Anaxágoras

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http://dx.doi.org/10.23925/2178-2911.

2022v25p2-18

Adaptação Biológica e a Evolução dos Seres Vivos na Antiguidade: a


formação de professores
____________________________________
Lucas Gontijo
Simone Sendin Moreira Guimarães

Resumo
Este trabalho trata da historicidade dos elementos presentes nas explicações filosóficas da Antiguidade, que
contribuíram para a elaboração do conceito atual de adaptação biológica. Para tanto, nos aprofundamos no
movimento de busca por explicações emancipadas de influências místicas e religiosas a partir do período da
filosofia pré-socrática. Feitos os recortes históricos e as escolhas epistemológicas para subsidiar a discussão,
trazemos a essência do pensamento acerca da forma dos organismos – que a princípio pressupunha aptidões à sua
sobrevivência e reprodução – de filósofos reconhecidamente importantes para o período. Destacamos,
especialmente, a crença em uma causa única para os fenômenos naturais defendia pelos jônios (séc. XVII a V a.C.);
a influência das necessidades de sobrevivência na adaptação dos seres vivos discutida por Thales de Mileto (625-
546 a.C.); a causa da organização da vida e a possibilidade de transformação de uma espécie em outra apontadas
por Anaximandro (610-546 a.C.); a existência de uma inteligência universal que direciona a transformação dos seres
vivos presente nos tratados de Heráclito (500-450 a.C.); as explicações para a constituição da matéria de Demócrito
(460-370 a.C.); a influência do acaso na organização aleatória das características morfológicas dos seres vivos
apresentada por Empédocles (495-430 a.C.); e, por fim, a cosmogonia de Aristóteles (384-322 a.C.) em defesa de
uma força imanente responsável pela transformação dos seres vivos. Esperamos, com isso, trazer aos professores
de ciências/biologia em formação, e àqueles que já atuam em sua prática docente, contribuições que desvelem
aspectos relacionados à construção de conceitos fundamentais para a teoria da evolução das espécies, uma vez
que esta se constitui como uma das teorias que fundamentam a Biologia enquanto ciência independente no campo
das ciências da natureza.
Palavras-chave: Adaptação biológica, historicidade, filosofia.

Abstract
This article deals with the historicity of the parts present in the philosophical explanations of Antiquity, which
contributed to the elaboration of the current concept of biological adaptation. For that, we go deeper into the search
for explanations emancipated from mystical and religious influences from the period of pre-Socratic philosophy.
Having made the historical cuts and the epistemological choices to subsidize the discussion, we bring the essence of
thinking about the form of organisms – which at first presupposed abilities for their survival and reproduction – of
philosophers who were known to be important for the period. We highlight, especially, the belief in a single cause for
natural phenomena defended by the Ionians (17th to V BC); the influence of survival needs on the adaptation of
living beings discussed by Thales of Miletus (625-546 BC); the cause of the organization of life and the possibility of
transforming one species into another pointed out by Anaximander (610-546 BC); the existence of a universal
intelligence that directs the transformation of living beings present in the treatises of Heraclitus (500-450 BC);
explanations for the constitution of the matter of Democritus (460-370 BC); the influence of chance in the random
organization of the morphological characteristics of living beings presented by Empedocles (495-430 BC); and,
finally, the cosmogony of Aristotle (384-322 BC) in defense of an immanent force responsible for the transformation
of living beings. We hope, with this, to bring to science/biology teachers in training, and to those who already work in
their teaching practice, contributions that unveil aspects related to the construction of fundamental concepts for the
theory of evolution of species, since this is constituted as one of the theories that support Biology as an independent
science in the field of natural sciences.
Gontijo & Guimarães Volume 25, 2022 – pp. 2-18

Keywords: Biological adaptation, historicity, philosophy.

INTRODUÇÃO
O presente artigo, de caráter teórico, é parte de uma dissertação de mestrado que, neste recorte
teve como objetivo historicizar elementos do pensamento filosofico da antiguidade que contribuiram para o
desenvolvimento do conceito de adaptação biológica, considerado estruturante para a teoria da evolução
das espécies no século XIX.
A abordagem aqui adotada partiu da História e Filosofia da Ciência, uma vez que, como
perspectiva, nos permite buscar nas raízes da produção científica os caminhos que levaram o ser humano
a sair de sua condição primitiva e submissa na relação com a natureza para, então, assumir lugar de
domínio e controle sobre a realidade a fim de transformá-la e, consequentemente, por ela ser
transformado.
Esperamos que o conteúdo deste levantamento histórico venha subsidiar tanto o professor em
formação no que diz respeito à historicidade, ou seja, o que é preciso conhecer, em relação a teoria da
evolução das espécies enquanto eixo unificador dos conteúdos biológicos; bem como dar condições para
que possa buscar a historicidade de outros conceitos estruturantes da biologia, como a transmissão,
interação, organização e equilibração1.

O PENSAMENTO GREGO
Durante os mil anos antes da era cristã, a Grécia da antiguidade foi gradativamente ocupada por
povos da Ásia Menor, do Oriente e do Norte, que fugiam de guerras e buscavam terras cultiváveis. Muito
do que se sabe a respeito da constituição do território grego ao longo daquele período vem dos escritos de
Heródoto (485-425 a.C.), um historiador que buscou registrar os principais acontecimentos que moldaram a
sociedade até do seu tempo. Nascido em Halicarnasso, região da atual Turquia, foi filho de uma nobre
família que lhe deu boa educação, permitindo que viajasse o mundo depois de estudar com os sábios da
época. Visitou o Egito, Líbia, Babilônia, Pérsia, Macedônia e muitos outros impérios. Em suas obras
encontramos narrativas acerca das Guerras médicas2; também sobre o Egito, desde a geografia até as
questões político-religiosas; sobre o ataque da Pérsia ao Egito; sobre a rivalidade entre Atenas e Esparta;
sobre a morte de Dario e a subida de Xerxes ao trono Persa; e sobre a destruição de Atenas na Batalha

1
Antônio Fernandes Nascimento Júnior, “Construção de estatutos de ciência para a biologia
numa perspectiva Histórico-Filosófica: uma abordagem estruturante para seu ensino” (tese
de doutorado, Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho), Bauru, 2010.
2
O reinado de Ciro (550-529 a.C.) marcou o início do Império Persa que, com base numa
política de união das tribos persas, conquistou toda a região que atualmente compreende o
Oriente Médio, o Irã e a Turquia. Seu filho, Cambises II (529-522 a.C.) continuou a política
expansionista, tomando o controle do Egito e da Líbia. Mas foi Dario I (550-487 a.C.) quem
começou as chamadas Guerras Médicas, uma campanha investida sobre o território grego
entre 490 e 479 a.C.
3
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de Salamina, em que a frota grega subjugou o exército do “deus-rei”3.


Muito mais acerca dos acontecimentos que compreendem os séculos V, IV e III pode ser
encontrado no livro Heródoto (1786), de Pierre Henri Larcher (1726-1812) que levou quinze anos para
ser publicado, uma vez que seu autor traduziu nada menos que nove tratados do próprio Heródoto
(Clio, Euterpe, Tália, Melpômene, Terpsícore, Érato, Polímnia, Urânia, Calíope). Por meio do esforço de
Heródoto e de muitos outros, temos certa compreensão da consciência acerca do mundo de outrora.
Não somente no que diz respeito a história de guerras e joguetes políticos, mas também sobre questões
de ordem mais abstrata, como a origem do universo e da vida; também as concepções de mundo e
natureza que moviam aqueles antigos pensadores. Se a ciência, em nosso caso particular a biologia, é um
produto histórico existente somente entre nossa espécie e compartilhado culturalmente ao longo do
tempo4, então, justifica-se buscar nas raízes do conhecimento científico ocidental os elementos que
fazem parte da construção de aspectos específicos da biologia atual.
É importante ressaltar que na presente pesquisa privilegiamos a cultura ocidental por
reconhecermos sua influência, ao longo dos períodos posteriores, no processo de constituição e
elaboração do conhecimento científico compartilhado atualmente. No entanto, não se ignora o fato de que
em outras regiões do mundo, como na Babilônia, Caldeia e Oriente Próximo, existiam movimentos
intelectuais relevantes.
Duas tradições do pensamento moldaram o conhecimento científico do período que vai dos pré-socráticos
aos pós-aristotélicos. A primeira tradição, chamada de História Natural, é a forma mais básica e simples de
obter conhecimento. A necessidade de sobrevivência e o esforço para dominar a natureza, e assim utilizá-la
em benefício próprio, gerou também a necessidade de compartilhar as conquistas que vinham a conta
gotas. O uso de varas para pesca, lanças para caça, folhas e galhos para construção de abrigos, fundição
de metais para confecção de objetos diversos, instrumentos musicais para rituais religiosos; em uma
profusão de novas combinações que acabavam levando a novas práticas e resultados, permitia cada vez
mais o pensamento abstrato sobre o mundo natural. Para isso, a observação da natureza se tornou
indispensável.
Não bastava saber que uma semente colocada na terra e irrigada corretamente germinaria
originando uma árvore que frutificaria para alimentar o povo. Ou que em seu devido tempo, a neve e a
chuva caíam sobre a terra modificando a paisagem e o comportamento dos animais. Era preciso explicar
quais forças faziam o ovo se transformar em ave, ou quem mantinha a lua e sol em sua dança cósmica,

3
Giovanni Reale & Dario Antiseri. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. São
Paulo: Paulus (Coleção filosofia), 1990.
4
Álvaro Vieira Pinto. Ciência e Existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
4
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eterna, em volta da Terra5.


Mayr (1998) ainda salienta que a História Natural cravou profundas raízes no conhecimento sobre
o mundo antigo. Nas obras de Aristóteles, mais precisamente na “História dos animais”, e também nos
tratados de botânica de seu discípulo Teofrasto (372-287 a.C.), podemos perceber uma pequena parte de
toda essa tradição, herdada por meio da oralidade. É interessante notar como a História Natural buscou
nos animais domésticos explicações para os fenômenos naturais. Nesses animais, devido sua proximidade
com o ser humano e docilidade, é muito mais fácil observar e descrever situações como nascimento,
crescimento e morte; e processos como nutrição, doença e transformação (o embrião de uma galinha
dentro do ovo, por exemplo); além de comportamentos sexuais, individuais e sociais/coletivos. As tradições
do pensamento não se constituíam como regra para o entendimento da realidade, ao contrário, é comum
aspectos de determinada tradição permearem outros sistemas explicativos para coadunar com o que é
proposto. E talvez a História Natural tenha sido a tradição que mais influenciou as gerações de filósofos
que surgiram no Ocidente6.
A segunda tradição do pensamento é chamada de Tradição Filosófica. Os séculos VII, VI, e V
antes da era cristã foram palco de um intenso desenvolvimento das relações comerciais e culturais no
Oriente Próximo e no Mediterrâneo oriental. À semelhança de Heródoto, havia aqueles que se
aventuravam não somente em busca de fatos históricos, mas também para aprender o que existia de mais
moderno sobre o entendimento do universo, do mundo e da natureza. Naquele período, os gregos,
particularmente os colonos jônios da Ásia Menor, tiveram contato com grandes civilizações, como os
egípcios e mesopotâmicos. Com isso, aprenderam sobre a geometria desafiadora das pirâmides, os
segredos mais ocultos da anatomia sagrada que eternizavam faraós e os mistérios da vastidão do cosmos
por meio da astronomia babilônica. Ficava cada vez mais claro que era possível explicar fenômenos a partir
de causas naturais, sem necessariamente recorrer à ação de deuses7.

OS JÔNIOS E A OUSADIA DO PENSAR


Segundo Mayr8, a Tradição Filosófica surgiu na Grécia com os jônios também chamados de pré-
socráticos – e seus seguidores. Eles foram responsáveis por inaugurar uma postura radicalmente nova em

5
Ernst Mayr. O desenvolvimento do pensamento biológico: diversidade, evolução e
herança. Brasília: UnB, 1998.
6
Ernst Mayr. O desenvolvimento do pensamento biológico: diversidade, evolução e herança.
Brasília: UnB, 1998.
7
George Sarton. Introduction to the History of Science. New York: Publishing Company,
1975.
8
Ernst Mayr. O desenvolvimento do pensamento biológico: diversidade, evolução e
herança. Brasília: UnB, 1998.

5
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relação aos seus antecessores. Os fenômenos naturais passaram a ser relacionados a causas e origens
também naturais, e não à força ou vontade de deuses ou espíritos. No esforço para encontrar um conceito
unificador, capaz de explicar fenômenos de ordens diferentes, os jônios propunham uma causa última, ou
um elemento – como água, terra, ar, fogo ou algo indefinido – que seria a origem de tudo que existe.
Devido à familiaridade que esses filósofos tinham com o arcabouço de conhecimento de culturas do
Oriente Próximo, muitas daquelas concepções foram adotadas, principalmente as relativas à natureza
inanimada. Apesar de suas maiores contribuições estarem relacionadas à fisiologia humana, a real e
indiscutível importância da escola jônica é que seus esforços representam o início da ciência: a busca por
causas naturais para fenômenos naturais foi uma revolução no pensamento filosófico.
Apesar de não demonstrar interesse pelos organismos vivos, foi Thales (625-527 a.C.), da cidade
de Mileto, quem iniciou as discussões acerca da constituição dos animais ao propor que a água, na
condição de elemento natural, é a causa da organização da vida. A motivação para sua explicação vem de
questionamentos que já eram amplamente discutidos à época: o que determina a forma dos animais?
Uma simples observação bastava para concluir que os bovídeos selvagens tinham membros musculosos
para lhes propiciar a fuga de predadores, que por sua vez eram dotados de garras e dentes poderosos – no
caso de grandes felinos – que serviam para abater as presas; ou que os peixes (ainda não havia distinção
entre peixes e mamíferos aquáticos) possuem uma forma corporal cuja serventia é rasgar a água com
facilidade, potencializando o nado9.
A diversidade dos seres vivos, mais perceptível em animais macroscópicos e vários grupos de
plantas, materializava-se na diversidade da forma. Animais sem pernas, com duas, quatro e até oito (como
as aranhas); animais aquáticos, terrestres, voadores, aquático-terrestres e aquático-voadores; animais
glabros (sem revestimento tegumentar), revestidos por poucos ou muitos pelos, penas, escamas ou
placas; animais herbívoros, carnívoros, hematófagos, onívoros, que botam ovo, que não botam ovo, que
produzem ovo mas esse é chocado e eclodido no interior da fêmea, animais coloridos ou peçonhentos,
simpáticos ou estranhos. Talvez esse fosse o maior mistério da natureza que despertava nos pensadores
a vontade de encontrar uma explicação. Como exímio meteorologista, astrônomo e geômetra, Thales era
antes de tudo um excelente observador. A escolha pela água como elemento fundamental não foi
aleatória, uma vez que praticamente todas as formas de vida dependem dela 9.
Foi seu discípulo, no entanto, quem trouxe mais contribuições para o entendimento do mundo
vivo. Seguindo os passos do mestre pela astronomia e geografia, Anaximandro (610-546 a.C.) elaborou
uma cosmogonia completa, na qual a interação entre os quatro elementos naturais (água, terra, ar e fogo)
desempenhava papel importante na origem e na forma dos organismos. Por associação e comparação

9
Stephen Toulmin & June GoodField. The Discovery of Time. Nova York: Harper & Row,
1965.

6
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com outras formas de vida, ele até conjecturou uma possível origem do ser humano a partir de peixes
primitivos, que em seu devido tempo sofreram metamorfoses, tal como ocorre com os insetos:

The first animals were generated in the moisture, and were enclosed within spiny barks.
As they grew older, they migrated onto the drier land; and, once their bark was split and
shed, they survived for a short time in the new mode of existence. Man to begin with
was generated from living things of another kind, since, whereas others can quickly
hunt for their own food, men alone require prolonged nursing. If he had been like that in
the begining, he would never have survived... Thus men were formed within these [fish-
like creatures] and remained within them like embryos until they had reached maturity.
Then at last the creatures burst open, and out of them came men and woman who were
already able to fend for themselves 9 10.

Apesar da grande diversidade no mundo natural, a natureza era tida como perfeita. O gato se
alimenta do rato, a chuva cai para umedecer a terra a fim de que o camponês a cultive, o macho se
relaciona com a fêmea para gerar a prole, as plantas oferecem frutos vistosos e saborosos para que o
homem e os animais se alimentem, etc. Essa aparente harmonia levou os filósofos da antiguidade a
crerem que tudo possui seu devido lugar na existência, exercendo funções próprias – determinadas por
algo ou alguém que também carecia de explicação. Uma vez que o universo era concebido como fixo, as
transformações da matéria eram adequações ao estado imediato de existência da coisa. No caso dos
animais, essas transformações eram de caráter ontológico, ou seja, individuais e relegadas ao período de
vida do organismo (os músculos dos homens ganham volume e força para se adequarem a uma nova
situação que exige mais esforço, por exemplo) sem a possibilidade de transmissão para gerações futuras11.
Desde muito cedo, no pensamento filosófico, não era estranha a possibilidade dos animais sofrerem
transformações devido a causas naturais, como por exemplo, a passagem de um ambiente úmido para

10
Os primeiros animais foram gerados na umidade, e estavam envoltos em cascas
espinhentas. Quando cresceram mais, eles migraram para a terra mais seca; e quando a
sua casca exterior se fendeu e foi abandonada, eles sobreviveram por algum tempo no novo
modo de existência. O homem, para começar, foi gerado de seres vivos de outro tipo,
porque, enquanto outros conseguem rapidamente caçar para a sua própria alimentação, o
homem por si só necessita de cuidados prolongados. Se ele tivesse sido assim desde o
princípio, nunca teria sobrevivido. Por isso, os homens foram formados dentro dessas
[criaturas pisciformes] e permaneceram dentro delas como embriões, até chegarem ao
estado maduro. Então, finalmente, as criaturas rebentaram, e fora delas vieram os homens
e as mulheres, que estavam aptos a se defenderem por si mesmos.
11
João Francisco Nascimento Hobuss. Introdução à história da filosofia antiga. Pelotas:
NEPFIL online, 2014.

7
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um ambiente seco. Ao comparar um recém-nascido de humano com um recém-nascido de antílope, fica


evidente que de certa forma os antílopes estão “mais preparados” para sobreviverem em um meio sujeito a
predação, pois tão logo nasce um bezerro, este fica de pé e acompanha a mãe aonde quer que ela vá.
A ideia de adaptação se faz presente ao considerar que a cosmogonia de Anaximandro tenta
resolver o “problema” da longa dependência dos recém-nascidos humanos, propondo a transformação de
um tipo de organismo (as formas pisciformes) em outro (homens e mulheres maduros). É importante
ressaltar, porém, que a preocupação do filósofo, à semelhança de outros tantos, recai sobre a
necessidade de explicar as origens dos tipos de seres vivos existentes. Por mais tentador que seja, o
trecho de Anaximandro destacado anteriormente não pode ser entendido como uma antecipação da
evolução. Mas sim, como a ontogenia das gerações espontâneas. Muitos pré-socráticos admitiam
processos de geração espontânea a partir de terra úmida ou limo11.
No decorrer dos séculos VI e V a.C. o centro do pensamento filosófico concentrou-se no sul da
atual Itália e nas colônias gregas da Sicília, onde os filósofos de maior expressão foram Pitágoras (570-
495 a.C.), Xenófanes (570-475 a.C.), Parmênides (530-460 a.C.) e Empédocles (495-444 a.C.). Nesse
período, surgiram na filosofia duas correntes de pensamento diferentes que concebiam a matéria, e que
continuaram a reverberar por muito tempo no Ocidente: a de Heráclito de Éfeso (535-475 a.C.) e
Demócrito de Abdera (460-370 a.C.)12.
As máximas de que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, pois as águas de quando
imergimos são substituídas por novas águas, e que tudo flui e nada permanece; compõem parte do
conjunto de ideias que Heráclito legou à posteridade de maneira profusa, recortada e exigente por
reflexão. O filósofo elaborou a ideia de que vigora na natureza uma inteligência/razão – Logos – que a
tudo governa, e que o universo avança em um eterno fluir, com cada coisa sendo e não sendo ao mesmo
tempo, ou seja, algo que se aproxima da unidade dos contrários. Nesse sistema explicativo, o fogo é o
elemento fundamental de tudo, pois independentemente das sucessivas transformações desencadeadas
nos ciclos da matéria pelo eterno devir, o vir-a-ser do universo, ele subsiste eternamente permanecendo o
mesmo. É assim porque o fogo, do qual tudo procede, também é aquilo que opera constantes
transformações nos demais elementos da natureza. Mas, apesar de fluir, o universo é sempre o mesmo, e
todo esforço para compreender esse grande mistério levou o efésio à uma reflexão: “Diante de um
enigmático par de contrários, que outra solução pode haver senão a unidade?”13.
Já Demócrito, influenciado pela tradição da escola de Parmênides14 (530-460 a.C.), formulou uma

12
George Sarton. Introduction to the History of Science. New York: Publishing Company,
1975.
13
Maria Carolina Alves dos Santos.,“A Lição de Heráclito”. Trans/Form/Ação, São Paulo, v.
13, p. 1-9, 1990.
14
A filosofia de Parmênides se afastava, em parte, daquela elaborada pelos filósofos
jônicos, cuja preocupação central se direcionava aos estudos da natureza, no sentido do
8
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doutrina (o Atomismo) que tentava responder um dos problemas fundamentais do pensamento grego: o
conflito entre o conceito de “ser” e a compreensão do movimento que confere ao mundo um caráter
mutável. Esse sistema explicativo tratava da organização da matéria, defendendo que a essência da
mudança é um processo em que algo que “é” deixa de “ser”, passando ao estado de “não ser”. No
entanto, o “não ser” não pode ser compreendido pela razão, pois de alguma forma tudo o que é pensável
“é” algo. Assim, a ideia de transformação se constitui como um absurdo lógico, assumindo como uma
afronta ao entendimento qualquer possibilidade de mudança15. Mais uma vez, o caráter fixo do universo é
colocado acima da possibilidade de uma realidade passível de mudanças direcionais. No entanto, o fato
de haver transformações na natureza não poderia ser ignorado.
Para resolver esse problema, Demócrito esforçou-se em conciliar a possiblidade de mudanças,
que são perceptíveis aos sentidos humanos, com a existência de algo permanentemente inalterável.
Nesse sentido, a matéria é constituída por infinitos entes invisíveis, incriáveis e indestrutíveis – chamados
de “átomos” (ἄτομος) – que se movem incessantemente pelo vazio, guardando em si apenas propriedades
de forma e tamanho. Nesta visão de organização da matéria, a diversidade que advém da própria matéria
é resultado das combinações possíveis entre os diferentes tipos de átomos. Entretanto, tal maneira
mecânica de conceber o mundo incorria em outro problema. Para o atomismo, diferentes átomos estavam
associados a diferentes materiais – água, terra, ar e/ou fogo – e também à maneira como nossos sentidos
percebem as diferentes formas. Então, como explicar a concentração, a princípio aleatória, dos átomos de
natureza semelhante em determinados locais que formam um Universo razoavelmente organizado?16.
Demócrito escreveu bastante acerca de assuntos biológicos, mas muito de seus trabalhos foram
perdidos, mesmo assim, acredita-se que suas concepções foram apropriadas por pensadores das
gerações seguintes. Ao que parece, ele foi o primeiro a postular um problema que dividiu os filósofos que
tratavam da história natural desde então: a ocorrência dos fenômenos associados aos organismos vivos é
resultado puramente do acaso ou de uma necessidade, devido às características das unidades estruturais
da matéria – o átomo?
Aparentemente, o pré-socrático admirava o que hoje entendemos por adaptação, defendendo que
as propriedades dos átomos era a causa da organização da forma, sendo também o primeiro a colocar
tendências imanentes direcionadas a um fim em contraponto com o acaso. Além disso, formulou diversos

mundo físico. Parmênides aproximava-se na utilização do pensamento especulativo, da


razão, mas orientado para um problema mais complexo e abrangente. Entre outros
assuntos, tais como o da unidade do ser, o seu poema Da natureza destina-se a enfrentar o
problema do conhecimento e da verdade.
15
Giovanni Reale & Dario Antiseri. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. São
Paulo: Paulus (Coleção filosofia), 1990.
16
Porto, “O atomismo grego e a formação do pensamento físico moderno”. Revista
Brasileira de Ensino de Física, v. 35, n. 4, 2013.
9
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outros problemas que mais tarde foram resgatados por Aristóteles, que a partir de sua visão de mundo,
discutiu a hipótese atomista, abordando suas próprias opiniões17.
Dois aspectos são importantes para caracterizar as concepções de origens do mundo para os
primeiros filósofos gregos. 1) não existem deidades responsáveis pela criação de tudo que existe, ou seja,
a vida, os organismos e o mundo não constituem o resultado da ação de um deus – confrontando as
crenças amplamente defendidas no período pré-filosófico – mas sendo a consequência de um poder
gerador da natureza; 2) as origens não estavam sujeitas a um plano ou objetivo subjacentes, ao contrário,
eram consideradas como resultado do acaso ou de uma necessidade irracional18. A maneira para alcançar
tais conclusões não é válida para a ciência atual. Esses filósofos, devido suas condições existenciais na
relação com os modos de produção da sociedade, acreditavam que podiam chegar a explicações a partir
do pensamento concentrado acerca do fenômeno, apenas “filosofando”. Todavia, foi a ousadia de pensar
a favor de explicações racionais emancipadas da religião que abriu caminho para o advento científico.

A ORIGEM E ADAPTAÇÃO DOS ANIMAIS POR MEIO DA ORGANIZAÇÃO ALEATÓRIA DE SUAS


PARTES: O CAOS DE EMPÉDOCLES (495-444 A.C.)
Compreender a cosmogonia de Empédocles é fundamental para entender a relação entre a forma
dos seres vivos e a formulação de uma concepção acerca das adaptações biológicas. Sabemos pouco
sobre sua vida, mas que veio de uma ilustre família de Agrigento, e que além de filósofo, foi físico,
astrônomo, médico, legislador e poeta. Ao que parece, seu pai foi uma figura importante na derrota de
Tradiseu, o tirano de Agrigento. Mais tarde, o próprio Empédocles lutou, valendo-se de uma excepcional
retórica, contra as oligarquias que surgiam para explorar e subjugar os pobres. Inimigo declarado da
monarquia, recusou o cargo de governante da cidade quando este lhe foi oferecido pela nobreza de
Agrigento. Ganhou a reputação de mago e controlador da natureza, o que não foi estranho tendo em vista
que em seus trabalhos unia misticismo e história natural. Considerado o último filósofo grego a escrever
em versos, o pouco de sua obra que resistiu até hoje resume-se a dois poemas, Purificação e Sobre a
Natureza, dos quais – somados a extensos comentários feitos por Aristóteles e outros filósofos – temos
ideia da visão de mundo e natureza do pré-socrático19.
Empédocles postulou que o universo é constituído por quatro componentes básicos, denominados
por ele de “raízes” – água, terra, ar e fogo – que a tudo formam a partir de combinações em proporções
naturais. Por exemplo, os ossos são formados por duas partes de água, quatro partes de fogo e duas
partes de terra; e o sangue é constituído por iguais porções das quatro raízes. Essas raízes são imutáveis

17
Gustavo Laet Gomes. “A química atomista de Leucipo e Demócrito no tratado Sobre a
geração e a corrupção de Aristóteles”. (dissertação de mestrado, Universidade Federal de
Minas Gerais), Belo Horizonte, 2018.
18
Ernst Mayr. O desenvolvimento do pensamento biológico: diversidade, evolução e
herança. Brasília: UnB, 1998.
19
Gerd Bornheim. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Editora Cultrix, 1998.
10
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e existem e maneira independentemente, não sendo facilmente identificadas por estarem sempre
misturadas umas às outras. Para esclarecer como os constituintes básicos, sendo apenas quatro, formam
tudo o que existe, Empédocles faz uma analogia: o pintor ao misturar uma pequena quantidade de cores é
capaz de criar e representar as mais inimagináveis possibilidades. Mais tarde, ao tratar dos elementos
básicos constituintes do universo, propostos por esta visão, Aristóteles os chamam de “elementos
naturais”20.
Graham21 ainda explica como, na cosmogonia de Empédocles, surgiu a diversidade de seres vivos
existentes no mundo. Para o filósofo, o que une e separa as quatro raízes fundamentais são duas forças, o
Amor e a Contenda, respectivamente. O Amor reúne elementos em um arranjo harmonioso, trazendo
harmonia a tudo, dentro de uma Esfera (Sphaîros) cósmica. No entanto, a Contenda penetra a Esfera e
desfaz a unidade harmoniosa, dissociando os elementos. Da desordem resultante surge o caos, em que
as diferentes massas de água, terra, ar e fogo originam animais e plantas. Enquanto a Contenda cresce e
se desenvolve, surgem da terra “formas naturadas” de organismos que resultam da dissociação dos
elementos. Eventualmente podem surgir seres viáveis. No entanto, toda criação daí advinda perece devido
à força destrutiva da Contenda. Porém, com o Amor crescente, começam a se formar partes a partir dos
elementos dissociados (tecidos, órgãos e até membros isolados). Em seguida, aleatoriamente esses
membros se juntam para formar combinações.
Dessas combinações, pode resultar aquilo que desde a Antiguidade é chamado de
monstruosidade, animais malformados – anencefalia, microcefalia, ausência de membros, membros extra,
estruturas vestigiais incomuns, etc. – e incapazes de sobreviver, sendo bois com face humana um dos
exemplos descritos por Empédocles. Todavia, quando os membros dispersos no caos se juntam em
combinações viáveis, os seres resultantes não são apenas capazes de sobreviverem, mas também de se
reproduzirem. Para Empédocles:

[...] quando a Contenda alcança o fundo mais interior do vórtice e o Amor surge no
meio do círculo, todas essas coisas convergem para se tornar uma só, não súbito, antes
voluntariamente se unindo, oriundas esta daqui, aquela dali. Ao se misturar, fazem
jorrar uma miríade de raças e feras (grifo nosso); [...] antes alguns membros
permanecem fixos, outros hão sido destacados. Contudo, conforme os deixa para trás,
o impulso imortal, irreprochável e bem-intencionado do Amor produz compreensão21.

Muitos, equivocadamente, apontam na cosmovisão de Empédocles o prenúncio da evolução dos

20
João Francisco Nascimento Hobuss. Introdução à história da filosofia antiga. Pelotas:
NEPFIL online, 2014.
21
Daniel Graham. “Empedocles”. International Studies in Philosophy, 17 (1), 1985.

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organismos e até mesmo o princípio de uma seleção natural. Apesar de fazer sentido mediante o
conhecimento atual, o sistema explicativo do pré-socrático não apresenta elementos significativos que
sustentem uma hipótese evolutiva, além de recorrer à influências sobrenaturais. Mesmo assim, ao propor
um caos primordial regido pela dinâmica entre duas forças que moldam os mecanismos de criação,
viabilidade e reprodução dos seres vivos, Empédocles faz a compreensão acerca da diversidade (a forma
dos organismos segundo seu tipo específico) avançar imensuravelmente. Por não ter fundado uma
academia e tão pouco arrebanhado dezenas de discípulos (dos quais só temos conhecimento do sofista e
retórico Górgias), suas ideias foram sucumbidas e duramente contestadas. Aristóteles, que possuía uma
academia própria frequentada por diversos pensadores de renome, criticou a ideia de origem e
sobrevivência pelo acaso, afastando-se muito mais da ciência moderna do que o pré-socrático22.

ARISTÓTELES E UMA VISÃO DE NATUREZA


Na Grécia antiga era comum entre os filósofos explicações que buscavam causas finais para os
fenômenos naturais, ou seja, uma abordagem teleológica. Devido seus estudos acerca dos seres vivos,
Aristóteles é o filósofo mais importante associado à teleologia. Nas obras “Física”, “Metafísica” e “As
partes dos animais”; encontramos o conjunto de explicações dos fenômenos naturais. Para o filósofo
existem, apenas quatro causas.
A primeira causa apresentada é chamada de Causa Material, “aquilo a partir do qual” (τὸ ἐξ οὗ) algo
provém e que persiste. Como exemplo temos o bronze que é utilizado na produção de uma estátua. O
bronze (uma liga formada a partir de metais pré-existentes) existia antes da estátua e, uma vez que a obra
esteja pronta, o bronze continua existindo nela. A segunda causa, Causa Formal ou “aquilo que deve ser”,
representa a forma (εἶδος = eidos) dos objetos e seus gêneros, como resultado – algo que não existia antes
– de um processo de gênese ou transformação. A causa formal deve ser entendida como a síntese de
partes que formam um todo (que é algo novo), é uma essência que define ou caracteriza um resultado, e
que em muitos casos pode assumir uma forma (εἶδος). “Aquilo que deve ser” é o resultado do processo
“daquilo a partir do qual” vem o todo23.
A terceira, Causa Eficiente ou “o princípio do movimento e repouso”, pode ser entendida como o
agente responsável pela transformação, seja o início de um processo ou sua interrupção. Aristóteles fala do
sêmen, que apesar de não ser o agente, tem em si o princípio que leva ao desenvolvimento –
transformação de algo simples em indivíduo adulto – de um organismo, sendo a fonte que origina a

22
Ernst Mayr. O desenvolvimento do pensamento biológico: diversidade, evolução e
herança. Brasília: UnB, 1998.
23
Roberto de Andrade Martins. “A doutrina das causas finais na Antiguidade: a teleologia
na natureza, segundo Aristóteles”. Filosofia e História da Biologia, v.8, n.2, p. 167-209,
2013.

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mudança; é o que desencadeia o processo vital de um novo animal. A última causa, Causa Final ou “aquilo
para cujo benefício”, diz respeito à finalidade, propósito, objetivo, fim (τέλος) de dado fenômeno. Nos
estudos dos seres vivos é o tipo de causa que mais prendeu Aristóteles por ser aquela que responde
perguntas do tipo “para que isso está sendo feito” ou “para que isso serve?”. Cabe a nós um olhar mais
atento a este último tipo de causa – em sua relação com as demais – pois suas respostas indicam “aquilo
para cujo benefício” algo existe, que tende a ser o que é melhor23.
Das quatro causas, a última difere das demais por trazer em si uma dimensão axiológica, uma vez
que se a finalidade das coisas é algo bom, ou melhor do que os meios que a ela conduz, o filósofo atribui um
valor. Além disso, Aristóteles elenca duas categorias sujeitas às causas dos fenômenos. Existem aquelas
que estão associadas a uma intenção, um planejamento consciente, o pensamento; que pode ser
exemplificada como a construção de uma canoa. O artesão (causa eficiente) coleta a madeira no ambiente
(causa material) e constrói a canoa (causa formal) para navegar (causa final). A madeira já existia antes do
processo e continua a existir após a transformação, porém sintetizada em algo novo, a canoa, que é fruto
do pensamento intencional de alguém, o homem. A segunda categoria, contudo, é aquela que difere
Aristóteles de todos os seus predecessores23.
Para o filósofo, existem fenômenos que são independentes da intenção e do pensamento de
alguém e que podem ser explicados teleologicamente. Aqueles que não são produtos de uma intenção ou
pensamento são o resultado do que ele chama de physis, ou natureza. Para compreender a ideia de
adaptação biológica no sistema explicativo aristotélico é necessário, antes, compreender a relação entre
as causas dos fenômenos naturais e sua visão de natureza, uma vez que a teleologia do filósofo é melhor
sucedida nas explicações sobre os seres vivos, dado que grande parte de suas especulações se baseiam
nas investigações desses objetos. As substâncias naturais configuram o paradigma dos organismos 24.
Muitos, antes de Aristóteles, justificaram a finalidade dos fenômenos a partir da aceitação de uma
inteligência ou razão superior, que poderia ser entendida como um ente antropomorfizado – como o
demiurgo de Platão (429-347 a.C.) descrito em sua obra Timeu – ou algo mais abstrato, como proposto
por Anaxágoras25 (500-428 a.C.). Contudo, Aristóteles discutiu os exemplos tradicionalmente utilizados

24
Ransome Johson. Aristotle on teleology. Oxford: Clarendon Press, 2005.
25
“Anaxágoras propôs uma teoria de todas as coisas, o que significa dizer que, assim como
os demais pré- socráticos, ele tentou definir a complexidade, a multiplicidade do mundo tal
qual se apresenta, não através de meras conjecturas religiosas e míticas, ou ensaiando
passos iniciais em uma ciência, assaz preocupada com um método ou uma explicação
empiricamente viável. O objetivo de Anaxágoras era explicar todo o cosmos: seu
pensamento não se dirigia a uma área específica [...] mas ao pensamento do todo. Do que
as coisas são feitas; como as coisas se tornaram o que são; como comportam-se os corpos
celestes; como se dá o desenvolvimento de homens, plantas e outros seres vivos; como
conhecemos o mundo” (NETO, N. R. M. “Uma introdução ao pensamento de Anaxágoras de
Clazômenas”. PHRONESIS: Revista do Curso de Direito da FEAD, n. 9, p. 23-59, jan./dez.
2013, p.27).
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para descrever os fenômenos naturais. O filósofo questiona, por exemplo, o motivo – para que – da chuva;
ou seja, se ela cai em benefício da plantação ou se existe outra razão, por mera necessidade natural, e
como consequência os cereais crescem, mas não para que eles cresçam. Pois quando uma chuva destrói
uma plantação, ninguém defende que choveu para que a plantação fosse destruída. Outro exemplo que
Aristóteles discute, e que tem relação direta com a ideia de adaptação, vem de Sócrates: os dentes
incisivos são cortantes para cortar os alimentos, e os molares são achatados para triturar, ou essas e outras
partes corporais poderiam surgir sem essa finalidade, porém apresentar tal utilidade por coincidência?
Como já descrito anteriormente, Empédocles propôs um sistema explicativo que se aproxima de
forma muito incipiente à ideia de seleção natural. Ao assumir que as partes dos organismos surgem em
decorrência de duas forças – o amor e a contenda – e que a união dessas partes aleatoriamente em um
caos primordial poderia ou não gerar seres viáveis, aptos a sobrevivência e reprodução, o pré-socrático
recorre ao acaso para justificar a adaptação dos organismos ao meio. Aristóteles rejeitou a proposta de
Empédocles por defender que o mundo não é caótico, pois todos os fenômenos naturais (ou quase todos
de que se tinha conhecimento) acontecem segundo uma regularidade. Aquilo que acontece ao acaso ou
espontaneamente não possui essa característica26.
Qual o significado de natureza – physis – para Aristóteles? Para ele, existem duas classes de
objetos: as que possuem um princípio primário inato, que é fonte de movimento e repouso, e que existe
por si mesma. E aquelas que foram transformadas por uma ação externa ao objeto, não guardando em si o
princípio de movimento e repouso. Para exemplificar essas duas classes, ele compara organismos vivos
com objetos feitos pelo homem, intencionalmente a partir de elementos do ambiente (como a cama e a
roupa). Portanto, natureza é um tipo de dinamismo interno, uma força direcional27.
O melhor exemplo para compreender a ideia de natureza de Aristóteles é dado por ele mesmo em
sua obra “Física”28. O processo que faz com que uma semente chegue à planta adulta é considerado
natural porque depende de uma característica que é inata à própria semente: a semente de uma oliveira
não pode dar origem a uma macieira. Contudo, Aristóteles admite que o ambiente pode interferir no
processo abortando-o ou interrompendo-o por falta de condições adequadas, como temperatura e
umidade. É importante destacar que a natureza enquanto uma força inerente à tudo o que é natural não
leva a uma transformação incessante, ao acaso. Mas os processos naturais de transformação resultam
em um fim (telos), que é considerado pelo filósofo o melhor daquilo que pode ser: todo animal ou planta

26
João Francisco Nascimento Hobuss. Introdução à história da filosofia antiga. Pelotas:
NEPFIL online, 2014.
27
Roberto de Andrade Martins. “A doutrina das causas finais na Antiguidade: a teleologia
na natureza, segundo Aristóteles”. Filosofia e História da Biologia, v.8, n.2, p. 167-209,
2013.
28
Aristóteles. Física I-II. Campinas-SP: Editora Unicamp, 2009.

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possui uma fase adulta, que é o estado “daquilo para cujo benefício” o organismo se desenvolveu. O
último estágio da vida de um organismo é sua morte, mas segundo Aristóteles a morte não é sua
finalidade, pois não representa o melhor que poderia ser. Estar vivo é melhor que estar morto, assim, a
fase adulta do organismo é seu fim, no qual apresenta todas as características positivas. À medida que o
ser envelhece, ele perde certas características e, por isso, o fim “para cujo benefício” do organismo é sua
fase adulta, e não sua morte28.
Na cosmogonia de Aristóteles, a transformação dos animais e das plantas é um processo que se
dá através de causas internas. Uma planta adulta, completa, origina uma semente que recebe dela sua
forma, no entanto, essa forma permanece presente inicialmente apenas como uma potencialidade, a
capacidade de vir a ser. O processo de transformação da semente em planta adulta faz com que a forma
passe de um estágio potencial para um estado de completude. O fim desse processo é a própria forma, que
agora existe em seu estado de completude, ou seja, o resultado do processo ou transformação. Nesse
sentido, finalidade e forma acabam coincidindo. Para entender os organismos, Aristóteles parte da
compreensão da essência e das finalidades de cada estrutura biológica, para depois analisar os outros
tipos de causa. Baseado em dissecações de animais e na observação da vida, hábitos e processos de
reprodução, o filósofo descreveu com precisão diversos organismos. Seguem alguns exemplos desses
registros que resistiram até os dias de hoje:

Os ossos, por exemplo, que, por natureza, são duros, estão concebidos para preservar
os tecidos moles, nos seres que os possuem. Nos que os não o têm, algo de análogo
lhes faz a função, como, nos diferentes peixes, as espinhas ou as cartilagens. Entre os
animais, há os que apresentam esta proteção no interior; alguns não sanguíneos têm-
na no exterior, caso dos crustáceos, todos eles (os caranguejos e as lagostas, por
exemplo) e dos testáceos (por exemplo, as chamadas ostras). Em todas estas
espécies o elemento análogo à carne está no interior, enquanto aquilo que a mantém e
a protege
– que é uma parte terrosa – está no exterior. Assim, para assegurar a continuidade
destes animais, que a natureza dotou de pouco calor uma vez que se trata de não
sanguíneos, a carapaça que os envolve, como uma espécie de fornalha, conserva o
calor que neles se gera29.

Assim os quadrúpedes têm as orelhas destacadas e implantadas acima dos olhos, pelo
menos à primeira vista. Mas trata-se só de aparência, que se deve ao fato de estes

29
Aristóteles. Partes dos animais. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa,
2010.
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animais não estarem eretos, mas inclinados. Como estas espécies se movem sobretudo
nessa posição, tanto mais útil lhes é que as orelhas se lhes levantem e se movam;
assim, com o movimento em todas as direções, melhor captam os ruídos. As aves têm
apenas canais auditivos, devido à dureza da pele e ao fato de não terem pelos, mas
penas. São, portanto, desprovidas de uma matéria capaz de lhes moldar as orelhas. A
mesma explicação se aplica aos quadrúpedes ovíparos que são cobertos de escamas.
Entre os vivíparos, também a foca não tem orelhas, dispondo apenas de canais
auditivos, por se tratar de um quadrúpede malformado30.

Como, por natureza, o homem se mantém ereto, não tem qualquer necessidade de
pernas à frente. Em sua substituição, a natureza dotou-o de braços e mãos. Anaxágoras
defende que é por ter mãos que o ser humano é, de todos os animais, o mais inteligente.
Mas é mais razoável considerar, pelo contrário, que é por ser o mais inteligente que ele
tem mãos. As mãos constituem, de fato, uma ferramenta; e a natureza, como faz um
indivíduo inteligente, atribui sempre um órgão a quem melhor o saiba usar. É mais
sensato dar flautas a um bom flautista do que ensinar a tocar quem tem flautas. É
sempre aquilo que é mais fraco que a natureza associa ao que é grande e forte, e não
o que é superior e maior ao que é mais fraco. Se este é um procedimento preferível, e
se a natureza, dentro do possível, privilegia a melhor solução, não é por ter mãos que
o homem é a criatura mais inteligente, mas o contrário. De fato, o ser mais inteligente é
o que é capaz de utilizar bem o maior número de ferramentas; e a mão corresponde
não apenas a uma, mas a várias ferramentas. Pode dizer-se que é uma espécie de
instrumento multiuso. É, portanto, ao ser que é mais capaz de adquirir o maior número
de técnicas que a natureza dotou da mais versátil das ferramentas, a mão30.

Não é possível, mesmo com todo um sistema explicativo tão complexo e descrições detalhadas,
admitir que Aristóteles antecipou o que hoje entendemos por adaptação. No entanto, a influência da filosofia
grega no estudo da vida e dos organismos, principalmente os trabalhos desse filósofo, foram tão
importante que reverberaram por quase dois mil anos no meio científico. O conceito atual de adaptação
biológica leva em consideração elementos que só foram elaborados a partir do século XIX, que serão
descritos posteriormente, além de estar sujeito a outros campos do conhecimento e não somente à
zoologia, cujo fundador é Aristóteles. Contudo, além de darem início ao movimento científico, os filósofos
gregos também lançaram as bases fundamentais para a ideia de adaptação biológica por meio da busca
30
Aristóteles. Partes dos animais. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa,
2010.
16
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das causas que determinam a forma dos seres vivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Kopnin (1978, p. 192)31 defende que “para o juízo não é absolutamente obrigatório que seu
predicado seja o reflexo do universal no objeto. Mas tão logo o desenvolvimento do juízo atinge o ponto
em que o conteúdo do seu predicado é constituído pelo reflexo do geral e do essencial, o juízo se converte
em conceito”. As palavras do autor denotam o objetivo principal desta pesquisa, que foi desvelar o
movimento do pensamento da antiguidade, na produção do conhecimento, que levou ideias simples
acerca de um fenômeno natural – adaptação biológica – à elaboração de um conceito central para a teoria
da evolução das espécies.
Seguindo o movimento da lógica dialética, que parte do particular para o universal para depois
retornar ao particular, o conceito de adaptação biológica é aquele do qual é possível compreender a
historicidade da teoria que unifica os conhecimentos biológicos, a teoria da evolução. Charles Darwin, em
suas teorias evolutivas, já elencava a adaptação dos seres vivos como um mistério a ser resolvido, sendo
que qualquer teoria evolutiva que não propusesse explicações satisfatórias acerca do problema, não
poderiam ser verdadeiras32. De igual forma, Ridley33 coloca a adaptação como elemento central a ser
compreendido. Nesse sentido, buscamos resgatar seu percurso lógico e histórico, pois desde o princípio
da ciência Ocidental (com os filósofos pré-socráticos) têm-se sistemas explicativos que se propõem a
compreender o fenômeno. Além disso, Kopnin34 defende que a produção do conhecimento é dinâmica, e
se dá na relação entre ideias, juízos e conceitos; pensamento, deduções e elaborações; lógica e história.
Para apreender a historicidade do conceito de adaptação, optamos por trazer filósofos e
naturalistas que de alguma maneira abordaram esse fenômeno, sendo importantes representantes da
construção do conhecimento de seu tempo. Por ser um processo histórico, nossa apresentação teve
caráter linear, cabendo ressaltar, porém, a valorização dos elementos de permanência e ruptura ao longo
dos períodos discutidos.
Esperamos que a produção aujude professores e professoras pois acreditamos que só uma
mudança de postura radical frente a concepção de educação no Estado brasileiro – principalmente em
tempos de obscurantismo e incertezas – pode tornar a escola aquilo que ela é essencialmente: lugar de
transformação, de tornar o sujeito que aprende consciente de seu papel numa sociedade inserida em um
ambiente natural, e ao sujeito que ensina ratificar sua responsabilidade e autoridade como agente

31
Pável Vasílievich Kopnin. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira (Coleção Perspectivas do Homem), 1978.
32
Charles Robert Darwin. A origem das espécies. São Paulo: Edipro, 2018.
33
Mark Ridley. Evolução. Porto Alegre, Artmed: 2006.
34
Pável Vasílievich Kopnin. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira (Coleção Perspectivas do Homem), 1978.
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transformador. E isso só é possível mediante a apropriação de todos os aspectos do fazer docente,


inclusive o profundo e consciente domínio da ciência que ensina.

SOBRE OS AUTORES:

Lucas Salvino Gontijo


Egresso do Programa de pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática – UFG
Professor de Robótica Educacional no Serviço Social da Indústria | SESI-Goiás
[email protected]

Simone Sendin Moreira Guimarães


Departamento de Educação em Ciências
Programa de pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática – UFG
Instituto de Ciências Biológicas
Universidade Federal de Goiás
[email protected]

Artigo recebido em 19 de outubro de 2021


Aceito para publicação em 16 de fevereiro de 2012

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