Processos de Sujeicao Uma Reflexao A Luz de Butler

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Processos de sujeição: uma reflexão à luz de Butler e Foucault1

Subjection processes: a reflection based on Butler and Foucault

Procesos de sujeción: una reflexión de Butler y Foucault

Georgia de Mattos - Universidade de Sorocaba | Sorocaba | São Paulo | Brasil. E-mail:


[email protected] | Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6060-5405

Tarcyanie Cajueiro Santos - Universidade de Sorocaba | Sorocaba | São Paulo | Brasil. E-mail:
[email protected] | Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7913-3492

Resumo: Este artigo busca ampliar a discussão sobre os estudos de gênero e as questões que
constituem os sujeitos, especialmente no tocante à área de comunicação, e reflete sobre os processos
de sujeição – do sujeito – enquanto forma de poder. Parte-se do seguinte problema: o que constitui o
sujeito no discurso da youtuber Louie Ponto sobre relações de gênero? Para tanto, discorre-se sobre
a constituição do sujeito e as relações de poder que envolvem este processo a partir de Foucault e
Butler. Como percurso metodológico, utiliza-se a análise discursiva, amparada na abordagem de Stuart
Hall. Com base no pensamento foucaultiano e butleriano sobre a constituição do sujeito, levando em
conta as relações de poder implicadas neste processo, percebeu-se que o discurso de Louie Ponto se
encontra afinado a essa perspectiva, na qual o poder atua numa esfera ambígua entre a condição
externa e anterior ao sujeito, mas, ao mesmo tempo, no sujeito, enquanto processo que o constitui
como tal.

Palavras-chave: relações de gênero; formação do sujeito; sujeição.

Abstract: This article seeks to broaden the discussion on gender studies and the issues that constitute
subjects, especially regarding the area of communication, and reflects on the processes of subjection –
of the subject – as a form of power. It starts with the following problem: what constitutes the subject in
the discourse of youtuber Louie Ponto on gender relations? In order to do so, we discuss the constitution
of the subject and the power relations that involve this process based on Foucault and Butler. As a
methodological approach, discursive analysis is used, supported by Stuart Hall's approach. Based on
Foucauldian and Butlerian thinking about the constitution of the subject, taking into account the power
relations involved in this process, it was noticed that Louie Ponto's discourse is in tune with this
perspective, in which power acts in an ambiguous sphere between condition external and prior to the
subject, but, at the same time, in the subject, as a process that constitutes it as such.

Keywords: gender relations; subject formation; subjection.

1 Versão do artigo apresentado no Grupo de Trabalho Mídias Contemporâneas e práticas socioculturais


do XIV Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Cultura, realizado pelo Programa de Pós-
Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba, Universidade de Sorocaba –
Uniso – Sorocaba, SP, 30 de novembro de 2020.
https://doi.org/10.22484/2318-5694.2022v10id4919

Copyright @ 2022. Conteúdo de acesso aberto, distribuído sob os termos da Licença Internaonal –
Creative Commons — Atribuição 4.0 Internacional — CC BY 4.0
Resumen: Este artículo busca ampliar la discusión sobre los estudios de género y las cuestiones que
constituyen sujetos, especialmente en lo que se refiere al área de la comunicación, y reflexiona sobre
los procesos de sujeción -del sujeto- como forma de poder. Se parte del siguiente problema: ¿qué
constituye el sujeto en el discurso del youtuber Louie Ponto sobre las relaciones de género? Para ello,
discutimos la constitución del sujeto y las relaciones de poder que envuelven este proceso a partir de
Foucault y Butler. Como enfoque metodológico se utiliza el análisis discursivo, apoyado en el enfoque
de Stuart Hall. A partir del pensamiento foucaultiano y butleriano sobre la constitución del sujeto,
teniendo en cuenta las relaciones de poder involucradas en ese proceso, se percibió que el discurso
de Louie Ponto sintoniza con esta perspectiva, en la que el poder actúa en un ámbito ambiguo entre
condición externa y condición. anterior al sujeto, pero, al mismo tiempo, en el sujeto, como proceso que
lo constituye como ta.

Palabras clave: relaciones de género; formación de sujetos; sujeción.

Recebido em: 11/02/2022

Aprovado em: 18/10/2022

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1 Introdução

O filósofo, historiador e ativista, Michel Foucault, foi um dos pensadores pós-


estruturalistas mais influentes em várias áreas do saber, sobretudo, nos estudos de
gênero, dentre os quais, a teoria queer e sua ênfase nas inter-relações entre saber,
poder e sexualidade (SPARGO, 2019). Butler, por seu turno, apresenta-se como uma
das principais filósofas que contribuíram para os estudos feministas ao desconstruir
os conceitos de gênero que fundamentaram esses estudos. Para esta autora, as
categorias de sexo, gênero e desejo são efeitos de uma formação específica de poder,
constituindo-se como “efeitos de instituições, práticas e discursos, cujos pontos de
origem são múltiplos e difusos” (BUTLER, 2003, p. 9).

Este artigo busca ampliar a discussão sobre os estudos de gênero e as


questões que constituem os sujeitos, especialmente no tocante à área de
comunicação, e reflete sobre os processos de sujeição – do sujeito – enquanto forma
de poder. Parte-se do seguinte problema: o que constitui o sujeito no discurso da
youtuber Louie Ponto sobre relações de gênero? Para tanto, discorre-se sobre a
constituição do sujeito e as relações de poder que envolvem este processo a partir de
Michel Foucault e Judith Butler. Como percurso metodológico, utiliza-se a análise
discursiva, amparada na abordagem construcionista de Stuart Hall. O referencial
teórico e metodológico se fundamenta no pensamento butleriano acerca da formação
do sujeito relacionado ao conceito de “relações de poder” no processo de formação
do sujeito, de Michel Foucault (1995). Para melhor clareza do assunto, o artigo se
divide em duas seções. Na primeira, esboça-se a concepção de Foucault a respeito
da constituição do sujeito, com base em seu texto “O sujeito e o poder”. Na segunda
seção, apresenta-se então, o pensamento de Butler acerca do sujeito em relação aos
conceitos de Foucault.

A análise realizada a partir de tal corpus não reflete a complexidade das


problemáticas sobre as questões relativas ao sujeito e suas sujeições, que perpassa
outros livros e textos de Butler, assim como, a imensa obra de Foucault. No entanto,
ainda assim, consideramos que o recorte efetuado é importante para fins analíticos,
especialmente, no que diz respeito aos estudos que se debruçam sobre as produções
midiáticas e suas relações com as subjetividades.

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2 A perspectiva foucaultiana sobre o sujeito e o poder

Em seu texto, O Sujeito e o Poder, publicado em 1995, por Hubert Dreyfus e


Paul Rabinow, Foucault começa esclarecendo que seus estudos sempre pretenderam
criar uma história dos diferentes modos pelos quais as pessoas se tornam sujeitos e,
para isso, necessitava-se sempre lidar com as questões de poder, embora, afirmasse
que não é o poder, mas o sujeito, que constitui o tema geral de seus estudos.

Para Foucault (1995), o sujeito está situado tanto em relações de produção


quanto de significação, assim como, em relações de poder muito complexas. Ao longo
de sua obra, utilizou-se da história e da teoria econômica para compreender as
relações de produção, além do campo da linguística e da semiótica para estudar as
relações de significação, mas declara que não há instrumentos de trabalho para
estudar as relações de poder. Desse modo, ele toma como base os modelos legais,
para pensar o poder como um modelo institucional, por exemplo, o Estado.

Partindo desse ponto de vista, o autor elabora uma conceituação que permite,
de forma geral, definir o exercício do poder, já que o ser humano se constitui como
sujeito nas relações de poder. Um dos aspectos que o autor estabelece para tal
definição é a importância de verificar o tipo de realidade com a qual estamos lidando,
ou o contexto específico em que estamos inseridos, pois o poder implica não somente
uma questão teórica, mas faz parte de nossa experiência de vida. Assim, Foucault
(1995, p. 234) defende uma nova economia das relações de poder, em suas palavras:
“mais empírica, mais diretamente relacionada à nossa situação presente, e que
implica relações mais estreitas entre teoria e a prática”.

Para o autor, o poder não é arbitrário e de domínio absoluto, mas atua por meio
de conflitos, ou de antagonismos estratégicos. Isso significa que as relações de poder
estão sempre em disputas, ou seja, há sempre formas de resistências contra as
diferentes formas de poder. Nessa concepção, para descobrir o que significa a
sanidade, pode-se investigar o que ocorre no campo da insanidade. Do mesmo modo,
ele afirma que, para compreender as relações de poder, podem-se investigar as
formas de resistências, dito de outra maneira, investigar as oposições existentes nas
relações de poder. Por exemplo, as oposições que se desenvolveram ao longo da

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história: o poder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre os filhos, do psiquiatra
sobre o doente mental, da medicina sobre a população, e assim por diante.

Para ele, essas oposições possuem caráter de luta, em que forças são
disputadas constantemente, havendo pontos em comum em todas elas. Primeiro, são
lutas transversais, não se limitam a um único país, ou seja, não estão confinadas a
uma forma política e econômica particular de governo. Segundo, o objetivo dessas
lutas inscreve-se em seus efeitos de poder enquanto tal. Para ilustrar, Foucault cita a
profissão médica, que não é criticada por ser lucrativa, mas pelo fato de exercer um
poder sem controle sobre os corpos das pessoas. Terceiro ponto em comum entre as
lutas é que todas são imediatas, pois são as instâncias de poder mais próximas as
criticadas (e porque não dizer, enfrentadas). A preocupação não está em objetificar o
“inimigo mor”, como determinado sistema, por exemplo, nem em encontrar soluções
para tais problemas no futuro: é o efeito imediato do poder que preocupa.

Como quarto elemento, Foucault (1995, p. 234-235) cita que são lutas que
questionam o estatuto do indivíduo: “por um lado, afirmam o direito de ser diferente e
enfatizam tudo aquilo que toma os indivíduos verdadeiramente individuais. Por outro
lado, atacam tudo aquilo que separa o indivíduo, que quebra sua relação com os
outros, fragmenta a vida comunitária”. Isso implica que essas lutas não são nem a
favor nem contra o “indivíduo”, mas batalhas que se travam contra o “governo da
individualização”. Já o quinto ponto se refere aos efeitos de poder, que estão
relacionados aos privilégios do saber, de deter conhecimento ou de estabelecer uma
“verdade”. O último ponto considera que essas lutas estão em torno da questão “quem
somos?”, num sentido ontológico, pela busca em determinar “quem somos”, de outro
modo, que lugar pertencemos na sociedade. Segundo o autor:

Esta forma de poder aplica-se à vida cotidiana imediata que categoriza o


indivíduo, marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria
identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os
outros têm que reconhecer nele. É uma forma de poder que faz dos indivíduos
sujeitos. Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo
controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência
ou autoacontecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e
torna sujeito a. (FOUCAULT, 1995, p. 235).

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É neste segundo significado, no âmbito da consciência, que Butler está
interessada em discutir na obra A vida psíquica do poder, da qual exploraremos mais
adiante. No momento, interessa-nos traçar a perspectiva foucaultiana, que entende
essa sujeição como uma luta contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o
submete, sendo assim, são lutas contra a própria sujeição, contra as formas de
subjetivação e submissão.

A partir disso, Foucault (1995) se dedica a demarcar como o poder é exercido,


que conteúdos significativos podem ser apontados ao trabalhar este termo. Trata-se
de uma questão empírica de “como isso acontece?”, numa investigação crítica do
poder. Assim, para o autor, o que está em jogo no poder são as relações entre
indivíduos, ou entre grupos, portanto, as estruturas de poder pressupõem que “alguns”
exerçam poder sobre “outros”. Dessa forma, o poder está interligado a diversos
deslocamentos, por isso, ele denomina de “relações de poder” e não de um “poder”
fundamental.

Além disso, ele busca compreender em que consiste a especificidade das


relações de poder, pois “só há poder exercido por ‘uns’ sobre os ‘outros’; o poder só
existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo de possibilidade esparso
que se apoia sobre estruturas permanentes” (FOUCAULT, 1995, p. 242). O que ele
sustenta é que o poder não é da ordem do consentimento, pois suas relações se
articulam a partir de dois elementos: o “outro” – aquele sobre o qual se exerce poder;
e considerar que este outro é instituído de ação; logo, não está passivamente
consentido com sua submissão ao poder.

Quando definimos o exercício do poder como um modo de ação sobre as


ações dos outros, quando as caracterizamos pelo “governo” dos homens, uns
pelos outros – no sentido mais extenso da palavra, incluímos um elemento
importante: a liberdade. O poder só se exerce sobre “sujeitos livres”,
enquanto “livres” – entendendo-se por isso sujeitos individuais que têm diante
de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações
e diversos modos de comportamento podem acontecer. Não há relação de
poder onde as determinações estão saturadas – a escravidão não é uma
relação de poder, pois o homem está acorrentado (trata-se então de uma
relação física de coação) – mas apenas quando ele pode se deslocar e, no
limite, escapar. (FOUCAULT, 1995, p. 244).

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Portanto, nessas relações (ou lutas), a liberdade é uma precondição da
existência do poder, ela é necessária para que o poder se exerça. Nessa perspectiva,
Foucault não entende o poder como uma violência em si mesmo, como algo que deva
ser escondido, muito menos consentido, mas, ao contrário, entende como um conjunto
de ações sobre ações possíveis, que opera em um campo de possibilidades, inscrito
por sujeitos ativos, ou seja, as relações de poder são produtivas na medida em que
possibilitam resistências.

Outra questão de que Foucault se ocupa é com o modo de analisar as relações


de poder. Para isso, ele estabelece cinco critérios para uma análise concreta. A
primeira delas é o “sistema das diferenciações”, pois toda relação de poder opera por
diferenciações, sejam elas sociais, econômicas, culturais e etc., desse modo, as
diferenciações são as condições e os efeitos de toda relação de poder; segundo, o
“objetivo” que é perseguido por aqueles que exercem poder sobre a ação de outros,
seja para manutenção de privilégios, acúmulo de lucros e etc.; o terceiro critério são
as “modalidades instrumentais”, ou seja, de que forma exerce o poder, através do uso
de armas, efeitos de discurso, sistemas de vigilância e, assim em diante, podendo
conter dispositivos materiais ou simbólicos. Outro critério são as “formas de
institucionalização”, que incluem os mais variados modelos de instituição: familiar,
escolar, militar e etc.; e, por fim, os “graus de racionalização”, que dizem respeito ao
funcionamento das relações de poder como ações entrepostas num campo de
possibilidades, ou seja, o exercício do poder é suscetível à transformação.

Por último, Foucault (1995) compara as relações de poder com relações


estratégicas, dado que as relações de poder se utilizam de mecanismos para se
exercer, pois se confrontam com a insubmissão e a liberdade. As estratégias são
essencialmente necessárias, justamente porque as relações de poder estão em
constantes disputas e resistências. De acordo com Foucault (1995, p. 248), “implica,
então, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta”.

Essas relações de lutas e disputas de poder, ou como o autor afirma, ações


sobre as ações de outros, ocorrem de forma múltipla e complexa em nossa sociedade,
por isso, para uma análise das relações de poder, é imprescindível reconhecer que
estas se enraízam no conjunto de uma rede social, que abarca questões da ordem do

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social, do cultural e do pessoal, como o psíquico do sujeito. E é neste ponto que Butler
relaciona o pensamento foucaultiano sobre as relações de poder com os modos de
sujeição, em seu aspecto psíquico, em que veremos na seção seguinte.

3 Relações de poder, sujeição e resistência

Butler (2019) concorda com a concepção de Foucault de que o poder não é


somente restritivo, mas também produtivo e, assim, abre-se para possíveis
resistências. Mas ela abrange a reflexão e traz o aspecto psíquico para a discussão.
Segundo a autora, mesmo que Foucault tenha identificado uma ambivalência na
formulação do sujeito, deixou de tratar o campo da psique, além de não explorar sobre
o poder que está imbricado na dupla valência entre a subordinação e a produção.
Para Butler (2019, p. 10), a “‘sujeição’ significa tanto o processo de se tornar
subordinado pelo poder quanto o processo de se tornar um sujeito”, ou seja, a própria
subordinação se torna necessária para a formação do sujeito. “Portanto, se a
submissão é uma condição da sujeição, faz sentido perguntar: qual é a forma psíquica
que o poder adota?” (BUTLER, 2019, p. 10). A busca de uma possível resposta estaria
para Butler na articulação entre a teoria do poder com a teoria da psique. Seu ponto
de partida é que enquanto forma de poder, a sujeição é inevitavelmente paradoxal.
Por isso, reconhecer que somos dominados por um poder é um lado da questão, o
outro é descobrir que, para nossa formação como sujeitos, dependemos desse
mesmo poder.

Estamos acostumados a pensar no poder como algo que pressiona o sujeito


de fora, que subordina, submete e relega a uma ordem inferior. Mas,
consoante Foucault, se entendemos o poder também como algo que forma o
sujeito, que determina a própria condição de sua existência e a trajetória de
seu desejo, o poder não é apenas aquilo a que nos opomos, mas também, e
de modo bem marcado, aquilo de que dependemos para existir e que
abrigamos e preservamos nos seres que somos. (BUTLER, 2019, p. 9-10).

Desse modo, o sujeito é iniciado, ou formulado, a partir de sua submissão ao


poder, pela produtividade discursiva, num sentido foucaultiano; paradoxalmente, a
sujeição consiste nessa dependência fundamental de um discurso que inicia o sujeito
e sustenta sua ação – sua “resistência”. Butler (2019) afirma que Foucault identifica
que as matrizes de poder e de discurso, as quais constituem o sujeito, não são

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singulares nem mesmo soberanas em sua ação produtiva, mas que assumem uma
forma psíquica que concebe a identidade pessoal do sujeito, embora não se aprofunde
nessa relação. Portanto, para Butler, é imprescindível compreender como o poder
produz o sujeito e como o sujeito recebe esse poder pelo qual é inaugurado, assim, a
chave para a compreensão está na explicação da formação do sujeito.

Para Butler (2019), o sujeito surge conjuntamente ao seu inconsciente. Sendo


assim, a formação do sujeito possui um valor psicanalítico específico, ao considerar
que “nenhum sujeito surge sem um apego apaixonado àqueles de quem ele depende
fundamentalmente” (BUTLER, 2019, p. 15). Mas a autora ressalva que esse apego
apaixonado pela própria subordinação (no sentido psicanalítico) não é de
responsabilidade final do sujeito, ao contrário, ela defende que o apego à sujeição é
gerado pelo próprio poder e que parte dessa operação do poder se explica no efeito
do psíquico, como a autora chama, é uma das produções do poder mais insidiosas.

Consideremos que o sujeito não seja apenas formado na subordinação, mas


também que a subordinação forneça a condição de possibilidade contínua do
sujeito. O amor de uma criança é anterior ao julgamento e à decisão; quando
a criança é cuidada e nutrida de uma forma “boa o suficiente”, o amor
acontece primeiro; só depois é que ela terá a chance de discernir entre os
que ela ama. Em outras palavras, não é que a criança ame cegamente (pois,
desde muito cedo, já existe algum tipo importante de discernimento e
“conhecimento”), mas sim que, para a criança persistir, no sentido psíquico e
social, é preciso haver a dependência e a formação do apego: não existe a
possibilidade de não amar quando o amor está vinculado aos requisitos da
vida. A criança não sabe ao que se apega; contudo, tanto o infante quanto a
criança precisam se apegar para persistir por si e como si mesmos. O sujeito
não surge sem essa ligação, que se forma na dependência, mas também
nunca lhe é possível, no decorrer de sua formação, “enxergar” totalmente
esse elo. (BUTLER, 2019, p. 16-17).

Dessa maneira, o sujeito se forma por meio do apego apaixonado a quem o


subordina, a subordinação, então, é a peça fundamental do “vir a ser” do sujeito. A
subordinação, segundo Butler, é uma submissão obrigatória para a formação do
sujeito, além de ser a condição de possibilidade da ação do sujeito – o que a autora
denomina de ambivalência. Assim, a autora sugere que a ação do sujeito pode ser
entendida como efeito da própria sujeição, e quando o sujeito se opõe à subordinação,
reitera sua sujeição – concepção esta, de acordo com Butler, compartilhada tanto pela
psicanálise quanto pelos relatos foucaultianos. Isso significa que a sujeição pode se
tornar um lugar de alteração, já que o mesmo poder que é exercido sobre o sujeito é,

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também, assumido pelo sujeito, tornando-se condição necessária – essa dupla
valência – do vir a ser do sujeito.

Mas é neste ponto que Butler (2019) aponta, diferentemente das postulações
de Foucault, que o poder considerado como condição do sujeito não é,
necessariamente, o mesmo poder que o sujeito venha a exercer. Para ela, esse é um
ponto crucial da discussão, pois o poder que inaugura o sujeito perde sua continuidade
para o poder que é exercido pelo sujeito. O poder muda de status, há uma inversão
significativa quando o poder passa de uma condição da ação para a “própria” ação do
sujeito. A autora argumenta que, ao assumir o poder, este não se retira facilmente de
um lugar para outro, não se trata de uma transferência intacta, mas, quando o sujeito
se apropria do poder – esse ato de apropriação – implica uma alteração do poder.
Consequentemente, esse poder assumido, ou apropriado pelo sujeito poder atuar
contra o poder que lhe possibilitou ser assumido. Para Butler (2019, p. 21), “na medida
em que as condições de subordinação tornam possível a assunção do poder, o poder
assumido permanece ligado a essas condições, mas de forma ambivalente”. Desse
modo, o poder assumido pelo sujeito, paradoxalmente, conserva sua subordinação ao
mesmo tempo em que se opõe a ela. A ambivalência, nesse sentido, é tanto
resistência quanto recuperação do poder, que forma o vínculo da ação do sujeito.

[...] O poder não só age sobre o sujeito como também, em sentido transitivo,
põe em ato o sujeito, conferindo-lhe existência. Como condição, o poder
precede o sujeito. No entanto, o poder perde sua aparência de prioridade
quando é exercido pelo sujeito, uma situação que dá origem à perspectiva
inversa de que o poder é efeito do sujeito, de que é algo que os sujeitos
efetuam. (BUTLER, 2019, p. 22, grifo da autora).

Isto é, o próprio processo de sujeição permite as condições de ação do sujeito,


condições de o sujeito resistir e se opor a esse poder, que permanece, em parte, em
suas condições de impelir o sujeito, como também, altera-se na apropriação que o
sujeito faz dele. Butler enfatiza que essa condição é possibilidade do processo de
sujeição, não é uma realização que parte do sujeito.

Seguindo esse pressuposto, Butler (2019) estabelece duas maneiras pelas


quais o poder age sobre o sujeito: primeiro, como modo de tornar o sujeito possível,
então, como condição de sua possibilidade e formação; segundo, como modo de
reiteração no “próprio” agir do sujeito. Ou seja, “como sujeito ao poder (que pertence

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a ele) e sujeito de poder (que o exerce)” (BUTLER, 2019, p. 23). A autora cita ainda
que o sujeito, dessa forma, ofusca poder com poder, pois no processo de sujeição,
dadas essas condições, o poder tanto possibilita quanto forma o sujeito. Diante disso,
Butler sustenta que a noção de poder sobreposto na sujeição pode ser formar a partir
de duas modalidades temporais: a primeira, o poder é sempre anterior ao sujeito, está
fora dele mesmo e operante desde o início; a segunda, o poder é efeito desejado do
sujeito. Essa segunda modalidade, como declara Butler (2019), possui, pelo menos,
dois conjuntos de significados: a) se o poder é efeito desejado do sujeito, a sujeição
é uma subordinação que o sujeito provoca em si mesmo. Porém, como essa
submissão forma o sujeito e este é precondição da ação, logo, b) a sujeição também
se torna o motivo de o sujeito garantir sua própria resistência e oposição ao poder.

Essa aparente contradição, que a autora denomina de ambivalência, está no


próprio sujeito que é em si mesmo esse lugar ambivalente, lugar este que o sujeito
surge tanto como efeito de um poder anterior a ele quanto como condição de
possibilidade de ação. Para Butler (2019, p. 23), “uma teoria do sujeito deve levar em
conta a total ambivalência das condições de sua operação”, e que distinguir essa
ambiguidade que há do poder que age sobre o sujeito e o poder que transitivamente
o põe em ato é, praticamente, indissolúvel, pois a ação do sujeito excede o poder que
a possibilita, em outras palavras, os propósitos do poder que atuam sobre o sujeito
não são os mesmos propósitos da ação do sujeito.

De acordo com a ideia butleriana, o poder se encontra nessa esfera ambígua:


nunca é apenas uma condição externa e anterior ao sujeito e, também, não pode ser
identificado exclusivamente com o sujeito. O que permite as condições do poder
persistirem – ou “transitarem” – são as reiterações feitas dele, e é o sujeito o local
dessas reiterações. As reiterações são condições temporalizadas, ou seja, são ativas
e produtivas, não se trata de estruturas estáticas e meramente mecânicas. Butler
(2019) afirma que apesar dessa ambivalência ser muito estranha e até mesmo
desagradável, não se pode considerar a sujeição sem aceitar essa ambiguidade: a
ação do sujeito é derivada, precisamente, do poder ao qual o sujeito se opõe. Dito de
outro modo pela autora, o sujeito não é totalmente determinado pelo poder, tampouco
é totalmente determinante do poder, mas o sujeito é parcialmente essas duas coisas.

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Butler chama a atenção para a impossibilidade de romper essa ambivalência
no processo de sujeição. Embora o sujeito exceda o poder ao assumi-lo, ele excede
ao poder no qual está vinculado no princípio, ou podemos chamar daquele poder
“anterior” que possibilitou a ação do sujeito. Isso demonstra que, segundo Butler
(2019), o sujeito não pode suprimir nem anular a ambivalência que o constitui.
“Dolorosa, dinâmica e promissora, essa vacilação entre o ‘já existente’ e o ‘ainda por
vir’ é uma encruzilhada que religa cada passo que a atravessa, uma reiterada
ambivalência bem no cerne da ação” (BUTLER, 2019, p. 27). A subordinação, no
processo de sujeição, torna-se necessária para o vir a ser do sujeito, por isso mesmo,
essa ambivalência, apesar de contraditória, não pode ser dispensada para a própria
constituição do sujeito.

Até então, Butler se preocupa em relatar a sujeição a partir da psique do


indivíduo, os modos de internalização, os quais criam os mecanismos de
subordinação e, ao mesmo tempo, de sua própria existência; e compreender as
relações de poder imbricadas nesse processo. Mas a autora interroga ainda sobre a
questão da resistência, no sentido prático da ação, para compreender em que consiste
a resistência em termos foucaultianos e psicanalíticos. Para Foucault, o sujeito é
produzido por meio da sujeição, mas nunca em sua totalidade, pois está sempre em
processo de produção, produz-se repetidamente, isto significa que é na repetição que
o sujeito se produz e a partir disso possibilita efeitos que debilitam a força da
normalização. Como exemplo, Butler (2019) cita o discurso sobre a
homossexualidade, que na concepção foucaultiana, surge contra o próprio regime de
normalização pelo qual é criado; a princípio, esse discurso é empregado a serviço da
heterossexualidade, mas é reapropriado e, depois, torna-se a serviço de sua
despatologização.

Outro exemplo de inversões de significado que a autora cita ocorre com os


termos “mulher” e “queer”, que num primeiro momento eram empregados de modo
reacionário, mas num outro momento, são empregados de modo contestador e
progressivo. Butler (2019, p. 107) acentua que esses exemplos não dizem respeito a
uma oposição entre o emprego de um termo e o outro emprego do termo, mas que
seu uso progressivo tanto exige como repete o uso reacionário com o objetivo de
“efetivar uma reterritorialização subversiva”.

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Se para Foucault a resistência é formulada como efeito do poder ao qual ela se
opõe, ou seja, nessa dupla possibilidade de ser tanto constituído pelos regimes
normalizadores quanto efeito de resistências a esses mesmos regimes; é neste ponto
que as postulações foucaultianas se afastam da psicanálise lacaniana, em que Butler
se apoia. Pois, na interpretação de Butler, num sentido lacaniano, a noção de poder
social se restringe ao campo simbólico, e a resistência fica situada no imaginário; já
na concepção foucaultiana, o simbólico é reformulado como relações de poder, e a
resistência como efeito do poder.

A concepção de Foucault dá início à passagem de um discurso sobre a lei,


concebido como jurídico (e que pressupõe um sujeito subordinado pelo
poder), para um discurso sobre o poder, que é um campo de relações
produtivas, reguladoras e contestadoras. Para Foucault, o simbólico produz
a possibilidade de suas próprias subversões, e essas subversões são efeitos
inesperados das interpelações simbólicas. (BUTLER, 2019, p. 106).

Butler consente com Foucault nesse aspecto da resistência e vai mais adiante
com esse pensamento, pois percebe que não há somente a possibilidade de inversão
de significados, abre-se um caminho para possibilidades significativas muito além
daquelas que o termo tinha sido previamente vinculado e empregado. E nesse
aspecto, com base na construção discursiva do sujeito, que está constantemente em
processo e incorpora atos repetidos ao longo do tempo através e pelos discursos de
poder/saber, o sujeito pode ser constituído pelo discurso, mas não ser,
necessariamente, determinado por ele, havendo sempre a possibilidade de ação.

Butler (2003), em outro texto, afirma que o sujeito negocia suas construções, e
é nesse ponto de negociação que emergem as possibilidades de subversão. Todavia,
como Butler adverte, não há possibilidade de ação fora das práticas discursivas, que
mantêm a inteligibilidade do sujeito. Portanto, repetir e incorporar tais práticas se torna
inevitável, mas é possível, nas reiterações, distanciar dos propósitos primeiros do
poder. Por isso, não existe toda e qualquer nova possibilidade, mas a viabilidade de
redescrever as possibilidades existentes no domínio da cultura.

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Se a subversão for possível, será uma subversão a partir de dentro dos
termos da lei, por meio das possibilidades que surgem quando ela se vira
contra a si mesma e gera metamorfoses inesperadas. O corpo culturalmente
construído será então libertado, não para seu passado “natural”, nem para
seus prazeres originais, mas para um futuro aberto de possibilidades
culturais. (BUTLER, 2003, p. 139).

Desse modo, as possibilidades de subversão só podem ocorrer dentro dos


termos da cultura, não existe realidade ou práticas fora dela. As próprias produções e
práticas discursivas presumem, de antemão, as possibilidades realizáveis cultural e
socialmente. Não existe, assim, sujeito fora dos termos e regimes normalizadores da
cultura; para Butler (2003), isso constitui uma impossibilidade cultural, além de ser um
sonho politicamente impraticável. Para a autora, a possibilidade de subversão se dá
no modo de repensar criticamente as possibilidades que existem nos próprios termos
do poder; essa conversão não se trata de uma consolidação, mas de um
deslocamento.

4 Metodologia

Para entender como o sujeito é constituído no discurso da youtuber Louie


Ponto, realizamos uma análise discursiva fundamentada na concepção teórica
construtivista, em Stuart Hall (1997), que considera os sentidos produzidos na e pela
linguagem. A teoria construtivista ou construcionista distingue o mundo material, onde
as coisas existem, do mundo simbólico, em que a representação, sentido e linguagem
operam. Nessa concepção, as coisas não significam por si mesmas, mas somos nós,
os atores sociais, que construímos sentido, através dos sistemas representacionais –
conceitos e signos.

Segundo Michel Foucault, discurso é uma forma de representar o


conhecimento sobre algum assunto, qual produz sentido pela linguagem. “O
‘discursivo’ tornou-se o termo geral utilizado para se referir a qualquer abordagem em
que o significado, a representação e a cultura sejam considerados constitutivos”
(HALL, 1997, p. 6). Mais do que isso, o discurso também “governa” a forma como
determinadas questões podem ser significativamente faladas e debatidas. Dentro da
concepção foucaultiana, como explica Hall (1997), o discurso influencia no modo

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como ideias são postas em prática e como são usadas para regular a conduta das
pessoas.

Assim como o discurso “rege’ certas formas de falar sobre um assunto,


definindo uma maneira aceitável e inteligível de conversar, escrever ou se
conduzir, assim também, por definição, ‘exclui’, limita e restringe outras
formas de falar, de conduzir-nos em relação ao assunto ou construir
conhecimento sobre ele. (HALL, 1997, p. 44, tradução nossa).

Ao estabelecer um determinado conhecimento como “correto” e normativo, o


discurso adquire autoridade, que passa a constituir a “verdade” sobre esse
conhecimento e, dessa maneira, o discurso está sempre envolvido com relações de
poder, pois se efetua nas práticas sociais, regulando nossas condutas. Cada momento
histórico, manifesta-se com um discurso diferente, que substitui o discurso anterior,
produzindo assim, sempre novas concepções, que determinam as práticas sociais de
cada época.

5 Análise e interpretação do discurso da youtuber Louie Ponto

Interessa-nos compreender o discurso de Louie Ponto, uma vez que seu canal,
no YouTube, visa compartilhar e abordar questões sobre as experiências e vivências
LGBT+. O canal “Louie Ponto” existe desde 21 de abril de 2008. A princípio,
apresentava canções interpretadas por ela, mas, com o passar do tempo, passou a
trazer questões cotidianas, análises de filmes ou histórias em quadrinhos, programas
e outras produções de entretenimento que expunham, e expõem, a temática LGBT+.
O canal possui 671 mil inscritos e, em média, mais de 25 mil visualizações por vídeo.
Dessa forma, Louie está entre os canais mais seguidos que abordam questões de
gênero e sexualidade no Brasil. (TERTO, 2018).

No vídeo “E esse tal de empoderamento? (minha história)”, exibido no dia 22


de junho de 2020, com mais de 49 mil visualizações, a youtuber expõe sua opinião
sobre a temática do empoderamento, descoberta da sexualidade,
autoimagem/autoestima e sua importância para o público LGBT+. Este vídeo,
especificamente, fez parte de uma campanha do Bradesco cujo projeto se chamava
#AliadosPeloRespeito, em que buscou levantar debates acerca de raça, gênero,

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deficiência e diversidade. Alguns vídeos do canal – como este – contam com
patrocínios de marcas publicitários e anúncios.

Neste vídeo, Louie começa falando sobre o conceito de empoderamento, que,


por ser tantas vezes empregado, torna-se um conceito “vazio”, apropriado, muitas
vezes, pela mídia e por interesses mercadológicos, como ela afirma: “o seu sentido
se torna muito mais comercial do que transformador” (PONTO, 2020). Com essa
introdução, a youtuber demonstra que, ao contrário do que acontece com este – e
outros conceitos – sua fala trará uma visão fundada e coerente. Nesse sentido, os
discursos de Louie são eloquentes, teoricamente articulados e gramaticalmente
corretos, e isso, deve-se, por uma vida dedicada aos estudos e habituada com muita
leitura, segundo a mesma em muitos de seus vídeos, inclusive, este. A youtuber
também é mestre em Literatura, pela Universidade Federal de Santa Catarina, na linha
de pesquisa em crítica feminina e estudos de gênero, o que dá credibilidade e
autoridade nas questões que aborda em seu canal.

Louie continua dizendo que, desde que começou a compartilhar sua vivência
na Internet, as pessoas perguntam quando ela percebeu ser “diferente”, mas ela
afirma que, na verdade, ela nunca se sentiu “igual”. Esta fala nos remete ao
pensamento foucaultiano, de que todas as pessoas devem ter o direito de serem
“diferentes”, uma vez que temos, de fato, nossas diferenças e é isso “que toma os
indivíduos verdadeiramente individuais” (FOUCAULT, 1995). Louie ainda reitera este
pensamento na passagem: “o conceito de anormalidade é terrível! Ele só existe
porque existe uma norma estabelecida. A gente só se sente diferente porque existe
um modelo que deve ser seguido. E é desse modelo que a gente se sente diferente”
(PONTO, 2020).

O discurso da youtuber se mostra claro ao criticar essa norma social que


estabelece um padrão ou um modelo unívoco de sexualidade: a heterossexual.
Qualquer outra orientação sexual ou identidade de gênero fora da estrutura
heteronormativa deve se manter à margem, excluída. Seu discurso vai ao encontro
da concepção de poder de Foucault e de Butler, que se exerce por meio de conflitos,
em disputas sociais e, por isso mesmo, há sempre a possibilidade de forças
resistentes contra as formas de poder hegemônicas.

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Este vídeo se refere ao mês do orgulho gay e, por isso, Louie comenta sobre a
necessidade de manter as redes de apoio, ainda mais, no contexto pandêmico da
Covid-19, em 2020, que as passeatas não podiam ser realizadas, respeitando-se o
distanciamento social estabelecido pela OMS – Organização Mundial da Saúde.
Assim, ela ressalva o combate à LGBTfobia e passa a compartilhar sobre sua infância
e adolescência, período em que sofreu bullying e outras formas de opressão por ser
“diferente”.

[...] assim que eu fui pra escola e meu círculo social se expandiu. Nem era, a
princípio, uma questão de sexualidade, porque eu era criança. Eu nem sabia
o que era sexualidade, sexo, atração física e romântica. E nem os meus
colegas sabiam, mas eles reproduziam aquilo que eles viam e ouviam. E
sapatão passou a ser a palavra usada pra me atingir. (PONTO, 2020).

O fato de não se encaixar aos padrões de feminilidade, como ela mesma


declara, “esperados e impostos pela sociedade”, demonstra, mais uma vez, o modo
como as relações de poder atuam no processo de construção do indivíduo,
possibilitando um conjunto de ações sobre outras ações, ou seja, está inscrito em
sujeitos ativos, em que emergem resistências. Portanto, as relações de poder que
permeiam a constituição do sujeito são produtivas.

Louie destaca o papel das relações sociais, em todos os seus níveis, que
reproduzem e reforçam o padrão de inadequação das pessoas que não correspondem
com a norma estabelecida.

Tudo isso afetou muito a construção da minha subjetividade, da minha


autoimagem e da minha autoestima. Quando eu vejo pessoas falando sobre
amigos antigos, tipo, da época da escola, eu penso: “Uau, que conceito
peculiar”. Porque eu tive uma infância e uma adolescência bem solitárias. Se
hoje eu falo que sou essa senhora, que gosta de ficar em casa bebendo chá
e brincando com os meus gatos, talvez, seja porque eu me construí dessa
forma. E eu acho que a gente se constrói por meio das relações sociais. Tanto
aquelas que são mais próximas, quanto as relações indiretas. Tipo, o que a
gente assiste na televisão, os livros que a gente lê. As coisas que a gente vê
acontecer ao nosso redor. E as interações sociais mais distantes, tipo a
cabeleireira que não queria cortar meu cabelo. (PONTO, 2020).

O termo “subjetividade” empregado no trecho acima está próximo ao processo


de sujeição explanado em Butler e em Foucault, no qual a pisque do indivíduo luta
contra aquilo que se “é”, consigo mesmo, e com aquilo que está submetido, contra as
formas de subjetivação e submissão que tentam estabelecer e ajustar o indivíduo num

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único padrão socialmente inteligível. Nesta fala, Louie também faz menção a um
episódio que passou quando era criança, ao lembrar da cabeleireira perguntando para
a mãe dela se ela iria mesmo deixar a filha fazer aquele “corte de homem”. Mais uma
vez, exemplificado o reforço, em todas as estruturas sociais, para manter a norma
estabelecida. Como ela declara: “eu fui, muitas vezes, silenciada por uma estrutura
social que não admite existências não normativas” (PONTO, 2020). Isso mostra como
as estruturas de poder e saber pressupõem a legitimidade de uns exercerem poder
sobre outros. Mas, existe sempre a possibilidade de resistência, ou seja, o poder
também se desloca, como a youtuber acrescenta: “da mesma forma que a gente se
constrói por meio das relações sociais, eu acho que, graças a elas, a gente se
desconstrói e se reconstrói também” (PONTO, 2020).

No tocante a esse processo de sujeição, essa possível “reconstrução” do


sujeito, conforme defendido pela youtuber, compreende-se, em acordo com os
pressupostos teóricos elucidados, que assim como o poder produz o sujeito; o sujeito
“recebe” esse poder, mas, por ser dotado de ação, modifica-o. De acordo com Butler
(2019), a “‘sujeição’ significa tanto o processo de se tornar subordinado pelo poder
quanto o processo de se tornar um sujeito”, ou seja, a própria subordinação se torna
necessária para a formação do sujeito. E quando o sujeito se apropria do poder, logo,
este poder se altera, subverte-se. O próprio processo de sujeição permite a ação do
sujeito, de o sujeito resistir e se opor a esse poder.

Neste sentido, ocorre uma “inversão de significado”, como, por exemplo,


ocorreu com o próprio discurso da homossexualidade, da mulher..., utilizados, a
princípio, para um regime de normalização e/ou patologização, subverte-os para
combater esse mesmo regime de poder e saber. Por isso, as relações de poder
imbricadas no processo de sujeição – do sujeito – constroem-se e se reconstroem nas
estruturas e nas relações sociais. Essa ideia também é postulada por Louie, ao se
referir sobre o empoderamento: “considerar o empoderamento como um fenômeno
pessoal, é ignorar que as pessoas são diferentes e sofrem opressões diferentes. E se
fosse um processo individual, não mudaria as estruturas sociais” (PONTO, 2020).

Consoante às concepções de Butler e Foucault, ressalvas algumas


discordâncias, o discurso de Louie se encaixa nesta perspectiva teórica, em que o

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poder se desloca num constante processo de conflitos e embates, tanto na psique do
indivíduo quanto em suas relações sociais, ou seja, tanto em sua “internalização”
subjetiva quanto em suas relações externas, interpessoal. Neste aspecto, o sujeito
está em constante processo de formação e, embora seja constituído pelo/no discurso,
não é determinado por ele, existindo sempre a possibilidade de ação, de inversão de
significados socialmente constituintes do sujeito.

6 Considerações finais

Tentou-se discorrer por meio da perspectiva foucaultiana e butleriana a respeito


do processo de sujeição, das relações de poder entrelaçadas neste processo e as
possibilidades de ação, consequentemente, das resistências do sujeito; e como estas
concepções podem ser representadas e o modo como aparecem no discurso da
youtuber Louie Ponto.

Percebeu-se que o discurso de Louie Ponto se encontra afinada a esse


pensamento teórico, em que o poder atua numa esfera ambígua entre a condição
externa e anterior ao sujeito, mas, ao mesmo tempo, no sujeito, enquanto processo
que o constitui como tal. Além disso, o discurso da youtuber representa uma
coletividade e uma comunidade – a LGBT+, que implica, conforme Foucault, que o
poder ultrapassa a esfera teórica, pois faz parte da experiência humana, tratando-se
de uma questão empírica, sempre contextual a uma situação determinada, entre teoria
e prática.

Desse modo, as relações de poder transitam, deslocam-se a partir das


reiterações realizadas pelo sujeito – local dessas reiterações, as quais estão em
condições temporalizadas, ou seja, são ativas e produtivas. Não se trata de estruturas
estáticas e meramente mecânicas, mas por se deslocar, emergem forças resistentes,
significações inversas e subversão. Portanto, possibilidades de novas e outras formas
de “ser” e estar socialmente.

Como explanado, ainda que Butler (2019) compartilhe com a ideia foucaultiana
de que o poder mais que uma força opressora e absoluta, tende a ser também
produtiva, possibilitando as resistências do sujeito, ela também agrega o aspecto
psíquico à sua reflexão. Butler defende que a formação do sujeito se inscreve num

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apego apaixonado pelo próprio poder que age sobre ele, e nesse sentido, o sujeito se
constrói em seu inconsciente. Dessa maneira, o sujeito se forma através do apego
apaixonado a quem o subordina e a própria subordinação é fundamental para o “vir a
ser” do sujeito. A subordinação, segundo Butler, é uma submissão obrigatória para a
formação do sujeito, além de ser a condição de possibilidade da ação do sujeito – o
que a autora denomina de ambivalência.

Por outro lado, diferentemente das postulações de Foucault, Butler considera


que o poder exercido pelo sujeito não é exatamente o mesmo poder que o condiciona,
pois quando o sujeito se apropria do poder, implica-se numa alteração do poder. De
acordo com o pensamento butleriano, o poder se encontra nessa esfera ambígua;
nunca é apenas uma condição externa e anterior ao sujeito e, também, não pode ser
identificado exclusivamente com o sujeito. E nesse aspecto, com base na construção
discursiva do sujeito, que está constantemente em processo, o sujeito pode ser
constituído pelo discurso, mas não é, necessariamente, determinado por ele, havendo
sempre a possibilidade de ação. Nesse sentido, a interpretação feita por Butler do
sujeito foucaultiano como um lugar de ressignificação pressupõe duas estratégias
para resistir à submissão da subjetividade: “(i) subverter e ressignificar, portanto
desconstruir na fala e no corpo as práticas opressivas, e, (ii) viver a identidade,
portanto a subjetividade como efeito de atos performativos, i.e., atos de significação”
(AGGIO, 2022, p. 2).

Longe desse estudo se esgotar, pretende-se aprofundar nas questões tratadas,


devido a sua complexidade e profundidade, sobre as relações de gênero para, assim,
contribuir com a compreensão e a ampliação do pensamento a respeito da formação
do sujeito, que se relaciona com as produções midiáticas, ao construir discursos que
contribuem para a constituição dos sujeitos.

Referências

AGGIO, Juliana Ortegosa. Práticas críticas de si: Foucault e Butler. Veritas, Porto Alegre, v.
67, n. 1, p. 1-13, jan./dez. 2022. Disponível em: file:///C:/Users/tarcy/Downloads/41911-
Texto%20do%20artigo-187880-2-10-20220204%20(2).pdf. Acesso em: 22 ago. 2022.

BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica,
2019.

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BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel
Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.

HALL, Stuart. The work of representation. In: HALL, Stuart (org.). Representation: cultural
representation and cultural signifying practices. London/Thousand Oaks/New Delhi:
Sage/Open University, 1997. p. 13-74.

PONTO, Louie. E esse tal de empoderamento? (minha história). YouTube, 22 jun. 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OKeZemVulow. Acesso em: 21 set. 2022.

SPARGO, Tamsin. Michel Foucault e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

TERTO, Amauri. 9 canais LGBT no YouTube que vão expandir a sua mente. HoffPost
Brasil, 26 jun. 2018. Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2018/06/26/9-canais-
lgbt-no-youtube-que-vao-expandir-a-sua-mente_a_23468772/. Acesso em: 15 fev. 2021.

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