Psicologia e Políticas Públicas - Percursos, Desafios e Descaminhos

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PSICOLOGIA E POLÍTICAS

PÚBLICAS: PERCURSOS,
DESAFIOS E
DESCAMINHOS

Aline Daniele Hoepers


Camila Motta Paiva
(Organizadoras)

0
ALINE DANIELE HOEPERS
CAMILA MOTTA PAIVA
(Organizadoras)

PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS:


PERCURSOS, DESAFIOS E DESCAMINHOS

1
2023 by Editora Alfa Ciência
Copyright © Editora Alfa Ciência
Copyright do Texto © 2023 Os autores
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Dr. Wellyson da Cunha Araújo Firmo

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Edição de Arte: Editora Alfa Ciência
Revisão: Os Autores
Organizadoras: Aline Daniele Hoepers
Camila Motta Paiva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Psicologia e políticas públicas [livro eletrônico] :


percursos, desafios e descaminhos /
organização Aline Daniele Hoepers, Camila
Motta Paiva. -- 1. ed. -- Chapadinha, MA :
Editora Alfa Ciência, 2023.
PDF

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-84518-38-4

1. Psicologia 2. Psicologia social 3. Políticas


públicas I. Hoepers, Aline Daniele. II. Paiva,
Camila Motta.

23-187562 CDD-302

Índices para catálogo sistemático:


1. Psicologia social 302
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

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Chapadinha – Maranhão – Brasil
www.editoraalfaciencia.com.br
[email protected]
[email protected]

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ....................................................................................................................................5

Capítulo 01 - PSICOLOGIA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS: PERCURSOS E OUTROS RUMOS ..............8


Aline Daniele Hoepers;
Camila Motta Paiva

Capítulo 02 - “A GENTE NÃO QUER SÓ COMIDA”: BENEFÍCIO EVENTUAL DE ALIMENTOS E SEUS


DESAFIOS PARA A PSICOLOGIA NO SUAS ....................................................................................... 24
Mauricio Cardoso da Silva Junior

Capítulo 03 - MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE USUÁRIOS/AS DE DROGAS ACERCA


DOS USOS DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS .................................................................................... 41
Janderson Carneiro de Oliveira;
Carlos Alberto Souza Dantas;
Luci Mara Bertoni

Capítulo 04 - IMPACTOS NA SAÚDE DO TRABALHADOR NA CONTEMPORANEIDADE:


REFLEXÕES SOBRE A SÍNDROME DE BURNOUT ............................................................................. 56
Kherolainy Delli Colli Cardoso

Capítulo 05 - RELIGIÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS: UMA ANÁLISE DE SUAS INTERSECÇÕES ........ 72


Camila Motta Paiva

Capítulo 06 - ENTRE O LEGAL E O REAL: POLÍTICAS DE (DES)PROTEÇÃO A VÍTIMAS E


TESTEMUNHAS DE CRIMES NO BRASIL ............................................................................................ 88
Aline Daniele Hoepers;
Danielle Verde dos Santos

Capítulo 07 - A HERANÇA ESCRAVOCRATA: NOVOS DELINEAMENTOS DE EXPLORAÇÃO E


VIOLÊNCIA CONTRA A POPULAÇÃO NEGRA .................................................................................. 103
Carolina Borges Conceição;
Hannah Raquel Borges Pimenta de Azevedo

Capítulo 08 - EXTERMÍNIO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE NEGRAS: REFLEXÕES A PARTIR DAS


POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA E DE DIREITOS HUMANOS ................................................ 119
Aline Daniele Hoepers;
Beatriz Zanetti Baratella

ORGANIZADORAS .............................................................................................................................. 133

4
APRESENTAÇÃO

A relação entre Psicologia e política(s) é marcada por numerosas e


sucessivas aproximações e distanciamentos. Sendo a Psicologia um campo de
dispersão, constituído por convergências e divergências, constata-se haver, por
um lado, uma tendência a psicologizar e individualizar os fenômenos, da qual
nos distanciamos; e, por outro, uma Psicologia multifacetada que examina
criticamente as suas políticas e tece análises de conjuntura, fazendo despontar
uma Psicologia politizada. Neste entremeio, a Psicologia se encontra com as
políticas públicas, que passa a ser um de seus objetos de estudo e de prática.
Em linhas gerais, define-se políticas públicas como medidas, programas,
iniciativas e estratégias que têm como intuito garantir a execução dos direitos
adquiridos. Como se sabe, após a transição democrática delinearam-se novos
cenários para a atuação dos psicólogos e psicólogas, aliados potentes para a
construção de uma sociedade mais justa. A este profissional, cujo trabalho
voltava-se às elites, é atribuída a incumbência de se aproximar das maiorias
populares, de suas realidades concretas e de suas necessidades, assim
adentrando outros espaços. Lançado ao trabalho junto a esses novos públicos,
o/a psicólogo/a é impelido a subverter as relações hierárquicas e os modelos
impositivos de outrora: afinal, não basta levar a Psicologia instituída aos novos
personagens sociais, mas com eles tecer outras psicologias mais pertinentes e
socialmente relevantes. Assim, o profissional da Psicologia passa a ser figura
ativa nesse reordenamento social, contribuindo com a tessitura de análises
críticas das estruturas sociais e apontando e enfrentando os sistemas de
opressão vigentes.
Nesse terreno, destacam-se as políticas sociais, que entendem a
questão social para além da pobreza, sendo a última mais do que mera
variável, e sim objeto de estudo legítimo e necessário de uma Psicologia que

5
se dispõe a andar junto com as vidas precárias e precarizadas; também as
políticas públicas de saúde, que pretendem diminuir as desigualdades por meio
da consideração de seus determinantes sociais – no país, esse conjunto de
políticas é fundamental para o acesso universal à saúde, sendo o SUS o pilar
que a sustenta. Garantir a educação de qualidade, a infraestrutura e a
segurança a todos os cidadãos e cidadãs, bem como condições dignas de
trabalho aos trabalhadores e trabalhadoras, são outros eixos cruciais no âmbito
das políticas públicas. Há, ainda, políticas variadas que dão reforço à
diversidade, somando-se na luta pelo combate à discriminação e pela liberdade
de ser e estar no mundo, de desejar e de nele se expressar.
Essa pluralidade de perspectivas se faz evidente na presente obra, que
reúne artigos decorrentes de pesquisas científicas, debates teóricos e relatos
de experiência quanto à atuação da Psicologia em interface com as políticas
públicas, a partir de uma ótica crítica e interdisciplinar. Os capítulos abordam
temas relacionados às possibilidades e impasses que se performam nos
campos de atuação de psicólogas/os inseridas/os em políticas de saúde,
assistência social, educação, segurança pública, sistema de justiça, cultura e
direitos humanos – agendas marcadas por embates político-ideológicos, mas
que justamente por isso acionam o posicionamento ético-político do/a
psicólogo/a.
Fatos recentes de nossa história evidenciam que os modelos prévios
não foram de todo superados, o que se mostra pelas tentativas incessantes de
conservar o desgastado. As reformas, longe de acabadas, seguem em curso:
faz-se imprescindível revisar, reavaliar e reformular as políticas,
potencializando-as para o enfrentamento das opressões que nos cerceiam – e,
consequentemente, tornando-as mais efetivas e inclusivas de fato.
Semelhantemente, também a práxis dos/as psicólogos/as segue em urdidura, o
que demanda uma afinada e permanente (auto)crítica: a Psicologia ainda está
em processo de descolamento da ideologia dominante, à qual por tanto tempo
esteve plasmada, em completa aderência.
Propomos nesta obra a reflexão sobre os múltiplos desafios que ainda
se colocam à Psicologia e seus profissionais na tarefa de superar a mera
transposição e reprodução de teorias e técnicas enrijecidas, o que acreditamos
que será feito por uma intensa problematização da profissão, de sua história,

6
seus enquadres, seus desdobramentos e seus limites, através dos quais
convidamos o/a leitor/a à (re)afirmação do compromisso social assumido.

Aline Daniele Hoepers


Camila Motta Paiva

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PSICOLOGIA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS:
PERCURSOS E OUTROS RUMOS

Aline Daniele Hoepers1; Camila Motta Paiva2

1
Pós-doutoranda, doutora, mestra e graduada em Psicologia (Universidade Estadual de
Maringá). Psicóloga (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo). Docente do Curso de
Psicologia (Toledo Prudente Centro Universitário);
2
Doutora, mestra e graduada em Psicologia (Universidade de São Paulo).

RESUMO:
A inserção da Psicologia nas políticas públicas representou um marco na
história da profissão. Com a redemocratização do Brasil e a incorporação de
pautas oriundas das necessidades da população nas agendas governamentais,
houve uma ampliação significativa do campo de atuação de psicólogos e
psicólogas, que passaram a se atentar às demandas de segmentos sociais até
então desatendidos pela Psicologia. Diante de contextos de vulnerabilidade e
de marcada desigualdade, as/os profissionais se depararam com numerosas e
complexas problemáticas advindas da realidade concreta das coletividades, as
quais fissuraram a Psicologia hegemônica historicamente voltada às elites,
concentrada em aspectos individuais e pouco afeita a análises sobre relações
de poder e estruturas sociais. A partir dos referenciais da Psicologia Social
Crítica, o capítulo em questão apresenta uma pesquisa teórica-reflexiva de
natureza qualitativa, que teve como objetivo discutir o percurso histórico da
Psicologia nas políticas públicas, evidenciando os desafios enfrentados pelos
psicólogos e psicólogas inseridos nessa esfera de trabalho. Entende-se que
essa reflexão é crucial para fomentar o compromisso ético-político desses
profissionais com as maiorias populares e com uma práxis afinada rumo à
construção de uma sociedade mais justa.
Palavras-chave: Políticas públicas; Psicologia; Compromisso social.

INTRODUÇÃO
Refletir sobre a Psicologia em interface com os múltiplos campos de
políticas públicas demanda o acionamento de uma perspectiva historicizada e
crítica quanto aos movimentos que foram e continuam sendo operados nestes
espaços. A inserção das psicólogas e dos psicólogos em instituições que as
compõem não informa apenas a emergência de cenários alternativos àqueles

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historicamente consolidados, em que imperavam práticas elitistas, mas
também a necessidade da assunção de uma sensibilidade ético-política
implicada com as demandas de populações oprimidas.
Isso não significa, todavia, que superamos práticas essencialistas,
estigmatizantes e excludentes, nem mesmo que essas não possam estar
sendo (re)produzidas no âmbito das políticas públicas. Ao lançarmos um olhar
atento para seus variados e complexos campos, resta notável que rupturas
vêm sendo produzidas, mas ainda há muito a construir rumo à consolidação de
ações transformadoras, que interroguem e enfrentem os impactos violentos dos
sistemas opressivos, geradores de desigualdades sociais, sofrimentos e
extermínios.
Neste cenário complexo, entre avanços e retrocessos, fato é que
rupturas vêm sendo provocadas. Yamamoto e Oliveira (2014) comentam que,
seis décadas após a regulamentação da profissão, evidencia-se uma diferença
notável no campo da pesquisa e da prática em Psicologia no que tange às
políticas públicas, ao passo que esse campo era uma preocupação
praticamente ausente no contexto de regulamentação da profissão,
majoritariamente elitista. Contudo, em que pese haver, atualmente, uma vasta
produção científica sobre o tema, acompanhada de uma ampla inserção das
psicólogas e dos psicólogos neste âmbito, salientam que ainda carecemos de
estudos e ações que problematizem os sentidos assumidos por nossos
saberes-fazeres no bojo do capitalismo, colocando em relevo seus impactos,
limites e possibilidades. Nessa direção, refletir e tensionar políticas públicas
nos marcos do modo de produção capitalista é indispensável para que o
compromisso social da Psicologia não passe de mera abstração.
Se houve e há a construção de conhecimentos e práticas hegemônicas,
aliadas à manutenção desta sociedade desigual, cabe-nos sublinhar que
também houve e há movimentos de resistência.
Desde seu início enquanto ciência e campo profissional a Psicologia
tem passado por movimentos amplos e vem enfrentando embates
bastante firmes em busca de uma posição de luta por direitos sociais
e políticos, especialmente no campo da saúde, da educação e da
assistência social como modo de possibilitar que a vida exista na
diversidade e democracia (Guareschi, 2020, p. 12).

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Discutir criticamente as posições assumidas pela Psicologia nestes
espaços envolve, então, reconhecer que estamos falando de um campo
contraditório.
A propósito, as políticas públicas foram e são mediadas por complexas e
históricas relações de poder, na medida em que evidenciam as relações entre
Estado, capitalismo e sociedade civil, tal como pontua Gonçalves (2010). Elas
se concretizam, segundo a autora, como efeitos das lutas de classes e como
respostas às reivindicações por direitos sociais, tendo, pois, potencial de
reconhecer e atuar frente às desigualdades sociais. Entretanto, em razão das
tensões e contradições presentes nas relações entre aquelas três dimensões,
não raro, as políticas estatais se configuram como arenas de disputas e
confrontos político-ideológicos.
Emergem, assim, inúmeros desafios à Psicologia, em interface com
outras áreas do conhecimento e setores sociais, sobre os quais buscaremos
refletir neste capítulo. Ao destacar a questão “podem as políticas públicas
emancipar?”, Lacerda Júnior (2015) nos convida a avançar para discussões
sobre a relação entre Psicologia e políticas públicas que não apenas visem
superar práticas adaptacionistas e excludentes, mas que também envolvam
uma crítica radical a respeito dos limites das políticas públicas na sociedade
capitalista neoliberal, em que são dimensionadas de modo fragmentado e
precarizado.
Nessa direção, desenvolvemos pesquisa teórica-reflexiva, de natureza
qualitativa, a partir da Psicologia Social Crítica, que se caracteriza,
fundamentalmente, pela assunção de uma postura crítica e política,
comprometida com a transformação da realidade social desigual que temos.
É a ética da Psicologia Social Crítica que faz com que cada pessoa
que se interessa por ela, se interesse necessariamente na
transformação do mundo, uma vez que esta ética exige muito mais do
que as leituras teóricas, exige a prática, e uma prática transformadora
(Santos Júnior; Lopes; Gonçalves; Rasera, 2019, p. 114).

Com essa implicação, este capítulo tem como finalidade fundamental


discutir e tensionar a inserção da Psicologia, ao longo do processo histórico,
em políticas públicas variadas, e apresentar problematizações quanto aos
desafios que se presentificam nas pesquisas e práticas psicológicas nelas
desenvolvidas.

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PERCURSOS DA PSICOLOGIA E(M) POLÍTICAS PÚBLICAS
A trajetória da Psicologia no Brasil é marcada por avanços, desafios e
transformações. Ao longo das décadas, a profissão foi sendo construída em
paralelo com os eventos políticos e sociais do país: um atravessamento que se
reflete não apenas nas conquistas, mas nas crises que permearam esse
percurso.
Regulamentada em 1962, apenas dois anos antes do golpe militar que
instaurou o período ditatorial vigente por mais de duas décadas em território
nacional, a Psicologia se desenvolveu tendo como fundo o autoritarismo, que
se somava a uma série de turbulências econômicas, políticas e sociais
enfrentadas historicamente pelos países latino-americanos: o genocídio dos
povos originários; a herança colonial de latifúndios monocultores, com seus
senhores e seu poder de mando; a brutal tradição escravocrata; a
industrialização tardia e a posição periférica e subordinada são algumas das
características comuns a nós, povos colonizados, cujo passado de exploração
ainda reverbera e segue gerando efeitos.
Entre tantas dominações que o claro vínculo entre capitalismo e
colonialismo (Losurdo, 2020) nos impuseram, ressaltamos a dependência
científica, que por muito tempo minou o desenvolvimento de uma Psicologia
não apenas na América Latina, mas da e desde o continente: como se sabe, a
emergência da Psicologia por aqui se deu através da importação de correntes
de pensamento europeias e norte-americanas, ou seja, de teorias e métodos
desenvolvidos em outros contextos, a partir de realidades histórico-sociais que
não as nossas. Como consequência, por muito tempo estudamos e praticamos
a Psicologia apenas a partir da produção de poucos países do Norte global,
tomados como os cânones do saber psicológico: um monopólio do
conhecimento que faz parte do projeto de avanço de agendas imperiais,
coloniais e patriarcais (Grosfoguel, 2016).
Questiona-se: seriam esses conhecimentos capazes de explicar toda e
qualquer realidade do mundo? Seriam universalizantes e generalizáveis a
ponto de suplantar o contexto histórico, social, econômico, político e cultural
dos distintos territórios ao redor do globo? Essas são algumas das indagações
que psicólogas e psicólogos engajados com as realidades sociopolíticas locais

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começaram a fazer em meados da década de 1970. Incomodados com tal
Psicologia importada, individualista e positivista que tinha firmado sua
hegemonia e se apresentava, falaciosamente, como neutra, apolítica e a-
histórica, essa parcela profissional reflete, pois, acerca do papel da Psicologia
na sociedade: afinal, a quê e a quem ela serve, e a quê e a quem ela deveria
servir? Instaura-se, assim, o que ficou conhecido como “crise de relevância” da
Psicologia (Lane, 1984).
Concentrada até então em três grandes áreas – a saber: a clínica,
suprassumo da psicologia tradicional, a escolar e a organizacional –, a
Psicologia servia quase que exclusivamente às classes dominantes:
inacessível às massas, visava atender aos interesses da elite. Além disso,
tinha como propósito não uma transformação social, mas sim a “solução de
problemas de ajustamento”, como consta no texto da Lei nº 4119 de 27 de
agosto de 1962, que regulamentou a profissão no país: o ideário individualista
era o signo da cultura profissional do/a psicólogo/a (Dimenstein, 2000), que
pouco criticava as estruturas de desigualdade e de opressão enraizadas na
sociedade, imputando ao indivíduo, pura e simplesmente, a responsabilidade
pelo seu suposto desajuste, por sua desadaptação a um contexto, este sim,
profundamente desalentador, alienado e alienante.
Diante do descumprimento da promessa de “milagre econômico” na
década de 1970, agravou-se ainda mais a pauperização da população
brasileira, que vivia sob condições precárias de moradia, trabalho, saneamento,
transporte, alimentação, sendo suportada por sistemas desgastados de saúde
e de assistência social. O primeiro, sustentado pelos moldes previdenciários,
administrava uma assistência médico-hospitalar frágil e ineficiente às
trabalhadoras e aos trabalhadores vinculados e dependentes, não
contemplando, portanto, grande parte das brasileiras e dos brasileiros; a
assistência social, caracterizada por uma abordagem assistencialista, baseada
em práticas caritativas e filantrópicas, limitava-se ao alívio das necessidades
imediatas das pessoas – imperava a cultura da dádiva, de benesses oferecidas
como favor àqueles mais vulneráveis economicamente, sem haver uma real
preocupação em desvelar as causas subjacentes à pobreza e à exclusão
social.

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Imerso em um cenário permeado por tantos contrastes e paradoxos,
seria viável ao profissional da Psicologia manter-se supostamente neutro e
isento diante das mazelas enfrentadas pelas maiorias populares? Caberia à
Psicologia seguir ajustando as pessoas a tal realidade de exploração e
dominação? Desponta um projeto ético-político de construção de uma
Psicologia que firma um compromisso social com aqueles que foram
historicamente negligenciados pelo campo psi (Lane, 1984; Bock; Ferreira;
Gonçalves; Furtado, 2007).
A insatisfação de profissionais da Psicologia com sua forma dominante
de atuação cresceu no mesmo compasso da insatisfação popular com o regime
militar autoritário e com as condições de existência cada vez mais aviltantes.
Ainda que imersos em tal contexto desfavorável, segmentos da sociedade
começaram a se mobilizar e se organizar contra o instituído, questionando a
ordem cristalizada e em busca de transformações: em meio a tal cenário
efervescente, eclodem e se fortalecem, entre a década de 1970 e 1980,
numerosos movimentos sociais por todo o país, como o movimento negro,
indígena, feminista, LGBT, estudantil, operário, de trabalhadores do campo e
de profissionais da saúde. Entram em cena estes “novos personagens” sociais
(Sader, 1988), que se articulam e fazem reivindicações, clamando por direitos e
mudanças. As manifestações populares e suas ações de resistência puseram
em xeque o autoritarismo, expondo suas contradições, atrocidades, abusos e
violações de direitos.
A mobilização popular, o crescente descrédito do regime, a significativa
crise econômica e social que deteriorou ainda mais as condições de vida da
população, bem como as pressões internacionais, colaboraram para a gradual
erosão do regime militar, fazendo com que na década de 1980 fosse iniciado o
processo de abertura política: um período altamente favorável à disseminação
e ao fortalecimento dos ideais reformistas.
A participação popular intensa, em interlocução com o Estado, leva à
elaboração de uma nova constituição que, não à toa, é adjetivada como cidadã:
marco indelével da redemocratização do país, a promulgação da Constituição
Federal de 1988 consolida a democracia no Brasil e consagra os direitos
fundamentais dos cidadãos. Considerada uma das mais progressistas do
mundo, garante o respeito à dignidade da pessoa humana e a todas as

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liberdades fundamentais, como a de expressão, de manifestação, de exercício
dos cultos religiosos; e firma saúde, educação, segurança e assistência social
como direitos, cabendo ao Estado o dever de fazê-los valer de fato.
A partir desse marco histórico-legal, o sistema de saúde brasileiro passa
por uma reestruturação profunda com a implementação do Sistema Único de
Saúde, o SUS, pela Lei Federal nº 8080/1990. Efetivam-se as pautas
levantadas pelo movimento da Reforma Sanitária, como a promoção de
equidade e integralidade em saúde, a universalização de acesso aos serviços e
o fortalecimento da atenção básica. Tais diretrizes dão base à finalidade de
superação gradativa do modelo hospitalocêntrico, curativo e biomédico em
direção a um mais abrangente, de base comunitária, que privilegie a promoção
e a prevenção em saúde e o paradigma psicossocial.
No campo da assistência social, esta passa a ser ofertada a quem dela
necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social. Pode-se
dizer, portanto, que a redemocratização do país na década de 1980 e a
promulgação da Constituição em 1988 foram as chaves de virada para o
estabelecimento das bases para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS)
e, posteriormente, do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) que,
guardadas as respectivas diferenças, buscam se orientar por uma abordagem
integrada, participativa e voltada para a promoção da cidadania e da inclusão
social.
Em sintonia com este novo cenário sociopolítico que se delineava, a
Psicologia mais uma vez se reposicionou, pois saúde pública e assistência
social passaram a constituir campos férteis de trabalho para os profissionais. É
assim que a Psicologia se insere, portanto, no âmbito das políticas públicas, e
as toma como um de seus mais expressivos objetos de estudo e de prática
(Hur; Sabucedo, 2017).
Em linhas gerais, define-se políticas públicas como medidas, programas,
iniciativas e estratégias implementadas pelo Estado, que visam a pôr em
prática a garantia dos direitos adquiridos (Höfling, 2001). Isso posto, pode-se
pensar que as políticas públicas têm como objetivo atender aos interesses da
sociedade, seja para o beneficiamento de todas as pessoas, seja para um
segmento específico da população – usualmente, grupos minorizados, a quem
foi historicamente negada a representação nos espaços de poder, portanto

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pouco propensos a serem ouvidos e terem suas necessidades consideradas
nos processos de tomada de decisão.
Deste modo, as políticas públicas vão mitigar os efeitos mais evidentes
da questão social, que desvela-se na pobreza, no desemprego, na
precarização do trabalho, na fome, em moradias inaptas, em condições
insalubres de saneamento, na insegurança urbana, em violências de múltiplas
ordens, nas altas taxas de analfabetismo, na evasão escolar, na intolerância
religiosa, nas condições precárias de saúde e de assistência, entre tantas
outras facetas desalentadoras das contradições que se mostram no cotidiano
da vida social.
Embora o Estado seja responsável pela implementação das políticas,
isso de forma alguma implica desconsiderar a participação social que é tão
cara às sociedades democráticas, pois é da realidade da população que se
extraem as demandas que servirão de disparadores para a elaboração das
políticas públicas. Para tanto, é preciso estarmos atentas e atentos às
necessidades que despontam na sociedade – e com isso nós, psicólogas e
psicólogos, podemos contribuir enormemente, desde que nos comprometamos
a estar juntas/os às maiorias populares, inserindo-nos em seus contextos.
Como visto, após a transição democrática, abrem-se os horizontes para
a atuação das psicólogas e dos psicólogos, que fulguram como partícipes
potentes na construção de uma sociedade menos desigual. A estes
profissionais, cujo trabalho voltava-se às elites, passa a ser atribuído o desafio
de se aproximarem das realidades concretas da população, adentrando outros
espaços. Este deslocamento fissura consideravelmente o modelo tradicional da
profissão, gerando uma série de problematizações teóricas, metodológicas e
ético-políticas: do consultório protegido, passa à exposição no território, na
comunidade; do trabalho solitário, para a inserção em equipes
multiprofissionais; da atuação junto às elites, para as camadas populares. Se,
por um lado, esse deslocamento está aderido ao compromisso social firmado
pela Psicologia, por outro, há de se pesar que essas mudanças não se deram
sem tensões e desafios.

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DESAFIOS À PSICOLOGIA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Em nossas travessias, temos nos deparado com complexas
problemáticas, diante dos quais buscamos, invariavelmente, operar uma práxis
politicamente implicada com as demandas de pessoas e grupos oprimidos.
Partindo, então, deste lugar situado – como pesquisadoras, docentes e
psicólogas em políticas públicas – nossa intenção é destacar, aqui, algumas
provocações, que poderão criar questionamentos e deslocamentos frente aos
desafios que nos atravessam cotidianamente.
Assim, a partir das discussões construídas na seção anterior, neste
momento, nossa proposta é colocar em relevo dilemas vividos pela Psicologia
nas tramas das políticas públicas. Para isso, propomos que pensemos neste
campo a partir de alguns eixos articulados, que evidenciam a complexidade
das e nas políticas públicas.
Um primeiro eixo informa os tensionamentos entre: o suposto saber-
poder unidirecional da ciência psicológica versus a potência dos encontros com
os sujeitos, grupos e territórios.
Ainda que tenham havido inúmeros avanços éticos e técnicos nas
maneiras de operar nossa ciência e profissão, fato é que, seja nas políticas
públicas ou em outros espaços de atuação profissional e/ou de pesquisa, não
raro, persistem modos de produzir conhecimentos e de atuar autocentrados
num suposto saber-poder que descobre, classifica, controla e normatiza modos
de ser, pensar e agir de sujeitos e grupos sociais diversos.
Perspectivas universalizantes, estigmatizantes e reducionistas não são
exceção nestes discursos e práticas que escamoteiam as estruturas sociais
opressivas e tomam os problemas psicossociais a partir de olhares
descontextualizadas e (ao menos pretensamente 1) apolíticas.
Percebe-se cada vez com maior clareza que as definições genéricas
procedentes de outros lugares trazem uma compreensão de nós
mesmos e dos outros muitas vezes míope diante das realidades que
a maioria dos nossos povos enfrenta e são inadequadas para captar
sua especificidade social e cultural (Martín-Baró, 1996, p. 8).

Rompendo com essas perspectivas descontextualizadas e


mantenedoras do status quo, defendemos a indispensabilidade de que a
Psicologia assuma uma posição política de confronto às estruturas opressivas
1
Como diz Patto (2007, p. 14): “a pretensão de neutralidade política é, ela própria, uma
posição política”.

16
amalgamadas e seus efeitos interseccionados. Ademais, consideramos
indispensável que esse embate esteja situado a partir dos territórios
comunitários, onde as pessoas e os grupos subalternizados vivem e resistem,
a fim de que os sentidos (co)produzidos sejam gestados horizontalmente
através da potência do encontro coletivo e da valorização dos saberes
populares.
Um segundo eixo, articulado ao primeiro, coloca em destaque as
contradições entre: a burocratização da prática cotidiana versus a implicação
com as necessidades concretas da população.
A captura de práticas e de pesquisas em Psicologia pelos ditames
neoliberais se processa como se fosse aspecto natural, intrínseco às nossas
atividades. Da formação acadêmica à atuação profissional somos impelidas/os
a assumir modos de exercer a ciência e profissão psicológica a partir de teorias
e técnicas que pouco ou nada refletem sobre as especificidades das
populações, marcadas por questões de gênero, classe social, raça, localização
geográfica, idade e outros marcadores sociais.
Nos mais variados equipamentos que ofertam políticas públicas,
estamos disponíveis para escutar quem e o quê? (Re)produzimos quais
preconceitos e, a partir deles, colocamos em marcha quais prescrições ao
outro, diverso de nós? Aliás, conseguimos perceber, acolher e dar visibilidade
para as diversidades, ou persistimos apagando, silenciando e exterminando as
diferenças? Acolhemos ou silenciamos os conhecimentos, as histórias, as
vozes das pessoas usuárias dos serviços aos quais estamos vinculadas/os?
Essas inquietações nos convidam a refletir o quanto há, ainda, para
avançar rumo à uma práxis que realmente se coloque sensível às
necessidades reais da população que atendemos. Como bem salientou Martín-
Baró (1996, p. 7): o trabalho das psicólogas e dos psicólogos deve,
necessariamente, “ser definido em função das circunstâncias concretas da
população a que deve atender” (Martín-Baró, 1996, p. 7). A propósito, se não
nos implicarmos com as necessidades dos povos subalternizados, estamos
atuando e pesquisando a serviço de que(m)?
O terceiro eixo se expressa como desdobramento dos anteriores e põe
em relevo tensões entre: as práticas comprometidas com a manutenção da

17
realidade instituída versus o exercício do compromisso social interessado na
transformação da realidade desigual.
Muito do que se fez e ainda se faz em Psicologia serve à manutenção da
realidade instituída. A Psicologia produziu e produz teorias e práticas
supostamente neutras, comprometidas com a persistência de privilégios a
alguns, em detrimento das mazelas sociais (im)postas a outros. Mesmo no
campo das políticas públicas, que têm potencial para serem espaços de
promoção de direitos, o descompromisso com as demandas populares não
segue sendo exceção.
São inúmeros os exemplos que se escancaram em nosso cotidiano:
práticas fragmentadas e descontextualizadas; escutas que não incluem a
realidade sócio-histórica-política dos sujeitos; discursos universalizantes que
escamoteiam os sistemas opressivos interseccionados geradores de
sofrimentos; ações que se dizem pautadas no cuidado, mas que reproduzem a
lógica mercadológica e excludente; dentre outros.
Diante do exposto, recuperamos e parafraseamos a provocação de
Lacerda Júnior (2015): podem as políticas públicas emancipar (a Psicologia)?
Nossa defesa é de que, em Psicologia, não há espaço para
neutralidade. Nosso compromisso, como argumenta Martín-Baró (2017), deve
ser com as causas populares. A Psicologia deve estar voltada a um
permanente trabalho, junto às comunidades e a outros/as profissionais, de
desideologização, que, segundo o autor, envolve o desvelamento dos
mecanismos que criam, sustentam e perpetuam as realidades histórico-sociais
opressivas, como se fossem processos naturais.
Não se trata, no entanto, de fomentar o ideário idealizado e romantizado
da profissão. Consoante Martín-Baró (1996), o/a psicólogo/a, sozinho/a, não é
capaz de resolver os problemas fundamentais decorrentes das injustas
estruturas socioeconômicas com que se defrontam a população – mas com ela
pode colaborar. Este entendimento é importante para o/a profissional da
Psicologia, já que sua atuação no campo das políticas públicas inevitavelmente
irá se esbarrar com os limites impostos pelos marcos fundantes do modo de
produção capitalista (Lacerda Júnior, 2015). Caso ignoremos este debate,
corremos o risco de atuar como os “novos quixotes” dos quais falam Paiva e
Yamamoto (2008): cheios de boa vontade, mas esvaziados de autocrítica.

18
Semelhantemente, cabe pontuar que as políticas públicas, em isolado,
não são suficientes para derrubar a ordem vigente, mas certamente a
arranham e a tensionam – o que, por si só, já é bastante significativo. Em
tempos de desmontes e retrocessos, a sua defesa é crucial e ganha ares de
contestação, quase insurgência. É preciso manter-nos vigilantes quanto ao
autoritarismo que segue à espreita: nos últimos anos, assistimos ao descaso
com o SUS, atacado e vilipendiado; o desmanche das políticas sociais,
sobretudo as de transferência de renda, como o Bolsa Família; as críticas
infundadas contra a Lei de Cotas, uma bem-sucedida política de reparação
social e de promoção de igualdade no âmbito da educação, entre outros
exemplos notórios que escancaram como as elites se recusam a abrir mão dos
seus privilégios e dos seus espaços de poder, que são por sua vez alimentados
pela lógica neoliberal, meritocrática, nela encontrando reforço.
A inserção da Psicologia nas políticas públicas segue rompendo a
redoma de psicólogas e psicólogos, impelindo estas/es profissionais a se
atentarem para os segmentos outrora desassistidos por elas/es. No entanto,
para que mormente se cumpra com uma finalidade o mais transformadora
possível, exige-se um constante repensar, inclusive sobre a profissão, para que
nos coloquemos a favor de uma inclusão de fato, e não de uma inclusão
perversa (Sawaia, 2001).
Os eixos propostos acima se entretecem e explicitam complexos
desafios, os quais podemos associar ao que Martín-Baró (2022) destacou
como tarefas urgentes à Psicologia Latino-Americana. Segundo ele, faz-se
indispensável: recuperar a memória histórica, isto é, evocar, da histórica
coletiva, aspectos que foram eficazes para defender os interesses das classes
oprimidas e que podem ser úteis para os objetivos de luta atuais e futuros;
potencializar as virtudes dos povos, que estão vivas nas tradições e saberes
populares, de modo a favorecer uma práxis comprometida com os sofrimentos
e as esperanças da população latino-americana; e construir, em conjunto com
as pessoas, estratégias que cooperem para a desideologização da experiência
cotidiana, por meio de processos de participação críticos e colaborativos.
Que essas proposições possam nos servir de molas propulsoras para a
transformação social, e que essa transformação seja, necessariamente,
(co)criada com a comunidade e posicionada ético-politicamente nas fraturas e

19
brechas, localizadas nos entremeios da realidade instituída, onde se faça
possível forjar outro mundo, de fato, democrático.
Assim, pensamos que a ética e a política, indissociáveis da nossa
prática profissional, seja ela na produção do conhecimento ou nas
diferentes atividades institucionais às quais nos vinculamos, possam
ser vetores de mudanças que visam a garantia de direitos e a
participação democrática em todas as relações sociais (Guareschi,
2020, p. 11).

Eis o legado apresentado a nós – ontem, hoje, sempre.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As discussões tecidas no transcurso do capítulo revelam movimentos de
lutas, conquistas, retrocessos e desafios. Emprestamos de Santos Júnior,
Lopes, Gonçalves e Rasera (2019, p. 98) a pertinente indagação: “o que pode
fazer a Psicologia Social Crítica quanto à defesa dos Direitos Humanos, à
construção e manutenção das políticas públicas, principalmente em um
contexto de retrocesso como o que vivemos?”
As particularidades de nosso atual cenário sociopolítico brasileiro, que
ainda sente os impactos de anos de ataques diretos aos mais variados campos
de políticas públicas (através de discursos e práticas que escancaram o
descompromisso com populações oprimidas e com políticas públicas
garantidoras de direitos), mas que, simultaneamente, gesta movimentos de
importantes mudanças democráticas, explicita que a nossa luta por políticas
públicas engajadas com a promoção e garantia de direitos sociais e com o
enfrentamento das desigualdades sociais é sempre urgente e incessante.
O processo contínuo de desinvestimento nas políticas sociais tem se
constituído como o desafio atual que nos demanda exercícios de
resistência quais sejam as manifestações públicas de categorias pro-
fissionais, entidades estudantis, coletivos e movimentos sociais que
se organizam em termos de resposta às ações violentas de retirada
de direitos da população de modo geral, seja na saúde, na educação
ou na assistência social (Guareschi, 2020, p. 13).

Nos mais diversos âmbitos de políticas públicas, de modo alinhado e


comprometido com as maiorias populares – via coalizões com profissionais e
pesquisadoras/es de outras áreas e com os movimentos sociais –, situa-se o
nosso legado de exercício do compromisso social da Psicologia rumo à uma
realidade libertária.

20
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23
“A GENTE NÃO QUER SÓ COMIDA”:
BENEFÍCIO EVENTUAL DE ALIMENTOS
E SEUS DESAFIOS PARA
A PSICOLOGIA NO SUAS

Mauricio Cardoso da Silva Junior 1

1
Doutor em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Professor Adjunto do
Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.

RESUMO:
No cotidiano de trabalho dos/as psicólogos/as que atuam nos diferentes
equipamentos que compõem o Sistema Único de Assistência Social (SUAS),
uma das demandas que mais se apresentam consiste na procura pelo
denominado benefício eventual de alimentos. Esse benefício, geralmente
disponibilizado por meio de cestas básicas, cartão-alimentação ou
transferência de valores, destina-se a oferecer proteção social em situações de
vulnerabilidade temporária. A oferta deste benefício como parte do trabalho
dos/as psicólogos que atuam na política de assistência social não é ponto
pacífico. Neste estudo, buscamos problematizar como tais profissionais podem
exercer seu labor junto à população em situação de vulnerabilidade e risco
social, contando com a provisão do benefício eventual nos casos que dele
necessitem, sem que sua identidade enquanto psicólogos/as esteja sob risco.
Também realizamos algumas reflexões sobre como a demanda por alimentos e
a organização do trabalho dentro do SUAS podem ser repensados, de modo a
superar formas de atuação ainda calcadas no assistencialismo e no
atendimento pontual/individualizado.
Palavras-chave: Psicologia; Sistema Único de Assistência Social; Benefício
Eventual de Alimentos; Segurança Alimentar e Nutricional.

INTRODUÇÃO
Uma das demandas mais presentes no cotidiano das equipes que atuam
nos equipamentos de Assistência Social, especialmente nos Centros de
Referência da Assistência Social (CRAS), como atesta Bovolenta (2017),
consiste na busca pelo suprimento de uma necessidade humana básica: a
alimentação. Consagrada enquanto direito humano fundamental pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 25) e direito constitucional
incluído em nossa Carta Magna por meio da emenda constitucional 64/2010, a

24
alimentação adequada e digna, enquanto direito a ser garantido, apresenta-se
como um grande desafio para a operacionalização das diferentes políticas
públicas.
Se a fome, como destaca Rocha (2012), trata-se de um fenômeno
historicamente produzido no Brasil desde sua colonização, fruto do processo
de concentração de riquezas nas mãos de uma pequena elite que deixou uma
grande parcela da população, sobretudo negra, em condições subalternas de
existência, o contexto atual não parece favorecer que o direito à alimentação
seja garantido aos brasileiros por parte do poder público. Isto porque o país,
que já sofria os efeitos tanto da crise do sistema capitalista que remonta aos
anos 2007 e 2008 (Gouvêa, 2020) quanto das medidas de teor neoliberal
adotadas pelos governantes desde 2015, congelando gastos públicos,
promovendo cortes orçamentários em políticas públicas e programas sociais e
realizando reformas trabalhistas e previdenciária, as quais precarizaram as
condições e os direitos dos trabalhadores (Pereira; Cronemberger, 2020),
atualmente ainda sofre os impactos da crise sanitária decorrente da
disseminação do novo coronavírus pelo mundo a partir do fim de 2019.
Atualmente, mais de 70 milhões de pessoas possuem dificuldade para se
alimentar diariamente, e mais de 21 milhões vivenciam a fome no país (FAO;
FIDA; OMS; PMA; UNICEF, 2023).
Neste contexto crítico, a política pública de Assistência Social consiste
em uma das áreas essenciais para o combate à pobreza e, consequentemente,
à insegurança alimentar, ao buscar proteger indivíduos e famílias de situações
de vulnerabilidade e risco e garantir acesso aos direitos socioassistenciais por
meio da oferta de serviços, programas, projetos e benefícios (Brasil, 2004),
Dentre as medidas que se encontram ao alcance das equipes, a iminência da
fome, muitas vezes, requer dos profissionais um enfrentamento mais imediato,
o que se materializa na provisão de benefícios eventuais – no fornecimento de
bens de consumo (cesta básica) ou em pecúnia (vale ou cartão-alimentação,
por exemplo).
Os benefícios eventuais estão previstos na Lei Orgânica da Assistência
Social (LOAS) desde 2011 (redação incluída pela lei 12.435), em seu artigo 22,
e regulamentados pela resolução 212/2006, do Conselho Nacional de
Assistência Social, e pelo Decreto 6.307/2007 do Governo Federal. A oferta

25
desses benefícios é caracterizada como temporária (ou seja, não se
caracteriza como um benefício contínuo, permanente, ininterrupto) e se destina
a situações que necessitam de prevenção e enfrentamento de situações
provisórias (nascimento ou morte de um membro da família, situações de
calamidade pública e de vulnerabilidade temporária) (Brasil, 1993).
Enquanto profissional que compõe o Sistema Único de Assistência
Social (SUAS), o/a psicólogo/a possui, dentre suas competências 2, justamente
a provisão do benefício eventual – uma tarefa digamos, no mínimo,
controversa, na medida em que não é desempenhada sem uma dose de
desconforto, estranheza ou, mesmo, discordância de que esta seja uma
atribuição legítima ou para a qual se sinta apto para exercê-la, como expõe
Pincolini (2021).
Neste capítulo problematizaremos como tal atribuição se apresenta no
cotidiano de trabalho do/a psicólogo/a, mais especificamente dentro de um
Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) 3. Afinal, o que a Psicologia
pode fazer frente a uma necessidade tão básica quanto a de se alimentar?
Como a oferta de uma cesta básica ou cartão-alimentação pode estar inserida
em nosso atendimento sem que percamos as especificidades de nossa
formação e atuação? Que princípios nos auxiliam a sustentar práticas
eticamente comprometidas com a garantia de direitos dos/as cidadãos/ãs em
relação à oferta de cestas básicas ou cartões-alimentação? É com estas
perguntas que convidamos o/a leitor/a a nos acompanhar nas páginas que
seguem.

REPENSANDO A DEMANDA
Primeiramente, sublinhemos que não é a oferta de um benefício (seja
ele de alimentação, de transporte, de natalidade, etc.) que descaracteriza, por
si, a atuação do/a psicólogo/a no SUAS. Freud (1919/2010), ao pensar sobre o

2
Salvo haja alguma especificação em normativa local que especifique, por exemplo, a provisão
dos benefícios eventuais enquanto atribuição privativa dos/as assistentes sociais ou que
estabeleça outras formas de acesso que determinem critérios específicos, podendo não prever,
por exemplo, a necessidade de atendimento por esses profissionais.
3
O recorte se justifica devido à nossa familiaridade com este lócus de atuação: trabalhamos
como psicólogos em um CRAS durante aproximadamente oito anos. Mas é importante
ressaltar que a oferta de benefícios eventuais não é atividade exclusiva dos CRAS, mas
responsabilidade dos diferentes equipamentos e serviços, nos diferentes níveis de proteção,
que compõem o SUAS (Brasil, 2018).

26
futuro da psicanálise ofertada à população mais pobre por meio do Estado, ou
seja, de maneira gratuita e acessível, considerou que a técnica psicanalítica
deveria se adaptar à realidade deste âmbito de atuação, até mesmo aliando-se
a algum subsídio material para possibilitar que tais tratamentos pudessem ser
levados a cabo pelas camadas populares: “Então haverá para nós a tarefa de
adaptar nossa técnica às novas condições (...) É possível que só consigamos
realizar algo se pudermos juntar auxílio psíquico e apoio material” (Freud,
1919/2010, p. 217-218). Apesar de estar se referindo a uma prática de
atendimento psicoterapêutico, que é muito diferente da prática do/a psicólogo/a
na política de assistência social4, podemos pensar, a partir desta colocação,
que não há, a rigor, conflito entre os princípios que regem a prática
psicanalítica (em uma perspectiva de clínica para além do consultório privado)
e uma espécie de “apoio material”, cabendo, como recomenda o autor, uma
adaptação da técnica a este contexto de atuação. O exercício que nos cabe
empreender, então, é o de refletir de que forma a provisão de um benefício
material se insere e que particularidades passam a fazer parte da configuração
da relação entre profissional e pessoa atendida.
De início, podemos problematizar sobre como a demanda pelo benefício
se apresenta. De acordo com Baremblitt (2002), é um equívoco considerar a
existência de uma demanda espontânea5, pois toda demanda possui
determinação social. Para o autor, a demanda é modulada a partir do que é
ofertado, e não o contrário; ou seja, os indivíduos constroem, elaboram suas
demandas (o que requerer, solicitar) tendo como base o que se encontra
disponibilizado em seu meio social. A oferta, por este viés, é anterior à
demanda.

4
As normativas que orientam o trabalho da Psicologia no SUAS (Brasil, 2012; Conselho
Federal de Psicologia, 2021) são incisivas ao determinar que tais profissionais devem se
distanciar de práticas de caráter psicoterapêutico ou psicodiagnósticas, que levam à
individualização e patologização de questões que não são de ordem interna dos indivíduos,
mas dizem respeito ao contexto social, político, econômico e cultural.
5
O termo “demanda espontânea”, ou “procura espontânea”, é comumente utilizado pelos
profissionais das políticas públicas de saúde e assistência social, por exemplo, para se referir
aos atendimentos gerados a partir da procura voluntária. Um dos significados do termo, nos
dicionários, é o de algo que é feito de livre vontade, que se realiza por si, sem causa aparente,
que não é provocado. Utilizar o termo para caracterizar a procura pelo direito à alimentação
reforça a ideia de que a causa da insegurança alimentar vivenciada pela pessoa é individual,
quando, na verdade, ela é levada a tal busca devido a fatores de ordem social, econômica.

27
No caso do benefício eventual de alimentos, não podemos ignorar, por
um lado, que sua busca reflete o drama concreto da insegurança alimentar,
mas que também, por outro, temos que considerar que sua expressiva procura
nos equipamentos do SUAS talvez diga respeito, também, a uma ineficiência
de ofertas de outras formas de proteção social, por meio de um leque maior de
programas, projetos, serviços e outros benefícios. Como afirma Bovolenta
(2017, p. 522), se a demanda por alimentos se apresenta como uma das mais
presentes no cotidiano das equipes de assistência social, ela pode ser
interpretada como um indicativo da falência de um conjunto de proteções que
deveriam ser afiançadas pelo Estado: “a centralidade em torno da alimentação
pode ser um indicativo de ausência de respostas mais efetivas, um meio pelo
qual o poder público se omite, esconde e negligencia os reais direitos do
cidadão”.
Se a oferta dos serviços se encontra centrada no atendimento pontual
para fornecimento de benefício eventual, em atendimentos individualizados e
descontínuos, pontuais – no estilo “plantão social”6, isso modulará a demanda
das pessoas por este tipo de atendimento como resposta única, de caráter
remediativo, emergencial, resultando em uma prática assistencialista e inócua,
que não reserva fôlego para que seja executado o primordial de suas
atividades – prevenção, planejamento, acompanhamento de famílias e
indivíduos, ações territoriais e comunitárias. Como afirma Pincolini (2021),
neste caso é preciso desconstruir a lógica de atendimento baseado na
emergência (e até mesmo definir o que é considerada uma emergência na
proteção social básica) para repensar, reorientar, reorganizar o serviço que
deve realizar tanto a gestão do território quanto o Serviço de Proteção e
Atendimento Integral à Família (PAIF).
Neste sentido, se o/a psicólogo/a, nestes atendimentos, voltar sua
escuta e seu trabalho estritamente para a provisão do benefício,
compreendendo-a como encerrada em si mesma, acaba por modular a forma
como esta demanda se apresenta a fim de acessar tal auxílio. Como afirma
Pincolini (2021), é corriqueiro, neste tipo de prática, que as pessoas dediquem

6
Forma de atuação ligada ao surgimento da profissão de assistente social, caracterizada pela
realização de atendimentos particularizados focados nas demandas individuais e imediatas
apresentadas pela população, ofertando respostas focais, pontuais, descontinuadas, sem
planejamento a longo prazo e desarticuladas do contexto social (Pincolini, 2021).

28
o tempo do atendimento para apresentar justificativas, na tentativa de
demonstrar ao/à profissional que necessitam receber o benefício, buscando
convencê-lo/a a “conceder” a cesta básica ou cartão-alimentação. Qualquer
tema que fuja da imediatez da situação soa estranho, tanto para o/a
psicólogo/a quanto para a pessoa atendida – afinal, discorrer sobre a história
de vida, angústias outras, expectativas, enfim, não encontram lugar em um
trabalho focado apenas em prover ou não prover o benefício.
Talvez este consista no maior empecilho trazido pelo benefício eventual
no trabalho do/a psicólogo/a: ao invés de ocupar o lugar de um recurso a mais
no trabalho social com famílias e indivíduos, ele passa a se caracterizar como a
própria finalidade do atendimento – configuração que, como já afirmamos, não
é determinada pelas pessoas que procuram os serviços, mas pela própria
organização do trabalho que modula esta demanda. E os lugares que
psicólogo/a e pessoa atendida passam a ocupar nesta relação são os piores
possíveis, pois instaura uma relação verticalizada, com o/a profissional
ocupando um lugar de controle, julgamento, avaliação, e os indivíduos em um
polo passivo e subalterno. O benefício perde seu caráter de direito,
transfigurando-se em ajuda, dádiva, favor, na medida em que sua provisão
depende da ação personalista do/a profissional.
Neste tipo de atuação o trabalho do/a psicólogo/a perde o sentido,
exaurindo-se em uma espécie de “tarefa de Sísifo”7– fatigante, repetitiva,
infrutífera. Uma oferta que apenas aumenta a própria demanda, que é incapaz
de dar uma resposta suficiente à complexidade do fenômeno da insegurança
alimentar vivenciada no território e que, fatidicamente, leva os profissionais a
ocupar uma posição delicada diante de uma situação irresolúvel: a de lidar, em
seu labor diário, com limitados e insuficientes recursos disponíveis para
atender a um número considerável – e crescente – de indivíduos e famílias em
busca de ter o direito à alimentação atendido.

7
Expressão que faz alusão ao mito grego de Sísifo, que fora condenado a rolar uma grande
esfera de mármore até o cume de uma montanha; quando alcançava seu objetivo, Sísifo não
conseguia conter a força da pedra, que rolava até a base da montanha, forçando-o a,
eternamente, empreender este esforço em vão repetidamente (Brandão, 1986).

29
PARA ALÉM DE UMA “ESCOLHA DE SOFIA”
Diante do contraste entre a busca por alimentos e a insuficiência dos
equipamentos públicos em atender tal demanda de maneira integral, os/as
profissionais se veem, muitas vezes, compelidos/as a estabelecer critérios,
para além daqueles que configuram a finalidade de tal recurso (a rigor,
situações de vulnerabilidade temporária), para selecionar quais pessoas terão
acesso ao benefício eventual alimentação e quais não receberão por não se
enquadrarem nos parâmetros de tal procedimento avaliativo. Uma “escolha de
Sofia”8, na medida em que ambos – aquele/a que recebe e aquele/a que não
recebe o benefício –, a rigor, têm direito à alimentação digna e adequada.
Como ilustra Bovolenta (2017):
A incapacidade de acolher todas as solicitações cria, no trato desses
benefícios, uma relação perversa e desumana entre o profissional e o
usuário, muito longe de uma relação cidadã, quando se delega ao
profissional, diante da negligência e omissão do poder público,
“escolher ou selecionar” as situações de desproteções mais
miseráveis a ser atendidas dentre tantas necessidades apresentadas
(p. 511).

Esse procedimento, de selecionar as situações de maior vulnerabilidade


para concessão do benefício eventual alimentação, pode ser entendido, a partir
de Yazbek (2006), como uma manifestação da ação estatal que, em lugar de
propiciar o acesso universal aos direitos, oferece respostas pontuais à questão
social, fracionando a população em níveis de pobreza. Tal recorte acaba por
fragmentar, de um lado, trabalhadores e, de outro, os que serão considerados
pobres e que formarão a clientela a ser atendida pela política de assistência
social, como se ambos não sofressem os mesmos processos de exclusão e
subalternização.
Tal procedimento contradiz não apenas a perspectiva da alimentação
enquanto direito, mas as próprias orientações oficiais (Brasil, 2018), que
estipulam que o benefício eventual alimentação não se destina apenas a
pessoas em situação de insegurança alimentar, seja ela leve, moderada ou

8
A expressão “escolha de Sofia” faz referência ao romance homônimo de 1979 de William
Styron, no qual a personagem principal, prisioneira em um campo de concentração nazista da
II Guerra Mundial junto com uma filha e um filho pequenos, é obrigada, por um oficial alemão, a
escolher qual de seus rebentos seria salvo e qual seria morto nas câmaras de gás; caso se
recusasse a escolher, ambos seriam executados (Styron, 2012).

30
grave9, mas enquanto garantia do direito à alimentação digna. Desta forma,
desaconselha-se a realização de recortes de renda, prevalecendo, conforme
previsto no artigo 4o da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), o
“atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade
econômica”. Também, de acordo com a mesma lei, a família ou indivíduo não
devem ser submetidos a procedimentos vexatórios, constrangedores,
fiscalizadores ou invasivos para comprovar sua necessidade de alimentos.
“Desta forma, o benefício eventual se inscreve numa lógica de direitos e
proteção social e presta-se ao fortalecimento da autonomia de quem dele
necessitar” (Brasil, 2018, p. 73).
Assim, a utilização dos diferentes recursos e instrumentais que os/as
profissionais lançam mão para compreender a realidade dos indivíduos e
famílias – tais como entrevistas, visitas domiciliares, análise socioeconômica,
análise de documentos, entre outros – devem servir, a rigor, para identificar tais
situações contingenciais, além de conhecer as vulnerabilidades e
potencialidades dos/as atendidos/as a fim de que estratégias de proteção
social possam ser elaboradas e colocadas em ação. Porém, quando os/as
psicólogos/as atuam de forma avaliativa, no intuito de selecionar
beneficiários/as a partir de níveis de miserabilidade, pressionados pela falta de
recursos adequados para atender tal demanda, isso representa um retrocesso
dentro da política de assistência social, pois, como pontua Mioto (2009), a ação
fica restrita ao “caso”, baseando-se em procedimentos que tratam a questão
social a partir da lógica do merecimento individual e da seletividade. Desta
forma, podemos dizer que o/a profissional atua como administrador da
pobreza, perdendo a dimensão da garantia da cidadania e dos direitos à
população.
Segundo Mioto (2009, p. 481), faz-se necessário superar tais práticas
centradas no indivíduo, tratando as demandas trazidas não como particulares,
mas como “expressões de necessidades humanas básicas não satisfeitas,

9
De acordo com a Escala Brasileira de Medida Direta e Domiciliar da Insegurança Alimentar
(EBIA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na insegurança alimentar leve,
os indivíduos e famílias apresentam preocupação ou incerteza quanto ao acesso futuro a
alimentos; na moderada, ocorre a redução quantitativa de alimentos e alteração dos padrões
de alimentação entre os adultos; já na grave, as crianças também passam a sofrer as
consequências da falta de insumos e da alteração dos padrões de alimentação – nesta a fome
passa a ser vivenciada no domicílio.

31
decorrentes da desigualdade social própria da organização capitalista”. A
investigação da realidade do indivíduo e da família deve subsidiar ações que,
levando em consideração os aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais
da população, evoquem a responsabilidade do poder público por meio de
serviços, programas e políticas sociais.
Quando se vislumbra, portanto, a alimentação adequada e digna
enquanto direito da população atendida, práticas pautadas pela “avaliação” e
seleção daqueles que terão acesso ou não a esse direito deixam de fazer
sentido, sendo necessário, para além da disponibilização do benefício eventual
à situação imediata, a proposição de trabalhos junto à população que visem o
enfrentamento dos fatores que a expõe a situações de vulnerabilidade e risco
social.

BENEFÍCIO EVENTUAL, VULNERABILIDADES CRÔNICAS


É preciso resgatar que o benefício alimentação, dentro da política de
Assistência Social, é, por natureza, eventual, voltado para o atendimento de
vulnerabilidades temporárias, contingenciais. Conforme artigo 7º do Decreto nº
6.307/2007, este benefício deve ser ofertado em situações nas quais indivíduos
e famílias se encontram momentaneamente impossibilitados de enfrentar
situações específicas e que os colocam em condições de insegurança social,
comprometendo o suprimento de necessidades humanas básicas, como é o
caso da alimentação. Nesse sentido:
Contingências são entendidas por eventos inesperados e repentinos
que podem, momentaneamente, agravar ou levar indivíduos e
famílias a vivenciarem situações de vulnerabilidade e insegurança
social, ocasionando vivências que impactam seu cotidiano e
demandam atenção urgente do poder público, independentemente da
renda das pessoas impactadas (Brasil, 2018, p. 21).

A pobreza, o frágil ou nulo acesso à renda e ao mundo do trabalho, aos


serviços e ações de outras políticas são caracterizadas como algumas das
situações contingenciais que expõem as pessoas a uma situação de
vulnerabilidade temporária (Brasil, 2018). Mas como podemos considerar a
pobreza e a exclusão do mercado de trabalho, por exemplo, como situações
contingenciais, como propõe o documento, uma vez que a conjuntura
socioeconômica do país estruturalmente destina milhares de pessoas à linha

32
da pobreza? Como considerar sua ocasionalidade em um contexto capitalista,
pautado na sistemática desigualdade de distribuição de riquezas e de
oportunidades?
Na visão de Bovolenta (2017), a concessão de alimentação de maneira
continuada e permanente dentro da Assistência Social, desviando o caráter
eventual, provisório e pontual do benefício, tem atendido mais condições de
vulnerabilidade social do que eventos de vulnerabilidade temporária. Segundo
a autora, não é dever da Assistência Social o suprimento contínuo da
alimentação às famílias e indivíduos, sendo responsabilidade estatal e
dependente de várias políticas públicas.
O direito à alimentação se encontra estruturado pelo Sistema Nacional
de Segurança Alimentar (SISAN), criado a partir da Lei Orgânica da Segurança
Alimentar e Nutricional (Lei 11.346), de 2006. De acordo com essa lei, a
segurança alimentar e nutricional é definida, em seu artigo 3 o., da seguinte
forma:
A Segurança Alimentar e Nutricional consiste na realização do direito
de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade,
em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras
necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares
promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que
sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis
(Brasil, 2006).

De acordo com o artigo 9o. da lei 11.346/2006, a Lei Orgânica da


Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), a intersetorialidade se caracteriza
como um princípio fundamental para o enfrentamento das situações de
insegurança alimentar e para a garantia do direito humano à alimentação
adequada. Como destaca Leão (2013), ações conjuntas de setores como
agricultura, educação, saúde, trabalho, assistência social, entre outros, são
necessárias para que as várias dimensões desta problemática possam ser
satisfatoriamente combatidas.
Para Bovolenta (2017), a Assistência Social parece absorver esta
demanda e a responder a ela de maneira pontual, tanto por uma tradição
histórica com a qual ainda necessita romper por completo – a de ser atrelada à
caridade – quanto por sua efetividade em fornecer um paliativo (cestas básicas
ou cartão alimentação) que oculta a negligência do poder público e seu
fracasso em propiciar condições para o acesso a direitos e à cidadania. Ao

33
tomar a insegurança alimentar de maneira particularizada, como fenômeno
restrito ao âmbito individual/familiar e causado exclusivamente por fatores
como baixa escolaridade, falta de capacitação profissional, entre outros, os
profissionais perdem de vista a historicidade dos sujeitos atendidos e os
processos de exclusão social na gênese da fome.
Para que a política de Assistência Social tenha maior efetividade no
enfrentamento às situações de insegurança alimentar, faz-se imprescindível o
atendimento por meio de ações mais ampliadas de proteção social, bem como
a articulação com outras políticas públicas, sobretudo em situações que
extrapolam o caráter eventual do benefício, por não se caracterizarem como
temporárias ou contingenciais (Brasil, 2018).
Como mencionamos, a garantia à alimentação digna e adequada não
se caracteriza como um direito a ser afiançado por práticas restritas à política
pública de Assistência Social, dependendo de ações conjuntas de diferentes
órgãos e setores para que a insegurança alimentar seja enfrentada não por
práticas imediatistas ou paliativas, mas de maneira coordenada, planejada e
consistente.
Assim, se a demanda por alimentos bate à porta dos equipamentos
da Assistência Social, é dever dos/as profissionais ir além da experiência
imediata do fenômeno e do automatismo de respostas oferecidas, buscando
um olhar crítico sobre a realidade e suas determinações históricas, políticas,
econômicas, culturais e sociais (Guerra, 1999).

AMPLIANDO O OLHAR
Para exemplificarmos uma possível forma de ler a demanda pelo
benefício eventual de alimentos para além das queixas individuais, traremos,
aqui, um estudo que realizamos a partir das planilhas de registro de concessão
de uma unidade de CRAS da cidade de Maringá, localizada na região Noroeste
do Paraná. Em tais planilhas, vários dados das famílias atendidas com
benefício eventual de alimentos eram registrados pelos/as profissionais
(psicólogos/as e assistentes sociais), nos permitindo ter acesso a informações
como sexo, idade, raça, escolaridade, bem como quantas vezes durante um
ano a pessoa havia acessado tal benefício. Para o estudo, tomamos as

34
informações relativas aos atendimentos realizados ao longo dos doze meses
do ano de 2020.
É importante destacar que Maringá é uma cidade que frequentemente
ganha holofotes nas mídias e meios de comunicação como uma das melhores
cidades do país para se investir e se viver10, e que historicamente adotou
políticas e ações de exclusão da pobreza para fora de seus limites territoriais,
empurrando trabalhadores e as parcelas mais pobres, impossibilitadas de arcar
com o custo de vida local, para municípios vizinhos, sobretudo Paiçandu e
Sarandi (Rodrigues, 2004).
No CRAS em questão, eram disponibilizados, aproximadamente, 200
benefícios eventuais alimentação por mês. Ao longo de 2020, contabilizamos
um total de 309 famílias atendidas com o benefício, entre as quais 79
receberam o benefício eventual alimentação por cinco vezes ou mais no ano.
Este quantitativo representa 25,56% do total de beneficiários – cerca de 1/4 do
total.
Essas famílias que necessitaram do benefício eventual alimentação por
cinco vezes ou mais durante o ano de 2020 apresentam o seguinte perfil:
caracterizaram-se, em sua maioria, por famílias chefiadas por mulheres (85%
do total) que dividiam seus lares com seus/suas filhos/as e netos/as, sem a
presença de um/a cônjuge (50% das mulheres atendidas). Todas as mulheres
de nosso recorte se declararam negras, com exceção de uma venezuelana,
que se declarou branca. A média de idade da pessoa referência da família era
de aproximadamente 46 anos, havendo uma expressiva concentração de
indivíduos entre 50 e 59 anos (representando aproximadamente 19% do total).
Quando somamos todos/as com idade superior a 50 anos, chegamos a
34,17%. Ou seja, apesar do público atendido ser composto, de modo geral, por
adultos-jovens, a rigor em idade produtiva, tais pessoas se encontravam
excluídas do mercado formal de trabalho, atuando, sobretudo, como

10
Segundo Rodrigues (2004), uma revista de circulação nacional, em reportagem de 1999,
apelidou a cidade de “Dallas brasileira”. Segundo ranking elaborado pela empresa de
consultoria Macroplan, a partir da análise de indicadores de saúde, educação, cultura,
saneamento e sustentabilidade – gerando o Índice de Desenvolvimento da Gestão Municipal
(IDGM) – Maringá ocupou, nos anos de 2017 e 2018, o primeiro lugar entre as cem maiores
cidades brasileiras, caindo para a segunda posição em 2019.

35
autônomos/as, e a idade avançada possivelmente atuando como fator de
exclusão na busca por empregos.
Nossa análise permitiu contrapor dois mitos presentes no cotidiano de
atendimentos dos CRAS: o primeiro, de que as famílias que mais recorrem ao
benefício eventual são, em geral, numerosas (compostas por cinco ou mais
membros), na medida em que isto supostamente afetaria a capacidade de suas
respectivas rendas garantirem uma alimentação digna e adequada aos
membros da família. Ao contrário desta impressão, a média de membros das
famílias de nosso estudo foi de 2,53 membros. O percentual de famílias com
até dois membros em sua composição foi de 57,89% do total; até três
membros, representam 75% do total.
Outro mito colocado em xeque se trata da relação entre grau de
escolaridade e pobreza, ou seja, a corrente ideia de que o público que
necessita do benefício eventual alimentação, necessariamente, possui baixos
níveis de escolarização, havendo uma relação direta entre escolaridade e
emprego. Segundo nosso levantamento, mesmo considerando que a grande
maioria das famílias possui o Ensino Fundamental incompleto (49 famílias,
aproximadamente 64,47%), há um expressivo número que possui o Ensino
Médio Completo (15 famílias, aproximadamente 19,73%, quase 1/5 do público
atendido) e 3 famílias cujo responsável familiar possui nível superior. Ou seja,
mesmo completando os estudos nos níveis fundamental, médio e superior, tais
pessoas não estão conseguindo ter acesso a trabalho e renda.
Em relação à renda per capita das famílias, a média encontrada foi de
aproximadamente R$ 212,69 mensais, ou seja, encontravam-se no parâmetro
da época de linha da pobreza (renda per capita inferior a R$$ 499,00 mensais).
Encontramos uma grande concentração de famílias que declararam renda zero
(30 famílias, o que representa quase 40% do total). Somando as famílias que
possuíam renda per capita mensal inferior a R$ 177,00 (o que identificava, à
época, situação de extrema pobreza), encontramos um total de 48 famílias,
aproximadamente 63,15% do total.
Esse dado nos mostra que a maior parte das pessoas que buscaram o
benefício eventual alimentação no CRAS que tomamos como objeto de estudo
vivenciava uma situação de pobreza, o que inevitavelmente as coloca em uma
condição na qual a insegurança alimentar se faz presente, não de modo

36
eventual, temporário, mas constante. Diante desse quadro, não surpreende
que tais famílias tenham necessitado do benefício eventual alimentação,
durante o ano de 2020, por cinco vezes ou mais, pois, na urgência de suprir
uma necessidade humana básica, como é a alimentação, buscaram tal garantia
nos equipamentos de assistência social quantas vezes foram necessárias,
como forma de, pelo menos por alguns dias, escapar do fantasma da fome.
As informações levantadas nos permitem enxergar o fenômeno da
insegurança alimentar para além das questões trazidas pelas pessoas em
atendimentos particularizados. Por trás de seus dramas vivenciados de
maneira individual – dificuldades de acesso a uma renda digna, desemprego ou
informalidade, problemas de saúde, desventuras, dramas familiares, etc., e que
são levados aos profissionais com muita vergonha ou culpa por estar
recorrendo ao benefício eventual de alimentos – podemos identificar que essas
pessoas sofrem de um processo histórico e social de exclusão que vai muito
além de seus esforços pessoais para suplantar tal quadro. Essas mulheres
negras, mães solo, de meia idade, com baixa escolaridade, em situação de
pobreza, que mensalmente procuram o CRAS para obter um auxílio para
alimentar sua família, fazem parte de um grupo que historicamente sofre uma
opressão que não é contingencial, mas a partir de uma desigualdade estrutural,
em uma sociedade patriarcal, racista e sexista que mantém privilégios sob o
domínio de grupos dominantes e subordina, marginaliza, exclui os grupos
dominados que sofrem discriminações cruzadas de gênero, raça e classe
social (Akotirene, 2019).
Esta compreensão torna possível conceber o benefício eventual de
alimentos não como um fim em si mesmo, mas como índice que aponta para
uma série de violências, discriminações e desproteções vivenciadas pelos
sujeitos inseridos em uma sociedade que estruturalmente os considera
inferiores e que os relega à base de nossa pirâmide social. Como afirma
Bovolenta (2017), o benefício eventual alimentação parece cumprir, nesses
casos, mais a função de um alívio ou um lenitivo para sujeitos que se
encontram privados de uma série de direitos, diante dos quais o trabalho das
equipes encontra grandes obstáculos para lhes garantir a devida proteção
social e cidadania.

37
Se essas famílias têm buscado constantemente o benefício eventual
alimentação no CRAS, tal demanda não deve ser ingenuamente lida como
“desvio da finalidade do benefício”. Como trouxemos no início deste texto, a
situação de insegurança alimentar é uma realidade constante para uma grande
parcela da população brasileira. Ao mesmo tempo, a comida não basta.
Podemos interpretar que a demanda dessas pessoas não é só por comida,
como aponta Bovolenta (2017); é por comida, mas também é por trabalho,
saúde, moradia, qualidade de vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para encerrar, retomemos uma das perguntas que lançamos no início
deste capítulo. Afinal, o que a Psicologia, inserida no SUAS, pode fazer frente a
uma necessidade tão básica quanto a de se alimentar? Depois do percurso que
realizamos, podemos afirmar que temos muito a contribuir, sobretudo a partir
de nosso posicionamento crítico para realizar uma leitura que propicie uma
análise para além da aparência do fenômeno que bate à porta cotidianamente
dos equipamentos da assistência social.
O desafio que se coloca de maneira imperativa é o de atuar para além
da abordagem individual ou particularizada com as famílias e indivíduos,
buscando fazer cumprir o que estipula a Lei Orgânica de Segurança Alimentar
e Nutricional (LOSAN), ou seja, garantir o direito à alimentação digna e
adequada por meio da articulação com outros equipamentos, serviços e
secretarias. É somente a partir deste esforço intersetorial, contemplando não
apenas a Assistência Social, mas a Saúde, a Educação, a Habitação, o
Trabalho, a Agricultura, entre outros, que projetos podem ser pensados e
colocados em prática para que as múltiplas causas que levam as famílias à
insegurança alimentar possam ser enfrentadas de maneira mais consistente. A
demanda por alimentos é a expressão mais urgente da falência de um conjunto
de proteções e garantias dos sujeitos, e não pode ser enfrentada senão por um
conjunto de ações intersetoriais.
A constante reflexão sobre a prática, bem como o respaldo teórico-
conceitual no que a Psicologia, enquanto ciência e profissão, produziu e tem
produzido a respeito de nossa atuação no campo das políticas públicas,
salvaguarda-nos de não sermos absorvidos pela imediatez de respostas a que

38
somos constantemente convocados a oferecer, mas fundamentarmos formas
de atuação eticamente comprometidas com a população que tanto necessita
dos serviços públicos, tais como os ofertados pela assistência social.

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39
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40
MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
DE USUÁRIOS/AS DE DROGAS ACERCA
DOS USOS DE SUBSTÂNCIAS
PSICOATIVAS

Janderson Carneiro de Oliveira1; Carlos Alberto Souza Dantas2;


Luci Mara Bertoni3

1
Doutor em Memória: Linguagem e Sociedade (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia).
Psicólogo Clínico e Hospitalar (CRP 03/27037).
2
Doutorando em Memória: Linguagem e Sociedade e graduado em Direito (Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia)
3
Doutorado em Educação Escolar (UNESP). Pós-doutorado na Universidade de Brasília (UnB)
e na Universidade de Santiago de Compostela (USC/Espanha). Professora Plena do
Departamento de Filosofia e Ciências Humanas e Docente no Programa de Pós Graduação em
Memória: Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB -
no campus de Vitória da Conquista, onde exerce a função de coordenadora.

RESUMO:
Diante da emergência da noção de dependência de drogas face à
heterogeneidade do consumo destas substâncias, o objetivo desta pesquisa
consistiu em analisar as memórias e representações sociais de usuários/as de
drogas enquadrados como dependentes sobre o consumo de substâncias
psicoativas. Para tanto, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa, na qual
realizamos 3 grupos focais com 22 usuários/as do CAPS AD, recorrendo
também à técnica de análise de conteúdo, do tipo temática, proposta por
Bardin. Enquanto referencial teórico, mobilizamos a Teoria das
Representações Sociais, elaborada por Moscovici, e a teoria da Memória
Coletiva, pensada por Halbwachs. Verificamos que os/as usuários/as não
escapam à perpetuação de ideais proibitivos ao recordarem o seu consumo,
conferindo-lhe periculosidade para atender aos interesses dominantes do
presente, entre os quais figura a compreensão problemática do uso que fazem
das drogas, refletida na frequência e socialização em um espaço de tratamento
da dependência.
Palavras-chave: Memórias; Representações Sociais; Usuários/as de drogas;
Centros de Atenção Psicossocial.

INTRODUÇÃO
As políticas de drogas de boa parte do mundo, apresenta Rosa Del
Olmo (1990), seguiram a tendência estadunidense de controle da propagação
das drogas, materializando em suas legislações, quase simultaneamente

41
devido à assinatura massiva da Convenção Única sobre Estupefacientes, o
estereótipo médico pelo qual o uso de drogas – até então censurado junto ao
comércio das substâncias ilícitas – passava a ser entendido como uma doença,
a dependência química. Para tanto, ampliou-se um aparato assistencialista no
Brasil dedicado ao controle sanitário e tratamento terapêutico dos/as
dependentes que, durante a ditadura civil-militar, segundo Heitor Resende
(1992), desdobrou-se em uma alteração no perfil nosológico tradicional
determinante da clientela dos hospitais psiquiátricos, observada no aumento
expressivo dos/as neuróticos/as e alcoolistas entre os/as internados/as, bem
como em uma passagem de uma assistência psiquiátrica focalizadora do
“indigente”/doente mental para outra que recobria as massas, refletida no
aumento do número de hospitais privados. Todavia, entre as décadas de 1970
e 1980, uma perspectiva de mudança se avolumava no horizonte da sociedade
brasileira: a transição para a democracia, conhecida como redemocratização.
Conforme Margaret Keck (1991), junto aos partidos políticos de oposição,
associações profissionais, movimentos de bairro, sindicais e sociais, os/as
intelectuais e organizações da Igreja se juntaram buscando flexibilizar
restrições aos direitos civis impostas pelos militares. Enquanto
desdobramentos ulteriores desse período na ordem política que se seguiu, a
Lei de Reforma Psiquiátrica aprovada em 2001 (Lei Federal n. 10.216/2001) e
a colateral instituição, no ano seguinte, de Centros de Atenção Psicossocial –
CAPS (Portaria GM n. 336/2002), deram fôlego à desinstitucionalização de
dependentes químicos.
Essas movimentações participaram da incorporação à política de drogas
nacional do reconhecimento de que as relações de abuso de drogas e suas
implicações mais severas enquanto uma doença (a da dependência química ou
psíquica) devem ser tratadas em modelos “abertos” de atenção. Contudo,
acreditamos que isso não logrou uma substituição das compreensões
compartilhadas socialmente do uso de drogas enquanto “vício”, “mal”, “pecado”
etc. Consideramos que mesmo os espaços institucionais de tratamento à
dependência de drogas, dentre os quais o CAPS figura como um exemplo, não
estão livres da influência de tais noções pré-concebidas, seja porque à
imputação da dependência se liga ao estigma da doença, seja porque em certa
medida se tratam de espaços de controle sobre a saúde da população, de todo

42
modo, constituídos em relação com a sociedade. Talvez nem mesmo
àqueles/as declarados/as ou diagnosticados/as como dependentes se furtem
de dar continuidade às representações dominantes tecidas sobre o uso de
drogas, cuja persistência analisaremos em uma dimensão psicossocial:
mediante processos de pensamento e de práticas construídos na interação
social para compor um conhecimento comum, desvelando, para tanto, as
estruturas psicossociais conceituadas pelo psicólogo social Serge Moscovici
(2015) como representações sociais, e aquelas analisadas pelo sociólogo
Maurice Halbwachs (2004) enquanto memória coletiva.
Segundo Moscovici (2015), em nossas vidas cotidianas, no fluxo das
informações e comunicações, a chance de nos depararmos com algo não
familiar, “porém nem tanto assim”, é recorrente. Diante de certos fenômenos,
fatos e acontecimentos, como, por exemplo, uma teoria que se populariza ou
uma nova compreensão científica, nem sempre temos conosco as noções e
explicações que a ciência oferece, ou não as temos tal como a disciplina
científica as dispõe, ou a própria ciência pode não ter se acercado ainda do
não familiar em questão (Moscovici, 2015). Tendemos a pensar “como
cientistas” nessas ocasiões, mas, não possuindo sempre a competência
adquirida por esses/as especialistas, prestamo-nos a buscá-la em noções já
conhecidas e experiências anteriores, isto é, em nossa memória. Recorremos à
memória mesmo que não encontremos explicações científicas por lá, e não
desprezamos aquilo que encontramos.
Pensando nas drogas, a possibilidade de que estas configurem um
objeto estranho ou polêmico se verifica na atenção dedicada ao tema nas
conversas, comunicações, novelas, noticiários, propagandas, debates políticos,
em suma, no espaço público da comunicação, no qual as relações com tais
substâncias são constantemente familiarizadas por diferentes grupos. Para nos
valermos dos termos moscovicianos, a todo o tempo estaríamos ancorando e
objetivando o uso de drogas. Ancorar significa alocar o estranho nas categorias
comuns de nossa memória, comparando-o com os paradigmas e imagens
nelas compreendidos, para que ele assuma o caráter da categoria na qual foi
incluído, enquanto objetivar consiste em expressar concretamente esta
elaboração até então abstrata, tornando-a “visível” e exterior mediante noções
e imagens (Moscovici, 2015). Tais mecanismos se valem, portanto, dos

43
conhecimentos prévios explicativos de determinado aspecto do não familiar ao
qual nos agarramos a fim de não arriscar, sob tal ameaça, “perder os marcos
referenciais, de perder o contato com o que propicia um sentido de
continuidade, de compreensão mútua” (Moscovici, 2015, p. 56). É interessante
pensarmos como o processo de familiarização, um processo também da
memória, protege tais marcos que lhe servem de referencial.
Como explica Maurice Halbwachs (2004), a memória se ancora em
marcos ou quadros sociais gerais e específicos: a linguagem, o tempo e o
espaço – que viabilizam a exteriorização da memória e sua localização em um
contexto temporal e espacial; e a religião, a família e a classe social – que
penetram as relações grupais, podendo estas últimas se constituir também
enquanto quadros de referência.
Ao analisar as premissas daquilo que no senso comum denominamos de
“mundo das drogas”, Gilberto Velho (1994, p. 23) enfatiza a heterogeneidade
na “organização de redes de comércio e consumo de psicoativos, a variedade
de grupos, crenças, valores, estilos de vida e visões de mundo”, a
particularidade dos consumidores, bem como o consumo diferenciado que se
faz de diferentes drogas como edificantes de um “mundo”, reclamantes, no
entanto, de sua compreensão menos ampla enquanto “mundos” de
particularidades, dos quais não podemos “pressupor comportamentos e
atividades homogêneas”.
Embora existam tantas memórias e representações sobre o uso de
drogas quanto variadas visões de mundo sobre a questão, o “paradigma
proibicionista”, como denomina Maurício Fiore (2012), parece prevalecer na
concepção e no tratamento que se dispensa a essas substâncias e seus/suas
usuários/as, como um mal relativamente maior quando das drogas ilícitas e
ampliado na repreensão social que se faz da dependência. Ainda que o uso de
drogas seja, como veremos mais adiante, também representado e recordado
pelo prisma do prazer por ele proporcionado, o “mundo das drogas”, como se
conhece no senso comum, é envolvido em uma atmosfera médica, jurídica e
policial – um “mundo” no qual se respira perigos e danos. Nesse sentido, a
prevalência de memórias e representações vinculando as drogas ao mal, a
padrões de comportamento socialmente reprimidos e estigmatizados pode ser
então compreendida, em uma perspectiva halbwachiana sobre a memória, no

44
serviço desempenhado pelos marcos sociais para reconstituição de um
passado na medida de nossos interesses presentes, ou pelo menos daqueles
mais prevalecentes.
Nas palavras de Halbwachs (2004, p. 10), os marcos sociais podem ser
tomados como “os instrumentos que a memória coletiva utiliza para reconstruir
uma imagem do passado de acordo com cada época e em sintonia com os
pensamentos dominantes da sociedade”. Esse aspecto do pensamento
halbwachiano é aprofundado por Lívia Diana Magalhães e José Rubens de
Almeida (2011) em trabalho voltado à discussão das relações entre memória,
ideologia, história e educação, no qual os/as autores/as partem da observação
de uma presença plural de memórias coletivas na sociedade, materialmente
reguladas, no entanto, de modo a “perenizar” algumas delas e “relegar” outras.
Segundo Magalhães e Almeida (2011, p. 102), “a existência de um
controle da transmissão da memória social” não impede que mediante a ela
circulem memórias coletivas “pouco evidenciadas”, “constituídas com base em
marcos e quadros de referência social, de experiências absorvidas na vida
ordinária ou de uma práxis construída socialmente a partir de experiências
contra-hegemônicas”; não obstante, diferentemente das memórias coletivas
perenizadas que desde logo refletem “visões de mundo” dominantes, as
memórias relegadas são por vezes “absorvidas”, oficialmente incorporadas e
tuteladas pelas “políticas culturais estatais”, não sem que antes os elementos
sociais sobre os quais se constituem sejam “apropriados”, “decodificados”,
“reinterpretados” e “unificados” pela ideologia dominante.
Nesse passo, a triagem favorecida pelos marcos sociais para o esforço
de recordação, bem como a hegemonia de dadas memórias sobre as outras,
são elementos a serem considerados na cristalização de um modo
proibicionista de encarar o uso de drogas. Assim, nos parece que as memórias
dos/das usuários/as de drogas, ao mesmo tempo em que traduzem suas
experiências particulares, não escapam da influência dos marcos sociais e do
pensamento dominante na sociedade, no qual o uso de drogas é hasteado
como algo reprovável, entre doença e crime.
Diante do conjunto das razões expostas, tivemos como objetivo deste
trabalho analisar as memórias e representações sociais de usuários/as de
drogas enquadrados/as como dependentes sobre o consumo de substâncias

45
psicoativas. Acreditamos que assim procedendo, poderemos aprofundar
conhecimentos não apenas quanto ao entendimento que fazem os/as
usuários/as de drogas sobre essas substâncias e seu consumo, mas também
compreendermos a especificidade das memórias recordadas pelos/as
usuários/as em socialização no espaço institucional de tratamento da
dependência e de suas representações sociais. Nesse caminho, apresentamos
a metodologia utilizada para a realização da pesquisa e a análise dos
resultados obtidos.

METODOLOGIA
O percurso metodológico utilizado neste estudo sustenta-se no
paradigma da pesquisa qualitativa. O local de realização foi o CAPS AD de um
município da Macrorregião de Saúde do Sudoeste do Estado da Bahia.
Convém dizer que o CAPS AD consiste em um serviço de saúde mental, que
tem como finalidade oferecer assistência psicológica, médica e social à
população que faz uso abusivo de álcool e outras drogas.
Os/as participantes que fizeram parte do presente estudo foram 22
usuários/as do CAPS AD. Os critérios adotados para compor a população que
fez parte dessa pesquisa foram: 1) apresentar idade igual ou maior a 18 anos e
2) ter frequentado o CAPS AD por um período mínimo de 03 meses.
Realizamos, como técnica de coleta de dados, 03 grupos focais com
os/as usuários/as do serviço do CAPS AD. A coleta ocorreu entre 17 de
outubro e 13 de dezembro de 2016. Analisamos os dados a partir dos
pressupostos teóricos-metodológicos da Análise de Conteúdo, do tipo temática,
de Laurence Bardin (1977). Primeiramente, empreendemos as leituras
flutuantes do material coletado com o intuito de explorarmos os dados
preliminarmente; em seguida, realizamos o processo de unitarização, quando
definimos as unidades de análise; após isso, efetuamos o processo de
categorização, quando são definidas as categorias analíticas obedecendo aos
critérios de significação; por fim, apresentamos os resultados que emergiram
desse processo e procedemos à interpretação dos dados (Bardin, 1977).
A presente pesquisa encontra-se em consonância com Resolução n°
466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que
regulamenta pesquisas com seres humanos. Assim, o projeto que deu origem a

46
este artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) com o
protocolo de aprovação nº 1.770.134.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Concepções sobre os tipos de drogas: as ilícitas e sua demonização
Os/as usuários/as do CAPS AD que participaram dos grupos focais
apontaram que as drogas denominadas ilícitas são aquelas consideradas como
as mais perigosas e que provocam mais danos aos indivíduos e à sociedade,
ao passo que as drogas classificadas como lícitas às vezes nem chegam a ser
classificadas como drogas, quando alguns/algumas participantes concordam
que: “Tinha dinheiro nesse tempo e fazia farra, bebida... Agora, droga nunca
usei, droga nenhuma” (GF 02). Notamos, então, que os/as participantes dos
grupos focais convergem ao representar as drogas em uma espécie de
hierarquização de um suposto e inevitável malefício de acordo com seus
diferentes tipos e classificações, de modo a justificar que algumas substâncias
são mais destrutivas do que outras, a exemplo do crack e cocaína, sem
considerar, no entanto, as particularidades de cada usuário/usuária e que os
diferentes tipos de drogas podem produzir reações diferentes em cada pessoa,
gerando a ideia de que o uso de drogas implica em um determinismo e uma
padronização dos efeitos dessas substâncias.
Acho que a pior droga que existe é o crack. A pior. A pior que existe...
É a pior que existe é o tal do crack. E ela não está me fazendo bem
mais não. (GF 01).

Estamos falando aqui da droga legal que é o álcool, mas têm as


outras que levam a pessoa ao fundo do poço, como o crack, que hoje
é a peste no Brasil, que desfaz famílias, que desfaz tudo... É o que eu
entendo de droga é isso. (GF 02).

De acordo com Vagner Lapate (2001), apesar de classificarmos os


diferentes tipos de substâncias psicoativas como lícitas ou ilícitas, isso não nos
autoriza a falar da existência de drogas leves ou pesadas, mas sim de usos
leves ou pesados de uma determinada substância que poderá ter reações
diferentes em pessoas diferentes, ilustrando que não há um viés determinista
de automatismo ou robotização, no sentido de que as drogas desencadearão
as mesmas respostas para todas as pessoas que utilizá-las. Mesmo diante de
relatos dentro do próprio grupo focal no tocante às diversas reações sobre o

47
consumo de drogas, o que prevaleceu foi o argumento de que todos/as
usuários/as reagem uniformemente.
Dizem que se você usar uma vez só já vicia. Eu já usei crack três
vezes. Já usei cocaína por um ano e não sou viciado nisso aí. Por
exemplo, têm seis anos que eu usei. Não tenho vontade. (GF 01).

Então você chegou a ser um dependente químico. Você usou cocaína


por um ano, você é dependente químico, um ano já é dependência.
(GF 01).

Se você usar maconha misturada com cachaça aí agora você fica


doido. (GF 01).

As representações sociais que produzimos a respeito dos múltiplos e


complexos fenômenos, como é o caso das drogas com seus diversos contextos
sociais de usos, faz-nos pensar a respeito do caráter convencional e prescritivo
dessas representações. Consoante Moscovici (2015), o nosso modo de pensar
pode estar condicionado tanto socialmente como naturalmente, de modo que
este pensamento se objetiva mediante uma convencionalização dos fatos,
pessoas e objetos. Em uma linguagem moscoviciana, a convencionalização,
enquanto função das representações sociais, caracteriza-se quando “elas lhes
dão uma forma definitiva, as localizam em uma determinada categoria e
gradualmente as colocam como um modelo de determinado tipo, distinto e
partilhado por um grupo de pessoas” (Moscovici, 2015, p. 34). Desse modo,
nossas representações acerca de um determinado fenômeno perpassam
questões culturais, políticas e econômicas que estão solidamente cristalizadas,
e que, em razão disso, fazem-nos acreditar em verdades cautelosamente
instituídas e sedimentadas.
Nessa direção, para Moscovici (2015), a segunda função das
representações sociais consiste em uma capacidade prescritiva dessas
representações. Isso quer dizer que antes mesmo de produzirmos nossas
representações, elas já estão determinadas em uma atmosfera socialmente
construída que circula sobre nós e nos impõem um determinado modo de
pensar, não isento de ideologias nem de interesses político-econômicos. As
produções de nossas representações não são verdadeiramente nossas, mas
sim disseminadas e compartilhadas socialmente, o que se justifica quando o
próprio Moscovici (2015, p. 37) afirma que “enquanto essas representações,
que são partilhadas por tantos penetram e influenciam a mente de cada um,

48
elas não são pensadas por eles; melhor, para sermos mais precisos, elas são
re-pensadas, re-citadas e re-apresentadas”.
Ao falar sobre drogas, os/as participantes desta pesquisa limitaram-se a
percebê-las sob uma ótica inventada e uma perspectiva moralista, não tendo
condições de se questionarem a respeito do surgimento das drogas e dos seus
diversos usos. Isso corrobora uma visão convencionalizada e prescritiva no que
diz respeito às drogas, sinalizando que todas as substâncias psicoativas,
principalmente as proibidas, constituem-se como os principais males da
sociedade, chegando ao ponto de até mesmo demonizá-las, não percebendo a
existência de outras questões, de ordem econômica e política, que implicam na
permissividade de algumas substâncias e na relação bélica que se trava com
outras para serem cada vez mais reprimidas.
Desse modo, a partir dessas funções das representações sociais, os/as
participantes dos grupos focais objetivam seus conceitos e percepções sobre
as drogas, o que podemos ilustrar com as seguintes afirmativas:
Ela [a maconha] é tão venenosa quanto qualquer outra droga, talvez
até seja até pior. Eu acho que um dos grandes males hoje da
humanidade é a droga. (GF 03).

Eu acho o seguinte: que a pior droga, independente, o crack é difícil.


Não consegue parar não. Infelizmente não. Nunca vi ninguém parar
não. São dois caminhos... ou cadeia... ou morte. Cadeia ou morte. Eu
nunca vi: Ah... eu fui pra igreja e parei. Eu nunca vi. É o CC: cadeia
ou caixão. (GF 01).

Apesar de os/as participantes dos grupos focais também conceberem


algumas drogas lícitas, a exemplo do álcool e do cigarro, com elevado grau de
nocividade à saúde, de modo a hierarquizá-las de acordo com esse grau, a
representação acerca do uso de drogas no tocante à periculosidade social se
restringe ao uso de drogas que permeiam a zona da ilicitude, dando margem
para uma leitura que corrobora o modelo proibicionista.
O álcool e cigarro são drogas. Só que são chamadas drogas
legalizadas.
Álcool é droga.
É mais leve, né?!
A bebida prejudica a família, os amigos, conhecidos...
Não. Ela é mais leve do que as outras.
O cigarro não. Já prejudica mais ou menos. (GF 02).

Um dia eu estava passando e uns molequinhos falaram: “olha a velha


se drogando, olha a velha se drogando” e era cigarro que eu fumava
tipo y. A gente é mãe de família. Não é por aí. (GF 03).

49
Embora os/as usuários/as compartilhem entre si as concepções
construídas a partir de suas experiências particulares e com drogas
específicas, que não são unânimes no grupo, prevalece o consenso sobre a
danosidade imprimida na noção geral sobre “drogas”.

As drogas como potencializadoras de prejuízos sociais e afetivos


Nessa segunda categoria, os grupos focais apontaram, como um
elemento representativo, a compreensão das drogas como geradoras e
potencializadoras de prejuízos sociais, afetivos e à saúde, aliando o uso de
substâncias psicoativas, sejam estas lícitas ou ilícitas, aos motivos de
degradação das relações familiares e sociais, bem como às perdas de
oportunidades de se equilibrar financeiramente, justificando que as dificuldades
financeiras são provenientes do uso abusivo-nocivo das substâncias
psicoativas.
Os problemas decorrentes do uso abusivo de drogas, tal como foram
abordados pelos/as participantes dos grupos focais, sinalizam que as
consequências desse uso provêm de ações pontuais e de natureza
individualista, como se eles/elas tivessem toda a culpa pelos males que com
eles/elas acontecem ou aconteceram (destacadamente nos casos de uso
abusivo de álcool, talvez a droga mais consumida por esse grupo), quando não
responsabilizam a própria droga. Isso, então, propicia um terreno fértil para a
culpabilização de um único e exclusivo sujeito, o usuário/usuária de drogas, por
suas condições de perdas e prejuízos sociais, ao mesmo tempo em que
eximem como co-elaboradores na potencialização desses prejuízos uma
estrutura socialmente arquitetada, que insiste acreditar em um viés moral e
meritocrático de abordagem às drogas.
Rapaz, quando eu cheguei para CAPS aqui. Eu era empresário. Eu
tinha funcionários, seis filhos, eu tinha esposa. Meu pai morava
comigo, minha irmã morava comigo. Consegui dar uma casa pra
minha mãe. Tinha três carros na garagem. Tinha uma moto, quando
eu cheguei no CAPS usando drogas e tentando buscar ajuda. Porque
eu já sabia que estava me prejudicando. Pra mim é só miséria,
destruição, depressão. Moço, eu perdi tudo que eu tinha. Muita coisa
eu perdi por causa da droga. (GF 01).

Aí quando eu comecei a perder bons empregos, perdi uma carreira,


entendeu? Um trabalho de professor no Estado e tal, tudo por causa
da bebida, mas mesmo assim fui em frente com a droga, infelizmente.
(GF 02).

50
Perdi um casamento, uma moça pra casar, uma moça bonita, de
família, de futuro, a moça que gostava de mim, acabou..., só pra me
destruir, porque ô moço qual é a moça que vai dar ousadia namorar
com um alcoólatra, um bêbado? Não tem nenhuma. Nenhuma na
face da terra. Não vai arrumar nenhuma namorada. (GF 01).

Elas [as drogas] nos prejudicam, o álcool mesmo, no meu caso, eu


que fui viciado em álcool, fui prejudicado demais por droga. (GF 02).

O mecanismo de culpabilização foi problematizado por Pedrinho


Guareschi (2014) como um recurso que endossa e concede legitimidade ao
processo de exclusão social. Desse modo, surge imperativamente a
necessidade de desmistificação desse mecanismo, dado que, por trás de
práticas estratégicas de culpabilização, alimenta-se um padrão de indivíduo
pré-moldado/a, delineado/a por um conjunto de valores que ratificam e
fundamentam essas práticas. Guareschi (2014), ao citar Robert Farr sobre o
individualismo como representação coletiva, reconhece que este autor obtém
como resultados de suas pesquisas que geralmente os sucessos ou os
fracassos de alguém são atribuídos a questões individuais, subestimando por
completo a dimensão histórica e social.
Os/as usuários/as assumem a condição de culpabilizar as drogas e seus
usos, bem como suas múltiplas consequências sociais e afetivas, tendo em
vista uma arquitetura social que sustenta o discurso de culpa e que se
materializa nas representações sociais não apenas dos/as próprios/as
usuários/as de drogas, mas também se infiltram em um tecido social mais
amplo. Diante disso, não podemos negar que nossas representações possuem
um lastro de situações que experienciamos, e que se confluem
concomitantemente às produções de memórias que não são só nossas, mas
sim de grupos, que sempre consultamos para refutar ou confirmar nossas
percepções sobre os problemas que nos aparecem. Nessa lógica, Halbwachs
(2006, p. 29) assinala que “recorremos a testemunhos para reforçar ou
enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento sobre o
qual já tivemos alguma informação, embora muitas inconstâncias a ele relativas
permaneçam obscuras para nós”.
Nos grupos focais, emergiram como um componente consistente nas
representações sociais dos/as usuários/as de substâncias psicoativas os
tensionamentos que se condensam nas relações familiares,

51
predominantemente caracterizadas por perdas e prejuízos afetivos decorrentes
do uso abusivo de drogas.
Para mim, a droga representou e continua representando os
malefícios, a tristeza de ter jogado fora que eu possuía; a tristeza de
saber que minha mãe há dois anos morreu, mas não morreu contente
por saber que eu fiz as coisas erradas que não deveria ter feito. A
droga é o atraso de tudo... da sociedade. Quando fala da família, a
droga é a decadência da sociedade. (GF 02).

O pessoal, nem minha mãe, nem minhas irmãs, ninguém conversava


comigo. Já estava todo mundo por aqui, né...chateado. Dava
desgosto. Porque uma das coisas do cara que usa droga é ele se
prejudicar e prejudicar a família e os amigos. É mesmo. Daí é que
começa... e quando o pessoal viu que eu não estava bebendo mais,
passaram a conversar um pouco comigo lá dentro de casa. (GF 02).

A comunidade familiar configura-se de praxe como o primeiro ambiente


de socialização da sociedade ocidental com o qual conseguimos nos
comunicar e quase sempre se encarrega de uma obrigação naturalizada na
transmissão de regras comportamentais normativas, morais e culturais.
Ademais, segundo Miriam Schenker e Maria Cecília Minayo (2005), não raras
vezes esse ambiente primário nos condiciona a ver o mundo envolto com suas
problemáticas, entre estas o consumo de drogas, consoante as concepções
hegemônicas e de cultura de massa.
Nesse contexto, as relações familiares, constituindo-se como promotoras
de representações e, ao mesmo tempo, de elaborações mnemônicas acerca
dos fenômenos sociais, conferem autenticidade à família que, em uma
perspectiva halbwaquiana, denota-se como um dos quadros sociais da
memória, dado que a concepção que elaboramos sobre as drogas e seus usos
não se materializam somente como elaborações próprias, individuais, mas sim
como paradigmas coletivamente construídos.

CONCLUSÃO
Evidenciamos em nossa análise que as memórias e representações
sociais dos/as usuários/as do CAPS AD alinham-se, em certa medida, com as
prerrogativas proibicionistas de caracterização das drogas como perigosas –
cuja ameaça se potencializa na medida em que descemos os degraus da
licitude. Compreendemos tais resultados pela perspectiva halbwachiana
perseguida no decorrer deste trabalho, mediante a qual concluímos que as
memórias dos/as usuários/as participantes da pesquisa, ao serem recordadas

52
e relatadas no presente, são reconstituídas em função dos interesses nele
dominantes e dos marcos sociais de referência aos quais estão ligados agora.
Nesse sentido, a família e a religião são marcos referenciais mobilizados
pelos/as usuários/as para ancorarem suas recordações e representações
sociais. Além disso, é preciso lembrar que os sujeitos de nossa pesquisa são
usuários/as do serviço oferecido pelo CAPS AD, constituindo esse espaço e os
conhecimentos nele socialmente construídos um marco espacial de referência
grupal ao qual tais usuários/as estavam ligados – afinal, submeter-se ao
tratamento implica em assimilar o entendimento daquilo que eles/elas
identificam em seu próprio uso de drogas como “problemático” àquilo que a
instituição considera “problemático”.
As representações sociais do uso de drogas como vetor de prazeres são
compartilhadas pelos/as usuários/as, porém não conquistam uma ruptura com
as representações dessas substâncias como um mal a ser proibido e
combatido. Nesse sentido, acreditamos que tal prazer é recordado com um
caráter “sedutor” de algo a ser temido, afinal, embora os/as usuários/as
afirmem que as drogas lhes proporcionam, por exemplo, a sensação de
liberdade, eles/elas as interpretam, em outros momentos, enquanto um mal
capaz de lhes aprisionar. Sob esse prisma se impõe a força das
representações sociais ao assegurarem aos/às usuários/as uma margem de
familiaridade com o status de dependente assumido por eles/elas mediante o
recurso ao CAPS AD, um espaço de socialização da ideia de dependência.

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55
IMPACTOS NA SAÚDE
DO TRABALHADOR NA
CONTEMPORANEIDADE: REFLEXÕES
SOBRE A SÍNDROME DE BURNOUT

Kherolainy Delli Colli Cardoso1

1
Pós-graduanda em MBA - Gestão Estratégica de Pessoas pela Universidade do Oeste
Paulista e graduada em Psicologia pela UNIESP de Presidente Prudente.

RESUMO:
Partindo de um olhar psicológico atento às particularidades psicossociais que
caracterizam as relações de trabalho na realidade capitalista contemporânea,
este capítulo tem como finalidade discutir os impactos subjetivos e sociais na
saúde do trabalhador, em organizações públicas e privadas, dando destaque à
Síndrome de Burnout. O estudo teórico evidenciou que, embora a temática
venha compondo debates variados na sociedade atual, ainda há muitos
desafios a serem superados na direção de uma compreensão e de práticas que
realmente se atentem a essa forma de adoecimento em sua complexidade.
Tanto nas políticas públicas quanto nos setores privados, a saúde do
trabalhador ainda se limita a um lugar secundário e carece de investimentos e
de devido aprofundamento para que a saúde mental passe a ser direito de
todos que compõem as relações de trabalho.
Palavras-chave: Síndrome de Burnout; Trabalho; Esgotamento Profissional;
Autorrealização.

INTRODUÇÃO
Refletir sobre o sujeito contemporâneo, em meio às exigências sociais
cotidianas, no bojo da sociedade capitalista, faz-nos deparar com alguns
elementos centrais, como: os ideais de uma carreira promissora, de uma
formação acadêmica qualificada, de uma família estruturada e de uma vida
financeira estável.
Ao olharmos para o passado, em sociedades pré-capitalistas, o que
compunha as preocupações humanas? A busca por abrigo e alimentos, a
forma de organizar-se coletivamente e a não centralidade no capital eram, sem
dúvida, dentre outros aspectos, elementos marcantes e diversos do modo de

56
organização social que temos na atualidade, regulado pela competitividade,
pelo individualismo e pela busca desenfreada pelo prazer imediato.
Maslow (1943), ao propor a teoria da motivação humana, por meio da
qual apresenta o que ficou conhecida como a “Pirâmide de Maslow”, traz-nos
uma visão progressiva em níveis quanto às necessidades dos sujeitos que,
constituídos e inseridos em um meio social, buscam a realização pessoal. A
cada degrau, supõe-se que vão se tornando mais realizados em diferentes
dimensões.
Se voltamos o nosso olhar para questões relativas ao mundo do
trabalho, temos, então, em analogia às proposições daquele autor, na base da
pirâmide, as necessidades fisiológicas, que envolvem, por exemplo, a demanda
por alimento e água em meio às pressões do horário de trabalho, e a
necessidade de intervalo para descanso e conforto físico. Em seguida, temos
as necessidades de segurança, que devem integrar as condições de trabalho
seguro, a remuneração, os benefícios e a própria permanência no emprego. O
terceiro nível é aquele que envolve as necessidades sociais, isto é, que
abrange as questões ligadas às relações entre colegas de trabalho, interação
com clientes e a dinâmica relacional entre trabalhadores e líderes ou gestores.
Na sequência, temos as necessidades de estima, que, no âmbito do trabalho,
envolve principalmente demandas de reconhecimento, responsabilidade e de
valorização profissional. Por fim, no último nível se situam as necessidades de
autorrealização, que, em um ambiente laboral saudável e promotor de direitos,
tende a possibilitar desafios à criatividade, alianças que promovam participação
coletiva, diversidade, autonomia e crescimento profissional.
Fazendo este paralelo com as propostas de Maslow (1943), fica
destacado o quanto no contexto de trabalho há, na realidade prática, uma
configuração articulada entre aquelas necessidades. Além disso, é possível
refletir que a não garantia de algum dos níveis pode gerar dificuldades de
concretização da autorrealização e, portanto, da satisfação do e no trabalho.
Algumas questões se apresentam a nós neste campo complexo: o que
tem acontecido com os sujeitos trabalhadores que, mesmo tendo objetivo e
foco profissional, perdem o interesse ou parecem desistir da almejada
autorrealização? Quais fatores podem estar interferindo nesse processo de
busca pela satisfação de necessidades e de concretização do trabalho? Trata-

57
se exclusivamente de fatores pessoais ou envolvem a dinâmica institucional?
Como o adoecimento tem se expressado nas dimensões física e/ou psíquica?
Qual a relação entre os percalços apresentados no processo de busca pela
autorrealização no cotidiano laboral com o esgotamento emocional e outras
formas de adoecer na contemporaneidade?
Essas questões, mais do que esperar respostas diretas e prontas,
colocam-se como convites à reflexão. Neste ensaio teórico objetiva-se, então,
discutir os impactos subjetivos e sociais na saúde do trabalhador, em
organizações públicas e privadas, dando destaque espacialmente à Síndrome
de Burnout. A proposta é que se possa auxiliar, a partir da Psicologia, com
discussões multiprofissionais sobre o tema, provocando contribuições ao
campo das políticas públicas e aos organismos privados.
Convido os leitores a, neste momento, adentrar nesta discussão, a partir
de um olhar psicossocial, considerando o desenvolvimento sócio-histórico dos
sujeitos inseridos em seus espaços de trabalho.

DESENVOLVIMENTO SÓCIO-HISTÓRICO DO SUJEITO E O MUNDO DO


TRABALHO
Os seres humanos, desde os primórdios, buscam formas de prover as
suas necessidades. Processos de transformações variados ocorreram até que
chegássemos à configuração do atual modelo de produção e de trabalho.
Progressos foram alcançados, mas também, em simultâneo, surgiram
demandas contraditórias vividas pelos trabalhadores, como é o caso das
expressões de adoecimento e esgotamento, foco deste capítulo.
Borges e Yamamoto (2004) comentam que o trabalho é objeto de
múltipla atribuição de significados e/ou sentidos, seja no mesmo contexto
histórico-social, seja em realidades diferentes. Em qualquer tempo, segundo os
autores, quando uma forma de exercer o trabalho visa eliminar a necessidade
da intencionalidade humana ou suas capacidades de realização, acaba por
descaracterizar o próprio trabalho em sua condição humana criativa.
Marinho (2020) apresenta uma afirmativa relevante quanto aos sujeitos
humanos em sua relação com o trabalho: “a partir desta concepção é que
poderemos compreender a essencialidade do trabalho para o indivíduo e a
afirmação de Engels, para quem o trabalho é a condição básica e fundamental

58
de toda vida humana” (p. 10). Ao trazer em destaque a concepção de Engels, o
autor nos convida a pensar sobre a importância que o trabalho tem em nossa
vida, inclusive para a transformação humana e o desenvolvimento da
humanidade.
O desenvolvimento humano se estabelece em meio à relação múltipla
de diferentes fatores em toda a nossa história, o que informa que somos seres
biopsicossociais, constituídos pela interação de variados aspectos e de forma
permanente. Aspectos biológicos, culturais, sociais, laborais, emocionais e
familiares compõem quem fomos, somos e nos tornaremos. O ambiente de
trabalho é, sem dúvida, um campo vivencial que nos afeta permanentemente e
de variadas formas, isto é, ele exerce um significativo papel em nossa
formação como sujeitos biopsicossociais: “em todos os períodos da história, o
trabalho sempre se fez parte da vida do homem, fazendo parte da formação de
suas subjetividades e também tendo influência no seu modo de vida” (Garlet;
Trevissol, 2022, p. 1).
Dentro deste contexto, devemos considerar que há uma rede relacional,
na qual cada indivíduo e cada setor estão interligados, cada qual com sua
singularidade, mas também enquanto coparticipação no meio institucional que
os envolve. Partindo de uma visão ampliada do funcionamento institucional,
não podemos deixar de considerar as adversidades e as desigualdades
presentes dentro do meio corporativo e/ou institucional, onde padrões
hierárquicos e/ou dinâmicas verticalizadas podem trazer ou aprofundar
expressões de adoecimento psíquico, como destaca Garlet e Trevissol (2022).
Nesse sentido, na sociedade capitalista, é indispensável lembrar que o
trabalho se tornou uma condição alienada e alienante, como discutiu Marx
(1867). Na atualidade, com as transformações pelas quais passaram o
capitalismo, que atualmente se configura como neoliberal, emerge a
necessidade de se refletir como essa alienação tem se concretizado e quais os
seus impactos. Os rumos que os efeitos do capitalismo vêm gerando indicam
que se trabalha, no presente, não para satisfazer necessidades reais – sejam
fisiológicas, sociais, de segurança, de estima ou de autorrealização –, mas
para gerar acúmulo de riqueza e/ou satisfazer necessidades imediatistas, via
consumismo desenfreado.

59
O trabalho, portanto, faz parte da transformação do sujeito humano,
como também, nessa medida, pode integrar dialeticamente processos
geradores de exclusão e sofrimento. Assim, o desenvolvimento sócio-histórico
do ser humano estará repleto de impactos experienciados no trabalho e em
outros contextos sociais. Marinho (2020) nos apresenta o seguinte:
Disto, temos que, além de sujeito ativo, o homem é também produto
do processo de trabalho, ou seja, enquanto exerce domínio sobre a
natureza, o homem a modifica com o fim de atender às suas
necessidades, ao mesmo tempo em que também é modificado. Logo,
trata-se de um processo dialético de interação entre homem e
natureza, no qual o trabalho se configura como forma de mediação,
como afirmam Marx e Engels (p. 11).

Esses apontamentos evidenciam que não há como entender o ser


humano e o seu desenvolvimento sem compreender as transformações e os
impactos do trabalho na vida humana. Assim, voltamo-nos para o tema central
deste capítulo: o sujeito contemporâneo formado, portanto, em meio às
contradições e dinâmicas entre sujeito, capital e trabalho. O trabalho
apresenta-se como elemento influente da e na formação do ser humano, em
suas questões psicossociais mais variadas. A dinâmica laboral extrapola, por
conseguinte, os muros organizacionais e impacta positiva ou negativamente a
vida cotidiana dos sujeitos, seja promovendo crescimento e satisfação, seja
gerando adoecimento. Assim, podem surgir alterações em detrimento da saúde
mental desses sujeitos, como o esgotamento psíquico causado pela exposição
a agentes tóxicos no cenário de trabalho (Garlet; Trevissol, 2022).
Sendo o trabalho uma possível fonte de realização humana, se ela se
esgota ou não é continente frente às necessidades de satisfação psicossocial,
mesmo perante esforços e investimento temporal, físico, cognitivo e emocional,
o trabalhador não se sentirá realizado, visto que essa força se esvai e o
sofrimento psíquico pode se estabelecer. A pressão pela alta produção e pelo
alto desempenho, a competitividade desenfreada, as exigências por
flexibilidade e a redução dos direitos dos trabalhadores são alguns dos fatores
que podem estar relacionados à expressão de variadas formas de adoecimento
e esgotamento emocional, como é o caso da Síndrome de Burnout, nos mais
variados âmbitos de trabalho, sejam públicos ou privados. A seguir, passo a
tratar de suas especificidades.

60
A SÍNDROME DE BURNOUT: ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS
Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional,
segundo o Ministério da Saúde (Brasil, s/d), trata-se de uma forma de
adoecimento emocional que se dá através da exaustão extrema, estresse e
esgotamento físico/emocional, formados pela exposição e/ou inserção a
trabalhos desgastantes, que instigam muita competitividade e produtividade.
Essa forma de adoecimento está, portanto, vinculada ao excesso de trabalho, o
qual é então sua causa central.
A Síndrome de Burnout é estudada por diversos pesquisadores e
teóricos desde a década de 1970. O termo Burnout “se refere ao nível
devastador de estresse, sendo a junção de „burn‟ (queima) e „out‟ (exterior,
fora) que em um jargão popular em inglês, significa aquilo que deixou de
funcionar por absoluta falta de energia” (Souza; Maria, 2016, p. 2). O termo foi
utilizado pela primeira vez em 1974 por Herbert Freudenberger, que o
descreveu como um sentimento de fracasso e exaustão causada por um
excessivo desgaste de energia e recursos (Carlotto; Gobbi, 1999).
Castro e Zanelli (2007), seguindo as proposições de Freudenberger e
vinculando-as às contribuições de Maslach, descrevem o Burnout como sendo
uma síndrome psicológica decorrente da tensão emocional crônica. Salientam
que, no início dos estudos dos principais sintomas e das origens do Burnout,
esses foram ligados principalmente a profissionais das áreas de saúde e
educação, pelo fato de estarem em contato direto com outras pessoas de
forma intensiva. Porém, passados mais de 25 anos após o início das
pesquisas, as discussões sobre o tema se ampliam para outras esferas
laborais, ainda que, conforme os autores, a incidência seja bastante intensa
entre profissionais da saúde, educação e segurança pública, devido às suas
responsabilidades, à falta de condições de trabalho e a outros fatores
relacionados à interação contínua com o público-alvo.
Desta maneira, as elevadas cobranças por resultados, a estipulação de
metas por vezes inalcançáveis, o contato direto com o público em sua
complexidade, a competitividade em detrimento da coletividade, e a redução de
condições dignas de trabalho são alguns dentre inúmeros fatores que
cooperam para a configuração de ambientes de trabalho adoecedores, os

61
quais se somam ao contexto social mais amplo – incluindo as redes sociais –
que amplifica as exigências da cultura do desempenho.
Partindo desses aspectos conceituais e históricos, neste momento,
passo a abordar as perspectivas que, de acordo com Carlotto e Gobbi (1999),
tem se debruçado à discussão da Síndrome de Burnout.
Segundo as referidas autoras, a primeira é a perspectiva clínica proposta
por Freudenberger. Para ele, a síndrome ocorre devido ao estado de exaustão
causado quando o indivíduo trabalha incansavelmente para atender às
necessidades trabalhistas, isto é, as necessidades do outro, deixando as suas
demandas em segundo plano. A segunda é a perspectiva social-psicológica
apresentada por Maslach, que valoriza a premissa de que o Burnout está
relacionado às características do trabalho no qual o indivíduo está inserido e
nas situações de sobrecarga de trabalho. Sob esse enfoque, dá-se uma maior
ênfase às relações entre contexto laboral e subjetividade. Já a perspectiva
organizacional, por meio das contribuições de Cherniss, amplia a social-
psicológica enfatizando as características organizacionais como principais
causas do Burnout, ou seja, a forma como as organizações funcionam,
incluindo o seu ambiente cultural, e como afetam os trabalhadores. E, por fim, a
quarta perspectiva, abordada por Sarason, ficou conhecida como perspectiva
social-histórica. Ela classifica os impactos da sociedade como determinantes
para Síndrome de Burnout, em face dos valores individualistas que o modelo
de sociedade se baseia, em detrimento dos valores comunitários. Sob esse
enfoque, compreende-se que as organizações reproduzem essa lógica social
e, assim, produzem esgotamento e sofrimento.
Em resumo, as perspectivas apresentadas por Carlotto e Gobbi (1999)
nos convidam a pensar: a Síndrome de Burnout tem se dado devido à falta ou
à precariedade de um ambiente que nos permita olhar e cuidar de nós
mesmos, individual e coletivamente? As autoras comentam que essa forma de
adoecimento ocorre quando colocamos as necessidades do outro (que pode
ser outra pessoa, a organização ou o próprio capitalismo) acima das nossas
próprias e, assim, o ambiente de trabalho e sua sobrecarga adjacente nos
causam exaustão. Diante disso, estaríamos então nos alienando, adaptando-
nos e servindo à ordem do capital? Para onde vão os nossos desejos e as
nossas genuínas necessidades?

62
A fim de refletir sobre possíveis respostas para essas indagações, faz-se
importante inserir mais algumas disposições propostas por Carlotto e Gobbi
(1999) quanto às dimensões que integram a Síndrome de Burnout.
A primeira é a exaustão emocional, caracterizada pela falta de energia e
esgotamento emocional, resultando em frustração e tensão nos trabalhadores.
A sobrecarga e os conflitos interpessoais nas relações são apontados como as
principais causas desse fenômeno. A segunda dimensão é a
despersonalização ou desumanização dos trabalhadores, tratados por clientes,
colegas e pela própria organização como objetos, acompanhado por
insensibilidade emocional, cinismo e dissimulação afetiva. A terceira dimensão
refere-se à diminuição da realização pessoal no trabalho, indicando uma
autoavaliação negativa, infelicidade, insatisfação profissional e declínio na
percepção de competência e êxito, afetando a interação com outras pessoas
no ambiente profissional (Carlotto; Gobbi, 1999).
Devemos considerar, ainda, o que Carlotto e Câmara (2008) afirmam,
com base nas teorias de Maslach e Schaufeli: destacam que, nas diversas
definições propostas para a Síndrome de Burnout, há convergência de pelo
menos cinco elementos fundamentais. Em primeiro lugar, observa-se a
prevalência de sintomas ligados à exaustão mental e emocional,
acompanhados de fadiga e depressão. Em segundo lugar, há uma ênfase nos
sintomas comportamentais e mentais, em detrimento dos sintomas físicos.
Além disso, os sintomas estão diretamente relacionados ao contexto de
trabalho, caracterizando-a como uma síndrome ocupacional. Outro aspecto
comum é que a síndrome se manifesta em indivíduos que não apresentavam
distúrbios psicopatológicos prévios. Por fim, o Burnout está associado à
redução da efetividade e do desempenho no trabalho, resultante de atitudes e
comportamentos negativos.
Em conformidade, Castro e Zanelli (2007) defendem essas mesmas
dimensões apresentadas acima, baseados em similares premissas de estudos
e pesquisas variadas aplicadas ao longo dos anos, o que nos ajuda a entender
que tal forma de adoecimento se estabelece devido à exposição a um ambiente
de trabalho psicologicamente insalubre, inserido em um contexto social que
coopera com essa configuração. Desta maneira, podemos compreender, assim
como os autores, que há uma combinação articulada de fatores complexos,

63
que conjugam a existência de um profissional frustrado e exaurido
emocionalmente, em um contexto colaborativo a essa condição.

INTERVENÇÃO E PREVENÇÃO FRENTE A SÍNDROME DE BURNOUT


As discussões propostas na seção anterior nos permitem perceber que a
Síndrome de Burnout se apresenta com resposta a um conjunto associado de
eventos estressores, característico de nossa sociedade capitalista. A esse
respeito, Carlotto e Gobbi (1999), dialogando com outros autores, afirmam que
essa forma de sofrimento é uma crise do sujeito com seu trabalho, mas não
necessariamente com as pessoas que integram o ambiente do trabalho; não é
um problema do indivíduo ou limitado à dinâmica individual-relacional, ao passo
que envolve um ambiente social, no qual o trabalho se insere.
Estando o sujeito em condição de adoecimento, na medida em que está
exposto a um ambiente laboral danoso, avanços serão plenamente dificultados,
seja para si mesmo (em termos de autorrealização) ou para a contexto
organizacional e social (no que se refere à produção de trabalho criativo e
produtivo). Quando o desejo é silenciado pela perda e pelo fracasso deste
futuro tão almejado, cria-se a desilusão e, consequentemente, abre-se espaço
para a sintomatologia de Burnout (Castro; Zanelli, 2007).
Vejamos uma ilustração de como se dá o processo de desenvolvimento
da Síndrome de Burnout:
No ponto de partida, há objetivos e expectativas pessoais que se
incluem em expectativas de grupos específicos e no universo
profissional e que expressam a busca de um significado existencial
do trabalho para o conjunto da vida do indivíduo. Em seguida, o
confronto do indivíduo com uma realidade estressante caracterizada
pela presença de características negativas (alta sobrecarga,
interferências burocráticas que geram ambiguidade e conflito de
papéis) e pela ausência de características positivas (falta de suporte
de colegas, supervisores e falta de autonomia). Desse confronto, do
indivíduo portador de um trabalho existencialmente significativo para
si com uma realidade organizacional marcada por fatores
estressantes, resulta que os objetivos e expectativas perseguidos não
são alcançados e a experiência de fracasso do significado existencial
do trabalho acontece. Desse fracasso, portanto, é que resulta a
diminuição da realização pessoal, a despersonalização e o
esgotamento das energias para enfrentar as situações estressantes
de trabalho (Castro; Zanelli, 2007, p. 23).

Diante dessas considerações, surgem inquietações que nos levam a


perguntar: como podemos enfrentar este problema, já que, embora se
expresse na vida psíquica do sujeito – em termos de sintomatologia – envolve

64
um processo laboral e social? Quais estratégias humanizadas devem ser
fomentadas, criadas ou ampliadas para enfrentar o problema a nível coletivo,
mas também para acolher as demandas diante de situações que já se
instauraram em nível individual?
Um primeiro conjunto de estratégias diz respeito à necessidade de
promover atenção em saúde mental nos espaços institucionais, seja nos
órgãos públicos ou nas empresas privadas. Segundo Carlotto e Gobbi (1999), o
Burnout desencadeia um agravamento negativo no bem-estar físico e
emocional: o trabalhador se sente exausto, frequentemente doente, e passa a
apresentar sintomas psicossomáticos derivados de tal situação, como úlceras,
cefaleias e insônia, chegando a gerar também problemas associados à tensão
muscular, pressão sanguínea e fadiga crônica. Em casos mais graves, já
chegou a ser associado a conflitos conjugais, alcoolismo, doenças mentais e
até mesmo ao suicídio. Diante da complexidade que essa forma de
adoecimento apresenta, faz-se indispensável o cuidado multiprofissional, pois
um enfoque biopsicossocial tende a compreendê-lo de forma humanizada,
cooperando com um suporte integral.
Ainda quanto a esse primeiro ponto, é importante salientar que, assim
como não existe nenhum sujeito igual ao outro, o acompanhamento para
Síndrome de Burnout sofrerá variações de caso para caso, em face das
características e singularidade de cada pessoa e de cada contexto laboral e
social em que a situação se expressa. A psicoterapia é de suma importância,
mesmo que eventuais medicações estejam sendo usadas (para demandas
psiquiátricas ou outras questões de saúde física) para controlar os sintomas,
muitas vezes, somatizados (Araujo, 2008). Outros encaminhamentos também
poderão ser efetuados e/ou outros profissionais poderão compor a referida
equipe visando impactar nas raízes da problemática, em cada situação
concreta.
Buscando um diagnóstico efetivo, Menezes et al. (2017) nos apresentam
um método criado por Maslach e Jackson, o qual, por meio de um questionário,
avalia as três dimensões apresentadas anteriormente: exaustão emocional,
despersonalização e diminuição da realização pessoal. O questionário,
nomeado de Maslasch Burnout Inventory (MBI), é composto por 22 itens que
se apresentam por meio de afirmações voltadas a sentimentos e atitudes do

65
profissional no meio social de trabalho. Esses itens se organizam baseados
naquelas três dimensões, com a finalidade de aprofundar a compreensão dos
sintomas e as possíveis origens desta forma de adoecimento.
Por meio de ferramentas como essa, associada a outras que permitam a
compreensão dinâmica do psiquismo e das relações laborais e sociais do
trabalhador, evolui-se para a construção de um plano de acompanhamento
voltado às singularidades de cada pessoa e contexto.
Aliás, Farias (2020) aponta que o sujeito, caso tenha estado afastado do
trabalho devido à Síndrome de Burnout, deve ser reinserido cuidadosamente,
levando consigo a oportunidade de se reorganizar, rever suas
responsabilidades e retornar ao trabalho de modo a respeitar as suas
condições de saúde. A equipe ou o profissional que o esteja acompanhando
deve ainda trabalhar com o sujeito estratégias visando ampliar a convivência
com sua rede de apoio, de modo a fortalecer seus vínculos dentro e fora do
trabalho. Deve-se, também, buscar, de acordo com os interesses do sujeito,
fortalecer sua saúde física, de modo articulado à sua saúde psicológica,
através, por exemplo, da busca por atividades físicas, que possam atenuar o
estresse, o cansaço mental e o isolamento social.
Um segundo conjunto de estratégias deve englobar o enfrentamento aos
fatores contextuais que têm provocado ou acentuado esta forma de
adoecimento nos mais diversos espaços de trabalho, públicos ou privados.
Nos equipamentos públicos, particularmente, tanto a Síndrome de
Burnout quanto outras formas de adoecimento no e pelo trabalho devem ser
tratadas como problemas de saúde pública. Inclusive, nessa seara, pesquisas
realizadas com profissionais de instituições públicas de atenção primária em
saúde (Silva et al., 2015), com servidores públicos municipais de diversos
setores (Mallmann et al., 2009) e com professores do ensino fundamental
(Batista et al., 2010) sugerem não só a ocorrência do problema vinculado à
carga horária de trabalho excessiva e à insatisfação profissional por variados
motivos, mas também o risco para desenvolver a síndrome em uma parte
significativa dos demais trabalhadores, o que evidencia a necessidade de
ampliar medidas interventivas e preventivas quanto ao tema, garantindo, assim,
políticas voltadas ao bem-estar dos trabalhadores e a um ambiente laboral
humanizado.

66
Em organizações públicas, mas também nas empresas privadas, há
todo um trabalho contínuo a ser realizado visando informar e combater os
impactos psicológicos e sociais da Síndrome de Burnout. Estratégias diversas
devem ser fomentadas com o objetivo de tornar os programas de saúde do
trabalhador uma realidade. Nesse sentido, políticas públicas e políticas
empresariais quanto à temática devem ser implementadas nos mais diversos
locais de trabalho e em outros espaços sociais. Nessa direção,
A mudança organizacional passa pela revisão dos valores que regem
a instituição. O resgate dos valores humanos no trabalho é
fundamental. O significado e o reconhecimento do trabalho e suas
formas de recompensa, o sentimento de escolha e controle sobre o
mesmo, aliado ao senso de comunidade, justiça e respeito são
caminhos que levam indivíduo e organização a um futuro melhor com
mais qualidade e equilíbrio (Maslach; Leiter, 1997 apud Carlotto;
Gobbi, 1999. p.16).

O sujeito afetado pela Síndrome de Burnout tem, portanto, direito a um


ambiente qualitativamente diverso daquele que gerou ou aprofundou sua
situação de sofrimento – um contexto livre de riscos à sua saúde mental e que
fomente sua autorrealização é prerrogativa para a concretização de um
ambiente saudável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do capítulo foi possível refletir que o trabalho é uma atividade
essencialmente humana. A satisfação no trabalho, o desenvolvimento humano
e as atividades laborais são elementos intrinsecamente ligados e, por isso,
pensar a transformação histórico-social dos sujeitos envolve considerar os
efeitos que o trabalho produziu e produz, historicamente, em sua constituição.
Ao analisar os impactos da dinâmica laboral na saúde mental dos
sujeitos, pudemos também colocar em destaque o meio social em que tais
processos de adoecimento são produzidos, já que o homem é produto de suas
relações de trabalho e demais relações sociais. Isso nos informa que a
exposição a um ambiente de trabalho degradante se torna prejudicial ao sujeito
social.
Ao abordarmos um tema complexo como a Síndrome de Burnout,
buscou-se resgatar contribuições teóricas que discutem a dimensão conceitual
e histórica do problema. Como se pôde verificar, pesquisas já vêm sendo
realizadas há décadas, mas novos estudos devem ser concretizados, visando

67
principalmente desenvolver estratégias preventivas diante do problema, que
segue presente em nosso cotidiano na contemporaneidade.
Restou claro que, na dinâmica sujeito-trabalho, o modo como as
necessidades humanas têm sido afetadas contribui com o surgimento da
Síndrome de Burnout, já que aquelas necessidades descritas por Maslow
(1943) não são sanadas e os sujeitos se veem impelidos a ter que realizar
demandas excessivas e necessidades alheias, que desencadeiam mal-estar no
trabalho.
Se antes estas formas de expressão de sofrimento ficavam muito
restritas ao espaço privado de trabalho, hoje problemáticas como a Síndrome
de Burnout têm sido discutidas nos espaços laborais e fora deles. Assim,
podemos concluir que, tal como as cobranças pelo alto desempenho são
internas, mas também se produzem na sociedade de um modo geral enquanto
cultura do desempenho, as estratégias de enfrentamento ao problema devem
envolver tanto medidas locais quanto sociais, visando intervenção e prevenção.
A personificação do sujeito ideal no espaço laboral, a busca incansável
por um alto padrão de produtividade e as relações de competitividade, as quais
refletem ideais desta sociedade capitalista neoliberal, têm gerado um sujeito
em sofrimento, que passa, então, a viver a exaustão emocional, a
despersonalização e a redução da realização pessoal, afetando negativamente
sua saúde mental e o papel criativo que o trabalho poderia gerar em sua vida e
em seu espaço de trabalho.
Dentre variadas medidas necessárias, destacamos a necessidade do
devido e singular cuidado em saúde mental, além de medidas de orientação e
prevenção mais amplas sobre o problema em questão. Embora a temática
venha compondo debates variados na sociedade atual, ainda há muitos
desafios a serem superados na direção de uma compreensão e de práticas que
realmente se atentem a essa forma de adoecimento em sua complexidade.
Tanto nas políticas públicas quanto nos setores privados, a saúde do
trabalhador ainda se limita a um lugar secundário e carece de investimentos e
de devido aprofundamento para que a saúde mental passe a ser direito de
todos que compõem as relações de trabalho.
Nesse âmbito, cabe à Psicologia defender, nos mais variados espaços
de atuação profissional, a necessidade de implementação de estratégias que

68
valorizem e fomentem práticas de cuidado em saúde mental e políticas de
valorização dos trabalhadores, dando destaque a uma perspectiva ético-
política, que traga como horizonte ético a potencialização do sujeito e o
reconhecimento de sua humanidade (Gesser, 2013). Seguindo a premissa da
valorização do ser humano, a gestão dos espaços de trabalho deixa de ver
estes sujeitos apenas como números e passa a considerá-los como seres
constituídos por desejos e necessidades biopsicossociais, que devem ser
acolhidas visando à garantia da saúde do trabalhador e à produção de um
trabalho socialmente significante.

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70
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71
RELIGIÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS: UMA
ANÁLISE DE SUAS INTERSECÇÕES

Camila Motta Paiva1

1
Doutora, mestra e graduada em Psicologia (Universidade de São Paulo).

RESUMO:
O advento da modernidade gerou fissuras significativas nas relações entre
religião e Estado, pois o processo de secularização gradativamente afastou a
religião da vida pública, relegando-a ao âmbito íntimo-privado. Entretanto, na
sociedade brasileira, a religião segue exercendo forte influência sobre a esfera
política. Por um lado, há um movimento conservador que vem tentando
reafirmar o Brasil como uma nação eminentemente cristã e, a partir disso, ditar
a agenda das políticas públicas tomando como base tais convicções religiosas
hegemônicas. Por outro, os princípios democráticos garantem a todos e todas
o direito à participação social, sem qualquer distinção; assim como reconhecem
a liberdade religiosa como direito fundamental, cabendo ao Estado garantir a
sua efetivação por meio da elaboração e execução de políticas públicas
direcionadas a essas pessoas. A partir disso, este capítulo teórico-reflexivo
busca fazer uma análise de diferentes pontos de intersecção entre religião e
políticas públicas. Após um breve panorama histórico, aborda-se as tensões
postas pelo conservadorismo religioso na arena política brasileira e, por fim,
discute-se as possibilidades que se abrem com a inserção do tema no âmbito
da cultura e dos direitos humanos. Embora psicólogos e psicólogas muitas
vezes se esquivem de tal debate, entende-se que há espaço para que
desempenhem um papel mais colaborativo na reflexão e no desenvolvimento
desta agenda.
Palavras-chave: Políticas públicas; Religião; Cultura; Direitos Humanos.

INTRODUÇÃO
A população brasileira tem a religiosidade como uma de suas
características de destaque: os católicos, embora tenham diminuído em
número nas últimas décadas, permanecem majoritários, seguidos pela
população evangélica em exponencial crescimento, o que denota um claro
processo de transição religiosa em curso no país. Há, ainda, uma série de
grupos religiosos minoritários que fazem parte da constituição do país, a

72
exemplo dos espíritas, muçulmanos, judeus, adeptos de religiões de matriz
africana, como candomblecistas e umbandistas, entre outras tradições. De
acordo com os dados do recenseamento de 2010, apenas 8% da população
brasileira se declarou como “sem religião” (IBGE, 2012) – embora existam
indícios de que esse número tenha aumentado nos últimos anos, pelas
estatísticas censitárias ainda podemos vislumbrar um cenário aproximado em
que apenas um em cada dez brasileiros não segue uma religião.
O dado destacado acima aponta para a realidade de que a religião
persiste como elemento de grande importância para a esmagadora maioria dos
brasileiros e brasileiras, contrariando a suposição de que, com a modernidade,
haveria uma decaída e um encolhimento do campo religioso – acreditava-se
que, regidas pela racionalidade moderna, as pessoas prescindiriam da religião,
o que não aconteceu.
Entretanto, é fato que a religião sofreu um abalo no sentido de que não é
mais a única instância acionada para explicar os fenômenos do mundo e dar
norte às condutas das pessoas, assim como, ao menos em tese, deixou de
ocupar dominância sobre a vida política de grande parte das sociedades.
Nesse processo de “desencantamento do mundo” (Weber, 1919/2011), a
influência da religião na esfera pública diminui à medida que a sociedade se
seculariza: a religião perde sua força normativa, e é relegada ao âmbito das
liberdades individuais e das vidas privadas das pessoas, ao mesmo passo em
que se promove o entendimento de que a esfera pública deve ser
independente de considerações religiosas. Assim, ocorre a separação entre
instituições religiosas e assuntos públicos, que passam a ser representados por
um Estado neutro religiosamente, mas que deve permitir e garantir as
condições para que as pessoas pratiquem sua fé, seja ela qual for.
Apesar das polêmicas e controvérsias suscitadas por essa temática, é
contraproducente supor que religião e política realmente deixaram de
convergir: o vínculo entre elas é histórico, socialmente construído, e mais
interessante do que negar a existência dessa relação é refletir sobre as
configurações desse entrelaçamento – suas possibilidades, seus limites e
tensões, e suas consequências. Isso posto, este capítulo teórico-reflexivo tem
como objetivo discutir as intersecções entre religião e políticas públicas, de
forma a contemplar as distâncias e as aproximações possíveis entre esses

73
elementos. Após uma contextualização histórica, serão abordadas facetas
diversas dessa relação: de um lado, o conservadorismo; de outro, a dimensão
da cultura e dos direitos humanos.

ESTADO BRASILEIRO E LIBERDADE RELIGIOSA: UM PANORAMA


HISTÓRICO
Por muito tempo, permaneceu intacta a noção de que o Brasil era um
país miscigenado e sincrético, uma nação cordial que convivia bem com a
diferença. No campo das religiosidades, solidificou-se o mito de que o Brasil
seria um “país harmônico e sem conflitos”, no qual “inexistiriam ódios raciais,
de religião e de gênero” (Schwarcz, 2019, p. 22). No entanto, essa construção
utópica nega a hostilidade enraizada na sociedade brasileira, que se formou
sob a égide colonial-patriarcal: a negativa da intolerância no Brasil é, por si só,
um sintoma desse silenciamento histórico sobre as opressões que nos afligem.
Historicamente, encontra-se, em realidade, a imposição do catolicismo
trazido pelo colonizador; a violência da colonização e da escravidão; o
mandonismo e o patriarcalismo; e a perseguição às espiritualidades e
religiosidades não-hegemônicas, como as de matriz africana, introduzidas no
país por escravizados pertencentes a variados subgrupos etnoculturais. Tais
religiosidades eram entendidas como “primitivas”, uma ameaça à ordem social
– resquícios diretos do colonialismo escravocrata e suas políticas eugenistas e
racistas subsequentes.
A configuração de intolerâncias e racismos religiosos remontam, pois, às
nossas origens coloniais, e vêm perdurando durante toda a nossa história: os
terreiros foram criminalizados até meados da primeira metade do século XX; e
certas práticas presentes em religiões de matriz africana e no espiritismo,
pejorativamente rotuladas como “curandeirismo”, eram enquadradas como
crime contra a saúde pública pelo Código Penal de 1890 (Schwarcz; Starling,
2020).
Havia, portanto, um apagamento dessas formas de ser e de praticar a fé,
afastando-as das vistas públicas por meio da coerção violenta, por mais que
uma suposta liberdade de culto estivesse presente desde a Constituição de
1891 (Brasil, 1891). Ao longo da história brasileira, apesar das garantias
constitucionais, são inúmeras as vezes em que a opressão prevaleceu: direitos

74
garantidos no texto eram, na prática, violados abertamente com o aval do
próprio Estado, em nome da manutenção da “ordem pública” e dos “bons
costumes”.
É também a Constituição de 1891 a que primeiro estabeleceu a
separação entre o Estado e a Igreja, uma mudança brusca em relação à
situação imperial, período em que a Igreja Católica era considerada a religião
oficial do Brasil. Contudo, o poderio angariado pelo catolicismo ao longo dos
quase quatro séculos anteriores já era suficiente para que seguisse exercendo
sua hegemonia, tanto influenciando a vida pública e política brasileira, como
disseminando a moralidade cristã, normativa, de forma a moldar o imaginário
coletivo.
Esse cenário de supremacia católica só começa a mudar nas últimas
décadas, a partir de meados dos anos 1990, com o crescimento vertiginoso da
população evangélica no país. Para muito além de uma experiência religiosa
privada em suas comunidades, pouco a pouco esse segmento religioso passa
a conquistar espaços importantes na política e na mídia (Cunha, 2019) – em
outras palavras, uma marcada presença na vida pública, sobretudo por meio de
grande visibilidade e acentuada participação política. De acordo com Burity e
Giumbelli (2020), embora os evangélicos já tenham provocado fissuras
irremediáveis na hegemonia católica de outrora, os dois grupos têm se
alinhado no sentido de, juntos, seguirem reivindicando para o Brasil o status de
nação cristã, abafando as outras tantas expressões religiosas que compõem
nossa diversidade.
Aos evangélicos tem sido atribuída uma equivalência com o
conservadorismo, mas é importante notar que tais posicionamentos podem
variar consideravelmente dentro de qualquer grupo religioso: toda
generalização é perigosa; é melhor substituí-la por uma análise crítica mais
cautelosa. É um equívoco comum pressupor que todo religioso defende pautas
conservadoras, e que só aqueles que não são religiosos podem ser
progressistas: ainda que imersos em contexto religioso, é possível questionar
tradições estabelecidas e buscar interpretações mais inclusivas. Dessa
maneira, em toda denominação são encontrados religiosos mais
conservadores ou mais progressistas: os primeiros se apoiam na preservação
de valores morais tradicionais e visam à manutenção da influência religiosa na

75
sociedade; os progressistas, por sua vez, buscam superar as limitações
percebidas nas estruturas tradicionais e promover pautas em prol da igualdade
e da justiça.
Um exemplo de atuação religiosa progressista, de importante função
pública e política no cenário de luta pela redemocratização do Brasil, foram as
Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs. Vinculadas à Igreja Católica e
surgidas na América Latina na década de 1960 como forma de tentar dar
respostas aos desafios sociais e políticos da região, as CEBs representaram
uma expressão concreta do compromisso da Igreja Católica com as maiorias
populares – guardam afinidade com a Teologia da Libertação, abordagem
teológica que enfatiza a justiça social como parte integrante da mensagem
cristã, adotando a perspectiva dos oprimidos (Freitas, 2012).
Tais comunidades desempenharam um papel significativo na dinâmica
social e religiosa latino-americana, por darem vazão a uma vivência de fé
comunitária, que busca transformar as realidades sociais e promover uma
participação mais ativa dos fiéis nas questões que afetam suas vidas – uma fé
aliada à participação cidadã e à defesa dos direitos. As CEBs se destacaram,
portanto, como espaços de resistência: o regime militar, que perdurou de 1964
a 1985, caracterizou-se por restrições às liberdades civis, censura, perseguição
política e violações dos direitos humanos. Ao lado de outros movimentos
sociais populares, as CEBs atuaram na conscientização da sociedade acerca
das desigualdades que nos atingem, impelindo as pessoas à ação coletiva.
Somada a outros fatores sociopolíticos, a mobilização popular serviu à
ruína do governo autoritário e ao fortalecimento da transição democrática, a
qual teve como ápice a promulgação da Constituição Federal de 1988,
conhecida como "Constituição Cidadã". Marcada por um extenso debate
público, a Constituição de 1988 é um documento progressista que consagrou
princípios democráticos e assegurou liberdades individuais, representando um
divisor de águas na história política do país.
Além de reforçar que o Brasil se configura como um Estado laico, a
Constituição de 1988 trouxe implicações para todos os setores, inclusive para o
que diz respeito à liberdade religiosa, que nela é explicitamente reconhecida
como um direito fundamental. O artigo 5º preconiza que “todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” e defende ser “inviolável a

76
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos
cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias” (Brasil, 1988). Isso significa que o texto constitucional assegura
o livre exercício dos cultos, garante a proteção dos locais onde eles ocorrem e
proscreve a discriminação religiosa.
A liberdade religiosa é, pois, considerada parte integrante do espectro
mais amplo de direitos individuais e coletivos protegidos pela Constituição e,
como todos os demais, também demanda políticas públicas por parte do
Estado para que faça valê-los de fato. Todavia, antes da tratativa das políticas
públicas direcionadas para os religiosos, abordaremos as tensões e dilemas
que se apresentam à análise quando esta relação se inverte.

RELIGIÃO E CONSERVADORISMO NA ARENA POLÍTICA: TENSÕES E


REFLEXOS SOCIAIS
Debates mais acalorados sobre a interface entre religião e políticas
públicas foram feitos em virtude do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022),
marcado pela ascensão da extrema-direita e pela composição de uma
expressiva bancada religiosa, que fez uso instrumental da religião como um
determinante na formulação das políticas públicas. Por conseguinte, a relação
entre religião e políticas públicas tem sido mais evidenciada no cenário
brasileiro pelo aspecto do conservadorismo, que se manifesta quando
religiosos tentam ditar as pautas das políticas públicas com base em suas
crenças específicas, especialmente em deliberações que margeiam
moralidade, família e sexualidade, temas nos quais as crenças religiosas
tendem a exercer influência direta sobre os posicionamentos de seus adeptos.
A título de exemplo, o conservadorismo tem sido um fator impactante
para as severas restrições impostas às políticas públicas relacionadas ao
aborto no Brasil. No país, o aborto é considerado crime, exceto em casos de
risco à vida da gestante, anencefalia fetal e gravidez resultante de violência
sexual. A influência conservadora reflete-se na resistência à ampliação dos
direitos reprodutivos das mulheres, por mais que organizações de saúde
endossem que deve-se inserir a pauta no âmbito da saúde pública, como forma
de afirmar a dignidade, a autonomia e a própria vida de mulheres, que todos os
anos perdem-na ao fazerem o procedimento clandestinamente.

77
Dados fornecidos pelo Anis Instituto de Bioética (2019) revelaram que,
das mulheres que declararam ter realizado aborto, 88% tinham religião: destas,
56% professavam a religião católica e 25% eram evangélicas – um indicativo
de que os preceitos religiosos não impedem que as mulheres recorram a este
procedimento. Embora existam movimentos de religiosas a favor da
descriminalização da prática, como a organização não-governamental
Católicas pelo Direito de Decidir, sabe-se que a maioria das instituições
religiosas tendem a repudiar fortemente o ato e fazem pressão para coibir
qualquer possibilidade de avanço neste assunto.
Outra pauta de saúde pública cooptada pelo conservadorismo religioso é
a das drogas, carregada de uma narrativa bélica de “combate”. O Brasil adota
uma postura proibicionista, criminalizando o uso e o porte de drogas ilícitas. A
abordagem hegemônica do tema prioriza a repressão como meio de controle,
ao invés de estratégias orientadas para a saúde pública e redução de danos –
um reflexo dessa visão conservadora moralista. A “nova” política sobre drogas
de 2019 (Brasil, 2019), por exemplo, revive a lógica asilar por meio do estímulo
às comunidades terapêuticas, espaços de reclusão de forte cunho religioso
salvacionista e proselitista, que tendem a colocar a adesão a certos valores
religiosos como parte integrante do processo de recuperação dos usuários,
uma postura antiética que cerceia a autonomia dos indivíduos e os priva de
direitos, ferindo, inclusive, a liberdade religiosa (CFP, 2018).
Há ainda o casamento homoafetivo, em vigor desde 2011, mas que em
2023 sofreu nova tentativa de boicote por parte da bancada evangélica e outros
parlamentares conservadores (Brasil, 2023a) – um retrocesso em relação aos
direitos civis conquistados no âmbito da diversidade de gênero e sexualidade.
Por fim, destaca-se a pauta armamentista, parte das políticas de segurança
pública, frequentemente defendida por religiosos conservadores em apelo à
legítima defesa.
Esses exemplos, ainda que breves, frisam como governos com
tendências autoritárias e conservadoras tendem a promover políticas que
rechaçam minorias e sistematicamente anulam seus direitos. No caso nacional,
em matéria de religiosidade, promove-se a imposição de valores cristãos e
lança-se mão de retóricas hostis que buscam reforçar o não-pertencimento dos
demais. De acordo com Armstrong (2009), embora não seja exclusividade de

78
uma religião, tampouco de religiões monoteístas, o fundamentalismo pode ser
entendido como uma tentativa de certos segmentos em recuperar o domínio do
sagrado no campo da política. Como mencionado anteriormente, embora não
tenham declinado, as religiões perderam função regulatória na vida pública; e,
mesmo na esfera privada, proliferaram novas maneiras de viver a religiosidade,
inclusive através da flexibilização de seus princípios.
Ocorre no Brasil que decisões importantes que impactam a população
são eventualmente tomadas nos espaços de poder a partir de convicções
religiosas e de suas moralidades particulares, apesar da sua
inconstitucionalidade. Essa instrumentalização da religião para servir a
interesses escusos e específicos de setores dominantes apaga uma dimensão
muito mais interessante dessa relação, que é a elaboração de políticas
públicas direcionadas aos religiosos, no sentido de seguir garantindo e fazendo
valer o princípio constitucional de liberdade de crença e de culto, protegendo-
os das violências que porventura sofrem, preservando seu patrimônio cultural,
seja ele material ou imaterial, entre outras.

CULTURA E DIREITOS HUMANOS: POSSIBILIDADES DE AVANÇO DA


INTERFACE RELIGIÃO-POLÍTICAS PÚBLICAS
A temática religiosa perpassa políticas de direitos humanos, que são
aquelas que visam, entre outros, a salvaguardar a dignidade humana e reforçar
o respeito à diversidade, relacionando-se ao combate à discriminação e à luta
por uma sociedade mais igualitária – não apenas no que tange à materialidade,
mas às formas de ser e estar no mundo, de desejar e de se expressar. Em
outras palavras, tais políticas garantem o que deveria ser óbvio, mas nem
sempre é: que todos têm direito a ser quem se é. Cumprem, pois, com o
princípio fundamental básico de respeito à pessoa humana, em todas as suas
pluralidades de expressões.
Tal pontuação nos impele à reflexão de que as tentativas de afastar o
religioso da cena pública não apenas são controversas, mas violentas:
religiosos são também atores que compõem a sociedade e, como tal,
movimentam-se, articulam-se e levam ao espaço público suas demandas
atravessadas pelo seu ethos (Burity, 2008).

79
A presença pública do religioso é um fato que já não pode mais ser
ignorado, mas a autoafirmação das minorias religiosas a partir das lógicas da
cidadania e dos direitos humanos é muito recente (Moreira; Burity; Fonseca,
2021). É fato que na esteira da redemocratização e da emergência dos novos
movimentos sociais, surgiram também novos personagens (Sader, 1988) com
demandas particulares de reconhecimento. Entretanto, esses novos
personagens que fulguraram na cena democrática eram preponderantemente
laicos ou secularistas (Burity; Giumbelli, 2020), e pareciam não considerar as
minorias religiosas, que também tinham suas pautas, mas que seguiram não-
contemplados neste cenário de crescente pluralidade.
Tal afastamento do religioso igualmente reverbera no campo da
psicologia: a psicologia é laica e não pode ser pensada e praticada a partir de
convicções religiosas, mas a ética profissional pressupõe o reconhecimento da
espiritualidade e da religiosidade como uma dimensão importante da
experiência humana. Apesar disso, psicólogos e psicólogas ainda tendem a
rechaçar de suas análises qualquer tópico que se relacione à temática
religiosa, muito devido à impregnação de um cientificismo secularista que, não
raro, converte-se em uma postura antirreligiosa, que silencia e afasta o
religioso do campo psi.
Décadas atrás, Martín-Baró (1985/2014) já chamava atenção ao fato de
que, apesar de ter desempenhado papel majoritariamente conservador nos
países que compõem a América Latina, a religião foi uma das principais fontes
de estímulo para que o povo salvadorenho mantivesse acesa a sua luta por
libertação. Consoante o autor, a religião era (é) elemento crucial para a
determinação do ser e do fazer das pessoas; todavia, seguia (segue) sendo
tomada como irrelevante pelos psicólogos latino-americanos.
No Brasil, com a redemocratização e as novas formas de se pensar os
rumos desejados para a sociedade, ampliou-se consideravelmente o campo de
atuação do profissional da psicologia, que emergiu como um profissional capaz
de auxiliar na compreensão e na intervenção sobre as complexas questões
psicossociais enfrentadas pela população. Se muitas vezes ao longo da história
o psicólogo atuou a favor da manutenção de opressões, e não contra elas
como era esperado que fizesse, entende-se que, atuando com políticas
públicas, deveria enfim se dedicar ao rompimento de tais padrões, em prol da

80
promoção da diversidade humana. Porém, ainda não alcançamos um estado
de total reconhecimento da humanidade dos indivíduos e coletividades
(Gesser, 2013) – no que circunscreve o tema aqui abordado, não é incomum
que a psicologia trate a religião e o religioso como um “problema”.
Se tanto enaltecemos a diversidade em nossos saberes e fazeres psi,
por que negligenciamos o religioso? Em uma perspectiva antropológica, a
religião é, também, cultura (Geertz, 1973/2008), já que é possível lê-la como
um sistema cultural. A inserção da religião no amplo campo da cultura confere
a ela maior relevância para a compreensão das sociedades humanas: desde
essa perspectiva, a religião não deve ser vista como um conjunto de crenças e
práticas isoladas, mas como um sistema que desempenha um papel crucial na
construção de significados dentro de uma determinada sociedade. Longe de
ser estanque, a cultura é viva e dinâmica – afinal, o ser humano
constantemente constrói relações com o mundo e tece novas interpretações
sobre a realidade. Logo, dado seu caráter dialógico, somos não só produto,
mas também produtores de cultura.
A ideia de que uns têm cultura e outros não e de que é possível levar
cultura a alguém que não a tem, é uma noção pautada no evolucionismo social,
imbuída de uma lógica colonial que parte do pressuposto de que existiriam
culturas inferiores e superiores, primitivas e evoluídas. Diferentemente, propõe-
se olhar a cultura como recurso político, sendo as políticas culturais voltadas
para a valorização de grupos específicos, definidos ao redor de suas
identidades: negros, indígenas, quilombolas, grupos religiosos – compreende-
se que a cultura e suas políticas passam pela proteção de todos os aspectos
de suas existências, sejam esses materiais, como objetos, artefatos,
construções; ou imateriais, quando relacionados aos seus costumes, suas
formas de vida.
No que diz respeito à cultura material, Rubino (2011) pontua que a
histórica preservação das igrejas católicas e a destruição dos terreiros é um
indicativo de quais grupos e narrativas são entendidos como importantes,
representativos e legítimos, e quais não – pela materialidade do patrimônio,
têm-se uma noção do valor atribuído àquelas comunidades. Segundo Ferreira
e Santos (2018), a inserção da proteção e preservação do patrimônio das
religiões afro-brasileiras na agenda governamental é uma forma de valorizar

81
esses povos enquanto sujeitos, rompendo com a desumanização que sobre
eles incide.
Os adeptos de religiões de matriz africana têm apontado o descaso
histórico por eles sofrido, bem como têm reivindicado o devido reconhecimento
de que fazem parte da formação cultural-religiosa nacional. Algo semelhante
vem sendo apontado por pesquisadores de Islã no Brasil, que têm destacado
que as primeiras comunidades muçulmanas no país foram organizadas pelos
malês, muçulmanos africanos escravizados – fato pouco debatido no contexto
nacional. A luta pela afirmação da identidade, de reconhecimento e visibilidade
de existência, é, por si só, política.
Há ainda de se pontuar como a religião pode ser usada pelo Estado
contra o ser religioso. Em nome da defesa da laicidade, da democracia e dos
próprios direitos humanos, age-se, paradoxalmente, desrespeitosa e
violentamente sobre o humano religioso, como vemos acontecer no caso da
proibição da vestimenta religiosa das mulheres muçulmanas em espaços
públicos em países como a França, que destilam islamofobia em nome da
laicidade e de uma suposta segurança pública. A proibição do uso de
vestimentas religiosas em espaços públicos fere as normas internacionais de
direitos humanos, pois restringe a vivência, experiência e expressão religiosa.
Além disso, proibir a vestimenta dessas pessoas é uma tentativa de interditar a
presença destes religiosos nos espaços públicos, o que gera impactos sobre o
seu acesso à educação, ao sistema de saúde, entre outros. No Brasil,
discussões semelhantes foram feitas para garantir aos religiosos o uso de suas
vestimentas e símbolos em documentos oficiais e em concursos públicos, por
exemplo – itens religiosos como guias, quipás, turbantes e véus já foram
vedados, gerando discriminação e prejuízos concretos para os religiosos que
deles faziam uso nessas circunstâncias.
Portanto, a intersecção entre religião e políticas públicas nos leva a
adentrar outros terrenos para além da religião em si: o da educação, que
abarca, por exemplo, as discussões sobre a obrigatoriedade ou não do ensino
religioso nas escolas, bem como o questionamento acerca de sua pluralidade –
sabe-se que o ensino religioso costuma se limitar ao ensino do catolicismo, e
não à compreensão e promoção da diversidade religiosa no Brasil (Giumbelli,
2008); o da saúde, que envolve a promoção de saúde junto a grupos religiosos

82
e a oferta de um cuidado culturalmente sensível; o da segurança pública, no
que tange à proteção da integridade dos religiosos e dos templos, entre outras.
Para além da urgência de buscar caminhos para superar o conservadorismo,
os ataques à democracia e a imposição de visões de mundo homogeneizantes
e totalitárias, a análise crítica da relação entre religião e políticas públicas
permite conjecturar novas articulações, dinâmicas e possibilidades do religioso
na esfera do fortalecimento da cidadania e dos direitos humanos (Natividade;
Vaggione; Vital da Cunha, 2023).
Por fim, para que essas possibilidades aqui elencadas se efetivem, é
necessário investirmos em pesquisas que produzam dados na área, para que
possam orientar a elaboração dessas e outras novas políticas públicas. Ainda
não é célere a compilação de dados sobre a intolerância religiosa no Brasil,
mas os números do Disque 100, canal federal para recebimento de denúncias
de violações de direitos humanos, indicam um expressivo aumento de registros
relacionados a este tópico nos últimos anos (Brasil, 2023b).
Recentemente, o estudo que investigou a islamofobia no Brasil (Barbosa
et al., 2022), produzido pelo Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e
Árabes (GRACIAS-FFCLRP/USP), embasou as discussões que inseriram o
combate à islamofobia como um dos pontos realçados no Relatório de
recomendações para o enfrentamento ao discurso de ódio e ao extremismo no
Brasil (Brasil, 2023c). Em tempos de notável crescimento de atos de
discriminação contra grupos religiosos minoritários no país, o referido
documento chama a atenção para a intolerância, o ódio e a violência contra as
comunidades e pessoas religiosas, que têm acontecido destacadamente contra
os praticantes de religiões de matriz africana, mas que também “atinge
religiosidades indígenas, cigana e originárias de imigrantes e convertidos,
como muçulmanos (islamofobia) e judeus (antissemitismo)”, assim como
ocasionalmente aqueles declarados como “sem religião”, ateus ou agnósticos
(Brasil, 2023c, p. 30).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A relação entre religião e políticas públicas no Brasil é complexa,
multifacetada e desafiadora, e influencia diversos aspectos da vida social e
política do país.

83
De forma geral, percebe-se dois fluxos distintos: por um lado, um
movimento conservador que faz com que a religião conduza as pautas e a
formulação das políticas públicas; por outro, a necessidade de que políticas
públicas sejam elaboradas para a proteção das pessoas religiosas,
promovendo a efetivação de seus direitos constitucionais.
Vale frisar que laicidade não é sinônimo de antirreligiosidade: justamente
a primeira é que deveria garantir o respeito a todos e a todas as pertenças
religiosas, inclusive a sua ausência. Em uma sociedade democrática saudável,
todo e qualquer cidadão é estimulado à participação social e política,
independentemente de suas pertenças. Assim, também os religiosos têm o
direito de se fazerem presentes nos espaços públicos, obtendo visibilidade e
debatendo amplamente as questões específicas que lhes acometem.
No entanto, em hipótese alguma pode-se permitir que valores religiosos
ditem o bem comum, como temos percebido que acontece no país quando
grupos religiosos manipulam a agenda política com base em suas próprias
convicções, em uma clara tentativa de impor sua visão de mundo sobre os
demais – formular ou barrar certas políticas públicas referenciados por
preceitos religiosos é inconstitucional.
Talvez a interface entre religião e políticas públicas seja uma das que
mais evidencie e materialize as contradições de interesses presentes em nossa
sociedade. Apesar dessas inegáveis tensões e disputas, as possibilidades aqui
elencadas demonstram que há espaço para que essa relação se desenvolva
de forma mais criativa e disruptiva do que se supõe.
Nesse âmbito, o profissional da psicologia tem muito a somar. É preciso
desenvolvermos uma psicologia social que seja mais sensível às questões de
cunho cultural-religioso, que verdadeiramente abarque e contemple a todos e
todas, inclusive esses segmentos religiosos negligenciados – psicólogos e
psicólogas podem e devem desempenhar um papel mais incisivo no
desenvolvimento desta agenda, especialmente na colaboração com as
estratégias de enfrentamento à intolerância religiosa, uma das problemáticas
mais urgentes dentro deste escopo.
Já não faz sentido seguir supondo que a religião só interessa aos seus
adeptos – é preciso criar as condições necessárias para que todos possam
participar social e politicamente, sem imposições, exclusividades ou privilégios.

84
É certo que a busca por este ponto de equilíbrio é um desafio, mas o nosso
compromisso ético-político nos incita a nesse caminho perseverar.

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87
ENTRE O LEGAL E O REAL: POLÍTICAS
DE (DES)PROTEÇÃO A VÍTIMAS E
TESTEMUNHAS DE CRIMES NO BRASIL

Aline Daniele Hoepers1; Danielle Verde dos Santos2

1
Pós-doutoranda, doutora, mestra e graduada em Psicologia. Psicóloga (Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo). Docente do Curso de Psicologia (Toledo Prudente Centro Universitário);
2
Graduada em Psicologia (Faculdade Maurício de Nassau de São Luís). Pós-graduada em
Psicologia Jurídica com Ênfase em Perícia Psicologia (Instituto de Pós-Graduação e
Graduação). Pós-graduanda em Avaliação Psicológica (Instituto Pangeia).

RESUMO:
As políticas públicas de proteção às vítimas e testemunhas ameaçadas
dimensionam-se como campo recente no cenário brasileiro e sobre o qual há
ainda incipiente produção científica, seja no âmbito da Psicologia ou mesmo
em outras áreas do conhecimento. No intento de colaborar com o
aprofundamento das discussões sobre o tema, este capítulo objetiva colocar
em relevo reflexões e tensionamentos sobre o surgimento e o processo de
implementação do Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas
Ameaçadas (PROVITA) e do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes
Ameaçados de Morte (PPCAAM), acentuando contradições entre o que
preconizam as legislações e o que se operacionaliza na realidade concreta. A
reflexão sobre a maneira como o Estado têm (ou não) efetivado seu papel na
proteção das pessoas vítimas e/ou testemunhas de crimes nos leva a um
conjunto de questionamentos, o que evidencia a necessidade de avanços rumo
à concretização de políticas de fato integradas e protetivas.
Palavras-chave: Políticas públicas; Proteção; Vítimas; Testemunhas.

INTRODUÇÃO
A temática da proteção e assistência a vítimas e testemunhas de crimes
envolve (ou melhor, deveria envolver) a mobilização de diferentes atores
sociais e órgãos públicos, como educação, segurança pública, direitos
humanos, saúde, sistema de justiça e sociedade civil.
Na realidade brasileira, a Lei nº 9.807/1999, regulamentada pelo Decreto
nº 3.518/2000, estabelece o Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas
Ameaçadas (PROVITA) e traz os direcionamentos para a sua implementação e
para a efetivação da proteção dessa população específica. Ainda, o Decreto nº

88
6.231/2007 (revogado) substituído posteriormente pelo Decreto nº 9.579/2018
(particularmente em seus artigos 109 a 125) institui o Programa de Proteção a
Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), criado desde 2003.
Compreender como o Estado, personificado por diferentes órgãos e
agentes sociais, promove articulações para o acesso e a participação nesses
programas é necessário para que pessoas que presenciaram crimes se sintam
amparadas (não apenas na letra da lei) para relatar o que vivenciaram,
confiando que haverá um Estado que lhe possibilitará mecanismos de
proteção. Todavia, é necessário também problematizar o papel do Estado,
ainda mais quando ele próprio, por meio dos seus agentes, é o perpetrador de
violências11, ameaças e execuções de testemunhas.
Em meio à complexidade que envolve esse tema, este capítulo visa
discutir criticamente o surgimento e o processo de implementação do PROVITA
e do PPCAAM, acentuando os tensionamentos presentes no plano concreto, o
que demandará uma articulação com os parâmetros advindos do plano legal. A
proposta se volta, fundamentalmente, à reflexão sobre as maneiras como o
Estado tem (ou não) efetivado o papel de proteção às pessoas vítimas e/ou
testemunhas de crimes.
Para isso, do ponto de vista teórico-metodológico, posicionamo-nos a
partir das contribuições da Psicologia Social Jurídica.
O olhar social crítico e também as preocupações derivadas de uma
Psicologia Social Comunitária ganham destaque em uma Psicologia
Social Jurídica, onde intervenções sociais diversas que derivam ou
dialogam com o campo jurídico são realizadas em instituições de
assistência social, entre outros órgãos públicos destinados a políticas
públicas e de segurança pública. Além disso, a criação de leis e
políticas públicas em uma atuação direta com o poder legislativo,
para determinadas áreas e necessidades da população passam a ter
o olhar psi como relevante e importante na discussão. Também são
campos que epistemes da Psicologia Social ganham evidência em
interface com o Direito (Beiras, 2020, p. 9-10).

A partir dessa perspectiva, realizamos, inicialmente, análise documental


junto às normativas que permeiam o surgimento destas políticas públicas –
PROVITA e PPCAAM – e, em seguida, discussão teórico-crítica quanto ao

11
Entre tantas possíveis ilustrações sobre a ação do Estado como violador, podemos apontar
situações retratadas em reportagens com estas, que demonstram como ele, em variadas
circunstâncias, apresenta-se mais como agente perpetrador de violências do que como
protetor: “O desfecho de cinco casos emblemáticos de mortos pela polícia no Brasil” (Gragnani,
10 jun. 2020) e “Testemunha-chave de assassinato é um dos mortos da Maré” (Fantti, 27 set.
2022).

89
lugar contraditório ocupado pelas pessoas que se inserem nos mencionados
programas.

PROVITA E PPCAAM: O QUE EXISTE PARA ALÉM DA LETRA DA LEI?


O surgimento do PROVITA tem seu início, em 1996, na atuação da
sociedade civil organizada de Pernambuco, por meio da Organização Não
Governamental Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares
(GAJOP), na busca por proteção contra crimes violentos e grupos de
extermínio, nos quais o envolvimento de forças policiais era alto, ou seja, a
proteção às vítimas surge para protegê-las do próprio Estado.
Anos depois, foi instituída como política pública federal, por meio da Lei
Federal nº 9.807/1999 e regulamentada pelo Decreto nº 3.518/2000. Fato
intrigante como nos destacam Barbosa e Lang (2017):
O Programa de Proteção surgiu como uma resposta à necessidade
de preservação das testemunhas de homicídios cometidos por
policiais, grupos de extermínio ou crime organizado; hoje colabora
com a apuração de diversos outros crimes que envolvem tortura,
trabalho escravo, tráfico de armas e seres humanos, narcotráfico,
corrupção e crimes eleitorais (p. 8).

De acordo com dados disponíveis no site oficial do governo federal


(Brasil, 2023a), existem, atualmente, Programas Estaduais em funcionamento
em 14 estados (Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Pará, Paraíba, Maranhão,
Santa Catarina, Espírito Santo, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro, Rio
Grande do Sul e São Paulo), que firmaram convênios com o Ministério dos
Direitos Humanos e da Cidadania para viabilizar a transferência de recursos,
enquanto as demais unidades da federação são atendidas pelo Programa
Federal. Destaca-se que, caso exista o programa estadual, ele tem
competência para todos os casos, ainda que a vítima/testemunha a proteger
seja de um processo de competência da Justiça Federal. Desse modo, nota-se
que o programa federal possui um caráter residual, ou seja, apenas atua na
falta do estabelecimento de programas estaduais.
Ainda consoante com a referida fonte, o pedido de proteção pode ser
feito pela própria pessoa interessada, por representante do Ministério Público,
por autoridade policial que conduz a investigação criminal, por juiz/a
competente para a instrução do processo criminal ou por órgãos públicos e
entidades com atribuições de defesa dos direitos humanos. Ademais, um dos

90
requisitos preliminares para aceitação do caso é o parecer do Ministério
Público quanto à condição da pessoa solicitante no processo judicial: a ameaça
ou coação sofrida deve ser grave e o que a vítima/testemunha tem a relatar
precisa ter um efetivo potencial de colaboração com a investigação.
De acordo com a lei nº 9.807/1999, art. 2º:
Art. 2º A proteção concedida pelos programas e as medidas dela
decorrentes levarão em conta a gravidade da coação ou da ameaça à
integridade física ou psicológica, a dificuldade de preveni-las ou
reprimi-las pelos meios convencionais e a sua importância para a
produção da prova.
§ 2º Estão excluídos da proteção os indivíduos cuja personalidade ou
conduta seja incompatível com as restrições de comportamento
exigidas pelo programa, os condenados que estejam cumprindo pena
e os indiciados ou acusados sob prisão cautelar em qualquer de suas
modalidades. Tal exclusão não trará prejuízo a eventual prestação de
medidas de preservação da integridade física desses indivíduos por
parte dos órgãos de segurança pública.
§ 3º O ingresso no programa, as restrições de segurança e demais
medidas por ele adotadas terão sempre a anuência da pessoa
protegida, ou de seu representante legal.
§ 4º Após ingressar no programa, o protegido ficará obrigado ao
cumprimento das normas por ele prescritas.
§ 5º As medidas e providências relacionadas com os programas
serão adotadas, executadas e mantidas em sigilo pelos protegidos e
pelos agentes envolvidos em sua execução. (Brasil, 1999, Art. 2º).

O PROVITA federal é constituído por uma Rede Voluntária de Proteção,


que envolve: um conjunto de entidades da sociedade civil, que promove a
inserção social das/os usuárias/os; pelo Órgão Executor, responsável por
promover a articulação da rede solidária de proteção e a contratação dos
profissionais da equipe técnica, a qual, por sua vez, realiza o acompanhamento
psicossocial e jurídico das/os usuárias/os e, também, apresenta dados e
análises ao Conselho Deliberativo, de modo a subsidiar a tomada de decisão; e
pelo Conselho Deliberativo, que é a instância decisória superior, que decide
sobre o ingresso e exclusão de usuárias/os na rede de proteção e delibera
acerca de outras providências de caráter geral (Brasil, 1999, 2000, 2023a).
Após a solicitação, o caso passa por uma triagem realizada por equipe
técnica interdisciplinar, que fará a avaliação da situação, explicará as regras de
proteção do programa, solicitará a anuência da pessoa solicitante e avaliará a
possibilidade da inserção na rede, submetendo o caso ao Conselho
Deliberativo competente para decisão final. O prazo legal para permanência no
Programa é de dois anos, que pode ser estendido em razão da manutenção do
risco ou da continuidade da colaboração com a justiça (Brasil, 2023a).

91
Ao se analisar ambas as normativas que versam sobre o tema, isto é, a
Lei nº 9.807/1999 e o Decreto nº 3.518/2000, nota-se a previsão de um
conjunto de estratégias, que informam evitar riscos à integridade física e/ou
psicológica das pessoas vítimas e/ou testemunhas de violências: segurança na
residência, transferência de residência ou acomodação provisória em local
sigiloso; segurança nos deslocamentos; auxílio financeiro mensal; suspensão
temporária de atividades laborais; preservação de imagens e dados pessoais;
assistência jurídica, médica e psicológica; apoio no cumprimento de atividades
civis ou administrativas que demandem comparecimento pessoal; sigilo em
relação aos atos praticados em virtude da proteção concedida; e mudança de
nome completo, em situações excepcionais.
Por sua vez, o PPCAAM foi criado em 2003 e instituído pelo Decreto nº
6.231/2007, substituído posteriormente pelo Decreto nº 9.579/2018 (em seus
artigos 109 a 125, particularmente). Consiste em uma política de proteção à
vida de crianças e adolescentes que estejam em risco/ameaça iminente de
morte, assim como, em certos casos, de seus familiares. Sobre isso, a
normativa expõe que:
O PPCAAM tem por finalidade proteger, em conformidade com o
disposto na Lei nº 8.069, de 1990 - Estatuto da Criança e do
Adolescente, crianças e adolescentes expostos a grave e iminente
ameaça de morte, quando esgotados os meios convencionais, por
meio da prevenção ou da repressão da ameaça.
§ 1º As ações do PPCAAM poderão ser estendidas a jovens com até
vinte e um anos, se egressos do sistema socioeducativo.
§ 2º A proteção poderá ser estendida aos pais ou responsáveis, ao
cônjuge ou companheiro, aos ascendentes, descendentes,
dependentes, colaterais e aos que tenham, comprovadamente,
convivência habitual com o ameaçado, a fim de preservar a
convivência familiar.
§ 3º Não haverá necessidade do esgotamento dos meios
convencionais referidos no caput na hipótese de ineficácia patente do
emprego desses meios na prevenção ou na repressão da ameaça.
(Brasil, 2018, Art. 11).

Destaca-se que a sua criação se dá de modo semelhante ao PROVITA,


pela necessidade de proteção de ameaças advindas dos próprios operadores
do Estado:
Em 23 de julho de 1993, 6 adolescentes que dormiam nas
imediações da Igreja da Candelária foram assassinados a tiros por
policiais pagos para promover uma “limpeza” no centro da cidade. Os
adolescentes tinham entre 11 e 17 anos. Um dos sobreviventes ficou
conhecido nacionalmente 9 anos mais tarde quando, aos 22 anos,
após diversas passagens pelo sistema socioeducativo e prisional e
pouco amparo da rede de proteção social, sequestrou um ônibus da

92
linha 174 no Rio de Janeiro, episódio em que perdeu a vida pelas
mãos dos policiais responsáveis por sua custódia. Sua vida virou
roteiro de cinema duas vezes, nos longas “Ônibus 174”, de José
Padilha, e “Última Parada 174”, de Bruno Barreto, trazendo à tona
uma história biográfica, mas comum a muitas crianças e adolescentes
brasileiros (Brasil, 2010, p. 44).

Informações disponíveis no site oficial do governo federal (Brasil, 2023b)


apontam que o PPCAAM é executado em diferentes estados, por meio de
convênios entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República, Governos Estaduais e Organizações Não Governamentais. O
Programa está presente em 18 Unidades Federativas: Acre, Alagoas,
Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Minas
Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do
Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, além de atuar junto aos
casos de ameaça de morte oriundos dos estados onde o Programa não está
implantado localmente (Amapá, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,
Piauí, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins). Em relação
aos resultados alcançados, desde a sua implantação, de 2003 até dezembro
de 2022, o PPCAAM incluiu e protegeu 5.173 crianças e adolescentes e 8.444
familiares, totalizando 13.617 pessoas protegidas.
Antes do estabelecimento do PPCCAM, crianças e adolescentes eram
inseridas no PROVITA em razão da sua participação em processos judiciais.
Entretanto, tal inserção se mostrou incompatível com as especificidades que
envolvem a situação peculiar desse público, necessitando de um Programa
próprio orientado pela doutrina da proteção integral, na garantia do respeito à
sua condição de sujeitos em desenvolvimento e do melhor interesse
infantojuvenil, como versa o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil,
1990).
Nessa direção, segundo o Decreto (Brasil, 2018) que o regulamenta, as
medidas previstas são: inserção das crianças e adolescentes protegidos em
programas sociais com vista à sua proteção integral; transferência de
residência ou de acomodação em ambiente compatível com a proteção;
assistência social, jurídica, psicológica, pedagógica e financeira, conforme
Plano Individual de Acompanhamento elaborado para cada situação; garantia
de acesso seguro a políticas públicas de saúde, educação, assistência social,
transporte, habitação, esporte, lazer, cultura e outras; apoio, quando

93
necessário, para o comprimento de obrigações administrativas e civis que
demandem comparecimento presencial; segurança em deslocamentos;
preservação da identidade e da imagem da criança ou da/o adolescente
protegida/o; e manutenção no serviço de acolhimento institucional existente e
disponível.
Conforme a mesma fonte, a depender da gravidade e das características
da ameaça e em casos excepcionais, profissionais do órgão ou da entidade
pública executora poderão requerer à autoridade judicial competente a
alteração do nome completo da criança ou da/o adolescente protegida/o e de
seus familiares, se necessário.
Diferentemente do que ocorre no PROVITA, a inclusão da criança ou
da/o adolescente ao PPCAAM não é condicionada à colaboração em processo
judicial ou inquérito policial. Depende, todavia, da existência de situação de
vulnerabilidade social (não limitada à vulnerabilidade econômica, podendo
estar relacionada a outras situações de privação de acesso a direitos e/ou
fragilização dos vínculos) e de que outras tentativas e/ou formas de intervenção
não sejam possíveis para garantir a proteção. Além da voluntariedade de
adesão ao Programa, pois é necessária a concordância da pessoa usuária
para que ocorra a inclusão, é exigida a autorização de seu representante legal
e, na ausência ou impossibilidade diante das situações de incompatibilidade de
interesses entre a criança/adolescente e seus genitores ou responsáveis
legais, compete à autoridade judicial decidir pela inclusão (Brasil, 2018).
Ademais, segundo a referida normativa, a proteção oferecida terá a
duração máxima de um ano e poderá ser prorrogada, em circunstâncias
excepcionais, caso os motivos que justificaram o seu deferimento perdurarem.
Nesse sentido, destaca-se que tanto as crianças/adolescentes quanto os
familiares precisam cumprir as regras impostas para a sua proteção, sob o
risco de desligamento do Programa.
Após o ingresso no PPCAAM, os protegidos e os seus familiares
ficarão obrigados a cumprir as regras nele prescritas, sob pena de
desligamento. Parágrafo único. As ações e as providências
relacionadas com a execução do PPCAAM deverão ser mantidas em
sigilo pelos protegidos, sob pena de desligamento (Brasil, 2018, Art.
122).

Conforme a norma, as autoridades que podem solicitar a inclusão de


crianças e adolescentes no PPCAAM são: o Conselho Tutelar; o/a Juiz/a

94
competente; o Ministério Público; e a Defensoria Pública. Ao se analisar o
mencionado Decreto, é perceptível que a Autoridade Policial não consta no rol
competente para tal solicitação de inclusão, e que o Ministério Público e o
Poder Judiciário não foram integrados como órgãos permanentes na estrutura
do PPCAAM, foram mencionados como órgãos que podem ser convidados a
participar das reuniões do Conselho Gestor do Programa, mas são legitimados,
assim como o Conselho Tutelar, a solicitar inclusão de ameaçados.
As informações apresentadas nesta seção indicam que, ainda que
tenhamos, na realidade brasileira, a previsão legal de programas executores de
políticas públicas de proteção a pessoas vítimas e testemunhas ameaçadas,
como é o caso do PROVITA e PPCAAM, trata-se ainda de recursos pouco
capitalizados no território nacional. Além disso, é notável uma ênfase no
aspecto normativo-prescritivo de gestão da vida das pessoas neles inseridas
em detrimento de uma perspectiva que factualmente preconize a proteção
integral delas.
Esse dado coloca em relevo o fato de que, para além do disposto na
letra da lei, manifesta-se a necessidade da implementação de ações
concretamente protetivas, alicerçadas fundamentalmente na integração dos
citados programas com a rede intersetorial e familiar-comunitária.

A VÍTIMA/TESTEMUNHA EM UM CAMPO DE TENSÕES E CONTRADIÇÕES


Refletir sobre o lugar que a vítima/testemunha ocupa no PROVITA e no
PPCAAM convoca-nos a complexificar o nosso olhar para que possamos
perceber as tensões e as contradições existentes entre o que as legislações
prescrevem e os possíveis impactos nas vivências das pessoas inseridas
nesses Programas.
Desse modo, lançamos os seguintes questionamentos: quais as
possíveis consequências de estar inserido/a, ou não, nesses Programas? Os
Programas, em si, apenas protegem (se é que protegem, de fato) ou podem,
também, ser mais uma ferramenta de violação ou de restrição de direitos? Os
Programas existem realmente para proteger a testemunha ou seu objetivo
maior é a extração de informações desta possível “única” fonte que restou para
solucionar uma investigação? Quais vozes são audíveis e para que elas têm
servido?

95
Essas inquietações não nos levam a respostas unívocas e prontas, mas
a algumas possíveis e pertinentes reflexões, como a que segue:
Esta é a dialética do benefício: é melhor para o beneficente,
porque dele não precisa; pode ser péssimo para o beneficiário,
porque dele passa a depender. E este é o drama da
assistência: fabrica beneficiários, ou, pelo menos, confirma a
situação de beneficiário. Na dialética contrária e complexa
entre assistência e emancipação, esta começa a surgir quando
se consegue dispensar a ajuda (Demo, 2000, p. 26).

Se, por um lado, vítimas/testemunhas ameaçadas possam necessitar,


em um determinado momento, de estratégias protetivas específicas ofertadas
pelo Estado – as quais, a propósito, deveriam ser efetivas nesse objetivo –, por
outro lado, é esperado que a rede de atendimento intersetorial, alinhada à sua
rede familiar-comunitária, oferte progressivamente o despendimento daquela
necessidade, que figurou em um cenário peculiar, a fim de que a pessoa possa
exercitar sua autonomia nos mais diversos aspectos de sua vida. Dadas as
normas estabelecidas pelos referidos Programas, podemos compreender que
sua liberdade, em maior ou menor grau, estará sendo limitada. Logo, pensar
em um projeto de emancipação sem exercício de liberdade e autonomia é
inconcebível.
Outro ponto a se destacar é que, devido às peculiaridades já citadas
sobre os Programas, não é qualquer caso de ameaça que ingressará no
PROVITA ou no PPCAAM, pois eles se estabelecem como a última medida
para garantir a integridade física e psicológica das pessoas ameaçadas. Estar
sob proteção estatal tem seus impactos sobre a rotina, a subjetividade e o
senso de autonomia da pessoa, pois, como ressaltado, há regras (por vezes
extremamente restritivas) que precisam ser cumpridas e o seu não
cumprimento pode culminar no desligamento dos Programas.
Assim, aquela pessoa que outrora foi útil ao Estado e usufruía de sua
“proteção” passa a estar à mercê de sua própria sorte, tendo que lidar com os
impactos do que testemunhou, das mudanças na rotina, das alterações
advindas em face das rupturas vividas enquanto pertencia ao Programa e,
agora, dos impactos de não mais ter as medidas de proteção antes recebidas.
Desse modo, o Estado que antes falhou em solucionar a investigação por seus
meios próprios, falha mais uma vez ao não conseguir efetivar a proteção
prevista, restando, novamente, para a vítima/testemunha ocupar um espaço de

96
tensões e contradições, que a coloca em outras situações de vulnerabilidades.
Nessa perspectiva, Leão (2010) já nos alertou que:
É importante compreender o lugar da testemunha como um coletivo
no sentido de que ela (a testemunha) é um reflexo de uma sociedade
violenta que, através da testemunha, pode falar. A figura da
testemunha é reveladora de problemas de ordem estrutural do Estado
na medida em que a sua participação no processo só é necessária
porque houve uma falha na promoção da segurança (p. 17).

Fica evidente o grau de vulnerabilidade e impotência dessas pessoas


perante sua própria vida, tendo em vista que se torna indispensável a ruptura
(nem sempre voluntária e ainda que temporária) com seus referenciais (sociais,
comunitários, profissionais, familiares e outros) para ingressar em um
Programa que, por mais que seja explicado pela equipe interdisciplinar e se
configure como medida excepcional na complexa situação em que se
encontram, significa algo absolutamente desconhecido, uma vez que sabem
muito pouco a respeito de seu futuro. Assim, a “lei do silêncio”, que outrora
regia sua vida, será substituída pela “lei do sigilo”. Além disso, a dita proteção
terá fim, seja por descumprimento de regras, seja pelo decurso do tempo
permitido.
Diante desse cenário de instabilidades e tensões, faz-se imprescindível
que a equipe técnica não reduza a sua atuação à confirmação – via reprodução
de discursos e práticas – da posição unidimensional de vítima da pessoa
usuária do Programa. Não a reduzir à posição passiva de vítima não significa
não considerar sua situação de complexa vulnerabilidade, mas trabalhar
colaborativamente com ela em direção ao fortalecimento de suas
potencialidades, o que envolve resgatar e/ou criar estratégias de proteção e
autonomia, uma vez que:
Somente com a participação efetiva do usuário, se torna possível o
processo de implicação, de envolvimento; se, à testemunha, não é
permitido minimamente colaborar no processo decisório que abarca
sua própria vida, dificilmente haverá alguma assunção da
responsabilidade. Isso significa trabalhar a cidadania e a autonomia,
contribuindo para que o usuário saia de sua condição passiva de
vítima, pois, caso contrário, se a equipe não permite a mínima
participação do usuário, fatalmente, a testemunha assumirá a
condição de beneficiário, sujeito de benesses que – no Programa –
tem a reparação por aquilo que supostamente perdeu e entende que
deve ser ressarcido (Rosato, 2005, p. 650).

Consideramos importante salientar, ainda, que esse trabalho não se


efetivará em uma perspectiva protetiva-preventiva, caso se mantenha isolado

97
do contexto social. Isso significa que as estratégias deverão incluir, de acordo
com as especificidades de cada caso e por meio de estratégias compatíveis
com cada realidade concreta, a rede de apoio intersetorial e familiar-
comunitária, até porque não há como pensar em uma ação protetiva que
promova o rompimento de vínculos e o desenraizamento dos sujeitos de seus
territórios.
Diante das discussões tecidas, é possível considerar que Programas
como o PROVITA e o PPCAAM podem se configurar como mecanismos
significativos de proteção e garantia de direitos humanos, que visam
resguardar a vida de vítimas/testemunhas que estejam sendo ameaçadas,
ainda que com o ônus de perda substancial de sua liberdade e autonomia.
Ademais, consideramos que eles se apresentam como relevantes ferramentas
no fortalecimento da Política de Segurança Pública, uma vez que buscam não
somente a punição do crime, mas a proteção daqueles que o presenciaram e
cujo depoimento é essencial para a resolução da investigação.
Todavia, faz-se necessário que sua eficácia seja analisada para além
dos dados estatísticos de número de “vidas preservadas”, como já nos alertou
Leão (2010), envolvendo, também, informação acerca da minimização dos
efeitos adversos advindos da vivência do que se foi testemunhado e do suporte
social-profissional recebido. É indispensável, ainda, segundo a autora,
problematizar o lugar da vítima/testemunha nestas políticas públicas, ao passo
que as questões subjetivas de quem está inserido nos Programas nem sempre
são priorizadas por quem os executa.
Nesse sentido, é impreterível questionar a quem o Programa realmente
serve e protege: a vítima/testemunha ou a prova que pode ser obtida por meio
dela? E como a testemunha é vista: como um sujeito de direito à proteção
integral em face do que viveu e do risco adjacente ou um sujeito detentor de
uma “verdade” sobre o que presenciou (ou seja, um crime), a qual será útil ao
Estado/Justiça e que, por isso, essa vida precisa ser resguardada, por um
tempo determinado, dentro de regras e padrões específicos de conduta?
As legislações abordadas na seção anterior, acentuam, a propósito, que
para ingressar nos Programas, a vítima/testemunha necessita demonstrar
“personalidade e conduta compatíveis” com as regras e limitações que lhe
serão impostas, sendo necessário que haja uma (re)adequação da vida e da

98
rotina, de modo que seja possível garantir a proteção almejada, a sua
segurança, de profissionais da equipe que acompanha, das pessoas que
compõem a Rede Voluntária de Proteção e, até mesmo, a perpetuação dos
programas. Há, pois, a configuração de um campo complexo em que sentidos
relativos à liberdade, à proteção e à segurança devem ser, incessantemente,
refletidos com o devido cuidado e a devida sensibilidade ética, pois:
Tal qual as demais políticas públicas, as quais são de destino a
garantia de direitos da população, vemos esta regulação em termos
biopolíticos operar também no funcionamento dos programas de
proteção, uma vez que sua ação é voltada para a preservação da
vida de uma determinada parcela da população. Todavia, com o
advento dessa nova tecnologia de governo da população, pautada na
promoção da vida enquanto suas características biológicas, o Estado
precisa delimitar seu foco, entre quais indivíduos devem viver e quais
se pode deixar morrer (Alves; Guareschi, 2020, p. 168).

Esse e outros aspectos abordados ao longo do capítulo explicitam a


multidimensionalidade que representa a atuação da Psicologia, em interface
com outras áreas, em Programas com este, bem como colocam em relevo o
necessário posicionamento ético e crítico diante das demandas com as quais
temos nos deparado nestes espaços.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No transcurso da pesquisa, ao buscar dialogar com autoras e autores
que abordam o campo temático, para além das legislações disponíveis,
percebemos que a literatura científica sobre o assunto é escassa, tanto no
campo amplo das Ciências Humanas e Sociais quanto na dimensão específica
em que se insere a produção científica em Psicologia. Alves e Guareschi
(2020, p. 154) já haviam ressaltado que “no que tange ao campo da Psicologia
de um modo geral e, em particular, à Psicologia Social, pouco se tem produzido
acerca da política de proteção a testemunhas”.
Os conteúdos abordados ao longo do capítulo revelaram, no conjunto, a
complexidade do tema e a necessidade de que novas pesquisas (tanto teóricas
quanto de campo) sejam realizadas, a fim de aprofundar as pautas que foram
trazidas no bojo de nossas discussões, em especial a distância ainda existente
entre o que é prescrito nas normativas e o que é efetivado na dimensão ético-
relacional em que acontecem programas como o PROVITA e o PPCAAM, em
termos de ações cotidianas integradas e concretamente protetivas.

99
O incremento de pesquisas sobre estes programas será importante tanto
para o aprofundamento dos parâmetros teóricos quanto a estas políticas
públicas, como também poderá servir de instrumento de levantamento de
dados qualiquantitativos a respeito dos impactos que vêm sendo produzidos,
servindo, então, como importante ferramenta de avaliação de seus resultados.
Ainda, em meio às tramas discursivas tecidas ao longo do capítulo,
evidenciamos a necessidade de um exercício ético-político permanente de
questionamento sobre a finalidade e a aplicabilidade que esses Programas
vêm assumindo, ao passo que parece haver uma seletividade, a partir de
critérios bastante específicos trazidos nas normativas. Algumas
problematizações devem, pois, nos acompanhar: Quais vidas estão sendo
protegidas? Quais vozes podem ser escutadas? Para que(m) realmente
servem esses Programas?
No mais, considerando os Programas em funcionamento, como
argumentou Rosato (2005), as/os psicólogas/os têm como um dos principais
desafios lidar com os impactos subjetivos e intersubjetivos que tais dinâmicas,
ali geradas e gerenciadas, produzem. Convida-nos a refletir sobre a necessária
inventividade, na prática cotidiana, para que a proteção seja, de fato, exercida:
“cabe à equipe conseguir criar o seu próprio processo de singularização para
lidar com essa dinâmica complexa e mutante e não operar somente na
reprodução estanque de procedimentos e rituais burocratizados (p. 654).
Reconhecendo a singularidade de cada caso e apostando na construção
colaborativa com as pessoas usuárias destes programas e suas potenciais
redes de apoio, ansiamos que este cenário de incertezas, de tensões e
contradições possa se dimensionar como campo de (co)produção de saídas
protetivas e libertárias.

REFERÊNCIAS
ALVES, P. N.; GUARESCHI, N. M. F. Protege-RS: Relações entre justiça,
segurança e direitos humanos. In: SOARES, L. C. E. C.; MOREIRA, L. E.
(Orgs.). Psicologia Social na trama do(s) direito(s) e da justiça.
Florianópolis: ABRAPSO Editora, 2020. p. 154-180.

BARBOSA, J. F.; LANG, C. E. Vidas secretadas: notas sobre a perversão no


Programa de Proteção a Testemunhas. Psicologia USP, v. 28, n. 1, p. 5-13,
2017.

100
BEIRAS, A. Prefácio: A Psicologia Jurídica com enfoque social – limites,
possibilidades e ações. In: SOARES, L. C. E. C.; MOREIRA, L. E. (Orgs.).
Psicologia Social na trama do(s) direito(s) e da justiça. Florianópolis:
ABRAPSO Editora, 2020. p. 6-11.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do


Adolescente. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 01 out. 2023.

BRASIL. Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999. Disponível em:


https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9807.htm. Acesso em: 01 out. 2023.

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C%20DE%2011%20DE%20OUTUBRO%20DE%202007.&text=Institui%20o%2
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morte: PPCAAM. Prado, H. A.; Egas, B.; Soares, M. U. (Orgs.). Brasília:
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PROVITA. Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, 2023a (publicado
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por-temas/pessoas-ameacadas-de-morte/acoes-e-programas/programa-de-
protecao-a-vitimas-e-testemunhas-ameacadas-provita. Acesso em: 01 out.
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BRASIL. Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de


Morte (PPCAAM). Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, 2023b
(publicado originalmente em 2021). Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-
br/navegue-por-temas/crianca-e-adolescente/acoes-e-programas/programa-de-
protecao-a-criancas-e-adolescentes-ameacados-de-morte-ppcaam. Acesso
em: 01 out. 2023.

DEMO, P. Educação pelo Avesso: a Assistência como Direito e como


Problema. São Paulo: Cortez, 2000.

101
FANTI, B. Testemunha-chave de assassinato é um dos mortos da Maré. Folha
de São Paulo, 27 set. 2022. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/09/testemunha-chave-de-
assassinato-e-um-dos-mortos-no-complexo-da-mare.shtml. Acesso em: 30 set.
2023.

GRAGNANI, J. O desfecho de cinco casos emblemáticos de mortos pela


polícia no Brasil. BBC News Brasil, 10 jun. 2020. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52985308. Acesso em: 30 set. 2023.

LEÃO, J. N. F. Testemunha de crime, a vítima do acaso: paradoxos do


Programa de Proteção à Testemunha Ameaçada. 159 f. Dissertação (Mestrado
em Sociologia) – Instituto de Ciências Sociais, Programa de Pós Graduação
em Sociologia, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2010.

ROSATO, C. M. A Psicologia no Provita: trajetórias da subjetividade e


cidadania. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 25, n. 4, p. 636-655, 2005.

102
A HERANÇA ESCRAVOCRATA: NOVOS
DELINEAMENTOS DE EXPLORAÇÃO
E VIOLÊNCIA CONTRA
A POPULAÇÃO NEGRA

Carolina Borges Conceição¹; Hannah Raquel Borges Pimenta de Azevedo²

1
Psicóloga pelo Centro Universitário Ages. Pós-graduada em Psicologia Hospitalar pela
Faculdade Focus. Pós-Graduanda em Psicologia Jurídica com ênfase em Perícia Psicológica
pelo Instituto de Pós-graduação e Graduação;
2
Psicóloga pelo Centro Universitário Ages. Pós-graduada em Ciências Sociais
pela Faculdade Focus.

RESUMO:
A história de um país indica quais são as bases de sua constituição. No Brasil,
como grande marco e influente no processo na constituição social, tem-se a
escravidão. Mesmo após anos da Lei que inaugurou seu fim, é possível
perceber que mudaram os meios de exploração e a forma de nomeá-la, mas o
lugar destinado à população negra e o acesso que lhe é concedido precedem
uma lógica racista e de divisão social. O presente trabalho pretende dedicar-se
ao entendimento dessa construção histórica, observando suas heranças e de
que formas elas se manifestam atualmente. Para além disso, é também
interesse do artigo discutir as formas de violência autorizadas pelo Estado que
declaram o extermínio da população negra. Como via possível, nesse cenário
complexo e multifatorial, as estratégias de políticas públicas são apresentadas
e entendidas como caminho necessário e urgente.
Palavras-chave: Violência; Racismo; Herança escravocrata; Políticas públicas.

INTRODUÇÃO
Os vestígios de exploração e genocídio da população negra no Brasil
são refletidos ferozmente até os dias atuais, já que os desdobramentos da
história de um país construído sob o sangue dos corpos que sempre o
sustentou não foram suficientes para que o passado permanecesse como uma
velha lembrança. Apesar dos séculos de luta e resistência, a história acaba
sendo apenas o presente contado sob muitos eufemismos na tentativa de
mascarar a lógica colonial mantenedora das relações de dominação – alteram-
se somente as vias de exploração, o alvo é sempre o mesmo.

103
Desde que o Brasil é Brasil, a existência da população negra é marcada
por políticas de extermínio em massa e silenciamento, o contexto histórico não
só evidencia tais práticas como escancara o interesse da parte privilegiada em
manter a lógica vigente. Não à toa, as recorrentes práticas racistas e genocidas
possuem o aval do Estado e da sociedade, que não questiona ou se mobiliza
diante das atrocidades cometidas. Facilmente as vítimas são culpabilizadas
independentemente do contexto em que as violências ocorrem, sem que isso
provoque algum tipo de comoção social (Franco; Silva, 2017; Gomes; Laborne,
2018).
Objetiva-se, com este trabalho, construir diálogos entre a psicologia e as
políticas públicas, a partir de um viés decolonial, como via de enfrentamento
aos novos meios de exploração e extermínio da população negra. As
possibilidades de atuação nesse cenário refletem em paralelo à uma política de
reparação histórica na tentativa de propiciar novos rumos a essa história cujos
danos causados outrora reverberam tanto na atualidade.
Nesse sentido, a metodologia utilizada para viabilizar a construção da
pesquisa foi a revisão de literatura, com o intuito de delimitar, revisar e integrar
trabalhos publicados anteriormente sobre o objeto de estudo em questão, a fim
de propiciar a atualização do contexto em que se encontram as pesquisas mais
atuais e possibilitar uma maior compreensão acerca do mesmo ponto (Koller;
Couto; Hohendorff, 2014). Além disso, essa temática ainda permanece urgente
e relevante para a academia, visto a necessidade de avanços teóricos e
práticos que atuem de modo significativo e eficaz na garantia dos direitos
negados e na proteção dessa população tão violada.

CONSTRUÇÃO DAS SOCIEDADES CIVIS NO BRASIL: O QUE A


ESCRAVIDÃO DEIXOU?
As perspectivas de um país que se constituiu sob um viés exploratório e
majoritariamente negro vão em direto contraponto à elite disciplinadora que se
via e se considerava em aspecto fundamental e formador, cristã e branca. Uma
sociedade movimentada pela mão de obra dos escravizados, sob suas
habilidades, era regida por uma lógica de extermínio e submissão, cujo
determinante era a cor da pele (Oliveira, 2021).

104
Tal fato foi, no entanto, fator inédito, mesmo que se ouça falar nos
processos que envolviam a escravidão na África, ela nunca esteve tão
intimamente relacionada à cor da pele desses sujeitos, muito menos
explorados, sendo roubados de seus direitos e extinguindo sua existência
como cidadãos. O Brasil, comandado pelos portugueses e por sua lógica
civilizatória de embranquecimento, não apenas direcionou o desenvolvimento
das sociedades com o derrame do sangue negro e sua exploração, mas
também cravou marcas de distinções e desigualdades que nem os séculos
seriam capazes de apagar (Oliveira, 2021).
Os escravizados tinham suas existências extinguidas, não possuíam
direitos sob suas vidas, eram vendidos como mercadorias, sujeitos às mais
cruéis e violentas humilhações, seus filhos nasciam destinados ao mesmo
caminho exploratório, além dos inúmeros estupros e assassinatos (Nunes,
2006). A consideração sobre esse processo de constituição histórica seria
capaz de evidenciar a extensão necessária de políticas de reparação histórica,
que mesmo existindo no atual século, não se equivalem ao efeito do que foi
sofrido.
Como se não fosse o bastante, a suposta liberdade dos escravizados
direcionou a população negra à marginalização – ocupação das margens
sociais, sem dinheiro e em uma sociedade que se negava a contratar ex-
escravizados. A população teve que encontrar modos de sobreviver com aquilo
que não tinha e lhe era fervorosamente negado, não por acaso, as favelas dos
grandes centros urbanos são majoritariamente negras (Pires; Oyazarbal, 2014).
Como dito anteriormente, a escravidão não marca somente um momento
histórico de formação do Brasil, mas foi ela própria capaz de ditar os atores
sociais, as distinções entre bom e mau, qual era supostamente a cor de pele
certa e qual era a errada. Tal período foi, além de um determinante histórico,
direcionador de todo um processo de construção social, atribuindo um local de
miséria e exclusão aos negros, mesmo que fossem a maioria populacional do
país.
As heranças escravocratas não foram desassociadas do cenário social e
atualmente ainda exercem grande poder sobre a vida da população negra:
ainda são boicotadas as formas de acesso e ascensão social; não há interesse
do Estado em promover políticas efetivas de garantia de direitos, visto que

105
falamos de uma população a qual lhes é negado o direito à educação de
qualidade, à saúde e corriqueiramente ao lazer; é a população que ocupa
majoritariamente o proletariado, que segue em vínculos exploratórios; e que é
alvo de variadas formas de assassinatos e extermínios. Essa herança não
apenas designa o modo de viver da população, mas lhe direciona também o
lugar a ser ocupado, como deve ser vista ou se deve ser temida. Há uma
constituição histórica desde os tempos da escravatura que tenta a todo custo
forjar o negro como sinônimo de perigo e criminalidade (Pires; Oyazarbal,
2014).
Não obstante essa realidade racista, a religião exerceu grande influência
nessa lógica. Como o cristianismo era extremamente popular em todo mundo,
todas as práticas religiosas que não seguissem o rumo cristão eram
discriminadas e extinguidas. Os escravizados possuíam fortes heranças
culturais e religiosas e jamais as abandonaram, realizando até mesmo suas
cerimônias em segredo dos grandes fazendeiros. Na atualidade, há uma
imensa intolerância religiosa com todos os cultos de matriz africana, o que em
nenhuma hipótese pode ser desassociado desse processo civilizatório baseado
na exploração e no apagamento. Há práticas criminosas de todos os tipos,
como a destruição de terreiros e ameaça à vida dos participantes (Deutsche
Welle, 2019).
Além disso e como uma das maiores instituições de violência, tem-se o
surgimento da Polícia Militar (PM) em 1809, cujo objetivo era proteger e
garantir a segurança da família real que acabara de chegar ao Brasil, ou seja,
mantê-los a salvo e controlar os escravizados. A nova instituição foi marcada
pelas suas ações brutais contra os escravizados que fugiam, quilombolas e
capoeiras (Garcia, 2016). Com um recorte atual, a funcionalidade da PM não
mudou, as ações brutais e de extermínio continuam a acontecer contra a
população negra com aval do Estado e da sociedade.

LEI ÁUREA: LIBERDADE PARA QUEM?


“É declarada extinta a escravidão no Brasil” (Brasil, 1888). De forma
efetiva, tal atribuição deveria considerar os desdobramentos que uma lei como
essa poderia ocasionar, criando assim dispositivos possíveis para amparar
essa população e ser capaz de reinseri-la no cenário social, o que não

106
aconteceu. Com tal atribuição, os ex-escravizados buscavam ir embora das
fazendas onde eram explorados, migrando para outros locais na tentativa de
conseguir alguma estrutura para manter-se (Pires; Oyazarbal, 2014).
A sociedade não os aceitava, não havia empregos a serem ofertados a
eles, afinal, o ódio e discriminação à população negra foram sendo apurados
nos longos séculos de exploração. Os grandes fazendeiros e seus ex-
proprietários não aceitavam sua ida, já que agora a exploração não ocorreria
de modo tão brando. Pressionaram então as autoridades para proibir essa
movimentação e, assim, a migração passou a ser vista como vadiagem; não o
bastante, alguns ex-patrões passaram a requerer a tutoria dos filhos dos ex-
escravizados, forçando-os a retornar ao trabalho (Azevedo, 2018).
Em paralelo, em 1942 foi instituída a Lei da Vadiagem, que instituía
como violador todo aquele que não trabalhava, que não possuía renda e que
era encontrado na rua; em consonância, quem eram os recém-libertos sem
oportunidades de emprego, moradia ou renda? A lei autorizava a PM a agir
contra a população negra sob o viés do controle social (Direitos Brasil, 2018).
Não à toa, a polícia militar tem em suas ações uma taxa de letalidade
absurdamente alta (Silva; Eberhardt, 2021).
Sem lugar para morar, sem emprego, sem educação e sem acesso à
saúde, a liberdade teoricamente ofertada em lei servia diretamente a quem?
Toda essa indisponibilidade de acessos não ocorria ao acaso, era proposital
que não fosse ofertada nenhuma oportunidade cidadã e de sobrevivência. É a
partir disso que a exploração se consolida: quando se tira todas as
perspectivas de acesso de um sujeito, você o condena àquilo que deseja – no
caso da elite dominante, à exploração da mão de obra para que possa
enriquecer e ascender socialmente sob o suor do proletário.
Toda essa constituição histórica não teria tanto efeito se não fosse
envolta em diversos mitos raciais, que transformam todos os mecanismos
exploratórios em oportunidades benevolentes. Talvez o maior e mais influente
deles seja o da democracia racial, que instaurou a visão de um país mestiço,
como trunfo de um processo de igualdade entre as raças, o que jamais existiu.
A mestiçagem foi um mecanismo de embranquecimento e o mito da
democracia racial servia apenas para mascarar e fazer desaparecer toda a
violência racial e os estupros em série (Carneiro, 2023).

107
Esse mito injetou na sociedade um repúdio ao termo preconceito,
negando que ele exista e invisibilizando a temática racial (Carneiro, 2023),
mas, em contraponto, é essa mesma sociedade que silencia a população
negra, nega-lhes acesso a todos os ambientes, e reserva a eles, por meio de
mecanismos de controle e exploração, os empregos subalternos. É como se
nas entrelinhas essa sociedade fosse capaz de expressar: “eu não tenho
preconceito, só não aceito que eles tenham acesso ao mesmo que eu”.
Como exemplo direto dessa lógica, após a abolição, em 1980, Ruy
Barbosa, ministro da República, queimou todos os documentos que
registravam a escravidão sob o pretexto de esquecer e apagar tal período da
história do Brasil. No mesmo ano, o hino dizia: “(...) nem cremos que escravos
em outrora tenha havido em tão nobre país”. Há uma tentativa explícita de
distanciar todos os desdobramentos sociais da violência racial, criando
discursos que fomentam a bondade da elite, como se jamais dispusesse de
preconceito e violência, de tal modo que não haja culpa, e que ninguém se
levante para responsabilizá-la (Nunes, 2006).

POLÍTICAS DE EXTERMÍNIO E SAÚDE MENTAL DA POPULAÇÃO NEGRA:


HÁ UM CAMINHO POSSÍVEL?
Notoriamente, apesar de todos os desdobramentos históricos, alteram-
se somente os cenários de exploração na tentativa de velar as práticas de
violência e extermínio da população negra, a fim de perpetuar a lógica da falsa
democracia racial. Os dados não só escancaram essa realidade, como
reforçam a necessidade de ações afirmativas que viabilizem o exercício da
cidadania e a garantia de todos os direitos que são diariamente negados,
especialmente o direito à vida, que dá razão e segmento aos demais direitos
expressamente previstos na nossa Constituição Federal de 1988 (Brasil, 2016).
Quando se nega saúde, moradia, trabalho e educação, é negado o
direito à vida. Além disso, ao ser negada uma existência digna e amparada
pelo Estado, e, em contraponto, ao ser posta uma vida de violência e opressão,
esse direito é mais uma vez explicitamente desatendido (Gomes; Laborne,
2018). Se o mais básico dos direitos humanos é tão corriqueiramente negado,
quais são os acessos às políticas públicas que estão sendo ofertados de fato a
essa população? Quais são as ações afirmativas que o Estado tem se

108
interessado em pôr em prática para garantir a proteção básica à infância e à
juventude negra, de modo a viabilizar novos rumos e possibilidades distintas de
existência?
Conforme postulado no Atlas da Violência de 2021 (Cerqueira et al.,
2021), apesar da diminuição das taxas de homicídio na última década (entre
2009 e 2019) no país, essa queda nos dados é refletida majoritariamente em
pessoas não negras – houve uma diminuição de 20, 3%, sendo uma redução
de 30,5% de não negros, enquanto a da população negra foi de 15,5%. Além
disso, no ano de 2019, a estimativa de homicídios contra pessoas negras foi
162% maior que entre pessoas não negras (ibidem, 2021). Dentre as variáveis
refletidas nos dados apresentados, é pertinente considerar os assassinatos que
decorrem de intervenções policiais, visto o alvo explícito marcado nas costas
de quem possui a pele negra como denominador comum.
Conforme apontado no Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020),
entre 2013 e 2020, a taxa de homicídios pelas instituições policiais aumentou
190%, e o perfil das vítimas não é uma novidade. Os dados ainda indicam que
78,9% das vítimas são pessoas negras e é destacado também o recorte de
gênero, sendo majoritariamente homens – 98,4%, enquanto 1,6% são
mulheres. Além disso, outro aspecto presente nas estatísticas é a faixa etária
das vítimas, sendo 76% entre 0 e 29 anos, predominando a maior porcentagem
em jovens com idade entre 18 e 24 anos – 44,5% (Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, 2020).
É possível conceber que a cor da pele é fator determinante nos cenários
de violência e genocídio presentes no país, e reforça a herança escravocrata
mantenedora da hierarquização que determina quem tem o poder de exercer o
controle dos corpos e instituir quem morre e quem pode viver (Mbembe, 2018).
As ações policiais que resultam em morte são um claro exemplo das práticas
estruturais de controle e aniquilamento da população negra; como fruto direto
do racismo e da construção histórica que considera esses corpos subalternos e
representantes de perigo para a sociedade, mais especificamente para os
chamados “cidadãos de bem” (Gomes; Laborne, 2018).
O medo que se instaura e a relação direta que se estabelece entre a
criminalidade e a população negra no imaginário coletivo são tão intrínsecos
que a letalidade das intervenções policiais não causa espanto, questionamento

109
ou revolta; em contraponto, as vítimas são vistas como criminosos e a justiça
não é um interesse do Estado e da população favorecida com esse cenário
(Gomes; Laborne, 2018). Os agentes da polícia não apertam o gatilho
sozinhos, há o aval do Estado e da sociedade ao apoiar essas ações e reforçar
discursos de extermínio direcionados aos “suspeitos” que apresentam o perigo,
cujas características são marcadores pré-determinados e não
coincidentemente atribuídos à população negra (Franco; Silva, 2017).
O genocídio de jovens negros e periféricos no Brasil é uma das diversas
estratégias que foram encontradas ao longo do tempo para que sejam
mantidas as práticas escravocratas de dominação e poder, que mantêm a
história de violência e exploração viva pelos abusos e traumas do passado e do
presente (Gomes; Laborne, 2018). Não há garantia de condições dignas de
trabalho e educação, sequer moradia, saúde, alimentação e lazer; como
garantir o direito à vida sem que se conceda o acesso aos direitos básicos e
essenciais ao ser humano?
Tratando-se da educação, dados de 2022 sugerem que a taxa de
analfabetismo entre jovens negros de 15 anos ou mais é de 7,4%, enquanto a
de não negros com a mesma faixa etária é de 3,4%. Ainda sobre o campo
educacional e no mesmo ano de análise, é possível observar que enquanto
60,7% da população não negra completou o ciclo básico de estudos, essa
estimativa entre pessoas negras foi de 47,0%, o que reforça a discrepância
entre as oportunidades ofertadas a cada população. Outro fator alarmante é o
percentual de abandono escolar: o recorte racial demonstra que a taxa de
evasão entre os jovens de 14 a 29 anos negros e não negros é de 70,9% e
27,9%, respectivamente (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE,
2023).
Tais percentuais referentes ao cenário educacional brasileiro evidenciam
o desinteresse do Estado em propiciar o mínimo para a subsistência ou para a
garantia de dignidade; negros são maioria em taxas de analfabetismo e de
abandono escolar como reflexo também do epistemicídio, que se refere a um
mecanismo constitutivo do dispositivo de racialidade, atuando como forma de
dominação a partir da negação do conhecimento. Nesse sentido, desconsidera-
se a capacidade da população em produzir conhecimento, além das diversas

110
estratégias de desqualificação nos cenários de educação que contribuem para
a manutenção das desigualdades (Carneiro, 2023).
No que tange às condições de trabalho, dados de 2021 apontam que
pessoas não negras recebem, tratando-se de rendimento da ocupação, em
média 73,4% mais do que pessoas negras; a população negra é maioria em
trabalhos com menores rendimentos mensais, como serviços domésticos,
construção, agropecuária e ocupações informais. Ademais, as taxas de
desocupação entre negros e não negros são de 16,3% e 11,3%, na devida
ordem (IGBE, 2022). Não há valorização do trabalho, segurança, qualidade, e
muito menos condições dignas e humanizadas nas ocupações, o sentido do
trabalho prevalece pautado na subsistência e não são estabelecidos novos
caminhos possíveis nesse trajeto inteiramente desigual.
Não à toa, as demais estatísticas que consideram outros fatores e
contextos de violência sobre corpos considerados subalternos também
corroboram a manutenção dos privilégios para um grupo específico, não
havendo a menor intenção de renunciar às estratégias de silenciamento,
exploração e extermínio mantenedoras das relações coloniais. Nesse sentido,
como encontrar um caminho de direcionamento possível que abarque a
reparação dos danos causados e ofereça a essa população novas
oportunidades de existência e re-existências? De que modo é concebível
construir uma ponte entre os cenários de violência sofridos e ofertar estratégias
pautadas na saúde mental a uma população que sequer tem atendido o direito
mais básico dos Direitos Humanos – o direito à vida?
A ausência de políticas públicas que atuem diretamente nesse contexto
cruel de violência é alarmante, visto a necessidade urgente de práticas
voltadas para a redução das mortes decorrentes de intervenções policiais, e,
para além dessas, da própria morte em vida, causada pela invisibilidade da
subjetividade, pelo silenciamento e pelo extermínio dessa população (Ferreira,
2019; Romagnoli, 2022). É preciso que o Estado atribua a devida celeridade
aos abusos e às violências praticadas e à emergente imperatividade da
promoção e implementação de políticas voltadas a esse cenário (Ferreira,
2019).
Tais ações diretas e indiretas que corroboram a manutenção das
diversas formas de violência e extermínio da população negra são

111
consequências do contexto de necropolítica vivenciado no país. É a partir do
poder exercido pelo Estado em decidir quem deve viver e quem deve morrer,
além do próprio poder de fazer morrer, que a necropolítica se justifica em seu
fim; é sobre violar assiduamente os direitos de determinada população para
garantir a morte em vida. Essa morte em vida se dá especialmente pelos
cenários de violência, pelo genocídio da população, pelo lugar que ela ocupa
socialmente e por todos os direitos em teoria previstos que são diariamente
desatendidos (Mbembe, 2018).
Os diálogos entre a Psicologia e o campo das políticas públicas só é
possível ao ser considerado o cenário brasileiro a partir da compreensão da
necropolítica e a necessidade da descolonização que permeia a teoria e a
prática profissional, desfazendo as amarras coloniais que fomentam os padrões
de violência e exploração, a fim de propiciar uma atuação capaz de enfrentar e
resistir diante das desigualdades, e possibilitar uma escuta atenta e qualificada
que as considere (Romagnoli, 2022). No mais, é urgente que sejam propostas
ações afirmativas que defendam os direitos básicos e essenciais à vida, já que
a Constituição Federal de 1988 os prevê, mas não há garantias quanto à
efetivação desses direitos no dia a dia da população negra (Ferreira, 2019).

VIÉS DE ENFRENTAMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS


Compreender os desdobramentos da citada problemática é supor quais
medidas seriam necessárias em um contexto de enfrentamento e de que forma
verdadeiramente seria possível atestar sua aplicabilidade e cumprimento.
Considerar as políticas públicas como vias importantes na construção do
caminho que se oponha ao abuso, à exploração e ao extermínio da população
negra é se dirigir diretamente a políticas de reparação história, e, para além, na
extinção das instituições governamentais que são responsáveis pela morte
desenfreada dessa população, como a Polícia Militar (PM).
Políticas afirmativas como a política de cotas foram instauradas como
resposta aos séculos de exploração, subserviência e escassez de recursos,
não pelo acaso, mas propositalmente negados pela conjuntura pós-escravidão.
Em uma tentativa de igualar a discrepância de acesso às universidades e
equiparar as colocações nos concursos, a política de cotas constata a
ineficiência da educação oferecida à população e a ineficácia do Estado em

112
cumprir com seu dever. A política de cotas agiu em crescente número de
ingresso no ensino superior, mas nem ligeiramente equiparou essa disputa
(Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, 2022).
Para além do acesso à educação, essa população é costumeiramente
designada a cargos terceirizados, com discrepância de salários e que
requerem baixo nível educacional. As políticas afirmativas são o primeiro passo
de uma longa caminhada, já que por si só não são capazes de garantir a
eficácia, considerando as mais diversas variáveis enfrentadas pela população
negra, e o quanto são sabotados. Para que se fale em educação de qualidade
e equânime é preciso garantir que não haja necessidade de conciliar trabalho e
estudos e, para além disso, que essas crianças, adolescentes e jovens não
precisem se preocupar com suas próximas refeições e imperativamente saibam
que poderão escolher o que fazer e que existam oportunidades para tal (UFJF,
2022).
Para além do exposto, sendo a polícia brasileira aquela que mais mata
no mundo, a discussão da desmilitarização se justifica em seu fim. Fala-se de
um processo endossado por militares na formulação das emendas
constitucionais, em que há uma estreita relação entre os policiais militares e o
exército, que se entendem como força única e cujo inimigo comum é o povo.
Como percursor central da discussão, é necessário reiterar que não é
compatível que existam forças policiais militarizadas em um Estado
Democrático de Direito, visto que onde não se faz possível existir a real
distinção entre Estado e força de extermínio e combate, há enfraquecimento
dos governantes e pouco ou nenhum controle sobre os militares (Oliveira,
2015).
Propor a desmilitarização da polícia como estratégia de política pública
possível é considerar a garantia do direito básico e essencial à vida, e o
compromisso do Estado em não empregar agentes do extermínio da população
que o sustenta. Na impossibilidade de ações que não considerem como
determinante o quesito racial, que seja possível agir na estrutura dessas
instituições fundadas sob o racismo e tendo como alvo direto a população
negra (Oliveira, 2015). É importante reiterar que a lógica executada pela polícia
é amparada pela mídia e normalizada pela própria conjuntura: é meio-dia e os
telejornais sensacionalistas exibem as mortes ao vivo.

113
Como dado relevante, em pesquisa publicada pela Revista Pública
(Domenici; Barcelos, 2019), pessoas negras são mais condenadas por tráfico
com menos quantidade de drogas no estado de São Paulo, o que se explica a
partir da compreensão da Lei de Drogas que despenaliza os usuários, mas não
faz distinções claras sobre o que designa um usuário, quais quantidades assim
o qualificam, e o que designa um traficante, ficando a cargo da polícia definir tal
discriminação, apreendendo sob seu próprio viés. Frente a essa realidade, não
é novidade a régua racial usada não apenas pela polícia, mas também pelos
veículos de imprensa que, ao noticiar tais apreensões, rotulam negros como
traficantes e brancos como estudantes.
Como mais um retrato da referida realidade e forma de levantar-se
contra um sistema que opera para a sua morte, o rapper mineiro Gustavo, mais
conhecido como Djonga, usa algumas de suas letras para denunciar abusos
policiais e violência. No trecho da música Heresia, “(...) o morro chora e ainda
tem barro lá (...) não sabe ler nem escrever e sabe o nome da delegada (...) na
cintura era um celular e eles confundem com um oitão (...)”, é possível
identificar o retrato social, cuja violência parece ser dominante e realidade
corriqueira.
Onde está o Estado na proteção de sua população? Em quais locais é
possível vê-lo trabalhando preventivamente, garantindo educação de qualidade
e acesso à saúde? Para onde vão os inúmeros casos de assassinato
cometidos pela polícia, cujas mortes não são investigadas? As perguntas que
cercam a temática não parecem se esvair, sendo imperativo, para além dos
debates já fomentados socialmente e das recomendações externas, que se
faça valer as estratégias de desmilitarização da polícia, extinguindo a lógica
repressiva e as ferramentas que a permitem e sustentam, como uma ação de
proteção à população – e que seja essa quem exerça poder sobre aquela e
não ao contrário, como política pública urgente e irremediável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando o exposto, é possível conceber que o modo como as
relações são estruturadas no país é calcado na era colonial. A escravidão
deixou uma herança forte e resistente, que atravessa a luta constante de uma
população silenciada e considerada subalterna, e que passa por cima,

114
inclusive, da humanização e dos direitos essenciais à vida, em tese, garantidos
em unanimidade a todos os cidadãos, sem que haja qualquer tipo de
discriminação.
Apesar das tentativas de inculcar socialmente a ideia de igualdade racial
a partir de práticas racistas costumeiras e silenciosas, o genocídio dos jovens
negros e periféricos no país é escancarado diariamente nas mídias sociais. Em
contraponto, ainda como meio de silenciamento e negação dos abusos
cometidos, as reportagens são sempre tendenciosas e os culpados das
violências são as próprias vítimas. Nesse sentido, sendo a Polícia Militar a
instituição governamental responsável por práticas de extermínio em massa
dessa população, é imperativo e urgente pensar na desmilitarização da PM
enquanto política fundamental de enfrentamento ao genocídio escancarado
que a acomete.
Para além dos homicídios tão naturalizados e autorizados pelo Estado e
pela sociedade, ainda é preciso vivenciar a invisibilidade da própria existência,
visto a falta de assistência e garantia de acesso aos direitos básicos à
manutenção da vida. Desse modo, a Psicologia dialoga com o objeto de estudo
desta pesquisa, a partir de seu trabalho nas políticas públicas, já que, para se
pensar e discorrer sobre a saúde mental de uma população tão explorada e
recorrentemente desassistida, é preciso pensar primeiro na promoção de
políticas que assegurem qualidade de vida e acesso igualitário aos direitos
anteriormente previstos.
Tais políticas devem ser pensadas a partir do princípio da igualdade
material, cuja noção refere-se à necessária atenção às diferenças, para que
seja possível propiciar vias igualitárias de oportunidades. Desse modo, devem
ser desenvolvidas ações afirmativas que favoreçam as populações
discriminadas de modo estrutural, como estratégia de enfrentamento às
desigualdades sociais que inviabilizam a disposição justa dessas
oportunidades (Simão; Rodovalho, 2014).
A título de exemplo, podem ser ofertados cursos profissionalizantes nas
escolas públicas de todo o país, para que os jovens consigam conceber novos
trajetos e possibilidades na construção de suas próprias histórias; tal estratégia
pode viabilizar que eles já saiam de suas instituições de ensino com
qualificações específicas, que, consequentemente, proporcionem maiores

115
chances em suas buscas por emprego. Além disso, podem ser ofertados,
também, em redes públicas de ensino, cursos preparatórios para vestibular, a
fim de ampliar as possibilidades de ingresso desses jovens em universidades
públicas.
Assim, é imperativo e urgente o desenvolvimento de políticas públicas
que propiciem o essencial à vida e garantam que de fato as oportunidades
cheguem a essa população de modo a ofertar igualdade em condições. Além
disso, é preciso dispor de acesso à segurança por meio de ações que se
comprometam com a proteção do povo, sem que haja qualquer tipo de
demarcação dos territórios que devem ou não ser assegurados. Somente a
partir de um novo cenário de humanização e garantia de direitos podem ser
exploradas novas possibilidades de existências e re-existências.

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118
EXTERMÍNIO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE
NEGRAS: REFLEXÕES A PARTIR DAS
POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA E
DE DIREITOS HUMANOS

Aline Daniele Hoepers1; Beatriz Zanetti Baratella2

1
Pós-doutoranda, doutora, mestra e graduada em Psicologia. Psicóloga (Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo). Docente do Curso de Psicologia (Toledo Prudente Centro Universitário);
2
Graduanda em Psicologia (Toledo Prudente Centro Universitário).

RESUMO:
O estudo, que ora se concretiza neste capítulo, foi desenvolvido com o objetivo
de propor discussões críticas, a partir da Psicologia Social Jurídica, quanto ao
tema extermínio da infância e juventude negras. Realizamos pesquisa teórico-
reflexiva e empregamos, enquanto recursos metodológicos, revisão
bibliográfica e análise documental de normativas em interface com dados
estatísticos e notícias jornalísticas. A complexa realidade, aqui colocada em
relevo, informa que inúmeros ainda são os deslocamentos necessários rumo à
efetivação dos direitos humanos de crianças, adolescentes e jovens negras/os.
No bojo das incessantes lutas, cabe à Psicologia a assunção de uma postura
ético-política voltada ao enfrentamento de práticas e discursos que naturalizam
opressões e extermínios vividos por populações oprimidas, sobretudo a
população negra.
Palavras-chave: Necropolítica; Crianças; Adolescentes; Jovens.

INTRODUÇÃO
60% dos jovens de periferia
Sem antecedentes criminais já sofreram
violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia,
três são negras
Nas universidades brasileiras, apenas 2%
dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro
morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um
sobrevivente

(Racionais MC's)12

12
Música “Capítulo 4, Versículo 3” de Racionais MC's (1997).

119
O trecho da música, que inaugura as discussões e as inquietações
tecidas neste capítulo, escancara a realidade desigual em que estamos
inseridas/os, na qual viver e ter direitos humanos garantidos nem sempre são
condições concretamente possibilitadas a todas as pessoas.
Particularmente quanto à população infantojuvenil, em que pese termos,
na realidade brasileira, legislações como o Estatuto da Criança e do
Adolescente (Brasil, 1990) e o Estatuto da Juventude (Brasil, 2013), que
colocam em pauta um conjunto amplo de direitos, alinhados à perspectiva da
proteção integral e da autonomia, estes corpos seguem sendo alvos de
múltiplas violações e de extermínios.
A letra da música, assim como a realidade cotidiana, as estatísticas
oficiais e as notícias veiculadas em variadas mídias, são enfáticas em afirmar:
ser criança, adolescente e jovem no Brasil – a partir de uma perspectiva
interseccional, que coloca em evidência marcadores sociais da diferença (Brah,
2006), como raça, gênero, classe, sexualidade, idade e localização geográfica
– representa, ainda, em grande medida, ser objeto de desproteção, desamparo
e silenciamento social e estatal. A objetificação de algumas infâncias e
juventudes – leia-se, fundamentalmente, pobres e periféricas – amalgama-se a
outros processos sociais complexos, como é o caso do racismo e da
criminalização da pobreza.
Há um longo processo histórico, colocado em marcha no contexto
brasileiro, que explicita que racismo, sexismo e desigualdades sociais diversas
constituem e assentam o projeto de sociedade capitalista e colonialista que
temos. Crianças, adolescentes e jovens não estiveram imunes aos impactos
violentos das opressões historicamente consolidadas e articuladas.
Interseccionalmente, como discorre Collins (2022), as existências dessas
pessoas têm sido afetadas de modos complexos, gerando experiências
opressivas, mas que nem sempre são lidas socialmente como tal, em razão
dos processos adjacentes de naturalização das violências.
A violência sobre crianças e adolescentes acompanha a trajetória
humana desde os mais antigos registros. Inumeráveis são as formas
pelas quais se expressa, adaptando-se às especificidades culturais e
às possibilidades de cada momento histórico. Os diversos tipos de
violência costumam se expressar associadamente, conformando uma
rede onde se interligam as várias violências oriundas do sistema

120
social com aquelas praticadas no nível das relações interpessoais
(Assis, 1994, p. 126).

A banalização das violações direcionadas a esta população é, pois, um


processo histórico, social e cultural, que não foi superado. Em casa, nas ruas,
nas instituições, crianças, adolescentes e jovens – reconhecidas/os na letra da
lei como sujeito de direitos – seguem sendo alguns dos alvos preferenciais de
múltiplas e articuladas violências.
Vivemos, no presente, em uma sociedade pautada em dispositivos
legais e normas sociais supostamente democráticos, mas que, na vida
cotidiana, persiste (re)produzindo meios autoritários e violentos de controle
daqueles/as que não servem à lógica hegemônica. Sudbrack (2004) bem
destaca que as violências e os extermínios dirigidos a algumas camadas
populacionais ocorrem, historicamente, pelas mãos dos próprios agentes do
Estado. A repressão policial e outras estratégias de controle e dominação
estatal não são ferramentas novas.
Mbembe (2016) caracteriza este processo como uma política de morte,
direcionada a grupos sociais específicos. Ela não só disciplina corpos, mas
também produz modos de desumanização, criminalização e mortificação. A
necropolítica evidencia, portanto, quem pode viver e quem pode e deve morrer,
a partir de um conjunto de práticas e discursos que informam a quem cabe o
direito de existir e de acessar direitos e, por seu turno, quem se deve deixar
morrer ou exterminar. Conforme o autor, “nesse caso, a soberania é a
capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é „descartável‟
e quem não é” (p. 135).
Neste complexo cenário, este capítulo se situa a partir da pretensão de
discutir criticamente a temática do extermínio da infância e juventude negras.
Para isso, realizamos pesquisa de natureza teórico-reflexiva, acionando como
recursos metodológicos: revisão bibliográfica em livros e artigos científicos, que
dialogam criticamente com o tema, a partir da Psicologia Social Crítica ou de
outras áreas da Ciências Sociais e Humanas; e análise documental de
normativas (como resoluções, leis e recomendações brasileiras sobre o tema)
em interface com dados estatísticos e notícias jornalistas.
Posicionamo-nos, então, a partir da Psicologia Social Jurídica (Dameda;
Bicalho; Pedro, 2022), que se dedica a temáticas que compõem as complexas

121
tramas da Psicologia Social Crítica em interface com o campo da justiça,
políticas públicas e defesa de direitos. Partir dessa perspectiva visa, tal como
dispõem os autores, “contribuir com uma prática psicológica mais crítica,
localizada, implicada e preocupada com a garantia de direitos, estabelecendo
estratégias de enfrentamento às lógicas normalizadoras” (p. 82).
Nessa direção, na primeira seção, colocamos em relevo informações e
tensões existentes em (e entre) normativas brasileiras, estatísticas oficiais e
manchetes de notícias jornalísticas. Na seção seguinte, apresentamos
reflexões acerca dos desafios postos à Psicologia, em especial em políticas de
segurança pública e de direitos humanos.

QUEM PODE VIVER, QUEM DEVE MORRER?


“Menina de 5 anos morre durante uma ação policial na Ilha do
Governador, no Rio” (Jornal Nacional, 2023). A manchete escancara o que, na
realidade brasileira, tem sido frequente; nossos jovens sendo vitimados ao
invés de protegidos, indo na contramão dos direitos previstos no Estatuto da
Criança e do Adolescente (Brasil, 1990).
No Brasil, em 2022, 6.429 pessoas perderam a vida em decorrência de
intervenções policiais. O dado fica ainda mais alarmante quando lançamos o
olhar através dos marcadores sociais de idade e raça das vítimas: 83% eram
negras e 76% eram crianças, adolescentes e jovens com idades entre 12 e 29
anos, como aponta a última versão do Anuário Brasileiro de Segurança Pública
(Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023).
Esses indicadores nos alertam e evidenciam o perfil dos alvos: jovens
negros e periféricos, vítimas não somente do uso abusivo da força policial, mas
também do racismo estrutural e institucional, perpetuado por órgãos e agentes
estatais. Jovens pretos e pardos, predominantemente em situação de pobreza
e que habitam áreas periféricas, continuam sendo o principal grupo assujeitado
à violência policial.
Segundo a Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente – ANCED (2020), em relatório sobre o extermínio de
adolescentes e jovens no Brasil, o preconceito racial evidenciado pelas
estatísticas de homicídios reflete a tragédia da juventude no contexto da
chamada necropolítica, em que o Estado assume o papel de determinar quem

122
sobrevive e quem morre. Os perturbadores números relacionados às mortes
causadas por intervenção policial ressaltam ainda mais a institucionalização da
violência e como o próprio Estado identifica seu alvo predominante.
Embora as estatísticas nos apontem esses fatos, é notável a ausência
da identificação étnica das vítimas nas reportagens em todo o Brasil, além da
falta de detalhes sobre a trajetória perpetuada na vida destes adolescentes,
resultando na falta de preservação de sua memória e de respeito a sua
identidade. O enfoque recai exclusivamente nos eventos finais de suas vidas,
deixando de lado o reconhecimento das experiências e histórias de sujeitos
que possuíam uma história para contar. Ademais, grande parte das
reportagens e matérias foi identificada em veículos de mídia online com pouca
visibilidade. Isso ressalta que os homicídios de adolescentes não têm recebido
destaque em meios de comunicação, deixando clara a falta de atenção dada à
gravidade da violência enfrentada por essa população no Brasil (ANCED,
2020).
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente –
CONANDA, na Resolução nº 213/2018, salienta a importância de levar em
consideração de que modo marcadores sociais, como o gênero, a raça e a
idade, influenciam nas taxas de violência. Podemos observar, segundo essa
fonte, que adolescentes do sexo masculino enfrentam um risco 13,52 vezes
maior em comparação com adolescentes do sexo feminino, enquanto os
adolescentes negros têm um risco 2,88 vezes superior ao dos adolescentes
brancos de serem vítimas de homicídio.
A explicação frequentemente oferecida para respaldar esses números é
invariável: o confronto e a luta contra a criminalidade, que vê recurso à
violência como a única alternativa viável. Diante disso encontramos,
rotineiramente, estampando os meios de comunicação, manchetes como esta:
“Polícia diz que jovem baleado e morto apontou arma para a PM; operação
policial chega a 28 mortos no litoral de SP” (Portal G1, 2023); ou discursos
como estes: “Jovem de 15 anos ia ao dentista quando foi morto por PMs no
Guarujá, dizem familiares” (Freitas, 2023) e “Criança de 10 anos é morta na
Bahia em meio a ação policial” (Pitombo, 2023).
No entanto, essa linha de argumentação não se mantém quando
examinamos o nosso atual modelo de policiamento, o qual demonstrou ser

123
ineficaz na redução da violência ao longo das últimas décadas. Isso fica
evidente ao constatarmos que sete das dez cidades com as taxas mais
elevadas de mortes violentas intencionais no país estão localizadas nos
estados que possuem as forças policiais mais propensas à violência.
Evidentemente, forças policiais que adotam abordagens violentas não têm o
efeito de reduzir a violência. Como resposta à fragilidade dessa população,
vários estados continuam a apoiar abordagens tradicionais de policiamento que
os deixam menos protegidos e com dificuldades em acessar plenamente os
direitos civis essenciais relacionados à igualdade, conservando paradigmas de
violência institucionalizada e práticas extremamente injustas e inadequadas no
emprego da força, ultrapassando a resolução de conflitos e a providência do
direito à segurança (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023).
Fagundes, Guerra e Monteiro (2020) enfatizam que, embora seja uma
responsabilidade fundamental do Estado garantir o direito à proteção, o uso
indiscriminado e generalizado da força letal por parte de seus agentes acarreta
sérias consequências. Em primeiro lugar, a trivialização de tais incidentes
resulta em mortes de pessoas inocentes e na interrupção de atividades
econômicas e da prestação de serviços. E, segundo, tende a agravar as
disparidades sociais, visto que cenários onde a aplicação excessiva de força
policial se concentra são as áreas mais desfavorecidas das cidades, mantendo,
assim, padrões de marginalização da pobreza.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente emitiu
uma recomendação ao Governo Federal relacionada ao tema “Violência nas
Comunidades Pobres e Majoritariamente Negras no Brasil” (CONANDA, 2023).
Essa recomendação apresenta medidas cruciais que precisam ser
implementadas e revisadas. Como exemplo, o programa Olho Vivo, que busca
implementar câmeras corporais nas forças policiais. De acordo com uma
pesquisa conduzida em conjunto pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e
o Fundo das Nações Unidas para a Infância, o programa implementado pela
Polícia Militar do Estado de São Paulo, conseguiu uma significativa redução de
76,2% na taxa de letalidade nos batalhões onde essas câmeras passaram a
ser usadas. Além disso, o número de adolescentes que foram vítimas diminuiu
em 66,7% entre os anos de 2019 e 2022. Esses resultados representam uma
referência crucial para o Governo Federal, que também deve conduzir

124
discussões detalhadas sobre os modelos de gerenciamento e custódia das
imagens produzidas.
Adicionalmente, nesse mesmo documento, o órgão sugeriu o
desenvolvimento de uma abrangente proposta para reformar o sistema de
ensino policial no Brasil, afirmando que é imperativo avançar além da simples
"inclusão de direitos humanos nos currículos de treinamento policial"
(CONANDA, 2023, p. 2). Deve-se adotar abordagens educacionais que
abranjam a "combinação de conteúdos teóricos com estratégias, táticas e
estágios práticos orientados", bem como a "incorporação de avanços da
ciência e da tecnologia que reduzam o risco de vida e a utilização de armas de
fogo" (Ibidem). Este mesmo estudo também ressalta a necessidade de integrar
as diferentes escolas de polícia, criar uma Escola Nacional de Polícia,
estabelecer uma certificação nacional para instituições de ensino policial e
promover acordos entre academias, escolas de polícia e universidades para
aprimorar e avaliar o ensino. Além disso, outras propostas incluem a revisão da
legislação para estabelecer diretrizes e indicadores nacionais que orientem a
avaliação dos programas de formação policial.
Ainda, segundo a referida fonte, deve haver transparência de
informações, supervisão e publicação de dados sobre a violência letal dirigida a
crianças e adolescentes, exigindo aprimoramento no monitoramento e na
qualidade dos registros feitos pelas autoridades de segurança pública.
Também, reafirma-se ser essencial convocar reuniões que envolvam diversos
setores do governo federal, governadores e representantes de outros poderes
para estabelecer um amplo pacto nacional em prol da preservação da vida.
Outras orientações do referido Conselho, que visam ao enfrentamento
da violência letal contra crianças e adolescentes, são apresentadas na
Resolução nº 213/2018. A normativa salienta importantes diretrizes que
evidenciam a necessidade de: desenvolver e promover medidas preventivas
que tenham como foco o desmonte da cultura da violência, por meio de ações
que promovam a conscientização da sociedade sobre a perigosa trivialização
da violência letal; implementar planos, programas e ações voltados ao
enfrentamento desta forma de violência vivida por crianças e adolescentes,
inclusive de modo intersetorial, articulado com a sociedade civil e envolvendo
crianças e adolescentes; efetivar capacitação e aperfeiçoamento institucional

125
que tenham como eixos condutores a desconstrução de práticas
discriminatórias e do racismo institucional; promover pesquisas e indicadores
sobre a violência letal contra crianças e adolescentes, considerando
marcadores sociais, como gênero, raça e classe; garantir o acesso da
população infantojuvenil e suas famílias às políticas públicas e à justiça, por
meio de iniciativas que visem à inclusão e à promoção de oportunidades
sociais e econômicas; e fomentar ações que favoreçam o protagonismo
comunitário e a autonomia participativa de crianças e adolescentes.
As discussões elaboradas nesta seção revelam incontáveis contradições
existentes entre o que prevê ou propõe as normativas e o que ainda tem se
estabelecido na vida cotidiana, como também sugerem que são necessários
inúmeros deslocamentos, desconstruções e construções para que direitos
humanos e segurança sejam, de fato, direitos possibilitados a crianças,
adolescentes e jovens negras/os periféricas/os.

DESAFIOS À PSICOLOGIA NO CAMPO DAS POLÍTICAS DE SEGURANÇA


PÚBLICAS E DIREITOS HUMANOS
As informações trazidas ao capítulo, na seção anterior, expõem um
campo de tensões, composto por movimentos contraditórios: de produção de
morte infantojuvenil; e de tentativas de resistência e enfrentamento a esse
problema, alinhadas à perspectiva de defesa dos direitos humanos. Isso nos
informa que, no cenário brasileiro, coexistem a institucionalização políticas de
morte e as ações alternativas de defesa dos direitos humanos de crianças,
adolescentes e jovens.
Onde se situam as psicólogas e os psicólogos? Seus discursos e
práticas têm cooperado para a persistência da realidade instituída ou para a
resistência e o enfrentamento a essa realidade?
Fato é que, no contexto brasileiro, temos “uma das polícias mais
violentas do mundo, responsáveis por inúmeros registros de violação de
direitos humanos, como tortura e execuções extrajudiciais” (Presotto; Santos;
Giacomozzi, 2022, p. 223). Tal como já apontado em seção anterior, essas
autoras também sinalizam que há uma concentração da violência letal na
população negra, jovem e periférica. Ao salientarmos esse dado concreto, a

126
realidade desigual marcada pelo racismo e pela criminalização da pobreza não
deve permanecer escamoteada.
Estamos falando de uma “sociedade cujo racismo é a regra e não a
exceção” (Almeida, 2019, p. 33). A política de morte operada contra crianças,
adolescentes e jovens – sobretudo negras/os e periféricas/os – pelos
organismos estatais, como é o caso da polícia militar brasileira, sob o suposto
lema de guerra às drogas e à criminalidade em bairros e comunidades
periféricas, banaliza o projeto de violações brutais e de genocídio de vidas
consideradas insignificantes, colocado em marcha pelo “Estado neoliberal e
penal” (Wacquant, 2001).
Frente a isso, em alinhamento ao que propõem Presotto, Santos e
Giacomozzi (2022), também compreendemos que é papel da Psicologia
colocar em destaque estes processos que, historicamente, passaram por
aspectos naturais das e nas relações sociais. Refletir sobre o tema em pauta
passa, portanto, pela assunção de uma postura de questionamento da
realidade instituída que persiste silenciando e exterminando vidas de crianças,
adolescentes e jovens negras/os.
Pensando particularmente na atuação profissional que se localiza em
variados espaços ligados direta ou indiretamente ao sistema de justiça, como é
o caso das políticas de segurança pública e de direitos humanos, acreditamos
e defendemos que
O fazer da Psicologia Social Jurídica pode atentar à (r)existência da
juventude negra quando tenciona espaços institucionais de
reprodução dos estigmas de delinquência e periculosidade, na
tentativa de desconstruí-los, bem como de garantir o acesso a direitos
até então violados, contribuindo para a construção de políticas
afirmativas. Podendo ser dentro das polícias, dos Tribunais de
Justiça, dos Ministérios Públicos, das Defensorias Públicas, dos
serviços de cumprimento de medidas socioeducativas, entre outros.
Mas, com o compromisso da mudança institucional e estrutural em
parceria com movimentos sociais e outras instâncias sociais
(Presotto; Santos; Giacomozzi, 2022, p. 233).

É indispensável que a Psicologia, em diálogo horizontal e permanente


com os setores sociais, colabore para a efetivação e garantia de direitos de
crianças, adolescentes e jovens e enfrente discursos e práticas que persistem
em violar direitos e produzir processos de mortificação e extermínio
infantojuvenis. Nesse processo, estar com os setores populares – inclusive
com crianças, adolescentes e jovens impactados por sistemas opressivos – e

127
reconhecer suas necessidades concretas é, pois, tarefa primordial, como nos
ensinou Martín-Baró (1996).
Atendo-se às singularidades das populações e produzindo alternativas a
partir dos territórios e com as pessoas que vivem as opressões, a Psicologia se
coloca em uma posição sensível e estratégica para efetivar seu exercício
profissional, assumindo uma postura necessariamente contrária às violações
dos direitos de crianças, adolescentes e jovens. Contudo, embora a assunção
desse posicionamento seja dever ético e político da categoria, a história revela
que muito do que se fez e se faz, enquanto teorias e práticas psicológicas,
esteve e ainda está enraizado em um viés normatizador, categorizador e
excludente.
Se a realidade histórico-social foi e persiste sendo intensamente
regulada por práticas de (in)segurança pública, que segregam e violentam
alguns e algumas, sob a roupagem de “defesa da ordem social”, tal processo
também reverberou e sofreu reproduções no bojo da construção da Psicologia,
como ciência e profissão. Conhecimentos e ações psicológicas estigmatizantes
– assentadas em ideias de ajustamento, controle e normatização –
compuseram (e seguem ecoando em) variados espaços, cooperando para a
manutenção da realidade desigual que temos, e não para o seu enfrentamento.
Importante frisar que tais discursos e práticas se voltaram (e, não raro, ainda se
voltam) muito recorrentemente ao público que estamos discutindo centralmente
neste capítulo, qual seja: crianças, adolescentes e jovens negras/os e
periféricas/os.
A partir de instituições situadas no campo amplo do sistema de justiça
ou a ele relacionadas, integrando políticas de segurança pública e/ou de
direitos humanos, a Psicologia tem defendido a “segurança” a quem e ao quê?
Tem favorecido “direitos humanos” particularmente a quais humanos? Em
nome de seu suposto saber psicologizante e classificatório, tem contribuído
para reprodução de práticas de criminalização, encarceramento e extermínio,
ou tem denunciado o Estado violador e se posicionado em defesa dos direitos
de todas as pessoas, sobretudo daquelas oprimidas e por ele violadas?
Essas indagações nos convocam a alguns deslocamentos. Um primeiro,
que nos parece indispensável destacar, como tarefa incessante e fundamental
de psicólogas e psicólogos, inseridas/os nestes cenários de políticas públicas,

128
informa a imprescindibilidade de que reconheçamos as existências e as
resistências da infância e juventude negras para que, junto a esses atores
sociais, a Psicologia possa colaborar para a visibilização de sua multiplicidade
e para o enfrentamento de perspectivas que os circunscrevem a rótulos
essencialistas e a eles imputam elementos estigmatizantes. Isso passa por
construir coletivamente práticas variadas que reconheçam crianças,
adolescentes e jovens como sujeitos de direitos, isto é, enquanto sujeitos
políticos, ativos, protagonistas de suas histórias e lutas por garantia de direitos
– e não como meros receptáculos de ações estatais, que se dizem protetivas,
mas que mais têm servido ao controle e ao silenciamento desta população.
Um segundo desafio, articulado ao primeiro, informa a necessidade de
defendermos concepções e ações críticas e contextualizadas de defesa dos
direitos humanos infantojuvenis. Críticas e contextualizadas no sentido de que
direitos humanos não devem ser entendidos como mera abstração
universalizante, mas sim como dimensão que necessita ser refletida sob a ótica
interseccional. Sem o reconhecimento dos lugares interseccionados de
pertencimento destes sujeitos ativos, não vamos avançar rumo à uma
sociedade que efetivamente promova direitos sensíveis às multiplicidades que
os caracterizam. Crianças, adolescentes e jovens têm suas existências e suas
resistências constituídas por marcadores sociais da diferença variados e
articulados. Reconhecê-los e acioná-los criativamente, no processo de
enfrentamento às opressões estruturais e institucionalizadas, (re)produtoras de
violências, figura como necessidades emergente e urgente.
Não se trata, portanto, de se perguntar o que pretende cada um fazer
com a Psicologia, mas antes e fundamentalmente, para onde vai,
levado por seu próprio peso, o quefazer psicológico; que efeito
objetivo a atividade psicológica produz em uma determinada
sociedade (Martín-Baró, 1996, p. 13).

Eis a questão que deve nos acompanhar: a partir de onde nos situamos,
para onde vamos e implicadas/os com qual projeto de mundo?

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As mortes de crianças, adolescentes e jovens brasileiras/os, que
frequentemente têm estampado manchetes de noticiários e integrado
estatísticas oficiais, expõem uma realidade violenta que nosso país vem,

129
historicamente, criando e perpetuando. Os dados trazidos em cena, ao longo
do capítulo, são alarmantes e evidenciam, em meio a tantas outras violações
que esta população interseccionalmente sofre, a violência policial
indiscriminada.
O diálogo com as estatísticas, ora apresentadas, escancara que o abuso
de força por parte da polícia não é apenas um problema de segurança pública,
mas também uma manifestação do racismo estrutural presente em nossa
sociedade, articulado com outros sistemas opressivos, como o machismo, o
colonialismo e o capitalismo neoliberal.
A complexa realidade, aqui colocada em relevo, informa que inúmeros
ainda são os deslocamentos necessários rumo à efetivação da segurança e
dos direitos humanos de crianças, adolescentes e jovens negras/os. No bojo
das incessantes lutas, cabe à Psicologia a assunção de uma postura ético-
política voltada ao enfrentamento de práticas e discursos que naturalizam
opressões e extermínios vividos por populações oprimidas, sobretudo a
população negra periférica.
Estruturas físicas e subjetivas que produzem e perpetuam o genocídio
da população negra devem ser enfrentadas e desconstruídas. Tal como dispõe
Xavier (2019), integrar a luta coletiva, implicada com o legado de parar a
máquina de extermínio, é tarefa nossa, de todas as pessoas.

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132
1. 2.
ORGANIZADORAS

ALINE DANIELE HOEPERS

Pós-doutoranda, doutora e mestra em


Psicologia (PPI/UEM). Especialista em
Proteção Social (FAFIPA/UNESPAR).
Graduada em Psicologia (UEM). Psicóloga
judiciária do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo (TJSP). Docente do Curso de
Psicologia da Toledo Prudente Centro
Universitário.

Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8832972242023413

CAMILA MOTTA PAIVA

Doutora e mestra em Psicologia


(FFCLRP/USP). Graduada em Psicologia
(FFCLRP/USP). Pesquisadora associada
ao Grupo de Antropologia em Contextos
Islâmicos e Árabes (GRACIAS,
FFCLRP/USP).

Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6912724514984820

133
134

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