Michel Foucault e A Gestão Da Vida
Michel Foucault e A Gestão Da Vida
Michel Foucault e A Gestão Da Vida
Abstract: The present text aims to show the importance of the relation between the concept of
event and that of power in Michel Foucault's philosophy, in order to have a problematization of
this relationship that accounts not only for the need to treat the theme of "power" through "
relations of power ", as well as of sovereign power and biopower, in its two facets: the political
anatomy and biopolitics. The result is the increasingly subtle development of an art of
governing life, a more efficient and functional life management, focusing on the individual and
population in every way. To better understand this governmentality, it is necessary to have, with
Foucault, a historical view of the ways of implementing "power relations" in societies since the
management of the modern state. From the seventeenth-century sovereign power to biopower
since the end of the nineteenth century, what we have is a subjection of the individual and the
human species.
DOI: https://doi.org/10.36311/1984-8900.2019.v11.n28.15.p229
Michel Foucault e a gestão da vida
situando um novo caminho possível diante das mutações históricas do poder: da mão
pesada do poder soberano que recai sobre os súditos, passando por toda uma disciplina
que se investe no corpo, até chegarmos a uma regulamentação de uma coletividade — e
tudo isso, historicamente, não necessariamente nesses trilhos, pois as transmutações do
poder não abandona as forças anteriores.
Sabemos o quanto a história do poder (e/ou do sujeito) permeou a prática
filosófica e o quanto o tema da atualidade se tornou cada vez mais um trabalho
obstinado para Foucault, mas qual lugar ocupa o acontecimento em suas pesquisas e que
relações são estabelecidas com a administração da vida? Para entendermos como esse
conceito o ajudou a se aproximar cada vez mais das questões do poder, sem ficarmos
apenas na sua possível relação com os estoicos, tem-se algumas colocações
interessantes. Há uma referência significativa e direta à questão do acontecimento nos
estoicos e, logo em seguida, à importância atual desse tema em suas pesquisas:
devêssemos pensar uma analítica que problematize o poder em suas relações com o
saber — pensar a ideia de acontecimento é dar conta das configurações, dos entremeios
concernentes às mecânicas do poder que recaem sobre a atualidade da vida. É esse o seu
caráter ontológico indispensável.
No entanto, é preciso definir esse caráter acontecimental. Se buscarmos a
expressão no trabalho da Judith Revel, vamos encontrar o conceito como que se
desenvolvendo ao longo da prática filosófica de Foucault. Inicialmente o acontecimento
é apresentado de maneira negativa, abordagem comum que temos de todo e qualquer
fato e que não representa a visada arqueológica empreendida, mas depois o conceito se
abre para ser pensado nas relações historicamente constitutivas e exteriores ao discurso:
Claro que, diante desses conceitos, não temos a intenção aqui de dar conta em
profundidade de todos. Aproveitaremos apenas o trabalho genealógico no intuito de
relacionar e pensar a relação do acontecimento com o tema do poder, tirando suas
consequências pelo poder soberano e pelo biopoder, na medida em que temos tanto um
poder disciplinar como um poder sobrea vida. A maneira como Foucault definiu e usou
o acontecimento permite precisar melhor esses efeitos (acontecimentais) do poder.
No entanto, o legado dos estudos sobre o acontecimento nos estoicos, com
inegável pertencimento à figura de Émile Bréhier (não esqueçamos a importância da
pequena obra A Teoria dos Incorporais no Estoicismo Antigo) e com ressonância em
toda uma geração de filósofos franceses contemporâneos (Deleuze é o que mais se
aproxima dessa temática com Lógica do Sentido e outros), nos dá a percepção das
proximidades entre acontecimento e poder. A constituição do saber ocidental, em nome
de determinadas verdades, não procura dar conta do jogo agonístico que acompanha o
acontecimento, não apenas na instauração das relações de poder, mas, principalmente,
como efeito dessas mesmas relações. Em uma entrevista, Foucault não deixa de dar um
tom bem crítico a essa falta de um pensamento que aborde o poder por vias mais
acontecimentais:
Podemos então perguntar: seria o trabalho genealógico dos anos 70, com sua
análise das relações de poder e das estratégias, sua agonística entre as forças do real, sua
história política da verdade, da moral e da ética, todo um esboço de uma filosofia do
acontecimento? Com certeza, tala analítica tentará dar conta não apenas desse trabalho,
mas de trazer à tona o acontecimento como lugar das imposições do próprio poder. A
hipótese inicial que gostaríamos de levantar aqui é que o caráter prático-experimental da
filosofia foucaultiana, a partir da década de 70, com o seu ativismo político e suas
pesquisas sobre a prisão, as “formas jurídicas”, a sexualidade, a subjetividade, entre
outras coisas, não deixou de evidenciar a realização de uma filosofia do acontecimento,
filosofia essa que atravessa os jogos e as transformações do poder em sua gestão da
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A análise do poder como estratégia não procura dar conta da sua disseminação ideológica na sociedade,
mas de um controle cada vez maior sobre o corpo. Antes da consciência, o governo do corpo.
Portanto, existe um trabalho sutil entre essas formas de poder que só a análise
histórica pode identificar e problematizar, ressaltando suas positividades e incidências
na formação das subjetividades.
A anátomo-política, tecnologia própria do início do século XVIII, vem
corresponder com toda uma eficácia física do corpo, necessária ao desenvolvimento do
capitalismo. O nascimento da revolução industrial na Europa demandava uma economia
das ações e do tempo; para tanto, era preciso uma disciplinarização do corpo, no sentido
de torná-lo dócil e apto ao sistema de produção. A força de trabalho, disciplinada, irá
garantir a produção em massa da riqueza. A análise em torno dessa “física do poder” é
encontrada na obra Vigiar e Punir, na qual temos a perseguição contínua do detalhe:
O ambiente do exército, das escolas, das fábricas, dos hospitais, poderia dizer da
mídia, ainda nos conduzem a essa sujeição. A tecnologia disciplinar incide sobre a vida
individual e sua finalidade é a sujeição pela objetivação. “A disciplina ‘fabrica’
indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo
tempo como objetos e como instrumentos do seu exercício” (FOUCAULT, 2000a, p. 143).
Fabricação social que incide sobre grandes demandas e ordena a subjetividade no
próprio exercício que lhe constitui.
Os resultados não demorarão a surgir. Em fins do século XVIII e início do
século XIX, o Estado percebeu a necessidade de aperfeiçoar o processo de
disciplinarização. Se a questão estava invertida (não mais o direito de fazer morrer e
deixar viver, mas o de fazer viver e deixar morrer), com interesses declaradamente
econômicos-políticos, a razão do Estado se voltará agora para o “homem-espécie”. O
conceito de “população” caracterizará um novo exercício das relações de poder: a
biopolítica. Aqui, não se trata de disciplinar, unicamente, o corpo, mas de fazê-lo
através da administração da vida em espécie. A regulamentação da população pela
biopolítica pode abarcar três domínios: a) primeiro, a questão da natalidade, da
mortalidade e da longevidade, ou seja, é preciso fazer a vida se estender ao máximo a
partir da qualidade da higiene pública; b) segundo, a partir do problema da velhice, dos
acidentes e doenças, surgirão as instituições de assistência, os seguros, as poupanças; c)
por fim, a preocupação com o espaço, com a organização da cidade para controle dos
fluxos e suas mobilidades. Todos esses mecanismos, dos quais a biopolítica se colocará
em ação, farão com que a população seja seu objeto de regulação política primordial.
Visa-se a conduta desta como contingente totalmente regulado dentro de uma
biopolítica:
governar? Cabe a nós problematizarmos alguns conceitos que ainda são bem atuais:
acontecimento, relações de poder, anátomo-política, biopolítica, governo,
governamentalidade. Talvez com isso percebamos o quanto vivemos em uma
“sociedade de sequestro”, para usar um termo ainda atual de Foucault, ou em uma
sociedade que se encarrega da “fabricação da miséria humana”, como dizia Deleuze.
Contra as sanções dos muros, a abertura de fendas. Talvez nessas palavras deleuzianas
esteja presente uma “resistência ao presente”:
Referências