Michel Foucault e A Gestão Da Vida

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MICHEL FOUCAULT E A GESTÃO DA VIDA

MICHEL FOUCAULT AND THE MANAGEMENT OF LIFE

Miguel Ângelo Oliveira do Carmo1

Resumo: O presente texto visa mostrar a importância da relação entre o conceito de


acontecimento e o de poder na filosofia de Michel Foucault, no sentido de ter uma
problematização dessa relação que dê conta não apenas da necessidade de tratar o tema do
“poder” através das “relações de poder”, como também do poder soberano e do biopoder, em
suas duas facetas: a anátomo-política e a biopolítica. O resultado disso é o desenvolvimento
cada vez mais sutil de uma arte de governar a vida, uma gestão da vida mais eficiente e
funcional, incidindo sobre o indivíduo e a população em todos os sentidos. Para compreender
melhor essa governamentalidade é preciso ter, com Foucault, uma visão histórica das formas de
implementação das “relações de poder” nas sociedades desde a gestão do Estado moderno. Do
poder soberano, no século XVII, ao biopoder a partir do final do século XIX, o que temos é uma
sujeição do indivíduo e da espécie humana.

Palavras-chave: Michel Foucault. Biopoder. Biopolítica. Acontecimento.

Abstract: The present text aims to show the importance of the relation between the concept of
event and that of power in Michel Foucault's philosophy, in order to have a problematization of
this relationship that accounts not only for the need to treat the theme of "power" through "
relations of power ", as well as of sovereign power and biopower, in its two facets: the political
anatomy and biopolitics. The result is the increasingly subtle development of an art of
governing life, a more efficient and functional life management, focusing on the individual and
population in every way. To better understand this governmentality, it is necessary to have, with
Foucault, a historical view of the ways of implementing "power relations" in societies since the
management of the modern state. From the seventeenth-century sovereign power to biopower
since the end of the nineteenth century, what we have is a subjection of the individual and the
human species.

Keywords: Michel Foucault. Biopower. Biopolitics. Event.

Ao lermos as obras de Michel Foucault, e procurarmos a questão da gestão da


vida, é impossível não termos em mente o seu trabalho em torno da questão do poder.
Tentar entender a vida em suas amarras é buscar uma análise de apresentação das
formas de poder na história humana, com suas transformações complexas e pertinentes.
Talvez possamos compreender aqui o quanto o tema da atualidade, nos últimos tempos
da sua prática filosófica, ganhou relevância em seus estudos. No entanto, paralelo a isso,
é possível mostrar, como um dos fios condutores dessa empreitada, a configuração e
implementação do poder sobre a vida. Parece que a questão do acontecimento teve a sua
contribuição, não apenas marcando posicionamentos filosóficos diferenciados, mas
1
CCHLA/UFPB. E-mail: [email protected]

DOI: https://doi.org/10.36311/1984-8900.2019.v11.n28.15.p229
Michel Foucault e a gestão da vida

situando um novo caminho possível diante das mutações históricas do poder: da mão
pesada do poder soberano que recai sobre os súditos, passando por toda uma disciplina
que se investe no corpo, até chegarmos a uma regulamentação de uma coletividade — e
tudo isso, historicamente, não necessariamente nesses trilhos, pois as transmutações do
poder não abandona as forças anteriores.
Sabemos o quanto a história do poder (e/ou do sujeito) permeou a prática
filosófica e o quanto o tema da atualidade se tornou cada vez mais um trabalho
obstinado para Foucault, mas qual lugar ocupa o acontecimento em suas pesquisas e que
relações são estabelecidas com a administração da vida? Para entendermos como esse
conceito o ajudou a se aproximar cada vez mais das questões do poder, sem ficarmos
apenas na sua possível relação com os estoicos, tem-se algumas colocações
interessantes. Há uma referência significativa e direta à questão do acontecimento nos
estoicos e, logo em seguida, à importância atual desse tema em suas pesquisas:

O que faz com que eu não seja um filósofo no sentido clássico do


termo [...] é o fato de não me interessar pelo eterno, pelo que não
muda de lugar, pelo que é estável diante do reflexo das aparências; eu
me interesso pelo acontecimento. O acontecimento pouco foi uma
categoria filosófica, salvo talvez nos estoicos.

E, mais à frente, continua:

É verdade que, em meus livros, experimentei compreender um


acontecimento que me pareceu, que me parece importante para nossa
atualidade [...]. Por exemplo, para a loucura, me parece que houve, em
um momento dado, no mundo ocidental, uma divisão entre loucura e
não-loucura; houve, em um outro momento, uma certa maneira de
compreender a intensidade do crime e o problema humano colocado
pelo crime. Todos esses acontecimentos, parece-me que os repetimos.
Nós os repetimos em nossa atualidade, e eu experimento compreender
qual é o acontecimento sob o signo do qual nascemos e qual
acontecimento continua ainda a nos atravessar (FOUCAULT, 2001b,
p. 573-574).

Temos, então, uma significativa presença da noção de acontecimento como


preocupação nas pesquisas de Michel Foucault. Todo o esforço realizado nos seus
trabalhos, de uma forma ou de outra, visou uma compreensão experimental daquilo que
nos acontece agora, neste momento, com todos os seus efeitos táticos de poder. Daí o
aprofundamento, nos anos 70, em uma genealogia do poder que vai das práticas
discursivas à própria lógica das práticas, à imanência das práticas. É aqui, talvez, que

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devêssemos pensar uma analítica que problematize o poder em suas relações com o
saber — pensar a ideia de acontecimento é dar conta das configurações, dos entremeios
concernentes às mecânicas do poder que recaem sobre a atualidade da vida. É esse o seu
caráter ontológico indispensável.
No entanto, é preciso definir esse caráter acontecimental. Se buscarmos a
expressão no trabalho da Judith Revel, vamos encontrar o conceito como que se
desenvolvendo ao longo da prática filosófica de Foucault. Inicialmente o acontecimento
é apresentado de maneira negativa, abordagem comum que temos de todo e qualquer
fato e que não representa a visada arqueológica empreendida, mas depois o conceito se
abre para ser pensado nas relações historicamente constitutivas e exteriores ao discurso:

Por acontecimento, Foucault entende, antes de tudo de maneira


negativa, um fato para o qual algumas análises históricas se contentam
em fornecer a descrição. O método arqueológico foucaultiano busca,
ao contrário, reconstituir atrás do fato toda uma rede de discursos, de
poderes, de estratégias e de práticas. [...] Entretanto, em um segundo
momento, o termo “acontecimento” começa a aparecer em Foucault
de maneira positiva, como uma cristalização de determinações
históricas complexas que ele opõe à ideia de estrutura [...]. O
programa de Foucault torna-se, portanto, a análise de diferentes redes
e níveis aos quais alguns acontecimentos pertencem (2005, p. 13).

Do conceito tomado em seu sentido comum à sua abertura discursiva para


práticas exteriores ao discurso, o acontecimento passa a (se) expressar todo um conjunto
de práticas que exigirá, dentro de uma análise plural, não só o historiador, mas também
um novo procedimento historial. O historiador convocado deverá deixar para trás velhos
métodos e proceder de forma inovadora não retomando a continuidade serena da
história, mas a força inovadora do novo: “acontecimentalização”. Aqui, o que se busca

não [é] uma história acontecimental, mas a tomada de consciência das


rupturas da evidência induzidas por certos fatos. O que se trata então
de mostrar é a irrupção de uma “singularidade” não necessária: o
acontecimento que representa o enclausuramento, o acontecimento da
aparição da categoria de “doenças mentais” etc. (REVEL, 2005, p.
14).

Através da história Foucault buscará o acontecimento como irrupção de uma


singularidade, ou seja, tentará compreender como loucura se tornou desrazão diante da
razão, como a prisão se tornou a preferência de enclausuramento, como o homem surgiu
em torno das ciências humanas, como a sexualidade é tomada no entrecruzamento da

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disciplina do corpo com a regulamentação da população, etc. São singularidades


repetíveis das quais temos que reconhecer e, também, aprender a romper, realizar uma
ruptura das evidências. Pensar o acontecimento como rupturas das evidências é abordá-
lo em sua atualidade, na análise genealógica que lhe pertence.
Este conceito também pode ser encontrado na obra do argentino Edgardo Castro:
Vocabulário de Foucault. Aqui, Castro traz o acontecimento em Foucault definido em
quatro sentidos: como novidade ou diferença, como regularidade histórica, como
relação de forças e como método de trabalho histórico. Todas essas definições
expressam o esboço de uma “modalidade de análise histórica da arqueologia” e uma
“concepção geral da atividade filosófica”. De um lado, a descrição arqueológica dos
acontecimentos como novidade e prática discursiva, de outro, a filosofia genealógica
como diagnóstico ontológico da atualidade. Os dois primeiros conceitos, de traço
arqueológico, problematizam a descrição dos discursos ao longo da história fazendo
uma relação entre o novo e o regular, entre o que se apresenta descontínuo e contínuo. O
conceito de episteme, apresentado em As Palavras e as Coisas e com suas
transmutações culturais, garante o surgimento de novas formas de pensar e a
implantação destas numa regularidade discursiva.
À medida que outras práticas, além do discurso, entram em cena, não se trata
mais de pensá-las como efeito de um “acontecimento oculto”, mas de analisá-las em sua
própria formação, em sua transformação possível. As pesquisas em torno da história da
sexualidade vão acentuar este ponto. O acaso das regularidades históricas, estas não
mais fechadas ao âmbito discursivo, estará na mira da análise genealógica. Nesse
momento nietzschiano, o acontecimento é tomado como relações de força e os conceitos
de luta e de estratégia darão a tônica dessas pesquisas. É aqui que a questão da
atualidade se relaciona com o acaso das lutas, pois será preciso filosoficamente
diagnosticar todos esses movimentos de atualização do real. Para tanto, vem se somar
um quarto sentido, que é o processo de “acontecimentalizar” (“événementialiser”) a
história, ou seja, tomar como ruptura o que geralmente se apresenta como evidente, por
exemplo, não tomar como evidente a loucura como doença mental, a prisão como
solução para a criminalidade, etc. Isso requer o encontro das forças, dos movimentos,
das determinações que, em uma época e lugar, firmou o que aparecerá como evidente.
Portanto, temos o acontecimento, em Foucault, como “ruptura histórica”, “regularidade
histórica”, “atualidade” e “trabalho de acontecimentalização” (CASTRO, 2009, pp. 24-
28).

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Claro que, diante desses conceitos, não temos a intenção aqui de dar conta em
profundidade de todos. Aproveitaremos apenas o trabalho genealógico no intuito de
relacionar e pensar a relação do acontecimento com o tema do poder, tirando suas
consequências pelo poder soberano e pelo biopoder, na medida em que temos tanto um
poder disciplinar como um poder sobrea vida. A maneira como Foucault definiu e usou
o acontecimento permite precisar melhor esses efeitos (acontecimentais) do poder.
No entanto, o legado dos estudos sobre o acontecimento nos estoicos, com
inegável pertencimento à figura de Émile Bréhier (não esqueçamos a importância da
pequena obra A Teoria dos Incorporais no Estoicismo Antigo) e com ressonância em
toda uma geração de filósofos franceses contemporâneos (Deleuze é o que mais se
aproxima dessa temática com Lógica do Sentido e outros), nos dá a percepção das
proximidades entre acontecimento e poder. A constituição do saber ocidental, em nome
de determinadas verdades, não procura dar conta do jogo agonístico que acompanha o
acontecimento, não apenas na instauração das relações de poder, mas, principalmente,
como efeito dessas mesmas relações. Em uma entrevista, Foucault não deixa de dar um
tom bem crítico a essa falta de um pensamento que aborde o poder por vias mais
acontecimentais:

Sob as espécies do que se chamou, alternativamente, a verdade, o


homem, a cultura, a escrita, etc., trata-se sempre de conjurar o que se
produz: o acontecimento. As famosas continuidades históricas têm por
função aparente explicar; os eternos “retornos” à Freud, à Marx, tem
por função aparente fundar; em um caso como no outro, trata-se de
excluir a ruptura do acontecimento. Para dizer as coisas diretamente: o
acontecimento e o poder é o que é excluído do saber tal como é
organizado na nossa sociedade (2001a, p. 1094).

Podemos então perguntar: seria o trabalho genealógico dos anos 70, com sua
análise das relações de poder e das estratégias, sua agonística entre as forças do real, sua
história política da verdade, da moral e da ética, todo um esboço de uma filosofia do
acontecimento? Com certeza, tala analítica tentará dar conta não apenas desse trabalho,
mas de trazer à tona o acontecimento como lugar das imposições do próprio poder. A
hipótese inicial que gostaríamos de levantar aqui é que o caráter prático-experimental da
filosofia foucaultiana, a partir da década de 70, com o seu ativismo político e suas
pesquisas sobre a prisão, as “formas jurídicas”, a sexualidade, a subjetividade, entre
outras coisas, não deixou de evidenciar a realização de uma filosofia do acontecimento,
filosofia essa que atravessa os jogos e as transformações do poder em sua gestão da

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vida. Ampliando: o estudo da filosofia do acontecimento permite-nos chegar às formas


mais insidiosas da complexa configuração dos mecanismos do poder e, com isso ou
através disso, nos dá a possibilidade de criação contínua de focos de resistência.
Esse caminho pode nos paralisar diante de uma questão: na história, qual é o
ponto de “ataque” das relações de poder no intuito de criarmos uma reação possível?
Por onde deve passar a compreensão dos mecanismos políticos do poder para termos
diante dos nossos olhos o desvelamento dessa máscara diante da vida? Em primeiro
lugar, é possível ter em mente que o poder não ataca, mas produz aquilo que, à primeira
vista, nos ataca; em segundo lugar, se o corpo, na história, carrega as marcas dessa
produção, será na sua transformação em sujeito, em corpo assujeitado, que a gestão da
vida deve dominar (âmbito da soberania), deve corrigir (âmbito da disciplina) e deve
normalizar e regulamentar (âmbito do governo), pois o sujeito é um efeito
acontecimental do poder. Percebe-se que, na história e através dela, poder e
acontecimento se encontram na formação do indivíduo enquanto sujeito. Daí a urgência
em inverter a concepção jurídica e tradicional que se tem do poder: não mais dizer que o
mesmo é repressor, negativo, mas que possui a sua positividade, a sua otimização em
pleno exercício; daí a necessidade, também, de uma crítica que venha a tornar fluidas as
tramas da estrutura política na sociedade e revele a vida em sua captura administrada. É
preciso entender que tudo, através das instituições sociais e do Estado, é um jogo
político na conquista do que previamente é estabelecido como “sujeito” ou como
“indivíduo objetivado”. Nesse intuito, o lugar de satisfação do poder, em seus três
âmbitos citados acima, dá-se pela análise da constituição política do indivíduo enquanto
sujeito e objeto. Mas isso é só um começo.
É um começo porque essa constituição política do sujeito requer não apenas a
criação contínua da verdade, do saber que se diz verdadeiro, mas da sua distribuição em
um regime jurídico. O discurso e sua legitimação, a verdade e suas “formas jurídicas”,
eis os laços nos quais as relações de poder produz e são produzidas são feitas e refeitas.
No entanto, singularizar as práticas, tentar enxergar os elementos constitutivos das
mesmas na história, ou através da história, não é tentar fazer um arcabouço histórico das
mentalidades em nossa sociedade, mas é estudar os efeitos de jurisdição e de veredito
aos quais essas práticas estão submetidas e, de alguma forma, interligadas. Em outras
palavras, trata-se de ter em mente como certas práticas são codificadas e, em seguida,
legitimadas como verdadeiras. É no jogo das práticas, da lógica acontecimental das
práticas, que encontraremos os efeitos das relações de poder:

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Se eu estudei “práticas” como as do sequestro de loucos, ou da


medicina clínica, ou da organização das ciências empíricas, ou da
punição legal, foi para estudar este jogo entre um “código” que regula
maneiras de fazer (que prescreve como selecionar as pessoas, como
educar os indivíduos, etc.) e uma produção de discursos verdadeiros
que servem de fundamento, de justificação, de razões de ser e de
princípio de transformações a essas mesmas maneiras de fazer. Para
dizer as coisas claramente: meu problema é saber como os homens se
governam (eles próprios e os outros) através da produção de verdade
(repito, ainda, por produção de verdade: não entendo a produção de
enunciados verdadeiros, mas a disposição de domínios em que a
prática do verdadeiro e do falso pode ser, ao mesmo tempo,
regulamentada e pertinente).
Acontecimentalizar conjuntos singulares de práticas, para fazê-las
aparecer como regimes diferentes de jurisdição e de veredicto, eis aí,
em termos extremamente bárbaros, o que eu gostaria de fazer. [...]
Gostaria, em suma, de recolocar o regime de produção do verdadeiro e
do falso no coração da análise histórica e da crítica política
(FOUCAULT, 2001b, p. 845-846).

Ao mesmo tempo um trabalho no campo da história e que produz uma crítica


política do mundo em que vivemos. Em que sentido se trabalha “a produção do
verdadeiro e do falso” para fazerem homens governarem a si mesmos e aos outros?
Como determinadas realidades nos são impostas em detrimento de outras? Enxergar as
estratégias que compõem esse empenho sutil do poder deve ter como desejo, de maneira
geral, perseguir uma única questão: como governar?
É preciso querer mostrar que a construção do sujeito pelo saber e pelo poder, nas
suas relações mais estratégicas, pode ser (e geralmente é) diferente do que à primeira
vista nos aparece. Quais são as verdades e as falsidades que nos comandam? Passando
pela inteligibilidade do Estado e suas formas de governo, que procedimentos são
adotados na capacitação tática do poder para, mais do que constituir o outro, fazer
indivíduos constituir a si mesmos enquanto sujeitos e objetos? Depois da disciplina,
governo do outro e governo de si, mas tudo através de entrecruzamentos políticos e
estratégicos.
Entretanto, o conhecimento dos procedimentos do poder passa por outro conceito.
Tomemos como exemplo o tão conhecido poder do Estado, no qual encontramos sua
visão clássica. Eis o deslocamento: não mais dar de encontro com o poder visível do
Estado, firmando lutas de oposição a uma hegemonia, mas revelar, justamente ali onde
não são mostradas, relações de poder, modos de funcionamento do poder político que

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incidem na heteronomia do corpo social, disciplinando-o e normalizando-o.


Deslocamento do ponto de disseminação do poder que diz que o acontecimento deste
não é estatal, mas quotidiano e fragmentado; é essa proliferação no dia a dia, em suas
várias formas (destaco a disciplina e a regulação), que serve de sustentáculo para o que
Foucault chamou, ao aprofundar a gestão da vida, de “governamentalização do Estado”.
O poder do Estado, em seu sentido negativo, perde importância em relação aos poderes
microfísicos presentes na constituição modular das subjetividades. Não é o Estado, esse
“monstro frio”, nem a estatização da sociedade, que devemos estar atentos, mas as
maneiras de governar implicadas não apenas no corpo individual, mas no corpo
múltiplo, na população. Portanto, elemento positivo aplicado e administrado pelo
Estado, mas criado pelas relações ínfimas da vida. É preciso fazer um deslocamento de
perspectiva do olhar:

Em geral, se privilegia o poder do Estado. Muitas pessoas pensam que


as outras formas de poder dele derivam. Ora, eu penso que, sem dizer
que é o poder do Estado que deriva das outras formas de poder, é ele
ao menos fundado sobre estas, permitindo-o existir. [...] O que é
importante é que são essas relações de poder que funcionam
independentemente dos indivíduos que tem o poder do Estado
(FOUCAULT, 2001b, p. 533).

É importante salientarmos uma mudança de vocabulário. Enquanto o discurso


político clássico ancora-se nas expressões “poder” ou “estado de dominação”, Foucault
prefere deslocar nosso olhar para as “relações de poder”. Enquanto aquele(s) conceito(s)
aponta(m) para uma estrutura institucional ou classe dominante ou governo político,
este desenha as estratégias que darão fundamento a qualquer tipo de controle. Daí o
interesse, cada vez maior, nas estratégias de governo no seio da sociedade e outra
definição conceitual:

A análise em termos de poder não deve postular a soberania do


Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas
são apenas, antes de tudo, suas formas terminais. Parece-me que se
deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de
correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e
constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e
afrontamentos incessantes, o transforma, o reforça e o inverte; [...]
enfim, as estratégias que se originam e cujo esboço geral ou
cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na
formulação da lei, nas hegemonias sociais. [...] O poder não é uma
instituição e nem uma estrutura, não é certa potência de que alguns

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sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa


em uma sociedade determinada (FOUCAULT, 1997, p. 88-89).2

Se a formação do “diagrama” do poder (DELEUZE, 2006, pp. 43-48) já estava


presente nas análises das sociedades disciplinares em Vigiar e Punir, será em História
da Sexualidade que Foucault colocará, de maneira mais ordenada, algumas
“proposições” que caracterizam essa forma de poder. As proposições dizem tudo ou
quase tudo. Primeiro, o poder não se adquire, pois é móvel em suas várias relações;
segundo, as relações de poder são imanentes às formas mais evidentes do poder (relação
sexual, econômica, etc.); terceiro, o poder vem de baixo, ou seja, serve de suporte a
efeitos de dominação em todo o corpo social; quarto, as relações de poder são táticas,
tem alvos pré-estabelecidos e por isso sua racionalidade é anônima; por fim, a
resistência é imanente ao poder, nunca exterior a ele (FOUCAULT, 1997, pp. 89-92).
Esse esboço do exercício do poder, suas características, tem sua importância não apenas
em sua definição, mas também no combate às correlações de forças que passam pelos
limites do Estado. Trata-se agora de ver, historicamente, suas formas.
Da análise do modelo da soberania à incidência de uma regulamentação da vida
em conjunto, passando por uma disciplinarização social do corpo, o que vemos nesta
construção histórica do conceito de poder, com suas relações possíveis, é o
aparecimento do homem, ou melhor, da vida. A partir do século XVIII, com o
surgimento das ciências humanas, temos uma “estatização da vida biologicamente
considerada, isto é, do homem como ser vivente” (CASTRO, 2009, p. 57). Colocar a
vida na cena teatral, como marionete, foi de grande importância para o capitalismo em
sua evolução. Inicialmente foi preciso a disciplina do corpo — e aí temos uma
“anátomo-política do corpo humano”; depois, a economia das relações de poder dar-se-
ia pela normalização do corpo-espécie, do corpo múltiplo — temos uma “biopolítica da
população”. Eis as duas faces do “Biopoder”. Na primeira face, o corpo individual é
uma máquina e deve ser tratado pelos mecanismos de disciplina e adestramento
(vigilância, economia de tempo os exercícios, exames individuais contínuos, etc.). Suas
instituições são a escola, o exército, a fábrica, a prisão, enfim, tudo aquilo que realize
uma “ortopedia social”. Na segunda face, deve-se, diante de uma população,
racionalizar seus problemas em relação à prática governamental: a natalidade, a saúde, a
higiene pública, a longevidade, etc. O resultado dessa empreitada são os mecanismos de

2
A análise do poder como estratégia não procura dar conta da sua disseminação ideológica na sociedade,
mas de um controle cada vez maior sobre o corpo. Antes da consciência, o governo do corpo.

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segurança: o controle demográfico, as estatísticas de acidente de trabalho, a organização


urbanística, a polícia, entre outros. Aqui, a massa se enquadra no jogo político do
governo.
Não devemos pensar uma passagem histórica entre a sociedade disciplinar e a de
segurança. Mais do que isso, busca-se uma compreensão maior do jogo estratégico-
relacional do poder na atualização tecnológica e plural em determinada sociedade. A
citação que trazemos a seguir não anula a caracterização diferencial das formas de poder
nas sociedades acima citadas; no entanto, parece-nos que, ao mostrar o nascimento da
biopolítica, Foucault insiste em uma não cisão total entre elas:

Ora, durante a segunda metade do século XVIII, creio que se vê


aparecer algo de novo, outra tecnologia de poder, não disciplinar.
Uma tecnologia de poder que não exclui a primeira, não exclui a
técnica disciplinar, mas que a engloba, que a integra, que a modifica
parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-la implantando-se nela e
incrustando-se efetivamente graças a essa técnica disciplinar prévia.
Essa técnica não suprime a técnica disciplinar simplesmente porque é
de outro nível, está em outra escala, tem outra superfície de suporte e
é auxiliada por instrumentos totalmente diferentes (FOUCAULT,
200b, p. 288-289).

Portanto, existe um trabalho sutil entre essas formas de poder que só a análise
histórica pode identificar e problematizar, ressaltando suas positividades e incidências
na formação das subjetividades.
A anátomo-política, tecnologia própria do início do século XVIII, vem
corresponder com toda uma eficácia física do corpo, necessária ao desenvolvimento do
capitalismo. O nascimento da revolução industrial na Europa demandava uma economia
das ações e do tempo; para tanto, era preciso uma disciplinarização do corpo, no sentido
de torná-lo dócil e apto ao sistema de produção. A força de trabalho, disciplinada, irá
garantir a produção em massa da riqueza. A análise em torno dessa “física do poder” é
encontrada na obra Vigiar e Punir, na qual temos a perseguição contínua do detalhe:

Uma “anatomia política”, que é igualmente uma “mecânica do poder”,


está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos
outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que
operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia
que se determina. [...] A disciplina é uma anatomia política do detalhe
(FOUCAULT, 2000a, p. 119-120).

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Michel Foucault e a gestão da vida

O ambiente do exército, das escolas, das fábricas, dos hospitais, poderia dizer da
mídia, ainda nos conduzem a essa sujeição. A tecnologia disciplinar incide sobre a vida
individual e sua finalidade é a sujeição pela objetivação. “A disciplina ‘fabrica’
indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo
tempo como objetos e como instrumentos do seu exercício” (FOUCAULT, 2000a, p. 143).
Fabricação social que incide sobre grandes demandas e ordena a subjetividade no
próprio exercício que lhe constitui.
Os resultados não demorarão a surgir. Em fins do século XVIII e início do
século XIX, o Estado percebeu a necessidade de aperfeiçoar o processo de
disciplinarização. Se a questão estava invertida (não mais o direito de fazer morrer e
deixar viver, mas o de fazer viver e deixar morrer), com interesses declaradamente
econômicos-políticos, a razão do Estado se voltará agora para o “homem-espécie”. O
conceito de “população” caracterizará um novo exercício das relações de poder: a
biopolítica. Aqui, não se trata de disciplinar, unicamente, o corpo, mas de fazê-lo
através da administração da vida em espécie. A regulamentação da população pela
biopolítica pode abarcar três domínios: a) primeiro, a questão da natalidade, da
mortalidade e da longevidade, ou seja, é preciso fazer a vida se estender ao máximo a
partir da qualidade da higiene pública; b) segundo, a partir do problema da velhice, dos
acidentes e doenças, surgirão as instituições de assistência, os seguros, as poupanças; c)
por fim, a preocupação com o espaço, com a organização da cidade para controle dos
fluxos e suas mobilidades. Todos esses mecanismos, dos quais a biopolítica se colocará
em ação, farão com que a população seja seu objeto de regulação política primordial.
Visa-se a conduta desta como contingente totalmente regulado dentro de uma
biopolítica:

Há que entender por “biopolítica” a maneira pela qual, a partir do


século XVIII, se buscou racionalizar os problemas colocados pelos
fenômenos próprios de um conjunto de viventes enquanto população:
saúde, higiene, natalidade, longevidade, raça (FOUCAULT, 2001b, p.
818).

O efeito disso é a construção de uma sociedade que trabalha suas técnicas de


poder no sentido de fazer da ação coletiva uma rentabilidade cada vez maior. A
“governamentalidade” do Estado (objeto de estudo das maneiras de governar), e não a
estatização da sociedade, é a verdadeira gestão da vida e, desde o século XVIII, vem
ganhando novas formas. Esta racionalização apresenta-nos o mesmo problema: como

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Michel Foucault e a gestão da vida

governar? Cabe a nós problematizarmos alguns conceitos que ainda são bem atuais:
acontecimento, relações de poder, anátomo-política, biopolítica, governo,
governamentalidade. Talvez com isso percebamos o quanto vivemos em uma
“sociedade de sequestro”, para usar um termo ainda atual de Foucault, ou em uma
sociedade que se encarrega da “fabricação da miséria humana”, como dizia Deleuze.
Contra as sanções dos muros, a abertura de fendas. Talvez nessas palavras deleuzianas
esteja presente uma “resistência ao presente”:

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos


completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo
significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos,
que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo
de superfície ou volume reduzidos. [...] É ao nível de cada tentativa
que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a
submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e
povo (DELEUZE, 1992, p. 218).

Acreditemos nesses filósofos e trabalhemos para uma criação. A criação de


novos modos políticos do viver e que tenha na resistência a compreensão
acontecimental das estratégias, das mutações e formas do poder. Se este é condição
“ontológica” da liberdade é porque esta só se faz e se refaz nas entranhas daquele.
Resistir é criar.

Referências

CASTRO, E, Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e


autores. Trad. de Ingrid M. Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
DELEUZE, G. Conversações. Trad. de Peter Pál Pelbart. SP: Editora 34, 1992.
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Michel Foucault e a gestão da vida

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REVEL, J. Foucault: conceitos essenciais. Tradução de maria do Rosário Gregolin,
Nilton Milanez e Carlos Piovesani. São Paulo: Claraluz, 2005.

Recebido em: 11/11/2018


Aprovado em: 07/05/2019

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