), op. cit., p. 577-597.
59 DANTAS, op. cit., p. 49.
60 COSTA, op. cit. In FREIRE et al (Org), op. cit., p. 391-416.
61 BASTOS, op. cit., p. 295-316.
62 PEIXOTO, op. cit., p. 139.
Wagner Akitomi Une 295

O princípio da celeridade também é prestigiado com a estabilidade da


jurisprudência, na medida em que influencia a atuação menos beligerante das
partes. Esse desestímulo à litigância é observado quando a previsibilidade
das decisões judiciais, obtida a partir de sua estabilização jurisprudencial,
desencoraja o ajuizamento de ações, restringe a interposição de recursos
infundados ou contrários à tese reiterada e favorece a realização de acordos
e a aceitação dos julgamentos com o seu cumprimento voluntário63.

3 MODULAÇÃO TEMPORAL DE EFEITOS DA MODIFICAÇÃO DA JU-


RISPRUDÊNCIA

A Exposição de Motivos do Anteprojeto do novo Código de Processo


Civil, de autoria da Comissão de Juristas, sinalizou que a estabilidade
da jurisprudência deve ser vista sob duas perspectivas. A primeira, já
comentada, diz respeito à exigência de um maior esforço de fundamentação
para a sua alteração. A outra, informa, em síntese, que a estabilidade gera
uma previsibilidade das respostas jurisdicionais e, assim, eventual superação
de entendimento, permite, em alguns casos, a modulação temporal dos
efeitos.

Quanto à modulação temporal dos efeitos, a redação original do


Anteprojeto do novo Código de Processo Civil trazia, em seu art. 847, V,
a regra de que “na hipótese de alteração da jurisprudência dominante do
Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda
de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da
alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.

O Projeto de Lei nº 166/2010, aprovado pelo Senado Federal, seguiu


para a Câmara dos Deputados, que votou Substitutivo com nova redação
para a modulação de efeitos. A regra foi deslocada para o §10, do art. 520,
incorporou a hipótese de alteração de precedente e não manteve a limitação
à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores:
“na hipótese de alteração de jurisprudência dominante, sumulada ou não, ou
de precedente, o tribunal poderá modular os efeitos da decisão que supera
o entendimento anterior, limitando sua retroatividade ou lhe atribuindo
efeitos prospectivos”.

No entanto, a versão final, após sanção da Excelentíssima Presidenta


da República, consagrou a redação original votada no Senado Federal,
não contemplando expressamente a possibilidade de modulação de

63 MARINONI, op. cit., p. 179-185.


296 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

efeitos da modificação de todos precedentes e limitando sua aplicação à


jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores.
A regra consolidada, assim, atinge somente a “alteração de jurisprudência
dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou
daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos [...]”.

O suscitado §3º, do art. 927, traz relevantes elementos ou aspectos


merecedores de análise, a exemplo dos órgãos jurisdicionais cuja
jurisprudência é alcançada pela autorização e os requisitos “interesse
social” e “segurança jurídica”.

3.1 Função Nomofilácica do Supremo Tribunal Federal e


dos Tribunais Superiores

Considerando que um modelo de precedente ou de obediência


à jurisprudência traz racionalidade ao sistema a partir da regra da
universalização, inibindo a imprevisibilidade ou a insegurança jurídica
na atuação judicial, admite-se a importância da função interpretativa do
Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores.

Em outras palavras, tem-se como legítima a defesa de que os


tribunais de cúpula devem ser pensados especialmente como cortes de
interpretação e, não, como cortes de controle, devendo ser “dotados de
meios idôneos para consecução da tutela do direito em uma dimensão
geral de forma isonômica e segura”64.

Apenas aos órgãos de cúpula (STF, STJ, TST, STM e TSE) compete
a fixação de um entendimento uniformizador sobre a Constituição da
República e sobre a legislação federal, cada um com a sua esfera de
competência”65. “O objetivo dos Tribunais Superiores não é apenas o de
uniformizar a jurisprudência, senão o de outorgar unidade ao Direito”66.

Não se refere aqui somente à exigência de uma coerência interna


da jurisprudência desses tribunais, mas, sobretudo, à exigência de
compatibilização vertical das decisões judicias, com o objetivo de racionalizar
a atividade judiciária, possibilitando, inclusive, o bloqueio do seguimento

64 MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 79.
65 PEIXOTO, op. cit., p. 346.
66 COUTO, João Gabriel Krás. Controle difuso de constitucionalidade: efeito vinculante da sentença
proferida pelo Supremo Tribunal Federal. In: MITIDIERO, Daniel (Org). O processo civil no Estado
Constitucional. Salvador: Juspodivm, 2012. p. 15-65.
Wagner Akitomi Une 297

de recursos em confronto com orientação do Supremo Tribunal Federal


e tribunais superirores.67

Neste plano, o novo Código de Processo Civil, com base na


Constituição da República, reconhece ao Supremo Tribunal Federal e
aos tribunais superiores a atribuição de uniformizar a jurisprudência,
fornecendo subsídio para um sistema jurisdicional estável e íntegro, isto é,
orientando a conformação de uma unidade jurídica. Do contrário, a versão
final do texto do novo Código de Processo Civil não teria explicitamente
admitida a possibilidade da aplicação da técnica de modulação de efeitos
no caso de alteração da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal
Federal e de tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de
casos repetitivos.

É preciso salientar que a autorização para modulação de efeitos


contida no §3º, do art. 927, do novo Código de Processo Civil, decorre
justamente da expectativa dos jurisdicionados de que a jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores constitui a lei
interpretada e universalizada.

Vê-se, assim, que a estabilidade da jurisprudência do Supremo


Tribunal Federal e dos tribunais superiores constitui, em regra, pressuposto
para o efetivo exercício da função nomofilácica e para a aplicação da técnica
da modulação temporal de efeitos do §3º, do art. 927, do novo Código de
Processo Civil.

Não é por outra razão que, na Exposição de Motivos apresentada pela


Comissão de Juristas, restou consignado que a manutenção da estabilidade
da jurisprudência é necessária “para que tenha eficácia a recomendação no
sentido de que seja a jurisprudência do STF e dos tribunais superiores,
efetivamente, norte para os demais órgãos integrantes do Poder Judiciário”.

À essa função “de assegurar a exata observância e a uniforme


interpretação da lei” se dá o nome de “nomofiliquia”.68

Aliás, a função nomofilácica do Superior Tribunal de Justiça foi


lembrada por ocasião do julgamento dos Embargos de Divergência em
Recurso Especial nº 928.302 (Rel. Min. José Delgado. Julgamento em

67 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 20.
68 ZANETI JÚNIOR, op. cit., p. 355-356.
298 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

23/04/2008. DJe 19/05/2008), no voto-vista do Excelentíssimo Ministro


Teori Zavascki, para quem “a existência de interpretações divergentes da
norma federal, antes de inibir a intervenção do STJ, deve, na verdade, ser
o móvel propulsor para o exercício do seu papel de uniformização”.

Já no Supremo Tribunal Federal, o Excelentíssimo Ministro Teori


Zavascki, por meio de voto-vista no julgamento da Reclamação nº 4.335
(Rel. Min. Gilmar Mendes. Julgamento em 20/3/2014. DJe 22/10/2014),
revisitou o tema ao lembrar que uma das principais finalidades do Supremo
Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça é a uniformização da
jurisprudência, além da função nomofilácica, que é destinada “a aclarar
e integrar o sistema normativa, propiciando-lhe uma aplicação uniforme
[…] e que têm como pressuposto lógico inafastável a força expansiva ultra
partes de seus precedentes”.

3.2 Os Requisitos Para a Modulação Temporal de Efeitos

Segundo a Exposição de Motivos confeccionada pela Comissão


de Juristas do Anteprojeto do novo Código de Processo Civil, um
dos objetivos orientadores dos trabalhos foi “estabelecer expressa e
implicitamente verdadeira sintonia fina com a Constituição Federal”.
Após, o documento lembrou da segurança jurídica, ao ponderar que citado
princípio constitucional fica comprometido com a brusca modificação de
entendimento dos tribunais em matéria de direito. E concluiu que uma
das vertentes da segurança jurídica recomenda que a jurisprudência, uma
vez pacificada, deve tender a ser mais estável.

Por sua vez, convém rememorar que a estabilidade da jurisprudência


enfeixa ao menos duas perspectivas. A primeira, já comentada, acerca do
maior esforço argumentativo para a adoção de posicionamento distinto.
A segunda, justamente a possibilidade de modulação temporal de efeitos
na situação de superação da tese sufragada em jurisprudência dominante.

Neste panorama, vislumbra-se que a modulação temporal de


efeitos de alteração de jurisprudência possui assento constitucional, mais
especificamente, no princípio da segurança juridica. “Sua inserção em texto
legal atua apenas no sentido de facilitar aos jurisdicionados o conhecimento
das hipóteses em que poderá ser utilizada”69.

69 PEIXOTO, op. cit., p. 284.


Wagner Akitomi Une 299

Aliás, mesmo antes do início da vigência do novo Código de Processo


Civil, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se por ocasião do julgamento
do Mandado de Segurança nº 26603/DF (Pleno. Rel. Min. Celso de Mello.
Julgamento 04/10/2007. DJe 19/12/2008):

Os precedentes f irmados pelo Supremo Tribunal Federal


desempenham múltiplas e relevantes funções no sistema jurídico,
pois lhes cabe conferir previsibilidade às futuras decisões judiciais
nas matérias por eles abrangidas, atribuir estabilidade às relações
jurídicas constituídas sob a sua égide e em decorrência deles, gerar
certeza quanto à validade dos efeitos decorrentes de atos praticados
de acordo com esses mesmos precedentes e preservar, assim, em
respeito à ética do Direito, a confiança dos cidadãos nas ações
do Estado. - Os postulados da segurança jurídica e da proteção
da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de
Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social
e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, inclusive as
de direito público, sempre que se registre alteração substancial de
diretrizes hermenêuticas, impondo-se à observância de qualquer dos
Poderes do Estado e, desse modo, permitindo preservar situações
já consolidadas no passado e anteriores aos marcos temporais
definidos pelo próprio Tribunal.

O Superior Tribunal de Justiça também já outorgou efeitos


prospectivos no caso de alteração de jurisprudência. Refere-se ao
Agravo Regimental no Agravo Regimental no Agravo em Recurso
Especial nº 194892/RJ (Rel. Min. Mauro Campbell Marques. Primeira
Seção. Julgamento 24/10/2012. DJe 26/10/2012), no qual reconheceu,
superando jurisprudência da época, a “legitimidade do Ministério
Público Estadual para atuar perante esta Corte Superior de Justiça, na
qualidade de autor da ação, atribuindo efeitos prospectivos à decisão”.

Por sua vez, o Tribunal Superior Eleitoral tutelou a segurança


jurídica quando do julgamento do Recurso Especial Eleitoral nº
27696 (Rel. Min. Marcelo Henriques Ribeiro de Oliveira. Acórdão
de 04/12/2007. DJ 1/2/2008) firmou ser recomendável não promover
alteração do posicionamento jurisprudencial em relação à mesma
eleição.

E, apesar da existência também de decisões em sentido contrário,


o novo Código de Processo Civil, acaba por afastar debates acerca
da possibilidade da utilização da técnica de modulação de efeitos.
300 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

Os dois primeiros elementos que se identificam no §3º, do art.


927, do novo Código de Processo Civil, já foram objeto de comentários.
Isto é, o dispositivo versa, em regra, sobre alteração de jurisprudência
dominante e, não, de um únido julgado (não se trata, portanto, de uma
teoria de precedente, tal como na doutrina do stare decisis), e a autorização
atinge a modificação de interpretação pelo Supremo Tribunal Federal e
tribunais superiores.

Outrossim, a redação legislativa estipula que “pode haver modulação


de efeitos”. Disso, extrai-se que nem todas as situações de alteração de
jurisprudência dominante permite a modulação de efeitos. Na verdade, de
modo geral e historicamente, a revogação de um posicionamento judicial
acarreta efeitos retroativos70 -71. A concessão de eficácia prospectiva possui
caráter excepcional72 ou, no caso, exige uma fundamentação justificada73.

Por outro lado, adverte-se que o artigo não fixa ou descreve em


nenhum momento a eficácia temporal da superação de interpretação. Assim,
a decisão que modificar o entendimento dominante deve decidir também o
aspecto temporal de sua incidência, sendo o silêncio o reconhecimento do
efeito ex tunc74. Por exemplo, pode estabelecer que a nova interpretação deve
ser aplicada apenas para o caso julgado e eventos ocorridos imediatamente
após a data de inauguração da nova interpretação. Alternativamente, que
deve ser aplicada somente para esses eventos futuros, excluindo o próprio
julgado. Ou, talvez, que deve ser sobrestada a produção dos efeitos do novo
entendimento até determinada data ou evento75-76.

Quanto aos requisitos para autorizar a modulação temporal de


efeitos, o §3º, do art. 927, indica o “interesse social” e a “segurança jurídica”.

O princípio da segurança jurídica possui como “elemento nuclear


a proteção da confiança”77. Confiança, esta, que os atos ou condutas do

70 MEDINA, op. cit., p. 1252.


71 DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 499.
72 PEIXOTO, op. cit., p. 284.
73 DIDIER JR; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 499.
74 Ibid, p. 284.
75 MEDINA, op. cit., p. 1252.
76 MARINONI, Luiz Guilherme Marinoni. O STJ enquanto Corte de Precedentes. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014. p. 268 et seq. apud WAMBIER, Tereza Arruda Alvim et al (Org). Breves
comentários ao novo código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 2079.
77 WAMBIER et al (Org), op. cit., p. 2074.
Wagner Akitomi Une 301

Judiciário provocam no espírito ou na esfera jurídica do jurisdicionado,


fazendo-o crer que deveria agir de determinado modo e que o Judiciário
agiria conforme seus atos e condutas anteriores, seguindo seus próprios
entendimentos jurisprudenciais78.

Neste sentido, se fatos jurídicos pretéritos são protegidos contra


a aplicação retroativa da lei nova, incidindo a lei da época (tempus regit
actum), “uma jurisprudência pretérita, de fato constante e longamente
reiterada, há também de ser considerada para casos iniciados antes da
nova orientação jurisprudencial”79.

A alteração da jurisprudência, assim, pode, eventualmente, ser


revestida de ilicitude, haja vista que, por vezes, pode frustrar a confiança
legítima do jurisdicionado, violando frontalmente uma previsibilidade
alicerçada em uma situação de confiança digna de tutela. E, nestas situações,
em que afastada a estabilidade jurisprudencial e presente a necessidade de
proteção de uma confiança legítima, é cabível a flexibilização temporal
dos efeitos do novo entendimento judicial, isto é, figura-se admissível
a modulação dos efeitos do novo julgado, com atribuição de eficácia
prospectiva ou a fixação de regras de transição.80

Disso resulta que nem sempre há uma confiança a ser protegida,


isto é, uma “confiança justificada”. Essa confiança qualificada, que
se consubstancia um critério para aferir se tratar, ou não, de caso de
retroatividade da decisão revogadora da jurisprudência, caracteriza-se
quando presentes elementos “que façam ver que o precedente racionalmente
merecia credibilidade à época em que os fatos se passaram”.81

Em outros termos, o que se identifica é que, sendo a norma a lei


interpretada, diante da estabilidade da jurisprudência, os cidadãos e as
empresas, no mais das vezes, passam a orientar as suas atividades e condutas
de acordo com o entendimento judicial dominante da época. Neste contexto,
na hipótese de superação do entendimento, é possível ocorrer uma frustração
de expectativa ou da previsibilidade dos jurisdicionados quanto aos efeitos
jurídicos de sua conduta.
78 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao código de processo civil. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 1845.
79 FERRAZ JUNIOR, Tercio. Irretroatividade e jurisprudência judicial. In: FERRAZ JÚNIOR, Tercio;
CARRAZZA, Roque Antonio; NERY JÚNIOR, Nelson. Efeito ex nunc e as decisões do STJ. Barueri:
Manole, 2009. p. 1-33.
80 COSTA, op. cit. In: FREIRE et al (Org.), op. cit., p. 391-416.
81 MARINONI, op. cit., p. 266 et seq. apud WAMBIER et al (Org), op. cit., p. 2078-2079.
302 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

Nesse sentido, debate-se quando uma confiança merece ser tutelada


diante da modificação da jurisprudência. E, embora inexista uniformidade de
entendimento sobre possíveis critérios objetivos que possam ser utilizados
para balizar a investigação82, algumas circunstâncias de avaliação da força
do precedente ou da jurisprudência podem ser invocadas para essa pretensão.

Destarte, parece razoável alcançar um mínimo de objetividade nessa


avaliação a partir da desconstrução ou decomposição dos elementos que
integram o princípio da confiança.

Em suma, considerando que a estabilidade da jurisprudência é o


pressuposto para a confiança do jurisdicionado em relação à interpretação
e que essa confiança é o pressuposto para a modulação dos efeitos da
modificação de jurisprudência, necessário examinar o grau de autoridade
da jurisprudência (perspectiva de sua preservação) à época dos fatos para
determinar a caracterização de uma efetiva surpresa injusta. A ausência
de surpresa na modificação da jurisprudência deslegitima a utilização da
técnica da modulação de efeitos.

São circunstâncias que informam ou subsidiam a averiguação da


presença, ou não, de uma confiança legítima do jurisdicionado:

a) jurisprudência claramente equivocada83 ou errada84 – se


a jurisprudência apresenta incongruência interna ou adota
premissas equivocadas, a superação se torna previsível ou
esperada;

b) crítica da doutrina85 – “é mais fácil divergir de um precedente


que possua ampla rejeição doutrinária, e, sem sentido oposto, é
mais difícil dissentir quando recebe aplausos nesse sentido”.86

c) grau de dissenso na construção da jurisprudência – uma


jurisprudência formada com forte dissenso não proporciona
a mesma segurança que a jurisprudência criada a partir da

82 PEIXOTO, op. cit., p. 307.


83 EISENBERG, Melvin. The nature of the common law. Cabridge: Harvard University Press, 1988. p. 14,
26 e 370 apud WAMBIER et al (Org), op. cit., p. 2079-2080.
84 MACÊDO, op. cit., p. 406-407.
85 MARINONI, op. cit., p. 266 et seq. apud WAMBIER et al (Org), op. cit., p. 2078-2079.
86 LOPES FILHO, op. cit., p. 432.
Wagner Akitomi Une 303

manifestação uniforme de todos os juízes87- 88. “Placares”


apertados de votação sinalizam que eventual mudança de
composição pode ensejar a superação da jurisprudência89.
Ademais, uma jurisprudência superada que já foi modificada
anteriormente, pode apontar para uma alteração sem surpresa90.
Em um julgamento, para respeitar a segurança jurídica, o
tribunal pode não revogar a jurisprudência, mas sinalizar que
futuramente, em outros processos, pode assim proceder91.

d) “rebeldia” dos juízes ou tribunais inferiores – a jurisprudência


do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores
reiteradamente desrespeitada pelos juízes e tribunais inferiores,
apontam para uma fragilidade do entendimento.92

e) inovação legislativa93 – com a mudança da lei pode ocorrer


alteração do contexto jurídico. Como a jurisprudência é o
produto da interpretação da lei, a modificação legislativa indica
a possibilidade de nova interpretação.94

f) mudança de valores da sociedade95 ou do quadro político – é a


figura da mutação do direito a partir da modificação do contexto
social e político96. A jurisprudência pode ser superada quando
não mais corresponde aos padrões de “congruência social”97.

87 MACÊDO, op. cit., p. 401.


88 LOPES FILHO, op. cit., p. 405.
89 NOGUEIRA, Gustavo Santana. Precedentes vinculantes no direito comparado e brasileiro. 2. ed. Salvador:
Juspodivm, 2013. p. 191.
90 PEIXOTO, op. cit., p. 308.
91 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo código de processo
civil. São Paulo: Revista dos tribunais, 2015. p. 875-876.
92 MACÊDO, op. cit., p. 403.
93 THEODORO NETO, op. cit. In: THEODORO JÚNIOR; OLIVEIRA; REZENDE (Org), op. cit., p.
665-684.
94 NOGUEIRA, op. cit., p. 200.
95 Ibid., p. 200-212.
96 LOPES FILHO, op. cit., p. 431-432.
97 EISENBERG, op. cit., apud WAMBIER et al (Org), op. cit., p. 2079-2080.
304 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

g) falta de confirmação da jurisprudência – “a inexistência de


decisões que confirmem o precedente ou a falta de sua utilização
acaba por apontar no sentido contrário”98.

Além desses aspectos, pode-se afirmar que a avaliação da presença da


confiança justificada deve considerar o nível de absorção da jurisprudência
pelos jurisdicionados. Com efeito, jurisprudência construída sobre temas
de grande repercussão social, objeto de ampla publicidade por veículos de
imprensa, sinalizam para um maior reconhecimento e obediência pelos
jurisdicionados, fortelecendo a identificação de uma expectativa justa.

O outro requisito exigido pelo §3º, do art. 927, para a aplicação da


técnica da modulação de efeitos de alteração de jurisprudência dominante
é o interesse social.

O interesse social não é um conceito de fácil delimitação. Pelo


contrário, demanda uma “apreciação de natureza política, ou seja, um exame
valorativo baseado, até certo ponto, na conveniência e oportunidade”99.

Todavia, não parece crível que o objetivo da legislação ao prever


esse requisito seja atrelar a sua verificação à parte interessada. O que se
procura expor é que o atendimento do pressuposto “interesse social” não
é atingido simplesmente pela circunstância da confiança vulnerada ser
do particular ou do Estado100, é necessário que se comprove a existência
de um interesse público primário101.

A respeito, parece plausível conceber que a caracterização do interesse


social reclama ainda demonstração de um “prejuízo significante à esfera
jurídica da(s) parte(s) prejudicada(s)”102.

Neste cenário, não há como proceder ao exame da existência desse


interesse social sem considerar o conteúdo do direito material envolvido
no litígio. Equivale dizer que a espécie de direito material e o grau de
prejuízo em sua violação constituem elementos de reflexão e valoração para
a medição da legitimidade da pretensão de modulação temporal de efeitos.

98 MACÊDO, op. cit., p. 403.


99 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 5. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004. p. 311.
100 PEIXOTO, op. cit., p. 308.
101 FERRARI, op. cit., p. 313.
102 EIXOTO, op. cit., p. 308-309.
Wagner Akitomi Une 305

Inclusive, por vezes, o direito material pode ser informado por


valores ou princípios aptos a pautarem o exame desse interesse social.
É o caso, exemplificativamente, do direito penal, como cediço, deslocado
em favor do réu. Desse modo, é razoável a avaliação da possibilidade de
modulação temporal de efeitos ser influenciada por essa peculiaridade103.

Posto isso, forçoso reconhecer que a análise da possibilidade da


aplicação da modulação de efeitos requer a aferição de inúmeros fatores,
relativos não apenas a aspectos jurídicos da formação da jurisprudência,
como o direito material envolvido e o próprio contexto fático e social.

4 CONCLUSÃO

O novo Código de Processo Civil lança luz sobre o tema enfrentado


neste artigo, elegendo a discussão sobre a efetivação do princípio da
segurança jurídica na prestação jurisdicional como um de seus pontos
centrais.

Não há dúvidas sobre a preocupação do novo diploma processual


em combater o panorama de caos jurisprudencial observado a partir
da disseminada produção de decisões judiciais divergentes e, por vezes,
contraditórias, exaradas em face de situações semelhantes ou iguais,
contemporâneas entre si.

Neste plano, foi demonstrada a importância da uniformização da


jurisprudência e de sua posterior estabilização para a segurança das
relações sociais e jurídicas.

Também foi explicado que essa estabilização impõe um esforço


ou ônus argumentativo qualificado para a superação do entendimento
jurisprudencial e que, no caso de seu afastamento, é possível, em
determinadas situações, a aplicação da técnica da modulação temporal
de efeitos.

Apontou-se, ainda, que a modulação temporal de efeitos demanda


a verificação da presença de uma confiança legítima ou de uma surpresa
injusta, cuja avaliação se atrela à medição do grau de autoridade da
jurisprudência (perspectiva de sua preservação) à época dos fatos.

103 PEIXOTO, op. cit., p. 308-309.


306 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 303-310, jul./set. 2017

Igualmente se destacou, como outro requisito para modulação de


efeitos, que a alteração jurisprudencial deve repercutir sobre um interesse
público primário, provocando significativo prejuízo.

Assim, a estabilização da jurisprudência e a técnica da modulação de


efeitos na alteração da jurisprudência representa uma área temática desafiadora,
que reclama o estudo dos artigos 926 e 927, do novo Código de Processo Civil,
à luz de princípios constitucionais como o da segurança jurídica.

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Juspodivm, 2015.
Recebido em: 13/06/2016
Aprovado em: 19/09/2016

Contradições da realização das


promessas da Constituição de 1988
Contradictions of the fulfillment of the promises of
the Brazilian Constitution of 1988

Wagner de Amorim Madoz


Mestrando Políticas Públicas UniCEUB. Pós-graduado em análise da
constitucionalidade UNILEGIS/UnB; MBA Política Tributária – FGV; Analista
Judiciário do Supremo Tribunal Federal - STF. Professor de Direito Constitucional
Pesquisador do Grupo de Pesquisa Política Criminal – UniCEUB

SUMÁRIO: Introdução; 1 Estado de Direito,


Democracia e Direitos Fundamentais; 2 Direitos
fundamentais e argumentação jurídica; 2.a)
Direitos fundamentais geracionais?; 2.b) Direitos
fundamentais absolutos?; 3 A Constituição
dirigente; 4 A constitucionalização do processo;
5 O neoconstitucionalismo e neoprocessualismo;
6 Contradições na realização das promessas da
Constituição; 7 Conclusão; Referências.
312 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

RESUMO: O trabalho analisa os vários percalços da realização


das promessas da modernidade, contidas na Constituição Federal de
1988. Enfatiza algumas das inúmeras divergências doutrinárias e
jurisprudenciais acerca da efetivação dos direitos fundamentais bem
como o uso inadequado de teorias jurídicas processuais e suas categorias
jurídicas pré-constitucionais, como forma de barrar a realização de
direitos fundamentais sociais estabelecidos na Constituição de 1988.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Constitucional. Direitos Fundamentais.


Direitos Sociais. Efetividade. Obstáculos.

ABSTRACT: The paper analyzes the various mishaps of the fulfillment


of the promises of modernity, contained in the 1988 Brazilian Federal
Constitution emphasizes some of the many doctrinal and jurisprudential
disagreements about the enforcement of fundamental rights and the
inappropriate use of procedural legal theories and their pre-constitutional
legal categories as a way to stop the realization of fundamental social
rights enshrined in the 1988 Constitution.

KEYWORDS: Constitutional Law. Fundamental Rights. Social Rights.


Effectiveness. Obstacles.
Wagner de Amorim Madoz 313

Introdução

A Constituição de 1988 demarcou um período importante na história


do país, ao instituir uma nova convenção fundamental - instituiu no Brasil
um Estado Democrático de Direito -,1 fundamentando-se nos princípios da
soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político – art. 1º. Longe,
no entanto, de ser considerada um modelo de excelência, pois expressão de
uma sociedade altamente heterogênea e cheia de contradições, naturalmente
transpostas para o texto constitucional,2 ela resolveu um importante problema
relacionado com a legitimação democrática do exercício do poder.3

Constituiu, assim, um acordo através do tempo entre os diversos


grupos sociais representados no Congresso Constituinte sobre como deve
distribuir-se o poder político que monopoliza a coação estatal e quais são
os seus limites em relação aos indivíduos.4 Fruto, portanto, das limitações
resultantes da transição política do Estado ditatorial para o de Direito,
inclusive a forma pactuada de sua convocação e funcionamento, se não
representou uma ruptura radical com o regime político decaído,5 nem por
isso pode ser considerada uma mera continuidade do Estado de exceção.

Na lição de José Afonso da Silva, a Constituinte:

Produziu uma Constituição que as circunstâncias permitiram. Fez-


se uma obra certamente imperfeita, mas digna e preocupada com o

1 DALLARI, Dalmo de Abreu. Os Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira. In: FIOCCA, Demian;
GRAU, Eros Roberto; (Orgs.) Debate Sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra; 2001. p. 49.
2 Idem p. 50. Também, pode-se dizer que a “Constituição de 1988 mais que compromissória, analítica e
dirigente, é casuística e prolixa.” BARROSO, Luís Roberto. “Dez anos da Constituição de 1988: (Foi
bom para você também?)”. Debates, nº 20: A Constituição Democrática Brasileira e o Poder Judiciário. São
Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 1999. p. 47.
3 Ao Direito cabe a tarefa de legitimação, porque “indispensável para conferir ao mesmo tempo estabilidade
e potencial de transformação às expectativas de comportamento. Este viés legitimador do direito (tomado
em geral, como meio de regência da vida em sociedade), que se extrai da razão comunicativa e portanto se
deseja também racional, justifica os direitos fundamentais.” NASCIMENTO, Rogério Soares. A ética do
Discurso como Justificação dos Direitos Fundamentais na Obra de Jürgen Habermas. In: Legitimação dos
Direitos Humanos. TORRES, Ricardo Lobo (Org.) 2. ed. Rio de Janeiro: Revovar, 2007. p. 566.
4 NINO, Carlos Santiago. Fundamentos de derecho constitucional. Análisis filosófico, jurídico y politológico
de la práctica constitucional. Buenos Aires: Astrea. 199. p. 46.
5 FAORO, Raymundo. Assembléia constituinte: a legitimidade recuperada. 2. ed. São Paulo: Brasiliense. 1982. p. 13.
314 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

destino do povo sofredor, para que seja cumprida, aplicada e realizada,


pois uma coisa são as promessas normativas; outra, a realidade.” 6

Assim, em face do seu conteúdo ideológico,7 é previsível o choque entre


os diversos valores constitucionais, tanto nas relações individuais quanto
entre os indivíduos e os poderes públicos. Sendo que muitas vezes, em face
dos valores contraditórios, essas contradições deram e continuam a dar ensejo
a conflitos normativos, sendo lícito supor que uma fonte dessas colisões de
direitos possa estar no fato de o ordenamento estar minado de antinomias de
princípio.8 Em casos assim, a dogmática9 tradicional não encontra solução,
pois, neles não há propriamente uma subsunção,10 não servindo, portanto, os
métodos de solução das proposições jurídicas antinômicas ou reciprocamente
excludentes, baseadas nos critérios da especialidade, ontológico e hierárquico.11

De outro lado, em se tratando de área tão sensível da Constituição, dos


valores mais importantes consagrados pelo ordenamento, tanto que a eles se
acrescenta o adjetivo fundamentais, os problemas que surgem com os conflitos
ou colisões de direitos não podem, assim, deixar de ter um tratamento racional,
evitando-se, com isso, as atribuições de soluções baseadas no voluntarismo, ou,
o que é ainda pior, na consagração do non liquet, 12 com o apelo aos dogmas
formais do processo, como a derrogada possibilidade jurídica do pedido e o
princípio constitucional da separação dos Poderes.

Apesar de todos os percalços, pressões e forças atuando em favor


do malogro constitucional, deve-se reconhecer que a Constituição
de 1988 inovou em vários aspectos, servindo como norte no sentido
da democratização das relações sociais e do Estado, além de atuar na
modernização da sociedade. De fato, foi a Constituição possível, dado os
vários condicionamentos existentes à época, e por isso mesmo justifica
a ausência de uma homogeneidade político-ideológica, muito embora se

6 DA SILVA, José Afonso. Poder Constituinte e Poder Popular (estudos sobre a Constituição). São Paulo:
malheiros, 2000. p. 239.
7 Idem.
8 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. UnB. 1997. p. 90.
9 FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. Max L. São Paulo. 1998. p. 100 e segs.
10 ENGISH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. 6. ed. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. 1988. p.
75 e segs; LARENS, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2. ed. Fundação Calouste Gulbekian. Lisboa.
1989. p. 326/329.
11 COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1997. p. 81.
12 Vedado em nosso sistema: Art. 5º, XXXV, CF; arts. 126, 335, CPC; e art. 4º, DL 4.657/1942.
Wagner de Amorim Madoz 315

possa reconhecer que em vários aspectos, o político para ficar apenas em


um exemplo, tenha se mostrado conservadora.

No final do Séc. XX era assente a noção de que se poderia transformar


a sociedade unicamente pelo sistema normativo que o direito personaliza,
pela crença generalizada na eficácia do direito decorrente do aparato
de coerção instrumentalizada do Estado. Assim é que a CF de 1988, ao
lado das declarações de direitos típicas do Estado liberal – basicamente
obrigando o Estado a um non facere - estabeleceu uma grande quantidade
de direitos cujas prestações caracterizam a intervenção do Estado, seja
como regulador seja como promotor no campo econômico e social – direitos
de trabalhadores, econômicos, sociais e culturais etc. – traduzindo-se em
prestações por parte dos poderes públicos, obrigações de facere -, numa
evidente ampliação do catálogo das garantias e dos direitos fundamentais,13
ocasionando diversos e complexos problemas de interpretação e aplicação. 14

Exatamente pelo seu conteúdo aberto, as normas constitucionais


definidoras de direitos reclamam um discurso diferente na sua aplicação.
Nossa percepção parte assim dessa concepção para refletir sobre os
desafios do projeto constitucional e de como fazer operar a ordem jurídica,
na tentativa de identificar o por quê do descompasso entre as normas
constitucionais e a realidade social.15

13 Inspirada que foi na Constituição Portuguesa de 1976, é natural que tenha os mesmo problemas, cf.,
QUEIROZ, Cristina. Direito Constitucional: As Instituições do Estado Democrático e Constitucional.
Coimbra-São Paulo: Editora Coimbra e Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 369.
14 Resumidamente, essas questões podem ser classificadas como de aplicabilidade das normas, bem
como de sua “determinalidade”, em muitos casos decorrentes do grau de desenvolvimento econômico
e social, cf. QUEIROZ, Cristina, op.cit., p. 375. É o caso do princípio da “reserva do possível”, “que
indica a dependência da realização desses direitos dos recursos disponíveis, relevando ao mesmo tempo
a necessidade da sua cobertura orçamental e financeira.” Idem, bem como a lição de Ingo H. Sarlet “A
utilização da expressão ‘reserva do possível’ tem, ao que se sabe, origem na Alemanha, especialmente
a partir do início dos anos de 1970. De acordo com a noção de reserva do possível, a efetividade dos
direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma
vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. A
partir disso, a “reserva do possível” (Der Vorbehalt des Möglichen) passou a traduzir (tanto para a
doutrina majoritária, quanto para a jurisprudência constitucional na Alemanha) a idéia de que os direitos
sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do
Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais
e parlamentares, sintetizadas no orçamento público.” In: SARLET, Ingo Hoffman. SARLET, Ingo
Wolfgang. Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais: contributo para um balanço aos vinte
anos da Constituição Federal de 1988. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre-Belo
Horizonte, 2008. p. 163-206.
15 “Embora seja, dentre os chamados países em desenvolvimento, um país com uma economia forte, com um
PIB entre os quinze maiores do planeta, o Brasil é ao mesmo tempo um país que, na área social, padece
316 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

Se é certo que o projeto constitucional atua como um ideário na


realização do Estado Social, na fixação de grandes projetos nacionais, as
desventuras em relação às promessas da modernidade que a Constituição
idealizou se dá pelo reconhecimento de que para a realização dessas promessas
não basta apenas a sua enunciação, ainda que em termos solenes. 16

Ora, a realização de direitos fundamentais, sobretudo a parcela


referente aos direitos sociais, como é o caso do direto à saúde, medicamentos,
tratamentos, internação, ensino, etc. reclamam prestações que nem sempre
dependem exclusivamente da vontade dos agentes públicos encarregados
de sua execução. A questão se coloca então em como viabilizar esses
direitos, quais seriam as condições, os limites e as possibilidades dessas
prestações. Esse problema permeia toda a ordem normativa e tensiona
com a teoria jurídica que lhe dá suporte, notadamente com a tradicional
doutrina da separação dos Poderes, que nega qualquer papel criativo da
jurisprudência,17 “uma visão formalista e procedimental do direito”.18

1 Estado de Direito, Democracia e Direitos Fundamentais

A Constituição de 1988 adotou uma forma de conciliação entre Estado


de Direito a ele adicionando a particularidade de democrático, para simbolizar
o governo da maioria e a garantia do respeito aos direitos fundamentais – art.
1º. Há de fato, uma estreita ligação entre democracia e respeito aos direitos

de todos os problemas característicos dos países não-desenvolvidos. Sua já conhecida desigualdade social
piora ainda mais o quadro, fazendo com que a imensa maioria da população dependa completamente da
implementação de políticas públicas, especialmente nas áreas da educação, da saúde e da moradia.” DA
SILVA, Virgilio. O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo à realização
dos direitos sociais. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direitos sociais:
fundamentação, judicialização e direitos sociais em espécies, Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008. p. 587.
16 “Devemos ter serenidade bastante para reconhecer que a optimização dos direitos sociais não deriva
só ou primordialmente da proclamação exaustiva do texto constitucional, mas da “good governance”
dos recursos públicos e privados afectados ao sistema de saúde.” CANOTILHO, J.J. Gomes. O Direito
Constitucional como Ciência de direção – o núcleo essencial de prestações sociais ou a localização
incerta da socialidade, contributo para a reabilitação da força normativa da “Constituição Social”. In:
CANOTILHO, J.J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, ÉRICA Paula Barcha.
(Coord.) Direitos Fundamentais Sociais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 16.
17 O juiz como a boca da lei, cf. texto clássico de Montesquieu: “Mais les juges de la nation ne sont, comme
nous avons dit, quela bouche qui prononce les paroles de la loi.” Montesquieu, Charles de Secondat.
Espírito das Lois, 1777, Liv XI, Chap. VI.
18 PIOVESAN, Flávia. Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos: desafios e perspectivas. In:
CANOTILHO, J.J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, ÉRICA Paula Barcha.
(Coord.) Direitos Fundamentais Sociais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 57, 62 e passim.
Wagner de Amorim Madoz 317

fundamentais, mas também significa que a democracia exige como condição


de sua existência e desenvolvimento o Estado de Direito.19

Ocorre que existe uma relação problemática entre o princípio


democrático – fundamentalmente a decisão pela maioria – e o Estado de
Direito - identificado não apenas como o império da lei, mas como aquele
que está “vinculado à observância de uma pauta material de valores entre
os quais o princípio da dignidade da pessoa humana e [onde] os direitos
fundamentais desempenham um papel essencial”.20

E essa tensão constante se revela a cada embate político ou jurídico


na qual a liberdade individual ou alguma faceta do princípio da igualdade
se confronta com os interesses, reais ou presumidos e ainda que plasmados
em normas jurídicas, da maioria, ainda que ocasional, colocando no centro
do debate os próprios fundamentos em que se baseia as decisões judiciais
que restringem o espaço de decisão da maioria.

A rigor, a própria concepção das constituições rígidas, bem como a previsão


de limitações legislativas ao poder de reforma e a determinação de respeito aos
direitos fundamentais, são fórmulas de restrição ao princípio democrático. A
maioria pode muito, mas não pode tudo, a revelar uma convivência entre os
princípios, não necessariamente harmônica, já que conflitos entre princípios
parece ser insuperável, numa ordem constitucional democrática.21

19 Canotilho demonstra com exuberância “que a articulação da socialidade com democraticidade torna-
se, assim, clara: só há verdadeira democracia quando todos têm iguais possibilidades de participar no
governo da polis. Uma democracia não se constrói com fome, miséria, ignorância, analfabetismo e
exclusão. A democracia só é um processo ou procedimento justo de participação política se existir uma
justiça distributiva no plano dos bens sociais. A juridicidade, a sociabilidade e a democracia pressupõe,
assim, uma base jusfundamental incontornável, que começa nos direitos fundamentais da pessoa e acaba
nos direitos sociais.” CANOTILHO, J.J.Gomes. O Direito Constitucional como Ciência de direção – o núcleo
essencial de prestações sociais ou a localização incerta da socialidade, contributo para a reabilitação da força
normativa da “Constituição Social”. Op.cit., p. 19.
20 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em Estado de Direito Democrático.
Coimbra: Coimbra, 2012. p. 17.
21 Também poderia ser considerado na proibição de retrocesso: “em cuja conformação concreta não se
poderiam – como, de resto, tem evidenciado toda a produção jurisprudencial sobre o tema – dispensar
critérios adicionais, como é o caso da proteção da confiança (a depender da situação, é claro), da dignidade
da pessoa humana e do correlato mínimo existencial, do núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais,
da proporcionalidade, apenas para citar os mais relevantes.” SARLET, Ingo Wolfgang. Segurança Social,
Dignidade da Pessoa Humana e Proibição de Retrocesso: Revisitando o problema da proteção dos direitos
fundamentais sociais. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA,
ÉRICA Paula Barcha. (Coord.) Direitos Fundamentais Sociais. 2. ed. São Paulo: Saraiva. 2015. p. 76.
318 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

Na prática, toda vez em que essa tensão se revela, acusa-se a


irracionalidade do protagonismo judicial na sua oposição ao princípio
democrático. Inconscientemente ou não, o entendimento é de que o princípio
democrático é a instância deliberativa por excelência, e ela nunca violaria
direitos fundamentais, quando muito, violaria o que a minoria – amparada
por uma aristocracia judicial -, entende como direitos fundamentais.22

Ocorre que é a própria Constituição que previu a natureza


contramajoritária das deliberações garantidoras de direitos fundamentais – ao
definir que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata (artigo 5º, § 1º, da CF) e ao inserir os direitos de garantias
fundamentais dentre as matérias insuscetíveis de reforma constitucional
(artigo 60, § 4º, inciso IV, da CF) -, e incidir contra essa opção constitucional
significa tencionar com os próprios fundamentos das decisões do constituinte
e do pacto social que então se plasmou, num debate circular.

Além disso, a crítica reiterada com apelo retórico da troca da decisão


majoritária oriunda do parlamento democrático pela decisão aristocrática
judicial não se sustenta, partindo-se do pressuposto de que o que ocorre
quando a invalidação da norma violadora é a restauração de um direito
fundamental efetiva ou potencialmente violado pela decisão majoritária.

A estratégia mais adequada talvez seja aquela em que se evidencia


o conflito de interesses, com suas várias posições jurídicas, alargando o
conhecimento do possível confronto, aumentando com isso os espaços de
controlabilidade das decisões, inclusive judiciais, sua racionalidade e grau
de discricionariedade que a Constituição lhe outorga. 23

2 Direitos fundamentais e argumentação jurídica

Segundo opiniões abalizadas da doutrina, as normas substantivas da


Constituição, de modo peculiar os direitos fundamentais, atuam na argumentação

22 No fundo, pretende-se invocar como ultima ratio a representação popular como instancia deliberativa
para resolver e fazer opções sobre direitos fundamentais, como é o caso do “majoritarismo participativo”
proposto por Jeremy Waldron, como princípio da autoridade que deve guiar a tomada de decisões sociais
nos casos de discrepância entre direitos fundamentais, seu conteúdo e alcance, cf., WALDRON, Jeremy.
Law and Disagreement. New York: Oxford University Press, 1999. p. 88-118.
23 Tanto o STF quanto o STJ, em variadas situações, negaram a justicialidade de direitos sociais, seja com
base na clausula da separação dos poderes, seja na insuficiência de recursos: RE 259508/RS, MS 6564/
RS, respectivamente, entre outros.
Wagner de Amorim Madoz 319

jurídica na qualidade de princípios jurídicos.24 Os princípios jurídicos representam


talvez uma das noções mais ambíguas das teorias jurídicas, de modo especial a
sua característica relacionada com o modo da argumentação jurídica empregada,
e que estimula assim um notável papel da atuação judicial.

Dessa maneira, ideias como núcleo essencial, ponderação de bens,


razoabilidade, princípio da proporcionalidade, reserva do financeiramente
possível, constituem ferramentas argumentativas que são utilizadas para
fundamentar as decisões judiciais envolvendo conflitos dessas peculiares
espécies normativas. Convém, no entanto, por primeiro, enfatizar que a
concepção de direitos fundamentais que adotamos concebe-os de maneira
unitária e com possibilidades de restrição, e considera as “gerações ou
dimensões de direitos fundamentais” bem como a categorização dos direitos
fundamentais como absolutos, como formulações teóricas equivocadas, pelos
vários problemas que elas podem causar.

2.a) Direitos fundamentais geracionais?

A compartimentação dos direitos fundamentais em gerações é histórica25


e juridicamente infundada,26 como demonstrou Cançado Trindade.27 Além disso,

24 Reportamos-nos, por todos, a SANCHÍS, Luis Prieto. Ley, Principios, Derechos. Instituto de Derechos Humanos
Bartolomé de las Casas. Universidad Carlos III de Madrid. Dykinson. Madrid. 1998. p. 2, tb. ZAGREBELKY,
Gustavo. El derecho dúctil. La ley, derechos, justicia. Tradução Marina Gascón. 3. ed. Madri: Editorial Trotta,
1999. p. 109/110, “Se el derecho actual está compuesto de reglas y principios, cabe observar que las normas
legislativas son prevalentemente reglas, mientras que las normas constitucionales sobre derechos y sobre la
justicia son prevalentemente principios (y aquí interesan en la medida en que son principios). Por ello, distinguir
los principios de las reglas significa, a grandes rasgos, distinguir la Constitución de la ley.”
25 “[...] sem se aprofundar nos aspectos históricos, pode-se indicar que já havia direitos sociais (prestações
do Estado) garantidos nas primeiras Constituições e Declarações do século XVIII e de inícios do século
XIX. Assim, por exemplo, a Declaração francesa de 1793 (pertencente à Constituição jacobina da fase
radical de esquerda da ‘Revolução Francesa’) garantia a assistência aos necessitados como uma ‘divida
sagrada’ da sociedade e o direito de acesso à educação (arts. 21 e 22). E a Constituição brasileira do
Império de 1824 incluía entre os direitos fundamentais dois direitos sociais, os ‘socorros públicos’ e a
‘instrução primária’ gratuita (art. 179, XXXI e XXXII), ambos direitos sociais e diretamente inspirados
na Declaração francesa de 1793.” DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos
Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 35.
26 “A nefasta fantasia das chamadas ‘gerações de direitos’, histórica e juridicamente infundada, na
medida em que alimentou uma visão fragmentada ou atomizada dos direitos humanos, já se encontra
devidamente desmistificada.” CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Do direito econômico aos
direitos econômicos sociais e culturais. In: Desenvolvimento Econômico e Intervenção do Estado na Ordem
Constitucional. Estudos jurídicos em homenagem ao Professor Washington Peluso Albino de Souza.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995. p. 32.
27 “Quem formulou a tese das gerações de direito foi o Karel Vasak, em conferência ministrada em 1979, no
Instituto Internacional de Direitos Humanos, em Estrasburgo. Pela primeira vez, ele falou em gerações de
320 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

essa concepção conduz a uma visão atomizada dos direitos humanos,28 o que
leva a uma sucessividade dos grupos de direitos - de uma geração por outros
direitos da geração posterior, tal como ocorrem com gerações de computadores,
de automóveis, de aviões e dos demais utensílios da modernidade. Do mesmo
modo, pode-se criticar a denominação de “dimensões de direitos”. 29 Por essa
razão, com a preocupação de buscar a precisão terminológica, é preferível os
termos “categorias” ou “espécies” de direitos fundamentais;30 que possibilita
uma visão integrada de todos os direitos fundamentais,31 mormente em países
de economia periférica como o Brasil, possuidor de enormes carências na
efetividade de direitos fundamentais.32

Aliás, são precisamente estas graves distorções que nos levam a


refletir criticamente contra a adoção de uma classificação doutrinária
artificiosa que, na prática, ao compartimentar os direitos fundamentais,
inconscientemente ou não, negligencia o seu cumprimento e lhe retira um
dos significativos atributos que é precisamente a força histórica.

Assim, uma categoria, ou espécie de direitos fundamentais não pode


prescindir da existência das outras.33 Aliás, a própria divisão dos direitos
direitos, inspirado na bandeira francesa: liberté, egalité, fraternité. A primeira geração, liberté: os direitos de
liberdade e os direitos individuais. A segunda geração, egaIité: os direitos de igualdade e econômico-sociais.
A terceira geração diz respeito a solidarité: os direitos de solidariedade. E assim por diante. Eu sou seu amigo
pessoal, foi meu professor. Fui o primeiro latino-americano a ter o diploma do Instituto. Foi meu examinador,
é meu amigo pessoal e agora tive a grata satisfação de colaborar com um artigo em homenagem a ele,
publicado pela UNESCO, em Paris. Sou isento para falar sobre o assunto. Sou amigo dele e não concordo com
a tese que ele apresentou pela primeira vez em 1979, e que Norberto Bobbio copiou. Para falar dos seguidores
de Norberto Bobbio, aqui, neste País, como em todos os países da América Latina, temos a mania de copiar
ipsis literis, como se fosse a última palavra, o que dizem os europeus.” Disponível em: http://www.dhnet.org.
br/direitos/militantes/ cancadotrindade/cancado_bob.htm. Acesso em: 8 jul. 2015.
28 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Derechos de Solidariedad. In: Estudios Básicos de Derechos
Humanos. V. I, Instituto Interamericano de Derechos Humanos-IIDH, San Jose, 1994. p. 64-65.
29 “Essa opção evita os graves equívocos do termo ‘gerações’, mas não será utilizada no presente estudo em razão
de uma preocupação de exatidão terminológica. Fala-se em ‘dimensão’ para indicar dois ou mais componentes
ou aspectos do mesmo fenômeno ou elemento. No caso aqui relevante, há grupos de direitos fundamentais cuja
finalidade e funcionamento são claramente diferenciados em âmbito jurídico.” DIMOULIS, Dimitri. MARTINS,
Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 35-36.
30 DIMOULIS; MARTINS, op.cit., p. 36.
31 Idem, p. 33.
32 “o empobrecimento a que vêm sendo submetidos amplos e crescentes segmentos das populações dos países
endividados constitui um grave atentado aos direitos humanos.” CANÇADO TRINDADE, op.cit., p. 33.
33 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Do direito econômico aos direitos econômicos sociais e
culturais. Cit., p. 33, “Devem esses últimos ser tomados em seu conjunto. Quantos governos, a pretexto
de buscar a ‘realização progressiva’ de determinados direitos econômicos e sociais em um futuro
indeterminado, violaram sistematicamente os direitos civis e políticos (e.g., a América Latina das
Wagner de Amorim Madoz 321

humanos em direitos econômicos, sociais e culturais e direitos civis e políticos


deve ser vista com reservas, pois, no âmbito internacional, desde a Conferência
de Direitos Humanos de Teerã, de 1968, se proclamou a indivisibilidade dos
direitos humanos, “afirmando que la plena realización de los derechos civiles
era imposible sin el goce de los derechos económicos, sociales y culturares.” 34

Assim, deve haver uma inter-relação e vinculação de todos os


direitos fundamentais que, sob uma visão fragmentada, tendem a ser
sistematicamente violados, pelo enfraquecimento que propicia, sobretudo
pelos autoritarismos sem bandeiras, seja no plano político, seja no plano
econômico-social.35

Além disso, uma visão unitária ampla, que pressuponha distinções


dos vários direitos fundamentais – em razão da diferença estrutural
entre eles, como as relativas à natureza negativa/positiva, à maior ou
menor especificação do seu conteúdo, etc., evitaria os falsos dilemas como,
no caso da Constituição de Portugal, quando se contrapõe “direitos de
liberdade” e “direitos sociais”, por exemplo, fundados que são também
numa diferenciação tipológica artificial.36 Problema esse que não existe
no regime constitucional brasileiro, já que a Constituição de 1988 não faz
diferenciações entre direitos de liberdade (defesa) e direitos sociais, com
a consequente ordem hierárquica entre eles.37

ditaduras, particularmente da década dos setenta)! Quantos governos vêm se escudando nas conquistas
dos direitos civis e políticos para negar vigência aos direitos econômicos, sociais e culturais (e.g., a
América Latina de hoje)! Quantos governos se arrogam em ‘promotores’ de alguns direitos econômicos
e sociais para continuar minimizando os direitos civis e políticos (e.g., os países fundamentalistas na
recente II Conferência Mundial de Direitos Humanos e em eu processo preparatório)! À integridade do
ser humano corresponde em definitivo a integralidade de seus direitos.”
34 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. La protección Internacional de los Derechos Económicos,
Sociales y Culturales. In: Estudios Básicos de Derechos Humanos. V. I, Instituto Interamericano de Derechos
Humanos - IIDH, San Jose, 1994. p. 42-3; tb. MORAIS, José Luis Bonlzan. As crises do Estado e da Constituição e
a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 69.
35 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Derechos de Solidariedad. In: Estudios Básicos de Derechos
Humanos. V. I, Instituto Interamericano de Derechos Humanos - IIDH, San Jose, 1994. p. 66.
36 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais: Teoria Jurídica dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais.
Coimbra: Wolters Kluwer/Coimbra, 2010. p. 255 ss., 269 ss.
37 SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais: contributo para um
balanço aos vinte anos da Constituição Federal de 1988. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica,
Porto Alegre-Belo Horizonte, 2008, p. 163-206; tb.disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo /cms/
processoAudiencia PublicaSaude /anexo/artigo _Ingo_DF_sociais_PETROPOLIS_final_01_09_08.
pdf>. p. 15. e, ainda, “mesmo que entre ambos os grupos de direitos, especialmente entre a sua dimensão
negativa e positiva, existam diferenças no que diz com o seu objeto e função desempenhada na ordem
jurídico-constitucional.” p.17, Acesso em: 30 set. 2015.
322 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

2.b) Direitos fundamentais absolutos?

Outra significativa controvérsia dos direitos fundamentais, de


certo modo decorrente da anterior, refere-se à concepção de direitos
fundamentais como absolutos, irredutíveis ou mesmo indisponíveis. Tal
como fez o Supremo Tribunal Federal, pelo menos é o que consta da ementa
do acórdão da ADPF nº 130, que apreciou a controvérsia relativa à Lei
de Imprensa. E não se trata de simples obiter dictum, pois lá se afirma

[...] restando claro que, se o Estado puder interferir nesse compactado núcleo,
estará marcando limites ou erguendo diques para o fluir de uma liberdade
que a nossa Lei Maior somente concebeu em termos absolutos; ou seja,
sem a mínima possibilidade de apriorístico represamento ou contenção.38

Acreditamos que não possa existir no sistema constitucional


brasileiro um direito que seja sempre e aprioristicamente absoluto, nas
múltiplas possibilidades de configuração que a vida cotidiana traduz.
A realidade revela diversas situações em que o titular de um direito
fundamental pode renunciar ao seu direito, a exercer o seu exercício, o
que representa um desmentido de formulações teóricas absolutistas que
pressupõe a irrenunciabilidade como uma característica intrínseca.

De fato, a renúncia, deliberada e validamente realizada, do exercício de


um direito fundamental faz parte do âmbito de exercício do direito fundamental
da autodeterminação individual, de igual hierarquia constitucional e
merecedor de igual proteção em relação ao direito renunciado.39

Assim, a adoção da distinção entre titularidade e capacidade de


exercício de direitos fundamentais possibilita ver os distintos direitos, nas
variadas situações que a vida social propicia, de forma integrada e sem
que haja aprioristicamente hierarquia entre eles.

A titularidade de um direito fundamental pode ser absoluta, no


sentido de que não se pode nem mesmo admitir a renúncia do próprio

38 STF, ADPF nº 130. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.


jsp?docTP=AC&docID=605411>.
39 “Quanto à possibilidade dogmática de distinção entre titularidade e capacidade de exercício de direitos
fundamentais, parece evidente que, no plano dos conceitos, uma coisa é ter a titularidade de uma posição
jurídica de direito fundamental e outra, perfeitamente distinta, é ter a capacidade, fáctica ou jurídica, de
concretamente invocar essa posição no exercício concreto das faculdades ou poderes que a integram.”
NOVAIS, Jorge Reis. Renúncia a direitos fundamentais. In: MIRANDA, Jorge (Org.). Perspectivas
constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, v. I, 1996. p. 282.
Wagner de Amorim Madoz 323

titular, mas não a capacidade de exercício, que pressupõe a autonomia do


titular, na sua liberdade de agir que a Constituição garante.

3 A constituição dirigente

Embora seja um documento único, é possível identificar três grandes


grupos de normas nas constituições contemporâneas como a brasileira de
1988: as declarações de direitos civis e políticos; a estrutura do Estado; e
as normas constitucionais sociais. Nesse último segmento, é inequívoca
a influência da Constituição portuguesa de 1976. A maioria dos seus
dispositivos originais denotam uma vertente dirigente, pressupondo a
intervenção do Estado como agente propulsor das ações e realizador das
promessas da modernidade e que naquele momento caracterizavam o
Estado do Bem-Estar Social.40

A obra “Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador -


Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas”,
do Professor J.J. Gomes Canotilho, publicada originalmente em 1982, é um
bom exemplo de pensamento doutrinário que encontrou ampla receptividade
no constitucionalismo brasileiro – ao defender fundamentalmente que
os direitos sociais previstos constitucionalmente teriam condições de
obrigar o legislador a estabelecer políticas públicas para sua satisfação,
cujo inadimplemento equivaleria a uma inconstitucionalidade por omissão.
Sua influência na elaboração da Constituição de 1988 é amplamente aceita
e reconhecida pelo próprio autor.41

A queda do muro de Berlim, em 1989, no entanto, teve um papel


simbólico importante no mundo e no Brasil, como economia periférica,
em particular, porque significou o fim da Guerra Fria e o triunfo da
economia capitalista sobre socialismo de Estado, e o controle da economia
pelo Estado cedeu lugar a uma desvinculação cada vez maio do Estado
e da economia, apregoando-se o “fim do Estado Social”, historicamente

40 “(1) O Estado social é o tipo de Estado que coloca entre os seus princípios fundantes e estruturantes o
princípio da socialidade; (2) o princípio da socialidade postula o reconhecimento e a garantia dos direitos
sociais; e (3) a garantia dos direitos sociais pressupõe uma articulação do direito (de todo o direito, a
começar pelo direito constitucional) com a economia intervencionista progressivamente neutralizada
pela expressão do mercado global.” CANOTILHO, J.J. Gomes. O Direito Constitucional como Ciência de
direção – o núcleo essencial de prestações sociais ou a localização incerta da socialidade, contributo para
a reabilitação da força normativa da “Constituição Social”, op.cit., p. 18.
41 CANOTILHO, J.J. Gomes. Rever ou romper com a Constituição Dirigente? Defesa de um constitucionalismo
moralmente reflexivo. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 15, abr. 1996. p.7
324 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

vinculado às concepções ideológicas que nortearam em grande parte a


elaboração da CF-1988.42

Assim, não foi sem comoção que se viu a total revisão da obra referida,
no desencantador prefácio da sua segunda edição, quando o Professor
Canotilho afirmou sua tese como um filho enjeitado, defendendo a morte
da constituição dirigente. 43

Nos anos seguintes, com a aceleração do processo de globalização


dos mercados,44 o encolhimento dos Estados nacionais, como agentes
de promoção do desenvolvimento das sociedades, e o triunfo das ideias
econômicas neoliberais, ficou mais nítida ainda a separação entre as
promessas da modernidade e a realidade social. Não raras vezes se
proclamou a desnecessidade da inclusão de direitos sociais na Constituição,
e ainda mais o não reconhecimento como direito fundamental.45

42 TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 1-2.
“Ganharam força as ideias econômicas neoliberais que, na comunidade internacional, passaram a ser rotuladas
como o Consenso de Washington, a exigir das economias emergentes, como forma de obtenção de crédito,
a abertura dos mercados internos, a desregulamentação da economia, privatizações, reformas tributária e
previdenciária, redução de gastos sociais, flexibilização das relações de trabalho e maior responsabilidade
fiscal. Os países que não amoldam seus direitos internos aos referidos padrões econômicos não recebem
investimentos, mesmo porque o capital não tem pátria, permanecendo nos lugares onde o ordenamento
jurídico mais lhe favoreça.” CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neopositivismo. Direitos fundamentais,
políticas públicas e protagonismo judiciário. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2011. p. 179.
43 É claro que o autor revisitou o tema posteriormente: “Tomemos a sério os direitos económicos, sociais
e culturais” (Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Estudos em homenagem ao Prof. António
de Arruda Ferrer Correia, 1988, republicado na obra “Estudos sobre direitos fundamentais, Coimbra,
2005, p. 35 e ss.); “Metodologia ‘Fuzzy’ e ‘camaleões normativos’ na problemática actual dos direitos
económicos, sociais e culturais” (Estudos sobre direitos fundamentais, Coimbra, 2005, p. 95 e ss).
Também no texto “O tom e o dom na teoria jurídico-constitucional dos direitos fundamentais” (Estudos
sobre direitos fundamentais, Coimbra, 2005, p. 115 e ss) o autor revisita o tema da “constituição dirigente
social”. Apesar da defesa de uma posição jurídico-prestacional, com a mesma densidade jurídico-
subjectiva dos direitos de defesa, “e embora tenha sido reconhecido que o Estado, os poderes públicos e o
legislador estão vinculados a proteger e a garantir prestações existenciais, a doutrina e a jurisprudência
abraçaram uma posição cada vez mais conservadora.” Op.cit., p. 12.
44 “A globalização política neoliberal caminha silenciosa, sem nenhuma referência a valores. Mas nem por isso
deixa de fazer perceptível um desígnio de perpetuidade do statu quo de dominação. Faz parte da estratégia
mesma de formulação do futuro em proveito das hegemonias supranacionais já esboçadas no presente. Há,
contudo, outra globalização política, que ora se desenvolve, sobre a qual não tem jurisdição a ideologia
neoliberal. Radica-se na teoria dos direitos fundamentais. A única verdadeiramente que interessa aos povos da
periferia.” BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 585.
45 ATRIA, Fernando, “Existem Direitos Sociais?”In: MELLO, Cláudio Ari. (Coord.). Os Desafios dos
Direitos Sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005. p. 9-46.
Wagner de Amorim Madoz 325

Essa mudança decorrente das novas configurações econômicas e da


ruína dos muros nacionais criou um grave problema para a doutrina jurídico-
constitucional, relacionado com a concretização dos direitos fundamentais
– mesmo levando-se em conta a “precária técnica legislativa e sofrível
sistematização (que, de resto, não constituem uma particularidade do texto
constitucional, considerando o universo legislativo brasileiro),”46 na medida em
que a constituição é uma norma fundamental, com força normativa vinculante,
como então concretizar as promessas constantes do seu texto?

Ante a inércia do Estado em muitos segmentos, a ampliação da


legitimação ativa propiciada por leis importantes, ainda que editadas antes da
CF-1988, como é exemplo a Lei da Ação Civil Pública – Lei nº 7.347/1985, art.
1º -, propiciaram a progressiva judicialização das políticas públicas envolvendo
direitos fundamentais. Com isso, formou-se um dos grandes embates jurídicos
atuais, relacionados com os diversos conflitos existentes no relacionamento
entre o Poder Judiciário e Poder Executivo na condução e execução de políticas
públicas voltadas para a realização de direitos fundamentais.47

Importante ressaltar que essa mudança de paradigmas, denominando-se


de Estado Democrático ou Pós-socialista, ou Estado da Sociedade de Riscos,
ou Estado Subsidiário48 acontece sem que tenham sido realizados para a ampla
parcela da população brasileira os benefícios do Estado do Bem-Estar Social.

4 A constitucionlização do processo

Até o advento da CF de 88 era comum o pensamento jurídico


brasileiro considerar o estudo dos problemas jurídicos a partir das
normas infraconstitucionais, o que reflete de um lado uma vinculação
com o pensamento europeu, francês em particular, que tinha as normas
constitucionais em geral, e os direitos fundamentais em particular,
como programas políticos, mero rótulo de “conselhos”, “declamações”
ou “exortações morais”, daí serem normas programáticas – “regras
constitucionais que buscam conciliar interesses de grupos políticos e sociais
antagônicos, apresentando conteúdo econômico-social e função eficacial
46 SARLET, op.cit., p. 6.
47 “Subjacente à missão do Estado Social, estava a ideia dos “bens sociais” (saúde, ensino, segurança,
trabalho) como bens públicos que só excepcionalmente podiam ser prosseguidos por privados. A
convergência das políticas liberalizadoras (globais e europeias) e privatizadoras juntamente com a
atribuição a entidades independentes da competência regulatória conduzem a uma rotação de 360 graus
na qualificação desses bens. Agora são bens privados que só excepcionalmente devem ser prosseguidos
por serviços públicos. A socialidade estatal e um lugar incerto.” (Canotilho, 2015, p. 15)
48 Ibidem.
326 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

de programa, obrigando os órgãos públicos, mediante a determinação das


diretrizes que estes devem cumprir”.49

A razão dessa postura radicava na consideração de que era “impossível


satisfazer simultaneamente a todos os direitos proclamados pelo texto
constitucional e aguarda-se a solução do legislador ordinário.”50 Por isso havia
a prevalência das normas infraconstitucionais por possuírem maior concretude.

A partir da virada constitucional operada pela CF-1988 passou-se


a dar gradualmente maior peso às normas constitucionais na resolução
de problemas de interpretação dos textos processuais.51 São inúmeros os
dispositivos constitucionais com conteúdo processual, a demonstrar uma
preocupação dos constituintes em alçar ao nível constitucional regras de
respeito aos direitos individuais dos indivíduos, numa clara demonstração
de afirmação do Estado Democrático de Direito que se procurou restaurar.

Ao mesmo tempo em que procurou negar expressamente qualquer


vinculação com o período autoritário de que então se saía. Aliás, não era
propriamente a ausência de previsões normativas – inclusive constitucionais
– que o período autoritário se ressentia, basta uma leitura dos vários
preceitos contidos no art. 153 da Emenda Constitucional nº 1/1969 para
constatar que a enumeração de direitos era apenas simbólica e não garantia
efetividade alguma, como a história demonstrou em inúmeros casos.52

Essa virada metodológica unicamente, entretanto, não foi suficiente


para os grandes desafios que a Constituição de 1988 propôs. O modelo
teórico que prevaleceu e ainda prevalece em grande parte do meio jurídico
brasileiro tem como postulados principais os decorrentes do direito liberal,
e no caso do direito processual a teoria da relação jurídica processual, cujo
conceito neutraliza a própria relação social, e “se é capaz de demonstrar
o que acontece quando o litigante vai em busca do juiz em face daquele
que resiste à sua pretensão, encobre as intenções do Estado ou de quem

49 PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Eficácia e aplicabilidade das Normas Constitucionais Programáticas. São
Paulo: Max Limonad. 1999. p. 173.
50 DIMOULIS, Dimitri & Martins, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo:
Atlas. 2014. p.5.
51 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A constitucionalização do processo no direito brasileiro. In: Estudos
de Direito Processual Constitucional. Homenagem brasileira a Héctor Fix-Zamudio em seus 50 anos como
pesquisador do Direito. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 48.
52 Brasil: Nunca Mais. Prefácio de D. Paulo Evaristo, Cardeal Arns. Petrópolis: Vozes. 1985.
Wagner de Amorim Madoz 327

exerce o poder, além de ignorar as necessidades das partes, assim como as


situações de direito material e as diferentes realidades dos casos concretos.”53

A teoria da relação jurídica pressupõe uma neutralidade axiológica


que procura escamotear tudo o que dos autos não consta e constitui
a realidade concreta. Pressupõe uma abstração e um conceitualismo
característicos da pandectística.54 Trata-se na realidade de um mito,
concebido com a intenção de construir uma ciência processual bastante
em si mesma – pretensamente ascética, indiferente à realidade social e
concreta da vida em sociedade e, ainda, alcançando um nível de abstração
que a própria vida em sociedade é uma vinculação indesejável – a vida
das partes, os objetivos do Estado, todas essas considerações devem ser
afastadas, na ânsia de se alcançar um sistema processual linear e puro.

Esta conduta metodológica é incompatível com o Estado


Constitucional. Nele se pressupõe uma legitimidade do procedimento, da
participação no procedimento e da própria decisão que são incompatíveis
com o pensamento jurídico que se supõe de uma neutralidade que imuniza
o processo de preocupações com a própria legitimidade do poder.

Hodiernamente é inconcebível um processo que culmine em uma


decisão ilegítima, seja a que título e fundamento jurídico que for, pois
não se encontra entre os objetivos da própria a jurisdição a produção de
decisões ilegítimas. Por essa razão o:

Processo não pode ser visto apenas como relação jurídica, mas sim
como algo que tem fins de grande relevância para a democracia e,
por isso mesmo, deve ser legítimo. O processo deve legitimar pela
participação -, ser em si legítimo – adequado à tutela dos direitos e
aos direitos fundamentais -, e ainda produzir uma decisão legítima.55

Nesse sentido, ao direito que os indivíduos possuem de participar de


um processo – com a oportunidade de alegar, requerer provas, participar
da sua produção e avaliar seus resultados - se alia outro, de haver
um procedimento adequado à tutela daquele direito material previsto
constitucionalmente. Não teria sentido algum a Constituição prever um
53 MARINONI, Luiz Guilherme Bittencourt. Da relação jurídica processual ao processo civil do Estado
constitucional. In: Doutrinas Essenciais de Processo Civil. v.1, p. 1133-1148. São Paulo: Revista dos
Tribunais. 2011. p.1133.
54 Ibidem.
55 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. v. 1, São Paulo: Revista dos Tribunais. 2011.
p.1136.
328 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

direito e não haver no ordenamento jurídico um procedimento adequado


para a sua tutela.

Exatamente para isso instituiu o constituinte o mandado de injunção


– art. 5º, inc. LXXI 56– e a ação declaratória de inconstitucionalidade por
omissão: art. 102, § 2º.57

Assim, o contraditório, a publicidade, a motivação da decisão judicial,


além da imparcialidade do magistrado, são elementos que possibilitam de
um processo constitucionalmente justo e uma vinculação da decisão judicial
com os objetivos do Estado, bem como com os direitos fundamentais.

Daí uma definição adequada de processo, segundo à Constituição,


que seria:

O instrumento através do qual a jurisdição tutela os direitos na dimensão


da Constituição. É o módulo legal que legitima a atividade jurisdicional
e, atrelado à participação, colabora para a legitimidade da decisão. É
a via que garante o acesso de todos ao Poder Judiciário e, além disso,
é o conduto para a participação popular no poder e na reivindicação
da concretização e da proteção dos direitos fundamentais.58

A proteção dos direitos fundamentais se realiza de vários modos, não


necessariamente através do processo judicial.59 A crença de que o processo
judicial é um meio indispensável para a realização da justiça é um mito. O
ideal, no entanto, é que o processo produza decisões legítimas, no sentido
da realização ou garantia dos direitos fundamentais.60
56 “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável
o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à
soberania e à cidadania;”
57 “declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será
dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão
administrativo, para fazê-lo em trinta dias.”
58 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. v. 1, São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006. p.
466-467.
59 QUEIROZ, op.cit., p.387-388. Convém lembrar, ainda, a lição de Carlos Santiago Nino para quem “a
perspectiva usual de que os juízes estão melhor situados que os parlamentos e que outros funcionários
eleitos pelo povo para resolver questões que tenham a ver com direitos parece ser a consequência de certo
tipo de elitismo epistemológico. Este último pressupõe eu, para alcançar conclusões morais corretas, a
destreza intelectual é mais importante que a capacidade para se representar e equilibrar imparcialmente
os interesses de todos os afetados pela decisão.” La Constitución de la democracia deliberativa, p. 260,
apud MARINONI, op.cit., p. 459.
60 MARINONI, op. cit., p. 452.
Wagner de Amorim Madoz 329

Processo alheio ao seu resultado equivale a ter um procedimento que


vale independentemente da sua legitimidade, com uma visão unicamente
interna – completamente desvinculado com os fins e objetivos da jurisdição.

Uma visão externa do processo, por outro lado, proporciona uma


abertura na compreensão e desenvolvimento do processo e é exatamente
por isso que se pressupõe a participação dos atingidos pela decisão como
forma de legitimar o processo.

5 O neoconstitucionalismo e neoprocessualismo

O neoconstitucionalismo,61 concebido como modelo de Estado


Constitucional de Direito, vem se desenvolvendo na Europa, a partir do
final da 2ª. Grande Guerra – ou de meados do Séc. passado, como quer Luis
Prieto Sanchís62 -, ou seja, um modelo de organização política diferente
do Estado de Direito do séc. XIX.

Esse novo paradigma de Estado Constitucional pode ter concebido


como resultado da confluência dos dois grandes ramos do constitucionalismo
moderno, a tradição norte-americana e a europeia. A simplificação das duas
concepções ou tradições do constitucionalismo moderno, evidentemente,
tem apenas o objetivo de situar historicamente as fontes do que se
convencionou chamar “constitucionalismo” ou “constitucionalismo pós-
moderno”, e apontar como resultado dessa confluência de elementos dessas
duas tradições ou modelos e entender a constituição como dotada de forte
conteúdo normativo e de garantia jurisdicional.63

O neoconstitucionalismo como teoria do Direito possui como


características mais importantes: a) força normativa da constituição; b)
supremacia em relação a todo o ordenamento jurídico; c) eficácia e aplicação

61 “A aproximação das idéias de constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de


organização política, que atende por nomes diversos: Estado Democrático de Direito, Estado
Constitucional de Direito, Estado Constitucional Democrático. Seria mau investimento de
tempo e energia especular sobre sutilezas semânticas na matéria.” BARROSO, Luís Roberto.
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional
no Brasil). Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 3. n. 11, out./dez. 2005. p. 23.
62 SANCHÍS, Luis Prieto. Sobre el neoconstitucionalismo y sus implicaciones. In: Justicia Constitucional y
Derechos Funamdamentales. Madri: Trotta, 2003. p. 107, “Aquí por neoconstituciolismo no entenderé tanto un
modelo ideal construido en sede teórica, aun cuando puede intentarse su construcción, sino más bien la forma
de organización política que se viene abriendo paso en Europa desde mediados del siglo pasado;”
63 Ibidem.
330 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

imediata; d) garantia judicial; e) presença de um denso conteúdo normativo;


e f) rigidez constitucional.

A essas características que poderiam ser tidas como comuns aos


Estados Europeus devem ser aliadas às peculiaridades de sociedades
como a brasileira – no sentido de que as prescrições constitucionais
não correspondem à realidade, e, por isso, a força transformadora da
realidade decorrente da aplicação da CF de 1988, por exemplo, adquire
características peculiares, circunstância que não tem, pelo menos na mesma
intensidade os Estados Europeus. Porém, menos em Estados como o Brasil
de constitucionalismo tardio,64 é possível encontrar as características
apontadas por autores que analisam os Estados Europeus, - como é o
caso de Robert Alexy, Luis Prieto Sanchís, Riccardo Guastini, Gustavo
Zagrebelsky, entre outros -, e que podem ser resumidas nas seguintes –
aproveitando a síntese precisa de Prieto Sanchís:

Más principios que reglas; más ponderación que subsunción;


omnipresencia de la Constitución em todas las áreas jurídicas y em
todos los conflictos mínimamente relevantes, en lugar de espacios
exentos en favor de la opción legislativa o reglamentaria; omnipotencia
judicial en lugar de autonomía del legislador ordinário; y, por
último, coexistencia de uma constelación plural de valores, a veces
tendencialmente contradictorios, en lugar de hogeneidad ideológica
em torno a un puñado de principios coherentes entre si y en torno,
sobre todo, a las sucesivas opciones legislativas. 65

Outra controvérsia que gira em torno deste tema diz respeito aos
conflitos entre direitos sociais e entre eles e os direitos individuais. Embora
seja questionável a real importância da enumeração exaustiva de todas as
hipóteses de conflitos, envolvendo os vários tipos de direitos previstos
na Constituição, o que pareceria um mero exercício acadêmico, não se
pode desconhecer a importância da distinção.66 Muito embora sem a

64 BARROSO, op.cit., p. 22/23, “O marco histórico do novo Direito Constitucional, na Europa continental,
foi o constitucionalismo do pós-guerra, especialmente na Alemanha e na Itália. No Brasil, foi
Constituição de 1988 e o processo de redemocratização que ela ajudou a protagonizar.”
65 SANCHÍS, op.cit., p. 117.
66 É o caso, por exemplo, da distinção feita por Ronald Dworkin entre argumentos de princípios, que
fundamentariam direitos individuais, e argumentos de política - “policy” - que fundamentariam os
objetivos coletivos, cf. DWORKIN, Ronald. Talking Rights Seriously. Harvard University Press.
Cambridge, Massachusetts. 1978. p. 90, “Arguments of principle are arguments intended to establish an
individual right; arguments of policy are arguments intended to establish a collective goal. Principles
are propositions that describe rights; policies are propositions that describe goals.” Também, LOPES,
Wagner de Amorim Madoz 331

compreensão da “simultânea natureza dos direitos fundamentais como


garantias jurídico-constitucionais e como direitos susceptíveis de limitação”
se perca a riqueza da análise dos complexos mecanismos de atuação dos
direitos fundamentais nos Estados de Direito Constitucional.67

Nosso argumento fundamental, entretanto, é de que não há uma


hierarquia entre direitos fundamentais e direitos sociais, de modo que
a Constituição consagra igual proteção a todos, e assim podem sofrer
limitações impostas pelas maiorias – legislativas – em razão de outros
direitos ou objetivos também constitucionais, numa colisão ou conflito
entre direitos fundamentais, cuja configuração denota uma característica
principiológica desses direitos.

As limitações aos direitos fundamentais que pressupomos como


legítimas são aquelas que não afetam a dignidade da pessoa humana, que
não foi excessiva, nem desarrazoada, nem tenha violado a igualdade, a
proporcionalidade, e a segurança jurídica.68

Um Estado Democrático Constitucional assim organizado, cuja


Constituição possua essas características evidentemente deve reclamar
por uma nova Teoria do Direito e para sua aplicação e desenvolvimento
institucional um novo Direito Processual. Assim é que se concebe o
neoprocessualismo como ferramenta que desenvolve técnicas processuais
para, a partir das bases constitucionais, ajudar na solução dos complexos
problemas que o neoconstitucionalismo se propõe a resolver,69 em particular
na realização da Constituição enquanto norma jurídica central no sistema
normativo com poder vinculante em relação a todos os agentes públicos,
de modo particularíssimo os direitos fundamentais que representam o
que há de mais fundamental em seu texto.

Afirmar, no entanto, que o processo deve estar vinculado aos fins


do Estado, ou aos fins constitucionais, em particular a realização da
dignidade humana e a promoção e proteção dos direitos fundamentais tem
Jose Reinaldo de Lima. Direito Subjetivo e Direitos Sociais: o dilema do Judiciário no Estado Social
de Direito. In: Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. FARIA, José Eduardo (Org.) São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 124.
67 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em Estado de Direito Democrático.
Coimbra: Coimbra, 2012, p. 15.
68 NOVAIS, op.cit., p. 154; também SARLET, Ingo Wolfgang. Segurança Social, Dignidade da Pessoa
Humana e Proibição de Retrocesso: Revisitando o problema da proteção dos direitos fundamentais sociais.
Citado, p. 76.
69 CAMBI, op.cit., p. 21.
332 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

um significado apenas no campo retórico, se não forem acompanhados das


formas pelas quais o processo irá atingir esses fins do Estado. Inúmeras
ocasiões há controvérsias de grande complexidade envolvendo conflitos ou
colisões de e entre os próprios direitos fundamentais, que exigem uma igual
consideração e respeito, obrigando os magistrados a grandes contorcionismos
e malabarismos doutrinários para não acolher os pedidos de afirmação ou
cumprimento de direitos fundamentais, sobretudo os sociais.70

Nesse sentido a lição de Jorge Reis Novais, para quem:

São vantajosas as construções que evidenciem, da forma mais transparente


possível, os conflitos de interesses, valores e princípios que subjazem a
todos os caos difíceis de direitos fundamentais. É que o reconhecimento
do conflito é o primeiro pressuposto da sua resolução constitucionalmente
adequada, pois só o aberto reconhecimento dos interesses colidentes e
da situação de colisão permite o controle da sua resolução, de forma
intersubjectivamente partilhada, segundo os princípios constitucionais
e com recurso inevitável à metodologia da ponderação de bens. 71

6 Contradições na realização das promessas da Constituição

Ao lado das demais características como organizadora e limitadora


do poder político, não há dúvida que as constituições modernas exercem
um papel de extrema importância pelo seu caráter transformador da
realidade. Fixam valores e estabelecem objetivos muitas vezes de difícil
alcance. Luigi Ferrajoli denomina de “utopias de direito positivo”, porque
segundo ele “embora jamais serão realizadas à perfeição, estabelecem, no
entanto, enquanto direito sobre direito, as perspectivas de transformação
do direito mesmo na direção da igualdade nos direitos fundamentais.”72

70 STRECK, Lênio. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista? Revista Novos Estudos Jurídicos, Univale.
p.171-172. Disponível em: <http://www.univali.br/periodicos último acesso 30/9/2014>. Resumidamente,
para o autor o magistrado somente poderia afastar a aplicação de uma lei nas seguintes hipóteses: pela
declaração de inconstitucionalidade da lei; em face de uma interpretação conforme à CF, permanece o texto
mas se muda a norma; em face de uma nulidade parcial sem redução de texto, deixa-se de aplicar o texto
como texto; quando estiver em face das antinomias (Bobbio); em razão de uma inconstitucionalidade parcial
com redução de texto – quando se retirar uma parte da lei; quando se estiver em face de um princípio que
afasta uma regra, princípios entendido no sentido de R. Dworkin, no sentido deontológico.
71 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em estado de Direito Democrático.
Coimbra: Coimbra, 2012. p. 31.
72 FERRAJOLI, Luigi. Juspositivismo crítico y democracia constitucional. Tradução de Lorenzo Córdova e
Pedro Salazar. Isonomia, v. 16, abr. 2002. p. 27.
Wagner de Amorim Madoz 333

Há uma relação muito intensa entre Estado de Direito, democracia e


direitos fundamentais, da mesma forma que não se pode ter um verdadeiro
Estado de Direito sem que exista democracia, não se encontra uma
verdadeira democracia sem Estado de Direito. O Estado de Direito está
fundado no reconhecimento da igual dignidade de todos:

É que do princípio da dignidade da pessoa humana decorrem


cooriginariamente exigências de igualdade e de liberdade individual
que conduzem, de forma directa e necessária, à adoção da regra da
maioria como princípio elementar de funcionamento do sistema político,
pelo que, à luz dessa construção, se não houver democracia também
não há verdadeiro respeito pela dignidade da pessoa humana e, logo,
pelo Estado de Direito (direitos fundamentais). 73

Ora, o neoconstitucionalismo tem por objetivo a realização do


Estado Democrático de Direito pela efetivação dos direitos fundamentais,
servindo de norte na orientação das referidas mudanças sociais e superando
o paradigma da validade meramente formal do direito.74 Por outro lado, não
se pode deixar de admitir que o Poder Judiciário não tem como substituir
a política como democracia.

Como se sabe, no Brasil, somente a partir da adoção da CF de 1988 é


que se pode verdadeiramente falar desse novo Estado de Direito Constitucional,
vigente na Europa a mais de 50 anos, pelo menos. Por essa razão, pela ausência
de cultura jurídica formada nesse novo paradigma, é que se entende como
violadora dos princípios da legalidade e da independência dos poderes e da
discricionariedade administrativa as decisões judiciais que interferem de alguma
forma na condução das políticas públicas – na base do Estado Social estava a ideia
dos “bens sociais”: saúde, ensino, segurança, trabalho. (Canotilho, 2015, p. 15)

Essa concepção do papel da Constituição e do Estado na consolidação


do Estado Social cria enormes barreiras ao desenvolvimento das instituições
jurídicas, relegando unicamente ao Poder Executivo a tarefa de realização
das políticas públicas, não se admitindo sequer a verificação dos parâmetros
constitucionais.

Assim, como exemplo dessas barreiras, veja-se o caso do artigo 192


§ 3º da Constituição Federal, cujo texto original previa a promessa de
73 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em Estado de Direito Democrático.
Coimbra: Coimbra, 2012. p. 21.
74 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas públicas e
protagonismo judiciário. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 29.
334 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

limitação dos juros reais em 12% ao ano. Fonte de enormes controvérsias


jurídicas, de milhares de querelas processuais, nunca efetivado na prática, um
emblemático caso de promessa de casamento de uma norma com a realidade
nunca realizada, que teve como fim a sua revogação pela EC nº 40 em 2003.

Essa problemática remete também a uma reflexão relativamente à


eficácia, concretização e espaços de realização do projeto constitucional, de
se indagar sobre as razões da não concretização dos ideários constituintes,
questões, aliás, que não são uma exclusividade do Brasil.

A utilização, no entanto, da categoria da revogada categoria da


impossibilidade jurídica75 do pedido – como uma das condições da ação76 -,
para se restringir o alcance do controle judicial sobre a efetivação de políticas
públicas, fortalece uma visão formalista do processo, na qual os objetivos
do Estado e os direitos fundamentais, previstos nas políticas públicas, são
relegados e impede que o processo seja um agente de transformação da
realidade pela efetivação dos direitos sociais.77

Além do mais, a impossibilidade jurídica do pedido ficou plasmada no


direito brasileiro como categoria dogmática, a alicerçar pedidos descabidos
como dívida de jogo e outros raros pedidos incompatíveis com a ordem jurídica
– uma espécie de tutela judicial do absurdo -, em confronto com o princípio
da inafastabilidade do controle jurisdicional, previsto no art. 5º, XXXV, da
CF, segundo o qual a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão
ou ameaça a direito, garantindo, assim, o livre acesso ao Poder Judiciário, e
elevando à categoria de direito fundamental o acesso à jurisdição.

Ora, um dos motivos principais para a não concreção dos direitos


fundamentais sociais em economias marginais como da América Latina
encontra-se nos limites do próprio projeto do Estado Social, o qual pressupõe
o progresso social e a eficiência econômica como fatores imprescindíveis

75 Abandonada pelo próprio autor, com a aprovação do divórcio na Itália - LIEBMAN, Enrico Tullio.
Manual de Direito Processual civil. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 155.
76 Categoria processual extinta como pelo novo CPC, o qual não denomina de “condições da ação”,
preferindo adotar o binômio admissibilidade (interesse de agir e legitimação extraordinária) e mérito
(possibilidade jurídica do pedido e legitimação ad causam), cf. DIDIER, Fredie. As Condições da Ação e o
Novo CPC. Disponível em: <http://www.frediedidier.com.br/en/artigos/condicoes-da-acao-e-o-projeto-
de-novo-cpc/>. Acesso em: 29 ago. 2016.
77 CAMBI, op. cit., p. 21.
Wagner de Amorim Madoz 335

para seu incremento, exatamente porque são a fonte para viabilizar o


patrocínio das prestações sociais.78

Assim, os direitos sociais que necessitam de prestações possuem


limites no próprio Estado Social, os quais não podem ser ultrapassados
por decisões judiciais. Não se trata de defender uma neutralização política
do Poder Judiciário, tipicamente do Estado Liberal. Trata-se apenas de
reconhecer os limites do próprio Estado, ainda que haja contradições entre
a igualdade formal e a justiça social.

Os direitos sociais são limitados pelas condições materiais de acesso


a bens sociais - reserva do financeiramente possível aliada a uma reserva do
politicamente adequado ou oportuno na correspondente realização positiva.79

Assim, a norma constitucional de garantia de um direito social


traduz-se essencialmente na imposição ao Estado de um dever de
prestar cuja realização, todavia, por estar essencialmente dependente de
pressupostos materiais, designadamente financeiros, não se encontra (ou
pode deixar de estar) na inteira disponibilidade da decisão do Estado. Por
esse facto, ou seja, pelo essencial condicionamento material e financeiro
da prestação estatal, a norma constitucional, em geral, não pode desde
logo garantir, na esfera jurídica do titular real ou potencial do direito
fundamental, uma quantidade juridicamente determinada ou determinável
de acesso ao bem protegido.

É curioso notar, assim, que há de fato um verdadeiro paradoxo na


análise das instituições políticas do Estado contemporâneo, uma vez que
o Estado Social procura promover a inclusão social, mediante prestações
sociais positivas, e o sistema econômico no qual se baseia é por excelência
um sistema econômico de exclusão. Não há como deixar de concluir
que o Estado Social está condicionado e tem seus limites fixados pela
realidade econômica, independentemente das promessas constitucionais
dos construtores de utopias.

78 Para Canotilho, o Estado Social somente pode desempenhar sua missão se: “(1) provisões financeiras
necessárias e suficientes, por parte dos cofres públicos, o que implica um sistema fiscal eficiente e capaz de
assegurar e exercer relevante capacidade de coacção tributária; (2) estrutura da despesa pública orientada para
o financiamento dos serviços sociais (despesa social) e para investimentos produtivos (despesa produtiva);
(3) orçamento público equilibrado de forma a assegurar o controlo do défice das despesas públicas e a evitar
que um défice elevado tenha reflexos negativos na inflação e no valor da moeda; e (4) taxa de crescimento do
rendimento nacional de valor médio ou elevado (3% pelo menos ao ano).” (Canotilho, 2015, p. 20)
79 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos de Liberdade e Direitos Sociais na Constituição Portuguesa. Disponível em:
<http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jrn_ma_8782.doc>. Acesso em: 30 set. 2014.
336 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

Um acertado meio de aplicar a constituição pressupõe a superação


desses paradoxos no sentido de alcançar o objetivo de assegurar a máxima
efetividade dos direitos fundamentais para o maior número possível de pessoas.
Daí o acerto das ações coletivas, que buscam a efetividade de determinado
direito fundamental, especificamente direitos sociais, dando ao problema “um
tratamento mais isonômico e racional, além de evitar ao máximo o casuísmo,
a insegurança, que implicam impacto sobre o sistema de políticas públicas”.80

O STF, em milhares de casos, tem optado pela afirmação do direito


à saúde, associando-o ao direito à vida (p.ex.: RE 271286).81 Em diversos
outros casos, ainda que pela via estreita das Suspensões de Segurança
e Suspensão de Tutela Antecipada, a Corte reafirmou a opção pelo
fornecimento de medicamentos, no confronto com a alegação de “grave
lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança públicas.” (AgR STA nº
175 – Ceará; em outro precedente paradigmático, ao contrário da análise
do professor Canotilho,82 a decisão do STF para autorizar o fornecimento
de “Viagra” não se baseou em considerações sobre “disfunções humanas
e sociais”, mas no tratamento de “hipertensão pulmonar”, como se pode
ver na ementa do acórdão: AgR SS nº 2944, DJE 30/04/2010).83

80 SARLET, op.cit., p. 26, bem como Virgílio Afonso da Silva, “O Judiciário e as Políticas Públicas: entre
transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais”. In: Direitos Sociais, p. 597 e segts.
81 Decisão criticada por Gustavo Amaral, por “deixar de reconhecer o princípio do uso racional dos recursos
públicos, bem como por tratar da questão como se não houvesse separação entre interpretação e aplicação,
bem como sem atentar para as peculiaridades do caso. Não se está a dizer que a decisão no caso foi equivocada,
mas, sim, que ao formular uma solução generalista, pela qual a questão a ser respondida é o contraste entre
um direito subjetivo inalienável e um interesse financeiro subalterno, a decisão enuncia uma regra de decisão
que acaba por tornar simples ou rotineira a decisão de casos até então difíceis. O Supremo Tribunal Federal
falhou em separar os dois campos, da interpretação e da aplicação, acabando por enunciar um critério de
direito-a-qualquer-custo.” AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez & Escolha. Critérios Jurídicos para lidar com
a escassez de recursos e as decisões trágicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 180-181.
82 “Compreendemos a angústia do cidadão brasileiro que consegue chegar aos Tribunais, incluindo o Supremo
Tribunal Federal, reclamando o mandado judicial para fornecimento de ‘Viagra’ em nome da dignidade da pessoa
humana”, mas, por enquanto, a prudência jurisprudencial não tem legitimidade para se transformar em instância
compensadora de disfunções humanas e sociais, como se de órgãos politicamente responsáveis se tratasse. Mais
uma vez, as normas jurídicas não são declarações de amor.” CANOTILHO, J.J. Gomes, O direito dos pobres no
activismo judiciário.In: CANOTILHO, J.J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, Érica
Paula Barcha. (Coord.) Direitos Fundamentais Sociais. 2. ed. São Paulo: Saraiva. 2015. p. 35.
83 “Suspensão de Segurança. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196
da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde – SUS. Políticas públicas. Judicialização do
direito à saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem
direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Fornecimento de
medicamento: Viagra (Citrato de Sildenafil). Tratamento de hipertensão pulmonar. Fármaco registrado
na ANVISA. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança pública.
Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento.” Mesmo
porque figuravam como impetrantes três mulheres.
Wagner de Amorim Madoz 337

De todo modo, nossa reflexão remete assim a uma posição de


equilíbrio entre as concepções extremadas das barreiras à realização dos
direitos sociais - pela negação de sua normatividade, sem aplicabilidade
direta e imediata -, e de transformação social pelas normas constitucionais
concedendo-se pela via judicial todo e qualquer pedido fundado em
expectativas de prestações de direitos sociais, o que praticamente anula
a conveniência e oportunidade de opções políticas dos meios, formas,
condições e prioridades da realização positiva dos direitos fundamentais.

7 Conclusão

O Congresso Constituinte de 1987/1988 não realizou um processo


de ruptura com o arcabouço normativo anterior embora tenha feito uma
proposta de resgate das promessas da modernidade. Ao longo do tempo, viu-
se que há um equívoco na tese normativista, segundo a qual a efetivação dos
direitos e garantias fundamentais se dá pelo próprio texto constitucional,
bastando ela própria para a realização do projeto constitucional.

A afirmação de que o processo deve orientar-se no rumo dos direitos


fundamentais situa-se na vertente retórica, pois nada diz com a natureza, a
razão de ser e a afirmação desses direitos fundamentais. O direito processual
é um fenômeno humano destinado à solução de problemas práticos, não
se confundindo com outros métodos como a força bruta ou à conciliação,
por essa razão necessita da legitimação como requisito de validade.

Os direitos fundamentais atuam na argumentação jurídica na qualidade


de princípios jurídicos. A concepção dos fundamentais de maneira unitária e com
possibilidades de restrição – excluindo-se, portanto, as “gerações ou dimensões
de direitos fundamentais” e sua categorização como direitos absolutos - é talvez
a que melhor descreve esse fenômeno jurídico-constitucional.

As contradições existentes na realização das promessas constitucionais se


explicam pela própria gênese da Constituição de 1988. Nela pode-se encontrar
posições enquadráveis tanto em “esquemas de racionalização de prestações
sociais, no âmbito dos direitos sociais (saúde, segurança social, ensino)”,84

84 “Em primeiro lugar, os anseios da constituição social vinculados às premissas típicas do positivismo
legalista mais não fazem do que repetir até a exaustão o círculo vicioso de qualquer positivismo. Em termos
simples, o círculo pode descrever-se assim: (i) as normas consagradoras dos direitos sociais, econômicos e
culturais consagram o direito à saúde, à segurança social, ao ensino; (ii) logo, todos temos direitos por via
de constituição a todas as prestações da saúde, da segurança social e do ensino; e (iii) então, a política do
direito constitucionalmente conforme no campo destes direitos é a que consagra a gratuidade de todas as
prestações reclamadas pela necessidade de realização desses direitos.” (Canotilho, 2015, p. 25-26)
338 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p. 335-342, jul./set. 2017

quanto posições configuradoras dos ideólogos liberais clássicos,85 bem como


de ofensa ao princípio da separação dos Poderes.86 Isso fica claro quando se
analisa os inúmeros casos difíceis87 apreciados pelo STF (p.ex.: AgR STA 175,
DJE 30/4/2010 – Judicialização direito à saúde, fornecimento de remédios; RE
641320, DJE 1º/8/2016 – Sistema Carcerário). O fato de haver contradições em
textos constitucionais não representa obstáculo instransponível para efetivação
de direitos constitucionais sociais, os quais demandam um agir, que, por sua
vez, necessitam recursos, cuja escassez, validamente reconhecida, representa
limite ao conteúdo das pretensões positivas.88

O ideal é que se possa utilizar o espaço democrático do processo


orçamentário para a efetivação das restrições aos direitos fundamentais.89
O que sem dúvida contribuirá para alcançar os objetivos fixados na
Constituição, especificamente de assegurar a máxima efetividade dos
direitos fundamentais para o maior número possível de pessoas.

85 Os quais “partem das seguintes premissas: (i) os direitos sociais não são verdadeiros direitos, porque
não possuem a dignidade de direitos subjetivos; (ii) as normas constitucionais consagradoras desses
direitos são normas programáticas que, em rigor, não deveriam estar no texto constitucional, pois as
suas concretizações dependem das políticas públicas dos órgãos públicos legitimados para desenvolvê-
las; e (iii) os bens protegidos por essas normas são, em primeira linha, bens privados, cuja proteção só
excepcionalmente deve ser confiada às entidades públicas.” (Canotilho, 2015, p. 26)
86 “O argumento central é de que não cabe ao Poder Judiciário controlar critérios de conveniência e
oportunidade da Administração para atender demanda da população na área de saúde, sob justificativa
da ofensa ao princípio da separação de poderes, bem como da ofensa a critérios de dotação orçamentária,
com base ainda no princípio da reserva do possível.” PIOVESAN, op.cit., p. 63.
87 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2001. p. 175 e ss.
88 “É necessário ter, como elemento de pré-compreensão, que a escassez é limite ao conteúdo das pretensões
positivas. A interpretação deve ter isto em consideração.” AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez &
Escolha. Critérios Jurídicos para Lidar com a Escassez de Recursos e as Decisões Trágicas. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris. 2010. p. 192.
89 “Tais decisões alocativas têm como melhor sede o orçamento. Não a lei formal do orçamento, mas
todo o processo desde a elaboração de sua proposta até a execução. O controle das escolhas ínsitas a
este processo permitem ver e dar voz tanto ao lado ‘vencedor’, que receberá os meios, quanto ao lado
‘perdedor’, que os terá em menor monta ou mesmo não os terá.” (Amaral, 2010. p. 192)
Wagner de Amorim Madoz 339

Referências

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Recebido em: 20/01/2017
Aprovado em: 06/04/2017

A INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO PARA


A CONTRATAÇÃO DE ESCRITÓRIOS DE
ADVOCACIA
UNENFORCEABILITY OF ACQUISITION PROCESS FOR
CONTRACTING LAW OFFICES

Wilker Jeymisson Gomes da Silva


Faculdade de Ensino Superior da Paraíba, cursando o 9º período noturno. Monitor
das disciplinas de Direito Administrativo I e II na FESP – Faculdade de Ensino
Superior da Paraíba. Estagiário do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal
de Contas do Estado da Paraíba.

Luciana Vilar de Assis


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade
Federal da Paraíba. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Ensino Superior
da Paraíba/FESP Analista Judiciário no Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba.
344 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 367-0, jul./set. 2017

SUMÁRIO: Introdução; 1 A licitação e os princípios


da moralidade e impessoalidade; 2 A inexigibilidade
de licitação; 3 Contratação direta de escritórios
de advocacia; 3.1 Atividades de advocacia como
serviços técnicos de natureza singular e de notória
especialização; 3.2 A não comprovação dos requisitos
legais; 4 Considerações finais; Referências.

RESUMO: Trata-se da análise da caracterização dos serviços de advocacia


como serviços que autorizam a contratação pelo Poder Público, sem
licitação, com base no artigo 25, da Lei nº 8.666/93. A pertinência desta
pesquisa reside no fato de que a aplicação da inexigibilidade, ausentes os
requisitos essenciais, caracteriza crime, conforme previsto na lei, sendo
este um tema controvertido e de constante submissão aos órgãos de
controle para averiguação da legalidade destas contratações. Pretende-
se, em suma, verificar a possibilidade de enquadramento da contratação
de escritórios de advocacia em uma das hipóteses de inexigibilidade de
licitação. Para a construção da pesquisa, que possui cunho qualitativo,
utilizaram-se referenciais bibliográficos e jurisprudenciais. Ao fim, se
conclui pela possibilidade de contratação direta de escritórios de advocacia,
se observados os requisitos legais.

PALAVRAS-CHAVE: Contratação pela Administração Pública.


Licitação. Inexigibilidade de licitação. Contratação de escritório de
advocacia. Princípio da moralidade e impessoalidade.

ABSTRACT: This is an analysis of the characterization of the


services of advocacy as services that authorize the hiring by the Public
Administration, without acquisition process, based on article 25, of the
Law number 8.666/93. The relevance of this research consists in the
fact that the application of the unenforceability of acquisition process,
absent the essential requirements, characterizes crime, as provided
by law, which is a controversial subject and constant submission to
the control bodies to investigate the legality of these contracts. It is
intended to verify the possibility of contract Law Offices in one of the
hypotheses of unenforceability of acquisition process. For the construction
of the research, which has a qualitative character, bibliographical and
jurisprudential references have been used. So, it’s concluded by the
possibility of direct contracting of Law Offices, if legal requirements
are observed.
Wilker Jeymisson Gomes da Silva
Luciana Vilar de Assis 345

KEYWORDS: Public Administration contracts. Acquisition process.


Unenforceability of acquistion process. Direct contracting of Law Offices.
Principle of morality and impersonality.

INTRODUÇÃO

O procedimento licitatório é um ato administrativo vinculado


e complexo, diante do qual o administrador público deve pautar-se da
maneira como a lei e os princípios administrativos determinam, para que
o ato final seja reputado válido. É por esta razão que resta demonstrada
a importância de conhecer a fundo as situações abrangidas pela lei que
regula as licitações, para que o agente público fielmente a observe e seja
legal o procedimento.

O objetivo do presente estudo é analisar os limites da inexigibilidade


de licitação, em especial o enquadramento dos serviços advocatícios na
hipótese prevista no art. 25, inciso II, da Lei nº 8666/93, que diz ser
inexigível a licitação para a contratação de serviços técnicos de natureza
singular prestados por empresa de notória especialização. A questão é
controversa na doutrina e na jurisprudência, residindo a importância
deste estudo no fato de ser constante a realização de licitações inexigíveis
com este objeto, e, posteriormente, sendo necessária a submissão dessas
seleções ao crivo dos órgãos de controle.

A articulação das ideias, sob o aspecto metodológico, parte de uma


pesquisa feita com análise qualitativa e com abordagem predominantemente
bibliográfica, delineando premissas essenciais sobre o instituto da licitação,
partindo, em seguida, à análise da inexigibilidade legal para, ao fim, analisar
os serviços advocatícios como hipótese autorizadora de não realização
de licitação, fundamentando as argumentações realizadas na doutrina e
jurisprudência pátria.

1 A LICITAÇÃO E OS PRINCÍPIOS DA MORALIDADE E IMPESSOALIDADE

Dentre os diversos institutos jurídicos contidos no âmbito do Direito


Administrativo, ramo público que estabelece as premissas necessárias
para a compreensão das normas e regras que regem a atividade pública
e a função administrativa, está a licitação, que objetiva, como os demais
institutos abrangidos por esta seara, o alcance do fim público e do bem
estar social, em obediência aos princípios constitucionais pertinentes, estes
insculpidos explícita e implicitamente no ordenamento jurídico brasileiro,
especialmente na Constituição Federal de 1988.
346 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 367-0, jul./set. 2017

Nesse passo, o procedimento administrativo denominado de


licitação, que nos dizeres de Meirelles1 “é o antecedente necessário do
contrato administrativo”, consubstancia-se em uma exigência prevista na
Constituição Federal de 1988, para que se proceda com a realização de
contratações que tenham como parte o Poder Público. A norma contida no
art. 37, inciso XXI, da Carta Magna, determina, de maneira incisiva, que:

Art. 37 (omissis) [...] XXI - ressalvados os casos especificados na


legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante
processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os
concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento,
mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual
somente permitirá exigências de qualificação técnica e econômica
indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações; [...] (grifos
acrescidos).

Desta forma, por determinação constitucional, tem-se a necessidade


imperiosa da realização deste procedimento, em razão dos princípios
administrativos instituídos no caput do art. 37 da Constituição Federal, que
inicia o tratamento constitucional atinente à organização da Administração
Pública. Assim, visa este mecanismo antecedente às contratações primar
pela legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência na
atuação do Poder Público.

A determinação do dever de licitar decorre da necessidade de


observância dos princípios basilares da Administração Pública, importantes
para ter-se uma boa administração da res pública. A importância dos
princípios administrativos também é visualizada na licitação. Nos dizeres
de Di Pietro2, em relação ao Direito Administrativo, “os princípios sempre
representaram papel relevante nesse ramo do direito, permitindo à
Administração e ao Judiciário estabelecer o necessário equilíbrio entre
os direitos dos administrados e as prerrogativas da Administração”.

Assim, no tocante à licitação, percebe-se que este procedimento


administrativo possui um viés limitador em relação ao Poder Público,
retirando-lhe a discricionariedade conferida aos particulares, quando de
suas tratativas habituais, estabelecendo-se, desta forma, um complexo
de normas e princípios norteadores que devem ser fielmente observados

1 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 280.
2 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 64.
Wilker Jeymisson Gomes da Silva
Luciana Vilar de Assis 347

quando da realização de contratos públicos, sob pena de ser eivado de


ilegalidade o ato praticado de maneira diversa.

Principalmente em razão dos princípios da moralidade e da


impessoalidade, previstos na Constituição, é que este procedimento se
legitima. O princípio da impessoalidade determina que “[...] a Administração
não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas,
uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu
comportamento” 3.

O princípio da moralidade, por sua vez, segundo Mazza4 “exige


respeito a padrões éticos, de boa-fé, decoro, lealdade, honestidade e probidade
incorporados pela prática diária ao conceito de boa administração”. Assim,
além do fiel cumprimento da lei, deve o administrador público pautar seus
atos em moralidade, aliando-a, pois, à legalidade. Para Mendes5, disso
conclui-se que “O reconhecimento da moralidade como princípio jurídico
apenas significa a atribuição a determinado ato formalmente jurídico de
uma dimensão ética”.

Assim, almejando enfatizar a primazia ao interesse público, em


detrimento de objetivos meramente individuais bem como visando à integral
probidade das ações em âmbito público, é que se tem o procedimento de
licitação como um dever geral imposto ao Poder Público, antes de realizar
as suas contratações, excetuadas, todavia, as situações legais autorizadoras
de sua não realização, que serão objeto de estudo mais aprofundado nas
linhas seguintes.

Além do mais, em razão do superprincípio, como denomina a


doutrina, da supremacia do interesse público, que deve predominar sobre
o meramente privado, o Poder Público tem a obrigação de, quando de sua
atuação, buscar sempre o fim que melhor aprouver aos seus administrados,
assim compreendida a sociedade, e deve, desta forma, quando da pactuação
de contratos, empreender todos os seus esforços para firmar aquele que
melhor atender ao interesse público.

Nesse passo, dispondo sobre a necessidade da realização de licitação,


tomando como núcleo medular o princípio constitucional da legalidade,

3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 68.
4 MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 95-96.
5 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 860.
348 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 367-0, jul./set. 2017

que determina à Administração Pública atuar tão somente quando a lei


determinar que se pratique determinado ato, Mello6 assevera que:

Ao contrário dos particulares, que dispõem de ampla liberdade quando


pretendem adquirir, alienar, locar bens, contratar a execução de
obras ou serviços, o Poder Público, para fazê-lo, necessita adotar um
procedimento preliminar rigorosamente determinado e preestabelecido
na conformidade da lei. Tal procedimento denomina-se licitação.

A partir do conhecimento dessas noções preliminares, que legitimam


a existência constitucional do instituto da licitação, tem-se que, em termos
conceituais, segundo Carvalho Filho7 a licitação é definida como sendo:

[...] o procedimento administrativo vinculado por meio do qual os entes


da Administração Pública e aqueles por ela controlados selecionam
a melhor proposta entre as oferecidas pelos vários interessados, com dois
objetivos - a celebração de contrato, ou a obtenção do melhor trabalho
técnico, artístico ou científico (grifos acrescidos).

Diz-se, assim, que a licitação é um “procedimento vinculado” por


tratar-se de uma sequência de condutas a ser praticadas pelo administrador
público, todas elas previamente delineadas pela lei, visando a celebração de
um contrato que favoreça o ente do Poder Público que integra, escolhendo-
se, para tanto, a proposta que conferir maior vantagem à Administração, e
garantindo a observância, inclusive, aos princípios que regem a atividade
pública.

A Constituição Federal também prevê a necessidade de certame


licitatório para a contratação com o Poder Público - art. 37, XXI-,
tudo para obviar escolhas não juridicamente justificáveis, realizando,
desta forma, o princípio da impessoalidade, que também se aplica às
hipóteses de permissões e concessões de serviços públicos (art. 175
da CF / 88) (MENDES, 2015, p. 860).

Nesta linha de raciocínio, Bulos8, tecendo considerações acerca do


caráter vinculativo que possui o procedimento de licitação pública, aduz
que “[...] a licitação é um procedimento vinculado, porque deve seguir o
primado da legalidade, realizando-se do modo mais abrangente possível,

6 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 524.
7 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 238.
8 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 1.032.
Wilker Jeymisson Gomes da Silva
Luciana Vilar de Assis 349

de modo a assegurar a igualdade de disputa entre os concorrentes do


certame licitatório”.

Nesta senda, segundo as lições contidas na doutrina de Scatolino9,


este, ao defini-la como um procedimento legal, explicita que a licitação
“trata-se de uma sucessão de atos, encadeados entre si, em que todos os
atos a serem praticados são definidos pela lei. Por ser uma sequência de
atos coordenados, tem natureza de procedimento administrativo”. Assim,
verifica-se a natureza vinculada dos atos que compõem o procedimento
administrativo que origina a licitação.

No entanto, em que pese ser a premissa geral regente da contratação


em âmbito público, esta regra do dever de licitar pode ser excepcionada
nas hipóteses permitidas pela própria lei – isto em razão do princípio
da legalidade. Segundo Carvalho10 “não obstante a licitação seja a regra
definida por lei para as contratações públicas, em determinadas situações,
o próprio texto legal regulamenta e admite celebração de contratos sem
a realização do prévio procedimento”.

Assim, nas hipóteses de licitação dispensada, dispensável e inexigível,


o legislador permite que não se proceda com a realização do procedimento
licitatório, haja vista a especificidade abarcada por estas situações legais,
legitimadas pela inviabilidade de competição, impossibilidade de realização
ou pela possibilidade legal de não realização do procedimento.

2 A INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO

Primeiramente, sabe-se do dever constitucionalmente imposto à


Administração Pública de realizar licitações, quando das suas contratações,
buscando atender ao princípio da impessoalidade, moralidade, isonomia
e supremacia do interesse público em detrimento do privado, bem como
objetivando selecionar, dentre as apresentadas, a proposta que for mais
vantajosa para a Administração Pública, conforme determina o art. 37,
inciso XXI da Constituição Federal e o art. 2°, caput, Lei nº 8.666/93.

Contudo, em que pese ser a licitação uma obrigação da Administração


Pública, quando de suas contratações com particulares, a lei traz hipóteses,
em caráter de exceção, em que é permitida a contratação direta, sem
a necessidade de licitação, sendo estes casos intitulados de licitação

9 SCATOLINO, Gustavo. Manual de direito administrativo. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 525.
10 CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 474.
350 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 367-0, jul./set. 2017

dispensada, dispensável e inexigibilidade de licitação. Tais situações,


autorizadas pelo art. 2° da Lei nº 8.666/93, estão contidas nos arts. 24 e
25 deste corpo normativo, constituindo-se como um procedimento com
menor formalidade do que o procedimento licitatório comum.

Especificamente no que diz respeito à inexigibilidade, o art. 25 da


Lei nº 8.666/93 traz as hipóteses meramente exemplificativas em que
o procedimento não tem como ser realizado, por dedução lógica. Diz-
se exemplificativas as hipóteses em razão de ser possível enquadrar o
procedimento licitatório como inexigível por motivo diverso dos arrolados
no referido artigo, desde que seja inviável a competição. Aduz Carvalho11
que “Mesmo que a circunstância não esteja disposta expressamente no
texto legal, a licitação será inexigível quando for inviável a realização de
competição entre interessados”.

A Lei de Licitações e Contratos, em seu art. 25, diz que é inexigível


a licitação quando houver inviabilidade de competição. Nesse sentido,
segundo Meirelles12, “ocorre a inexigibilidade de licitação quando há
impossibilidade jurídica de competição entre contratantes, quer pela
natureza específica do negócio, quer pelos objetivos sociais visados pela
Administração”.

Conforme Alexandrino13, que trata da inexigibilidade de licitação


como um instituto da lei de licitações que excepciona a regra geral de
dever, por impossibilidade fático-jurídica de competição, este aduz que
“há inexigibilidade quando a licitação é juridicamente impossível. A
impossibilidade jurídica de licitar decorre da impossibilidade de competição,
em razão da inexistência de pluralidade de potenciais proponentes”.

Entretanto, embora a contratação seja realizada de maneira direta,


é necessária a observância de alguns requisitos para a concretização da
convenção em caráter excepcional, devendo ser fundamentada a necessidade
e a conveniência da excepcionalidade arguida, conforme dispõe o art. 26
da Lei nº 8.666/93, com o propósito de evidenciar a real vantagem que
a referida contratação, realizada sem licitação prévia, irá proporcionar à
Administração Pública.

11 CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 475.
12 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 295-296.
13 ALEXANDRINO, Marcelo. Direito administrativo descomplicado. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, São
Paulo: MÉTODO, 2014. p. 669
Wilker Jeymisson Gomes da Silva
Luciana Vilar de Assis 351

Desta forma, assevera Carvalho Filho14 que:

Aplica-se aos casos de inexigibilidade, na forma do art. 26 do Estatuto,


a mesma exigência fixada para os casos de dispensa: deve a hipótese
ser cumpridamente justificada e comunicada em três dias à autoridade
superior, a esta cabendo ratificar e publicar a justificativa no prazo de
cinco dias, a fim de que o ato tenha eficácia.

Não obstante a hipótese em que o administrador analise enquadre-se


em dispensa ou inexigibilidade de licitação, autorizando a contratação direta
do Poder Público, faz-se necessária a realização de processo administrativo
em todos os casos, sendo informada a justificativa da excepcionalidade,
de maneira imperativa, quanto à escolha feita e ao preço contratado, com
os documentos essenciais que comprovem inclusive a pesquisa de preços
realizada anteriormente.

3 CONTRATAÇÃO DIRETA DE ESCRITÓRIOS DE ADVOCACIA

Conhecido o instituto da licitação e a possibilidade legal de sua


inexigibilidade, se preenchidos determinados requisitos legais, passar-se-á
ao estudo aprofundado de uma de suas hipóteses, qual seja a contratação
direta de empresa ou profissional de notória especialização que preste
algum dos serviços técnicos enumerados na própria Lei de Licitações e
com singularidade.

O art. 25, da Lei nº 8.666/93, dispõe acerca da possibilidade de


inexigibilidade de licitação, em razão de inviabilidade de competição e, em
especial, conforme prevê o inciso II, “para a contratação de serviços técnicos
enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais
ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para
serviços de publicidade e divulgação [...]”.

Logo, para a caracterização da hipótese de contratação direta em


discussão, é necessária a conjugação dos requisitos singularidade dos
serviços e notória especialização dos profissionais que irão prestá-los,
além de ser necessária a demonstração de que o serviço enquadra-se em
uma das circunstâncias específicas arroladas pela própria lei de licitações,
sendo proibida a inexigibilidade para contratação de empresa para prestar
serviços de publicidade e divulgação.

14 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 273.
352 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 367-0, jul./set. 2017

3.1 ATIVIDADES DE ADVOCACIA COMO SERVIÇOS TÉCNICOS DE NA-


TUREZA SINGULAR E DE NOTÓRIA ESPECIALIZAÇÃO

Especificamente no que tange aos serviços próprios e privativos do


exercício de advocacia, nos exatos termos do art. 13, inciso V, da referida
Lei de Licitações e Contratos Públicos, consideram-se como serviços
técnicos profissionais especializados, dentre as diversas hipóteses arroladas,
as atividades que tratam de “patrocínio ou defesa de causas judiciais ou
administrativas”.

As atividades ínsitas ao exercício de advocacia, assim, são considerada


como serviços técnicos especializados, segundo a Lei nº 8.666/93, de
modo que pode ser enquadrada como inexigível a licitação que tenha por
objeto este tipo de serviço, desde que, todavia, estejam presentes os demais
requisitos elencados pela lei, quais sejam a demonstração da singularidade
do serviço e a notória especialização do profissional ou banca de advogados
a ser contratada.

Por “serviços técnicos de natureza singular” entendem-se aqueles


que, por sua complexidade, não possam ser prestados por qualquer
profissional do mercado; profissional de “notória especialização”, por sua
vez, diz respeito àquele que se destaca em sua área específica de atuação,
sendo conhecido por sua capacidade técnica e expertise para o desempenho
das atividades a que se propõe realizar. Esta situação, conjugada com o
enquadramento em uma das hipóteses do art. 25, é o que caracteriza a
inviabilidade de competição.

A singularidade dos serviços, desta maneira, diz respeito ao serviço


que é peculiar, com suas características bem definidas, que o torne destacado
em relação aos demais, embora não seja necessário ser único e exclusivo.
Assim, deve haver uma singularidade notória e relevante que satisfaça
o interessa da Administração Pública contratante. Nesse sentido, aduz
Mello15 que:

De modo geral são singulares todas as produções intelectuais, realizadas


isolada ou conjuntamente — por equipe —, sempre que o trabalho a
ser produzido se defina pela marca pessoal (ou coletiva), expressada
em características científicas, técnicas ou artísticas importantes para
o preenchimento da necessidade administrativa a ser suprida.

15 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
p. 541-542.
Wilker Jeymisson Gomes da Silva
Luciana Vilar de Assis 353

Diante disso, não se consideram como singulares as atividades


que possam ser realizadas indistintamente por qualquer profissional da
área jurídica. Há casos decididos pelos Tribunais pátrios que explicitam
a necessidade de o serviço ser caracterizado como incomum, ou seja,
que embora não possua exclusividade, não diga respeito às atividades
advocatícias cotidianas. Confira-se aresto do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul, dispondo nesse sentido:

APELAÇÕES CÍVEIS. AGRAVOS RETIDOS NÃO CONHECIDOS.


AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MUNICÍPIO DE SAPIRANGA.
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONTRATAÇÃO DE
SERVIÇOS DE ADVOCACIA SEM PRÉVIA LICITAÇÃO.
HIPÓTESE QUE NÃO SE ENQUADRA NO ART. 25, INCISO II,
DA LEI N.º 8.666/1993. 1. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou
entendimento no sentido de que, em se tratando de serviços “corriqueiros,
genéricos, habituais de advogado” (Recurso Especial n.º 1.571.078/PB),
não há falar em singularidade da atividade e, consequentemente, em
inexigibilidade de licitação. A singularidade envolve, destarte, “casos
incomuns e anômalos que demandam mais do que a especialização, pois
apresentam complexidades que impedem sua resolução por qualquer
profissional, ainda que especializado” (REsp 1.444.874/MG). 2. Da
análise das atividades para que se contratou o escritório de advocacia,
não se extrai nenhuma que não pudesse ser perfeitamente realizada pelos
servidores da Fazenda Municipal conjuntamente com os Procuradores do
Município (que detinha quadro próprio), ou, em último caso, no que
concerne às diligências judiciais, por qualquer outro profissional com
experiência em direito tributário. Requisitos do art. 25, inciso II, da Lei
n.º 8.666/1993 não caracterizados. 3. Restou demonstrada a intenção de
agir por parte dos réus, o que é suficiente para a responsabilização no
caso. Afinal, conforme a iterativa jurisprudência do STJ, o dolo exigido
para a condenação por improbidade administrativa não é específico,
mas genérico, o qual consiste na “simples vontade consciente de aderir
à conduta, produzindo os resultados vedados pela norma jurídica - ou,
ainda, a simples anuência aos resultados contrários ao Direito quando o
agente público ou privado deveria saber que a conduta praticada a eles
levaria” (REsp 1.544.128/RS). 4. Sanções aplicadas com a observância
dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. 5. Ação julgada
procedente na origem. AGRAVOS RETIDOS NÃO CONHECIDOS.
RECURSOS DE APELAÇÃO DESPROVIDOS16 (grifos acrescidos).

16 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70068414101, Quarta Câmara
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo Uhlein, Julgado em 30/11/2016.
354 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 367-0, jul./set. 2017

O Procurador do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de


Contas do Estado de Minas Gerais, Fabrício Motta17, discorrendo sobre
a temática em análise, especificando sobre a necessidade de atividade a
ser contratada não ser cotidiana e comum, aduz que:

A característica singular dos serviços de advocacia deve ser apta a exigir


a contratação de advogado ou escritório com qualificações diferenciadas:
atividades jurídicas rotineiras, próprias do dia a dia do funcionamento
dos Municípios e demais entidades – desempenháveis de maneira idêntica
e indiferenciada (tanto faz quem o executa) por qualquer profissional – não
haverão de ser objeto de contratação direta por inexigibilidade (grifos
acrescidos).

Outrossim, não obsta a contratação direta de advogado ou sociedade


de advogados a existência, no âmbito da Administração Pública contratante,
de uma procuradoria jurídica especializada. Diz-se isto porque há casos
de alta complexidade que podem possuir valores elevados em discussão
ou demandas importantes que podem prejudicar o ente, e casos que
os profissionais do departamento jurídico da Administração Pública
não conseguem resolver, sendo a solução, nesse caso, a contratação de
profissional ou escritório de advocacia que satisfaça o interesse público.

Por outro lado, quanto ao requisito “notória especialização”, a


própria Lei de Licitações, ao definir a significação do termo, para fins de
inexigibilidade, dispõe, in verbis, que:

Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de


competição, em especial:

[...]§ 1° Considera-se de notória especialização o profissional ou


empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de
desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização,
aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados
com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e
indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato
(grifos acrescidos).

Este requisito deve ser conjugado com a singularidade dos serviços,


pois não pode ser tida como inexigível a licitação quando várias empresas
17 MOTTA, Fabrício. A contratação direta de serviços de advocacia e consultoria jurídica por
inexigibilidade de licitação. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 15, n.
174, p. 24-28, jun. 2016. p. 25.
Wilker Jeymisson Gomes da Silva
Luciana Vilar de Assis 355

ou profissionais possuem especialização quanto ao objeto licitado, pois essa


pluralidade de interessados torna viável a realização do procedimento e, por
consequência, impedem o enquadramento em inexigibilidade. Conforme
obtempera Alexandrino18:

É fundamental atentar que não é o simples fato de um serviço enquadrar-


se como serviço técnico profissional especializado que acarreta a
inexigibilidade. E necessário que o serviço tenha natureza singular
(não pode ser algo ordinário, usual, corriqueiro) e, por essa razão,
justifique, a fim de garantir a sua satisfatória prestação, a contratação
de um profissional ou de uma empresa de notória especialização.

A notória especialização decorre da soma de fatores diversos que


mostrem ser uma determinada empresa a mais preparada e essencial
a executar o objeto contratual de maneira satisfatória. Nos dizeres de
Carvalho Filho19:

Para a contratação direta, devem os profissionais ou as empresas


revestir-se da qualificação de notória especialização, ou seja, aqueles
que desfrutem de prestígio e reconhecimento no campo de sua
atividade. A lei considera de notória especialização o profissional ou
a empresa conceituados em seu campo de atividade. Tal conceito deve
decorrer de vários aspectos, como estudos, experiências, publicações,
desempenho anterior, aparelhamento, organização, equipe técnica
e outros do gênero.

Além de ser necessária a comprovação por meio documental, no


intento de verificar a especialidade que se requer, para a caracterização do
procedimento licitatório como inexigível, deve ser comprovada também
a qualificação técnica da parte contratada, demonstrando que possui
capacidade para dar cumprimento ao objeto contratual. Nesse sentido,
dispõe a lei de licitações sobre os documentos necessários para comprovar
esta condição:

Art. 30. A documentação relativa à qualificação técnica limitar-se-á a:

I - registro ou inscrição na entidade profissional competente;

18 ALEXANDRINO, Marcelo. Direito administrativo descomplicado. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense; São
Paulo: MÉTODO, 2014. p. 671.
19 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 275.
356 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 367-0, jul./set. 2017

II - comprovação de aptidão para desempenho de atividade pertinente e


compatível em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação,
e indicação das instalações e do aparelhamento e do pessoal técnico
adequados e disponíveis para a realização do objeto da licitação, bem
como da qualificação de cada um dos membros da equipe técnica que se
responsabilizará pelos trabalhos;

III - comprovação, fornecida pelo órgão licitante, de que recebeu


os documentos, e, quando exigido, de que tomou conhecimento de
todas as informações e das condições locais para o cumprimento das
obrigações objeto da licitação;

IV - prova de atendimento de requisitos previstos em lei especial,


quando for o caso [...] (grifos acrescidos).

É extremamente necessária a comprovação dos requisitos técnicos


e dos pressupostos autorizadores da não realização da licitação por
inexigibilidade. Isto porque, conforme exemplifica Mello20:

[...] o patrocínio de uma causa em juízo está arrolado entre os serviços


técnico-especializados previstos no art. 13. Entretanto, para mover
simples execuções fiscais a Administração não terá necessidade
alguma de contratar — e diretamente — um profissional de notória
especialização. Seria um absurdo se o fizesse.

Sob essa perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça, analisando um


caso de contratação direta de advogado, sem licitação e sob a alegação de
inexigibilidade, entendeu pela necessidade de comprovação dos requisitos
legais que evidenciem a inviabilidade de competição. Confira-se:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. OFENSA AO


ART. 535 DO CPC NAO CONFIGURADA. AÇAO POPULAR.
CONTRATAÇAO DE ADVOGADO SEM LICITAÇAO. NOTÓRIA
ESPECIALIZAÇAO. SÚMULA 7/STJ. DIVERGÊNCIA
JURISPRUDENCIAL NAO DEMONSTRADA. [...] 4. A notória
especialização jurídica, para legitimar a inexigibilidade de procedimento
licitatório, é aquela de caráter absolutamente extraordinário e incontestável
que fala por si. É posição excepcional, que põe o profissional no ápice de sua
carreira e do reconhecimento, espontâneo, no mundo do Direito, mesmo que
regional, seja pela longa e profunda dedicação a um tema, seja pela publicação

20 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 551.
Wilker Jeymisson Gomes da Silva
Luciana Vilar de Assis 357

de obras e exercício da atividade docente em instituições de prestígio. 5.


A especialidade do serviço técnico está associada à singularidade
que veio a ser expressamente mencionada na Lei 8.666/1993. Ou
seja, envolve serviço específico que reclame conhecimento peculiar do seu
executor e ausência de outros profissionais capacitados no mercado, daí
decorrendo a inviabilidade da competição. 6. O Tribunal de origem,
com base nas provas colacionadas aos autos, asseverou a ausência
de notória especialização do recorrente para o objeto contratado
(assessoria para fins de arrecadação de ISS), tendo ressaltado que o
trabalho efetivamente prestado não exigia conhecimentos técnicos
especializados e poderia ter sido executado pelos servidores concursados
do ente municipal. Nesse contexto, inexiste violação dos arts. 12 e 23
do Decreto 2.300/1986, vigente à época dos fatos [...]. 13. Recurso
Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido21 (grifos
acrescidos).

Também nesse sentido já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal,


entendendo que a licitação inexigível para a contratação de escritórios de
advocacia deve obedecer a alguns requisitos. Confira-se:

IMPUTAÇÃO DE CRIME DE INEXIGÊNCIA INDEVIDA


DE LICITAÇÃO. SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS. REJEIÇÃO DA
DENÚNCIA POR FALTA DE JUSTA CAUSA. A contratação direta
de escritório de advocacia, sem licitação, deve observar os seguintes
parâmetros: a) existência de procedimento administrativo formal; b) notória
especialização profissional; c) natureza singular do serviço; d) demonstração
da inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público;
e) cobrança de preço compatível com o praticado no mercado [...] (grifos
acrescidos)22.

Tecidas essas considerações, resta patente a necessidade, pois, no


caso de inexigibilidade de licitação para serviços de advocacia, da efetiva
comprovação dos requisitos autorizadores desta modalidade, a fim de
atestar que aquela empresa que foi contratada prestará os seus serviços de
maneira mais apropriada que os demais profissionais existentes no ramo.

21 Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial nº 448.442 - MS (2002/0082995-6), Relator: Herman


Benjamin, Data de Julgamento: 23/02/2010, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe do dia
24/09/2010.
22 Supremo Tribunal Federal – Inquérito: Inq. 3074 – SC. Órgão julgador: Primeira Turma. Data de
julgamento: 26 de agosto de 2014. Data de Publicação: DJe do dia 03/10/2014.
358 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 367-0, jul./set. 2017

Por fim, o Conselho Nacional do Ministério Público já se pronunciou


sobre a temática ora em abordagem, baixando a Recomendação de número
36, de 14 de junho de 2016, dispondo, em seu art. 1º, que a contratação
direta de advogado ou banca de advocacia sem licitação, por si só, não fere
a Lei de Licitações e constitui ato ímprobo, recomendando aos membros
do Ministério Público que descrevam nas ações propostas a justificativa
das irregularidades que apontar, descrevendo de maneira motivada qual
item da Lei de Licitações e contratos restou violado.

3.2 A NÃO COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS LEGAIS

Não estando demonstrados os elementos mencionados acima,


configuradores da inexigibilidade de licitação, necessária será a feitura
de licitação, no intento de velar pela isonomia no âmbito da Administração
Pública, possibilitando oportunidades iguais de contratar com o Poder
Público às empresas interessadas que se encontrarem na mesma situação,
não devendo haver dúvidas quanto ao preenchimento dos requisitos legais,
pois segundo Di Pietro23 “tem-se que estar em zona de certeza, quanto a
esses aspectos, para ser válida a inexigibilidade”.

A não verificação dos pressupostos que autorizam a inexigibilidade


da licitação, no caso das atividades advocatícias, induz à presunção de
viabilidade de feitura de licitação para o objeto a contratar, haja vista
se presumir que o mesmo pode ser prestado por diversas outras bancas
de advocacia ou sociedades, como na hipótese em estudo, devendo ser
comprovada, assim, a real necessidade e as peculiaridades do caso que
justifiquem a contratação direta e específica.

A contratação direta sem a comprovação da inexigibilidade de


licitação viola o princípio da competitividade, decorrente da isonomia de
tratamento aos particulares e da impessoalidade, que, segundo as lições
de Di Pietro24 “[...] constitui um dos alicerces da licitação, na medida
em que esta visa, não apenas permitir à Administração a escolha da
melhor proposta, como também assegurar igualdade de direitos a todos
os interessados em contratar”.

Partindo da premissa que “nos casos de inexigibilidade, não há


possibilidade de competição, porque só existe um objeto ou uma pessoa que

23 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 409.
24 Ibidem, p. 378.
Wilker Jeymisson Gomes da Silva
Luciana Vilar de Assis 359

atenda às necessidades da Administração” 25, percebe-se, em razão de se


presumir a pluralidade de interessados a participar de uma licitação como
a ora estudada, que tem por objeto serviços de advocacia, que a insuficiente
comprovação dos requisitos induz a não autorização do enquadramento
do caso no instituto da inexigibilidade, sendo irregular, pois, o certame e
os contratos decorrentes, por violação ao princípio da igualdade e ao da
impessoalidade, que regem a atividade administrativa.

Destarte, não comprovados os requisitos determinados pela lei, é


de se julgar irregular o procedimento licitatório no qual se procedeu de
maneira diversa. Nesse sentido entende a Jurisprudência pátria, concluindo
pela ilegalidade da licitação que tenha sido realizada sem a comprovação
efetiva dos requisitos de inexigibilidade. Confira-se jurisprudência
entendendo nesse sentido:

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PREFEITO. SOCIEDADE


DE ADVOGADOS. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
DE ADVOCACIA. LICITAÇÃO. INEXIGIBILIDADE. NULIDADE.
PARECER. 1. Inexistindo singularidade do objeto e notória especialização
do profissional ou escritório de advocacia contratado para prestar serviços de
advocacia de forma genérica, é ilegal a contratação sem licitação por alegada
inexigibilidade. Jurisprudência do STJ. É nula, portanto, a contratação
sem licitação de sociedade de advogados para execução de serviços que
não ostentam singularidade porque genéricos e ordinários. Tendo sido
prestados os serviços, não procede o pedido de restituição do preço
pago [...]26 (grifos acrescidos).

De outro modo, também o agente público que procede com a


contratação destas atividades, por inexigibilidade de licitação, sem a
comprovação dos requisitos legais, pode ser incurso nas penalidades
previstas na Lei de Improbidade Administrativa – Lei nº 8.429/92 –, em
razão da violação às regras da licitação e, principalmente, pela violação
aos princípios que regem a atuação em âmbito público, prevista essa
possibilidade pelo caput do art. 11 da citada lei.

Veja-se, por ser assaz elucidativo à temática ora sob exame, o teor
de mais um aresto judicial, este, por sua vez, advindo do Colendo Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
25 DI PIETRO, op. cit., p. 395.
26 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul - AC: 70064476526 RS, Relator: Maria Isabel de
Azevedo Souza, Data de Julgamento: 28/05/2015, Vigésima Segunda Câmara Cível, Data de Publicação:
Diário da Justiça do dia 01/06/2015.
360 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 367-0, jul./set. 2017

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE


ADMINISTRATIVA. MALFERIMENTO ÀS REGRAS DE
CONTRATAÇÃO COM INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO.
VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DE LEGALIDADE E MORALIDADE.
ATO DE IMPROBIDADE CONFIGURADO NO ART. 11, CAPUT,
DA LEI 8.429/92. 1. A Lei de Improbidade Administrativa aplica-se
a agentes políticos municipais, tais como Prefeitos, ex-Prefeitos e
Vereadores. Posicionamento pacífico no Superior Tribunal de Justiça
e nesta Corte. 2. A conversa entre partes envolvidas - e gravada
por uma delas - foram integralmente degravadas pelo Ministério
Público (fls. 257v., 376, 525/561), possibilitando amplo acesso a todas
as partes envolvidas no processo. Ademais, as partes não negaram a
veracidade das conversas, e algumas delas, inclusive, argumentaram,
a título de tese defensiva, que se referiam a contrato diverso do que
está em discussão no presente feito. Dessa forma, não há se falar em
nulidade por cerceamento de defesa, restando desacolhida a prefacial.
3. Sobre a preliminar de ilegalidade da captação ambiental existente
nos autos (fls. 257v., 376, 525/561), não procede. In casu, a captação
ambiental foi realizada por um dos interlocutores sem o conhecimento
do outro, não se tratando de gravação de conversa alheia. Ademais, as
gravações não atingiram direito fundamental à intimidade e privacidade
do participante insciente, ou direito à sua liberdade de expressão.
Nesse sentido, o STJ já se pronunciou: “Irretocável, portanto, o
acórdão recorrido ao consignar que a gravação ambiental feita sem
o consentimento de um dos interlocutores, quando ausente causa de
sigilo, não pode ser tida como ilícita, pois _a questão não envolve
essencialmente a inviolabilidade das comunicações, mas a proteção da
privacidade do indivíduo, que não é um direito absoluto, devendo ser
cedido diante do interesse público e social” (Processo RE nos EDcl no
RHC 34733 Relatora Ministra LAURITA VAZ Data da Publicação
DJe 07/05/2015). Assim como STF, RE 583937 QO-RG, Relator
Ministro Cezar Peluso, DJ em 18-12-2009. 4. Os atos de improbidade
descritos no artigo 11 da Lei de Improbidade não pressupõem prejuízo
econômico ao erário, contudo, reclamam a presença do dolo, que, in casu,
restou comprovado [...]27 (grifos acrescidos).

Assim, justifica-se que o procedimento licitatório seja considerado


irregular, em vista da afronta à Lei nº 8.666/93, que rege o procedimento
da licitação, fato que enseja a aplicação de penalidades pelos órgãos

27 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70069110203, Segunda Câmara
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Barcelos de Souza Junior, Julgado em 26/10/2016
Wilker Jeymisson Gomes da Silva
Luciana Vilar de Assis 361

de fiscalização assim como eventuais sanções previstas na legislação


administrativa atinente, inclusive sendo considerada como crime a
inexigibilidade fora das hipóteses legais ou sua realização sem a observância
dos requisitos formais, nos termos do art. 89 da Lei nº 8.666/93, infração
apenável com detenção de três a cinco anos e multa.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para o enquadramento legal da inexigibilidade de licitação, deve


ser robustamente comprovada a existência da notória especialização da
empresa ou do profissional a ser contratado diretamente, bem como
deve se comprovar a singularidade da parte que se contrata em relação
às demais, embora não seja necessária, todavia, a exclusividade, a fim de
tornar legítimo o afastamento do dever de licitar, constitucionalmente
imposto à Administração Pública.

Diante do exposto, é de se concluir pela possibilidade de


inexigibilidade de licitação que busca a contratação de escritórios de
advocacia, desde que presentes os pressupostos expressos na lei, sob pena
de, agindo o de modo contrário, não realizando a licitação quando viável
a competição, incorrer nas sanções previstas na Lei de Licitações e na Lei
de Improbidade Administrativa.

É recomendável, portanto, quanto às partes interessadas em se


submeter a estes certames públicos, acostar ao procedimento administrativo
todos os documentos que comprovem a singularidade de seus serviços
e a notória especialização que possui, a fim de legitimar a escolha da
Administração Pública e não ter, eventualmente, o contrato rescindido, em
razão de ilegalidade na contratação, decretada pelos órgãos de controle,
como o Tribunal de Contas, por exemplo.

No que diz respeito ao Poder Público, por sua vez, este atuando
por meio de seus agentes, competentes para o exercício do mister que
lhes é atribuído, deve ser extremamente cauteloso quando da contratação
de escritórios de advocacia ou advogados por meio de inexigibilidade de
licitação, solidificando a escolha pela contratação direta, em qualquer
caso, por meio de documentos hábeis à comprovação dos pressupostos
necessários, exigindo-os do licitante.
362 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 02, 3. 367-0, jul./set. 2017

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo. Direito administrativo descomplicado. 22. ed. Rio


de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


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______. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis


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ou fundacional e dá outras providências. Disponível em: <http://www.
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julgador: Primeira Turma. Data de julgamento: 26 de agosto de 2014. Data
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Wilker Jeymisson Gomes da Silva
Luciana Vilar de Assis 363

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Recebido em: 02/05/2016
Aprovado em: 14/09/2016

A IDEIA DE RESPONSABILIDADE
CRIMINAL INDIVIDUAL INTERNACIONAL
PRESENTE NO ESTATUTO DE ROMA
THE IDEA OF INTERNATIONAL INDIVIDUAL CRIMINAL
RESPONSIBILITY UNDER THE ROME STATUTE

Wolney da Cunha Soares Júnior


Pós-Graduado em Direito Tributário, Ciências Penais e Direito Público,
respectivamente, pela PUC/MG, UNIDERP e UnB. Graduado em Direito pela
UFMG. Procurador Federal - PGF-AGU

Sumario: Introdução; 1 Direito Penal Internacional; 2 Direito


Internacional Penal E Crimes Internacionais; 3 Responsabilidade
Criminal Individual Internacional; 4 Possibilidades De Jurisdição
Pelo Tribunal Penal Internacional; 5 O Uso de Imunidades e a
Responsabilidade Criminal Individual Internacional; 5.1 Imunidades;
5.2 Tipos de Imunidades; 5.2.1 Imunidades Ratione Materiae e
Ratione Personae; 5.2.2 Imunidades Internacionais (International
Immunities); 5.2.3 Imunidades Diplomáticas e Consulares
(Diplomatic And Consular Immunities); 5.2.4 Imunidades de Estado
(Sovereign State Immunities); 5.3 A Imunidade Como Defesa Diante
do TPI; 6 Os Estados Não-Signatários do Estatuto de Roma e o
Exercício de Jurisdição Pelo TPI; 7 Conclusão; Referências.
366 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

RESUMO: Os crimes internacionais surgem de tratados celebrados entre


os Estados que condenam a prática de determinado ato e se comprometem
a combatê-los. Para tanto, o direito penal interno é de grande importância,
pois ele regulamenta essa repressão aos crimes internacionais no âmbito
de cada Estado. Pode, no entanto, ocorrer essa repressão por meio de
tribunais internacionais, como é o caso do Tribunal Penal Internacional,
cujo Estatuto de Roma institui uma verdadeira responsabilidade criminal
individual internacional. A vedação à utilização de imunidades perante
o TPI reflete a tendência do Direito Internacional de dar primazia à
responsabilidade criminal individual no caso de crimes internacionais,
não podendo ser esses últimos entendidos como tendo sido praticados
dentro da capacidade oficial de um agente do Estado. Não subsistem as
alegações de ilegalidade do TPI diante da possibilidade de exercer a sua
jurisdição sobre nacionais de Estados que não ratificaram o Estatuto
de Roma, inexistindo qualquer violação ao Direito costumeiro e ao
princípio do pacta tertiis, segundo o qual um tratado não poderia criar
obrigações para terceiros Estados. Afinal, aquele tribunal internacional
julga pessoas e não Estados.

PALAVRAS-CHAVE: Tribunal Penal Internacional. Imunidades.


Conselho de Segurança da ONU.

ABSTRACT: International crimes arise from treaties celebrated among


States to condemn the practice of certain acts. In this context, the national
criminal law is important to prevent international crimes within the
territory of each State party. However, it is also possible to prosecute
them in international tribunals, such as the International Criminal
Court - ICC, whose Rome Statute established indeed an international
individual criminal responsibility. The ICC prohibition on the use of
immunities reflects the tendency of international law to give primacy
to individual criminal responsibility for international crimes, which no
longer can be seen as merely official state acts. The claims regarding
the illegality of ICC, considering the possibility of its jurisdiction over
citizens of countries which have not ratified the Rome Statute, are
fallacious. There is neither a violation of the international customary
law nor the principle of tertiis pacta, according to which a treaty could
not create obligations to third States. Ultimately, the ICC judges people,
not states.

Keywords: Internacional Criminal Court. Immunities. United


Nations Security Council.
Wolney da Cunha Soares Júnior 367

INTRODUÇÃO

O Tribunal Penal Internacional (TPI) não foi criado ao acaso. Ele


surgiu após um período de amadurecimento da idéia de responsabilidade
individual internacional, de uma redefinição de soberania e da busca pela
sociedade internacional de um mecanismo que evite futuramente a prática dos
crimes internacionais cometidos ao longo de todo o século XX. A Organização
das Nações Unidas (ONU) contribuiu muito para o estabelecimento de um
Tribunal Penal Internacional, apesar de que, em alguns momentos, faltou
vontade política para a criação de instrumentos que viabilizassem a sua
criação. Isso se deve à divisão entre os Estados provocada pela Guerra Fria.
Em 1998, na conferência diplomática realizada na cidade de Roma, Itália,
foi elaborado o Estatuto do Tribunal Penal Internacional.
A partir de 1o de julho de 20021, a idéia de responsabilidade individual
internacional foi fortalecida com a criação do Tribunal Penal Internacional
em Haia, Países Baixos. O Brasil aprovou o Estatuto de Roma por meio
do Decreto Legislativo n. 112, de 7 de junho de 2002, e o promulgou
pelo Decreto n. 4388, de 25 de setembro de 20022. No entanto, para que
o Estatuto tenha eficácia interna plena, é necessário que se promulgue lei
que regulamente as normas contidas naquele instrumento. Devem, por
exemplo, ser cominadas penas para os crimes nele previstos.
Devido à crescente importância do Direito Internacional Penal com
a criação do TPI e devido também às obrigações assumidas pelo Brasil
com a ratificação do Estatuto de Roma, desenvolvemos o presente artigo
para discutir: a existência de uma responsabilidade criminal individual
internacional; as possibilidades de exercício de jurisdição pelo TPI e a
relação entre o TPI e o Conselho de Segurança da ONU; a vedação pelo
Estatuto de Roma do uso de imunidades perante o TPI; as críticas feitas
pelos opositores do TPI que alegam, por exemplo, existir uma violação
ao princípio pacta tertiis; e, por fim, as inúmeras dificuldades a serem
superadas por esse recente tribunal internacional para que ele possa se
consolidar no plano internacional.
1 DIREITO PENAL INTERNACIONAL

Antes de começarmos a estudar a responsabilidade criminal individual


internacional, é importante diferenciar o Direito Penal Internacional do
Direito Internacional Penal.

1 Data da entrada em vigor o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.


2 De acordo com site: <http://www.direitonet.com.br/doutrina/artigos/x/16/06/1606>. Acesso em: 1
maio 2016.
368 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

O Direito Penal Internacional pode ser conceituado como o conjunto


de normas do Direito Penal que regem a aplicação da lei penal no espaço, a
cooperação no âmbito penal entre países e também a extradição3. Conforme
é sabido, existem diversos princípios que podem ser adotados pelos Estados
para se determinar qual deles tem jurisdição sobre determinada conduta
tida como crime. São eles: princípio da territorialidade, da nacionalidade,
da defesa ou real e da jurisdição universal. Apesar de existirem essas
regras, em muitos casos, o que se observa é a existência de jurisdições
concorrentes, possuindo dois ou mais Estados jurisdição sobre determinado
fato. É importante mencionar que, para Eugenio Raúl Zaffaroni4, o Direito
Penal Internacional, na verdade, integraria o Direito Internacional Privado.

A noção de Direito Internacional Penal, no entanto, difere do


exposto acima. O objeto do presente artigo é a responsabilidade criminal
individual internacional, instituto que se encontra regido pelo Direito
Internacional Penal5, conforme se demonstrará logo a seguir.

2 DIREITO INTERNACIONAL PENAL E CRIMES INTERNACIONAIS

Diferentemente do Direito Penal Internacional, o Direito Internacional


Penal é um ramo do Direito Internacional Público, possuindo, portanto,
fontes semelhantes às deste último, em que condutas são proibidas (crimes
internacionais) e os Estados se obrigam a processar e julgar as pessoas
que as praticarem ou, se for o caso, entregá-las a tribunais internacionais.6

A noção de responsabilidade criminal individual internacional está


ligada à idéia de crimes internacionais. Por essa expressão, não se deve
entender aquele crime que produz efeitos no território de outro país ou mesmo
crimes transnacionais, em que a atuação de organizações que se poderiam
3 Para uma definição de Direito Penal Internacional ver NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal.
Introdução e Parte Geral. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, v.1, p. 84; MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual
de Direito Penal. Parte Geral. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2001, v. 1, p. 29; ZAFFARONI, Eugenio Raúl;
PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 5. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004. p.147-152.
4 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte
Geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.147-152.
5 Para alguns autores o nome adequado seria Direito Penal Internacional. No entanto, por acreditarmos
que se trata de um ramo do Direito Internacional Público, não se confundindo com o Direito Penal
Internacional, parece-nos que a primazia do nome Direito Internacional Penal é a mais adequada.
6 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. Introdução e Parte Geral. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 1998,
v. 1, p. 84; MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. 17. ed. São Paulo: Atlas,
2001, v.1, p. 29; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal
Brasileiro. Parte Geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.147-152.
Wolney da Cunha Soares Júnior 369

dizer criminosas atuam em vários Estados, não respeitando fronteiras, como


é o caso do tráfico de drogas. Um crime internacional7 é uma violação de
Direito Internacional em que se tem, portanto, uma afronta a um interesse
da sociedade internacional, devendo os Estados agir para restabelecerem a
ordem rompida. Trata-se de uma conduta praticada por pessoa física e, dessa
forma, tem-se a responsabilidade criminal de um indivíduo, diferentemente
da idéia de responsabilidade do Estado. A partir de tratados internacionais e
também do Direito Internacional costumeiro, os Estados se vêem obrigados
a tratar determinada conduta como criminosa, devendo processar e julgar
os indivíduos que as praticarem ou, se existir um estatuto de um tribunal
internacional, deve o Estado entregá-lo a este tribunal8.

Atualmente, no Direito Internacional, tem prevalecido o princípio


da legalidade estrita em detrimento da ideia de substantial justice (justiça
substancial ou material), segundo a qual uma conduta considerada danosa
para a sociedade deve ser punida, mesmo que tenha sido cometida antes
de sua proibição9.

Devido ao princípio da legalidade, há quem defenda que só é possível


se falar em crime internacional quando existir um tratado internacional,
fonte primária do Direito Internacional, que expressamente condene a
conduta em questão10. Assim, não se enquadraria na definição de crime
internacional a conduta proibida pelo Direito Internacional costumeiro,
apesar de existir também a obrigação de um Estado de julgar e punir
aquele que a praticar.

O direito interno tem grande destaque na eficácia do Direito


Internacional Penal, pois, a partir de tratados internacionais que obrigam
um Estado a condenar determinada conduta, esse Estado utilizará seu
direito penal interno para criminalizar, tipificando essa conduta11. O Estado

7 KARPETZ, I.I.. International Criminal Law and International Crimes. Touro Journal of Transnational Law,
Vol.1, p.325-334, Spring 1990; CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University
Press, 2003, p. 23-25; WISE, Edward M.. International Crimes and Domestic Criminal Law, Report Submitted
by the American National Section, AIDP. DePaul Law Review, v. 38, p. 923-966, July 1989.
8 CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003. p.25-26.
9 WISE, Edward M.. International Crimes and Domestic Criminal Law, Report Submitted by the
American National Section, AIDP. DePaul Law Review, v. 38, p. 934, July 1989 ; CASSESE, Antonio.
International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003. p. 139.
10 WISE, Edward M. International Crimes and Domestic Criminal Law, Report Submitted by the
American National Section, AIDP. DePaul Law Review, v. 38, p.. 934, July 1989.
11 WISE, Edward M. International Crimes and Domestic Criminal Law, Report Submitted by the
American National Section, AIDP. DePaul Law Review, v. 38, p. 932, July 1989.
370 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

agiria, então, por meio de seu próprio direito interno, mas em virtude de
uma obrigação internacional.

São exemplos de crimes internacionais: os crimes de guerra, crimes


contra a humanidade, genocídio, terrorismo e pirataria12.

Existem, no entanto, divergências quanto aos crimes acima


mencionados e outros tantos. Para o ex- presidente do International
Criminal Tribunal for the former Yugoslavia (ICTY), Antonio Cassese, a
pirataria não seria um crime internacional, apesar de ser um exemplo de
jurisdição universal, podendo todos os Estados processar e julgar seus
praticantes13. Quanto ao terrorismo, tema de grande relevância nos dias
de hoje, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou no dia 13 de
abril do ano de 2005, após sete anos de negociações, uma convenção para
combater o terrorismo nuclear. No disposto nessa convenção, existe um
pedido expresso para que cada Estado-membro da ONU “classifique como
infração penal nas legislações nacionais os crimes mencionados, e que os
reprima com penas proporcionais à gravidade dos fatos”14. Analisando o
disposto acima, pode-se entender melhor como o Direito Internacional
Penal funciona e também como ele interage com o Direito Penal interno.

3 RESPONSABILIDADE CRIMINAL INDIVIDUAL INTERNACIONAL

O conceito de responsabilidade criminal individual internacional


está associado ao de crimes internacionais. Encontrando-se esse último
no Direito Internacional Penal, conforme evidenciado anteriormente,
conclui-se que também a responsabilidade criminal individual internacional
é instituto daquele ramo do Direito Internacional Público. Dessa forma,
aquele que comete um crime internacional deve ser responsabilizado
penalmente, e a forma de se fazer isso é por meio do Direito Penal interno
ou pelo exercício de jurisdição por um tribunal internacional competente
para tanto, seja por meio de um tratado ou por resolução do Conselho de
Segurança da ONU15.

12 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. 17. ed. São Paulo: Atlas, v. 1, 2001. p. 29;
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI,José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro.Parte Geral. 5.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 149.
13 CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003. p. 24.
14 CONVENÇÃO contra o terrorismo nuclear. Estado de Minas, Belo Horizonte, 14 de abril de 2005. Seção
internacional, p. 23.
15 Por meio das resoluções 808 e 955, o Conselho de Segurança criou nos anos de 1993 e 1994 os tribunais
internacionais ad hoc para a ex-Iugoslávia (ICTY) e para Ruanda (ICTR), respectivamente.
Wolney da Cunha Soares Júnior 371

Na história é possível se identificar as origens do que hoje se denomina


responsabilidade criminal individual internacional. Crimes de guerra, por
exemplo, têm sido reconhecidos e repudiados pela sociedade internacional
há muito tempo, sendo aplicadas sanções penais aos seus responsáveis.

Porém, verifica-se, desde a antiguidade, que muitas vezes o que


ocorre é a exposição dos vencidos à mercê dos vencedores. Um exemplo
dessa arbitrariedade dos vitoriosos, segundo Ana Luiza Almeida Ferro, é
o caso dos espartanos e seus aliados que, quando derrotaram a esquadra
ateniense em Aegispótamos, julgaram e condenaram à morte os vencidos
por crimes de guerra16.

Em 1474 ocorreu um outro precedente de julgamento do vencido pelo


vencedor. Alguns autores, como o Prof. M. Cherif Bassiouni, acreditam que
nessa época foi criado o primeiro Tribunal Internacional ad hoc. Na ocasião
o governador da cidade de Breisach, situada atualmente na Alemanha, Sir.
Peter Von Hagenbach, foi julgado e condenado por vinte e sete juízes do
sagrado império romano por suas violações “às leis de Deus e dos homens
por permitir que suas tropas estuprassem e matassem civis inocentes e
pilhassem suas propriedades” 17. Esse Tribunal não apenas condenou o
governador de Breisach, mas também não reconheceu o uso de defesa
baseada em ordens superiores18.

Dando um salto na história, mais recentemente a sociedade


internacional presenciou o horror dos crimes de guerra e a barbárie
do homem durante a Grande Guerra, como ficou conhecida a Primeira
Guerra Mundial (1914 – 1918), apesar de sua menor extensão em relação
à Segunda Guerra Mundial. Assim, com o fim do conflito, o primeiro a ser
caracterizado como “guerra total”, o temor da sociedade internacional em
ver aqueles crimes serem cometidos novamente no futuro se transformou em
vontade de se julgarem os acusados de violar o direito e os costumes de guerra.

16 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p.
22; JUNIOR, Wolney da Cunha Soares. Breve análise das origens históricas do Tribunal Penal
Internacional. Artigo apresentado no II Congresso Brasileiro de Direito Internacional, em Curitiba, de
25 a 29 de agosto de 2004, sob coordenação do Prof. Dr. Wagner Menezes e publicado nos Anais do 2º
Congresso Brasileiro de Direito Internacional, Vol. II, pela editora Juruá.
17 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p.
23; KIM, Young Sok. The Cooperation of a State to Establish an Effective Permanent International
Criminal Court. Journal Of International Law and Practice, p. 158, Spring 1997.
18 O’BRIAN, John. International Law. London: Cavendish Publishing Limited, 2002. p. 785.
372 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

De acordo com o Prof. John O’Brian19, essa vontade de se julgarem


criminosos de guerra após a Primeira Guerra Mundial pode ser entendida
também a partir da concepção de guerra total, em que todos os recursos de
um país são destinados à sua vitória no conflito (mobilização da economia,
criação de impostos, recrutamento obrigatório para as forças armadas
etc...). Dessa forma, após os enormes esforços despendidos por um país
em uma guerra total, é natural que esse país queira responsabilizar os
vencidos de todas as formas possíveis. Obviamente os únicos acusados
pelas atrocidades cometidas durante o conflito de 1914 a 1918 foram os
que perderam a guerra, os alemães.

O Tratado de Paz de Versailles, assinado após a Conferência de Paris


de 1919, significou exatamente esta vontade da sociedade internacional de
responsabilizar aqueles acusados de cometer crimes de guerra20.

O Tratado de Versailles, em seu art. 227, previa a criação de um


tribunal ad hoc para julgar exclusivamente o Kaiser alemão Wilhelm II21. O
Kaiser havia sido acusado de “ofensa suprema contra a moral internacional
e a autoridade sagrada dos Tratados”. Apesar de o art. 227 não ter sido
aplicado, ele foi importante, pois, pela primeira vez existiu uma previsão
legal expressa responsabilizando penalmente um Chefe de Estado por
crimes de guerra22. Essa previsão legal se mostra muito importante ao se
considerar o momento em que foi estabelecida. Naquela época a idéia de
soberania nacional era muito respeitada e a responsabilidade individual
internacional de oficiais do Estado, ainda mais um Chefe de Estado, era
tida como uma violação ao conceito de soberania23.

O Kaiser Wilhelm II se asilou na Holanda com o término da guerra,


o que fez com que os países Aliados pedissem sua extradição. Contudo, a
Holanda se recusou a extraditá-lo alegando que não assinara o Tratado de

19 O’BRIAN, John. International Law. London: Cavendish Publishing Limited, 2002. p. 785.
20 LIPPMAN, Matthew. Nuremberg: Forty-Five years Later. Connecticut journal Of International Law, v. 7,
p. 12, Fall 1991.
21 BASSIOUNI, M. Cherif. Establishing an International Criminal Court: Historical Survey. Military
Law Review, v. 149, p. 53, Summer 1995; FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 30; CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York:
Oxford University Press, 2003. p. 327-328; ARMSTEAD JR., J. Holmes. The International Criminal
Court: History, Development and Status. Santa Clara Law Review, v. 38, p. 746, 1998.
22 CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003. p. 329.
23 LIPPMAN, Matthew. Nuremberg: Forty-Five years Later. Connecticut journal Of International Law, v. 7,
p. 7, Fall 1991.
Wolney da Cunha Soares Júnior 373

Versailles e não estava obrigado por ele24. Sabe-se, entretanto, que podem
ter havido outras razões para a não extradição do Kaiser pela Holanda: a
realeza européia não queria a extradição, além disso, o Kaiser era primo
do Rei holandês25. A não extradição do Kaiser, somada a outros fatores,
contribuiu para que os países Aliados não exigissem que a Alemanha
entregasse os seus soldados acusados de terem cometido Crimes de Guerra,
de acordo com a Commission on the Responsibility of the Authors of the War
and on Enforcement of Penalties26.

Os arts. 228 e 229 do Tratado de Versailles previam a competência


dos Tribunais dos países Aliados para julgar os oficiais alemães acusados
de serem criminosos de guerra. Mas os Aliados acabaram por admitir que
esses julgamentos ocorressem no Reichsgericht (Suprema Corte da Alemanha
naquela época), situado na cidade de Leipzig27. Uma lei alemã de 28 de
dezembro de 1919 atribuiu competência ao Reichsgericht para julgar, em
primeira e segunda instâncias, os oficiais alemães tidos como criminosos.
Dos 895 nomes constantes na lista preparada pela Comissão, os Aliados
pediram que 45 fossem julgados. O Julgamento de Leipzig foi um fracasso
em termos de repressão aos crimes de guerra. Esses julgamentos que se
procederam após a Primeira Guerra Mundial e também os notórios tribunais
de Nurembergue e Tóquio são considerados por muitas pessoas como outros
exemplos da justiça promovida pelos vitoriosos de um conflito armado.

Devido a esses fracassos em se processarem criminosos de guerra,


muitos juristas passaram a defender a idéia de se criarem mecanismos
institucionais para a aplicação do Direito Internacional28.

Em 1920, o Advisory Committe of Jurists - criado pela Sociedade


das Nações (SDN) para planejar uma Permanent Court of Internacional
Justice - sugeriu a criação também de uma High Court of Criminal Justice.
A Assembléia da Sociedade das Nações rejeitou a proposta, alegando ser

24 LIPPMAN, Matthew. Nuremberg: Forty-Five years Later. Connecticut journal Of International Law, v. 7,
p. 10, Fall 1991.
25 KIM, Young Sok. The Cooperation of a State to Establish na Effective Permenent International
Criminal Court. Journal Of International Law and Practice, p. 158, Spring 1997.
26 Essa foi uma das Investigatory Commissions mencionadas acima.
27 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 31; KIM,
Young Sok. The Cooperation of a State to Establish na Effective Permenent International Criminal
Court. Journal Of International Law and Practice, p. 158, Spring 1997.
28 LIPPMAN, Matthew. Nuremberg: Forty-Five years Later. Connecticut journal Of International Law, v. 7,
p. 12, Fall 1991.
374 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

a idéia prematura29. O renomado jurista brasileiro Clóvis Beviláqua foi


um dos membros do Advisory Committe of Jurists, sendo posteriormente
substituído por Raul Fernandes30.

O International Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia (ICTY)


e o International Criminal Tribunal for Rwanda (ICTR), estabelecidos em
1993 e 1994 a partir das Resoluções 808 e 955 do Conselho de Segurança,
respectivamente, apesar de serem Tribunais ad hoc, contribuíram para o
desenvolvimento de um Direito Internacional Penal e para um Tribunal
Penal Internacional permanente31.

Em 1998, por exemplo, houve a primeira condenação de uma pessoa


por um tribunal internacional pelo crime de genocídio32. A condenação de
Jean-Paul Akayesu se deu diante do ICTR, sendo que antes dele o Tribunal
de Nurembergue não havia condenado ninguém por esse crime, apesar de
inúmeras evidências da prática de genocídio pelos Nazistas. Além disso,
com os tribunais ad hoc ICTY e ICTR, passou a existir uma jurisprudência
que ajudaria na interpretação de crimes previstos no Estatuto do Tribunal
Penal Internacional.

Ainda em 1998, durante a conferência diplomática realizada na cidade


de Roma, Itália, foi elaborado o Estatuto do Tribunal Penal Internacional,
que passou a existir formalmente em 1o de Julho de 2002, após a sua
sexagésima ratificação.

Os Estados signatários do Estatuto de Roma, em seu preâmbulo,


afirmam que:

Crimes de maior gravidade, que afetam a comunidade internacional


no seu conjunto, não devem ficar impunes e que a sua repressão deve
ser efetivamente assegurada através da adoção de medidas em nível
nacional e do reforço da cooperação internacional33.
29 CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003, p. 328;
LIPPMAN, Matthew. Nuremberg: Forty-Five years Later. Connecticut journal Of International Law, v. 7,
p. 13, Fall 1991; FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg. Belo Horizonte: Mandamentos,
2002. p. 31-32.
30 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 31.
31 CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003. p. 340.
32 CHARNEY, Jonathan. Progress in International Criminal Law? American Journal of International Law,
v. 93, p. 452-455, april, 1999.
33 BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002, publicado no Diário Oficial da União de 26 de setembro
de 2002.
Wolney da Cunha Soares Júnior 375

Também no preâmbulo, dizem estar determinados a acabar com a


impunidade daqueles que praticarem esses crimes, prevenindo dessa forma o
seu cometimento no futuro. Lembram, inclusive, que é dever de todo Estado
exercer sua jurisdição sobre os responsáveis por crimes internacionais.
Assim, a idéia de responsabilidade criminal individual internacional está
presente desde o início no tratado que criou o Tribunal Penal Internacional.

Nos artigos 1º e 25 (1) do mencionado instrumento, dispõe-se que


a jurisdição do TPI se dá sobre pessoas naturais. Conforme se verificará
posteriormente, isso impossibilita que haja uma violação ao princípio do
pacta tertiis, como defendem alguns doutrinadores ao analisarem os efeitos
do Estatuto de Roma sobre Estados não-membros. O art. 25 (4), por sua
vez, disciplina a diferença entre responsabilidades individual e de Estado.
Trata-se de dois institutos autônomos. A responsabilidade de um Estado
não implica na responsabilidade individual e tão pouco depende dela para
se configurar. Um mesmo ato pode resultar em ambas as responsabilidades:
a de um Estado e a de um indivíduo34. O artigo supramencionado reflete
exatamente isso, conforme se percebe de sua transcrição ipsis litteris abaixo:

O disposto no presente Estatuto sobre a responsabilidade criminal


das pessoas físicas em nada afetará a responsabilidade do Estado, de
acordo com o direito internacional.

Por último no tocante às disposições do Estatuto de Roma pertinentes


à responsabilidade individual, prescreve o art. 26 que somente as pessoas
maiores de 18 anos ao tempo da prática do crime podem ser julgadas pelo TPI.

4 POSSIBILIDADES DE JURISDIÇÃO PELO TRIBUNAL PENAL INTER-


NACIONAL

Observando o art. 12 do tratado que criou o tribunal, percebem-se


duas condições para que o TPI possa exercer sua jurisdição:

1) o crime deve ter sido cometido no território de um Estado -


parte; ou
2) o criminoso deve ser nacional de um Estado - parte.

34 NOLLKAEMPER. André. Concurrence between individual responsibility and state responsibility in


international law. International and Comparative Law Quaterly, v. 52, p 61, july 2003.
376 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

É possível, portanto, que um nacional de Estado que não tenha


ratificado o Estatuto de Roma seja julgado por essa corte internacional.
Isso aconteceria se o crime fosse cometido no território de um país membro
do referido Estatuto. Isso tem sido alvo de fortes críticas pelos países que
rejeitam o TPI. Essa questão é de grande importância, inclusive, pelo fato
de o Estatuto negar qualquer imunidade a oficiais de Estado. Como se
vê, configurando-se as condições para o exercício de jurisdição do TPI,
torna-se impossível a um país não-signatário afastar a jurisdição do TPI
sobre os seus nacionais. Isso certamente não agrada em nada a esses países.

Sendo o caso remetido ao TPI pelo Conselho de Segurança da ONU,


quando ele atuar em conformidade ao capítulo VII da carta das Nações
Unidas (que trata da ação em caso de ameaça à paz, ruptura da paz e ato
de agressão), dispõe os artigos 12(2) e 13(b) que pode o tribunal julgar
situações em que a pessoa seja nacional de Estado não-signatário, mesmo
tendo ocorrido em território de Estado não-signatário. Não obstante,
entendemos que o principio da irretroatividade dos tratados ainda assim
deve ser respeitado. Dessa forma, o Conselho de Segurança não pode
submeter ao TPI algum crime internacional que tenha ocorrido antes
de 1º de julho de 2002, data da entrada em vigor do Estatuto de Roma.
O art. 11(1) preceitua que “o Tribunal só terá competência relativamente
aos crimes cometidos após a entrada em vigor do presente Estatuto.”35.

A partir do momento que Estados não-signatários do Estatuto de


Roma cogitaram do exercício de jurisdição pelo TPI sobre seus nacionais,
eles passaram a buscar mecanismos legais para evitar que isso ocorra no
futuro. Os Estados Unidos36, por exemplo, aproveitaram à brecha contida
no art. 16 do Estatuto de Roma e conseguiram aprovar no Conselho de
Segurança a resolução 1422 (2002).

O art. 16 do referido Estatuto assim dispõe:

Adiamento do Inquérito e do Procedimento Crimina l


Nenhum inquérito ou procedimento crime poderá ter início ou
prosseguir os seus termos, com base no presente Estatuto, por um
período de doze meses a contar da data em que o Conselho de Segurança
35 BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002, publicado no Diário Oficial da União de 26 de
setembro de 2002.
36 EL ZEIDY, Mahamed. The United States dropped the atomic bomb o f art. 16 of the ICC statute:
Security Council power of deferrals and resolution 1422. Vanderbilt Journal of Transnational Law, v.
35, p. 1503-1544, November 2002; Stahn, The Ambiguities of Security Council Resolution 1422 (2002).
European Journal of International Law, v. 14, n. 1, p. 85-104, 2003.
Wolney da Cunha Soares Júnior 377

assim o tiver solicitado em resolução aprovada nos termos do disposto


no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas; o pedido poderá ser
renovado pelo Conselho de Segurança nas mesmas condições37.

A resolução 1422 (2002) faz referência ao art. 16 do Estatuto de


Roma ao dispor que o Conselho de Segurança:

1. Requer ao TPI, em conformidade com o disposto no art. 16 do


Estatuto de Roma, que esse tribunal, por um período de 12 meses a
contar de 1º de julho de 2002, interrompa ou não comece qualquer
investigação ou processo atinente a operações estabelecidas ou
autorizadas pelas Nações Unidas em que tenham sido praticados
atos ou omissões de oficiais de um Estado não-signatário do Estatuto
de Roma, a não ser que o Conselho de Segurança assim permita;
2. Expressa a intenção de renovar, nas mesmas condições e todo
ano, no dia 1º de julho, o pedido contido no parágrafo 1º enquanto o
Conselho de Segurança achar necessário38.

No dia 12 de julho de 2003, o Conselho de Segurança da ONU


editou a resolução 1487, que afastava a jurisdição do TPI de forma geral
e nos mesmos termos que a resolução 1422. Posteriormente, o Conselho
de Segurança, no dia 1º de agosto de 2003, através da resolução 1497,
autorizou o envio de tropas à Libéria a fim de conter um conflito que
já havia retirado as vidas de milhares de inocentes e ameaçava a paz e
estabilidade do continente africano. Nos termos do parágrafo 7º dessa
resolução, o Conselho de Segurança:

Decide que os oficiais de qualquer Estado não-signatário do Estatuto


de Roma ficam sob a jurisdição exclusiva desse Estado por quaisquer
atos ou omissões relacionados à força multinacional ou à força de

37 BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002, publicado no Diário Oficial da União de 26 de


setembro de 2002.
38 Tradução feita pelo autor do original:
“1. Requests, consistent with the provisions of Article 16 of the Rome Statute, that the ICC, if a case
arises involving current or former officials or personnel from acontributing State not a Party to the
Rome Statute over acts or omissions relating to a United Nations established or authorized operation,
shall for a twelve-month period starting 1 July 2002 not commence or proceed with investigation or
prosecution of any such case, unless the Security Council decides otherwise;
2. Expresses the intention to renew the request in paragraph 1 under the same conditions each 1 July for
further 12-month periods for as long as may be necessary”.
378 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

estabilização das Nações Unidas na Libéria, a não ser que essa jurisdição
exclusiva seja abdicada expressamente pelo Estado39.

Dessa forma, as resoluções 1422 (2002), 1487 (2003) e 1497 (2003), e


outras editadas pelo Conselho de Segurança, mostram que o TPI enfrentará
muitas dificuldades antes de consolidar sua jurisdição definitivamente.

5 O USO DE IMUNIDADES E A RESPONSABILIDADE CRIMINAL INDI-


VIDUAL INTERNACIONAL

5.1 Imunidades

Primeiramente, é necessário conceituar imunidade. Após a leitura de


diversos autores40, chegamos à conclusão de que se trata de uma possível
defesa a ser utilizada diante de um tribunal, seja para demonstrar que
determinado crime não é atribuído a uma pessoa (impedindo, às vezes,
a própria formação desse crime) ou que o foro em que foi ajuizada a ação
não possui competência para decidir a questão. O primeiro caso, portanto,
é verdadeira defesa substantiva (material), pois a própria existência do
crime é colocada sob suspeita. O segundo tipo de imunidade pode ser
entendido como uma defesa processual (formal), pois se discute qual o
foro competente para julgar o mérito. Diante do exposto, é visível que o
uso de imunidade pode resultar na impossibilidade de se responsabilizar
criminalmente uma pessoa acusada de ter cometido um crime internacional.

39 Tradução feita pelo autor do original:


“7. Decides that current or former officials or personnel from a contributing State, which is not a party
to the Rome Statute of the International Criminal Court, shall be subject to the exclusive jurisdiction
of that contributing State for all alleged acts or omissions arising out of or related to the Multinational
Force or United Nations stabilization force in Liberia, unless such exclusive jurisdiction has been
expressly waived by that contributing State”.
40 O’BRIAN, John. International Law. London: Cavendish Publishing Limited, 2002, p. 263-294; O’NEILL,
Kerry Creque. A new customary law of head of state immunity? Hirohito and Pinochet. Stanford
Journal of International Law, v. 38, p. 289-317, Summer 2002; KOLLER, David S. Immunities of foreign
ministers: paragraph 61 of Yerodia judgment as it pertains to the Security Council and the International
Criminal Court. American University International Law Review, v. 20, p. 7-42, 2004; TOMONORI,
Mizushima. The individual as beneficiary of the state immunity: problems of the attribution of ultra
vires conduct.Denver Journal of International Law and Policy, v. 29, p. 261-287, Summer/Fall 2001;
CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, p. 264-273,
2003; CASSESE, Antonio. crimes? Some comments on the Congo v. Belgium case. European Journal of
International Law, v. 13, p. 857, 2002; CAPLAN, Lee M. State immunity, human rights and jus cogens:
a critique of the normative hierarchy theory. American Journal of International Law, v. 97, p. 741-781,
October 2003; MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 413-
419; BROWER, Charles H. International Immunities: some dissident views on the role of the municipal
courts.Virginia, Journal of International Law, v. 42, p. 1-92, Fall 2000.
Wolney da Cunha Soares Júnior 379

Mas antes de abordarmos esse assunto, para um melhor entendimento do


que são imunidades, parece-nos de grande valia a análise das diferentes
classificações de imunidades, bem como de suas justificativas (ratios).

5.2 Tipos de imunidades

No plano internacional existem diferentes tipos de imunidades, que não


se confundem com as chamadas imunidades parlamentares, que são atribuídas
aos mandatários políticos de um país (deputados e senadores) e são regidas
exclusivamente pelo direito interno. No caso do Brasil, por exemplo, as imunidades
parlamentares podem ser formais ou materiais41. Estas impedem que os crimes
contra a honra (injúria, calúnia e difamação) venham a se formar, enquanto que
aquelas conferem ao detentor de mandato político a prerrogativa de só poder ser
preso em caso de flagrante delito de crime inafiançável e também estabelecem
a possibilidade de sustação do processo penal contra o senador ou deputado por
decisão da Casa do Congresso Nacional à qual aquele se encontra vinculado, ou
seja, Senado ou Câmara dos Deputados, respectivamente42.

Conforme já foi dito, no Direito Internacional Público existem


diferentes tipos de imunidades. Uma possível classificação das imunidades
existentes é a distinção entre imunidades ratione materiae (ou funcionais) e
ratione personae (ou pessoais). Existem, ainda, as chamadas sovereign state
immunities, diplomatic and consular immunities e international immunities.

5.2.1 Imunidades ratione materiae e ratione personae

As imunidades ratione materiae, conhecidas no idioma inglês como


functional immunities, possuem dois pontos centrais como justificativa:

1) o princípio da igualdade entre os Estados soberanos, não podendo


um Estado julgar os atos praticados e as atividades desenvolvidas
por outro Estado;

2) o fato de que certas condutas praticadas por um indivíduo (oficial


de um Estado) são atribuídas ao Estado que ele representa e
não à pessoa que os realizou43.

41 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 413- 419.
42 Ver art. 53 da CRFB.
43 KOLLER, David S. Immunities of foreign ministers: paragraph 61 of Yerodia judgment as it pertains
to the Security Council and the International Criminal Court. American University International Law
Review, v. 20, p.27-28, 2004.
380 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

As imunidades ratione personae, por sua vez, valem-se da idéia de


que certas pessoas (chefes de Estado, diplomatas, ministros das relações
exteriores) para que possam desempenhar suas funções livres de interferência
de terceiros Estados, necessitam de imunidades44. Tradicionalmente, a
imunidade ratione personae não beneficia o chefe de governo, a não ser
que ele cumule outra função, como a de chefe de Estado ou ministro das
relações exteriores45, por exemplo. No entanto, ao chefe de governo é
reconhecida a imunidade material.

Diz-se que a imunidade material continua mesmo depois de


terminado o mandato do oficial do Estado que praticou o ato. Isso se
justifica porque, dada a natureza do ato, por ficção, ele é atribuído ao
Estado. Por isso se diz que, caso seja alegada essa imunidade perante um
tribunal, trata-se de verdadeira defesa substantiva.

A imunidade pessoal, por sua vez, pode ser alegada apenas durante
o período de tempo em que o oficial de Estado estiver ocupando o seu
cargo. A imunidade ratione personae protege, momentaneamente, o agente
do Estado não só quanto aos seus atos oficiais, mas também aqueles
praticados por ele em seu âmbito privado46. Se não fosse assim, um chefe
de Estado, por exemplo, poderia se ver vítima de uma ação judicial quando
se encontrasse em viagem particular no estrangeiro. Essa ação poderia ser
ajuizada contra ele por motivos políticos e escusos. Para evitar exatamente
essas situações é que foram criadas essas imunidades. Alem disso, enquanto
durar o mandato desse oficial, essa imunidade cobre não apenas os seus
atos praticados posteriormente à sua nomeação, mas também aqueles
anteriores à sua posse no cargo. No entanto, imunidade pessoal não é
sinônima de impunidade. A partir do momento em que o oficial de Estado
não mais exercer as suas funções, ele poderá figurar como sujeito passivo
em uma ação judicial em um país estrangeiro.

As imunidades ratione materiae e ratione personae não se excluem,


podendo ser alegadas concomitantemente47.

44 CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003. p. 264.
45 DANILENKO, Gennady M.. The Statute of the International Criminal Court and third States. Michigan
Journal of International Law, v. 21, p. 469, Spring 2000.
46 TOMONORI, Mizushima. The individual as beneficiary of the state immunity: problems of the
attribution of ultra vires conduct. Denver Journal of International Law and Policy, v. 29, p. 263, Summer/
Fall 2001.
47 CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003. p. 267.
Wolney da Cunha Soares Júnior 381

5.2.2 Imunidades internacionais (international immunities)

As chamadas international immunities48 surgem da inadequação de


se aplicarem às Organizações Internacionais as imunidades de Estado ou
diplomáticas. Elas são conferidas aos funcionários de Organizações Internacionais
com a finalidade de lhes garantir a liberdade necessária para que cumpram com
suas obrigações, sem a interferência de quaisquer Estados, seja o da nacionalidade
do funcionário, seja o Estado sede da Organização Internacional ou seja o
Estado onde a Organização Internacional atue. Não seria possível a aplicação
de imunidades de Estado nesses casos dada à diferença de naturezas entre um
Estado soberano e uma Organização Internacional, que possuem papéis distintos
no cenário internacional. Anteriormente à criação das chamadas imunidades
internacionais, aplicavam-se às Organizações Internacionais as imunidades
diplomáticas. No entanto, essas não eram suficientes para garantir a segurança
de seus funcionários frente aos Estados de que eram nacionais. De acordo com o
autor Charles H. Brower49, agentes diplomáticos não possuem imunidade diante
da jurisdição de seu próprio país. Dessa forma, seria necessária a criação de um
mecanismo que protegesse os funcionários das Organizações Internacionais
da influência de seus Estados de origem, que poderiam ter os seus interesses
ameaçados pela atuação desses organismos.

As imunidades internacionais são regidas pelas disposições constantes


nos tratados internacionais que criam as Organizações Internacionais. Essas
imunidades são vistas à luz da functional necessity doctrine50 . De acordo com
essa doutrina, os funcionários desses organismos internacionais devem
receber imunidades na medida em que são necessárias à existência de uma
organização independente, propiciando a ela alcançar os objetivos para os
quais foi criada. Isso evitaria uma imunidade absoluta. Um exemplo disso
é o art. 105 da Carta das Nações Unidas que dispõe:

Os representantes dos membros das Nações Unidas e os funcionários


da Organização gozarão, igualmente, dos privilégios e imunidades
necessários ao exercício independente das suas funções relacionadas
com a Organização.51
48 BROWER, Charles H. International Immunities: some dissident views on the role of the municipal
courts.Virginia Journal of International Law, v. 42, p. 1-92, Fall 2000.
49 BROWER, Charles H. International Immunities: some dissident views on the role of the municipal
courts.Virginia, Journal of International Law, v. 42, p. 13, Fall 2000.
50 BROWER, Charles H. International Immunities: some dissident views on the role of the municipal
courts.Virginia, Journal of International Law, v. 42, p. 17, Fall 2000.
51 MENDES, Victor (Org). Direitos Humanos. Declarações e Convenções Internacionais. Lisboa: Vislis,
2002. p. 105.
382 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

5.2.3 Imunidades diplomáticas e consulares (diplomatic


and consular immunities)

As imunidades diplomáticas e consulares52 são regidas pelas Convenções


de Viena sobre relações diplomáticas (1961) e sobre relações consulares (1963),
respectivamente. A partir de uma análise de ambas as convenções acima
mencionadas é possível se saber que as prerrogativas conferidas ao diplomata
são mais amplas do que as conferidas ao cônsul. Essa diferença se justifica ao
se observar as funções que cabem a cada um53. O diplomata é o agente de um
Estado que o representa em outro Estado e está preocupado com as relações
políticas entre eles. O Cônsul, por sua vez, possui uma função que atende mais
a interesses de ordem privada, sendo responsável por manter um registro
dos nacionais que moram no exterior, realizar casamentos, fazer registros de
nascimentos etc... A justificativa para a imunidade conferida a diplomatas e
cônsules seria a mesma que é dada a uma embaixada54. Eles seriam verdadeiros
enclaves do Estado que os enviou. A imunidade dos diplomatas começa quando
ele é acreditado pelo Estado estrangeiro em que vai trabalhar55. Dessa forma,
ele possui imunidade apenas contra a jurisdição do Estado acreditante, não
podendo alegá-la perante terceiros Estados ou tribunais internacionais, salvo
no chamado jus transitus innoxii56, quando o diplomata necessita passar por
um outro país para chegar no Estado em que assumirá seus ofícios. Todos
os Estados enviam e recebem diplomatas, por isso esse tipo de imunidade é,
via de regra, muito respeitado57.

5.2.4 Imunidades de Estado (sovereign state immunities)

Outra importante imunidade é a sovereign immunity58 ou imunidade


de Estado. Ela surge do conflito entre os princípios da igualdade entre os
52 O’BRIAN, John. International Law. London: Cavendish Publishing Limited, 2002, p. 297-321; LIMA,
Sérgio Eduardo Moreira. Privilégios e imunidades diplomáticos. Brasília: Instituto Rio Branco: Fundação
Alexandre de Gusmão, 2002. 224p.
53 O’BRIAN, John. International Law. London: Cavendish Publishing Limited, 2002. p. 297 e 312.
54 KOLLER, David S. Immunities of foreign ministers: paragraph 61 of Yerodia judgment as it pertains to the
Security Council and the International Criminal Court. American University International Law Review, v. 20, p.
12, 2004.
55 KOLLER, David S. Immunities of foreign ministers: paragraph 61 of Yerodia judgment as it pertains
to the Security Council and the International Criminal Court. American University International Law
Review, v. 20, p. 11, 2004.
56 CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003. p. 266.
57 O’BRIAN, John. International Law. London: Cavendish Publishing Limited, 2002. p. 298.
58 O’BRIAN, John. International Law. London: Cavendish Publishing Limited, 2002. p. 263- 294; O’NEILL,
Kerry Creque. A new customary law of head of state immunity? Hirohito and Pinochet. Stanford Journal
Wolney da Cunha Soares Júnior 383

Estados e da exclusividade de jurisdição de um Estado sobre o seu território59.


Existe, inclusive, uma máxima em latim que muitos autores utilizam quando
se referem a ela: par in parem non habet imperium60. O conflito dos princípios
acima mencionados se mostra claro no Schooner Exchange v. Mcfaddon Case61,
julgado pela Suprema Corte dos EUA. No caso em questão, uma embarcação
comercial americana chamada Schooner Exchange foi tomada pela marinha
francesa de Napoleão no ano de 1812, sendo convertida em navio militar daquele
Estado. Quando esse navio se encontrava no mar territorial americano, seus
antigos proprietários americanos ajuizaram ação nos EUA para recuperar
sua embarcação. Por um lado, a justiça americana era competente para decidir
o caso, pois um Estado possui jurisdição exclusiva sobre o seu território. No
entanto, por outro lado, o próprio Direito Internacional Público retirava a
jurisdição dos EUA, que não poderiam julgar um ato praticado pela França,
Estado soberano. No caso Schooner Exchange v. Mcfaddon prevaleceu o princípio
de que os Estados soberanos são sujeitos de direito iguais entre si, dando força
à doutrina da imunidade soberana.

É interessante observar o desenvolvimento dessa doutrina de


imunidade soberana a partir das diferentes visões sobre a guerra ao longo
da história. Conforme mencionado anteriormente, desde a antiguidade já
existia a noção de crimes de guerra62. O Cristianismo, por exemplo, desde
quando esse se tornou a religião oficial do Império Romano no ano de 313
AC por decisão do Imperador Constantino, influenciou muitas tentativas
ao longo da história para se determinar em quais circunstâncias o uso
da força seria justificável63. Na Idade Média já se pensava em conceitos de
of International Law, v. 38, p. 289-317, Summer 2002; KOLLER, David S.. Immunities of foreign
ministers: paragraph 61 of Yerodia judgment as it pertains to the Security Council and the International
Criminal Court. American University International Law Review, v. 20, p. 7-42, 2004; TOMONORI,
Mizushima. The individual as beneficiary of the state immunity: problems of the attribution of ultra
vires conduct.Denver Journal of International Law and Policy, v. 29, p. 261-287, Summer/Fall 2001;
CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003, p. 264-273;
CASSESE, Antonio. When may senior state officials be tried for international crimes? Some comments
on the Congo v. Belgium case. European Journal of International Law, v. 13, p. 857, 2002; CAPLAN, Lee
M. State immunity, human rights and jus cogens: a critique of the normative hierarchy theory. American
Journal of International Law, v. 97, p. 741-781, October 2003.
59 CAPLAN, Lee M. State immunity, human rights and jus cogens: a critique of the normative hierarchy
theory. American Journal of International Law, v. 97, p. 745, October 2003; O’BRIAN, John. International
Law. London: Cavendish Publishing Limited, 2002. p. 294.
60 O’BRIAN, John. International Law. London: Cavendish Publishing Limited, 2002. p. 263.
61 CAPLAN, Lee M. State immunity, human rights and jus cogens: a critique of the normative hierarchy
theory. American Journal of International Law, v. 97, p. 745-747, October 2003.
62 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 22.
63 O’BRIAN, John. International Law. London: Cavendish Publishing Limited, 2002. p. 760.
384 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

guerra justa e injusta tendo como seus principais colaboradores Thomas


de Aquino (1225-1274), os teólogos espanhóis Francisco de Vitória (1480 –
1546) e Francisco Suarez (1548 – 1617) e também Grotius (1583 – 1640)64.
A idéia central era a de que caberia ao Estado vencedor que utilizou a força
em defesa do Direito a prerrogativa de exercer seu poder jurisdicional sobre
o Estado vencido que o lesou. Não se admitia, porém, a idéia de um Tribunal
Internacional, um organismo internacional, com autoridade sobre os Estados,
que eram, afinal, soberanos. Da noção de guerra justa, conseqüentemente,
tem-se uma maior consideração por um Estado em detrimento de outro.

Com o surgimento e consolidação do Estado moderno, a idéia de


soberania passou a dar uma nova concepção para a guerra, que era vista
efetivamente como um ato de soberania65. Assim, diferentemente do que havia
ocorrido no passado, diminuiu-se a aplicação de sanções àquelas pessoas
que fossem autoridades civis ou militares do Estado vencido. A imunidade
dessas pessoas se justificava exatamente a partir do fato de que elas haviam
atuado como órgãos do Estado66. Por serem os Estados soberanos sujeitos
de direito internacional iguais entre si, sem hierarquia entre eles, não seria
possível, portanto, que um Estado julgasse oficiais de outros Estados (par
in parem non habet imperium). Foi a partir dessa idéia que surgiu a Doutrina
dos Atos de Estado67 que pode ser assim entendida: “é o Estado enquanto
pessoa jurídica que devia ser objeto da imputação de toda responsabilidade
relativa à sua atuação de jure imperii e de jure gestionis”68.

A Doctrine of Sovereign Immunity69 inicialmente foi concebida em


moldes absolutos. Posteriormente, no entanto, passou-se a entendê-la como
a Doctrine of Restrictive Immunity. De acordo com essa última vertente, a
simples figura do Estado não é suficiente para que exista imunidade. Dessa
forma, foi feita uma distinção entre os atos de Estado enquanto praticados
no uso da Soberania (Acta de Jure Imperii) e aqueles atos que tinham uma
natureza privada e comercial (Acta de Jure Gestionis).
64 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 23-25;
O’BRIAN, John. International Law. London: Cavendish Publishing Limited, 2002. p. 760.
65 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 27.
66 CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003. p. 38.
67 A expressão “Atos de Estado” tem diferentes conotações. O Prof. John O’Brian em seu livro citado pela
primeira vez na nota n. 17, nas páginas 265 e 293, conceitua a Doctrine of Acts of State como a não
possibilidade, em determinadas circunstâncias, de o Judiciário de um determinado Estado revisar os atos
de um outro Estado estrangeiro praticados em seu território. Muitos autores se referem a essa particular
conotação dada aos Atos de Estado como Doctrine of Non-Justiciability.
68 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 27.
69 O’BRIAN, John. International Law. London: Cavendish Publishing Limited, 2002. p. 263-295.
Wolney da Cunha Soares Júnior 385

Na Doctrine of Restrictive Immunity, diferentemente da Doctrine of


Absolute Immunity, a imunidade somente seria conferida aos Acta de Jure
Imperii). Não existe uma unanimidade entre os Estados acerca de qual teoria
é a melhor, se a absoluta ou a restritiva. O Prof. John O’Brian acredita que,
atualmente, tem prevalecido a doutrina restritiva70, devendo-se observar a
legislação interna de cada país para se saber se é possível em determinadas
circunstâncias se pleitear a imunidade.

Naquela época, mesmo não existindo uma responsabilidade individual


internacional em virtude da imunidade que era conferida aos oficiais de
um Estado, argumentava-se que isso não era sinônimo de impunidade. A
imunidade soberana não impediria a jurisdição do Estado de nacionalidade
daquele que praticou o ato, não eximindo sua responsabilidade71. A justiça
seria feita, mas se daria com o Estado se voltando contra aqueles que o
haviam representado72. Assim, os cidadãos de um Estado estavam sob
jurisdição exclusiva deste, cabendo ao Estado de nacionalidade da vítima
apenas reclamar para que o outro Estado punisse os criminosos ou pagasse
uma compensação73. Essa idéia está expressa no art. 3o da Convenção da
Haia de 190774 que havia codificado o direito de guerra e que dispunha
acerca da obrigação de pagamento de uma compensação pelo Estado
beligerante violador ao Estado ofendido. No entanto, essa compensação era
muito criticada por duas razões: demorava-se muito para se chegar a um
acordo acerca de seu valor e não se acreditava que ela sozinha seria capaz
de inibir a prática de crimes de guerra75. No final, o resultado era que o
Estado de nacionalidade dos acusados não os julgava, pois era costume
dar anistia a todos os combatentes acusados de crimes de guerra após o
término do conflito76.

70 O’BRIAN, John. International Law. London: Cavendish Publishing Limited, 2002. p. 294.
71 TOMONORI, Mizushima. The individual as beneficiary of the state immunity: problems of the attribution
of ultra vires conduct.Denver Journal of International Law and Policy, v. 29, p. 274, Summer/Fall 2001.
72 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 86.
73 CASSESE, Antonio. International Criminal Law. New York: Oxford University Press, 2003. p. 37.
74 O Direito Internacional Humanitário, ius in bello, é formado basicamente pelo conjunto de normas dos
seguintes protocolos e convenções: Hague Convention Respecting the Laws and Customs of war on
Land of 1899, Hague Convention Respecting the Laws and Customs of war on Land of 1907, Geneva
Conventions of 1949 e seus Additional Protocols of 1977.
75 LIPPMAN, Matthew. Nuremberg: Forty-Five years Later. Connecticut journal Of International Law, v. 7,
p. 2, Fall 1991.
76 LIPPMAN, Matthew. Nuremberg: Forty-Five years Later. Connecticut journal Of International Law, v. 7,
p. 3, Fall 1991.
386 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

5.3 A imunidade como defesa diante do TPI

Para analisarmos essa questão, devemos considerar dois casos


muito importantes e que são fortes precedentes para futuras decisões sobre
imunidades. O primeiro é um julgamento da ICJ sobre as imunidades do
ministro das relações exteriores do Congo, o Sr. Yerodia. O segundo caso é a
decisão sobre a imunidade do ex-ditador chileno Augusto Pinochet proferida
pela Câmara dos Lordes, instância suprema da Justiça do Reino Unido.

Em virtude de uma decisão proferida pela Corte Internacional de Justiça,


com sede na Haia, no Case Concerning the Arrest Warrant (Congo v. Belgium),
discutiu-se muito acerca do uso de imunidade como defesa diante de crimes
internacionais. No caso em questão, no dia 11 de abril de 2000 um juiz belga
emitiu um mandado de prisão contra o então ministro das relações exteriores
da República Democrática do Congo, Sr. Abdulaye Yerodia Ndombasi, por
ter cometido crimes contra a humanidade e graves violações das Convenções
de Genebra de 194977. Um dado interessante é que as condutas teriam sido
praticadas pelo Sr. Yerodia antes de ele assumir o cargo no governo do Congo.
Na ocasião, em julgamento realizado em 14 de fevereiro de 2002, a Corte da Haia
determinou a ilegalidade do ato praticado pela Bélgica. A Corte entendeu que
a imunidade do ministro das relações exteriores, diferentemente da imunidade
diplomática, não se aplica apenas contra um Estado (o acreditante), sendo erga
omnes, pois ele atua perante inúmeros países78. Além disso, de acordo com o
julgamento da corte, o ministro possui imunidade para seus atos oficiais e
privados, independentemente do fato de terem sido praticados anteriormente
ou durante a ocupação do cargo ministerial. Pode-se inferir da decisão da Corte
Internacional de Justiça que a regra para o ministro das relações exteriores
é a imunidade, existindo apenas quatro exceções que seriam numerus clausus
(exaustivos) e que permitiriam o julgamento desse oficial de Estado79:

1) quando o seu próprio Estado de nacionalidade iniciar ação


judicial contra ele;
2) quando o seu Estado de nacionalidade abdicar de sua imunidade
(waiver);

77 KOLLER, David S. Immunities of foreign ministers: paragraph 61 of Yerodia judgment as it pertains


to the Security Council and the International Criminal Court. American University International Law
Review, v. 20, p. 8, 2004.
78 CAPLAN, Lee M. State immunity, human rights and jus cogens: a critique of the normative hierarchy
theory. American Journal of International Law, v. 97, p. 11, October 2003.
79 CASSESE, Antonio. When may senior state officials be tried for international crimes? Some comments
on the Congo v. Belgium case. European Journal of International Law, v. 13, n. 4, p. 853-875, 2002.
Wolney da Cunha Soares Júnior 387

3) quando a pessoa não mais ocupar o cargo de ministro, ela


poderá ser julgada pelos seus atos privados praticados durante
o exercício de suas funções, mas não pelos seus atos oficiais;
4) um ex ou atual ministro não possui imunidades quando está
sujeito a um tribunal penal internacional cujo tratado proíbe o
uso dessa defesa.

De acordo com o julgamento da ICJ, um ministro das relações


exteriores que cometer um crime internacional só poderá ser julgado
quando não mais ocupar o cargo80. Até então, ele usufruirá de sua imunidade
pessoal, conforme exposto anteriormente, quando diferenciamos material
immunities de personal immunities.

Antonio Cassese81 nos alerta, no entanto, que a decisão da Corte pode


ter conseqüências horríveis. Já foi dito que, quando o ministro deixa o seu
cargo, ele só responderá pelos atos praticados em sua capacidade privada.
Assim, uma pergunta se torna muito importante: os crimes internacionais
são considerados atos oficiais? A ICJ infelizmente não respondeu a essa
pergunta. É sabido que, na maioria das vezes, oficiais de Estado aproveitam
de seus poderes e usam a máquina estatal para cometerem esses crimes.
Fazendo-se uma leitura ipsis litteris da decisão proferida pela ICJ, tem-se,
portanto, que muito raramente essas pessoas serão responsabilizadas por
seus atos. Contra esse possível entendimento, pode-se recorrer ao Direito
Internacional costumeiro. De acordo com a primeira parte do presente
artigo, desde os julgamentos de Nurembergue e Tóquio, não se tem mais
admitido que uma pessoa alegue o seu status de oficial de Estado para se
eximir da responsabilidade por seus crimes.

Dessa forma, acreditamos que, mesmo que sejam considerados os


crimes internacionais atos oficiais de um ministro das relações exteriores,
o Direito Internacional costumeiro aponta para a sua responsabilização
criminal individual.

Na Inglaterra, conforme se verá abaixo, a Câmara dos Lordes negou


imunidade a Augusto Pinochet afirmando que os crimes internacionais por
ele praticados não poderiam ser considerados como tendo sido praticados
dentro de sua capacidade oficial.

80 CASSESE, Antonio. When may senior state officials be tried for international crimes? Some comments
on the Congo v. Belgium case. European Journal of International Law, v. 13, n. 4, p. 853-875, 2002.
81 CASSESE, Antonio. When may senior state officials be tried for international crimes? Some comments
on the Congo v. Belgium case. European Journal of International Law, v. 13, n. 4, p. 853-875, 2002.
388 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

No caso Pinochet82, que começou em 1998 quando um juiz espanhol


emitiu um mandado de prisão contra o ex-ditador chileno, que se encontrava
à época na Inglaterra, a Câmara dos Lordes (House of Lords) proferiu duas
decisões a respeito do processo de extradição do ex-general. Em ambas as
decisões negaram-se as imunidades ratione personae e materiae. A primeira
decisão, no entanto, foi anulada, aceitando-se as alegações dos advogados
de defesa de Pinochet, que argüiram a parcialidade do Lorde Leonard
Hoffmann, por ter ele trabalhado numa instituição de caridade ligada à
ONG Anistia Internacional. A solução dada pela Câmara dos Lordes é de
grande importância para a evolução do Direito Internacional, pois chefes
de Estado agora sabem que, após deixarem o cargo, podem ser julgados
por seus atos praticados no desempenho de suas funções. Ou seja, ex-chefes
de Estado podem não ter reconhecidas suas imunidades.

Apesar desse aspecto positivo, a segunda decisão da House of Lords


possui um lado negativo. Diferentemente da primeira decisão, que com base
no Direito Internacional costumeiro reconheceu a existência de jurisdição
universal para os crimes praticados por Pinochet; a segunda decisão negou
a imunidade de Pinochet com base na Convenção das Nações Unidas contra
a tortura de 10 de dezembro de 1984. Foi decidido que, quando o Chile
ratificou a referida convenção em 1998, isso correspondeu a um waiver83
das imunidades no que diz respeito ao crime de tortura. Dessa forma, não
haveria que se falar em imunidade pessoal.

Por ter se baseado em um tratado, e não mais em uma jurisdição


universal em conformidade com o Direito Internacional costumeiro,
acreditamos que a decisão da Câmara dos Lordes deixou de ser um
precedente ainda mais importante do que já é para a responsabilização
de Chefes de Estado.

Além disso, foi dito que crimes internacionais não podem ser
considerados como tendo sido cometidos dentro da capacidade oficial de um
representante de um Estado, não sendo abarcados pela imunidade material.

Do caso Pinochet resulta que, para se reconhecer uma imunidade


ratione materiae, deve-se analisar os atos inerentes à capacidade oficial não
82 O´NEILL, Kerry Creque. A new customary law of head of state immunity?:Hirohito and Pinochet.
Stanford Journal of International Law, v. 38, p. 289-317, Summer 2002; BARRIENTOS-PARRA, Jorge.
O caso Pinochet e a universalização da luta pelos direitos humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 763,
p.465-474, maio de 1999.
83 A palavra waiver é atribuída ao fato de um Estado nacional retirar de seu oficial a prerrogativa de usar
uma imunidade, possibilitando que outro Estado exerça a sua jurisdição.
Wolney da Cunha Soares Júnior 389

apenas do ponto de vista do direito interno, mas também sob as normas


do direito internacional84.

Após termos examinado esses dois casos, estudaremos agora o


exercício de jurisdição pelo TPI sobre uma pessoa beneficiária de imunidades
no plano internacional.

A pessoa protegida por uma imunidade, seja ela qual for, pode vir
a ser julgada pela justiça de um Estado estrangeiro caso o seu Estado de
nacionalidade abra mão dessa prerrogativa (waiver). Isso está de acordo
com a decisão da ICJ no Arrest Warrant Case. Assim, poderia o TPI julgar
alguém no caso de seu Estado de nacionalidade abdicar de sua imunidade.

O problema se verifica quando não existe um waiver. Mas, nesse


caso, o Estatuto de Roma é muito claro em seu art. 27:

Irrelevância da Qualidade Oficial

1. O presente Estatuto será aplicável de forma igual a todas as


pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em
particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo,
de membro de Governo ou do Parlamento, de representante
eleito ou de funcionário público, em caso algum eximirá a pessoa
em causa de responsabilidade criminal nos termos do presente
Estatuto, nem constituirá de per se motivo de redução da pena.
2. As imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes
da qualidade oficial de uma pessoa; nos termos do direito interno ou
do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça
a sua jurisdição sobre essa pessoa.85

A medida adotada no Estatuto de Roma não é inovadora. O caso


Pinochet, por exemplo, é um exemplo de jurisprudência nacional em que
imunidades foram negadas devido ao cometimento de crimes internacionais.

Aliás, jurisprudência internacional também é o que não falta. O


Estatutos do tribunal de Nurembergue e do ICTY em seus artigos 7º e
7º (2), respectivamente, rejeitam a isenção da responsabilidade criminal
de alguém baseada em sua condição de oficial de Estado. Muitos casos
84 DANILENKO, Gennady M. The Statute of the International Criminal Court and third States. Michigan
Journal of International Law. v. 21, p. 473, Spring 2000.
85 BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002, publicado no Diário Oficial da União de 26 de
setembro de 2002.
390 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

foram julgados e pessoas condenadas com base nesses dispositivos. Essas


regras envolvendo imunidades estão presentes nos instrumentos legais
que criaram tribunais internacionais, podendo ser aplicadas apenas em
seus respectivos âmbito86.

No caso de o oficial de Estado ser nacional de um país que ratificou o


Estatuto de Roma, a aplicação desse dispositivo seria pacífica. Acreditamos
que poderia, inclusive, ser entendida como um waiver feita por esses países.
No caso Pinochet, por exemplo, foi esse o entendimento obtido na segunda
decisão da House of Lords.

Mas, como é sabido, o TPI pode julgar nacionais de Estados que


não ratificaram o seu tratado de criação. E, nesse caso, ainda assim seria
possível se rejeitar a alegação de imunidade? Trata-se de uma situação
que pode gerar grandes discussões e problemas diplomáticos futuramente.

Quando é o Conselho de Segurança da ONU que remete o caso ao


TPI, nos termos do art. 13(b) do Estatuto de Roma, acreditamos que não
existe qualquer complicação. Dispõe o referido artigo o seguinte:

O Tribunal poderá exercer a sua jurisdição em relação a qualquer


um dos crimes a que se refere o artigo 5o, de acordo com o disposto
no presente Estatuto, se: b) O Conselho de Segurança, agindo nos
termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, denunciar ao
Procurador qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a
prática de um ou vários desses crimes.

O próprio Conselho, quando criou o ICTY, vedou o uso de imunidades


diante daquele tribunal ad hoc. Mesmo no caso do país de nacionalidade
do criminoso não ter ratificado o Estatuto de Roma, sendo ele membro
das Nações Unidas, nos termos do art. 25 da Carta da ONU, fica ele
obrigado a respeitar futuras decisões do Conselho. De acordo com os
artigos 24(1), 39 e 41 da referida Carta, os membros da ONU reconhecem
que o Conselho de Segurança tem discrição para determinar se existe
uma ameaça à manutenção da segurança e paz mundiais e quais medidas
deverão ser tomadas para resolver o problema. Dessa forma, esses países
se comprometeram a implementar quaisquer decisões feitas pelo Conselho.

86 CASSESE, Antonio. When may senior state officials be tried for international crimes? Some comments
on the Congo v. Belgium case. European Journal of International Law, v. 13, n. 4, p. 853-875, 2002.
Wolney da Cunha Soares Júnior 391

A situação de maior conflito seria quando não houvesse essa remessa


ao TPI pelo Conselho de Segurança e, ainda assim, aquela corte criminal
tivesse jurisdição sobre um oficial de Estado não-signatário, presentes
os requisitos do art. 12 do Estatuto de Roma. Apesar de existirem fortes
precedentes negando imunidades pessoais e materiais aos oficiais que
cometem crimes internacionais, conforme se viu anteriormente, e também
de o Estatuto de Roma negar expressamente o uso de imunidade como
defesa perante sua jurisdição, somente a prática futura e a reação dos países
que não ratificaram esse Estatuto irão determinar o que prevalecerá: o
reconhecimento ou não das imunidades.

6 OS ESTADOS NÃO-SIGNATÁRIOS DO ESTATUTO DE ROMA E O


EXERCÍCIO DE JURISDIÇÃO PELO TPI

Conforme já exposto várias vezes no presente artigo, nos termos


do Estatuto de Roma, é possível que o TPI exerça sua jurisdição sobre
nacionais de países que não ratificaram esse tratado e que não tenham
consentido com essa jurisdição. Nesta parte, tentar-se-á mostrar que, a
partir da idéia de responsabilidade criminal individual internacional, essa
situação é permitida pelo Direito Internacional.

Alguns autores87 entendem que a jurisdição do TPI sobre nacionais


de Estados que não ratificaram o Estatuto de Roma violaria o principio do
pacta tertiis expresso nos artigos 34, 35, 37 e 38 da Convenção de Viena
sobre o Direito dos Tratados de 23 de maio de 1969.

De acordo com esse princípio, não seria permitida a criação de


obrigações para Estados não-signatários de um tratado. Dizem, ainda, que,
quando a pessoa a ser julgada for um oficial de um Estado e, portanto, o
ato condenado for um ato de Estado, tratar-se-ia de verdadeira jurisdição
sobre uma disputa entre Estados soberanos sem que haja o consentimento
de um dos Estados envolvidos. Para eles, isso seria um absurdo à luz do
Direito Internacional Costumeiro, uma vez que apenas quando um Estado
consente sobre determinado modo de solução de controvérsias, estaria ele
subordinado e vinculado a esse método.

87 MORRIS, Madeline. The United Nations and the international criminal court:high crimes and
misconceptions: the ICC and non – party states. Law and Contemporary Problems, v. 64, p. 13-66;
WEDWOOD, Ruth. The international criminal court: an American view. European Journal of
International Law, v. 10, p. 93-107, 1999; ZAPPALA, Salvatore. The reaction of the US to the entry into
force of the ICC Statute: Comments on the UN SC Resolution 1422 (2002) and the article 98 agreements.
Journal of International Criminal Justice, p. 114-134, 2003.
392 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

Por outro lado, existem também aqueles que defendem a legalidade dessa
jurisdição88. Nesse caso, nenhuma obrigação seria criada para os Estados que
não aderiram ao Estatuto. Não se trataria também de uma disputa envolvendo
Estados a ser decidida pelo TPI, possuindo essa corte jurisdição sobre pessoas
e não países. O indivíduo seria a pessoa a ser julgada. Assim, com base na
responsabilidade criminal individual internacional, poderia o Tribunal Penal
Internacional julgar nacionais de países não membros de seu Estatuto.

Acreditamos que a segunda posição apresentada é a correta. De


fato nenhuma obrigação é criada para os Estados não-signatários. A
jurisdição do TPI poderia ser entendida como verdadeira delegação da
jurisdição territorial dos países àquele tribunal internacional. Seria um
absurdo imaginar que, cometido um crime, o Estado em cujo território o
fato típico foi praticado não poderia exercer sua jurisdição sobre a pessoa
que o realizou. A jurisdição de um Estado sobre o seu território advém de
sua própria soberania, não sendo necessário o consentimento do Estado
de nacionalidade do criminoso89 (a não ser nos casos de imunidade já
estudados). A transferência pelo Estado dessa prerrogativa a um tribunal
internacional, em determinadas circunstâncias, poderia ser, inclusive,
mais vantajosa para a realização da justiça. A princípio, sendo os juizes
do TPI originários de diferentes países com sistemas jurídicos distintos
e não sofrendo as influências políticas e outras pressões nacionais que
podem existir dentro de um Estado, a decisão desse tribunal internacional
poderia ser preferível a uma sentença de um judiciário nacional qualquer.

7 CONCLUSÃO

Neste artigo, procuramos estudar a responsabilidade criminal


individual internacional presente no Estatuto de Roma. Inicialmente,
discorremos sobre a diferença entre Direito Penal Internacional e Direito
Internacional Penal. Constatamos então, que a mencionada responsabilidade
individual se encontra no segundo, que é verdadeiro ramo do Direito
Internacional Público. Vimos, também, que os crimes internacionais surgem
dos tratados entre os Estados que condenam a prática de determinado
ato e se comprometem a combatê-los. Para tanto, o direito penal interno
é de grande importância, pois ele regulamenta essa repressão aos crimes
88 SCHARF. Michael. The United States and the International Criminal Court: the ICC´s jurisdiction over
nationals of non – party states: a critique of the US position. Law and Contemporary Problems, v. 64, p. 67-117,
2001; MEGRET, Frederic. Epilogue to an endless debate:the international criminal court´s jurisdiction and the
looming revolution of international law. European Journal of International Law, v. 12, n. 2, p. 247-268, 2001.
89 MEGRET, Frederic. Epilogue to an endless debate:the international criminal court´s jurisdiction and the
looming revolution of international law. European Journal of International Law, v. 12, n. 2, p. 252, 2001.
Wolney da Cunha Soares Júnior 393

internacionais no âmbito de cada Estado. Pode, no entanto, ocorrer essa


repressão por meio de tribunais penais internacionais, como é o caso do
TPI, cujo Estatuto de Roma institui uma verdadeira responsabilidade
individual por crimes internacionais.

Posteriormente, analisamos o conceito de imunidades, os diferentes tipos


de imunidades existentes e a sua vedação no Estatuto de Roma. Após a leitura de
diversos autores, conceituamos imunidade como sendo uma possível defesa a ser
utilizada diante de um tribunal, seja para demonstrar que determinado crime não
é atribuído a uma pessoa (impedindo, às vezes, a própria formação desse crime)
ou que o foro em que foi ajuizada a ação não possui competência para decidir a
questão. Classificamos então as imunidades em ratione personae e ratione materiae.
As primeiras seriam atribuídas a certos oficiais de Estado, cujo status reclamaria
a prerrogativa de uma imunidade para que possam desempenhar bem suas
funções. As segundas existiriam em virtude de se atribuir o ato não à pessoa que
o praticou, mas ao Estado que essa pessoa estava representando. Apresentamos
que uma não exclui a outra, podendo ambas ser alegadas concomitantemente.
Diferenciamos também os tipos de imunidades em: imunidades internacionais,
imunidades diplomáticas e consulares e imunidades de Estado. As últimas
resultariam do princípio da igualdade entre os Estados, sujeitos de direito
soberanos e sem hierarquia entre si, e da impossibilidade de um Estado julgar
um ato praticado por outro (par in parem non habet imperium). As imunidades
diplomáticas, por sua vez, seriam necessárias para o bom relacionamento político
entre os Estados e as imunidades internacionais são aplicadas aos funcionários
de Organizações Internacionais para que não sofram influência nem do Estado
sede da organização ou de seu Estado de nacionalidade, desempenhando, assim,
suas funções. Quanto às imunidades, por fim, foi dito que o Direito Internacional
caminha em direção à primazia da responsabilidade criminal individual no caso
de crimes internacionais, não podendo ser esses últimos entendidos como tendo
sido praticados dentro da capacidade oficial de um agente do Estado.

Foi dito ainda que, de acordo com a redação do Estatuto de Roma,


torna-se possível o exercício de jurisdição do TPI sobre nacionais de Estados
que não ratificaram o mencionado instrumento. Porém, existem autores
que defendem a ilegalidade (à luz do Direito Internacional) dessa jurisdição
por violação ao Direito costumeiro e ao princípio do pacta tertiis, segundo
o qual um tratado não poderia criar obrigações para terceiros Estados.

No entanto, filiamo-nos àqueles que, com base na responsabilidade


criminal individual internacional, acreditam não ter sido criada qualquer
obrigação para os países que não ratificaram o tratado mencionado acima.
Aquele tribunal internacional julga pessoas e não Estados.
394 Revista da AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03,p. 389-396, jul./set. 2017

Por fim, percebemos que a responsabilidade criminal individual


internacional é importante para inibir a prática de crimes internacionais que
chocam a sociedade internacional. A aplicação eficaz do Estatuto de Roma,
com a responsabilização da pessoa por trás de um genocídio ou da prática de
crimes de guerra, independentemente de ser um oficial de um Estado, será
importante para o devido respeito aos direitos humanos. Para dizermos se o
Estatuto está produzindo esse efeito, deveremos observar a atuação do TPI
futuramente nos casos em que houver, por exemplo, o cometimento de crimes
contra a humanidade. Recentemente, com a edição das resoluções 1422 (2002),
1487 (2003) e 1497 (2003) pelo Conselho de Segurança, que por meio dessas
resoluções tentou impedir a jurisdição do Tribunal Penal Internacional sobre
oficiais de Estados não-signatários de seu Estatuto, tornaram-se claras as
dificuldades a serem enfrentadas por esse recente tribunal internacional.

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