A Onda Conservadora Na Política Brasileira Traz o Fundamentalismo Ao Poder (2122)
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A Onda Conservadora Na Política Brasileira Traz o Fundamentalismo Ao Poder (2122)
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Joanildo Burity
Fundação Joaquim Nabuco
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Exporting Latin American Pentecostalism and the Catholic Charismatic Renewal, and the ‘Re-Christianization’ of Europe View project
All content following this page was uploaded by Joanildo Burity on 12 December 2016.
1
Pesquisador titular, Fundação Joaquim Nabuco. Professor dos Programas de Pós-graduação em
Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail:
[email protected].
2
Essa estratégia não foi inteiramente elaborada previamente, nem conduzida pelas mesmas mãos, ao
longo do período. “Os pentecostais”, como “os evangélicos”, não são, sabidamente, um grupo
monolítico, nem possuem uma liderança convergente em nível nacional (muito menos regional ou local).
Assim, o sucesso da estratégia tem se devido, curiosamente, a sua flexibilidade e condução pragmática,
numa palavra, sua contingência. Amplamente suprapartidária e policêntrica, a existência da “bancada
evangélica”, em si, nunca foi suficiente para assegurar coesão. Isto veio politicamente, primeiro pela
disputa anti-majoritária com a Igreja Católica, depois com “os comunistas” e, mais recentemente, contra
feministas, LGBTs e militantes negros(as) e indígenas. Um processo de sobredeterminação, entretanto,
não uma sequência cronológica, articula esses momentos ao longo do tempo.
3
Ou “os evangélicos”, como passaram a denominar o campo formado por um coletivo na verdade bem
heterogêneo dos pontos de vista partidário e ético-político (para não falar diretamente de ideologia,
algo bastante complexo no caso evangélico-pentecostal). “Os evangélicos” é um termo-valise, que
expressa um bem-sucedido processo de hegemonização do campo protestante pelos pentecostais,
iniciado ainda em fins dos anos de 1970, por iniciativa de uns poucos visionários pentecostais (criadores
da tese do “irmão vota em irmão”), e consolidado em poucos anos a partir do sucesso eleitoral de 1986.
“Os evangélicos” estão para a luta interna pela hegemonia do campo protestante como “bancada
evangélica” está para a luta externa por influência na sociedade e na política nacionais. São significantes
pivotais para a estratégia político-religiosa pentecostal, ancorados na plausibilidade e “evidência”
produzidas pelo crescimento numérico ininterrupto ao longo de cerca de 50 anos. Por isso mesmo, não
são referentes de uma objetividade dura e previamente dada, mas ingredientes de uma prática
2
6
Revenant, em francês, tanto pode significar retorno como fantasma, espectro. Isto não escapou a
Derrida (1994) em sua análise do marxismo, em Espectros de Marx.
4
que será o Brasil dos próximos anos. Mas seria apenas isso que estaria em jogo? O
Brasil dos próximos anos? Comecemos, sem mais delongas.
AUTOIMUNIZAÇÃO, RESSENTIMENTO E ANTAGONISMO
Apresento, de partida, minha concordância: há, sim, uma onda conservadora
(suspendamos, por enquanto, se esse termo substitui e engloba os outros dois). Na
religião, na política e, descobrimos alarmados, nas relações interpessoais, entre nossos
amigos e conhecidos (donde nosso perplexo recurso ao fantasma do fascismo) e, pelas
mídias sociais, também entre estranhos e desconhecidos. Conservadorismo desabrido,
insolente, sem meias palavras e sem meias medidas. Disputando todas as evidências
do que chamamos de avanços dos últimos 13 anos (alguns dos quais já haviam
começado mesmo antes) e anulando-as como desperdício de tempo, como apostas
infundadas, como produtos da corrupção, como perigosos precedentes ou como
figuras do mal a exorcizar, esquecer ou punir. O conservadorismo ao mesmo tempo se
apresenta como ferido pelo que se passou e como aquilo que tem que voltar, se
impor, para que a sociedade, a economia, a política se reergam, reajam aos sinais de
corrupção e de decomposição do tecido social. Apresenta-se como o fundamento
abalado, mas ainda capaz de reação e retomada, da ordem e do progresso, da ordem
com(o) progresso, prometidos pela República cujo nome aplicado ao Brasil é um de
nossos autoenganos. Conservadorismo que teve na crescente presença pública de
certos atores religiosos nas últimas décadas tanto um sinal de sobrevivência como de
reforço deliberado, capaz de ir absorvendo novos conteúdos com o passar do tempo.
Em suma, há conservadorismo e, mais uma vez, “a religião” parece ser uma
participante aguerrida e temivelmente protagonista de sua produção.
Mas já introduzo minha primeira qualificação: a onda conservadora não se contém
nas fronteiras nacionais, nem se origina a partir do seu interior. A geografia e a
cronologia dessa onda não são singularmente brasileiras nem definidas de modo
estável e linear. Não têm ordem, nem progridem linearmente. A maré montante de
reação conservadora se ergueu no mesmo período, grosso modo, quero insistir, que a
reação brasileira identifica como a temporalidade do desastre de que pretende nos
redimir, só que muito mais amplamente e independente da dinâmica nacional 7: desde
o início do novo século. Seus sinais apontam precisamente para uma resposta e uma
recusa a processos iniciados anteriormente à conjuntura dos últimos três anos. Donde
se tratar de uma reação conservadora. Elenco alguns desses sinais,
esquematicamente:
a) Desde fins dos anos de 1960 se foram intensificando diversas injunções ao estar-
junto (reconhecimento, integração, inclusão, participação), traduzidas na
emergência das chamadas políticas de identidade, do multiculturalismo, de
múltiplos processos de democratização política, de uma guinada cultural na política
7
Ao contrário. A despeito de suas vicissitudes, os últimos 16 anos, especialmente os últimos 13,
definiram a trajetória dominante brasileira numa certa contramão de macrotendências internacionais e
globais. Digo trajetória dominante porque seja nos primeiros 3 anos dessa periodização algo
improvisada, seja ao longo do período, houve abundantes indicações de que aquelas macrotendências
eram favorecidas por forças sociais e políticas locais e eram potencializadas por iniciativas específicas
dessas forças, representadas em todos os governos desde o retorno ao governo civil em 1985. Tendo
prevalecido de 1985 a 2002, a sintonia entre a hegemonia neoliberal global e nacionalmente foi
significativamente neutralizada, quando não revertida, a partir de 2003. Contramão agora penalizada.
5
reativa, dos danos colaterais. Trauma: a ferida aberta nos deixa suscetíveis a efeitos
ainda piores, que não conhecemos ainda. Como diz Derrida: “O traumatismo é
produzido pelo futuro, pelo que há-de-vir, pela ameaça do pior que há-de-vir, mais do
que pela agressão que ‘já terminou’” (2004: 160). Os efeitos desse trauma sobre as
instituições e cultura democráticas não demoraram a fazerem-se sentir, criando um
caldo de cultura no qual o acirramento da competição econômica, a emergência de
tensões e descompassos entre demandas redistributivas e por reconhecimento, e um
crescente temor e ressentimento frente à pluralidade étnica e cultural, levou a uma
intensificação da polarização política.
O BRASIL NESTE CENÁRIO
Se o ponto da primeira parte do argumento é que a onda conservadora vem se
erguendo há muitos anos, num cenário global alimentado pela insegurança (interna e
externa) e por crises econômicas, meu segundo passo é sugerir que o contexto
brasileiro não ficou imune às mesmas forças, nem a reencontrar soluções
apresentadas para ela no plano global, embora as tenha refratado por um bom tempo.
No caso da “ameaça terrorista”, somente muito recentemente houve alguma
ressonância – na preparação jurídica para as Olimpíadas do Rio de Janeiro, com o
sancionamento da lei antiterrorismo, com vetos, pela presidenta Dilma Rousseff (lei nº
13260/2016).
Creio que se trate, em nosso caso, também de um caso de intensificação e
propagação, não tanto de surgimento de processos inauditos. Afinal, seja pela via de
dinâmicas político-institucionais decorrentes do presidencialismo de coalizão
brasileiro, seja de dinâmicas glocais de afirmação de direitos, a “coexistência” de
liberais, esquerda e direita em política exibiu uma constante disputa por hegemonia no
interior das coalizões eleitorais desde a redemocratização dos anos de 1980. Nas duas
formações hegemônicas das últimas décadas, a da terceira via liderada pelo PSDB
entre 1995 e 2002 e a do lulismo pós-2003, a direita manteve-se como sócio
minoritário, mas jamais ausente ou sem possibilidade de influência. O que temos hoje
é um reencontro da política brasileira com os vetores macro da política global, que não
deixa de surpreender pela virulência e urgência da estratégia de desmontagem dos
arranjos construídos nas gestões lideradas pelo PT.
Me parece, em segundo lugar, que essa virulência e urgência foram dramatizadas
pela extensão e profundidade do avanço das demandas minoritárias no pós-2003:
feministas (ações de promoção da igualdade de gênero em várias áreas de governo);
afrodescendentes (Estatuto da Igualdade Racial); religiosas (novo Código Civil e várias
concessões nas políticas sociais e culturais); LGBT (lei contra a homofobia; terceiro
Plano Nacional de Direitos Humanos); ativistas sociais (Política Nacional de
Participação Social). Emoldurando este processo, as políticas majoritárias no campo
social (Bolsa Família e políticas de educação, saúde e habitação) produziram um
impacto fortemente democratizador e trouxeram para a equação vida
cotidiana/política institucional uma solução altamente inovadora na história
republicana brasileira. Vários desses avanços, inclusive, já vinham dos governos FHC.
Mas produziram, particularmente a partir das eleições de 2010, um acirramento
crescente entre perdedores relativos – sendo a elaboração da perda diversamente
construída desde lugares sociais que não se poderia igualar apenas com expressões
como “elites” ou “classes dominantes”. O denominador comum dos conservadorismos
8
que foram se arregimentando não estava na origem, mas foi alvo de uma complexa
trama de aproximações táticas no contexto de uma crescente frustração e impaciência
ante a determinação da maioria da população em sancionar a continuidade do projeto
lulista (Rennó e Cabello 2010; Singer 2012; Ricci 2013). Projeto no interior do qual
havia ganhadores que se sentiam perdedores, alarmados pela equalização de
condições em curso num dos países mais desiguais do mundo.
Quando se esperava que este seria um cenário de virada, de consolidação de um
caminho de transformação, uma aurora de democracia social, política e econômica,
uma conjunção de contratendências emerge a partir de 2013 que desencadeará uma
nova crise de hegemonia no Brasil. Disso podem ser apresentadas como indicativas do
processo e do seu desfecho:
a) As chamadas “Jornadas de Junho de 2013”, que exibiram e intensificaram a
fragmentação do campo democrático-popular e a emergência de demandas
conservadoras usando os repertórios da ação coletiva daquele campo e situando-
se no mesmo nível, passando em seguida a disputar a voz e a identidade popular
com a esquerda;
b) As dificuldades crescentes de gestão das forças políticas no governo Dilma, sem a
presença afiançadora e negociadora de Lula, e a infeliz tentativa de repetir a
receita utilizada no primeiro enfrentamento da crise mundial de 2008, pela adoção
de uma composição entre política econômica e reformas legais de corte neoliberal
com indução “desenvolvimentista” (anticíclica) do estado, acentuou o
distanciamento do seu governo das expectativas do novo “povo” criado pelo
lulismo, resultando numa fragmentação da coalizão, no aprofundamento da crise
econômica e no crescimento da insatisfação de múltiplos setores. Estes vetores
foram mutuamente reforçados durante e após o processo eleitoral de 2014, pela
posição de sistemático boicote e bloqueio assumido pelas oposições e de
esfriamento do apoio popular, levando a uma inviabilização do governo desde seus
primeiros momentos;
c) A efetiva derrota da coalizão lulista nos primeiros meses de 2016, a despeito da
vitória eleitoral, levou à abertura do processo de impeachment da presidenta e à
materialização de um golpe parlamentar-jurídico-midiático que pôs a direita no
poder pela primeira vez depois de Collor.
A figuração de uma “nova ordem” pós-lulismo, desde o ano de 2015, foi
conformando a montante do que estamos chamando de onda conservadora. Nesse
período, vemos emergir cadeias de equivalência entre demandas conservadoras de
diferentes naipes e vários esforços de construção de uma nova lógica majoritária, uma
nova hegemonia (ainda que permaneçamos, talvez por um fio, em crise de hegemonia,
no pleno sentido gramsciano do termo). Como no início de cada uma das duas outras
formações hegemônicas recentes (a terceira via peessedebista e o lulismo), o caráter
heterogêneo das forças convergentes não impediu de se fazer sentir o peso dessa
lógica majoritária, com uma “evidência” que se quer irresistível. As medidas
anunciadas e as mudanças na legislação iniciadas a partir do governo interino de
Michel Temer, o impeachment incontornável ainda que inteiramente fabricado jurídica
e politicamente e, revendo o texto em setembro de 2016, o rápido e implacável
desmonte de políticas, marcos legais e garantias constitucionais, são o testemunho
9
8
Agradeço a Ronaldo Almeida e Rodrigo Toniol por haverem, na discussão em que este trabalho foi
apresentado, identificado uma ausência em minha classificação original (que tratava apenas de religiões
minoritárias e só incluía três modalidades de religião pública no Brasil de hoje): a Igreja Católica. Desde
minha perspectiva, reconsidero de fato justificar-se falar de quatro modelos. O modelo católico
corresponde estritamente ao conceito sociológico de Igreja na tipologia weber-troeltschiana –
institucional, coextensivo com a identidade nacional, abrigando disputas entre várias modalidades de
relação com a cultura e a política e delas lançando mão em diferentes momentos: o constantinismo
(religião oficial), a cristandade, os dois gládios, o enfrentamento anti-moderno, a concordata, o
liberacionismo, etc. – e neste sentido não se confunde com os outros que nomeio. Mas, quero ressaltar,
o modelo católico vive, neste contexto, uma clara contestação por parte do modelo evangélico, que, na
lógica da minoritização connollyana (cf. Connolly 2011; Burity 2013), demanda que o catolicismo seja
“rebaixado” ou nivelado à condição de uma entre muitas “minorias religiosas”, uma entre outras
modalidades de religião pública, em nome de uma isonomia jurídico-política e de uma agonística
politico-cultural (caso especial da estratégia da Igreja Universal do Reino de Deus e das teologias do
domínio). Isto tem levado, na prática, a que o modelo católico de Igreja venha perdendo coesão, nas
últimas décadas, mesmo quando conquista vitórias parciais, como no caso do Acordo do Brasil com o
Vaticano, de 2010.
11
9
Esta perda de espaço do catolicismo quase por definição não afeta a igreja de uma única vez. O
catolicismo não é uno e tem sempre mantido rotas de escape, mobilizando suas correntes internas em
função dos interesses de longo prazo da Igreja hierárquica. No caso brasileiro, por exemplo, há suporte
oficial da Igreja a iniciativas dos três modelos minoritários – em acordos pragmáticos da “bancada
católica” no Parlamento com a evangélica; na reação ao impeachment junto com as igrejas e
organizações ecumênicas protestantes (unanimemente anti-impeachment, oficialmente); e no apoio às
políticas de patrimonialização da cultura religiosa afrodescendente, que também beneficiam a Igreja.
Esse polimorfismo, indicativo da pluralidade interna e da lógica estratégica da hierarquia, adverte contra
leituras apressadas sobre uma espécie de fenecimento generalizado do catolicismo.
10
A Frente Parlamentar Evangélica existe desde 2003. Embora registrada neste ano (52ª. Legislatura,
2003-2006), a Frente não aparece no site da Câmara nas duas legislaturas seguintes, seguindo
regulamentação instituída pela Mesa Diretora da Câmara, em seu Ato nº 69, de 10/11/2005. Isto porque
a exigência formal do regimento da Câmara Federal de participação de pelo menos um terço dos
parlamentares para a formação de uma frente parlamentar manteve o agrupamento como extraoficial,
comumente conhecido como “bancada evangélica”. Retorna na atual, 55ª. Legislatura, iniciada em 2015,
quando reuniu 199 assinaturas de deputados e 4 assinaturas de senadores, em novembro daquele ano,
constituindo-se como frente mista (cf. http://www.camara.leg.br/internet/deputado/frentes.asp). Para
diferentes análises da Frente Parlamentar Evangélica, ver Baptista 2009; Trevisan 2013; Dip 2015;
Suruagy 2016.
12
Acumulando uma sólida experiência através da criação de estruturas cada vez mais
profissionalizadas de planejamento, deliberação e monitoramento da estratégia, os
chamados conselhos políticos, a cúpula pentecostal se constituiu como partido
religioso, no sentido gramsciano de uma força sociopolítica efetiva, mesmo que a
representação tenha se construído por vias pluripartidárias, no sentido institucional de
partido político. O sucesso do modelo pentecostal levou a uma emulação por parte de
outros grupos religiosos, da renovação carismática católica aos espíritas e religiões de
matriz africana, com variados resultados. Mas cada vez mais os pentecostais se
afirmaram aí como protagonistas e reforçaram sua estratégia de representação
autônoma com participação num bloco de forças políticas regido pela lógica do
presidencialismo de coalizão.
Por ecumênicos/ativistas sociais inter-religiosos quero designar um conjunto
predominantemente formado por católicos e protestantes envolvidos em projetos
sociais locais, pastorais sociais, agências ecumênicas de serviço, organizações não-
governamentais e instâncias de direção denominacionais, nacionais ou atuantes no
Brasil, mas também gente de outras religiões e sem religião empregada nessas
organizações ou aliadas em iniciativas inter-religiosas concretas. A principal marca
desse conjunto de atores tem sido a prioridade de atuar sobre as instituições
(executivo, legislativo e judiciário), desde o contexto da sociedade civil e dos
movimentos sociais. Sua perspectiva prioritária foi a da incidência pública, entendida
como lobby, como controle social, como participação qualificada em instâncias
consultivas e deliberativas (fóruns e conselhos de políticas públicas ou de programas
governamentais, conferências temáticas, etc.), e como mobilização de base para
pautar temas importantes, subsidiar a formulação, implementação e avaliação de
políticas públicas ou protestar contra situações várias de injustiça, violência, riscos
ambientais, etc.
Ao campo ecumênico, desde os anos de 1990, veio se juntar, em diferentes níveis
de organicidade, um veio do mundo evangélico socialmente mobilizado e
decididamente escanteado pela minoritização pentecostal, o evangelicalismo da
missão integral, forçado à aproximação pelo estreitamento dos espaços no campo
evangélico para sua proposta de integrar evangelização conversionista, identidade
doutrinária tradicional e ação sociopolítica radical.
De um lado, os pentecostais se apropriaram dessa proposta e venceram pelos
números. De outro lado, os evangelicais se radicalizaram no mesmo período da
minoritização pentecostal, distanciando-se dos pentecostais e sendo neutralizados por
ela na disputa pela “sociedade civil” evangélica e no reconhecimento público de quem
falaria pelos evangélicos. O fiasco da Associação Evangélica do Brasil e o impacto
modesto da nova Aliança Cristã Evangélica Brasileira11 em operar uma clivagem com o
Conselho de Pastores do Brasil e com a liderança da Assembleia de Deus e da Igreja
Universal do Reino de Deus, selaram a subalternização dos evangelicais e ensejaram
um encontro com a minoria ecumênica e inter-religiosa, tanto pela base como em
nível de lideranças. Hoje, uma organização evangelical de ponta como a Visão Mundial
Brasil, uma das maiores ONGs do país em estrutura e financiamento, praticamente não
se identifica mais como evangélica (e sim como cristã), atua sem a prioridade de antes
11
Ver www.aliancaevangelica.org.br.
13
12
Ver www.renas.org.br.
13
Termo ampliado em seu significado original para indicar um lócus de resistência continuada dos
tempos da escravidão até nossos dias, ocupado por “populações tradicionais”.
14
15
Um megaprojeto financiado pela Academia Americana de Artes e Ciências, coordenado por Martin
Marty e Scott Appleby, The Fundamentalism Project, entre 1987 e 1995, produziu cinco coletâneas
(1991-1995) que, apesar de apresentarem uma enorme diversidade de casos empíricos de
manifestações religiosas conservadoras de reação antimoderna, não conseguiram convencer muitos
estudiosos quanto ao que haveria de comum em todas essas experiências.
16
16
Em trabalho escrito com Maria das Dores Campos Machado, baseado em pesquisa com lideranças
pentecostais e carismáticas envolvidas com a política no Brasil, encontramos muitos exemplos de
conservadorismo não-fundamentalista (cf. Machado e Burity 2014).
17
17
Ver, a propósito, duas excelentes matérias sobre as “bancadas” na Câmara e na comissão do
impeachment publicadas por Bruno Fonseca (2016a, b), que detalham em gráficos as sobreposições
entre elas, e que permitem perceber-se até onde se espraia a bancada evangélica.
18
A frase de Michel Temer foi: “O que queremos fazer agora com o Brasil é um ato religioso, um ato de
religação de toda a sociedade brasileira com os valores fundamentais do nosso país.” (UOL, 12/5/16, em
http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/05/12/catolico-temer-reforca-aceno-a-
religiosos-em-seu-discurso-de-posse.htm)
18
19
Para um quadro ilustrativo da variabilidade dessa presença parlamentar nas assembleias legislativas
dos Estados, ver a matéria e o gráfico publicados pelo jornal Estado de São Paulo, em 20 de abril de
2013, em http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,evangelicos-atuam-forte-tambem-em-
assembleias,1023500 e
https://i2.wp.com/www.estadao.com.br/fotos/EvangelicosAssembleias01_InforgraficosEstadao.jpg.
19
do uso sociológico com que ganhou espaço nas ciências sociais da religião, uma
mutação estrutural do status “da religião” no mundo contemporâneo. Esta mutação
não pode ser captada pelo uso descritivo da expressão “religião no espaço público”.
Esta assume, contra crescente evidência empírica, histórica e contemporânea, em
escala global, um tempo em que a religião teria sido “privatizada” e distanciada do
“espaço público”. Esta narrativa hoje revela-se muito mais um transbordamento de
projetos iluministas e secularizantes para o discurso científico do que uma evidência
demonstrada e irretorquível, histórica e contemporaneamente. Tornou-se uma
narrativa contestada: há outras interpretações e outras evidências a serem
reconhecidas que, no mínimo, a relativizam. Mais do que isto, a tese da
privatização/desprivatização é assumida como se previamente à desprivatização
recentemente admitida exista uma identidade e um projeto acabados “da religião”,
que se manteriam intactos ao ser cruzado o umbral do “espaço público”. A religião “no
espaço público”, assim, é vista como uma ocupação, por parte de um ente bem
conhecido e facilmente discernível, que traria para esse espaço algo que estivera
ausente dele ou que lhe seria, em todo caso, estruturalmente externo. Além disso, “a
religião” continuaria inteira e essencialmente não-afetada após sua ocupação do
espaço público, sua movimentação nesse espaço apenas taticamente assumindo
formas pluralistas ou democráticas, enquanto acumularia forças para uma investida
contra as instituições legadas pela modernidade ocidental. Investida que traria de
volta “a religião”, velha conhecida, a um controle de que fora deslocada, mesmo que
representada por novos agentes.
Não se trata aqui de ingenuamente contrapor a essas observações uma imagem
pristina da religião como intrinsecamente virtuosa, bem-intencionada e alinhada aos
anseios de liberdade e igualdade para todos. Apenas está em questão a suposição de
que há uma usurpação, por princípio, em curso, quando a religião, assim, no singular,
“adentra” o espaço público, e de que, quanto a este último, se supõe que seja uma
espécie de domínio a proteger, sem maiores qualificações e questionamentos sobre
quem de fato nele se move ou a ele tem acesso. Essas suposições, não demonstradas,
revertidas ou recentemente contestadas, tornam plausível a reentrada do termo
“fundamentalista” como marcador político, qualificativo do conservadorismo que seria
específico do religioso na atual conjuntura.
Mas creio que não é tão simples nem será tão fácil assim. Não é tão simples,
porque não existe, como destaquei acima, um único modelo de religião pública. Se nos
ativermos apenas aos quatro mencionados, o perfil dessa intervenção é claramente
diferenciável. E me parece totalmente descabido associar a política eclesiástica
católica, a incidência pública ecumênica ou a culturalização afrodescendente ao
conceito de fundamentalismo. Mas ainda que consideremos o campo pentecostal e
evangélico – que não são termos sinônimos – como candidato maior à associação, não
há aí um alinhamento automático nem integral à via político-eleitoral. Entre outras
coisas, a representação parlamentar dos evangélicos tem sido sistematicamente
menor do que Mais: mesmo de forma marginal, há pentecostais e evangélicos
associados à via ecumênico/ativista (por exemplo, a Visão Mundial, a Rede Evangélica
Nacional de Ação Social e vários posicionamentos de lideranças pentecostais). Por fim,
o modelo clássico protestante no Brasil, o do absenteísmo associado a uma rejeição da
política e a uma postura aquiescente diante das autoridades constituídas, continua
20
bastante vivo (uma pesquisa realizada durante a Marcha para Jesus de junho de 2016,
em São Paulo, identificou um percentual de 62,7% dos entrevistados sem identificação
política no gradiente direita/esquerda, com 16,4% não respondendo ou não sabendo,
9,4% se afirmando como de direita e 8,8% como de esquerda 20). Assim,
“fundamentalismo” deve ser claramente especificado se quisermos aplicar o termo
como conceito, como categoria descritiva e até como bordão acusatório para
caracterizar a religião pública nesta conjuntura.
Por outro lado, não será tão fácil estender o uso do termo “fundamentalismo”, seja
face à adesão ou aquiescência de amplos segmentos da representação parlamentar e
de setores da mídia aos argumentos, propostas e formas de mobilização dos
parlamentares pentecostais, seja à reação de setores laicos, não-religiosos e
politicamente liberais ou de esquerda, seja pela não-identificação dos pentecostais
com a expressão. Há apoio para os pentecostais além da bancada evangélica; os
pentecostais não podem tudo; muitos pentecostais não aceitam o rótulo em boa fé. É
preciso, então, posicionar melhor “os evangélicos” nesse jogo.
No primeiro caso, é óbvio que não se trata de uma “tomada de poder” pentecostal,
à revelia dos demais atores participantes da coalizão golpista. Se expressa aí uma
possível homologia entre conservadores sociais e políticos e fundamentalistas, que na
melhor das hipóteses deve ser vista como indicativa de uma aliança (o que qualificaria
um termo pelo outro, “conservador” como “fundamentalista” e vice-versa, ou
demandaria especificar mais o que tornaria fundamentalista a atuação pentecostal) e,
na pior, produziria uma confusão deliberada e analiticamente espúria 21.
No segundo caso, a própria existência de uma crítica religiosa – tanto
institucionalizada como difusa – aos pentecostais como “fundamentalistas” indica duas
coisas: primeiro, a existência de um lócus de uso polêmico, agonístico, do termo (o que
o torna nativo, parte de uma disputa intrarreligiosa); e segundo, que há uma crítica do
fundamentalismo (real ou imaginado) que visa a tudo fazer para não permitir que o
que quer que se deixe descrever por este termo ganhe terreno no mundo público.
Crítica feita por uma posição religiosa, mas de forma alguma fundamentalista. Religião
pública. No caso, de ecumênicos, ativistas inter-religiosos e simpatizantes secularistas.
Em nenhum desses dois casos o uso do termo é admitido pelos atores visados.
Neste sentido, o caráter político do termo se evidencia com bastante força, tornando
seu uso no contexto científico-social, enquanto descritor, marcador empírico, se não
um equívoco, pelo menos uma injustificável incoerência teórico-metodológica. Para
quem não aprecia essa querela acadêmica, o argumento, com o mesmo efeito, seria
um pouco diferente: se fundamentalismo pode se aplicar a religiosos não-pentecostais
e a não-religiosos conservadores, o que exatamente se quer atingir politicamente,
além de construir um espantalho para então atacá-lo? E, ainda que se excetue, por
concessão, do uso acusatório quem vier a se mostrar “não-fundamentalista” entre os
20
Ver http://pt.slideshare.net/LeandroOrtunes/infogrfico-marcha-para-jesus-mire-62581533/9.
21
Esse segundo gesto teórico-político é realizado, por exemplo, por alguém do quilate de Marilena
Chauí, que não apenas considera, sem qualificações, o “retorno da religião” um sinal de barbárie na
cultura contemporânea (numa leitura canhestra de Walter Benjamin), simplesmente o desrecalque de
“fundamentalismos religiosos”, como aplica o termo tanto ao mercado como à religião – ao
“fundamentalismo religioso” corresponderia um “fundamentalismo de mercado”, ao “misticismo do
mercado” corresponderia “a violência da teologia política” (cf. Chauí 2006: 128-29, 131, 132).
21
evangélicos, como qualificar esse expediente pelo qual se constrói uma figura de
inimigo público (“os evangélicos” como fundamentalistas) que, no entanto, se aplica
ao sabor da conveniência de quem a usa?
O que há de não-conjuntural nisso tudo é o caráter estrutural dessa presença
pública da religião. De um lado, a militância religiosa na política está instalada e corta
de muitos lados. De outro lado, cada vez mais lógicas e interlocutores seculares e
religiosas se interpenetram, em público, com vistas a uma maior visibilidade e em
disputa pelo que seria público, portanto, geral. Mas, diferentemente de um retorno ao
conceito sociológico de Igreja (isto é, de religião estatal e de identidade nacional-
religiosa), o processo se dá em marcos crescentemente pluralistas e minoritizante. É
isto que significa o conceito de religião pública.
Para concluir essa breve revisita ao tema da religião pública, uma característica
adicional dessa mutação estrutural e não singularmente brasileira é o fato de que
tanto o conteúdo quanto a forma do discurso religioso articulado publicamente e/ou
sobre questões públicas passam a ser objeto de discussão ou contestação, e os atores
religiosos precisam dar contas do que querem dizer, do grau de precisão ou
fidedignidade de suas interpretações dos textos sagrados ou de argumentos teológico-
políticos utilizados. E os interlocutores não-religiosos (ou de religiões concorrentes)
podem fazê-lo seja em bases estritamente seculares, seja no terreno mesmo do
discurso religioso22.
Mais, a religião pública provoca nos atores religiosos nela envolvidos uma injunção
a verem resolvidas em público suas querelas teológicas em torno do papel da igreja no
mundo, da tradução prática de princípios ético-sociais de base religiosa (mesmo
segundo interpretações populares de agentes religiosos não-clericais), ou da relação
entre convicções e comportamentos específicos do grupo religioso e os contextos
extramuros das instituições religiosas. Isso faz com que pressões internas por
relevância ou obediência à palavra divina, juntamente com a retroalimentação de
embates sociais e políticos sobre o campo intrarreligioso, impulsionem à exposição
pública, à disputa em público com atores religiosos e não-religiosos considerados
adversários e a pretensões de utilizar o poder estatal (via legislação, política pública ou
aparatos repressivos) para garantir a vitória e implementação de visões particulares do
grupo ou de correntes hegemônicas em seu interior.
Voltando ao caso brasileiro, na atual conjuntura, onde estaria a religião pública?
Não na vitória total e definitiva do fundamentalismo evangélico, mas na continuidade
dos quatro modelos, numa emergente nova correlação de forças favorável a um deles
e também na crescente vigência de um discurso da tolerância que circula em toda
parte, assumindo duas formas distintas.
De um lado, a continuidade dos modelos sob nova correlação de forças (pró-via
político-eleitoral) significa tanto que os outros atores não simplesmente
22
É interessante perceber como isso tem acontecido no parlamento, com propostas simetricamente
opostas sendo apresentadas por parlamentares defensores do estado laico ou dos movimentos de
mulheres e LGBT. Mas qualquer passeio pelas mídias sociais e blogs vai permitir percebermos a mesma
tendência: o sentido do discurso religioso e o conteúdo das propostas oriundas de atores religiosos são
debatidos publicamente, para além das fronteiras das organizações religiosas e independentemente da
voz autorizada de suas lideranças.
22
de religião pública em jogo que serão atingidas pela nova tentativa de privatizar a
religião, pessoas inocentes são estereotipicamente identificadas como intolerantes e
xingadas, discriminadas ou agredidas e a disputa política amplia o potencial dessa má
identificação para atingir grupos inteiros de pessoa. Isso tem ocorrido
generalizadamente com muçulmanos mundo afora, transformados em
fundamentalistas, antidemocráticos, violentos, passivos à manipulação por minorias
extremistas e transformados em alvos suspeitos privilegiados da viligância estatal –
tanto diplomática como policial. O problema da tolerância não está na ética pessoal
que a anima, mas em sua transformação num recurso de poder em uma disputa na
qual grupos aparentemente poderosos e “do mal” são na verdade alvos fáceis de
enquadramento, exposição e confrontação.23
Mas há uma alternativa ao discurso da tolerância, que creio estar também
representada no contexto brasileiro, por uma certa “turma-do-deixa-disso” ou “turma-
do-muita-calma-nessa-hora”. Em muitos casos é difícil distingui-la do discurso da
tolerância, senão na sua recusa em mimetizar os grupos que se utilizam da religião
pública para impor suas crenças e bizarrices a setores da população que não as
compartilham; ou seja, em sua recusa a usar o estado para construir uma figura de um
inimigo público a ser combatido, em nome da tolerância! Ela encarna uma proposta de
pluralismo agonístico como antídoto filosófico e sociopolítico à arregimentação contra
a religião pública em curso na construção de uma nova articulação entre religião,
conservadorismo moral/cultural e fascismo político/social. Alguns pensadores liberais
e não liberais contemporâneos podem ser apontados, como, por exemplo, John Gray,
James Tully, William Connolly e Chantal Mouffe. Não se trata de tolerância, nem
mesmo no sentido refinado por Paul Ricoeur (sua “quarta etapa da tolerância”) ou
André Comte-Sponville (sua visão se que a tolerância deve-se aplicar no contexto da
“opinião”), ambos deslocando-a do terreno da verdade. Pois a visão desses autores é
ainda insuficientemente relacional: só prescreve o respeito, não o engajamento mútuo
(origem da aspereza de diálogo, da escalada das paixões, da incompreensão mútua e
do ressentimento). Pluralismo agonístico é admissão dessa “quarta etapa da
tolerância” em meio à impossibilidade de encontrar recessos sociais e culturais onde o
outro estaria distante ou ausente. Não é política no sentido de neutralidade do estado,
como defende Ricoeur. Não é a laicidade francesa. E não se funda na suposição do
indivíduo isolado ou autônomo (como também questiona Jessé Souza em texto
recente – cf. Souza 2016), mas em agentes sempre situados, não em um só, mas em
vários complexos normativos de valores e práticas grupais ou institucionais, de
histórias coletivas e trajetórias pessoais nunca descoladas daquelas, de ambíguos
gestos de afastar-se da doxa e da incitação conjunturais mas sempre a partir de
contextos que nada têm de inocentes, puros e virtuosos.
A resposta pluralista, no contexto polarizado da conjuntura brasileira, aparece
menos em grandes pronunciamentos do que em gestos de desarme associados a
chamados a uma abertura para o diálogo áspero, pouco educado, imoderado, mas
franco e realmente preocupado e comprometido com saídas que não aumentem as
vítimas, o sofrimento, a má-fé e a injustiça que já campeiam. Ora se expressa na busca
23
Minha leitura do discurso da tolerância ampara-se aqui diretamente no trabalho de Wendy Brown
sobre tolerância como governamentalidade e suas reverberações nos debates contemporâneos sobre
religião e sexualidade (2006; Brown e Forst 2014).
24
por maior imparcialidade nas informações e relatos sobre ocorrências 24. Ora se
expressa na tentativa de criar espaços para que as partes mais conflagradas aceitem se
colocarem frente a frente sob um código mínimo de moderação que se expressa em
cada uma ser ouvida na mesma medida em que permite que as outras falem. Ora se
expressa na criação de oportunidades de reflexão e debate intelectual, como a que nos
reuniu neste lugar, neste fórum.
Para finalizar, e enfim responder diretamente à questão do lugar da religião na
conjunção de forças que definiu “a crise” e levou à consumação da derrota do lulismo,
ao processo de impeachment e à instauração de uma ordem ilegítima no Brasil entre o
processo eleitoral de 2014 e a votação no Senado em 31 de agosto de 2016,
“fundamentalismo” é um dispositivo relacional, uma categoria que pede compreensão
etnográfica daquilo que está dos dois lados da fronteira entre a elite parlamentar
pentecostal (e seu campo de gravitação) e seus adversários. Não explica nem descreve.
Não nos fala do que já sabemos. Aponta. Em geral, faz petição de princípio de que a
acolhamos por plausibilidade de que a identidade religiosa e seu “projeto” já
preexistam à recomposição política do campo da direita no Brasil, na atual conjuntura.
Do ponto de vista conceitual, seu uso sem qualificações contrabandearia um debate
entre crentes e descrentes (logo, interno ao “campo religioso”) e se arriscaria a fazer o
jogo das novas formas de “guerras de religião” e da nova governamentalidade da
tolerância que se afirma como alternativa ao cenário dos fundamentalismos.
Quando combatido por meio da injunção à tolerância, nesta conjuntura, não me
parece que escapemos de ver reproduzirem-se desdobramentos que a “guerra ao
terror” trouxe para a cultura política, a esfera pública e a própria legalidade
democráticas globalmente. Se pensarmos a lógica do político como envolvendo
precisamente a emergência do antagonismo, a polarização criada pela retórica
conservadora não será desarmada, apenas deslocada, pela retórica da tolerância. Se a
própria experiência da polarização do debate público e privado brasileiro sobre a crise,
a corrupção, o PT, o governo Dilma e o impeachment for observada de perto, a
dicotomização do espaço entre “nós” e “eles” nessa conjuntura de anti-petismo,
fazendo-se acompanhar não só de atos virulentos de disputa retórica mas também de
suposições sobre a subjetividade e a própria moralidade dos inimigos (conhecidos ou
não), não foi estranha a nenhum dos campos. O uso do discurso da tolerância em nada
serviu para dissuadir quem quer que fosse situado do “outro lado”, mas funcionou
como uma das posições do campo anti-retórica da crise e anti-impeachment.
Por sua vez, a revisita ao conceito de religião pública me permite afirmar a
relacionalidade da “religião no espaço público” (tema da mesa na qual este texto foi
apresentado) e que não é a religião pública em si que realiza a hipotética virada
fundamentalista na conjuntura brasileira. Suas fronteiras não mais se decidem em
termos de um especificamente religioso, mas num descentramento e borramento que
lhes abre espaço no público ao custo de a religião passar a ser contestada em seu
próprio terreno pelos seus outros (religiosos, juridico-políticos e movimentalistas),
enquanto empresta seu léxico, suas táticas e sua semântica a processos políticos nos
24
Ressalto, por exemplo, o trabalho realizado pelo Grupo de Pesquisa Mídia, Religião e Cultura (MIRE) do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo. Grande parte do
material jornalístico e opinativo reunido para este texto beneficiou-se do blog mantido pelo Grupo de
Pesquisa.
25
quais participa mas, até aqui, nunca como ator central. Neste contexto, a publicização
também implica em que o estado de novo emerge como lócus de embates entre
religiões e entre “a religião” e seus outros.
A onda de conservadorismo já quebrou em nossa praia, com força suficiente para
destruir conquistas que se julgavam ao abrigo do retrocesso. Politicamente, há uma
co-presença de componentes políticos, jurídicos, midiáticos, religiosos, empresariais,
acadêmicos na montagem do script e da cena do golpe que se perpetrou e busca
consolidar-se. É fato inconteste que o conservadorismo religioso é um componente do
processo e que há várias conexões entre este e várias outras posições no campo
golpista. Mas ganharemos pouco se justapusermos golpismo, conservadorismo,
fascismo e fundamentalismo e se, assim fazendo, inflacionarmos o que cabe dentro de
cada um e fragilizarmos o que poderiam ser anteparos preciosos no nível do
associativismo civil, das religiões organizadas, dos partidos e da própria
institucionalidade à generalização de formas regressivas de ocupação do espaço
público que a cada dia se tornam mais desenvoltas em sua retórica e suas iniciativas de
“reforma”. Todas as esferas da vida social são atravessadas pelo antagonismo
instalado na cena brasileira. Faremos bem em saber onde pisamos, porque nem tudo é
pantanoso ou incendiário. Também faremos bem em não simplesmente nos
indignarmos com a “intolerância” da conjuntura, mas tomarmos ou construirmos
nossa posição no embate, pois em momentos de crise desta profundidade e amplitude
não existe o lugar-nenhum da isenção.
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